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Introdução à Filosofía da Religião

Introdução à Filosofia da Religião


William L. Rowe
Tradução de Vítor Guerreiro
Revisão Científica de Desidério Murcho

Verbo
índice

Prefácio à quarta edição norte-americana 11


Agradecimentos 13
introdução 15

1. A ideia de Deus 19
2. 0 argumento cosmológico 39
3. 0 argumento ontológico 63
4. 0 argumento do desígnio (o antigo e o novo) 87
5. Experiência mística e religiosa 109
6. Fé e razão 139
7. 0 problema do mat 169
8. Milagres e a mundividência moderna 199
9. Vida depois da morte 219
10. Predestinação, presciência divina e liberdade humana 241
11. Pluralidade de religiões 265

Glossário de conceitos e ideias importantes 283


Leitura complementar 293
índice remissivo 297
Prefácio à quarta edição norte-americana

Durante a segunda metade do século xx e nos primeiros anos do século xxi,


deu-se um crescimento sem precedentes da ñlosoña da religião, tanto em
termos da quantidade de filósofos que a ela se dedicam como em termos de
desenvolvimentos importantes no seu seio. E é provável que a área continue a
florescer, atraindo alguns dos melhores jovens filósofos para trabalhar nos seus
vinhais. Reflectindo os mais importantes avanços na filosofia da religião neste
período de crescimento contínuo, o que se segue merece especial atenção:

1. Durante séculos, os pensadores religiosos procuraram mostrar que a


crença religiosa não só é consistente com o pensamento racional mas
também que se pode sustentá-la com argumentos racionais. O desen­
volvimento da teoria cosmológica do Big Bang resultou num argumento
do desígnio a favor da existência de um ser inteligente que terá ajustado
as condições iniciais da origem do universo de modo a tornar possível a
vida que conhecemos. E há também um argumento contra a capacidade
de a selecção natural darwinista explicar sistemas biológicos «irredu-
tivelmente complexos» ao nível molecular. Um curso introdutório em
filosofia da religião tem de informar os estudantes acerca destes argu­
mentos, além dos argumentos tradicionais a favor da existência de Deus.
2. Tem-se valorizado crescentemente e procurado compreender outras
tradições religiosas além das ocidentais, com a sua dupla ênfase na

li
Introdução à Filosofia da Religião

ignorância, e não no pecado, como fonte das atribulações humanas,


e no esclarecimento, e não na salvação pessoal, como solução para as
atribulações humanas. Com esta nova consciência das diferenças pro­
fundas entre as religiões do mundo, surge naturalmente a questão de
saber se se pode continuar a defender sensatamente que apenas uma
destas religiões (a nossa) é a verdadeira e o único caminho para a vida
além-túmulo. O filósofo e teólogo John Hick tem desenvolvido uma
perspectiva denominada «pluralismo religioso». É importante que os
estudantes de ñlosoña da religião contactem com esta perspectiva, bem
como com as críticas que lhes foram dirigidas.
3. O problema do mal continua a ser um importante tópico de discussão.
Trata-se da questão de a enorme quantidade de mal aparentemente des­
necessário que há no nosso mundo, um mal que não cumpre qualquer
finalidade boa que possamos imaginar, contar ou não como indício con­
tra a existência de um deus sumamente perfeito. Alguns filósofos argu­
mentam que a disparidade entre o conhecimento humano e o divino é
tal que a nossa incapacidade para discernir qualquer bem que exigisse a
permissão de tais males por Deus não nos dá qualquer razão para pensar
que a sua existência é improvável. Esta perspectiva, conhecida como
«teísmo céptico», levanta questões de importância central para o pro­
blema de se saber se o mal no nosso mundo nos dá ou não razões para
pensar que a existência de Deus é improvável, questões que se devem
incluir num curso de ñlosoña da religião.

Nesta edição, procurei tratar destas questões.

12
Agradecimentos

Gostaria de agradecer aos revisores da primeira edição: George L. Abernathy,


Monroe C. Beardsley, Donald Burriii, John Fisher, Robert O. Long, Geddes
MacGregor e Walter Stromseth. Estou grato aos revisores da segunda edi­
ção: Pieranna Garavaso, Universidade do Minnesota-Morris; S. S. Rama Rao
Pappu, Universidade de Miami; Louis Pojman, Academia Militar dos EUA;
William L. Power, Universidade da Geórgia; Paul Tidman, Universidade
Estatal do Illinois; e Donald J. Zeyl, Universidade de Rhode Island. Gostaria
também de agradecer aos revisores da terceira edição: Kelly James Clark,
Calvin College; Jude P. Dougherty, Universidade Católica da América; Frank
Murphy, Universidade da Carolina do Leste; e George I. Mavrodes, Univer­
sidade do Michigan. E gostaria de agradecer aos revisores da presente edi­
ção; James Baillie, Universidade de Portland; Minh Nguyen, Universidade
do Kentucky Oriental; Henrietta Wiley, Universidade de Denison; Frederik
Kaufman, Ithaca College; Ted Guleserian, Universidade Estatal do Arizona;
Richard Miller, Universidade da Carolina do Leste; Peter Vernezze, Weber
State; John Beaudoin, Universidade do Illinois do Norte; Hugh Wilder, Col­
lege of Charleston; Paul Hughes, Universidade do Michigan-Dearborn; Keith
Korcz, Universidade do Louisiana-Lafayette; e Russell Lascóla, Universidade
Politécnica Estatal da Califórnia-San Luis Obispo.

W.L.R.

13
Introdução

Temos de contar a religião, sem dúvida, juntamente com a arte e a ciência, entre
os aspectos mais fundamentais e ubíquos da civilização humana. Como tal, é
digna do escrutínio e do estudo mais cuidadosos. Mas a religião é um aspecto
tão complexo da vida humana e de tão vastas consequências que jamais uma
só disciplina poderá estudá-la exaustivamente. Por isto se estuda a religião em
diferentes disciplinas: filosofia, história, antropologia, sociologia, psicologia.
A filosofía da religião é um dos ramos da filosofia, como a filosofia da
ciência, a filosofía do direito e a filosofia da arte. Podemos compreender
melhor o que é a filosofia da religião começando pelo que não é. Em p ri­
meiro lugar, não se pode confundir a filosofia da religião com o estudo da
história das principais religiões de acordo com as quais os seres humanos
têm vivido. Ao estudar a história de uma religião particular — o cristianismo,
por exemplo — leríamos algo sobre a sua origem a partir do judaísmo, a vida
de Jesus, a emergência da igreja cristã no seio do império romano, o desen­
volvimento das doutrinas características da fé cristã. Pode-se levar a cabo
estudos semelhantes a respeito de outras religiões importantes: judaísmo,
islamismo, budismo, hinduísmo. Embora tais estudos sejam importantes
para a filosofía da religião e por vezes possa haver sobreposição de ambas as
áreas, não as podemos confundir.
Em segundo lugar, não se pode confundir a filosofía da religião com a
teolqgia^A teologia é uma disciplina em grande medida interior à religião.

15
Introdução ã Filosofia da Religião

Como tal, desenvolve as doutrinas de uma fé religiosa particular e procura


fundamentá-las quer na razão comum à humanidade (teologia natural) quer
internamente, na palavra revelada de Deus (teologia revelada). Embora a
filosofía da religião se interesse fundamentalmente por estudar a maneira
como as pessoas que têm creneas religiosas as justificam, o seu interesse
primário não é justificar ou refutar um conjunto particular de crenças reli­
giosas mas avaliar os géneros de razões que as pessoas dadas à reflexão têm
apresentado a favor e contra as crenças religiosas. A ñlosoña da religião,
ao contrário da teologia, não é fundamentalmente uma disciplina interior
à religião, mas uma disciplina que estuda a religião de um ponto de vista
abrangente. Do mesmo modo que a ñlosoña da ciência e a ñlosoña da arte,
a ñlosoña da religião não faz parte do objecto de estudo a que se dedica. E
importante reconhecer, contudo, que a teologia, em particular a teologia
natural, e a ñlosoña da religião se sobrepõem eonsideravelmente. Quando
Tomás de Aquino discute os diversos argumentos a favor da existência de
Deus, ou quando procura analisar o que se quer dizer com a ideia de que Deus
é omnipotente, quando Anselmo examina determinadas noções importantes,
como a eternidade e a auto-existência, é difícil elassiñear o seu trabalho como
algo que pertence exclusivamente à teologia. Também se pode, obviamente,
entender que este é um trabalho ñlosóñco acerca de determinados aspectos
da religião. Apesar destas sobreposições, contudo, não se deve identiñear a
ñlosoña da religião, enquanto disciplina, com a teologia.
Podemos caracterizar melhor a ñlosoña da religião como o exame crítico
das crenças e dos conceitos religiosos fundamentais, A ñlosoña da religião
examina criticamente conceitos religiosos fundamentais como o conceito
de Deus, o conceito de fé, a noção de milagre e a ideia de omnipotência,
Examinaç criticamente um conceito complexo como o de Deus é fazer duas
coisas; distinguir as concepções fundamentais de Deus que têm surgido na
religião e decompor cada concepção nos seus componentes fundamentais.
Como veremos, há diversas concepções distintas do divino. Há, por exemplo,
a ideia panteísta de Deus, bem como a ideia teísta de Deus. A ñlosoña da

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Introdução

religião procura distinguir entre estas diferentes ideias de Deus e trabalhá­


-las detalhadamente. Uma ñlosoña da religião abrangente teria de analisar
cada uma destas diferentes ideias de Deus. Neste livro introdutório, contudo,
teremos de limitar a nossa análise detalhada ao principal conceito de Deus
que emergiu na civilização ocidental, a ideia teísta de Deus.
A ñlosoña da religião examina criticamente as crençasreligiosas fun­
damentais: a crença de que Deus existe, de que há vida depois da morte, de
que Deus sabe, mesmo antes de nascermos, o que iremos fazer, de que a
existência do mal é de algum modo consistente com o amor de Deus pelas
suas criaturas. Examinar criticamente uma crença religiosa envolve explicar
a crença e examinar as razões que têm sido apresentadas a favor e contra a
crença, tendo em vista determinar se há ou não qualquer justihcação racio­
nal para añrmar que essa crença é verdadeira ou falsa. O nosso objectivo ao
levar a cabo este exame não é persuadir ou convencer mas fornecer ao leitor
um contacto com o tipo de razões que têm sido apresentadas a favor e con­
tra determinadas crenças religiosas fundamentais. Ao examinar as crenças
religiosas seria desonesto afirmar que as minhas próprias perspectivas acerca
destas crenças, e das razões oferecidas a favor ou contra elas, não são visíveis
no texto. Certamente que são. Mas tentei apresentar de um modo convin­
cente e cogente as perspectivas de que discordo, como eventualmente fariam
os seus mais robustos defensores. E a minha esperança é a de que o leitor
trate os meus próprios juízos do mesmo modo que procurei tratar os juízos
de outros: não como ideias para aceitar como verdadeiras, mas como ideias
dignas de reflexão séria e exame cuidadoso. Ler com este espírito o livro é
entregar-se à própria disciplina para a qual foi concebido como introdução;
é filosofar acerca das questões fundamentais na religião.
Procurei abranger boa parte dos tópicos que os filósofos da religião têm
geralmente em conta. Nenhum livro introdutório, contudo, pode esperar
ser exaustivo. Tópicos como a natureza da religião, o conceito de oração, a
ética religiosa, são importantes, mas as limitações impostas a um livro intro­
dutório impediram a sua inclusão. Não obstante, abrangeu-se uma grande

17
Introdução à Filosofia da Religião

quantidade de tópicos centrais da disciplina, tão meticulosamente quanto é


razoável conseguir-se num primeiro curso de filosofia da religião.
O livro divide-se em quatro partes. Na primeira (Capítulo 1), explica-se
a concepção particular de divindade que tem predominado na civilização
ocidental — a ideia teísta de deus — e distingue-se entre esta e outras noções
do divino. A segunda parte pondera as principais razões que se têm apre­
sentado para defender a crença de que o deus teísta existe. Entre o Capítulo
2 e o 4, discutem-se os três principais argumentos a favor da existência de
Deus, argumentos que apelam a factos supostamente acessíveis a qualquer
pessoa racional, religiosa ou não. O Capítulo 5 considera a experiência reli­
giosa e mística enquanto fonte de justificação da crença teísta. E no Capítulo
6 examina-se o papel que a fé pode desempenhar na formação e na justifi­
cação da crença religiosa. Consideramos também a importante questão de
a crença em Deus poder ou não ser inteiramente racional independente­
mente de haver quaisquer indícios a seu favor.^Na terceira parte examina-se
o problema do mal, que alguns filósofos supõem dar uma base racional para
o ateísmo, a crença de que o deus teísta não existe. Na quarta parte, entre
o Capítulo 8 e o 11, considera-se uma série de tópicos centrais na religião
teísta. Nestes tópicos incluem-se os milagres, a questão da vida depois da
morte, as dificuldades de harmonizar a ideia de presciência divina com a
crença na liberdade humana e os problemas colocados pela existência de
diversas religiões.

18
Capítulo 1
A ideia de Deus

Em 1963 foi publicado um pequeno livro da autoria de um bispo anglicano,


livro que causou um tumulto religioso no Reino Unido e nos Estados Unidos.1
Em Honest to God, o bispo John Robinson atrevem se a sugerir que a ideia de
deus que predominou durante séculos na civilização ocidental é irrelevante
para as necessidades dos homens e mulheres de hoje em dia. A sobrevivência
da religião no Ocidente, argumenta Robinson, exige que se rejeite esta ima­
gem tradicional de deus, a favor de uma concepção profundamente diferente,
concepção cuja emergência Robinson añrmou ter visto na obra de pensadores
religiosos do século xx, como Paul Tillich e Rudolf Bultmann.
Robinson previu correctamente a reacção que a sua tese ia provocar,
sublinhando que encontraría inevitavelmente resistência, como traição
daquilo que se afuma na Bíblia. Não só as pessoas ligadas à igreja, na sua
vasta maioria, se oporiam à perspectiva de Robinson, como a afirmação de
que a ideia de deus já morrera ou que pelo menos estava moribunda p ro­
vocaria ressentimento nos que tinham rejeitado a sua crença em deus. Na
correspondência com o director do londrino Times, em artigos de revistas
académicas e nos púlpitos de dois continentes, Robinson foi atacado como
ateu disfarçado de bispo e só raramente defendido como profeta de uma nova
revolução que ocorria no seio da tradição religiosa judaico-cristã. Um olhar

1. John A. T. Robinson, Honest to God {Londres: SCM Press Lda., 1963).

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Introdução à Filosofia da Religião

Como tal, desenvolve as doutrinas de urna fé religiosa particular e procura


fundamentá-las quer na razão comum à humanidade (teologia natural) quer
internamente, na palavra revelada de Deus (teologia revelada). Embora a
ñlosoña da religião se interesse fundamentalmente por estudar a maneira
como as pessoas que temieren cas religiosas as justificam, o seu interesse
primário não é justificar ou refutar um conjunto particular de crenças reli­
giosas mas avaliar os géneros de razões que as pessoas dadas à reflexão têm
apresentado a favor e contra as crenças religiosas. A ñlosoña da religião,
ao contrário da teologia, não é fundamentalmente uma disciplina interior
à religião, mas uma disciplina que estuda a religião de um ponto de vista
abrangente. Do mesmo modo que a ñlosoña da ciência e a ñlosoña da arte,
a ñlosoña da religião não faz parte do objecto de estudo a que se dedica. E
importante reconhecer, contudo, que a teologia, em particular a teologia
natural, e a ñlosoña da religião se sobrepõem consideravelmente. Quando
Tomás de Aquino discute os diversos argumentos a favor da existência de
Deus, ou quando procura analisar o que se quer dizer com a ideia de que Deus
é omnipotente, quando Anselmo examina determinadas noções importantes,
como a eternidade e a auto-existência, é difícil elassiñear o seu trabalho como
algo que pertence exclusivamente à teologia. Também se pode, obviamente,
entender que este é um trabalho ñlosóñco acerca de determinados aspectos
da religião. Apesar destas sobreposições, contudo, não se deve identificar a
ñlosoña da religião, enquanto disciplina, com a teologia.
Podemos caracterizar melhor a ñlosoña da religião como o exame crítico
das crenças e dos conceitos religiosos fundamentais, A ñlosoña da religião
examina criticamente conceitos religiosos fundamentais como o conceito
dejDeus, o conceito de fé, a noção de milagre e a ideia de omnipotência.
Examinar^ criticamente um conceito complexo como o de Deus é fazer duas
coisas; distinguir as concepções fundamentais de Deus que têm surgido na
religião e decompor cada concepção nos seus componentes fundamentais.
Como veremos, há diversas concepções distintas do divino. Há, por exemplo,
a ideia panteísta de Deus, bem como a ideia teísta de Deus. A ñlosoña da

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Introdução

religião procura distinguir entre estas diferentes ideias de Deus e trabalha-


-las detalhadamente. Uma filosofia da religião abrangente teria de analisar
cada uma destas diferentes ideias de Deus. Neste livro introdutório, contudo,
teremos de limitar a nossa análise detalhada ao principal conceito de Deus
que emergiu na civilização ocidental, a ideia teísta de Deus.
A hlosoña da religião examina criticamente as crenças religiosas fun­
damentais: a crença de que Deus existe, de que há vida depois da morte, de
que Deus sabe, mesmo antes de nascermos, o que iremos fazer, de que a
existência do mal é de algum modo consistente com o amor de Deus pelas
suas criaturas. Examinar criticamente uma crença religiosa envolve explicar
a crença e examinar as razões que têm sido apresentadas a favor e contra a
crença, tendo em vista determinar se há ou não qualquer justificação racio­
nal para afirmar que essa crença é verdadeira ou falsa. O nosso objectivo ao
levar a cabo este exame não é persuadir ou convencer mas fornecer ao leitor
um contacto com o tipo de razões que têm sido apresentadas a favor e con­
tra determinadas crenças religiosas fundamentais. Ao examinar as crenças
religiosas seria desonesto afirmar que as minhas próprias perspectivas acerca
destas crenças, e das razões oferecidas a favor ou contra elas, não são visíveis
no texto. Certamente que são. Mas tentei apresentar de um modo convin­
cente e cogente as perspectivas de que discordo, como eventualmente fariam
os seus mais robustos defensores. E a minha esperança é a de que o leitor
trate os meus próprios juízos do mesmo modo que procurei tratar os juízos
de outros: não como ideias para aceitar como verdadeiras, mas como ideias
dignas de reflexão séria e exame cuidadoso. Ler com este espírito o livro é
entregar-se à própria disciplina para a qual foi concebido como introdução;
é filosofar acerca das questões fundamentais na religião.
Procurei abranger boa parte dos tópicos que os filósofos da religião têm
geralmente em conta. Nenhum livro introdutório, contudo, pode esperar
ser exaustivo. Tópicos como a natureza da religião, o conceito de oração, a
ética religiosa, são importantes, mas as limitações impostas a um livro intro­
dutório impediram a sua inclusão. Não obstante, abrangeu-se uma grande

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introdução à Filosofía da Religião

quantidade de tópicos centrais da disciplina, tão meticulosamente quanto é


razoável conseguir-se num primeiro curso de ñlosoña da religião.
O livro divide-se em quatro partes. Na primeira (Capítulo 1), explica-se
a concepção particular de divindade que tem predominado na civilização
ocidental — a ideia teísta de deus — e distingue-se entre esta e outras noções
do divino. A segunda parte pondera as principais razões que se têm apre­
sentado para defender a crença de que o deus teísta existe. Entre o Capítulo
2 e o 4, discutem-se os três principais argumentos a favor da existência de
Deus, argumentos que apelam a factos supostamente acessíveis a qualquer
pessoa racional, religiosa ou não. O Capítulo 5 considera a experiência reli­
giosa e mística enquanto fonte de justificação da crença teísta. E no Capítulo
6 examina-se o papel que a fé pode desempenhar na formação e na justifi­
cação da crença religiosa. Consideramos também a importante questão de
a crença em Deus poder ou não ser inteiramente racional independente­
mente de haver quaisquer indícios a seu favor.JMa terceira parte examina-se
o problema do mal, que alguns filósofos supõem dar uma base racionai para
o ateísmo, a crença de que o deus teísta não existe. Na quarta parte, entre
o Capítulo 8 e o 11, considera-se uma série de tópicos centrais na religião
teísta. Nestes tópicos incluem-se os milagres, a questão da vida depois da
morte, as dificuldades de harmonizar a ideia de presciência divina com a
crença na liberdade humana e os problemas colocados pela existência de
diversas religiões.

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Capítulo 1
A ideia de Deus

Em 1963 foi publicado um pequeno livro da autoria de um bispo anglicano,


livro que causou um tumulto religioso no Reino Unido e nos Estados Unidos.1
Em Honest to God, o bispo John Robinson atreveu-se a sugerir que a ideia de
deus que predominou durante séculos na civilização ocidental é irrelevante
para as necessidades dos homens e mulheres de hoje em dia. A sobrevivência
da religião no Ocidente, argumenta Robinson, exige que se rejeite esta ima­
gem tradicional de deus, a favor de uma concepção profundamente diferente,
concepção cuja emergência Robinson afirmou ter visto na obra de pensadores
religiosos do século x x, como Paul Tillich e Rudolf Bultmann.
Robinson previu correctamente a reacção que a sua tese ia provocar,
sublinhando que encontraria inevitavelmente resistência, como traição
daquilo que se afirma na Bíblia. Não só as pessoas ligadas à igreja, na sua
vasta maioria, se oporiam à perspectiva de Robinson, como a afirmação de
que a ideia de deus já morrera ou que pelo menos estava moribunda p ro­
vocaria ressentimento nos que tinham rejeitado a sua crença em deus. Na
correspondência com o director do londrino Times, em artigos de revistas
académicas e nos púlpitos de dois continentes, Robinson foi atacado como
ateu disfarçado de bispo e só raramente defendido como profeta de uma nova
revolução que ocorria no seio da tradição religiosa judaico-cristã. Um olhar

1. John A. T. Robinson, Honest to God (Londres: SCM Press Lda., 1963).

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Introdução à Filosofia da Religião

sobre algumas das ideias de Robinson ajudar-nos-á a distinguir diferentes


ideias de deus e a concentrarmo-nos naquela que será o centro das nossas
atenções ao longo da maior parte deste livro.
Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo
soberano de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa plurali­
dade de seres divinos ou deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo.
Na antiguidade grega e romana, por exemplo, os diversos deuses controla­
vam diferentes aspectos da vida, de modo que se veneravam, naturalmente,
vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e por aí em diante.
Às vezes, porém, podia-se acreditar que há diversos deuses mas venerar ape­
nas um, o deus da própria tribo, posição religiosa a que se chama henoteísmo.
No Antigo Testamento, por exemplo, há referências frequentes a deuses de
outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus,
Jeová. Lentamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o
criador do Céu e da Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo
mas de todos, perspectiva religiosa a que se chama monoteísmo.
Segundo Robinson, o monoteísmo, a crença num só ser divino, sofreu
uma mudança profunda, mudança que Robinson descreve com a ajuda das
expressões «lá em cima» e «lá fora». O Deus «lá em cima» é um ser loca­
lizado no espaço acima de nós, presumivelmente a uma determinada dis­
tância da Terra, numa região conhecida como «os Céus». Esta ideia de Deus
está associada a uma certa imagem primitiva em que o universo consta de
três regiões, os Céus em cima, a Terra em baixo e a região das trevas sob a
Terra. Segundo esta imagem, a Terra é frequentemente invadida por seres
dos outros dois domínios — Deus e os seus anjos do Céu, Satanás e os seus
demónios da região subterrânea — que combatem entre si pelo controlo das
almas e do destino dos que habitam o domínio terreno. Esta ideia de Deus
como ser poderoso que está «lá em cim a», numa determinada região do
espaço, foi lentamente abandonada, afirma Robinson. Agora explicamos às
crianças que os Céus não estão de facto sobre as suas cabeças, que Deus não
está literalmente algures lá em cima, no Céu. Em lugar de Deus como «o

20
A ideia de Deus

velhote no C éu», surgiu uma ideia de Deus muito mais sofisticada, a que
Robinson se refere como a ideia de Deus «lá fora».
Mudar do Deus «lá em cima» para o Deus «lá fora» é mudar de uma
concepção de Deus como um ser localizado no espaço a uma certa distância
da Terra para uma concepção de Deus como algo distinto e independente do
mundo, Segundo esta ideia, Deus não está em qualquer local ou região do
espaço físico. É um ser puramente espiritual^ um ser pessoal, perfeitamente
bom, omnipotente, omnisciente, que criou o mundo, mas não faz parte dele.
É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, julga-o, orienta-o para
o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi lentamente
desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como
Agostinho, Boecio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem
sido a ideia dominante de Deus na civilização ocidental. Se rotulamos o Deus
«lá em cima» como «o velhote no Céu», podemos rotular o Deus «lá fora»
como «o Deus dos teólogos tradicionais». E é o Deus dos teólogos tradicio­
nais que Robinson considera ter-se tornado irrelevante para as necessidades
das pessoas de hoje em dia. Quer Robinson tenha ou não razão — e é muito
duvidoso que tenha — é inegavelmente verdade que quando nós, que herdá­
mos maioritariamente a cultura da civilização ocidental, pensamos em Deus,
o ser em que pensamos é em muitos aspectos importantes parecido com o
Deus dos teólogos tradicionais. Será útil, portanto, ao clarificar as nossas
próprias ideias acerca de Deus, explorar com maior detalhe a concepção de
Deus que surgiu no pensamento dos grandes teólogos.

OS ATRIBUTOS DE DEXi^.

Vimos que, segundo muitos teólogos importantes, se concebe Deus como


um ser perfeitamente bom, distinto e independente do mundo, om nipo­
tente, omnisciente e criador do universo. Duas outras características que
os grandes teólogos atribuíram a Deus são a auto-existência e aeigxnida.de.
A ideia de Deus que predomina na civilização ocidental é portanto a ideia de

21
Introdução à Filosofia da Religião

um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente


dele, todo-poderoso (omnipotente), omnisciente, eterno e auto-existente.
Claro que esta lista dos elementos mais importantes dessa ideia de Deus só
é esclarecedora para nós na medida em que compreendamos os próprios
.elementos. Como é ser omnipotente? Como compreender a ideia de auto-
- existência? Como se concebe a distinção e a independência de Deus perante
o mundo? O que se quer dizer ao afirmar que Deus, e só Deus, é eterno? Só na
medida em que pudermos responder a estas e a outras perguntas semelhantes
compreenderemos a ideia central de Deus que surgiu na civilização ocidental.
Antes de passarmos ao estudo da questão da existência de Deus, portanto, é
importante enriquecer a nossa apreensão desta mesma ideia, procurando
responder a algumas daquelas questões fundamentais.

Omnipotência e perfeita bondade

Na sua grande obra, Summa Theologica, São Tomás de Aquino, que viveu no
século X III, procura explicar o que é para Deus ser omnipotente. Depois de
indicar que, para Deus, ser omnipotente é ser capaz de fazer tudo o que é _
possível, Tomás explica cuidadosamente que há dois tipos de possibilidade,
a possibilidade relativa e a possibilidade absoluta, e investiga a que tipo de
possibilidade se alude quando se afirma que a omnipotência de Deus é a capa­
cidade de fazer tudo o que é possível. Algo é uma possibilidade relativa quando-
um ou mais seres podem fazê-lo. Voar por meios naturais, por exemplo, é pos­
sível relativamente às aves mas não relativamente a meros seres humanos. Algo
é uma possibilidade absoluta, porém, se não é uma contradição nos termos...
Derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez é algo muito difícil de fazer,
mas não é uma contradição nos termos; na verdade, isso já foi ocasionalmente
feito. Mas derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez depois de este
nos ter colocado em xeque-mate não é apenas algo muito difícil de fazer: não
se pode fazer sequer, visto que é uma contradição nos termos. Tornar-se um
solteiro casado, fazer a mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada,

22
A ideia de Deus

derrotar alguém no xadrez depois de ele nos ter colocado em xeque-mate são
coisas que não são possíveis em sentido absoluto; são actividades que, implícita
ou explícitamente, envolvem uma contradição nos termos.
Tendo explicado os dois tipos diferentes de possibilidade, Tomás indica que
tem de ser à possibilidade absoluta que se alude quando se explica a omnipo­
tência de Deus como a capacidade de fazer tudo o que é possível. Porque se nos
referíssemos à possibilidade relativa, a nossa explicação não seria mais do que
afirmar que «Deus é omnipotente» significa que Deus pode fazer tudo o que está
em seu poder. E embora seja seguramente verdade que Deus pode fazer tudo
o que está em seu poder, isso nada explica. «Deus é omnipotente», portanto,
significa que Deus pode fazer tudo o que não envolve contradição nos termos.
Quererá isto dizer que ha coisas que Deus não pode fazer? Num certo sentido,
significa precisamente isso. Deus não pode fazer a mesma coisa ser ao mesmo
tempo redonda e quadrada e não pode derrotar-me num jogo de xadrez depois
de eu o ter colocado em xeque-mate. Claro que Deus podia sempre colocar-me
em xeque-mate antes de eu conseguir fazer-lhe o mesmo. Mas se Deus — por
uma razão qualquer — pudesse fazer-me entrar num jogo de xadrez e deixar que
eu o colocasse em xeque-mate, então Deus não poderia ganhar aquele jogo de
xadrez. Poderia aniquilar-me e ao tabuleiro de xadrez, mas não poderia ganhar
aquele jogo. Portanto, há muitas coisas que Deus, apesar da sua omnipotência,
não pode fazer. Seria um erro, porém, concluir a partir daqui que o poder de
Deus é de algum modo limitado, que há coisas que Deus não pode fazer mas que
poderia fazer se o seu poder fosse maior. Pois o poder, como observa Tomás,
abrange apenas aquilo que é possível. E nada há que seja possível fazer mas que
Deus não possa fazer por falta de poder. Assim, conclui Tomás: «Tudo o que
implique contradição não está no âmbito da omnipotência divina, porque isso
não pode ter o aspecto da possibilidade. Pelo que é mais apropriado afirmar que
não se pode fazer tais coisas, do que afirmar que Deus não as pode fazer. »2

2, São Tomás de Aquino, Summa Jheologica, I, Q 25, art. 3, in The Basic Writings of Saint
Thomas Aquinas, ed. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).

23
Introdução à Filosofa da Religião

Mas não haverá coisas que, ao contrário de fazer um quadrado redondo,


não são contraditórias e no entanto Deus não as possa fazer? Cometer sui­
cídio ou praticar uma má acção não envolvem contradi ção. Muitos teólo­
gos, contudo, negaram que Deus possa autodestrair-se ou praticar o mal.
Porquanto essas acções são inconsistentes com a natureza de Deus — com a
sua eternidade e perfeita bondade. Poder-se-ia objectar que as perfeições de
Deus implicam apenas que este não se autodestruirá nem praticará o mal, e
não que não o possa fazer — Deus tem o poder de praticar o mal, mas, como
é perfeitamente bom, nunca exercerá esse poder. O que escapa a esta objec-
ção, contudo, é que atribuir a Deus o poder de praticar o mal é atribuir-lhe
o poder de deixar de ter um atributo (a perfeita bondade) que faz parte da
sua própria essência ou natureza. Ser perfeitamente bom faz tanto parte da
natureza de Deus como ter três ângulos faz parte da natureza de um triângulo.
Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom tal como um triângulo
não poderia deixar de ter três ângulos. Perante esta dificuldade, talvez seja
necessário corrigir a explicação de Tomás acerca do que significa Deus ser
omnipotente. Em vez da mera ahrmação de que isto significa que Deus tem
o poder de fazer tudo o que seja uma possibilidade absoluta, diremos que
significa que Deus pode fazer tudo o que é uma possibilidade absoluta e que
não seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais.
Como praticar o mal é inconsistente com a perfeita bondade e como a perfeita
bondade é um atributo fundamental de Deus, não haverá conflito entre o
facto de Deus não poder fazer o mal e o facto de ser omnipotente,
A ideia de que a omnipotência de Deus não inclui o poder de fazer algo
que seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais
pode ajudar-nos a resolver aquilo a que se tem chamado_o «paradoxo da
pedra». Segundo este paradoxo, ou Deus tem o poder de criar uma pedra
tão pesada que não a possa levantar ou não tem esse poder. Se tem o poder
de criar tal pedra então há algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra
que criou. Por outro lado, se não pode criar tal pedra, então há também algo
que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar.

24
A ideia de Deus

Em qualquer dos casos há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é
omnipotente.
A solução deste quebra-cabeças é ver que criar uma pedra tão pesada
que Deus não a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos
atributos essenciais de Deus — o atributo da omnipotencia. Porquanto se
existe uma pedra tão pesada que Deus não tem o poder de a levantar, então
Deus não é omnipotente. Logo, se Deus tem o poder de criar tal pedra, tem
o poder de fazer com que lhe falte um atributo (omnipotência) que lhe é
essencial. Então, a solução adequada do quebra-cabeças é afirmar que Deus
não pode criar tal pedra, do mesmo modo que não pode praticar uma má
acção. Isto não significa, evidentemente, que haja uma pedra na série infi­
nita das pedras que pesam mil quilogramas, dois mil quilogramas, três mil
quilogramas, quatro mil quilogramas, e por aí em diante, que Deus não possa
criar. No caso de uma má acção, Deus não pode praticar essa acção porque a
sua perfeita bondade lhe é essencial. No caso de uma pedra tão pesada que
não a possa levantar, Deus não pode criar tal pedra porque a sua omnipo­
tência lhe é essencial.
Vimos que não se pode compreender a omnipotência de Deus como algo
que inclui o «poder» de causar estados de coisas logicamente impossíveis ou
de realizar acções inconsistentes com seus os atributos essenciais. E quanto
a mudar o passado? Evidentemente, Deus podia ter impedido que Barack
Obama se tornasse presidente dos Estados Unidos. Mas poderá Deus fazê-lo
agorad Um estado de coisas em que Obama nunca tenha sido presidente não
é uma impossibilidade lógica; tão-pouco parece haver inconsistência entre
causar esse estado de coisas e a bondade de Deus ou qualquer outro dos seus
atributos essenciais. Mas parece que não está agora ao alcance de qualquer
ser, mesmo um ser omnipotente, fazer que Obama nunca tenha sido presi­
dente. Assim, embora tenhamos aperfeiçoado a nossa compreensão da noção
de omnipotência e visto que a omnipotência de Deus não é o poder de causar
seja o que for em absoluto, não podemos afirmar ter dado uma explicação
completa da ideia de que Deus é omnipotente. Pois, como acabámos de ver,

25
Introdução à Filosofia da Religião

há acontecimentos do passado que não se podem mudar agora, mesmo que


se seja omnipotente. E pode haver outros estados de coisas que um ser omni­
potente e divino não possa causar.
A ideia de que Deus tem de ser perfeitamente bom liga-se à perspectiva
de que Deus é um ser digno de gratidão, louvor e veneração incondicionais.
Pois nenhum ser é digno de louvor e veneração incondicionais a menos que
seja perfeitamente bom. Assim, Deus não só é um ser bom como a sua bon­
dade é insuperável. Além disso, Deus não é perfeitamente bom por acaso;
esse modo de ser é a sua natureza, Logicamente, Deus não poderia deixar
de ser perfeitamente bom. Esta é a razão de termos observado há pouco que
Deus não tem o poder de praticar o mal. Porquanto atribuir tal poder a Deus
é atribuir-lhe o poder de deixar de ser aquilo que necessariamente é.
Afirmamos que Deus é perfeitamente bom por definição? Sim. Mas
vemos também que a definição de Deus como perfeitamente bom está ligada à
exigência religiosa de que Deus seja um objecto de louvor e veneração incon­
dicionais, se é que não está mesmo fundada nessa exigência. E esclarecemos
também outra coisa. Porquanto afirmámos também que o ser que é Deus
não pode deixar de ser perfeitamente bom. Um solteiro por definição não
é casado. Mas uma pessoa solteira pode deixar de não ser casada. Claro que
quando isto acontece (o nosso solteiro casa-se) a pessoa deixa de ser solteira.
Ao contrário do nosso solteiro, porém, o ser que é Deus não pode abdicar de
ser Deus. Pelo que não afirmamos simplesmente que Deus é por definição
perfeitamente bom. Afirmamos também que um ser que seja Deus nunca
pode ser outra coisa senão Deus. O solteiro que vive na porta ao lado pode
deixar de ser solteiro. Mas o ser que é Deus não pode deixar de ser Deus.
Podemos formular isto do seguinte modo: ser solteiro não faz parte da natu­
reza ou essência de um ser que é solteiro. Pelo que, embora por definição
ninguém possa ser solteiro estando casado, essa pessoa pode deixar de não ser
casada porque pode deixar de ser solteira. Mas ser Deus faz parte da natureza
ou essência do ser que é Deus. Então, uma vez que o ser que é Deus não pode.
deixar de ser Deus, esse ser não pode deixar de ser perfeitamente bom.

26
A ideia de Deus

Mas o que é ser perfeitamente bom? Na medida em que Deus é insu-


peravelmente bom, tem todas as características que a bondade insuperá­
vel implica. Nestas se inclui a absoluta bondade moral. A bondade moral é
urna parte vital, mas não o todo, da bondade, pois há também o bem amoral.
Assim, distinguimos entre duas afirmações que se podem fazer a propósito
da morte de alguém: «Era boa pessoa» e «Teve uma vida boa», A primeira
afirmação diz respeito ao bem moral, a última diz sobretudo respeito ao bem
amoral, como a felicidade, a boa sorte, etc. A perfeita bondade de Deus tanto
envolve o bem moral quanto o amoral. De interesse crucial aqui é o bem
moral de Deus (perfeita justiça, benevolência, etc.), visto que durante muito
tempo se pensou que a bondade moral de Deus é de algum modo a fonte ou
o padrão da moralidade para a vida humana. Além disso, em virtude da sua
perfeição moral essencial, podem-se fazer alguns juízos acerca do mundo
que Deus criou. Podemos estar certos, por exemplo, de que Deus não cria­
ria um mundo moralmente mau. Pode até ser verdade que em virtude da
sua perfeição moral Deus seja levado a criar o melhor mundo, em termos
morais, de que é capaz. Estes tópicos são importantes. Discutiremos mais
tarde o segundo (que género de mundo Deus criaria), quando considerarmos
o problema do mal. Será útil ponderar aqui brevemente a conexão entre a
perfeição moral de Deus e a moralidade na vida humana.
Tem-se defendido que Deus é a fonte ou o cânone dos nossos deveres
morais, tanto dos negativos (por exemplo, o dever de não tirar vidas,huma­
nas inocentes) como dos positivos (por exemplo, o dever de ajudar quem
precisa). Geralmente, as pessoas religiosas acreditam que estes deveres se
baseiam de algum modo em mandamentos divinos. Um crente no judaísmo
pode ver os dez mandamentos como regras morais fundamentais que deter­
minam pelo menos grande parte daquilo que estamos moralmente obrigados
a fazer (deveres positivos) ou a abstermo-nos de fazer (deveres negativos).
E claro que, dada a sua perfeição moral, aquilo que Deus nos ordena tem
de ser o que é moralmente correcto fazer-se. Mas serão estas coisas moral-
mente correctas porque Deus as ordena? Isto é, será que o bem moral destas

27
Introdução à Filosofia da Religião

coisas consiste apenas no facto de Deus as ter ordenado? Ou será que Deus
ordena que se faça estas coisas porque são correctas? Se formos pela segunda
opção, que Deus ordena estas coisas porque vê que são moralmente correctas,
parece que estamos a sugerir que a moralidade existe independentemente da
vontade ou dos mandamentos de Deus. Mas se formos pela primeira opção,
que é o facto de Deus as querer ou ordenar que torna essas coisas correctas,
parece que estamos a sugerir que não haveria bem nem mal se não houvesse
qualquer ser divino para decretar tais mandamentos. Embora ambas as res­
postas sejam problemáticas, a que predomina no pensamento religioso acerca
de Deus e da moralidade é que aquilo que Deus ordena é moralmente bom
independentemente dos seus mandamentos. O facto de Deus nos ordenar
certas acções não as torna moralmente rectas; estas são moralmente rectas
independentemente das suas ordens e Deus ordena-as porque vê que são
moralmente rectas. Assim, em que sentido depende a nossa vida moral de
Deus? Ainda que a moralidade em si não dependa necessariamente de Deus,_
talvez o nosso conhecimento da moralidade dependa dos mandamentos divi­
nos (ou pelo menos seja auxiliado por eles). Talvez os ensinamentos da reli­
gião levem os seres humanos a ver que certas acções são moralmente rectas
e que outras são moralmente erradas. Além disso, pode ser que a crença em
Deus ajude a prática da moralidade. Pois embora cumprir o dever por res­
peito ao próprio dever seja uma parte importante da vida moral, talvez seja
exagerado esperar que os seres humanos comuns sigam inflexivelmente a
vida do dever, mesmo sem razões para associar a moralidade ao bem-estar e à
felicidade. A crença em Deus pode ajudar a vida moral dando uma razão para
pensar que a relação entre ser boa pessoa e ter uma vida boa não é meramente
acidental. Ainda assim, o que faremos com a dificuldade de que certas coisas
são moralmente rectas independentemente do facto de Deus no-las ordenar?
Considere-se o facto de Deus acreditar que 2 + 2 = 4. Será 2 + 2 = 4 verdade
porque Deus acredita que é? Ou será que Deus acredita que 2 + 2 = 4 por
ser verdade que 2 + 2 = 4? Se vamos pela última, como parece que devemos
fazer, estamos a sugerir que certas afirmações matemáticas são verdadeiras

28
A ideia de Deus

independentemente de Deus acreditar nelas. Portanto, parece que estamos


já comprometidos com a perspectiva de que o modo como algumas coisas são
não tem em última instância a ver com a vontade ou com os mandamentos^
de Deus. Talvez as verdades fundamentais da moralidade tenham o mesmo
tipo de estatuto que as verdades fundamentais da matemática.

Auto-existência

A ideia de que Deus é um ser auto-existente foi desenvolvida e explicada


por Santo Anselmo no século xi. Usando diversos argumentos, Anselmo
persuadira-se de que entre os seres que existem há um que é perfeitamente
grandioso e bom — nada que existe ou alguma vez existiu se lhe compara. De
tudo o que existe, porém, Anselmo estava igualmente persuadido de que pode­
mos perguntar o que justifica ou explica o facto de existir. Se nos deparamos
com uma mesa, por exemplo, podemos perguntar o que justifica o facto de a
mesa existir. E podemos responder à nossa pergunta, pelo menos em parte,
verificando que um carpinteiro pegou numa porção de madeira e fez a mesa.
Poderemos, de igual modo, quanto a uma árvore, uma montanha ou um lago,
perguntar o que explica o facto de existirem. Tentando descobrir mais acerca do
ser perfeitamente grandioso e bom, Anselmo faz a mesma pergunta a respeito
deste ser. O que justifica o facto de o ser perfeitamente grandioso e bom existir?
Antes de tentar responder a esta questão, Anselmo observa que há apenas
três casos a considerar: ou a existência de uma coisa se explica por outra coisa,
ou se explica por nada, ou por si mesma. É claro que a existência da mesa se
explica por outra coisa (o carpinteiro). O mesmo acontece com a existência
de uma árvore, uma montanha ou um lago. Cada uma destas coisas existe
por causa de outras coisas. Com efeito, tudo o que é familiar nas nossas vidas
parece expÜcar-se por outras coisas. Mas mesmo quando não sabemos o que
explica o facto de certa coisa existir, se é que algo o explica, é óbvio que a
resposta tem de ser uma das três que Anselmo propõe, O facto de certa coisa
existir explica-se ou por referência a outra coisa, ou por nada, ou pela própria

29
Introdução à Filosofia da Religião

coisa. Simplesmente não há mais hipóteses a considerar. O que dizer então da


existência de um ser perfeitamente grandioso e bom? Será que a sua existên­
cia se deve a outra coisa? A nada? Ou a si própria? Ao contrário da mesa, da
árvore, da montanha ou do lago, a existência do ser perfeitamente grandioso
e bom não pode dever-se a outra coisa, argumenta Anselmo, pois nesse caso
■ a sua existência dependeria dessoutra coisa e, consequentemente, não seria o
ser supremo. A existência de qualquer coisa superior a todas as outras coisas
não pode depender (nem ter dependido) de qualquer delas. A existência do
ser supremo, portanto, tem de se explicar ou por nada ou por si própria.
Se a existência de algo se explica por nada então esse algo existe sem que
haja qualquer explicação para o facto de existir em vez de não existir. Pode­
ria haver algo assim — algo cuja existência é simplesmente um facto bruto...
ininteligível, sem qualquer explicação? A resposta de Anselmo, esteja ou não
correcta, é perfeitamente clara: «É em última análise inconcebível que aquilo
que é alguma coisa exista por meio de nada » .3 Infelizmente, Anselmo não
explica por que razão não podemos conceber algo cuja existência seja um facto
bruto ininteligível. Presumivelmente, considerou que isso era tão óbvio que
não precisava de explicação. Em todo o caso, temos de observar com cuidado
o princípio que Anselmo exprime aqui, pois figurará mais tarde num dos prin­
cipais argumentos a favor da existência de Deus. A convicção fundamental
de Anselmo é a de que para tudo o que existe tem de haver uma explicação.
da sua existência — tem de haver algo que explique o facto de a coisa existir
em vez de inexistir, e esse algo tem de ser ou outra coisa ou a própria coisa.
Negar isto é ver a existência de algo como irracional, absurda, completamente
ininteligível. E Anselmo pensa que o ser supremo não pode ser assim, tal como
nem uma árvore ou uma montanha o podem. A existência do ser supremo,
portanto, não se pode explicar por nada. Resta então a terceira via. Anselmo
conclui que a existência do ser supremo se deve a si própria.

3. Santo Anselmo, Monologium, VI, in Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N.
Deane (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1962).

30
A ideia de Deus

Claro que uma coisa é concluir que a explicação da existencia do ser


supremo tem de se encontrar na natureza desse mesmo ser, e outra coisa
completam ente diferente é com preender o que há na natureza do ser
supremo que justifica a sua existencia. Anselmo não.afirma compreender o
que há na natureza divina que justiñca a existência de Deus. Nem compreen­
de exactamente como a natureza de um ser poderá explicar a existência desse
ser. Tudo aquilo de que aftrma estar certo é que a existência do ser supremo
se deve ao próprio ser supremo. Não quer com isto dizer, obviamente, que
o ser supremo causou a sua própria existência. Pois nesse caso teria de exis­
tir antes de ter existido de modo a causar a sua própria existência e isto é
claramente impossível. Além disso, como vimos, a eternidade é uma das
características de Deus, pelo que é evidente que Deus não começou a existir
num determinado momento.
Contudo, Anselmo apresenta uma analogia, procurando ajudar-nos a
compreender esta ideia bastante difícil. Usando o nosso próprio exemplo,
pode-se exprimir assim a ideia de Anselmo: suponha-se que numa noite
fria encontramos uma enorme fogueira. Reparamos que uma pedra perlo da
fogueira está quente. Se perguntarmos qual a explicação deste facto acerca
da pedra (o facto de estar quente), seria absurdo sugerir que a explicação tem
de estar na própria pedra, que há algo na natureza da pedra que a faz estar
quente. A fogueira e a proximidade entre a pedra e o fogo explicam o calor da
pedra. Suponha-se que reparamos então que também a fogueira está quente.
O que explica o facto de a fogueira estar quente? Aqui não parece absurdo
sugerir que a explicação reside na própria fogueira. Pertence à natureza de
uma fogueira estar quente, tal como pertence à natureza de um triângulo
ter três ângulos. Para evitar a confusão, temos de estar claramente cien­
tes de que procuramos explicar o facto de a fogueira estar quente e não o
facto de a fogueira existir. O facto de a fogueira existir não se deve à fogueira
mas ao campista que ateou a fogueira. O facto de a fogueira que existe estar
quente, contudo, é um facto acerca da fogueira que se explica pela natureza
da fogueira, pelo que é ser uma fogueira. Temos então aqui o exemplo de um

31
Introdução à Filosoña da Religião

facto acerca de algo (o calor da fogueira) que se explica não por outra coisa
qualquer mas pela natureza da própria coisa (a fogueira). Anselmo espera que
se virmos uma vez que um determinado facto acerca de algo se pode expli­
car não por outra coisa qualquer mas pela natureza dessa coisa, a ideia de .
auto-existência deixará de nos parecer tão estranha. Quer seja ou não assim,
1devia ser claro tanto o que se quer dizer com auto-existência como por que
razão os teólogos tradicionais sentiram que se tratava de uma caracterís­
tica fundamental do ser divino. Ser um auto-existente é ter na sua própria
natureza a explicação da sua existência. Como nada pode existir cuja exis­
tência seja ininteligível, sem qualquer explicação (o princípio fundamental
de Anselmo), e como o ser supremo não seria supremo se a sua existência se
devesse a outra coisa, a conclusão inevitável é que a explicação da existência
de Deus (o ser supremo) está na sua própria natureza.

Distinção, independência e eternidade

Temos vindo a explorar as noções de omnipotência, perfeita bondade e auto-


- existência, procurando aprofundar a nossa apreensão da ideia dominante
de Deus que emergiu na civilização ocidental. Explorar-se-á alguns dos
outros elementos desta ideia de Deus em capítulos posteriores. Para com ­
pletar esta exploração inicial, contudo, será instrutivo considerar a noção de
que Deus é distinto e independente do mundo e a concepção de Deus como
um ser eterno.
Vimos a emergência do monoteísmo a partir do henoteísmo e do politeís­
mo. O monoteísmo é a tradição dominante no judaísmo, no cristianismo e no
islamismo. Há outra perspectiva de Deus que persistiu desde a antiguidade
e continua a florescer, particularmente nas grandes religiões do Oriente, o
budismo e o hinduísmo: uma perspectiva chamada panteísmo. Segundo o
panteísmo, tudo o que existe tem uma natureza interna que é a mesma em
todas as coisas e essa natureza interna é Deus. Mais tarde, quando exami­
narmos as experiências de alguns dos grandes místicos, consideraremos o
A ideia de Deus

panteísmo de um modo mais completo. A ideia fundamental no monoteís­


mo, de que Deus é distinto do mundo, constitui uma rejeição do panteísmo.
Segundo a concepção judaico-cristã e islâmica, Deus e o mundo são inteira­
mente distintos: podia-se aniquilar por completo tudo o que há no segundo
sem que ocorresse a mais ligeira mudança na realidade do ser divino. Claro
que há coisas no mundo que se assemelham mais a Deus do que outras. Como
os humanos são seres vivos e racionais, assemelham-se mais a Deus do que
as pedras e as árvores. Mas ser como Deus e ser Deus são coisas bastante
diferentes. O mundo não é o divino e a noção de que Deus é distinto do
mundo visa salientar a diferença fundamental entre a realidade de Deus e a
realidade do mundo.
O facto de Deus ser independente do mundo significa que não é regido
por quaisquer leis físicas, que rejam o funcionamento do universo. Mas sig­
nifica muito mais do que isto. Significa também que Deus não está sujeito às
leis do espaço e do tempo. De acordo com a lei do espaço, nenhum objecto
pode existir ao mesmo tempo em dois lugares diferentes. Claro que uma parte
de um objecto pode existir numa região do espaço e outra parte do mesmo
objecto (se for um objecto grande) pode existir numa região diferente do
espaço. A lei não nega isto. Nega que um objecto no seu todo possa existir
ao mesmo tempo em duas regiões diferentes do espaço. Se esta lei se apli­
casse a Deus, ou Deus ocuparia qualquer região do espaço num determinado
momento e não outras regiões do espaço nesse mesmo momento ou ocu­
paria todo o espaço ao mesmo tempo, mas com apenas uma parte sua em
cada região do espaço. Nenhuma destas alternativas era aceitável para os
grandes teólogos do passado. Na primeira alternativa, embora Deus pudesse
estar presente em Nova Iorque num determinado momento, não podia nesse
momento estar presente em Los Angeles. E na segunda alternativa, embora
Deus pudesse estar presente em Nova Iorque e Los Angeles ao mesmo tempo,
em Nova Iorque estaria uma parte de Deus e em Los Angeles estaria uma parte
diferente de Deus. Na ideia tradicional de Deus, não só Deus tem de estar
presente em todo o lado ao mesmo tempo como o seu todo tem de estar ao

33
Introdução à Filosofia da Religião

mesmo tempo em todos os lugares. Deus no seu todo está em Nova Iorque
e em Los Angeles ao mesmo tempo — na verdade, todo o tempo. Mas esta
perspectiva entra em conflito com a lei do espaço. Então a ideia de Deus que
emergiu na civilização ocidental é a de um ser supremo independente das leis
,.da natureza e que transcende mesmo a lei fundamental do espaço.
A ideia de que Deus não está sujeito à lei do tempo relaciona-se intima­
mente, como veremos, com um dos significados de eternidade. De acordo
com a lei do espaço, nada pode existir inteiramente em duas regiões dife­
rentes do espaço ao mesmo tempo. De acordo com a lei do tempo, nada pode
existir inteira e simultaneamente em dois momentos diferentes. Para com­
preender a lei do tempo, basta considerar o exemplo do homem que existiu
ontem, existe hoje e existirá amanhã. O homem no seu todo existe em cada
um destes momentos diferentes. Isto é, não se trata de apenas o seu braço,
por exemplo, ter existido ontem, a sua cabeça existir hoje e as suas pernas
existirem amanhã. Mas ainda que o homem no seu todo exista em cada um
destes três momentos, o todo da sua vida temporal não existe em cada um
destes momentos. A parte temporal da sua vida que existiu ontem não existe
hoje; quando muito o homem pode participar nela recordando-a. E a parte
temporal da sua vida que existirá amanhã não existe hoje; quando muito
pode participar nela antecipando-a. Embora o homem no seu todo exista em
cada um destes três momentos, a sua vida inteira não existe em qualquer um
deles. A sua vida, portanto, divide-se em muitas partes temporais e em cada
momento particular só uma destas partes temporais lhe é presente. Assim,
a vida de uma pessoa exemplifica a lei do tempo. Pois de acordo com essa
lei as partes temporais individuais da vida de uma pessoa não podem estar
presentes ao mesmo tempo. Por razões que não precisamos de desenvolver
aqui, os grandes teólogos medievais hesitavam em dividir a vida de Deus em
partes temporais e, portanto, adoptaram a perspectiva de que Deus trans­
cende a lei do tempo tal como transcende a lei do espaço. Ainda que seja
quase ininteligível, adoptaram a perspectiva, como Anselmo a exprime, de
que «a natureza suprema existe num lugar e num momento de tal maneira

34
A ideia de Deus

que não a impede de existir desse modo simultaneamente, como um todo,


em lugares e momentos diferentes» .4 De acordo com esta ideia, toda a vida
ingénita e interminável de Deus lhe é presente em cada momento do tempo
e Deus no seu todo está simultaneamente presente em cada região do espaço.
Eterno tem dois significados distintos. Num sentido, ser eterno é ter
existência temporal interminável, sem começo nem ñm; é ter duração infi­
nita em ambas as direcções do tempo. Nada há neste significado de eterno
que entre em conflito com a lei do tempo. A lei do tempo implica apenas
que qualquer coisa que seja temporalmente infinita terá uma infinidade de
partes temporais compondo de tal modo a sua existência que em nenhum
momento estará presente mais do que uma destas partes temporais; as outras
partes temporais estão ou no seu passado ou no seu futuro, De acordo com
o segundo significado de eterno, contudo, a vida de um ser eterno não se
divide em partes temporais, pois não está sujeito à lei do tempo. Assim, de
acordo com este significado de eterno, um ser que tivesse duração infinita
em cada direcção do tempo e estivesse sujeito à lei do tempo não seria eterno.
Como observou o estudioso romano Boécio (480-524 d.C.),

«Tudo o que está sujeito ao tempo, mesmo aquilo que não tem começo e que não
terá hm numa vida coextensiva com a infinidade do tem po — e foi assim que
Aristóteles concebeu o mundo —, é tal que não se pode correctam ente conside­
rar eterno. Porquanto não abrange nem inclui o todo da vida infinita ao mesmo
tempo, dado que não abrange o futuro, que está ainda por vir. Logo, só o que
abrange e possui ao mesmo tempo toda a plenitude da vida infinita, da qual nada
de posterior nem de anterior está ausente, se pode com justeza chamar etern o .»5

Boécio, Anselmo, Tomás e outros teólogos tradicionais interpretaram


a eternidade de Deus no segundo dos dois sentidos que acabámos de dis-

4. Santo Anselmo, Monologium, XXÍI, in Saint Anselm: Basic Writings.


5. Boethius, The Consolation of Philosophy, prose VI, trad. Richard Green (Nova iorque:
The Bobbs-Merrill Company, Inc., 1962),

35
introdução à Filosofia da Religião

tinguir. Defenderam que Deus está fora do tempo, que não está sujeito à sua
lei fundamental. Outros teólogos, contudo, adoptaran! a perspectiva de que
Deus é eterno no primeiro sentido — que tem duração infinita em ambas as
direcções temporais. O teólogo inglês do século x v m Samuel Clarke, por
exemplo, rejeitou como absurda a ideia de que um ser pudesse transcen­
der o tempo e adoptou a perspectiva de que ser eterno é simplesmente ser
perpétuo, existindo no tempo mas sem ter começo nem fim. Quando mais
tarde estudarmos o problema da presciência divina e da liberdade humana,
reconsideraremos estes dois sentidos de eternidade e observaremos as suas
implicações para a doutrina da presciência divina. De momento, contudo,
basta reconhecer que a eternidade é um elemento central na ideia tradicional
de Deus e que foi interpretada de duas maneiras distintas.
Temos vindo a explorar algumas características fundamentais que
constituem a ideia de Deus, que até agora têm sido centrais para a tradi­
ção religiosa ocidental. Segundo esta ideia, Deus é um ser perfeitamente
bom, criador do mundo mas distinto e independente deste, omnipotente,
omnisciente, eterno e auto-existente. Ao explorar esta ideia de Deus, vimos
também muitas outras concepções do divino associadas ao politeísmo, ao
henoteísmo, ao monoteísmo e ao panteísmo. A ideia de Deus que será de
importância central para este livro, porém, foi elaborada pelos teólogos tra­
dicionais ocidentais. É a ideia central de Deus das três grandes religiões da
civilização ocidental: judaísmo, cristianismo e islamismo. Até aqui usámos a
expressão de Robinson «o Deus lá fora» e a expressão «o Deus dos teólogos
tradicionais» para referir esta ideia de Deus. Doravante, contudo, chama­
remos a esta perspectiva acerca de Deus «ideia teísta de Deus» . Ser teísta,
portanto, é acreditar na existência de um ser perfeitamente bom, criador
do mundo mas distinto e independente deste, omnipotente, omnisciente,
eterno (em qualquer dos nossos dois sentidos) e auto-existente. Um ateísta
é alguém que acredita que o Deus teísta não existe, ao passo que um agnós _
tico é alguém que ponderou na ideia teísta de Deus mas que não acredita na
existência nem na inexistência do Deus teísta.

