Você está na página 1de 26

Distúrbios do

Desenvolvimento
Material Teórico
Distúrbios do Desenvolvimento

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª Dr.ª Célia Regina da Silva Rocha

Revisão Técnica:
Prof.ª Dr.ª Jane Garcia de Carvalho

Revisão Textual:
Prof. Me. Luciano Vieira Francisco
Distúrbios do Desenvolvimento

• Introdução
• A Questão de Diferença – Deficiência: Aspectos Históricos

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• Discutir sobre questão da diferença-deficiência: os aspectos históricos e a reflexão
sobre os percalços enfrentados tanto pelas pessoas que possuem algum tipo de de-
ficiência, como por seus familiares e profissionais que atuam junto a elas.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

Introdução
Não dá para iniciarmos nossa conversa, sem que falemos dos aspectos histó-
ricos e sociais que englobam as questões referentes às pessoas com deficiência.
Quando nasce uma criança com algum tipo de deficiência começa para ela e para
sua família, uma longa história de dificuldades. Ter a deficiência não é o fator
preponderante, que torna difícil a sua existência, permeada invariavelmente por
situações em que estão presentes o preconceito e o estigma. Como lidar com as
atitudes sociais que adotam formas de classificação para distinguir e separar as pes-
soas, categorizando-as entre duas posições opostas: capazes e incapazes, rápidos
e lentos, ou competentes e incompetentes?

Como romper as barreiras atitudinais das pessoas e do grupo social ao qual ela
pertence, e que tornam inviável o seu desenvolvimento e o seu crescimento pesso-
al, social e profissional?

Infelizmente estas são perguntas difíceis e complexas demais, porém elas fazem
parte do cotidiano da maioria das pessoas com deficiência, seus familiares e dos
profissionais que atuam junto a elas. Quando a sociedade se baseia nessas catego-
rizações, culmina por classificar, excluir e restringir, não oportunizando a demons-
tração de habilidades e competências por parte da pessoa que possui algum tipo
de deficiência.

Nesta unidade, vocês terão a oportunidade de conhecer toda a trajetória his-


tórica e social, que as pessoas com deficiência sofreram ao longo da história da
humanidade: desde o extermínio, passando pela segregação até hoje em dia, com
o paradigma da inclusão.

A Questão de Diferença –
Deficiência: Aspectos Históricos
Verificamos que no percurso da história da humanidade, os caminhos percor-
ridos pelas pessoas com deficiência têm sido tortuosos, com muitos obstáculos e
limitações, tornando assim difícil a sua convivência e, principalmente, a sua acei-
tação social.

Durante muito tempo, essas pessoas viveram segregadas, e, ainda vivem ex-
cluídas do grupo social. Com base nos registros históricos, podemos comprovar
isso. Assim, as pessoas com deficiência continuam sendo tratadas com discrimi-
nação e preconceito.

8
Não existem registros sobre como vi-
viam os indivíduos com deficiência no
período pré-histórico, há pelo menos dez
mil anos. No entanto, considerando as
condições físicas e climáticas da época,
evidenciamos a não existência de abrigo
satisfatório para dias e noites, o que fazia
com que as pessoas ficassem expostas ao
frio e ao calor intensos.

Também não havia alimentos em abun-


dância, portanto, era preciso ir à caça
para garantir o alimento diário. Como não
se plantava, era preciso guardá-lo para o
longo inverno. A caça servia para a ob-
tenção de alimentos e para o aquecimento
dos seres, a partir do material oriundo da
pele dos animais. Figura 1
Fonte: earthsky.org

Além disso, a colheita de frutos, folhas e raízes garantia o sustento das pesso-
as. Assim, as condições, anteriormente muito adversas, com o passar do tempo
se tornaram mais amenas. Com isso, os grupos começaram a se organizar para
ir à caça e garantir o sustento de todos.
Ainda durante a pré-história, a inteligência do homem começa a se manifestar,
e estes passaram a perceber melhor o ambiente onde viviam, começando, a partir
de então, a adorar o sol, a lua e os animais.

Com a preocupação em manter a segurança e a saúde dos integrantes do grupo


para a sobrevivência, surgiram as tribos.

