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Os valores morais de uma profissão

José Geraldo de Freitas Drumond1


1
Presidente da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG, Minas Gerais, Brasil

Drumond, J. G.; (2006). Os valores morais de


uma profissão 2(3): 192-200

data de submissão: 21-06-2006


data de aceitação: 20-07-2006

Introdução
O vocábulo “profissão” é originariamente de novos profissionais.
conotação religiosa e significa “profissão de fé” Profissão é, pois, uma atividade humana espe-
ou “professar” uma religião (do latim: profiteor, cífica que surge em razão de uma necessidade
profiteri, professus su, que significa voto público, social, para a qual deve estar voltada com a missão
fazer uma promessa pública, declarar publica- fundamental de colaborar para o bem-estar cole-
mente um compromisso de fazer o bem a outros tivo, o equilíbrio e a paz social.
ou bene facere). Para James Drane (2004), profissional é “alguém
Professar (ou confessar) é sinônimo de dispo- que faz promessa pública de trabalhar para outros
nibilizar-se para um determinado serviço, consa- e é essencial para a sociedade”. Assim, as suas
grar-se a uma atividade. Assim, desde o início da características estariam assim definidas:
humanidade foram desenvolvidos alguns serviços 1- Proporcionam serviços públicos essenciais
imprescindíveis à sociedade, como a consagração para o bem comum.
(profissão) aos serviços religiosos, aos cuidados da 2- É considerada uma vocação, mais que sim-
família, à administração da justiça e à atenção aos plesmente um trabalho.
enfermos. 3- Para ser exercida, tem como pré-requisito um
Desde então, conceitua-se como profissio- treinamento prolongado e especializado em uma
nal alguém consagrado a uma causa de grande universidade. A educação adquirida na universi-
transcendência social e humana. Por seu turno, dade inclui tanto conhecimentos teóricos como
a sociedade exige correção e retidão no desem- uma prática concreta.
penho deste mister, daí que outorga a estes cida- 4- O controle para se ingressar a uma profissão é
dãos determinados privilégios como uma forma exercido através de uma licença. Deve-se ter uma
de retribuição por “consagrarem” a sua vida para licença específica para praticar uma profissão.
servir esta mesma sociedade. 5- Os conselhos de admissão estão formados
Assim, quando pessoas que assumem a respon- por membros da profissão.
sabilidade de executar funções relacionadas com 6- As profissões elaboram seus próprios
as dimensões mais sagradas da existência, como a códigos e padrões éticos.
religião, a justiça e a saúde não atuam de forma a 7- As leis concernentes à profissão são ideal-
respeitar a ética inerente à sua profissão ou fun- mente influenciadas pela própria profissão. Por
ção, a sociedade como um todo se torna diminu- exemplo, os conselhos profissionais geralmente
ída em seus valores morais. avaliam demandas de má prática antes de serem
Por outro lado, a evolução dos costumes e os julgadas publicamente.
desenvolvimentos do conhecimento humano 8- Os profissionais desfrutam de autonomia na
através da ciência e da tecnologia, fizeram com oferta de serviços.
que as relações sociais se tornassem mais com- 9- Aqueles que pagam por serviços (usuários)
plexas, demandando o aparecimento de outras não controlam ou não tem autoridade sobre
atividades, funções e profissões e, para exercê-las, eles.

