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ANÁLISE DE ESCRITAS DE ALUNOS DE 6º ANO1

Kátia Lomba Bräkling2


Retomando umas ideias fundamentais
A discussão realizada neste módulo baseia-se na compreensão de que a escrita não
é um código de transcrição, mas um sistema de representação da língua. Isso
significa compreender que, no processo de sua aprendizagem o que está implicado,
direta e fundamentalmente é o cognitivo, e não as habilidades de discriminação
(auditiva ou visual), ainda que tais aspectos, possam ser constitutivos de qualquer
processo de aprendizagem.
Além disso, a discussão colocada baseia-se também na compreensão de que o modo
pelo qual esse sistema é apropriado pelo sujeito aprendiz, seja ele criança ou adulto
é o mesmo. Compreender a maneira pela qual o aluno concebe a escrita é condição
fundamental para que o professor possa planejar e desenvolver situações de
aprendizagem que criem condições efetivas para que o aluno compreenda esse
objeto.
Vários autores têm estudado as ideias que as crianças constroem quando tentam
compreender a escrita. Um deles é EMÍLIA FERREIRO que, na década de 70, junto com
seus colaboradores, investigaram escritas de crianças da
Emília Ferreiro é uma
classe média e periferia urbana marginalizada de Buenos
pesquisadora argentina
Aires, México, Monterrey, Barcelona e Genebra, em
radicada no México,
castelhano e em francês. Essa investigação foi baseada
Doutora em Psicologia pela
nas escritas espontâneas das crianças, nas quais eram
Universidade de Genebra,
analisados os aspectos construtivos — quer dizer, os tendo sido orientanda de
meios utilizados pelas crianças para produzir Jean Piaget.
diferenciações entre as escritas — e não os aspectos
gráficos — que implicam na qualidade do traçado, da distribuição espacial das
formas utilizadas para escrever, por exemplo.
Emília Ferreiro investigou, portanto, os problemas cognitivos envolvidos no
estabelecimento da relação entre o todo e as partes — texto, frases, palavras, sílabas
e letras — no processo de escrita e leitura. Seus estudos foram organizados em uma
teoria intitulada “psicogênese da língua escrita”, que nos mostra que a criança
elabora uma série de ideias, que possuem princípios organizadores, construídas a
partir da assimilação das informações de que dispuser para interpretar os textos
escritos, desde antes de compreender a relação existente entre as letras da escrita
e os sons da fala.
No Brasil outros pesquisadores também investigaram essa questão, tomando como
referência as pesquisas de Ferreiro: Telma Weisz em São Paulo (SP); Esther Pillar
Grossi em Porto Alegre (RS); Terezinha Nunes Carraher e Lúcia Browne Rego em
Recife (PE). Todos os dados obtidos por esses diferentes pesquisadores mostraram
que os processos de conceitualização da escrita seguem uma linha evolutiva similar
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em português.
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Este texto contém trechos adaptados do seguinte material: BRÄKLING, Kátia Lomba. MÓDULO
2: O Ensino da Língua Portuguesa: linguagem, interação e participação social II. UNIDADE
6: As ideias que as crianças elaboram sobre a escrita quando tentam compreendê-la.
Araras(SP):UNIARARAS/Rede Ensinar; 2003.
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Linguista e Pedagoga. Professora do ISE Vera Cruz. Consultora da Secretaria Estadual de
Educação. Especialista em Alfabetização e Ensino de Língua Portuguesa e na Formação de
Professores nessa área.
É nessa teoria — a psicogênese da língua escrita — que se baseia o trabalho
desenvolvido neste módulo do curso.