Assim, os estudiosos consideram que a sobrevivência de pessoas com deficiência


era impossível, em virtude de o ambiente ser extremamente desfavorável, uma vez
que para o atendimento das necessidades básicas, essas pessoas dependiam daqui-
lo que a natureza lhes proporcionava, ou seja, a caça, a pesca, e das cavernas para
se abrigarem. Ainda, era comum a prática do nomadismo, em virtude da natureza
cíclica e da necessidade de deslocamentos constantes.

Dessa forma, essas pessoas representavam um fardo para o grupo, que tinha
que fazer longas caminhadas para a obtenção de alimentos e da caça. Somente os
mais fortes sobreviviam, portanto, era comum que certas tribos se desfizessem das
crianças que nasciam com deficiência.

9
9
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

Peso morto
Deficiente
Empecilho relegado/abandonado
Figura 2

Na Bíblia, encontramos alguns relatos referentes a como a deficiência era trata-


da. Lucas (11:14) mostra como o mudo e o demônio são confundidos:
[...] E estava ele expulsando um demônio, o qual era mudo. E aconteceu
que saindo o demônio, o mudo falou [...]
Naquele tempo, Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença.
Os discípulos perguntaram-Lhe: “Mestre, quem é que pecou para ele nas-
cer cego? Ele ou os seus pais?” Jesus respondeu-lhes: “Isso não tem nada
que ver com os pecados dele ou dos pais; mas aconteceu assim para se
manifestarem nele as obras de Deus”. [...] Dito isto, cuspiu em terra, fez
com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego. Depois disse-
-lhe: “Vai lavar-te à piscina de Siloé”; Ele foi, lavou-se e voltou a enxergar.
(Evangelho, Jo 9, 1-41)
Explor

Jesús Curación el ciego de jericó: https://goo.gl/MJx7LZ

No Egito antigo, evidências arqueológicas indicam que a pessoa com deficiência


integrava-se às diferentes e hierarquizadas classes sociais (Faraó - escravos).

Figura 3
Fonte: ampid.org.br

10
Na arte egípcia, com seus afrescos, os papiros, os túmulos e as múmias estão
repletos dessas revelações.
Explor

Músico anão: https://goo.gl/WDkVvo

Na antiguidade, os deficientes eram sacrificados ou abandonados à própria sorte:


Nós matamos os cães danados, os touros ferozes e indomáveis, degola-
mos as ovelhas doentes com medo de que infectem o rebanho, asfixiamos
os recém-nascidos mal constituídos; mesmo as crianças, se forem débeis
ou anormais, nós as afogamos; não sei se trata de ódio, mas da razão que
nos convida a separar das partes são aquelas que podem corrompê-las
(Sêneca, Sobre a Ira, I, XV apud Misès, 1977)

Na sociedade grega, as necessidades básicas eram garantidas pelos escravos,


cabia aos homens livres dedicar-se exclusivamente ao ócio.

Paradigma Espartano, dedicava-se à


arte da guerra e preocupava-se com as
fronteiras de seus territórios, expostas às
invasões bárbaras (Império Persa). Além
disso, a preocupação com tudo o que se
referia à perfeição e à manutenção do
corpo forte e belo: a ginástica, a dança,
a estética. Assim, as crianças que nasciam
com deficiência eram eliminadas, só os
fortes sobreviviam para servir ao exército.

Neste sentido a mulher espartana era


valorizada, mas para tanto precisava ser
bela e forte, com condição específica para
gerar os homens fortes, futuros guerrei-
ros. Havia, portanto, a prática da eugenia
radical, em que a criança com deficiência
não se encaixava no leito de Procusto. Figura 4
Fonte: Wikimedia Commons

No paradigma Ateniense, havia a preferência pela agitada vida da polis, pela (re-
tórica, boa argumentação, a filosofia, a contemplação). Para tanto, estes homens
precisavam ter inteligência para poder dar conta das exigências da época.

11
11
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

A obra de Platão deixa claro essa exigência,


com o interstício (fenda) entre o corpo e a men-
te. O pensamento da sociedade ateniense par-
tia do princípio de que cabe aos homens livres
(à mente), parte digna, superior, ou seja, aque-
la que era encarregada de mandar e governar.
Ao escravo (o corpo) – degradado, conspirador,
empecilho da mente, cabia a missão de execu-
tar as tarefas degradantes e degradadoras.