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10- Uma profissão trabalha com normas éticas disso, o profissional deve, ainda, atuar com obje-
de alto caráter objetivo e com obrigações morais tividade para obter uma neutralidade afetiva e se
altamente subjetivas. desincumbir adequadamente de seu mister. Por
A definição dos respectivos direitos e deveres de fim, a profissão é uma exigência e uma neces-
uma profissão, bem como a delimitação de sua sidade social, devendo estar sempre voltada para
área de atuação em relação às demais profissões, a coletividade, beneficiando-a. É dever de um
são as condicionantes para o preenchimento dos profissional cumprir os misteres de sua profissão,
requisitos pessoais e técnicos daqueles que se dis- até mesmo em situações economicamente desfa-
põem a exercê-la. voráveis, disponibilizando os seus serviços desde
O fato de se deter um conhecimento técnico e que solicitado.
uma prática especializada não é o bastante para Entretanto, é o componente moral de uma
se ter uma atuação profissional adequada, porque profissão que, de fato, lhe propicia todo o relevo
o conhecimento não é um fim em si mesmo, social, pois representa a aplicação da reflexão do
por mais especializado que seja, mesmo quando saber e do saber-fazer em benefício da coletivi-
destinado a atender a um determinado interesse dade. Quem assume tal caráter certamente desen-
social. Para além da técnica e da prática especia- volve a consciência dos limites da sua profissão
lizadas impõe-se um terceiro e atributo, que é a ao perceber que nem tudo aquilo que é tecnica-
atuação profissional no seio da sociedade. mente possível realizar, resulta necessário e legí-
Talcott Parsons (1964), representante da escola timo. O exercício permanente da reflexão sobre
sociológica tradicional, define profissionais como os valores humanos e sociais é o que desenvolve
sendo aqueles que têm o “controle e domínio a consciência dos limites pessoais e profissionais,
de um determinado campo do saber, sob a pri- permitindo-se que cada qual seja avaliado sob a
mazia da racionalidade cognitiva e orientados égide de princípios e normas morais.
para a aplicação do conhecimento a problemas Paul Starr (1991), utilizando o método da abor-
práticos”. dagem histórico-social das profissões, corrobora-
As conceituações modernas enfatizam mais as lhes os conceitos de auto-regulação e capacitação,
estruturas sociais emergentes, ressaltando-se a que se acham baseados em conhecimentos técni-
base cognitiva necessária a um profissional, des- cos e especializados. No entanto, as profissões são
tacando o “ethos” na prestação de serviços e na definidas muito mais em razão dos serviços que
auto-regulação da profissão. prestam à sociedade do que propriamente de seus
Parsons - que desenvolveu suas pesquisas junto interesses pecuniários, ainda que, em geral, este-
aos médicos por considerar a Medicina uma pro- jam balizadas por um código de ética.
fissão paradigmática - entende que as profissões Um ato profissional perfeito deve estar sub-
podem ser definidas com base em quatro carac- metido a três requisitos: propriedade, justeza e
terísticas: universalidade, especificidade funcional, adequação. Uma ação profissional apropriada é
postura objetiva e um objetivo comunitário. A aquela que se acha em conformidade com a téc-
universalidade responde à exigência da sociedade nica (“Tekhne” dos gregos) e própria para uma
para que o profissional trate os seus membros de determinada situação, como determina a sua
igual modo, sem discriminação. A especificidade arte (“Lex artis”). Além disso, esta ação deve ser
funcional caracteriza o perfil da profissão para intrinsecamente benéfica (ou adequada) para
uma determinada atividade, conferindo auto- quem é destinada e resultar socialmente conse-
ridade e prestígio social a quem a exerce. Além qüente (justa).

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José Geraldo de Freitas Drumond

