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Antropologia

Filosófica e
Sociológica
Antropologia filosófica
e sociológica

José Adir Lins Machado


Wilson Sanches
Edson Elias de Morais
Maria Eliza Correa Pacheco
© 2015 por Editora e Distribuidora Educacional S.A

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A636 Antropologia filosófica e sociológica / José Adir Lins


Machado ... [et al.]. – Londrina: Editora e Distribuidora
Educacional S. A., 2015.
186 p.

ISBN 978-85-8482-171-6

 1. Antropologia. 2. Antropologia filosófica. 3.


Antropologia sociológica. I. Machado, José Adir Lins. II.
Título

CDD 306

2015
Editora e Distribuidora Educacional S. A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041 ‑100 — Londrina — PR
e-mail: editora.educacional@kroton.com.br
Homepage: http://www.kroton.com.br/
Sumário

Unidade 1 | O surgimento da antropologia filosófica 7

Seção 1 - Surgimento e evolução do homem 11


1.1 | A origem das instituições 14

Seção 2 - Antropologia antiga e medieval 19


2.1 | Sócrates e a psique, o logos 20
2.2 | Platão: o homem, corpo e alma acidental 22
2.3 | Aristóteles, o homem é unidade 25
2.4 | O homem segundo a visão cristã 26
2.5 | A contribuição de Agostinho de Hipona 28

Seção 3 - Antropologia moderna e contemporânea 31


3.1 | Subjetividade e existencialismo 31
3.2 | Kierkegaard e o homem angustiado 33
3.3 | Nietzsche e o Übermensch 36
3.4 | Martin Heidegger: o homem é um ser para a morte 38
3.5 | Sartre: a existência precede a essência 40
3.6 | Max Scheler e o homem que se projeta 41

Unidade 2 | O surgimento da antroplogia sociológica 53

Seção 1 - Especificidade da ciência antropológica 57


1.1 | O que é isto que chamamos de Antropologia? 57

Seção 2 - Antropologia física 65


2.1 | Antropologia e biologia para compreensão do homem 65

Seção 3 - Antropologia cultural e social 71


3.1 | Relação entre antropologia cultural e antropologia social 71
3.2 | Evolucionismo cultural 72
3.3 | Difusionismo cultural 75
3.4 | Funcionalismo 76
3.5 | Estruturalismo 78
3.6 | Antropologia da prática e a visão de Marshal Sahlins 80
3.7 | Desafios de uma antropologia histórica 80

Seção 4 - Antropologia brasileira 85


4.1 | Algumas contribuições teóricas da antropologia brasileira: 85
Gilberto Freyre e a contribuição luso-brasileira à humanidade
4.2 | Algumas contribuições teóricas da antropologia brasileira: 88
Darcy Ribeiro e o povo brasileiro
Unidade 3 | Os principais problemas antropológicos 99

Seção 1 - O desenvolvimento da pesquisa de campo como condição 103


e método antropológico
1.1 | O problema do método antropológico 103

Seção 2 - A Antropologia e seus problemas 113


2.1 | Diversidade cultural 113
2.2 | Natureza versus cultura 122
2.3 | Cultura, ação e estrutura 129

Unidade 4 | O ser humano e suas manifestações 145

Seção 1 - O ser humano e suas manifestações significativas 149


1.1 | Processos e manifestações culturais 149

Seção 2 - Antropologia: pós-colonialismo e pósmodernidade 161


2.1 | Antropologia contemporânea 161

Seção 3 - Manifestações culturais contemporêneas – etnicidade 173


3.1 | Etnicidade 173
Apresentação

Olá pessoal! No livro “Antropologia Filosófica e Sociológica”, nós estudaremos,


na Unidade I, os aspectos da Antropologia Filosófica. Neste sentido teremos
como objeto de estudo a origem, a natureza e o destino do homem, bem como
o seu lugar no universo. O desafio está em se tentar descobrir qual é a essência
humana, sob a ótica filosófica. Quando falamos de essência humana, estamos
nos referindo à natureza de cada coisa. A interrogação sobre o que é o homem
é algo que se questiona desde os primórdios da cultura ocidental. Foi Sócrates
um dos primeiros filósofos a estudar o homem. Para ele o homem é alguém que
pode responder com racionalidade a uma indagação racional. Nesta perspectiva
perpassaremos pelas questões como o surgimento e evolução do homem; a
Antropologia antiga e medieval, ou seja, estudaremos o modo como os primeiros
filósofos, sobretudo Sócrates, Platão e Aristóteles, refletiram sobre o homem,
seus problemas, seus valores e como definiram e entenderam o ser humano e
sua essência. Contemplaremos pensadores que vão de Descartes à Heidegger e
Sartre, e as contribuições de Kierkegaard e Nietzsche e finalizando, a compreensão
antropológica contemporânea de acordo com Max Scheler.

Na Unidade II estudaremos a Especificidade da Ciência Antropológica, a


Antropologia Física; a Antropologia Social e Cultural, cuja discussão contemplará
as diversas correntes teóricas da antropologia dentro desta área. Finalizando esta
unidade perpassaremos pela Antropologia Brasileira em que veremos os principais
pressupostos da antropologia e seu caminho teórico percorrido no Brasil.

Na Unidade III perpassaremos pelos principais problemas antropológicos.


Tendo a Antropologia como uma chave para a compreensão do homem e
consequentemente, considere-se este como um emaranhado de problemas que
interessam a muitos campos de estudos, passaremos assim, a referir-se à natureza
e aos questionamentos sobre sua própria essência.

Na Unidade IV, a proposta do livro de antropologia é iniciá-lo na jornada das principais


tendências de análise do pensamento sobre as diversidades culturais e também, propiciar
um breve panorama das reflexões e pesquisas da antropologia contemporânea.

Desejamos um excelente estudo aos nossos estudantes e leitores desta obra


cujos autores do livro alvitram a ampliação dos conhecimentos dentro da Filosofia
Antropológica e Sociológica.

Prof. Sergio de Goes Barboza


Unidade 1

O SURGIMENTO DA
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
José Adir Lins Machado

Objetivos de aprendizagem:

Nesta unidade pretendemos apresentar as noções gerais acerca da


antropologia, o seu surgimento e a pertinência da reflexão sobre esse tema
desde a Grécia antiga até os dias atuais e também os principais problemas
tratados por essa esfera, bem como as contribuições mais relevantes dos
grandes filósofos ligados ao assunto, ao longo da história e do desenvolvimento
dessa disciplina. Estaremos, portanto, tratando do homem, sua evolução, os
desdobramentos e os impactos da cultura e a relevância do contexto sobre
a vida humana.

Seção 1 | Surgimento e evolução do homem


Contextualizaremos, dentro das descobertas apresentadas pelos estudos
da evolução humana, o aparecimento do homem de acordo com uma
perspectiva racional, biológica e evolutiva visando compreender a formação
psicológica, afetiva e cognitiva da nossa espécie, bem como os seus avanços
e retrocessos no processo evolutivo e na configuração atual do mundo e da
vida dos seres humanos.

Seção 2 | Antropologia antiga e medieval


Apresentaremos o modo como os primeiros filósofos, sobretudo
Sócrates, Platão e Aristóteles, refletiram sobre o homem, seus problemas,
seus valores e como definiram e entenderam o ser humano e sua essência.
Também apresentaremos a compreensão cristã acerca do homem e sua
realidade e as contribuições mais relevantes, sobretudo ao que concerne à
U1

valorização da subjetividade, com o intuito de percebermos uma


crescente na concepção de homem e, posteriormente, do conceito de
pessoa humana.

Seção 3 | Antropologia moderna e contemporânea


Abordaremos o panorama da antropologia contemporânea com ênfase
às questões existenciais, passando pelo subjetivismo e existencialismo, de
Descartes a Heidegger e Sartre – e as contribuições de Kierkegaard e Nietzsche
– e encerraremos com a abordagem acerca da compreensão antropológica
contemporânea de acordo com o pensamento de Max Scheler.

8 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Introdução à unidade

A palavra homem em língua grega se diz anthropos (άνθρωπος); e a palavra razão


se diz logos (λόγος). O vocábulo logos também tem o sentido de estudo, descrição,
narrativa e palavra. Portanto, a palavra antropologia é, etimologicamente, o estudo do
homem. Diante disso, buscaremos abordar esta área, mesmo que superficialmente,
desde o surgimento do fenômeno humano até a reflexão mais elaborada sobre a
existência humana e os principais problemas a ela pertinentes.

“Homem, conhece-te a ti mesmo” era o lema socrático e mote de suas indagações


e reflexões filosóficas. Essa sentença encontrava-se no pórtico do templo de
Delfos e foi adotada por Sócrates (470-399 a. C.) como guia de suas buscas pelo
conhecimento verdadeiro. Tal recomendação tem sentido de ser, pois segundo Carl
Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicoterapeuta suíço, 95% das pessoas passa
95% de suas vidas de modo inconsciente. Além disso, podemos perceber que em
situações extremas não temos clareza de nossos atos ou de nossas reações. Em
determinadas situações, é comum ouvirmos as pessoas alegarem que não entendem
porque agiram como agiram. Um exemplo clássico pode ser as pessoas que reagem
aos assaltos, mesmo tendo sempre sustentado que não se deve reagir. Ou seja, o
homem foi, é e talvez sempre seja um mistério; e a primeira demonstração disso é
que, apesar de tanta evolução, ainda não conseguimos entender e explicar de onde
viemos, quando viemos e porque viemos; até quando ficaremos aqui e para onde
iremos, se é que iremos para algum lugar.

Alguns filósofos procuraram definir o homem e vejam o que conseguiram:


Protágoras de Abdera (480-410 a. C.) dizia que “o homem é a medida de todas as
coisas”; Platão (428-347 a. C.) nos deu uma definição bastante estranha “o homem
é um bípede implume”; Ludwig Feuerbach (1804-1872) nos lembra que “o homem
é aquilo que come”; José Ortega y Gasset (1883-1955) sustentava que “o homem é
ele e suas circunstâncias; Para Martin Heidegger (1889-1976) “o homem é um ser
para a morte”.

Fugindo um pouco à linha dos pensadores temos também um grande poeta


que se refere ao ser humano alegando que “somos feito da mesma matéria de
nossos sonhos”, estamos nos referindo a William Shakespeare (1564-1616), o qual,
possivelmente sinaliza que a nossa essência não se reduz ao aspecto material, mas
vai além e se encontra naquilo que temos de mais genuíno, a nossa personalidade,
nossos pensamentos, sentimentos, sonhos e projetos.

O surgimento da antropologia filosófica 9


U1

Porém, a definição clássica nos foi legada por Aristóteles (364-322 a. C.): “o
homem é um animal racional”. Além dessa definição, o Estagirita (apelido de
Aristóteles) também afirmou que o homem é um animal político, zoon politikon
(Πολιτική ζώων). Diante de tudo isso não seria exagero afirmar que o homem é à
medida que pensa; ou seja, o homem é aquilo que tem em sua mente.

10 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Seção 1

Surgimento e evolução do homem


Prezado(a) leitor(a)! Nessa seção vamos buscar apresentar como o homem
chegou onde chegou; as fases pelas quais passou, como a evolução foi acontecendo
ao longo de séculos e até milênios e como foi se formando a nossa cultura e o nosso
modo de compreender o mundo, bem como as cidades e instituições e os maiores
legados e conquistas humanas.

Inicialmente é bom lembramos que até chegar ao ponto de definir a si próprio,


o homem teve uma longa caminhada desde o seu surgimento. Entende-se que o
homem surgiu como tantos outros animais, mas aos poucos e muito lentamente foi
evoluindo até chegar ao que hoje conhecemos. O homem é um dos animais mais
frágeis – se não o mais frágil – da natureza, no sentido de que não foi dotado de garras
e presas, ou força física descomunal para enfrentar os outros animais. Além disso, é
muito mais dependente de seus progenitores do que qualquer outro animal. Nossos
filhos não sobrevivem por si como os filhotes de tantos outros animais.

Porém, paradoxalmente, nós somos os animais que conseguem a maior assimilação


de informações e conhecimentos e com isso alcançamos alturas inimagináveis aos
outros animais. Vamos tentar entender o ser humano desde a sua origem.
Gráfico 1.1 | Do surgimento da terra aos nossos dias

Fonte: Arquivo do autor.

O surgimento da antropologia filosófica 11


U1

É bastante curioso saber que a terra ficou 90% de sua existência sem nenhuma
forma de vida sobre ela, nem mesmo a vida unicelular; e que o nosso planeta tem
4,5 bilhões de anos; e a vida unicelular (no fundo do mar) surgiu há 450 milhões de
anos. Do surgimento da terra ao desaparecimento dos primeiros répteis, a terra passou
por 94,61% do seu tempo. Dos primeiros primatas (Era Mesozoica) aos primeiros
prossímios (Paleoceno) 98,57%. Primeiros macacos 99,03%; primeiros símios 99,30%;
primeiros hominídeos 99,70%; Homo Sapiens 99,80%.

De acordo com a teoria evolucionista, o primeiro ancestral do homem teria


surgido por volta de sete milhões de anos atrás, mas somente próximo de cinco
milhões de anos começa a surgir uma espécie mais parecida com a nossa. Ainda
não era chamado de Homo, mas de Australopithecus (essa palavra significa homem-
macaco do sul). Seria, aparentemente, muito parecido com o macaco, porém já era
bípede ou ereto. Desde esse tempo até dois milhões de anos atrás, aproximadamente,
teria havido uma proliferação de espécies bípedes, a qual ficou conhecida como
irradiação adaptativa. Próximo de dois milhões de anos surgiu uma espécie com
desenvolvimento cerebral maior, a qual recebeu o nome de Homo Erectus. Várias
raças surgiram e desapareceram e apenas uma delas sobreviveu até os dias atuais, a
nossa raça, o Homo Sapiens.

Segundo estudiosos, nós surgimos muito recentemente se comparados com as


demais raças. O Homo Sapiens deve ter surgido entre cem e cento e cinquenta mil
anos atrás. Contudo, o Homo sapiens é considerado o ápice da evolução das espécies.
Apenas há trinta e cinco mil anos o homem aprendeu a falar e há oito mil anos parou
de andar pelo planeta e se tornou sedentário originando as tribos, preferencialmente
próximo do mar ou de lagos, onde além da pesca havia também o clima mais ameno.

Muito embora o senso comum afirme que descendemos dos macacos, a afirmação
mais correta é que temos com o macaco um ancestral comum. Temos diferenças
morfológicas e comportamentais muito acentuadas, podendo-se destacar entre elas:
(1) O fato de andarmos sobre as duas pernas, devido a modificações em nossa coluna
vertebral, pelve, pernas e pés; (2) O cérebro consideravelmente aumentado, com
face e mandíbulas mais curtas; (3) Modificações nos dentes e na forma parabólica da
arcada dentária; (4) Diferenças estruturais nos braços e nas mãos; e (5) Capacidade de
linguagem e de outros comportamentos mais bem elaborados (SOUZA, s/d, p. 14).

Para podermos compreender melhor o desenvolvimento humano sob o prisma da


aparência, ou da morfologia, consideremos que o cérebro de uma Australopithecus
tinha 400 cm³, enquanto o do Homo Habilis tinha de 600 a 700 cm³ e o do Homo
Erectus tinha 900 cm³. O nosso cérebro tem 1.350 cm³. E para melhor ilustrar a nossa
capacidade cerebral vamos lembrar que nascemos com cerca de 100 bilhões de
neurônios, sendo que cada neurônio consegue estabelecer em média 10 mil ligações
com os outros neurônios. Cinco meses antes de nascermos já temos praticamente
todos os nossos neurônios já formados.

12 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Gráfico 1.2 | Do surgimento da vida (450 milhões de anos) ao surgimento do homem (5,2
milhões de anos)

Fonte: Arquivo do autor.

Curiosamente lugares áridos do continente africano já foram leitos de rios


caudalosos. Lagos imensos de outrora, hoje não existem mais, mas deixaram marcas
perceptíveis, sobretudo, via satélite. Isso deve ter acontecido ocasionado pela elevação
da cordilheira do Himalaia, a qual provocou bloqueio de correntes de ar e muita seca
na África. Com as modificações geográficas, as árvores – principal fonte de alimento
para nossos ancestrais – diminuíram seu número, as matas foram ficando mais ralas
e os hominídeos foram obrigados a descer das árvores e correr de uma mata à outra
atrás de alimentos. Entende-se, portanto, que, muito provavelmente, o que levou o
homem a desenvolver o hábito de andar sobre as duas pernas foi essa necessidade de
deslocamento rápido.

Rogério F. de Souza (s/d, p. 15) afirma que:

Durante muitas décadas, várias foram as propostas formuladas


para tentar explicar a evolução desse modo de locomoção em
nossa linguagem ancestral. Uma das mais aceitas era a de que a
retração das florestas e o surgimento das savanas, ocorrida devido
a mudanças climáticas no leste africano, favoreceu o surgimento
dessa forma de locomoção. Por exemplo, Lovejoy em 1981, propôs
que o bipedalismo teria permitido que os machos sustentassem
as fêmeas nesse ambiente com maior carência de recursos. E,
fêmeas bem alimentadas teriam uma prole com maior chance de
sobrevivência. Isso implicaria na formação de casais estáveis, sem
haver disputa entre os machos para terem acesso às fêmeas.

O surgimento da antropologia filosófica 13


U1

O autor do texto, Rogério F. de Souza, se refere a Claude Owen


Lovejoy (1943), um antropólogo americano bastante conhecido por
seus trabalhos sobre o evolucionismo humano, de modo especial às
questões relacionadas à locomoção do Australopithecus e as origens
do bipedalismo. O artigo referido é A origem do homem, publicado em
1981, na Revista Science.

1.1 A origem das instituições

Como tantas outras espécies de animais, também nós, logo que surgimos
nos ligamos profundamente à coletividade, ou seja, preferimos (Preferência talvez
não seja o termo mais apropriado, pois muitos estudiosos sustentam a vivência
em coletividade é uma necessidade; é parte intrínseca da nossa natureza) viver
em grupos, pois assim nos tornamos mais fortes, nos sentimos mais seguros, nos
alimentamos mais e melhor e conseguimos dar continuidade à nossa espécie através
do acasalamento e da procriação.
Figura 1.1 | Jericó, considerada a cidade mais antiga do mundo ainda habitada, fundada
há 11 mil anos

Fonte: Disponível em:<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f6/Jericho.jpg/800px-Jericho.jpg>. Acesso


em: 31 mar. 2015.

Porém, como todo bando normalmente tem um líder, conosco não foi diferente.
Talvez o primeiro critério de liderança tenha sido a força física e assim os homens
passaram a ser vistos como os chefes, possivelmente de uma família e depois, com
a junção de várias famílias, veio também a liderança de um grupo ou bando. O passo

14 O surgimento da antropologia filosófica


U1

seguinte pode ter sido de modo espontâneo, a divisão das tarefas. Sabe-se que há
aproximadamente dez mil anos o homem, ao fixar-se em um determinado território,
passou a explorar a agricultura, tarefa delegada às mulheres, pois ficavam em casa,
enquanto os homens se dedicavam à caça, um serviço mais perigoso e pesado.

Os antropólogos entendem que o fato de os homens saírem para a


caça acabou por condicionar-lhes a ter uma visão de profundidade
mais aguçada, ou seja, o homem procura enxergar mais longe, mais
distante; e acabou também por forçar-lhe a ser mais calado, pois um
caçador tagarela não teria muito êxito na empreitada. Por outro lado, as
mulheres têm visão lateral melhor do que os homens e conversam mais,
pois a princípio o barulho servia, inclusive, para afugentar animais que
pudessem rondar a habitação.

Com a possibilidade de boas colheitas, abundância de alimentos e estocagem,


surgiu a necessidade de se vigiar os alimentos para que outras tribos não furtassem
ou saqueassem; e assim surgiu a classe dos guardiães, ou guerreiros. Ao lado do
surgimento dessa classe veio a classe sacerdotal responsável de oferecer culto
às divindades pelas farturas recebidas. Resumidamente temos já o surgimento da
Política (organizar a vida comunitária e garantir segurança militar) e da Religião
(apresentar as oferendas aos deuses e cultuá-los). O passo seguinte à organização
social será a elaboração de leis e decretos de modo a evitar conflitos violentos.

Claude Lévi-Strauss (1908-2009), filósofo e antropólogo


estruturalista francês, ao referir-se ao ser humano, disse:
“esse homem que está nesse planeta há dois minutos, não
ficará mais dois”. Se reduzirmos a idade do universo em
um ano, a nossa raça surgiu há apenas dois minutos. Esses
dois minutos representam 100 mil anos, aproximadamente.
Quanto tempo você acha que ainda ficaremos nesse planeta?
E como estaremos daqui a milhares de anos?

Ao falarmos de datas na escala de milhões de anos, é possível que não tenhamos


muita clareza dessa abrangência. Por esse motivo, apresentamos a seguir uma tabela
para ajudá-los a ter uma melhor compreensão. Se pudéssemos reduzir toda a idade
do nosso universo em um ano, veja como ficaria. Note principalmente quando surge
a terra, a vida na terra e o Homo Sapiens.

O surgimento da antropologia filosófica 15


U1

Quadro 1.1 | Compressão da história do universo em um ano terrestre

DIA E HORA FATO


1 jan. (0h) Criação do universo
8 maio Via Láctea
1 out. Terra
29 out. Vida
21 dez. Peixes
24 dez. Anfíbios
26 dez. Répteis
28 dez. (8h) Mamíferos
28 dez. (18h) Aves
31 dez. (17h27min) Ramapithecus
31 dez. (22h7min) Australopithecus afarensis
31 dez. (22h41min) Australopithecus africanus
31 dez. (23h7min) Homo habilis
31 dez. (23h27min) Homo erectus
31 dez. (23h55min) Homo sapiens neanderthalensis
31 dez. (23h58min) Homo sapiens sapiens
31 dez. (23h59min e 13 segundos) Homem na América
31 dez. (23h59min e 54 segundos) Abraão
31 dez. (23h59min e 56,9 segundos) Jesus Cristo
31 dez. (23h59min e 58,9 segundos) Francisco de Assis
31 dez. (23h59min e 59,2 segundos) Descobrimento do Brasil
31 dez. (23h59min e 59,69 segundos) Revolução Francesa
31 dez. (23h59min e 59,74 segundos) Independência do Brasil
31 dez. (23h59min e 59,80 segundos) Darwin e a “Origem das espécies”
31 dez. (23h59min e 59,85 segundos) Proclamação da República no Brasil
31 dez. (23h59min e 59,92 segundos) Revolução Russa
31 dez. (23h59min e 59,96 segundos) Brasília
31 dez. (24h) Hoje

TEMPO REAL TEMPO COMPRIMIDO


20 bilhões/anos 1 ano
1,67 bilhão/anos 1 mês
1 bilhão/anos 18 dias e 6 horas
55,55 milhões/anos 1 dia
2,31 milhões/anos 1 hora
1 milhão/anos 26 minutos 17segundos
38580 anos 1 minuto

16 O surgimento da antropologia filosófica


U1

1000 anos 1 segundo 58 centésimos


643 anos 1 segundo
100 anos 106 centésimos de segundo

Fonte: FREIRE-MAIA, Newton. Criação e evolução. Deus, o acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1986.

Esse quadro se encontra no livro Criação e Evolução (Veja mais informações nas
referências). Esclarecemos que o autor toma por base que o Big Bang, a origem do
universo, tenha ocorrido há 20 bilhões de anos, mas uma das datas mais comumente
aceita é de 13,7 bilhões de anos.

Prezado estudante! A nossa pretensão, com essa breve reflexão acerca do


surgimento da nossa espécie, foi apenas a de situar o ser humano dentro de um
contexto racional e evolutivo, bem como nos apercebermos como mais uma espécie
dentro de tantas que a natureza propiciou. Deste modo, talvez fique mais claro o
quanto o homem é fruto de construções sociais e visões de mundo construídas com
bases em situações contextualizadas de modo histórico, social, cultural, econômico,
religioso etc. Muitas foram as espécies humanas que passaram por este planeta,
mas apenas a nossa subsiste. O biólogo e paleontólogo americano Stephen Jay
Gould (1941-2002) afirmou que 99% das espécies que passaram por esse planeta
foram extintas. Ou seja, todas as mais diversas formas de vida que temos hoje em dia
representam apenas 1% de tudo o que já existiu.

1. Costuma-se admitir que o continente africano é o berço


da raça humana, mas por questões adversas o homem se viu
obrigado a abandonar aquele continente.

Entre essas condições, podemos citar:


a) Grandes inundações com devastação total das plantações.
b) Pestes advindas da convivência com animais venenosos.
c) Mudanças climáticas e diminuição de árvores, matas e florestas.
d) A violência provocada pelos conflitos entre as tribos rivais.

2. Entende-se que homens e mulheres começaram a dividir


suas tarefas desde há muito tempo e que essa divisão teria
sido elementar na formação dos traços característicos que
distinguirão a personalidade masculina da personalidade
feminina.

O surgimento da antropologia filosófica 17


U1

Considere:
I – Por ter de afugentar as feras que rondavam as casas, as
mulheres se tornaram mais violentas.
II – Por ter de primar pela acuidade visual ao sair para caçar
o homem desenvolveu maior visão de profundidade.
III – Por não poder afugentar a caça o homem tornou-se
mais recolhido e calado.
IV – Por ter de cuidar dos arredores da casa a mulher adquiriu
mulher visão lateral.

Estão corretas apenas as alternativas:


a) I, II e III.
b) II, III e IV.
c) I, II e IV.
d) I, III e IV.

18 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Seção 2
Antropologia antiga e medieval
Comumente se entende que o conhecimento do modo como se encontra
estruturado atualmente, deve ter tido o seu início na Grécia antiga com os filósofos
pré-socráticos, os Jônicos, ou Milésios: Tales de Mileto (625-558 a. C.), Anaximandro
de Mileto (610-547 a. C.) e Anaxímenes de Mileto (585-528 a.C.). Eles também ficaram
conhecidos como físicos, fisicistas ou naturalistas, em virtude de sua busca por um
possível elemento natural (arquê, ou arché) que teria dado origem a tudo o que
existe. Apenas após cento e vinte anos, aproximadamente, do início da reflexão sobre
o mundo, foi que um grupo chamado de sofistas, começou a se preocupar com a
temática relacionada ao ser humano.

Justiça seja feita! Muito embora, os sofistas não sejam bem vistos pela grande
maioria dos filósofos, ainda assim devemos reconhecer que a antropologia tem
seu início com eles. Na visão dos sofistas fazia mais sentido refletir sobre o homem,
sua existência, seus desafios e, sobretudo, a possibilidade de se alcançar ou não a
felicidade, do que refletir sobre a origem do mundo.

Para os sofistas a felicidade humana ocorreria caso o homem conseguisse desfrutar


dos prazeres ao máximo, ter muita riqueza e poder sobre os demais. Sócrates iniciou
os seus estudos com os sofistas, porém acabou discordando desta afirmação, pois
segundo ele havia pessoas que tinham, ou desfrutavam, de prazer, poder e riqueza
e mesmo assim não eram felizes. Portanto, segundo Sócrates, a felicidade não seria
necessariamente garantida pela aquisição dos bens propostos pelos sofistas.

Podemos até admitir que seja mais fácil ser feliz tendo
prazer, poder e riqueza; contudo, é possível ter tudo isso
e não ser feliz. Por vezes, parece que a felicidade está mais
vinculada às questões internas do que às questões externas.
Tente refletir profunda e criticamente sobre o que lhe faz
feliz e analise o motivo. Antes, porém, saiba que felicidade
não é o mesmo que alegria. Felicidade pode ser entendida
como viver bem e gostar de viver, mesmo que não estejamos
alegres em alguns momentos. Uma pessoa triste pode ser
feliz e uma pessoa alegre pode ser infeliz, pois alegria e
tristeza são momentâneas.

O surgimento da antropologia filosófica 19


U1

A partir de então Sócrates rompe com os sofistas e passa a estudar com outro
filósofo chamado Anaxágoras de Clazômena (500-428 a.C.). A ruptura não significou
distanciamento e frequentemente Sócrates e os sofistas acabaram conversando e
discordando sobre alguns pontos. A discordância foi tanta que os sofistas entraram
pejorativamente para a história, chegando até mesmo a serem conhecidos como
pseudofilósofos, ou, falsos filósofos. Vale lembrar que a palavra sofista se origina da
palavra sophos (σοφός), que em grego significa sábio e que os próprios sofistas se
autodenominavam sábios, numa atitude, possivelmente de arrogância. Daí talvez
o fato de terem angariados muitos adversários, com destaque para Sócrates e,
principalmente, Platão.

Uma das frases mais conhecidas dos sofistas, pronunciada por Protágoras de Abdera,
conforme já assinalamos, é “o homem é a medida de todas as coisas”. Porém, Sócrates
entendia que as coisas tinham a sua essência, a sua razão de ser, e que nem tudo era
definido conforme determinações humanas; pois se o homem fosse a medida de
todas as coisas, então nada seria medida para o homem e aqui surgiriam problemas
relacionados à ética, às leis e à verdade. Essa é a postura conhecida como relativismo,
ou seja, tudo é relativo ao homem. Via de regra, os filósofos são contra o relativismo.

2.1 SÓCRATES E A PSIQUE, O LOGOS


Segundo Sócrates, tudo o que existe tem a sua razão de ser, de existir, ou seja,
tem a sua essência (a palavra “essência” vem de essere, que em língua latina significa
ser), e a essência do homem é a sua alma, que em grego se diz psique (ψυχή). E a
alma, para ele é a razão (a consciência), que em grego se diz logos (λόγος). A busca
do bem, do belo e do verdadeiro, segundo Sócrates, seria a essência da alma, ou a
razão de ser, o motivo de sermos possuidores de pensamento, de consciência.

A essência (razão de ser) do homem é... ... a psique (alma: logos, razão, consciência).
A essência (razão de ser) da alma é... ... a busca do bem, do belo e do verdadeiro.

O motivo pelo qual estamos nesse mundo, a razão de vivermos, para Sócrates,
era para vivermos bem (sermos felizes), desfrutando das coisas boas, belas e
verdadeiras. Sócrates acreditava e afirmava que quem conhece o bem, pratica-o
e que só age mal, quem ignora o bem. Essa tese é conhecida como racionalismo
ético, ou intelectualismo moral. O homem que conhece o bem pratica o bem,
busca a virtude.

A virtude é a excelência e a excelência é a concretização daquilo que algo, ou


alguém, é essencialmente (para conhecermos a essência de alguma coisa, devemos
perguntar: “por que isso existe?”). Uma borracha, por exemplo, tem a virtude se
excelentemente apaga, ou apaga bem; um ventilador se ventila bem; um avião se
voa bem. Portanto, ser excelente é desempenhar bem a própria essência, a razão de
ser. E o ser humano, quando é virtuoso, quando tem a excelência? Quando supera a

20 O surgimento da antropologia filosófica


U1

ignorância, tem autodomínio, autonomia e é feliz, através do uso da razão.

Segundo Sócrates, “não é das riquezas que nascem as virtudes, mas das virtudes
nasce a riqueza”. (PESSANHA, 1999, p. 57). As virtudes da alma se manifestam na
força, no autocontrole, ou autodomínio, “no domínio de si mesmo nos estados de
prazer, dor e cansaço, no urgir das paixões e dos impulsos” (REALE, 1990, p. 91). A
saúde da psique, da alma, é a sua ordem. O ignorante é injusto, o injusto é malvado e
o malvado é infeliz. Trata-se de fazer a racionalidade prevalecer sobre a animalidade,
tornar a alma senhora do corpo. Somente quando age desta maneira o homem
estaria, segundo Sócrates, sendo verdadeiramente livre e feliz.
Figura 1.2 | A morte de Sócrates, quadro de 1787

Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9b/Socrates-1-.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015.

Sócrates foi acusado por Meleto, Ânito e Lícon, de corromper a juventude e não
cultuar os deuses da cidade, ou seja, o crime político-social da impiedade. Depois de
condenado, Sócrates ficou um mês na prisão esperando a morte e numa madrugada
foi acordado por Críton, um discípulo rico que, após subornar os guardas, o incitava
a fugir. Mesmo tendo sido injustamente condenado ele se recusou a fugir, alegando
que não conseguiria conviver com a consciência de ter agido mal.

A execução da pena foi tomar, pelas próprias mãos, um veneno chamado cicuta,
extraído da raiz de uma planta nativa da bacia mediterrânica, que vai paralisando
o corpo das extremidades ao coração. Tomou o copo de cicuta (a condenação
ao autoenvenenamento era para ampliar o sofrimento psicológico da pena) na
presença de grande parte de seus discípulos e, com a mesma lucidez com que tinha
vivido, morreu.

Antes de morrer, porém, deixou para os seus discípulos um consolo e para os


acusadores uma dúvida, conforme relata Platão: "E agora chegou a hora de nós
irmos, eu para morte e vocês para vida, quem de nós fica com a melhor parte
ninguém sabe, exceto o Deus".

O surgimento da antropologia filosófica 21


U1

Há pessoas, inclusive, que buscam traçar um paralelo entre Sócrates e


Jesus Cristo, lembrando que ambos sofreram morte injusta, ambos não
deixaram nada por escrito e nos últimos momentos de vida dos dois
aparece a figura de um animal, o galo. Quando Pedro disse que seguiria
Jesus por onde ele fosse, Jesus respondeu “antes que o galo cante, você
já terá me negado três vezes”. E quando Sócrates se preparava para
tomar o veneno fez um pedido: “Críton, antes que eu me esqueça, devo
um galo no Templo de Asclépio, por favor, pague essa promessa, pois
não quero morrer em dívida com os deuses”.

2.2 Platão: o homem, corpo e alma acidental


Uma das características mais marcantes do pensamento platônico é o dualismo
e dentro dessa perspectiva a sua concepção de homem também aparece de modo
dual. Para ele o homem não seria uma unidade, mas uma dualidade psicossomática
(psique, alma; soma [σώμα], corpo). Corpo e alma não precisariam necessariamente
estar juntos. Tanto não precisavam que não estavam antes do nosso nascimento.
Para Platão a alma vivia livre no Hiperurânio (ou mundo das ideias), e momentos
antes do nascimento, por intermédio
Figura 1.3 | Busto de Platão do Demiurgo (o deus que plasma a
humanidade) a junção é feita. A alma desce
do Hiperurânio, passa pelo Rio Lethes (em
grego λήθη significa - esquecimento) toma
a água desse rio e se une ao corpo depois
de ter esquecido tudo o que contemplou
no mundo das ideias.

A união do corpo com a alma é


acidental, ou seja, por acaso, pois a alma
não necessita do corpo; sobrevive sem
ele. A alma é a essência do homem;
é ela que dá movimento ao homem
(movimento, em linguagem filosófica
significa movimento interno, ou seja,
crescimento, mudança, transformação).
O corpo é apenas o receptáculo da
alma e a ela devedor de sua vida, da
sua animosidade; ele é a sua tumba, o
cárcere da alma, o lugar onde ela cumpre
Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/ZfuLt7>. Acesso suas penas.
em: 31 mar. 2015.

22 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Platão afirma que o verdadeiro filósofo trabalha durante toda a sua vida, na
preparação da sua morte, pois fundamentalmente somos a nossa alma, porém
ela está presa ao corpo, assim que o corpo morre a alma se liberta. “O corpo é
raiz de todo mal, fonte de amores insensatos, de paixões, inimizades, discórdias,
ignorância e loucura. E tudo isso representa precisamente fatores de morte para a
alma”. (REALE, 1990, p. 154).

As características do corpo são materialidade, mutabilidade, corruptibilidade


e mortalidade (corrupção, ou corruptibilidade, tem o sentido de envelhecer,
degenerar); enquanto as características da alma são espiritualidade, imutabilidade,
incorruptibilidade e imortalidade. Na alma reside a racionalidade e por isso ela
deseja as realidades divinas enquanto o corpo é a sede dos desejos, instintos e
paixões. “Contudo, a alma poderá, segundo a doutrina pitagórica assumida por
Platão, tanto esquecer-se de sua origem divina e apegar-se aos bens corporais,
quanto desprezar o corpo e sujeitar-se às purificações ascéticas”. (MACHADO,
2013, p. 12).

Platão trata da questão da alma em diversas obras, mas entre


elas se destacam o Timeu, onde se aborda a criação do mundo e
o Fédon, em que ele expõe a sua teoria sobre a imortalidade da
alma. Inicialmente apenas a alma existia, no mundo das ideias, no
Hiperurânio. E, então, Demiurgo delegou aos deuses menores a
criação do corpo, dizendo: “Filhos dos deuses de quem sou o autor
[...] escutai o que minhas palavras ensinar-vos-ão [...] aplicai-vos,
conforme a vossa natureza, a fabricar seres vivos [...] adicionando
a esta parte imortal uma parte mortal, fabricai viventes, fazei-os
nascer, dai-lhes sustento, fazei-os crescer, e quanto perecerem
recebei-os de novo junto a vós”. E mais adiante o Demiurgo ordenou:
“que as almas sejam pela ação da necessidade, implantadas nos
corpos”. (MACHADO, 2013, p. 12).

Por entender a alma como a causa do movimento (aquilo que nos leva a fazer
algo), Platão acaba por defender que o homem possui três almas. E ele vai além,
diz onde cada uma dessas almas se encontra em nossos corpos. Na cabeça se
encontra a alma racional, cuja tarefa (usamos o termo tarefa para que a linguagem
fique mais próxima da usual, mas Platão usa o termo virtude) é levar-nos a agir pela
razão, ou como dizemos hoje em dia, não nos deixar fazer loucuras, fazer apenas
aquilo que é correto e permitido. Em nosso tórax se encontra a alma irascível, ou
colérica (aquela que sente cólera ou ira), cuja tarefa é nos dar coragem (coragem
mais no sentido de determinação, firmeza de propósito, dominar o impulso). E
no abdômen fica a alma concupiscível ou, desejante cuja tarefa é nos permitir a
temperança (não cometer excessos, dominar os desejos).

O surgimento da antropologia filosófica 23


U1

Um homem justo é aquele que tem as três almas em harmonia sob o comando
da racional. A alma racional não pode se deixar dominar pelas outras duas, mas
ao contrário, deve dominá-las. Além de cada alma ter a sua tarefa, cada uma delas
também tem um metal próprio. O metal da alma racional é o ouro, da alma irascível
é a prata e da alma concupiscível é o bronze. Nos homens sábios prevalece a alma
de ouro; os guerreiros possuem a alma de prata de modo mais destacado, e nos
trabalhadores prevalece a alma de bronze.

Para Platão o comportamento humano se origina de três fontes: desejo, emoção


e conhecimento. O desejo nasce do baixo-ventre, a emoção surge do coração e o
conhecimento tem sua sede na cabeça. Enquanto certos homens não passam da
personificação do desejo, existem outros que são templos de sentimento e coragem e,
por último, uns poucos que se deliciam com a meditação e a compreensão, estes são
os homens de sabedoria. Notem que até hoje pensamos como Platão nos ensinou.

Falando alegoricamente da alma, no Fedro Platão apresenta


o mito da biga alada, na qual o cocheiro tenta controlar dois
cavalos alados que a puxam. Um deles bom e o outro é mau, e
este puxa a biga para baixo. O cocheiro é a alma racional (nous,
logos), imortal, inteligente, de natureza divina. O cavalo bom é a
alma irascível (Thymós), fonte das paixões nobres, mortal por ser
inseparável do corpo e situa-se no tórax. O cavalo mau e a alma
apetitiva (Epithymia), fonte de paixões pouco nobres, mortal
também e situa-se no abdômen. A peleja entre os dois cavalos faz
que algumas almas consigam contemplar o Ser e outras não. No
auge da disputa, as asas dos cavalos se quebram e eles caem sobre
a Terra. Nem todas as almas caem, algumas continuam a viver na
presença dos deuses. (MACHADO, 2013, p. 13).

Em linhas gerais, as questões que julgamos mais importantes acerca da


compreensão que Platão tinha do homem estão relatadas nestas breves ideias.

Estudos indicam que Platão já havia percebido que o nosso


cérebro tem dois hemisférios. Ele não se referia a hemisférios,
apenas dizia que nós temos dois cérebros aos quais ele chamou
de logistikon (racional) e nous (intuitivo). Estudiosos entendem
que as pessoas que têm mais afinidade com disciplinas exatas
utilizam o lado esquerdo do cérebro (o nous) e quem tem verve
artística utiliza o lado direito (o logistikon).

24 O surgimento da antropologia filosófica


U1

2.3 Aristóteles, o homem é unidade


Figura 1.4 | Platão e Aristóteles em detalhe do quadro Escola de Atenas, de Rafael Sanzio,
de 1509.

Fonte: Disponível em: <http://www.scaruffi.com/museums/raphael/raph6.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015.

Como já assinalamos, Aristóteles nos fornece a definição de homem que acabou


se tornando clássica: o homem é um animal racional. Contudo, é bom lembrar que
ele também acabou por afirmar que o homem é um animal político, no sentido da
dependência humana, bem como da mais plena realização do ser humano dentro de
um espaço coletivo. O homem depende de seus pais para se alimentar, para andar,
para aprender a falar e, enfim, para aprender praticamente tudo. Nós somos aquilo que
a educação faz de cada um de nós.

Para Aristóteles o homem não era união acidental de corpo e alma, mas união
essencial, sendo o corpo a matéria e a alma a forma. Ao tratar da questão da alma,
Aristóteles estabelece um vínculo entre a alma e o intelecto, ou seja, para ele a alma é a
enteléquia, forma primordial de um corpo que possui vida em potência (pode possuir
vida). A alma é a essência do corpo, enquanto o intelecto é algo divino que existe
antes e depois do corpo, (ARISTÓTELES, 2001, p. 17). A alma é a sede do movimento.
Em De anima ele diz: “na eventualidade de ser, por conseguinte, necessária uma
definição geral a ser aplicada a toda a espécie de alma, podemos nós afirmar que é ela
a enteléquia primeira de um corpo natural orgânico” (Ibidem, p. 52).

A enteléquia é, em outras palavras, a realização plena e completa


dessa essência, potencialidade ou finalidade natural primeira, um
processo transformativo em curso em qualquer um dos seres vivos
do universo e que, no ser humano, eleva-se à condição volitiva,
emocional, política, pensante, cognitiva ou racional, num exercício
atual da própria racionalidade, isto é, a reflexão, a consciência do
conhecimento. (MACHADO, 2013, p. 18).