Assim, na literatura universal encontramos


várias passagens que remetem à condição das
pessoas com deficiência.
1. Ilíada – personagem Hefesto, o ferreiro
divino, tem uma das pernas atrofiadas;
ao nascer é rejeitado pela mãe Hera. Figura 5
Zeus, em sua ira, o atira fora do Olimpo. Fonte: Wikimedia Commons

2. Na Terra entre os homens, Hefesto compensou sua deficiência física e mos-


trou suas altas habilidades em metalurgia e artes manuais. Casou-se com Afro-
dite e Atena.

A República, Livro IV, 460 c –


Pegarão então os filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o apris-
co, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos
homens inferiores, e qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-
-ão num lugar interdito e oculto, como convém. (GUGEL, 2007, p. 63)

Na Grécia antiga, onde se primava pela perfeição dos corpos, as pessoas com
deficiência quando não eram sacrificadas, ficavam escondidas.
Quanto aos filhos de sujeitos sem valor e aos que foram mal constituídos de
nascença, as autoridades os esconderão, como convém, num lugar secreto
que não deve ser divulgado (PLATÃO, A República, apud Misès, 1977).

Figura 6
Fonte: Wikimedia Commons

12
A Política, Livro VII, Capítulo XIV, 1335 b – Quanto a rejeitar ou criar os
recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança
disforme será criada; com vistas a evitar o excesso de crianças, se os costu-
mes das cidades impedem o abandono de recém-nascidos deve haver um
dispositivo legal limitando a procriação; se alguém tiver um filho contraria-
mente a tal dispositivo, deverá ser provocado o aborto antes que comecem
as sensaçõews e a vida (a legalidade ou a ilegalidade do aborto será definida
pelo critério de haver ou não sensação de vida) (GUGEL, 2007, p. 63)

O Paradigma ateniense vai ser assumido, cristalizado, e levado ao paroxismo


pelo judaísmo-cristão, visto que no âmbito da teologia, o deficiente deixa de ser
morto e, ao nascer, passa a ser estigmatizado (moralismo cristão); no âmbito cató-
lico, a deficiência passa a ser sinônimo de pecado.

Na Roma antiga, as leis romanas não eram favoráveis às pessoas que nasciam
com deficiência. Aos pais era permitido matar as crianças com deformidades fí-
sicas, utilizando-se da prática do afogamento. No entanto, os pais abandonavam
seus filhos em cestos no Rio Tibre, ou em outros lugares sagrados. Os sobreviventes
tornavam-se pedintes e esmolavam pelas ruas ou passavam a fazer parte de circos.
Explor

Austríacos reconstituem luta de gladiadores: https://goo.gl/ScKdc1

Com as conquistas romanas, legiões de soldados (Césares) retornavam com am-


putações das batalhas dando início a um precário sistema de atendimento hospitalar.

Ainda durante o Império Romano, surgiu o cristianismo. A nova doutrina vol-


tava-se para a caridade e para o amor entre as pessoas. Assim, as classes menos
favorecidas sentiram-se acolhidas com essa nova visão. A eliminação dos filhos
nascidos com deficiência e a perseguição dos cristãos, porém, alteraram as concep-
ções romanas a partir do Século IV.

A Idade Média se estendeu por um longo período da história da humanidade, e


foi marcada por precárias condições de vida e de saúde das pessoas. A população
ignorante atribuía o nascimento de pessoas com deficiência ao castigo de Deus,
supersticiosos viam nelas poderes especiais de feiticeiros ou bruxos, e mantinham
assim, sentimentos e atitudes ambíguas em relação às pessoas com deficiência,
que ora eram sacrificadas, como um mal a ser evitado, ora eram privilegiadas, por
serem detentoras de poderes sobrenaturais.

Ou ainda perseguidos e evitados, como possuídos pelos demônios, ou tratados


como insanos e indefesos, necessitando, portanto, de proteção. Geralmente, os
sobreviventes eram separados de suas famílias e quase sempre ridicularizados, os
anões e os corcundas eram focos de diversão dos mais abastados.

O rei Luís IX, cujo reinado durou de 1214 a 1270, fundou o primeiro hospital
para pessoas cegas, o Quinze-Vingts. Quinze-Vingts significa 15 x 20 = 300,
número de cavaleiros cruzados que tiveram seus olhos vazados na 7ª Cruzada.

13
13
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

Na Idade Moderna, vamos ter a passagem de um período de extrema ignorância


para o nascer de novas ideias.