36
A ideia de Deus

Acabámos de usar os termos teísta, ateístae agnóstico num sentido res­


trito ou circunscrito. No sentido mais amplo, um teísta é alguém que acredita
na existência de um ser ou seres divinos, mesmo que a sua ideia do divino
seja bastante diferente da ideia de Deus que temos vindo a descrever. De
igual modo, no sentido mais amplo do termo, um ateu é alguém que rejeita
a crença em toda a forma de divindade, não apenas no Deus dos teólogos tra­
dicionais. Para evitar a confusão, é importante ter em mente tanto o sentido
circunscrito destes termos como o mais amplo. No sentido mais circunscrito,
o teólogo protestante Tillich é um ateísta, pois rejeitou a crença naquilo a que
chamámos «Deus teísta». Mas no sentido mais amplo é um teísta, dado que
acredita numa realidade divina, embora diferente do Deus teísta. Na maior
parte deste livro usarei os termos teísmo, ateísmo e agnosticismo no sentido
mais circunscrito. Assim, quando ponderarmos na questão dos fundamen­
tos do teísmo, a nossa preocupação será a de saber se a existência do Deus
teísta (o Deus dos teólogos tradicionais) tem uma base racional. E quando
perguntarmos, por exemplo, se os factos acerca do mal no mundo sustentam
a verdade do ateísmo, estaremos a perguntar se a existência do mal nos dá
uma base racional para concluir que o Deus teísta não existe.
Tendo clarificado a ideia do Deus teísta, podemos agora considerar algu­
mas destas questões mais amplas. E começaremos com a questão de saber se
se pode ou não justificar racionalmente a crença na sua existência.

REVISÃO

1. Defina brevemente os conceitos de politeísmo, henoteísmo e monoteísmo.


2. Explique como pode Deus ser omnipotente e contudo não ter o poder de
fazer o mal.
3- O que se entende por um ser auto-existente e que razões tem Anselmo
para pensar que Deus é um ser auto-existente?
4. Formule a lei do espaço e a lei do tempo e indique a conexão entre a lei
do tempo e o que se entende pela eternidade de Deus.

37
Introdução à Filosoña da Religião

5. Descreva a ideia teísta de Deus e o que se entende por teísmo, ateísmo


e agnosticismo.

ESTUDO COMPLEMENTAR

.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1. Como definiría o termo «Deus»? Se a sua definição de Deus é diferente
da ideia teísta de Deus, explique as diferenças e dê razões em função das
quais a sua ideia de Deus possa ser melhor.
2. Que razões apresentaria para mostrar que Deus existe, tendo em conta
o modo como definiu Deus? Que razões poderia alguém dar para rejeitar
quer a sua definição de Deus quer a sua afirmação de que Deus (como o
leitor o definiu) existe realmente? Como lhes responderia?

. ......
, ..
■ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .
.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . - V . : , . ™ . - . -
................. :

38
Capítulo 2
0 argumento cosmológico

O ARGUMENTO COSMOLÓGICO TRADICIONAL

Desde a antiguidade que as pessoas dadas à reflexão procuram justificar as


suas crenças religiosas. Talvez a crença mais fundamental que se procurou
justificar seja a crença de que Deus existe. Em geral, a tentativa de justificar a
crença na existência de Deus começou quer por factos acessíveis tanto a cren­
tes quanto a descrentes, quer por factos que normalmente só são acessíveis
aos crentes, como a experiência directa de Deus. Neste capítulo e nos dois
seguintes, consideraremos algumas das principais tentativas de justificar a
crença em Deus apelando a factos supostamente acessíveis a qualquer pessoa
racional, religiosa ou não. Começando por tais factos, teólogos e filósofos
desenvolveram argumentos a favor da existência de Deus, argumentos que,
segundo eles, provam que Deus existe, sem margem para dúvida razoável.
E comum dividir-se os argumentos a favor da existência de Deus em
argumentos a posteriori e argumentos a priori. Um argumento a p oste­
riori depende de um princípio ou premissa que só se pode conhecer através
da nossa experiência do mundo. Um argumento a priori, por outro lado,
assenta supostamente em princípios que se podem conhecer independen­
temente da nossa experiência do mundo, reflectindo-se apenas neles e
compreendendo-os. Dos três principais argumentos a favor da existência de
Deus — o argumento cosmológico, o argumento do desígnio e o argumento

39
Introdução à Filosofia da Religião

ontológico — apenas o último é completamente a priori. No argumento cos­


mológico começa-se com factos simples acerca do mundo, como o facto de
nele haver coisas cuja existencia é causada por outras coisas. No argumento
do designio o ponto de partida é um facto um pouco mais complicado acerca
do mundo, o facto de exibir ordem e teleología,. No argumento ontológico,
contudo, começa-se simplesmente com um conceito de Deus. Neste capítulo
consideraremos o argumento cosmológico; nos dois capítulos seguintes exa­
minaremos o argumento ontológico e o argumento do desígnio.
Antes de formularmos o argumento cosmológico em si, vamos ponderar
algumas questões bastante gerais acerca do mesmo. Historicamente, remonta
aos escritos dos filósofos gregos, Platão e Aristóteles, mas o fundamental
no progresso do argumento deu-se nos séculos xin e xvin. No século xin,
São Tomás de Aquino apresentou cinco argumentos distintos a favor da exis­
tência de Deus, dos quais os primeiros três são versões do argumento cosmo­
lógico.6 No primeiro, Tomás começa pelo facto de haver coisas no mundo que
sofrem mudanças e conclui que tem de haver uma causa última da mudança,
que seja ela própria imutável. No segundo, começa pelo facto de haver coisas
no mundo cuja existência é claramente causada por outras coisas e conclui que
tem de haver uma causa última de existência, cuja existência seja incausada. No
terceiro argumento, Tomás começa pelo facto de haver coisas no mundo que
não têm sequer de existir, coisas que existem mas que facilmente imaginamos
que poderiam não existir, concluindo que há um ser que tem de existir, que
existe e que não poderia não existir. Poder-se-ia agora objectar que mesmo que
os argumentos de Tomás provassem para lá de qualquer dúvida a existência de
um motor imóvel, de uma causa incausada e de um ser que não poderia não
existir, esses argumentos não conseguem provar a existência do Deus teísta.
Pois o Deus teísta, como vimos, é perfeitamente bom, omnipotente, omnis­
ciente e criador do mundo, mas distinto e independente deste. Como sabemos,

6. São Tomás de Aquino, Summa Theologica, la, 2, 3, em The Basic Writings of Saint
Thomas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).

40
O argumento cosmológico

por exemplo, que o motor imóvel não é malévolo ou ligeiramente ignorante?


A resposta a esta objecção é que o argumento cosmológico tem duas partes. Na
primeira parte trata-se de provar a existência de uni género especial de ser —
por exemplo, um ser que não poderia não existir ou um ser que causa mudanças
nas outras coisas mas é em si imutável. Na segunda parte do argumento trata-se
de provar que o ser especial, cuja existência se estabeleceu na primeira parte,
tem, e não pode deixar de ter, as características que formam conjuntamente a
ideia teísta de Deus — perfeita bondade, omnipotência, omnisciência e por aí
em diante. Isto significa, portanto, que os três argumentos de Tomás são versões
diferentes da primeira parte apenas do argumento cosmológico. Com efeito, em
secções posteriores da sua Summa Théologie a, Tomás procura mostrar que o
motor imóvel, a causa incausada da existência e o ser que tem de existir são um
e o mesmo e que este único ser tem todos os atributos do Deus teísta.
Vimos há pouco que o segundo desenvolvimento fundamental no argu­
mento cosmológico ocorreu no século x v n i, um desenvolvimento que se
reflecte nos textos do filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) e espe­
cialmente nos textos do teólogo e filósofo inglês Samuel Clarke (1675-1729).
Em 1704, Clarke deu uma série de palestras, publicadas mais tarde com o
título A Demonstration of the Being and Attributes of God [Demonstração
da Existência e dos Atributos de Deus]. Estas palestras constituem talvez a
apresentação mais completa, persuasiva e cogente que temos do argumento
cosmológico. As palestras foram lidas pelo principal filósofo céptico sete­
centista, David,Hume (1711-1776). No seu ataque brilhante à tentativa de
justificar a religião no tribunal da razão, os seus Diálogos Sobre a Religião
Natural, Hume apresentou várias críticas penetrantes aos argumentos de
Clarke, críticas que persuadiram muitos filósofos no período moderno a rejei­
tar o argumento cosmológico. Ao estudar o argumento, centrar-nos-emos
em grande medida na sua forma setecentista e procuraremos avaliar os seus
pontos fortes e fracos à luz das críticas que Hume e outros lhe flzeram.
A primeira parte do argumento cosmológico na sua formulação sete­
centista procura provar que há um ser auto-existente. A segunda parte do

41
introdução à Filosoña da Religião

argumento procura provar que o ser aut o existente é o Deus teísta ou seja,
que tem as características que vimos constituir os elementos fundamentais
da ideia teísta de Deus. Consideraremos sobretudo a primeira parte do argu­
mento, pois é contra a primeira parte que os filósofos, de Hume a Bertrand
Russell, têm apresentado objecções muito importantes.
Ao formular a primeira parte do argumento cosmológico vamos usar
dois conceitos importantes: o conceito de ser dependente e o conceito de ser
auto-existente. Por ser dependente entendemos um ser cuja existência se
explica pela actividade causal de outras coisas. Recordando a divisão de
Anselmo nos três exemplos — «explicado por outro», «explicado por nada»
e «explicado por si próprio» — é claro que um ser dependente é um ser cuja
existência se explica por outro ser. Por ser auto-existente entendemos um
ser cuja existência se explica pela sua própria natureza. Esta ideia, como
vimos no capítulo anterior, é um elemento essencial do conceito teísta de
Deus. Mais uma vez, nos termos dos três exemplos de Anselmo, um ser auto-
- existente é um ser cuja existência se explica por si própria. Munidos destes
dois conceitos, o de ser dependente e o de ser auto-existente, podemos agora
formular a primeira parte do argumento cosmológico:12
3

1. Todo o ser (que existe ou que já existiu) ou é um ser dependente ou um


ser auto-existente.
2. Nem todo o ser pode ser dependente.
Logo,
3. Existe um ser auto-existente.

Validade dedutiva

Antes de olhar criticamente para cada uma das suas premissas, note-se que
este argumento é, para usar uma expressão do vocabulário lógico, dedutiva­
mente válido. Para saber se um argumento é ou não dedutivamente válido,
basta que perguntemos: é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras
O argumento cosmológico

e a sua conclusão falsa? Se a resposta for «sim», o argumento é dedutiva­


mente válido. Se a resposta for «não», o argumento é dedutivamente invá­
lido. Repare-se que a questão da validade de um argumento é inteiramente
diferente da questão de as suas premissas serem ou não realmente verdadei­
ras. O seguinte argumento é inteiramente construído com afirmações falsas,
mas é dedutivamente válido:

1. Mick Jagger é o presidente dos EUA.


2. O presidente dos EUA é de Iowa.
Logo,
3. Mick Jagger é de Iowa.

O argumento é dedutivamente válido porque,^embora as suas premissas


sejam falsas, se fossem verdadeiras, a conclusão seria verdadeira. Nem Deus,
diria Tomás, poderia fazer que as premissas deste argumento fossem ver­
dadeiras e a sua conclusão falsa, pois o poder de Deus só abrange o que é
possível, e é uma impossibilidade absoluta Mick Jagger ser o presidente, o
presidente ser de Iowa e no entanto Mick Jagger não ser de Iowa,
O argumento cosmológico (isto é, a sua primeira parte) é dedutivamente
válido. Se as suas premissas forem verdadeiras, ou se o fossem, a sua conclu­
são também o será. O nosso exemplo sobre Mick Jagger deixa claro, contudo,
que o facto de um argumento ser dedutivamente válido é insuficiente para
estabelecer a verdade da sua conclusão. O que mais se exige? Evidentemente,
que saibamos ou tenhamos uma base racional para acreditar que as premissas
são verdadeiras. Se sabemos que o argumento cosmológico é dedutivamente
válido e podemos estabelecer que as suas premissas são verdadeiras, teremos
assim provado que a sua conclusão é verdadeira. Será então que as premissas
do argumento cosmológico são verdadeiras? Temos de passar agora a esta
questão mais difícil.

43
Introdução à Filosofia da Religião

O PRS e a primeira premissa

À partida, a primeira premissa poderá parecer uma verdade óbvia ou mesmo


trivial. Mas não é óbvia nem trivial. E se parece óbvia ou trivial, estamos for­
zosamente a confundir a ideia de um ser auto-existente com a ideia de um ser
que não é dependente. É obviamente verdade que qualquer ser ou é depen­
dente (explica-se por outras coisas) ou não é dependente (não se explica por
outras coisas). Más o que a nossa premissa afirma é que qualquer ser ou é_
dependente (explica-se por outras coisas) ou é auto-existente (explica-se
por si próprio). Considere-se novamente os três casos de Anselmo:

Explica-se por outro.


Explica-se por nada.
Explica-se por si próprio.

A nossa primeira premissa afirma que cada ser que existe (ou já existiu) ou
pertence ao género A ou ao género C. Nega que haja seres do género B. E é
esta negação que torna a primeira premissa simultaneamente importante e
controversa. A verdade óbvia a não confundir com esta negação é a verdade
de que todo o ser ou pertence ao género A ou não pertence ao género Ar'
Embora seja verdade, isto nem é muito importante nem controverso.
Vimos que Anselmo adoptou como princípio fundamental a ideia de que
para tudo o que existe há uma explicação da sua existência. Como este prin­
cípio fundamental nega que exista ou que tenha existido algo do género B, é
óbvio que Anselmo aceitaria a primeira premissa do nosso argumento cosmo­
lógico. Os defensores setecentistas do argumento estavam também conven­
cidos da verdade do princípio fundamental atribuído a Anselmo. E porque
estavam convencidos da sua verdade, aceitaram prontamente a primeira pre­
missa do argumento cosmológico. Mas, no século xvni, o princípio fundamen­
tal de Anselmo foi mais amplamente elaborado e recebeu o nome principiada^
razão suficiente. Uma vez que este princípio (doravante, PRS) desempenha um

44
O argumento cosmológico

papel tão importante na justificação das premissas do argumento cosmológico,


será útil ponderarmos nele um pouco, antes de continuarmos a nossa inves­
tigação da verdade ou da falsidade das premissas do argumento cosmológico.
O PRS, tal como Leibniz e Clarke o exprimem, é um princípio muito
geral e compreende-se melhor se o decompusermos em duas partes. A pri­
meira parte é simplesmente uma reposição do princípio de Anselmo, de que
tem de haver uma explicação da existência de todo e qualquer ser. Assim,
se encontrarmos um homem numa sala, o PRS implica que tem de haver
uma explicação para o facto de esse homem particular existir. Um momento
de reflexão, contudo, mostra que há muitos factos acerca do homem além
do simples facto de existir. Há o facto de o homem em causa se encontrar
presentemente naquela sala e não noutro lugar qualquer, o facto de estar
de boa saúde e o facto de estar naquele momento a pensar em Paris e não,
digamos, em Londres. O objectivo da segunda parte do PRS é exigir também
uma explicação para estes factos. Podemos formular o PRS, portanto, como
o princípio de que tem de haver uma explicação a) da existência de todo
e qualquer ser e b) de qualquer facto positivo, seja ele qual for. Estamos
agora em condições de estudar o papel que este princípio muito importante
desempenha no argumento cosmológico.
Como o defensor do argumento cosmológico aceita as duas partes do
PRS, é óbvio que apelará à primeira parte, PRSa, como justificação da p ri­
meira premissa do argumento cosmológico. Claro que podemos e devemos
investigar a questão mais profunda de saber se o defensor do argumento
tem uma justihcação racional para aceitar o próprio PRS. Mas deixaremos
esta questão de lado por enquanto. Temos de ver primeiro se o defensor do
argumento tem razão ao pensar que, se o PRS for verdadeiro, então ambas
as premissas do argumento cosmológico serão verdadeiras. E acabámos de
ver que se pelo menos a primeira parte do PRS — ou seja, PRSa — for v er­
dadeira, a primeira premissa do argumento cosmológico será verdadeira. E
quanto à segunda premissa? Por que razões pensa o defensor que esta tem
de ser verdadeira?

45
introdução à Filosofia da Religião

A segunda premissa

De acordo com a segunda premissa, nem todos os seres que existem podem
depender de outros — isto é, nem todos podem dever a explicação da sua
^.existência a outro ser ou seres. Supostamente, o defensor do argumento pensa
que há algo de fundamentalmente errado na ideia de que todo o ser que existe
depende de outros, que cada ser existente foi causado por outro ser que por
sua vez foi causado por outro ser, e por aí em diante. Mas o que pensa ele
ao certo que esteja errado nesta ideia? Para nos ajudar a compreender o seu
pensamento, vamos simplificar as coisas supondo que agora apenas existe
uma coisa, A1, talvez um ser vivo, cuja existência foi causada por outra coisa,
A2, que pereceu pouco depois de ter causado a existência de Ar Suponha-se
além disso que a existência de A2foi causada de modo semelhante há algum
tempo por A3 e a de A3 por A4, e por aí fora em direcção ao passado. Cada um
destes seres depende de outro; deve a sua existência ao objecto anterior da
série. Se nada tivesse existido além destes seres, então o que a segunda pre­
missa afirma não seria verdade. Pois se todo o ser que existe ou já existiu é um
A e foi produzido por um A anterior, então todo o ser que existe ou já existiu
dependeria de outro e, consequentemente, a premissa dois do argumento
cosmológico seria falsa. Assim, se o defensor do argumento cosmológico tiver
razão, tem de haver algo errado na ideia de que todo o ser que existe ou existiu
é um A e que todos formam uma série causal: Al causado por A2, A2 causado
por A3, Ag causado por A4„. An causado por Aníl. Como se propõe o defensor
do argumento cosmológico mostrar que há algo de errado nesta perspectiva?
Uma ideia popular mas incorrecta de como o defensor tenta mostrar
que algo está errado nesta perspectiva, a perspectiva de que todo o ser pode
depender de outro, é a de que a rejeita com o seguinte argumento:

í. Tem de haver um primeiro ser para iniciar qualquer série causal.


2. Se todo o ser fosse dependente não haveria um primeiro ser para iniciar
a série causal.
O argumento cosmológico

Logo,
3. Nem todo o ser pode ser dependente.

Embora este argumento seja dedutivamente válido e a sua segunda premissa


seja verdadeira, a sua primeira premissa ignora a possibilidade distinta de
uma série causal infinita, sem qualquer primeiro membro. Assim, se regres­
sarmos à nossa série de seres A, onde cada A depende de outro A, tendo sido
produzido pelo A precedente na série causal, é óbvio que se a série existisse
não teria um primeiro membro; para cada A na série haveria um A prece­
dente que o produziu, ad infinitum. A primeira premissa do argumento
■apresentado pressupõe que uma série causal tem de parar num primeiro
membro, algures no passado distante. Mas parece não haver uma boa razão
para pressupor isto.
Os defensores setecentistas do argumento cosmológico reconheceram
que a série causal de seres dependentes pode ser infinita, sem um primeiro
membro para iniciar a série. Rejeitaram contudo a ideia de que todo o ser
que existe ou que existiu depende de outro; não por nesse caso não haver
um primeiro membro da série de seres dependentes, mas porque então o
facto de haver e sempre ter havido seres dependentes não teria explicação.
Para compreender q seu raciocínio, regressemos à nossa simplificação do
pressuposto de que as únicas coisas que existem ou já existiram são seres
dependentes. Na nossa simplificação desse pressuposto, apenas um dos seres
dependentes existe de cada vez, cada um perecendo à medida que produz o
seguinte na série. Talvez a primeira coisa a observar acerca deste pressuposto
seja não haver qualquer indivíduo A na série causal de seres dependentes cuja
existência não sc explica A 1explica-se por A2, A2por Ar¿, e An por An+r De
modo que a primeira parte do PRS, PRSa, parece cumprir-se. Não há qualquer
ser particular cuja existência careça de explicação. O que falta explicar, então,
:se todos os particulares A na série causal de seres dependentes têm uma
explicação? Falta explicar a própria série. Ou, como optei por exprimir, o
facto de haver e sempre ter havido seres dependentes. Suponha-se portanto

47
Introdução à Filosofía da Religião

que perguntamos por que razão existem e sempre existiram seres A. Não
basta afirmar que sempre houve seres A a produzir outros A — não podemos
explicar por que razão sempre houve seres A afirmando que sempre houve
seres A. Tão-pouco, supondo que nunca existiram senão seres A, podemos
explicar o facto de sempre ter havido A apelando a qualquer outra coisa que
não seja um A — pois tal coisa nunca teria existido. Assim a suposição de que
as únicas coisas que existem ou já existiram dependem de outras deixa-nos
com um facto para o qual não pode haver explicação — nomeadamente, o
facto de haver seres dependentes em vez de não haver.

Questionando a justificação da segunda premissa

Os críticos do argumento cosmológico levantaram diversas objecções impor­


tantes à añrmação de que, se todo o ser fosse dependente, a série ou colecção
desses seres não teria explicação. A nossa compreensão do argumento cos­
mológico, bem como dos seus pontos fortes e fracos, será aprofundada por
uma consideração cuidadosa destas críticas.
A primeira crítica é a de que o defensor do argumento cosmológico
comete o erro de tratar a colecção ou série de seres dependentes como se ela
própria fosse um ser dependente e, portanto, exigisse uma explicação da sua
existência. Mas, segundo a objecção, a colecção de seres dependentes não é
ela própria um ser dependente, do mesmo modo que uma colecção de selos
não é ela própria um selo.
A segunda crítica é a de que o defensor comete o erro de inferir que, por­
que cada membro da colecção de seres dependentes tem uma causa, a própria
colecção tem de ter uma causa. Mas, como Russell fez notar, tal raciocínio é
tão falacioso como inferir que a espécie humana {isto é, a colecção de seres
humanos) tem de ter uma mãe porque cada membro da colecção (cada ser
humano) tem uma mãe.
A terceira crítica é a de que o defensor do argumento não percebe que
haver uma explicação para uma colecção de coisas não é mais do que haver

48
O argumento cosmológico

uma explicação para cada urna das coisas que formam a colecção. Dado que,
■ ria colecção (ou série) inñnita de seres dependentes, cada ser que a compõe
tem de facto uma explicação — em virtude de ter sido causado por um mem­
bro precedente da colecção — a explicação da colecção, segundo a crítica, já
foi dada. Como Hume comentou:

«Consideraria bastante ixrazoável, depois de lhe m ostrar as causas particulares


de cada indivíduo numa colecção de vinte partículas de matérla^gne me pergun­
tasse depois qual fora a causa da totalidade dos vinte. Isto foi satisfatoriam ente
explicado quando se explicou a causa das p artes.»7

Por fim, mesmo que o defensor do argumento cosmológico possa res­


ponder satisfatoriamente a estas objecções, tem aínda de enfrentar uma
■última objecção à sua engenhosa tentativa de justificar a segunda premissa
do argumento cosmológico. Pois podemos concordar que, se nada existe além
de uma colecção inñnita de seres dependentes, a existência da colecção in fi
nita não tem explicação; mas ainda assim recusarmo-nos a concluir daqui
que há algo de errado na ideia de que todo o ser depende de outro. Po der-
-se-ia perguntar: por que razão devemos pensar que tudo tem de ter uma
explicação? Que mal tem admitir que o facto de haver e sempre ter havido
seres dependentes é um facto bruto, um facto sem qualquer explicação? Por
que razão tem de haver uma explicação para tudo, afinal? Temos de ver agora
o que se pode responder a estas diversas objecções.

Respostas às críticas

É seguramente um erro pensar que uma colecção de selos é ela própria um


selo e é muito provavelmente um erro pensar que a colecção de seres depen-

7. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, pt. IX, org. H.D. Aiken (Nova
Iorque: Hafner Publishing Company, 1948), pp. 5 9 -6 0 . [Diálogos Sobre a Religião
Natural, Edições 70, Lisboa, 2005.]

49
Introdução à Filosofia da Religião

dentes é ela própria um ser dependente. Mas o mero facto de pensar que
tem de haver uma explicação não só para cada membro da colecção de seres
dependentes mas para a própria colecção não dá ao defensor do argumento
uma razão suficiente para concluir que tem de ver a própria colecção como
um ser dependente. A colecção de seres humanos, por exemplo, não é segu­
ramente ela própria um ser humano. Tendo admitido isto, contudo, podemos
ainda assim procurar explicar por que razão há uma colecção de seres huma -
nos, por que razão há coisas como seres humanos de todo em todo. Pelo que o
mero facto de se exigir uma explicação para a colecção de seres dependentes
não prova que quem pede a explicação tem de supor que a própria colecção
é apenas mais um ser dependente.
A segunda crítica atribui o seguinte pedaço de raciocínio ao defensor do
argumento cosmológico:

1. Todos os membros da colecção de seres dependentes têm uma causa ou


explicação.
Logo,
2. A colecção de seres dependentes tem uma causa ou explicação.

Como vimos ao apresentar esta crítica, os argumentos deste género não são
normalmente de confiança. Seria um erro concluir que uma colecção de
objectas é leve apenas porque cada objecta da colecção é leve, porquanto, se
a colecção contém muitos objectas, pode ser muito pesada. Por outro lado,
se sabemos que cada berlinde pesa mais de 28 gramas, podemos inferir vali­
damente que a colecção de berlindes pesa mais de 28 gramas. Felizmente,
contudo, não temos de decidir se a inferência de 1 para 2 é válida ou inválida.
Não precisamos de resolver esta questão porque o defensor do argumento
cosmológico não precisa de usar esta inferência para estabelecer que a colec­
ção de seres dependentes tem de ter uma explicação. Não precisa de usar esta
inferência porque tem no PRS um princípio do qual se segue imediatamente
que a colecção de seres dependentes tem uma causa ou explicação. Pois,

50
O argumento cosmológico

segundo o PRS, todos os (actos positivos têm de 1er urna explicação. Se é um


facto que existe uma colecção de seres dependentes, então, segundo o PRS,
também esse facto tem de ter uma explicação. De maneira que é ao PRS que o
defensor do argumento cosmológico apela ao concluir que a colecção de seres
dependentes tem de ter uma explicação e não a uma inferência duvidosa a
partir da premissa de que cada membro da colecção tem uma explicação.
Parece então que nenhuma das primeiras críticas é suficientemente forte
para levantar qualquer obstáculo sério ao raciocínio usado para sustentar a
segunda premissa do argumento cosmológico.
A terceira objecção afirma que explicar a existência de uma colecção de
coisas é o mesmo que explicar a existência de cada um dos seus membros.
Se considerarmos uma colecção de seres dependentes na qual cada ser que
consta na colecção se explica pelo membro precedente que o causou, é evi­
dente que nenhum membro da colecção carecerá de uma explicação para a
sua existência. Mas, segundo a crítica, se explicámos a existência de todos os
membros de uma colecção, explicámos a existência da colecção — nada falta
explicar. Esta crítica persuasiva, originalmente apresentada por David Hume,
teve uma aceitação considerável no período moderno. Mas a crítica assenta
num pressuposto que o defensor do argumento cosmológico não aceitaria. O
pressuposto é que para explicar a existência de uma colecção de coisas basta
explicar a existência de cada membro da colecção. Ver o que está errado neste
pressuposto é compreender o que está em causa no raciocínio desenvolvido
pelo defensor do argumento cosmológico para estabelecer que nem todo o
ser pode ser dependente.
Para a existência da colecção de seres dependentes ter explicação, os
defensores setecentistas teriam evidentemente de exigir que se satisfizesse
:as seguintes duas condições:

C l. A existência de cada membro da colecção de seres dependentes tem uma


explicação.
C2. Há uma explicação da razão por que há quaisquer seres dependentes.

51
Introdução à Filosofia da Religião

Segundo os defensores do argumento cosmológico, se todo o ser que existe


ou já existiu é um ser dependente — isto é, se o todo da realidade consiste em
nada mais do que uma colecção de seres dependentes — ter-se-á satisfeito Cl,
mas não C2. E como não se satisfaz C2, não há explicação para a colecção de
seres dependentes. A terceira crítica afirma, na verdade, que satisfazendo-se
Ci satisfaz-se C2 e, como numa colecção de seres dependentes cada membro
se explica por seja o que for que o tenha produzido, ter-se-á satisfeito Cl. Logo,
ter-se-á satisfeito C2 e a colecção de seres dependentes terá uma explicação.
Embora seja uma questão_complicada, considero possível ver que a ter­
ceira crítica assenta num^erro jo erro de pensar que satisfazendo-se Cl se
satisfaz forçosamente C2. Trata-se de um erro natural, pois é fácil imaginar
circunstâncias em que satisfazendo-se Ci se satisfaz também C2. Suponha-se,
-, por exemplo, que no todo da realidade se inclui não só uma colecção de seres
dependentes mas também um ser auto-existente. Suponha-se além disso que,
' em vez de cada ser dependente ter sido produzido por outro ser dependente
qualquer, todo o ser dependente foi produzido pelo ser auto-existenteiPor hm,
considere-se simultaneamente a possibilidade de a colecção de seres depen­
dentes ser temporalmente finita e ter um primeiro membro, e a possibilidade
.1 de a colecção de seres dependentes se prolongar infinitamente no passado, sem
qualquer primeiro membro. Usando D para representar o ser auto-existente,
1 pode-se esquematizar a primeira possibilidade do seguinte modo:

n ...

; s/ s✓ s✓ x¡/

‘ ' ~-----—” ^3 “ —”— “ —” --- “ — - ^ 2 ~~— ““ “

Diremos que D sempre existiu e sempre existirá. Podemos pensar em dt


como um ser dependente que existe presentemente, e em d¿) d , etc., como
seres dependentes que existiram num dado momento do passado, e em dn
como o primeiro ser dependente a existir. Pode-se representar a segunda
possibilidade do seguinte modo:

52
O argumento cosmológico

3__________d?___d,
d

¡Veste diagrama não há qualquer primeiro membro da colecção de seres


dependentes. Cada membro da colecção infinita, porém, é explicado por
referencia ao ser auto-existente D, que o produziu. O que é interessante em
ambos os casos é que a explicação dada para os membros da colecção de seres
^dependentes traz em si, pelo menos parcialmente, uma resposta à questão
de saber por que razão há de todo em todo seres dependentes. Em ambos
os casos podemos explicar por que razão há seres dependentes indicando
que há um ser auto-existente que se tem empenhado em produzi-los. Então,
sabendo nós que a existência de cada membro da colecção de seres depen­
dentes se explica pelo facto de D o ter produzido, ñcámos a saber por que
razão há seres dependentes.
Poder-se-ia objectar que não saberemos realmente por que razão há
seres dependentes enquanto não soubermos por que razão D os tem pro­
duzido. Mas é óbvio que podíamos também añrmar que não explicámos
realmente a existência de um ser dependente particular, por exemplo, d ,
enquanto não soubermos também não só que D o produziu, mas por que
razão D o produziu. O que precisamos captar, contudo, é que, tendo nós
admitido que a existência de todos os seres dependentes se explica por D,
temos de admitir que o facto de haver seres dependentes foi também expli­
cado. Pelo que é natural pensar que explicar a existência dos membros da
colecção de seres dependentes nada mais é do que explicar a existência dos
seus membros. Pois, como vimos, explicar a existência da colecção é explicar
a existência de cada membro e a razão pela qual há de todo em todo seres
dependentes. E nos exemplos que considerámos, ao fazer a primeira (explicar
por que razão cada ser dependente existe) fizemos já a segunda (explicar por
que razão há de todo em todo seres dependentes). Temos agora de ver, con­
tudo, que, supondo que o todo da realidade consiste apenas numa colecção

53
Introdução ã Filosoña da Religião
O

de seres dependentes, explicar a existencia de cada membro não é o mesmo


que explicar por que razão há seres dependentes.
Nos exemplos que considerámos, saímos da colecção de seres depen­
dentes para explicar a existência dos membros. Mas se os únicos seres que
-,existem ou já existiram são dependentes, então cada ser dependente será
explicado por outro ser dependente qualquer, aà infinitum. Isto não significa
que haverá um ser dependente particular cuja existência não foi explicada.
Cada ser dependente tem uma explicação da sua existência — nomeadamente,
no ser dependente que o precedeu e produziu. Pelo que se satisfaz Ci: há uma
explicação da existência de cada membro da colecção de seres dependentes.
Voltando a C2, contudo, podemos ver que não será satisfeita. Não podemos
explicar por que razão há (ou alguma vez houve) seres dependentes apelando
a todos os membros de uma colecção inhnita de seres dependentes. Pois se a
questão a que se tem de responder é a de saber por que razão há de todo em
todo seres dependentes (ou alguma vez houve), não podemos responder-lhe
indicando que sempre houve seres dependentes, cada um dos quais explica
a existência de outro ser dependente qualquer. Assim, supondo que todo
o ser é dependente, parece que não haverá explicação da razão por que há
seres dependentes. C2 não será satisfeita. Logo, supondo que todo o ser é
dependente, não haverá qualquer explicação para a existência da colecção
de seres dependentes.

A verdade do PRS

Chegamos agora à última crítica ao raciocínio que sustenta a segunda pre­


missa do argumento cosmológico. Segundo esta crítica, admite-se que a
suposição de que todo o ser é dependente implica que haverá um facto bruto
no universo — isto é, um facto para q qual não pode haver qualquer explica­
ção. Pois não haverá qualquer explicação para o facto de existirem e sempre
terem existido seres dependentes. É este facto bruto que os defensores do
argumento descreviam ao chamar a atenção para que, se todo o ser depende

54
O argumento cosmológico

de outro, a existência da própria série ou colecção de seres dependentes


carece de explicação. A última crítica pergunta que malha em admitir que
o universo contém tal facto bruto e ininteligível. Ao fazer esta pergunta o
critico desafta o princípio fundamental, PRS, em que assenta o argumento
cosmológico. Pois, como vimos, a primeira premissa do argumento nega
que exista um ser cuja existência não tenha explicação. Para sustentar esta
premissa o defensor apela à primeira parte do PRS. A segunda premissa do
argumento afirma que nem todo o ser pode depender de outro. Para sustentar
esta premissa o defensor apela à segunda parte do PRS, a parte que afirma ter
de haver uma explicação para todo e qualquer facto positivo.
O defensor raciocina que, se todo o ser dependesse de outros, então
mesmo que se satisfizesse a primeira parte do PRS — todo o ser teria uma
explicação — violar-se-ia a segunda parte: não haveria explicação para o facto
positivo de haver e sempre ter havido seres dependentes. Em primeiro lugar,
como todo o ser é supostamente dependente, nada haveria fora da colecção de
seres dependentes para explicar a existência da colecção. Em segundo lugar,
o facto de cada membro da colecção se explicar por outro ser dependente
qualquer é insuficiente para explicar por que razão há e sempre houve seres
dependentes. Por fim, nada há na colecção de seres dependentes que sugira
que a própria colecção é auto-existente. Consequentemente, se todo o ser
fosse dependente, o facto de haver e sempre ter havido seres dependentes não
teria explicação. Mas isto viola a segunda parte do PRS. Pelo que a segunda
premissa do argumento cosmológico tem de ser verdadeira: nem todo o ser
pode ser dependente. Esta conclusão, contudo, não é melhor do que o princí­
pio, PRS, em que assenta. E questionar a verdade do PRS é o que está em causa
na última crítica. Afinal, por que razão devemos aceitar a ideia de que todo
o ser e todo o facto positivo têm de ter uma explicação? Por que razão, resu­
mindo, devemos acreditar no PRS? Estas são questões importantes e qualquer
juízo último do argumento cosmológico depende de como se lhes responde.
Na sua maioria, os teólogos e filósofos que aceitam o PRS tentaram
defendê-lo de uma de duas maneiras. Alguns defenderam que se conhece (ou

55
introdução à Filosofia da Religião

pode conhecer) a verdade do PRS intuitivamente. Querem com isto dizer que,
se compreendermos integralmente e reflectirmos no que o PRS afirma, pode­
mos ver que tem de ser verdadeiro. Sem dúvida que há ahrmações cuja ver­
dade se conhece intuitivamente. «Todos os triângulos têm exactamente três
.ângulos» ou «Nenhum objecto físico pode ocupar duas regiões diferentes do
espaço ao mesmo tempo» são exemplos de afirmações cuja verdade podemos
apreender compreendendo-as apenas e reflectindo nelas. A dificuldade de
ahrmar que se conhece a verdade do PRS intuitivamente, contudo, está em
que diversos filósofos bastante capazes não conseguem, após uina reflexão
cuidada, apreender a sua verdade, e alguns desenvolveram argumentos sérios
sustentando a conclusão de que o princípio é de facto falso.8É evidente, por­
tanto, que nem todos os que reflectiram no PRS Acaram persuadidos da sua
verdade e há quem esteja convencido de que há boas razões para pensar que
é falso. Mas embora o facto de alguns pensadores capazes não conseguirem
apreender a verdade do PRS, e de poderem mesmo argumentar que é falso,
seja uma razão decisiva para pensar que o PRS não é uma verdade tão óbvia
como, por exemplo, «Nenhum objecto físico pode ocupar duas regiões dife­
rentes do espaço ao mesmo tempo», não basta para estabelecer que o PRS
não é uma verdade da razão. Talvez nesta fase tudo o qué se pode fazer seja
reflectir cuidadosamente no que o PRS añrma e formar um juízo autónomo
sobre se é uma verdade fundamental acerca do modo como a realidade tem
de ser. E, se após se reflectir cuidadosamente no PRS se tiver esta impressão,
pode-se ter justihcação racional para o considerar verdadeiro e, tendo visto
que sustenta as premissas do argumento cosmológico, aceitar como verda­
deira a conclusão deste argumento.
A segunda maneira pela qual os filósofos e os teólogos que aceitam o
PRS procuraram defendê-lo é aArmando que, embora se possa desconhecer
a sua verdade, é ainda assim uma pressuposição da razão, um pressuposto8

8. Para uma breve explicação de dois destes argumentos ver o prefácio do meu The Cos­
mological Argument (Nova Iorque: Fordham University Press, 1998).
O argumento cosmológico

fundamental que as pessoas racionais fazem, reflictam ou não o suficiente


para estarem cientes desse pressuposto. É provavelmente verdade que há
alguns pressupostos que todos fazemos acerca do mundo, pressupostos tão
¿fundamentáis que não estamos, maioritariamente, cientes deles. E suponho
que seja talvez verdade que o PRS é um pressuposto deste género. Que rele­
vância teria esta perspectiva do PRS para o argumento cosmológico? Talvez
o principal a reter seja que, mesmo que o PRS seja um pressuposto que todos
partilhamos, as premissas do argumento cosmológico podem ainda assim ser
falsas. Pois o próprio PRS pode ainda assim ser falso. O facto, se é que se trata
de um facto, de todos pressupormos que todo o ser existente e todo o facto
;positivo têm uma explicação não implica que nenhum ser existe e nenhum
facto positivo se verifica sem que qualquer deles tenha, respectivamente,
uma explicação. A natureza não é obrigada a satisfazer os nossos pressupos­
tos. Como em tempos comentou o filósofo americano William James a pro­
pósito de outro assunto: «Na grande hospedaria da natureza, raramente os
bolos, a manteiga e o xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos».
O nosso estudo da primeira parte do argumento cosmológico levou-nos
ao princípio fundamental em que assentam as suas premissas, o princípio
da razão suficiente. Vimos que, excepto se o PRS nos parecer algo, depois
de uma reflexão ponderada, de cuja verdade temos a certeza, não podemos
razoavelmente afirmar saber que as premissas do argumento cosmológico são
verdadeiras. Claro que podem ser verdadeiras. Mas, a menos que saibamos
que são verdadeiras, não podem servir-nos para estabelecer a conclusão de
que há um ser cuja existencia se explica pela sua própria natureza. Se con­
tudo se mostrasse que, embora não saibamos que o PRS é verdadeiro, todos
pressupomos, não obstante, que o PRS é verdadeiro, então, quer o PRS seja
ou não verdadeiro, para sermos consistentes devemos aceitar o argumento
cosmológico. Pois, como vimos, as suas premissas implicam a conclusão
e parecem de facto seguir-se do PRS. Mas ninguém conseguiu ainda m os­
trar que o PRS é um pressuposto partilhado maioritariamente ou por todos.
Pelo que a nossa conclusão final tem de ser que, à excepção dos que após

57
Introdução à Filosofia da Religião

uma reflexão ponderada concluem razoavelmente que o PRS é uma verdade


fundamental de razão, o argumento cosmológico não nos dá uma boa base
racional para acreditar que entre os seres que existem há um cuja existência^
se explica pela siua própria natureza. E uma vez que a concepção clássica de
1Deus é a de um ser cuja existência se explica pela sua própria natureza, além
da excepção apontada, o argumento cosmológico é incapaz de nos dar uma
boa base racional para acreditar que Deus existe,

O ARGUMENTO COSMOLÓGICO KALAM

Uma versão do argumento cosmológico que tem a sua origem na filosofia


árabe tem sido também alvo de atenção na ñlosofta contemporânea da reli­
gião, Ao contrário da versão de Samuel Clarke, que admite a possibilidade de
uma série interminável de acontecimentos que se prolongue infinitamente
no passado, segundo o argumento kalam é impossível que exista um infinito
efectivo. Se este aspecto do argumento kalam está correcto, então, como
uma série efectiva de acontecimentos que se prolonga interminavelmente no
passado seria um infinito efectivo, é impossível que exista tal série. Isto não
sígníñca que não possa haver uma série potencialmente infinita, uma série
que em qualquer momento em que a consideramos é finita mas à qual se pode
adicionar sucessivamente elementos ad infinitum. Pois tal série nunca seria
efectivamente infinita. Mas por que razão se afirma que é impossível uma
série infinita efectiva de acontecimentos que levam do passado ao presente?
Considere-se tal série interminável de acontecimentos do passado. Suponha-
-se que cada um destes acontecimentos demora uma certa quantidade de
tempo, por muito pequena que seja, a ocorrer. Por pouquíssimo tempo que
cada acontecimento leve a ocorrer, añrma-se que, dado não haver qualquer
primeiro acontecimento na série de acontecimentos do passado, nunca_se_
podería chegar ao ponto onde estamos, o presente.
Se concedemos a impossibilidade de um infinito efectivo, podemos
ter a certeza de que o nosso universo teve um começo. Pois se o nosso uni-

58
O argumento cosmológico

■ verso nunca te ve um começo, então a série de acontecimentos em que con­


siste a sua existência temporal do passado constituiria um infinito efectivo.
:Contudo, a confiança que temos no facto de o nosso universo ter tido um
começo não tem de se apoiar neste argumento ñlosóñco; pois segundo as
;melhores estimativas da ciência actual o nosso universo teve de facto um
começo. Começou a existir há cerca 14,5 mil milhões de anos, o planeta Terra
há cerca de 4,5 mil milhões de anos e os seres vivos na Terra há cerca de 3,5
; mil milhões de anos.
Podemos agora enunciar o primeiro passo do argumento cosmológico
kalam do seguinte modo:

1. Se o nosso universo nunca teve um começo, ocorreu uma série infinita


efectiva de acontecimentos.
2. Uma série infinita efectiva de acontecimentos no tempo é impossível.
Logo,
3. O nosso universo teve um começo.

O segundo passo do argumento kalam levanta a questão de o começo do nosso


universo ter ou não uma causa. É importante ver que, segundo a ciência actual,
o começo do nosso universo assinala também o começo do tempo.9 Assim,
não há simplesmente qualquer momento no tempo antes do começo do nosso
universo, qualquer momento prévio em que algo ou alguém pudesse agir de
modo a causar o início do nosso universo. Isto significa que, se 0 nosso universo
:tivesse uma causa, essa causa (qualquer que fosse) não podia ter causado o
nosso universo, existindo num momento qualquer do tempo antes de o nosso
universo existir, agindo então de maneira a causar a existência do nosso uni­
verso. Como poderia então a existência do nosso universo ter sido causada?
Um eminente defensor do argumento cosmológico kalam, William Lane Craig,

;9. Ver a famosa palestra de Stephen Hawking «The Beginning of Tim e», http: //www.
hawking.org.uk/lectures/bot. html.

59
Introdução à Filosofia da Religião

reparou que vários filósofos admitiram a causalidade simultânea. Craig cita


um exemplo dado por Immanuel Kant: o assentar de uma bola pesada numa
almofada ser a causa de uma concavidade nessa almofada. Craig conclui:

«Parece não haver qualquer dificuldade conceptual em a&rmar que a causa da


origem do universo agiu simultaneamente (ou coincidentemente) ao originar do
universo. Devíamos portanto afirmar que a causa da origem do universo é cau-
sahnente anterior ao Big Bang, embora não lhe seja temporalmente an terior.»50

A ideia, portanto, é que o tempo começa com o começo do universo.


A causa do universo, qualquer que seja, não é em si temporal, uma vez que
se requer a sua existência para que o universo (e o tempo) comecem a existir.
Que propriedades tem uma entidade intemporal de ter para causar intem­
poralmente a existência de um universo temporal, partindo do princípio de
que a razão nos exige que suponhamos que o Big Bang tem de ter uma causa?
Craig pensa que tal entidade teria as propriedades que constituem o Deus do
teísmo tradicional: perfeita bondade, omnisciência e omnipotência. Perma­
nece a questão de um ser ter realmente de ter ou não estas três propriedades
para ser a causa intemporal do universo temporal. Presumivelmente, um
ser com estas propriedades seria capaz de causar a existência do universo
temporal. Mas ao inferir, a partir do que nos parece ter sido causado (o nosso
universo), a natureza do ser que o causou, não podemos simplesmente pres­
supor que o ser tem propriedades que não são de modo algum necessárias
para poder ser a causa do nosso universo. Um ser com poder e conhecimento
suficientes para causar um universo temporal não tem de ter conhecimento
absoluto de tudo o que é cognoscível (não tem de ser omnisciente). Tão-
-pouco tem de ser perfeitamente bom. Além disso, se olharmos para a quali­
dade de uma parte do que foi produzido, o único planeta no universo com que10

10. «Creation and Big-Bang Cosmology», http: //www.leaderu.com/ofhces/billcraig/


docs/creation, html.

60
O argumento cosmológico

estamos familiarizados, dificilmente poderiamos pensar que a causa do nosso


universo teria de ser moralmente perfeita. É muito difícil argumentar que
um ser com poder e conhecimento suficientes, embora carecendo da perfeita
bondade, seria incapaz de causar a existencia do nosso universo. Esta objec-
ção, contudo, não mostra que o argumento cosmológico kalam não possa
desempenhar um papel importante na defesa do teísmo tradicional. Pois o
argumento cosmológico, quer na forma tradicional apresentada por Clarke
quer na versão kalam, é apenas um de vários argumentos importantes a favor
da existência do Deus teísta. Se o argumento kalam sustenta a existência de
um criador do universo, outro argumento qualquer pode sustentar a con­
clusão de que um criador seria moralmente perfeito. E tal como um ramo
pode ser insuficiente para suster um objecto pesado mas um feixe de vários
ramos ser suficiente, também os vários argumentos tomados em conjunto
podem ser suficientes para sustentar a existência de um ser omnisciente,
omnipotente, perfeitamente bom e criador do mundo.

REVISÃO

1. Formule a primeira parte do argumento cosmológico e descreva o que


se entende por um ser dependente e por um ser auto-existente.
2. Explique o que se entende por princípio da razão suficiente.
3. Descreva resumidamente as diversas objecções que se tem levantado
contra o raciocínio usado para justificar a afirmação de que nem todo o
ser pode ser dependente. Alguma dessas objecções é boa?
4- Como têm os filósofos procurado defender o princípio da razão suficiente?
5. Se não soubermos que o princípio da razão suficiente é verdadeiro, que
conclusão devemos retirar quanto ao argumento cosmológico?

61
Introdução à Filosofia da Religião

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Discuta a seguinte resposta ao argumento cosmológico:


Talvez possamos explicar a existência do, mundo supondo que Deus
existe e o criou. Mas resta-nos então a existência de Deus. Como vamos
explicá-la? Se afirmamos que a existência de Deus não tem explicação,
podemos afirmar a mesma coisa acerca do mundo. Se afirmamos que a
existência de Deus se explica por si própria, podemos afirmar a mesma
coisa acerca do mundo. Portanto, a hipótese mais simples é ou que o
mundo não tem explicação ou que se explica a si próprio.
2. Na vida humana explicamos constantemente uma coisa por meio de
outra, ainda que sejamos incapazes de explicar a segunda. Se, em todos
os nossos assuntos práticos, as explicações têm de chegar a um hm, será
que isso não mostra que o princípio da razão suficiente é falso, ou pelo
menos que é uma ideia impraticável? Discuta.
Capítulo 3
0 argumento ontológico

Talvez seja melhor pensar no argumento ontológico não como um único


argumento mas como uma família de argumentos, em que cada membro
começa com um conceito de Deus e, apelando apenas a princípios a priori,
procura estabelecer que Deus existe efectivamente. Nesta família de argu­
mentos, o mais importante historicamente é o apresentado por Anselmo
no segundo capítulo do seu Proslogium (um discurso).11 Na verdade, é justo
añrmar que o argumento ontológico começa com o Capítulo 2 do Proslogium
de S. Anselmo. Numa obra anterior, Monologium (um solilóquio), Anselmo
procurara estabelecer a existência e natureza de Deus entretecendo diver­
sas versões do argumento cosmológico. No prefácio ao Proslogium Anselmo
comenta que após a publicação do Monologium começou a procurar um
único argumento que por si só estabelecesse a existência e natureza de Deus.
Depois de muito esforço árduo e infrutífero, Anselmo diz-nos que procurou
afastar o projecto da sua mente, para se dedicar a tarefas mais compensado-

11. Alguns filósofos pensam que Anselmo apresenta um argumento diferente e mais
cogente no Capítulo 3 do seu Proslogium.. Para este ponto de vista, ver Charles Hart-
shorne, Anselm’s Discovery (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1965} e Norman
Malcom, «Anselm’s Ontological Arguments», Vie Philosophical Review LXIX, n.° 1
(i960), pp. 41-62. Para uma explicação esclarecedora das intenções de Anselmo no
Proslogium, II e III, e em recentes interpretações de Anselmo, ver o ensaio de Arthur C.
McGill, «Recent Discussions of Anselm’s Argument» em The Many-Faced Argument,
org. John Hick e Arthur C. McGill (Nova Iorque: The MacMillan Co., 1967), pp. 33-110.
[Santo Anselmo, Proslogion, trad. Costa Macedo, Porto: Porto Editora, 1996.]
Introdução à Filosoña da Religião

ras. A ideia, contudo, continuou a assombrá-lo até que um dia se lhe tornou
clara a prova que procurara tão arduamente. É esta prova que Anselmo apre­
senta no segundo capítulo do Proslogium.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Antes de apresentar passo a passo o argumento de Anselmo, será útil intro­


duzir alguns conceitos que nos ajudarão a compreender algumas das ideias
centrais que nele figuram. Suponha-se que desenhamos, na nossa imagina­
ção, uma linha vertical e imaginamos que no lado esquerdo da nossa linha
estão todas as coisas que existem e no lado direito da linha estão todas as
coisas que não existem. Podíamos então começar a fazer uma lista de algumas
coisas que estão em ambos os lados da nossa linha imaginária. A lista poderia
começar da seguinte maneira:

C o is a s q u e e x is t e m C o is a s q u e n ã o e x is t e m

0 E m p ire S ta te Bu ildin g A Fonte da Ju ve n tu d e


Cães U nicórn ios
0 planeta Marte 0 A b o m in á vel Flom em das N eves

Cada uma das coisas (ou géneros de coisas) apresentadas até agora tem a
seguinte característica: logicamente, podia estar no outro lado da linha.
A Fonte da Juventude, por exemplo, está no lado direito da linha mas logica­
mente nada há de absurdo na ideia de que a Fonte da Juventude podia estar
no lado esquerdo. De igual modo, embora os cães existam, podemos segura­
mente imaginar, sem cair em qualquer absurdo lógico, que os cães podiam
não ter existido: podiam estar no lado direito da linha. Registemos então
esta característica das coisas até agora apresentadas, introduzindo a ideia de
coisa contingente: algo que podia logicamente estar no lado da linha oposto
ao lado onde efectivamente está. O planeta Marte e o Abominável Homem
das Neves são coisas contingentes apesar de o primeiro existir e o último não.

64
O argumento ontológico

Suponha-se que acrescentamos algo à nossa lista, escrevendo no lado


direito a expressão «o objecto que é ao mesmo tempo completamente
redondo e completamente quadrado». O quadrado redondo, contudo, ao
contrário das outras coisas apresentadas no lado direito da linha, é algo que
logicamente não podia estar no lado esquerdo. Vendo isto, introduzamos a
ideia de coisa impossível como algo que está no lado direito da linha e logi­
camente não podia estar no lado esquerdo.
Olhando mais uma vez para a nossa lista, surge a questão de haver ou
não alguma coisa no lado esquerdo da nossa linha imaginária que, ao con­
trário das coisas apresentadas até agora no lado esquerdo, logicamente não
poderia estar no lado direito. Por enquanto, não temos de responder a esta
questão. Mas é útil ter um conceito para aplicar a quaisquer coisas desse
género, se as houver. Consequentemente, introduzamos a noção de coisa
necessária: algo que está no lado esquerdo da nossa linha imaginária e logi­
camente não podia estar no direito.
Por fini, podemos introduzir a ideia de coisa possível: qualquer coisa
que ou está no lado esquerdo da nossa linha imaginária ou podia logicamente
estar no lado esquerdo. As coisas possíveis, portanto, serão todas aquelas
que não são impossíveis — isto é, todas aquelas que são ou contingentes ou
necessárias. Se não há coisas necessárias, então todas as coisas possíveis serão
contingentes e todas as coisas contingentes serão possíveis. Se há algo neces­
sário, contudo, então haverá algo possível que não é contingente.
Munidos com os conceitos que se acabou de explicar podemos passar
à clarificação de certas distinções e ideias importantes no pensamento de
Anselmo. A primeira é a distinção entre a existência no entendimento e a
existência na realidade. A noção que Anselmo tem de existência na realidade
é a mesma que a nossa noção de existência — isto é, estar no lado esquerdo
:da nossa linha imaginária. Como a Fonte da Juventude está no lado direito da
linha, não existe na realidade. As coisas que existem são, para usar a expressão
de Anselmo, as que existem na realidade. A noção que Anselmo tem de existên­
cia no entendimento, contudo, é diferente de qualquer ideia que normalmente

65
introdução à Filosofia da Religião

usemos. Mas o que Anselmo quer dizer com «existencia no entendimento»


não é particularmente misterioso. Quando pensamos numa determinada coisa,
por exemplo, na Fonte da Juventude, essa coisa, na perspectiva de Anselmo,
existe no entendimento. Pelo que algumas coisas que estão em ambos os lados
da nossa linha imaginária existem no entendimento, mas apenas as que estão
no lado esquerdo da linha existem na realidade. Haverá alguma coisa que não
exista no entendimento? Sem dúvida. Porquanto há coisas, quer existentes
quer inexistentes, nas quais nunca pensámos. Suponha-se agora que afirmo
que a Fonte da Juventude não existe. Como para negar inteligivelmente a
existência de algo tenho de ter esse algo em mente, segue-se, na perspectiva
de Anselmo, que sempre que alguém afir ma que algo não existe, esse algo
existe no entendimento.12 Pelo que ao afirmar que a Fonte da Juventude não
existe estou a pressupor que a Fonte da Juventude existe no entendimento.
E ao afirmar que não existe añrmei (na perspectiva de Anselmo) que não existe
na realidade. Isto significa que a minha afirmação simples de que a Fonte da
Juventude não existe equivale à afirmação algo mais complexa de que a Fonte
da Juventude existe no entendimento mas não na realidade — em resumo, que
a Fonte da Juventude existe apenas no entendimento.
Tendo em conta o que foi dito, podemos compreender por que razão
Anselmo insiste em que qualquer pessoa que ouve Deus pensa em Deus, ou
até mesmo que nega a existência de Deus está ainda assim comprometida
com a perspectiva de que Deus existe no entendimento. Além disso, podemos
compreender por que razão Anselmo trata aquilo a que chama a afirmação
do tolo, de que Deus não existe, como a afirmação de que Deus existe ape­

12. Anselmo admite que se possa pronunciar a frase «Deus não existe» sem que se tenha
no entendimento o objecto ou a ideia que a palavra Deus refere. Ver Santo Anselmo,
Prosí.ogíum, IV, em Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N. Deane (La Salle,
IL: Open Court Publishing Co., 1962). Mas quando se compreende de facto o objecto
que a palavra refere, então quando se usa a palavra numa frase que nega a existência
desse objecto, tem de se ter esse objecto no entendimento. É duvidoso, contudo, que
Anselmo pensasse que as expressões incoerentes ou contraditórias como quadrado
redondo refiram objectos que podem existir no entendimento.