O surgimento da antropologia filosófica 25


U1

Aristóteles é considerado o fundador da psicologia (MONDIN, 1982, p. 99) e,


embora não encontremos nele os dois grandes problemas da psicologia da época:
a liberdade do arbítrio e a imortalidade da alma, ele enfatiza, pela primeira vez, a força
do hábito, sendo chamado de “segunda natureza”. “Ele distingue três níveis na alma,
[...] a alma vegetativa (função de alimentação e reprodução), a alma animal (função de
percepção e movimento) e a alma pensante ou intelectiva, da qual somente o homem
participa” (HELFERICH, 2006, p. 48). Enfim, para Aristóteles, o princípio da vida é a
alma, é ela que dá vida ao corpo.

Após a morte de Aristóteles em 322 a.C., a filosofia se difundiu pelo mundo


chegando até ao Império Romano. Contudo, o que ela ganhou em extensão perdeu
em profundidade e limitou-se a tratar, quase que exclusivamente, da questão da
felicidade. Estamos falando do período que ficou conhecido como Helenismo. É nesse
contexto que surge uma nova maneira de compreender o mundo, o Cristianismo.
Embora o Cristianismo não seja apenas uma filosofia, ele é também uma filosofia e
como tal carrega muito das visões de mundo com as quais se defrontou. Entre elas
estão, sobretudo, o Estoicismo e o Neoplatonismo. O grande responsável pela síntese
entre religião cristã e filosofia foi Agostinho de Hipona (354-430).

2.4 O homem segundo a visão cristã

Embora muita gente


Figura 1.5 | Pietá de Michelangelo
entenda que, desde a morte
de Cristo, o cristianismo tenha
se difundido pelo mundo, essa
visão não é bem verdadeira.
Inicialmente os cristãos foram
perseguidos e somente no
ano 313 tiveram liberdade de
culto. No ano 325 foi feito o
primeiro concílio e começou-
se a elaborar o credo; e no ano
390, o Imperador Teodósio,
com o Edito de Tessalônica,
tornou o cristianismo religião
oficial do Império. Portanto,
poderíamos dizer que a Igreja
Católica foi soberana na
Europa desde o ano 400 até
ao 1.400, aproximadamente;
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ pois a partir daí começaram as
commons/thumb/8/8a/Michelangelo%27s_Pieta_5450_cropncleaned.
jpg/640px-Michelangelo%27s_Pieta_5450_cropncleaned.jpg>. Acesso fragmentações política, religiosa
em: 31 mar. 2015.

26 O surgimento da antropologia filosófica


U1

e científica.

A visão antiga de homem era essencialmente cosmocêntrica, pois via o homem


dentro de um universo mais abrangente, como uma peça de uma engrenagem maior.
Já a visão cristã, ou medieval, vê o homem dentro de uma perspectiva teocêntrica, ou
seja, o homem é compreendido e definido a partir da sua essência: ser filho de Deus.
Essa visão também é chamada de essencialista.

A visão cristã é influenciada pelo platonismo e, por isso, também apresenta o


homem como constituído de corpo e alma, sendo que a alma sobrevive à morte do
corpo. Ou seja, o cristianismo defende a imortalidade da alma. Mais do que isso, por
influência do judaísmo (para o judaísmo o homem era uma unidade, corpo e alma; não
se concebia o homem separado do corpo), o cristianismo vai além da imortalidade da
alma e prega a ressurreição do corpo, ou ressurreição da carne. Embora não seja o
corpo como conhecemos, mas um corpo transformado, como nos relata a primeira
carta aos Coríntios (15, 42ss) onde Paulo de Tarso afirma que:

O mesmo acontece com a ressurreição dos mortos: o corpo é


semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível; é semeado
desprezível, mas ressuscita glorioso; semeado na fraqueza,
mas ressuscita cheio de força; é semeado corpo animal, mas
ressuscita corpo espiritual. [...] Eu lhes digo, irmãos, que a carne e
o sangue não podem receber em herança o Reino de Deus, nem
a corrupção herdar a incorruptibilidade. Vou dar a conhecer a
vocês um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos
transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som
da trombeta final. Sim, a trombeta tocará e os mortos ressurgirão
incorruptíveis; e nós seremos transformados. De fato, é necessário
que este ser corruptível seja revestido da incorruptibilidade, e que
este ser mortal seja revestido da imortalidade.

Ao nos apresentar esse texto a Bíblia de Jerusalém (1985, p. 2170) traz uma nota de
rodapé onde busca esclarecer que:

Para Paulo, como para a tradição bíblica, a psyché é o princípio


vital que anima o corpo humano. É a “vida” do corpo, a alma viva
do corpo. A mesma palavra pode designar o homem inteiro. A
psyché, porém, fica sendo um princípio de vida natural que deve
apagar-se diante do pneuma, para que o homem encontre de
novo a vida divina. Esta substituição, que se inicia já durante a vida

O surgimento da antropologia filosófica 27


U1

mortal pelo dom do Espírito, atinge a sua plenitude após a morte.


Ao passo que a filosofia grega só professava a sobrevivência imortal
da alma superior (nous), liberta do corpo, o cristianismo concebe a
imortalidade estritamente como restauração integral do homem,
ou seja, como ressurreição dos corpos pelo Espírito (grifo nosso),
princípio divino que Deus retirou do homem em consequência do
pecado e que lhe devolve pela união ao Cristo ressuscitado, homem
celeste e Espírito vivificante. De “psíquico” o corpo se tornará então
“pneumático”, incorruptível, imortal glorioso, liberto das leis da
matéria terrestre e das suas aparências. Em sentido mais amplo, a
psyché pode designar, por oposição ao corpo, a sede da vida moral
e dos sentimentos, e até mesmo a alma espiritual e imortal.

Figura 1.6 | Santo Agostinho em óleo na É claro que aqui estamos num
madeira, no Museu do Louvre
universo linguístico que pressupõe
uma análise mais apurada dos
termos, supõe uma hermenêutica
teológica. A linguagem bíblica possui
uma chave de interpretação própria
e, por que não dizer, complexa.
Um dos primeiros intérpretes dessa
linguagem foi Agostinho de Hipona,
filósofo antigo que foi maniqueísta e,
posteriormente, neoplatônico, tendo
se tornado adepto do cristianismo
e grande estudioso de suas ideias
adaptando-as à filosofia grega.

2.5 A contribuição de
Agostinho de Hipona

No livro Confissões, possivelmente


a sua obra mais conhecida, Agostinho
diz que o ser humano é um “grande
abismo” e um “grande problema” a
se descobrir, um “grande mistério”
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ (Confissões, IV, 14). Na tentativa
commons/thumb/5/59/Giusto_di_Gand_%28Joos_van_ de resolver essa questão, ele se
Wassenhove%29%2C_sant%27agostino.jpg/640px-Giusto_di_
Gand_%28Joos_van_Wassenhove%29%2C_sant%27agostino. vale muito de toda a sua formação
jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015.
intelectual e aproveita elementos das

28 O surgimento da antropologia filosófica


U1

mais diversas correntes filosóficas que conheceu. Agostinho percebe que o homem
é um mistério, pois não se conhece a si próprio. Uma frase bem representativa dessa
mentalidade pode ser encontrada no livro A verdadeira Religião (§ 39), onde ele afirma:
“Não saia fora, entra dentro de ti; a verdade mora no interior do homem”.

Platão havia estabelecido na obra Alcebíades: “O homem é uma alma que se serve
de um corpo”. Mas é preciso lembrar que o homem cristão não podia compartilhar
da visão dualista de Platão e assim a visão de homem também deveria ser purificada
de qualquer dualismo, pois para o cristianismo o homem é uma unidade. E essa foi a
tarefa que Agostinho assumiu pra si.

O argumento usado por Agostinho vai partir da ideia de Verdade Eterna. Diz ele
(Solilóquios, II, C13):

A alma, no conhecimento intelectivo, atinge a verdade. Ora, enquanto


sede da verdade, a alma é imortal, da mesma forma que aquela. Com
efeito, se o que se encontra num sujeito é eternamente duradouro,
é necessário que o próprio sujeito seja eternamente duradouro. Mas,
visto que cada ciência reside sempre num sujeito, é preciso que a
alma dure para sempre. Dado que a ciência é verdade, e a verdade
dura para sempre a alma também dura para sempre, nem se poderá
nunca dizer que ela morre (HIPONA, s/d, 103).

Agostinho morreu sem ter contato com as obras de Aristóteles e talvez por isso seja
um platônico. O que não significa dizer que o simples contato com as obras de Aristóteles
fosse suficiente para ele se tornasse aristotélico, pois ele poderia não concordar com o
Estagirita. As obras de Aristóteles, exceto uma delas chamada Organon (ou Analíticos,
em latim), não eram conhecidas na Europa até aproximadamente o ano de 1200, pois
tais obras eram posse dos árabes. Ao ocuparem a Europa, os árabes também trouxeram
os livros de Aristóteles e um dos maiores nomes da Universidade de Paris, Tomás de
Aquino (1225-1274), ao conhecê-las fez com elas o mesmo que Agostinho havia feito
com Platão, cristianizou-as.

Dentro da reflexão antropológica, e mais especificamente na questão de corpo e


alma; vida, morte e ressurreição, Tomás de Aquino vai tomar por base a ideia de que
o homem possui um desejo natural de sobrevivência (ressurreição) e de não morrer
jamais (imortalidade da alma). Diz ele que o homem naturalmente anseia por perdurar
perpetuamente e que é impossível que uma tendência natural seja vã (Summa Contra
Gentiles, II, C79).

Em suma, para a antropologia medieval o homem é, por essência, um filho de


Deus; e a sua existência tem por finalidade cumprir com tal essência. O homem é um

O surgimento da antropologia filosófica 29


U1

composto de corpo e alma e, além da imortalidade da alma, surge também a ideia de


ressurreição do corpo. O homem que vive segundo as leis divinas ressuscita no céu,
quem se distancia destas leis, perecerá no inferno.

1. Sócrates foi tão importante para a filosofia que acabou por


receber o título de pai da filosofia; além disso, também dividiu a
filosofia da sua época e aqueles que o antecederam passaram
a ser conhecidos como pré-socráticos.
A respeito de Sócrates é correto afirmar que:

a) Foi condenado à morte por não cultuar os deuses da cidade


e corromper a juventude.
b) Afirmava que as virtudes nascem das riquezas, mas as
riquezas não nascem das virtudes.
c) Concordava com os sofistas quanto à afirmação de que o
homem é a medida de todas as coisas.
d) Combatia o racionalismo ético, pois dizia que para praticar o
bem, não era suficiente que o homem o conhecesse.

2. A reflexão antropológica existe desde a antiguidade, porém


em alguns momentos ela esteve mais presente e em outros
ela esteve mais ausente. Além disso, nem sempre houve
concordância acerca da essência do ser humano.
Considere:

I – Max Scheler aponta a essência humana mais vinculada ao


aspecto espiritual do que ao orgânico.
II – Platão e Aristóteles tinham a mesma visão de homem,
ou seja, o homem tinha natureza dual, corpo e alma, unidos
acidentalmente.
III – Para os existencialistas o que mais importa é a vida humana
com os seus desafios.
IV – Para o cristianismo o homem já nasce com a sua essência
definida; o homem é um filho de Deus.

Estão corretas apenas as alternativas:


a) I, II e III.
b) II, III e IV.
c) I, II e IV.
d) I, III e IV.

30 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Seção 3

Antropologia moderna e contemporânea


Nesta sessão buscaremos deixar claro que o pensamento antigo passou por uma
revolução substancial no tocante ao modo como o homem e a sociedade eram
vistos até então. Na antiguidade, se dava muita importância à coletividade, à polis; e
na modernidade, o sujeito começa a ser valorizado por si, independentemente de sua
pertença ou não a uma comunidade. Na modernidade, portanto, surge, com muita
ênfase a valorização da subjetividade, ou seja, leva-se em conta o indivíduo com suas
conquistas, alegrias, tristezas, projetos etc.

Figura 1.7 | Retrato de Descartes


3.1 Subjetividade e
existencialismo
Na filosofia moderna o
problema antropológico não é
necessariamente o assunto que mais
aparece na pauta das discussões; o
problema filosófico mais pertinente
à filosofia moderna é a questão
do conhecimento. Logicamente,
que mesmo assim existem
compreensões antropológicas
subjacentes a estas visões de mundo.

Para os antigos o valor do ser


humano estava atrelado ao seu
pertencimento a uma comunidade, a
uma polis. O homem, em si, isolado,
não tinha tanto valor; quem tinha
valor era o cidadão, principalmente, o
cidadão virtuoso, ou seja, aquele que
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ conhecia o seu papel dentro da polis
wikipedia/commons/thumb/7/73/Frans_Hals_-_Portret_van_ e o desempenhava com excelência.
Ren%C3%A9_Descartes.jpg/640px-Frans_Hals_-_Portret_van_
Ren%C3%A9_Descartes.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2015. Na Idade Média, o homem tinha o

O surgimento da antropologia filosófica 31


U1

seu valor por ser um filho de Deus e pertencer a uma comunidade específica, a Igreja.

Na Idade Moderna, como o papel da Igreja passa a ser questionado, principalmente


por defender ideias incompatíveis com a ciência nascente (ciência experimental), o
valor do homem também não é mais atribuído de acordo com o seu pertencimento
à Igreja, mas pelo simples fato de ter nascido. Ideia conhecida como jusnaturalismo:
nascer com direitos. Essa contribuição nos foi legada principalmente pelos filósofos
políticos Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778). Estava aberto o caminho para a subjetividade e para a valorização
do indivíduo.

Mas, certamente, uma das contribuições mais significativas e originais dada


à antropologia, foi a de Descartes (1596-1650) o qual, na esteira do humanismo
renascentista, deu uma guinada no paradigma da racionalidade indo da visão
teocêntrica à visão antropocêntrica de um modo bastante perspicaz (talvez para não
arranjar encrencas com as autoridades eclesiásticas), pois colocou o “eu pensante”
como primeira certeza indubitável, o
seu famoso cogito ergo sum (penso,
Figura 1.8 | Estátua de Blaise
logo existo).Deus, para Descartes,
passa a ser a segunda verdade, res
infinita. Estava sendo dado o pontapé
inicial para o enfoque na subjetividade,
no sujeito pensante.

Embora Descartes colocasse


Deus como segunda verdade, ele foi
muito cauteloso e, aparentemente,
manteve-se crente em Deus. É difícil
dizer se isso ocorreu por convicção
ou por medo, haja vista que ele
teve conhecimento das retaliações
que a Igreja impôs a Galileu Galilei.
Certamente Descartes também não
queria que seus livros entrassem
no index, pois isso poderia significar
limitações à divulgação do seu
pensamento.

Outra figura marcadamente


relevante nessa área, e de mente
prodigiosa, será Blaise Pascal (1623-
1662). De saúde frágil e vida breve,
Fonte: Disponível em:<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
commons/thumb/1/1d/Pascal_Pajou_Louvre_RF2981. deixou bem claro que a grandeza do
jpg/640px-Pascal_Pajou_Louvre_RF2981.jpg>. Acesso em: 31
mar. 2015.
homem está no seu pensamento. Diz

32 O surgimento da antropologia filosófica


U1

ele que o homem é um caniço, mas um caniço pensante. Por mais insignificante e
frágil que o homem seja, se comparado à imensidão do universo, o homem é maior
do que qualquer astro cósmico, pois é o único que tem consciência da sua existência.
Só o homem conhece e sabe o que está acontecendo com ele, enquanto o universo
todo não tem consciência de si.

Esses dois grandes pensadores darão início a uma nova visão de homem que será
levada adiante por tantos outros pensadores. Dentre tais pensadores, iremos fazer um
recorte do pensamento de Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), um dos precursores da
corrente existencialista, o qual passará a dar ênfase à vida concreta do homem, suas alegrias
e tristezas, dores e prazeres, angústias e sonhos, etc. Cremos ser interessante conhecer
um pouco do pensamento de Kierkegaard para melhor entendermos os pensadores que
virão na sequência e a ênfase que passa a ser dada à questão antropológica.

3.2 Kierkegaard e o homem angustiado

Figura 1.9 | Estátua de Kierkegaard em


Copenhague, Dinamarca No final de 1842, Kierkegaard escreveu
Ou isso ou aquilo: um fragmento de vida,
onde afirmou que o homem se define por
sua existência: existir é adotar uma atitude
fundamental em relação a si mesmo, a
seu ser e aos outros. Nesta obra ele dividiu
a existência humana em três estágios:
ético, estético e religioso. Segundo ele,
o homem tem de escolher entre os dois
primeiros estilos, ou escolhe isso: o ético,
ou escolhe aquilo: o estético, daí o título
da referida obra.

Quem escolhe a forma estética


de viver, vive para si mesmo, busca o
próprio prazer, não tem o controle da sua
existência, vive o momento, podendo ter
uma vida contraditória, instável e incerta;
se apoia no mundo externo, em coisas
que estão fora do controle de sua vontade
(como poder, posses e até mesmo a
amizade); é contingente, dependente do
“acidental” e não há nada de “necessário”
nele. Sobre sua existência faltam certeza e
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ significado e esta percepção normalmente
wikipedia/commons/f/ff/S%C3%B8ren-Kirkegaard-
Statue.jpeg>. Acesso em: 31 mar. 2015. leva ao desespero, sendo que este

O surgimento da antropologia filosófica 33


U1

desespero pode ser ignorado ou reprimido. (Esse era o modo como Kierkegaard
vivera na juventude, portanto, escreve a partir da própria experiência). Kierkegaard
havia percebido que não somos responsáveis por nossas vidas e sim meros joguetes
nas mãos do destino, vivemos de possibilidades as quais podem realizar-se ou não,
tanto elas podem trazer sucesso e felicidade quanto fracasso, insucesso e até a morte.
Dizia ele “No possível tudo é possível”, (ABBAGNANO, 2003, p. 60), ou seja, tanto a
possibilidade favorável como a mais desastrosa e horrível, podem realizar-se. Ao ter
consciência desta realidade o homem tem pela frente duas opções: a fé ou o suicídio.

A saída da situação estética é assumir a posse integral da própria existência e


aceitar toda a responsabilidade por ela. A melhor maneira de se fazer isto, segundo
Kierkegaard encontra-se no cristianismo. A autocriação por opção consciente seria a
única alternativa ao desespero e, segundo Kierkegaard, a maneira de escapar do abismo
é “querer profunda e sinceramente”. “Esta contribuição seria de grande importância para
o século seguinte, onde o indivíduo perde sua fé em Deus, vendo a própria existência
sendo ameaçada pela psicologia determinista, afogado na cultura de massas e negado
pelo totalitarismo ou perdido nas complexidades da ciência”. (STRATHERN, 1999, p. 36).
É isto que conduz para a alternativa da vida estética – a vida ética. Aqui a subjetividade é
“o absoluto” e a principal tarefa é “fazer a opção” (Ibidem, 37).

Na vida ética o indivíduo opta por criar a si mesmo e esta autocriação passa a ser
o objetivo da sua existência. A pessoa ética busca conhecer e mudar a si mesmo por
escolha própria, guiado pelo autoconhecimento e pela vontade, quando descobre
algo que pode ser melhorado empenha-se neste sentido. Preocupa-se mais com o
mundo interior e busca, a partir do melhor conhecimento de si mesmo, tornar-se algo
melhor. Quem age desta maneira expressa o universal na sua vida.

A maior diferença entre estas duas escolhas é que o indivíduo estético é


essencialmente voltado para o externo, contingente, inconsistente e autodissipante;
enquanto o ético prioriza o interior, o necessário, consistente e autocriativo. A escolha
de um aspecto não elimina por completo que se tenha um pouco do outro aspecto.
Ainda na escolha da vida ética encontra-se certa insatisfação, o que conduz ao terceiro
ponto: a religião. Esta seria uma síntese entre o ponto de vista estético e o ético e foi
mais profundamente tratado em “Temor e Tremor”, de 1843. Nesta obra, Kierkegaard
examina a noção de fé e a define como o ato subjetivo último, um salto para além de
toda justificação possível, é uma “irracionalidade superior”. Alcançar o estágio religioso
requer uma suspensão teleológica do ético.

Kierkegaard conclui que a existência é um “irracional” (como o pi na matemática): “é


o que resta depois que tudo é analisado, comparado a uma rã que se descobre no fundo
da caneca de cerveja depois que se termina de beber a cerveja” (STRATHERN, 1999, p.
43). Contudo viver é mais do que “estar aí”, pois a vida deve ser vivida e transformada
através do pensamento subjetivo, a subjetividade é a verdade (o equivalente à sinceridade
acrescida de um apaixonado compromisso interior). As verdades subjetivas são mais

34 O surgimento da antropologia filosófica


U1

importantes que as objetivas (ligadas ao mundo exterior, como a história e as ciências).


É a verdade subjetiva que fundamenta nossos valores, pois nenhuma moralidade deve
derivar de um fato objetivo. Cada indivíduo, deve ser, de certa forma, o criador do seu
próprio mundo, em função dos valores que tem. Para Kierkegaard, o indivíduo vê o
mundo que quer ver (Wittgenstein irá dizer: “O mundo do homem feliz é diferente do
mundo do infeliz”), cuidando para não cair em solipsismo (ponto de vista de que só eu
existo e o mundo está aqui para mim; os outros são ideias minhas).

A existência é um grande risco e nunca podemos saber se a escolha que fizemos


foi a mais adequada e quem conseguir conscientizar-se deste risco inevitavelmente se
angustiará. A existência torna-se arriscada quando percebemos que podemos morrer
a qualquer instante, bem como da completa liberdade que temos a cada momento e
que isto pode transformar completamente nossas vidas.

No “Conceito de Angústia”, Kierkegaard distingue dois tipos de medo: um


proveniente de ameaça externa e outro vindo da experiência interior e que nasce de
nossa própria liberdade. Poderíamos dizer que o indivíduo não existe em absoluto
como “ser”, mas existe apenas num estado de constante “vir-a-ser” e a percepção disto
pode mergulhar a pessoa na loucura.

Em 1848, Kierkegaard teve uma experiência religiosa e concluiu que só Deus


poderia protegê-lo de uma preocupação excessiva consigo mesmo e em sua opinião
“toda a existência humana opõe-se a Deus”. Afirma que é impossível entender a
existência intelectualmente e que o homem se desespera quando se identifica com
algo exterior a ele, ficando à mercê do destino. Por não alcançar o seu eu ambicioso,
nasce um vazio interior, acompanhado de uma vontade inconsciente de morrer. Só se
escapa deste desespero caso se opte pelo seu próprio eu.

As ideias de Kierkegaard foram desenvolvidas por Edmund Husserl (1859-1938) e


levadas adiante por Martin Heidegger (1889-1976), originando o existencialismo que
atingiu seu ponto alto com Jean Paul Sartre (1905-1980). O termo existencialismo não
foi muito bem aceito entre os filósofos e foi Sartre quem, desprovido de escrúpulo,
primeiro aceitou ser chamado de existencialista, no começo de 1940.

Pode-se entender que o acento dado por Kierkegaard ao ser humano e seus
problemas, ou seja, à subjetividade, faz parte de um movimento chamado de
enantiodromia (etimologicamente enantio, oposto; e dromia ou dromos, pista de
corrida) o qual poderia ser comparado ao movimento pendular. O pêndulo vai do alto
do seu local até ao máximo possível na direção oposta, porém a cada movimento
se enfraquece e tende ao ponto de repouso. Transferindo isso para o campo das
ideias, e mais propriamente para a filosofia de Kierkegaard, ele estaria se contrapondo
ao filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que havia acentuado
demais a objetividade em detrimento da subjetividade. Como reação a isso Kierkegaard
faz um resgate e dá uma ênfase ao ser humano e seu cotidiano.

O surgimento da antropologia filosófica 35


U1

O tema da angústia também foi pertinente ao desenvolvimento da


psicologia freudiana. Porém, enquanto Kierkegaard era elemento ativo
na questão, Freud tratou do problema de fora. Kierkegaard sentia a
necessidade de aprofundar a questão da angústia, por tratar-se de uma
realidade na qual estava imerso, era uma questão existencial e, a partir
daí vai surgindo aquilo que viria a ser a filosofia existencialista. Freud, por
sua vez, faz uma reflexão sobre a angústia sob o ponto de vista terapeuta,
estudando suas raízes, seu desenvolvimento e suas consequências, sem,
contudo, encontrar-se dentro desta realidade. Portanto, o primeiro
terá uma elaboração com maior tendência ao subjetivismo, enquanto o
último tenderá a uma maior objetividade no trato da questão.

Figura 1.10 | Retrato de Nietzsche de 1882


3.3 Nietzsche e o Übermensch
Quer nos parecer que com a sua
expressão “filosofar com o martelo”,
Friedrich Nietzsche (1844-1900) nos
fornece um bom resumo de sua
postura filosófica. Nietzsche pode,
perfeitamente, ser considerado o
filósofo da contramão, ou da demolição
de conceitos, por isso a imagem do
martelo. Há que se quebrar tudo e
reconstruir em novas bases.

Poderíamos também nos valer de


outra imagem para complementar a
compreensão da filosofia nietzscheana:
o embate entre o apolíneo e o dionisíaco.
Apolo, o deus sol, é emblema da razão,
da moralidade e do comedimento.
Dionísio, o deus do vinho (é o mesmo
Baco para os romanos, daí o termo
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/
bacanal), é o deus da alegria, das festas
wikipedia/commons/thumb/2/23/Nietzsche1882. e da embriaguez. Em linguagem atual,
jpg/640px-Nietzsche1882.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015.
talvez pudesse ser o deus da balada.
Ao longo da história, Apolo tem sido o
grande vencedor desse confronto, pois a razão se sobrepôs ao impulso; mas para que
o homem possa realmente ser feliz, Dionísio tem de vencer, pois a felicidade humana
se alcança no gozo do prazer, no acúmulo de riquezas e na posse e desfrute do poder.

36 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Tal como já afirmavam os sofistas.

Para Nietzsche os sofistas estavam corretos, mas Sócrates, Platão, o cristianismo e


toda a gama de filósofos que compartilharam de suas ideias e valores, desvirtuaram o
pensamento dos sofistas ao privilegiarem o uso da razão em detrimento dos impulsos
e dos desejos. Entende Nietzsche que a verdadeira natureza humana, não está no
conter-se, no dominar-se a si mesmo (virtude), mas no extravasar e fazer tudo aquilo
que se tem vontade.

Mas como fazer isso numa sociedade repressora? Agora se entende o filosofar
com o martelo. Há de se demolir tudo o que está assentado na razão e reconstruir
com base no impulso, na vontade. Pode parecer loucura enfatizar o impulso, mas
segundo Nietzsche, o impulso é a essência do homem e só por intermédio da sua
realização o homem conseguirá alcançar a felicidade.

Assim como Kierkegaard discordava de Hegel, Nietzsche também o fará, pois


enquanto para Hegel a natureza do homem se encontra na razão, Nietzsche é levado
a aproximar-se do pensamento de Arthur Schopenhauer (1788-1860) para quem a
essência do homem e do mundo está na vontade. Contudo, Nietzsche não concorda
plenamente com Schopenhauer, pois enquanto para esse o homem deve buscar o
aniquilamento da sua vontade, o esvaziamento, a ascese; para Nietzsche o homem
deve buscar a afirmação da vontade contra todo e qualquer obstáculo, deve fazer a
sua vontade prevalecer, ser forte e viver as suas potencialidades intensamente.

A base do pensamento de Nietzsche é o conceito de que a


realidade consiste numa explosão de forças desordenadas. Diante
desta estrepitosa explosão de potência, que não pode ser refreada
por nenhuma lei da razão, pode-se assumir uma dupla atitude:
a de fraqueza (a dos rebanhos) e a de força e poder (do super-
homem). Os rebanhos diante da potência desregrada da natureza
inventam a religião. A ética do super-homem é o triunfo da própria
personalidade, além do bem e do mal, desde que se afirme sobre os
outros. (MONDIN, 1981, p. 232).

Quase fazendo um joguete de palavras em língua alemã, Nietzsche afirmava


Gott ist tot! (Deus está morto) e complementava: “Quem o matou fomos nós!” e
“Não colocamos nada em seu lugar”. Tais afirmações, obviamente, não se referem
à morte de Jesus e nem tampouco ao ateísmo nietzscheano, elas parecem indicar
a constatação feita por Nietzsche de que na sociedade e na cultura da época, o
fundamento da realidade, ou o sentido da vida, já não estava mais sendo, ou não devia
mais ser, buscado em algo transcendente, e sim na afirmação de si, na confiança nas
próprias capacidades e potencialidades humanas, superando a si mesmo, por isso a
ideia de super-homem (Übermensch, em alemão): superar-se.

O surgimento da antropologia filosófica 37


U1

Talvez o grande mérito de Nietzsche tenha sido o de questionar,


como ninguém, as estruturas da sociedade e o modo de vida de
seus contemporâneos, sobretudo a ética do comodismo e da
resignação. Segundo ele, é preciso “filosofar com o martelo”, ou
seja, ir quebrando, estilhaçando, conceitos mal formulados, ou
formulados de antemão, o que ele chama de “pré-conceito”, ou
“pré-juízo”. E isso ele fez com um estilo literário único, algo meio
próximo de tons proféticos, denunciando o modo de vida vigente.
Para ele, tanto Sócrates, quanto Platão e o cristianismo nos fizeram
muito mal ao nos ensinar que é preciso sofrer com paciência. Ele
defende o contrário: é preciso viver intensamente, vibrar com a
vida e desfrutar tudo o que ela tem a nos oferecer, dando vazão à
vontade de potência. (MACHADO, 2013, p. 60).

Alasdair MacIntyre (2001, p. 431) dirá que “o homem nietzscheano, o Übermensch,


o homem que transcende, até hoje não encontrou seu bem em lugar nenhum do
mundo social, mas somente naquilo que dentro de si mesmo, dita sua própria nova lei
e sua própria nova tabela das virtudes”.

Nietzsche parece ser um dos filósofos que mais encanta a


juventude, sobretudo a juventude que busca afirmar-se e
construir os seus próprios caminhos. Poderíamos nos perguntar
se esse encantamento é proveniente de uma identificação
de pensamento, pois Nietzsche questiona com muito rigor a
sociedade estabelecida de sua época tentando mostrar que os
valores escolhidos são apenas alguns entre tantas alternativas
que se descortina ao ser humano, principalmente ao homem
que busca autonomia reflexiva; ou se essa identificação é por
conta da rebeldia própria dessa fase da vida e, por vezes, até
mesmo infundada.

3.4 Martin Heidegger: o homem é um ser para a morte


Para compreendermos bem o pensamento de qualquer filósofo é preciso levar
em conta o seu ambiente, o seu contexto; e para a compreensão da filosofia de
Heidegger isso é imprescindível. Heidegger se encontra em uma Alemanha envolta
em guerra, morte, medo, enfim, a questão era: como compreender o ser diante de

38 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Figura 1.11 | Foto de Heidegger em 1960 tanta estupidez e brutalidade?

Segundo Heidegger, o conceito de


ser é universal e, talvez em função disso,
é também vazio de sentido e muito
difícil de ser definido. Está presente em
tudo e ao mesmo tempo se esconde
e assim a única maneira de abordá-
lo seria recorrer ao ser de algum ente
particular. Desse modo, Heidegger
desenvolveu uma filosofia voltada para
os problemas concretos da vida e para
a angústia humana diante da existência,
ou seja, ele buscou aplicar o método
fenomenológico ao estudo do ser, à
medida que o seu estudo “parte do
homem de fato, deixa que ele se manifeste
tal qual é e procura compreender a sua
manifestação”. (MONDIN, 1983, p. 188).

Projetou a sua principal obra, Ser e


Fonte: Disponível tempo, para ser desenvolvida em três
em:<ttp://upload.wikimedia.org/
wikipedia/commons/2/2c/Heidegger_4_%281960%29_
cropped.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. partes, mas ficou apenas na primeira,
talvez pela dificuldade histórica, ou
filosófica, de prosseguir. Ele afirma que o
ser foi, ao longo da história da Filosofia,
estudado de modo abstrato, ideal, sem relação com o mundo, mas o ser só se realiza
historicamente, em um determinado tempo. Ele se realiza em um mundo que não
escolheu, ao contrário quando se deu por si já estava aí, por isso pode dizer que o ser
é um Dasein (ser aí, ou estar aí, em alemão). Distingue ser (aquilo que tem essência),
de ente (aquilo que tem existência).

Entre os seres existentes, o homem tem primazia, pois é o único com possibilidades
de compreender o ser e também o único capaz de determinação, haja vista que não
está totalmente preso em sua situação, mas é capaz de se tornar algo novo, algo
diferente através dos seus ideais, planos e possibilidades. O homem tem a possibilidade
de ser ou não ser ele mesmo e assim a essência do homem consiste na sua existência.
Além disso, o homem é único ser que pode projetar o futuro, tendo consciência
do seu passado e vivendo o presente, portanto, o elemento temporalidade associa
essência com a existência humana.

Sendo o homem um ser no mundo com possibilidades de se projetar (existência),


abre-se diante dele a opção de levar uma vida autêntica ou inautêntica, banal. Na vida
autêntica, o homem assume a própria vida e a conduz por si. Na vida inautêntica, o

O surgimento da antropologia filosófica 39


U1

Figura 1.12 | Foto de Sartre em 1950 homem se deixa levar pela situação e é
conduzido pela massa; não é senhor de
si. Quem leva vida autêntica e se projeta
no futuro, sabe que a última possibilidade
será a morte, a qual também deve ser
levada em consideração, pois representa
o término desta existência. A morte é
presença constante para o ser humano
e se faz presente desde que se inicia a
existência, mas ao adquirir consciência
da morte o homem cai na angústia.

3.5 Sartre: a existência precede


a essência

Jean-Paul Sartre, nascido em Paris,


no dia 21 de junho de 1905 e falecido na
mesma cidade, em 15 de abril de 1980,
é considerado o expoente máximo
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/
wikipedia/commons/d/d1/Jean-Paul_Sartre_FP.JPG>. do existencialismo. Perdeu o pai aos
Acesso em: 20 mar. 2015. 15 anos e foi criado por sua mãe e seu
avô. Estudou Filosofia na École Normale
Supérieure de Paris. Em 1929 conheceu,
na Universidade de Sorbonne, Simone de Beauvoir e com ela conviveu até a sua
morte. Em 1931, tornou-se professor de Filosofia na Universidade de Le Havre. Além
de filósofo, foi também escritor e ganhou (mas recusou) o Prêmio Nobel de Literatura
em 1964. Entre suas principais obras temos O ser e o nada, A náusea, Crítica da razão
dialética e O idiota da família.

Quando jovem, Sartre rejeitou os valores “burgueses” de sua


criação, e a busca por um modo de vida livremente escolhido e
autêntico – não determinado pela autoridade, religião ou tradição
– tornou-se um de seus temas dominantes. [...] Sartre traçou
uma distinção radical entre matéria física e consciência, a última
caracterizada por sua liberdade. Seja qual for nossa situação, somos
livres para “negá-la” – para imaginar as coisas de outro modo e nos
empenharmos para mudá-las. (LAW, 2008, p. 336).

Para os filósofos antigos, tudo no mundo tem uma finalidade, um propósito; ou


seja, tudo tem uma essência, uma razão de ser, pois a natureza não faz nada em vão.
Isso significa que o homem também tem uma essência e que ela já existe mesmo

40 O surgimento da antropologia filosófica


U1

antes de o homem em particular existir. Porém, Sartre não concorda com essa ideia
e diz que o homem é totalmente livre e deve assumir a responsabilidade pelo que faz
e pelo que se torna e, desse modo, segundo Sartre, no caso do homem, a existência
precede a essência. Temos de criar um propósito (essência) para nós mesmos. Diz
ele que o homem primeiro surge no mundo, existe, se descobre ou se percebe e só
depois define o que vai ser, não importando tanto o que os homens são, mas mais o
que eles podem se tornar.

Ao abordar a questão do ser – denominado por Sartre ser em si, para distingui-lo da
consciência, ser para si – ele afirma que

sua característica particular é o absurdo: no absurdo está a chave


da existência de cada coisa. O homem diferencia-se dos outros
seres porque tem a consciência de que é o oposto do ser. Para
viver, a consciência necessita nulificar o ser, na medida em que,
por sua natureza, é o não ser, o vazio, o nada. [...] Mas o que é o
dado constitutivo essencial do homem não é a consciência, mas
a liberdade, sem limites e não vinculada a nenhuma lei moral.
(MONDIN, 1981, p. 237).

Figura 1.13 | Foto de Max Scheler Não há nada, portanto, que defina a existência
humana, estando o homem condenado a ser livre
e com base nesta liberdade construir a si mesmo.

3.6 Max Scheler e o homem que se


projeta

Max Scheler (1874-1928) não é um


pensador muito conhecido. Alguém poderia
se perguntar “porque abordá-lo dentro da
temática antropológica?” E a resposta poderia
ser “justamente por tratar-se de antropologia
filosófica”, pois Scheler, em sua obra A situação
do homem no cosmos, e mais especificamente
ao abordar a questão intitulada Diferença
Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.
org/wikipedia/commons/a/af/Scheler_max.
essencial entre o homem e o animal traça as
jpg>. Acesso em: 31 mar. 2015. linhas fundamentais da antropologia filosófica.

Notem que até agora falamos de homem,


mas não falamos de pessoa. Com Scheler o conceito de pessoa começa a

O surgimento da antropologia filosófica 41


U1

ser levado em conta. Ele constrói urna antropologia com ênfase no conceito
personalista, de onde nasce um sujeito como ser espiritual e como pessoa. Ser
espiritual, porque capaz de se desvincular do poder e da ligação com a vida, ou seja,
capaz de projetar-se e de sonhar. E pessoa, porque é centro de atos intencionais.

E a pessoa entra em relação com o “eu do outro” de várias


formas, que são: a massa (que nasce do contagio emotivo), a
sociedade (que surge do contrato), a comunidade vital ou nação,
a comunidade jurídico-cultural (Estado, escola, círculo), e a Igreja,
que é comunidade de amor. É a simpatia o fundamento autêntico
das relações interpessoais; e os limites da simpatia – devidos ao
fato de que se experimenta simpatia por aquele que pertence a
minha nação, à minha família etc. – são superados, afirma Scheler
em Essência e forma da simpatia, apenas pelo amor (os grifos são
nossos). (REALE & ANTISSERI, 2006, p. 185).

A ideia de simpatia, expressa por Max Scheler, aproxima-se do conceito de


Leibniz implícito na compreensão das mônadas quando descreve as nossas
relações como algo similar às camadas da cebola, quanto mais distante as pessoas
são de você, mais indiferente você é a elas; e quanto mais próximas elas são, mais
tocado se é por suas alegrias e seus sofrimentos.

Scheler foi o pensador sobre quem se debruçou Karol Wojtila, o Papa João Paulo
II, quando apresentou a sua dissertação de mestrado. Wojtila encantou-se com o
conceito de homem e a conciliação que Scheler fez entre homem e espiritualidade.

Segundo Artur Mourão (SCHELER, 2008, p. 4),

Scheler centrara-se nos temas das emoções humanas, do amor, da


natureza da pessoa, dos valores e da sua respectiva hierarquia, do
“eterno no homem”, ou seja, do “divino”; insistira, ao mesmo tempo,
numa crítica virulenta a Kant, a Husserl e às noções de razão e
consciência puras, próprias do idealismo alemão, contrapondo-lhes
o lugar central do coração, do homem como “ens amans”, na linha
agostiniana (do “ordo amoris”) e pascaliana (das “raisons du coeur”).

Essa linha pascalina, à qual Mourão se refere, é um resgate da contribuição de


Blaise Pascal, autor da famosa frase “o coração tem razões que a própria razão
desconhece”, daí a expressão raisons du coeur, razões do coração.

Scheler afirmava que, em virtude da participação humana no impulso vital


biopsíquico, o homem se encontra imerso em um mundo de forças psíquicas que
indo desde as plantas e animais, chega até ao homem, animal superior. Porém, a

42 O surgimento da antropologia filosófica


U1

especificidade humana não está no estágio orgânico e sim na dimensão espiritual.


Essa dimensão deve ser entendida como abertura ao mundo, consciência de si
e capacidade de objetivação. É na dimensão espiritual que se situam nossos atos
emocionais e volitivos, bem como as nossas ideias.

De modo simplista podemos dizer que a espiritualidade é a capacidade humana


de se aperceber como parte do cosmos e se autoprojetar: sonhos, desafios, alegrias,
tristezas, conquistas, derrotas etc. É nesse panorama que se condensa todo o
acontecer cósmico permitindo ao homem tornar-se uma espécie de “cocriador”,
ou “colaborador de Deus”’, em quem se encontra o nosso fundamento, a nossa
natureza e o nosso espírito.

Sobre essa relação com o divino, dirá Scheler que

[...] o sagrado é imediatamente percebido no sentimento de


criaturalidade típico da experiência religiosa: a revelação do sagrado
e graça, à qual o homem responde com a fé. Não devemos pensar
que o saber científico possa negar o saber religioso ou saber-de-
salvação. Uma religião – e esta é uma tese sustentada na Sociologia
do saber (1926) – pode entrar em conflito com outra religião ou
com a metafísica, mas não com a ciência. E devemos salientar que
o monoteísmo criacionista judaico-cristão, tendo dessacralizado o
mundo, tornou-o pronto para a pesquisa cientifica: "quem considera
as estrelas como divindades visíveis ainda não está maduro para uma
astronomia cientifica". (REALE & ANTISSERI, 2006, p. 185).

Por suas contribuições no sentido de tentar entender o ser humano e o seu


lugar no cosmos, Scheler foi reconhecido como um dos maiores nomes da
antropologia filosófica contemporânea e, hoje em dia, é um nome que não pode
ficar de fora da reflexão acerca do homem e suas compreensões.

1. “Porém, se realmente a existência precede a essência, o


homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro
passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse
do que ele é, de submetê-lo à responsabilidade total de
sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é
responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem
é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas

O surgimento da antropologia filosófica 43


U1

que ele é responsável por todos os homens”. (SARTRE, Jean-


Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova
Cultural, 1987, p. 6. Os Pensadores).

Sobre o existencialismo sartreano, assinale o que for correto.