Mas nem sempre aquilo que é próprio ou sociedade e aplicados especificamente à prática
intrinsecamente bom será necessariamente justo, de determinado ofício. Como bem refere Maria
do ponto de vista da moral social. Daí porque, no Patrão Neves (2003), nenhuma profissão existe
exercício de uma profissão, é cada vez mais fre- para os seus membros; todas existem para servir
qüente o enfrentamento de demandas resultantes uma diferente necessidade que, uma vez devida-
de determinados atos profissionais, devido a situ- mente satisfeita, a tornará merecedora da con-
ações contraditórias ou conflitantes em relação às fiança da sociedade.
normas legais e morais, em face dos interesses do Os valores humanos são imprescindíveis para
cliente. Isto se dá porque toda atividade profis- a vida, pois não se vive sem valorizar ou esti-
sional envolve um conjunto de decisões pessoais, mar as coisas.Valorar é uma condição da essência
transações, articulações de interesses, expectativas humana. Por isso, as decisões profissionais devem
e satisfações. levar em conta os valores humanos, já que estes
Uma ação profissional tem como resultado a sempre interferem naqueles. Assim sempre estará
convergência final destes diversos e dinâmicos errada a decisão baseada apenas em fatos, por-
fatores que interagem com os fatores imanentes que não será uma decisão humana. Uma deci-
daqueles que são os sujeitos de uma intervenção são humana só será correta, repetimos, se levar
especializada. em consideração a conjunção de fatos e valores
Uma ruptura neste equilíbrio dinâmico pode humanos.
resultar numa desarmonia das relações do pro- As realidades humanas possuem valores pró-
fissional com o cliente, o que certamente reper- prios, que se referem, por exemplo, a bem-estar
cutirá na sua imagem pessoal e no conceito da ou a mal-estar, à saúde ou a doença, à vida ou à
profissão perante a sociedade. morte. São os chamados valores vitais ou ineren-
Para se exercer uma profissão se exige um deter- tes ao ser vivo.
minado caráter, uma predisposição ou uma voca- Além disso, os seres humanos apresentam valo-
ção que não se restringe às possíveis qualidades res espirituais, próprios da pessoa, que podem
técnicas, senão que incorpora convicções pessoais ser categorizados em valores lógicos (como a
e uma consciência social de quem nela vai atuar. verdade ou o erro), estéticos (como o belo e o
Uma profissão, para ser adequadamente pra- feio) e os valores morais (bom e mau, correto e
ticada, deve estar fundamentada em três pilares incorreto).
simétricos: a técnica, o aprimoramento profissio- Há vários sistemas de valores, conforme a tradi-
nal e a ética. ção cultural de um povo. Assim, os anglo-saxões
A técnica é resultado da formação científica e têm uma filosofia de liberdade e veracidade
cultural, originada de um conhecimento especí- vinculada à luta e à busca da vitória a qualquer
fico ou particular da ciência, que se denomina a preço, com o conseqüente desprezo aos derro-
“Lex artis” profissional. tados. Para eles a verdade está na diferença entre
O aprimoramento profissional vincula-se à atu- bons e maus, entre vencedores e perdedores, pois
alização permanente da técnica, cuja atualização só os vencedores alcançam o paraíso.
é demandada de modo continuado em razão dos Os povos asiáticos, representados pelos japone-
avanços do conhecimento científico e da própria ses, estabeleceram três abordagens para os valores:
técnica. a xintoísta, a confucionista e a budista. A primeira
A ética profissional configura-se como um reforça as virtudes da fidelidade e da obediên-
conjunto de valores humanos adotados por uma cia; a segunda prega o consenso e relações sociais