66
O argumento ontológico

nas no entendimento — isto é, que Deus existe no entendimento mas não


na realidade.
No Monologium, Anselmo procurou provar que entre os seres que efec­
tivamente existem há um que é o mais grandioso, o mais elevado e o melhor.
Mas, no Proslogium, Anselmo empenha-se em provar que, entre as coisas
que existem, há uma que não só é a mais grandiosa entre os seres existentes,
mas é tal que nenhum ser concebível é mais grandioso. Temos de distinguir
entre estas duas ideias: t) um ser mais grandioso do que o qual nenhum ser
existe, e 2) um ser mais grandioso do que o qual nenhum ser é concebível Se
as únicas coisas a existir fossem uma pedra, uma rã e um ser humano, a última
destas, o ser humano, satisfaria a nossa primeira ideia mas não a segunda —
pois podemos conceber um ser (um anjo ou Deus) mais grandioso do que um
humano. A ideia que Anselmo tem de Deus, como a exprime no Proslogium,
Capítulo 2, é a mesma que em 2 acima; é a ideia de «um ser mais grandioso do
que 0 qual nada se pode conceber». Penso que nos será mais fácil compreen­
der o argumento de Anselmo se fizermos duas ligeiras alterações ao modo
como ele exprimiu a sua ideia de Deus. No lugar da sua expressão colocarei
0 seguinte: «0 ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível».13 Esta
ideia diz que, se um determinado ser é Deus, então nenhum ser possível pode
ser mais grandioso do que aquele; ou, conversamente, se um dado ser é tal
que é possível haver um mais grandioso do que ele, então esse ser não é Deus.
O que Anselmo se propõe então demonstrar é que o ser mais grandioso do
que o qual nenhum é possível existe na realidade. Demonstrando isto, terá
:demonstrado que Deus, como o concebe, existe na realidade.
Mas o que entende Anselmo por mais grandioso? Será um edifício, por
exemplo, mais grandioso do que um homem? Anselmo observa: «Mas não
me refiro à grandeza física, o modo como um objecto material é grande, mas13

13. Anselmo fala de um ser em vez de o ser mais grandioso do que o qual nenhum ser se
pode conceber. O seu argumento é mais fácil de apresentar se exprimirmos a sua ideia
de Deus em termos de o ser. Em segundo lugar, para evitar as conotações psicológicas
de se pode conceber substituí essa expressão por possível

67
Introdução à Filosofia da Religião

àquilo que é tanto mais grandioso quanto melhor ou mais digno é — a sabe­
doria, por exemplo».14 Contraste-se a sabedoria com o tamanho. Anselmo
ahrma que a sabedoria é algo que contribui para a grandiosidade de uma
coisa. Se algo passa a ter mais sabedoria do que antes (permanecendo as
, outras características na mesma), então esse algo tornou-se mais grandioso,
melhor, mais digno do que antes. Anselmo ahrma que a sabedoria é uma
qualidade produtora de grandiosidade. Mas o mero facto de algo aumentar
em tamanho (grandeza física) não torna esse algo melhor do que era antes.
Pelo que o tamanho, ao contrário da sabedoria, não é uma qualidade produ­
tora de grandiosidade. Por maior do que Anselmo entende melhor do que,
superior a, ou mais digno do que, e considera que algumas características,
como a sabedoria e a bondade moral, são produtoras de grandiosidade, na
medida em que qualquer coisa que as tenha se torna uma coisa melhor do
que seria se não as tivesse (mantendo-se iguais as suas outras características).
Chegamos agora ao que podemos chamar a ideia crucial no argumento
ontológico de Anselmo. Anselmo pensa que a existência na realidade é uma
qualidade produtora de grandiosidade. Como devemos entender esta ideia?
Será que Anselmo quer dizer que uma coisa que existe é mais grandiosa do
que uma que não existe? Embora Anselmo não coloque esta questão nem
lhe responda, é talvez razoável pensar que não queria dizer isto. Isto porque,
quando discute a sabedoria como uma qualidade produtora de grandiosi­
dade, Anselmo tem o cuidado de não añrmar que qualquer coisa sábia é
melhor do que qualquer coisa néscia; Anselmo reconhece que uma pessoa
justa mas néscia pode ser melhor do que uma pessoa sábia mas injusta.15
Sugiro que Anselmo queria dizer que qualquer coisa que não existe mas
podia ter existido (que está no lado direito da nossa linha mas podia estar
no esquerdo) seria mais grandioso do que é se tivesse existido (se estivesse
no lado esquerdo da nossa linha). Anselmo não está a comparar duas coisas

14. S. Anselmo, Monologium, II, em Saint Anselm: Basic Writings.


15. S. Anselmo, Monologium, XV, em Saint Anselm; Basic Writings.

68
O argumento ontológico

diferentes (uma existente e outra inexistente), afirmando que a primeira é


portanto mais grandiosa do que a segunda. Ao invés, está a falar acerca de
urna única coisa e a chamar a atenção para o facto de que, se não existe mas
podia ter existido, então essa coisa seria mais grandiosa se tivesse existido.
Usando a distinção que Anselmo faz entre a existência no entendimento e a
existencia na realidade, podemos exprimir do seguinte modo a ideia crucial
do seu raciocinio; Se algo existe apenas no entendimento, mas podia ter
existido na realidade, então podía ser mais grandioso do que é. Como a Fonte
da Juventude, por exemplo, existe apenas no entendimento mas, ao contrá­
rio do quadrado redondo, podia existir na realidade, segue-se do principio
de Anselmo que a fonte da juventude podia ser mais grandiosa do que é.

DESENVOLVENDO O ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE ANSELMO

Depois de termos visto algumas das ideias importantes em causa no argu­


mento ontológico de Anselmo, podemos considerar o seu desenvolvimento
gradual. Ao apresentar o argumento de Anselmo vou usar o termo Deus em
lugar da expressão mais longa «o ser mais grandioso do que o qual nenhum
é possível»; sempre que o termo Deus aparece devemos pensar nele apenas
como urna abreviatura da expressão mais longa.

n Deus existe no entendimento.


Gomo vimos, quem quer que tenha ouvido falar no ser mais grandioso do que
:o qual nenhum é possível está, na perspectiva de Anselmo, comprometido
com a premissa 1.

2. Deus poderia existir na realidade (Deus é um ser possível).


Greio que Anselmo supõe a verdade da premissa 2 sem que o faça de modo
explícito na sua argumentação. Ao añrmar 2, não pretendo sugerir que Deus
não existe na realidade. Tudo o que se quer dizer é que, ao contrário do qua­
drado redondo, Deus é um ser possível.

69
Introdução à Filosofia da Religião

3. Se algo existe apenas no entendimento e podia existir na realidade,


então podia ser mais grandioso do que é.
Como vimos, esta é a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo.
Pretende-se que seja um princípio geral que se aplica a qualquer coisa.
Os passos i a 3 constituem as premissas fundamentais do argumento
ontológico de Anselmo. Destes três itens segue-se, segundo Anselmo, que Deus
existe na realidade. Mas como se propõe Anselmo convencer-nos de que se
aceitamos as premissas de i a 3 estamos comprometidos pelas regras da lógica
a aceitar a sua conclusão de que Deus existe na realidade? Anselmo defende a
sua conclusão apresentando o que se chama uma «demonstração por reductio
ad absurdum» . Em vez de mostrar directamente que a existência de Deus se
segue das premissas 1 a 3, Anselmo convida-nos a supor que Deus não existe
(isto é, que a conclusão que ele deseja estabelecer é falsa) e então mostra como
esta suposição, quando a combinamos com as premissas de 1 a 3, leva a um
resultado absurdo, um resultado que não podia de modo algum ser verdadeiro
porque é contraditório. Em resumo, com a ajuda das premissas 1 a 3 Anselmo
mostra que a suposição de que Deus não existe se reduz a um absurdo. Uma vez
que a suposição de que Deus não existe leva a um absurdo, tem de se rejeitar
essa suposição, a favor da conclusão de que Deus existe.
Conseguirá Anselmo reduzir ao absurdo a crença do tolo, de que Deus
não existe? A melhor maneira de responder a esta questão é seguir os passos
do seu argumento.

4. Suponha-se que Deus existe apenas no entendimento.


Esta suposição, como vimos, é a maneira de Anselmo exprimir a crença do
tolo de que Deus não existe.

5. Deus podia ser mais grandioso do que é. (2, 4 e 3)16

16. Os números entre parêntesis referem-se a passos anteriores do argumento, do qual


se deriva o presente passo.

70
O argumento ontológico

■ Opasso 5 segue-se dos passos 2, 4 e 3. Como 3, se for verdadeiro, se aplica a


qualquer coisa, aplicar-se-á a Deus. O passo 3, portanto, implica que se Deus
existe apenas no entendimento e podia existir na realidade, então Deus podia
ser mais grandioso do que é. Se é assim, então dados os passos 2 e 4, o passo
5 tem de ser verdadeiro. Porquanto o que o passo 3 afirma, quando aplicado
a Deus, é que dados os passos 2 e 4 segue-se 5.

6. Deus é um ser mais grandioso do que o qual é possível haver outro.


Seguramente que se Deus é tal que podia logicamente ter sido mais grandioso,
então Deus é um ser tal que é possível haver outro mais grandioso.
Estamos agora em condições de avaliar o argumento por redução ao
:absurdo de Anselmo. Mos trou-nos que se aceitamos os passos de 1 a 4 temos
de aceitar 0 passo 6. Mas 6 é inaceitável; é o absurdo que Anselmo procurava.
Isto porque ao substituir Deus no passo 6 pela expressão mais longa à qual
serve de abreviação, vemos que 6 equivale à seguinte aftrmação absurda:

7. O ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível é um ser tal


que um ser mais grandioso é possível.
Como os passos de 1 a 4 nos levam a uma conclusão obviamente falsa, se
aceitarmos as premissas 1 a 3, as premissas fundamentais de Anselmo, como
verdadeiras, então temos de rejeitar como falsa a premissa 4: a suposição de
que Deus existe apenas no entendimento. Assim mostrámos que:

8. E falso que Deus exista apenas no entendimento.


Mas uma vez que a premissa 1 nos diz que Deus existe no entendimento, e a
premissa 8 nos diz que Deus não existe apenas aí, podemos inferir que:

9- Deus existe na realidade bem como no entendimento. (1, 8)

O que dizer deste argumento? Na sua maioria, os filósofos que 0 ponderaram


rejeitaram-no devido à convicção fundamental de que a partir da análise

71
Introdução à Filosoña da Religião

lógica de urna certa ideia ou conceito nunca podemos determinar se existe


na realidade qualquer coisa que satisfaça essa ideia ou conceito.

Podemos examinar, por exemplo, a ideia de um elefante ou a ideia de


mm unicórnio, mas é apenas através da experiência que temos do mundo
que podemos determinar se existem coisas que satisfaçam a nossa primeira
ideia e não a segunda. Anselmo, contudo, pensa que o conceito de Deus é
absolutamente único; pensa que a partir de uma análise deste conceito se
pode determinar que existe na realidade um ser que o satisfaz. Além disso,
Anselmo apresenta-nos um argumento para mostrar que isso se pode fazer
no caso da ideia de Deus. Podemos, como é óbvio, rejeitar simplesmente o
seu argumento por violar a convicção fundamental acima indicada. Muitos
críticos, contudo, procuraram provar de um modo mais directo que o argu­
mento de Anselmo é mau e chamar a atenção para o passo particular que está
incorrecto. No que se segue, examinaremos as três principais objecções que
foram apresentadas pelos críticos do argumento.

A crítica de Gaunilo

A primeira crítica importante foi apresentada por um contemporâneo de


Anselmo, um monge de nome Gaunilo, que escreveu uma objecção intitulada
«Em Defesa do Tolo» ,17 Gaunilo procurou provar que o raciocínio de Anselmo
é incorrecto, aplicando-o a coisas que não são Deus, coisas que sabemos que
não existem. Gaunilo tomou como exemplo a ilha mais grandiosa do que a
qual nenhuma é possível. Não existe realmente qualquer ilha assim. Mas,
argumenta Gaunilo, se o raciocínio de Anselmo estivesse correcto, podíamos
mostrar que tal ilha existe realmente. Como existir é mais grandioso do que
não existir, se a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma é possível não

17. O breve ensaio de Gaunilo, a resposta de Anselmo e várias das principais obras de
Anselmo, traduzidas por Sidney N. Deane, estão coligidas em Saint Anselm: Basic
Writings.

72
O argumento ontológico

existe, então essa é uma ilha mais grandiosa do que a qual é possível haver
outra. Mas é impossível que a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma é
possível seja uma ilha mais grandiosa do que a qual é possível haver outra.
Portanto, a ilha mais grandiosa do que qual nenhuma é possível tem de exis­
tir. Acerca deste argumento, comenta Gaunilo:

«Se um homem tentasse m ostrar-m e através de tal raciocínio que esta ilha existe
realmente e que não se devia duvidar mais da sua existência, das duas, uma: ou
pensava que ele estava a brincar ou já não sabia qual de nós era o maior tolo: eu
mesmo, supondo que aceitava esta prova; ou ele, se supusesse que tinha estabe­
lecido com alguma certeza a existência desta ilh a .» 18

A estratégia de Gaunilo é clara. Usando o mesmo raciocínio que Anselmo


usa no seu argumento, podemos provar a existência de coisas que sabemos
que não existem. Portanto, o raciocínio de Anselmo na sua prova da exis­
tência de Deus tem de estar incorrecto. Na sua resposta a Gaunilo, Anselmo
insistiu em que o seu raciocínio se aplica apenas a Deus e não pode ser usado
para estabelecer a existência de outras coisas além de Deus. Infelizmente,
Anselmo não explicou ao certo por que razão o seu raciocínio não se pode
aplicar a coisas como a ilha de Gaunilo.
Em defesa de Anselmo contra a objecção de Gaunilo, deve-se observar
que a objecção supõe que a ilha de Gaunilo é uma coisa possível. Mas isto exige
;que acreditemos que uma coisa finita e limitada (uma ilha) possa ter perfeições
ilimitadas. E não é de todo em todo claro que isto seja possível. Tente-se pensar,
por exemplo, num jogador de hóquei mais grandioso do que o qual nenhum é
possível. Quão depressa teria esse jogador de patinar? Quantos golos teria tal
jogador de marcar num jogo? Quão rápido teria de arremessar o disco? Será
que este jogador poderia alguma vez cair, ser bloqueado ou sofrer uma penali­
dade? Embora a expressão «O jogador de hóquei mais grandioso do que o qual

18. Deane, Saint Anselm: Basic Writings, p. 151.

73
Introdução à Filosofia da Religião

nenhum é possível» pareça ter significado, assim que tentamos obter uma ideia
clara de como seria tal ser, descobrimos que não podemos sequer formar uma
ideia coerente dele. Isto porque nos pede para pensar numa coisa finita e limi­
tada — um jogador de hóquei ou uma ilha — para depois pensarmos que essa
coisa exibe perfeições infinitas e ilimitadas. Talvez então, visto que o raciocínio
de Anselmo se aplica apenas a coisas possíveis, Anselmo possa rejeitar que seja
aplicável à ilha de.Gaunilo, com base em que a ilha mais grandiosa do que a
qual nenhuma é possível é, como o quadrado redondo, uma coisa impossível.

A crítica de Kant

A objecção de longe mais famosa ao argumento ontológico foi formulada por


Immanuel Kant no século x v iii. Segundo esta objecção, o erro contido no
argumento é a añrmação, implícita na premissa 3, de que a existência é uma
qualidade ou predicado que torna qualquer coisa mais grandiosa. Esta afir­
mação tem duas partes: 1) a existência é uma qualidade ou predicado e 2) a
existência, como a sabedoria e ao contrário da grandeza física, é uma quali­
dade ou predicado produtor de grandiosidade. Pode-se aceitar 1 mas objectar
a 2. A objecção que Kant tornou famosa, contudo, dirige-se a 1. Segundo esta
objecção, a existência não é de modo algum um predicado. Portanto, como o
argumento de Anselmo implica, na terceira premissa, que a existência é um
predicado, tem de se rejeitar o argumento.
O que se quererá dizer com a doutrina filosófica de que a existência não
é um predicado? A ideia central nesta doutrina diz respeito ao que fazemos
quando atribuímos uma certa qualidade ou predicado a uma coisa, como, por
exemplo, quando dizemos que uma mulher que mora ao nosso lado é inte­
ligente, tem um metro e oitenta de altura, ou é magra. Em cada caso parece
que afirmamos ou pressupomos que existe uma mulher que mora ao lado,
atribuindo-lhe depois um certo predicado — «inteligente», «com um metro
e oitenta de altura» ou «magra». E o que muitos defensores da doutrina de
que a existência não é um predicado defendem é que isto é uma caracterís-

74
O argumento ontológico

tica geraí da predicação. Defendem que quando atribuímos uma qualidade ou


predicado a uma coisa, afirmamos ou pressupomos que a coisa existe e então
atribuímos-lhe o predicado. Se isto for verdade, então é claro que a existência
Hão pode ser um predicado que possamos atribuir ou negar a algo. Visto que,
se fosse um predicado, então quando afirmamos que algo existe estaríamos a
afirmar ou a pressupor que existe passando então a predicar a sua existência.
Por exemplo, se a existência fosse um predicado, então ao añrmar «Os tigres
existem» estaríamos a añrmar ou a pressupor que os tigres existem para
depois predicar a sua existência. Além disso, se a existência fosse um predi­
cado, quando afirmássemos «os dragões não existem», estaríamos a afirmar
ou a pressupor que os dragões existem, para depois negar que a existência
se lhes aplique. Resumindo, se a existência fosse um predicado, a declaração
existencial afirmativa «Os tigres existem» seria redundante, e a declaração
existencial negativa «Os tigres não existem» seria contraditória. Mas é óbvio
que «Os tigres existem» não é redundante e que «Os dragões não existem» é
verdadeira e, portanto, não é contraditória. Segundo os defensores da objec­
ção de Kant, isto mostra que a existência não é um predicado genuíno.
Segundo os defensores da objecção anterior, quando afirmamos que os
tigres existem e que os dragões não existem não afirmamos que certas coisas
(os tigres) têm um predicado especial ao passo que outras (os dragões) não
têm: a existência. Ao invés, afirmamos algo acerca do conceito de tigre e
do conceito de dragão. No primeiro caso afirmamos que há algo no mundo
ao qual o conceito de tigre se aplica; no segundo, afirmamos que nada há no
mundo ao qual o conceito de dragão se aplique.
Embora esta objecção ao argumento ontológico tenha tido ampla acei­
tação, é duvidoso que seja uma refutação conclusiva do argumento. Pode ser
verdade que a existência não é um predicado; que ao afirmar a existência de
uma coisa não estamos a atribuir um determinado predicado ou atributo a
essa coisa. Mas os argumentos apresentados a favor desta perspectiva pare­
cem assentar em afirmações incorrectas ou incompletas acerca da natureza
da predicação. Por exemplo, o argumento que enunciámos assenta na afir-

75
Introdução à Fílosoña da Religião

mação de que quando atribuímos um predicado a qualquer coisa afirmamos


ou pressupomos que essa coisa existe. Mas esta afirmação parece incorrecta.
Ao afirmar que o Dr. Doolittle é um zoófilo parece que estou a atribuir o
predicado zoófilo ao Dr. Doolittle, mas ao fazê-lo não estou seguramente a
afirmar ou a pressupor que o Dr. Doolittle existe efectivamente. Embora não
exista, é verdade que o Dr. Doolittle é um zoóñlo. O que é facto é que pode­
mos falar acerca de muitas coisas que não existem e nunca existiram, e atri­
buir predicados a essas coisas. Merlin, por exemplo, como Houdini, era um
mágico, embora Houdini tenha existido e Merlin não. Se, como os exemplos
sugerem, a afirmação de que sempre que atribuímos um predicado a alguma
coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe é uma afirmação falsa,
então precisaremos de um argumento melhor para defender a doutrina de
que a existência não é um predicado. Há dúvidas, contudo, sobre se alguém
terá conseguido apresentar um argumento realmente conclusivo a favor da
perspectiva de que a existência não é um predicado.19

Uma terceira crítica

Uma terceira objecção ao argumento ontológico põe em causa a premissa


de que Deus poderia existir na realidade (que Deus seja um ser possível).
Como vimos, esta premissa afirma que «o ser mais grandioso do que o qual
nenhum é possível» não é um objecto impossível. Mas será isto verdade?
Considere-se a série dos números naturais — i, 2, 3, 4, etc. Sabemos que
qualquer número inteiro nesta série, por maior que seja, é tal que é pos­
sível outro número maior. Portanto, «o número natural maior do que o
qual nenhum é possível» é um objecto impossível. Talvez isto também se
aplique a «o ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível». Isto é,
talvez seja possível, independentemente da grandiosidade de um ser, haver

19. Talvez a apresentação mais sofisticada da objecção segundo a qual a existência não
é um predicado seja a de William P. Alston, «The Ontological Argument Revisited»,
The Philosophical Reinem, LXIX (i960), pp. 452-474.

76
O argumento ontológico

outro mais grandioso. Se assim for, portanto, o Deus de Anselmo não seria
um objecto possível, assim como não o é «o número natural maior do que
o qual nenhum é possível». O simples facto de haver graus de grandiosi­
dade, contudo, não nos permite concluir que o Deus de Anselmo é como
<<o número natural maior do que o qual nenhum é possível». Os ângulos,
por exemplo, têm graus de tamanho — um ângulo pode ser maior do que
outro — mas não é verdade que, independentemente do tamanho de um
ângulo, seja possível haver um maior. É logicamente impossível que um
ângulo exceda a dimensão de quatro ângulos rectos, A noção de ângulo, ao
contrário da noção de número natural, implica um grau de tamanho que
é impossível ultrapassar. Será o Deus de Anselmo como o maior número
natural, e portanto impossível, ou como o maior ângulo, e portanto possível?
Alguns filósofos argumentaram que o Deus de Anselmo é impossível.20 Mas
os argumentos a favor desta conclusão não são persuasivos. Talvez por isso se
interprete melhor esta objecção não como prova de que o Deus de Anselmo
é impossível, mas como o levantar da questão de algum de nós estar ou não
em condições de saber que «o ser mais grandioso do que o qual nenhum é
possível» é um objecto possível. Pois o argumento de Anselmo não pode ser
uma prova eficaz da existência de Deus a menos que as suas premissas sejam
não só verdadeiras, mas também que se saiba que são verdadeiras. Logo,
se não sabemos que o Deus de Anselmo é um objecto possível, então o seu
argumento não pode provar-nos a existência de Deus — não nos permite
saber que Deus existe.

Uma última crítica

Demos uma vista de olhos ao argumento de Anselmo e às três principais


objecções que outros filósofos lhe levantaram. Nesta última secção apresento

20. Ver, por exemplo, a discussão que C.D. Broad faz do argumento ontológico, em Reli­
gion, Philosophy, and Psychical Research (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1953).

77
Jntrodução à Filosofia da Religião

uma crítica algo diferente do argumento, uma crítica sugerida pela convicção
fundamental que se indicou antes — nomeadamente, que, da mera análise
lógica de uma certa ideia ou conceito, nunca podemos determinar que existe
alguma coisa na realidade que satisfaça essa ideia ou conceito.
Suponha-se que alguém se nos dirige e diz:

Proponho-m e definir o termo Deus como um ser absolutamente perfeito, que


existe. Uma vez que não pode ser verdade que um ser absolutam ente perfeito,
que existe, não exista, não pode ser verdade que Deus, como o dehni, não exista.
Portanto, Deus tem de existir.

Isto parece um argumento ontológico muito simples. Começa com uma


ideia particular ou conceito de Deus e termina concluindo que Deus, conce­
bido desse modo, tem de existir. O que podemos responder a isto? Podemos
começar por objectar a esta definição de Deus, afirmando i) que só se pode
deftnir um termo com predicados e 2) que a existência não é um predicado.
Mas suponha-se que o nosso amigo não se deixa impressionar por esta res­
posta — quer porque pensa que ninguém explicou exaustivamente o que é um
predicado, nem provou que a existência não é um predicado, quer porque
pensa que qualquer pessoa pode defmir uma palavra do modo como bem lhe
apetece. Podemos aceitar que o nosso amigo defina a palavra Deus como bem
lhe apeteça e esperar ainda assim mostrar que dessa definição não se segue
que existe efectivamente algo a que este conceito de Deus se aplica? Penso
que sim. Convidemo-lo primeiro, contudo, a considerar alguns conceitos
além do seu peculiar conceito de Deus.
Vimos que o termo mágico se pode aplicar tanto a Houdini como a Mer­
lin, ainda que o primeiro tenha existido ao passo que 0 segundo nunca existiu.
Observando que o nosso amigo usou que existe como parte da sua defini­
ção de Deus, suponha-se que concordamos com ele em poder defmir uma
palavra do modo como nos apetecer introduzindo, consequentemente, as
seguintes palavras com as seguintes definições:

78
O argumento ontológico

Defina-se magião como um mágico que existe.


Defina-se mágio como um mágico inexistente.

Aqui introduzimos duas palavras e usámos que existe e inexistente nas


suas definições. Segue-se agora algo interessante do facto de que existe fazer
parte da nossa definição de um magião. Pois embora sendo verdade que Mer­
lin era um mágico, não é verdade que Merlin fosse um magião. E segue-se
algo interessante de termos incluído inexistente na definição de mágio. Pois
embora sendo verdade que Houdini foi um mágico, não é verdade que foi um
mágio. PIoudini foi um mágico e um magião, mas não um mágio, ao passo
que Merlin era um mágico e um mágio, mas não um magião.
Acabámos de ver que introduzir que existe ou inexistente na defini­
ção de um conceito tem uma consequência muito importante. Se introdu­
zimos que existe na definição de um conceito, segue-se que nenhuma coisa
inexistente pode exemplificar esse conceito. E se introduzimos inexistente
na definição de um conceito, segue-se que nenhuma coisa existente pode
exemplificar esse conceito. Nenhuma coisa inexistente pode ser um magião
e nenhuma coisa existente pode ser um mágio.
Mas terá alguma coisa existente de exemplificar o conceito de magião?
Não! Do facto de se incluir que existe na definição de magião não se segue que
algo existente é um magião — tudo o que se segue é que nenhuma coisa inexis­
tente é um magião. Se não existissem quaisquer mágicos, nada haveria a que se
pudesse aplicar o conceito de magião. Sendo assim, é óbvio que não se segue
meramente da nossa definição de magião que algo existente é um magião. Só
se existirem mágicos é que será verdade que uma coisa existente é um magião.
Estamos agora em condições de ajudar o nosso amigo a ver que, do mero
facto de se defmir Deus como ser absolutamente perfeito que existe, não se
segue que há um ser existente que seja Deus. Segue-se algo interessante desta
definição — nomeadamente, que nenhum ser inexistente pode ser Deus. Mas
o facto de haver ou não algo existente que seja Deus depende inteiramente
de haver ou não algo existente que seja um ser absolutamente perfeito. Se

79
Introdução à Fi lo so ña da Religião

não existe qualquer ser absolutamente perfeito, nada haverá a que se possa
aplicar este conceito de Deus. Sendo assim, é óbvio que não se segue mera­
mente desta definição de Deus que há algo existente que seja Deus. Só se
existir um ser absolutamente perfeito é que será verdade que Deus, como o
nosso amigo o concebe, existe.

Implicações para o argumento de Anselmo

Pode-se agora seguir as implicações destas considerações para o engenhoso


argumento de Anselmo. Anselmo imagina Deus como um ser mais gran­
dioso do que o qual nenhum é possível. Afirma então que a existência é uma
qualidade produtora de grandiosidade; qualquer coisa que a tenha é mais
grandiosa do que seria se lhe faltasse a existência. É então óbvio que nenhuma
coisa inexistente pode exemplificar o conceito ansekniano de Deus. Por­
quanto se supomos que algo inexistente exemplifica o conceito ansekniano
de Deus e se também supomos que esse algo inexistente podia existir na
realidade (ou seja, se supomos que é algo possível), então supomos que esse
algo inexistente 1) podia ser mais grandioso e 2) é, ainda assim, uma coisa
mais grandiosa do que a qual não é possível haver outra. Até aqui o raciocínio
de Anselmo é, segundo penso, irrepreensível. Mas o que se segue daí? Tudo
o que daí se segue é que nenhuma coisa inexistente pode ser Deus (como
Anselmo o imagina). Tudo o que se segue é que dado o conceito anselmiano
de Deus, a proposição «Alguma coisa inexistente é Deus» não pode ser ver­
dadeira. Mas, como vimos, isto também acontece com a proposição «Alguma
coisa inexistente é um m agião». Falta mostrar que alguma coisa existente
exemplifica o conceito anselmiano de Deus. O que realmente se segue deste
raciocínio é que só algo que exista efectivamente pode logicamente exem­
plificar o seu conceito de Deus. E esta conclusão não é desinteressante. Mas
do simples facto de que nada senão algo existente poderia exemplificar o
conceito anselmiano de Deus não se segue que algo existente exemplifica
efectivamente 0 seu conceito de Deus — do mesmo modo que não se segue do

80
O argumento ontológico

.-simples facto de nenhuma coisa inexistente poder ser um magião que alguma
coisa existente é um magião.21
Há, contudo, uma dificuldade importante nesta crítica ao argumento de
■Anselmo. Esta dificuldade surge quando atentamos na sua afirmação implícita
de que Deus é uma coisa possível. Para ver ao certo o que é esta dificuldade,
regressemos à ideia de coisa possível. Uma coisa possível, segundo determi­
námos, é qualquer coisa que está ou no lado esquerdo da nossa linha ima­
ginária ou que logicamente podia estar no lado esquerdo da linha. As coisas
possíveis, então, serão todas as coisas que, ao contrário do quadrado redondo,
não são impossíveis. Suponha-se que concedemos a Anselmo que Deus, como
ele o concebe, é uma coisa possível. É claro que o mero conhecimento de que
algo é uma coisa possível não nos permite concluir que essa coisa é uma coisa
existente. Visto que muitas coisas possíveis, como a Fonte da Juventude, não
existem. Mas se algo é uma coisa possível, então ou é uma coisa existente ou
uma coisa inexistente. Pode-se dividir exaustivamente o conjunto das coisas
possíveis em coisas possíveis que existem efectivamente e coisas possíveis
que não existem. Portanto, se o Deus de Anselmo é uma coisa possível, ou
é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Concluímos, contudo, que
nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo; portanto, parece que
temos de concluir com Anselmo que alguma coisa efectivamente existente
exemplifica de facto o seu conceito de Deus.
Para ver a solução desta importante dificuldade precisamos de regressar
a um exemplo anterior. Consideremos mais uma vez a ideia de um magião,
um mágico existente. Por acaso têm existido mágicos — Houdini, o Grande
■ Blackstone, e outros. Mas, obviamente, podia não ter sido assim. Suponha-
-se, momentaneamente, que nunca tinham existido quaisquer mágicos.
O conceito de mágico teria ainda aplicação, pois continuaria a ser verdade
que Merlin era um mágico. E quanto ao conceito de magião? Será que esse

21. Pode-se encontrar um argumento segundo estas linhas no esclarecedor ensaio de


J. Shaffer, «Existence, Predication and the Ontological Argument», Mind LXXI (1962),
p p .307-325.

81
Introdução à Filosofia da Religião

conceito discriminaria qualquer objecto possível? Não! Pois nenhuma coisa


inexistente poderia exemplificar o conceito de magião. E supondo que nunca
existiram mágicos, nenhuma coisa existente exemplificaria o conceito de
magião.22 Teríamos então o conceito coerente de «magião», que não seria
exemplificado por qualquer objecto possível. Pois se todos os objectos
possíveis que são mágicos fossem coisas inexistentes, nenhum deles seria
um magião; e como nenhum objecto possível que existe seria um mágico,
nenhum seria um magião. Teríamos então o conceito coerente e consistente
de «m agião», que na verdade não é exemplificado por qualquer objecto
possível. Formulada assim, a nossa conclusão parece paradoxal. Visto que
nos inclinamos a pensar que só conceitos contraditórios, como «quadrado
redondo», não são exemplificados por quaisquer coisas possíveis. A verdade,
contudo, é que, quando que existe está incluído num certo conceito ou é
por ele implicado, pode acontecer que nenhum objecto possível exempli­
fique de facto esse conceito. Pois nenhum objecto possível que não exista
exemplificará um conceito como «magião», que inclui que existe-, e se não
há coisas existentes que exemplifiquem as outras características incluídas
no conceito — por exemplo, ser um mágico no caso do conceito de magião
— então nenhum objecto possível que exista exemplificará o conceito. Dito
da forma mais simples: ao perguntar se qualquer coisa possível é ou não um
magião, a resposta dependerá inteiramente de haver ou não quaisquer coi­
sas existentes que sejam mágicos. Se nenhuma coisa existente é um mágico,
então nenhuma coisa possível é um magião. Um objecto possível é um magião
só se alguma coisa efectivamente existente for um mágico.23

22. Estou em dívida para com o Professor William Wainwright, por me chamar a atenção
para esta ideia.
23. Na linguagem dos mundos possíveis, podemos afirmar que um objecto %é um magião
num mundo possível m, desde que i) %seja um mágico e m m e ii) x seja um mágico em
qualquer mundo que seja o mundo efectivo. Para mais informação sobre este assunto,
bem como uma discussão crítica de algumas versões do argumento ontológico, ver
o meu ensaio «Modal Versions of the Ontological Argument» em Louis Pojman, org.
Philosophy of Religion: An Anthology, 3.;1 ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1998).

82
O argumento ontológico

Aplicando estas considerações ao argumento de Anselmo podemos ver


a solução da nossa importante dificuldade. Dado o conceito anselmiano de
Deus e o seu principio de que a existencia é uma qualidade produtora de
grandiosidade, segue-se de facto que só algo efectivamente existente podería
logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. Mas argumentámos que não
se segue, a partir destas considerações apenas, que Deus existe efectivamente
— que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano de Deus.
A diñculdade com que nos deparámos, contudo, é que, ao adicionar a pre­
missa de que Deus é uma coisa possível, ou seja, a premissa de que algum
objecto possível exempliñca o conceito anselmiano de Deus, segue-se real­
mente que Deus existe efectivamente: que algo efectivamente existente
exempliñca o seu conceito de Deus. Pois se um objecto possível exemplifica
o seu conceito de Deus, esse objecto ou é uma coisa existente ou uma coisa
inexistente. Mas uma vez que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar o
conceito anselmiano de Deus, segue-se que o objecto possível que exemplifica
o seu conceito de Deus tem de ser um objecto possível que exista efectiva­
mente. Portanto, dado i) o conceito anselmiano de Deus, 2) o seu princípio de
que a existência é uma qualidade produtora de grandiosidade e 3) a premissa
de que Deus, como Anselmo o concebe, é uma coisa possível, segue-se de
facto que o Deus de Anselmo existe efectivamente.

Uma concessão demasiado generosa

Penso que podemos ver que ao conceder a Anselmo a premissa de que Deus
é uma coisa possível concedemos muito mais do que pretendíamos. Pensá­
mos conceder apenas que o conceito anselmiano de Deus, ao contrário do
conceito de quadrado redondo, não é contraditório nem incoerente. Mas,
sem nos apercebermos, estávamos de facto a conceder muito mais do que
isto, como se tornou visível quando considerámos a ideia de «magião». Nada
há de contraditório na ideia de um magião, um mágico que existe. Mas ao
afirmar que um magião é uma coisa possível, estamos, como vimos, a sugerir

83
Introdução à Filosofia da Religião

directamente que alguma coisa existente é um mágico. Pois se nenhuma coisa


existente é um mágico, o conceito de magião não se aplicará de modo algum a
qualquer objecto possível. A mesma ideia se aplica ao Deus de Anselmo. Urna
vez que o conceito anselmiano de Deus não se pode logicamente aplicar a urna
cpisa inexistente, os únicos objectos possíveis aos quais se poderá aplicar são
objectos possíveis que existam efectivamente. Portanto, ao conceder que o
Deus de Anselmo é uma coisa possível, não estamos a conceder apenas que
a sua ideia de Deus não é incoerente nem contraditória. Suponha-se, por
exemplo, que todo o ser existente tem uma imperfeição que podia não ter
tido. Sem nos apercebermos, estávamos a negar isto ao conceder que o Deus
de Anselmo é um ser possível. Pois se todo o ser existente tem um defeito que
podia não ter tido, então todo o ser existente podia ser mais grandioso. Mas
se todo o ser existente podia ser mais grandioso, então o conceito anselmiano
de Deus não se aplicará a qualquer objecto possível. Portanto, se concedemos
a Anselmo o seu conceito de Deus e o seu princípio de que a existência é uma
qualidade produtora de grandiosidade, então ao conceder que Deus, como
Anselmo o concebe, é um ser possível, estaremos a conceder muito mais do
que a coerência do seu conceito de Deus. Estaremos a conceder, por exemplo,
que uma coisa existente é tão perfeita quanto possível. Pois a verdade é que
só se alguma coisa existente for tão perfeita quanto possível é que o Deus de
Anselmo será uma coisa possível.
A nossa última crítica ao argumento de Anselmo é apenas esta. Ao con­
ceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possível, estamos de facto a con­
ceder que o Deus de Anselmo existe efectivamente. Mas como o objectívo
do argumento era provar que o Deus de Anselmo existe, não se pode pedir
que concedamos em lugar de premissa uma afirmação que quase equivale
à conclusão que se tem de provar. O conceito anselmiano de Deus pode ser
coerente e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora
de grandiosidade pode ser verdadeiro. Mas tudo o que daqui se segue é que
nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo. Se a tudo isto acres­
centarmos a premissa de que Deus é uma coisa possível, seguir-se-á que

84
O argumento ontológico

Deus existe efectivamente. Mas a premissa adicional não añrma apenas que
o conceito anselmiano de Deus não é incoerente nem contraditório. Equivale
à afirmação de que um ser existente é supremamente grandioso. E como em
parte é isto que o argumento procura provar, cai em petição de princípio:
pressupõe a ideia cuja verdade devia provar.
Se a crítica acima está correcta, o argumento de Anselmo não pode ser
uma prova da existência de Deus. Contudo, isto não equivale a afirmar que
o argumento não é um trabalho de génio. Talvez nenhum outro argumento
na história do pensamento tenha levantado tantas questões filosóficas fun­
damentais e estimulado tanta reflexão. Mesmo não conseguindo ser uma
:prova da existência de Deus, continuará a ser uma das maiores façanhas do
intelecto humano.

REVISÃO

1. O que se entende por ser impossível, ser possível, ser contingente, e ser
necessário? Dê um exemplo de cada um dos três.
2. Que distinção faz Anselmo entre a existência no entendimento e a exis­
tência na realidade?
3. Qual é a ideia crucial no argumento ontológico?
4. Quais são, resumidamente, as três objecções tradicionais ao argumento
ontológico?
5. Explique a última objecção, que afirma que o argumento ontológico cai
em petição de princípio.

ESTUDO COMPLEMENTAR

i. No Capítulo 3 do seu Proslogium, Anselmo introduz o princípio de que,


se um ser existe de tal modo que não podia deixar de existir, é mais
grandioso do que um ser que existe mas que podia não existir. Compare
e contraste este princípio com a ideia crucial do argumento ontológico.

85
Introdução à Filosofía da Religião

Tente formular urna segunda versão do argumento ontológico usando o


principio do Capítulo 3 do Proslogium.
2. Qual das diversas objecções ao argumento ontológico lhe parece mais
plausível? Qual lhe parece menos plausível? Porquê?

86
Capítulo 4
0 argumento do desígnio
(o antigo e o novo)

O ponto de partida do antigo argumento do desígnio é o nosso sentimento


de assombro não por existirem coisas mas por muitas das coisas que existem
no nosso universo manifestarem ordem e desígnio. Partindo deste sentido de
assombro, o argumento procura convencer-nos de que seja o que for que pro­
duziu o universo tem de ser um ser inteligente. Talvez a formulação mais famosa
do: argumento esteja nos Diálogos Sobre a Religião Natural, de David Hume:

«Olhai o mundo em volta: contemplai o todo e cada parte: descobrireis que não
é senão uma enorm e máquina, subdividida num número infinito de máquinas
menores, que por sua vez se subdividem para lá do que os sentidos e faculdades
humanos conseguem seguir e explicar. Todas estas diversas máquinas, e mesmo as
suas partes mais diminutas, ajustam-se entre si com uma precisão que deixa estu­
pefactos todos os homens que já as contemplaram. A curiosa adaptação de meios
a fins em toda a natureza assemelha-se exactamente, embora em muito os exceda,
aos produtos do engenho humano; do desígnio, do pensamento, da sabedoria e
da inteligência humanos. Visto que, portanto, os efeitos se assemelham entre si,
somos levados a inferir, segundo todas as regras da analogia, que as causas tam ­
bém se assemelham; e que o Autor da Natureza é de algum modo similar à mente
do hom em , embora detentor de faculdades muito mais vastas, proporcionais à
grandiosidade da obra que executou. Com este argumento a posteriori, e apenas
Introdução à Filosofia da Religião

com este argumento, provamos de uma só vez a existência de uma Divindade, e


a sua sem elhança com a m ente e inteligência hu m anas.»24

ARGUMENTO POR ANALOGIA

Há uma analogia, diz-nos esta passagem, entre muitas coisas na natureza e


coisas produzidas por seres humanos — como, por exemplo, máquinas. Visto
que sabemos que as máquinas (relógios, câmaras fotográficas, telemóveis,
automóveis, etc.) são produzidas por seres inteligentes, e visto que m ui­
tas coisas na natureza se assemelham tão intimamente a máquinas, esta­
mos autorizados «segundo todas as regras da analogia» a concluir que seja
o que for que tenha produzido esses objectos naturais é um ser inteligente.
O argumento do desígnio, então, tal como esta passagem o apresenta, é um
argumento por analogia, e para o que nos interessa pode ser apresentado
do seguinte modo:

1. As máquinas são produzidas por desígnio inteligente.


2. O universo assemelha-se a uma máquina.
Logo,
3. Provavelmente o universo foi produzido por desígnio inteligente.

As questões críticas que temos de considerar ao avaliar o antigo argumento


do desígnio resultam sobretudo do facto de o argumento usar o raciocínio
analógico. Para melhor compreender tal raciocínio, consideremos o seguinte
exemplo do seu uso. Suponha o leitor que trabalha num laboratório químico
e que de algum modo conseguiu produzir um novo composto. Ocorre-lhe
que um trago deste composto químico poderá ter resultados bastante bené­
ficos. Por outro lado, visto que não se conhecem bem as suas propriedades,

24. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, II, org. H.D. Aiken (Nova
Iorque: Hafner Publishing Company, 1948), p. 17. [Diálogos sobre a Religião Natural,
trad. Alvaro Nunes, Lisboa: Edições 70, 2005.]

88
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

também lhe ocorre que o composto pode ser consideravelmente prejudicial.


Sendo ao mesmo tempo cauteloso e curioso, o leitor procura um modo de
descobrir se o químico o irá beneñciar ou prejudicar, sem chegar realmente
a bebê-lo. O corre-lhe que podia colocar sub-repticiamente um pouco do
químico na comida dos seus convidados para o jantar nessa noite e simples­
mente esperar para ver o que acontece. Se todos morrerem no espaço de urna
hora após a ingestão do químico, então terá indicios excepcionalmente fortes
de que este lhe fará mal. Por razões obvias, contudo, sente que é incorrecto
experimentar noutros seres humanos um químico desconhecido, particular­
mente nos seus convidados para jantar. Ao invés, coloca alguns macacos ou
ratos em contacto com o químico e conclui, a partir do efeito que tem sobre
eles, o efeito provável que terá em si.
Reflectir neste exemplo ajudar-nos-á a compreender o que o raciocínio
analógico é e por que razão às vezes temos de o usar ao tentar descobrir algo
acerca de nós próprios e do mundo. Se tivesse dado o químico a um grupo de
seres humanos — os seus convidados para jantar, digamos — então a partir do
efeito do químico neles poderia inferir o efeito que teria em si. Tal raciocínio
não seria analógico visto que os seus convidados são exactamente como o
leitor; pertencem à mesma categoria natural a que o leitor pertence: a cate­
goria dos seres humanos. Acontece que não podia envolver-se num raciocí­
nio tão directo porque a categoria natural imediata — a categoria dos seres
humanos — a que o leitor pertence não podia ser objecto de estudo no que
diz respeito a esse composto. O leitor faz então o melhor que pode: escolhe
uma categoria natural, a categoria dos macacos, à qual o leitor não pertence,
mas a cujos membros se assemelha em alguns aspectos. O leitor é semelhante
aos macacos pelo facto de ter um sistema nervoso, sangue quente, e noutros
aspectos. Além disso, os modos pelos quais se assemelha aos macacos são
relevantes para descobrir o efeito provável do químico no leitor. As criaturas
que têm um sistema nervoso central, sangue quente, e são similares noutros
aspectos, tendem a ter respostas similares a substâncias químicas. De modo
que embora o raciocínio analógico que o leitor acaba por usar seja algo mais

89
Introdução à Filosofia da Religião

fraco do que o raciocínio directo que teria usado se pudesse experimentar o


químico em seres humanos, é, não obstante, um bom raciocínio, e dá-lhe
indícios relevantes sobre o efeito provável que o químico terá em si.
O argumento do desígnio procura responder à questão de o universo
resultar ou não de desígnio inteligente. Se tivéssemos observado a origem
de muitos universos além do nosso e observado também que resultaram,
na totalidade ou na maioria, de desígnio inteligente, podíamos então argu­
mentar directamente que o nosso universo talvez tenha surgido por desígnio
inteligente. Isto não seria raciocínio analógico visto que teríamos raciocinado
a partir de coisas (outros universos) que são exactamente semelhantes ao
nosso objecto de estudo, o nosso universo. Mas como não temos qualquer
conhecimento ou experiência de outros universos além do nosso, temos de
usar o raciocínio analógico; temos de começar com coisas que se assemelham
mas não são o mesmo que o nosso universo e inferir que, uma vez que essas
coisas surgiram por desígnio inteligente, é provável que o nosso universo
tenha surgido por desígnio inteligente. Sendo este um argumento analógico
baseado na semelhança entre coisas diferentes, tem de ser mais fraco do
que um argumento directo a partir de coisas exactamente semelhantes (isto
é, outros universos), mas isto é claramente o melhor que podemos fazer se
procuramos conhecimento acerca de seja o que for que produziu o nosso
universo. Obviamente que a força do argumento dependerá das caracterís­
ticas em função das quais estoutras coisas se assemelham ao nosso universo
e da relevância destas características para a questão de o nosso universo ter
ou não surgido por desígnio inteligente. Temos agora de dar continuidade a
estas questões mais amplas. Temos de colocar duas questões:

1) Em função de que características se diz que o nosso universo se asseme­


lha a uma máquina?
2) São estas características relevantes para a questão de o universo ter ou
não surgido por desígnio inteligente?

90
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

O universo como máquina

pe que maneira ou maneiras se assemelhará o universo a urna máquina?


O teólogo setecentista inglês, William Paley, um dos mais importantes defen­
sores do argumento do desígnio, comparou o universo a um relógio e afir-
ítiou que toda a manifestação de designio que há num relógio há também
no funcionamento da natureza. E, na passagem citada dos Diálogos Sobre a
Religião Natural, chama-se a atenção para «urna curiosa adaptação de meios
a ñns» em toda a natureza. Ao que parece, então, o modo como o universo
supostamente se assemelha a urna máquina assenta na ideia de que há partes
da natureza que se relacionam entre si do mesmo modo que as partes de urna
máquina se relacionam entre si. Se pudermos ter uma imagem mais clara do
modo exacto como as partes das máquinas se relacionam entre si, poderemos
ver se os defensores do argumento do desígnio têm razão ao pensar que há
muitas coisas na natureza cujas partes se relacionam entre si exactamente
do mesmo modo.
Se examinarmos um relógio de bolso que funciona em condições,
depressa observaremos que as suas partes estão conectadas de tal modo
que quando uma parte se move, isto causa também o movimento de outras
partes — as rodas dentadas, por exemplo, estão dispostas de tal modo que o
movimento de uma causa o movimento de outra. Esta é uma característica
comum das máquinas com partes móveis, e é também uma característica que
se encontra no universo. O nosso sistema solar, por exemplo, compõe-se de
partes — o Sol, os planetas, as suas luas — que se movem, e ao moverem-se
causam, através da força gravitacional, o movimento de outras partes. Embora
isto seja verdade, não diz todavia tudo acerca de como as partes das máquinas
se relacionam entre si. Visto que se olharmos novamente para o nosso relógio,
descobrimos não só que as suas partes estão dispostas de modo a funcionarem
conjuntamente mas que sob as condições adequadas funcionam conjunta­
mente para servir uma determinada finalidade. As partes de um relógio estão
dispostas de modo a funcionarem conjuntamente sob as condições adequadas

91
Introdução à Filosofia da Religião

para nos permitir saber as horas. O mesmo sucede com as partes de outras
máquinas — automóveis, câmaras fotográficas ou telemóveis. As partes destas
máquinas relacionam-se todas entre si de tal modo que funcionam conjunta­
mente sob as condições adequadas para servir uma finalidade.
-ï Captemos esta interessante característica das máquinas introduzindo a
ideia de sistema teleológico. Digamos que um sistema ideológico é qualquer
sistema composto de partes em que estas se encontram dispostas de tal modo
que funcionam conjuntamente sob as condições adequadas para servir uma
determinada hnalidade. Na sua maior parte, as máquinas são claramente sis­
temas teleológicos. Além disso, uma máquina de alguma complexidade pode
muito bem ter partes que são elas próprias sistemas teleológicos. Um auto­
móvel, por exemplo, é um sistema teleológico; as suas partes estão dispostas
de tal modo que sob condições adequadas funcionam conjuntamente para
permitir que alguém viaje rapidamente de um lugar para outro. Mas muitas
das partes de um automóvel são também sistemas teleológicos. O carburador,
por exemplo, é um sistema de partes dispostas de modo a fornecer a mistura
adequada de combustível e ar para a combustão.
Os defensores do argumento do desígnio afirmam que a base da analogia
entre o universo e as máquinas é que se encontra, no mundo natural, muitas
coisas, e partes de coisas, que são sistemas teleológicos. O olho humano, por
exemplo, é claramente um sistema teleológico. As suas partes exibem uma
ordem intricada e estão dispostas de tal modo que sob condições adequadas
funcionam conjuntamente para permitir que uma pessoa veja. Outros órgãos
nos seres humanos e animais são também indubitavelmente sistemas teleo­
lógicos, cada um servindo uma hnalidade qualquer razoavelmente clara. Na
verdade, parece razoável pensar que as plantas e os animais que compõem
uma grande parte do mundo natural são sistemas teleológicos. Como o filó­
sofo novecentista C.D. Broad comentou:

«O conhecimento mais superficial acerca dos organismos dá realmente a aparên­


cia de que se trata de sistemas muito complexos, concebidos para se preservarem

92
O argumento do desígnio {o antigo e o novo)

a si mesmos perante condições externas variáveis e ameaçadoras e para rep ro­


duzirem a sua espécie. E, no todo, quanto mais completamente investigamos um
organismo nos seus detalhes, mais aquilo que descobrimos se encaixa com pleta­
mente nesta hipótese. Podia-se mencionar, por exemplo, as diversas pequenas
e aparentemente inim portantes glândulas no corpo humano, cujas secreções se
verifica terem uma profunda influência sobre o seu crescimento e bem -estar. Ou,
mais uma vez, podemos mencionar a produção de anticorpos no sangue quando
o corpo é atacado por organismos que provavelmente o irão d anificar.»25

Podemos agora ver, penso, a força com que este argumento afecta a
imaginação dos seus defensores, Uma vez compreendido o que é um relógio,
como funciona e qual é a sua finalidade, seria completamente absurdo supor
que a sua origem se deve a algum acidente em vez de ao desígnio inteligente,
Mas se olharmos cuidadosamente para muitas coisas na natureza — plan­
tas e animais, por exemplo — descobrimos que as suas partes exibem uma
disposição ordenada, adequada a uma finalidade (sobrevivência do orga­
nismo e reprodução da sua espécie) que, quando muito, excede a organi­
zação segundo ñns das partes do relógio. Que absurdo, portanto, supor que
o mundo natural surgiu por acidente em vez de desígnio inteligente. Parte
da força deste argumento na imaginação humana exprime-se na seguinte
observação do filósofo seiscentista, Henry More:

«Por que outra razão teriam as nossas pernas e braços três juntas, bem como os
dedos, senão por ser melhor do que ter duas ou quatro? E por que serão os nossos
dentes incisivos aguçados com o cinzéis de corte mas os nossos dentes in terio ­
res largos para tritu rar, e não o contrário? Mas talvez tivéssemos conseguido
sobreviver a custo nessa circunstância mais difícil. Mais uma vez, por que será a
disposição dos dentes tão feliz, ou, ao invés, por que não há dentes noutros ossos

25,: C.D. Broad, The Mind and Its Place in Nature (Londres: Routledge & Kegan Paul, Ltd.,
1925), p. 83.

93
Introdução à Filosofia da Religião

além dos maxilares? Porquanto poderiam ter sido tão eficazes como estes. Mas
a razão é nada ser feito tolamente ou em vão; isto é, há uma providência divina
que ordena todas as coisas.»26

Temos procurado responder à primeira das duas questões críticas dirigi­


das ao argumento do desígnio: em função de que características se diz que o
nosso universo é semelhante a uma máquina? Vimos que no mundo natural
há muitas coisas (piàntas e animais, por exemplo) que parecem partilhar com
as máquinas a interessante e importante característica de serem sistemas
teleoiógicos. Antes de nos voltarmos para a segunda questão crítica, contudo,
temos de identificar exactamente o que aceitamos acerca do nosso universo
se aceitarmos a afirmação de que as plantas e os animais, como as máquinas,
são sistemas teleoiógicos.
Uma coisa é acreditar que o universo contém muitas partes que são siste­
mas teleoiógicos; outra completamente diferente é acreditar que o universo
em si é um sistema teleológico. Nada que tenhamos considerado até agora
mostra que o universo em si é um sistema teleológico. Para o mostrar, tería­
mos de afirmar que o próprio universo tem uma finalidade e que as suas partes
estão dispostas de tal modo que funcionam conjuntamente para a realização
dessa finalidade. Mas será que podemos, olhando apenas para o pequeno frag­
mento do nosso universo que nos é acessível, ter a esperança de distinguir a
finalidade do universo em si? Parece claro que não podemos. Se soubermos
que Deus criou o universo e também por que razão o criou, poderemos razo­
avelmente inferir que o universo em si é um sistema teleológico. Mas como
o argumento do desígnio é um argumento a favor da existência de Deus, não
pode pressupor a sua existência e as suas finalidades sem pressupor aquilo
que está a tentar provar. Quando muito, então, o que podemos dizer é que o
universo contém muitas partes (além de objectos feitos por seres humanos,

26. Citado por J.J.C. Smart em «The Existence of God», em New Es sap s in Philosophical
Theology, org. Antony Flew e Alasdair MacIntyre (Londres; SCM Press Ltd, 1955), p. 43.

94
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

tomo máquinas) que são sistemas teleoiógicos. E isto significa que não temos
justificação para afirmar que o universo em si é como urna máquina. O que
talvez tenhamos justificação para afirmar é que o universo contém muitas
partes naturais (isto é, partes que não são feitas pelos seres humanos) que se
assemelham a máquinas; estas assemelham-se a máquinas porque, como elas,
são sistemas teleoiógicos. Aceitando esta limitação, podemos rever a nossa
formulação do argumento do desígnio, do seguinte modo.-

1. As máquinas são produzidas por desígnio inteligente.


2. Muitas partes naturais do universo assemelham-se a máquinas.
Logo,
3. Provavelmente, o universo (ou pelo menos muitas das suas partes natu­
rais) foi produzido por desígnio inteligente.

Indícios de desígnio inteligente

A segunda questão crítica que temos de levantar a respeito do argumento


do desígnio é se a característica em função da qual muitas partes naturais
do universo se assemelham a máquinas é relevante ou não para a questão
de o universo (ou muitas das suas partes naturais) ter surgido ou não por
meio de desígnio inteligente. É evidente que a resposta a esta questão é sim.
Sabemos que o desígnio inteligente explica o facto de as máquinas serem
sistemas teleoiógicos. Descobrimos então que o mundo natural contém mui­
tos sistemas teleoiógicos. Que explicação mais plausível se pode dar da sua
origem do que supor que também estes surgiram por desígnio inteligente?
E visto ser claro que nenhum ser humano podia ter sido o criador intell­
igente do universo (ou das suas partes naturais que são sistemas teleoiógicos),
parece razoável supor que algum ser sobre-humano concebeu inteligente­
mente o universo no seu todo, ou pelo menos muitas das suas partes.
Ainda que o desígnio inteligente seja uma hipótese plausível para explicar
os muitos sistemas teleoiógicos no mundo natural, será a única hipótese dispo­

95
Introdução à Filosofia da Religião

nível? Antes de Charles Darwin (1809-1882) e da teoria da evolução, é duvidoso


que alguém tenha tido uma explicação naturalista dos sistemas ideológicos na
natureza que pudesse seriamente competir com a hipótese do desígnio inteli­
gente. Mas, desde o desenvolvimento da teoria da evolução, o argumento do
desígnio tem perdido alguma da sua força persuasiva, pois temos agora uma
hipótese naturalista razoavelmente bem elaborada para explicar os sistemas
teleológicos na natureza. Resumidamente, a teoria darwinista da selecção
natural parece explicar por que razão a natureza contém tantos organismos
cujas diversas partes se encontram tão bem ajustadas à sua sobrevivência.
Segundo esta teoria, os animais e as plantas sofrem variações ou mudanças que
são herdadas pelos seus descendentes. Algumas variações dão aos organismos
uma vantagem sobre 0 resto da população na luta constante pela sobrevivência.
Como as plantas e os animais geram mais crias do que o ambiente pode sus­
tentar, aqueles em que ocorrem variações favoráveis tendem a sobreviver em
maior número do que aqueles em que ocorrem variações desfavoráveis. Assim,
acontece que ao longo de grandes períodos de tempo emergem lentamente
grandes populações de organismos altamente desenvolvidos cujas partes se
encontram tão peculiarmente ajustadas à sua sobrevivência.
Durante o final do século x x e o início do século x x i teve lugar um
debate sobre se a teoria darwinista da selecção natural consegue explicar
adequadamente os organismos vivos complexos que habitam o nosso pla­
neta. Embora a ciência biológica pareça estar firmemente enraizada na teoria
darwinista da evolução, a própria teoria continua a ser criticada por alguns
biólogos que argumentam que a selecção natural sem desígnio inteligente é
inadequada para explicar a complexidade dos seres vivos que habitam o nosso
planeta. Por exemplo, o biólogo Michael J. Behe argumenta que o princípio
de selecção natural de Darwin não pode explicar o facto de muitos sistemas
biológicos serem «irredutivehnente complexos» ao nível molecular.27 Behe

27. Michael J. Behe, Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution (Nova
Iorque: The Free Press, 1996), p, 54.

96
O argumento do desígnio {o antigo e o novo)

■ fala numa ratoeira como exemplo de algo que é irredutivelmente complexo.