I – Com o lema “a existência precede a essência”, Sartre
negava haver uma natureza humana; o homem primeiro
existe e posteriormente se define conforme suas escolhas e
o que decide fazer de si mesmo.
II – O homem, criatura decaída, está lançado à própria sorte
até encontrar o sentido de sua existência na graça de Deus,
de quem recebeu o livre-arbítrio.
III – Diferente das coisas, só o homem é livre, está “condenado
a ser livre”, pois nada mais é que seu projeto; consciente de
sua existência, é totalmente responsável por ela.
IV – O homem, ao delinear seu projeto, o faz na convicção
de que o que é bom para si é bom para todos; a imagem do
homem que desejamos ser é, ao mesmo tempo, a imagem
do homem como julgamos que deve ser, de modo que nossa
responsabilidade envolve toda a humanidade.

Estão corretas apenas as alternativas:


a) I, II e III.
b) II, III e IV.
c) I, II e IV.
d) I, III e IV.

2. A Antropologia é o estudo sistemático dos conhecimentos


relativos ao “homem”: sua cultura, valores, crenças, raças,
divisões sociais e políticas, enfim, sua maneira de avaliar e
compreender o mundo.
Assinale a alternativa INCORRETA:
a) O antropólogo francês Claude Levi-Strauss, autor de
Tristes trópicos, veio ao Brasil em 1935, a fim de pesquisar
sobre os índios brasileiros.
b) Destaca-se, na Antropologia filosófica, o nome de Hannah
Arendt, autora de A condição humana, obra em que defende
a complexidade da natureza humana.
c) Para compreender o homem e a sociedade, Jean-Jacques
Rousseau imaginou um estado hipotético originário,
chamado de “Estado de natureza”.

44 O surgimento da antropologia filosófica


U1

d) Antropólogos norte-americanos redescobriram, no início


do século passado, a pedra filosofal, escondida no Egito, às
margens do Rio Sor.

Nessa unidade nós vimos que:

a) Se o Homo Sapiens é apenas uma das muitas raças que já


passaram por esse planeta, por outro lado, é a única que ainda
não foi extinta e que conseguiu dominar o seu ambiente.

b) A reflexão acerca do homem e sua realidade se iniciou com os


sofistas, porém eles foram acusados de relativismo ao sustentarem
que o homem é a medida de todas as coisas.

c) Sócrates conseguiu apontar caminhos mais consistentes para a


aquisição da felicidade humana e defendeu que a essência humana
se encontra na alma. A alma, para Sócrates e o logos, a razão.

d) Platão defendeu o dualismo corpo (soma) e alma (psique)


dando preferência para a alma e sustentando que o corpo é o
seu túmulo, ou o seu cárcere. Somente com a morte o homem se
liberta dessa prisão.

e) Aristóteles vai nos legar a definição clássica de homem, animal


racional; e que além dessa definição, ele também afirmou que o
homem é um animal político, pois não nos realizamos plenamente
vivendo isolados.

f) O Cristianismo verá a essência humana na sua filiação divina e


salientará a questão da subjetividade humana. A essência precede
a existência, ou seja, nascemos com uma missão: fazer a vontade
de Deus.

g) Os modernos, sobretudo Descartes e Pascal, vão dar ênfase na


questão da subjetividade, do sujeito de pensante. A grandeza do
homem está na sua capacidade reflexiva.

h) Kierkegaard, Nietzsche e os existencialistas Heidegger e Sartre

O surgimento da antropologia filosófica 45


U1

trarão para o debate a existência concreta do homem, com suas


alegrias e tristezas, sonhos e angústias e que defenderão que, os
últimos, defenderão que a existência precede a existência.

i) Max Scheler vai mostrar que a diferença essencial entre o homem


e o animal não reside na racionalidade, no pensamento, mas na sua
capacidade de se projetar, ou na sua espiritualidade.

Praticamente tudo o que existe no sistema solar se originou de


elementos químicos presentes no sol. Mas nós temos em nosso
corpo elementos químicos que não estão presentes no sol, apenas
em estrelas mais antigas e não sabemos como tais elementos vieram
parar em nossos corpos. Materialmente somos feitos de água, H2O
(66% do nosso corpo), cálcio, ferro, potássio, magnésio, cromo etc.
Somos um mistério, uma incógnita para nós mesmos.

Analisando o ser humano sob o prisma da evolução humana,


podemos afirmar que somos animais tanto quanto qualquer outro
animal e que, embora muito frágeis e dependentes, conseguimos
evoluir enormemente ao logo de nossas vidas, graças à ajuda e
colaboração mútuas. Os pais adquirem conhecimentos e passam
para os filhos, os filhos para os netos e assim por diante; uma geração
adquire conhecimentos e deixa para a geração seguinte; uma
civilização passa os seus conhecimentos para outra civilização; e
assim a humanidade progride cada vez mais.

Note como era o homem quando surgiu há 120 mil anos; depois,
40 mil anos, quando conseguiu falar; 10 mil anos, quando se fixou
em cidades; depois veio a organização política, a escrita etc. e quanta
evolução nós conseguimos, sobretudo nos últimos anos. E como
estaremos daqui a mil anos? Cinco mil anos? Dez mil anos?

Temos evoluído não apenas em conhecimento, mas até mesmo em


termos de sentimentos, de polidez, de bons modos e bons tratos,
de cuidado com os animais e com o planeta, de busca de erradicar
a fome e a miséria. Quantas atrocidades já foram praticadas nesse
mundo, mas hoje é incabível não nos considerarmos todos iguais

46 O surgimento da antropologia filosófica


U1

em dignidade. Enfim, podemos dizer que estamos caminhando sempre


rumo a maiores e melhores conquistas, muito embora de tempos em
tempos passemos por retrocessos, os quais devem nos servir também de
aprendizado.

Muitas vezes somos forçados a concordar com os filósofos quando


sustentam que a nossa maior grandeza está na nossa capacidade
reflexiva. Quase todos os animais da natureza são mais fortes que nós,
mas praticamente nenhum deles sabe armar estratégia de sobrevivência,
no sentido de se planejar, de se projetar para conquistas futuras de modo
complexo e com organização social. Somos os únicos com capacidade
crítico-reflexiva e de projeção no espaço e no tempo. Além de sermos os
únicos com consciência e autoconsciência.

Esperamos que o assunto aqui apresentado tenha servido para uma reflexão
profunda sobre a nossa real situação e para uma melhor compreensão da
nossa natureza e no mundo no qual estamos inseridos. Retomando as
palavras de Sócrates – e não se esqueça que Steve Jobs certa vez afirmou
que trocaria toda a sua tecnologia por uma tarde com Sócrates – fica o
desafio: homem conhece-te a ti mesmo!

1. (UEM, 2008-Inverno) Aristóteles considera que só o


homem é um animal político, porque somente ele é dotado
de linguagem na forma de palavra (logos) e com ela pode
exprimir o bem e o mal, o justo e o injusto. O fato de os
homens poderem estabelecer em comum esses valores é o
que torna possível a vida social e política.
Assinale o que for correto:
01) A retórica é a arte da eloquência, de bem falar e
argumentar. Foi utilizada na Antiguidade Clássica como um
dos principais recursos da política.
02) Os sofistas desenvolveram e ensinaram a retórica como
instrumentalização da linguagem cujo objetivo era torná-la
uma estratégia para vencer adversários nos embates políticos.

O surgimento da antropologia filosófica 47


U1

04) Para os gregos antigos, a palavra mito (mythos) significa


narrativa, é a palavra que narra a origem dos deuses, do
mundo, dos homens, da comunidade humana e da vida do
grupo social.
08) A linguagem para os gregos antigos tem duas formas
de expressão: o mythos e o logos. O mythos desenvolve a
palavra mágica e encantatória; o logos, a linguagem como
poder de conhecimento racional.
16) A obra filosófica de Platão é isenta de qualquer mito, é o que
permite caracterizá-la como sendo absolutamente racionalista.

2. (UEM, 2010-Inverno) O corpo tem muita importância


para a Filosofia, pois representa uma experiência universal e
pré-reflexiva de acesso ao mundo.
Com base nessa afirmação, assinale o que for correto.
01) “Dualismo psicofísico” é uma teoria metafísica que
explica o ser humano como composto de duas partes
diferentes: corpo (material) e alma (espiritual).
02) Durante a Idade Média, o corpo foi cultivado de maneira
narcisista, reforçando a liberdade e o amor próprio do
indivíduo.
04) No Renascimento e na Idade Moderna, o corpo passa a
ser objeto da ciência, associado à ideia mecanicista.
04) No Renascimento e na Idade Moderna, o corpo passa
a ser objeto da ciência, associado à ideia mecanicista que o
considera uma máquina.
08) Para a fenomenologia, o conceito de corpo não pode
estar associado ao conceito de espírito, pois é uma escola
filosófica ligada ao materialismo histórico.
16) Para René Descartes, a alma é mais fácil de ser conhecida
do que o corpo, já que, na ordem das certezas, a res cogitans
é anterior a res extensa.

48 O surgimento da antropologia filosófica


U1

3. (UEM, 2010 – Inverno; modificado) Um dos elementos


fundamentais da Filosofia contemporânea é o contexto de crise
da razão. Nela, criticam-se pilares da racionalidade moderna,
como a ideia de fundação do conhecimento a partir do sujeito,
e a possibilidade de uma ação moral universal.
Considere:
I – Sören Kierkegaard (1813-1885), precursor do existencialismo
cristão, fez críticas severas à Filosofia moderna, sobretudo a
Hegel, pois nela o ser humano não aparece como ser existente,
mas reduzido ao conhecimento objetivo.
II – Friedrich Nietzsche (1844-1900), ao perguntar sobre o
valor dos valores, não representa uma novidade na maneira
de formular as questões da Filosofia, ele apenas dá novas
roupagens á filosofia socrática e cristã.
III – Sigmund Freud (1856-1939), fundador da Psicanálise,
evidencia o papel da racionalidade da consciência e da unidade
do eu, estabelecendo, para determinar as pulsões, a análise
sintética a priori.
IV – Michel Foucault (1926-1984) introduz, no cenário filosófico,
o conceito de microfísica do poder, isto é, a fragmentação do
sujeito em torno de um núcleo teórico unívoco, tanto moral
quanto epistêmico.
Estão corretas apenas as alternativas:
a) I e II.
b) II e III.
c) I e IV.
d) II e IV.

4. "O homem está condenado a ser livre." (Jean-Paul Sartre).


Assinale a alternativa que expressa a ideia dessa frase de Sartre:
a) As ações humanas seguem um padrão de rigorosa
necessidade.
b) A liberdade humana é uma crença produzida pela
imaginação.

O surgimento da antropologia filosófica 49


U1

c) O homem é totalmente livre, e não pode deixar de sê-lo,


porque não possui qualquer essência que o predetermine.
d) A natureza humana comporta um destino ao qual o
homem não pode furtar-se.

5. “Depois de constatar na cultura europeia três ideias


irreconciliáveis do ’homem’, que inspiraram respectivamente
uma antropologia teológica, outra filosófica e uma terceira
científico-natural, Max Scheler apresenta o seu projeto de
uma doutrina englobante do ser humano. Começa por
fazer uma distinção entre o conceito sistemático-natural
e o conceito essencial de ’homem’, que possibilite o seu
enquadramento e faça sobressair a sua posição específica
no todo cósmico”. (SCHELER, Max. Diferença essencial entre
Homem e Animal. in: A Situação do Homem no Cosmos.
Trad. Artur Morão. Covilhã, LusoSofia Press, 2008. (Coleção:
Textos Clássicos de Filosofia. p. 4)

De acordo com o texto acima e com os seus conhecimentos,


assinale a alternativa correta:
a) A filosofia, ao encarar o homem terrestre, deve igualmente
atender à organização vital do sujeito de conhecimento e à
sua vontade de domínio.
b) Scheler pode ser considerado um herdeiro da filosofia
nietzscheana, pois também acentua a vontade de potência
inerente ao homem e suas ações.
c) Max Scheler rompeu com a tradição cristã no que se
refere à reflexão sobre o homem, pois para ele não é correto
acentuar o aspecto espiritual do ser humano.
d) A antropologia de Scheler não pode ser considerada uma
antropologia filosófica, pois está impregnada de elementos
metafísicos sem nenhuma comprovação.

50 O surgimento da antropologia filosófica


U1

Referências

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Martins Fontes, 2003. 1014 p.
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ARISTÓTELES. Da alma. Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2001.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985. 2366 p.
COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1995.
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Vozes, 1986.
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(Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 36).
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MACHADO, José Adir Lins. Filosofia – Ensino Médio – 1º ano. Londrina: Maxiprint, 2013.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001.
478 p. (Coleção Filosofia e Política).
MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. 10 ed.
São Paulo: Paulus, 1981.
______. Curso de filosofia: Os filósofos do Ocidente. 8. ed. Trad. Benoni Lemos. São
Paulo: Paulus, 1982.
______. Curso de filosofia: Os filósofos do Ocidente. 6. ed. Trad. Benoni Lemos. São
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PESSANHA, José Américo Motta (Org.). Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
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REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e idade Média. 5ª
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O surgimento da antropologia filosófica 51


U1

______. História da filosofia – 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. Trad. Ivo Storniolo.


São Paulo: Paulus, 2006. (Coleção História da filosofia: 6).
SCHELER, Max. Diferença essencial entre Homem e Animal. In: A Situação do homem
no Cosmos. Trad. Artur Morão. Covilhã, LusoSofia Press, 2008. (Coleção: Textos
Clássicos de Filosofia).
SOUZA, Rogério F. de. Evolução humana. Londrina: UEL, s/d. (Apostila UEL 3BIO009
– Evolução).
STRATHERN, Paul. Kierkegaard (1813-1855) em 90 minutos. Trad. Marcus Penchel.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 84 p.

52 O surgimento da antropologia filosófica


Unidade 2

O SURGIMENTO DA
ANTROPLOGIA SOCIOLÓGICA
Wilson Sanches

Objetivos de aprendizagem:

Esta unidade tem por objetivo discutir o projeto antropológico que


começa a se desenhar a partir do século XVIII. Este projeto pode ser
entendido como a preocupação em dar ao estudo do homem características
científicas. Também consiste em objetivo desta unidade debater as diferentes
ramificações da Antropologia e compreender no que consiste a Antropologia
Brasileira. Para Atingir os objetivos propostos esta unidade está dividia em
quatro seções, como segue:

Seção 1 | Especificidade da ciência antropológica


Nesta seção iremos discutir a possibilidade da Antropologia em se constituir
em uma disciplina científica segundo o modelo de conhecimento científico
proposto no pós-século XVII. Como a antropologia definiu e redefiniu seu
objeto de estudo.

Seção 2 | Antropologia física


Nesta seção iremos discutir como a antropologia surge como uma disciplina
ligada às ciências naturais e a importância do conhecimento biológico sobre o
homem para compreender também suas manifestações culturais.

Seção 3 | Antropologia cultural e social


Nesta seção apresentaremos o significado do termo antropologia social e
antropologia cultural para podermos discutir as diversas correntes teóricas da
antropologia dentro desta área.
U2

Seção 4 | Antropologia brasileira


Nesta seção será nossa preocupação debater os principais pressupostos
da antropologia e seu caminho teórico percorrido no Brasil.

54 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Introdução à unidade

O campo das Ciências Sociais envolve uma série de disciplinas como Sociologia,
Antropologia, Ciência Política, Economia entre outras. Cada uma destas disciplinas
possui um corpo teórico específico e correntes teóricas que fundamentam as
diversas pesquisas, mas sempre com a preocupação de pensar, sob diversas
perspectivas, o homem como ser social. A antropologia é um campo, ao mesmo
tempo, antigo e novo. Antigo porque o homem sempre se preocupou em pensar
sobre si mesmo, sobre suas origens, suas distinções em relação à natureza e ao
seu fim último, e novo, porque a antropologia como ciência só pode ser pensada
a partir do momento em que a ciência passa a ser tratada como principal fonte de
conhecimento do mundo, isto é, a partir do século XVII.

A construção de toda ciência envolve caminhos e descaminhos, assim, esta


unidade irá apresentar o surgimento da Antropologia como ciência demonstrando
suas principais divisões, bem como algumas correntes teóricas importantes
dentro desta área do saber. É bom sempre lembrarmos que aqui, indicamos vários
elementos importantes, mas sendo a Antropologia uma ciência vasta é preciso se
dedicar sempre ao seu estudo e pensar no que estamos realizando na atualidade.

Caro leitor! Aproveite ao máximo esta leitura e que ela seja o início de várias
outras leituras para que cada um dos temas propostos possam ser aprofundados,
lembrando a sugestiva frase de Immanuel Kant: “SAPERE AUDI” – ouse conhecer.

Boa leitura a todos!

O surgimento da antroplogia sociológica 55


U2

56 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Seção 1

Especificidade da ciência antropológica


Você já se perguntou por que somos como somos? Ou por que agimos como
agimos? Todos nós temos alguma explicação para sermos como somos, mas já
pensou em utilizar um método científico para nos conhecermos melhor como seres
sociais? Conhecermos de onde vêm os nossos hábitos e costumes e crenças?

As primeiras preocupações científicas surgem para explicar o reino natural, mas


aos poucos, as ideias que surgiram no século XVII começam a ser utilizadas para
compreender o reino social, para compreender o próprio homem, é neste contexto
que surge a Antropologia.

O que faz um campo de saber ser considerado uma ciência?

1.1 O que é isto que chamamos de Antropologia?

A palavra antropologia origina-se de duas outras palavras de matriz grega:


Antrophos, que significa homem, e logos que é estudo. Assim, em uma definição
bastante simples podemos dizer que a antropologia é o estudo do homem. Mas por
que criar um campo de estudo para algo que o homem sempre fez?

O homem sempre foi um ser curioso, sua curiosidade o levou a elaborar modelos
para explicar o mundo em que vive. Esta curiosidade também o levou a elaborar
questionamento sobre quem ele era, qual o seu lugar na natureza e qual o seu fim
último. Portanto, o conhecimento sobre o homem é um tipo de conhecimento muito
antigo, mas também muito atual, pois apesar de todos os estudos, explicações e
elaborações que o homem fez sobre quem ele é, sua natureza continua mudando
incessantemente e as pesquisas a respeito deste homem continua sendo importante
e fascinante.

Apesar do homem sempre ter se questionado sobre si mesmo, é em um momento


específico da história que surge a Antropologia como ciência, ou melhor dizendo, que
surge aquilo que François Laplantine chamou de projeto antropológico.

O surgimento da antroplogia sociológica 57


U2

Mas o projeto de fundar uma ciência do homem – uma antropologia


– é, ao contrário, muito recente. De fato, apenas no final do
século XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou
pretensamente científico) que toma o homem como objeto de
conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que
o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio
homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia.
(LAPLANTINE, 2003, p. 7).

A tentativa de elaborar resposta que levassem à compreensão de quem o homem


era é tão antiga quanto a própria humanidade, mas segundo Laplantine (2003), as
ferramentas necessárias para a existência de um tipo de saber sobre o homem que
levasse à criação de um campo específico do saber só pôde ser possível com o
desenvolvimento das ciências a partir do século XVII, por isto o autor afirma que o
projeto antropológico iniciou-se no século XVIII.

O que nós podemos perceber é que em resposta à pergunta fundamental “quem


é o homem?” já foram elaboradas diversas respostas, cada uma vinculada a um
determinado paradigma. Assim, por exemplo, temos resposta de cunho mitológico,
que por meio de narrativas, a palavra mytheo em grego significa narrar, consegue
dar sentido à existência humana apontando por exemplo que os homens são obras
da criação divina e criados para um determinado propósito. As explicações que têm
origem no pensamento filosófico propõem qual o fundamento último da vida dos
homens segundo determinados valores que pertencem a uma determinada corrente
de pensamento. Este tipo de explicação prima pela racionalidade e sistematização.
Não somente as correntes filosóficas ou o pensamento mitológico produz explicações
sobre quem é o homem, mas o próprio homem, no seu dia a dia, busca compreender
sua existência e agir conforme esta compreensão, este é um tipo de conhecimento
extremamente importante que é o senso comum, apesar de não ser sistematizado é
o conhecimento que organiza o nosso cotidiano. A partir do século XVIII, conforme
a afirmação de Laplantine (2003), é que se desenha uma tentativa de explicação do
homem com base nos modelos proposto pela ciência, mas afinal o que é a ciência?

Aquilo que hoje chamamos de ciência é fruto de um processo histórico que levou
o homem a tentar compreender a natureza a sua volta de uma maneira objetiva e que
culmina no século XVII com a era do grande racionalismo, período em que se buscava
um afastamento das explicações de cunho religioso que haviam dominado a Europa
durante toda a idade média.

O espírito secular impregnou distintas esferas da atividade humana.


Generalizou-se aos poucos a convicção de que o destino dos homens

58 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

também depende de suas ações. Críticas à educação tradicional nas


universidades católicas levaram à substituição do estudo da Teologia
pelo da Matemática e da Química.
A crença de que a razão é capaz de captar a dinâmica do mundo
material e de que a lei natural, inscrita no coração dos homens, pode ser
descoberta espontaneamente vai ganhando força, deteriorando, aos
poucos, os velhos princípios de autoridade – entre os quais os mantidos
pela igreja católica. Sobre essa base, torna-se mais fácil compreender
a emergência do empirismo, do racionalismo cartesiano e o avanço
das ciências experimentais que, no seu conjunto, caracterizarão a era
moderna. (QUINTANERO, et al., 2002, p. 13).

A revolução científica, ocorrida no século XVII, afirmou com todas as letras


que a única forma de obter conhecimento é através da razão. A importância desta
afirmação esta no fato de que até então a razão era tratada como uma forma menor
de conhecimento, pois no período em que predominou o paradigma religioso/cristão
a mais alta forma de conhecer é através da revelação.

No período da revolução científica René Descarte escreveu O discurso do Método


em que define o método como um conjunto de regras que tem como característica ser
1) certa, ou seja, o método dá segurança ao pensamento; 2) fáceis, ou seja, o método
evita complicações e esforços inúteis, e, por fim; 3) amplas, o método permite que
alcancemos todo conhecimento possível para o entendimento humano. (CHAUÍ, 1995)

O livro "O Ponto de mutação" de Fritjof Capra estabelece as diferença


entre o pensamento cartesiano e o paradigma que emerge no século
XX. Caso prefira, pode assistir ao filme, ele possui o mesmo nome do
livro e foi dirigido por Bernt Amadeus Capra e lançado em 1990, o nome
original do filme é Mindwalk.

A possibilidade de o homem conhecer a realidade por meio do racionalismo


também foi demonstrada por Galileu Galilei. Galilei afirmou que a natureza funciona
respeitando princípios mecânicos, por isso o homem que se debruçar sobre a natureza
poderá conhecer o seu funcionamento utilizando a razão. Galilei também apontou
para a importância da observação e da experiência. Suas obras – O ensaiador do
mundo, diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, discurso e demonstração
matemática sobre duas novas ciências – são um importante marco de separação entre
reflexão filosófica e ciência.

O surgimento da antroplogia sociológica 59


U2

O filme A vida de Galileu é um drama gravado em 1975 pelo diretor Joseph


Losey e trata da responsabilidade do cientista perante a sociedade.

O século XVII marca o início do pensamento científico moderno, esta forma de


conhecer e dominar os elementos da natureza será amplamente utilizado durante a
Revolução Industrial. Invenções de diversos tipos ajudarão a burguesia a produzir cada
vez mais e mais rápida. Assim, a ciência ganha notoriedade e se torna o paradigma
dominante da modernidade.

A exaltação diante desse novo saber e novo poder leva à concepção


do cientificismo, segundo a qual a ciência é considerada o único
conhecimento possível e o método das ciências da natureza o único
método válido, devendo, portanto, ser estendido a todos os campos da
indagação e da atividade humana. (ARANHA; MARTINS, 2003 p. 140).

A cientificidade como forma de conhecimento e controle sobre o mundo natural foi


importante para uma mudança de concepção de como os destinos dos homens eram
guiados e uma mudança na concepção de quem é o homem. Se, cada vez mais, o
homem poderia controlar a natureza e agir de forma positiva na construção de seu futuro,
ele também percebia que o seu “destino” é construído por ele mesmo. Esta concepção é
fundamental para o início de uma ciência capaz de estudar o próprio homem.

Para apresentar rapidamente o que é o conhecimento científico e qual sua


diferença com as outras formas de conhecimento observe o quadro a seguir:
Quadro 2.1 | Tipo de conhecimento

Conhecimento mitológico Tenta explicar a realidade por meio de mitos. Expressa os valores
morais de uma sociedade. Consegue criar um sistema de explicação
da realidade em que articula vários mitos.
Conhecimento Filosófico É um sistema de pensamento racional que tenta se afastar do mito
para produzir um tipo de conhecimento universalmente válido, no
entanto é também valorativo, pois expressa as ideias de determina-
das correntes de pensamento.
Senso Comum Não há sistematização do conhecimento, explica as coisas utilizando
analogias que não possuem relações diretas, mas serve de orien-
tação para o dia a dia das pessoas produzindo valores morais que
orientam a conduta humana.
Conhecimento Científico É factual, a análise dos fatos concretos é o ponto de partida do pen-
samento científico, tenta ser exato. O pensamento científico produz
conhecimento capaz de ser verificado na realidade.
Fonte: O autor, baseado em Marconi e Lakatos (2003).

60 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Na virada do século XVIII para o século XIX a ideia de ciência também se baseava na
distinção entre o sujeito pesquisador e o objeto a ser pesquisado. Se o homem estuda
a si mesmo o objeto iria se confundir com pesquisador, isto seria um empecilho para
que o projeto antropológico pudesse se realizar. Assim, no século XIX, a antropologia
resolve este problema propondo que seu objeto de estudo seriam os povos distantes,
portanto, o que separaria o pesquisador de seu objeto era a distância geográfica. O
objeto específico de estudo antropológico seria aquilo que os europeus do século XIX
chamaram de “povos primitivos”, ou ainda “povos selvagens”. O que o termo “povos
primitivos”, ou “povos selvagens”, significa para os pensadores desta época? Eram aqueles
povos que não tinham contato e relação com as culturas europeia e norte-americana.

No início do século XX, os antropólogos perceberam que seu objeto de pesquisa


estava desaparecendo, pois as inúmeras viagens e contatos com estes povos fizeram
com que quase todos os chamados povos primitivos tivessem sido catalogados e
descritos nesta época. Apresenta-se um problema fundamental para a Antropologia:
Com o fim do objeto de pesquisa o projeto antropológico também estaria terminado?

A saída encontrada pelos antropólogos é ampliar o seu objeto de estudo, não estudar
somente os povos primitivos e criar uma nova abordagem epistemológica. Segundo
Laplantine (2003, p. 9)

O objeto teórico da antropologia não está ligado, na perspectiva


na qual começamos a nos situar a partir de agora, a um espaço
geográfico, cultural ou histórico particular. Pois a antropologia não é
senão um certo olhar, um certo enfoque que consiste em: a) o estudo
do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades,
sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas.

Sendo assim, a Antropologia pode ser compreendida como o estudo do homem


pelo próprio homem, ou ainda, segundo Ralph Linton (1971 p. 18), a antropologia pode
ser “definida como o estudo do homem e de seus trabalhos. Assim definida, deverá
incluir algumas das ciências naturais e todas as ciências sociais“, a partir de certo olhar.

Estudar o homem em sua complexidade, envolvendo elementos das ciências


sociais e naturais imprime na antropologia uma característica paradoxal, segundo
Mello (1983), isto dá à antropologia a característica de uma disciplina especializada
e, ao mesmo tempo, faz com que a antropologia seja uma das disciplinas mais
generalizadas dentro do escopo da ciência.

É especializada enquanto trata apena de assuntos relacionados com o


homem e sua experiência; geral, no que concerne à variedade incrível
de aspectos da realidade humana que envolve temas estudados por

O surgimento da antroplogia sociológica 61


U2

geneticistas, psicólogos sociólogos, biólogos, geógrafos etc. (MELLO,


1983, p. 35).

A antropologia, neste sentido, irá compreender e estudar o homem como um ser


biopsicossocial, ou seja, estuda os homens em seus aspectos biológicos, sociais e
psíquicos.

Com tantos campos a se estudar, a antropologia apresenta diferentes divisões. Uma


das divisões mais simplificadas que podemos ter está apresentada na figura a seguir:

Figura 2.1 | Divisões da antropologia

Fonte: O autor, baseado em Mello (1983).

Esta divisão é apenas uma das divisões da antropologia. Mello (1983) ainda destaca
que pode haver uma divisão em relação à disciplina acadêmica e não ao campo de
estudo, nesta divisão podemos perceber a existência de uma antropologia filosófica,
antropologia psicológica entre outras.

O que estuda cada uma das divisões da antropologia é o que iremos começar a estudar.

1. Segundo Marconi e Lakatos (MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. V.


Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. – São Paulo: Atlas
2003. p. 80), a definição de pensamento científico é:
É real (factual) porque lida com ocorrências ou fatos, isto é, com
toda "forma de existência que se manifesta de algum modo".
(FRUJILLO, 1974: 14). Constitui um conhecimento contingente,

62 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

pois suas proposições ou hipóteses têm sua veracidade ou falsidade


conhecida através da experiência e não apenas pela razão, como
ocorre no conhecimento filosófico. É sistemático, já que se trata de
um saber ordenado logicamente, formando um sistema de ideias
(teoria) e não conhecimentos dispersos e desconexos. Possui
a característica da verificabilidade, a tal ponto que as afirmações
(hipóteses) que não podem ser comprovadas não pertencem
ao âmbito da ciência. Constitui-se em conhecimento falível, em
virtude de não ser definitivo, absoluto ou mal e, por este motivo, é
aproximadamente exato: novas proposições e o desenvolvimento
de técnicas podem reformular o acervo de teoria existente.

Assinale a alternativa que melhor se enquadra na definição de


ciência:

a) “Acredito em coincidência e essa [a transferência do local


do jogo] é uma vantagem a mais para nós nesta final. Foi lá que
conquistamos nosso primeiro título.” (declaração da capitã do
time de vôlei do Vasco da Gama ao comemorar a transferência
da partida contra o Flamengo para um ginásio de sua preferência).
b) “Considero a sexta-feira 13 um dia ruim. Para mim, o poder da
mente é forte e aquelas pessoas que pensam negativamente podem
atrair má sorte. Não creio que ocorram coisas ruins para mim, mas
prefiro me precaver com patuás e incensos.” (Estudante, 24 anos).
c) “Não temo o desemprego, quem com Deus está, tudo pode.”
(Depoimento de um candidato a emprego de gari no Rio de
Janeiro, disputando vaga com outros 40 mil candidatos).
d) “Viemos em busca da ‘Terra sem males’, atrás do ‘Éden’. Estamos
atrás do ‘paraíso’ sonhado por nossos ancestrais e ele se encontra
por essas regiões.” (explicação dada por líder guarani diante do
questionamento sobre a instalação de grupos indígenas em áreas
de mata atlântica protegidas por lei).
e) “As principais causas da exclusão educacional apontadas pelo
censo do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística],
além do trabalho infantil, são a pobreza, a distância entre a escola
e a residência, a distorção idade série e até o tráfico de drogas”.
(Divulgação na imprensa de dados do IBGE sobre educação).

2. “Sabemos hoje que noções, como as de saúde e doença,


aparentemente simples, referem-se, de fato, a fenômenos
complexos que conjugam fatores biológicos, sociológicos,

O surgimento da antroplogia sociológica 63


U2

econômicos, ambientais e culturais. A complexidade do objeto,


assim definido, transparece na multiplicação de discursos sobre a
saúde que coexistem atualmente, cada um privilegiando diferentes
fatores e sugerindo estratégias de intervenção e de pesquisa
também diversas.” (UCHOA, E; VIDAL, J. M. Antropologia Médica:
Elementos Conceituais e Metodológicos para uma Abordagem da
Saúde e da Doença. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-
504, out/dez, 1994).
Pela afirmação acima, pode-se avaliar que o homem deve ser
estudado como:

a) Um ser exclusivamente social.


b) Um ser biopsicossocial.
c) O fator biológico se sobrepondo ao fator social.
d) Um ser unicamente cultural.
e) Um ser cindido em relação à natureza.

64 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Seção 2

Antropologia física
O homem é um ser que faz parte da natureza! Esta é a grande ousadia das ciências
naturais no século XVIII e XIX. O homem é deposto de seu pedestal de coroa da criação
divina e é colocado no mesmo ramo que os orangotangos. Antes desta afirmação, o
homem era pensado como um cidadão celeste, obra da bondade divina, assim sua
existência não poderia ser compreendida pela ciência, pois a ciência trabalha apenas
com elementos que pode observar. A afirmação de que o homem é um ser natural
possibilita a abertura de um campo de investigação que pode tentar compreender o
homem em seus aspectos físicos.

Qual é a relação entre o biológico e o cultural na humanidade?

2.1 Antropologia e biologia para compreensão do homem

A antropologia física estuda o homem em seus aspectos biológicos, por isto que
a antropologia física pode, por vezes, ser chamada de antropologia biológica. Mello
(1983) afirma que a antropologia física é um misto de história natural e ciência natural
do homem.

A ela [antropologia física] interessa não só o estudo das populações


hodiernas, mas também o estudo da evolução da espécie humana.
Estuda o problema da origem do homem, as semelhanças e a
diferenças entre os povos. É de sua alçada o estudo das raças. (MELLO,
1983 p. 36).

Segundo Laplantine (2003), faz parte das preocupações da antropologia biológica


a relação entre o espaço que o homem habita e suas características genéticas.

O surgimento da antroplogia sociológica 65


U2

No século XIX, só podia se estabelecer uma diferença entre as raças humanas


a partir de características externas, ou seja, eram diferenças fenotípicas. Na
atualidade, com mapeamento do genoma humano, se percebe que em
nível genético não é possível falar em diferenças de raças na humanidade.

Assim, o antropólogo biologista levará em consideração os fatores


culturais que influenciam o crescimento e a maturação do indivíduo. Ele
se perguntará, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da
criança africana é mais adiantado do que o da criança europeia? Essa
parte da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas
de crânios, mensurações do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele,
anatomia comparada às raças e dos sexos, interessa-se em especial
– desde os anos 50 – pela genética das populações, que permite
discernir o que diz respeito ao inato e ao adquirido, sendo que um e
outro estão interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um papel
particularmente importante a exercer para que não sejam rompidas
as relações entre as pesquisas das ciências da vida e as das ciências
humanas. (LAPLANTINE, 2003, p. 10).

O início da Antropologia física se confunde com o próprio surgimento da antropologia


como ciência moderna. Um elemento fundamental para a existência da antropologia
física foi o estudo de Lineu (1707-1778), que colocou o homem no meio da natureza.
Com os estudos deste naturalista sueco, o homem deixa de ser a coroa da criação divina
e passa a ser considerado uma das espécies dentro da classificação zoológica.

Os estudos de Lineu influenciam o conde de Buffon que se torna o fundador da


antropologia com a publicação do livro "Histoire naturelle genérále et particuliére des
animaux" em 1749. Nesta obra, segundo Laraia (2005), se levantam várias relações,
como, por exemplo, as relações entre as raças humanas, as variações da existência,
a relação entre os homens animais, que podem ser considerados problemas
antropológicos. O conde de Bufon “foi o primeiro a utilizar a palavra raça com
referência ao homem”. (LARAIA, 2005, p. 322).

Para saber mais sobre Charles Darwin e seus estudos acesse: <http://www.
sobiologia.com.br/conteudos/Seresvivos/Ciencias/CharlesDarwin.php>.

66 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Em 1849, Charles Darwin publica o livro "A Origem das Espécies". Neste momento,
as ideias biológicas atingem seu clímax e o evolucionismo começa a ser o preceito
fundamental para uma ciência que queira estudar a origem do homem.

É exatamente nesta época, no início da segunda metade do século


XIX, que a antropologia começa a se consolidar como disciplina
acadêmica. É até então uma ciência natural, definida como “a
ciência comparativa do homem que trata de suas diferenças e das
causas das mesmas, no que se refere à estrutura, função e outras
manifestações da humanidade, segundo o tempo variedade, lugar
e condição”. A antropologia física, como começou a ser chamada
quando surgiram as ramificações, era considerada por Paul Broca,
um dos seus fundadores, a história natural do gênero HOMO. Assim,
era natural que o seu discurso fosse fortemente influenciado por
conceitos biológicos e, especialmente por paradigmas evolucionistas.
As diversidades de comportamento e de desenvolvimento social,
constatadas entre as diferentes sociedades humanas, levavam os
antropólogos a buscar explicações científicas. Essas eram baseadas
em um determinismo biológico. Os homens agem diferenciadamente
porque são biologicamente diferentes e essas divergências são
resultados de um processo evolutivo. (LARAIA, 2005 p. 322).

Assim, segundo esta teoria, que aponta um determinismo biológico que rege a
evolução humana, alguns povos, algumas raças são consideradas superiores porque
passaram por todas as etapas da evolução humana, outros povos estão no meio do
caminho e outros povos ainda se encontram nas primeiras etapas da evolução, estes
são considerados os povos mais atrasados dentro do processo evolutivo.

Estas ideias são especialmente convenientes para uma Europa que quer ampliar sua
dominação por meio de uma política colonialista durante o século XIX, se justifica a
colonização sob o pretexto de se levar a civilização para povos que ainda não tinham
evoluído o suficiente para atingirem por si este estágio de humanidade.

Os antropólogos do século XIX passam a fazer estudos que caracterizam as diferenças


de características físicas entre os homens de raças diferentes. Utilizam-se aparelhos para
medirem crânios e estabelecerem diferentes classificações entre os homens a partir
destas medidas. Medem também envergadura, altura, comprimento dos membros
etc. tipos de cabelo e graduação de cor de pele, entram nos estudos para classificar os
homens e demonstrarem como se dá o processo evolutivo.

Laraia (2005) chama a atenção para o fato de que os estudos produzidos nesta época
servirem de munição para as ideias racistas.

A partir de meados do século XX a antropologia física, que passou a se chamar

O surgimento da antroplogia sociológica 67


U2

antropologia biológica, irá se dedicar a outros tipos de estudo, como afirmamos


anteriormente, que irão pensar na diferença entre o inato, aquilo que o homem já nasce
com ele, e o adquirido. Estudar o mundo físico é um elemento essencial, Mello (1983,
p. 37) afirma que estudar “o homem como animal terrestre e o mundo físico é uma
condição sine qua non para sua sobrevivência”, e os estudos que relacionam aquilo que
é inato e adquirido contribuem para pensar nas características que são exclusivamente
humanas. Um conjunto de características que possui relação direta com nosso corpo
físico, mas vai para além dele, é o nosso comportamento, que está na esfera do adquirido.
Este comportamento que é adquirido chama-se cultura. Assim, antropologia se ramifica,
cria-se a área de estudo chamada de antropologia cultural.

1. A publicação do livro “A Origem das Espécies” de Charles


Darwin, em meados do século XIX, marcou decisivamente tanto
as ciências naturais quanto as ciências sociais. Muitos estudos no
campo social partiram de premissas parecidas com a deste autor.
Neste sentido, podemos afirmar que:
a. Segundo a teoria de Darwin é possível pensar que o homem
segue uma lei necessária de evolução, e portanto, o aparecimento
e as modificações pelas quais passaram os povos e as culturas
estariam dentro desta lei.
b. Segundo a teoria de Darwin, não é possível pensar que o homem
segue uma lei necessária de evolução, e portanto, o aparecimento
e as modificações pelas quais passaram os povos e as culturas
estariam dentro desta lei.
c. Segundo a teoria de Darwin, é possível pensar que a evolução
não se dá por meio de leis necessárias, mas antes cada indivíduo
se desenvolve por meio de suas próprias convicções e crenças.
d. O evolucionismo proposto por Darwin em nenhum momento
foi utilizado como referência para pensar as sociedades humanas.
e. Segundo a teoria de Darwin, o campo social não poderia ser
estudado como uma ciência uma vez que não experimenta
nenhum tipo de evolução.

2. Apesar de muitos dos métodos utilizados pela Antropologia


Física no século XIX serem alvos de questionamento a partir da
segunda metade do século XX, é inegável a sua contribuição

68 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

para que a Antropologia ganhasse status de disciplina científica,


podemos afirmar que a principal contribuição da antropologia
física foi:
a. Utilizar como método de estudo a medição dos crânios para
classificar as diferentes raças humanas, método utilizado até a
atualidade.
b. Utilizar a medição da envergadura dos corpos como forma de
determinar as raças superiores da espécie homo sapiens
c. Demonstrar que o homem é um ser natural e divino ao mesmo
tempo, sem negar a condição transcendental do ser.
d. Apresentar uma teoria inquestionável do ponto de vista teológico
sobre a origem do homem.
e. Considerar o homem como uma das espécies da classificação
zoológica e não mais como a principal criação divina.

O surgimento da antroplogia sociológica 69


U2

70 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Seção 3

Antropologia cultural e social


Apesar de algumas diferenças nos aspectos físicos, podemos afirmar que os
homens se diferenciam entre si quando falamos da forma como eles se organizam
em sociedade. Os homens possuem hábitos alimentares diferentes, relações de
parentescos diferentes, são diferentes também as formas de poder nas diversas
sociedades, enfim a característica comum que os homens mantêm entre si é que todos
eles são diferentes nas suas formas de vida. Por esta razão o ramo da antropologia que
estuda questões culturais e sociais é extremante fecunda.

3.1 Relação entre antropologia cultural e antropologia social

A antropologia cultural é o ramo da antropologia que se propõe a estudar a obra


humana. Neste sentido, este ramo da antropologia ocupa um campo muito vasto,
pois a ideia de cultura abrange todos os hábitos e costumes humanos que foram
desenvolvidos no convívio em sociedade.

Como se vê, dentro da cultura estão assuntos relacionados com a


política, religião, arte, artesanato, economia, linguagem, prática e
teorias, crença e razão, um mundo realmente de aspectos os mais
complexos. Como se não bastasse a amplitude destes assuntos a serem
estudados, ainda surgem problemas os mais variados. Exemplos disso
são os seguintes temas que pertencem à antropologia cultural: onde
termina a biologia humana e começa a cultura? Qual a influência da
biologia sobre a cultura e desta sobre a biologia humana? O ambiente
tem a ver com a cultura? Que dizer da influência da cultura sobre o
ambiente? A cultura dos povos modernos e civilizados difere em que
da dos povos primitivos? (MELLO, 1983, p. 38).