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de respeito mútuo, a não violência, a persuasão, dãos, ao procurar os serviços do especialista.
a busca da harmonia e prevenção do conflito; Para o profissional tais qualidades podem ser
enquanto o budismo prioriza o bem da coletivi- inúmeras, mas, a título de contribuição, distin-
dade acima dos desejos individuais. guiremos a prudência, a temperança, a coragem,
Já os povos latinos têm os seus valores baseados a fortaleza, a justiça, a generosidade, compaixão,
na tradição mediterrânea. Foi no Mediterrâneo, a humildade, a tolerância, a misericórdia, a fide-
mais propriamente na Grécia, que nasceu a ética lidade, a solicitude e o entusiasmo. No caso dos
ocidental, cujo sistema de valores é anterior ao clientes, razão maior da existência profissional,
próprio cristianismo. A ética mediterrânea exibe é de exigir as qualidades morais da sinceridade,
uma linguagem de expressão do bem e do mau, confiança, probidade, equidade e tolerância.
da virtude e do vício, diferentemente da ética Somente pelo exercitar destas virtudes propicia-
anglo-saxônica, cuja linguagem se refere a direito rão é que uma pessoa poderá se capacitar a refle-
e poder. tir e julgar as situações, muitas vezes imprevistas,
Virtude é um traço do caráter humano social- do cotidiano profissional.
mente valorizado, enquanto a virtude moral é A este respeito, André Comte-Sponville (1995),
aquele aspecto moralmente valorizado. A virtude assim se manifesta:
moral consiste na disposição ou no hábito de Das virtudes quase não se fala mais. Isto não significa
agir de acordo com princípios, normas ou ideais que não precisamos mais delas, nem nos autoriza a
morais.Virtudes são, pois, qualidades ou excelên- renunciar a elas. É melhor ensinar virtudes, dizia Spi-
cias morais, importantes para distinguir um pro- noza, do que condenar os vícios. É melhor a alegria do
fissional com atributos de caráter, indispensáveis que a tristeza, melhor a admiração do que o desprezo,
para uma adequada atuação, especialmente para melhor o exemplo do que a vergonha. Não se trata de
aqueles que se dedicam a servir em áreas que têm dar lições de moral, mas de ajudar cada um a se tor-
aplicação direta na saúde ou na qualidade de vida nar seu próprio mestre, como convém, e seu único juiz.
do homem. Com que objetivo? Para ser mais humano, mais forte,
Hoje, diante do desapego da sociedade pós- mais doce. Virtude é poder, é excelência, é exigência.
moderna aos valores espirituais e dos profissio- As virtudes são nossos valores morais, mas encarnados,
nais àqueles próprios de sua especialização, con- tanto quanto pudermos, mas vividos, mas em ato. Sem-
seqüência da competição desenfreada propiciada pre singulares, como cada um de nós, sempre plurais,
pelo mercado de trabalho globalizado, cada vez como as fraquezas que elas combatem ou corrigem. Não
mais estreito em decorrência do número de pro- há bem em si: o bem não existe, está por ser feito, é o
fissionais e pela ampliação da área do conheci- que chamamos de virtudes.
mento que, por sua vez, leva ao aparecimento de Cabe, pois, de modo objetivo, salientar o signi-
novos profissionais para atender a multidiscipli- ficado de cada uma destas virtudes assinaladas no
naridade das profissões hodiernas, surge o apelo à contexto da vida profissional:
prática da ética da virtude e ao cultivo dos valores
morais. A Prudência
É importante identificar qualidades morais
que possam robustecer o compromisso social da Os latinos traduziram como “prudentia” a “phro-
profissão e, ao mesmo tempo, estabelecer con- nésis” dos antigos gregos, que tem o significado
traponto com as qualidades morais da própria de equilíbrio e constitui a virtude da cautela, da
sociedade, que as expressa por meio de seus cida- precaução, do agir com bom senso. Na prática, a

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José Geraldo de Freitas Drumond

prudência significa a observação sempre atenta e e conseqüência das suas condutas profissionais.
vigilante do saber-fazer profissional. Aristóteles afirmava que a temperança é uma
Para Aristóteles, “phronésis” é uma virtude que virtude cumeada entre dois abismos opostos: a
facilita a escolha dos meios corretos para se obter intemperança e a insensibilidade. A temperança é
um bom resultado. Para Cícero, “prudentia” pro- mais reconhecida pelos seus opostos do que pela
vém de “providere”, que significa tanto prever sua prática, pois, como toda virtude, está sempre
como prover. Não pode haver uma virtude mais no cume, entre dois opostos ou extremos.
importante para aquelas profissões que trabalham Para Tomás de Aquino, a temperança é uma vir-
com o material mais importante do ser humano, tude cardeal, e a mais necessária, embora a cora-
que é a sua saúde e qualidade de vida. gem e a justiça sejam as mais admiráveis.
A prudência determina o agir pela busca do que
é bom e a recusa do que é mau. A prudência deve A Coragem
ser uma companheira fiel de toda decisão do
médico: é o decantado bom senso profissional A coragem consiste numa persistente disposição
Das quatro virtudes cardeais – prudência, tempe- para o enfrentamento das freqüentes dificuldades
rança, coragem e justiça – a prudência, no enten- que o exercício de uma profissão enseja, desde
der de Tomás de Aquino, deve reger as demais, a estrutura deficiente de atenção ás necessida-
pois a prudência representa mais uma delibera- des da população, até aquelas situações em que o
ção, o bem agir. Para André Comte-Sponville, é a profissional terá que valer da sua autoridade em
prudência “que separa a ação do impulso, o herói do favor do cliente, mesmo que isto possa contrariar
desmiolado”. No entendimento clássico, é a vir- outros interesses.
tude do risco e da decisão que, hodiernamente, Coragem não é a ausência de medos, mas a dis-
tem o significado da precaução. É, enfim, o zelo posição de superá-los e, no caso de valor moral
profissional. profissional, deverá se voltar para a defesa de um
Assim é que quando se decide pela melhor interesse social, qual seja, do bem-estar da pessoa
opção possível, diz-se que houve prudência. e da coletividade.
É Cícero quem invoca a coragem como a arma
A Temperança que permite o homem “enfrentar os perigos e
suportar os labores”.
É a consciência dos limites pessoais e diz respeito Como virtude, a coragem se encontra no
à moderação do homem na fruição dos prazeres. meio (“In medio stat virtus”) entre a covardia
Significa saber viver uma vida de moderação ou e a temeridade. Está no cume, como diz Aris-
autodisciplina sem a inconseqüente submissão tóteles, entre dois abismos, entre dois excessos:
às paixões, aquilo que poderia ser caracterizado de um lado a submissão ao medo, a inação e a
como vício ou desregramento.Trata-se da virtude acomodação e, de outro, a despreocupação com
da sobriedade, tão importante e recomendada aos as conseqüências.
profissionais que cuidam da saúde, sendo alvos de
um elevado conceito social. A sociedade exige A Fortaleza
mais do comportamento social e pessoal destes
profissionais que de outros, daí porque deverão Fortaleza significa a disposição sempre renovada
exercitar a coerência entre o discurso e a prática, do profissional em continuar exercendo o seu
tendo a sobriedade da vida pessoal como causa ofício, embasado nas suas convicções morais e no