As ratoeiras têm diversas partes interligadas (mola, base, martelo, charneira e
barra de preensão), e todas estas são necessárias para realizar a finalidade da
ratoeira — apanhar ratos. Um sistema biológico irredutivelmente complexo
é um sistema que, como uma ratoeira, simplesmente não pode funcionar a
Unenos que todas as suas partes estejam presentes e adequadamente conecta­
das. Como a evolução darwinista procede por ligeiras modificações sucessivas
em sistemas operacionais, que por acaso se adaptam a mudanças ambientais,
afirma-se que é extremamente difícil ver, se não mesmo impossível, como
se pode chegar, por meio da teoria darwinista, a sistemas irredutivelmente
complexos ao nível molecular. Se a posição defendida por Behe fosse correcta,
seria uma objecção importante à capacidade de a selecção natural darwinista
explicar sistemas complexos ao nível molecular. É óbvio que há uma grande
distância entre os dados de Behe e a conclusão de que uma explicação ade­
quada de sistemas biológicos irredutivelmente complexos ao nível molecu­
lar exige a existência de um ser omnipotente, omnisciente, perfeitamente
bom, que criou directamente estes sistemas irredutivelmente complexos. Na
verdade, nem Behe nem William Dempski,28 outro importante defensor do
desígnio inteligente, añrmam explicitamente que o argumento do designio
inteligente é um indicio a favor da existência do Deus teísta. Dempski man­
tém oñcialmente o silencio acerca da identidade do criador, e Michael Behe
admite que este possa fazer parte do mundo natural.29 Presentemente, há
algum debate académico sobre se a selecção natural darwinista pode explicar
adequadamente os sistemas biológicos irredutivelmente complexos ao nivel
molecular. Diga-se, em boa verdade, contudo, que na sua maioria os biólogos

28. William A. Dempski, No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be Purchased
Without Intelligence (Lanham, MD: Roman and Littlefield, 2002).
29. Michael L Behe, «The Modern Design Hypothesis: Breaking Rules», em God and
Design: The Teleological Argument and Modern Science, org. Neil A. Manson (Nova
Iorque: Routledge, 2003), pp. 277-291.

97
Introdução à Filosofta da Religião

adoptant a perspectiva de que não há razões suficientes para pensar que não
pode explicá-los.
Kenneth R. Miller, professor de biologia na Universidade de Brown e
teísta, concorda com Behe que, se o darwinismo não pode explicar a aparente
complexidade irredutível ao nível da célula viva, então está condenado. Miller
observa, contudo, que embora a biologia celular não existisse no tempo de
Darwin, este teve o cuidado de procurar explicar como a sua teoria podia
dar conta de um sistema irredutivelmente complexo, dando uma explicação
evolucionista do exemplo do olho humano, usado por Paley.30 Na perspectiva
de Miller, o argumento de Behe a partir da complexidade irredutível é apenas
mais uma tentativa falhada de encontrar no nosso planeta a ocorrência de
algo que a ciência é supostamente incapaz de explicar.
Enquanto teísta, Miller encara o universo como criação de Deus. Na ver­
dade, argumenta que dada a teoria do Big Bang acerca da origem do universo
faz todo o sentido supor que a existência do nosso universo foi causada por
um ser sobrenatural. Mas Miller añrma que a teoria darwinista pode explicar
a lenta emergência ao longo do tempo de sistemas teleológicos intricados,
incluindo plantas, os animais inferiores e os seres humanos. Para Miller, só
da origem do nosso universo se pode razoavelmente afirmar que foi um acto
de criação e desígnio inteligente. Na verdade, ao contrário de Behe, Miller é
muito cuidadoso quanto a afumar que há acontecimentos no nosso planeta
que são inexplicáveis sem alguma actividade imediata, directa, de Deus. Pois
é demasiado frequente mostrar-se, a longo prazo, que os acontecimentos
terrenos supostamente resultantes da exclusiva intervenção directa de Deus
são consequência causai de forças puramente naturais. É a própria origem
do universo, cujas constantes são tais que permitem a emergência da vida
humana neste planeta tão insignificante, que Miller acredita ter sido direc­
tamente causada por Deus. Visto que uma coisa é argumentar que Deus é

30. Kenneth R. Miiler, Finding Darwin’s God (Nova Iorque: HarperCollins Publishers Inc.,
1999), p .135.

98
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

indispensável para explicar os sistemas teleológicos intricados que obser­


vamos na Terra, e outra completamente diferente é argumentar que Deus é
indispensável para explicar por que razão há um universo cujas constantes
são tais que permitem a ocorrência de um planeta com condições que tornam
a vida possível, é melhor tratar o último como um argumento separado — o
novo argumento do designio. Examinaremos esse argumento mais à frente
neste capítulo, depois de considerar as críticas de Hume ao antigo argumento
do desígnio.
Seja a teoria darwinista da selecção natural verdadeira ou falsa, tem de se
admitir que é uma adversária de peso da hipótese do criador inteligente como
possível explicação para o facto de o mundo natural conter tantos sistemas
teleológicos altamente desenvolvidos. O que isto acarreta para o argumento
:do desígnio é que este já não tem a força persuasiva de que em tempos gozou,
Embora nos dê indubitavelmente alguma base para pensar que muitas partes
do mundo natural surgiram por desígnio inteligente, temos agora razões para
questionar a força da inferência que parte dos sistemas teleológicos na natu­
reza para chegar a um criador inteligente, visto que temos na teoria da selec­
ção natural uma hipótese alternativa que explica esses sistemas teleológicos.

AS CRÍTICAS DE HUME AO ARGUMENTO DO DESÍGNIO

Embora os Diálogos Sobre a Religião Natural, de Hume, tenham sido escritos


untes do advento da teoria darwinista, há muito que foram reconhecidos
como a ofensiva clássica ao argumento do desígnio. Para o que nos interessa,
pode-se dividir as críticas de Hume em dois grupos: as críticas à afirmação
de que o universo é como uma máquina, e as críticas à afirmação de que o
argumento do desígnio nos dá uma base adequada para acreditar no Deus
teísta. A melhor forma de concluir o nosso estudo do antigo argumento do
desígnio é ver algumas das principais objecções de Hume.
Em primeiro lugar, Hume sublinha que a vastidão do universo enfra­
quece a ahrmação de que este se assemelha a uma máquina ou a qualquer

99
Introdução à Filosofia da Religião

outra criação humana, como uma casa ou um navio. Em segundo lugar,


Hume faz notar que embora haja ordem e desígnio na parte do universo em
que habitamos, tanto quanto sabemos pode haver vastas extensões do uni­
verso onde reine o caos absoluto. E, por hm, embora admitindo a observação
de que o desígnio inteligente é a causa da produção de coisas no pequeno
fragmento de universo que podemos observar, Elume argumenta que a con­
clusão de que o desígnio inteligente é a força produtiva em todo o universo
é um salto ir razoável. «Uma pequena parte deste grande sistema, durante
um espaço muito breve de tempo, mostra-se-nos imperfeitamente; e vamos,
partindo daí, pronunciar-nos decisivamente a respeito da origem do todo?»31
Estas objecções dirigem-se à segunda premissa da formulação original
do argumento do desígnio, a premissa de que o universo no seu todo se asse­
melha a uma máquina. As objecções, contudo, não afectam tão directamente
a versão revista do argumento em que a segunda premissa diz: «Muitas par­
tes naturais do universo assemelham-se a máquinas». Na versão revista não
se faz qualquer afirmação acerca do universo no seu todo ou acerca das partes
do universo que somos incapazes de observar. Por conseguinte, como nos
ocupamos agora da versão revista, podemos pôr tranquilamente de parte o
primeiro grupo das críticas de Hume.
O segundo grupo de críticas dirige-se não ao argumento como o for­
mulámos, mas a qualquer tentativa de interpretar o argumento como base
adequada da crença teísta — a crença de que existe um ser sumamente per­
feito que criou o universo. E a este respeito, não há dúvida de que Hume
tem razão. Ao inspeccionar o universo, podemos talvez concluir que surgiu
por desígnio inteligente, mas o argumento do desígnio é incapaz de ir além
disso; não nos dá qualquer base racional para pensar que seja o que for que
produziu o universo é perfeito, uno ou espiritual Não podemos inferir que o
que produziu o universo é supremamente sábio ou bom porque, tanto quanto
sabemos, o universo é um produto muito imperfeito, mais semelhante a um

31. Hume, Dialogues, II, pp. 22-23.

100
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

Edsel ou um Corvair do que a um Rolls Royce. E mesmo que se soubesse que


o mundo na sua vastidão é uma obra excelente, ainda assim, tanto quanto
sabemos, este mundo podia ser o último de urna série de mundos, muitos
dos quais criações desajeitadas e ineptas, antes de a divindade ter finalmente
conseguido aprender a arte de fazer mundos.
Faz parte da crença teísta a ideia de que há um único ser que produziu
o mundo, mas uma vez que sabemos que muitas máquinas, edifícios, auto­
móveis e outros engenhos resultam dos esforços combinados de muitos cria­
dores, o universo, tanto quanto sabemos, podia ser o produto do trabalho
de muitas divindades menores, cada uma detentora de uma inteligência e
perícia limitadas.
Faz parte da crença teísta a ideia de que a divindade é incorpórea (não tem
corpo), um ser puramente espiritual. Mas, uma vez mais, se inferimos, a partir
da semelhança entre o mundo natural e uma máquina, a semelhança entre
aquilo que terá causado ambos, então, visto que no caso das máquinas não
conhecemos qualquer causa (um ser humano) que seja incorpórea, não temos
base para inferir que seja o que for que produziu o mundo é um ser incorpóreo.
Hume resume este segundo grupo de objecções fazendo notar que quem
limita a base da sua crença religiosa ao argumento do desígnio «poderá tal­
vez afirmar, ou conjecturar, que, a dada altura, o universo surgiu por algo
semelhante ao desígnio: mas além dessa posição não pode estar seguro de
uma única circunstância que seja; e terá então de corrigir cada detalhe da
sua teologia recorrendo ao maior desregramento caprichoso e hipotético.»32
É claro o que o segundo conjunto de críticas lançadas por Hume acarreta.
Não se pode estabelecer o teísmo apenas através do argumento do desígnio.
Muitos teístas aceitariam esta implicação. Argumentariam, contudo, que os
diversos argumentos importantes a favor da existência de Deus, tomados em
conjunto, dão efectivamente uma base racional para acreditar no Deus teísta.
Pelo que o segundo conjunto de críticas apresentadas por Hume, embora

32. Hume, Dialogues, V, p, 40,

101
Introdução à Filosofía da Religião

mostre claramente as limitações do argumento do desígnio, não afecta a afir­


mação mais geral de que os argumentos tradicionais a favor da existencia de
Deus, tomados era conjunto, dão ao teísmo urna base racional.

Q novo argumento do designio

O novo argumento do desígnio surgiu durante o século xx, alimentado por


descobertas científicas e teorias respeitantes tanto à origem do nosso uni­
verso como às condições que nele tiveram de prevalecer desde o início para
que o tipo de vida que conhecemos tivesse alguma hipótese sequer de ocorrer
no universo à medida que este se desenvolvia. Ao contrário dos defensores do
argumento que Darwin e Hume criticaram, os defensores do novo argumento
não começam pela existência de seres vivos (plantas e animais) procurando
uma explicação para o facto de serem sistemas teleológicos tão intricados.
Podem mesmo conceder que Darwin tem uma explicação para isso. Ao invés,
os defensores do novo argumento do desígnio perguntam que condições tem
de haver no universo para que seja sequer possível a existência de seres vivos.
E afirmam que dada a mais prometedora explicação para a origem do uni­
verso disponível na ciência moderna — a teoria do Big Bang — as hipóteses de
o universo se desenvolver de tal modo que a vida é possível são incrivelmente
pequenas, muito menos do que uma hipótese num milhão. Veja-se então a
coisa assim: havia milhões de maneiras diferentes de o universo se poder
ter desenvolvido a partir do Big Bang. E apenas de uma dessas maneiras o
universo viria a ter as características necessárias para a emergência e a exis­
tência contínua do tipo de vida que conhecemos. Um exemplo popular de
uma das inúmeras condições que tinham de ser precisamente do modo como
são para que o surgimento da vida fosse sequer possível diz respeito à taxa de
expansão do universo a partir do momento inicial do Big Bang. Se a taxa de
expansão fosse ligeiramente mais rápida, não teria sido possível formarem-se
as galáxias, as estrelas e os planetas, com o resultado de que o tipo de vida
que conhecemos não teria tido hipótese de existir. Alternativamente, como

102
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

afirma Stephen Hawking, «Se a taxa de expansão do universo um segundo


depois do Big Bang tivesse sido menor, ainda que por utn em cem mil triliões,
o universo teria voltado a ser uma bola de fogo quente».33 Quando percebe­
mos que a taxa de expansão é apenas uma das muitas condições diferentes
que tinham de estar exactamente ajustadas para que a vida fosse possível no
universo, a hipótese de um criador inteligente que ajustou o estado inicial do
universo parece uma explicação muito mais plausível do que o apelo ao mero
acaso para o facto de que o nosso universo é adequado à vida.
Creio que tem de se reconhecer que este argumento a favor de um cria­
dor inteligente das condições iniciais tem algum mérito. Contudo, seria um
erro, como Hume nos ensinou, concluir algo mais, além de que o argu­
mento sustenta a ideia de que a existência de desígnio inteligente teve um
papel no início do universo. Pode ter havido muitos criadores cooperando
mutuamente; o criador, se houve apenas um, podia ter acertado finalmente
na taxa de expansão, depois de muitas tentativas falhadas; o criador inteli­
gente podia desde então ter perdido todo o interesse que teve em tempos no
bem-estar dos seres vivos no universo. Resumindo, mesmo que este argu­
mento seja bom, deixa ainda em aberto a questão de o criador inteligente do
nosso universo ser ou não o deus teísta. (Como vimos, ao discutir o antigo
argumento do desígnio, os teístas podem perfeitamente concordar com isto,
argumentando ao invés que cada um dos argumentos a favor da existência
de Deus pode sustentar diferentes características da ideia teísta de Deus.)
Há, contudo, uma objecção ao argumento que merece consideração.
E se tivessem ocorrido milhões de outros Big Bangs? E se o nosso universo
(o universo que começou com o Big Bang a que se referem as nossas teorias
científicas) for apenas um entre milhões de outros que, não tendo condições
indispensáveis à vida, são desconhecidos? Se assim fosse, seria provável que
um destes Big Bangs tivesse as condições iniciais para se desenvolver de tal

33. Stephen Hawking, A Brief History of Time (Nova lorque; Bantam Books, 1988), p. 123.
[Breve História do Tempo, trad. Ribeiro da Fonseca, Lisboa, Gradiva, 1988.]

103
Introdução à Filosofia da Religião

modo que aí pudesse haver vida. Pegando num baralho de cartas que não
esteja viciado, é extremamente improvável que tirar cinco cartas aleatoria­
mente resulte numa sequência ordenada de cartas do mesmo naipe. Mas se
houver milhares e milhares de baralhos de cartas que não estejam viciados,
de cada um dos quais se retira cinco cartas aleatoriamente, será muito prová-
veí, na verdade, que um desses lances seja uma sequência ordenada de cartas
do mesmo naipe. Talvez se passe o mesmo com o nosso universo de Big Bang,
caso em que não seria surpreendente que um universo de Big Bang contenha
vida. E, como somos seres vivos, fazemos forçosamente parte desse universo
não surpreendente.34
Há pouco considerámos as objecções do biólogo Kenneth R. Miller às
críticas de Michael Behe à selecção natural darwlnista como explicação dos
sistemas biológicos irredutivelmente complexos que se encontram no nosso
planeta. Enquanto cristão, Miller acredita que Deus é o criador do universo
no qual por acaso há um pequeno planeta com as condições adequadas à
emergência de seres vivos inteligentes. Contra a sua perspectiva considerá­
mos uma objecção preferida dos não teístas. Porque, como vimos, se tivesse
havido milhões e milhões de Big Bangs resultando em milhões e milhões
de universos, seria provável um deles ter constantes que permitissem a
existência de vida humana. Miller, obviamente, está ciente desta possibi­
lidade alternativa. Tem de se admitir, contudo, que uma vez que apenas
podemos observar o nosso próprio universo, não se pode obter indícios para
determinar se a hipótese do universo múltiplo está correcta. Miller conclui
razoavelmente que, sendo os indícios para a hipótese do universo múltiplo
inalcançáveis, há justificação intelectual para levar a sério a alternativa tradi­
cional: que o nosso universo, em vez de ter ocorrido por acaso, foi criado por
Deus.35 Note-se, contudo, que qualquer ser sobrenatural com poder absoluto
e conhecimento suficiente seria também capaz de criar o nosso universo. Não

34. Para uma perspectiva mais completa desta objecção, ver Peter van Inwagen, Meta­
physics (São Francisco: Westview Press, 1993) pp, 132-148.
35. Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God, pp. 230-232.

104
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

se exige, por exemplo, um ser que seja moralmente perfeito. Não obstante,
como não temos indicios a favor da hipótese do universo múltiplo, a alter­
nativa de um criador sobrenatural permanece uma possibilidade genuína.

ARGUMENTOS ACEITÁVEIS

Neste e nos dois capítulos anteriores, debatemo-nos com os três argumen­


tos principais a favor da existência de Deus. Tentámos compreender estes
argumentos, bem como as principais objecções que foram apresentadas
contra eles. Em cada caso, sugeri que os argumentos são insuficientes para
nos dar uma base racional persuasiva para pensar que o Deus teísta existe,
O argumento cosmológico, ainda que seja sólido, não nos permite saber
que há um ser auto-existente, porque assenta num princípio, o princípio
de razão suficiente (PRS), que, quando muito, poucos de nós sabem se é
verdadeiro, O argumento ontológico, embora belo e genial, não prova que
existe um ser insuperavelmente grandioso, porque cai em petição de prin­
cípio — teríamos de saber que a conclusão é verdadeira de modo a saber que
as suas premissas são verdadeiras. E, por fim, os argumentos do desígnio,
tanto o antigo quanto o novo, dão-nos, quando muito, bases para pensar
que algumas partes naturais do universo ou o universo em si surgiram por
desígnio inteligente.
E se juntarmos os argumentos, tentando justificar o teísmo não com os
três separadamente mas como se fossem um só? Isto seria útil se cada um
dos argumentos conseguisse realmente dar uma base racional sólida para
algum aspecto do Deus teísta. Mas, como vimos, nem o argumento cosmo­
lógico nem o argumento ontológico conseguem fazer isto. A nossa avaliação
final dos argumentos, portanto, é que, tomados separadamente ou em con­
junto, não conseguem provar a crença teísta. Como o filósofo e psicólogo
americano William James comentou: «Os argumentos a favor da existência
de Deus aguentaram-se durante centenas de anos sob as vagas da crítica
incrédula que se abatiam sobre os mesmos, nunca os desacreditando aos

105
Introdução à Filosofia da Religião

olhos dos crentes, mas em geral desgastando lentamente a argamassa de


entre as juntas.» 36
Não se deve entender a nossa conclusão de que os três argumentos tra­
dicionais não conseguem provar a existência de Deus no sentido de serem
intelectual ou religiosamente inúteis. Porquanto foram avaliados à luz de
um cânone excepcionalmente elevado. Perguntámos se os argumentos fun­
cionam como demonstrações ou provas da existência de Deus; e v imos que
ficam aquém de satisfazer este cânone elevado. Alguns filósofos e teólogos
contemporâneos, portanto, contentam-se em pensar não que os argumen­
tos provam a existência de Deus mas que mostram que a existência de Deus
é uma hipótese plausível para explicar o mundo e a nossa experiência. Os
argumentos, nesta perspectiva, dão-nos razões para defender que a crença
em Deus é racional São argumentos aceitáveis no sentido em que apresen­
tam considerações a favor da hipótese de que Deus existe.
Embora não possamos elaborar muito detalhadamente esta última ideia,
é importante reconhecer que um argumento a favor de uma conclusão pode
ser aceitável ainda que não a consiga prouar. O argumento cosmológico, por
exemplo, não é uma prova da sua conclusão porque assenta num princípio
(PRS) que não sabemos nem podemos provar se é verdadeiro. Mas o PRS, não
obstante, pode ser um princípio plausível, um princípio que se poderá razoa­
velmente considerar digno de crença. Nessa medida, 0 argumento cosmológico
pode dar peso à crença teísta, embora não consiga ainda prová-la. Até certo
ponto, pode-se fazer comentários semelhantes acerca do argumento ontoló­
gico e do argumento do desígnio. Por isso, embora se tenha visto que a afir­
mação tradicional de que estes argumentos provam a existência de Deus está
incorrecta, isto não exclui a possibilidade de que um ou mais dos argumentos
possam desempenhar um papel importante na defesa intelectual do teísmo.37

36. William James, The Varieties o f Religious Experience (Nova Iorque: The Modern
Library, 1936), p.427.
37. Para uma explicação dos argumentos segundo esta linha, ver George F. Thomas, Philo­
sophy and Religious Belief (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1970), Capítulo 6.

106
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

REVISÃO

1. Explique por que razão o antigo argumento do designio tem de usar


o raciocinio analógico. Que duas questões críticas temos de levantar
acerca desse argumento?
2. Explique o que se entende por sistema teleológico. Será razoável pensar
que muitas coisas na natureza são sistemas teleológicos?
3. Que críticas levanta Hume à afirmação de que o universo se assemelha
a uma máquina?
4. Explique como o novo argumento do desígnio não é afectado pela evo­
lução darwinista. Que objecção se pode levantar ao novo argumento do
desígnio?
5. Que conclusões gerais se podem retirar a respeito dos três principais
argumentos a favor da existência de Deus?

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Descreva o tipo de mundo que tornaria prováveis as seguintes perspec­


tivas (cada uma por sua vez) :
a. Há muitas divindades finitas.
b. Há um Deus, omnipotente e perfeitamente bom.
c. Há um Deus, omnipotente mas que não é perfeitamente bom.
d. Há um Deus, perfeitamente bom mas que não é omnipotente.
2. Supondo que o mundo nos dá alguns indícios de desígnio inteligente,
desenvolva um argumento a favor da ideia de que o teísmo é mais pro­
vável do que 0 politeísmo enquanto explicação dos indícios de desígnio
inteligente que há no mundo.

107
Capítulo 5
Experiência mística e religiosa

Antes de Robinson Crusoe ter efectivamente visto o homem Sexta-feira, a


sua justificação para acreditar que havia alguém que não ele próprio na ilha
consistia em vestígios deixados por Sexta-feira, tais como pegadas. O crente
que baseia a sua crença em Deus apenas em argumentos a favor da existência
de Deus, como os argumentos cosmológico e do desígnio, encontra-se numa
situação algo semelhante à de Crusoe antes de ter realmente visto Sexta-
- feira. A crença em Deus assenta numa convicção de que o mundo e o modo
como as coisas nele se inter-relacionam são vestígios da actividade de Deus,
testemunhando a existência de um género de ser supremo. Depois de ter
realmente visto Sexta-feira, porém, as razões que Crusoe tinha para acreditar
que não estava sozinho na ilha não se limitavam aos vestígios deixados por
Sexta-feira; nestas se incluía o contacto directo, em pessoa, com o próprio
Sexta-feira. Analogamente, as pessoas que têm experiências místicas e reli­
giosas encaram amiúde a experiência mística e religiosa como uma cons­
ciência pessoal directa do próprio Deus e, consequentemente, como uma
justificação excepcionalmente forte para a crença em Deus. Neste capítulo
consideraremos a experiência mística e religiosa com o objectivo de avahar
até que ponto podem justificar racionalmente a crença.

109
Introdução à Filosofia da Religião

PARA UMA DEFINIÇÃO DE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

A nossa primeira tarefa é tentar compreender o que é a experiência religiosa.


Como caracterizaremos a experiência religiosa? Esta questão é excepcio­
nalmente difícil e qualquer caracterização a que cheguemos será provavel­
mente inadequada, talvez mesmo um pouco arbitrária. Mas precisamos de ter
alguma ideia, por muito vaga e inadequada que seja, daquilo que esperamos
examinar. Comecemos por considerar um exemplo claro de experiência reli­
giosa ■— a experiência de Saulo na estrada para Damasco. Depois, podemos
ver o modo como alguns dos mais capazes estudiosos da experiência religiosa
tentaram caracterizá-la.

«E m viagem aproximava-se de Damasco e subitamente um clarão vindo do céu


fulgurou perto dele, E caiu ao chão e ouviu uma voz que lhe dizia: «Saulo, Saulo,
por que razão me persegues?» E retorquiu: «Quem és, Senhor?», e a voz respon­
deu: «Sou Jesus, a quem persegues; mas levanta-te e entra na cidade, e dir-te-ão
o que tens de fazer.» Os hom ens que viajavam com ele ñcaram sem palavras,
ouvindo a voz mas não vendo quem quer que fosse. Saulo levantou-se do chão
e, quando os seus olhos se abriram , não conseguia ver; então levaram -no pela
mão e trouxeram -no para Damasco. E durante três dias continuou sem ver e não
com eu nem bebeu. » 38

Nesta experiência, que se revelou o ponto de viragem na vida de Saulo,


transformando-o de Saulo, o perseguidor, em Paulo, o apóstolo, há da parte
de Saulo a consciência de uma figura divina — «Quem és, Senhor?» — acom­
panhada de uma boa dose de temor e tremor, e uma consciência da sua pró­
pria insignificância. Não é muito claro o que Saulo efectivamente viu com os
próprios olhos; talvez apenas uma luz ofuscante que o cegou temporaria­
mente. Ouviu de facto uma voz e compreendeu o que esta lhe dizia.

38. Actos dos Apóstolos 9:3-9 (Edição Canónica Revista).

110
Experiência mística e religiosa

Embora a experiência de Saulo seja claramente religiosa, não nos diz o que
é uma experiência religiosa, nem nos dá uma caracterização pela qual possa­
mos distinguir a experiência religiosa da não religiosa. Não é preciso ver uma
luz ofuscante nem ouvir uma voz para ter uma experiência religiosa. Além
disso, ver uma luz ofuscante e ouvir uma voz apenas não basta para que uma
experiência seja religiosa. Como a caracterizaremos então?

Dependência, alteridade e união

No seu importante livro A Ideia do Sagrado, o teólogo alemão Rudolf Otto


{1896-1937) procurou chegar ao elemento essencial da experiência religiosa
examinando criticamente a caracterização da mesma dada pelo teólogo
oitocentista, Friedrich Schleiermacher. Segundo este autor, o que distin­
gue a experiência religiosa é que nela é~se dominado pelo sentimento de
dependência absoluta. É óbvio que muitas vezes temos consciência de nós
próprios como seres dependentes — dos nossos amigos, ou do capricho dos
professores que avaliam ensaios. Tais sentimentos de dependência não são
distintamente religiosos e Schleiermacher não pensou que fossem. São ape­
nas exemplos do sentimento de dependência relativa. Na experiência reli­
giosa, contudo, o elemento central é o sentimento de dependência absoluta,
a consciência do eu como absolutamente dependente.
Otto sugere o nome de «sentimento de criatura» para esse elemento
da experiência religiosa que Schleiermacher procurou descrever como a
consciência do eu como absolutamente dependente. A sua objecção funda­
mental não é que Schleiermacher foi incapaz de discriminar um elemento
importante da experiência religiosa, visto que Otto admite prontamente
que o sentido do eu como criatura é um elemento da experiência religiosa.
:A sua objecção é que o sentimento de criatura não é o elemento mais funda­
mentai da experiência religiosa, e ao fazer dele o elemento fundamental Sch­
leiermacher incorreu em dois erros. O primeiro destes erros é o subjectivismo,
fazendo da consciência, não de outro mas do eu como absolutamente depen-

111
Introdução à Fílosoña da Religião

dente, a essência da experiencia religiosa. O segundo erro é que Schleiermacher


pensa que só se chega a Deus através da inferencia. Pois ao converter em essên­
cia da experiencia religiosa urna certa consciencia que se tem do eu, Schleierma­
cher foi levado a considerar Deus não como objecto de consciencia imediata mas
cqmo algo a que se tem de chegar em resultado de urna inferencia, enquanto
causa da nossa dependencia absoluta, da qual temos experiência imediata.
Em lugar da explicação de Schleiermacher da essência da experiência
religiosa enquanto consciencia do eu como absolutamente dependente, Otto
añrmou que o elemento essencial é a consciência de outro (algo exterior ao
próprio) como sagrado ou divino. Assim, para Otto, a consciência imediata
de Deus é o elemento verdadeiramente essencial, e a sensação do eu como
absolutamente dependente (sentimento de criatura) é um resultado imediato
do elemento essencial, a consciência de outro como sagrado. Otto lançou-se
então numa análise penetrante dos elementos (como a reverência, o mistério,
o terror) que estão contidos na consciência de algo como sagrado.
Na esteira de Otto, poderíamos caracterizar provisoriamente a experiência
religiosa como uma experiência em que se tem directamente consciência de
outro (algo exterior ao eu) como sagrado (divino). E talvez esta caracterização
da experiência religiosa seja a mais adequada que se pode dar. Há, contudo,
uma dificuldade. Na caracterização de Otto tem-se consciência de outra coisa,
algo distinto e exterior ao eu. Sem dúvida que muitas experiências religiosas
são assim. Mas a forma mais elevada de experiência mística parece uma expe­
riência em que não há qualquer consciência de outra coisa como distinta do eu.
O que os místicos religiosos se parecem esforçar por alcançar é uma experiência
em que a consciência que se tem do eu como algo distinto do objecto da expe­
riência é suprimida, destruída. A forma mais elevada de experiência mística
é uma forma de união absoluta com o divino — uma experiência em que o eu
acede e se torna uno com o divino de modo que não há sequer, na experiência,
qualquer consciência de outro (algo distinto do eu).
Considere-se, por exemplo, as duas seguintes passagens do teólogo mís­
tico alemão Mestre Eckhart (1260-1328):

112
Experiência mística e religiosa

«Não som os in teiram en te abençoados, ainda que contem plem os a verdade


divina; pois enquanto ainda a contem plam os, não estam os nela. Enquanto o
hom em reflecte num objecto não é uno com e le .» 39
«Neste deserto divino, a actividade cessou e portanto a alma atingirá a máxima
perfeição quando é lançada ao deserto divino, onde já não há formas nem a cti­
vidade, de modo que se afunda e perde neste deserto onde a sua identidade é
destruída.»40

Nestas duas passagens, Eckhart indica claramente que a alma se encon ­


tra no seu estado mais abençoado ou perfeito quando tem experiência do
divino tão intensamente que perde a própria identidade e se torna una com
o divino. Neste estado não há qualquer consciência do divino como objecto
e da alma como sujeito, distinta do divino. Como observou o filósofo místico
Plotino (205-270 d.C.) : «Não devíamos falar em ver, mas, ao invés, em visto
e vidente, devíamos falar ousadamente numa Unidade simples, dado que
neste ver nem distinguimos nem há dois.»41 A dificuldade na caracterização
que Otto dá da experiência religiosa é excluir as experiências do tipo descrito
por Eckhart e Plotino, experiências que têm sido prezadas pelos místicos reli­
giosos como a mais elevada forma que se pode alcançar de contacto directo
com o divino.

A presença do divino

No interesse, então, de não excluir tais experiências da categoria de experiên­


cia religiosa, sugiro que corrijamos do seguinte modo a caracterização de
Otto: diremos que uma experiência religiosa é uma experiência em que se

39. R.B. Blakney, Meister Eckhart: A Modern Translation (Nova Iorque: Harper & Row
Publishers, 194l), p. 200.
40. Ibid. pp. 200-201.
41. Citado por Walter T, Stace em Mysticism and Philosophy (Nova lorque: J. B. Lippincott
Co., I960), p. 233.

113
introdução à Filosofia da Religião

sente a presença imediata do divino. Há que esclarecer várias coisas acerca


desta caracterização da experiência religiosa.
Em primeiro lugar, pretendo que esta caracterização inclua aquelas
experiências do divino em que não há qualquer sentido de alteridade (as
experiências dos místicos religiosos, por exemplo), mas antes um sentido
de união ou identidade com o divino, bem como as experiências em que há
um sentido evidente de alteridade, de encontro com a figura divina, como,
por exemplo, na experiência de Saulo na estrada para Damasco. Em segundo
lugar, temos de ter cuidado para não confundir a crença de que o divino
está presente com a sensação de presença do divino. Um católico que parti­
cipe na comunhão pode perfeitamente acreditar estar na presença do divino,
tendo-lhe sido ensinado que a substância do pão se torna divina quando
consagrada pelo padre. Mas pode não ter experiência directa do divino e tal­
vez não sinta a presença imediata do divino quando participa na comunhão.
Sentir a presença imediata do divino é ter uma experiência particular que se
aceita como experiência directa do divino. Pode-se acreditar na presença do
divino sem ter experiência directa do divino. Em terceiro lugar, ao carac­
terizar uma experiência religiosa como uma experiência em que se sente a
presença imediata do divino, delimitamos de duas maneiras importantes a
ideia de experiência religiosa. Não tomamos em consideração as experiên­
cias religiosas que não têm por objecto o divino — por exemplo, sentir-se
arrependido por ter pecado — e excluímos experiências do divino, se as há,
em que não se tem consciência do objecto da experiência como divino. Talvez
uma pessoa por vezes tenha experiência de Deus mas sem sentir a presença de
Deus, porque não consegue reconhecer que é Deus quem lhe aparece. Casos
como este dão-se na percepção sensorial comum. Alguém pode percepcio-
nar directamente uma nogueira mas não sente estar na presença de uma
nogueira porque essa pessoa pensa (erradamente) que está a ter experiên­
cia de um ácer. A pessoa pode até mais tarde afirmar (erradamente) que
nunca viu uma nogueira. Assim, também, não podemos excluir que alguém
percepcione realmente Deus sem sentir a presença de Deus, porque a pessoa

114
Experiência mística e religiosa

se engana acerca daquilo de que tem experiência. Se há tais experiências, não


pertencem à nossa caracterização do que é uma experiência religiosa. Em
quarto lugar, por «o divino» não entendo apenas o deus teísta. Porquanto
há muitas concepções do divino além do deus teísta. Por «o divino» entendo
seja o que for que um grupo religioso, incluindo grupos religiosos não teístas,
reconheça como divindade. Reconhecidamente, isto torna a nossa caracte­
rização da experiência religiosa um pouco vaga e imprecisa. Mas isto é ine­
vitável, dado o facto de haver diversas religiões com diversas concepções do
divino, algumas em si mesmas muito vagas e imprecisas. Finalmente, temos
de reconhecer que, ao afirmar que alguém teve uma experiência religiosa,
não estamos a ser tendenciosos quanto à questão da existência ou inexistên­
cia do divino de que a pessoa teve experiência. Pode-se sentir a presença de
um determinado objecto mesmo quando esse objecto não está efectivamente
presente para poder ser percepcionado. Por exemplo, podemos estar tranqui­
lamente sentados a uma secretária, a escrever, e, de súbito, sentir fortemente
u presença de outra pessoa na sala, voltando-nos então para descobrir que
ninguém lá está. Assim, o mero facto de se sentir a presença imediata de algo
(divino ou não) não implica em si a existência desse algo que está em causa.
Macbeth teve realmente uma experiência na qual sentiu a presença imediata
de um punhal, ainda que o punhal não existisse. Ao afirmar, portanto, que
Saulo teve uma experiência religiosa na estrada para Damasco deixamos em
aberto a questão de a experiência ter sido ilusória, como a experiência que
Macbeth teve do punhal, ou verídica, como quando, por exemplo, temos
experiência directa de algo que existe realmente, independentemente de
nós. A questão que temos em última instância de levantar, portanto, não é
a de as pessoas terem realmente ou não experiências religiosas — têm-nas
seguramente — mas a de ser ou não razoável pensar que as suas experiências
são verídicas e não ilusórias.
Até agora caracterizámos a experiência religiosa de modo a incluir quer
experiências em que se sente a presença do divino como distinto do eu quer
experiências em que se sente a união entre o eu e uma presença divina. Pode-

115
introdução à Filosofia da Religião

mos considerar as do primeiro género como experiências religiosas não


místicas; as do segundo género deixam-se caracterizar melhor como expe­
riências religiosas místicas. O nosso objectivo aqui é olhar para as experiên­
cias religiosas, tanto não místicas como místicas, tendo em vista determinar
em que medida a sua existência dá uma base racional para a crença em Deus
(ou em alguma realidade divina).

EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS NÃO MÍSTICAS

As experiências em que se sente a presença imediata de um ser divino podem


ter conteúdo visual e auditivo. A experiência religiosa de Saulo, por exemplo,
tinha conteúdo sensorial — uma luz ofuscante, uma voz, e por aí em diante.
Mas outras experiências do divino não têm conteúdo sensorial. Eis o relato
de uma experiência semelhante:

«De uma só vez senti [...] a presença de Deus — falo nisto tal como se deu na
minha consciência — como se a sua bondade e o seu poder me penetrassem por
completo [...] Então, lentamente, o êxtase abandonou o meu coração; isto é, senti
que Deus retirara a comunhão que concedera [...] Julgo por bem acrescentar que
neste meu êxtase Deus não tinha forma, cor, odor, nem sabor; além disso, que o
sentimento da sua presença não era acompanhado de qualquer localização deter­
minada [...] No fundo, a expressão mais adequada para transmitir o que senti é
esta: Deus estava presente, embora invisível; não se deixava apreender por qual­
quer dos meus sentidos, no entanto a minha consciência percepcionava-o.» 42

Depara-se-nos a questão de a existência de experiências como esta nos


dar ou não (pelo menos aos que as têm) uma boa razão para acreditar que
Deus existe (ou algum género de ser divino). Inicialmente, pode haver a ten-

42. William James, The Varieties o/Reíigiotis Experience (1902) (Nova Iorque: Tire Modern
Library, 1936), pp. 67-68.

116
Experiência mística e religiosa

■ tação de pensar que não o fazem, com o pretexto de os relatos de experiên­


cias religiosas não serem talvez senão relatos de certos sentimentos (alegria,
êxtase, etc.) que de vez em quando se apoderam de pessoas que já acredi­
tam em Deus e talvez desejem demasiadamente sentir-se escolhidas para
ter uma aparição especial do divino. Contra essa objecção, contudo, note-
-se que alguns dos que relatam ter tido experiências religiosas do tipo não
místico estão profundamente cientes da diferença entre ter experiência dos
próprios sentimentos (alegria, tristeza, serenidade, etc.) e experiências que
envolvem sentir a presença de outro ser. Estão também cientes de que desejar
uma certa experiência pode levar a confusões entre essa experiência e outra
qualquer. A menos que tenhamos uma razão muito forte para não o fazer,
devemos aceitar que os seus relatos são sinceros, esforços cuidadosos para
exprimir o conteúdo das suas experiências. E esses não são principalmente
relatos de estados psicológicos subjectivos; são relatos de encontros com o
que se entende ser um ser divino com existência independente.
Contudo, mesmo reconhecendo que não é justo descrever as experiên­
cias apenas como relatos de sentimentos pessoais, por que razão se deve­
ria pensar serem percepções verídicas daquilo de que aparentam ser uma
experiência? Não se faz justiça à experiência que Macbeth tem de um punhal
descrevendo-a como a experiência de um certo sentimento por Macbeth;
parece uma experiência de um objecto distinto do próprio Macbeth. Mas a
experiência era uma alucinação. Por que razão não pensar que são alucina­
ções todas as experiências em que se sente a presença imediata de Deus (ou
de alguma figura divina) ? A resposta dada por quem pensa que as experiên­
cias religiosas constituem uma boa razão para acreditar que Deus existe é a
de que só as devemos rejeitar como ilusórias se tivermos uma razão especial
para pensar que o são. E na ausência dessas razões especiais, é racional vê-las
como provavelmente verídicas. Será útil examinar com algum detalhe esta
linha de raciocínio.
Se uma pessoa tem uma experiência que considera ser de um objecto
particular, será o facto de ter essa experiência uma boa razão para acreditar

117
Introdução à Filosofia da Religião

na existência desse objecto particular? Intuitivamente, a nossa resposta é


«não». Inclinamo-nos a responder «não» porque todos podemos pensar
em experiências que são aparentemente de um objecto particular, quando
na verdade tal objecto não existe. Considere-se dois exemplos: O leitor entra
numa sala e tem uma experiência visual que considera ser a percepção de
uma parede vermelha. Sem o leitor saber, há lâmpadas vermelhas apontadas
para a parede branca para a qual o leitor olha, fazendo-a parecer vermelha.
Aqui está o leitor a ter experiência de uma parede que existe realmente e é
branca, mas não há qualquer parede vermelha para o leitor percepdonar.
Como pode então o facto de o leitor ter uma experiência, que aparenta cla­
ramente ser a percepção de uma parede vermelha, ser uma boa razão para
pensar que existe realmente uma parede vermelha? Mais uma vez, sem o
leitor saber, alguém deita um poderoso alucinogénio no seu café, fazendo-o
ter uma experiência que o leitor entende ser a percepção de uma enorme ser­
pente enrolada, frente à cadeira onde está sentado. Ao contrário do primeiro
exemplo (há uma parede, só que não é vermelha), não há qualquer serpente
que o leitor esteja a ver. Outras pessoas na sala, que não têm qualquer motivo
para o enganar, garantem-lhe que não há qualquer serpente na sala. A expe­
riência que o leitor tem da serpente é inteiramente ilusória. Portanto, como
pode o facto de o leitor ter uma experiência, que aparenta claramente ser a
percepção de uma serpente enrolada, ser uma boa razão para pensar que a
serpente enrolada existe?
Uma experiência é uma boa razão para acreditar que uma ahrmação é
verdadeira se essa experiência justificar racionalmente a crença na afirmação,
não havendo razões para pensar de outro modo. Razões para pensar de
outro modo são: A) razões para pensar que a afirmação é falsa ou B) razões
para pensar que, dadas as circunstâncias em que ocorre, a experiência não
é suficientemente indicativa da verdade da afirmação. Considere-se nova­
mente o segundo exemplo. Como sabemos que as outras pessoas que estão
na sala irão ver as coisas físicas realmente existentes (incluindo as serpentes),
se estas lá estiverem realmente, o leitor passa a ter uma razão de tipo A para

118
Experiência mística e religiosa

pensar de outro modo. Isto é, quando outros, que estão em condições de ver,
afirmam que não há qualquer serpente, o leitor passa a ter uma razão para
pensar que a serpente não existe realmente. No nosso primeiro exemplo, se
supusermos que tudo o que o leitor sabe é que há lâmpadas vermelhas apon­
tadas para a parede e que tais lâmpadas fariam a parede parecer vermelha,
mesmo sendo branca, a nossa razão para pensar de outro modo não é em si
uma razão para pensar que não há qualquer parede vermelha. É uma razão de
tipo B. Diz-nos que, seja a parede vermelha ou não, dadas as circunstâncias
{há lâmpadas vermelhas apontadas para a parede) a experiência do leitor
não é suficientemente indicativa da verdade de que a parede é vermelha.
Porquanto o leitor sabe agora que podia ter aquela experiência mesmo sendo
a parede branca.
Vimos que temos de distinguir entre o facto de uma experiência ser uma
boa razão a favor de uma afirmação e o facto de essa experiência justificar a
afirmação independentemente de tudo o mais que sabemos. Quem pensa
que ter uma experiência, supostamente de um objecto particular, é uma boa
razão para pensar que esse objecto particular existe reconhece que podemos
conhecer ou descobrir razões do tipo A ou do tipo B para pensar de outro
modo. Insiste apenas que na ausência de tais razões refutantes, quem tem tal
experiência tem justificação racional para acreditar que o objecto particular
existe. Richard Swinburne argumentou estar aqui em causa um princípio
fundamental de racionalidade, a que chama «princípio da credulidade».43
Segimdo este princípio, se uma pessoa tem uma experiência que parece ser de
X, então, a menos que haja uma razão para pensar de outro modo, é racional
acreditar que %existe. Concedendo este princípio, parece arbitrário recusar
a sua aplicação a experiências religiosas — experiências em que se sente a
presença imediata do divino. Portanto, a menos que haja uma razão para pôr
em causa estas experiências, parece racional acreditar que Deus ou algum
ser divino existe.

43, Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: The Clarendon Press, 1979), p, 254.

119
Introdução à Filosofia da Religião

Antes de nos voltarmos para a consideração das experiências religio­


sas místicas, temos de assinalar duas diftculdades na perspectiva de que o
princípio de credulidade torna racional aceitarmos as experiências religiosas
não místicas como verídicas. A primeira dificuldade é que o princípio de
credulidade pressupõe que temos uma ideia das razões que poderemos ter
para questionar as nossas experiências e que temos maneira de saber se estas
razões estão ou não presentes. Considere-se mais uma vez o nosso exemplo
da experiência em que o leitor supõe percepcionar uma enorme serpente
enrolada. Como outros objectos físicos que compõem o mundo que percep-
cionamos com os nossos cinco sentidos, as serpentes são objectos públicos,
observáveis por outros que satisfazem certas condições. Isto é, podemos pre­
ver que as pessoas com visão saudável observarão uma serpente (se ali estiver
alguma) desde que haja boa iluminação e as pessoas olhem na direcção certa.
É porque os objectos físicos estão sujeitos a tais previsões que podemos com­
preender as eventuais razões para questionar uma experiência que parece
a percepção de uma serpente; e podemos amiúde saber se tais razões estão
presentes. No caso de seres divinos, contudo, as coisas são bastante diferen­
tes. Supõe-se que depende inteiramente do arbítrio de Deus revelar ou não a
sua presença a um ser humano. Se Deus o faz, pode ou não dar-se a conhecer
a outros que estão numa situação semelhante. Isto significa que é bastante
difícil descobrir razões para pensar que a experiência religiosa não mística
de alguém é ilusória. Mas uma vez que o princípio de credulidade supõe que
compreendemos as eventuais razões para pôr uma experiência em causa, há
dúvidas sobre a justeza de aplicar o princípio a experiências cujos sujeitos
as tomam por percepções da presença de um ser divino. É óbvio que, sendo
Deus um ser perfeitamente bom, não podemos, a partir desse facto apenas,
encontrar uma razão para pensar que uma experiência que aparentemente
se tem de Deus é ilusória. Suponha-se que alguém relata uma experiência,
que interpreta como percepção de uma ordem de Deus, para que mate quem
quer que procure sinceramente viver uma vida moral e piedosa. Podemos
estar certos de que Deus não revelou essa mensagem e ter assim uma razão

120
Experiência mística e religiosa

para pensar que a experiência é ilusória. Restam dúvidas, contudo, sobre


haver ou não um leque adequado de razões para pôr em causa a aplicação do
princípio de credulidade às experiências religiosas. Assim, sabendo nós que
um pressuposto do princípio de credulidade não foi adequadamente satis-
feito pelas experiências religiosas, é no mínimo duvidoso que o princípio nos
dê justificação para considerar as experiências religiosas como percepções
genuínas da realidade.
Suponhamos que alguém que não teve experiências religiosas examina
vários relatos de pessoas que as desfrutaram. Um aspecto saliente destas
experiências é estarem na sua maioria inseridas numa ou noutra de uma
pluralidade de tradições religiosas, que não podem ser todas verdadeiras.
Por exemplo, a experiência de Saulo na estrada para Damasco está inserida
no cristianismo enquanto experiência de Jesus como ser divino. Nenhuma
experiência semelhante faz parte do judaísmo ou do islão. Na verdade, nestas
tradições religiosas, Jesus não é sequer um ser divino. As experiências que
se tem de Alá no islamismo ou de Deus no judaísmo não são experiências de
um ser divino que seja uma trindade de pessoas, como é o Deus cristão. No
hinduísmo pode-se ter experiência de Crixna como ser divino, mas não de
Jesus. Além disso, no hinduísmo há também uma vertente em que se tem
experiência da presença divina, Brama, como algo que não é uma pessoa.
Parece improvável que todas estas experiências religiosas possam ser per­
cepções verídicas de uma presença divina. Estas experiências impregnam e
sustentam tradições religiosas rivais, mutuamente contraditórias. Tomando
consciência disto, que perspectiva deve adoptar quem não teve quaisquer
experiências religiosas? Se o princípio da credulidade funciona para uma
qualquer, funcionará igualmente para todas. Mas dificilmente poderão todas
elas ser percepções verídicas de uma presença divina. Confrontada com esta
situação, parece racional que esta pessoa não aceite qualquer destas experiên­
cias religiosas como verídicas. Assim, mesmo que concordemos em con­
tinuar a aplicar o princípio de credulidade às experiências religiosas, pode
perfeitamente acontecer que a pessoa que não teve qualquer experiência

121
Introdução à Filosofía da Religião

religiosa tenha justificação racional para não aceitar tais experiências como
percepções verídicas da realidade. Pois o facto de estas experiências susten­
tarem tradições religiosas conflituantes nas quais estão inseridas pode dar a
essa pessoa uma razão para não aceitar como verídica qualquer experiência
religiosa particular,

EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS MÍSTICAS

Os estudantes do misticismo normalmente distinguem dois tipos gerais de


experiência religiosa mística: a extrovertida e a introvertida. A extrovertida
olha para fora, através dos sentidos, para o mundo à nossa volta, e descobre aí
a realidade divina. A introvertida volta-se para dentro e encontra a realidade
divina na parte mais profunda do eu. A última é a mais importante dos dois
tipos de experiência mística, mas será útil examinar ambos com algum detalhe.

Experiência extrovertida

Na maneira extrovertida, os místicos usam os sentidos para percepcionar o


mesmo mundo de árvores, outeiros, riachos e ribeiros que todos percepcio-
namos. Mas, numa experiência mística, vêem estes objectos triviais transfi­
gurados e transformados — vêem uma essência interna em todas estas coisas
e podem sentir a unidade entre o seu eu mais profundo e esta essência interna,
que parece a mesma nos diferentes objectos percepcionados. W.T. Stace relata
uma experiência deste tipo, a experiência de um americano a quem Stace
chama «N.M.». A experiência de N.M. ocorreu enquanto olhava para o pátio
de um antigo prédio de apartamentos.

«O s edifícios eram decrépitos e feios, o chão estava coberto de tábuas, trapos e


escombros. Subitamente, todos os objectos no meu campo de visão adquiriram
um tipo curioso e intenso de existência própria; isto é, tudo parecia ter um « in te­
rior» — existir como eu existia, tendo interioridade, um tipo de vida individual,

122
Experiência mística e religiosa

e todos os objectos observados deste ponto de vista pareciam extremamente


belos. Estava lá um gato, com a cabeça levantada, observando indolentemente
uma vespa que se movia sem se mover mesmo acima da sua cabeça. Tudo estava
prem ente da vida que era a mesma no gato, na vespa, nas garrafas partidas, e
apenas se manifestava diferentemente nestes indivíduos (que não deixavam por
isso de ser indivíduos, ainda assim). Todas as coisas pareciam brilhar com uma
luz que vinha do seu interior.» 44

Stace relata que em conversa com N.M. este llie disse que não só todos
aqueles objectos externos pareciam partilhar uma e a mesma vida, mas que
a vida partilhada por esses objectos era também a mesma vida que tinha e
tem em si próprio. A explicação de N.M. continua:

«Senti uma completa certeza de que naquele momento via as coisas como real­
mente eram e ftquei cheio de dor ao me aperceber da situação real dos seres
humanos, vivendo continuamente no meio de tudo isto sem ter consciência.
Esta ideia apoderou-se do meu espírito e chorei. Mas chorei também pelas coisas
em si, que nunca vimos e que na nossa ignorância tornamos feias, e vi que toda
a fealdade era uma chaga da vida [...] Ganirei consciência do tempo outra vez e
a impressão de entrar no tempo foi tão nítida como se tivesse entrado na água,
passando de um elemento mais rarefeito para um mais denso.» 45

Diversos místicos de várias tradições religiosas têm relatado experiências


semelhantes à de N.M. Por exemplo, Stace sugere que a experiência de N.M.
é semelhante à de Eckhart:

«Aqui (isto é, na experiência) todas as folhas de erva, a madeira e a pedra,


todas as coisas são Unas [.,.] Quando está um homem no mero entendimento?

44. Stace, Mysticism and Philosophy, pp. 71-72.


45. ibid.

123
Introdução à Filosoña da Religião

Quando vê cada coisa separada das outras. E quando está acim a do en ten d i­
m ento? Quando tudo vê em tudo; então, ergue-se o hom em acim a do m ero
entendim ento. » 46

Reflectando na experiência mística do tipo extrovertido, podemos enu­


merar os seguintes aspectos como características da experiência:

1. Olha para o exterior, por meio dos sentidos.


2. Vê a essência interna nas coisas, uma essência que parece viva, bela e a
mesma em todas as coisas.
3. Sensação de união entre o eu mais profundo e esta essência interior.
4. Sentimento de ter experiência do divino.
5. Sensação de realidade, de ver as coisas como realmente são.
6. Sensação de paz e felicidade,
7. Intemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo durante
a experiência.

Experiência introvertida

Na experiência mística introvertida olha-se para dentro e descobre-se o


divino no âmago da alma. Não se trata simplesmente de pensar em si pró­
prio. Segundo os místicos, tem de se aceder à parte mais profunda e sombria
de si próprio, o que é extraordinariamente difícil de fazer. Primeiro há que
se desligar do estado normal de consciência. O que é o estado de normal de
consciência? Nesse estado, pode-se estar ciente de uma série de conteúdos de
consciência: sensações, desejos, sentimentos, imagens, quereres, memórias,
pensamentos. Desde que se esteja ocupado com qualquer destes — mesmo
pensamentos nobres acerca de Deus — não se pode aceder à parte mais pro­
funda do eu, onde nada há senão silêncio. Todos os grandes místicos concor-

46. Ibid, p. 63.

124
fci

Experiência mística e religiosa

dam a este respeito. Tem de se pôr de lado o estado normal de consciência;


tem de se esvaziar a consciência de todos estes conteúdos. Eckhart, usando
a expressão «o nascimento de Cristo na alma» para a experiência mística do
tipo introvertido, sublinha a importância e a dificuldade de se desligar do
estado normal de consciência.

«O nascim ento é im possível sem um com pleto afastam ento da sensação [...]
E exige-se uma grande força para reprimir todos os agentes da alma e fazê-los
deixar de funcionar. Congregá-los exige muita força, e sem essa força não pode
ser fe ito .» 47

Talvez reconhecendo a extrema dificuldade de alcançar o desligamento,


os místicos desenvolveram vários «exercícios» para ajudar a levar a cabo
esta tarefa. Há as técnicas de ioga da índia, por exemplo, em que se procura
obter o domínio sobre a vida consciente através de exercícios de respiração.
E os místicos cristãos nos mosteiros católicos desenvolveram a técnica da
«oração», não no sentido usual de pedir coisas a Deus, mas no sentido da
meditação, praticada com a intenção de remover obstáculos à obtenção da
união com Deus.
Suponha-se que de algum modo se atingia o desligamento, afastando da
consciência a actividade dos sentidos e do intelecto. O que aconteceria? Em
vez de perder a consciência ou adormecer, pode-se ter experiência do âmago
da alma, que se esvaziou de todo o conteúdo. Os místicos descrevem esta
experiência como uma experiência de vazio, uma sensação de nada. Usa-se
metáforas como «escuridão», «um ermo», «o deserto» para caracterizar
esta experiência do vazio. Os místicos insistem na ideia de que só à medida
que o eu perde consciência de si próprio e de outras coisas é que pode hear
vazio e preparar-se para a entrada de Deus. Como Eckhart observa:

47. Blakney, Meister Eckhart, p. 109.

125
Introdução à Filosofia da Religião

«A palavra genuína da eternidade p ro n u n cia-se apenas nessa eternidade do


homem que é ele próprio um deserto, alienado de si e de toda a multiplicidade. » 48

De igual modo, o místico espanhol São João da Cruz (1542-1591) afirma:

«Agora a alma tem de se esvaziar de todas estas formas, ñguras e imagens imagi­
nadas, e tem de permanecer na escuridão a respeito destes sentidos para alcançar
a Divina U n ião.»49

Aparentemente, se Deus entra realmente na alma, quando esta alcança


o seu estado total de vazio e escuridão, tem-se a sensação de se encontrar a
realidade última, tem-se uma experiência de unidade com esta realidade e
uma sensação total de paz e felicidade. Na tradição mística católica, chama-
-se «visão beatífica» a esta experiência, e, por muita diñculdade que os que
a alcançaram tenham em descrevê-la, é sobremaneira evidente que para os
místicos esta experiência é uma pérola de grande valor. Para eles, transcende
tudo o mais que a vida na Terra tem para oferecer.
Reflectindo na experiência mística do tipo introvertido, podemos enu­
merar os seguintes aspectos característicos dessa experiência:

1. Um estado de consciência desprovido dos seus conteúdos comuns: sen­


sações, imagens, pensamentos, desejos, e por aí em diante.
2. Uma experiência de unidade absoluta, sem distinções ou divisões.
3. Sensação de realidade, de se ter experiência da realidade última.
4. Sentimento de que se tem experiência do divino.
5. Sensação total de paz e felicidade.
6. íntemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo durante
a experiência.

48. Jbíd, p. 1 2 0 .
49. St, John of the Cross, The Dark Night of the Soul, trad, e org. K.F. Reinhardt (Nova
Iorque; Ungar Publishing Co., 1957), p. 51.

126
Experiência mística e religiosa

Tendo caracterizado a experiência religiosa mística, chegamos agora à questão


de tais experiências darem ou não uma base racional para acreditar na reali­
dade do divino. Ao discutir esta questão será útil limitarmo-nos ao género
principal de experiências religiosas místicas, a experiência mística introvertida.