A antropologia social preocupa-se com as instituições de generalização sobre uma


cultura, a sociedade e a personalidade em sentido mais universal e por isto este ramo
da antropologia se aproxima mais da sociologia, segundo Mello (1983). Laplantine
(2003) coloca a antropologia social junto com a antropologia cultural, chamando este

O surgimento da antroplogia sociológica 71


U2

grande escopo de etnologia. Na verdade, Levi-Strauss afirma que antropologia social e


antropologia cultural estão ligadas por uma síntese entre etnografia e etnologia. Mello
(1983) aponta que o termo antropologia cultural vigora mais entre os americanos e
centra as suas atenções sobre aquilo que o homem fabricou, ao passo que o termo
antropologia social vigora mais entre os ingleses e tem seus estudos voltados para
organização social, costumes, instituições e crenças, mas que também trata de
aspectos materiais da cultura. Assim, adotaremos a mesma nomenclatura utilizada por
Laplantine e doravante quando utilizarmos o termo antropologia, nós estamos nos
referindo à antropologia social e cultural.

Como se pode perceber os temas que são possíveis de serem tratados pela
antropologia são muitos, assim como são as correntes teóricas dentro desta divisão
da antropologia. Neste sentido iremos trabalhar com algumas correntes de estudo
dentro da antropologia.

3.2 Evolucionismo cultural

Esta linha de pensamento está situada em meados do século XIX e início do


século. Foi fortemente influenciada por toda a discussão evolucionista da época, bem
como pela discussão biologista. Assim, a ideia de uma evolução linear estava bastante
presente nas discussões. Neste período não se procurava provar a existência da
evolução, a evolução já era um dado, o que se queria estudar seria quais eram as leis
gerais do progresso humano. Alguns autores que não são antropólogos propriamente
ditos já trabalhavam com a ideia de evolução, se bem que o termo mais usado era o de
evolução social. Entre estes autores destacam-se Saint-Simon (1760-1825) que afirmava
que a humanidade passaria por três etapas, a saber: conjuntural, semiconjuntural e
positiva. Augusto Comte (1798-1870) apresentou um esquema semelhante. Para
Comte haveria três estágios para evolução social: o estágio teológico, o metafísico e o
positivo. Herbert Spencer (1820-1903) é que publica a expressão “a sobrevivência do
mais apto”, e não Darwin (MELLO, 1983).

Segundo Evans-Pritchards

Os primeiros a considerar as sociedades primitivas como temas


interessantes por si mesmos foram Mclennan e Tylor neste país
(Inglaterra) e Morgan na América. Os referidos investigadores extraíram
informações acerca das sociedades primitivas realizando uma ampla
seleção de escritos das mais diversas classes, apresentaram-na de forma
sistemática e estabeleceram assim as bases da antropologia social. Em
suas obras o estudo direto das sociedades primitivas junto à teoria
conjuntural da natureza das instituições sociais. (EVANS-PRITCHARDS
apud MELLO, 1983, p. 205).

72 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Tylor irá distinguir o termo cultura do termo raça em seu livro Primitive Culture, de
1871, além de fornecer uma definição do termo cultura bastante amplo. Tylor afirmou
que “cultura é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, moral,
leis, costume ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma sociedade”. (LARAIA 2009, p. 25).

Lewis Morgan foi o primeiro a realizar pesquisa de campo e com base na


documentação produzida tratou de afirmar a tese de que os povos se diferenciam por
estarem em etapas diferentes da evolução.

[...] com base em convincente evidência, que a selvageria precedeu a


barbárie em todas as tribos da humanidade, assim como se sabe que
a barbárie precedeu a civilização. A história da raça humana é uma
só – na fonte, na experiência, no progresso. (MORGAN, 2005, p. 21).

Este mesmo autor afirma que:

É tão natural quanto apropriado desejar saber, se possível, como


todas essas eras após eras de tempos passados foram utilizadas
pela humanidade; como os selvagens, avançando através de passos
lentos, quase imperceptíveis, alcançaram a condição mais elevada de
bárbaros; como os bárbaros, por um avanço progressivo semelhante,
finalmente alcançaram a civilização; e por que outras tribos e nações
foram deixadas para trás na corrida para o progresso - algumas na
civilização, algumas na barbárie e outras na selvageria. Não é demais
esperar que, em algum momento, essas diversas questões sejam
respondidas. (MORGAN, 2005, p. 21).

O postulado básico do evolucionismo, para dar conta do por que


de alguns povos alcançarem o estágio de civilizados e outros não,
era o de que no longo caminho da evolução cultural os homens se
desenvolvem por estágios sucessivos, obrigatório e unilinear. Segundo
as Palavras de Morgan
[...]
Como a humanidade foi uma só na origem, sua trajetória tem sido
essencialmente uma, seguindo por canais diferentes, mas uniformes,
em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as tribos
e nações da humanidade que se encontram no mesmo status de
desenvolvimento. (MORGAN, 2005, p. 22).

Segundo a explicação evolucionista, há algumas sociedades que não passaram


ainda por todos os estágios, por isso há diferença entre as sociedades, mas no curso

O surgimento da antroplogia sociológica 73


U2

de sua evolução um dia estas sociedades chegarão ao estágio de civilizados.

A explicação evolucionista para as diferentes culturas só pode ser aceita com a


aceitação de seu método. O método utilizado para estudar as diferentes sociedades e
determinar seu lugar dentro da evolução era a o método comparativo. Assim podem-
se observar as sociedades que atingiram um maior desenvolvimento e estabelecer o
lugar das outras sociedades comparadas com as mais avançadas. O quadro a seguir
ajuda a entender este pressuposto:

Quadro 2.2 | Esquema da teoria evolucionista, baseada em Lewis Morgan

Fases Fenômenos Observação


Origens Aparecimento dos homens - homo sapiens
- reduzia-se ao grupo familiar;
- predomínio o pastoreio
Selvageria Costumes Selvagens
- grande dependência do meio
físico
- Transição até atingir um grau
onde se inicia a estruturação
Barbarismo Costumes Bárbaros dos fatos;
-progressivo domínio do meio
físico;
- fatos estruturados hierarqui-
camente
- fase de aproveitamento da
Civilização Costumes Civilizados
Natureza
- independência do meio físico,
dentro do relativismo
Fonte: O autor, baseado em Castro (2000, p.172).

James Frazer é outro antropólogo que teve seu nome vinculado ao evolucionismo
cultural. Ele é o primeiro a ocupar a cadeira de antropologia social na Inglaterra. Para
este autor as sociedades passariam por três etapas: Magia, Religião e Ciência. Frazer
tentava encontrar as leis gerais que guiavam a evolução humana.

A crítica realizada à tese do evolucionismo cultural é a de que os pesquisadores,


ao aplicarem o método comparativo, partiam do pressuposto de que a suas próprias
culturas eram as mais evoluídas, portanto, tudo que não se assemelhava à sociedade
ocidental capitalista era classificada como selvagem ou bárbara, fazendo referências às
nomenclaturas utilizadas por Morgan. Sobre esta ideia se levantava a seguinte questão:
será que podemos falar em culturas mais evoluídas e menos evoluídas?

O evolucionismo cultural também foi questionado em seu pressuposto de haver


um aperfeiçoamento unilinear: será que é possível falar de um caminho único para o
desenvolvimento das diversas sociedades humanas? Todas as sociedades deveriam
evoluir do mesmo modo e caminhar para um mesmo fim último que é chegar a ser
como a sociedade capitalista ocidental como os países centrais da Europa?

74 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

3.3 Difusionismo cultural

O difusionismo é também chamado de historicismo e pode ser pensado como


uma corrente teórica que irá oferecer uma determinada crítica ao evolucionismo
cultural. O difusionismo dá maior atenção às culturas particulares. Para o difusionismo,
os homens não possuem um início comum como no evolucionismo cultural, o
homem vivia em pequenos grupos que com o tempo criaram ciclos culturais bem
característicos que os colocaram em contato com outros homens de outros círculos.

O difusionismo irá revolucionar também a maneira como se coletam os dados


em uma pesquisa, ou seja, os instrumentos metodológicos. A pesquisa participante
começa a se desenvolver neste ramo da antropologia.

A pesquisa participante é uma técnica de pesquisa em que o pesquisador se integra


ao grupo que quer estudar. O pesquisador passa a morar com o grupo que quer
estudar, come as mesmas comidas, veste as mesmas roupas, fala o mesmo idioma. O
que se pretende com esta técnica é obter os dados sobre o comportamento de um
povo por meio do contato direto e em situações do cotidiano em que a presença do
pesquisador não interfira na ação.

A abordagem historicista na antropologia não só acarretou uma


nova interpretação do fenômeno cultural, como foi visto, mas veio
convencer seus defensores da necessidade de mudar o próprio
sentido do foco de estudo. Isto teve lugar principalmente na escola
americana, onde se passou a dar relevo às culturas particulares e não
à cultura universal. Já não se procurava estudar a cultura nas suas
origens e em todas as partes formando uma grande unidade comum a
todos os homens; agora o relevo era dado às culturas particulares. Isto,
sem dúvida, permitiu maior segurança nas informações e um maior
conhecimento de fenômenos, até agora, relegados a segundo plano.
Este fato talvez explique o surgimento de outras tendências teóricas
na antropologia cultural, tais como o psicologismo, o funcionalismo e
o estruturalismo. (MELLO 1983, p. 224).

Franz Boas nasceu na Alemanha em 1858, mas mudou-se para os Estados Unidos
em 1887, com a mudança de país veio a mudança de carreira, que iniciou como
geógrafo e no novo país foi incorporado ao Departamento de Antropologia da
Universidade de Columbia. Por esta razão podemos afirmar que ele é o representante
americano do difusionismo. Seus estudos sobre as particularidades culturais o levou a
inaugurar a ideia de relativismo cultural, ou seja, a cultura deve ser avaliada no contexto
em que ela se encontra e não em relação a uma determinada cultura universal. Em
seus cadernos de viagem afirma:

O surgimento da antroplogia sociológica 75


U2

Como ser pensante o resultado mais importante desta viagem para


mim, está no fortalecimento do meu ponto de vista de que a ideia de
indivíduo “culturado” (culto) é simplesmente relativa: o valor de uma
pessoa deve ser atribuído pela sua Herzenbíldung (cultura de coração).
Esta qualidade está presente ou ausente entre os esquimós tanto
quanto entre nós. (BOAS, 2004, p. 80).

Esta expressão de Boas vai radicalmente contra o pensamento evolucionista. O


evolucionismo se relaciona diretamente com um tipo de pensamento que chamamos
de etnocêntrico, quando as diversas culturas são julgadas mediante a cultura de um
grupo, ou de uma etnia, que tenta prevalecer como sendo a certa.

3.4 Funcionalismo
O funcionalismo começa a se erguer como uma corrente teórica importante
dentro do pensamento antropológico a partir de 1914, com os estudos de Bronislaw
Malinowski, nas ilhas Trobriand. Na Inglaterra, os discípulos de Malinowski o
consideraram o criador da antropologia social.

Malinowski e, depois Radcliffe-Brown, preocuparam-se em estudar


e explicar o funcionamento da cultura em um momento dado. Ao
funcionalismo não interessava explicar o presente pelo passado.
Talvez lhe interessasse mais explicar o passado pelo presente.
(MELLO, 1983, p. 240).

Nesta escola se utiliza também a pesquisa participante, e Malinowski ficou


conhecido por inaugurar o método etnográfico, que pode ser pensada como uma
pesquisa de campo de longa duração. O ponto marcante desta escola é que ela utiliza
a visão sistêmica para analisar a cultura. As explicações sobre determinadas culturas
deve ser dada pela lógica do sistema que ela assume.

O funcionalismo emprega um método semelhante ao método


das ciências naturais. Para eles (Comte, Spencer, Durkheim etc.) a
sociedade e a cultura são vistas como um todo cujas partes estão
intimamente interligadas, a exemplo do organismo biológico e seus
respectivos órgãos. Não existem órgãos dispensáveis dentro de um
organismo. Todos eles têm uma função a desempenhar dentro do
organismo. (MELLO; SALES JR, 1973 p. 113).

76 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

O funcionalismo buscava estudar a estrutura social, ou seja, a relação entre as diversas


partes que compunham a sociedade, assim, se estudava a forma como a sociedade
produzia e distribuía os bens materiais, as regras de parentesco, os rituais, as crenças
religiosas etc. O importante era perceber que cada uma das partes da sociedade atuava
para manter o equilíbrio, a coesão social. As práticas sociais, neste sentido, são pensadas
a partir da utilidade que ela tem para a manutenção do corpo social.

Pela relação com os pensadores sociais do século XVIII e, sobretudo, pela


influência de Durkheim que Mello afirma que a antropologia social está muito próxima
da sociologia.

Malinowski aponta que tudo o que a sociedade produzia era uma resposta à
necessidade humana mais básica, saciar a fome. Para este autor o homem é uma
espécie animal que está sujeito, portanto, às condições mais básicas de vida. Por isto
Malinowski afirma que:

A cultura é essencialmente uma aparelhagem instrumental pela qual o


homem é colocado numa posição melhor para lidar com os problemas
específicos concretos que se lhe deparam em seu ambiente, no curso
da satisfação de suas necessidades.
A cultura é um sistema de objetos, atividades e atitudes, no qual parte
existe como meio para um fim.
A cultura é uma integral no qual os vários elementos são
interdependentes.
Do ponto de vista dinâmico a cultura pode ser analisada numa série de
aspectos tais como educação, controle social, economia, sistemas de
conhecimento, crença e moralidade, e também modo de expressão
criadora e artística. (MALINOWSKI apud MELLO, 1983, p. 249).

A observação de como a cultura atua na manutenção material da vida tem que ser
feita de maneira objetiva e com objetos de estudos que possam se relacionar entre
si, por isto Malinowski apontará que seus estudos devem ser feitos a partir de uma
unidade básica que possa ser capaz de mostrar as relações de interdependência, esta
unidade são as instituições.

Radcliffe-Brown aponta que os conceitos-chaves do funcionalismo são: estrutura


e função. A estrutura é a relação que as entidades mantêm entre si e a função é a
contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total da parte. O que
isto quer dizer? Em uma sociedade possuímos diversas relações entre a economia, a
vida doméstica, os graus de parentescos, os processos educacionais, a linguagem etc.
Estas relações são a estrutura que a sociedade possui, mas ao mesmo tempo cada
uma das partes desta estrutura possui uma função específica que contribui com o
funcionamento do todo, ou seja, a economia possui uma determinada função que não
é a mesma função da educação por exemplo, são funções distintas, mas as funções

O surgimento da antroplogia sociológica 77


U2

distintas quando entram em relação na estrutura é que mantêm o corpo social coeso.
Segundo Mello (1983), o funcionalismo, principalmente ligado a Radcliffe-Brown,
relegou o conceito de cultura em benefício do conceito de sociedade.

3.5 Estruturalismo
Percebemos que na teoria anterior o termo estrutura já foi utilizado, mas de uma
maneira bem simples podemos definir estrutura como a maneira pela qual as partes
de um todo estão dispostas entre si. Apesar de esta definição simplista ser muito útil
para a compreensão do estruturalismo precisamos também perceber como principal
autor desta corrente teórica elaborou suas ideias.

Claude Levi-Strauss, considerado por muito o precursor do estruturalismo antropológico,


se inspirou nas ideias de Ferdinand de Saussure de estruturalismo linguístico.

O principio da estrutura como objeto de estudo ficou estabelecido,


pouco antes de 1930, por um pequeno grupo de linguistas que se
propuseram a reagir contra a concepção exclusivamente histórica da
língua, contra uma linguística que dissociava a língua em elementos
isolados e se ocupava com seguir suas transformações. Todos estão
de acordo em considerar que este movimento tem sua origem nos
cursos de Ferdinand de Saussure, ministrados em Genebra, tal como
foram coletados por seus alunos e publicados com título de Cours
de linguistique génperale. (BENVENISTE, 1971, p. 24).

Para Saussure a linguagem é um sistema que apenas conhece a sua própria ordem,
ela é um sistema convencional de sinais que para serem entendidas as partes devem
ser consideradas umas em relação às outras. Neste sentido, o mais importante para
se conhecer a língua não é conhecer o desenvolvimento histórico de determinado
termo, mas para se conhecer a língua é preciso conhecer o sistema em que esta
língua está inserida. Esta é a concepção estrutural de Saussure apesar de ele usar
sempre o termo sistema. Esta ideia das relações está dentro de um sistema que é a
base do pensamento estruturalista de Levi-Strauss.

O conceito de estrutura de Levi-Strauss não se confunde com a realidade estudada,


na verdade, para este autor as relações sociais são a matéria-prima para a construção
de um modelo de explicação que ele chama de estrutura. Portanto, a estrutura social
é um modelo de estudo construído a partir da realidade social. Para compreender
melhor a ideia de estrutura é preciso que o próprio Levi-Strauss se manifeste:

O principio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere


à realidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade

78 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

com esta. Assim, aparece a diferença entre duas noções, tão vizinhas que
foram confundidas muitas vezes: a de estrutura social e relação social. As
relações sociais são a matéria-prima empregada para a construção dos
modelos que tornam manifesta a própria estrutura social.
Pensamos, com efeito, que para merecer o nome de estrutura os
modelos devem, exclusivamente satisfazer quatro condições:
Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um caráter de sistema. Ela
consiste em elementos tais que uma modificação qualquer de um deles
acarreta na modificação de todos os outros.
Em segundo lugar, todo modelo pertence a um grupo de transformações,
cada uma das quais corresponde a um modelo da mesma família, de
modo que o conjunto destas transformações constitui um grupo de
modelos.
Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de
que modo reagirá o modelo em caso de modificação de um dos seus
elementos.
Enfim, o modelo deve ser construído de tal modo que seu funcionamento
possa explicar todos os fatos observados. (LEVI-STRAUSS, 1967, p. 316).

Para exemplificar a ideia do estruturalismo em Levi-Strauss, vamos pensar como este


autor pensou a maneira como a vida em sociedade foi fundada, mais especificamente,
ele se dedicou a pesquisar a estrutura elementar do parentesco. A ideia de parentesco
é fundamental para a fundação da sociedade, o próprio Levi-Strauss afirmou que
o que diferencia verdadeiramente o mundo humano do mundo animal é que, na
humanidade, uma família não poderia existir sem existir a sociedade, isto é, uma
pluralidade de famílias dispostas a reconhecer que existem outros laços para além dos
consanguíneos e que o processo natural de descendência só pode levar-se a cabo
através do processo social da afinidade Em seus estudos, Levi-Strauss aponta que a
troca é um elemento que funda os sistemas de parentescos. Como assim a troca?
As diversas sociedades sempre colocaram alguma limitação para o casamento, ou
seja, a proibição do incesto, isto significa dizer que nem todos os membros de uma
sociedade podem se casar entre si. Esta restrição levaria as pessoas a procurarem
casamentos fora de seus grupos, ou seja, se estabelece algum tipo de troca e estas
trocas fundam o social. O mais importante é que Levi-Strauss percebe que, apesar
de algumas diferenças pontuais, várias sociedades que não mantém contato entre si
elaboraram uma restrição ao casamento e uma norma quanto aos relacionamentos,
ou seja, estabeleciam relações de parentescos. Portanto, o sistema de parentesco
esconderia uma estrutura comum a toda humanidade, uma estrutura que não é visível
a olho nu, mas que deve ser uma elaboração teórica de um modelo para estudo que
somente quem observa as sociedades de fora poderá perceber esta estrutura.

O surgimento da antroplogia sociológica 79


U2

3.6 Antropologia da prática e a visão de Marshal Sahlins


Levi-Strauss é considerado um dos grandes antropólogos do século XX e sua obra
influenciou várias correntes teóricas, mas algumas destas correntes questionaram
se não era possível pôr fim à dicotomia entre estrutura e história. Como vimos nas
correntes anteriores algumas se utilizam da história para fazer seus estudos e outras
pensam que a história não é tão importante, a noção de estrutura se torna mais
adequada para o estudo do homem. O objetivo desta parte da unidade é discutir os
conceitos de “estrutura”, “evento” e “práxis” em Marshall Sahlins.

Marshall Sahlins faz parte de um grupo de autores que “tentam elaborar um


modelo baseado na prática”. (ORTNER, 2011 p. 444). Para os antropólogos da prática,
sociedade e história “são governados por esquemas organizacionais e avaliativos. São
estes que constituem o sistema” (ORTNER, 2011 p. 444). De certa forma, os sistemas
constrangem a prática dos atores pelo controle que a cultura tem de suas definições
de mundo, porém, os atores, em suas ações, também modelam o sistema. Sahlins,
segundo Ortner (2011), elaborou um modelo em que a mudança sistêmica não
depende das trocas dos grupos no poder, mas das mudanças de significados das
relações existentes.

A seguir será apresentado o modelo elaborado por Sahlins para dar conta das
mudanças sistêmicas tentando articular os conceitos/discussões de “Estrutura”,
“Conjuntura” (evento) e “Ação Social” (práxis) em Sahlins.

3.7 Desafios de uma antropologia histórica

Sahlins, em Metáforas históricas e realidades míticas (2008, 27), apresenta como


seu objetivo mostrar que “a história é organizada por estrutura de significação”. Com
este projeto o autor quer demonstrar não apenas como os eventos são ordenados
pela cultura, mas como o evento pode reordená-la. Nas palavras do autor: “como a
reprodução de uma estrutura se torna a sua transformação?”. (SAHLINS, 2008, p. 28).

Apresentar estrutura e evento se inter-relacionando em um processo


histórico significativo é uma tentativa do autor de pôr fim à oposição exagerada, e
prolongada, entre estrutura e evento, Sahlins (2004, p. 319) destaca que “para uma
certa antropologia, assim como para uma certa história, parecia que o “evento” e a
“estrutura” não podiam ocupar o mesmo espaço epistemológico. O evento era
concebido como antiestrutural e a estrutura, como anuladora do evento.

De fato, para o estruturalismo francês a ciência, em seu proceder, tem apenas dois
modos: ou é reducionista, ou estruturalista (LEVI-STRAUSS, 1978). O reducionismo é
a redução de fenômenos complexos em um nível, de fenômenos mais simples em
outro nível, no entanto, há fenômenos que não podem ser reduzidos. Segundo Levi-
Strauss (1978, p. 17-18),

80 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

quando somos confrontados com fenómenos demasiado


complexos para serem reduzidos a fenómenos de ordem inferior,
só os podemos abordar estudando as suas relações internas, isto é,
tentando compreender que tipo de sistema original formam no seu
conjunto. Isto é precisamente o que tentamos fazer na Linguística, na
Antropologia e em muitos outros campos.

O próprio Levi-Strauss (1978) afirma que foi isso que ele fez em seus estudos,
tentou compreender os sistemas originais em seu conjunto estudando as relações
internas de um fenômeno para assim chegar à compreensão de seu significado. O
significado , segundo Sahlins (2003), é a propriedade essencial do objeto cultural para
o estruturalismo, assim como o “simbólico é a faculdade específica do homem” (p. 30)
– Para Levi-Strauss (1978, p. 20) é “impossível conceber o significado sem a ordem”,
pois significar é a possibilidade de qualquer tipo de informação ser traduzida em uma
linguagem diferente e para que isso possa se tornar inteligível é preciso haver regras.
“Falar de regras e falar de significado é falar da mesma coisa; e, se olharmos para todas
as realizações da Humanidade, seguindo os registros disponíveis em todo o mundo,
verificará que o denominador comum é sempre a introdução de alguma espécie de
ordem”. (ibid, p. 21).

A ordem é aquilo que permanece, se a preocupação fosse com os eventos


não seria possível, segundo o estruturalismo proposto por Lévi-Strauss, encontrar
significado, pois tudo apareceria como transitório e mutável. Não seria possível traduzir
a informação, pois cada acontecimento seria único e um fim em si mesmo. Somente
após encontrar a ordem pode-se encontrar o significado dos fenômenos.

O estruturalismo para Levi-Strauss “é a busca de invariantes ou de elementos


invariantes entre diferenças superficiais” (ibid, p. 16), os eventos são superficiais e
contingentes e causam a desordem ao passo que a ordem é dada pela estrutura., a
história clássica, ao preocupar-se somente com uma narrativa de sucessão de eventos
não pode perceber a estrutura de significação que há no desenvolvimento histórico.

No entanto, o evento não pode ser apenas desordem dentro do estruturalismo,


pois “não existe evento sem sistema”. (SAHLINS, 2004, p. 322). Tanto eventos
exógenos, como a chegada do capitão Cook ao Havaí, como eventos endógenos,
como uma disputa de poder entre chefes locais de uma determinada sociedade,
depende de uma estrutura em vigor. “A questão de principio para o estruturalismo é
que a própria circunstância não produz forma, exceto quando o sistema em questão
lhe dá significação e efeito”. (SAHLINS, 2003, p. 30).

A crítica que Sahlins dirige ao estruturalismo é que este “parece incapaz de fornecer
uma explanação teórica da mudança”. (SAHLINS, 2008, p. 26), pois a antropologia

O surgimento da antroplogia sociológica 81


U2

estrutural privilegia o sistema em detrimento ao evento e a sincronia em lugar da


diacronia. Vista desta forma, a ação individual aparece somente como execução de um
sistema vigente e não como prática do indivíduo no mundo (SAHLINS, 2008, p. 26).

A questão para a prática é: “Como havemos de conciliar estruturas que são lógicas
e duradouras com eventos que são emocionais e efêmeros?” (SAHLINS, 2004, p. 320).

O problema, argumenta Sahlins (2004), é que a estrutura não pode ser reduzida ao
evento, nem o evento ser reduzido à estrutura, “mas, de algum modo, cada uma está
determinando a outra”. (SAHLINS, 2004, p. 327).

A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas


sociedades de acordo com os esquemas de significação das coisas. O
contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados
historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são
reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses contrários
desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, das
pessoas envolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam
seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões
preexistentes da ordem cultural. [...] Por outro lado, entretanto,
como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam
necessariamente aos significados que lhe são atribuídos por grupos
específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus
esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada
historicamente na ação. Poderíamos até falar de “transformação
estrutural”, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de
posição entre as categorias culturais, havendo assim uma “mudança
sistêmica.” (SAHLINS, 2003a, p. 7).

Ao indicar que a história é ordenada culturalmente de acordo com os esquemas de


significações das coisas que as diversas sociedades possuem, Sahlins reconhece que a
estrutura pode dar significado ao evento, no entanto, já que o significado é dado pela
relação no interior de um sistema e não por posições fixas, os sujeitos em sua prática
mundana não utilizam, necessariamente, os símbolos com o exato significado que a
estrutura fornece, mas o significado é reavaliado provocando “transformações estruturais”.

Na ação simbólica há uma “síntese indissolúvel” entre sincronia e diacronia (SAHLINS,


2003a p. 189). As pessoas atuam sob o peso de um “passado inescapável”, o efeito da
cultura sobre suas ações, mas como cada ação possui algo de singular, eles também
atuam sob um “presente irredutível”.

As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações,


realmente se tornam autora de seus próprios conceitos; isto é, tomam

82 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

responsabilidade pelo que sua própria cultura possa ter feito com elas.
Porque, se sempre há um passado no presente, um sistema a priori de
interpretação, há também “uma vida que se deseja a si mesma” (como
diria Nietzsche). Isto é o que Roy Wagner (1975) deveria estar querendo
dizer com a “invenção da cultura”: a inflexão empírica específica de
significado dada a conceitos culturais quando estes são realizados
como projetos pessoais. (SAHLINS, 2003a, p. 189).

Para compreensão da síntese entre estrutura e evento, é preciso interpor entre estes
dois termos um terceiro que Sahlins denomina “estrutura da conjuntura”. (SAHLINS,
2003a, p. 15). “A “estrutura da conjuntura” é a realização prática das categorias culturais
em um contexto histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos
agentes históricos”. (SAHLINS, 2003a, p. 15). A “estrutura da conjuntura” é necessária para
demonstrar que a “síntese exata do passado e do presente é relativa à ordem cultural,
do modo como se manifesta em uma estrutura da conjuntura específica” (ibid, p. 190).
Sendo assim, toda mudança aparece em parte como reprodução de ideias culturais
existentes, mas também aparece como uma diferença. Para Sahlins, toda estrutura é
eventual, pois os significados da ordem cultura estabelecida só se realiza como evento
do discurso ou da ação, portanto “o evento é a forma empírica do sistema” (ibid), e todos
os eventos são culturalmente sistemáticos.

Um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação


entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. E apesar de
um evento enquanto acontecimento ter propriedades “objetivas”
próprias e razões precedentes de outros mundos (sistemas), não
são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a
sua significância, da forma como é projetada a partir de algum
esquema cultural. O evento é a interpretação do acontecimento, e
interpretações variam. (SAHLINS, 2003a, p. 191).

Eventos triviais para uns podem ser fantásticos para outros, a significância do evento
depende de seu significado e o significado depende de conjunturas específicas, um
almoço é um almoço, no entanto um almoço em que se pede a mão de alguém em
casamento aparece como um evento fatal, decisivo. Por isso não é possível separar evento
de sistema, atividade prática da teoria – toda prática se inicia com conceitos e valores já
adquiridos –, passado e presente, estrutura e história.

O surgimento da antroplogia sociológica 83


U2

1. Um dos grandes antropólogos do século XX foi Claude Lévi-


Strauss. Ele inicia a corrente teórica chamada de Estruturalismo
com base nos estudos de Saussure sobre as estruturas da
linguagem. Sabendo disto, assinale a alternativa que corresponde
à melhor definição do Estruturalismo para Lévi-Strauss.
a. O estruturalismo é a busca pela ação que modifica os elementos
mais duradouros.
b. O estruturalismo é o estudo das instituições sociais e sua atuação
em sociedade.
c. O estruturalismo é a busca de elementos invariantes entre as
diferenças superficiais.
d. O estruturalismo é a busca pelas razões que levaram o homem
a evoluir.
e. O estruturalismo é a busca pela ação social e pelos elementos
transitórios de uma sociedade.

2. 2. Marshall Sahlins é um dos principais representantes da


antropologia da ação, sabendo disto observe atentamente as
preposições a seguir:
I. Segundo Sahlins, a teoria Estruturalista não consegue fornecer
uma explicação teórica sobre a mudança nas diversas sociedades.
II. Segundo Sahlins, os eventos são ordenados pela estrutura, mas
as estruturas podem ser reordenadas pelo evento.
III. Em Sahlins, os eventos aparecem independentes dos sistemas
de uma determinada sociedade.
IV. Em Sahlins, toda estrutura é fixa e determina o evento, o evento
é uma manifestação superficial que não afeta a estrutura.
Podem ser considerados pensamentos de Marshall Sahlins apenas
as proposições:
a. I; II.
b. I; III.
c. I; IV.
d. II; III.
e. III; IV.

84 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Seção 4

Antropologia brasileira
Diferentemente da antropologia produzida na Europa e nos Estados Unidos, a
antropologia brasileira não precisou buscar seu objeto de estudo fora das fronteiras
do país. Compreender os caminhos percorridos pela antropologia brasileira é uma
questão fundamental para compreender os temas com que esta ciência se ocupou
em nosso território. A seguir apresentamos um quadro de uma possível divisão dentro
desta linha de pesquisa.
Quadro 2.3 | Principais períodos da antropologia brasileira

Período Característica
Produzido por intelectuais não formados na área e discutiam a formação do
povo brasileiro. Os estudos partiam, em muitos casos, das ideias evolucion-
Século XIX – 1930
istas. Principais nomes: Silvio Romero; Euclides da Cunha; Nina Rodrigues;
Oliveira Viana; Gonçalves Dias.
Profissionalização nas ciências sociais com o surgimento da escola de soci-
ologia e política da USP. Neste período há uma forte influência da Antropo-
logia norte-americana e os ideais derivados do conceito de cultura de Franz
1930 – 1960 Boas. Os principais nomes são:
- MISSÃO ESTRANGEIRA DA USP: Roger Bastide; Emílio Willems; Herbert
Baldus; Donald Pierson.
Os brasileiros Gilberto Freyre e Arthur Ramos.
Este período marca um aumento do número de antropólogos e iniciam-se
as pesquisas com o campesinato, os trabalhadores assalariados urbanos, os
1960 – atual
processos de migração do campo para a cidade. São destaques:
Roberto Da Matta; Darcy Ribeiro; Eunice Durham; Gilberto Velho.
Fonte: Adaptado de: Machado; Amorin; Barros (2014).

4.1 Algumas contribuições teóricas da antropologia brasileira:


Gilberto Freyre e a contribuição luso-brasileira à humanidade

Gilberto Freyre foi o primeiro a falar dos aspectos democratizantes do povo brasileiro.
Freyre, em 1937, fez uma palestra na Conferência “Aspectos da influência da mestiçagem
sobre relações sociais e de cultura entre portugueses e lusodescendentes” e afirmou
que a grande contribuição luso-brasileira à humanidade é a democracia social que se dá,

O surgimento da antroplogia sociológica 85


U2

sobretudo, pela mistura das raças. Esta democracia é muito superior, segundo Freyre, à
democracia inglesa, pois a democracia inglesa é simplesmente política, direitos iguais a
todos, a democracia brasileira é social. Nas palavras do próprio Freyre:

Há, diante desse problema de importância cada vez maior para os


povos modernos – o da mestiçagem, o das relações de europeus com
pretos, pardos, amarelos – uma atitude distintamente, tipicamente,
caracteristicamente portuguesa, ou melhor, luso-brasileira, luso-
asiática, luso-africana, que nos torna uma unidade psicológica e de
cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez se possa dizer,
sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo
tempo social, mais significativas do nosso tempo: a democracia
social através da mistura de raças. (FREYRE, 1938, p. 14).

Somente a democracia social por meio da mestiçagem é imune ao racismo, a


democracia política é limitada neste sentido. As democracias políticas produziram
somente direitos iguais entre as pessoas, estes direitos com aspectos frios não poderiam
ser a resposta à grande crise vivida no início do século XX com o surgimento do fascismo;
aqui Freyre está ocupado em estabelecer algo que supere a mera formalidade da lei.

Em Gilberto, esse caráter [ibérico] responsável pela harmonia social


leva a que a democracia política passe a segundo plano, uma vez
substituída pela democracia étnica/social. Mais ainda, justifica a
não adoção, no Brasil, de medidas sociais e políticas universais,
pois as mesmas não caberiam em uma sociedade marcada pela
heterogeneidade, caracterizada por uma formação não tipicamente
ocidental (BASTOS 2003, p. 6-7).

Precisamos compreender as motivações de Freyre para colocar a democracia


política em segundo plano. Ele está escrevendo nos anos de 1930, em um período
conturbado. Guimarães (2013, p. 7) traça um quadro geral do período em que Gilberto
Freyre começa a forjar a ideia de democracia social:

Freyre forja a ideia de “democracia social” ainda nos anos 1930,


contra o fato patente da ausência de democracia política, quer no
Brasil ou em Portugal. Ou seja, põe-se o desafio de traçar a inserção
luso-brasileira no concerto das nações democráticas, contra todas
as semelhanças e simpatias dos regimes autocráticos de Vargas e de
Salazar com o fascismo. Sua linha de argumentação apoia-se no fato
de que a cultura luso-brasileira é não apenas mestiça, como recusa

86 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

a pureza étnica, característica dos regimes fascistas e nazistas da Itália e


da Alemanha. Do ponto de vista “social”, portanto, estes regimes seriam
democráticos, posto que promovem a integração e a mobilidade social
de pessoas de diferentes raças e culturas.

Gilberto Freyre é um intelectual que tentou a seu tempo interpretar


o Brasil, é importante conhecer sua obra. Para saber mais sobre ele,
acesse o site: <http://www.interpretesdobrasil.org/sitePage/67.av>.

Percebemos que Freyre está preocupado com a contribuição luso-brasileira à


humanidade e a uma ideia mais ampla de democracia, mas a expressão que se tornará
famosa será a de “democracia racial”. Esta expressão Freyre só utilizará em 1967, como
uma reação sobretudo aos escritos de Guerreiros Ramos e Abdias Nascimento, que
tentam inserir o conceito de “negritude” nas discussões brasileiras.

Meus agradecimentos a quantos, pela sua presença, participam


este ano, no Rio de Janeiro, da comemoração do Dia de
Camões, vindo ouvir a palavra de quem, adepto da "vária cor"
camoniana, tanto se opõe à mística da "negritude" como ao mito
da "branquitude": dois extremos sectários que contrariam a já
brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem:
uma prática que nos impõe deveres de particular solidariedade
com outros povos mestiços. Sobretudo com os do Oriente e os
das Áfricas Portuguesas. Principalmente com os das Áfricas negras
e mestiças marcadas pela presença lusitana”. (FREYRE, 1962 apud
GUIMARÃES, 2013, p. 7 grifo nosso).

A aceitação ou a insistência de que o Brasil é um país em que impera a democracia


racial trará uma série de consequências. Aqui Freyre está dialogando com alas do
movimento negro que tentam introduzir no Brasil a ideia de negritude como símbolo
de identidade, e ao se definir a negritude se definiria também a branquitude e a ideia
de uma democracia racial cairia por terra, assim como a contribuição luso-brasileira à
humanidade. Apesar de contestada, a ideia de democracia racial se torna importante
para compreender o Brasil, segundo Jaccoud e Beghin (2002, p. 52):

O surgimento da antroplogia sociológica 87


U2

Contudo, a democracia racial fornece uma nova chave interpretativa


distinta para a realidade brasileira: a recusa do determinismo
biológico e a valorização do aspecto cultural, reversível em suas
diferenças. O progressivo desaparecimento do discurso racista e sua
substituição pelo mito da democracia racial permitiram a alteração
dos termos do debate sobre a questão racial no Brasil. A ideia de
raça foi gradativamente dando lugar, nas ciências sociais, à ideia de
cultura, e o ideal do branqueamento foi ultrapassado, em termos de
projeto nacional, pela afirmação e valorização do “povo brasileiro”.
O fenômeno da miscigenação teria possibilitado a formação da
nação, ultrapassando e fundindo os grupos raciais presentes em sua
formação, e dando espaço ao nascimento de uma nação integrada,
mesmo que heterogênea.
A democracia racial passou de mito a dogma no período dos governos
militares. Em 1970, o Ministro das Relações Exteriores declara que
“não há discriminação racial no Brasil, não há necessidade de tomar
quaisquer medidas esporádicas de natureza legislativa, judicial ou
administrativa para assegurar a igualdade de raças no Brasil” (apud
TELLES, 2003, p. 58). De fato, a questão racial desaparece do debate
público nacional. É somente com o processo de redemocratização
do país que o tema das desigualdades raciais retorna à cena, mas
largamente diluído no debate sobre justiça social. Apoiada na
interpretação do desenvolvimento como a questão nacional maior,
a temática da desigualdade se identifica quase que exclusivamente
com a da distribuição de renda.

Percebam que por meio de uma declaração a discriminação deixa de existir no país.
Isto é importante, porque esvazia o conteúdo legítimo das lutas do movimento negro
e estabelece que o governo não precisa se ocupar de algo que não existe. No período
pós-ditadura a questão racial se dilui na questão da divisão de renda.

4.2 Algumas contribuições teóricas da antropologia brasileira:


Darcy Ribeiro e o povo brasileiro

Darcy Ribeiro oferece uma descrição do povo brasileiro em que se destaca a beleza
deste povo. O livro “O povo brasileiro” tenta dar uma descrição da formação do povo
brasileiro. Neste livro, Darcy faz uma descrição das três raças fundadoras do Brasil e de
como estas raças entraram e relação. Na nota de capa de seu livro se apresenta uma
bela síntese do que se tratará a obra, segundo a anotação, “O povo brasileiro”:

É uma tentativa de tornar compreensível, por meio de uma explanação


histórico antropológica, como os brasileiros se vieram fazendo a si

88 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

mesmos paa serem o que hoje somos. Uma nova Roma lavada em sangre
negro e sangue índio, destinada a criar uma esplêndida civilização,
mestiça e tropical, mais alegre, porque mais sofrida, e melhor, porque
assentada na mais bela província da terra.

Segundo as palavras do próprio Darcy Ribeiro, o livro era uma tentativa de responder
à seguinte questão: “por que o Brasil ainda não deu certo?” Uma questão formulada
ainda na década de 1950 e que obteve como resposta uma obra densa em dados e
teorias que foi publicada trinta anos mais tarde.

Nesta unidade você aprendeu que:

• A Antropologia é um tipo de conhecimento muito antigo, mas


ao mesmo tempo ela se estabelece como uma ciência recente,
pois precisou que a ciência se estabelecesse como uma forma de
conhecimento capaz de dar conta do conhecimento sobre o ser
humano.

• Há diversos campos de estudos dentro da antropologia.

• A Antropologia física é uma subdivisão dentro da Antropologia,


seu surgimento está ligado diretamente ao surgimento da
Antropologia como ciência.

• A principal contribuição da Antropologia Física foi tirar o homem


de seu pedestal de coroa da criação divina e colocá-lo como uma
espécie dentro da classificação zoológica.

• A Antropologia Cultural é o ramo da antropologia que se propõe


a estudar a obra humana.

• A Antropologia Social preocupa-se com as instituições de


generalização sobre uma cultura, a sociedade e a personalidade
em sentido mais universal e por isto este ramo da antropologia se
aproxima mais da sociologia.

• Em muitos autores a Antropologia Cultural e Antropologia

O surgimento da antroplogia sociológica 89


U2

Social aparecem somente sob o título de Antropologia e se divide em


diversas correntes teóricas.

• O Evolucionismo Cultural é uma das correntes teóricas da


Antropologia que tem início no meio do século de XIX e que se
preocupa em demonstrar que as diferenças entre os povos se dão
em função do estágio da evolução em que as diferentes sociedades
se encontram.

• São nomes importantes do Evolucionismo Cultural: Frederick Tylor,


Lewis Morgan e James Frazer.

• O Difusionismo Cultural aparece como outra corrente teórica da


Antropologia. Para o difusionismo, os homens não possuem um
início comum como no evolucionismo cultural, o homem vivia em
pequenos grupos que com o tempo criaram ciclos culturais bem
característicos que os colocaram em contato com outros homens de
outros círculos.

• O difusionismo irá revolucionar também a maneira como se coletam


os dados em uma pesquisa, ou seja, os instrumentos metodológicos.
A pesquisa participante começa a se desenvolver neste ramo da
antropologia.