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A Generosidade

seu conhecimento técnico, sempre em benefício É uma qualidade moral inata ao profissional das
do sujeito da sua atuação. áreas social, educação e saúde, pois quem abraça
A fortaleza deve ser uma virtude continuada- um serviço nestas áreas já possui uma vocação
mente revigorada pelo estudo e pela atualização para a solidariedade, para a prática do “bonum
permanente da arte ou técnica, associado à refle- facere”, que significa cuidar do outro, promover
xão sobre os princípios filosóficos, em que deve ou melhorar a sua cidadania. É uma caracterís-
assentar todo o ideário profissional. tica sublime da qual nenhum profissional poderá
abrir mão, sob pena de não ser mais reconhecido
A Justiça como tal.
A generosidade, no entender de Comte-Spon-
Justiça é a qualidade moral que compromete o ville “nos eleva em direção aos outros e, poderí-
profissional com a sociedade, priorizando a sua amos, dizer, em direção a nós mesmos enquanto
atenção na direção daqueles que compõem um libertos de nosso pequeno eu”.
estrato social mais injustiçado, geralmente exclu- A generosidade, conclui o filósofo, será sem-
ídos dos benefícios que a ciência pode propiciar. pre plural: quando somada à coragem pode se
A justiça, como qualidade moral, concorre para transformar em heroísmo; se adicionada à justiça,
a formação de um profissional preparado para resulta em eqüidade; se somada à paixão, gera a
contribuir com a melhoria da qualidade de saúde benevolência; se somada à misericórdia trans-
do seu povo, laborando pela equidade, ou seja, forma-se em indulgência. Mas, ao se somar à
pela oportunidade que todos devem ter, indis- doçura o seu nome passará a ser bondade.
tintamente, de acesso aos serviços que a profissão
oferece. A Compaixão
A eqüidade está na raiz de uma justiça que tem
o pressuposto de que todos os homens nascem Desinência latina (com: junto; paixão: sofrer) e
iguais em direito e oportunidade e nada melhor sinônimo do vocábulo grego “simpatia” (sim: ao
do que um profissional consciente de suas res- lado e pathos: doença), compaixão é a solidária
ponsabilidades para reconhecer esta virtude e participação do profissional em relação aos sen-
comprovar que está exatamente na falta de acesso timentos de seu cliente. É a compreensão da sua
aos benefícios do conhecimento especializado a dor, física ou psíquica, ou ambas. Não é apenas a
maior de todas as injustiças. consciência de uma situação dolorosa, mas sim o
A justiça, como uma virtude professada pelo reconhecimento do sofrimento alheio, no sen-
profissional, deve ser, então, a justiça da igualdade tido de compreender, de fato, a sua necessidade
de oportunidades, que deve colaborar para que de carinho e afeto.
haja redução das desigualdades sociais. Compaixão é qualidade moral que não pode
Uma justiça que vai além da mobilidade em ser confundida com a piedade, pois esta repre-
direção aos mais necessitados e excluídos, mas que senta tão somente o sentimento de tristeza pela
implica, também, na atitude política de denunciar infelicidade do outro, uma atitude passiva e até
toda situação que dificulte ou impeça a conquista mesmo cômoda. A compaixão é postura ativa de
de uma qualidade de vida razoável para todos,
independentemente da condição social.