A TESE DA UNANIMIDADE

Uma dificuldade que encontrámos nas experiências religiosas comuns é


serem aparentemente de seres divinos muito diferentes — Jesus, Crixna, Alá,
Brama, e outros. Considerámo-la uma dificuldade porque as experiências
estão inseridas e apoiam tradições religiosas rivais que não podem ser todas
verdadeiras. Até certo ponto, portanto, aceitar a veracidade de uma des­
tas experiências é levantar dúvidas acerca das experiências comuns de uma
tradição religiosa rival. Ao invés, muitos filósofos e pensadores religiosos
argumentaram que as experiências místico-religiosas do tipo introvertido
são fundamentalmente as mesmas, afirmação a que por vezes se chama «tese
da unanimidade». William James exprimiu-a do seguinte modo:

«A ultrapassagem de todas as barreiras usuais entre o individual e o absoluto é a


grande façanha mística. Nos estados místicos unimo-nos ao absoluto e ganhamos
consciência dessa unidade. Esta é a perene e triunfante tradição m ística, dificil­
m ente alterada pelas diferenças de clim a ou credo. No hinduísmo, no neopla­
tonismo, no sufismo, no m isticism o cristão, no w hitm anism o, encontram os a
mesma nota recorrente, de modo que há uma unanimidade eterna a propósito das
elocuções místicas, que devia fazer o critico parar e pensar, e faz os místicos clás­
sicos não terem, como se costuma dizer, data de nascimento nem terra natal. » 50

Muitos comentadores da experiência mística — Stace, Aldous Huxley,


Bertrand Russell e C.D. Broad, para nomear apenas alguns — concordam com

50. James, The Varieties of Religious Experience, p. 410.

127
introdução à Filosofia da Religião

James em que há, entre os místicos de diversas culturas e tradições religiosas,


uma unanimidade, parcial ou total, acerca do que se encontra na experiência
mística. E também concordam que a unanimidade entre os místicos é um
aspecto a favor da perspectiva de que a experiência mística é uma percepção
verídica da realidade, e que, portanto, pode dar uma base racional para a
crença na realidade do divino.
Por que razão haveria o facto — supondo para já que se trata de um facto
— de a tese da unanimidade ser verdadeira pesar a favor do místico, sendo
uma razão, talvez, para ajuizar a sua experiência como verídica e não ilusória?
Suponha-se que, ao leccionar um curso de filosofia da religião, tenho subita­
mente uma experiência na qual uma voz se me dirige vinda algures de cima e
diz: «Rowe, a CIA tem-te debaixo de olho». Consigo de algum modo terminar
a aula, mas imediatamente a seguir relato a minha experiência bastante extra­
ordinária a alguns colegas na universidade. Suponha-se que se empenham em
determinar, o melhor que podem, se a minha experiência foi verídica — isto é,
se houve realmente uma voz independente de mim, transmitindo a mensagem
que ouvi — ou se a minha experiência foi ilusória, sendo a voz uma projecção
de alguma perturbação interna em mim, como o punhal de que Macbeth teve
experiência. Seria bastante natural perguntarem aos estudantes que estavam
na minha aula no momento em que tive a experiência, no intuito de descobrir
se algum deles também ouviu a voz. É claro que, se um número suficiente
deles ouviu uma voz dizer mais ou menos aquilo que relatei, isto pesaria a
favor de considerar verídica a minha experiência; ao passo que, se nenhum
deles ouviu a voz, os meus colegas teriam alguma razão para entender que a
minha experiência foi ilusória, talvez devido a alguma forma de paranóia da
minha parte. Pelo que o facto de algumas pessoas terem a mesma experiência
pesa normalmente a favor da sua veracidade. Claro que o facto de alguém em
Chicago não ter ouvido a voz que descrevi não é relevante porque essa pessoa
não tinha maneira (não estava na sala de aula) de ouvir a voz. Ião-pouco é rele­
vante o facto de a voz não ter sido ouvida por alguns estudantes que estavam
na sala de aula mas tinham adormecido. Pois embora pudessem ouvir a voz,

128
Experiência mística e religiosa

não satisfaziam outra condição necessária (estar acordado) para se ouvir a voz,
se é que estava realmente ali uma voz para se fazer ouvir.
Voltando à experiência mística, podemos agora ver a importância da
tese da unanimidade para a questão de a experiência do místico ser verídica
ou ilusória. O facto de vários indivíduos terem essencialmente a mesma
experiência é relevante para a questão de a experiência ser ou não verídica
desde que seja razoável pensar que há condições tais que, quando satis­
feitas, uma pessoa teria a experiência se esta fosse verídica e não a teria
se fosse ilusória. Os místicos parecem de facto empenhar-se em satisfazer
certas condições (o desligamento, por exemplo) e têm amiúde a experiência
quando se satisfaz estas condições. Mas não há maneira clara ou segura de
saber se alguém satisfez realmente as condições exigidas pela experiência
mística. Além disso, pode acontecer que o objecto de experiência, se é um
ser divino, possa ou não optar por se revelar mesmo quando se satisfaz as
condições necessárias. Por estas razões, é difícil saber em que circunstân­
cias se deve pôr em causa a veracidade da experiência mística pelo facto de
alguém se empenhar em satisfazer as condições para ter a experiência sem o
conseguir. Não obstante, parece razoável ver o facto de os místicos em toda
a parte terem a mesma experiência como um ponto a favor da veracidade
dessa experiência.
Mas será a tese da unanimidade verdadeira? Será que os místicos em
toda a parte têm basicamente a mesma experiência? Se pensamos em indi­
víduos que gozam de experiências do tipo introvertido, talvez pareça que a
resposta tem de ser «sim». Pois sendo experiências místicas introvertidas,
terão as características de i a 6 , em cujos termos se caracterizou a expe­
riência mística introvertida. Temos de nos lembrar, contudo, que o item
4 menciona o sentido de que se encontra «o divino», e que permitimos
intencionalmente que a expressão «o divino» substitua seja o que for que
qualquer grupo religioso reconheça como tal. Assim, quando Eckhart des­
creve a sua experiência como aquela em que o eu se perde na divindade, a
natureza divina comum às três pessoas da trindade — o Deus Pai, o Deus

129
Introdução à Filosofia da Religião

Filho e o Deus Espírito Santo — e quando um místico hindu descreve as suas


experiências como união com Brama, o eu universal, temos duas concep­
ções bastante diferentes do divino, mas ambas as experiências são exemplos
de experiencia mística introvertida.
, Como os místicos de diferentes tradições religiosas — crista, judaica,
islâmica, hindu e outras — usam concepções bastante diferentes do divino
para caracterizar a realidade que encontram nas suas respectivas experiên­
cias místicas, por que deveremos acreditar que todos gozam da mesma expe­
riencia? Nalgumas formas de hinduísmo concebe-se o divino como realidade
impessoal, ao passo que quando Santa Teresa caracteriza a sua experiên­
cia como «união com Deus» usa a concepção cristã do divino como um ser
supremo, afectuoso, pessoal. Confrontado com estes factos, como pode o
defensor da tese da unanimidade continuar a afirmar que os místicos cris­
tãos, judeus, islâmicos, hindus e budistas têm todos precisamente a mesma
experiência? Pode-se fazê-lo distinguindo entre a experiência e a sua inter­
pretação e sugerindo que as diferenças que aparecem nas descrições que
os místicos dão da realidade que encontram se devem em larga medida a
diferentes interpretações da mesma experiência e não a descrições directas
de experiências diferentes. No seu proveitoso livro, The Teachings of the
Mystics [Os Ensinamentos dos Místicos], Stace introduz a distinção do
seguinte modo:

«Numa noite escura, ao relento, avista-se algo que emite um brilho branco. Uma
pessoa poderá pensar que é um fantasma. Uma segunda pessoa poderá pensar
que se trata de um lençol estendido na corda da roupa. Uma terceira pessoa
poderá supor que se trata de uma pedra pintada de branco. Aqui tem os uma
única experiência com três interpretações diferentes. A experiência é genuína,
mas as interpretações podem ser verdadeiras ou falsas. Para com preender seja
o que for do m isticism o, é essencial que façam os uma distinção sim ilar entre
uma experiência m ística e as interpretações que dela se pode fazer quer pelos
próprios místicos quer pelos que o não são. Por exemplo, a mesma experiência

130
Experiência mística e religiosa

mística pode ser interpretada por um cristão em termos de crenças cristãs e por
um budista em termos de crenças budistas.»51

Munidos desta distinção, Stace, entre outros, entendeu a experiência


do místico essencialniente como um encontro com uma realidade una e des­
provida de distinções, acompanhada de sentimentos de paz sublime, graça
e alegria. A identificação que o místico faz entre a realidade que encontra e
uma forma do divino — Deus, o Brama, o eu universal, o vazio ou o nirvana
— não é vista como parte da própria experiência mas como interpretação
da experiência segundo as doutrinas da tradição religiosa a que o místico
pertence. E é ao insistir nesta perspectiva que Stace e outros estudantes do
misticismo têm conseguido defender a tese da unanimidade contra a objecção
que ponderámos.
Suponha-se que concedemos que os místicos de diversas tradições reli­
giosas gozam a bem dizer da mesma experiência, Stace, Broad, Huxley, Russell
e outros que de facto o concederam observaram também que a unanimidade
não é uma prova de que a experiência mística é verídica. Stace, por exemplo,
nota que todas as pessoas que tomam santonina são unanimes na afirmação
de que as coisas brancas parecem amarelas, e Broad observa: «As pessoas
de todas as raças que, bebem habitualmente quantidades excessivas de álcool
acabam por ter experiências sensoriais em que parecem ver serpentes ou ratos
rastejar nos seus quartos ou camas» .52 Mas nem o exemplo de Stace nem o
de Broad são casos de percepção verídica. Não obstante, a unanimidade dos
místicos a respeito da sua experiência continua a ser um aspecto a favor da
sua veracidade. Como decidiremos então o assunto?

Experiência mística: verídica ou ilusória?

51. WT. Stace, The Teachings of the Mystics (Nova Iorque: New American Library, I960),
p. 10.
:52. C.D. Broad, «Arguments for the Existence of God, II» The Journal of Theological
Studies XL (1939), p. 161.

131
Introdução à Filosofia da Religião

Ao ajuizar se uma experiência é verídica ou ilusória também temos em conta


o estado das pessoas que têm a experiência. O uso de santonina e o consumo
excessivo de álcool provocam estados anormais nas pessoas que os conso­
mem, estados que causam experiências distorcidas e ilusórias do mundo.
E é precisamente por esta razão que Russell defende que se deve considerar ilu­
sória a experiência do místico. Pois, ao contrário do cientista, que apenas exige
de nós a capacidade normal de visão e outras percepções, o místico, argu­
menta Russell, «exige mudanças no observador, através do jejum, de exer­
cícios de respiração e de uma cuidadosa abstenção da observação externa» ,53
O místico, como o bêbado, produz em si próprio estados corporais e mentais
anómalos. Russell argumenta que tais estados levam a percepções inexactas
e anómalas que muito provavelmente são ilusórias. Com a sua perspicácia e
estilo característicos, Russell conclui: «De um ponto de vista científico, não
podemos fazer qualquer distinção entre o homem que come pouco e vê o Céu
e o homem que bebe muito e vê serpentes. Cada um se encontra numa condi­
ção física anormal e portanto tem percepções anormais» .54 Embora o estado
sentimental de paz e felicidade do místico seja algo que Russell valoriza muito,
a experiência do místico, na medida em que pretende ser um encontro com a
realidade objectiva, é rejeitada por Russell como muito provavelmente ilusória.
Penso que há um pressuposto tácito na rejeição da experiência mística
por Russell, um pressuposto que tem de ser posto em causa. Sabemos acerca
dos estados corpóreos e mentais anómalos que causam percepções distorcidas
e ilusórias do mundo físico, o mundo da nossa experiência comum. É neces­
sário recordar, contudo, que o místico añrma percepcionar um domínio que
transcende o mundo da experiência comum, um reino espiritual inteiramente
diferente do mundo físico. O pressuposto tácito no argumento de Russell é o de
que os estados corpóreos e mentais que interferem com percepções fidedignas
do mundo físico interferem também com percepções fidedignas de um mundo

53. Bertrand Russell, Religion and Science (Londres: Oxford University Press, 1935), p. 187.
54. Ibid, p. 188.

132
Experiência mística e religiosa

espiritual além do físico, se é que há um mundo espiritual para ser percepcio-


nado. Talvez este pressuposto seja razoável, mas é certo que a sua verdade não
é óbvia. De facto, pode haver razões para pensar que o exacto contrário deste
pressuposto é muito provavelmente verdadeiro. Como escreve Broad:

«Suponha-se por momentos que há um aspecto do mundo que permanece intei­


ram ente fora do alcance das pessoas comuns na vida quotidiana. Parece então
m uito provável que um certo grau de anormalidade física e m ental seja uma
condição necessária para nos libertarmos suficientem ente dos objectos da per­
cepção sensorial comum, de modo a contactar cognitivamente com este aspecto
da realidade. Portanto, o facto de as pessoas que afirmam este tipo peculiar de
cognição exibirem geralmente certas anormalidades físicas e mentais é precisa­
mente o que seria de esperar se as suas afirmações fossem verdadeiras. Talvez seja
preciso ser um pouco «avariado» para se ter acesso a fendas por onde espreitar
o mundo supra - sen sorial.»55

Embora seja um céptico religioso, Broad argumenta vigorosamente a


favor da perspectiva de que as experiências místicas são muito provavelmente
verídicas. Broad resume assim a sua posição:

«P or fim, chego ao argum ento a favor da existência de Deus que se baseia na


ocorrência de experiências específicamente místicas e religiosas. Estou disposto
a admitir que tais experiências ocorrem entre pessoas de diferentes raças e tradi­
ções sociais, e que ocorreram em todos os períodos da história. Estou disposto a
admitir que, embora as interpretações que delas se tem feito difiram ainda mais,
há provavelmente certas características comuns a todas e que bastam para as
distinguir de todos os outros tipos de experiência. Consequentemente, penso ser
provável que na experiência religiosa e mística os homens entrem em contacto

55, Broad, «Arguments for the Existence of God, II» , p. 164.

133
Introdução à Filosofia da Religião

cora uma realidade, ou aspecto da realidade, com o qual não contactam de outra
m aneira.»56

Face ao facto, já considerado, de a unanimidade não mostrar por si a


veracidade de uma experiência, e face ao facto de, na passagem citada, Broad
não mencionar qualquer argumento, além da unanimidade, favorável à sua
perspectiva positiva da experiência mística, temos de perguntar o que leva
Broad a avaliá-la desta maneira. As suas razões, expressas como argumento,:
são as seguintes:

1. Há um acordo considerável entre os místicos no que diz respeito à rea­


lidade de que têm experiência.
2. Quando há um acordo considerável entre observadores acerca daquilo
de que entendem ter experiência, é razoável concluir que as suas expe­
riências são verídicas, a menos que haja uma razão positiva para as con­
siderar ilusórias,
3. Não há razões sólidas para pensar que as experiências místicas são ilusórias.
Logo,
4. É razoável acreditar que as experiências místicas são verídicas.

A premissa crucial neste argumento é a número 2, que Broad argumenta ser


o postulado prático que usamos ao lidar com experiências não místicas .57
No caso da unanimidade entre bêbados que vêem ratos e serpentes, Broad
argumenta que temos de facto uma razão positiva para pensar que as suas
experiências são ilusórias:

56. C.D. Broad, Religion, Philosophy and Psychical Research (Londres; Routledge &
Kegan Paul, 1953), pp. 172 -173.
57. Broad, «Arguments for the Existence of God, 11», p. 163. O princípio de Broad é
similar ao princípio de credulidade discutido antes. A diferença principal é a de que
o princípio de Broad aceita uma experiência como verídica (a menos que haja razões
positivas para pensar que é ilusória) quando há uma série de experiências que con­
cordam com ela. O princípio de credulidade não requer experiências concordantes.

134
Experiência mística e religiosa

«Sendo este o género de coisas (ratos e serpentes) que podíamos ver se estives­
sem ali, o facto de não as podermos ver torna a sua ausência muito provável [...]
Parece assim razoável concluir que o acordo entre bêbados não é um sinal de
revelação mas de ilu são .»58

As afirmações que os místicos fazem, contudo, não entram em conflito


com o que percepcionamos no nosso estado normal de consciência. Pelo que
Broad conclui que dada a aplicação à experiência mística do postulado prá­
tico que aplicamos em tudo o mais, é razoável encarar a experiência mística
como verídica,
Embora Russell não discuta o postulado prático de Broad, nada nos seus
comentários acerca da experiência mística sugere que rejeitaria o postulado
ou se recusaria a aplicá-lo à experiência mística. O seu desacordo com Broad
diz respeito à premissa 3. Porquanto, como vimos, Russell pensa que o facto
de os místicos estarem amiúde em estados físicos ou mentais anómalos
quando têm as suas experiências místicas é uma razão positiva para pensar
que são ilusórias. Vimos, contudo, que Russell aceita um pressuposto dis­
cutível ao rejeitar a premissa 3, e considerámos as razões de Broad para se
recusar a aceitar tal pressuposto.
No que diz respeito ao desacordo entre Russell e Broad a propósito da
premissa 3, inclino-me para o lado de Broad. É razoável acreditar 1) que a
natureza da realidade que os místicos encontram talvez exigisse de nós algu­
mas mudanças significativas, para que a percepcionássemos, mudanças que
podiam bem interferir com observações exactas do mundo físico comum, e
2) que se a experiência mística fosse verídica causaria mudanças bastante
extraordinárias nos que desfrutaram da experiência. Pelo que o mero facto
de os místicos sofrerem determinadas alterações corporais e mentais não
constitui uma razão positiva para pensar que a experiência mística é ilusória.

58. Ibid,, p. 162.

135
Introdução à Filosofia da Religião

Um caminho intermédio

Deveremos concluir, com Broad, que a experiência mística é provavelmente


verídica? A minha reserva quanto a isto diz respeito à aplicação do postulado
prático de Broad à experiência mística. Quando nos confrontamos com um
grau razoável de unanimidade entre os que desfrutam de uma dada experiên­
cia há, penso, uma diferença importante entre 1} saber como proceder para
descobrir razões positivas, se as houver, para rejeitar a sua experiência como
ilusória e 2) não saber como proceder para descobrir tais razões positivas, se
as houver. Quando nos encontramos na situação 1, como é óbvio que nos
encontramos no caso das pessoas que têm experiência de ratos e serpentes e
que consomem habitualmente álcool em excesso, a aplicação do postulado
de Broad é sem dúvida justiñcada. Mas quando nos encontramos na situação
2, como os não místicos parecem estar relativamente à experiência mística,
talvez não se justifique a aplicação do postulado de Broad — caso em que a:
questão de a experiência mística ser verídica ou ilusória parece acabar em
algo como um impasse.
Há mais de cem anos, James concluiu o seu brilhante estudo do misti­
cismo retirando três conclusões:

1. Os estados místicos, quando bem desenvolvidos, normalmente são, com


todo o direito, fonte de autoridade absoluta para os indivíduos a quem
sobrevêm.
2. Deles não emana qualquer autoridade que impusesse a quem está de fora
o dever de aceitar acriticamente aquelas revelações.
3. Desfazem a autoridade da consciência não mística ou racionalista, ape­
nas com base na compreensão e nos sentidos. Mostram que aquela é
apenas um tipo de consciência.59

59. James, The Varieties of Religious Experience, p. 414.

136
Experiência mística e religiosa

É improvável que os estudos do misticismo ao longo dos anos que desde então
decorreram tenham invalidado estas conclusões. A terceira conclusão sim­
plesmente observa que as experiências místicas estabelecem que há um modo
de consciência além do estado normal de consciência. Ao contrário de Russell
{temos boas razões para pensar que as experiências místicas são ilusórias) e
de Broad {temos boas razões para pensar que as experiências místicas são
verídicas), James adopta um caminho intermédio na sua segunda conclusão,
sugerindo que nós, não místicos, não temos quaisquer boas razões para ver
as experiências místicas como verídicas nem boas razões para as considerar
ilusórias. A isto acrescenta, na sua primeira conclusão, que os próprios mís­
ticos não só vêem em geral as suas experiências como verídicas como têm
justificação para o fazer. Embora não tenhamos discutido a primeira conclu­
são de James, as considerações que apresentámos neste capítulo apontam de
facto nas direcções adoptadas nas suas segunda e terceira conclusões.
Discutimos duas diñculdades na perspectiva de que o princípio da credu­
lidade torna racional aceitar como verídicas experiências religiosas comuns.
Podemos agora resumir as nossas conclusões acerca da questão de as experiên­
cias religiosas místicas darem ou não uma base racional para acreditar na rea­
lidade do divino. Como concluímos, com James, que os não místicos não têm
de facto boas razões para aceitar a veracidade das experiências místicas, o facto
de haver experiências místicas não dá aos não místicos uma base racional para
acreditar na realidade do divino. Além disso, mesmo que os não místicos ali­
nhassem com Broad, considerando provável a veracidade das experiências
místicas, o facto de diferentes místicos usarem diferentes concepções do divino
para interpretar as suas respectivas experiências tornaria difícil determinar se
a realidade apreendida pelos místicos é ou não divina, e em que sentido o seria.
O próprio Broad é cuidadoso, comentando que não pensa haver quaisquer boas
razões para supor que a realidade encontrada pelos místicos é pessoal. Portanto,
no que diz respeito ao Deus teísta, parece razoavelmente claro que as experiên­
cias místicas pouquíssimo adiantam com respeito a uma base racional para
acreditar na existência de tal ser. E esta conclusão tanto se pode aplicar aos

i 137
introdução à Filosofia da Religião

místicos quanto aos não místicos. Pois embora possamos admitir com James
que os místicos têm justificação para considerar verídicas as suas experiências,
na medida em que a própria experiência é um encontro com a absoluta uni­
dade, desprovida de distinções, a experiência não justificaria por si a crença no
Deus teísta. O místico teísta, que já acredita no Deus teísta, pode interpretar a
sua experiência como um encontro com algum aspecto daquele ser. Mas isto
é bastante diferente de defender que a própria experiência justifica a crença
do místico na realidade do Deus teísta.

REVISÃO

1. Explique o que se entende por experiência religiosa. Em que diferem as


experiências religiosas não místicas das experiências religiosas místicas?
2. O que é o princípio de credulidade? Como ajuda a mostrar a veracidade
das experiências religiosas não místicas?
3. Que argumento fundamental apresenta Broad em defesa da sua pers­
pectiva de que é razoável pensar que a experiência mística é verídica?
4. Explique a diferença entre as perspectivas de Russell e de Broad sobre se
é razoável ou não encarar a experiência mística como verídica.
5. A experiência mística dá boas razões para acreditar no deus teísta? Discuta.

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Discuta criticamente o seguinte argumento:


As experiências religiosas não místicas não provam a existência de Deus.
Mas tem de se explicar o facto de haver tais experiências. E a explicação
mais simples é a de que existe um Deus que faz as pessoas ter experiência
dele. Portanto, é muito provável que Deus exista.
2. James afirma que os estados místicos têm o direito de ser fonte de auto­
ridade absoluta para aqueles a quem sobrevêm. Terá James razão, ou será
que quem tem estas experiências devia vê-las como ilusórias? Discuta.

138
Capítulo 6
Fé e razão

A questão central que tem ocupado a nossa atenção desde o primeiro capí­
tulo é a de haver ou não fundamentos racionais que sustentem as afirmações
fundamentais das religiões teístas. Até agora a nossa preocupação foi o estudo
das razões que frequentemente se dá a favor da afirmação de que o deus teísta
existe. Na sua formulação mais geral, a questão central que temos vindo a
tratar é a seguinte: será que a razão estabelece a verdade do teísmo (ou a sua
probabilidade) ? Para tal, observámos com algum cuidado os indícios a favor
do teísmo veiculados pela experiência religiosa e os argumentos tradicionais
a favor da existência de Deus. Assim, para caracterizar a abordagem que
adoptámos, podemos afirmar ter avançado com base em dois pressupostos:
em primeiro lugar, pressupusemos que devemos ajuizar as crenças religio­
sas, do mesmo modo que as crenças científicas e históricas, no tribunal da
razão; em segundo lugar, pressupusemos que as crenças religiosas só serão
aprovadas no tribunal da razão quando forem adequadamente sustentadas
por indícios favoráveis. Chegou o momento de deitar um olhar crítico aos
dois pressupostos.
Contra o nosso primeiro pressuposto, afirma-se frequentemente que só
podemos aceitar crenças religiosas com base na fé e não na razão. No mínimo,
portanto, temos de considerar o que é a fé e se é racional ou irracional aceitar
crenças religiosas com base nela. Contra o segundo pressuposto, observa-se
que nem toda a crença aprovada no tribunal da razão o pode ser em virtude

139
Introdução à Filosofia da Religião

de se apoiar noutra crença, que seja um indício a seu favor. Añrma-se que
algumas das nossas crenças são racionais (são aprovadas no tribunal da razão)
ainda que não as adoptemos com base em quaisquer outras crenças que pos­
sam ser indícios a seu favor. Se isto for verdade (e penso que é), temos de
considerar a questão de as crenças religiosas poderem ou não integrar esta
categoria e serem portanto aprovadas no tribunal da razão, mesmo na ausên­
cia de indícios favoráveis, dados por outras crenças que adoptamos.

CRENÇAS RELIGIOSAS E FÉ

Alguns pensadores religiosos argumentaram que a própria natureza da religião


exige que as suas crenças assentem na fé, e não na razão. Pois, segundo o argu­
mento, a crença religiosa exige a aceitação incondicional por parte do crente,
aceitação que além disso resulta de uma decisão livre de tornar-se crente.
Mas se a crença religiosa tivesse base racional, a razão estabeleceria indis­
cutivelmente a sua verdade ou apenas a tornaria provável. No primeiro caso,
em que a razão prova a crença, o intelecto informado impõe-na, sem deixar
espaço para uma decisão livre. E no segundo caso, em que a razão apenas
mostra que a crença é provável, se a crença religiosa assentasse inteiramente
na razão, a aceitação incondicional da crença religiosa seria injustificada e
absurda. Talvez então a crença religiosa assente de facto na fé e não na razão.
Mas o que é a fé? E como se relaciona com a razão? Será que entra em
conflito com a razão ou a complementa? Ao tentar responder a estas questões,
centraremos a nossa atenção em duas perspectivas acerca da fé e da razão:
a primeira é tradicional, desenvolvida por São Tomás de Aquino; a segunda,
mais radical, foi formulada por William James.
Tanto Tomás como James encaram os objectos da fé como afirmações,
sobretudo acerca do divino. A fé é portanto a aceitação de determinadas
afirmações a respeito de Deus e das suas actividades. Por vezes, contudo, não
pensamos na fé como uma aceitação da verdade de certas afirmações, mas
como confiança em certas pessoas e instituições. Assim, dizemos coisas como

140
Fé e razão

«tem fé nos teus amigos» ou «vamos restabelecer a fé no governo». Mas


como confiar numa pessoa ou numa instituição envolve em geral acreditar
em determinadas afirmações acerca delas, ou aceitá-las, a fé em alguém ou
em algo pressupõe a crença de que algumas afirmações acerca dos mesmos
:são verdadeiras. Quando tais crenças não assentam na razão, a fé em alguém
ou algo pode pressupor a fé de que determinadas afirmações são verdadeiras.

TOMÁS: UMA PERSPECTIVA TRADICIONAL

Tomás diz-nos que a fé está entre o conhecimento e a opinião — que por


um lado é como o conhecimento e difere da opinião, e por outro é como a
opinião e difere do conhecimento. Quando tomamos conhecimento de que
algo é de certo modo, a razão tem indícios conclusivos de que é desse modo;
algo nos compele a dar a nossa adesão intelectual à proposição conhecida,
que portanto não é um acto livre da nossa parte. Além disso, a nossa adesão
à proposição que conhecemos é firme e segura. Segundo Tomás, esta adesão
intelectual é um aspecto comum à fé e ao conhecimento. Mas para que o acto
de fé seja livre, o intelecto não pode ser compelido por indícios conclusivos
que resultam em conhecimento. Ao contrário do conhecimento, portanto,
:a fé não dispõe de indícios conclusivos a favor da proposição que é objecto
de crença. No acto de fé, a adesão produz-se no intelecto por livre vontade.
A opinião difere do conhecimento por não dispor de indícios conclusi­
vos a favor da proposição que se aceita e pela sua incerteza, temendo ~se que
a opinião alternativa seja verdadeira. A fé, como a opinião, não dispõe de
indícios conclusivos, mas, como o conhecimento, a sua adesão intelectual à
proposição em causa é firme e sem hesitações.
Tomás divide as verdades acerca do divino em verdades que podemos
demonstrar pela razão humana e verdades que não podemos conhecer pelo
poder da razão humana. Nas verdades do primeiro género inclui-se afirma­
ções como «deus existe» e «deus criou o mundo». Mas há muitas verda­
des acerca do divino que, afuma Tomás, «excedem a capacidade da razão

141
Introdução à Filosofia da Religião

humana » .60 Muitas destas verdades são importantes para a nossa salvação.
Pelo que embora a razão não as possa demonstrar, é importante que se acre­
dite nelas. A crença nelas assenta na fé e não na razão. Como a razão não
impõe ao intelecto a aceitação destas verdades acerca do divino, podemos
aceitá-las livremente pela fé. Além disso, como a aceitação destas crenças é
um acto livre, o acto de fé do crente pode ser um gesto meritório, valendo-
-lhe a aprovação e a recompensa da parte de Deus. Para Tomás, portanto, a
fé não entra em conflito com a razão mas «aperfeiçoa o intelecto» e pode ser
um acto mental livre e meritório.
E quanto às verdades acerca do divino que podemos demonstrar pela
razão humana? Serão, ainda assim, objectos adequados da fé? Tomás res­
ponde que é também apropriado sugerir a sua aceitação pela fé. Pois conhe­
cer estas proposições pela demonstração da sua verdade é uma tarefa difícil,
para o sucesso da qual poucos dispõem de tempo, formação e recursos. Não
obstante, quem conhece estas proposições através da demonstração não as
aceita também pela fé. Pois é impossível a mesma proposição ser (ao mesmo
tempo) objecto de conhecimento e de fé. Na vida além-túmulo, quando os
fiéis puderem ver Deus claramente, deixarão de viver pela fé.
Há evidentemente muitas afirmações acerca do divino que excedem a
capacidade da razão humana para as apreender. Que Deus é trino, por exem­
plo, não se pode provar nem refutar pela razão. Como determina Tomás quais
são as afirmações acerca do divino que se devem aceitar com base na fé? Por
exemplo, devemos acreditar que Deus é trino ou devemos acreditar que não
é? A resposta a esta questão está em ver que, embora a fé se distinga da razão,
não pode existir por si. Pois a razão guia a fé, mostrando que as afirmações
aceites com base na fé foram reveladas por Deus. Como afirma Tomás: «A fé
[...] não aceita seja o que for, excepto por ser revelado por Deus» .61

60. Vernon J. Bourke, trad., Summa Contra Gentiles, L.l, Cap. 3 (Nova Iorque: Doubleday
& Company, Inc., 1956).
61. São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II, pt. II, Ql, art. 1, in The Basic Writings
of Saint Thomas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).

142
Fé e razao

Temos de distinguir, portanto, entre uma afirmação A e a afirmação


«Deus revelou A » . Se A é uma afirmação que pertence apropriadamente à
fé, a razão será incapaz de a demonstrar ou apresentar indícios directos a seu
favor. Mas a razão assiste a fé apresentando indícios a favor da afir mação de
que Deus revelou A. Segundo Tomás, a razão dá-nos argumentos prováveis
para sustentar a perspectiva de que Deus revelou muitas verdades nas escri­
turas, Estes argumentos apelam a considerações como o cumprimento de
profecias anunciadas na Bíblia, o sucesso alcançado pela igreja sem prometer
prazeres nem recorrer à violência e a ocorrência de milagres.62 Dessa maneira,
Tomás pensa poder mostrar a razoabilidade de considerar que as escrituras
foram reveladas por Deus. Como as escrituras, segundo Tomás, ensinam que
Deus é trino, a fé aceita essa crença, ainda que seja insusceptível de demons­
tração ou refutação directas pela razão.
O tratamento clássico da fé e da razão adoptado por Tomás enfrenta
essencialmente duas dificuldades. Em primeiro lugar, concede à razão o
poder de provar certas afirmações fundamentais acerca de Deus — que existe,
que é perfeitamente bom, criador do mundo — afirmações que hoje em dia
muitos supõem «exceder a capacidade da razão humana», para usar a sua
expressão. Em segundo lugar, torna a fé de certa maneira dependente da
razão no que diz respeito a determinar que afirmações Deus terá de facto
revelado. Como observa o filósofo inglês John Locke, «O que quer que Deus
tenha revelado é seguramente verdadeiro; quanto a isso não há dúvida.
Trata-se do objecto adequado da fé; mas cabe à razão ajuizar se é ou não uma
revelação divina» ,63

62. Bourke, Summa Contra Gentiles, L.l, Cap. 7.


63. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, L.IV, Cap. 28, sec. 10, org,
Peter H. Nidditch (Londres: Oxford University Press, 1975). [Ensaio Sobre o Enten­
dimento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa: Gulbenkian, 1999.]

143
Introdução à Filosofta da Religião

JAMES: UMA PERSPECTIVA RADICAL

No período moderno, James elaborou, no seu agora clássico ensaio «A Von­


tade de Acreditar» ,64 uma perspectiva radical acerca do âmbito da fé, que não
está sujeita às duas dificuldades que afectam o tratamento dado por Tomás
à fé e à razão.

O Armador de Clifford: «A Ética da Crença»

Para compreender a perspectiva de James temos antes de considerar a posi­


ção adoptada pelo matemático e filósofo inglês, William Clifford (1845-1879),
posição a que o ensaio de James procura responder. Num artigo intitulado «A
Ética da Crença», Clifford conta-nos a história de um armador:

«U m armador preparava-se para enviar para 0 mar um navio com emigrantes.


Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera já
m uitos m ares e clim as e teve de ser reparado m uito mais de uma vez. Alguém
sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse em condições de navegar.
Estas dúvidas pesavam -lhe na consciência e deixavam -no infeliz; pensou que
talvez devesse mandar inspeccionar e renovar profundamente 0 navio, embora
isto provavelmente ñcasse bastante caro. Antes de o navio zarpar, contudo, o
armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos melancólicos. Disse para
consigo que o navio enfrentara com êxito tantas viagens e resistira a tantas tem ­
pestades que não havia razão para supor que não regressaria ileso também desta
viagem. O armador confiaria na providência, que seguramente não deixaria de
proteger todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em busca
de uma vida melhor alhures. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da
honestidade de construtores e empreiteiros. Assim alcançou uma certeza sincera

64. William James, Essays in Pragmatism, org. A. Castell (Nova Iorque: Hafner Publishing
Co., 1948), pp. 88-109. [«A Vontade de Acreditar», in A Ética da Crença, org. Desi­
derio Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2010.]

144
Fé e razão

e confortável de que o seu navio era completamente seguro e estava em condições


de navegar; viu-o partir com despreocupação e desejos caridosos de que os exi­
lados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que os esperava; e recebeu o
dinheiro do seguro quando o navio se afundou em pleno mar sem deixar rasto .»65

Clifford añrma que este homem é culpado peia morte dos náufragos.
O facto de o armador acreditar sinceramente na robustez do seu navio não lhe
diminui a culpa, porquanto, sublinha Clifford, «não tinha o direito de acredi­
tar, tendo em conta os indícios disponíveis». Em vez de subordinar a crença
à inspecção rigorosa das condições do navio, o armador optou por acreditar
sem quaisquer indícios adequados. Segundo Clifford, não há qualquer ju s ­
tificação para adoptar uma crença sem indícios suficientes. O armador, não
tendo obtido quaisquer indícios relevantes a respeito do estado do seu navio,
errou, portanto, ao acreditar que este estava em condições. Suponhamos que
o navio estava realmente em condições e que ffzera a viagem em segurança.
Teria isto alterado o juízo que Clifford faz do armador? Nada disso:

«O hom em não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do
correcto e do incorrecto tem que ver com a origem da crença do armador, e não
com o seu conteúdo; não é a crença que conta, mas o modo como a adoptou; não
se trata de a crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o
direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha.»66

Contra o juízo que Clifford faz do armador, poderíamos objectar que con­
fundiu o facto de o armador acreditar que o seu navio está em condições com
a sua acção de enviar o navio para o mar sem inspecção adequada, É no
último, diríamos, que está a imoralidade. Afinal de contas, embora o armador

65. William Clifford, Lectures and Essays, vol. Il, org. F. Pollock (Londres: Macmillan and
Co., 1879), pp. 177-178. [«A Ética da Crença » , in A Etica da Crença, org. Desiderio
Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2010,]
66, Ibid., p, 178.

145
Introdução à Filosofia da Religião

acreditasse (sem bons indícios) que o seu navio estava em condições, podia
ainda assim ter ordenado uma inspecção adequada antes de enviar o navio para
o mar. O que é moral ou imoral são as acções e não a mera adopção de crenças.
Clifford, contudo, reconhece a distinção que fizemos entre a crença do
armador e a sua acção de enviar o navio para o mar. Concorda, além disso,
que a acção foi imoral. Mas insiste que é preciso condenar também a crença
do armador. Pois as crenças levam naturalmente à acção. E uma pessoa que
tenha o hábito de acreditar em coisas sem indícios suficientes, ou sem indí­
cios sequer, irá frequentemente adoptar crenças que levam naturalmente
a acções de facto nocivas para outros, como ilustra o exemplo do armador.
Ao reflectir no exemplo do armador e nos comentários de Clifford, talvez
partilhemos a sua opinião. Quando uma crença é tal que leva naturalmente
a acções que podem ser nocivas para outros, é imoral adoptar essa crença
com base em indícios insuficientes. Não se deve adoptar tais crenças quando
não há quaisquer indícios a seu favor. Pois sabemos que quando as pessoas
se entregam a tais crenças na ausência de indícios adequados, os resultados
para a humanidade são muitas vezes nocivos, se não mesmo desastrosos. Mas
há seguramente crenças cuja adopção não leva tendencialmente a acções
nocivas para outros. Pode tratar-se de crenças insignificantes, coisas tri­
viais, como acreditar que fazia calor há um ano neste mesmo dia, ou crenças
importantes que tendencialmente levam apenas a acções úteis aos outros,
como acreditar que os seres humanos são basicamente bons e amigáveis. Se
acreditar que os outros são essencialmente bons e afáveis, posso ficar mais
disposto a ser afável com eles do que se acreditasse no contrário. Com crenças
como estas, parece irrazoável, pelo menos superficialmente, afirmar que é
imoral adoptá-las na ausência de indícios adequados de que são verdadeiras.
Clifford, contudo, é intransigente na sua perspectiva:

« S e m e perm ito acreditar seja no que for com indícios insuficientes, da mera
crença pode não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca
ter ocasião de a exibir em acções públicas. Mas não posso deixar de com eter

146
Fé e razão

este grande mal contra a humanidade: o de tornar-m e crédulo. O perigo para a


sociedade não é m eram ente o de acreditar em coisas erradas, em bora isso seja
suficientem ente mau; mas o de se tornar crédula e perder o hábito de testar as
coisas e de as investigar; pois então recairá forçosamente na selvajaria. » 67

Seja uma crença trivial e tenda a gerar acções nocivas para os outros,
mu significativa e tenda a gerar acções benéficas, o juízo de Clifford con­
tinua igual: só temos justificação para adoptar essa crença se tivermos
indícios suficientes de que é verdadeira. Pois de contrário prejudicar-nos­
-emos, a nós e à sociedade, ao enfraquecer o hábito de exigir indícios a
favor das nossas crenças, um hábito que lentamente nos fez sair da era da
superstição e da selvajaria. É evidente, portanto, que Clifford não admite
excepções à sua regra de não acreditar numa coisa a não ser na presença
de indícios suficientes. Resume o seu ponto de vista com um comentário
citado por James em «A Vontade de Acreditar»; «É sempre errado, seja
onde for e por quem for, acreditar em qualquer coisa com base em indícios
:insuficientes» .68 É portanto evidente que no caso de Clifford ter razão não há
justificação para acreditar na verdade do teísmo sem indícios adequados a seu
favor. De igual modo, não há justificação para acreditar na verdade do ateís­
mo sem indícios adequados a seu favor. Se nem temos indícios adequados a
favor do teísmo nem a favor do ateísmo, então, na perspectiva de Clifford,
não temos alternativa senão suspender 0 juízo — isto é, ser agnósticos.

Até onde vai a concordância de James

Embora, como mencionámos, o artigo «A Vontade de Acreditar», de James,


seja um ataque à perspectiva de Clifford, 0 grau de concordância entre ambos
:é digno de nota. Em primeiro lugar, James concorda com a afirmação fun-

67. Ibid., pp. 185-186.


68. James, Essays in Pragmatism, p. 93.

147
Introdução à Filosofia da Religião

damentaî de Clifford de que as pessoas têm de ser ajuizadas (louvadas ou


censuradas) tanto em termos das acções que praticam como das crenças que
adoptam. Em segundo lugar, James concorda com Clifford em que não é o
conteúdo das crenças que deve determinar o modo como se ajuíza uma pes­
soa mas a maneira como a crença é adoptada. Por ñm, se dividirmos como
se segue a perspectiva de Clifford em duas regras para reger crenças, é razoa­
velmente claro que James concorda inteiramente com a primeira:

í. Se um indivíduo sabe de indícios contra uma hipótese e também da


ausência de quaisquer bons indícios a seu favor, e se ainda assim se per­
mite acreditar nessa hipótese por lhe dar uma satisfação privada, pratica
uma imoralidade.
2. Se um indivíduo não tem indícios a favor de uma crença e nenhum indí­
cio contra a mesma, é imoral aceitá-la ou rejeitá-la; deve suspender o
juízo e esperar pelos indícios.

É relativamente à segunda destas regras que James se afasta de Clifford. Como


veremos, o desacordo de James com a regra 2 não é tão grande quanto seria
de esperar. Mas antes de entrarmos nos detalhes deste desacordo, será útil
formular as regras 1 e 2 em termos ligeiramente diferentes, termos que James
usa no seu ensaio. Segundo James, as nossas crenças têm duas, e só duas,
determinantes: a razão e as paixões. A razão avalia uma crença em termos dos
indícios que há a favor ou contra essa crença e leva-nos a acreditar de acordo
com os indícios. As paixões são todos os factores, além dos intelectuais, que
nos levam a aceitar ou rejeitar uma hipótese. Desde 0 tempo de Platão que os
filósofos têm em geral adoptado a perspectiva de que temos 0 dever de supri­
mir as paixões no que diz respeito às crenças, permitindo que seja apenas a
razão, e só a razão, a força determinante no modo como se formam as nossas
crenças. Clifford filia-se claramente nesta tradição e também James tem pelo
menos um pé firmemente assente nela. A regra 1 de Clifford compreende os
casos em que a razão rejeita uma crença mas no qual permitimos que as nossas

148
Fé e razão

paixões desautorizem a razão. A regra 2 compreende os casos em que a razão


é neutra mas nos quais em vez de suspender o juízo permitimos que a crença
se paute pelas paixões. Em ambos os casos se sacrifica a razão às paixões e
tal sacrifício, segundo Clifford, é incorrecto. James concorda com Clifford
no primeiro caso mas discorda profundamente no segundo. Não afirma que,
sempre que a razão é neutra, é incorrecto pautar as nossas crenças pelo que
nos dizem as paixões. Ao invés, defende que há casos especiais em que a razão
é neutra e no entanto não é incorrecto pautarmo-nos pelas paixões. Temos
agora de procurar ver o que são estes casos especiais e por que razão James
pensa que a crença religiosa é um desses casos.

CRENÇA RELIGIOSA; UM CASO ESPECIAL

Definições essenciais

Pode-se exprimir do seguinte modo a ideia fundamental de James, relativa­


mente à segunda regra de Clifford:

Quando, e só quando, uma hipótese é 1 ) intelectualm ente ind ecid ível e 2 ) nos
apresenta uma opção genuína, não é incorrecto acreditar o qne nos apetecer a
respeito dessa hipótese, não é incorrecto deixar a nossa natureza passional decidir.

Ao exigir a indecidibilidade intelectual da hipótese, James deixa claro


que é a segunda regra de Clifford que está em causa: 0 exemplo em que a razão
é neutra no que diz respeito à hipótese. E ao exigir que a hipótese exprima
uma opção genuína antes de podermos afirmar o direito de acreditar como
nos apetecer, James deixa claro que não temos o direito de seguir as nossas
paixões sempre que a razão é neutra, mas apenas quando nos confrontamos
com algo mais além da neutraÜdade da razão: uma opção genuína.
James explica-nos que por «opção genuína» entende uma decisão entre
duas hipóteses, que é viva, momentosa e forçosa. Uma opção (uma decisão

149
Introdução à Filosofía da Religião

entre duas hipóteses) pode estar viva ou morta para nós. Uma opção está
viva quando ambas as hipóteses estão vivas para nós, quando ambas nos
atraem e parecem possibilidades reais para as nossas vidas. James ilustra:
«Se lhe digo: “Torne-se um teósofo ou um maometano” , trata-se provavel­
mente de uma opção morta, porque é improvável que para si qualquer destas
seja uma hipótese viva. Mas se digo: “torne-se um agnóstico ou um cristão” ,
sucede o contrário; tendo em conta a sua formação, cada uma destas hipóte­
ses exercerá algum fascínio, por muito leve que seja, sobre as suas crenças» .69
Uma opção pode ser momentosa ou trivial. Uma opção é momentosa
quando podemos não vir a ter outra oportunidade de decidir entre as duas
hipóteses, não podemos reverter facilmente a escolha que ñzermos e há algo
de importância considerável que depende de fazer a escolha certa. Durante
a guerra do Vietname, muitos jovens tiveram de escolher entre servir o seu
país numa causa que sentiam ser injusta ou recusar-se a prestar esse serviço.
Tratava-se obviamente de uma escolha momentosa; a escolha errada podia
levar a perdas pessoais consideráveis; uma vez tomada a decisão, não se podia
revertê-la facilmente; tão-pouco era possível adiá-la.
Uma opção pode ser forçosa ou evitável. Uma opção é forçosa quando
as consequências de recusar decidir entre uma de duas hipótese são as mes­
mas que decidir efectivamente entre uma delas .70 Se recebo uma proposta
de emprego importante e me dão um prazo absolutamente inadiável para
decidir, de tal maneira que ao fim desse prazo a oferta é retirada e proposta
a outra pessoa disposta a aceitá-la, a decisão que tenho perante mim é entre
responder dentro do prazo e aceitar a oferta ou responder dentro do prazo
e rejeitar a oferta, decisão que é forçosa. É forçosa porque as consequên­
cias de me recusar a decidir entre aceitar ou rejeitar são as mesmas que as
de simplesmente rejeitar. As duas acções, responder para rejeitar a oferta e

69. Ibid , p. 89.


70. Nesta explicação do que seja uma opção forçosa, oríentei-me pelo excelente estudo
de George Nakhnikian sobre «A Vontade de Acreditar», de James, An Introduction
to Philosophy (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1967), pp. 273-286.

150
Fé e razão

pura e simplesmente não responder, são diferentes, mas as consequências


são as mesmas. Recusar decidir é praticamente o mesmo que decidir rejeitar
a oferta. Uma opção é evitável quando há uma diferença real entre recusar
decidir e decidir por uma das duas hipóteses. Se o leitor faz um teste em que
tem de responder «verdadeiro» ou «falso», recebendo cinco pontos por
cada resposta correcta, perdendo cinco pontos por cada resposta errada, e
não ganha nem perde quando não responde, então a decisão entre responder
«verdadeiro» ou «falso» é evitável, e não forçosa. Pois as consequências de
não dar qualquer resposta são diferentes das consequências de cada uma das
duas outras respostas possíveis.
É importante reconhecer que, para uma dada hipótese, há sempre três
maneiras diferentes de lhe responder. Podemos acreditar que é verdadeira,
acreditar que é falsa ou suspender o juízo a seu respeito. É também impor­
tante reconhecer que a decisão entre acreditar que uma hipótese é verdadeira
e acreditar que é falsa nunca é forçosa no que diz respeito à verdade e ao
erro. Porquanto a pessoa que recusa acreditar, que suspende o juízo, nem
acerta na verdade nem cai em erro. Pelo que sea decisão entre duas hipóte­
ses que não podem ser ambas verdadeiras — por exemplo, «Deus existe» e
«Deus não existe» — for forçosa, as consequências em causa têm de ser algo
mais do que a verdade e o erro.
Suponhamos, por exemplo, que decidi dar-lhe um milhão de euros se
você acreditar que o Futebol Clube do Porto irá ganhar o campeonato no
próximo ano, e nada caso acredite no contrário ou não acredite nem deixe de
acreditar. O leitor tem a opção de acreditar em «O Futebol Clube do Porto irá
ganhar o campeonato no próximo ano» e acreditar em «O Futebol Clube do
Porto não vai ganhar o campeonato no próximo ano». Evidentemente, uma
destas hipóteses é verdadeira e a outra falsa. Pelo que o crente em qualquer
das duas hipóteses irá ou acertar na verdade (tem uma crença verdadeira)
ou cair em erro (tem uma crença falsa). Quem suspender o juízo, contudo,
nem acerta na verdade nem cai em erro. Pelo que a opção não pode ser for­
çosa no que diz respeito à verdade e ao erro. Mas é forçosa quanto a receber

151
Introdução à Filosofia da Religião

a minha oferta de um milhão de euros. Pois o leitor tanto perde esta quantia
se suspender o juízo como perde se acreditar que o Futebol Clube do Porto
não vai ganhar o campeonato no próximo ano. Há portanto um sentido evi­
dente em que as consequências (pelo menos uma consequência importante)
de suspender o juízo são as mesmas que acreditar numa das duas hipóteses.

A HIPÓTESE RELIGIOSA DE JAMES

Agora que tratámos destes preliminares, podemos voltar-nos para a posição


de James de que a religião se subsume na sua tese fundamental: a hipótese
religiosa fundamental é intelectualmente indecidível ao mesmo tempo que
nos confronta com uma opção genuína. James caracteriza a hipótese religiosa
em duas partes: i) o que é melhor ou supremo é eterno e 2) ficamos melhor se
acreditarmos que aquilo que é melhor é eterno. A ideia de que 0 que é melhor
é eterno tem diferentes interpretações, consoante a tradição religiosa em
que nos situamos. Na tradição religiosa ocidental podemos compreender a
primeira parte da hipótese religiosa como a afirmação de que o deus teísta
existe. A segunda parte é a afirmação de que mesmo agora ficaremos melhor
caso acreditemos no deus teísta. Por que razão hcaremos melhor? Se o deus
teísta existir e acreditarmos nele, beneficiaremos imediatamente da vida
eterna, da graça divina e de outras bênçãos espirituais. Portanto, para o que
nos interessa, entenderemos a primeira parte da hipótese religiosa como a
afirmação de que o deus teísta existe, e a segunda parte como a afirmação de
que mesmo agora hcaremos melhor caso acreditemos no deus teísta. (Nas
religiões não teístas, «o que é melhor é eterno» terá uma interpretação dife­
rente da ahrmação de que 0 deus teísta existe.)

Intelectualmente indecidível

Será que a ahrmação implícita de James, de que a hipótese religiosa é inte­


lectualmente indecidível, está correcta? Alguns, incluindo Tomás, diriam

152
Fé e razão

que não. Muitos teístas defendem que os argumentos a favor da existência


de Deus e os factos da experiência religiosa dão uma justificação racional
suficiente para acreditar que Deus existe. Alguns ateus, contudo, pensam que
os factos acerca do mal dão uma justificação racional adequada para a crença
de que o deus teísta não existe. Na medida em que há indícios racionais ade­
quados quer a favor do teísmo quer a favor do ateísmo, James, juntamente
com Clifford, compromete-se com a perspectiva de que devemos acreditar
de acordo com os indicios, independentemente daquilo que a nossa natureza
/passional nos diz. Todavia, a posição de James não é implausível. Pode dar-
-se o caso de ser verdade que os nossos intelectos racionais são incapazes
de decidir a questão de o deus teísta existir ou não, quer por não haver bons
indícios para qualquer dos dois lados da questão quer por os indícios de um
lado serem compensados por indícios igualmente bons do outro lado. Assim,
talvez a ahrmação de que o deus teísta existe seja tal que não se pode deter­
minar a sua verdade ou falsidade através da investigação racional. Se isto for
verdade, então, segundo Clifford, temos o dever de ser agnósticos. James,
contudo, discorda, porque considera que a questão religiosa nos surge como
uma questão viva, momentosa e forçosa.

Uma opção genuína

Para quem foi criado na tradição religiosa ocidental básica, como eu, é bem
provável que a opção entre acreditar que Deus existe ou acreditar que não
existe seja uma opção viva. E a decisão entre acreditar que Deus existe ou
acreditar que não existe parece momentosa, pelo menos num dos sentidos
de «momentosa». Pois se Deus existe e acreditamos nele, recebemos um
certo bem vital por acreditar — a vida eterna, a graça divina e outras bênçãos.
Se Deus existe e não acreditamos na sua existência, tudo isto se perde. Será
a decisão única e irreversível caso se mostre insensata? É menos claro se a
questão religiosa é momentosa em qualquer destes sentidos. Posso adoptar
a crença no próximo ano em vez de neste ano, ou posso adoptar uma crença

153
Introdução à Filosofia da Religião

agora e mais tarde alterá-la. Ainda assim, podemos concordar com James em
que a questão religiosa é momentosa no sentido mais relevante de nos dar um
bem de infinitas dimensões se escolhermos correctamente.
Será a opção entre acreditar que o deus teísta existe e acreditar que tal
ser não existe uma opção forçoscú Como vimos, esta opção não é forçosa
quanto à verdade e ao erro. Pois se Deus existe, o ateu cai em erro mas o
agnóstico não, já que para errar (ter uma crença falsa) é preciso ter uma
crença. Mas, como James salienta, se a hipótese religiosa for verdadeira,
então o agnóstico e o ateu estão no mesmo barco: ambos perdem o bem
vital que a religião tem para oferecer. Pelo que, se o teísmo for verdadeiro, a
opção entre acreditar que Deus existe e acreditar que não existe é uma opção
forçosa no que diz respeito ao bem vital. Falando da hipótese religiosa, James
ahrma que

«ao perm anecer cépticos e esperando que se faça mais luz [...] perdemos o bem,
no caso de ser verdade, tão certam ente com o se de facto escolhêssem os não
acreditar. É como se um hom em hesitasse indefinidam ente pedir uma mulher
em casam ento, por não ter a certeza absoluta de que depois de a levar para casa
ela continua a ser um anjo. Não estará a privar-se dessa possibilidade angélica
particular tão decisivamente como se casasse com outra pessoa?»71

Será talvez digno de nota o facto de James não provar que a opção entre
acreditar que Deus existe e acreditar que não existe é momentosa ou forçosa.
Tudo o que consegue provar é que é momentosa e forçosa se for verdade que
Deus existe. Pois só no caso de Deus existir é que estará em jogo na decisão
um bem vital (a vida eterna). Se Deus não existir, a decisão entre as duas
hipóteses não é momentosa. Nem forçosa. Porquanto, como vimos, a opção
não é forçosa a respeito da verdade e do erro; é-o apenas a respeito do bem
vital que é a vida eterna, a graça divina e as outras bênçãos que decorrem da

71. James, Essays in Pragmatism, p. 106.

154
Fé e razao

crença. Mas no caso de o ateísmo ser verdadeiro, não há qualquer bem vital
que possa tornar forçosa a opção. Em resposta a isto, o melhor que podemos
dizer é que James mostrou que a opção religiosa pode ser momentosa e for­
çosa; não temos como saber que não é. Isto significa, contudo, que para a
questão religiosa exemplificar a tese fundamental de James é preciso revê-la
mais ou menos da seguinte maneira:

Quando uma hipótese é intelectualm ente indecidível e a opção entre acreditar


nela e acreditar na sua negação é viva, então, se tanto 1 ) acreditar simplesmente
na hipótese com o 2 ) acred itar na hipótese e d ar-se o caso de ser verdadeira,
resultam num bem vital para o crente, um bem inacessível a quem não acreditar
na hipótese, então não é errado acreditar 0 que nos apetecer a respeito dessa
hipótese, não é errado deixar a decisão à nossa natureza passional.

Se 2 se verificar, a opção será momentosa e forçosa. Se 1 se verificar, a


opção poderá ser momentosa e forçosa, consoante a hipótese for verdadeira
ou não. A opção entre acreditar que Deus existe e acreditar que não existe
subsume-se no caso 1: pode ser momentosa e forçosa.

A DEFESA JAMESIANA DA CRENÇA PASSIONAL

Descrevemos a tese fundamental de James, tanto na sua forma original como


na forma revista, e vimos como a hipótese teísta exemplifica a forma revista
da tese .72 Chegou o momento de considerar a defesa jamesiana do direito a
acreditar o que nos apetecer, no que diz respeito à hipótese teísta.

72. Se por «bem vital» se entender determinados estados psicológicos (como a paz de
espírito), que o crente pode fruir, quer Deus exista realmente quer não, então a hipó­
tese teísta pode exemplificar a afirmação original da tese de James. (Para essa expli­
cação do bem vital, ver Nakhnikian, An Introduction to Philosophy, pp. 276-279.)
Mas se interpretarmos o bem vital como o ñz, como algo que o crente recebe apenas
de Deus, então a hipótese teísta exemplifica apenas a forma revista da tese jamesiana.

155
Introdução à Filosoña da Religião

Na esteira de James, podemos pensar no teísta, no agnóstico e no ateu


como pessoas que adoptam políticas diferentes. O teísta adopta a política de
arriscar o erro em troca da oportunidade de acertar na verdade e conseguir
um bem vital. O teísta arrisca o erro porque tem uma crença (que Deus existe)
a favor da qual não dispõe de indícios adequados. Pelo que, tanto quanto sabe
o teísta, a sua crença é falsa. Mas arrisca em troca da oportunidade de acertar
na verdade (uma crença verdadeira, no caso de Deus existir) e a oportunidade
de beneficiar de um bem vital (a vida eterna e outras bênçãos, que o teísta
recebe no caso de Deus existir). O agnóstico adopta a política de arriscar não
acertar na verdade e não conseguir um bem vital, em troca da certeza de
evitar o erro. Ao não acreditar de uma ou outra maneira no que diz respeito à
hipótese teísta, o agnóstico pode consolar-se na certeza de ter evitado o erro,
uma certeza de que nem o teísta nem o ateu podem gozar. Mas, com a mesma
certeza, o agnóstico ignora a oportunidade de ter uma crença verdadeira e
conseguir um bem vital, um bem que o agnóstico, tanto quanto o ateu, segu­
ramente perderá. O ateu adopta a política de arriscar o erro e nâo conseguir
um bem vital, em troca da oportunidade de acertar na verdade.
Segundo Clifford, como carecemos de indícios adequados quer a favor
quer contra a hipótese teísta, é incorrecto adoptar quer a política do teísta
quer a política do ateu; ao invés, temos o dever de adoptar a política do agnós­
tico. Mas a posição de Clifford, segundo James, reduz-se a uma mera decisão
passional de evitar o erro a todo o custo. Antes arriscar não acertar na verdade
e não conseguir um bem vital do que arriscar o erro. Eis a decisão tomada por
Clifford. James nada encontra de atraente ou persuasivo nessa decisão.

«É como um general que diz aos seus soldados que mais vale evitar eternamente
a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre
inim igos ou sobre a natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão

Porquanto a hipótese teísta só será importante e compulsiva relativamente a esse bem


vital no caso de o teísmo ser verdadeiro.