Sintetizando alguns Conhecimentos


Até agora, neste Módulo, em especial na videoaula e na leitura do texto de Ferreiro,
vimos que as crianças constroem ideias a respeito de o que é a escrita, o que
representa, e de que forma representa. Para construir essas ideias, as crianças se
baseiam nas informações de que dispuserem e às quais tiverem acesso, organizando-
as por princípios que lhes garantem uma lógica interna.
O processo de compreensão da escrita é, dessa forma, um longo processo de
construção e reconstrução de hipóteses a respeito desse objeto de conhecimento. Os
estudos têm mostrado que, inicialmente, as crianças precisam compreender o que a
escrita representa — os sons da fala — para, só depois, preocuparem-se com a
maneira como representa, — quer dizer, que os sons da fala são representados pelas
letras do alfabeto, que determinados sons são representados por determinadas letras
e que há uma certa regularidade nessa representação (há sempre a mesma
possibilidade — ou o mesmo conjunto de possibilidades — para a representação para
os sons).
De modo geral, podemos dizer que há duas maneiras fundamentais de a criança
compreender a escrita: antes de compreender a relação fonema-grafema e depois.
Se você assistiu ao vídeo “Construção da Escrita”, pode ver que ele discutiu as ideias
construídas pelas crianças que já compreenderam que a escrita representa a fala,
quer dizer, que já sabem que há uma relação entre os sons das palavras que se fala
e as letras que são usadas para grafar as palavras.
Ferreiro agrupou estas ideias em um único nível — que corresponde à “fonetização”
— e classificou as hipóteses construídas pelas crianças sobre como se escreve como
silábica, silábico-alfabética e alfabética.
Grosso modo, podemos dizer que a hipótese silábica é caracterizada pela crença
de que a cada emissão sonora da fala corresponde uma letra na escrita. Neste
momento, as crianças podem ou não ter construído os valores sonoros das letras,
quer dizer, ter compreendido qual o som que representam. Dessa forma, podem
utilizar as letras aleatoriamente, como na escrita abaixo:

HENRIQE
Q H R E (bri-ga-dei-ro)

K O R K (gua-ra-ná)

R I N E (bo-lo)

Q K N E (bis)

E I O I RINE (Eu co–mi bolo)

Nessa escrita fica bastante claro que Henrique utiliza quaisquer letras, sem haver
uma correspondência com o valor sonoro convencional de cada uma delas. É
interessante notar nessa escrita, que, algumas vezes, cada uma das emissões
sonoras é representada por mais de uma letra. Além disso, na leitura, o aluno
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estabeleceu uma correspondência entre as emissões sonoras da palavra falada e os


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segmentos do grafado, o que mostra que ele estabelece uma relação entre partes
do falado e partes do escrito. Utiliza com frequência as letras de seu nome (que
parece corresponder ao seu repertório básico de letras) e, para escrever guaraná é
importante que se esclareça que utilizou como referência a marca Kuat de
refrigerante.
As escritas silábico-alfabéticas são representativas do momento em que os alunos
percebem que a menor unidade da palavra não é a sílaba, mas o fonema, quer dizer,
que pode ser necessária mais de uma letra em cada sílaba. Então, em relação à
hipótese anterior, passam a agregar letras às sílabas. É o que se pode observar na
escrita de Geraldina (de 17 anos), apresentada a seguir.

Já a escrita alfabética é aquela na qual todos ou a grande maioria dos fonemas da


fala estão representados, ainda que não de maneira ortográfica. A escrita abaixo é
um exemplo dessa hipótese.
Considerando essas referências, podemos, então, sintetizar os conhecimentos que já
possuem os alunos autores dos textos analisados de acordo com o apresentado no
quadro a seguir.