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quem vai ao encontro do sofrimento alheio, para comungam a mesma moral, ou seja, existem duas
compreendê-lo e ajudá-lo. A compaixão é, por- categorias de pessoas, com respeito à moralidade:
tanto, uma ação comitente e nunca passiva ou até os “amigos” e os “estranhos morais”, cujas diferen-
negligente, como é a piedade. ças devem não só ser conhecidas, mas, sobretudo,
respeitadas pelo profissional que cuida de pessoas
A Humildade em todas as suas dimensões. Assim, ele haverá de
conviver com situações conflituosas e, por vezes,
É o reconhecimento e a consciência da impotên- antagônicas, nas quais deverá agir com o máximo
cia e da fraqueza humanas. Nada mais angustiante de isenção possível, tendo como meta o respeito à
para um profissional dedicado ao serviço do pró- dignidade e à integridade do ser humano.
ximo que não poder realizar, de modo adequado, A tolerância não é uma atitude expectante ou
a sua missão. Isto se deve, por um lado, à própria subserviente, mas uma disposição de respeito às
limitação da ciência, que é incapaz de dar respostas diferenças entre pessoas.
para todas as indagações e ter remédios para todos
os males humanos. Ainda que a ciência tenha evo- Misericórdia
luído, as suas verdades continuam efêmeras. Por
seu turno, o próprio profissional possui um arca- É o atributo moral que propicia às pessoas releva-
bouço intelectivo-cultural sujeito a limitações. É rem as faltas cometidas pelos outros, incluindo as
necessário cultivar a humildade profissional como ofensas à sua própria pessoa. Misericórdia é sinô-
reconhecimento permanente de sua ignorância e nimo de perdão, esquecimento, ausência de rancor
disposição permanente da busca por mais conhe- em face de atitudes agressivas e injustas de que pro-
cimentos. Sócrates afirmava: “Só sei que nada sei”, fissional é alvo no exercício de seu mandato social.
enquanto Terezinha do Menino Jesus conceituava: Incompreensões e ações infundadas de clientes ou
“Humilde é quem sabe ser do seu tamanho, nem maior seus familiares podem denegrir a imagem e colo-
nem menor”. car sob suspeição a honra do profissional. Nestas
A humildade deve ser, pois, uma qualidade moral ocasiões, o profissional necessita reafirmar a sua
permanentemente presente na prática profissional, personalidade altruísta para compreender os fatos,
para que ele se conheça, exatamente, o “quantum” distinguindo o emocional do racional, procurando
possui de conhecimento da sua arte, não se pro- dialogar com a parte beligerante no sentido de
pondo ir além do que a ciência e a sua consciência sanar a querela.
autorizarem. Não é uma situação fácil de administrar e, certa-
mente, exige uma maturidade emocional de quem
A Tolerância já se encontra muitas vezes fatigado pela carga de
trabalho que lhe é imposta, muitas vezes além do
A tolerância ensina reconhecer e respeitar as dife- que a própria capacidade biológica pode suportar.
renças entre as pessoas. O mundo está cada vez mais Praticar a misericórdia é ter em mente que uma
povoado de pessoas que exibem diferentes crenças, determinada profissão exige de seus cultores um
ideologias e opiniões. Há, pois, diferentes morais persistente exercício de desprendimento pessoal e
ou moralidades que são merecedoras de respeito. a compreensão.
Recordemos Engelhardt (1996) que cunhou o Pode-se medir o grau de desafio desta virtude,
termo “estranhos morais” para distinguir as cate- quando observamos a grande reflexão de Martin
gorias de indivíduos ou grupos sociais que não Heidegger, um dos maiores filósofos contemporâ-