156
Fé e razao

horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos tão certos de incorrer neles,
por muito prudentes que sejam os, uma certa ligeireza de espírito parece mais
saudável do que este nervosismo exagerado por sua causa. » 73

A perspectiva do próprio lames é que, das três políticas delineadas acima,


nenhuma regra nos compromete a escolher qualquer uma em particular.
Defende o nosso direito a seguir a política teísta, mas não pensa que alguém
tenha o dever de seguir aquela política. Cada pessoa tem o direito de adoptar a
política que melhor se adequa à sua própria natureza passional. Clifford tem o
direito de adoptar a política agnóstica. Só erra ao tentar impor aquela política
como um dever a todos os outros. James conclui com um apelo à tolerância:

«Se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando esta­
mos perante a verdade, parece que pregar tão solenem ente que tem os o dever
de aguardar pelo toque do sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade,
podemos aguardar, se quisermos — espero que não pensem que o nego —, mas,
se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em
todo o caso agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós
devia im por vetos aos outros, nem trocar palavras agressivas. Devemos, pelo
contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade m ental de cada um:
só então realizaremos a república intelectual, só então teremos aquele espírito
de tolerância íntim a sem o qual toda a tolerância exterior se to rn a oca [...] só
então vivemos e deixamos viver, nas coisas especulativas como nas p ráticas.»74

James apresentou uma defesa persuasiva do direito de acreditar o que


nos apetecer a respeito da hipótese teísta. Todavia, penso que está enganado
ao representar a escolha entre as três políticas como uma escolha que não se
pode fazer com base numa justificação racional. Na verdade, parece que a sua

73. James, Essays in Pragmatism, p. 100.


74. Ibid., pp. 108-109.

157
Introdução à Filosoña da Religião

própria perspectiva é a de que a política do teísta — arriscar o erro em troca


da oportunidade de acertar na verdade e conseguir um grande bem — é urna
opção racional e que o teísta não é irrazoável ao adopta-la, E James é talvez
injusto com Clifford quando sugere que este adopta a política do agnóstico
— arriscar não acertar na verdade e não conseguir um bem vital em troca da
certeza de evitar o erro — por mero medo patológico de adoptar uma crença
falsa. Afinal, Clifford apresentou razões para seguir a política do agnóstico.
Talvez as suas razoes.não sejam muito boas, mas James devia responder a
essas razões em vez de depreciar os seus motivos. Não é que o próprio Clifford
receie cometer um erro (acreditar numa falsidade), pois sabe perfeitamente
que quem acredita de acordo com a força dos indícios aceitará às vezes uma
crença falsa — raramente dispomos da totalidade dos indícios relevantes para
uma crença. Clifford pensa que quando nos permitimos acreditar em algo
com indícios insuficientes enfraquecemos um hábito importante em nós e
nos outros, «o hábito de testar as coisas e de as investigar», um hábito que
lentamente nos fez sair da era da superstição e da selvajaria. Esta é a razão
fundamental de Clifford quando insiste que adoptemos a política agnóstica
sempre que o nosso intelecto não consiga decidir entre duas hipóteses rivais.
E em resposta James tem de argumentar ou que a adopção da política teísta
não enfraquecerá este hábito ou que o bem possível a obter pela adopção da
política teísta ultrapassa o perigo de se enfraquecer este hábito em nós e nos
outros. É esta a verdadeira questão entre James e Clifford e é uma pena que
o próprio James não lhe tenha respondido.
Vimos duas perspectivas da fé apresentadas por Tomás e por James.
Ambos encaram a fé religiosa como a aceitação de determinadas afirmações
acerca do divino e ambos se preocupam em mostrar que a fé religiosa não
é irracional nem irrazoável. Tomás argumenta que a razão humana pode
demonstrar algumas verdades acerca do divino e defende que a fé não é
irrazoável porque a razão mostra que as afirmações aceites pela fé nos são
provavelmente reveladas por Deus. James adopta uma perspectiva mais radi­
cal. Defende que não se pode demonstrar pela razão a verdade ou a proba-

158
Fé e razao

bilidade de qualquer das afirmações acerca do divino que são fundamentais


para a religião, porque foram provavelmente reveladas por Deus. Não obs­
tante, argumenta que adoptar a política da fé é uma opção intelectualmente
defensável e não a violação de qualquer genuína obrigação intelectual.

CRENÇAS RELIGIOSAS E INDÍCIOS

Fizemos já notar o nosso pressuposto de que as crenças religiosas, como todas


as outras crenças, só serão aprovadas no tribunal da razão se forem adequa­
damente sustentadas por indícios. Também afirmámos que se deve sujeitar
este pressuposto ao escrutínio crítico. Pois vimos que nem todas as nossas
crenças racionalmente defendidas podem ser racionais apenas em virtude de
:se sustentarem noutras crenças que defendemos e que são indícios a favor
das primeiras. Além disso, avançámos para a consideração da perspectiva de
James, que defende não ser errado aceitar determinadas crenças sem indícios
desde que essas crenças nos apresentem uma opção genuína. Assim, atente­
mos agora directamente no nosso pressuposto. Ao examiná-lo, considerare­
mos uma perspectiva importante, desenvolvida por Alvin Plantinga, de que
«é inteiramente correcto, racional, razoável e adequado acreditar em Deus
sem quaisquer indícios ou argumentos» ,7S
Recorde-se o juízo de Clifford de que é uma transgressão do nosso dever
intelectual acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.
Chama-se indiciarismo a tal perspectiva. Podemos caracterizar o indicia-
rismo como a perspectiva de que uma crença só tem justificação racional
se houver indícios suficientes a seu favor.76 Uma crença é racional (tem
Justificação racional) quando há uma justificação racional para a adoptar.

75. Alvin Plantinga, «Reason and Belief in God», em Faith and Rationality, org. Alvin
Plantinga e Nicholas Wolterstorff (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press,
1983), p. 17.
76. Alguns filósofos têm uma perspectiva mais restrita do indiciarismo. Identificam-no
com a perspectiva de que as crenças religiosas só são racionais se forem sustentadas
por indícios suficientes.

159
Introdução à Filosofia da Religião

E temos justificação racional para a adoptar, segundo o indiciarísmo, quando


dispomos de indícios adequados a seu favor. Dada a possibilidade de uma
pessoa dispor de indícios inacessíveis a outras, pode ser racional para uma
dada pessoa adoptar uma crença, não sendo racional para outra pessoa adop­
tar a mesma crença. Um físico, por exemplo, terá justificação racional para
defender algumas crenças que não seriam racionais para quem pouco ou
nada sabe de física.
O indiciarísmo é o pressuposto que nos comprometemos examinar. Mui­
tos teístas e não teístas (ateus e agnósticos) que discutem crenças religiosas
são indiciaristas. Defendem, portanto, que a crença em Deus (acreditar que
Deus existe) só é racional se houver indícios adequados a favor da sua exis­
tência. Onde discordam é na questão de haver ou não indícios adequados
a favor da sua existência. Por exemplo, Tomás e Bertrand Russell tendem
a concordar que as crenças religiosas só são racionais se são ou podem ser
suficientemente sustentadas por indícios ou razões. Russell não pensa que há
bons indícios a favor das crenças religiosas; ao passo que Tomás pensa que há.
Por que razão haveria alguém de pensar que acreditar em Deus sem quais­
quer indícios é racional ou que pode ser racional? Como primeiro passo para
responder a esta questão, temos de nos persuadir daquilo que já mencionámos:
nem todas as nossas crenças racionalmente defendidas podem ser racionais
apenas em virtude de se sustentarem noutras crenças que defendemos e que
constituem indícios a favor das primeiras. Pois suponhamos que isto não era
assim. Então, se tivermos uma crença racional, esta só será racional devido a
outra crença nossa, a qual é um bom indício a favor da primeira. Mas essou­
tra crença não pode ser um bom indício a favor da primeira, no sentido de
a tornar racional, a menos que também ela seja uma crença cuja adopção é
para nós racional. Também ela, portanto, se torna racional para nós devido a
outra crença racional que adoptamos e que constitui um indício a seu favor.
Já se vê que isto seria um processo interminável. Na verdade, para ter uma só
crença racional teríamos de adoptar um número infinito de crenças cuja adop­
ção fosse racional. Assim, o processo de tornar racional uma crença apenas

160
Fé e razão

através de outra crença racional que adoptamos tem de chegar ao fim. Tem de
haver crenças cuja adopção é racional sem as basearmos noutras crenças que
sejam indícios a favor das primeiras. Na esteira de Plantinga, chamemos-lhes
«crenças apropriadamente básicas». Uma crença apropriadamente básica é
uma crença que é racional adoptar mesmo não tendo indícios a seu favor, no
sentido de ter outras crenças racionais que a sustentem adequadamente.
Para compreender a perspectiva de Plantinga temos de distinguir as
crenças apropriadamente básicas das crenças que, embora sendo básicas,
não são apropriadamente básicas. Um jogador compulsivo pode subitamente
acreditar que o próximo naipe de cartas que receber será o naipe vencedor.
Pode não ter quaisquer outras crenças que considere indícios importantes
a favor desta crença. Talvez esta crença seja causada por uma necessidade
psicológica profunda. O jogador tem uma crença básica, mas não apropriada­
mente básica. Porquanto nada há nele ou na circunstância em que se encon­
tra que torne a crença racional. Contraste-se isto com a situação de alguém
que olha pela janela e tem a experiência visual que depreende ser de um
gato trepando a uma árvore, formando imediatamente a crença de que está
ali um gato trepando a uma árvore. A situação em que a pessoa se encontra
— de olhar pela janela e aparentemente ver um gato trepando a uma árvore,
etc. — torna racional a sua crença de que está ali um gato trepando a uma
árvore. Não se dá o caso de a pessoa ter outras crenças racionais, inferindo
daí a crença que agora tem — não diz para si própria: «Estou a olhar pela
janela e aparentemente vejo um gato trepando a uma árvore. Vejamos. O que
posso inferir a partir desta crença? Oh, sim, posso inferir que vejo um gato
trepando a uma árvore». A pessoa não tem quaisquer indícios a favor da sua
crença, no sentido de outras crenças com base nas quais adopta a crença de
que está ali um gato trepando a uma árvore. A sua crença é portanto básica
e racional (é uma crença apropriadamente básica). Podemos afirmar que
a crença dessa pessoa se baseia numa situação que dá à pessoa justificação
racionai para a adoptar. A crença do jogador ou não tem bases ou baseia-se
numa situação que não torna racional a sua adopção pelo jogador.

161
Introdução à Filoso ña da Religião

Se aceitarmos o que se acabou de dizer, podemos ainda assim considerar


que a pessoa que adopta a anterior crença apropriadamente básica de que está
um gato trepando a uma árvore dispõe de indícios adequados ou suficientes.
Pois tem os indícios dos seus sentidos, a sua experiência de aparentemente
ver um gato trepar à árvore, para sustentar a sua crença básica de que está
um gato trepando a unia árvore. Assim podemos concluir que este exemplo
de crença apropriadamente básica não é uma excepção ao nosso pressuposto
indiciarista: uma crença só é racional quando se sustenta em indícios ade­
quados, Não obstante, embora tenhamos o direito de encarar as crenças que
Plantinga considera serem apropriadamente básicas como crenças susten­
tadas por indícios adequados, temos de compreender que, segundo a sua
concepção de indício, uma crença apropriadamente básica é uma crença que
não se baseia em quaisquer indícios de todo em todo, pois para Plantinga os
indícios são apenas proposições em que se acredita. Desse ponto de vista,
uma crença apropriadamente básica não é sequer adoptada com base em
indícios, porquanto uma crença básica não se baseia noutras crenças que
adoptamos. Assim, se aceitarmos a concepção que Plantinga tem de «bons
indícios», segundo a qual estes consistem noutras crenças racionais que
geram a crença em causa, tornando-a racional, concluímos que uma crença
apropriadamente básica é uma crença racional que não adoptamos com base
em quaisquer indícios.
Dada a sua concepção de «indício», pode-se agora ver como Plantinga
defende a tese aparentemente espantosa de que é racional acreditar em Deus
na ausência de quaisquer indícios. Isto não é senão a afirmação de que as
pessoas por vezes se encontram em situações que geram e tornam racional
a crença de que Deus existe, ainda que estas situações não incluam crenças
racionais que sirvam de base à crença de que Deus existe, adoptada por essas
pessoas. Que situações deste género há? O que nos ocorre primeiro são as
experiências religiosas que considerámos no capítulo anterior. Pode-se ter
uma experiência que aparentemente é um encontro directo com Deus, for­
mar imediatamente a crença de que se tem experiência de Deus, e a partir daí

162
Fé c razão

concluir que Deus existe. Nesta situação, a crença de que se tem experiência
de Deus é básica, e será apropriadamente básica no caso de a experiência
da pessoa e a situação em que ela se encontra tornarem a crença racional.
Por outro lado, a partir' desta crença básica pode-se inferir imediatamente
a crença na existência de Deus, que por isso, estritamente falando, não é ela
mesma básica. (Plantinga observa que, tipicamente, a crença na existência
de Deus se infere a partir de crenças básicas que a implicam directamente.)
Plantinga, contudo, sugere um âmbito consideravelmente amplo de situações
que do seu ponto de vista geram uma crença apropriadamente básica que
implica directamente a existência de Deus.

«Ao 1er a Bíblia, pode-se ñcar impressionado com uma profunda sensação de
que Deus se nos dirige. Ao fazer o que considero desprezível, errado ou imoral,
posso sen tir-m e culpado aos olhos de Deus e formar a crença D eus desaprova
a m inha acção. Ao confessar-m e e ar repender-m e, posso sen tir-m e perdoado,
formando a crença Deus perdoa a minha acção.»77

É evidente que sentir-se culpado aos olhos de Deus não é em si suficiente


para justificar racionalmente a crença básica de que Deus desaprova o que
se fez. Pois suponha-se que o leitor também tem razões muito fortes para
acreditar que não pode deixar de se sentir religiosamente culpado quando faz
algo perverso, dada a sua educação religiosa austera. Isto é, tem boas razões
para acreditar que, independentemente de Deus existir ou não, sentir-se-á
religiosamente culpado ao fazer algo perverso, dada a sua educação religiosa.
Nesta situação, pode não ser racional adoptar a crença de que Deus desaprova
o que fez. Pois sabe que mesmo que Deus não exista, continuaria a sentir-se
religiosamente culpado ao fazer algo perverso.

77. «Is Belief in God Properly Basic?», NOUS 15 (1981), p. 46. [«É a Crença em Deus
Apropriadamente Básica?», in A Ética da Crença, org. Desiderio Murcho, Lisboa:
Bizâncio, 2010.]

163
Introdução à Filosofia da Religião

O que acabamos de ver lembra-nos outra consideração geral: quando


se tem aparentemente uma experiência de X, até que ponto isso justifica
racionalmente a crença em X? Posso ter uma experiência que considero ser
a percepção de uma parede vermelha. Mas essa experiência não tornará
racional a afirmação de que estou a ver uma parede vermelha se sei que
a parede está iluminada por lâmpadas vermelhas. Pois nesse caso sei que
mesmo que a parede seja branca (e não vermelha) parecer-m e-á verm e­
lha. Assim, para que uma situação torne racional a minha crença de que
há uma parede vermelha ou a minha crença de que Deus desaprova o que
h z, tem de incluir não só uma experiência adequada mas também uma
condição grosso modo semelhante à ausência de boas razões para pensar
que a crença é falsa ou que a experiência não aponta suficientemente para
a verdade da crença.
Tendo visto o que uma situação tem de incluir para que uma crença
formada nessa situação seja apropriadamente básica (isto é, básica e que a
situação toma racional), podemos ter alguma hesitação em concordar com
a tese de Plantinga de que abundam as situações nas quais a crença em Deus
(ou alguma crença que directamente a implique) é de facto apropriadamente
básica. Mas se aceitarmos as restrições que Plantinga impõe aos indícios a
favor de outras crenças que temos na base das quais se infere a crença em
causa, penso que temos de concordar em que há de facto situações nas quais
a crença em Deus é apropriadamente básica. Plantinga dá o exemplo de um
teísta de catorze anos, educado para acreditar no teísmo, numa comunidade
onde todos acreditam no mesmo.

«Podemos supor que este teísta de catorze anos não acredita em Deus com base
em indícios. Nunca ouviu falar no argumento cosmológico, teleológico ou onto­
lógico; na verdade, ninguém alguma vez lhe apresentou quaisquer indícios de
todo em todo. E embora lhe tenham falado muitas vezes em Deus, ele não vê
esses testemunhos como indícios; não raciocina da seguinte maneira: «todos
aqui afirmam que Deus nos ama e se preocupa connosco; quase tudo o que dizem

164
Fé e razão

é verdade; portanto isso é provavelmente verdade». Ao invés, lim ita-se a acre­


ditar no que lhe ensinam. » 78

Evidentemente, na situação descrita, o nosso rapaz de catorze anos tem


uma crença básica em Deus e tem justificação racional para adoptar essa
crença. Porquanto parte do que foi estipulado para esta situação é que ele não
tem boas razões (e não seria plausível esperar que tivesse) para pensar que
Deus não existe ou que a sua comunidade pode não ter justificação racional
para adoptar as suas crenças religiosas. Informam-nos de que o rapaz não
infere a sua crença a partir de quaisquer outras crenças que tenha, o que
garante o carácter básico da sua crença em Deus. Este é portanto um exemplo
inequívoco em que a crença em Deus é apropriadamente básica. É evidente,
além disso, que não é assim tão difícil formar crenças apropriadamente bási­
cas, em particular quando pensamos num crente de tenra idade, inserido
numa comunidade de crentes. Tivesse o nosso rapaz de catorze anos sido
educado de acordo com estipulações semelhantes numa comunidade de ateus
e a sua crença de que Deus não existe seria apropriadamente básica. E se as
crianças muito jovens podem ter crenças racionalmente justificadas, muitos
de nós — pelo menos durante algum tempo — tiveram uma crença apropria­
damente básica na existência do Pai Natal. Pois os nossos pais disseram-nos
que tal ser existia e acreditámos imediatamente na existência do Pai Natal
sem que tenhamos inferido esta crença a partir de outras que já tínhamos.
Evidentemente, ao contrário da crença em Deus, após um período de tempo
relativamente curto, os nossos semelhantes arranjam maneira de nos libertar
desta crença, pelo que deixou de ser apropriadamente básica.
A questão interessante levantada pelo nosso exame da perspectiva de
Plantinga é a de a crença em Deus (ou as crenças que implicam directamente
a existência de Deus) poder ou não ser apropriadamente básica para adul­
tos contemporâneos, relativamente sofisticados, que contactaram com 1)

78, Plantinga, «Reason and Belief in God», p. 33.

165
Introdução à Filosofia da Religião

as razões a favor da descrença predominantes na nossa cultura e com 2) a


disparidade entre as religiões do mundo no que diz respeito, a que crenças
religiosas se sustentam racionalmente em experiências religiosas. O nosso
teísta de catorze anos não só não ouviu falar no argumento ontológico como
também podemos supor que nunca reflectiu na abundância de dor e sofri­
mento intensos que ocorrem diariamente no nosso mundo, e que nunca
pensou seriamente na questão de todo este sofrimento, aparentemente sem
qualquer sentido, ser ou não permitido por um ser omnipotente, omnisciente
e perfeitamente bom. Tão-pouco o nosso rapaz de catorze anos leu e avaliou
as teorias psicológicas e sociológicas que procuram explicar, num enqua­
dramento naturalista (em vez de sobrenaturalista), a emergência de crenças
e experiências religiosas. A questão que se põe é se um adulto inteligente,
que tenha investigado estas matérias, tem ou não justificação racional para
acreditar em Deus na ausência total de argumentos sérios a favor do teísmo.79
Além disso, o que acontece se o nosso teísta cristão de catorze anos entrar
em contacto com outras tradições religiosas — o judaísmo, o islamismo, o
hinduísmo, o jainismo, 0 budismo — e concluir acertadamente que os rapazes
de catorze anos nessas tradições também têm crenças religiosas apropria­
damente básicas, com justificações muito semelhantes à sua? Suponha-se
que ele compreende que se tivesse nascido hindu acreditaria em Brama, e
não em Deus, de uma maneira apropriadamente básica. Se concluir então
que o divino não pode ser ao mesmo tempo Deus e Brama, não sentirá a
necessidade de ter algo como argumentos e razões a favor do teísmo cristão,
contra as afirmações religiosas do budismo?80Assim, embora Plantinga tenha
estabelecido que a crença em Deus pode ser apropriadamente básica em situa­
ções como a do rapaz de catorze anos, permanece em aberto a questão de a

79. Esta crítica é desenvolvida por Philip L. Quinn in «In Search of the Foundations of
Theism», Faith and Philosophy 2 (1985), pp. 469-486, Para uma perspectiva relacio­
nada, ver Stephen J. Wykstra, «Toward a Sensible Evidentialism: On the Notion of
“Needing Evidence”» , in Philosophy of Religion: Selected Writings, 3.a ed., org. W.L.
Rowe e W.J. Wainwright (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), pp. 481-491.
80. Regressaremos a esta questão no Capítulo 11: Pluralidade de Religiões.

166
Fé e razao

crença em Deus poder ou não ser apropriadamente básica para adultos con­
temporâneos, inteiectualmente sofisticados, informados acerca da existência
de tradições religiosas muito diferentes e das principais razões a favor da
descrença que predominam na nossa cultura.
A defesa de Plantinga do carácter apropriadamente básico da crença
teísta em Deus tem também de explicar por que razão tantos seres huma­
nos, racionais em todos os outros aspectos, nunca conseguem alcançar uma
crença apropriadamente básica na existência de Deus. À primeira vista, pen­
saríamos que se Deus existe e nos criou com a tendência para formar crenças
teístas em circunstâncias diversas, a quantidade de pessoas a fazê-lo seria
maior, o que resultaria numa quantidade muito menor de ateus e agnósticos,
além de crentes cuja perspectiva do divino difere radicalmente do Deus do
teísmo clássico — como muitos hindus ou budistas, por exemplo. Respon­
dendo a esta objecção, Plantinga sugere que o pecado humano pode distorcer
o funcionamento adequado da faculdade cognitiva, o nosso sentido do divino,
que nas condições adequadas dá lugar à crença no Deus do teísmo. Pelo que
a sua defesa do carácter apropriadamente básico da crença teísta depende
em parte da verdade das afirmações do teísmo ortodoxo acerca de Deus e do
pecado humano. Embora seja improvável que esta perspectiva ganhe sim­
patizantes e influencie ateus e agnósticos, esse facto não é muito im por­
tante para saber se a perspectiva é verdadeira ou falsa. É evidente que esta
sofisticada teoria apresenta uma nova abordagem da questão da justificação
racional da crença teísta. E num período em que a confiança nos argumentos
tradicionais a favor da existência de Deus está em declínio, merece a atenção
cuidada dos estudantes de filosofia da religião.81

81. O trabalho principal de Plantinga, onde expoe a sua perspectiva, é Warranted Chris-
tian Belief (Oxford: Oxford University Press, 1999).

167
Introdução à Filosofia da Religião

REVISÃO

1. O que entende Tomás por fé e como pensa que se relaciona com a razão?
2. Quais são as duas regras que regem as crenças, segundo Clifford? James
aceita ambas, apenas uma, ou nenhuma? Explique.
3. Explique o que James entende por opção genuína. Terá James razão ao
pensar que a hipótese religiosa nos surge como uma opção genuína inte­
lectualmente indecidível? Explique.
4. Quais são as semelhanças e diferenças entre as perspectivas de James e
de Tomás quanto à fé? Como procura cada um deles mostrar que a fé não
é irrazoável?
5. O que é uma crença apropriadamente básica? Em que situações pode a
crença em Deus ser apropriadamente básica? Explique.

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Clifford defende que nunca é correcto fazer seja 0 que for que enfraqueça
«o hábito de testar as coisas e investigá-las». Concorda com Clifford? Se
não, porquê? Se concorda com Clifford, a defesa que James faz da política
do crente parece-lhe plausível? Explique.
2. Avalie criticamente o argumento, mencionado no início deste capítulo,
a favor da perspectiva de que a natureza da religião exige que as suas
crenças assentem na fé, e não na razão.

168
Capitulo 7
0 problema do ma

Temos procurado familiarizar-nos até agora com a principal ideia de Deus


que emergiu na civilização ocidental ~ a ideia teísta de um ser perfeitamente
bom, criador do mundo mas separado e independente do mesmo, omnipo­
tente, omnisciente, eterno e auto-existente (Capítulo i) — e examinámos
algumas das principais tentativas de justificar a crença na existência do
Deus teísta (capítulos 2 a 5). Nos capítulos 2 a 4 ponderámos os três prin­
cipais argumentos a favor da existência de Deus (cosmológico, ontológico
e do desígnio), argumentos que apelam a factos supostamente acessíveis a
qualquer pessoa racional, religiosa ou não. E no Capítulo 5 examinámos a
experiência religiosa e mística como uma fonte da crença em Deus e como
justificação para a mesma. No Capítulo 6 considerámos o papel da fé na for­
mação e na sustentação das crenças religiosas, reflectindo no papel legítimo
que as razões pragmáticas desempenham, por contraste com as razões con­
ducentes à verdade, na justificação da crença religiosa. Também considerá­
mos a importante questão de a crença em Deus poder ter ou não justificação
racional como crença apropriadamente básica, sem que tenha justificação
em termos de indícios derivados de outras crenças. Chegou agora a altura
de nos voltarmos para algumas das dificuldades que a crença teísta enfrenta
— algumas das fontes que se pensa justificarem o ateísmo, a crença de que o
Deus teísta não existe. A mais formidável destas dificuldades é o problema
do mal.

169
Introdução à Filosofia da Religião

Há séculos que se sente que a existência de mal no mundo é um problema


para o teísmo. Parece difícil acreditar que um mundo que contenha uma
abundância de mal tão vasta como o nosso possa ser a criação e o objecto de
controlo soberano por parte de um ser perfeitamente bom, omnipotente e
omnisciente. Há séculos que o intelecto humano se confronta com este pro­
blema e todos os principais teólogos procuraram solucioná-lo.
Temos de ter o cuidado de distinguir entre duas versões importantes do
problema do mal. Chamar-lhes-ei «versão lógica do problema do mal» e «ver­
são indiciária do problema do mal». Embora a diferença importante entre estas
duas versões do problema do mal só se torne completamente clara à medida
que ambas forem discutidas em detalhe, será útil ter diante de nós uma breve
formulação de ambas as versões do problema, no início da nossa investigação.
A versão lógica do problema do mal é a perspectiva de que a existência de mal
no nosso mundo é logicamente inconsistente com a existência do Deus teísta.
A versão indiciária do problema do mal é a perspectiva de que a diversidade e
a abundância de mal no nosso mundo, embora talvez não sejam logicamente
inconsistentes com a existência do Deus teísta, dão, ainda assim, uma sus­
tentação racional ao ateísmo, a crença de que o Deus teísta não existe. Temos
agora de examinar cada uma destas versões do problema com algum detalhe.

O PROBLEMA LÓGICO

A versão lógica do problema implica a inconsistência interna do teísmo, por­


quanto o teísta aceita duas afirmações que são logicamente inconsistentes
entre si. As duas afirmações em causa são:

1. Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom.


2. O mal existe.

Estas duas afirmações, insiste o defensor da versão lógica do problema, são


logicamente inconsistentes entre si, do mesmo modo que

170
O problema do mal

3. Este objecto é vermelho,

é inconsistente com

4. Este objecto não é colorido.

Suponhamos, por enquanto, que o defensor da versão lógica do problema do


mal conseguia provar-nos que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsis­
tentes entre si. Seríamos então forçados a rejeitar ou 1 ou 2, visto que, se duas
afirmações são logicamente inconsistentes entre si, é impossível que ambas
sejam verdadeiras. Necessariamente, se uma delas é verdadeira, a outra é falsa.
Além disso, como difícilmente poderíamos negar a realidade do mal no nosso
mundo, parece que teríamos de rejeitar a crença no deus teísta; seríamos
levados à conclusão de que o ateísmo é verdadeiro. Na verdade, mesmo sendo
tentados a rejeitar 2, restando-nos a opção de acreditar em 1, esta não é uma
tentação a que os teístas na sua maioria possam ceder facilmente. Pois que na
sua maioria os teístas aderem a tradições religiosas que dão ênfase à realidade
do mal no nosso mundo. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, o homicídio
é considerado uma acção má e pecaminosa, e dificilmente se poderá negar a
ocorrência de homicídios no nosso mundo. Então, como os teístas em geral
aceitam a realidade do mal no nosso mundo e a destacam, seria algo desas­
troso para o teísmo se estabelecêssemos aquela que é a afirmação central da
versão lógica do problema do mal: que 1 é logicamente inconsistente com 2.

Estabelecendo a inconsistência

Como podemos estabelecer que duas afirmações são inconsistentes entre si?
Por vezes não é preciso estabelecer seja o que for, porque as duas afirmações
contradizem-se explícitamente, como, por exemplo, as afirmações: «Eli-
sábete tem mais de um metro e meio» e «Elisabete não tem mais do que
um metro e m eio». É frequente, contudo, duas afirmações inconsistentes

171
introdução à Filosofía da Religião

entre si não serem explícitamente contraditórias. Nesses casos, podemos


estabelecer que são inconsistentes derivando delas duas afirmações que são
explicitamente contraditórias. Considere-se as afirmações 3 e 4, por exemplo.
É evidente que estas duas afirmações são logicamente inconsistentes entre si;
não podem ser ambas verdadeiras. Mas não são explícitamente contraditórias.
Se nos pedirem para provar que 3 e 4 são inconsistentes entre si, podemos
fazê-lo derivando a partir delas afirmações que são explícitamente contra­
ditórias. Para o fazer temos de acrescentar outra afirmação a 3 e 4 :

5. Tudo o que é vermelho é colorido.

De 3 , 4 e 5 podemos então derivar facilmente um par de afirmações explíci­


tamente contraditórias: «Este objecto é colorido» (de 3 e 5) e «Este objecto
não é colorido» (repetição de 4). Este é, então, 0 procedimento que podemos
seguir se nos pedirem para estabelecer que duas afirmações são logicamente
inconsistentes entre si.
Antes de considerar seo defensor da versão lógica do problema do mal
pode ou não estabelecer que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsis­
tentes entre si, temos de compreender claramente um detalhe muito impor­
tante acerca do modo de o fazer. Quando temos duas afirmações que não são
explicitamente contraditórias e queremos estabelecer que são logicamente
inconsistentes, fazemo-lo acrescentando-lhes uma afirmação ou afirma­
ções adicionais e derivando de todo o grupo (o par original e a afirmação ou
afirmações adicionais) um par de afirmações que sejam explícitamente con­
traditórias entre si. O detalhe que agora requer muita atenção é o seguinte:
para que este procedimento funcione, a afirmação ou as afirmações adicionais
têm não só de ser verdadeiras mas necessariamente verdadeiras. Repare-
-se, por exemplo, que a afirmação que adicionámos a 3 e 4 para estabelecer
que são inconsistentes entre si é uma verdade necessária — é logicamente
impossível que algo seja vermelho sem ser colorido. Se, contudo, a afirmação
ou as afirmações adicionais usadas para deduzir as afirmações explícitamente
O problema do mal

contraditórias são verdadeiras, mas não necessariamente verdadeiras, então,


embora possamos ter êxito ao deduzir afirmações explicitamente contradi­
tórias, não teremos conseguido mostrar que as duas afirmações originais são
logicamente inconsistentes entre si.
Para ver que isto é assim consideremos o seguinte par de afirmações:

6. O objecto na minha mão direita é uma moeda.


7. O objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cêntimos.

Como é evidente, 6 e 7 não são logicamente inconsistentes entre si, visto que
ambas podem ser verdadeiras, ou poderiam ter sido. Não são logicamente
inconsistentes entre si porque nada há logicamente impossível na ideia de que a
moeda na minha mão direita seja uma moeda de vinte e cinco ou de cinquenta
cêntimos. (Contraste-se 6 e 7 com 3 e 4 - É óbvio que há algo de logicamente
impossível na ideia de que um dado objecto é vermelho e no entanto não é
colorido.) Mas note-se que podemos adicionar a 6 e 7 uma afirmação tal que
a partir das três se podem derivar afirmações explicitamente contraditórias.

8. Todas as moedas na minha mão direita são moedas de dez cêntimos.

A partir de 6, 7 e 8 podemos derivar o par de afirmações explicitamente con­


traditórias: «O objecto na minha mão direita é uma moeda de dez cêntimos»
(de 6 e 8) e «O objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cênti­
mos» (repetição de 7). Agora suponha-se que 8 é verdadeira, quena verdade
todas as moedas na minha mão direita são de dez cêntimos. Teremos conse­
guido, então, deduzir afirmações explicitamente contraditórias a partir do
nosso par original, 6 e 7, com a ajuda da afirmação verdadeira 8. Mas é claro
que com este procedimento não teremos estabelecido que 6 e 7 são logica­
mente inconsistentes entre si. Porque não? Porque 8 — a afirmação adicional
— embora verdadeira, não é necessariamente verdadeira. A afirmação 8 não
é necessariamente verdadeira porque eu podia (logicamente) ter uma moeda

173
Introdução à Filosoña da Religião

de vinte e cinco cêntimos ou de cinquenta cêntimos na minha mão direita. A


afirmação 8 é de facto verdadeira, mas, como podia logicamente ter sido falsa,
não é uma verdade necessária. Temos então de ver muito claramente que, para
estabelecer a inconsistência lógica entre duas afirmações adicionando uma
afirmação e derivando ahrmações explicitamente contraditórias, a afirmação
adicional tem de ser não só verdadeira mas necessariamente verdadeira.

Aplicação ao problema lógico do mal

Como i) «Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom» e


2) «O mal existe» não são explicitamente contraditórias, quem defende que
1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si tem de legitimar esta afirmação
adicionando uma afirmação necessariamente verdadeira a 1 e 2 e deduzindo
ahrmações explicitamente contraditórias. Mas que ahrmação poderíamos
acrescentar? Suponha-se que começamos com

9. Um ser omnipotente, omnisciente, perfeitamente bom impedirá a ocor­


rência seja de que mal for.

De 1, 2 e 9 podemos derivar as ahrmações explicitamente contraditórias


«Nenhum mal existe» (de 1 e 9) e «O mal existe» (repetição de 2). Assim, se
pudermos mostrar que a ahrmação 9 é necessariamente verdadeira, teremos
conseguido estabelecer a tese da versão lógica do problema do mal: que 1 e
2 são logicamente inconsistentes entre si. Mas será 9 necessariamente ver­
dadeira? Relembrando a nossa discussão da omnipotência, parece que Deus
teria o poder de impedir qualquer mal que fosse, pois «impedir a ocorrência
de um mal» não parece uma tarefa logicamente contraditória, como «fazer
um quadrado redondo». Mas não é fácil estabelecer que 9 é necessariamente
verdadeira. Visto que na nossa própria experiência sabemos que o mal está
por vezes ligado ao bem de tal modo que não podemos alcançar 0 bem sem
permitir o mal. Além disso, em tais exemplos, o bem por vezes supera o mal,

174
O problema do mal

de modo que um ser bom pode permitir intencionalmente a ocorrência do


mal para realizar um bem que se lhe sobrepõe.
Gottfried Leibniz dá o exemplo de um general que sabe que para alcançar
o bem de salvar a cidade de ser destruída às mãos de um exército inimigo
tem de ordenar aos seus homens que a defendam, o que resultará na morte
e no sofrimento de alguns deles. O bem de salvar as mulheres e crianças da
cidade supera o mal do sofrimento e da morte de alguns dos seus defensores.
Embora o general possa impedir que estes sofram e morram, ordenando às
suas forças que retirem rapidamente, não o pode fazer sem abdicar do bem de
salvar a cidade e os seus habitantes. Seguramente que não pesamos contra a
bondade do general o facto de este permitir a ocorrência do mal para alcançar
o bem maior. Talvez, portanto, alguns males no nosso mundo estejam ligados
a bens que os superam, de tal maneira que nem Deus pode alcançar os bens
em causa sem permitir que ocorram os males ligados a esses bens. A ser assim,
a ahrmação 9 não é necessariamente verdadeira.
É claro que, ao contrário do general, o poder de Deus é ilimitado, e
poder-se-á pensar que, por muito que o bem e o mal estejam intimamente
ligados, Deus podia sempre alcançar o bem e impedir o mal. Mas isto é igno­
rar a possibilidade de a ocorrência de alguns males no nosso mundo ser logi­
camente necessária para a obtenção de bens que os superam, de maneira
que a tarefa de dar lugar a esses bens sem permitir os males associados é tão
impossível como fazer um quadrado redondo. Assim, mais uma vez, embora
Deus, sendo omnipotente, possa impedir que os males em causa ocorram,
não pode, apesar da sua omnipotência, alcançar os bens maiores e ao mesmo
tempo impedir a ocorrência de tais males.82Portanto, uma vez que 1) a omni­
potência não é o poder de fazer o que é logicamente impossível e 2) pode

82, Suponha-se, por exemplo, que há ocasiões em que o acto de perdoar a alguém uma má
acção é um bem que supera o mal cometido que se está a perdoar. Como é óbvio, nem
um ser omnipotente poderia causar este bem sem permitir a má acção que o bem supera.
Mais uma vez, suportar corajosamente a dor pode ser um bem que ocasionalmente
supera o mal da dor que é corajosamente suportada. Mas é logicamente impossível que
alguém suporte corajosamente uma dor atroz, sem que ocorra uma dor atroz.

175
Introdução à Filosofia da Religião

ser logicamente impossível impedir a ocorrência de determinados males no


nosso mundo e ainda assim alcançar alguns bens muito importantes, que
superam esses males, não podemos estar certos de que a afirmação 9 é neces­
sariamente verdadeira; não podemos estar certos de que um ser omnipotente
e perfeitamente bom impedirá a ocorrência seja de que mal for.
Acabámos de ver que a tentativa de estabelecer que 1 e 2 são inconsisten­
tes entre si deduzindo afirmações explícitamente contraditórias a partir de 1,
2 e 9 é um fracasso. Pois embora 1, 2 e 9 permitam de facto gerar afirmações
explícitamente contraditórias, não temos como saber se 9 é necessariamente
verdadeira.
Da discussão anterior vem-nos a sugestão de permutar 9 por

10. Um ser bom, omnipotente e omnisciente impede a ocorrência de qual­


quer mal que não seja logicamente necessário à ocorrência de um bem
que o supere.

A afirmação 10, ao contrário da 9, considera a possibilidade de determinados


males estarem de tal modo ligados a bens que os superam, que nem Deus
possa realizar esses bens sem permitir que os males ocorram. A afirmação 10,
então, não parece apenas verdadeira, mas antes necessariamente verdadeira.
O problema agora, contudo, é que a partir de 1, 2 e 10 não se pode derivar
afirmações explícitamente contraditórias. Tudo o que podemos concluir a
partir de 1, 2 e 10 é que os males que existem no nosso mundo são logica­
mente necessários à ocorrência de bens que os superam, e essa afirmação não
é uma contradição explícita.
É agora patente a dificuldade geral que afecta as tentativas de estabele­
cer que 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si. Quando adicionamos
uma afirmação como 9, que nos permite derivar afirmações explícitamente
contraditórias, não podemos estar certos de que essa afirmação adicional é
necessariamente verdadeira. Por outro lado, quando adicionamos uma afir­
mação como 10, que parece necessariamente verdadeira, verificamos que não

176
O problema do mal

é possível derivar afirmações explícitamente contraditórias. Ninguém con­


seguiu apresentar uma afirmação que saibamos ser necessariamente verda­
deira e que, adicionada a i e 2, nos permita derivar afirmações explícitamente
contraditórias. Por consequência, é razoável concluir que a versão lógica do
problema do mal não é um grande obstáculo para o teísmo. Ninguém conse­
guiu estabelecer a tese central deste problema, de que 1 e 2 são logicamente
inconsistentes entre si, por meio de um argumento convincente.

A «defesa do livre-arbítrio»

Antes de nos voltarmos para a versão indiciária do problema do mal, é


importante que compreendamos a influência de uma defesa tradicional do
teísmo contra a versão lógica do problema do mal. Segundo esta defesa — a
«defesa do livre-arbítrio» — Deus, apesar da sua omnipotência, pode não ter
sido capaz de criar um mundo com criaturas humanas livres sem com isso
permitir a ocorrência de uma quantidade considerável de mal. Esta defesa
depende da suposição básica de que é logicamente impossível realizar livre­
mente uma acção e estar, ao mesmo tempo, causalmente determinado a
realizar essa mesma acção. Sem esta suposição, a defesa com base no livre-
-arbítrio desmorona-se. Pois se se pode estar causalmente determinado a
realizar uma acção e ainda assim realizar essa acção livremente, então parece
claro que Deus poderia ter criado um mundo com criaturas humanas livres
que não agissem senão correctamente, que nunca praticassem o mal — pois
que, sendo omnipotente, poderia simplesmente criar as suas criaturas e
determiná-las causalmente a fazer apenas o que é correcto.
Suponhamos que o pressuposto fundamental da defesa do livre-arbítrio
é verdadeiro, que é logicamente impossível estar causalmente determinado a
realizar uma acção e no entanto realizá-la livremente. Este pressuposto significa
que, embora Deus possa causar a existência de criaturas e determiná-las causal­
mente a ser livres a respeito de uma certa acção, não pode determiná-las cau­
salmente a praticarem ou a absterem-se de praticar essa acção livremente; quer

177
Introdução à Filosoña da Religião

a pessoa pratique a acção ou se abstenha de a praticar, isso dependerá da pessoa e


não de Deus, no caso de a prática ou a abstenção serem livres. Suponha-se agora
que Deus cria um mundo com criaturas humanas livres, com a liberdade de fazer
diversas coisas, incluindo bem e mal. Se as criaturas humanas livres criadas por
Deus exercem a sua liberdade para fazer bem ou para fazer mal, é uma opção
delas. E é logicamente possível que, independentemente de que criaturas livres
Deus decida trazer à existência, todas se servirão por vezes da liberdade para fazer
mal. Sendo assim, é possível que Deus não pudesse ter criado um mundo com
criaturas livres que não agissem senão correctamente; é possível que qualquer
mundo que Deus pudesse criar tendo criaturas com a liberdade de agir bem ou
mal fosse um mundo em que estas criaturas por vezes agem mal.
A anterior linha de raciocínio procura estabelecer que a verdade da
seguinte afirmação é logicamente possível:

li. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo em que há
criaturas humanas livres e nenhum mal.

Mas se é possível 11 ser verdadeira e se também é possível que um mundo com


criaturas humanas livres seja melhor do que um mundo sem criaturas huma­
nas livres, segue-se que i e 2 não são de modo algum inconsistentes entre si.
Pois considere-se o seguinte grupo de afirmações:

I. Deus existe, é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom.


II. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo com cria­
turas humanas livres e nenhum mal.
12. Um mundo com criaturas humanas livres e algum mal é melhor do que
um mundo sem criaturas humanas livres.
13. Deus cria o melhor mundo que pode.

De 1,11,12 e 13 segue-se 2: «O mal existe». Mas se 1,11,12 e 13 implicam 2 e


não há inconsistência entre 1,11,12 e 13, então não pode haver inconsistência

178
O problema do mai

entre i e 2. Se num grupo de afirmações não há inconsistencia entre elas,


então nenhuma afirmação que se siga desse grupo de afirmações pode ser
inconsistente com uma ou mais afirmações do mesmo grupo.
Podemos agora ver qual a relevância da defesa do livre-arbítrio para
a versão lógica do problema do mal, Objectámos à última porque ninguém
conseguiu estabelecer a tese central desta versão do problema: que 1) «Deus
é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom» é inconsistente com 2)
«O mal existe». Mas, evidentemente, do facto de ninguém ter provado que
1 e 2 são inconsistentes entre si não se segue que elas não são inconsisten­
tes entre si. A defesa do livre-arbítrio procura dar o último passo: provar
que 1 e 2 são mesmo consistentes entre si. Fá-lo tentando estabelecer que é
possíueí (logicamente) 11 e 12 serem verdadeiras e não haver inconsistência
lógica entre as afirmações do grupo formado por 1,11,12 e 13. A questão de a
defesa do livre-arbítrio conseguir ou não mostrar que 1 e 2 são logicamente
consistentes entre si é um assunto demasiado complicado e controverso para
o desenvolvermos neste livro.83 Mesmo que não o consiga, porém, o teísta
não tem de se preocupar demasiado com a versão lógica do problema do mal,
pois, como vimos, ninguém estabeleceu que 1 e 2 são inconsistentes entre si.

O PROBLEMA INDICIÁRIO

Volto-me agora para a versão indiciária do problema do mal — a versão


do problema segundo a qual a diversidade e a abundância de mal no nosso
mundo, embora talvez não sejam logicamente inconsistentes com a exis­
tência de Deus, nos dão ainda assim uma base racional para acreditar na
inexistência do Deus teísta. Ao desenvolver esta versão do problema do mal,
será útil centrarmo-nos num mal particular que o nosso mundo contenha
em considerável abundância. O sofrimento intenso em seres humanos ou

83. Pode-se encontrar uma explicação mais elaborada da defesa do livre-arbítrio em Alvin
Plantinga, God, Freedom and Evil (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1974).

179
Introdução à Filosofia da Religião

animais, por exemplo, ocorre quotidiana e abundantemente no nosso mundo.


Tal sofrimento intenso é um inequívoco exemplo de mal. Claro que se o sofri­
mento intenso conduzir a algum bem superior, um bem que não podería­
mos obter sem suportar o sofrimento em causa, poderíamos concluir que o
sofrimento é justificado, mas apesar disso continua a ser um mal. Pois não
podemos confundir o sofrimento intenso em si e por si com as coisas boas a
que por vezes conduz ou das quais pode ser uma parte necessária. O sofri­
mento intenso nos seres humanos ou animais é mau em si, é um mal, ainda
que por vezes se possa justificar em virtude de fazer parte de algum bem, ou
de conduzir a um bem inalcançável sem esse sofrimento. Por vezes, algo que
em si é mau pode ser bom como meio, por nos levar a algo que é bom em si.
Nesse caso, embora continuando a ser um mal em si, o sofrimento intenso
nos seres humanos ou animais é, não obstante, um mal que se pode ter jus­
tificação moral para permitir.
Encarar o sofrimento intenso nos seres humanos ou animais como um mal
intrínseco, contudo, não significa que a capacidade para ter experiência do
sofrimento intenso seja em si boa ou má. Como vimos, há alturas em que ter
experiência do sofrimento intenso é muito útil, na medida em que pode fazer-
-nos agir com rapidez no sentido de nos afastarmos de situações que nos são
prejudiciais. Assim, a capacidade para ter experiência de sofrimento intenso
é-nos útil. Além disso, por vezes, uma coisa que em si mesma é má (a dor ou o
sofrimento intenso) pode servir um bom propósito. A versão indiciaria do pro­
blema do mal baseia-se em exemplos de sofrimento intenso, em seres huma­
nos ou animais, que aparentemente não servem qualquer propósito benéfico.
Desenvolvemos aqui o argumento centrando-nos num exemplo de sofrimento
animal: um corço que fica horrivelmente queimado durante um incêndio pro­
vocado pela descarga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias
antes de morrer. Ao contrário dos seres humanos, não se atribui livre "-arbítrio
aos corços, pelo que não podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um
mau uso do livre-arbítrio. Porque permitiria então Deus que isto acontecesse
quando, se existe, poderia tê-lo impedido com tanta facilidade? Admite-se

180
O problema do mal

em geral que somos simplesmente incapazes de imaginar um bem superior


cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus permitir
que aquele corço sofra terrivelmente. Tão-pouco parece razoável supor que
há um mal imenso que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que
o corço sofresse durante cinco dias. Suponha-se que por «mal sem sentido»
entendemos um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com isso
perder um bem superior ou sem ter de permitir um mal igualmente mau ou
pior. Será que o sofrimento do corço é um mal sem sentido? Seguramente que
o terrível sofrimento do animal durante esses cinco dias não parece do nosso
ponto de vista fazer qualquer sentido. Quanto a isto, o consenso é, ao que
parece, quase universal. Pois dada a omnisciência e o poder absoluto de Deus,
ser-lhe-ia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido que o
corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos, é extraordinaria­
mente difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer
perspectiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente.
E é igualmente difícil imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se
visse forçado a permitir caso impedisse o sofrimento do corço. Parece, por­
tanto, perfeitamente razoável pensar que o sofrimento do corço é um mal sem
sentido, um mal que Deus {se existe) poderia impedir, sem com isso perder um
bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou pior.
A luz de tais exemplos de males horríveis, pode-se formular da seguinte
maneira o argumento indiciário:

1. Provavelmente, há males sem sentido {por exemplo, o sofrimento do


corço).
2. Se deus existe, não há males sem sentido.
Logo,
3. Provavelmente, Deus não existe.

Este argumento surge da perspectiva comum de que no nosso mundo ocor­


rem diariamente males terríveis, males que temos razões para pensar que um

181
Introdução à Filosofia da Religião

ser omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom teria impedido. E parece


dar-nos urna boa razão para considerar provável a inexistência de Deus.

RESPOSTAS AO PROBLEMA INDICIÁRIO

Das duas versões do problema do mal que consideramos, a primeira (a versão


lógica) não parece um obstáculo sério à crença teísta. A segunda (a versão indi-
cidria) parece um obstáculo importante, pois a sua tese básica — que a abun­
dância de males terríveis no nosso mundo nos dá uma razão para pensar que
Deus não existe — é aparentemente plausível. Temos agora de considerar duas
respostas importantes ao desaño colocado pelo problema indiciário do mal.

Teísmo céptico

Na área de estudos da ñlosoña surgiu uma posição conhecida como teísmo


céptico. Pode-se descrever grosso modo o teísmo céptico como a posição que
defende que os argumentos contra a verdade do teísmo pecam por pressu­
por a verdade de determinadas aürmações, as quais ou são falsas ou não se
demonstrou que são verdadeiras. A resposta do teísta céptico ao argumento
indiciário do mal é que a verdade da premissa crucial no argumento («pro­
vavelmente, há males sem sentido») permanece indemonstrada; visto que,
segundo o teísta céptico, não temos razões adequadas para sequer considerar
plausível a inexistência de um bem que justiñcasse a permissão por Deus quer
do sofrimento terrível do corço quer de qualquer outro exemplo semelhante,
de que tenhamos consciência. Porque nos dispomos a pensar que o sofri­
mento do corço, muito provavelmente, não tem qualquer sentido? É porque
não podemos conceber ou mesmo imaginar um bem que simultaneamente
superasse o sofrimento do corço e fosse tal que um ser omnipotente e omnis­
ciente não encontrasse maneira de produzir esse bem, ou um bem igual ou
superior, sem ter de permitir o sofrimento terrível do corço. Pense-se nova­
mente no sofrimento do corço. Não só está terrivelmente queimado, como

182
O problema do mal

agoniza durante cinco dias no chão da floresta, até Analmente sobrevir a


morte. Haverá algum bem importante que um ser omnipotente e omnisciente
só pudesse originar permitindo que aquele corço sofresse durante cinco dias
a Ao, em vez de, digamos, quatro, três, dois, um, ou mesmo nenhum — por
exemplo, fazendo por misericórdia que a morte do corço fosse simultânea às
suas terríveis queimaduras? A mente humana Aca perplexa com a ideia de que
um ser omnipotente e omnisciente se encontrasse em tais apuros. Mas a res­
posta do teísta céptico é que, tanto quanto sabemos, a razão por que a mente
humana Aca perplexa com este estado de coisas é simplesmente por não saber
o suAciente. Sugere que, se Deus existe e se soubéssemos o que ele sabe, então
talvez soubéssemos que Deus não chegou sequer a ter escolha. Pois, segundo
o teísta céptico, Deus podia muito bem saber que se impedisse que aquele
corço Acasse terrivelmente queimado, ou se retirasse apenas um aos cinco
dias de terrível sofrimento do corço, teria de permitir outro mal equivalente,
ou pior, ou teria de perder um bem importante, com o resultado de que o
mundo em geral seria pior do que é por Deus ter permitido que aquele corço
sofresse intensamente durante cinco dias. Além disso, o facto de não conse­
guirmos imaginar o que esse bem podia ser não é de modo algum surpreen­
dente, dada a disparidade entre os bens conhecfveis pelas nossas mentes e os
bens conhecfveis por um ser perfeitamente bom, omnisciente e criador do
mundo. Pelo que, segundo o teísta céptico, não estamos simplesmente em
condições de ajuizar razoavelmente que Deus poderia ter impedido os cinco
dias de terrível sofrimento do corço sem perder um bem superior ou sem
ter de permitir um mal equivalente ou pior. As nossas mentes limitadas são
simplesmente incapazes de conceber os bens que seriam acessíveis à mente
de Deus. E dado que somos simplesmente incapazes de conhecer muitos dos
bens que Deus conheceria, não é de modo algum espantoso o facto de ser
impensável que qualquer bem que conheçamos justiAque razoavelmente que
um ser inAnitamente bom e omnipotente permita o terrível sofrimento do
corço. Na verdade, dado o imenso abismo entre o conhecimento de Deus e o
nosso, o facto de nenhum bem que conheçamos parecer de modo algum jus-

183
Introdução à Filosofia da Religião

tiftcar que Deus permita o terrível sofrimento do corço é talvez precisamente :


aquilo que seria de esperar no caso de um ser como Deus existir realmente.84
Stephen Wykstra, defensor do teísmo céptico, argumentou que, para
acreditar razoavelmente na probabilidade de que o sofrimento do corço não
tçm sentido algum, temos de ter uma razão positiva para pensar que, no
caso de haver um bem que justificasse que Deus permitisse o sofrimento do
corço, provavelmente conheceríamos esse bem. Mas Wykstra afirma que,
muito provavelmente, os bens conhecíveis por Deus não são conhecíveis por
nós. Para ilustrar esta afirmação, Wykstra chama a atenção para que ao ins­
peccionar a sua garagem, não vendo lá cão algum, poderíamos concluir que
não há cão algum na garagem. Mas pelo facto de inspeccionar a sua garagem
e não ver lá pulgas, não poderíamos concluir que não há pulgas na garagem.
Pois temos razão para pensar que, se houvesse pulgas na garagem, prova­
velmente não as conseguiriamos ver. Assim, o facto de não sermos capazes
de conceber um bem que possa justificar que Deus permita o sofrimento do
corço não nos autoriza a pensar que não há tal bem. Pois, na perspectiva de
Wykstra, se houvesse tal bem visado por Deus para permitir o sofrimento do
corço, é bastante provável que não o conhecêssemos. Assim, o facto de não
podermos sequer imaginar o que tal bem seria, longe de ser uma razão para
pensar que a existência de Deus é improvável, é precisamente o que seria de
esperar no caso de Deus existir.
Wykstra reconhece que um deus perfeitamente bom só permitiria o
sofrimento, como o terrível sofrimento do corço, se «ao fazê-lo se alcançasse
um bem superior». Também observa «que tais bens, muitas vezes, ultrapas­
sam completamente a nossa compreensão». Mas então afirma:

84. Ver Stephen J. Wykstra, «The Humean Obstacle to Evidential Arguments from Suffer^
ing: On Avoiding the Evils of Appearance», International Journal for the Philosophy
of Religion 16 (1984): 73-93. Ver também William L. Rowe, «Evil and the Theistic
Hypothesis: A Response to Wykstra», International Journal for the Philosophy of:
Religion 16 (1984): 95-100.

184
O problema do mal

«O fulcro da minha crítica tem sido o de que isto é precisam ente o que seria de
esperar no caso de o teísm o ser verdadeiro: pois se pensarm os claram ente no
género de ser em que o teísmo propõe que acreditem os, é inteiram ente plausí­
vel — dado o que sabemos acerca dos nossos limites cognitivos — que estejam
normalmente muito além do nosso alcance os bens em virtude dos quais tal ser
perm ite o sofrim ento que conhecem os. Como esse estado de coisas é p recisa­
m ente o que seria de esperar no caso de o teísmo ser verdadeiro, com o pode a
sua constatação ser um indício contra o teísm o?» (p. 9 1 )

No seu ensaio, Wykstra faz notar que tanto entre os crentes como entre
os descrentes há uma «intuição de que o sofrimento inescrutável no nosso
mundo retira de alguma maneira a força ao teísmo». Observa também que os
crentes têm uma ñrme tendência natural para encarar 0 sofrimento inescrutá­
vel como uma dificuldade intelectual ou um obstáculo à crença, especialmente
quando afecta aqueles que essas pessoas mais amam, algo que na ausência de
uma explicação sensata tende a pesar contra 0 teísmo. Wykstra, não obstante,
pensa que esta intuição, comum a crentes e descrentes, é um erro. Pois tendo
em conta as nossas limitações e a omnisciência e a omnipotência de Deus,
Wykstra considera plausível que muito do sofrimento no nosso mundo seja
inescrutável para nós. Assim, conclui que os crentes e os descrentes simples­
mente não conseguem ver 0 que a hipótese teísta de facto inclui.
Ao defender a razoabilidade da suposição de que os bens que justificam
os males horrendos no nosso mundo não são conhecíveis por nós Wykstra
recorre à analogia dos bons pais. A ideia é que Deus, sendo perfeitamente
amoroso, é para nós humanos como os bons pais são para os seus filhos, a
quem amam. E tal como os seus filhos muitas vezes não conseguem com ­
preender os bens devido aos quais os seus dedicados pais permitem que lhes
aconteça coisas, também nós, seres humanos, não conseguimos compreender
os bens devido aos quais Deus permite que nós, as suas criaturas, sofram os
males que nos atingem. Todavia, não há um consenso genuíno relativamente
à questão de a analogia proposta ser assim tão favorável ao teísmo como

185
Introdução à Filosofia da Religião

Wykstra supõe. É verdade que os pais dedicados podem ter de permitir que os
seus filhos doentes sejam separados deles, internados num hospital, forçados
a tomar medicamentos que sabem mal e entregues ao cuidado de estranhos,
para que possam ficar curados. A criança muito jovem, evidentemente, pode
não compreender por que razão os seus pais o tiraram de casa e o deixa­
ram ao cuidado de estranhos. Da mesma maneira, dirá o teísta, um pecado
que cometemos ou algo que esteja além da nossa compreensão pode ter-nos
separado de Deus. Mas noutros aspectos a analogia dos bons pais não fun­
ciona. Quando as crianças estão doentes e internadas num hospital, os pais
dedicados procuram por todos os meios possíveis consolar o ñlho, dando-lhe
garantias especiais do amor que lhe têm enquanto está separado deles e a
sofrer por uma razão que não compreende. Nenhum pai dedicado aproveita a
ocasião de o seu filho estar no hospital para tirar férias, dizendo para consigo
que os médicos e enfermeiras vão seguramente tomar conta do Joãozinho
enquanto os pais estão fora. Mas inúmeros seres humanos, incluindo muitos
crentes, suportam um sofrimento horrível sem quaisquer garantias do amor
e da preocupação divinos enquanto este período de sofrimento dura. Pode-se
encontrar indícios a favor desta afirmação na bibliografia acerca das vítimas
do holocausto. Na verdade, ao contrário do que pensa Wykstra, algumas das
pessoas que ponderam a questão do silêncio e da ocultação de Deus concluem
que, dados os horrendos males no nosso mundo, a ausência de Deus é um
indício decisivo da sua inexistência.85 Seguramente, añrmam, se existisse um
Deus bondoso, este desejaria que tivéssemos conhecimento da sua presença,
dado que os males horrendos no nosso mundo parecem dar-nos razão para
duvidar da sua existência. Como Wykstra reconhece, muita gente considera
o mal e o sofrimento no nosso mundo razões para concluir que Deus não
existe. E a aparente ocultação de Deus parece apenas dar razões adicionais
para concluir que nenhum ser assim existe. Os teístas cépticos, contudo, cha-

85. Ver J.L. Schellenberg, Divine Hiddenness and Human Reason {Ithaca e Londres: Cor­
nell University Press, 1993).

186
O problema do mal

mam a atenção para um aspecto importante, argumentando que, se Deus


existe, como o seu conhecimento superaría por completo o nosso, é provável
que haja bens que o nosso conhecimento não abrange, embora acessíveis a
Deus, bens cuja realização, tanto quanto sabemos, pode justificar tanto o
ocultamento de Deus relativamente a nós como a permissão divina de todo
o sofrimento humano e animal que não decorre do mau uso do livre-arbítrio
humano. É claro que este problema continuará a ser uma questão importante
e controversa para o pensamento humano.