• O Funcionalismo é uma corrente teórica em estudar e explicar


o funcionamento da cultura em um dado momento, por isto dá-
se uma importância maior em pesquisar a sociedade que se quer
conhecer no estado em que ela se encontra do que pensar como ela
mudou ao longo do tempo. O ponto marcante desta escola é que ela
utiliza a visão sistêmica para analisar a cultura. As explicações sobre
determinadas culturas deve ser dada pela lógica do sistema que ela
assume.

• NO século XX, Claude Levi-Strauss dá início ao Estruturalismo,


corrente teórica que pesquisa como as partes de um sistema estão
dispostas entre si, ou seja, existe uma estrutura social sob a qual se
erguem as relações sociais e há possibilidade de compreensão, não
pelos elementos variantes de uma sociedade para outra, mas pelos
elementos fixos que estão presentes em todas as sociedades. Neste
sentido, a ideia de estrutura é um modelo de explicação da realidade.

• A teoria da prática, que vimos pelos escritos de Marshall Sahlins,


trabalha com a ideia de que as estruturas são fundamentais para

90 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

que os eventos possam ocorrer em uma sociedade, no entanto, os


eventos têm capacidade de afetar a estrutura.

• A antropologia se desenvolve no Brasil a partir dos anos 1930, e


são nomes importantes que representam esta ciência no Brasil:
Gilberto Freyre, com os estudos sobre a contribuição luso-brasileira
à humanidade e Darcy Ribeiro que quer montar um quadro bastante
complexo sobre a formação do povo brasileiro.

Esta unidade teve a pretensão de ser um pequeno esboço teórico


sobre uma ciência extremamente vasta e complexa. Como toda
a ciência que se quer conhecer plenamente há uma imposição
necessária: continuar a estudar sempre. As ciências sociais têm uma
relação bastante próxima com os autores fundadores das ciências e
das correntes de pensamento, mas isto não significa que são apenas
os clássicos que são as nossas referências. Há muito sendo produzido
no mundo da antropologia, desdobramentos das correntes teóricas
existentes, novas correntes teóricas são pensadas para dar conta do
estudo sobre o homem, que continua sendo interessante e desafiador.

1. Na virada do século XVIII para o século XIX, a ideia de


ciência também se baseava na distinção entre o sujeito
pesquisador e o objeto a ser pesquisado. Se o homem estuda
a si mesmo o objeto iria se confundir com pesquisador,
isto seria um empecilho para que o projeto antropológico
pudesse se realizar.
Assinale a alternativa que melhor demonstra como a
Antropologia resolveu este problema.

O surgimento da antroplogia sociológica 91


U2

a. A antropologia resolve este problema propondo que seu


objeto de estudo seriam os povos distantes, portanto, o
que separaria o pesquisador de seu objeto era a distância
geográfica.
b. A Antropologia resolve este problema propondo que o
objeto de estudo seriam os agrupamentos não humanos
que se aproximam, de alguma forma, dos agrupamentos
humanos que servem de comparação.
c. A Antropologia resolveu este problema se propondo a
estudar exclusivamente os povos extintos, haveria, neste
sentido, uma diferença temporal entre o sujeito e o objeto.
d. A Antropologia resolveu este problema propondo fazer
estudo exclusivamente documental, ou seja, o contato com
o objeto seria apenas conceitual e a distância estaria dada
pelo não contato.
e. A antropologia não consegue resolver este problema, no
século XIX, a Antropologia perde seu status de ciência por
conta de imprecisão de informação.

2. A antropologia física, como começou a ser chamada


quando surgiram as ramificações, era considerada por
Paul Broca, um dos seus fundadores, a história natural
do gênero HOMO. Assim, era natural que o seu discurso
fosse fortemente influenciado por conceitos biológicos
e, especialmente por paradigmas evolucionistas. As
diversidades de comportamento e de desenvolvimento
social, constatadas entre as diferentes sociedades
humanas, levavam os antropólogos a buscar explicações
científicas. Essas eram baseadas em um determinismo
biológico. Os homens agem diferenciadamente porque
são biologicamente diferentes e essas divergências são
resultados de um processo evolutivo.
Assinale a alternativa correta quanto à utilização desta teoria
pela Europa.

92 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

a. A Europa utilizou o determinismo biológico como forma


de justificar a igualdade entre os povos e o direito a todos à
liberdade.
b. A Europa utilizou o determinismo biológico como forma
de promover o respeito à igualdade e superar as diferenças
culturais.
c. A Europa utilizou o determinismo biológico para ampliar os
estudos etnográficos e encontrar nas diversidades particulares
explicações para as diferenças.
d. A Europa utilizou o determinismo biológico para realizar
um amplo estudo sobre os costumes que diferenciam o
homem, evidenciando a noção de igualdade.
e. A Europa utilizou o determinismo biológico para justificar a
colonização do século XIX, sob pretexto de levar a civilização
aos povos atrasados.

3. Analise as proposições a seguir:


I. A antropologia cultural é o ramo da antropologia que se
propõe a estudar a obra humana.
II. A antropologia cultural estuda temas como política,
religião, arte, artesanato, economia, linguagem, prática e
teorias, crença e razão.
III. A antropologia social preocupa-se com as instituições de
generalização sobre uma cultura.
Sabe-se que Laplantine (2003) coloca a antropologia social
junto com a antropologia cultural, chamando este grande
escopo de etnologia, e Levi-Strauss afirma que antropologia
social e antropologia cultural estão ligadas por uma síntese
entre etnografia e etnologia.
Sobre as características da antropologia social e da
antropologia cultural podemos afirmar que:
a. Apenas a proposição I está correta.

O surgimento da antroplogia sociológica 93


U2

b. Apenas a proposição II está correta.


c. Apenas a proposição III está correta.
d. Apenas as proposições I e III estão corretas.
e. As proposições I, II e III estão corretas.

4. Assinale a alternativa correta sobre a contribuição luso-


brasileira à humanidade, segundo Gilberto Freyre.
a. A contribuição luso-brasileira à humanidade foi a
democracia política, capaz de superar os preconceitos raciais.
b. A contribuição luso-brasileira à humanidade foi o
segregacionismo, capaz de superar os preconceitos raciais.
c. A contribuição luso-brasileira à humanidade foi a
democracia social que se dá pela mistura das raças.
d. A contribuição luso-brasileira à humanidade foi a
democracia nacional, capaz de superar os preconceitos
pela mistura das raças.
e. A contribuição luso-brasileira à humanidade foi a ideia de
negritude que surge em nosso país.

5. O ponto notadamente marcante da teoria estrutural


funcionalista é a sua preocupação em explicar ou estudar
o aspecto social das sociedades em um dado momento,
privilegiando uma análise das sociedades do ponto de vista
sincrônico em detrimento da análise diacrônica que, estuda
as relações sociais e culturais das sociedades através dos
tempos. Fica evidente que o modelo analítico pretendido
pelo estrutural funcionalismo é um modelo que se preocupa
com a lógica interna do sistema social de cada sociedade.
(OLIVEIRA, E. M. A.; SANTANA, I. C.; ALVES, A. Radcliffe-
Brown e o Estrutural-funcionalismo: a questão da mudança
na estrutura e no sistema social. In: Revista Diálogos – N°
11 – abr./maio ‐ 2014, p. 234).
Com base no texto acima podemos afirmar que o estrutural-

94 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

funcionalismo e o funcionalismo:
a. Estudam a organização social interna de cada sociedade,
e explicam a realidade social das sociedades como esse
todo orgânico onde as partes do sistema social se interligam
para sustentar e garantir a sobrevivência ou continuidade do
sistema.
b. São correntes teóricas que apresentam oposição entre si, o
funcionalismo estuda toda produção humana como cultural
e o estrutural-funcionalismo estuda a organização social.
c. Estudam as formas como as sociedades evoluíram e
a origem das desigualdades entre os povos com base
no pressuposto darwiniano de evolução e determinismo
biológico.
d. Estudam as sociedades por meio de elaboração de modelos
em que a estrutura aparece como sendo um elemento
variável construídos pelas relações sociais que são variáveis.
e. Estudam as maneiras pelas quais os eventos interferem na
construção da estrutura, mostrando que as estruturas não
monolíticas, mas passíveis de mudança pela intervenção do
indivíduo.

O surgimento da antroplogia sociológica 95


U2

96 O surgimento da antroplogia sociológica


U2

Referências

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no reino das Ilhas Sndwich. Tradução Fraya Frehse. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008.

98 O surgimento da antroplogia sociológica


Unidade 3

OS PRINCIPAIS PROBLEMAS
ANTROPOLÓGICOS
Edson Elias de Morais

Objetivos de aprendizagem:

Nesta Unidade, você vai conhecer alguns dos principais debates que fazem
da antropologia uma ciência singular. Você terá contato com alguns dos
problemas antropológicos que os pensadores da cultura se debruçaram a partir
do desenvolvimento do método etnográfico e da observação participante. E
terá a oportunidade de identificar conceitos e teorias fundamentais no campo
desta ciência que tem por objetivo o estudo das relações de alteridade e o
desenvolvimento de reflexão sobre as potencialidades da diversidade humana.

Seção 1 | O desenvolvimento da pesquisa de campo como


condição e método antropológico

Nesta seção, você aprenderá sobre o debate interno da constituição da


própria ciência antropológica, no que se refere aos debates sobre a metodologia
de pesquisa que lhe é peculiar e que irá se distanciar qualitativamente das
primeiras formas de elaboração de saber sobre o humano e sua participação
em diferentes culturas.

Seção 2 | A Antropologia e seus problemas


A antropologia se caracteriza no campo das ciências sociais como disciplina
em constante reelaboração, em uma busca inquieta por problematizações
sobre o “fazer antropológico”, ou, sobre a autoridade do pesquisador e sua
relação com os sujeitos e contextos pesquisados, o que leva a questionamentos
constantes tanto de ordem moral quanto científica. É da própria natureza da
antropologia, que surge junto ao avanço colonizador, refletir sobre a relação
U3

com culturas diferentes, eliminando qualquer resquício etnocêntrico,


autoritário e imperialista do saber que produz. Justamente por se constituir
no encontro com o “outro”, a antropologia foi colocando em xeque
pressupostos universais da cultura ocidental, prática que move a disciplina
e garante sua dinamicidade. A seguir serão apresentadas algumas das
temáticas mais debatidas pela antropologia contemporânea, que de certa
forma aprimoram sua reflexão e a interlocução com o contexto sócio-
histórico em que atua.

100 Os principais problemas antropológicos


U3

Introdução à unidade

Nesta unidade apresentaremos alguns dos principais problemas antropológicos


que motivaram e motivam inúmeras discussões e debates no interior desta ciência,
que é muito nova em comparação às outras. A importância destas discussões está
na ideia de se compreender a própria ciência antropológica, seu desenvolvimento
e seus objetos de investigação. É de fundamental importância se apropriar deste
debate para que se tenha a compreensão da relevância desta área do conhecimento,
que é recente enquanto saber científico, mas que apresentou avanços consideráveis
e inimagináveis sobre o Homem e sua diversidade. Como você irá perceber, os
estudos antropológicos vão além das sociedades não ocidentais e os conhecimentos
produzidos se referem ao homem inteiro. E como disse François Laplantine (2007),
a antropologia é o estudo de todas as sociedades humanas, inclusive a nossa, isto
significa afirmar que é o estudo das culturas humanas considerando todas as suas
diversidades históricas e geográficas.

Na primeira seção você verá um panorama sobre o problema do método em


antropologia, o que sugere uma grande discussão, pois diz respeito à própria ciência
e sua autocompreensão. Na segunda seção trabalharemos temas propriamente do
campo das preocupações antropológicas, como as dicotomias natureza e cultura,
cultura e estrutura, o conceito de cultura, a diversidade cultural e a relação entre
cultura e história.

Você terá a oportunidade de adentrar num mundo de reflexões e relativização


acerca do homem e suas muitas manifestações, para isto, exige-se um espírito
aberto, crítico e desejoso pelo conhecimento. Convido-o(a) a passear pelos trilhos
do conhecimento antropológico e aprender mais sobre si mesmo e sobre o outro
diferente de você.

Vamos lá?

Os principais problemas antropológicos 101


U3

102 Os principais problemas antropológicos


U3

Seção 1

O desenvolvimento da pesquisa de campo como


condição e método antropológico
A antropologia se destaca, entre as outras ciências sociais, pelo seu método de
investigação, método que lhe confere uma epistemologia singular. E, é exatamente por
istoque o método em antropologia é uma temática bastante debatida e revisitada. Nesta
seção, você irá ter acesso a um debate amplo e panorâmico acerca desta questão e,
com isto, perceberá que a antropologia é uma ciência que se revisita e se repensa a todo
o tempo. Terá conhecimento das preocupações das primeiras formas de antropologia
e como se deu seu desenvolvimento, especificamente por causa do como se fazer
antropologia. Diante disto, convido-o(a) apercorrer este campo científico.

1.1 O problema do método antropológico

Os estudos antropológicos estão pautados na busca de compreender a formação,


organização e funcionamento das sociedades, ditas primitivas, ou estudar o “homem
selvagem” para se chegar à compreensão do desenvolvimento do homem e
sociedade em seus vários estágios. Esta curiosidade científica surge depois dos relatos
dos viajantes durante o processo de exploração e colonização iniciadas por Portugal
no século XV e depois pela Espanha, França e Inglaterra até meados do século XVIII.
Tais relatos apresentavam um olhar etnocêntrico dos viajantes que eram enviados em
missão de coletar dados da geografia, animais, plantas, mineração com o objetivo de
exploração comercial.

Em tais relatos apresentavam pinturas dos povos, sua organização e suas práticas,
bem como seus rituais e sua agressividade ou passividade. Esses povos, primeiramente,
eram tidos como “selvagens”, isto é, seres que estavam no meio termo entre a
animalidade e a humanidade. Depois dos avanços e da aceitação das pesquisas e
teorias de Darwin, a compreensão fora modificada e, a partir de então, não seriam
mais considerados selvagens, mas primitivos, porque se acreditava que havia estágios

Os principais problemas antropológicos 103


U3

evolutivos e tais povos estavam em estágios rudimentares devido a sua organização


pouco complexae utilização de instrumentos rústicos para suas atividades do dia adia.

Você pode ler os relatos sobre os índios brasileiros (Tupinambás) pelo olhar
do europeu no séc. XVI em:
1. LERY, Jean de. História de uma viagem feita à Terra do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia São Paulo: Edusp, 1980.
2. BELMONTE, Alexandre. Saudades do novo mundo. Disponível em: <http://
www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/saudades-do-novo-mundo>.

Ao final do século XIX e início do XX, a antropologia avançou qualitativamente com


as pesquisas de campo e, a partir de então, não parou de produzir conhecimentos
acerca das culturas e povos não ocidentais e, também, de se repensar como ciência a
partir de seus métodos de observação e teorias.

A antropologia, como ciência, é muito recente e devido a sua própria constituição


é uma ciência que se repensa e se reconstrói a partir da questão que lhe é peculiar, o
método de investigação e de produção do conhecimento. Assim, um dos primeiros
problemas antropológicos é a própria antropologia, que nunca esteve em um estágio
acabado, e provavelmente, não estará. Ao analisarmos a história da antropologia
observamos que as várias escolas e teorias enriquecem o conhecimento acerca dos
temas discutidos por ela, bem como, acerca dela mesma.A pesquisadora do Museu
Amazônico, Regina M. de Carvalho Erthal (2000, p. 181), ratifica esta ideia ao afirmar que
“o exercício da antropologia é referenciado por uma epistemologia que se realimenta
da sua prática, ambas se constituindo a partir de uma relação dialógica, no encontro
de culturas”.

Sobre isto, o antropólogo François Laplantine (2007, p. 25) diz que os antropólogos
na atualidade estão convencidos de que uma das características de sua prática reside
no confronto pessoal com a alteridade, e completa ao afirmar que

a família dos antropólogos é, por sua vez, muito dividida


quando se trata de dar conta (os interessados, aos seus colegas,
aos estudantes, a si mesma, e de forma geral a todos aqueles
que têm o direito de saber o que verdadeiramente fazem os
antropólogos) dessa unidade múltipla, desses materiais e dessa
experiência.

Isto significa que não há consenso entre as escolas antropológicas sobre


metodologias e teorias, e que exatamente por isso, é uma ciência que não está acabada,

104 Os principais problemas antropológicos


U3

mas se redefine constantemente. E foi somente no século XX que se formalizou como


uma nova ciência de pesquisa.No encontro de professores de Cambridge, Oxford e
Londres em 1909 ficou definido que:

Concordamos em usar ‘etnografia’ como termo adequado para


os relatos descritivos de povos cuja cultura é anterior à escrita. A
construção hipotética da história de tais povos foi aceita como
tarefa da ‘etnologia’ e da ‘arqueologia’ pré-histórica. O estudo
comparativo das instituições em sociedades primitivas foi aceito
como tarefa da ‘antropologia social’. (RADCLIFFE-BROWN, apud
KUPER, 1978, p. 12).

Contudo, William Rivers (1864-1922) afirmava que “no presente há um grau tão
grande de divergência entre os métodos de trabalho das principais escolas dos
diferentes países, que qualquer esquema comum é impossível”.(RIVERS, 1991, p. 168).
Na verdade, essa impossibilidade de uniformização dos métodos antropológicos é
impossível até os dias atuais, e como naquela época, os métodos estavam pautados
por “escolas” de pensamentos, que por sua vez, se fundamentam em pressupostos
filosóficos.

Rivers (1991, p. 167) inicia uma crítica ao evolucionismo que, segundo ele, possui uma
“fraqueza fundamental” o seu método. A partir deste momento segue então a tentativa
de construção de um método antropológico que supere as falhas do evolucionismo,
o que no decorrer da história será sempre uma tentativa de aperfeiçoamento, e
refinamento deste método, contudo, não se constitui em um aspecto progressivo
e/ou evolutivo, mas setransformará em novas formulações, ou seja, novas escolas
antropológicas.

O evolucionismo se baseia nas fases do desenvolvimento histórico da humanidade,


onde a Europa era considerada o estágio mais evoluído entre todos os povos, era o
povo civilizado, enquanto todo povo diferente era considerado primitivo. Segundo
Cristina Costa (2005, p. 66), a base do evolucionismo darwinista está no postulado
que afirma que:

A seleção natural pressiona as espécies no sentido da sua adaptação


ao ambiente, obrigando-as a se transformar continuamente
com a finalidade de se aperfeiçoar e garantir sobrevivência. Em
consequência, os organismos tendem a se adaptar cada vez
melhor ao ambiente, criando formas mais complexas e avançadas
de vida, que possibilitam, pela competição natural, a sobrevivência
dos seres mais aptos e evoluídos.

Os principais problemas antropológicos 105


U3

Para o evolucionismo todos os seres humanos passam pelos mesmos estágios


de mentalidade, por isso que as diferenças entre um povo e outro está na relação
de estágio mental, uns mais adiantados e outros mais atrasados, dando origem ao
darwinismo social.

Para saber mais sobre o evolucionismo cultural, veja a obra:


CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

Celso Castro organizou textos de Lewis Henry Morgan, Edward Burnett


Tylor, James George Frazer, que foram os principais representantes desta
escola antropológica.

Baseados em que fatos históricos os evolucionistas estão pautados para atribuir tal
tribo a tal tempo histórico da evolução? Os evolucionistas fundamentavam suas teorias
a partir de objetos e aleatoriamente faziam suas classificações, como idade da pedra,
idade do bronze, idade do ferro etc. Sobre isso Ernest Gellner (1925-1995) afirma que
a base fundamental era “o método de acumulação de dados fora do contexto, sem
importar-se com o lugar que ocupava nas respectivas culturas, e a suposição de um
esquema explicativo evolucionista”. (GELLNER, 1997, p. 238). Mas fato histórico difere
de especulação histórica,
construções abstratas e
Figura 3.1 | Ilhas do Estreito de Torres
formulações produzidas
a partir de fragmentos
de objetos não garantem
a historicidade, mas
promove o historicismo.

Rivers inicia suas


pesquisas antropológicas,
não se contentando com
relatos e objetos, mas se
propõe a uma expedição
juntamente com outros
pesquisadores ao
Estreito de Torres . Sua
preocupação é analisar
a sociedade em seus
elementos constitutivos.
Fonte: Disponível em: <http://hantuem2011 .files.wordpress.com/2012/08/
estreito-de-torres-nomes.gif>. Acesso em: 15 abr. 2015. Ou seja, a funcionalidade

106 Os principais problemas antropológicos


U3

das instituições e demais relações sociais e culturais a partir do olhar do próprio nativo
e não mais com o olhar do europeu. Com essa postura a antropologia não se restringe
mais a gabinetes na “segura” Europa civilizada, mas inicia-se um novo modo de pesquisa
antropológica, a pesquisa em campo. Observação não somente do objeto, mas
observação e análise do que significa tal objeto para os indivíduos em seu cotidiano. É
com W. Rivers que se delineia a matriz da nova disciplina. E a tarefa dessa nova disciplina
é analisar a cultura a partir de estudos psicológicos dos costumes e instituições e, como
estes costumes interagem no indivíduo. A conclusão de Rivers é a de que:

Se, então, a estrutura social tem este caráter fundamental e


profundamente assentado, se ela é a menos facilmente modificada
e apenas como o resultado, seja da atual mistura de povos, seja
das mais profundas mudanças políticas, a inferência óbvia é que é
com a estrutura social que devemos começar a tentativa de analisar
a cultura e de verificar até onde a comunidade da cultura se deve
à mistura de povos, até onde se deve à transformação através do
simples contato ou de colonização transitória. (RIVERS, 1991, p. 171).

Rivers não dá seguimento as suas propostas devido sua morte prematura, mas seus
esboços influenciaram outras gerações de antropólogos a começar por Bronislaw
Malinowski (1884-1942).

Como já comentado, a antropologia não está assentada única e exclusivamente


na observação do outro, mas também se fundamenta em conceitos filosóficos.
Malinowski está sob a influência do romantismo e empirismo de Ernest Mach,
psicologia experimental de Wilhelm Wundt, além das bases deixadas por Rivers.

Figura 3.2 | Localização das ilhas Trobriand

Fonte: Disponível em: <httphttp://go.groller.com/map?id=mgoc009&pid=go>. Acesso em: 15 abr. 2015.

1
Estreito de Torres é uma passagem náutica que fica entre o norte da Austrália e sul da Papua Nova-
Guiné, no Oceano Pacífico. É uma localidade repleta de recifes e ilhas.

Os principais problemas antropológicos 107


U3

Malinowski (1984) tinha por objetivo tornar os estudos antropológicos uma disciplina
científica, e para isso sistematiza suas expedições nas Ilhas Trobriand, e sua primeira
monografia “Argonautas do Pacífico Ocidental” é a marca da antropologia moderna.
Malinowski (1984) se propõe ao recorte numa perspectiva sincrônica, pois segundo
ele não há possibilidade de fazer afirmações a respeito das instituições do passado,
pois não é possível fazer observação, senão apenas uma tentativa de reconstrução
interpretativa do passado.

Malinowski (1984) está disposto também a criticar o evolucionismo, em que


desenvolve um debate com James George Frazer (1854-1941), expoente do
evolucionismo. Apresenta que os nativos das sociedades ditas primitivas têm a mesma
capacidade racional que os europeus e não estão em estágios inferiores, simplesmente
possuem outras necessidades, sobre esse aspecto, a antropóloga brasileira, Eunice
Durham afirma que:

O pressuposto contido nessa posição é o de que o


comportamento do “primitivo” não é nem incoerente, nem
irracional, mas se explica por uma lógica própria que precisa ser
descoberta pelo investigador. Para Malinowski, a visão do homem
“primitivo” como ignorante, atrasado, supersticioso, irracional e
infantil, visão essa até então comum, mesmo em obras de cunho
científico, é decorrência de um defeito da observação, e não
reflexo de uma propriedade do objeto. (DURHAM, 1978, p. 10).

Para Malinowski (1984) a pesquisa antropológica é muito além de coleta de dados,


é sistematização e análise de vários aspectos da vida social. Não importa o que o
indivíduo X ou Y pensa de forma única, mas o que eles pensam e que é possível
ser perceptível em toda a sociedade. Pois para Malinowski (1984) a sociedade é
um organismo, e a cultura determina o pensar e o agir dos indivíduos. Ele propõe
que não interessa analisar os objetos ou instituições isoladamente, mas que relação
e, que função essas instituições têm na vida geral da sociedade. E isso, para que o
antropólogo não incorra no erro dos evolucionistas de atribuir aleatoriamente tal
objeto ou instituição a um estágio histórico. Antes, apreender o valor e o significado
que aquele objeto ou instituição tem para o indivíduo, ou seja, buscar entender qual é
a cosmovisão que o nativo possui a partir de suas experiências em sociedade.

Diante das críticas a respeito da suposta inferioridade dos nativos, Malinowski (1984,
p. 23) afirma que “a ciência moderna, porém, nos mostra que as sociedades nativas
têm uma organização bem definida, são governadas por leis, autoridade e ordem
em suas relações públicas e particulares, e que estão, além de tudo, sob controle de
laços extremamente complexos de raça e parentesco” (MALINOWSKI, 1984, p. 23).
Malinowski (1984) instrui que é somente por meio do contato direto do pesquisador
com os nativos em sociedade que se apreende essas estruturas sociais, seus valores e

108 Os principais problemas antropológicos


U3

como isso se forma nas mentes individuais.

E para isso, o antropólogo deve aprender a língua nativa, e não ter contato com
pessoas de sua própria cultura, no máximo um contato mínimo. Afirma ainda que
existe certa distância entre o material bruto coletado no dia a dia e seu relatório final. O
material bruto é a fonte do antropólogo, mas não deve ser apresentado por completo
na exposição, contudo, o pesquisador tem de buscar o máximo de honestidade em
suas análises.

Como vemos Malinowski (1984) avança muito no método antropológico, vai muito
além de seu professor, W. Rivers, e derruba muitos argumentos dos evolucionistas.
Malinowski é criticado por muitos outros antropólogos posteriores a ele, contudo, é
inegável sua fundamentação metodológica caracterizando a antropologia funcionalista
britânica, do qual o conceito central é “a noção de que a realidade social só pode ser
apreendida enquanto integração e de inter-relação funcional na análise da cultura”.
(DURHAM, 1978, p. 11).
Figura 3.3 | Ilha Tikopia

Fonte: Disponível em: <htthttp://go.groller.com/map?id=mgoc0118&pid=go>. Acesso em: 15 abr. 2015.

Raymond Firth (1901-2002) é outro antropólogo que dá continuidade à chamada


antropologia moderna, segue os passos de Malinowski, sua investigação acontece na
segunda década do século XX, entre os Tikopias nas ilhas Polinésias. Diferentemente
de Malinowski, Firth se propõe a uma investigação em perspectiva diacrônica, no
entanto “mesmo no estudo inspirado pela sua revisita a Tikopia, Firth pretende
abordar o que chama de ‘mudança social’ seguindo um método não diacrônico, que
denomina ‘duo-sincrônico’” (FIRTH apud LANNA, 1998, p. 24). Reafirma a necessidade
da pesquisa de campo e tem um zelo especial para com a descrição. Firth juntamente
com Evans-Pritchard (1902-1973) são pupilos de Malinowski, suas habilidades em
aprender a língua vernácula se torna uma das características da antropologia britânica.
Malinowski denomina de “Corpus inscriptionum” e afirma que é o método para
“descobrir os modos de pensar e sentir típicos, correspondentes às instituições e à

Os principais problemas antropológicos 109


U3

cultura de determinada comunidade, e formular os resultados de maneira vivida e


convincente”. (MALINOWSKI, 1984, p. 32).

Marcos Lanna (1998, p. 27) afirma que Firth “inaugura um terceiro período, aquele
em que a antropologia social atinge sua maturidade”. Sendo sua preocupação com
a história e com a descrição da sociedade como processo, ou como estruturaem
processo, associando a este o que ele denominava de organização social. Lanna (1998)
afirma ainda que tanto Firth quanto Evans-Pritchard criticam Malinowski por ele fazer
investigação somente nas ilhas Trobriand e não compará-la com outras sociedades.

Fica a cargo de Firth iniciar o pensamento sobre estrutura e organização social,


sobre isso Lanna (1998, p. 35) afirma que:

A distinção entre estrutura e organização social de Firth pode


ser entendida como uma das primeiras tentativas para conciliar
teoricamente a relação entre os princípios que formam a ordem
sociocultural, de um lado, e de outro a negociação desta ordem
experimentada na vida cotidiana, segundo o princípio de que
“uma ausência de estrutura ordinariamente existe em qualquer
conjunto de fatos empíricos diretamente observados”.

Com outros dois antropólogos esta ciência toma novas configurações. São eles:
Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) e Evans-Pritchard (1902-1973) os quais
compõem a chamada escola “estrutural-funcionalista”, termo com que ele faz críticas
severas e, além disso, afirma que “isto se deve à irresponsabilidade de Malinowski”.
(RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 232).

Radcliffe-Brown compreende a investigação antropológica como um ramo


das ciências naturais e tal qual é possível a utilização dos métodos. Ele prefere a
nomenclatura de antropologia social à antropologia cultural, pois segundo ele não
se observa cultura, mas sim uma realidade concreta, enquanto que o cultural denota
uma “abstração”. (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 234).

Para este antropólogo a investigação deve ser feita da estrutura social, e compreende-
se estrutura social como “complexa rede de relações”. (RADCLIFFE-BROWN, 1973,
p. 234), ou seja, é a investigação das formas de associação que se encontram entre
os seres humanos (IBID). Evans-Pritchard, por sua vez, compreende estrutura social
como “grupos sociais duráveis”, para Radcliffe-Brown somam-se a esse conceito as
“relações de pessoa a pessoa” e as “diferenças de indivíduos e classes”. (RADCLIFFE-
BROWN, 1973, p. 236). Isso porque a sociedade é uma relação de pessoas e indivíduos.

2
Assista a uma dança feminina tradicional do povo Tikopia Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=1HfDQZKwnmU>.

110 Os principais problemas antropológicos


U3

Relações sociais não de unidades individuais, mas uma conduta de reciprocidades das
pessoas em seus papéis na estrutura social.

Quanto a seu método antropológico, ele defende que se deve fazer comparação.
Afirma ele: “A comparação é indispensável. O estudo de uma sociedade única
pode fornecer materiais para estudo comparado, ou ensejar hipóteses que então
precisam ser verificadas por referência a outras sociedades; não pode dar resultados
demonstráveis”. (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 240). Com isso vemos uma crítica à
postura de Malinowski por pesquisar somente as ilhas Trobriand.

Para Radcliffe-Brown a “função social” está relacionada com a padronização de agir


ou pensar que estão relacionados à estrutura social. Assim sendo, seu interesse pela
função é a “função social do castigo do crime; dos ritos totêmicos; e ritos fúnebres dos
insulares de Andaman”. (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 247).

Edward Evan Evans-Pritchard, inglês, foi um dos principais nomes no


desenvolvimento da antropologia social e fez suas pesquisas entre os
Nuers (no sul do Sudão e no oeste da Etiópia) e entre os Azandes (região
do alto Nilo). Destas pesquisas publicou os livros:
1. EVANS- Pritchard, E. Os Nuer: Uma descrição do modo de subsistência
e das Instituições Políticas de um povo Nilota. 2ª Ed. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1978.
2. EVANS- Pritchard, E. Bruxaria, oráculo e magia entre os Azande. Rio
de Janeiro: Zahar, 2004.
*Leia esta resenha do livro Bruxaria, oráculo e magia entre os Azande,
para se inteirar do tema Disponível em: <http://www.antropologia.
com.br/res/res27_1.htm>.

Evans-Pritchard também procura se dedicar à pesquisa de campo, e pelo que ele


apresenta, não existe até então uma regra para se fazer pesquisa de campo. Segundo
ele, todos seus professores deram respostas evasivas, sem nenhum fundamento para
pesquisa de campo. Ele chega à conclusão de que “muito depende do pesquisador,
da sociedade que ele estuda e das condições em que tem de fazê-lo”. (EVANS-
PRITCHARD, 1978, p. 243).

Então ele se dedica a “rascunhar” algumas páginas sobre esse tema. Segundo ele, é
necessário saber o que se quer encontrar, se dedicar em uma pesquisa prévia em teoria
antropológica para saber o que e como investigar. Por isso é natural que o antropólogo
inicie sua pesquisa com preconceito. Para ele, o antropólogo como ser humano em
busca de conhecer outros seres humanos precisa de todos os saberes adquiridos, pois

Os principais problemas antropológicos 111


U3

todos são relevantes. O antropólogo precisa interagir na sociedade como ela permite,
ele exemplifica isso em suas experiências na sociedade Azande e entre os Nuers. Na
primeira apresentava informações com facilidade, mas não o permitia participar da
comunidade, mas tinham-no como ser superior, ao contrário dos Nuers, que não
lhe fornecia informações, porém o tratava de igual modo na sociedade. Assim como
Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard se preocupa em compreender a estrutura social. E se
propõe a afirmar sobre a racionalidade do nativo, como é o caso da bruxaria, em que
ele analisa não o aspecto mítico, mas racional e funcional da bruxaria entre os Azande.

Como vimos, a antropologia tem um desenvolvimento progressivo na Inglaterra.


Tanto que é onde mais se desenvolvem teorias antropológicas. Embora tenha sido
com Rivers que dá os primeiros passos para a importância da pesquisa de campo, a
antropologia já estava sendo revista em outros países, como por exemplo, Franz Boas
e seus discípulos na escola Difusionista na Alemanha e Estados Unidos. A antropologia
funcionalista e estrutural-funcionalista se propõe a criticar o evolucionismo, e não
somente criticar, mas afirmar que suas bases estão equivocadas provando com
pesquisa empírica que os nativos não são inferiores, mas apenas diferentes. Esses
autores conseguiram dar fundamentação teórica, metodológica e filosófica em suas
pesquisas. Constituindo, assim, grandes avanços para a antropologia, avanços que
também demonstra sua pluralidade e sua autocompreensão e definição.

1. Os estudos antropológicos têm em Bronislaw Malinowski um


“divisor de águas” no que se refere ao avanço e consolidação da
ciência antropológica. Explique o porquê disto e como ele se
diferencia de seus antecessores.

2. A partir do que fora discutido nesta seção, discorra sobre o


evolucionismo cultural e apresente as principais críticas sofridas.

112 Os principais problemas antropológicos


U3

Seção 2

A antropologia e seus problemas


A antropologia, assim como toda ciência, orienta suas pesquisas em torno de
determinadas problemáticas. Quando pensamos em problemas no campo da ciência
não quer dizer de forma pejorativa, mas sim uma problemática a se debruçar para
investigar, pesquisar, refletir e buscar algumas respostas. E é exatamente sobre estes
problemas que a ciência produz conhecimento, pois as pesquisas empíricas, associadas
ao levantamento de dados e metodologias distintas, oferecem perspectivas distintas
acerca do mesmo objeto. Quanto mais complexo e amplo são os temas/objetos de
análise, mais discussões e debates emergem no campo das determinadas ciências.

De acordo com a antropóloga Mariza Peirano (1995), há algo curioso na antropologia:


ao mesmo tempo em que se reconhecem cronologicamente os mesmos autores
clássicos quer se esteja no Brasil, nos Estados Unidos, na França ou na Inglaterra, a
disciplina abriga estilos bastante diferenciados, uma vez que fatores como contexto
de pesquisa, orientação teórica, momento sócio-histórico e até personalidade do
pesquisador influenciam o resultado obtido. Embora existam divergentes escolas e
linhas teóricas, há um denominador comum que unifica o campo epistemológico e
metodológico da antropologia. Lévi-Strauss (2013a) faz uma interessante definição
da disciplina: segundo ele, a antropologia se distingue por ser uma "ciência social do
observado", em contraposição com a "ciência social do observador". Nessa linha, toma-
se por princípio que nenhum pesquisador é capaz de conhecer melhor a vida do grupo
social que estuda do que seus próprios integrantes. Isso implica a não existência de
um fundo de realidade que só o pesquisador seria capaz de acessar e, nesse sentido,
a tarefa do antropólogo é extrair das populações que estuda os problemas que são
delas, ver quais são as questões que elas próprias se colocam. Essa posição vem sendo
levada às últimas consequências pela antropologia contemporânea, em que os nativos
são “levados a sério”, ou seja, o que falam e fazem ganha estatuto de conhecimento,
suas reflexões ganham estatuto de teorias. A seguir, vamos abordar alguns aspectos
teórico-metodológicos que orientam a antropologia na problematização de si mesma
e possibilitam que a disciplina se reinvente continuamente sem perder seu princípio
fundamental: entender como o ser humano pode levar vidas tão diferentes.

2.1 Diversidade cultural


A diversidade da experiência humana é o objeto principal da antropologia. Isso quer
dizer que a disciplina se dedica ao estudo da diferença, a partir da constatação das

Os principais problemas antropológicos 113


U3

várias formas que as sociedades escolheram para viver e organizar sua coletividade.
Desde o começo do século XX, a antropologia tornou-se fonte de conhecimento
sobre a diversidade cultural, desempenhando papel importante na garantia e na defesa
dos direitos de diversas populações viverem à sua maneira.

O principal instrumento que ajudou a antropologia a pensar sobre essa diversidade


de experiências humanas foi a ideia de cultura. Na antropologia, “cultura” não é pensada
nos mesmos termos de “civilização” ou de capital intelectual e erudito. A cultura é
pensada em uma perspectiva pluralista, ou seja, não uma cultura, mas culturas.
Pensar a cultura no plural permite que se desconstrua uma relação de superioridade e
inferioridade entre duas sociedades, postura característica do etnocentrismo.

Etnocentrismo é quando analisamos outras sociedades por meio de critérios


próprios da nossa própria organização social. Ou seja, é quando usamos nossos
próprios modos de vida como parâmetro para qualificação e julgamento de outros
modos de vidas. Isso significa que não estamos realmente olhando para outras
sociedades, mas apenas procurando nelas aquilo que reconhecemos em nós como
fundamental, correto e aceitável.

Para o antropólogo Franz Boas (2004), cultura era um todo integrado, e não apenas
um conjunto de práticas, hábitos, técnicas, relações e pensamentos que poderiam ser
analisados separadamente. Essa integração de múltiplos elementos, ordenados a partir
de um princípio compartilhado por todos os indivíduos de uma sociedade específica,
criava a cultura.

O antropólogo Franz Boas nasceu na


Alemanha seguiu carreira acadêmica em física
e geografia, mas uma expedição ao Ártico, em
1883, marcou uma mudança em sua carreira.
Mudou-se para os Estados Unidos e lecionou
na Universidade de Columbia. Nesta, criou um
departamento de Antropologia e um curso de
doutorado, formando a primeira geração de
antropólogos acadêmicos norte-americanos.
Boas teve importante atuação política, uma
vez que defendia uma posição antirracista
em um país profundamente marcado pelo
preconceito racial. A influência de sua obra
pode ser observada nos trabalhos de Gilberto
Freyre, principalmente no clássico Casa-

114 Os principais problemas antropológicos


U3

grande &senzala.
Obra considerada um clássico da antropologia:
BOAS, Franz.Antropologia Cultural. (Org.). Celso Castro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
Fonte: Wikimedia Commons, Fev. 2015. Disponível em: <http://commons.
wikimedia.org/wiki/Category:Franz_Boas#/media/File:FranzBoas.jpg>.
Acesso em: 1 mar. 2015.

A cultura é única e exclusiva de cada sociedade, o que inviabilizada qualquer tentativa


de comparação a partir de pressupostos arbitrários. Por exemplo, o uso da burca por
mulheres mulçumanas. Para países regidos pela cultura ocidental, a imposição deste
tipo de vestimenta é considerada uma violência contra as mulheres, submetendo-as ao
controle e a dominação autoritária masculina; por outro lado, as muçulmanas utilizam
burcas por vários motivos, independentemente de estarem dentro ou fora do mundo
islâmico e muitas veem essa prática como um ato de fé e respeito, um meio de praticar
a modéstia em sua conduta, e é o modo de se vestir das mulheres ocidentais, que
expõem o corpo, considerado como uma violência e imposição masculina. Percebe-
se que o que é certo ou errado em termos de cultura é algo bastante relativo e impor
um ponto de vista como parâmetro pode acarretar em etnocentrismo. Entretanto,
como bem analisa Laraia (2007, p. 72-73), o etnocentrismo é uma prática universal que
longe de ser naturalizada, deve ser questionada e minimizada, pois:

O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem


como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida
como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada
etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela
ocorrência de numerosos conflitos sociais.

Para ler mais sobre etnocentrismo veja a obra de:


ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. Editora
Brasiliense. Coleção Primeiros passos. 5°ed. São Paulo, 1988.

É muito comum a prática de reagir depreciativamente em relação ao


comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela nossa própria
cultura. E essa prática pode ser observada em relação a diferentes práticas e hábitos

Os principais problemas antropológicos 115


U3

internos a nossa própria sociedade. O modo de ver o mundo, os princípios morais,


os diferentes comportamentos sociais são produtos de uma herança cultural. Com
isso, podemos entender o fato de que indivíduos de culturas diferentes podem
ser identificados por uma série de características, tais como o modo de agir, vestir,
caminhar, comer, sem mencionar as diferenças linguísticas.

O costume de discriminar os que são diferentes, porque pertencem a outro grupo,


pode ser encontrado mesmo dentro de uma sociedade. O etnocentrismo, portanto,
é uma atitude responsável por práticas de discriminação, de racismo, de intolerância,
enfim, de qualquer forma de preconceito, marcado por agressões verbais, e até físicas,
praticadas contra os se comportam de maneira diferente do que dita os padrões
morais de certos grupos dominantes.

A contradição entre a universalidade da condição humana e as diferentes formas


de vida social e cultural que demarcam os agrupamentos humanos tornou-se o
primeiro grande problema antropológico a ser debatido. A antropologia se consolidou
como ciência social ao abandonar e qualquer resquício etnocêntrico na produção
de conhecimento, assumindo uma postura que passou a ser chamada de relativismo
cultural, e que consiste em uma postura diante da diferença cultural, segundo a qual
cada cultura deve ser avaliada apenas em seus próprios termos. Ou seja, é uma forma
de encarar a diversidade sem impor valores e normas alheios. O relativismo cultural é
a postura inversa do etnocentrismo: se este escalona as diferenças a partir de valores
específicos das sociedades ocidentais, o relativismo evita qualquer tipo de escala,
analisando as diferenças segundo os termos da própria sociedade da qual fazem parte.