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neos, sobre a realidade do homem atual: e doçura ao cliente, mas, também, ter tempo
Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimen- para ouvi-lo, ajudá-lo e orientá-lo, tantas vezes e
tos tão numerosos e diversos quanto a nossa. Nenhuma durante todo o tempo que for necessário até se
época apresentou tão bem e sob a forma mais tocante conseguir o resultado desejado.
seu saber sobre o homem. Nenhuma época conseguiu A solicitude pode ser encarada até como um
tornar este saber tão pronto e facilmente acessível. Mas sacerdócio, ou seja, a dedicação permanente a
nenhuma época, também, soube menos o que é o homem. uma causa social e ao benefício dos outros, até
Em nenhuma outra o homem apareceu tão misterioso. mesmo com sacrifícios pessoais e familiares.

A Fidelidade O Entusiasmo

É a virtude do comprometimento com prin- O entusiasmo é uma virtude diferente, mas tão
cípios e normas que regem a profissão. É a fiel importante quanto às demais, pois expressa a
observância dos valores morais impregnados na materialização do calor humano que deve conta-
profissão. Tal virtude não significa fundamenta- giar todo o ambiente de trabalho. O entusiasmo
lismo doutrinário, pois o profissional não pode representa não só um estado de espírito em rela-
ser dogmático, mas sim estar aberto à discussão ção ao saber-fazer, mas, também, a alegria pelo
dos diferentes valores humanos, sem se afastar dos que se optou professar. O entusiasmo é a conjun-
princípios considerados fundamentais para a sua ção da coerência com a fidelidade profissional,
profissão. além de funcionar como mecanismo de promo-
Fidelidade é a coerência entre o professado ção do relacionamento profissional/cliente, favo-
e o praticado, entre o discurso e a práxis; em recendo os resultados almejados em um tempo
suma, significa o equilíbrio entre o saber e o mais precoce.
saber-fazer. Não se deve confundir entusiasmo com humor,
A fidelidade pode e deve ser entendida, tam- já que este depende de uma série de fatores e
bém, como um compromisso para com o cliente, representa somente uma manifestação pessoal
no que tange às suas expectativas e às suas espe- independente da relação profissional. Ou seja, o
ranças. Na fidelidade existe amizade, companhei- humor não está necessariamente ligado à profissão
rismo, mas sem concessões à verdade, porque se que se exerce, pois a sua variação ou alternância
tal ocorresse não existiria o outro componente não se dá em razão desta ou daquela atividade.
essencial desta virtude, que é a lealdade. Entusiasmar-se não é apenas estar sempre dis-
Enfim, a fidelidade significa a prática dos prin- posto a realizar o melhor, mas fazê-lo com alegria
cípios, a manutenção de um ideal ou de uma e interação com o ambiente, contagiando a todos
vocação de servir, cujo escopo é a lealdade a uma da importância, da necessidade e até da beleza que
causa social e a quem é o sujeito dela, ou seja, o envolve uma profissão que trabalha em benefício
cliente. do ser humano e da humanidade.

A Solicitude

É a virtude da disponibilidade, da predisposi-


ção em servir àqueles que necessitam de nossa
arte profissional. É não só atender com alegria

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Referências Correspondência:
Comte - Sponville A. Petit Traité des Grandes FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa
Vertus. (1995) Paris: Presses Universitaires de do Estado de Minas Gerais
France. Rua Raul Pompéia 101
Drane J. (2004) Paho y Bioética. ¿Una relación acci- Bairro São Pedro
dental o un compromiso profundo? Diálogo y Coope- CEP: 30.330-080
ración en Salud. Diez años de bioética en la OPS. Belo Horizonte
Santiago: Unidad de Bioética OPS/OMS Chile. Minas Gerais, Brasil
Engelhardt Jr HT. (1996) The foundations of Bio- Tel. +55 31 3280-2100
ethics. New York: Oxford University Press Inc. FAX. +55 31 3227-3864
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