Teodiceias

A segunda resposta consiste em apresentar uma teodiceia — uma tentativa de


explicar que objectivos Deus poderia ter para permitir a abundância de mal
no nosso mundo. Ao contrário da resposta do teísmo céptico, que consiste
em questionar se se apresentou ou não razões suficientes para mostrar que
a premissa i do argumento indiciário é verdadeira, uma teodiceia procura
dar algumas razões positivas para pensar que a premissa i é provavelmente
falsa. Em vez de comentar muito brevemente diversas teodiceias — o mal
é o castigo pelo pecado, o mal deve-se ao livre-arbítrio, o mal é necessário
para que valorizemos o bem, etc. — será mais útil olhar com algum detalhe
para uma das teodiceias mais prometedoras, uma teodiceia da «edificação
da alma», desenvolvida e defendida pelo proeminente Mósofo e teólogo con­
temporâneo, John Hick .86
Antes de dar uma sinopse da teodiceia da edificação da alma, será útil
reflectir na relevância geral das teodiceias para o problema indiciário do mal.
O que se procura ao certo com uma teodiceia? Procura-se explicar com algum
detalhe qual é exactamente o bem que justifica a permissão divina do sofri-

86. Ver Hick: Evil and the God of Love (Nova Iorque: Harper and Row, 1966), em par­
ticular o Capítulo XVII dá edição revista, publicada em 1978, God and the Universe of
Faiths (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1973) e o Capítulo 4 de Philosophy of Religion,
4.a ed. (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1990).

187
Introdução ã Filosofia da Religião

mento do corço? Não. Tal explicação suporia um conhecimento dos objecti-


vos específicos de Deus, um conhecimento que seria irrazoável esperar que
tivéssemos sem que Deus no-lo revelasse detalhadamente. Uma teodiceia
procura ater-se a um bem {real ou imaginário) e argumentar que a obtenção
desse bem justificaria a permissão por um ser omnipotente de males como
o sofrimento do corço. Independentemente de obter o bem em causa ser ou
não a razão efectiva de Deus permitir males como o sofrimento do corço,
isto não faz parte daquilo que uma teodiceia procura estabelecer. Apenas
se pretende mostrar que se o objectivo de Deus ao permitir males como o
sofrimento do corço fosse obter o bem em questão, então (dado o que sabe­
mos) seria razoável acreditar que um ser omnipotente teria justificação para
permitir tais males. Assim, portanto, uma teodiceia procura pôr em dúvida
a premissa i do nosso argumento do mal.
0 sofrimento do corço é um exemplo de mal natural — um mal que resulta
de forças naturais. Quando alguém tortura e mata uma criança inocente, o
sofrimento da criança é um exemplo de mal moral — um mal que resulta da
decisão consciente de um agente pessoal. Segundo Hick, que bens se promove
pela abundância de mal natural e moral no nosso mundo? Na teodiceia de Hick
figuram dois bens. O primeiro é o estado em que se encontram todos os seres
humanos que se desenvolvem por meio das suas escolhas livres para se torna­
rem seres morais e espirituais. O segundo é o estado em que tais seres entram
numa vida eterna de felicidade e alegria na companhia de Deus. Comecemos a
nossa sinopse considerando o primeiro destes estados, aquele em que todos os
seres humanos se desenvolvem através das suas escolhas livres para se tornarem
seres morais e espirituais. Como podia a obtenção de tal bem justificar a per­
missão por um ser omnipotente e omnisciente de males como o sofrimento do
corço e o sofrimento da criança inocente, que é brutalmente torturada e morta?
Como o sofrimento do corço e o sofrimento da criança são, respecti­
vamente, exemplos de mal natural e de mal moral, podem exigir respostas
diferentes. Comecemos pelos horrendos males morais como o sofrimento da
criança enquanto é torturada. O primeiro passo de Hick é o de argumentar
O problema do mal

que, se o bem em causa é o desenvolvimento moral e espiritual através de


escolhas livres, então um ambiente em que não houvesse sofrimento sig­
nificativo, nenhuma ocasião para escolhas morais importantes, não seria
um mundo em que o crescimento moral e espiritual fossem possíveis. Em
particular, um mundo em que ninguém possa fazer mal aos outros, em que
nenhuma dor ou sofrimento resulte de qualquer acção, não seria um mundo
em que tal crescimento moral e espiritual pudesse ocorrer.
Penso que podemos conceder a Hick que um paraíso indolor, um mundo
em que ninguém se pudesse ferir e ninguém pudesse fazer mal, seria destituí-
do de desenvolvimento moral e espiritual importante. Mas como compreen­
der o facto de o mundo em que vivemos ser tão frequentemente hostil a esse
desenvolvimento moral e espiritual? Porquanto é evidente, como Hick tem o
cuidado de indicar, que muita da dor e muito do sofrimento no nosso mundo
frustram tal desenvolvimento:

«A situação geral é assim a de que, tanto quanto sabemos, o sofrim ento ocorre
desorganizada, inútil e, portanto, injustificadamente. A sua relação com a edifi­
cação da alma, no passado, no presente ou no futuro, parece meramente fortuita.
Em vez de servir um propósito construtivo, a dor e a angústia parecem atingir
o ser hum ano de uma form a desordenada e absurda, com o resultado de que
o sofrim ento é m uitas vezes im erecido e não raro ocorre em quantidades que
excedem seja o que for que pudesse ser objecto de um plano m o ra l.» 87

Hick responde perguntando-nos o que aconteceria se o nosso mundo


fosse tal que o sofrimento nele ocorresse «não fortuita e portanto injusta­
mente, mas, ao contrário, justa e portanto infortuitamente » .88 Hick argu­
menta que num tal mundo as pessoas evitariam fazer o mal por medo e não
por sentido de dever. Além disso, mal se visse que o sofrimento é sempre para

87. Hick, God and the Universe of Faiths, p. 85.


88. ibid.

189
Introdução à Filosofia da Religião

bem do sofredor, a angústia humana deixaria de «evocar a profunda empatia


pessoal ou convocar a assistência colectiva, a ajuda e o serviço abnegados.
Pois tais reacções compassivas pressupõem que o sofrimento é imerecido e
mau para o sofredor» ,89 Hick conclui então:

«P arece então que, num mundo que servirá de cenário ao amor compassivo e
à abnegação pelos outros, o sofrim ento tem de recair sobre a humanidade com
alguma da desordem e da desigualdade de que temos agora experiência, Tem de
ser aparentem ente imerecido, absurdo e insusceptível de racionalização moral.
Pois é precisam ente esta característica da nossa humanidade comum que gera a
empatia entre os homens e evoca a generosidade, a bondade e a boa vontade que
se conta entre os valores mais elevados da vida pessoal.»90

Suponhamos, em concordância com Hick, que um ambiente adequado


ao desenvolvimento, pelos seres humanos, das qualidades mais elevadas da
moral e da vida espiritual tem de ser tal que inclua genuinamente sofrimento,
dificuldades, desilusões, fracasso e derrota. Porquanto o crescimento moral
e espiritual pressupõe estas coisas. Suponhamos também que tal ambiente
tem de funcionar, pelo menos na maior parte dos casos, segundo leis gerais
e fiáveis; porquanto só com base em tais leis poderá alguém empenhar-se
na tomada orientada de decisões, essencial a uma vida racional e moral.
E dadas estas duas suposições é compreensível, penso, que um ser omnisciente
e omnipotente tenha justificação moral para permitir a ocorrência de males,
tanto morais como naturais. Além disso, como Hick sublinha, é importante
que não nos seja evidente que o bem do crescimento moral e espiritual exige
todos os exemplos de sofrimento que ocorrem e deles resulta. Pois então dei­
xaríamos de procurar eliminar estes males e assim diminuiríamos a própria
labuta humana, que tão amiúde produzem o crescimento moral e espiritual.

89. Ibid., p. 60.


90. Ibid.

190
O problema do mal

O nosso excurso pela teodiceia de Hick mostrou-nos, talvez, como


urna teodiceia pode conseguir justificar a permissão do mal natural e do
mal moral por Deus. Mas até agora não nos deu qualquer justificação para a
permissão do sofrimento horrível do corço, nem temos qualquer justificação
para o atroz sofrimento da criança inocente que é brutalmente torturada e
morta por um ser humano adulto. No caso do sofrimento do corço podemos
afirmar que dada a existência de animais no nosso mundo e o funciona­
mento deste segundo leis naturais, é inevitável que ocorram exemplos de
sofrimento animal intenso e prolongado. No caso do sofrimento daquela
criança inocente em particular, pode-se dizer que ao aproxim arem-se
do desenvolvimento moral e espiritual, talvez seja inevitável que os seres
humanos por vezes prejudiquem gravemente os outros, através de um mau
uso da liberdade. Mas nada disto justificará moralmente que um ser todo-
-poderoso e omnisciente permita o sofrimento daquele corço em particular
ou o sofrimento daquela criança inocente em particular, É simplesmente
irrazoável acreditar que, se o adulto agiu livremente ao espancar brutal­
mente e matar a criança inocente, o seu desenvolvimento moral e espiritual
teria sido permanentemente frustrado caso fosse impedido de a espancar e
matar. E é também irrazoável acreditar que há justificação moral para per­
mitir tal acto mesmo que impedi-lo diminua de alguma maneira a odisseia
moral e espiritual do perpetrador. E no caso do corço, é simplesmente irra­
zoável acreditar que impedir que ficasse gravemente queimado, ou pondo
misericordiosamente ñm à sua vida para não sofrer intensamente durante
varios dias, abalaria de tal modo a nossa confiança na ordem da natureza
que esqueceríamos o nosso desenvolvimento moral e espiritual. Hick parece
estar ciente desta limitação da sua teodiceia, pelo menos no que diz respeito
aos males naturais. No que diz respeito à dor humana devida a causas inde­
pendentes do arbítrio humano, Hick comenta;

«Respondendo a isto, a teodiceia, se sabiamente conduzida, segue um caminho


negativo. Não é possível m ostrar positivamente que cada item de dor humana

191
Introdução à Filosofia da Religião

serve o objectivo de Deus; por outro lado, parece possível mostrar que o objectivo
divino [...] não podia fazer-se cumprir num mundo concebido como um paraíso
hedonista p erm anente.»91

Vimos que a teodiceia de Hick é incapaz de nos dar um bem que justificaria
a:permissão, por um ser omnipotente e omnisciente, do sofrimento intenso
do corço ou do sofrimento atroz da criança inocente, O melhor que Hick pode
fazer é argumentar que um mundo completamente destituído de mal natural
e moral impossibilitaria a realização dos bens que Hick postula como justifica­
ções para a permissão do mal por um ser omnipotente e omnisciente. Todavia,
como impedir o sofrimento do corço ou da criança inocente não destituiria
completamente o nosso mundo de mal natural ou moral, o argumento tudo-
- ou-nada de Hick não responde à nossa questão. Tão-pouco adiantará afirmar
que se um ser omnipotente e omnisciente impedisse o sofrimento do corço ou
da criança inocente seria por isso obrigado a impedir todos os outros males. Pois
se o ñzesse, como Hick argumentou, podia dar-se o caso de pararmos de nos
empenhar consideravelmente na ediñe ação da alma. A teodiceia de Hick deixa­
mos o problema de ser perfeitamente razoável acreditar que alguns dos males
que ocorrem podiam ser impedidos sem diminuir o nosso desenvolvimento
moral e espiritual nem comprometer a nossa confiança no funcionamento do
mundo segundo leis naturais. A teodiceia de Hick, portanto, não consegue dar­
mos uma razão para rejeitar a premissa 1, segundo a qual existem males sem
sentido, exemplos de sofrimento que um ser omnipotente e omnisciente podia
impedir sem com isso impedir a ocorrência de qualquer bem superior.

O «desvio de G.E. Moore»

A melhor maneira que o teísta tem de rejeitar a premissa i é através de um


procedimento indirecto. A este procedimento chamo «desvio de G.E. Moore»,

91. Hick, Philosophy of Religion, p. 46.

192
O problema do mal

em honra do filósofo do século xx, G.E. Moore, que o usou eficazmente ao lidar
com os argumentos dos cépticos. Filósofos cépticos como David Hume apre­
sentaram argumentos engenhosos para provar que ninguém pode ter conhe­
cimento da existencia de qualquer objecto material. As premissas dos seus
argumentos usam princípios plausíveis, princípios que muitos filósofos ten­
taram rejeitar directamente, mas apenas com resultados questionáveis. Moore
seguiu um procedimento completamente diferente. Em vez de argumentar
directamente contra as premissas dos argumentos dos cépticos, observou ape­
nas que estas premissas implicavam, por exemplo, que ele (Moore) não tinha
conhecimento da existência de um lápis. Moore argumentou então indirecta­
mente contra as premissas dos cépticos, da seguinte maneira:

1. Sei que este lápis existe.


2. Se os princípios dos cépticos forem correctos, não poderei saber da exis­
tência deste lápis.
Logo,
3. Os princípios dos cépticos (pelo menos um) são incorrectos.

Moore observou então que este argumento é tão válido quanto o argumento
dos cépticos, que ambos contêm a premissa «Se os princípios dos cépticos
forem correctos, Moore não poderá saber da existência deste lápis», e con­
cluiu que a única maneira de escolher entre os dois argumentos (o do próprio
Moore e o dos cépticos) é decidindo em qual das primeiras premissas é mais
racional acreditar — a premissa de Moore, «Sei que este lápis existe», ou a
premissa dos cépticos, que afirma que alguns princípios cépticos são correc­
tos. Moore conclui que a sua primeira premissa é a mais racional das duas.92

92. Ver, por exemplo, os dois capítulos sobre Hume em G.E. Moore, Some Main Problems
of Philosophy (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1953).

193
Introdução à Filosofia da Religião

Antes de vermos como o teísta pode aplicar o desvio de G.E. Moore ao argu­
mento básico a favor do ateísmo, devemos observar a estratégia geral do
desvio. Dão-nos um argumento: p, q, logo, r. Em vez de argumentar directa­
mente contra p, construímos outro argumento — não r,,q, logo, não p — que
começa com a negação da conclusão do primeiro argumento, mantém a sua
segunda premissa e conclui com a negação da primeira premissa. Compa­
remos ambos:

I. p II. nao-r
q q

r não-p

É uma verdade da lógica que se I for válido II sê-lo-á igualmente. Uma vez que
os argumentos são iguais no que diz respeito à segunda premissa, qualquer
opção entre eles tem de dizer respeito às respectivas primeiras premissas.
Argumentar contra a primeira premissa p construindo o contra-argumento
II é usar o desvio de G.E. Moore.
Aplicando uma versão convenientemente adaptada do desvio de G.E.
Moore contra o argumento indiciárío a favor do ateísmo, o teísta pode argu­
mentar do seguinte modo:

3/ Provavelmente, Deus existe.


2. Se Deus existe, não há males sem sentido.
Logo,
1.* Provavelmente, não há males sem sentido.

Temos agora dois argumentos: o argumento básico a favor do ateísmo, par­


tindo de i e 2 para concluir 3, e a melhor resposta do teísta, o argumento
partindo de 3* e 2 para concluir 1*. A respeito da premissa 1 do argumento

194
O problema do mal

ateísta, o teísta afirma ter justificação racional para acreditar na existência


do Deus teísta, 3*, aceita 2 como verdadeira, e vê que i* se segue de 3* e 2.
O teísta conclui, consequentemente, ter justificação racional para rejeitar 1.
Tendo justificação racional para rejeitar 1, o teísta conclui que o argumento
básico a favor do ateísmo não é bom.

ARGUMENTO E RESPOSTA: UMA AVALIAÇÃO

É agora tempo de avaliar os méritos relativos do argumento básico a favor


do ateísmò, bem como da melhor resposta que o teísta lhe dá. Suponha-se
que alguém está em condições de não ter qualquer justificação racional para
pensar que o Deus teísta existe. Ou esta pessoa não conhece os argumentos a
favor da existência de Deus ou ponderou-os mas considera-os inteiramente
inconvincentes. É possível que também não tenha tido quaisquer visões de
Deus e esteja racionalmente convencido de que as experiências religiosas
de outros não dão à crença teísta qualquer boa justificação. Contemplando
a diversidade e o âmbito do sofrimento humano e animal no nosso mundo,
todavia, este indivíduo conclui que é perfeitamente razoável aceitar a pre­
missa 1 como verdadeira. Penso que temos de admitir que tal pessoa tem
justificação racional para aceitar o ateísmo. Suponha-se, contudo, que outra
pessoa tem experiências religiosas que lhe dão justificação para acreditar que
o Deus teísta existe. Talvez esta pessoa tenha também examinado cuidado­
samente o argumento ontológico e considerou~o racionalmente persuasivo.
Penso que temos de admitir que essa pessoa tem alguma justificação racional
para aceitar o teísmo. Mas e se este indivíduo estiver ciente do argumento
básico a favor do ateísmo e das considerações apresentadas a favor da sua pri­
meira premissa? Nesse caso, terá alguma justificação racional para acreditar
que o teísmo é verdadeiro e alguma justificação racional para acreditar que
a premissa 1 é verdadeira, e, portanto, que o teísmo é falso. Esta pessoa terá
então de pesar a força relativa das razões a favor do teísmo contra as razões
a favor da premissa 1 e do ateísmo. Se a justificação do teísmo parece racio-

195
Introdução à Filosofia da Religião

nalmente mais forte do que a justificação da premissa i, este indivíduo pode


razoavelmente rejeitar a premissa 1, porquanto a sua negação é pressuposta
pelo teísmo e por 2. Claro que avaliar o mérito relativo de justificações racio­
nais rivais não é fácil, mas parece claro que se pode ter justificação racional
para aceitar o teísmo e concluir que a premissa 1 é falsa e que o argumento
básico a favor do ateísmo não é bom.
Em termos da nossa própria resposta ao argumento básico a favor do
ateísmo e ao contra-argumento teísta à premissa 1, cada um de nós tem de
ajuizar à luz da experiência e do conhecimento pessoais se as justificações
que temos para acreditar na premissa 1 são mais fortes ou mais fracas do que
as justificações para acreditar que o Deus teísta existe. Vimos que na medida
em que a nossa experiência e 0 nosso conhecimento podem diferir, é possível
— aliás, é provável — que tenhamos, alguns de nós, justificação para aceitar o
teísmo e rejeitar a premissa 1.
Chegámos à conclusão de que a versão indiciária do problema do mal é
uma dificuldade grave mas não insuperável para o teísmo. Na medida em que
tiver justificações mais fortes para acreditar que o Deus teísta existe do que
para aceitar a premissa 1, o teísta, bem feitas as contas, pode ter mais razões
para rejeitar a premissa 1 do que para a aceitar. Contudo, na ausência de boas
razões para acreditar que o Deus teísta existe, o nosso estudo da versão indi-
ciaria do problema do mal leva-nos à perspectiva de que temos jus tiñe ação
racional para concluir que provavelmente Deus não existe.
É preciso não confundir a perspectiva de que uma pessoa pode ter justi­
ficação racional para aceitar o teísmo enquanto outra pessoa tem justificação
racional para aceitar o ateísmo com a perspectiva incoerente de que o teísmo
e o ateísmo podem ser ambos verdadeiros. Dado que o teísmo (no sentido
estrito) e o ateísmo (no sentido estrito) exprimem afirmações contraditórias,
um tem de ser verdadeiro e o outro falso. Mas como os indícios de que se
dispõe podem justificar a crença numa afirmação que, á luz da totalidade dos
indícios, é falsa, é possível pessoas diferentes terem justificação racional para
acreditar em afirmações que não podem ambas ser verdadeiras. Suponha-se,

196
O problema do mal

por exemplo, que urna amiga sua embarca num avião para o Havai. Horas
depois da descolagem você descobre que o avião caiu no mar. Depois de uma
busca de vinte e quatro horas, não se encontra sobreviventes. Nestas cir­
cunstâncias é racional que o leitor pense que a sua amiga não sobreviveu.
Mas dificilmente será racional que ela própria acredite nisso enquanto está a
boiar ao sabor das ondas com um colete salva-vidas, perguntando-se por que
razão os aviões de busca não a conseguem encontrar. O teísmo e o ateísmo
não podem ser ambos verdadeiros. Mas na medida em que a experiência e
o conhecimento diferem de pessoa para pessoa, uma pode ter justificação
racional para aceitar o teísmo ao passo que outra tem justificação racional
para aceitar o ateísmo.
Caracterizámos o teísta como alguém que pensa que o Deus teísta existe
e o ateu como alguém que pensa que o Deus teísta não existe. À luz do nosso
estudo do problema do mal, talvez devamos introduzir distinções comple­
mentares. Um ateu amigável pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o Deus teísta existe. Um ateu hostil pensa que
ninguém tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta existe. Há
que fazer distinções semelhantes a respeito do teísmo e do agnosticismo. Um
agnóstico hostil, por exemplo, é um agnóstico que pensa que ninguém tem
justificação racional para acreditar que o Deus teísta existe e que ninguém
tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta não existe. Mais
uma vez, temos de observar que o ateu (ou o teísta) amigável não acredita
que o teísta (ou o ateu) tem uma crença verdadeira, apenas que pode perfei­
tamente ter justificação racional para adoptar essa crença. Talvez a lição final
a retirar do nosso estudo do problema do mal seja que as versões amigáveis
do teísmo, do agnosticismo e do ateísmo são todas preferíveis às respectivas
versões hostis.

197
Introdução à Filosofia da Religião

REVISÃO

1. Explique a diferença entre a versão lógica do problema do mal e a versão


indiciária.
2. Qual é a principal dificuldade da tese central da versão lógica do pro­
blema do mal?
3. Qual é a relevância da defesa do livre-arbítrio para a versão lógica do
problema do mal?
4. Explique o argumento indiciado fundamental a favor do ateísmo. O que
poderia o teísta responder a este argumento?
5. Explique a diferença entre o ateísmo (ou o teísmo) amigável e o ateísmo
(ou o teísmo) hostil. Por que razão podem as versões amigáveis ser pre­
feríveis às hostis?

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Discuta a questão central que opõe o teísta ao ateísta no que diz respeito
à versão indiciária do problema do mal. Qual deles terá, na sua opinião,
o melhor argumento? Explique.
2. Discuta o seguinte argumento:

O facto do sofrimento no mundo não constitui um problema genuíno para


o cristianismo porque, segundo o cristianismo, não se pode fazer qualquer
comparação real entre a angústia momentânea de que se tem experiência
nesta vida e a alegria e a felicidade eternas prometidas pelo cristianismo na
vida futura.

198
Capítulo 8
Milagres e a mundividência moderna

Em geral, as religiões teístas sublinham a ocorrência de milagres. O cristia­


nismo, por exemplo, funda-se na afirmação de que Jesus foi milagrosamente
ressuscitado dos mortos. Os milagres no cristianismo estão também associa­
dos aos corpos e relíquias dos santos e aos santuários. Anualmente, milhões
de pessoas rumam a Lourdes, uma pequena cidade em França, onde se atri­
buíram curas milagrosas às águas de um santuário erguido no lugar onde se
acredita que a virgem Maria apareceu repetidamente a S. Bernardette, em
1858. Neste capítulo, procuramos saber se é ou não ainda possível acreditar
em milagres, e, caso seja possível, se é ou não razoável acreditar que ocorreu
um milagre.

MILAGRES: INCOMPATÍVEIS COM UMA MUNDIVIDÊNCIA CIENTÍFICA?

O expoente máximo da perspectiva de que já não é possível acreditar em


milagres é o historiador bíblico e teólogo alemão, Rudolf Bultmann (1884-
-1976). Bultmann argumenta que os milagres pertencem a uma imagem
pré-científica do mundo, em que o mundo natural é invadido por seres
sobrenaturais que causam acontecimentos extraordinários: pessoas res­
suscitadas dos mortos ou a transformação da água em vinho. A ciência e a
tecnologia, contudo, deram origem à mundividência moderna, uma pers­
pectiva da natureza como domínio fechado, autónomo, em que se explica um

199
Introdução à Filosoña da Religião

acontecimento natural através de outro acontecimento natural. Bultmann


pensa que esta mundividência moldou de tal maneira as pessoas de hoje que
já não podem acreditar em histórias de acontecimentos milagrosos, como
os que estão registados na Bíblia. Santo Agostinho acreditava que a doença,
pçlo menos num cristão, era causada por demônios. Mas as pessoas moder­
nas diñcilmente podem manter tal crença. Atribui-se agora as doenças e
respectivas curas a causas naturais, como germes e medicamentos. Como
Bultmann observa: «É impossível usar a luz eléctrica e a rádio, tirar partido
das modernas descobertas médicas e cirúrgicas e ao mesmo tempo acreditar
no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento».93
A ahrmação de Bultmann é sem dúvida demasiado forte. As pessoas hoje
ainda acreditam em milagres, pelo que é evidentemente possível fazê-lo.
E à medida que algumas consequências infelizes da tecnologia produzida pela
ciência moderna se fazem sentir, parece haver, quando muito, uma reac-
ção contra a mundividência científica e uma vontade crescente de adoptar
maneiras de pensar pré-científicas. Em resposta, Bultmann argumenta que,
embora haja excepções a esta tese, são relativamente inimportantes;

«Pode-se evidentemente argumentar que há pessoas hoje em dia cuja confiança


na mundividência científica tradicional foi abalada, e outras primitivas ao ponto
de se adequarem a um pensam ento m ítico. E há tam bém uma grande diversi­
dade de superstições. Mas quando a cren ça em espíritos e milagres degenera
em superstição, torna-se algo inteiram ente diferente daquilo que era enquanto
fé genuína. As diversas impressões e especulações que influenciam as pessoas
crédulas aqui e ali são pouco importantes e nem importa a que ponto as palavras
de ordem baratas espalharam uma atm osfera hostil à ciência. O que importa é
a mundividência que os hom ens absorvem no seu am biente, e é a ciência que

93. Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1961),
p. 5. Sublinhados meus.

200
Milagres e a mundividência moderna

determ ina essa m undividência através da escola, da im prensa, da rádio, do


cinema e de todos os frutos do progresso té cn ico .» 94

Segundo Bultmann, o que importa não é ainda haver pessoas que


acreditam em milagres — pessoas que ou vivem em áreas primitivas, rela­
tivamente intocadas pela ciência e pela tecnologia, ou vivem no mundo
civilizado mas conseguem de alguma maneira rejeitar a ciência moderna
ou mantêm uma existência esquizofrênica, aceitando ao mesmo tempo a
ciência moderna e uma crença supersticiosa no milagroso. O que importa é
que a mundividência moderna deixa pouco ou nenhum espaço para espíritos
e milagres. As pessoas de hoje, condicionadas pela ciência e pela tecnologia a
adoptar a mundividência cientíhca, sentem-se naturalmente inclinadas a só
aceitar uma explicação para acontecimentos na natureza se esta for dada em
termos de outros acontecimentos na natureza. Quando a televisão se avaria
ou o automóvel empanca, as pessoas que vivem numa sociedade moderna
não podem levar a sério a ideia de que a causa foi um demónio. Explica­
mos tais coisas por uma falha mecânica ou eléctrica. Consequentemente,
há menos espaço no mundo natural para Deus — menos espaço, portanto,
para a ocorrência de milagres.
Penso que temos de conceder a Bultmann que é mais difícil acreditar
em milagres hoje do que antigamente. Aceitar a ciência moderna é esperar
que em geral os acontecimentos naturais tenham causas naturais. Conse­
quentemente, atribuir-se-ão menos acontecimentos à intervenção de for­
ças sobrenaturais no mundo natural, Até aqui parece inegável. Bultmann,
contudo, afirma muito mais. Argumenta que aceitar a ciência moderna é
de alguma maneira comprometer-se com a rejeição de qualquer explicação
de acontecimentos no mundo natural pela actividade de seres ou poderes
sobrenaturais (anjos, deuses, demónios ou outros). Mas esta afirmação mais
forte parece ter pouca ou nenhuma justificação e os factos acerca daquilo

94. Ibid., p. 5.

201
Introdução à Filosofia da Religião

em que acreditam as pessoas civilizadas não conseguem provar a afirmação


mais forte de Bultmann.

UMA CRENÇA IRRAZOÁVEL

A definição humiana de milagre

O segundo ataque, muito mais sério, contra os milagres afirma que embora
seja possível acreditar em milagres nunca é razoável fazê-lo. A formulação
clássica desta perspectiva ocorre num ensaio famoso de David Hume.95 Neste
ensaio, Hume baseia o seu principal argumento numa certa compreensão do
que é um milagre. Contudo, antes de considerarmos a explicação de Hume
sobre o que é um milagre, será útil observar que a palavra milagre tem pelo
menos dois sentidos diferentes. No primeiro sentido, o seu significado popu­
lar, um milagre é um acontecimento benéfico inesperado. Assim, um aluno
que não se tenha preparado adequadamente para um exame, ao receber uma
nota suficiente para passar de ano, poderá exclamar: «É um milagre ter pas­
sado no exame!» (Por muito mal preparado que esteja, um aluno que reprova
num exame não diz: «É um milagre ter reprovado no exame!» Porquanto, no
sentido popular, um acontecimento tem de ser visto como benéfico para que
o consideremos um milagre.) A palavra milagre tem também um significado
estrito, e é neste sentido que Hume usa o termo. Em sentido estrito, um mila­
gre é um acontecimento que satisfaz duas condições distintas. Em primeiro
lugar, é um acontecimento que não teria ocorrido se apenas se devesse a cau-

95. O ensaio «Sobre os Milagres» aparece como Secção X do Enquiry Concerning Human
Understanding e está nas páginas 109-131 da edição Selby-Bigge dos Enquiries de
Hume, 2.a ed. (Londres: Oxford University Press, 1902) [fiiuesligação Sobre o Enten­
dimento Humano, trad. João Paulo Monteiro, Lisboa: INCM, 2002), A explicação que
darei, embora derivada do ensaio de Hume, não pretende abranger as questões pro­
blemáticas que surgiram nas diversas interpretações deste ensaio. Para uma explicação :
de algumas destas questões, ver Antony Flew, Hume’s Philosophy o/Belief (Londres; :
Routledge & Kegan Paul Lda., 196l), Capítulo VIII.

202
Milagres e a mimdividência moderna

sas naturais; a ordem natural não teria produzido esse acontecimento. Temos
a certeza, por exemplo, de que quem estiver morto durante um período de
tempo considerável, e cujo corpo se encontre em decomposição, não regres­
sará subitamente à vida. Pois sabemos o suficiente acerca do funcionamento
das causas naturais para saber que se o que acontecer for apenas o resul­
tado causal de forças naturais um cadáver permanecerá morto e continuará
a decompor-se. Pelo que um milagre, em sentido estrito, é, em parte, um
acontecimento que não teria ocorrido apenas pela acção de causas naturais.
A segunda condição exigida para que um acontecimento seja um milagre
em sentido estrito é resultar da intervenção directa de Deus ou de algum
agente sobrenatural. Se um acontecimento ocorresse sem qualquer causa
natural, se apenas acontecesse inesperadamente mas sem se se dever à acti-
vidade causal de Deus ou de algum agente sobrenatural, não seria um mila­
gre no sentido que consideramos — embora satisfaça a condição de ser um
acontecimento que não teria ocorrido se se devesse apenas a causas naturais.
Assim, no sentido estrito, um milagre é um acontecimento que 1) ocorre mas
não ocorreria se se devesse apenas a causas naturais, e 2) ocorre porque foi
causado por Deus ou por qualquer outro agente sobrenatural. Esta é basica­
mente a explicação humiana. A própria definição que Hume dá de milagre é:
«a transgressão de uma lei da natureza por uma volição particular da divin­
dade, ou pela intervenção de um agente invisível» ,96

Objecções à definição de Hume

Será que a caracterização humiana de «milagre» é adequada? As objecções


subsumem-se em duas classes: as que afirmam que as duas condições de Hume
não são suficientes para que algo seja um milagre, e as que afirmam que uma
ou outra destas condições não é necessária para que algo seja um milagre.
Será instrutivo considerar um ou dois exemplos de cada género de objecção.

96. Hume, Engainés, p. 115.

203
Introdução à Filosofia da Religião

Duas características que frequentemente se associam à ideia de milagre,


além das apontadas por Hume, são as seguintes: 3) que um milagre é um
acontecimento surpreendente e impressionante e 4) que um milagre serve
uma finalidade importante e benéfica. As narrativas bíblicas de milagres exi­
bem em geral as características 3 e 4. A ressurreição de Lázaro (João: 11) é
claramente um acontecimento impressionante e benéfico — pelo menos para
Lázaro e para as suas irmãs. A cura dos dois cegos (Mateus: 9=27-31) e a ali­
mentação dos cinco mil a partir de cinco pães e dois peixes (Marcos: 6:35-44)
também exibem estas duas características. Talvez, portanto, as duas carac­
terísticas básicas de Hume sejam inadequadas. Para que um acontecimento
seja um milagre genuíno tem também de ser impressionante e benéfico. Dado
que não serve, tanto quanto possamos ver, qualquer finalidade benéfica, não
chamaríamos seguramente «milagre» à morte súbita de alguém que corre
para impedir uma criança de ser atingida por um comboio que se aproxima,
acabando a criança por ser atingida. E ninguém chama «milagre» a uma
folha que se agita muito delicadamente no chão, dado não ser de modo algum
um acontecimento impressionante ou surpreendente.
A objecção de que um milagre tem de ser impressionante ou surpreen­
dente, Hume responde:

«Um milagre pode ser ou não susceptível de ser descoberto pelo homem. Isto não
altera a sua natureza e essência, A ascensão de uma casa ou um navio em pleno
ar é um milagre visível. A subida de uma pena, quando o vento carece da mínima
força que tal efeito exige, é um milagre igualmente real, embora não tão percep­
tível relativamente a n ó s ,» 97

Suponha-se que a brisa é suficiente para deslocar uma folha no chão,


não mais do que meio centímetro, que nenhuma outra força natural causa o
movimento da folha, mas que Deus intervém directamente para que a folha

97. Ibid.

204
Milagres e a mundividência moderna

percorra de facto a distância de todo um centímetro. Dificilmente se consi­


deraria este acontecimento, a deslocação de todo um centímetro pela folha,
surpreendente ou impressionante. Contudo, se soubéssemos que nenhuma
força natural era suficiente para causar o acontecimento, talvez o conside­
rássemos muito impressionante. Mas se por «acontecimento impressionante
ou surpreendente» entendemos um acontecimento tal que um observador
normal prontamente o reconhece como tal, então a ligeira deslocação da
folha não seria minimamente impressionante ou surpreendente. Analoga­
mente, é isto que acontece com o exemplo humiano da pena que sobe. Um
edifício que se erguesse por outros meios que não os naturais, contudo, seria
um acontecimento impressionante e surpreendente.
Pode-se compreender do seguinte modo a resposta de Plume. Algo pode
ser um milagre mesmo que sejamos incapazes de o reconhecer como tal. Ser
impressionante ou surpreendente pode ser uma condição que um aconteci­
mento tem de satisfazer para que acreditemos tratar-se de um milagre, mas
não é uma condição que um acontecimento tem de satisfazer para ser um
milagre. Não devemos confundir as condições que têm de se verificar para
que possamos determinar que ocorreu um milagre com as condições que
têm de se verificar para que seja verdade que ocorreu um milagre. Hume
argumentaria que as condições 3 e 4 são talvez necessárias para que possamos
determinar que ocorreu um milagre, mas, ao contrário de 1 e 2, não têm de se
verificar para que um milagre ocorra. Por outras palavras, podemos distinguir
entre milagres visíveis e invisíveis. Hume dá-nos as condições suficientes
para a ocorrência de um milagre. As condições 3 e 4 são talvez necessárias
para que ocorra um milagre visível, algo que as pessoas comuns possam
considerar um milagre, mas 3 e 4 não são necessárias para que um aconteci­
mento seja um milagre, dado que não se verificam num acontecimento que
seja um milagre invisível.
Considerámos um exemplo de objecção segundo a qual Hume não apre­
senta condições suficientes para algo ser um milagre. O segundo género de
objecção afirma que a condição humiana segundo a qual um acontecimento

205
Introdução à Filosofia da Religião

tem de ser uma violação de uma lei da natureza não é uma condição necessá­
ria para que algo seja um milagre. R.F. Holland, por exemplo, sugere o exem­
plo de uma criança que deambulou para uma linha ferroviária sem saber que
um comboio se aproxima a grande velocidade. O comboio tem pela frente
uma curva, o que impede o maquinista de ver a criança. Precisamente no
momento certo, o maquinista desmaia, devido a alguma causa natural que
nada tem que ver com a presença da criança nos carris. Ao desmaiar, a sua
mão deixa de exercer pressão na alavanca de controlo, fazendo o comboio
parar a alguns metros da criança. A mãe da criança, observando à distân­
cia e incapaz de ajudar, «agradece a Deus o milagre; que nunca deixa de
considerar como tal, embora, como a seu tempo vem a saber, nada haja de
sobrenatural na maneira como os travões do comboio foram accionados».98
Temos de supor neste exemplo que o acontecimento extraordinário — a
paragem do comboio a apenas alguns metros da criança — se deve inteira­
mente a causas naturais. Se a criança não estivesse nos carris, o comboio
teria parado exactamente no mesmo local. Se a criança estivesse nos carris
apenas alguns metros mais perto do comboio, então, sem intervenção divina,
teria morrido. Onde está então o milagre? Onde está a mão de Deus neste
acontecimento espectacular? Concedamos que uma causa natural provocou
o desmaio do maquinista. Talvez a mãe acredite que, embora o desmaio se
deva a uma causa natural, o facto de o desmaio ter sido tão oportuno, de não
ter ocorrido alguns momentos depois, se deve de alguma maneira à inter­
venção de Deus. Tem de se fazer uma certa distinção, parece, entre uma feliz
coincidência e um milagre genuíno. E, mal tentamos fazer esta distinção,
é provável que acabemos nas duas condições de Hume. Consequentemente,
embora possa haver dúvidas acerca da adequação da caracterização humiana
de «milagre», não é claro que qualquer outra caracterização seja mais ade­
quada.

98. R.F. Holland, «The Miraculous», American Philosophy Quarterly (l96S), pp. 43-51,

206
Milagres e a mundividência moderna

O argumento contra os milagres

É tempo de considerar o argumento central de Hume contra os milagres.


Como vimos, Hume pensa que nunca é razoável acreditar que ocorreu um
milagre. O seu argumento deriva da primeira das duas condições que um
acontecimento tem de satisfazer para ser um milagre:

«Um milagre é uma violação das leis natureza; e na medida em que uma experiên­
cia firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra um m ilagre, pela
própria natureza do caso, é tão completa como qualquer argumento baseado na
experiência que imaginar se possa. Porquê pensar que é mais do que provável que
todos os homens têm de m orrer, que o chumbo não pode, por si, hear suspenso
no ar, que o fogo consome a madeira e se extingue com a água, senão porque se
considera que estes acontecim entos concordam com as leis da natureza, sendo
preciso uma violação destas leis, ou, por outras palavras, um milagre, para os
impedir? [...] Mas é um milagre que um morto ressuscite; porque isso nunca foi
observado, em qualquer época ou país. É forçoso que haja, portanto, uma expe­
riência uniforme contra cada acontecim ento milagroso, de contrário o aconte­
cimento não seria digno do seu n o m e.» 99

A passagem anterior contém o principal argumento de Hume a favor


da perspectiva de que nunca é de facto razoável acreditar que ocorreu um
milagre. O argumento, em termos simples, é o seguinte:

í. Os indícios empíricos a favor de uma lei da natureza são extremamente


fortes.
2. Um milagre é uma violação de uma lei da natureza.
Logo,

99. Hume, Enquiries, pp. 114-115.

207
Introdução à Filosofia da Religião

3. Os indícios empíricos contra a ocorrência de um milagre são extrema­


mente fortes.

Por que razão são sempre extremamente fortes os indícios empíricos a


favor de uma lei da natureza? Pela simples razão de que nunca acreditaría­
mos que um princípio fosse uma lei da natureza a menos que se observasse
constantemente a ocorrência de determinados acontecimentos na natureza
sempre que outras condições na natureza estejam presentes. O princípio
da gravitação, para recorrer a um dos exemplos de Hume, diz-nos que o
chumbo (ou qualquer corpo pesado) não pode permanecer por si suspenso
no ar. Observou-se repetidamente a queda de corpos de peso considerável na
direcção da Terra quando largados no ar, sem sustentação. Observações deste
género ajudaram a confirmar a nossa crença de que o princípio da gravitação
é uma lei da natureza. Quando um objecto pesado parece hear suspenso por
si em pleno ar (como acontece durante a actuação de um ilusionista), acre -
ditamos geralmente que há uma força natural, indetectada por nós, que age
sobre o corpo com uma força igual à exercida pela força gravitacional da Terra.
Acreditar no contrário é ir contra a experiência constante que nos levou a
acreditar no princípio da gravitação. Pois a nossa experiência anterior diz-
-nos que os objectos pesados caem, a menos que haja um objecto ou uma força
natural que contrarie a acção da força da gravidade sobre o objecto pesado.
Na segunda premissa, Hume afirma que um milagre é uma violação de
uma lei da natureza. E entendemos isto no sentido de que um milagre é um
acontecimento que não se deve a qualquer causa ou força natural, Na verdade,
é um acontecimento que não teria ocorrido se se devesse apenas a causas
naturais — dado que a ordem natural das coisas não teria produzido aquele
acontecimento. Quando nos sentiríamos tentados a pensar que ocorreu tal
acontecimento? Só quando 0 acontecimento parece entrar em conflito com
a ordem comum da natureza; só quando parece não haver qualquer causa
natural que o explique — um acontecimento como a ressurreição de um
morto, ou a suspensão de um pedaço de chumbo em pleno ar sem a interven-
Milagres e a mundividência moderna

ção de uma força natural contrária à força da gravidade. Se o acontecimento


parece conformar-se ao que acreditamos serem as leis da natureza, então não
nos sentiremos tentados a acreditar que é um milagre.
Hume conclui que os indícios que contribuíram para estabelecer um
determinado princípio como uma lei da natureza estão contra a hipótese de
que ocorreu um acontecimento milagroso, E seguramente que tem razão nisto.
Se alguém nos diz que atirou um pedaço de chumbo ao ar e que este caiu ao
chão, não teremos dificuldade em acreditar que caiu ao chão, devido à expe­
riência constante que temos de object os pesados a cair ao chão quando os ati­
ramos ao ar. Experiências constantes como esta levam-nos a acreditar que os
acontecimentos na natureza têm causas naturais e levam-nos a formular prin­
cípios como o da gravitação, que especificam essas conexões na natureza. Mas
se a pessoa nos diz que o pedaço de chumbo ficou simplesmente no ar e que
nenhum vento forte ou força natural contrariava a força da gravidade, teremos
muita dificuldade em acreditar que a sua história é verdadeira. Porquanto fazê-
-lo seria acreditar ou que o princípio da gravitação é falso ou que o pedaço de
chumbo de alguma maneira não estava sequer sujeito a forças naturais. Mas
como a nossa experiência favorece firmemente a verdade do princípio da gra­
vitação e a ideia de que o comportamento de pedaços de chumbo e outros cor­
pos materiais se deve a causas e forças naturais, temos logo à partida indícios
consideráveis contra a história narrada pela pessoa em causa.
Será que então nunca é razoável acreditar que ocorreu um aconteci­
mento que viola uma lei da natureza? Hume parece acreditar que é assim.
Pois os únicos indícios que temos a favor de um milagre são os relatos de
testemunhas. E Hume pensa que é sempre mais razoável acreditar que as
testemunhas se enganaram do que acreditar que o milagre ocorreu, dado
que contra o relato das testemunhas está toda a nossa experiência que apoia
a lei da natureza que o alegado milagre viola. Além disso, Hume observa que
as testemunhas dos chamados «milagres» são amiúde pessoas ignorantes e
primitivas, que têm uma tendência natural para acreditar em acontecimentos
extraordinários.

209
introdução à Filosofia da Religião

Hume não aceita que o testemunho humano possa ser tão abrangente
e fidedigno a ponto de tornar mais do que razoável acreditar que um acon­
tecimento absolutamente extraordinário ocorreu, um acontecimento que
contraria «a ordem habitual da natureza» :

«Assim, suponha-se que todos os autores de todas as línguas concordam que, a


partir do dia i de Janeiro de 1 6 0 0 , houve uma escuridão total sobre toda a Terra
durante oito dias: suponha-se que a tradição deste acontecimento extraordinário
é ainda forte e enérgica entre as pessoas; que todos os viajantes, regressando
de países estrangeiros, nos trazem relatos da m esm a tradição, sem a m ínima
variação ou contradição: é evidente que os nossos filósofos de hoje, em vez de
duvidar do facto, 0 deviam aceitar como certo, e procurar as causas a par th das
quais se pode d eriv á-lo ,»100

Mas podemos ver por esta passagem que Hume pensa que a quantidade
de testemunhos a favor do acontecimento tem de ser incrivelmente enorme
antes de poder contrabalançar o peso dos indícios contra o acontecimento
retirados da nossa experiência anterior. Só se a falsidade do testemunho for
mais milagrosa do que o acontecimento testemunhado é que Hume se dispõe
a acreditar que o acontecimento ocorreu e não que as testemunhas se enga­
naram. E no que diz respeito às histórias de milagres do cristianismo e de
outras religiões, o parecer de Hume é evidentemente que o peso dos indícios
sugere que as testemunhas estão enganadas.

Uma violação da natureza

Antes de tentarmos avaliar o argumento de Hume contra os milagres, pre­


cisamos de rever a questão de saber ao certo aquilo em que temos de estar
preparados para acreditar se acreditarmos que um acontecimento viola uma

100. Ibid., pp. 127-128.

210
Milagres e a mundividência moderna

lei da natureza. Suponha-se que atiramos um pedaço de chumbo ao ar e o


observamos atónitos, vendo-o suspenso em pleno ar durante vários minutos
antes de cair lentamente no chão. Há basicamente três alternativas à escolha.
Em primeiro lugar, há a possibilidade de uma força natural, talvez um vento
forte, agir sobre o chumbo com uma força igual à que, segundo o princípio
da gravidade, atrai o chumbo na direcção da Terra. Em segundo lugar, há
a possibilidade de o princípio de gravidade ser falso tal como está formu­
lado — que uma força natural explique de facto o que acontece ao chumbo,
mas seja uma força que, se o princípio de gravidade fosse verdadeiro, seria
insuñciente para manter o chumbo em pleno ar durante esse período de
tempo. Poderíamos então rever o princípio de gravidade à luz deste novo
conhecimento. Por hm, há a possibilidade de que nenhuma força ou causa
natural explique o que acontece ao pedaço de chumbo. Na primeira alterna­
tiva, o que acontece está em concordância com o princípio da gravidade. No
segundo caso, o que acontece refuta o princípio de gravidade e mostra que
este não é, como se afirmou, uma lei da natureza. E no terceiro caso o que
acontece viola uma lei da natureza — supondo que o princípio de gravidade
é realmente uma lei da natureza. O terceiro caso não mostra que o princípio
de gravidade não é uma lei da natureza porque as leis da natureza só nos
dizem o que tem de. acontecer quando o que acontece se deve inteiramente
a forças naturais.
O problema é determinar qual destas três alternativas explica correc­
tamente o facto de o chumbo permanecer em pleno ar. Presumivelmente,
não é muito difícil excluir a primeira alternativa. Mas como decidimos se
este acontecimento extraordinário é ou não um contra-exemplo genuíno ao
princípio da gravidade (alternativa 2), ou se é ou não uma violação genuína de
mna lei da natureza (alternativa 3)? Bem, se pudéssemos identificar as forças
naturais envolvidas, rever o princípio de gravidade para dar conta delas, e
então causar acontecimentos semelhantes em circunstâncias nas quais estas
forças se verificam, teríamos talvez razões para pensar que a alternativa 1 é
a explicação correcta. Mas se não conseguirmos rever o princípio de gravi -

211
Introdução à Filosofia da Religião

dade de maneira a explicar este estranho acontecimento, se não temos como


encontrar uma reformulação que nos permita prever futuras ocorrências de
acontecimentos como o que está em causa, então talvez seja razoável concluir
que a permanência do chumbo em pleno ar durante aqueles escassos minutos
foj uma genuína violação de uma lei da natureza, algo que não se deve de
modo algum a qualquer força natural.101
A dificuldade de escolher entre as alternativas 2 e 3 será maior ou menor
dependendo de quão inabitual e impressionante for o acontecimento. Se o
corpo de uma pessoa for desmembrado, deixando-se as partes em decom­
posição ao longo de semanas, então, se ao colocar numa mesa as diversas
partes, estas subitamente se reunirem e a pessoa regressar à vida, em plena
saúde, ninguém consideraria sequer provável que se pudesse explicar tal
acontecimento revendo o que consideramos serem as leis da natureza. Assim,
parece que há acontecimentos imagináveis que, se ocorressem, defender-se-
-ia, razoavelmente, tratar-se de violações das leis da natureza.
Hume argumenta, como vimos, não que um milagre é impossível mas
que nunca é razoável que um homem sensato acredite que ocorreu um mila­
gre. Porquanto um milagre é uma violação de uma lei da natureza e como
os indícios da experiência a favor de uma lei da natureza são indícios a favor
da perspectiva de que os acontecimentos que são abrangidos por essa lei se
devem a causas naturais, os indícios contra qualquer milagre serão prova­
velmente muito fortes. Por outro lado, os únicos indícios que sustentam um
milagre são o testemunho dos que afirmam ter presenciado 0 acontecimento.
Mas é sempre mais razoável acreditar que as testemunhas se enganaram
do que acreditar que o milagre ocorreu, sobretudo quando consideramos
o temperamento, a falta de instrução e o número de testemunhas de um
milagre.

101. Para uma explicação mais detalhada segundo esta orientação, ver R.G. Swinburne,
«Miracles», The Philosophical Quarterly XVIII, n.° 73 (1968), pp. 320-328.

212
Milagres e a mundividência moderna

As debilidades do argumento de Hume

Penso que há pelo menos duas grandes debilidades no argumento de Hume. A


primeira é que Hume não tem razão quando sugere que o único indício a favor
de um milagre é o testemunho dos que añrmam tê-lo presenciado. Temos de
distinguir entre indícios directos e indirectos a favor da afirmação de que um
determinado acontecimento teve lugar. Se regresso ao meu acampamento
e descubro que a geleira está danificada, a comida desapareceu e o acam­
pamento está em desordem geral, uma colega campista poderá dizer-me
que viu um urso passar pelo acampamento. O seu testemunho é um indício
directo de que um urso esteve no meu acampamento. Mas a geleira danifi­
cada, a comida desaparecida e a confusão gerai podem também ser indícios
de que esteve um urso no meu acampamento. Pois são factos que se podem
explicar melhor (e talvez até exclusivamente) pela hipótese de que um urso
passou de facto pelo meu acampamento. Indícios deste último género são
indícios indirectos e Hume não considerou a possibilidade de os nossos indí­
cios a favor de um milagre incluírem não só relatos de testemunhas (indícios
directos) mas também muitos factos que se explicam melhor pela hipótese
de que ocorreu um milagre, Na verdade, pode dar-se o caso de os indícios
indirectos a favor de um milagre serem mais fortes do que os directos:

«Temos um exemplo na narrativa da ressurreição na religião cristã. O testemunho


directo a favor deste acontecimento parece-m e muito frágil [...] Mas os indícios
indirectos são muito mais fortes. Temos o testem unho de que os discípulos esta­
vam extremamente deprimidos na altura da crucifixão; que tinham pouquíssima
fé no futuro; e que, após algum tempo, esta depressão desapareceu e passaram a
acreditar ter provas de que o seu senhor ressuscitara dos mortos. Ora, nenhum
destes alegados factos é minimamente bizarro ou improvável, e temos portanto
pouca justificação para não os aceitar com o testemunho que nos dão. Mas tendo
feito isto, enfrentamos o problema de explicar os factos que aceitámos. O que fez
os discípulos acreditarem, ao contrário da sua convicção anterior, e apesar de se

213
Introdução à Filosoña da Religião

sentirem deprimidos, que Cristo ressuscitara dos mortos? Evidentemente, uma


explicação é a de que ele efectivamente ressuscitou, E esta explicação dá tão bem
conta dos factos que podemos no m ínim o afirm ar que os indícios indirectos a
favor do milagre são muito mais fortes do que os d irecto s.»102

A segunda objecção é que Hume seguramente sobrestimou o peso que


se deve dar à experiência anterior a favor de um princípio que se pensa ser
uma lei da natureza. A experiência de uma excepção a um princípio forte-
mente sustentado pela experiência anterior levou frequentemente à revisão
do princípio, de maneira a explicar a excepção. Mas na esteira do argumento
de Hume, parece mais razoável concluir que a excepção não ocorreu de facto,
porquanto entra em conflito com a acumulação de experiência anterior que
sustenta o princípio. Como C.D. Broad observa,

«Evidentem ente, considerou-se que muitas proposições eram leis da natureza


por causa de uma experiência invariável a seu favor, mas então observaram -se
excepções, e por fim deixou de se ver estas proposições como leis da natureza.
Mas a prim eira excepção relatada estava, a quem quer que não a tivesse obser­
vado por si, exactam ente na m esma posição que a narrativa de um milagre, se
Hume tiver razão.»103

A ideia geral é a de que na aferição que Hume faz dos indícios é difícil com­
preender como alguém poderia razoavelmente acreditar que ocorreu uma excep­
ção a uma suposta lei da natureza, porquanto a suposta lei terá a seu favor uma
experiência invariável. É evidente, contudo, que as excepções às supostas leis
ocorrem e é também evidente que as pessoas razoáveis revêem em consonância

102. C.D, Broad, «Hume’s Theory of the Credibility ofMiracles», reimpresso em Alexander
Sesonske e Noel Fleming, orgs., Human Understanding (Belmont, CA: Wadsworth,
1965), pp. 91-92. O ensaio de Broad foi publicado originalmente em Proceedings of
the Aristotelian Society XVII {Londres, 1916-1917), pp. 77-94.
103. Broad, «Hume’s Theory», p. 93.

214
Milagres e a mundividência moderna

os seus princípios científicos. É portanto evidente que, ao esforçar-se por atacar


os milagres, Hume fez pender a balança tão fortemente a favor da experiência
invariável que sustenta uma suposta lei da natureza que fez parecer irrazoável a
prática razoável dos cientistas de rejeitar e rever supostas leis à luz de excepções.
Juntando estas duas objecções ao argumento de Hume, é justo afirmar
que este filósofo excluiu da sua explicação um tipo importante de indícios
a favor de milagres (indícios indirectos) e, ao mesmo tempo, sobrestimou
grosseiramente o peso que se deve dar à experiência anterior na sustentação
de um princípio que se pensa ser uma lei da natureza. Continua a ser verdade,
contudo, que uma pessoa razoável exigirá indícios bastante fortes antes de
acreditar que uma lei da natureza foi violada. É fácil acreditar na pessoa que
afirmou ter visto a água correr pelo outeiro abaixo, mas é bastante difícil
acreditar que alguém viu a água correr pelo outeiro acima.

ACREDITAR NA INTERVENÇÃO DIVINA

A nossa preocupação foi o argumento de Hume de que é sempre mais razoá­


vel acreditar que as testemunhas se enganaram do que acreditar na efectiva
ocorrência de um acontecimento milagroso. O seu argumento, como vimos,
diz respeito apenas à primeira parte da definição de milagre — que se trata de
um acontecimento que viola uma lei da natureza. Temos de recordar, con­
tudo, que para ser um milagre um acontecimento tem não só de ser uma
violação de uma lei da natureza como também de se dever à actividade de
Deus. Como vimos, uma coisa é um acontecimento não se dever a qualquer
causa ou força natural e outra completamente diferente é dever-se a uma
causa sobrenatural.104 Em resposta a Hume, argumentámos que em deter-

104. Um acontecimento pode violar uma iei da natureza não tendo qualquer causa natural
e ainda assim não ser um milagre em virtude de não ter uma causa divina. Mas se um
acontecimento se deve apenas à actividade directa de Deus, então, se é um aconte ­
cimento abrangido por uma lei natural, violará também essa lei e será portanto um
milagre.

215
Introdução à Filosofia da Religião

minadas circunstâncias seria razoável acreditar que ocorreu algo que não se
deve a qualquer força ou causa natural. Mas tem de se reconhecer que isto
não significa que é razoável acreditar que ocorreu um milagre. Pois há ainda
a questão de o acontecimento se dever ou não à actividade de Deus. Que
rabões, poder-se-ia perguntar, teríamos ou descobriríamos para pensar que
o acontecimento em causa se deve à intervenção de Deus?
Se temos já boas razões para acreditar que Deus existe e que exerce uma
vigília providencial sobre a sua criação, então podemos ter boas razões para
pensar que uma violação particular de uma lei da natureza se deve a Deus. Pois
o próprio acontecimento e as circunstâncias em que ocorre podem ser exac­
tamente o que esperaríamos no caso de Deus existir e de exercer uma vigília
providencial sobre a sua criação. Na verdade, desde que tenhamos razões para
acreditar que Deus existe e vigia providencialmente a sua criação, a ocorrên­
cia esporádica de milagres pode ser aquilo que seria razoável esperar.
Se não temos qualquer razão para acreditar que Deus existe, será muito
mais difícil descobrir razões para pensar que uma violação particular de uma
lei da natureza se deve à actividade de Deus. Pois teríamos então de ter razões
para pensar que a violação é ela própria um indicio a favor da existência de
Deus. E se é o Deus teísta que nos preocupa, dificilmente parece possível que
isto seja assim .105
Neste capítulo ocupámo-nos de três questões: 1) Que condições um
acontecimento tem de satisfazer para ser um milagre genuíno? 2) Poderá a
mundividência que resulta do crescimento da ciência e da tecnologia tornar
as pessoas de hoje incapazes de acreditar em milagres? 3) Será em circuns­
tância alguma razoável acreditar na ocorrência de um milagre genuíno? No
que diz respeito à primeira questão, seguimos a definição de Hume em ter­
mos de a) ser uma violação de uma lei da natureza e b) dever-se à actividade

105. R.G. Swinburne argumentou que pode ser razoável inferir a existência de algum
género de divindade se a violação ocorrer de maneiras e circunstâncias «fortemente
análogas» àquelas em que os acontecimentos ocorrem devido a agentes humanos. Ver
o seu «Miracles», The Philosophical Quarterly XVIII, n° 73 (1968), pp. 320-328.