O Renascimento das artes, da música e das ciências foi o período mais festejado
do século XVI, pois se revelaram grandes transformações, marcadas pelo huma-
nismo. Nesse período, surgiram os primeiros hospitais de caridade que abrigavam
indigentes e pessoas com deficiências.

A época do Renascimento surge com uma perspectiva mais humanista. Sendo, por-
tanto, reconhecida como uma condição humana, a deficiência passa a ser explicada
por um prisma de causalidades naturais, com uma visão médica, e concepções mais
racionais, permanecendo, todavia, marcada pelo preconceito e pela discriminação.

Veja o nome de alguns poetas, físicos, matemáticos e astrônomos com deficiência:


• John Milton (1608-1674), um dos maiores poetas ingleses, era cego e com o
apoio de escriba e ledor, escreveu várias obras, dentre elas Paraíso Perdido.
• Galileo Galilei, físico, matemático e astrônomo, em consequência de seu reu-
matismo, ficou cego nos últimos anos de sua vida, mas, ativo em suas pesqui-
sas científicas.
• Situação semelhante foi vivida pelo astrônomo alemão Johannes Kepler (1571
a 1630), que tinha deficiência visual e desenvolveu estudos sobre o movimento
dos planetas.
• Luís de Camões (1524 a 1580), o poeta de Os Lusíadas, perdeu a visão de u
m dos olhos, em batalha no Marrocos.
• Gerolamo Cardomo (1501 a 1576), médico e matemático, inventou um có-
digo para ensinar pessoas surdas a ler e escrever, influenciando o monge be-
neditino Pedro Ponce de Leon (1520-1584) a desenvolver um método de
educação para pessoa com deficiência auditiva, por meio de sinais. Métodos
que contrariavam o pensamento da sociedade da época, que acreditava que as
pessoas surdas não pudessem ser educadas.

Figura 7
Fonte: Wikimedia Commons

14
• Na Espanha, Juan Pablo Bonet (1579-1633) escreveu sobre as causas das de-
ficiências auditivas e dos problemas da comunicação, condenando os métodos
brutais e de gritos para ensinar alunos surdos.
• No livro Reduction de las letras y arte para ensenar a hablar los mudos, Pablo
Bonet demonstra pela primeira vez o alfabeto na língua de sinais.
• Na Inglaterra, John Bulwer (1600 a 1650) defendeu um método para ensinar
aos surdos a leitura labial, além de ter escrito sobre a língua de sinais.
• Stephen Farfler era paraplégico e, em 1655, na Alemanha, construiu uma
cadeira de rodas para se locomover. Ela era feita em madeira, com duas rodas
atrás e uma na frente, acionada por duas manivelas giratórias.
• Europa - marcada pela massa de pobres, mendigos e pessoas com deficiência,
alguns verdadeiros, muitos falsos, reuniam-se em confrarias (organizações), em
locais e horas determinadas, para mendigar, com divisão de lucros e cobranças
de taxas entre os participantes do grupo.

Figura 8
Fonte: Wikimedia Commons

Paul Lacroix - dedicou-se a escrever sobre esses grupos de pessoas, ou seja,


escreveu sobre as pessoas menos privilegiadas.

A partir do século XVIII, com o médico, tem início as tentativas educacionais.


Assim, surgem os avanços científicos e a busca de atendimento mais adequado
para essas pessoas.

No Século XIX (1819), Charles Barbier (1764-1841) atendeu a um pedido de


Napoleão e desenvolveu um código para ser usado em mensagens transmitidas à
noite durante as batalhas. O sistema foi rejeitado pelos militares, que o considerou
muito complicado.

No Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris, Louis Braille (1809- 1852)
apresentou algumas sugestões para seu aperfeiçoamento. Barbier se recusou a
fazer alterações em seu sistema, Braille modificou totalmente o sistema de escrita
noturna, criando o sistema de escrita padrão – o BRAILLE – usado por pessoas
cegas até aos dias de hoje.