O relativismo cultural, ou, a aceitação de diferentes modos de ser, pensar e agir,


sem estabelecer julgamentos como certo ou errado, moral ou imoral, aceitável ou
inaceitável, foi e ainda é o principal motor de um pensamento não preconceituoso e
preocupado em romper com as classificações hierárquicas quando se fala de outras
culturas. O próprio conceito antropológico de cultura não poderia existir sem o
relativismo cultural e a crítica ao etnocentrismo.

Entretanto, ao mesmo tempo em que possibilita o enfrentamento ao racismo e a


outros tipos de preconceito, o relativismo cultural desemboca em um impasse político
complexo e delicado que atravessou todo o século XX e permanece até os dias atuais:
se o relativismo exige que se considere uma cultura segundo seus próprios termos,
é preciso aceitar tudo o que cada cultura produz e faz. O problema é que alguns
costumes podem nos parecer um tanto inaceitáveis, violentos, como por exemplo,
a prática de casamento com crianças na Índia, ou as mutilações genitais impostas às
mulheres em alguns países islâmicos.

Este impasse é discutido extensamente pela UNESCO, Organização das Nações


Unidas para a educação, a ciência e a cultura. O dilema está em encontrar um equilíbrio,
pois deve-se respeitar a diferença e a soberania de cada cultura, por mais diferente

116 Os principais problemas antropológicos


U3

que seja dos padrões culturais ocidentais, entretanto, o problema está quando certas
práticas oprimem certas populações, que se tornam vítimas de processos que, para
além de cultural, envolve outras questões como o poder político, dominação etc.
Um dos critérios para orientar o debate sobre determinadas práticas culturais pode se
pensar em termos de poder e autoridade. Se determinado costume oprime grande
parcela de uma sociedade, como as mulheres islâmicas, ou crianças, na Índia, e, ponto
mais importante, se essas parcelas se sentem oprimidas, violentadas, é justo que um
costume seja questionado e criticado.

Mas, ainda assim, essa discussão e questionamento devem ser feito a partir dos
próprios termos e das lógicas de pensamento da sociedade em questão. Não se pode
simplesmente impor termos ocidentais para determinar o porquê uma prática cultural
é considerada inaceitável. Deve-se conhecer a fundo determinada cultura, o sistema
simbólico que orienta seus costumes e práticas. Se as próprias mulheres islâmicas
não se sentem violentadas com a prática da mutilação, e fazem questão do ato, não
temos o direito de criticar ou intervir só porque não compartilhamos da mesma lógica
de pensamento e crença.

O ponto que interessa aqui é ter em mente que o relativismo cultural não implica
aceitar tudo ou qualquer coisa que uma cultura faz ou produz, mas sim entender
como e por que cada sociedade faz o que faz, como faz, as relações envolvidas nesse
fazer, quem é ou não favorecido por determinada prática. É este princípio, conhecer
diferentes culturas, levando a sério seus próprios termos e princípios que embasam a
ideia de diversidade cultural.

A missão da UNESCO consiste em contribuir para a erradicação


da pobreza, para o desenvolvimento sustentável e para o diálogo
intercultural, por meio da educação, das ciências, da cultura, da
comunicação e informação. Para saber mais sobre os desafios e projetos
da organização, acesse Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0018/001887/188700por.pdf>.

A UNESCO toma para si a responsabilidade de garantir e preservar a diversidade


cultural, com esse propósito, passou a ser uma espécie de núcleo global das tensões
envolvendo cultura e desenvolvimento, ou, cultura e globalização. A organização
se viu incumbida de promover discussões em âmbito mundial no que diz respeito a
um conjunto de ações e propostas de regulamentação, definição e normatização da
categoria cultura em face das profundas transformações ocorridas no final do século
XX. Segundo Alves (2010), uma tensão central foi construída a partir da consolidação e

Os principais problemas antropológicos 117


U3

do crescimento da demanda mundial por bens e serviços culturais – como a internet,


as redes sociais, o cinema, a publicidade, programas de televisão, revistas – que
foram acompanhados do crescimento e da desregulamentação de alguns mercados
nacionais, como o mercado financeiro, simultaneamente à profusão de um conjunto
de novas tecnologias da informação e de uma infinidade de multimídias.

O crescimento dos mercados mundiais gerou a sensação de que o mundo estaria


passando por um processo acelerado de homogeneização e padronização cultural.
Essa sensação decorreu, em certa medida, para Alves (2010), das profundas assimetrias
existentes entre os principais polos de produção simbólica (Estados Unidos e União
Europeia), classificados como os centros exportadores de bens culturais, e os polos de
consumo (América Latina, África e Ásia), classificados como os centros de importação.

No mundo globalizado, tendo nosso cotidiano invadido por situações e


informações provenientes dos mais diversos lugares, é em nome da preservação e
promoção da diversidade e da identidade cultural que muitos estados nacionais e
instituições transnacionais passaram a defender a elaboração e execução de novas
políticas públicas voltadas à cultura. Além disso, diante da necessidade de preservação
de tradições culturais ameaçadas pelo mercado global, foram criadas inúmeras
instituições (organizações nacionais ligadas a entidades da sociedade civil, organizações
não governamentais locais, nacionais e transacionais, entidades de artistas, produtores
culturais e governos em geral) empenhadas na luta pela defesa e promoção da
diversidade cultural em âmbito local, nacional e transacional, desdobrada na luta pela
defesa e promoção de diversas formas de reconhecimento identitário, como o de
gênero, étnico e racial.

O genocídio dos judeus ou mais conhecido como o Holocausto dos


Judeus, durante a II Guerra Mundial, estava pautado em um pensamento
ideológico que exterminou cerca de seis milhões de judeus, que não
eram reconhecidos como seres humanos, base da argumentação que
visava destacar a superioridade da “raça ariana” alemã. A perseguição e o
extermínio dos nazistas alemães contra os judeus ficaram conhecidas na
história por antissemitismo. Os nazistas queriam a qualquer custo tornar
a Alemanha uma nação nacionalista-socialista, sob o governo ditador de
Adolf Hitler, mas composta por uma única raça, a “raça ariana”, considerada
superior às demais.

Nesse contexto, surgem problematizações acerca de termos como raça e etnia,


estabelecendo diferenças importantes na condução das políticas públicas que
envolvem a cultura. O conceito de etnia distingue-se do conceito de raça. Etnia é

118 Os principais problemas antropológicos


U3

um conceito associado a uma referência e/ou origem comum de um povo, está


ligada à cultura. Ou seja, são grupos que compartilham os mesmos laços linguísticos,
intelectuais, morais e culturais. São exemplos de grupos étnicos, entre outros, os índios
xavantes, ou os kuikuro, ou os guarani, populações geralmente em minoria em relação
ao contexto social em que estão inseridas. Já o termo raça significa dizer que há grupos
de pessoas que possuem características fisiológicas e biológicas comuns, portanto,
não têm relação com a cultura, mas sim ao fenótipo da pessoa, por exemplo, os
negros, orientais etc. No entanto, o uso do termo raça acaba classificando um grupo
e promovendo também à hierarquização, pautada na consideração da superioridade
de uma “raça” em relação a outras.

O Brasil se constitui como uma “aquarela” de grupos étnicos, formada por brancos,
negros e índios. Temos uma pluralidade de identidades, mas caracterizada pelas
diferenças. Por conta da confluência e relação travada entre uma grande variedade de
identidades, povos e tradições, os diferentes grupos étnicos desenvolveram o que em
antropologia recebeu o nome de etnicidade.

Etnicidade é a mobilização política e social de determinados grupos étnicos em


prol de seus direitos e valores do grupo, na defesa de sua identidade sociocultural.
Na nossa vida social cotidiana, muitas vezes, deparamo-nos com notícias de grupos
étnicos lutando e reivindicando algo na sociedade, tanto no âmbito econômico ou
político, como ocorre com os índios e os negros. As várias etnias indígenas se unem
em prol da luta pelos direitos de suas terras. Não se trata de direitos à igualdade de
distribuição de renda ou de Reforma Agrária, mas, sim da posse legítima que os índios
têm das suas reservas de terras. Outro exemplo de etnicidade e mobilização é a luta
pela igualdade de oportunidades no trabalho e na educação, distribuição de renda,
contra a discriminação étnica-racial (racismo) etc., que os negros travam no Brasil. As
cotas, termo que também faz parte das chamadas políticas afirmativas, são medidas
positivas, que buscam reparar ou minimizar o racismo e a exclusão social que afetam
os negros e descendentes retirando as oportunidades de ingresso nas universidades e
nos concursos públicos.

Como bem analisa Lévi-Strauss (2013a, p. 358-359) sobre a relação entre os termos
cultura, raça e etnia,

Existem muito mais culturas humanas do que raças humanas, pois


que enquanto umas se contam por milhares, as outras contam-se
pelas unidades; duas culturas elaboradas por homens pertencentes
a uma mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas
provenientes de grupos racialmente afastados. Em segundo lugar,
ao contrário da diversidade entre as raças, que apresentam como
principal interesse a sua origem histórica e a sua distribuição no

Os principais problemas antropológicos 119


U3

espaço, a diversidade entreas culturas põe uma vantagem ou um


inconveniente para a humanidade, questão de conjunto que se
subdivide, bem entendido, em muitas outras.

Os conflitos étnicos demonstram a importância de entender como se dão os


processos de construção e significação da diferença, pois não se trata apenas de
falar e pensar sobre a diferença, mas de se relacionar e conviver com ela, e o modo
como a relação interétnica se estabelece em uma sociedade, diz muito sobre ela,
suas hierarquias e desigualdades sociais. O preconceito e a não aceitação de modos
distintos de vida são responsáveis pela geração de intolerância e preconceitos, seja
cultural, religioso, político e étnico, assumindo diferentes expressões no decorrer da
história. Em nossos dias, a globalização propaga a ideia de que a cultura ocidental é
superior, ou melhor, e os povos de modos de vida e culturas diferentes devem assumi-
la, modificando suas crenças, normas e valores.

Você, com certeza, já ouviu dizer que “índio de verdade” não usa
roupas, ou possui aparelhos tecnológicos, ou assume hábitos e
comportamentos dos “brancos”. Esse discurso é comum uma
vez que legitima a retirada de direitos das populações indígenas.
Quando um fazendeiro quer desqualificar reivindicações
dos indígenas sobre as terras que ocupa, afirma que eles não
são mais indígenas porque usam roupas, ferramentas etc. As
sociedades ocidentais capitalistas criam imagens dos indígenas
como primitivos, se apressam em tentar “ocidentalizá-los”,
ocupam suas terras, os expulsam para as periferias dos centros
urbanos, leva-os a adotar seus hábitos de consumo, seus modos
de vida, e, com isso, podem acusá-los de não mais serem índios
e, portanto, não têm direito à terra, ao respeito à suas tradições
e costumes, por exemplo.
Pense sobre vários discursos que você ouve repetidas vezes de
alguns grupos que, disfarçados pelo argumento do progresso
e do desenvolvimento, acabam denegrindo e retirando a
autonomia e os direitos de grupos e coletivos dentro da
sociedade nacional.

A etnicidade, bem como medidas, projetos e políticas públicas voltadas à defesa da


cultura, aparece no cenário atual como apanágio da ideia de diversidade cultural. Com
isso, se contrapõe ao conceito de aculturação (ou assimilação total de oura cultura).

120 Os principais problemas antropológicos


U3

Os teóricos da aculturação previam que aquelas populações de culturas distintas


(como os imigrantes, os indígenas, os negros), ao serem totalmente englobadas pela
sociedade nacional, lentamente deixariam de assumir as características tradicionais de
sua cultura, e passariam a assumir completamente a cultura da sociedade nacional.
Entretanto, hoje vemos que a confluência e convivência de elementos culturais
distintos não desembocam em uma perda da cultura tradicional, mas na assimilação
de novos termos, sem perder certas características fundamentais, ou seja, os não
ocidentais não se tornam ocidentais, jamais serão confundidos com um cidadão
americano, por exemplo. Certas características se mantêm. As culturas são dinâmicas,
se transformam, mas não deixam de existir (SAHLINS,1997). Este é o principal
argumento dos grupos étnicos que passam a reivindicar o reconhecimento de seus
direitos nas esferas políticas.

De acordo com Lévi-Strauss (2013b), a necessidade de preservar a diversidade das


culturas num mundo ameaçado pela globalização, padronização e pela uniformidade
não escapou certamente às instituições internacionais. Estas compreendem que não é
suficiente, para atingir esse fim, animar as tradições locais e conceder uma trégua aos
tempos conflituosos e violentos do passado: “É a diversidade que deve ser salva, não o
conteúdo histórico que cada época lhe deu e que nenhuma poderia perpetuar para além
de si mesma”. (LÉVI-STRAUSS, 2013b, p. 398). Para o autor a tolerância não é uma posição
contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica,
que consiste em prever, em compreender e em promover a comunicação e relação
com o diferente de si, reconhecimento de sua soberania e autonomia, “A diversidade
das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência
que podemos fazer valer a seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres
correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição
para a maior generosidade das outras”. (LÉVI-STRAUSS, 2013b, p. 399).

Para enfrentar os desafios de um mundo cada vez mais interconectado, a tarefa


consiste em lançar pontes sólidas baseadas na solidariedade entre todas as culturas, a fim
de criarmos uma nova ética universal da convivência. A Convenção sobre a Proteção e a
Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada em 2005, reafirma o direito
dos Estados em elaborar políticas culturais, reconhece a natureza específica dos bens e
serviços culturais como portadores de identidade, valores e sentido, além de fortalecer
a cooperação internacional destinada a facilitar a expressão cultural de todos os países.
Com isso, a UNESCO se propõe alcançar um objetivo duplo:

1) Fazer progredir a sensibilização da comunidade internacional em relação às


vantagens da diversidade e do diálogo intercultural, utilizando exemplos específicos
que reconhecem a importância dos constantes intercâmbios entre as culturas, além
dos vínculos que elas foram tecendo desde o alvorecer da humanidade.

2) Lutar pelos direitos humanos e contra as novas formas de racismo e discriminação.

Os principais problemas antropológicos 121


U3

A organização busca incentivar a adoção de políticas do patrimônio que


preconizem o respeito pela diversidade cultural. Sob a égide da Convenção sobre a
Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, a UNESCO criou a
Aliança Global para a Diversidade Cultural, que apoia as indústrias culturais no plano
local, como o artesanato, a música, o setor editorial e cinematográfico, nos países
em desenvolvimento, por meio de parcerias público-privado e Norte-Sul. A UNESCO
mantém seus programas estabelecidos, há muito tempo, que promovem os vínculos
entre os povos.

Como manter e promover a grande diversidade cultural de países como o Brasil


diante das profundas desigualdades sociais? Em outros termos: como conciliar
diversidade cultural, que é tratada como o grande patrimônio da humanidade, com o
desenvolvimento material, que passa pela expansão dos mercados culturais, regionais,
nacionais e transnacionais e, por conseguinte, pelo consumo simbólico, tão relevante
para a geração de trabalho, emprego e renda, aspectos estes diretamente ligados à
redução das desigualdades sociais?

De acordo com Alves (2010), o núcleo da relação entre cultura e desenvolvimento


em países como o Brasil passa, necessariamente, pelo tenso equilíbrio entre diversidade
cultural e desigualdade social:

A distinção entre estrutura e organização social de Firth pode


ser entendida como uma das primeiras tentativas para conciliar
teoricamente a relação entre os princípios que formam a ordem
sociocultural, de um lado, e de outro a negociação desta ordem
experimentada na vida cotidiana, segundo o princípio de que
“uma ausência de estrutura ordinariamente existe em qualquer
conjunto de fatos empíricos diretamente observados”.

O tema da diversidade cultural consiste em um campo de problematizações da


antropologia, já que traz inúmeras questões que apontam para a relação intrínseca
entre política, economia, sociedade e cultura. O Brasil constitui um microcosmo
interessante para a observação dessa confluência entre vários domínios, o que se
apresenta em nosso cotidiano e que podemos facilmente observar. A falta de respeito
ao outro e o preconceito com a diferença, infelizmente, se apresenta em nosso país
aliado à desigualdade social, relação esta que, muitas vezes, passa despercebida. A
atualidade desta temática elucida um amplo campo de possibilidades e perspectivas
não só para a antropologia, como para as ciências sociais de um modo geral.

2.2 Natureza versus cultura


Todos os seres humanos são dotados do mesmo equipamento anatômico, da
mesma estrutura física, entretanto, os seres humanos não são determinados pela

122 Os principais problemas antropológicos


U3

universidade do plano biológico, mas sim pela cultura na qual estão inseridos. A utilização
e significação do corpo, por exemplo, ao invés de ser determinada geneticamente
(todas as formigas de uma mesma espécie, usam seus membros uniformemente),
depende de um aprendizado de padrões que regem as relações sociais, as condutas
e os sentimentos do grupo social.

Por exemplo, há inúmeras etnografias que descrevem o adoecimento, e até a morte,


de pessoas ocasionadas por feitiçaria. Apesar de não haver qualquer indício fisiológico
que comprove algum agente causador da doença, a pessoa que acredita ter sido
enfeitiçada tem sua fisiologia e seu sistema biológico de tal modo comprometido que
acaba sucumbindo e pode até morrer se não houver a prática de algum curador para
livrá-la do infortúnio. Isso indica de que maneira a cultura interfere, condiciona e determina
as funções biológicas. E mais, isso explica porque, apesar da universalidade da condição
humana, a diversidade cultural implica que os seres humanos sejam tão diferentes.

Diante disso, a antropologia é a área por excelência de debate sobre a conciliação da


unidade biológica e a diferença cultural da espécie humana, ou, a relação entre natureza
e cultura. Para o antropólogo Claude Lévi-Strauss (2003), a separação entre natureza e
cultura pode ser considerada um recurso metodológico fundamental para a compreensão
dos humanos e suas relações. E isso implica que esta separação não possa ser explicada
pela história: não houve um momento determinado em que se marca a passagem a do
estado de natureza para a vida social, para o autor: “O homem é um ser biológico ao
mesmo tempo um indivíduo social. Entre as repostas que dá às excitações exteriores ou
interiores, algumas dependem inteiramente de sua natureza, outras de sua condição”.
(LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 42). As causas que determinam certo comportamento e ação
humana está na confluência entre determinação biológica e cultural.

Esta confluência se constitui mediante a linguagem. É através dela e por ela que
natureza e cultura se articulam. Assim, segundo Lévi-Strauss (2003), se há algum
ponto no qual se possa pensar a separação entre natureza e cultura na experiência
humana, este ponto seria a partir da proibição do incesto, ou, do modo como cada
coletivo humano prescreve com quem se pode ou não casar-se. Mais do que isso, a
proibição do incesto, sancionada por penalidades variadas, podendo ir da imediata
execução dos culpados até a reprovação difusa, e às vezes somente até a zombaria,
está presente em qualquer grupo humano. Ao instaurar essa regra, os seres humanos
foram levados a estabelecer trocas com outros humanos, condição fundamental para
a vida social e a constituição da cultura: a mulher interdita em determinado grupo,
casa-se com um homem de outro grupo, estabelecendo com isso laços sociais,
afinidades, parentescos.

A proibição do incesto é um fato que reúne, ao mesmo tempo, a universalidade


das tendências e dos instintos e o caráter coercitivo das leis e das instituições. Em
algumas sociedades, como Madagascar, apenas a mãe é proibida aos grandes chefes,
já no Egito antigo, o casamento entre irmãos e irmãs era um costume espalhado entre

Os principais problemas antropológicos 123


U3

os pequenos funcionários e artesãos. Assim, de acordo com o autor:

Esta regra, social por natureza de regra, é ao mesmo tempo


pré-social por dois motivos, a saber, primeiramente pela
universalidade, e em seguida, pelo tipo de relações a que se impõe
sua norma. [...] Notemos, entretanto, que se a regulamentação das
relações entre sexos constitui uma invasão da cultura no interior
da natureza, por outro lado a vida social é, no íntimo da natureza,
um prenúncio da vida social, porque, dentre todos os instintos, o
instinto sexual é o único que para se definir tem necessidade do
estímulo de outrem. (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 50).

Assim, para Lévi-Strauss, a proibição do incesto, que prescreve mulheres a serem


trocadas entre famílias, grupos, clãs etc., está no limiar da passagem da natureza –
sujeito que age determinado unicamente pelos instintos – para a cultura – sujeito que
age determinado pela cultura e relações sociais.

A proibição do incesto situa-se no limiar entre a natureza e a cultura. Mas


por que o incesto é proibido? Entendemos que, por detrás da necessidade
de tamanha proibição, só possa existir um desejo universal equivalente.
Várias teorias têm sido utilizadas para explicar a finalidade desta proibição.
Estas podem ser divididas em biológicas, sociais e psicológicas. As
teorias biológicas concebem um horror inato ao incesto, decorrente
de um instinto de proteção natural contra os malefícios resultantes do
cruzamento endogâmico. Entretanto, não há comprovações diretas que
indiquem que todo ato incestuoso resulta em problemas hereditários.
Além disto, se a possibilidade de ocorrência de relações incestuosas fosse
biologicamente negada, estas não precisariam ser proibidas por leis sociais,
mostrando que a questão não passa pelos aspectos biológicos e sim por
aspectos socioculturais. As teorias socioculturais priorizam a importância
da exogamia, pois ela amplia os laços sociais e as trocas entre coletivos
humanos. Segundo as teorias psicológicas, Freud coloca a proibição do
incesto como um estruturador mental, pois é através da repressão dos
desejos incestuosos que se estrutura o aparelho psíquico em duas instâncias:
consciente e inconsciente. O desejo incestuoso, presente em todos os
seres humanos, deve ser reprimido para a sobrevivência da civilização. De
fato, todas as sociedades, inclusive a nossa, tecem uma série de reflexões e
mitologias para explicar essa proibição.

124 Os principais problemas antropológicos


U3

O dualismo que se estabeleceu entre a natureza e a cultura, a despeito de constituir


um paradigma clássico da antropologia, é também algo que, no mínimo, diz muito
sobre nós mesmos, ocidentais, modernos. Atualmente, esse dualismo é visto no
campo antropológico menos de uma perspectiva que considera uma separação e
oposição definitiva entre natureza e cultural, sendo esta uma perspectiva restrita à
cultura ocidental, e mais como uma conexão e relação intrínseca entre esses dois
domínios, um interferindo no outro. E quem nos ensina sobre a relatividade da
passagem definitiva entre natureza e cultura são os ameríndios, nome dado aos povos
tradicionais que viveram do sul ao norte do continente americano, como nossos
índios, por exemplo.

A antropologia considera o pensamento ameríndio no mesmo patamar do


pensamento científico: o saber que produzem sobre a vida, as explicações e os
sentidos que constroem para explicar, por exemplo, apassagem da natureza para a
cultura, são tão complexas e sofisticadas quanto as teorizações feitas por intelectuais
ocidentais modernos. Com isso, apesar de se valorizar a diferença entre os ameríndios
e os brancos, se constroem pontes que permitem uma compreensão das experiências
das populações indígenas. A riqueza de uma narrativa mitológica indígena nada deve
ao pensamento mitológico grego, por exemplo, ou diante da sofisticação artística de
muitos artefatos indígenas, ou ainda, diante de sistemas de parentesco muito mais
complexos que os nossos.

O chamado sistema de parentesco consiste no contexto que


tradicionalmente serviu para o entendimento das relações humanas,
bem como da passagem da natureza para a cultura. O modo como uma
“família” se constitui ou como os graus e relações de parentesco são
construídos foi o ponto de partida para compreensão das chamadas
“sociedades primitivas”. Categorias como “primos”, “tios”, “avós”,
“cunhados”, “pai”, “irmão”, são categorias de parentesco que traduzem e
prescrevem um tipo específico de relação entre as pessoas. A categoria
“pai”, por exemplo, não está presente em muitas sociedades, sendo a
autoridade concentrada nas mãos do irmão mais velho da mãe, que
assume a função de educar/criar a criança. Atribuímos uma série de
valores, obrigações e sensações a cada categoria de parentesco. Em
algumas se proíbe casar com a filha, em outras se prescreve casar com a
irmã e, o mais importante, a troca de mulheres entre núcleos familiares
criam laços sociais que são a base da organização social. Para Lévi-
Strauss (2013a), as “estruturas elementares do parentesco” são a base
para a compreensão das estruturas do pensamento humano.

Os principais problemas antropológicos 125


U3

De acordo com diversas populações indígenas, diz-se que no início dos tempos,
animais, plantas e outros seres que tendemos a denominar não humanos eram
humanos, pois se comunicavam plenamente com os humanos, partilhando com eles
tudo o que havia no mundo.

No tempo atual, embora diferenciados – sobretudo por suas formas corporais –


estes animais, plantas e outros seres que tendemos a denominar não humanos ainda
se pensam como humanos – ainda portam algo como uma alma humana – e muitas
vezes podem se revelar como tais. Isto consiste, por exemplo, na ideia de “animismo”,
tal como apresentada por Philippe Descola (DESCOLA, 2006).

Estas são problemáticas que a antropologia contemporânea não pode deixar de


levar em consideração, pois, se esses “outros seres não humanos” podem se revelar
aos humanos como humanos, isso se dá, muitas vezes, porque eles tendem a ver
os humanos como não humanos. Nesse sentido, a humanidade é uma questão
de perspectiva, ou depende do ponto de vista do ser em questão. Eis o argumento
central da reflexão desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima
sobre uma forma de pensamento por eles designada de “perspectivismo ameríndio”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002; LIMA, 2005).

A atribuição de humanidade a esses outros seres é, em larga medida, resultado de


um processo de interação intensiva. Não se trata, portanto, de uma simples projeção de
ideias, mas de ideias que nascem na interação, na relação real (ou social) entre humanos
e não humanos. Nesse aspecto, o dualismo natureza e cultura é algo bastante enfatizado
pelos ocidentais modernos no sentido de algo que organiza seu pensamento.

O antropólogo francês Philippe Descola (2006) cita quatro diferentes regimes


de identificação, que seriam as formas escolhidas pelas culturas para separar
o mundo humano do mundo não humano, ou, a natureza da cultura. Esses
quatro modos seriam o naturalismo, o animismo, o totemismo e o analogismo.
Entretanto, o interessante é que o autor identifica que esses quatro regimes
coexistem em proporções diferentes em variadas sociedades, incluindo a nossa.
Em nossa sociedade, segundo ele, o regime que prevalece seria o naturalismo,
que separa radicalmente a natureza, os animais, os seres inanimados e a
cultura, a humanidade. Tal separação decorre da consideração moderna de
que os não humanos, sejam animais, coisas ou eventos naturais, não possuem
alma, e legam a racionalidade como atributo exclusivo dos seres humanos,
pensamento endossado pela ciência. Já nos ameríndios, nos melanésios e em
alguns coletivos da Ásia e da Sibéria predominaria o animismo, no qual todos
os seres vivos são potenciais parceiros sociais dos seres humanos e, com isso,
sugere um modo de identificação no qual seres variados são animados, dotados
de sociabilidade e compartilham uma espécie de “alma” com os humanos.

126 Os principais problemas antropológicos


U3

A concepção de humano operada pela ciência ocidental, por exemplo, se refere


a uma categoria universal do pensamento, por meio do qual a pessoa, seja de qual
grupo social for, reconhece-se como distinta dos animais e, a partir dessa diferença,
estabelece os modos de relação social e os meios de entendimento de si. Com
isso, no pensamento ocidental, segundo Sahlins (2008), a relação entre natureza e
cultura é hierárquica, sendo a natureza o polo inferior, ligado à bestialidade, à violência
e à depravação inata do humano por conta da submissão aos instintos; a cultura,
polo superior, é ligada ao racional, à ordem, ao social, responsável por refrear os
ímpetos ferozes que dirigem os instintos, distinguindo o humano dos animais. Esse
determinismo intelectual reconhece uma “natureza humana universal” superada pelo
advento da cultura. Viveiros de Castro (2002) analisa uma inversão desse pensamento
ocidental: para as sociedades ameríndias, a humanidade é a categoria universal; a
natureza é particular e variável. Nelas, o humano é o estado originário de todos os
seres, a partir do qual as formas e espécies naturais são produzidas e diferenciadas – é
como se houvesse uma humanidade universal e uma variabilidade de naturezas, ou
seja, todos os seres seriam humanos por natureza. Assim, cada sociedade produz suas
próprias teorias a respeito do “humano”, concepção permeada pela função simbólica
e que estabelece como o social é apreendido pelos seres que o constituem (LÉVI-
STRAUSS, 2003).

Um impulso para a crítica da ideia de separação entre natureza e cultura veio do


trabalho de Bruno Latour (1994) filósofo, sociólogo e antropólogo francês que se dedica
a entender a ciência moderna e produz o que podemos chamar de uma antropologia
da ciência. Latour (1994) alega que a separação entre natureza e cultura (pensada
por ele como processo de “purificação” perpetrado pelo pensamento ocidental) está
na base da constituição da ciência moderna e mesmo da modernidade como um
todo. Tal perspectiva está engajada em revelar a natureza (alheia à ação humana) e
em construir os coletivos humanos (para além das paixões humanas). Entretanto, a
grande revelação do trabalho de Latour (1994) está em sua afirmação de que “jamais
fomos modernos”, ou seja, jamais conseguimos separar definitivamente a natureza e
sociedade. Fizemos, sim, proliferar os “híbridos”, ou seres com agências humanas e
não humanas, ainda que tenhamos decidido mantê-los escondidos.

Bruno Latour
Bruno Latour nasceu em 1947, em Borgonha,
na França. Fez graduação em filosofia e
antropologia. De 1982 a 2006, ele foi professor
do Centre de Sociologie de l' Innovation na
Ecole Nationale Superieure des Mines de

Os principais problemas antropológicos 127


U3

Paris e, por vários períodos, professor visitante na


London School of Economics e no departamento
de História da Ciência na Universidade de Harvard.
Em uma série de publicações, ele explora as
consequências dos estudos científicos sob
diferentes tópicos e perspectivas das ciências
sociais. Desenvolveu a chamada teoria do ator-
rede. Na teoria ator-rede, o ator é definido a
partir do papel que desempenha e do efeito que
produz em uma rede de conexões e relações com outros atores e agentes, que
pode ser pessoas, animais, coisas, objetos e instituições. A teoria explica que, na
cultura contemporânea, os atores não humanos (que pode ser um dispositivo
inteligente, como computadores, smartphones, sensores, servidores,
entre outros) e o humano agem mutuamente, interferem e influenciam o
comportamento um do outro, com a diferença que o não humano pode
ser ajustado pelo o humano de acordo com a sua necessidade. Por permitir
a conexão entre outros não humanos e ter como característica principal a
inteligência, o não humano altera a ordem da vida humana, ditando o ritmo
de se pensar e agir. Para a Teoria Ator Rede, a produção de redes e associações
surge da relação de mobilidade estabelecida entre os atores humanos e não
humanos que se dá na convergência dos novos meios de sociabilidade que
aparecem com a cultura digital, como por exemplo, as redes sociais e as
comunidades virtuais.
Fonte: Wikimedia Commons, mar. 2015. Disponível em: <http://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Bruno_Latour_conf%C3%A9rence_
th%C3%A9%C3%A2trale_anthropoc%C3%A8ne_01947.jpg?uselang=pt-br>.
Acesso em: 5 abr. 2015.

Ao fazer uma etnografia em um laboratório de neurociência nos Estados Unidos,


Latour descobre que a ciência moderna, na verdade, trabalha com uma série de
elementos que, assim como os elementos presentes nas cosmologias indígenas, são
invisíveis a olho nu e sua existência só pode ser atestada pelos próprios cientistas. Por
exemplo, os átomos. Somente os cientistas atestam sua existência, cabendo a nós,
acreditar na influência determinante desse elemento “não humano” em nossas vidas
cotidianas.

O fato é que articulamos com uma rede de elementos heterogêneos. Segundo


Sztutman (2009), tudo se passa como se o problema da insuficiência do dualismo
natureza e cultura para pensar outros povos, entre eles os ameríndios, sinalizasse,
também, a insuficiência de nossos modos de representação e, sobretudo, de nossos
aparatos conceituais. Estes deveriam ser submetidos a uma espécie de “terapia”, de
modo a se libertarem de projeções usuais.

128 Os principais problemas antropológicos


U3

A concepção de Latour (1994) gerou interesse no que se convencionou chamar no


campo antropológico de “antropologia simétrica”, que se refere à ideia de considerar
as reflexões das populações não ocidentais sobre elas mesmas como teorias tão
relevantes quanto às próprias teorias feitas pelo antropólogo sobre elas, ou seja, elevar
as reflexões nativas à categoria de conceitos e filosofia.

Se antes um antropólogo achava que cada cultura resolvia, à sua maneira, como
pensar a natureza, ele necessariamente partia do pressuposto de que havia uma
separação universal entre natureza e cultura. Ao se deparar com formas de pensamento
e grupos humanos que não pressupõem a divisão natureza/cultura, os antropólogos
começaram a criticar as próprias noções antropológicas que fixavam a explicação da
experiência a partir desse dualismo.

As teorias nativas levadas a sério colocam em xeque certas universalizações


hegemônicas da ciência ocidental. É justamente a problematização de pressupostos
e universalizações que consiste a relevância do saber antropológico. A antropologia
contemporânea é aquela cujos problemas estão direcionados à valorização da
diferença, considerando o conhecimento nativo tão valioso quanto o ocidental, e
pode ser uma forma de nos enxergarmos a nós mesmos, inclusive fornecendo saídas
para impasses ocidentais que a ciência parece não propor muita solução, como o
aquecimento global.

2.3 Cultura, ação e estrutura


Neste último tópico, você vai aprender questões sobre um debate relativamente
recente, que teve início a partir da década de 1970, nos Estados Unidos, e que propôs
uma nova abordagem sobre a relação entre cultura e história e entre a antropologia
e a política. Esta nova escola ficou conhecido como Teoria da Prática e/ou Teoria
da ação, pois são estudos antropológicos que levam em consideração a ação dos
indivíduos em suas relativas autonomias frente aos processos culturais na sociedade
moderna capitalista. Esse debate teórico problematiza a perspectiva que era constante
nos estudos anteriores acerca da existência de uma estrutura social bastante forte e
irresistível em que coage todos os indivíduos a uma forma homogênea de vivência e
reprodução cultural.

Pensar em estrutura social é pensar na organização do social e sua força coercitiva,


como dizia Durkheim, mas não podemos deixar de considerar que as relações sociais
não são fixas e plasmadas a essa estrutura, seja pela “cultura, estrutura mental [seja] o
capitalismo”, como afirma Sherry Ortner (2007, p. 19) ao informar que a ideia de uma
“teoria da coerção” está presente nas mais distintas teorias sociais. No entanto, mediante
as relações de conflitos, interesses e ressignificação dos signos, as organizações sociais
estão abertas à transformação.

A antropologia contemporânea (1970-1980) consegue avançar nessa discussão e

Os principais problemas antropológicos 129


U3

propõe uma teoria vinculada à história e suas transformações e, assim, percebemos


um refinamento teórico que compreende que a estrutura se reproduz, mas de forma
dialética se transforma. Temos aqui uma nova epistemologia para compreender o
social e cultural, pois não exclui o indivíduo em sua prática no mundo concreto e em
sua relativa autonomia, nem deixa de considerar que a estrutura possui força coercitiva
no desenvolvimento social entendido como uma relação de interação e reprodução
gerando transformação. Segundo Ortner (2007, p. 20), três nomes são proeminentes
no desenvolvimento desta Teoria da Prática, são eles Pierre Bourdieu: Outline of a
Theory of Practice (1978), Anthony Giddens: Central Problems in Social Theory: Action,
Structure, and Contradiction in Social Analysis (1979) e Marshall Sahlins: Historical
Metaphors and Mythical Realities: Structure in the Early Historical of Sandwich Island
Kingdom (1981) . O ponto de interseção entre eles é a relação entre as práticas dos
atores e as estruturas gerais ou sistemas.

A Teoria da Prática surge em fins dos anos 1970 como uma proposta que supera
as dicotomias conceituais e as oposições entre estrutura e ação dos atores sociais,
pois, como afirma Ortner: “A história faz as pessoas, mas as pessoas fazem a história”.
(ORTNER, 1993, p. 277) – não só não é uma contradição como talvez seja a verdade
mais profunda da vida social”. (ORTNER, 2007, p. 21).

Sherry B. Ortner é uma antropóloga norte-americana, aluna da Clifford Geertz,


pesquisadora da antropologia feminista e da Teoria da Prática. Dois de seus trabalhos são
fundamentais para se pensar a Teoria da Prática. Um deles, “Theory of Anthopology Since
Sixties” (1984) , segundo Guita Grin Debert e Heloisa Buarque de Almeida (2006, p. 428):
“é um texto obrigatório nos cursos de teoria antropológica, na medida em que a partir
de um balanço altamente competente da produção antropológica aponta os dilemas
envolvidos no desafio de buscar a articulação entre estrutura e processos sociais”.

O outro é “Uma atualização da Teoria Prática”, conferência apresentada na 25ª


Reunião Brasileira de Antropologia em Goiânia-GO, em 2006, onde ela assenta questões
importantes que foram desenvolvidas e aperfeiçoadas no que se refere às bases da
Teoria da Prática, como, por exemplo, as relações com o poder, a historicização da
prática e da cultura, bem como a própria redefinição do conceito cultura.

Ortner (1993) verifica que a antropologia passa por processos de refinamentos


teóricos e, a cada década, novas propostas teóricas são formuladas no intuito
de contribuir para superação das “debilidades” da proposta anterior. Nos anos de
1960, há um grande embate entre os “materialistas” e os “idealistas”, caracterizando

3
Edições traduzidas: BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 3.ed. Campinas: Papirus, 2001.
SAHLINS, Marshal David. Metáforas históricas e realidades míticas: estrutura nos primórdios da história do reino
das ilhas Sandwich. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. O livro de A. Giddens não está traduzido para o português.
4
Usaremos a versão em espanhol “La teoria antropológica desde los años sesenta”, Traduzido por:
Rubén Páez. Cuadernos de Antropologia. 1° Edición em Espanhol, 1993. Todas as referências desta obra
foram traduzidas por nós.

130 Os principais problemas antropológicos


U3

fundamentos teóricos marxistas e weberianos, faltando uma visão que pudesse inserir
as vontades e as ações dos agentes na discussão sobre a sociedade. Na década de
1970, a antropologia não parecia ser acerca das pessoas reais, e sim sobre a ação
humana estruturada ou sistematicamente determinada, perspectiva diferente da
década posterior. Assim, Ortner (1993) afirma que a Teoria da Prática dialogava com as
teorias dominantes daquele período, a saber: Interpretativismo simbólico de C. Geertz;
Economia Política Marxista, defendido por Eric Wolf; e o Estruturalismo formulado por
Claude Lévi-Strauss; que embora fossem avanços em relação ao Funcionalismo, ainda
assim, compreendiam que o ator social era ordenado e definido por forças estruturais
(ORTNER, 1993, 2007).

Contudo, é explicita a escolha de uma postura crítica que permeia a Teoria da


Prática. Segundo Ortner (1993, p. 42), um aspecto geral desta teoria “é uma palpável
influência marxista que vem desde os anos setenta”, pois tal proposta ressalta a
assimetria social e as relações de poder, formas de ação que melhor explicitam o
sistema social. Isto porque a antropologia britânica defendia a ideia de que a “estrutura
social” era explicada pelas categorias de “linhagens”, “clãs” etc., categorias que Ortner
afirma serem “formas superficiais [...] mas que de fato mascaram [a estrutura social] ou
ao menos correspondia parcialmente”. (ORTNER, 1993, p. 29).

O marxismo que influenciou a Teoria da Prática é o denominado marxismo


estruturalista da “Nova Esquerda”, defendido por Louis Althusser, E. P. Thompson,
entre outros. O marxismo estruturalista não abre mão das bases teóricas e dos
posicionamentos críticos frente à realidade social desigual. Entretanto, dá atenção
aos fenômenos culturais, ou como ratifica Ortner: “[...] Nova Esquerda tomou os
fatos culturais (estilo de vida, consciência) mais seriamente do que foi feito pela Velha
Esquerda”. (ORTNER, 1993, p. 30). Outro fator importante para a aceitação da teoria
marxista nos estudos antropológicos é sua visão sociológica referente às relações
sociais que enriquecem as análises antropológicas.

Assim, a Teoria da Prática procura estabelecer as relações entre a ação e a estrutura, pois

Devolveu o ator ao processo social sem perder de vista a estrutura


mais ampla que exerce coerção sobre a ação social (mas também
a possibilita). A Teoria da Prática fundou (“grounded”) os processos
culturais – discursos, representações, o que costumávamos chamar
de “sistema de símbolos” – nas relações sociais das pessoas “na vida
concreta” (“on the grounded”). (ORTNER, 2007, p. 21).

No entanto, Ortner chama atenção para o fato de que a Teoria da Prática fundamenta-
se tanto no marxismo quanto na teoria weberiana, afirmando que na década de 1960
era enfatizada a oposição entre Marx e Weber. Porém, entre os teóricos da prática há
“uma interpretação, quase uma fusão” entre esses autores (ORTNER, 1993, p. 43).

Os principais problemas antropológicos 131


U3

Desta forma, a Teoria da Prática se interessa pela ação dos atores e, não somente
isso, mas principalmente como essa ação reproduz a estrutura social e, dialeticamente,
esta pode mudar o sistema. Ou seja, não nega as contradições do sistema social,
mas se propõe a identificar de onde surgem tais contradições e as possibilidades de
mudança. Portanto, a Teoria da Prática não tem por suposto um sistema autônomo
onde as relações sociais acontecem por contingências a-históricas. Fraya Frehse,
ao apresentar o livro “Metáforas Históricas e Realidades Míticas” de M. Sahlins (2008)
afirma que

Esta [obra] abre espaço para uma apreensão muito vívida, muito
“próxima-da-experiência” (para usar um jargão eternizado por
Geertz), justamente como que em câmera lenta, da mudança
cultural historicamente possível – e da mudança histórica
culturalmente possível – em meio à prática cotidiana das pessoas
“no mundo”. E eis que a história cede lugar a histórias; as histórias,
a historicidades (FREHSE, 2008, p. 13).