ANÁLISE DAS ESCRITAS DE JOÃO PEDRO E LUCAS


ALUNO ANÁLISE DOS SABERES SOBRE A ESCRITA

O que já sabe sobre a escrita


LUCAS
 Já sabe que a escrita representa a fala.
 Sabe que há uma correspondência entre as emissões sonoras
(escrita silábica
da fala e as letras, o que é demonstrado pelas marcas que
com valor sonoro
convencional) indicam a leitura feita pelo aluno.
 Utiliza letras para escrever, reconhecendo-as como os sinais
adequados para fazê-lo.
 Utiliza as letras com o valor sonoro convencional, ainda que
sua escrita não represente a ordem correta das letras na
palavra.
 Algumas vezes utiliza mais de uma letra para representar
uma sílaba, como no RI de rinoceronte. Neste caso, apesar
de a professora ter anotado que o aluno não soube ler, todas
as letras empregadas existem na palavra.
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 Em quase todas as escritas as letras utilizadas foram
pertinentes, excetuando-se K, utilizado em TKRI – escrita
realizada para tigre e também na frase.
 Não segmentou as palavras na frase que foi escrita.
O que precisa aprender sobre a escrita
 Que a cada emissão sonora podem corresponder mais letras
do que aquelas que ele utiliza.
 Que há uma ordem certa para se registrar as letras em uma
palavra.
Uma vez tendo compreendido esses aspectos, do ponto de vista
imediato, virão as questões ortográficas, estrito senso, e as
relativas à segmentação entre as palavras.
O que já sabe sobre a escrita
JOÃO PEDRO
 Já sabe que a escrita representa a fala.
(escrita
alfabética)  Sabe que há uma correspondência entre as emissões sonoras
da fala e as letras.
 Utiliza letras para escrever, reconhecendo-as como os sinais
adequados para fazê-lo.
 Utiliza as letras reconhecendo seu valor sonoro convencional,
utilizando sempre grafias possíveis para os sons da fala,
ainda que os registros possam não ser ortograficamente
adequados.
 Algumas vezes escreve de modo a agregar uma palavra a
outra inadequadamente – hiposegmentação -, como em
miavó, que escreveu para minha avó; boliudixuva, para
bolinho de chuva; dimedu para de medo; dinoite, para de
noite. O critério que utiliza para juntar algumas palavras
parece ser o da prosódia, isto é, o que se relaciona ao modo
como as palavras são pronunciadas na fala ao se ler o texto.
 Algumas vezes separa palavras de modo inadequado –
hipersegmentação -, como em lu gar, para lugar. Esse erro
é bem menos frequente do que o anterior.
 Algumas palavras foram grafadas – ao que parece – segundo
uma variedade linguística específica da região do norte e
nordeste, como fai para faz; bolio, para bolinho; braqio,
para branquinho (estamos nos referindo à sílaba NHO,
especificamente, registrada em todas as ocorrências sem o
NH); istora, para história.
 Algumas vezes não registra o /S/ pós-vocálico, como em
goto, registro para gosto, ainda que o tenha indicado em
mis, registro de mais e em istora, registro realizado para
história.
O que precisa saber sobre a escrita
 Que não é possível utilizar a prosódia como referência para
decidir se as palavras são juntas ou separadas na escrita,
havendo um outro critério para essa tomada de decisão.
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 As questões ortográficas relativas às homofonias (S com som


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de Z; CH como alternativa para X.


 A necessidade de se utilizar o NH para o registro de minha,
bolinho, branquinho.
 Recursos de nasalização: cota, para conta; irugado para
enrugado, embora tenha empregado o N pós-vocálico em
condo, registro efetuado para quando.
 Que nem sempre que se pronuncia o U no final de palavras
(em sílabas átonas) se registra U, podendo ser O (caso de
medu, cutuvelo – nesse último caso, parece critério da
variedade linguística).
 Uso do Q, que deve ser seguido de U – brqio.
e outros aspectos ortográficos mais evidentes e fáceis de
identificar, como a necessidade de RR (irugado).

Como se vê, ainda que à primeira vista possa parecer que os alunos pouco sabem
sobre o sistema de escrita, uma análise mais atenta nos mostra que muitos
conhecimentos já foram construídos por eles. Na verdade, já ultrapassaram grandes
obstáculos, em especial o representado pela compreensão de que a escrita
representa a fala.

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