15
15
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

Figura 9
Fonte: iStock/Getty Images

O século XIX, com reflexos das ideias humanistas da Revolução Francesa, ficou
marcado na história das pessoas com deficiência, não só das que precisavam de hos-
pitais e abrigos, mas também de quem precisava de atenção especializada. Assim,
tem início a constituição de organizações para estudar os problemas de cada tipo
de deficiência, difundindo-se os orfanatos, os asilos e os lares para crianças com
deficiência física. Grupos de pessoas organizam-se em torno da reabilitação dos
feridos para o trabalho, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha.
Napoleão Bonaparte, por exemplo,
determinava expressamente a seus gene-
rais que reabilitassem os soldados feridos
e mutilados para continuarem a servir,
nascendo, assim, a ideia de que os ex-
-soldados poderiam ser reabilitados.

Essa possibilidade de reabilitação foi


compreendida em 1884, pelo Chanceler
alemão Otto Von Bismark, que constitui
a lei de obrigação à reabilitação e readap-
tação ao trabalho.

No Brasil, por insistência do Impera-


dor Dom Pedro II (1840-1889), seguiu-se
o movimento europeu, criando o Imperial
Instituto dos Meninos Cegos (atualmente
Instituto Benjamin Constant), por meio
do Decreto Imperial nº 1.428, de 12 de Figura 10
Setembro de 1854. Fonte: Wikimedia Commons

16
Três anos depois, em 26 de setembro de
1857, o Imperador, apoiando as iniciativas
do Professor francês Hernest Huet, funda
o Imperial Instituto de Surdos Mudos (atu-
almente Instituto Nacional de Educação de
Surdos – INES). O imperador era um visioná-
rio e trouxe muitos avanços para o Brasil; se
as suas propostas e projetos tivessem segui-
mento, não teríamos apenas o IBC e o INES,
poderíamos ter outras tantas instituições para
o atendimento das pessoas com deficiência,
desenvolvendo pesquisas e tendo uma ampla
contribuição tanto para essas pessoas como
para a sociedade de uma maneira geral.

No século XX ocorrem avanços importan-


tes para as pessoas com deficiência, ajudas Figura 11
Fonte: Wikimedia Commons
técnicas ou elementos tecnológicos assisti-
vos. Instrumentos que já vinham sendo utilizados, como cadeiras de rodas, benga-
las, sistemas de ensino para surdos e cegos, dentre outros, foram se aperfeiçoando.

O período é marcado por duas grandes guerras mundiais, consequentemente,


aumenta o número de pessoas com deficiências, bem como a busca por atendi-
mentos e recursos diferenciados para atender às necessidades dessas pessoas.

Nos anos de 1902 até 1912, cresceu, na Europa, a formação e a organização


de instituições voltadas para preparar a pessoa com deficiência. Levantaram-se
fundos para a manutenção dessas instituições, sendo que havia uma preocupação
crescente com as condições dos locais onde as pessoas com deficiência se abriga-
vam. Em 1914, o Império Alemão declara uma guerra que se estende até 1918.

Durante a Primeira Guerra Mundial, as mulheres puseram-se a trabalhar para


sustentar a família, enquanto os maridos estavam na guerra; as crianças com e sem
deficiência ficavam em abrigos.

Com o final da Primeira Grande Guerra restaram os conflitos políticos e os


países, principalmente aqueles que participaram do conflito, estavam em crise fi-
nanceira. Sendo, portanto, necessário que os governos se preocupassem com o
desenvolvimento de procedimentos de reabilitação dos ex-combatentes, melhoran-
do a reabilitação dos jovens veteranos.

17
17
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

O 32º Presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, em 1933,


com o programa político New Deal, atrelado à assistência social, ajudou a mini-
mizar os efeitos da Depressão. Roosevelt, que era paraplégico, embora não gos-
tasse de ser fotografado em sua cadeira de rodas, contribuiu para uma nova visão
da sociedade americana e mundial de que a pessoa com deficiência, com boas
condições de reabilitação, pode ter independência pessoal. Ele foi um exemplo
seguido por muitos americanos com deficiência que buscavam vida independente
e trabalho remunerado.

Assim, a sociedade, tanto americana como internacional, já começava a perce-


ber que as pessoas com deficiência precisavam participar ativamente do cotidiano,
integrando-se à sociedade. No entanto, permanece, durante esse período, toda
uma herança das crenças e dos mitos, dos preconceitos, da desvalorização e da
tendência segregacionista.
Em 1945 é deflagrada a Segunda Guer-
ra Mundial, de 1939 a 1945, liderada por
Hitler, que assolou e chocou o mundo
pelas atrocidades provocadas. Sabe-se
que o Holocausto eliminou judeus, ciga-
nos e também pessoas com deficiência.
Estima-se que 275 mil adultos e crianças
com deficiência morreram nesse período,
outras 400 mil pessoas suspeitas de te-
rem hereditariedade de cegueira, surdez e
deficiência mental foram esterilizadas em
nome da política da raça ariana pura.