As clássicas correntes antropológicas se propõem a dicotomizar esses processos


analisando sempre um fenômeno em detrimento do outro como, por exemplo, o
funcionalismo tem a preocupação em estudar as reproduções sociais e as funções dos
papéis sociais e instituições nessa reprodução, enquanto o marxismo procura investigar
as relações de transformação referida às contradições sociais. Todavia, Ortner (1993)
afirma que uma Teoria da Prática dá conta de pensar ambos os processos dentro de
uma mesma explicação, pois é desta forma que se concebe o social, um processo
sistêmico, complexo, porém aberto às decisões e vontade dos atores sociais. Sobre
essa possibilidade, Sahlins argumenta sobre o contato dos ingleses nas ilhas Sandwich
afirmando que

As conexões diferenciais dos havaianos com os europeus dotaram


suas próprias relações entre si de novos conteúdos funcionais.
Isso é transformação estrutural. Os valores adquiridos na prática
retornam à estrutura como novas relações entre categorias dessa
estrutura. (SAHLINS, 2008, p. 98).

Para Sahlins cada grupo cultural age segundo suas perspectivas culturais. Cada
grupo define ações, gestos, valores e interpreta eventos conforme sua estrutura
cultural lhes ensinou, isso significa a “cultura na prática” (SAHLINS, 2008). Contudo,
o contato com outra cultura – o evento – promove modificações inimagináveis do
ponto de vista estrutural. Como exemplo, o caso do contato do capitão Cook com os
havaianos nas ilhas Sandwich e sua identificação como o deus Lono, a médio e longo
prazo eliminou os tabus, modificou a religião e as relações entre chefes e pessoas do

132 Os principais problemas antropológicos


U3

povo. (SAHLINS, 2008).

Embora Ortner teça grandes elogios ao trabalho de Sahlins, ela afirma que essa
mudança estrutural não acontece de forma tão simples como este autor faz pensar
em seu livro. Antes, ela afirma que mudanças estruturais tendem a ser longas e deve-se
pensar em duas a três gerações (ORTNER, 1993). E afirma ainda que

A ironia, embora alguns possam não senti-la como tal, é a seguinte:


As intenções dos atores estão de acordo como lugar central do
modelo, mas para a maioria, a mudança social maior não acontece
como consequência projetada da ação: A Mudança é, em grande
medida, um para-produto, uma consequência indeterminada da
ação, apesar da ação ter sido racional (ORTNER, 1993, p. 60, grifo
da autora).

Em outra citação acerca da percepção histórica nos processos sociais, Ortner


(2007, p. 29) afirma:

Uma teoria da prática é uma teoria da história [...] isso porque a


concretização dos efeitos das práticas culturalmente organizadas é
essencialmente processual e muitas vezes lentíssima: a construção
de sujeitos sociais, muitas vezes desde a infância; as práticas
de vida de jovens e adultos; a articulação dessas práticas com
acontecimentos mais amplos do mundo, que, com frequência, têm
um ritmo muito diferente.

Assim, a transformação do sistema ou estrutura social é o objeto de interesse de


investigação da Teoria da Prática. Essa percepção pressupõe que os atores sociais,
pessoas que estão na alta hierarquia, como “pessoas do povo” (SAHLINS, 2008),
fazem o mundo. E como ressalta Ortner: “[...] também significava que ele [o mundo]
poderia ser desfeito e refeito”, portanto, “trata-se de uma teoria geral da produção de
sujeitos sociais por meio da prática no mundo e da produção do próprio mundo por
intermédio da prática”. (ORTNER, 2007, p. 38).

Essa visão acerca da produção do mundo social tem implicações diretas


na compreensão do conceito de cultura. Se a cultura tem poder coercitivo, como
afirmavam as teorias clássicas, a compreensão da liberdade de ação dos atores torna-
se prejudicada, pois a cultura modela o sujeito, dando-lhe forma, sentido e significado.
Estariam, portanto, presos a um padrão de comportamento.

Segundo Ortner (2007), a Teoria da Prática não desenvolvera um conceito de


cultura em suas primeiras formulações. Bourdieu e Giddens não apresentaram uma

Os principais problemas antropológicos 133


U3

conceituação específica, mas o conceito de cultura permeava de forma implícita,


semelhanças com formulação clássica, como podemos perceber no conceito de
“habitus” de Bourdieu, que significa uma “estrutura profundamente mergulhada nas
pessoas, que plasma de tal maneira sua propensão a agir que elas acabam amoldando-
se sem que ninguém as faça agir assim”. (ORTNER, 2007, p. 24).

Contudo, uma Teoria da Prática não ignora o poder coercitivo que a cultura
desenvolve sobre os indivíduos, sendo necessário compreender que esta coerção
não é totalitária. A cultura também favorece a manifestação de ações e, por sua
vez, transformação, pois pensar em mudança estrutural é pensar em transformação
cultural. Desta forma, cultura, afirma Ortner, não é simples classificação de grupos
em formas estereotipadas, mas como “fazendo parte de fluxos culturais globais e da
ecumene cultura global”. (ORTNER, 2007, p. 33). Desta maneira, considera-se que as
pessoas atuam no mundo com suas subjetividades e sentimentos por meio da cultura
e modificando-a.

Para Sahlins a cultura é uma “estrutura de signos” que dá sentido e significado para
as pessoas agirem, conceito relativamente próximo à compreensão de C. Geertz, que
afirma que: “sem cultura – sistema externo de símbolos e de significados –, as pessoas
não seriam capazes de pensar”. (Apud ORTNER, 2007, p. 36). Entretanto, Sahlins preza
a posição do sujeito que pratica a ação e faz história, enquanto Geertz, a cultura em si.
Fraya Frehse (2008, p. 11) exemplifica a posição de Sahlins da seguinte maneira:

Metáforas históricas e realidades míticas busca refletir sobre o que


acontece com essa estrutura de signos que é a cultura em meio
ao fato inelutável de que as pessoas que deles lançam mão vivem
“no mundo”. Este é movido por conjunturas que acarretam ações
sociais, que, por sua vez, inevitavelmente colocam as relações
entre esses signos em xeque. Em outras palavras: se a cultura é
mediação crucial da prática, a simples existência da prática é, em
contrapartida, mediação de mudanças na cultura.

Sahlins compreende que essa estrutura de signos fornece elementos para interpretar
e agir social e individualmente. A prática dessa estrutura permite ressignificação, e
assim, mudança estrutural, portanto, uma reprodução que transforma. Nas palavras
do próprio Sahlins (2008, p. 125):

Assim, em geral, as circunstâncias mundanas da ação humana


não obrigatoriamente se conformam às categorias por meio das
quais certas pessoas as percebem. No evento, as circunstâncias
não se conformam, as categorias recebidas são potencialmente
reveladas na prática, redefinidas funcionalmente. De acordo com

134 Os principais problemas antropológicos


U3

o lugar das categorias recebidas no interior do sistema cultural tal


como constituído, e conforme os interesses afetados, o próprio
sistema é mais ou menos alterado. No extremo, o que começa
como reprodução termina como transformação.

A categoria “evento” para Sahlins é muito cara, pois é por meio desta que a estrutura
possui a brecha para a transformação. Enquanto que para Victor Turner, a brecha se
dava pelos processos rituais, no momento em que ele denominou de “Liminaridade”
(TURNER, 1974). “Todavia, a proposta de Turner ainda estava muito referida ao
funcionalismo, já que as mudanças eram absorvidas pela estrutura e somente em
outro momento de Liminaridade era possível tal mudança, as primeiras eram fixadas e
institucionalizadas”. (TURNER, 1974, p. 131). Para Sahlins, a mudança estrutural acontece
mediante o evento, portanto, uma relação íntima entre a história e a antropologia, pois
Sahlins define o “evento” como sendo “a relação entre o acontecimento e a estrutura”.
(SAHLINS, 1990, p. 15).

Marshall Sahlins critica o estruturalismo lévi-straussiano por este não dar valor à
história, antes sua teoria está fundamentada em questões invariantes das sociedades.
Preza, portanto, o sistema ao invés do evento, a sincronia ao invés da diacronia,
excluindo assim a ação individual (SAHLINS, 2008). Para o estruturalismo, a estrutura
social é caracterizada pelo “invariante cultural”, uma relação de signos binários
fundamentada na teoria de F. Saussure. Enquanto que para Sahlins a estrutura social é
a “cultura-tal-como-constituída”. (op. cit. p. 132).

O objeto da antropologia histórica de Sahlins é mostrar que a história é organizada


por estruturas de significação. Desta forma, através da análise do desenvolvimento
processual da história, compreendem-se as práticas sociais, por sua vez, se
reconhece a estrutura social e as devidas modificações nas relações sociais e signos,
modificações, portanto, culturais. Segundo Sahlins (1008, p. 28), “O grande desafio
para uma antropologia histórica é não apenas saber como os eventos são ordenados
pela cultura, mas como, nesse processo, a cultura é reordenada. Como a reprodução
de estruturas se torna a sua transformação?”

E para compreender a mudanças estruturais, Sahlins cria o conceito de “estrutura


da conjuntura”, que significa a relação entre a estrutura e o evento (SAHLINS, 1990, p.
15). Este conceito contribui para pensar conjuntura social e não o invariável sistêmico,
dessa forma, a “estrutura da conjuntura” está relacionada à prática em meio a “cultura-
tal-como-constituída”. Em Ilhas de História (1990), Sahlins afirma que “estrutura da
conjuntura” “[...] é a realização da prática das categorias culturais em um contexto
histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes
históricos, o que inclui a microssociologia de sua integração”. (op.cit.).

Para o autor não existe um determinismo histórico, mas sim, uma forte expressão

Os principais problemas antropológicos 135


U3

cultural, contudo, relativa à conjuntura e aos interesses dos atores. Isso porque a
cultura define as pessoas e objetos. Assim a ação e interpretação primária dos atores
estão referidas conforme lhes foram impressas pela ordem cultural, são valores
contextuais. Porém Sahlins salvaguarda a questão da mudança e afirma que “esses
valores contextuais, quando diferentes das definições culturalmente pressupostas, têm
então a capacidade de atuar sobre os valores convencionais”. (SAHLINS, 2008, p. 72),
promovendo modificações categoriais sem precedentes.

Uma questão interessante em Marshall Sahlins é sua compreensão sobre grupos


e até mesmo estruturas distintas em uma mesma sociedade, isso é identificável em
Metáforas históricas e realidades míticas, em que autor constantemente apresenta
as compreensões e práticas das mulheres, homens do povo, sacerdotes e chefes,
mostrando as submissões e conflitos internos. Portanto, podemos pensar em
estruturas ao invés de uma única estrutura social, e as controvérsias entre essas
estruturas conjunturais ocasionam modificações sistêmicas e culturais. Como uma
forma de resumo teórico, Sahlins (2008, p. 134) afirma esse esclarecedor parágrafo:

A dialética da história, então, é completamente estrutural.


Impulsionando por desconformidades entre valores
convencionais e valores intencionais, entre significados
intersubjetivos e interesses subjetivos, entre sentido simbólico
e referência simbólica, o processo histórico se desdobra num
movimento contínuo e recíproco entre a prática da estrutura e a
estrutura da prática.

E com isso, a Teoria da Prática analisa as transformações culturais associadas


ao processo histórico em que a prática dos agentes sociais pode interferir nas
estruturas sociais, modificando, assim, a cultura e propondo novas práticas aceitas
pelo coletivo social.

1. O Relativismo cultural é uma forma de encarar a diversidade,


sem impor ao grupo social observado valores e normas que
lhes sejam alheios. Com base no conceito antropológico do
relativismo, avalie as seguintes afirmações:
I – O relativismo foi uma revolução política no enfrentamento do
racismo e a outros tipos de preconceito.

136 Os principais problemas antropológicos


U3

II – O relativismo é o mecanismo principal das classificações


evolucionistas, enquanto o etnocentrismo é o motor de um
preconceituoso.
III – Podemos considerar o relativismo uma inversão do
evolucionismo: se este escalona as diferenças a partir de valores
específicos das sociedades ocidentais, o relativismo evita qualquer
tipo de escala, analisando as diferenças em seus próprios termos.
São corretas as seguintes afirmações:
a) I, II e III.
b) III, apenas.
c) II, apenas.
d) I e III.

2. A antropologia define o etnocentrismo como uma “atitude


emocionalmente condicionada que leva a considerar e julgar
sociedades culturalmente diversas com critérios fornecidos
pela própria cultura. Assim, compreende-se a tendência para
menosprezar ou odiar culturas cujos padrões se afastam ou
divergem dos da cultura do observador que exterioriza a atitude
etnocêntrica. [...] Preconceito racial, nacionalismo, preconceito de
classe ou de profissão, intolerância religiosa são algumas formas
de etnocentrismo”. (WILLEMS, E. Dicionário de Sociologia. Porto
Alegre: Editora Globo, 1970. p. 125.)
Assinale a alternativa cujo discurso revele uma atitude etnocêntrica
de acordo com o texto:

a) A cultura indígena possui um acúmulo de saberes que podem


influenciar as formas de conhecimentos ocidentais.
b) A diversidade cultural existente em nosso país pode conviver de
forma democrática.
c) Os critérios de julgamento das culturas diferentes devem primar
pela tolerância.
d) A existência de culturas primitivas relaciona-se à presença, em
sua formação, de etnias de tipo inferior.
e) A sociedade ocidental não pode ser considerada como superior
a outras sociedades, como as sociedades indígenas, por exemplo.

Os principais problemas antropológicos 137


U3

Nesta seção, você teve contato com um debate bastante profícuo


no campo da antropologia, isto é, um debate rico de discussões
e infindável devido à própria característica desta ciência.
Primeiramente vimos o problema do método antropológico
como um fator de constituição da ciência da cultura, e como
esta problemática marcou seu desenvolvimento. Vimos também,
que a diversidade da experiência humana é o objeto principal da
antropologia, assim, o “outro” diferente de mim é objeto não de
exclusão, mas de compreensão e conhecimento a partir de suas
próprias experiências, questão fundamental para a superação
do olhar etnocêntrico que está na base de todo preconceito e
discriminação. E por último, vimos que o debate sobre a relação
entre a estrutura social e a ação dos atores é um campo de
discussão bastante interessante, pois retoma questões da base
antropológica em que se une o desenvolvimento histórico, os
conflitos sociais e as mudanças culturais numa determinada
sociedade. Portanto, quando pensamos em sociedades e culturas,
todas essas esferas devem ser consideradas, pois a realidade
cotidiana é impregnada de todas estas questões, mas que não
tomamos consciência de tudo ao mesmo tempo.

Para aprofundar nestas discussões e, também, ter acesso a outros


debates importantes e atuais do campo da antropologia sugiro que
acesse a Biblioteca da Associação Brasileira de Antropologia (ABA),
disponível em: <http://www.portal.abant.org.br/> e você terá acesso a
artigos de revistas especializadas e de congressos da própria ABA, além
de outros materiais. Outra revista científica de excelente qualidade é
a Revista Mana, do Museu Nacional, neste link <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_issues&pid=0104-9313&lng=pt&nrm=iso> você
terá acesso a todos os números da revista. Boa pesquisa!

138 Os principais problemas antropológicos


U3

1. Antropólogos contemporâneos admitem a necessidade


de se ampliar a afirmação dos direitos humanos universais
para todos os povos, porém respeitando-se suas
especificidades socioculturais. A partir desse pressuposto,
assinale a alternativa correta:
a) Faz-se necessário combater os rituais de povos que
insistem em preservar costumes exóticos (estranhos), pois
estes ferem os direitos humanos universais.
b) Nenhum povo ou sociedade deverá, no futuro, preservar
crenças e práticas que não estejam definidas na forma de
lei, a fim de que possam ser submetidas a julgamento em
caso de prejuízos ou danos.
c) Compete a todas as sociedades unirem-se em torno de uma
cultura universal, única, capaz de assegurar uma mesma visão
de mundo e um mesmo estilo de vida a todos os indivíduos.
d) É preciso conhecer as lógicas de pensamento de
determinada cultura e o significados de suas práticas para
a população observada, analisar a violência e o inaceitável
dentro dos parâmetros da própria cultura, e não dos
parâmetros ocidentais.
e) O debate em torno dos direitos universais do homem vem
na contramão do relativismo cultural, uma vez que impede
os povos de preservarem suas especificidades socioculturais.

2. Essa imagem expressa qual conceito antropológico


trabalhado na contemporaneidade:

Os principais problemas antropológicos 139


U3

a) Relativismo.
b) Etnocentrismo.
c) Assimetrismo.
d) Perspectivismo.

3. Assinale falso ou verdadeiro para as seguintes proposições:


( ) Colocar no mesmo nível os conceitos nativos e
antropológicos permitiu superar uma desigualdade implícita
no ato do pesquisador interpretar o conhecimento nativo
nos termos da cultura ocidental.
( ) A dicotomia natureza e cultura não foi problematizada, uma
vez que a separação radical entre elas é um fato inconteste.
( ) Para Lévi-Strauss a ultrapassagem da natureza pela cultura
se deve à proibição do incesto, proibição regulamentada de
modo variado, de acordo com cada cultura.
Assinale a alternativa correta:
a) V-V-V.
b) F-V-F.
c) V-F-V.
d) F-F-F.

4. Avalie as seguintes afirmativas:


I – Lévi-Strauss concede à oposição entre o natural e o cultural
um valor puramente metodológico, um instrumento de análise,
e não como um fato passível de reconstituição histórica.
II – A relação entre natureza e cultura na antropologia
abre a possibilidade da investigação de formas diferentes
de construir esta relação, abolindo a necessidade de uma
natureza única, dada e inata versus culturas construídas
pelo esforço humano. A relação entre natureza e cultura
depende da perspectiva de determina cultura.
III – Ao desestabilizar a dicotomia natureza/cultura, inaugura-

140 Os principais problemas antropológicos


U3

se a possibilidade de que a relação possa ser tomada nas


suas singularidades, a partir das evidências encontradas no
trabalho etnográfico com diferentes sociedades.

Estão corretas as seguintes afirmações:


a) I e II.
b) III, apenas.
c) II e III.
d) I, II e III.

Os principais problemas antropológicos 141


U3

142 Os principais problemas antropológicos


U3

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Os principais problemas antropológicos 143


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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A
inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify,
2002.

144 Os principais problemas antropológicos


Unidade 4

O SER HUMANO E SUAS


MANIFESTAÇÕES

Maria Eliza Corrêa Pacheco

Objetivos de aprendizagem:

Conhecer algumas das manifestações culturais, bem como, a importância


nos domínios simbólicos das complexas relações na vida cotidiana.

Desenvolver a curiosidade intelectual, o espírito crítico e a consciência social.

Reconhecer e respeitar a diferença e a autonomia, contribuindo para a


reflexão sobre a antropologia e seus diálogos contemporâneos.

Seção 1 | O ser humano e suas manifestações significativas


Apresentam-se algumas das reflexões da antropologia a partir da década
de 70, sobre a construção da ideia da diversidade cultural seus problemas e
formas de manifestações.

Seção 2 | Antropologia: pós-colonialismo e pós-


modernidade
Apresentam-se estudos sobre a globalização, comportamento simbólico e
reflexões sobre as mudanças da cultura na contemporaneidade.

Seção 3 | Manifestações culturais contemporêneas –


etnicidade
Apresentam-se reflexões sobre as manifestações culturais e a construção
da categoria de etnicidade a partir das diferentes percepções sociais.
U4

146 O ser humano e suas manifestações


U4

Introdução à unidade

A proposta da Unidade 4 do livro de Antropologia é iniciá-lo na jornada das


principais tendências de análise do pensamento sobre as diversidades culturais e,
também, propiciar um breve panorama das reflexões e pesquisas da antropologia
contemporânea.

Essa jornada, nos levará a pistas sobre a compreensão dos estudos antropológicos
a partir da década de 70, de maneira reflexiva e criativa, possibilitando o encontro do
eu com o outro em nossouniverso sociocultural, que é a contemporaneidade.

Nesse sentido, colocamos como proposta de estudo a você, universitário e


universitária, uma viagem sobre as importantes produções da cultura, permitindo
o desenvolvimento das capacidades de conhecer o outro, o estranho, de forma
flexível e respeitosa.

Assim, a partir da necessidade de compreensão das diferentes formas e


manifestações culturais dos sujeitos, a antropologia nos levaráa leituras etnográficas
que abordam,entre outras coisas, a emergência das categorias de gênero, raça e
etnicidade, em suas formas de manifestações em nossa cultura.

Esses temas da antropologia urbana ganham destaque e dimensões políticas, visto


o aumento das discriminações e violências contra mulheres, homossexuais e negros.

Enfim, sabendo que o conceito de cultura envolve construções e reconstruções


da linguagem, dos hábitos, dos costumes etc., procuramos, nessa unidade, desvendar
partes desse universo, muitas vezes, inteligível aos olhos de quem o vê.

O ser humano e suas manifestações 147


U4

148 O ser humano e suas manifestações


U4

Seção 1

O ser humano e suas manifestações significativas


Caros alunos e alunas! Iniciaremos o estudo dessa unidade com a seguinte
preocupação e problematização: “o que torna humano os seres humanos?” Como os
seres humanos manifestam seus hábitos, comportamentos, aptidões, práticas religiosas,
lazer, padrões de condutas,artes e tecnologias? Eis o início da nossa jornada, achar as
pistas que nos levem à compreensão dos estudos antropológicos de forma reflexiva e
criativa, sobre o nosso próprio universo sociocultural, isto é, a contemporaneidade.

1.1 Processos e manifestações culturais

Em face desse escopo e a compreensão da cultura como um fazer coletivo,


dinâmico e de múltiplas faces, propomos a ideia e o entendimento de que todas as
formas de manifestação da cultura estão arraigadas em lugares e tempos e fazem
parte das relações entre os sujeitos de um determinado contexto socioeconômico
político e cultural, logo, os processos e as manifestações culturaiscarregam inúmeros
significados e significantes que exigem do estudioso da cultura ou o pesquisador
do tema, um cuidado especial, isto é “compreender melhor o outro ajuda não só
a compreender melhor a nós mesmos, mas também a revelar aspectos obscuros,
ocultos, silenciados de nossas próprias vidas e da cultura na qual estamos inseridos”
(GOLDENBERG, 1997. p. 30-31). A professora de antropologia cultural da UFRJ, Miriam
Goldenberg, iniciou seus estudos sobre a construção social da identidade feminina no
Brasil em 1988, ao investigar “Mulheres& Militantes”, escreve na Folha de São Paulo,
é autora dos livros: "Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade" e
"Homem não Chora, Mulher não ri".

Pois bem, vocês já imaginaram as dificuldades e as armadilhas que se colocaram à


antropóloga no momento de suas escutas e observações? Além do mais, compreender
o outro é adentrarmos muitas vezes em nós mesmos, nas nossas vidas, por exemplo.
Miriam Goldenberg, em sua trajetória ao estudar a atuação feminina e seus contextos,
mergulha nos inúmeros significados do gênero feminino, é uma mulher que retrata a
história e as lutas de outras mulheres.

Para melhor entendermos esse processo, vamos retomar algumas ideias de um dos

O ser humano e suas manifestações 149


U4

mais renomados autores antropólogos do século XX, Claude Lévi-Strauss (1908-2009),


cujas obras influenciaram e influenciam o pensamento sociocultural contemporâneo
sobre parentesco e os mitos.

Para Cláude Lévi-Strauss, a antropologia busca o significado da sociedade, deste


“outro” e a sua simbolização, procurando entender a construção do pensamento e
sua relação com o real chama atenção para toda forma de significação que é dada
pelo caráter relacional do pensamento. Destarte não podemos nos esquecer que para
abarcarmos o mundo em que estamos inseridos, se faz necessário dar voz aos diversos
significantes em relação aos significados sobre os quais assentam nossas observações.

Lévi-Strauss e a significação do real


LÉVI-STRAUSS, C. "A obra de Marcel Mauss", in: MAUSS, M., Sociologia e
Antropologia, São Paulo, EPU, EDUSP. 1974.

Em conformidade ao método estruturalista e às teorias da linguística, Claude Lévi-


Strauss fez um mergulho nas complexas temáticas; mitos, linguagem do parentesco
e da alimentação, leis universais de construção das sociedades, papel da arte e
a linguagem, entre outras. Pensar as diversas populações, do sul até o norte das
Américas, revelando o pensamento ameríndio.

Claude Lévi-Strauss não procurou “reificar” as experiências das culturas não


letradas, quer dizer, não buscou “coisificar” o pensamento ameríndio, que resistiu
à ocidentalização e, portanto, problematiza os conhecimentos que se fazem
hegemônicos da cultura, porque a essência desse método,está na forma em que o
pensamento humano se organiza, ou seja, nos “complexos de atitudes”, conforme
denomina o autor, na elaboração teórica que é capaz de dar sentido e significado
aos dados da realidade. Em síntese, o autor defende a tese de que a cultura nasce na
convenção de normas e na formulação simbólica.

Laraia (2001, p. 35) ao citar o antropólogo norte-americano Leslie White, apresenta


a tese de que somente nos tornamos humanos quando realizamos a passagem do
estado animal e o nosso cérebro foi capaz de gerar símbolos, vejamos:

Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos.


Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais antropoides em
homens e fê-los humanos. Todas as civilizações se espalharam
e perpetuaram somente pelo uso de símbolos. ...Toda cultura
depende de símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização

150 O ser humano e suas manifestações


U4

que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua


perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o homem seria
apenas animal, não um ser humano... O comportamento humano é
o comportamento simbólico. Uma criança do gênero Homo torna-
se humana somente quando é introduzida e participa da ordem de
fenômenos superorgânicos que é a cultura. E a chave deste mundo,
e o meio de participação nele, é o símbolo.

Vamos tentar exemplificar a citação, imaginem vocês os diferentes significados da


palavra “Mãe”. Essa palavra coloca em destaque uma série de elementos ligados à estrutura
de parentesco, tais como: sexo, idade, poder, atribuições, deveres e relações com outros
membros do grupo. Por conseguinte, observamos que toda palavra não é apenas uma
constituição ou uma nomenclatura, mas representa formas de pensar a realidade e
traz referências de situações reais que envolvem compromissos, comportamentos e
sentimentos. Voltemos à palavra “Mãe”, além de carregar obrigações comportamentais,
ela implica sentimentos de respeito, familiaridade, dever, direito, afeição etc. Concluindo,
para Claude Lévi-Strauss (1970), esse conjunto de comportamentos, obrigações e
sentimentos recebe o nome de “complexos de atitude”.

Quanto à importância da diversidade humana para o autor do método estruturalista,


ele reconhece a existência de diferentes sociedades, das tradicionais até as complexas,
no entanto, chamava atenção para as similaridades humanas de pensamento, ou seja,
as diferenças entre as sociedades se dão no campo da história e sua relação com o
meio natural e social.

Então, meus caros alunos e alunas, vocês já pararam para


pensar se fazem parte ou não da história? Quando falamos da
história estamos falando, da nossa para entender o “outro”?
Você também constrói a história da humanidade?

É certo, que a forma que entendemos a nossa história e a história da nossa sociedade,
dependem da ideia e dos conceitos que fazemos sobre o que é história, sobre o
tempo e os processos que entrelaçam os acontecimentos. Laraia (2001), aprofunda
um pouco mais a complexa tarefa do antropólogo no processo de relativização das
suas observações sobre o “outro”. Reforçando essa ideia, Laraia (2001) apresenta as
experiências do antropólogo Roberto da Matta.

Veja esse exemplo, para entender a diferença de história, fornecido por Laraia
(2001), no qual conta a experiência do antropólogo Roberto da Matta, quando
esse viveu com os índios Apinayés, com o intuito de estudá-los. Para esses índios, a

O ser humano e suas manifestações 151


U4

continuidade do seu mundo não é motivada pelo tempo, como causa e efeito. Para
eles há algo que funcionaria como um espelho, existindo dois “espelhos”: um no céu e
outro na terra. Assim, primeiro tudo aconteceu no céu, para apenas depois acontecer
na terra. É como se houvesse dois momentos fixos. O tempo não é, tal como para
nós, cronológico, mas para um Apinayé, o tempo é sentido, pensado e vivido.
Figura 4.1 | Índios

Fonte: Disponível em: <http://ulbra-to.br/encena/galeria/2014/03/09/Acao-nos-Povos-Apinajes>. Acesso em: 20 mar. 2015.

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL.


“Povo Apinajé, apresentando um relato bastante pessimista da situação
fundiária de então no território indígena em Tocantins Disponível em: <http://
pib.socioambiental.org/pt/povo/apinaye/62>.

Desta maneira, para compreendermos o significado de um símbolo se faz necessário


o conhecimento da cultura que o criou. Apesar de para nós esse distanciamento da
realidade seja extremamente complexo e estranho, não podemos perder de vista
que o objeto de estudo da antropologia, isto é o “outro” é sempre um ente coletivo,
representante de um grupo, classe social, ou uma tribo.

Lévi-Strauss (1970) anuncia que um dos preceitosque a antropologia deixa ao ser


humano ocidental é a ideia de humildade, ou seja, chama atenção das sociedades
ocidentais sobre as inúmeras lições deixadas pelas sociedades simples ou tradicionais
que conseguiram manter e estabelecer certo equilíbrio entre suas necessidades
humanas e a preservação dos recursos naturais.

152 O ser humano e suas manifestações


U4

[...] a atenção e o respeito demonstrado pelo antropólogo às


diferenças entre as culturas como àquelas próprias a cada uma
constituem o essencial de seu procedimento. Assim, o antropólogo
não procura elaborar uma lista de receitas em que cada sociedade
irá se servir segundo seu estado de espírito toda vez que perceber
em seu seio uma imperfeição ou uma lacuna. As fórmulas próprias
a cada sociedade não são transponíveis a nenhuma outra. (LÉVI-
STRAUSS, 2012, p. 37).

Desta maneira, a antropologia estruturalista de Claude Lévi-Strauss, traz como


foco de seus estudos a relação entre natureza e cultura a partir do “Totemismo”,
significa dizer, um estudo sobre a histeria (comportamentos tidos como irracionais),
isto é, especulações de certas teorias antropológicas que tinham como objetivo
evocar a natureza, procurando diferenciar as culturas civilizadas das ditas “primitivas”
salvaguardando a racionalidade e a visão de mundo do ocidente.

Enfatiza Lévi-Strauss (apud LARAIA, 2001, p. 92) “[...] o sábio nunca dialoga com a
natureza pura, senão com um determinado estado de relação entre a natureza e a
cultura, definida por um período da história em que vive a civilização que é a sua e os
meios materiais de que dispõe”.

Vamos explicar melhor, o autor relaciona o Totemismo com a ideia de associação


mental sobre algo que existe e o significado que passamos a dar a eles socialmente, isto
é, o Totemismo é uma classificação da natureza a partir da cultura. Será que nos dias de
hoje, poderíamos dizer que o totemismo éa beleza física em primeiro lugar? Ou a internet?

Segundo Santos (2005), ao pensarmos em totemismo para nossa sociedade


estamos nos referindo a objetos e, portanto, não humanos em objetos culturais, tais
como o computador, o celular (não humano) simboliza o desejo de conforto de
integrado (sentido cultural). Desta forma, esses objetos ganham significados humanos.
Assim, poderíamos dizer que a publicidade, a propaganda construiu totens, com a
beleza física, os celulares, os computadores.

Tecnologia, o Novo Totemismo


Assista ao vídeo do Instituto de Ensino Avançados da Universidade de
São Paulo sobre a ideia do novo totemismo que coloca a tecnologia
como o caráter definidor da humanidade. Todas as definições do
que é ser humano exigem ajustes e atualização, limites e fronteiras
em extinção ou em diluição Disponível em: <http://www.iea.usp.br/
midiateca/video/videos-2013/tecnologia-o-novo-totemismo>.

O ser humano e suas manifestações 153


U4

Nas antigas sociedades tribais, o totemismo era observado nos ritos de passagem. Ou
seja, nas tribos do Xingu, “o menino passa à categoria de guerreiro ou caçador depois de
determinados rituais, um deles consistindo em uma prova de coragem ao inserir a mão
em uma caixa de abelhas”. (SANTOS, 2005, p. 56). Portanto, transpondo a ideia de ritual
de passagem para nossa cultura é a aprovação no vestibular, nesse momento iniciamos
vários outros rituais e teremos uma nova posição na família e na sociedade.

O que você pensa sobre as pessoas que se apresentam


diferentes de você? Quais foram os ritos de passagem que
ficaram marcados em sua vida? Quais são os seus Totens?

Quando pensamos em nossa sociedade e procuramos compreender sua dinâmica


e complexidade, a primeira questão que nos aparece é “o que torna humano os seres
humanos”, como precisar o significado da palavra humanidade? Sendo este um tema
característico da antropologia cultural, exigindo um exercício dos seus praticantes
quando etnografam ou teorizam.

Vamos recordar: a etnografia ou a ciência das etnias é entendida como uma forma
densa de descrever uma cultura, podendo ser a cultura de um grupo vindo de uma terra
“exótica’ ou do grupo próximo, por exemplo, um grupo de estudantes de sociologia
que estuda no seu bairro. Espera-se que a tarefa do investigador etnográfico traga a
descrição da maneira de viver do ponto de vista dos nativos da cultura estudada.

Franz Boas (1858-1942) foi um dos primeiros antropólogos alemães a pensar a


cultura como Kult, isso é, “espírito do povo”, faz crítica às ideias evolucionistas, pois,
entende a cultura como a totalidade integrada das práticas, hábitos, técnicas, relações
e pensamentos. O autor traz para os estudos antropológicos do fim do século XIX e até
praticamente metade do século XX a ideia do relativismo cultural que significa dizer,
que cada cultura deve ser avaliada ou entendida a partir dos seus próprios referenciais
ou ainda dos seus próprios termos.

Vamos recordar, por relativismo cultural entende-se a forma que o observador,


observa a diversidade dos povos, ou aqueles que são diferentes, parte da concepção
que devemos compreender o que cada cultura produz. A observação se faz sem
impor valores e medidas próprias da cultura do outro, contudo, esta forma de
pensar, pode também, trazer inquietações ao observador, na medida em que alguns
costumes podem parecer inaceitáveis a quem observa, por exemplo,mutilações
genitais das meninas do Quênia ou em alguns países islâmicos. Relativizar tornou-
se um movimento contrário ao evolucionismo que buscava classificar e escalonar as
diferenças entre os povos a partir do olhar das sociedades ocidentais, mas, também

154 O ser humano e suas manifestações


U4

se tornou uma teoria que sofre muitas críticas, por conta dos impasses estabelecidos
pelas próprias diferenças culturais.

Figura 4.2 | Mutilação genital feminina

Fonte: Disponível em: <https://secure.avaaz.org/po/petition/Mutilacao_genital_feminina/?pv=6>. Acesso em: 20 mar. 2015.

Meninas choram em cerimônia de mutilação genital no Quênia.


A notícia apresenta imagens feitas por um fotógrafo em 14 de
novembro de 2014, que acompanhou o ritual das meninas da tribo
Pokot que participou do ritual de mutilação genital de um vilarejo rural
em Baringo, no Quênia.
Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/africa/meninas-
choram-em-cerimonia-de-mutilacao-genital-no-quenia,8a06143ba2f
a9410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html.

Observem que a partir do século XX, as teorias que embasaram todo o pensar
antropológico do século XIX, passam a ser consideradas etnocêntricas com bases em
critérios válidos somente para as sociedades que a criaram. Por exemplo, quando julgamos
que as sociedades desenvolvidas apresentam forte desenvolvimento tecnológico,
é porque partimos do desenvolvimento da nossa sociedade e estabelecemos como
padrão o nosso modelo. Desta maneira, os critérios escolhidos para julgar um modelo
societário são aqueles critérios que nos valorizamos e que são valorizados por nossa
cultura. Essa forma de compreensão nos torna etnocêntricos.

Portanto, o etnocentrismo é a inversão do relativismo cultural que busca entender


as manifestações culturais a partir do sentido para o outro. É certo, que o relativismo

O ser humano e suas manifestações 155


U4

cultural foi importante à revolução política do século XX e ao enfrentamento de grandes


lutas socioculturais, tais como o racismo, o feminismo e outros tipos de preconceitos.

Figura 4.3 | Cultura

Fonte: Disponível em: <http://entrementes12c.blogspot.com.br/2013/03/a-cultura.html>. Acesso em: 20 mar. 2015.

Contudo, alguns comportamentos tornam-se muito diferentes aos olhos do


observador, tal como o exemplo narrado no Jornal da Folha de São Paulo, em 2003,
sob a manchete “Indiana de 9 anos casa com cão”, é narrado na notícia que em uma
cerimônia acompanhada por mais de cem convidados, foi realizado numa vila no
Estado de Bengala Ocidental (Índia) como parte de um grande ritual destinado a evitar
maus agouros, o casamento da menina. Esse casamento se deu com a intenção de se
quebrar o “feitiço maléfico” de acordo com sua crença, porque seus dentes nasceram
primeiro na gengiva superior.

Leia a reportagem da folha de São Paulo no dia, 20 de


jun.2003, primeiro caderno, p.A-10, sobre a “Indiana de 9
anos se casa com cão”. Como você julgaria ou entenderia
essa atitude do pai da menina? Disponível em:
<http://acervo.folha.com.br/fsp/2003/06/20/2>.

É certo, que o comportamento do grupo social a qual a menina pertence deverá ser
compreendida a partir do conhecimento de suas crenças, hábitos e os costumes, a que
eles pertencem.

Por isso, reconhecer as complexidades, os sentidos e os significados no interior

156 O ser humano e suas manifestações


U4

de cada sociedade, de cada cultura nacional, fez com que os antropólogos críticos
retomassem os estudos das diversidades culturais estabelecidas pelas categorias: classe
social, etnia, nacionalidade, sexualidade, regionalidade, idioma, raça, deficiências, religião
e gênero.

Assim, as culturas nacionais vão constituindo as principais formas de reconhecimento


da nossa identidade. Conforme Hall (2005, p. 47).

[...] as identidades nacionais não são coisas com as quais nós


nascemos, mas são formuladas e transformadas no interior da
representação. Nós só sabemos o que significa ser ‘inglês’ devido ao
modo como a ‘inglesidade’ (Englishness) veio a ser representada –
como um conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa.

Sendo ambas interconectadas, contudo, se realizam em níveis diferentes. Vamos


explicar melhor cada uma dessas dimensões.
Figura 4.4 | Dimensões

Fonte: Disponível em: <http://identidadeculturalfslf.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 mar. 2015.

A dimensão pessoal implica a construção de uma identidade de grupo, ou seja,


étnico, social, profissional,é estabelecida pelas diferentes formas de nos relacionar
com o outro. Desta maneira, a identidade do grupo representa as formas de interações
que mantemos com os demais sujeitos de nossa sociedade. Em síntese, apresenta as
diferenças entre o eu o os outros na interação social.

Para Brandão (1986, p. 16), citando Marcel Mauss sobre o estudo da origem da ideia
de pessoa:

1) como uma categoria de nominação e diferenciação de outros


seres do mundo, a ideia de pessoa não é inata ao espírito humano,
ela é uma produção social; 2)como outras construções simbólicas
da cultura dos povos, a ideia de pessoa tem uma história própria,

O ser humano e suas manifestações 157


U4

dentro da história social da humanidade; 3) em uma mesma época


essa ideia difere de uma sociedade para a outra, podendo não existir
sequer em algumas.

A dimensão socialé estabelecida a partir da identidade pessoal em relação à noção


de grupo, falando de outra forma, significa dizer que é uma identidade que passa
pelo reconhecimento das semelhanças pelos indivíduos servindo para determinar o
pertencimento ao grupo e essa relação entre a identidade pessoal e a noção de grupo
é fundamental para o sentimento de pertença, assumindo um caráter importantíssimo
para o entendimento do eu e os outros no processo das relações sociais.

Leia o artigo: Revista Tempo Social. Vol. 24 n. 1 São Paulo, 2012, sobre:
O social entre o céu e o inferno: a antropologia filosófica de Pierre Bourdieu.
O artigo retrata a condição humana em que o reconhecimento ("capital
simbólico") aparece como meta existencial fundamental pela qual os indivíduos
buscam dar sentido às suas vidas e como fonte da infindável competição
simbólica que mantém em movimento a vida social.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0103-20702012000100012>.

Por exemplo, vamos voltar a nossa história, procurando entender como se deu
a construção da identidade nas relações entre índios e brancos. É, fato que desde o
momento em que essas realidades socioculturais se encontraram (índios e brancos)
as relações foram alicerçadas em estranhamentos que colocaram em segundo
plano as identidades dos povos pré- colombianos (índios), iniciando-se o processo de
sobreposição dos modelos europeus aos dos índios, estabelecendo a desconstrução de
seus modos de vida. Inúmeros são os relatos antropológicos sobre o período colonial
brasileiro. Atualmente, de acordo com estudos antropológicos sobre a etnia indígena,
um dos principais problemas apresentados é a aproximação dessas populações com a
estrutura do sistema capitalista.

Marshal Shalins (1990) afirma que a população indígena vem se utilizando de “coisas”
(tecnologias, formas de produção etc.) da sociedade ocidental, entretanto, utilizam-se
destas “coisas” conforme suas próprias regras e relações na comunidade.

Será que ao “emprestarmos” práticas, hábitos e ideias de outras


nações e outros lugares do mundo, nós deixamos de ser brasileiros?

158 O ser humano e suas manifestações


U4

Se tentarmos compreender nossa história, observaremos conforme nos diz Shalins


(1990, p. 180), que “a cultura funciona como uma síntese de estabilidade e mudança, de
passado e presente, de diacronia e sincronia”, portanto,“toda mudança prática também
é uma reprodução cultural”. Conclui o autor que as culturas diferentes apresentam suas
historicidades de forma a demonstrar suas particularidades.

Assim, as sociedades indígenas são documentadas e estudadas, em diferentes


lugares e aldeias em várias partes do mundo, tendo como foco de preocupação
principal, o problema da extinção desses povos e sua dizimação, por isso, muitos são as
reivindicações dos indígenas no Brasil atualmente.

Vejamos isso nas palavras dos próprios indígenas:

‘[...] Há uma virulenta campanha de criminalização, deslegitimação,


discriminação e racismo contra os povos indígenas’. Afirmou Lindomar
Terena ao participar, como representante dos povos indígenas, da 13°
sessão do Fórum Permanente da Organização das Nações Unidas
(ONU), realizada em Nova York, em meados de maio. ‘Ao contrário
do que o governo brasileiro divulga em espaços internacionais, temos
certeza de que a situação dos povos indígenas no Brasil hoje é a
mais grave desde a democratização do país’, acrescentou a liderança
Terena. (Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-
humanos/noticia/2014-07/movimentos-indigenas-denunciam-
perseguicao-politica-estado-nega>).