O triste desfecho da guerra, quando


os Estados Unidos lançaram bombas nu-
cleares sobre Hiroshima e Nagasaki, foi
devastador e matou 222 mil pessoas, dei- Figura 12
xando sequelas nos sobreviventes civis. Fonte: Wikimedia Commons

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo precisou se reorganizar.


A Europa estava devastada, as cidades exigiam reconstrução, as crianças órfãs
precisavam de abrigo, comida, roupas, educação e saúde. Os adultos sobreviventes
ficaram com sequelas e precisavam de tratamento médico e de reabilitação.

Com a Carta das Nações Unidas, criou-se a Organização das Nações Unidas
(ONU) em Londres, no ano de 1945, visando encaminhar, com todos os países
membros, as soluções dos problemas que assolavam o mundo. Os temas centrais
foram divididos entre as agências:
• ENABLE – Organização das Nações Unidas para Pessoas com Deficiência;
• UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura;
• UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância OMS - Organização Mun-
dial da Saúde.

18
O percurso histórico da pessoa com deficiência, nos diferentes países, tem se-
guido um padrão de evolução muito parecido, ou seja, do extermínio à segregação
e exclusão. Há uma modificação do olhar a respeito dessas pessoas, que passam a
ser vistas como possuidoras de certas capacidades, ainda que limitadas, principal-
mente no que se refere à aprendizagem. Predomina um olhar de tutela e a prática
correspondente no que diz respeito aos excepcionais (como as pessoas com defi-
ciência eram chamadas na época), no sentido de protegê-los em asilos e abrigos,
muitos dos quais permanecem ali até a morte.

A partir da década de 60, outro momento histórico é marcado pelo reconheci-


mento do valor humano desses indivíduos e, como tal, o reconhecimento de seus
direitos. Na maioria dos países, esse movimento vem se acirrando desde então.

Fortaleceu- se, aos poucos, a convicção de que as pessoas com deficiência po-
diam trabalhar e queriam exercer voz ativa na sociedade. Os estados passaram
gradativamente a reconhecer sua responsabilidade no cuidado com esse segmento
populacional, no que se referia às suas necessidades de educação e de saúde.

Concomitantemente, foi-se delineando, no mundo acadêmico, o que se denomi-


nou, mais tarde, de ideologia da normalização. Em 1973, a Associação Americana
Nacional para Cidadãos Retardados referiu-se à normalização como
[...] processo de ajuda ao deficiente, no sentido de garantir a ele as con-
dições de existência o mais próximas do normal (estatístico) possível,
tornando-lhe disponível os padrões e as condições da vida cotidiana o
mais próximo das normas “processo de ajuda ao deficiente, no sentido
de garantir a normas e os padrões da sociedade” (Braddock, 1977, p. 5).

O princípio de normalização deu suporte filosófico ao movimento de desinsti-


tucionalização e ao movimento pela integração social da pessoa com deficiência,
responsável tanto pela retirada desses indivíduos das Instituições tradicionais, como
pela implantação de programas comunitários de serviços para atender às suas ne-
cessidades.

Assumindo politicamente que a pessoa com deficiência era cidadã, como outra
qualquer, que tinha o direito a uma vida “normalizada”, e que para isso precisava
ser preparada, esse paradigma caracterizou-se pela oferta de serviços.

Entidades filantrópicas financiadas pelo poder público passaram a oferecer à


pessoa com deficiência um amplo leque de modalidades de serviços, geralmente,
em ambiente segregado, mantendo-os disponíveis até que esta fosse considerada
“pronta” para sua integração na comunidade.

Este paradigma representou um grande avanço quando comparado ao da insti-


tucionalização total. Entretanto, ainda se mostrou limitado ao focalizar a necessida-
de de mudança quase que exclusivamente na pessoa com deficiência.

Sabemos que é ilusória a expectativa de que a pessoa com deficiência se asse-


melhe a não deficiente, já que a diversidade é uma das principais características da

19
19
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

humanidade; ser diferente não implica, necessariamente, que este indivíduo tenha
menos valia enquanto ser humano e ser social.

Por outro lado, não se podem negar as limitações impostas por uma deficiência,
e isso pode ser fator determinante para a discriminação dessa pessoa, já que ao
negá-las, a sociedade se desobriga a promover os ajustes e adaptações que permi-
tiriam a sua efetiva participação na vida social.

A experiência tem mostrado alguns equívocos, como supor que por meio de
uma vivência segregada e na convivência quase que exclusiva com outras pessoas
com deficiência, alguém pudesse realmente se “habilitar” para uma integração so-
cial. Ou que todas as pessoas com deficiência pudessem ser modificadas, em busca
da normalização, a ponto de não mais apresentarem as limitações impostas por
sua deficiência.

Assim, cabe à sociedade oferecer acesso aos serviços que os indivíduos com defi-
ciência necessitarem, nas diferentes áreas: física, psicológica, educacional, social e
profissional, independente do tipo de deficiência e grau de comprometimento que
possam apresentar.

Durante séculos, as pessoas com deficiência estiveram em estado permanente


de segregação e de exclusão, determinando limites para seu desenvolvimento e im-
possibilitando a construção de uma identidade positiva, de uma consciência crítica
e do pleno exercício da cidadania. Ficando historicamente alijadas dos processos e
da participação dos processos sociais e políticos da sociedade,

Ainda hoje, muitas pessoas com deficiência são excluídas da sociedade, deixan-
do assim de contribuir para a construção desta, perdendo a oportunidade de se
desenvolverem, de adquirirem consciência crítica e, principalmente, da convivência
e da humanização da sociedade como um todo, além da perda da autonomia e
independência enquanto cidadãos atuantes.

No Brasil, a atenção à pessoa com deficiência se caracterizou inicialmente pela


institucionalização e segregação total dessa parcela da população. As mudanças so-
ciais constituem-se, portanto, em processos lentos, especialmente em países como
o nosso, pela falta de definição de rumos que se deseja imprimir ao panorama
sócio-político-econômico do país, bem como na exigência do respeito a seus dire-
tos enquanto cidadãos, co-participantes do processo democrático vigente no país.

Embora a atenção à pessoa com deficiência, em nosso país, tenha se caracteri-


zado por um discurso descritivo dos paradigmas de serviços, em mudança para o
paradigma de suportes, na prática, constata-se que a ação social encontra-se ainda
no paradigma da institucionalização, associado ao paradigma de serviços.

A elaboração de diversos documentos nacionais e internacionais tem assegurado


direitos iguais ao cidadão que tenha um tipo de deficiência. O início do século XXI
vem sendo marcado pelas relações da sociedade com o segmento populacional

20
constituído pelas pessoas com deficiência, no sentido de promover, efetivamente,
o ajuste da oferta aos serviços de Educação, Sociais, de Saúde, do Trabalho e
Emprego, da Cultura, do Lazer, do Esporte e de Urbanismo, com o objetivo de
garantir acesso, permanência e utilização dos espaços e da vida social e cotidiana
na comunidade na qual está inserido.

Diversos autores vêm apontando, há algum tempo, para a necessidade de se


buscar compreender, para além do conceito, o contexto no qual a situação do de-
ficiente emerge, uma vez que defendem a compreensão de que toda deficiência é
social (AMARAL, 1995).

Neste contexto se expressa o reconhecimento de que as diferenças existentes


são constituídas por uma multiplicidade de modos de pensar, agir e sentir, portan-
to, é de primordial importância que haja o respeito, a valorização e o convívio das
diferentes identidades (Sennett In Aquino, 1998).

O paradigma da inclusão social defende que cabe à sociedade se adaptar para


poder incluir, em seus sistemas gerais, num movimento dialético de construção de
novos espaços sociais, no qual façam parte novos atores e novas práticas sociais,
muito embora as práticas sociais ainda sejam organizadas a partir do padrão de
normalidades construído em torno do indivíduo que apresenta algumas caracterís-
ticas selecionadas pelo grupo social como sendo o modelo ideal.

Figura 13
Fonte: iStock/Getty Images

O processo de inclusão social é resultado da interação de fatores individuais e do


meio, já que as reações sociais dependem tanto das características primárias das defi-
ciências como dos aspectos estruturais e conjunturais da sociedade (OMOTE, 1994).