É certo que as nações indígenas praticam ações e estratégias de resistência física e


cultural em defesa de seus direitos. Um exemplo da mobilização dos índios no Brasil foram
as lutas encabeçadas pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), comandada
pela coordenadora executiva Sônia Guajajara, que em 2013 convocou a mobilização
nacional em defesa dos direitos indígenas conquistados na Constituição Federal de 1988.

Movimentos indígenas denunciam perseguição política; Estado nega.


REPORTAGEM EM 26/07/2014.
Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/
noticia/2014-07/movimentos-indigenas-denunciam-perseguicao-
politica-estado-nega>.

Enfim, na procura de nossa identidade nesse mundo cada vez mais heterogêneo e
dinâmico, em que as relações são cada vez mais complexas e as diferenças se tornam
cada vez mais presentes, é preciso que reaprendamos a conviver, fortalecendo cada vez
mais nossas identidades próprias e, portanto, fortalecendo nossa cidadania a partir do

O ser humano e suas manifestações 159


U4

reconhecimento do direito do outro de ser diferente, seja em termos étnicos, culturais,


sexuais ou outros quaisquer.

1. Entendendo que a humanidade é, biologicamente, única e,


culturalmente, diversa, sendo esse um dos pressupostos básicos
da Antropologia, que pode ser definida como a ciência que estuda
a diversidade cultural humana.
Defina cultura, a partir de uma perspectiva antropológica,
demonstrando como a noção de relativismo cultural contribuiu
para o entendimento da diversidade

2. Leia o texto com atenção:


Kino ouviu a leve batida das ondas da manhã na praia. Como era
bom... Tornou a fechar os olhos para escutar a música dentro
dele. Talvez só ele fizesse isso, talvez todos os homens da sua
raça também fizessem. Tinham sido em outros tempos grandes
fazedores de cantigas, de modo que tudo o que viam, pensavam,
faziam ou ouviam virava cantiga. Era assim havia muito, muito
tempo. As cantigas haviam ficado e Kino as conhecia, mas não
havia cantigas novas. Não era que não houvesse cantigas pessoais.
Naquele momento mesmo, havia na cabeça de Kino uma cantiga
clara e terna e, se ele pudesse dar voz aos seus pensamentos, iria
chamar-lhe a Cantiga da Família. (STEINBECK, J. A pérola. São
Paulo: Circulo do Livro, p. 8.)
De acordo com o texto, assinale a alternativa correta:
a) A cultura se mantém pela tradição, contudo ela pode ser
continuamente recriada com a finalidade de exprimir as novas
realidades vividas por indivíduos e grupos sociais.
b) A cultura herdada torna-se desnecessária à medida que os anos
passam, sendo, portanto, salutar que os homens do presente
esqueçam seus antepassados.
c) A música é o ponto de partida da formação de um povo, pois é
a partir do momento em que os homens compõem e transmitem
sonoramente suas ideias que passam a ter cultura.
d) Certas raças não conseguem se desenvolver culturalmente,
razão pela qual se limitam a exprimir sua história pela música em
vez de o fazerem pela linguagem.

160 O ser humano e suas manifestações


U4

Seção 2

Antropologia: pós-colonialismo e pós-modernidade


Você já imaginou que nós, os seres humanos, somos apenas uma entre tantos
milhões de outras espécies no mundo? E, estudar nossa espécie, nossa produção
contemporânea, pode ser mais complicado do que parece.

Pois bem, para iniciarmos essa viagem e na procura de caminhos que nos levem
à capacidade de conhecer o “outro”, pretendemos, nesta sessão, abordar algumas
posições e formas de produção do trabalho antropológico, suas críticas e temas.

2.1 Antropologia contemporânea

Podemos entender por produção contemporânea, os escritos antropológicos


a partir da década de 1960, sobre os problemas e as questões relevantes no olhar
do antropólogo, e que apesar do tempo, que não é tão recente, remete-nos a
reflexões tais como o processo de descolonização dos grandes impérios coloniais,
do pós-modernismo e o pós-colonialismo, da mundialização cultural e econômica,
dos estudos de grupos das religiões afro-brasileiras, etnicidade e identidade, grupos
urbanos, grupos de periferia, as questões de gênero, entre outros.
Figura 4.5 | Gêneros

Fonte: Disponível em: <http://entrementes12c.blogspot.com.br/2013/03/multiculturalismo.html>. Acesso em: 20 mar. 2015.

O ser humano e suas manifestações 161


U4

Sobre o processo de descolonização dos grandes impérios coloniais, é preciso que


não percamos de vista a forma de ocupação dos ecossistemas ameríndios por parte
dos europeus, para expansão e ampliação dos seus territórios e riquezas, traduzidas
na forma de colonização da cultura moderna ocidental. Essa forma de colonização,
fez com que muitas sociedades fossem desintegradas e rearranjadas de tal sorte que
somente com a descolonização da consciência ocidental, seria possível o processo de
autonomia político e independência dos países colonizados dos países colonizadores.

O continente africano e uma boa parte da Ásia traduzem o exemplo histórico da


colonização. No final do século XIX e o início do século XX, transformaram-se em
territórios de disputa pelos colonizadores, sendo um dos principais motivos para a
eclosão da Primeira Guerra Mundial. A derrocada deste tipo de colonização se deu
com o fim da Segunda Guerra Mundial e o surgimento das novas nações politicamente
independentes de ideais nacionalistas. No entanto, não podemos perder de vista, que
essas novas nações foram protagonistas de grandes conflitos sangrentos e foram
marcadas por traumas de décadas de espoliação e humilhação dos povos africanos e
asiáticos, deixando marcas profundas de miséria e conflitos étnicos.

Você já pensou que muitos dos conflitos atuais africanos são


decorrentes do período neocolonialista europeu, que dividiu a
África de acordo com seus interesses e não levaram em conta a
identidade e a tradição das tribos? Imagine agora, se o território
brasileiro fosse dividido, será que teríamos também como
consequência a fome, as guerras civis e as epidemias?

A partir de 1960 os antropólogos norte-americanos David Schneider (1918-1995),


Clifford Geertz (1926-2006) Marshall Sahlins (1930-) reforçam a ideia de que a cultura
se expressa num todo integrado, mas dinâmica e sujeita a mudanças. Assim, a cultura
deixa de ser apreendida como um conjunto de aprendizados observáveis passando a
se configurar como um composto de códigos simbólicos. Entendo que esses códigos
representam o que as pessoas pensam, compartilham e transmitem pela linguagem.

A antropologia da década de 1960 com os escritos de Clifford Geertz estabelecem


a hermenêutica como método, assim, a antropologia interpretativa funda a descrição
densa dos fenômenos estudados, sendo o trabalho do antropólogo de campo,
apresentar as dimensões simbólicas da ação social, ou seja, os padrões sociais darão
sentido à vida dos seres humanos, se organizados e ordenados seus símbolos. Nas
palavras de Geertz (1989, p. 24),

162 O ser humano e suas manifestações


U4

[...] sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, [...] a cultura não


é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os
processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser
descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade.

Portanto, o autor demonstra que somos animais amarrados a teias de significados que
nós mesmos tecemos. Esse é o princípio do método do autor, estabelecer uma descrição
densa dos fenômenos estudados, o trabalho de campo do antropólogo, analisa as
dimensões simbólicas da ação social sob múltiplas óticas, construindo suas interpretações.

De acordo com esse pensamento, as pessoas sentem, percebem, raciocinam,


julgam e agem sob o comando dos sistemas simbólicos, definindo dessa maneira a
sua própria cultura.

Figura 4.6 | Cultura

Fonte: Disponível em: <http://entrementes12c.blogspot.com.br/2013_03_01_archive.html>. Acesso em: 20 mar. 2015.

Você já pensou sobre a sua representação da cultura em que


vive? E como será que a globalização influenciou a sua cultura?

Na verdade, nossa realidade com a globalização, compõe-se de um universo de


diversidades, desigualdades conflitos e antagonismos, integrados criam e recriam as
singularidades, particularidades, as idiossincrasias que, segundo Giddens (2000, p. 23):

O ser humano e suas manifestações 163


U4

A globalização é a razão do ressurgimento de identidades


culturais locais em várias partes do mundo. Se alguém pergunta,
por exemplo, por que os escoceses querem mais independência
no Reino Unido, ou por que há um forte movimento separatista
em Quebec, não poderá encontrar a resposta apenas na história
cultural deles. Nacionalismos locais brotam como uma resposta
a tendências globalizantes, á medida que o domínio de estados
nacionais mais antigos enfraquece.

Atualmente vivemos sobre a dinâmica da revolução científico-tecnológica e


uma crescente mobilização e manifestações de grupos étnicos que se utilizam das
facilidades de comunicação propiciada, por exemplo, pela internet, dando visibilidade
às suas causas e a suas culturas.

Assista o vídeo Roberto DaMatta – Rituais de identidades e identidades rituais.


Disponível em: <http//www.fb.com/horizonteampliado>, publicado em 24 de
jul de 2013.
Roberto da Matta apresenta o conceito de identidade como sendo papéis
sociais e, portanto, tem significados nos espaços em que estamos inseridos a
cada momento.

No final dos anos de 1980, muitos autores tiveram a preocupação de que o


fenômeno da globalização se tornasse uma forma homogeneização cultural,
homogeneizando nossas identidades, contudo, é importante destacar que apesar
das influências globais se inserirem das mais diversas formas em nossas vidas, muitas
vezes, assumem caráter de resistência da cultura nacional ou local, fortalecendo
suas características. Por exemplo, a França tem muitas resistências àquilo que não é
considerado francês. E, em muitos países da Ásia, percebe-se que valores universais
foram abandonados para uma integração rápida à cultura ocidental.

Aculturação – fusão de duas culturas diferentes que em contato contínuo,


causam mudanças nos padrões da cultura de ambos. Inclui o sincretismo que
são os elementos culturais das crenças e práticas e a transculturação – troca de
elementos culturais entre sociedades diferentes.
Assimilação – é uma fase da aculturação – é quando os grupos em contatos
alcançam uma forma de solidariedade cultural.

164 O ser humano e suas manifestações


U4

Pelo demonstrado, as influências e resistências não ocorrem de forma de uma


assimilação passiva, o processo de globalização, fez emergir novas formas de
manifestações culturais, em um processo de transculturação, sendo, um fenômeno
que acontece quando uma sociedade ou um grupo social ao receber outras formas
culturais, cria expressões culturais que são o resultado dessa interconexão.

Edgar Morin (2002, p. 17) afirma:

[...] existem múltiplas correntes transculturais que irrigam as culturas,


ao mesmo tempo em que a superam, e que formam algo que quase
chega a ser uma cultura planetária. Mestiçagens, hibridizações,
personalidades biculturais (Rushdie, Arjun Appadura) ou cosmopolitas
enriquecem essa via transcultural de maneira incessante. [...] no
que diz respeito à arte, à música, à literatura, e ao pensamento, a
globalização cultural não é homogeneizadora. Ela é feita de grandes
ondas transculturais que favorecem a expressão das originalidades
nacionais em seu seio.

Enfim, a apropriação diferenciada da globalização é um processo irreversível que


envolve as comunidades locais e globais, afetando negativamente algumas sociedades,
porém, favorece muitas outras atividades, ou seja, a globalização apresenta-se
destruindo e reconstruindo as formas de identidades culturais e isso, não implica a
destruição das outras identidades grupais pelas quais se define o indivíduo.

Geertz (1989) argumenta que o homem vive em um emaranhado de significados


que ele mesmo criou e a análise deste emaranhado deve ser realizada pela
ciência Antropologia, ou seja, uma ciência interpretativa que busca os significados,
analisando as formas simbólicas pelas quais se expressam (palavras, rituais, costumes,
comportamentos etc.).

Geertz, (1998, p. 70) argumenta que é imprescindível para a análise da cultura


contemporânea o trabalho etnográfico, pois o mesmo permite apreender a cultura
do outro, implica "não olhar por trás das aparênciasque nos vinculam com ela, mas
olhar através delas", ampliando dessa forma a leitura das relações entre os complexos
os valores interculturais.

O paradoxo do valor intercultural, para Geertz reside em como se envolver com


as vozes, experiências e valores dos outros sem se sentir a tentação de formas de
autoimolação imunizante: é a dupla percepção de que a nossa não é senão uma
voz entre muitas e que, como é a única que temos à nossa disposição, temos
necessariamente de falar com ela.

Consequentemente, estudar o "outro de dentro" tem motivado muitas reflexões


antropológicas, propiciado inúmeras discussões, entre elas a tendência dos etnólogos

O ser humano e suas manifestações 165


U4

para uma antropologia do próximo, de acordo com Marc Augé (1994, p. 33). “da
supermodernidade, poder-se-ia dizer que é o lado ‘cara’ de uma moeda da qual a pós-
modernidade só nos apresenta o lado ‘coroa’ – o positivo e o negativo”.

O autor propõe uma reflexão sobre a contemporaneidade a partir das características


da “supermodernidade”, representada pela superabundâcia factual, espacial e
individualizada, correspondendo essas transformações às categorias de tempo,
espaço e indivíduo. Marc Augé (1994) comenta que a reflexão sobre a categoria tempo
ganhou novos contornos, visto que o aceleramento da história através do excesso
de informações e da interdependência do “sistema-mundo”, faz com que haja a
necessidade de se dar sentido ao presente e isso é que diferencia a supermodernidade
da pós-modernidade.

Quanto à ideia de excesso de espaço, observa-se o encolhimento do mundo,


provocando a alteração de escalas em marcos planetários, por meio da concentração
urbana, das migrações populacionais e da produção de não lugares que aqui são
entendidos como os aeroportos, as vias expressas, as salas de espera, os centros
comerciais, estações de metrô, os campos de concentração de refugiados, os
supermercados etc., implica espaços por onde circulam as pessoas os bens e serviços.

Por fim, a categoria indivíduo é entendida como a referência das interpretações


e das informações que são disponíveis, caracteriza-se em um amplo processo de
singularização de pessoas, lugares, bens e pertencimentos. Portanto, a teoria de Marc
Augém (1994, p. 51) marca os não lugares como produtos da contemporaneidade,

[...] nele os nativos vivem, celebram sua existência, residem,


trabalham, guardam as suas fronteiras. Esse lugar foi escolhido
pelos ancestrais, é o lugar dos descendentes, um lugar a ser
defendido, ou seja, […] é simultaneamente princípio de sentido
para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para
quem observa.

Nesta dimensão, a antropologia passa a ter um novo objeto de estudo, isto


é, a contemporaneidade deve ser pesquisada a partir das suas complexidades e
contradições, e não somente como uma forma de se opor a modernidade. Os
estudos da antropologia passam a se definir como históricos, identitários e relacionais.
Ou seja, históricos porque os “nativos” vivem na história, identitários porque o lugar
de nascimento, as regras de residências etc. compõem uma inscrição no solo das
identidades individuais. Por fim, as relacionais marcam e designam as relações que
compartilham com o próximo e com os outros.

Já os não lugares vão se desenhando com características de um mundo provisório


e efêmero, empenhado com a transitoriedade e a solidão.

166 O ser humano e suas manifestações


U4

Você consegue fazer a relação da teoria de Marc Augé sobre


os não lugares, quando está no espaço do shopping ou nos
terminais de transportes públicos?

Outra reflexão muito importante que podemos fazer, a partir das lentes da
antropologia contemporânea, envolvendo os espaços públicos e privados, são as
imagens construídas sobre beleza, isto é, as formas singulares de se conceber a
corporeidade que a partir da metade do século XX, ganhou uma grande dimensão,
o culto ao corpo, tamanha mercantilização e difusão das informações que
supervalorizaram a imagem.

Reforçando essa ideia, Ortiz (2000) comenta que a mundialização da cultura


e a reconstrução cultural tornaram-se cada vez mais influentes, através dos meios
de comunicação e das interações entre os sujeitos, trazem profundas mudanças
no sistema cultural e sua dinamicidade. Os processos de globalização e dos traços
culturais da modernidade são percebidos e encontrados nas mais diferentes culturas,
tendo como resultado uma fragmentação identitária, influenciando a dinâmica do
processo de reconstrução das culturas e é por meio destas influências que Ortiz
(2000) comenta, que se dá a etnicidade.

A própria mídia dos séculos XX e XXI criou imagens e mensagens sedutoras e


sensuais com objetivo de chamar atenção para moda, consumo de produtos de beleza
etc., fazendo com que aqueles que não aderem a esse consumo da beleza, se sintam
marginalizados no processo de responsabilidade pelo seu próprio corpo, ou seja,
criam-se estratégias intencionais, que forjam a ideia de que o sujeito tem autonomia
para recriar, mudar, decidir e alterar sua biologia. E, assim, o sujeito moderno em ações
tipicamente obsessivas para alcançar o imaginário contemporâneo ou para dissimular
seus defeitos corporais, recorre a ações desnaturalizadas.
Figura 4.7 | Mídia

Fonte: Disponível em: <ctibelezafundamental.blogspot.com>. Acesso em: 20 mar. 2015.

O ser humano e suas manifestações 167


U4

O culto ao corpo tem levado os sujeitos contemporâneos à construção de


imagens que interfere na subjetividadee nas interações sociais e, de modo singular,
nas formas de imaginar a corporeidade. As pesquisas sobre beleza enquantouma
categoria abstrata, materializada no corpo, sempre inquietou os diferentescampos de
conhecimento científico, mesmo porque, é inerente aos seres humanos a classificação
de determinados padrões sociais. Assim, a ideia de belo leva-nos à construção social
de uma imagem em oposição a outra – feio, já como nos demonstraram os antigos
filósofos, que a beleza e a feirura são propriedades contemplativas, ou seja, só podem
ser compreendidas e comunicadas pela visibilidade docontorno, seja por meio do
corpo, que segundo Breton (2010, p. 65) “é o lugar privilegiado de contato com
o mundo ou difundida pela arte. O corpo é a estética da cultura (forma, deforma
ereforma) que implica a experiência sensíveldos indivíduos e dos grupos sociais”.

Figura 4.8 | Corpo

Fonte: Disponível em: <www.avidaquer.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2015.

Parafraseando Geertz (1989), o conceito de belo e de feio que está consolidado


no corpo, só poderá ser compreendido na medida em que as múltiplas concepções
dos sujeitos estão baseadas nas suas vivências, sensibilidades coletivas e no sistema de
significados culturais, fundamentais na interpretação da realidade social.

De acordo com Medeiros (2015,p.99),

As representações de beleza ede feiura, que varia de contexto


históricoe social, são edificadas por elementos atribuídos
socialmente e se concretizam na relação entre o sujeito que os
adquire e aqueles que o observa ou comqual ele se relaciona.
Portanto, compreender esses significados é entender e indagar
sobre a estética, o lugar que eles são produzidos, sobre a ideia e

168 O ser humano e suas manifestações


U4

a perspectiva das concepções em um contexto específico, é dizer


sobre o corpo, espaço e tempo, é falar da expressão da sensibilidade
e da maneira de uma determinada sociedade visualizar o mundo.

Embora a construção da ideia do belo e do feio seja muito antiga, em vários


momentos da história da humanidade, as concepções estéticas foram compreendidas
como ordem, harmonia, expressões de meiguice ou volúpias etc. Pesquisas
demonstram na contemporaneidade que o belo está ligado à juventude, a corpos
magros,alegres e felizes.

Você já reparou que nas redes sociais, os sujeitos criam uma imagem de uma
felicidade plena?De acordo com Medeiros (2015, p. 100):

Ser feliz é a discursiva central que compõe o cenário contemporâneo


e a felicidade pode ser traduzida na busca obsessiva pela elevação
da autoestima entendida por meio dos padrões de beleza definidos
culturalmente. Assim, a beleza é a senha para o sucesso profissional e
para o reconhecimento social, é a declaração de saúde, da realização
e do prestígio pessoal e a possibilidade do amor e de prazer.

Cechin, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaisa. A boneca Barbie na


cultura lúdica: brinquedo, infância e subjetivação. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/zeroseis/article/viewFile/1980-
4512.2012n26p20/22276>.
Envolta em um mundo de beleza, riqueza e aventura, a boneca Barbie
está imersa em uma pedagogia cultural com o intuito de ensinar a
supremacia de um tipo de corpo, raça e comportamento. O artigo tem
como objetivo discutir as representações da boneca Barbie na cultura
lúdica e como afeta as identidades infantis.

Ainda que o conceito de beleza não seja universal e nem tão pouco rígido, como já
dissemos, a beleza é abstrata e mutável porque varia de acordo com o discernimento
coletivo, isto é, das convenções e os significados históricos culturais emitidos pela
percepção e interpretação do contexto social. Freyre (1986) e Schump (1999) (apud
MEDEIROS, 2015) em suas pesquisas, apresentam o Brasil com uma forte tendência de
valorização da figura feminina da loira. “Explicam queisso se deve à chegada das bonecas
deporcelana, de olhos azuis e vestidos de seda, importadas dos países europeus para as
crianças ricas, filhas de personagens com o alto poder aquisitivo, eque passaram a ser

O ser humano e suas manifestações 169


U4

um modelo ideal de formosura feminina”. (MEDEIROS, 2015, p. 100).

A associação da brancura e da loirisse, se dá em recorrência do processo de


imigração europeia, tornando-se, dessa maneira, a pele alva e os cabelos loiros um
símbolo que marcaria a beleza brasileira. E, é claro, que essa representação colocará
em detrimento todo aquele sujeito que possui cabelos anelados e pele negra, pois os
mesmos se aproximariam da categoria dos escravos.

Para Marcel Mauss (2003) o corpo institui a dicotomia entre a unidade biológica
e a construção cultural e é por meio dele que as identidades culturais são expressas
e seus inúmeros significados simbólicos passam a ser reconhecidos. Reforçando
essa ideia Helman (1994) (apud MEDEIROS, 2015, p. 102) reafirma que “a fisiologia do
indivíduo é influenciada e controlada pelos princípios que regem a sociedade em que
vive”, portanto, implica dizer que o nosso corpo é dividido em partes internas (invisíveis
e privadas) e externas (visíveis e públicas) influenciando a interpretação da estrutura
cultural da sociedade em que vivemos.

Tente analisar nas propagandas da televisão ou mesmo de outros


tipos de mídias, como o corpo feminino e masculino tem sido
utilizado. Procure fazer esse exercício e verá como resultado um
olhar antropológico crítico sobre o que você vê.

1. Leia o Texto I e responda à questão 1


Texto I
Se a ciência, por meio de tabus e proibições criados pela nutrição,
tem ditado as regras e os valores em relação à comida na nossa
sociedade, não se pode esquecer das barreiras de outras ordens
(religiosas, ideológicas, folclóricas) presentes à mesa. Dois tipos
de explicação para os tabus alimentares podem ser distinguidos
na antropologia: um de ordem mais prática e outro que enfatiza
as proibições alimentares como operações simbólicas. Alimentos
antes desvalorizados ou cujo consumo era restrito a determinados
grupos e religiões podem ter o seu status modificado. Essas

170 O ser humano e suas manifestações


U4

transformações em relação à comida acompanham as mudanças


que acontecem no âmbito da própria sociedade. (Adaptado:
CATARINO, C. Comida revela nossos valores culturais. Disponível
em: <http://www.comciencia.br/reportagens/2005/09/07.
shtml>. Acesso em: 20 maio 2008).
Com base no texto e a partir do conceito de cultura como
processo simbólico, considere as afirmativas.
I. As sociedades atuais superaram as formas simbólicas de
proibição alimentar ao elegerem critérios científicos de seleção de
alimentos.
II. Além de seu componente nutricional, a alimentação institui
hierarquias e distinções sociais, que contribuem para situar os
indivíduos em grupos e classes específicos.
III. A busca pela saúde na sociedade atual pode ser equiparada à
busca tradicional pela espiritualidade, na medida em que remete à
construção de novas restrições.
IV. As práticas sociais de comportamento nas refeições adotadas
pelas classes mais abastadas expressam o valor nutricional dos
alimentos.

Assinale a alternativa correta:


a) As afirmativas I e IV são corretas.
b) As afirmativas II e III são corretas.
c) As afirmativas III e IV são corretas.
d) As afirmativas I, II e III são corretas.

2. Discorra sobre o processo de transculturação e a globalização


e quais foram as preocupações dos antropólogos e cientistas
sociais a partir dos anos de 1980.

O ser humano e suas manifestações 171


U4

172 O ser humano e suas manifestações


U4

Seção 3

Manifestações culturais contemporêneas – etnicidade


Da necessidade de compreensãodas diferentes formas e manifestações culturais
dos sujeitos, a antropologia nos traz a partir da década de 70, leituras etnográficas que
abordam a emergência das categorias de gênero, raça e etnicidade, em suas formas de
manifestações em nossa cultura. Esses temas da antropologia urbana ganham destaque
e dimensões políticas, visto o aumento das discriminações e violências contra mulheres,
homossexuais e negros.

3.1 Etnicidade
O sentido do termo etnicidade surgiu em aproximadamente 1950 com a publicação
do sociólogo norte-americanoDavid Riesman, no entanto, o adjetivo étnico, do grego
ethnos, nos remete à ideia de ‘pagão’, ‘bárbaros’, sendo esse o significado no século
XIX. Somente após a Segunda Guerra Mundial é que o termo começa a ganhar o
sentido pejorativo, ou seja, começa a ser aplicado a todos os povos ou grupos que se
formam em comunidades fora dos seus países de origem, exemplo: judeus, italianos,
portugueses etc.

Até a metade do século XX, nos anos de 1960, a expressão étnica aparece para
diferenciar os povos, mas especificamente as nações africanas que iniciavam seu
processo de descolonização, marcada pelas pressões anticolonialistas, guerras e
bandeiras de liberação nacional. Esse período histórico foi de grande turbulência e
transformações, o avanço do capitalismo traz como consequência conflitos internos
nas sociedades europeias e norte-americanas, discriminações, racismos e grandes
fluxos migratórios.

Antropólogos ingleses como Max Gluckman (1911-1975) iniciam suas trajetórias de


análise sobre as relações entre as sociedades simples e os impérios coloniais. Esse
tipo de análise passa a representar as ideias de Radcliffe-Brown (estudo comparativo
dos povos australianos) e Evans- Pritchard (estudo dos povos Nuer), que defende a
ideia de uma estrutura social estável e sempre em equilíbrio, fundando-se na escola
de Manchester, uma geração de antropólogos que se especializou no estudo
sobre as mudanças sociais e as transformações relacionadas aos processos de
descolonialização e independência da África e da Ásia.

O ser humano e suas manifestações 173


U4

Radcliffe-Brown e sua abordagem conceitual estrutural-funcionalismo.


Disponível em: <https://pensandoaantropologia.wordpress.com/
escolas/estruturalismo/>.

Reforçando essa ideia Evans-Pritchard, (1978, p. 23) comenta:

Um povo cuja cultura material é tão simples quanto a do Nuer


depende grandemente do meio ambiente. São eminentemente
pastoris, […]. Algumas tribos cultivam mais, outras menos, de
acordo com as condições do solo, com a água à flor da terra
e com sua riqueza em gado. […] eles são boiadeiros, e o único
trabalho em que têm prazer é no cuidar do gado.

Estudar a etnicidade faz com que o pesquisador descreva as identidades nas


diversas situações de contato, onde os membros das sociedades “pluriétnicas”
identificam-se e diferenciam-se. Para Poutignat; Streiff-Fenart (1998, p. 86), citando
Glazer; Motnuhan, nas diversas formas de conceituação, a etnicidade é muito difícil
chegar a um consenso sobre esse termo ou defini-lo, contudo, para esses autores,

[...] a etnicidade refere-se a um conjunto deatributos ou de traços


tais como a língua, a religião, os costumes, o que a aproxima
danoção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos
membros, o que a torna próxima da noção de raça. [...] os grupos
étnicos se formam quando os indivíduos desejam adquirir bens
(a riqueza, o poder) que não chegam a conseguir segundo suas
estratégias individuais.

Nesta dimensão, é importante lembrar um conceito bem simples de raça, ou seja,


a ideia de que as raças nada mais são do que populações que vivem mais ou menos
isoladas e que se diferem de outras populações, consideradas da mesma espécie e
com características hereditárias. Assim, a ideia de raça humana pura, foi somente uma
forma de imposição e estratégia para se praticar violências. Não existe raça humana
pura, já que é quase impossível aos grupos humanos que são gregários viverem em
isolamento e, portanto, a miscigenação é um dos elementos que nos compõe como
humanos. Importante lembrar que o conceito de raça deriva do fator biológico, mas,
não pode e nem deve ser confundido como uma forma determinista. A nossa vida é
um conjunto de influências complexas.

174 O ser humano e suas manifestações


U4

Figura 4.9 | Mensagem

Fonte: Disponível em: <http://geoconceicao.blogspot.com.br/2012/01/vestibular-2011-puc-rio-contra-o-veu.html>. Acesso


em: 20 mar. 2015.

Quero chamar atenção para o fato de que muitos autores ao observarem a


dificuldade que é conceituar o termo raça, a nossa espécie. Passaram a adotar em
suas pesquisas apalavra etnia, isto é, os grupos diferentes, mas com traços comuns
físicos e ou culturais, trazem sentimentos de identificação de pertença e portanto,
formam o mesmo grupo cultural. Por exemplo: para nos brasileiros o termo raça
não seria adequado, porque somos formados pela etnia do negro, do indígena e dos
descendentes de portugueses, italianos, espanhóis, japoneses e outros, por isso, tanto
uma raça está presente em um desses grupos como em alguns casos um grupo é
determinado por várias raças.

Segundo Carlos Rodrigues Brandão (1986, p. 46), é preciso observar se é a etnia


que determina a identidade, pois se os critérios de suas representações e conotações
biológicas e culturais forem estes, então elas determinam um grupo étnico, ou seja:

[...] aqui, tanto os tipos de relações quanto os tipos de nomes e ideias


a respeito do que acontece ganham novos adjetivos. Diferenças
biológicas (cor da pele, tipo de olhos ou cabelos) e diferenças
culturais (forma de organização do trabalho comunitário, regras de
casamento, códigos de orientação do comportamento, crenças
religiosas) até algum tempo atrás qualificadas como diferenças raciais,
podem ser pensadas como diferenças étnicas.

Sendo assim, a etnia tem um alicerce ligado à noção de grupo e de construção


de representação social, as qualidades de uma raça e a cultura não devem ser
confundidas com o termo etnicidade. Quem nos chama atenção desse fato é Fredrik
Barth nos anos de 1960, que apresenta uma crítica a respeito da tentativa de unificar o
termo etnia à raça ou à cultura. O autor, em suas pesquisas, observou que mesmo nas
sociedades industriais e pós-industriais ocorreu a manutenção das identidades étnicas,

O ser humano e suas manifestações 175


U4

objetando as visões simplistas de que “O conteúdo cultural das dicotomias étnicas


parece ser analiticamente de duas ordens: 1) sinais ou signos manifestos [...] tais como
o vestuário, a língua [...]; 2) orientações de valores fundamentais [...]” (BARTH, 1969,
apud OLIVEIRA, 2003, p. 194).

Em síntese, o norueguês Fredrik Barth, que nasceu em 1928 e influenciou muitos dos
pesquisadores da escola de Manchester, nos dá como critério para a determinação de
um grupo étnico, a identificação por parte de seus membros e por outros como uma
forma ou categoria que os diferencia na relação com outras do mesmo tipo, ou melhor,
a identidade étnica se fundana autoatribuição de signos visíveis, de ordem fenotípica,
social, cultural ou outra qualquer, sendo que o reconhecimento pelos outros dessas
diferenciações é que estabelecem a diferença, porque não possuem os mesmos signos.

Assim, o conceito de etnicidade vai se compondo na medida em que descreve um


grupo que se autodefine e é definido por outros como diferente. Concluindo, um grupo
étnico só passa a se definir em relação a outro, e o que define a etnicidade é o contraste
com outros grupos. Observa-se nestes termos que a ideia de etnicidade carrega um
poderoso instrumento de mobilização política, legitimando as lutas por direitos.

O Apartheid não morreu – A discriminação e as leis na África do Sul.


Disponível em: <http://super.abril.com.br/cotidiano/apartheid-nao-
morreu-552516.shtml>.

Pois bem, as lutas e demandas dessas minorias, discriminadas nas sociedades centrais do
sistema capitalista, foram chamadas de lutas étnicas, buscando a concretização da justiça
social. Assim é comum encontrar o termo étnico associado a conflitos das minorias, no
entanto, é importante entender como se dão os processos de construção das diferenças,
porque o termo ou conceito de etnicidade se contrapõe ao conceito de aculturação ou
assimilação, porque não há possibilidade de uma homogeneização de identidades, ao
contrário, o que se vê desde os primeiros estudos antropológicos, até os nossos dias, é o
fortalecimento das diferenças e, essas diferenças, são cada vez mais reivindicadas pelos
grupos nos seus reconhecimentos de direitos nas esferas públicas e privadas.

Você já pensou que quando falamos sobre grupos étnicos,


estamos ponderando sobre um grupo que é tratado como
uma minoria? E isso implica, colocá-los em um processo de
desvantagem, frente à maioria?

176 O ser humano e suas manifestações


U4

1. Leia a letra da música – Haiti de Caetano Veloso – Caetano


Veloso.
Quando você for convidado pra subir no adro da fundação casa
de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti

O ser humano e suas manifestações 177


U4

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os
pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

Essa letra de música “Haiti” retrata uma realidade sociopolítica


observada nos países Latino Americanos, que diz respeito à questão
da cidadania e dos diretos humanos. Acerca dessa questão, pode-
se afirmar:

178 O ser humano e suas manifestações


U4

a) O desrespeito à cidadania e aos direitos humano na América


Latina, em particular no Brasil, atinge de modo indiscriminado
negros, índios e brancos, homogeneizando as condições
sociopolíticas.
b) As sociedades latino americanas não têm sido capazes de superar
os conflitos étnicos, fenômeno inexistente nas democracias raciais
vigentes nas países anglo-saxões da América, porque lá os direitos
são respeitados.
c) A globalização econômica, que possui como pressuposto a
democratização política, tem um importante papel na ampliação
dos direitos humanos das etnias na America Latina.
d) Na América Latina, as desigualdades socioeconômicas se
entrelaçam com a discriminação étnica e cultural, fragilizando as
possibilidades de instituição de uma territorialidade democrática
que assegure os direitos do homem e do cidadão.

2. “Que esperança tem um jovem nascido em um bairro sem


alma, cercado apenas da feiura, aprisionado pelas muralhas
cinzentas em uma terra baldia, também cinzenta, e condenada a
uma vida cinzenta, enquanto, em torno dele, a sociedade prefere
ignorar sua situação até que cheque a hora de reprimir, a hora de
proibir?” (Francois Mitterrand, Folha de São Paulo, 15 de nov. 2005.
Disponível em: <http://geoconceicao.blogspot.com.br/2012/01/
vestibular-2011-puc-rio-contra-o-veu.html>).
As ondas de violência como as que se alastraram pelos subúrbios
de Paris, no final de outubro de 2005, podem ser explicadas:
a) Pelo agravamento das tensões xenófobas entre a comunidade
migrante na Europa e o colapso do Estado de Bem-estar social que
vem abandonando nas últimas décadas sua população mais pobre.
b) Pela tentativa de barrar a entrada no continente de migrantes
da África subsaariana como forma de fortalecer a elaboração de
políticas de integração nacional entre os países da Comunidade
Europeia.
c) Pela formação de guetos na periferia das cidades que são
responsáveis pela degradação dos serviços públicos e aumento
da informalidade dos serviços.
d) Pelas disputas entre imigrantes de diferentes etnias e religiões
por empregos de melhor remuneração, com o objetivo de elevar
seu padrão de vida.

O ser humano e suas manifestações 179


U4

Nesta unidade, você estudou:

• A análise antropológica sobre o “outro” e, esse sendo um ente


coletivo, representante de um grupo, classe social, ou uma tribo.

• Claude Lévi-Strauss nos demonstrou que o comportamento


humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou
nossos ancestrais antropoides em homens e fê-los humanos.

• A etnografia e o seu entendimento como uma forma densa de


descrever uma cultura, podendo ser a cultura de um grupo vindo
de uma terra “exótica’ ou do grupo próximo.

• Sobre o relativismo cultural, você viu que a forma que o observador


observa a diversidade dos povos faz parte da concepção que
devemos compreender o que cada cultura produz.

• Você leu que a construção da identidade é entendida pelos


antropólogos e sociólogos a partir das dimensões: a pessoal e o social.

• O processo de descolonização e o avanço da globalização seus


avanços e deficiências.

• Você estudou alguns autores da antropologia que refletem sobre


a “supermodernidade”, “transculturalismo”, “mundialização” da
cultura e a reconstrução cultural.

• E, por fim estudamos rapidamente a ideia do “corpo”, “beleza” e


“etnicidade”.

Compreender melhor o outro ajuda-nos a melhor entender a nós


mesmos. Essa é a complexidade que os antropólogos e antropólogas,
cientistas sociais encontram, na medida em que procuram revelar
os aspectos obscuros ou ocultos, de nossas próprias sociedades ou

180 O ser humano e suas manifestações


U4

comunidades, fazendo com que, as manifestações culturais se tornem cada


vez mais ricas e complexas.

Essa unidade, tentou apresentar, de forma rápida e sucinta, algumas das


reflexões sobre o universo das manifestações culturais, sabendo que cada
dia mais somos enveredados a sensação de fragmentação e, por isso,
pensamos sobre as diferenças nesse mundo de excesso de informação, leva-
nos ao questionamento das identidades e as formas de suas constituições.

Enfim, esse estudo nos permitiu a observação dos contrastes, entre


grupos e povos, em suas relações sociais e na construção de suas próprias
realidades, demonstrados pelos autores da antropologia contemporânea e
as dificuldades de se compor uma única via de investigação.

1. Para entendermos o significado de um símbolo cultural,


é necessário o conhecimento da cultura que o criou.
Apesar de para nós esse distanciamento da realidade seja
extremamente complexo e estranho, não podemos perder
de vista que esse é o objeto de estudo da antropologia,
sendo assim:
a) O “outro” é sempre um ente coletivo, representante de
um grupo, classe social, ou uma tribo.
b) O “outro’ representa alguém que faz parte da nossa própria
cultura e que tem suas individualidades e suas perspectivas.
c) O “outro é um ser singular e significativo para aquele que o
analisa e não expressa somente a sua própria cultura ou meio.
d) O “outro” tem como significação as expressões que sua
cultura criou, e ter esse distanciamento sobre a realidade
do outro é muito importante, mas não quer dizer que seja
estranho.

O ser humano e suas manifestações 181


U4

2. Analise as duas afirmações a seguir:


I- Alguns autores demonstraram por meio de seus estudos,
que somos animais amarrados a teias de significados, que nós
mesmos tecemos. Sendo assim, a antropologia estabeleceu
uma descrição densa dos fenômenos estudados e o trabalho
de campo do antropólogo analisou muitas dimensões
simbólicas construindo suas interpretações.
PORTANTO,
II- De acordo com esse pensamento, as pessoas sentem,
percebem, raciocinam, julgam e agem sob o comando dos
sistemas simbólicos, definindo, dessa maneira, a sua própria
cultura.
Assinale a alternativa correta:
a) A afirmativa I está correta e a II incorreta.
b) A afirmativa I e II estão corretas e a II justifica a I.
c) A afirmativa II está correta e a I incorreta.
d) A afirmativa I e II estão incorretas.

3. As pesquisas sobre beleza enquanto uma categoria


abstrata, materializada no corpo, sempre inquietou os
diferentes campos de conhecimento científico, mesmo
porque, é inerente aos seres humanos a classificação de
determinados padrões sociais. Sendo assim, analise as
afirmativas a seguir:
I- A ideia de belo leva-nos à construção social de uma
imagem em oposição a outra, isto é, um conceito em
oposição a outro, beleza e a feiúra são propriedades
contemplativas.
II- O corpo é a estética da cultura (forma, deforma e
reforma) que implica a experiência sensível dos indivíduos e
dos seus grupos sociais. Portanto, feio e belo, dependem da

182 O ser humano e suas manifestações


U4

abstração de uma comunidade ou sociedade.


III- O conceito de belo e de feio para Geertz (1989)
poderá ser compreendido na medida em que as múltiplas
concepções dos sujeitos estão baseadas nas suas vivências,
sensibilidades coletivas e na interpretação da realidade
social.
Assinale a alternativa correta:
a) Estão corretas as afirmações I e II e a III está errada.
b) Estão corretas as afirmações a II e III e a I está errada.
c) Está correta a afirmação II e a I e a III estão erradas.
d) As afirmações I, II e III estão corretas.

4. A luta dos negros pela igualdade de direitos contou,


nos Estados unidos, nas décadas de 1950 e 1960, com a
liderança do pacifista Martin Luther King. No Brasil, por
meio de suas músicas, Gilberto Gil é uma das vozes que
denunciam as condições precárias de vida de parcela dessa
população. O processo histórico que deu origem à exclusão
social de parte considerável da população negra, tanto no
caso norte-americano quanto no brasileiro, e uma de suas
consequências está relacionada em:
a) Oficialização do apartheid – acesso a escolas segregadas.
b) Implantação do escravismo nas colônias – desvalorização
do trabalho manual.
c) Empreendimento de política imperialista – restrição à
ocupação de cargos de liderança.
d) Existência de relações escravistas na África – uso
diferenciado de meios de transporte coletivo.

5. Para Marc Augé (1994) a ideia de supermodernidade é


representada pela superabundâcia de fatos, espaços e
indivíduos. Sendo assim, analise as proposições a seguir,

O ser humano e suas manifestações 183


U4

sobre as categorias de transformações das atuais sociedades


“supermodernas”.
I- A categoria tempo envolve o aceleramento da história e
o excesso de informações decorrentes da interdependência
do sistema.
II- A categoria indivíduo apresenta-se como forma do
encolhimento do mundo e as formas de espaços construídos
como escalas planetárias.
III- A categoria espaço representa as interpretações e
informações disponíveis e o processo de singularização de
pessoas, lugares.

Assinale a alternativa correta:


a) Estão corretas a I e II.
b) Estão corretas a II e III.
c) Estão corretas I e III.
d) Está correta a I.

184 O ser humano e suas manifestações


U4

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