21
21
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

Resta a cada um de nós, profissionais, a realização de uma reflexão crítica, com


o intuito de identificar como se caracteriza nosso discurso e como se caracteriza
nossa prática, tendo como foco da análise o processo histórico da relação das so-
ciedades com as pessoas com deficiência.

Cabe a nós, ainda, enquanto profissionais da saúde e da educação, que atua-


mos junto às pessoas com deficiência e seus familiares, promover orientações e
esclarecimentos sobre as capacidades e habilidades, minimizar os sentimentos de
desesperança e de desamparo que ter um filho com deficiência certamente trará e,
principalmente, rompermos com as barreiras atitudinais, aquelas que fomentam a
discriminação e o preconceito.

22
Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Filmes
O Oitavo Dia
O filme retrata o cotidiano de dois personagens muito distintos e, ao mesmo tempo,
semelhantes. O primeiro, Georges (Pascal Duquenne), com síndrome de Down e o
segundo, Harry (Daniel Auteuil), uma pessoa comum, vivendo o cotidiano através de
rotinas diárias do amanhecer ao dormir.
Meu Nome é Rádio
Anderson, Carolina do Sul, 1976, na escola secundária T. L. Hanna. Harold Jones (Ed
Harris) é o treinador local de futebol americano, que fica tão envolvido em preparar o
time que raramente passa algum tempo com sua filha, Mary Helen (Sarah Drew), ou
sua esposa, Linda (Debra Winger). Jones conhece um jovem “lento”, James Robert
Kennedy (Cuba Gooding Jr.), mas Jones nem ninguém sabia o nome dele, pois ele
não falava e só perambulava em volta do campo de treinamento. Jones se preocupa
com o jovem quando alguns dos jogadores da equipe fazem uma “brincadeira” de
péssimo gosto, que deixou James apavorado. Tentando compensar o que tinham feito
com o jovem, Jones o coloca sob sua proteção, além de lhe dar uma ocupação. Como
ainda não sabia o nome dele e pelo fato dele gostar de rádios, passou a se chamá-lo
de Radio. Mas ninguém sabia que, pelo menos em parte, a razão da preocupação de
Jones é que tentava não repetir uma omissão que cometera, quando era um garoto.
Uma Lição de Amor
Sam Dawson (Sean Penn) é um homem com deficiência mental que cria sua filha Lucy
(Dakota Fanning) com uma grande ajuda de seus amigos. Porém, assim que faz 7 anos
Lucy começa a ultrapassar intelectualmente seu pai, e esta situação chama a atenção
de uma assistente social que quer Lucy internada em um orfanato. A partir de então
Sam enfrenta um caso virtualmente impossível de ser vencido por ele, contando para
isso com a ajuda da advogada Rita Harrison (Michelle Pfeiffer), que aceita o caso como
um desafio com seus colegas de profissão.
Sempre Amigos
Maxwell Kane (Elden Henson) é um garoto de 14 anos que tem dificuldades de
aprendizado e vive com seus avós desde que testemunhou o assassinato de sua mãe,
morta pelo marido. Quando Kevin Dillon (Kieran Culkin), um garoto que sofre de
uma doença que o impede de se locomover, se muda para a vizinhança eles logo se
tornam grandes amigos. Juntos vivem grandes aventuras, enfrentando o preconceito
das pessoas à sua volta.

23
23
UNIDADE Distúrbios do Desenvolvimento

Referências
AMARAL, L. A. Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules). São
Paulo: Robe Editorial, 1995.

BECKER, E. Deficiência: alternativas de intervenção. São Paulo: Casa do Psicó-


logo, 1997.

BÍBLIA. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Fer-


reira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do
Brasil, 1969.

GUGEL, M. A. Pessoas com Deficiência e o Direito ao Trabalho. Florianópolis:


Obra Jurídica, 2007.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª.


ed. Rio de Janeiro, 1982.

MISÈS, R. A criança deficiente mental: Uma abordagem dinâmica. Rio de Janei-


ro: Zahar, 1977.

OMOTE, S. Deficiência e não deficiência: recortes do mesmo tecido. Revista


Brasileira de Educação Especial. v. 2. Piracicaba, 1994.

24

Você também pode gostar