216
Milagres e a mundividência moderna

directa de Deus. Em resposta à questão 2, embora admitindo que é hoje mais


difícil atribuir algum acontecimento na natureza a uma causa sobrenatural,
argumentei que a mundividência moderna não torna impossível a crença
em milagres. No que diz respeito a 3, ocupámo-nos em grande medida do
argumento clássico de Hume contra a razoabilidade da crença na ocorrência
de qualquer acontecimento que viole uma lei da natureza. Concluímos que
o seu argumento não é inteiramente bom porque ignora a possibilidade de
haver indícios indirectos fortes a favor da ocorrência de um acontecimento e
exagera a importância da uniformidade da experiência anterior como indício
contra a ocorrência de um acontecimento milagroso. Concluí que é perfei­
tamente possível haver circunstâncias em que seria razoável acreditar na
ocorrência de uma violação de uma lei da natureza. Vimos, contudo, que
só é razoável acreditar na ocorrência de um milagre genuíno se for razoável
acreditar simultaneamente que ocorreu uma violação de uma lei da natu­
reza e que a violação se deve à intervenção directa de Deus. Se temos boas
razões para acreditar que Deus existe, então, em determinadas circunstâncias
poderá ser razoável acreditar que tal violação se deve à actividade de Deus.
Mas, na ausência de boas razões a favor da existência de Deus, é muitíssimo
improvável que uma violação das leis da natureza, e as circunstâncias em
que tal ocorre, nos dêem justificação para inferir que o Deus teísta existe e
que causou essa violação.

REVISÃO

1. Por que razões pensa Bultmann que as pessoas de hoje não podem acre­
ditar em milagres? Serão as suas razões convincentes?
2. Explique a noção humiana de milagre e indique algumas objecções que
é possível levantar-lhe.
3. Qual é o argumento central de Hume a favor da perspectiva de que nunca
é razoável acreditar que ocorreu um milagre?
4. Que debilidades podemos encontrar no argumento de Hume?

217
Introdução à Filosofia da Religião

5. Se se pode mostrar que ocorreu uma violação de uma lei da natureza,


que outras razões temos de ter antes de podermos chamar «milagre» a
essa violação? Fará diferença termos ou não à partida boas razões para
acreditar que Deus existe?

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Alguns teólogos defendem que não se devia encarar os milagres como


violações das leis da natureza; ao invés, devia-se entendê-los como
acontecimentos em que alguém tem experiência da acção de Deus. Dis­
cuta esta perspectiva acerca dos milagres e compare-a com a que se
elaborou ao longo deste capítulo.
2. Suponha que Hume tem razão ao pensar que na prática nunca é razoável
acreditar que ocorreu um milagre. Que relevância teria esta perspectiva
para o teísmo tradicional? Teríamos justificação para rejeitar o teísmo:
ou apenas para o modificar ligeiramente? Explique.
Capítulo 9
Vida depois da morte

TIPOS DE IMORTALIDADE

Desde a antiguidade que as pessoas pensam e se intrigam com a possibilidade


da vida depois da morte, Das diversas religiões e civilizações principais sur­
giram várias concepções distintas da vida depois da morte. Antes de poder
pensar claramente acerca da questão da vida depois da morte, portanto,
temos de distinguir algumas das diferentes maneiras em que se imaginou
essa vida depois da morte, pois é um erro pensar que todos os que acreditam
na imortalidade humana acreditam precisamente na mesma coisa.
Na civilização da antiga Grécia, surgem duas ideias distintas acerca da
vida depois da morte, a que por facilidade de referência chamarei as concep­
ções homérica e platónica de imortalidade. Na antiga religião grega, com a
sua crença nos muitos deuses do Olimpo — Zeus, Hera, Poseidon, Hades e
outros — , era convicção geral de que tanto os seres humanos como os deu­
ses tinham começado a existir, mas que os deuses, ao contrário das pessoas,
nunca morriam; só eles eram imortais. Nenhum ser humano, propriamente
falando, podia ser imortal; pois para isso teria de ser um deus e não um ser
humano. Mas, apesar da convicção de que só os deuses eram imortais, os
antigos gregos acreditavam numa forma de vida humana depois da morte.
Acreditavam que algo semelhante à pessoa viva sobrevive à morte corpó­
rea — que, para citar Homero, «há ainda algo na casa de Hades, uma alma

219
Introdução à Filosofia da Religião

ou um fantasma mas sem qualquer vida real» .106 O que sobrevive é apenas
uma sombra da pessoa que em tempos viveu na Terra. Na morte, o espírito
de um ser humano assume uma forma de existência persistente no Hades,
a terra dos mortos. Comparada com a vida antes da morte, contudo, a vida
depois da morte é vista como uma forma mais pobre de existência. Assim
diz Homero pela boca do poderoso Aquiles: «Não venhas com uma conversa
doce sobre a morte, Ulisses, luz das assembleias. Digo que é melhor lavrar a
terra como trabalhador assalariado para algum camponês pobre, vivendo de
rações de emergência, do que governar sobre todos os esgotados mortos» .107
A crença homérica na imortalidade, portanto, é uma crença num género de
sobrevivência à morte corpórea. Mas o que sobrevive aparentemente não é
senão uma sombra da mente e da alma que habitam o corpo terreno.
A concepção platónica de imortalidade envolve o abandono da ideia
homérica de que só os deuses são imortais. Também os seres humanos, do
ponto de vista de Platão, são verdadeiramente imortais. Os seus corpos,
como é óbvio, perecem com a morte. Mas não há propriamente uma iden­
tificação entre a pessoa e o seu corpo; a pessoa é a alma humana, e a alma é
aquele algo espiritual em nós que raciocina, imagina e recorda. Enquanto
dura a sua vida terrena, a alma está ligada a um corpo particular, ou apri­
sionada nele. Mas com a morte física a alma escapa ao cárcere do corpo e
alcança o seu verdadeiro estado de vida interminável. No diálogo Fédon, Pla­
tão desenvolve dramaticamente estas ideias. Sócrates, que foi condenado a
beber o veneno da cicuta, encontra-se pela última vez com os seus seguidores
e argumenta a favor da perspectiva de que ele não é o seu corpo mas que na
verdade é uma alma espiritual no seu corpo, que a alma é indestrutível e,
portanto, imortal, e que a vida da alma depois da morte corpórea é superior

106. Homero, Iliad, livro 23, trad. W.H.D. Rouse (Nova Iorque: Tfie New American Library,
1950), p. 267. [ilíada, trad, Frederico Lourenço, Lisboa; Livros Cotovia, 2005.]
107. Homero, Odyssey, livro 11, trad, Robert Fitzgerald (Garden City, NY: Doubleday &
Company, Inc., 1963), p. 201. [Odisseia, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Livros
Cotovia, 2003,]

220
Vida depois da morte

à sua vida no corpo. No ñnal do argumento, o amigo de Socrates, Criton,


pergunta: «Mas como te vamos enterrar?»

«Do modo que bem entenderem», replicou Sócrates, «istoé, se me conseguirem


apanhar e não vos escapar por entre os dedos». Ria delicadamente ao falar, e
voltando-se para nós prosseguiu: «Não consigo persuadir Criton de que sou este
Sócrates aqui que fala convosco a organizar todos os argumentos; ele pensa que
sou aquele a quem verá em breve jazer morto; e pergunta como me deverá enter­
rar! Quanto à minha longa e elaborada explicação de que quando tiver bebido o
veneno não estarei mais entre vós, mas terei partido para um estado de felici­
dade divina, esta tentativa de vos consolar a vocês e a mim próprio parece não
encontrar eco nele.»108

As concepções homérica e platónica da imortalidade diferem em pelo


menos três aspectos. Em primeiro lugar, ao contrário da pessoa homérica,
a pessoa platónica é verdadeiramente imortal. Em segundo lugar, Platão
identifica a pessoa real com a alma que ocupa um corpo físico, humano.
Na concepção homérica não há tal separação clara entre a pessoa e o corpo.
E finalmente, em Platão, ao contrário de em Homero, a vida depois da morte
não é encarada como uma forma inferior de existência, mas como efectiva­
mente superior à vida na Terra.
O elemento comum nas duas concepções gregas da imortalidade que
considerámos é a crença na imortalidade individual Há, contudo, formas
não individuais da crença na imortalidade. As religiões que surgem na índia
(hinduísmo, budismo, jainismo) consideram em geral que a imortalidade
individual é indesejável. No hinduísmo, tal como se exprime nos seus textos
sagrados, os Upanixades, desenvolveu-se uma doutrina da transmigração
das almas — a passagem de uma alma para outro corpo, aquando da morte

108. Platão, Phaedo, 115 C, D, em Plato: The Last Days of Socrates, trad. Hugh Tredennick
(Baltimore, MD: Penguin Books, 1954), p. 179. [Fédon, trad. Maria Teresa Schiappa de
Azevedo, Coimbra: Minerva, 1998.]

221
Introdução à Filosofia da Religião

corpórea. Este «ciclo de renascimento» continua até que, por um árduo


esforço moral e espiritual, a alma ganha a sua libertação e alcança o seu
objectivo último, a absorção em Deus, a alma universal. Nesta absorção, a
alma perde toda a individualidade e consciência..
Uma última forma de crença na vida depois da morte está associada
à ideia da ressurreição do corpo. Segundo esta ideia, que contrasta com
a perspectiva platónica, o corpo não é apenas o cárcere da pessoa real. Ao
invés, a pessoa é em geral encarada como um género de unidade entre a alma
e o corpo, pelo que a existência persistente da alma depois da destruição do
corpo significaria a sobrevivência de algo que não seria a pessoa integral.
Nesta perspectiva, a crença na vida futura da pessoa integral exige a reunião
da alma com um corpo ressuscitado. Embora fortemente associada ao cris­
tianismo, a doutrina da ressurreição do corpo é também um artigo de fé do
islamismo e, entre os judeus no tempo de Cristo, era uma característica dis­
tintiva de um poderoso grupo, os fariseus. Segundo a doutrina cristã tradicio­
nal, no dia do juízo, quando o mundo terminar, as almas de todas as pessoas
reunir-se-ão aos seus corpos ressuscitados. Não é claro, contudo, como será
ao certo o corpo ressuscitado. Segundo São-Paulo, difere notavelmente dos
corpos com que vivemos as nossas vidas terrenas. Pois, ao contrário do nosso
corpo terreno, o corpo ressuscitado nem é corpóreo (físico) nem perecível
(mortal). O corpo ressuscitado é espiritual e imortal.109
Vimos algumas concepções diferentes da vida depois da morte. Se nos cen­
trarmos naquelas que dão ênfase à existência persistente do individuo, pode­
mos distinguir pelo menos três perspectivas: a) a existência incorpórea da alma
depois da morte do corpo, b) a reencarnação de uma alma depois da morte
corpórea e c) a reunião entre a alma e o corpo ressuscitado. E entre estas, as
duas ideias que têm predominado na cultura ocidental são a versão platónica,
em que a pessoa é essencialmente a alma que sobrevive à morte corpórea, e a
versão cristã, em que a pessoa é a unidade entre a alma e o corpo e sobrevive

109. I Corintios, 15:42-44.

222
Vida depois da morte

à morte pela reunião da alma com o corpo ressuscitado. A estas duas formas
principais da ideia de vida depois da morte subjaz uma convicção comum: a
pessoa humana existe e tem experiências depois da morte do corpo. Na versão
platónica identiñca-se a pessoa com a alma; na versão crista encara-se a pessoa
humana como um composto de alma e corpo. O que nos interessa, contudo, é a
convicção fundamental de que a pessoa sobrevive à morte do seu corpo.
Temos de levantar duas perguntas que no que diz respeito à convicção
básica de que a pessoa humana sobrevive à morte do seu corpo. Há a p e r­
gunta conceptual será que a convicção faz sentido? E há a pergunta factual:
será a convicção verdadeira? Claro que só podemos sensatamente levantar
a pergunta factual se pressupusermos uma resposta afirmativa à pergunta
conceptual. Assim, é melhor começarmos por esta. Será que a ideia de que a
pessoa humana sobrevive à morte corpórea faz sentido?

A INTELIGIBILIDADE DA IMORTALIDADE

Qual é o problema da inteligibilidade da imortalidade pessoal? Na verdade, os


filósofos levantaram dois problemas. O primeiro diz respeito àquilo em que
consiste ser uma pessoa. O segundo diz respeito àquilo em que consiste ser
a mesma pessoa. Se pensamos acerca do que é ser uma pessoa, que aspectos
ou características as pessoas têm, podemos fazer uma lista de alguns dos mais
importantes. As pessoas têm ou realizam:

1. Acções e intenções,
2. Sensações e emoções,
3. Pensamentos e memórias,
4. Percepções e
5. Características físicas {altura, cor, forma, peso).

Mas se pensamos em algo que sobrevive à morte corpórea, se pensamos em


algo que tem uma existência incorpórea, podemos razoavelmente pensar que

223
Introdução à Filosofia da Religião

esse algo tem ou realiza alguma das características numeradas de i a 5? Uma


alma, visto ser incorpórea, não tem altura, nem cor, nem forma, nem peso. :
Pelo que temos de excluir as características físicas. E quanto às percepções:
ver, ouvir, saborear, palpar, cheirar? É difícil compreender como algo pura­
mente espiritual poderia ter qualquer destas coisas. E poderia a alma agir ou
fazer coisas?
O problema é que a nossa ideia de acção humana parece intimamente
ligada à de movimento físico, tal como a ideia de emoção humana parece
intimamente ligada ao modo como as pessoas falam e se comportam. O pro­
blema geral, portanto, é o de que muitas das coisas bastante básicas que as
pessoas humanas têm e fazem ou envolvem directamente ou pressupõem
de alguma maneira o corpo humano. Portanto, alguns filósofos têm dúvidas
genuínas de que a ideia de pessoa humana faça qualquer sentido na ausência
de um corpo humano. Se as suas dúvidas estão bem fundadas, há algo de
basicamente errado na ideia platónica de identificar a pessoa humana com
uma substância imaterial, a alma. A ideia de que a pessoa sobrevive à morte
do corpo é também posta em causa. A versão cristã em que a pessoa é a uni­
dade entre a alma e o corpo, contudo, não é tão claramente afectada por estas
dúvidas. Porquanto, nesta versão, acredita-se que a pessoa é reconstituída
depois da morte pela união da alma com o corpo ressuscitado. Também aqui,
contudo, permanecerá uma dificuldade se o «corpo» ressuscitado não for
añnal realmente um corpo (isto é, uma coisa física), como São Paulo parece
ter defendido. Um problema, portanto, acerca do significado da vida depois
da morte diz respeito à questão de fazer ou não sentido pensar que uma pes­
soa humana existe separadamente de um corpo humano.
O segundo problema diz respeito àquilo em que consiste ser a mesma
pessoa. Suponhamos que de uma maneira ou outra é possível existir uma
alma incorpórea que seja uma pessoa. A crença na vida depois da morte,
contudo, não é apenas a crença de que após a morte corpórea algo continua
a existir e é uma pessoa. É também a crença de que a pessoa que existe após a
morte corpórea é a mesma pessoa que existia antes da morte corpórea. E isto

224
Vida depois da morte

levanta questões profundamente difíceis acerca do que constitui a identidade


de uma pessoa ao longo do tempo. Na perspectiva platónica da imortalidade
humana, teríamos de defender que há uma característica inteiramente men­
tal ou espiritual que constitui a identidade da pessoa. Na versão cristã da vida
depois da morte, há a possibilidade de apelar à mesmidade do corpo como
base da mesmidade da pessoa. Podemos formular a questão geral levantada
por este segundo problema da seguinte maneira: qual é a diferença entre ser
a mesma pessoa a existir depois da morte corpórea e ser outra pessoa, que
se assemelhe com bastante exactidão à anterior? Alguns filósofos pensaram
que se não dermos uma resposta clara e cogente a esta questão, não teremos
bases para aceitar a possibilidade de que a pessoa que existe depois da morte
corpórea é a mesma que existia antes.
Vimos as duas principais dificuldades que dão origem à pergunta con­
ceptual respeitante à imortalidade humana, a pergunta sobre se a crença na
vida depois da morte tem sentido ou não. A solução para estas dificuldades
envolve algumas das questões mais complicadas e controversas na filoso­
fia, questões que não podemos desenvolver aqui adequadamente.110 Tendo-
-nos familiarizado com a pergunta conceptual a respeito da vida depois da
morte, pressuporemos aqui que se pode resolver os dois problemas que lhe
dão origem e avançar para a pergunta factual: será verdadeira a crença na
vida depois da morte?

A FAVOR DA IMORTALIDADE

Há três argumentos principais em defesa da perspectiva de que as pessoas


humanas sobrevivem à morte corpórea. Para facilidade de referência referi-
-los-emos como o argumento filosófico, científico e teológico. Destes, o

110, Para discussão complementar destes temas conceptuais ver Anthony Quinton, «The
Soul», The Journal of Philosophy XLIX (1962), pp. 393-409; Peter Geach, God and the
Soul (Londres: Routledge & Kegan Paul Lda., 1969); e Terrence Penelhum, Simui/uaí
and Disembodied Existence (Londres: Routledge & Kegan Paul Lda, 1970).

225
Introdução à Filosofia da Religião

filosófico é o mais antigo, remontando a Platão, e, como veremos, o mais


fraco. Comecemos o nosso estudo da defesa da imortalidade examinándolo.

O argumento filosófico

O argumento filosófico assenta na perspectiva platônica de que a pessoa é


essencialmente uma alma e que a alma é uma substância imaterial, pura­
mente espiritual. Dada esta perspectiva como ponto de partida, desde Platão
que os filósofos têm amiúde usado o seguinte argumento em defesa da pers­
pectiva de que a pessoa (a alma) é imortal:

1. Só se pode destruir uma coisa separando as suas partes.


2. A alma não tem partes.
Logo,
3. Não se pode destruir a alma.

É um argumento interessante e tem bastante força persuasiva. Creio que a


sua persuasão deriva do facto de a destruição de uma coisa material parecer
envolver sempre, em maior ou menor grau, a separação das suas partes. Mas,
argumenta-se, sendo imaterial, a alma não é composta por partes; é uma
unidade indivisível. Logo, não se pode destruir a alma.
Penso que há duas objecções convincentes a este argumento; uma diz
respeito ao próprio argumento e a segunda diz respeito ao pressuposto,
contido no argumento, de que a alma ou mente é uma substância imaterial
A objecção ao próprio argumento rejeita a sua primeira premissa, a afirmação
de que a única maneira de destruir seja o que for é separando as suas partes.
A objecção diz-nos que esta premissa poderia ser verdadeira se a restringísse­
mos a coisas materiais. Talvez toda a destruição de coisas materiais se reduza
a uma separação das partes que as constituem. Mas então, evidentemente, se
restringíssemos a primeira premissa a coisas materiais, apenas poderiamos
concluir da primeira e da segunda premissas que a alma não é uma coisa

226
Vida depois da morte

material. Assim, para que o argumento produza a conclusão de que não se


pode destruir a alma, a primeira premissa tem de se aplicar tanto a coisas
materiais como a coisas imateriais. E tem de afirmar que a destruição pela
separação de partes é o único modo de destruição que existe. Mas levantou­
-se a questão de haver ou não um modo de destruição diferente da destruição
pela separação de partes, um modo de destruição apropriado a uma subs­
tância imaterial. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) pensou que
havia tal modo de destruição.

«M esm o que admitamos a natureza simples da alma, nom eadam ente, que não
contém qualquer diversidade de constituintes exteriores entre si, e portanto
qualquer quantidade extensionai, não podemos ainda negar no seu caso, como
não podemos negar para qualquer outro existente, que tenha quantidade inten-
sional, isto é, um grau de realidade respeitante a todas as suas faculdades, ou
antes, a tudo 0 que constitui a sua existência, e que este grau de realidade pode
diminuir ao longo de todos os graus infinitam ente pequenos. Desta maneira, a
suposta substância [...] pode tornar-se nada, não por dissolução, mas por perda
gradual dos seus poderes.»111

Kant procura mostrar que embora uma substância imaterial não tenha
quantidade extensionai e, portanto, não possa ser destruída por dissolução
(separação de partes) pode ter quantidade intensional e, portanto, estar
sujeita à destruição pela redução a zero dessa quantidade intensional. Dado
que a alma tem consciência, por exemplo, pode ter mais ou menos consciên­
cia. Isto é, a alma pode ter consciência em maior ou menor grau (quantidade
intensional). Se o seu grau de consciência diminuir para zero e ocorrer uma
redução similar nas suas outras funções, então podemos dizer que a alma,
embora seja uma substância imaterial, foi destruída.

111. Immanuel Kant, Critique of Pure Reason, trad. Norman Kemp Smith (Londres; Mac­
millan & Co., 1956), p. 373. Sublinhados meus. [Crítica da Razão Pura, trad. M.P. dos
Santos et al. Lisboa: Gulbenkian, 1985.]

227
Introdução à Filosofia da Religião

A segunda objecção principal ao argumento a favor da imortalidade


baseado na indestrutibilidade da alma põe em causa o pressuposto tácito de
que a alma ou mente humana é uma substância imaterial persistente. Uma
das ofensivas é representada pelo materialismo,-a perspectiva de que só as
cqisas físicas são reais. Nesta perspectiva — tal como se exprime, por exemplo,
nos escritos do poeta e filósofo romano Lucrécio — a alma, como qualquer
outra coisa, tem uma natureza material, intimamente associada ao corpo, e
condenada a perder a consciência com a morte do corpo .112
Outra ofensiva rejeita a ideia de que a alma ou mente seja uma substância
de todo em todo. Em vez de ver a alma ou a mente como uma coisa persis­
tente que tem experiências ao longo do tempo, muitos pensadores no período
moderno defenderam que a mente não é senão uma série de acontecimentos
mentais ou experiências que se relacionam entre si por laços de sucessão, de
memória e de outras maneiras. Nesta perspectiva, a que por vezes se chama:
«teoria do feixe», a alma é uma série particular de acontecimentos mentais
e não uma substância persistente. Não há qualquer substância mental sub­
jacente que persista ao longo do tempo e que tenha experiências como ver e
recordar. Ao invés, há apenas uma série de acontecimentos mentais — acon­
tecimentos como ver um gato, pensar num amigo, recordar uma experiência
anterior. A alma nada mais é do que uma série destes acontecimentos men­
tais, acontecimentos que estão relacionados com um corpo humano particular.
Podemos ainda levantai" a questão da sobrevivência pessoal nesta perspectiva.
Mas a questão será agora a de a série de acontecimentos mentais associada ao
corpo, depois da morte corpórea, cessar ou continuar a ter novos membros.
Nesta concepção da alma ou mente, portanto, o argumento a favor da imor­
talidade que temos considerado assenta num falso pressuposto, o pressuposto
de que a alma é uma substância persistente. Para os pensadores do período
moderno que o rejeitam, o argumento filosófico a favor da imortalidade não
dá qualquer base sequer para acreditar na vida depois da morte.

112. Lucrécio, De Reriim. Natura.

228
Vida depois da morte

O argumento científico

O argumento científico a favor da perspectiva de que as pessoas humanas


sobrevivem à morte corpórea consiste quase inteiramente nos resultados da
investigação científica do estranho fenómeno da mediunidade mental Os
fenómenos mediúnicos dividem-se em físicos e mentais. O tipo físico envolve
a aparição de um rosto ou uma mão ou alguma representação quasifísica de
uma pessoa morta. Este material é muito difícil de estudar cientificamente
devido às restrições impostas pelo médium. A Sociedade para a Investigação
Psíquica (S.I.P.), fundada em 1882 e dedicada ao estudo científico dos fenó­
menos paranormais, procurou submeter todos os fenómenos mediúnicos a
um. estudo cuidadoso. É opinião da sociedade que na sua maioria os médiuns
que produzem aparições de mãos e rostos ou outras representações fazem-no
através de truques ou fraude. A mediunidade mental, contudo, é mais fácil de
estudar cientificamente e produz de facto resultados tão surpreendentes que
a hipótese de comunicação com espíritos defuntos é talvez a mais plausível
que temos para os explicar. É importante, portanto, considerar cuidadosa­
mente o fenómeno da mediunidade mental.
Um médium é uma pessoa viva que professa a capacidade de contactar e
receber mensagens de «espíritos» idos, os espíritos ou mentes de pessoas que
sobreviveram à morte corpórea. O mecanismo pelo qual estas mensagens são
recebidas e transmitidas a pessoas vivas que não o médium é, grosso modo,
o seguinte: uma pessoa viva que deseja contactar com um espírito defunto
entra em contacto com um médium (directa ou indirectamente) e marca
uma sessão. O comitente (a pessoa viva que deseja contactar um espírito ido)
fará os preparativos e comparecerá pessoalmente na sessão ou encontrará
outra pessoa, um mandatário do comitente, que faça os preparativos e se
encontre com o médium. O mandatário do comitente não será alguém que
conheça a pessoa defunta e pode nem sequer conhecer o próprio comitente. O
mandatário do comitente receberá apenas alguns fragmentos de informação
acerca do espírito defunto e pode passar pouquíssima desta informação ao

229
Introdução à Filosofia da Religião

médium. Quando o próprio comitente comparece à sessão, irá normalmente


ocultar a sua identidade ao médium, de maneira a impedir-que o médium
recorra a meios convencionais de descobrir informação acerca da pessoa
morta. Tomam-se precauções consideráveis para excluir a possibilidade de o
rpédium obter através de meios convencionais a informação que irá transmitir.
Na própria sessão, o médium geralmente entra num estado sem e­
lhante ao transe. Então o controlo do médium entra em cena e fala com
o comitente. É importante distinguir entre o controlo e o comunicador.
O controlo é supostamente um espírito defunto que de alguma maneira está
intimamente associado a um médium particular. O comunicador é o espí­
rito defunto que o comitente deseja contactar. No estado de transe a voz e a
personalidade do médium podem mudar consideravelmente, assumindo as
características do controlo. O controlo pode então estabelecer contacto com
o comunicador e transmitir ao comitente as mensagens do espírito defunto.
Os indícios mediúnicos a favor da sobrevivência, independentemente do peso
que lhes atribuímos, são dados pelas mensagens do comunicador. Em geral
o controlo dirige a sessão, olha pelo médium e encerra a sessão quando o
médium está exausto. Alguns investigadores acreditam que o controlo é uma
segunda personalidade do próprio médium, ou algum nível subconsciente
da personalidade do médium que é reprimida na vida consciente quotidiana.
Talvez a melhor maneira de compreender o género de indícios dados
pela mediunidade mental seja considerar um caso particular. Entre os mui­
tos casos relatados, há o de Edgar Vandy .113 Vandy, um inventor, morreu
em circunstâncias algo misteriosas, no dia 6 de Agosto de 1933. Os seus dois
irmãos, George e Harold, insatisfeitos com os resultados da investigação poli­
cial, contactaram diversos médiuns, na esperança de que estes conseguissem
lançar alguma luz sobre o último momento da vida do seu irmão. George,
embora não acreditando na sobrevivência após a morte corpórea, fora mem-

113. O relatório está no S.P.R. Journal XXXIX (1957). Uma análise detalhada do caso
encontra-se em C.D. Broad, Lectures on Psychical Research (Londres: Routledge &
Kegan Paul, Lda., 1953), Capítulo XV, pp. 350-383.

230
Vida depois da morte

bro da S.I.P. durante alguns anos. Escreveu a Drayton Thomas, um conhecido


membro dessa sociedade, pedindo-lhe que hzesse os preparativos com um
médium e que interviesse como mandatário do comitente, A única infor­
mação dada a Thomas foi a de que procuravam informação, particularmente
no que respeita à causa da morte de um irmão que morrera recentemente.
Thomas não recebeu quaisquer nome ou detalhes, embora lhe tenham dito
que havia uma irmã e um irmão ainda vivos. Thomas concordou em organizar
uma sessão medfúnica por procuração. Além disso, George e Harold tive­
ram ambos sessões com diversos médiuns, tendo o cuidado de omitir as suas
identidades em cada ocasião e de não fornecer informação factual acerca de
Vandy, Todos os comentários feitos pelos médiuns foram literalmente anota­
dos por estenógrafos profissionais. Ao todo, contando a sessão mediúnica por
procuração de Thomas, houve seis sessões com quatro médiuns diferentes:
A Sr.a Leonard, Miss Campbell, a Sr.a Mason e Miss Bacon.
No dia da sua morte, Vandy fez uma viagem de automóvel com um
amigo, N.J., a uma residência privada, onde trabalhava a irmã de NJ. O pro­
prietário estava ausente na altura e Vandy e NJ. decidiram nadar na piscina
ao ar livre. A piscina era pequena, com cerca de um metro de profundidade
num extremo e dois metros no outro extremo. Vestiram fatos de banho a
alguma distância da piscina. Quando NJ. chegou à piscina, segundo o tes­
temunho que prestou durante a investigação, Vandy jazia na superfície
da água, voltado para baixo, com os braços esticados e as mãos a tremer.
Apercebendo-se de que algo não estava bem, NJ. saltou e tentou puxar Vandy
para fora, perdeu a força e foi incapaz de impedir que Vandy se afundasse na
água turva. NJ. foi buscar ajuda. O corpo de Vandy foi recuperado pela polícia
pouco tempo depois. Segundo os indícios médicos, a causa da morte foi afo­
gamento. Havia hematomas sob o queixo e laceração da língua pelos dentes.
O médico sugeriu que Vandy mergulhara {havia uma prancha de mergulho),
batera com o maxilar e perdera os sentidos, afogando-se. Segundo os irmãos,
contudo, Vandy não sabia mergulhar e mal sabia nadar sequer. Assim, o mis­
tério da sua morte levou-os a procurar a ajuda de médiuns.

231
Introdução à Filosofia da Religião

Embora as mensagens que receberam dos médiuns não tenham escla­


recido satisfatoriamente a questão, os médiuns forneceram de facto infor­
mações, tanto acerca da morte de Vandy como acerca da natureza do seu
trabalho, que são praticamente impossíveis de explicar por quaisquer meios
convencionais. Tem de se recordar que não se deu qualquer informação
sobre estes assuntos aos médiuns e tão-pouco se lhes revelou a identidade
da pessoa falecida. Apesar disto, contudo, os médiuns receberam mensagens
segundo as quais a pessoa em causa morrera devido a um acidente estranho,
que se afogara numa piscina ao ar livre, que antes do afogamento recebera
um golpe atordoante e que alguém mais estava presente, que essa pessoa
tentou ajudar, mas por alguma razão foi incapaz de o fazer. Um exemplo
representativo é dado a seguir:

(O com itente interpôs a questão: «poderá dizer-nos exactam ente o que acon­
te ceu ?» e o m édium continu ou com o se segue.) Ele desmaiou na água. Não :
creio que se trate de uma p iscin a para nadar. Estou numa p iscin a privada, e
sinto m ergulhar e coisas sem elhantes. Sim , estou ao ar livre, não estou num
espaço fechado — é com o um a piscina privada [...] Sabe, ele sofreu um golpe
na cabeça antes de desmaiar [...] Havia uma prancha de mergulho, não sei se
alguém lhe bateu ou não [...] L em bra-se de cair e sen tir uma nítida pancada
na cabeça. Não podia emergir, dado que aparentem ente perdera a consciência
debaixo de água [...] É uma piscina ao ar livre, e diz que deve ter caído para a
fren te, p r e c ip itá n d o s e e batido com a cabeça [...] Vou tentar reconstitu ir o
seu falecim ento, que ele me tenta m ostrar: “Deslizava para o fundo da piscina
extrem am ente debilitado, devido a ter caído para a frente de alguma maneira e :
batido com a cabeça imediatamente antes.”114

Quando morreu, Vandy acabara de inventar uma máquina bastante


elaborada a que chamou «Máquina Electrolme de Desenho». A máquina

114. Ibid, pp. 364-365.

232
Vida depois da morte

foi concebida para alcançar por meios mecânicos resultados que antes só se
obtinha com trabalho manual qualificado. Não estava ainda patenteada e fora
montada com razoável secretismo por Vandy numa sala da casa de um primo.
Outras salas da casa continham algumas máquinas ligadas à empresa, mas
nesta sala só se mantinha a recentemente construída máquina de desenho.
Na sessão com Miss Bacon, o irmão de Vandy, Harold, perguntou: «pode
ele [Vandy] descrever a natureza do seu trabalho principal?» Respondeu do
seguinte modo:

«Era extremamente bom em algo que estava a fazer e isto deixou-o terrivelmente
perturbado, porque todo o seu trabalho terreno parou. Esta era a sua maior
mágoa [...] Mostra-me uma sala e não sei se tem a ver com telégrafos ou rádio,
mas é como maquinaria e máquinas a funcionar muito rapidamente, como se
estivessem a produzir algo. Toda esta maquinaria parece subir e descer. Não digo
que seja eléctrica, as máquinas produzem de facto algo [...] Parece que ele tem
de fazer algo para as vigiar. Não percebo claramente. Há um barulho terrível. »11S

Harold perguntou então: “Eram muitas máquinas?”

«Não na sala onde estava. Piá noutras partes, mas parece que há apenas uma
perto dele [...] Havia mais máquinas, mas ele fez algo específico Teriam talvez
a ver com litografia ou algo semelhante? Ele diz: “ litografia ou algo a ver com
impressão” [...] Não sei se ^ fotografía também entra, mas tenta mostrar-me
chapas ou algo assim [...] Parece um trabalho muito delicado, mas na sala em
que está não vejo muitas máquinas e sim uma m áquina em e sp ec ia l Noutras
partes do edifício há mais, mas ele tinha uma especial, Era muito cuidadoso com
aquilo e orgulhava-se muito.»116

115. Ibid,, p. 374.


116. Ibid., p. 375.

233
Introdução à Filosofia da Religião

O que pensar destas revelações tão extraordinárias dos diversos médiuns


contactados no caso Vandy? Podemos seguramente concordar com C.D.
Broad em que «não é de modo algum crível que a quantidade e o tipo de con­
cordância que efectivamente se encontram entre as afirmações feitas pelos
diversos médiuns nas diferentes sessões fosse puramente uma questão de
coincidência aleatória» .11? Também não é de modo algum crível que o grau
de correspondência entre o que os médiuns revelaram e os factos conhecidos
acerca de Vandy se deva a coincidência aleatória. Parece evidente que temos
ou de supor uma fraude elaborada perpetrada por ambos os comitentes e os
médiuns ou admitir a ocorrência de modos de percepção além daqueles com
que estamos familiarizados na vida quotidiana. Se rejeitarmos a suposição
de fraude, parecerá que a explicação de longe mais simples para os factos
deste caso é a hipótese de que a personalidade de Vandy sobreviveu à morí e
corpórea e de alguma maneira comunicou diversas mensagens através dos
médiuns. A única outra hipótese minimamente plausível é a que se tem cha -
mado «hipótese da superpercepção extra-sensorial». Segundo esta hipótese,
toda a informação relevante transmitida nas sessões veio das mentes das
pessoas ainda vivas, presumivelmente de N. J. e dos irmãos sobreviventes.
Por algum processo paranormal, os médiuns obtiveram a informação a partir
destas diversas fontes e, durante um estado de transe, apresentaram-na na
forma de uma comunicação com o espírito sobrevivente de Vandy.
A escolha entre a hipótese da sobrevivência e a hipótese da superper
cepção extra-sensorial é difícil. Quando pensamos nas sessões mediúnicas ;
por procuração, em que o procurador não conhece pessoalmente o falecido ;
ou os familiares sobreviventes, é praticamente impossível acreditar que ;
durante a sessão o médium, ou o seu inconsciente, consegue de alguma
maneira entrar em contacto com diversos documentos ou com as mentes
dos familiares sobreviventes. Será que o médium segue de alguma maneira
uma ligação telepática entre o comitente, que é apenas um procurador, e os ;

117. Ibid., p. 380. !

234
Vida depois da morte

amigos e familiares ausentes do falecido, extraindo deles então as memorias


do falecido?118Por outro lado, como veremos, a hipótese da sobrevivencia tem
contra si não só as dificuldades filosóficas já observadas mas também um
argumento científico poderoso.

O argumento teológico

O argumento teológico a favor da vida depois da morte assenta na crença


de que o deus teísta existe. Se começarmos com esta crença como funda­
mento, podemos construir um argumento poderoso a favor da sobrevivência
humana. Pois de acordo com o teísmo, Deus criou pessoas finitas para que
existam em comunhão consigo mesmo. Mas, se isto for verdade, então parece
contradizer o seu próprio objectivo e o amor que tem pelas suas criaturas,
se Deus permitisse que perecessem completamente quando o objectivo que
lhes reservou permanece incumprido. Consequentemente, se for razoável
acreditar que o Deus teísta existe, será seguramente razoável acreditar na
vida depois da morte.

CONTRA A IMORTALIDADE

Estivemos a ver as três principais linhas de argumentação a favor da pers­


pectiva de que a pessoa humana sobrevive à morte do seu corpo. Antes de
fazermos uma avaliação fmal do argumento a favor da imortalidade humana,
será instrutivo considerar a principal linha de ataque à ideia de vida depois
da morte. Tal como o argumento a partir da mediunidade mental, este argu­
mento é de natureza científica, não sendo estritamente ñlosóñco ou teológico.
Ao contrário do argumento a partir da mediunidade mental, contudo, este
argumento baseia-se em factos com que todos estamos familiarizados.

118. Para uma discussão cuidada da hipótese da superpercepção extra-sensorial, com a


qual estou em divida, ver H.H. Price, «The Problem of Life After Death», Religious
Studies III, pp. 447-459).

235
Introdução à Filosofia da Religião

O tema geral do argumento científico contra a imortalidade foi apresen­


tado por Bertrand Russell:

«As pessoas fazem parte do mundo quotidiano, de que se ocupa a ciência,


> e podemmos descobrir as condições que determinam a sua existência. Uma gota
de água não é imortal; pode-se resolver em oxigénio e hidrogénio. Se, portanto,
uma gota de água afirmasse ter uma qualidade aquosa que sobreviveria à sua dis­
solução, tenderíamos para o cepticismo. De igual modo, sabemos que o cérebro
não é imortal, e que a energia organizada de um corpo vivo é, por assim dizer,
desmobilizada aquando da morte e portanto fica indisponível para a acção colec­
tiva. Todos os indícios sugerem que aquilo que consideramos a nossa vida men­
tal está ligada à estrutura cerebral e à energia organizada do corpo. É portanto
racional supor que a vida mental cessa quando a vida do corpo cessa. Trata-se
apenas de um argumento de probabilidade, mas é tão forte como aqueles em que
se apoiam as conclusões científicas em geral.»119

A ideia central neste argumento é a de que os indícios que temos suge­


rem que a nossa vida mental depende de determinados processos corpóreos,
em particular os que estão associados ao cérebro. Sabemos, por exemplo, que:
os danos provocados a diversas partes do cérebro resultam na cessação de
determinados tipos de estados conscientes — memórias, processos mentais e
coisas semelhantes. Parece eminentemente razoável inferir a partir daqui que a
existência da consciência depende da existência e do funcionamento adequado
do cérebro humano. Quando, no momento da morte, o cérebro deixa de fun­
cionar, a inferência razoável a fazer é que a nossa vida mental também cessa.
O filósofo inglês J.M.E. McTaggart {1866-1925) sugeriu que a força do
argumento científico contra a imortalidade talvez dependa de uma falsa
analogia com a relação entre a mente e o corpo. Se concebermos a mente

119. Bertrand Russell, Why í Am Not a Christian (Nova Iorque: Simon and Schuster, 1957),
p, 51. [Porque Não Sou Cristão, trad. Mário Alves e Gaspar Barbosa, Porto: Brasilia,
1970.]

236
Vida depois da morte

como uma pessoa fechada numa sala com apenas uma janela, podemos com­
preender prontamente a dependência das funções mentais relativamente ao
corpo sem precisar de supor que com a morte do corpo a vida da mente tem
de cessar. Pois se uma pessoa estiver fechada na sala, a experiência que tem
do mundo exterior dependerá do estado da janela. Tape-se a janela total ou
parcialmente com tábuas e afectar-se-á tremendamente o género de expe­
riências que a pessoa que está na sala pode ter. Da mesma maneira, quando a
pessoa humana está viva no corpo, as mudanças que ocorrem no corpo (em
particular no cérebro) terão um efeito considerável no género de experiências
mentais que a pessoa é capaz de ter. Mas talvez a morte corpórea seja análoga
ao acto de a pessoa se libertar da sala fechada, pelo que deixa de depender
da janela para ter experiência do mundo exterior. Talvez no momento da
morte, como McTaggart sugere, a mente perca a sua dependência dos órgãos
do corpo, nomeadamente do cérebro. O simples facto de a mente depender
do funcionamento do cérebro enquanto está associada ao corpo vivo não
é uma prova de que a mente deixará de funcionar no momento da morte
corpórea, tal como o facto de a pessoa depender da janela enquanto está na
sala também não é uma prova de que sem a sala e sem a janela a pessoa deixa
de ter experiências do mundo exterior .120
Como avaliaremos os indícios a favor e contra a imortalidade? Eviden­
temente, o argumento mais forte a favor da imortalidade assenta na crença
de que o Deus teísta existe. Muitos teístas não contestariam esta conclusão.
As razões a favor da ideia de vida depois da morte talvez não sejam melho­
res nem piores do que as razões que temos para aceitar o teísmo. O argu­
mento científico contra a imortalidade parece bastante forte. Talvez, como
McTaggart argumenta, a sua força dependa de aceitarmos uma determinada
perspectiva da relação entre a mente e o corpo. Mas, contra McTaggart, os
indícios parecem mostrar que a relação entre os nossos corpos e a nossa

120. Ver J.M.E. McTaggart, Some Dogmas of Religion (l906; reimpresso, Nova Iorque;
Krays Reprint Co., 1969), pp. 103-106.

237
Introdução à Filosofia da Religião

vida mental é muito mais íntima e complexa do que a relação entre um ser
humano e uma sala em que este por acaso se encontra fechado. Se excluímos
o argumento baseado na perspectiva de que a alma é uma substância ima­
terial, ñcamos com o argumento baseado no extraordinario fenómeno da
mediunidade mental. Esse fenómeno pode dar alguma razão para acreditar
numa forma de sobrevivência pessoal à morte corpórea. Mas ao contrário
do conhecimento comum que temos acerca da dependência da nossa vida
mental relativamente à existência e ao funcionamento adequado do cérebro,
os indícios derivados de fenómenos mediúnicos não nos são prontamente
acessíveis e são portanto menos dignos da nossa confiança.
Talvez, então, a perspectiva mais razoável de aceitar nesta fase seja que
i) o argumento filosófico a favor da vida depois da morte baseado na natureza
da alma é bastante inconvincente; 2) tanto 0 argumento científico a favor da
sobrevivência pessoal como o argumento cientifico contra a sobrevivência
pessoal têm algum mérito; 3) dada a nossa maior familiaridade e confiança
a respeito dos factos que sustentam o argumento científico contra a ideia de­
vida depois da morte, devemos dar mais peso a este do que ao argumento:
a favor da ideia de vida depois da morte baseado nos relatos de médiuns; e
4) portanto, à parte a crença no teísmo, temos mais razões para pensar que-
não sobrevivemos à morte corpórea do que para pensar que sobrevivemos.
Resumindo, então, a menos que tenhamos boas razões para aceitar o teísmo,:
não temos, em geral, uma boa razão para acreditar na sobrevivência pessoal
depois da morte corpórea.121

121. Note-se que além dos argumentos que considerámos foram apresentadas diversas
razões a favor da crença na vida depois da morte. Para uma perspectiva favorável aos
principais argumentos a favor da vida depois da morte, ver Robert Almeder, Death &
Personal Survival (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 1992).

238
Vida depois da morte

REVISÃO

1. Explique as diversas concepções de vida depois da morte que emergiram


na civilização humana. Quais são as duas ideias de sobrevivência pessoal
que têm predominado na cultura ocidental?
2. Explique as duas dificuldades que os filósofos levantaram quanto à inte­
ligibilidade da sobrevivência pessoal.
3. Explique os argumentos filosófico, científico e teológico a favor da pers­
pectiva de que as pessoas humanas sobrevivem à morte corpórea.
4. Quais são as principais objecções aos três argumentos que sustentam a
perspectiva de que as pessoas humanas sobrevivem à morte corpórea?
5. Explique e avalie o principal argumento científico contra a ideia de vida
depois da morte. Que juízo final se pode fazer acerca das razões a favor
e contra a sobrevivência pessoal depois da morte corpórea?

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Que importância tem para a religião a crença na sobrevivência pessoal


depois da morte corpórea? Pensa que a religião depende de esta crença
se sustentar ou não? Consegue imaginar uma religião viável que aceite a
perspectiva de que com a morte tudo termina? Como seria essa religião?
Explique.
2. Dos diversos argumentos a favor e contra a sobrevivência pessoal, esco­
lha o que pensa ser o mais forte a seu favor e o mais forte contra essa
ideia. Discuta cuidadosamente cada uma destes dois argumentos, indi­
cando qual dos dois é, em seu entender, o mais plausível.

239
Capítulo 10
Predestinação, presciência divina
e liberdade humana

LIBERDADE HUMANA E PREDESTINAÇÃO DIVINA

Enquanto jovem de dezassete anos convertido a um ramo bastante ortodoxo


do protestantismo, o primeiro problema teológico que me preocupou foi a
questão da predestinação e da liberdade humanas. Li algures a seguinte frase
retirada do Credo de Westminster: «Deus, desde toda a eternidade [...] orde­
nou livre e imutavelmente tudo o que acontece». Esta ideia atraía-me em
muitos sentidos. Parecia exprimir a majestade e o poder de Deus sobre tudo
aquilo que criara. Também me levou a adoptar uma perspectiva optimista
sobre os acontecimentos da minha vida que me pareciam maus ou infelizes,
assim como das vidas alheias. Pois via-os como se Deus os tivesse planeado
antes da criação do mundo — pelo que teriam de servir um objectivo benéfico
que eu desconhecia. Pensava que também a ocorrência da minha própria
conversão teria de estar predestinada, tal como a incapacidade de outros
para se converterem teria de estar igualmente predestinada. Mas nesta fase
das minhas reflexões, esbarrei numa diñculdade, que me fez pensar mais
arduamente do que nunca, em toda a minha vida. Pois também acreditava
ter escolhido Deus pelo meu livre-arbítrio, e que cada um de nós é respon­
sável por escolher ou rejeitar o caminho de Deus. Mas como poderia eu ser
responsável por uma escolha que Deus predestinara, desde a eternidade, que

241
Introdução à Filosofia da Religião

eu faria naquele momento particular da minha vida? Como pode dar-se o


caso de aqueles que rejeitam o caminho de Deus o fazerem por livre-arbítrio,
se Deus, desde a eternidade, os destinou a rejeitar este caminho? O pró­
prio credo de Westminster parece reconhecer esta dificuldade. Pois na linha
seguinte lê-se: «No entanto [...] por este meio nenhuma violência se exerce
sobre o arbitrio das criaturas».
Durante algum tempo aceitei simultaneamente a predestinação divina
e a liberdade e a responsabilidade humanas. Ainda que não conseguisse ver
como ambas podiam ser verdadeiras, sentia que ambas podiam ser verdadei­
ras, pelo que as aceitei com base na fé. Mas quanto mais pensava no assunto
mais me parecia que isso não podia ser. Isto é, cheguei à perspectiva, correcta
ou incorrectamente, de que não só era incapaz de ver como ambas podiam
ser verdadeiras como conseguía ver que não podiam ambas ser verdadeiras.
Abandonei lentamente a crença de que Deus decretara desde a eternidade
tudo o que acontece. Ao invés, adoptei a perspectiva de que Deus sabe desde a
eternidade tudo o que vem a acontecer, incluindo as nossas escolhas e acções
livres, mas que essas escolhas e acções não estavam predestinadas.
O que eu não sabia então era que os tópicos da predestinação, da prescien­
cia divina e da liberdade humana tinham sido o centro da reflexão Mosóñca
e teológica durante séculos. Neste capítulo, iremos contactar com as diversas
perspectivas que resultaram destes séculos de esforço intelectual, alargando
assim a nossa compreensão do conceito teísta de Deus e de um dos problemas
que lhe está associado.

Escolha ou arbítrio livres

Talvez seja melhor começar pela ideia de liberdade humana. Porquanto, como
veremos, esta ideia foi compreendida de duas maneiras muito diferentes,
e a maneira que adoptarmos faz muita diferença para o tópico em causa.
Segundo a primeira ideia, agir livremente consiste em fazer o que se quer ou
escolhe fazer. Se o leitor quer sair do quarto mas o impedem, pela força, de

242
Predestinação, presciência divina e liberdade humana

o fazer, certamente concordamos que dear no quarto não é algo que o leitor
faça livremente. Não ñca no quarto de livre vontade porque isso não é o que
escolheu ou quis fazer; trata-se de algo que acontece contra a sua vontade.
Suponha-se que aceitamos esta primeira ideia de liberdade humana,
segundo a qual agir livremente consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer.
O problema da predestinação divina e da liberdade humana acaba então por
não ser um grande problema sequer. Porquê? Bem, para tomar o exemplo da
minha conversão juvenil: esta foi livre se foi algo que quis fazer, que escolhi
fazer e que não hz contra a minha vontade. Suponhamos, como creio que seja
verdade, que a minha conversão foi algo que escolhi e que quis fazer. Haverá
alguma dificuldade em acreditar também que desde a eternidade Deus decretou
que naquele momento particular da minha vida eu me converteria? Não parece.
Porquanto Deus podia simplesmente ter predestinado também que naquele
momento particular da minha vida eu quereria escolher Cristo, quereria seguir
o caminho de Deus. Sendo assim, portanto, segundo a nossa primeira ideia de
liberdade humana, o meu acto de conversão foi um acto livre da minha parte e
foi simultaneamente predestinado por Deus desde a eternidade. Na nossa pri­
meira ideia de liberdade humana, portanto, não parece haver qualquer conflito
real entre a doutrina da predestinação divina e a liberdade humana.
Será correcta a primeira ideia de liberdade humana? Uma razão para
pensar que não foi dada pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704). Locke
pede que suponhamos que se leva um homem enquanto dorme para um
quarto. A porta, que é a única saída do quarto, é então firmemente trancada
a partir do exterior. O homem não sabe que a porta está trancada, não sabe,
portanto, que não pode abandonar o quarto. Acorda, dá consigo no quarto,
olha em volta, e repara que há pessoas amigáveis, com quem gostaria de
conversar. Assim, decide hear no quarto em vez de sair.122

122. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, livro II, Cap. XXI, par. 10,
org. Peter H. Nidditch (Londres: Oxford University Press, 1975), p. 238. [Ensaio Sobre
0 Entendimento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1999.]

243
Introdução à Filosofia da Religião

O que diremos deste homem? Será que hear no quarto é algo que fez
livrem ente? Bom, segundo a nossa primeira ideia de liberdade humana,
parece que sim. Pois hear no quarto é o que ele quer fazer. Pondera a hipótese
de sair, sem saber que não o pode fazer, mas rejeita-a porque prefere hear
no; quarto e iniciar uma conversa amigável. Mas poderemos mesmo acreditar
que hear no quarto é algo que ele faz livremente? Afinal, é a única coisa que
pode fazer. O homem fica no quarto por necessidade, dado que não tem o
poder de sair do quarto. Qual é a diferença entre este homem e um segundo,
colocado de igual modo num quarto, que quer sair mas, sendo incapaz de o
fazer, também permanece no quarto por necessidade? Estará a diferença no
facto de o primeiro homem fazer algo livremente, ao passo que o segundo
não? Ou dar-se-á antes o caso de o primeiro homem ter apenas mais sorte do
que o segundo? Cada um faz o que faz (hear na sala) por necessidade, e não
livremente, mas o primeiro homem tem mais sorte na medida em que aquilo
que tem de fazer é exactamente aquilo que quer fazer. Locke conclui que o
primeiro homem não é mais livre do que o segundo, apenas que tem mais
sorte. Pois a liberdade, argumenta Locke, consiste em mais do que apenas
fazer o que se quer ou escolhe; tem também de ser o poder de agir de outra
maneira. E a razão por que nenhum dos homens ficou livremente no quarto
é a de não poderem agir de outra maneira, abandonando a sala.

O poder de agir de outro modo

A segunda ideia de Uberdade humana é a de que só fazemos algo Uvremente


se, no momento imediatamente anterior à acção, tivermos o poder de agir de
outra maneira. E penso que reflectindo um pouco podemos ver que a segunda
ideia é mais adequada do que a primeira. Considere-se, por exemplo, o enve­
lhecimento. Envelhecer é algo que fazemos por necessidade e não Uvremente.:
O simples facto de alguém preferir envelhecer, querer envelhecer, não basta
para que seja verdade que a pessoa envelhece livremente; quando muito,
podemos dizer que envelhece graciosamente. Suponha-se, todavia, que se:

244
Predestinação, presciência divina e liberdade humana

descobre e disponibiliza um processo pelo qual cada um de nós tem o poder


de não envelhecer no sentido da decadência física. Embora o tempo continue
a passar, o processo de envelhecimento nos nossos corpos pode agora ser
enormemente retardado. Nestas condições podia ser verdade alguém enve­
lhecer livremente, dado que não envelheceria por necessidade, estando em
seu poder agir de outra maneira. Tem de se abandonar a primeira ideia de
liberdade a favor da segunda, pois é mais adequada.
É a segunda ideia de liberdade que parece entrar em conflito com a ideia
da predestinação divina. Porquanto se Deus decretou desde a eternidade que
me converterei num determinado momento, num dia em particular, como
pode então estar em meu poder, imediatamente antes desse momento,
abster-me de me converter? Atribuir-me tal poder é atribuir-me o poder
de evitar que aconteça algo que Deus decretou desde a eternidade que iria
acontecer. Seguramente, se Deus decretou desde a eternidade que algo irá
acontecer, não pode estar em poder de uma criatura qualquer impedir que
isso aconteça. Portanto, se Deus efectivamente decretou desde a eternidade
tudo o que acontece, então nada acontece que possamos impedir de aconte­
cer. Assim, como tudo o que faço foi predestinado por Deus, nunca está em
meu poder agir de outra maneira. E se nunca está em meu poder agir de outra
maneira, então nada faço livremente. A liberdade humana e a predestinação
divina, ao que parece, são inconsistentes entre si,
Se o argumento anterior for bom, e inclino-me a pensar que é, o teísta
tem de abandonar a crença na liberdade humana ou de abandonar a doutrina
da predestinação divina. E parece razoável que, entre as duas, se prescinda
da doutrina da predestinação. Que Deus tenha o controlo último sobre o
destino da sua criação e que Deus saiba de antemão tudo o que irá aconte­
cer são ideias que preservam a majestade divina e garantem um certo grau
de optimismo humano, sem exigir que Deus tenha decretado a ocorrência
de tudo o que efectivamente acontece. E pelo menos à primeira vista não
parece que a doutrina da presciência divina entre em conflito com a liber­
dade humana. Pelo que talvez seja razoável rejeitar a doutrina da predes­

245
Introdução à Fiiosoña da Religião

tinação divina, preservando a crença na liberdade humana e a doutrina da


presciência divina.

O CONFLITO ENTRE A LIBERDADE HUMANA E A PRESCIÊNCIA DIVINA

Mas se Deus não decretou desde a eternidade tudo o que acontecerá, como
lhe é possível ter conhecimento, desde a eternidade, de tudo o que acon­
tece? Será que a doutrina da presciencia divina não pressupõe a doutrina
da predestinação divina? Decretar que algo vai acontecer num determinado
momento seria uma maneira de Deus saber de antemão que isso acontecerá.
Mas não é a única maneira de Deus poder ter tido tal conhecimento. Temos
telescópios, por exemplo, que nos permitem saber o que acontece em lugares
distantes, porque através do telescópio podemos vê-los acontecer. Imagine-
-se que Deus tem algo semelhante a um telescópio temporal, um telescópio
que permite ver o que acontece em tempos distantes. Girando as lentes foca-
-se uma determinada época, digamos, à distância de mil anos no futuro, e
vê-se os acontecimentos que ocorrem nessa época. Com esta imagem, pode­
mos explicar a presciência de Deus sem supor que o seu conhecimento deriva
de ter anteriormente decretado que os acontecimentos em causa ocorrerão.
Deus conhece de antemão os acontecimentos que ocorrerão antevendo-os
e não predestinando-os. A doutrina da presciência divina, portanto, não
pressupõe a doutrina da predestinação divina. E, como vimos, não parece
haver qualquer conflito entre a presciência divina e a Uberdade humana. Pois
embora a predestinação de algo por Deus imponha a ocorrência desse algo, a
presciência que Deus tem de algo não impõe a sua ocorrência. Não é por Deus
saber as coisas de antemão que elas ocorrem; ao invés, é por elas ocorrerem
que Deus tem delas presciência.
Infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Há um problema grave
acerca da presciência divina e da liberdade humana. E embora talvez não
sejamos capazes de o resolver, será instrutivo tentar compreendê-lo e ver que
diversas «soluções» foram apresentadas por importantes filósofos e teólogos.

246
Predestinação, presciência divina e liberdade humana

Talvez a melhor maneira de começar seja apresentar o problema na forma de


um argumento — um argumento que começa com a doutrina da presciência
divina e termina com a negação da liberdade humana. Quando compreender­
mos as principais premissas do argumento, bem como as razões dadas a seu
favor, teremos compreendido um dos maiores problemas com que os teólo­
gos se têm defrontado desde há quase dois mil anos: o problema de reconciliar
a doutrina da presciência divina com a crença na liberdade humana.

1. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos.


2. Se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está
em nosso poder agir de outra maneira.
3. Se nunca está em nosso poder agir de outra maneira, então não há liber­
dade humana.
Logo,
4. Não há liberdade humana.

A primeira premissa do argumento exprime uma aparente consequência


da doutrina da presciência divina. A terceira premissa afirma apenas uma
consequência da segunda ideia de liberdade, que já considerámos. Segundo
essa ideia, só fazemos algo livremente se, no momento imediatamente antes,
está em nosso poder agir de outra maneira. Assim, concluímos que o acto
de hear no quarto só é livre se, no momento da decisão de hear no quarto, a
pessoa tem como agir de outra maneira — isto é, pode abandonar o quarto.
Como a porta foi firmemente trancada a partir do exterior, concluímos que
a pessoa não permaneceu livremente no quarto. A premissa 3 apenas retira
a conclusão lógica a partir desta segunda ideia de liberdade: se nunca está no
nosso poder (no poder de qualquer ser humano) agir de outra maneira, então
não há liberdade humana. Como o argumento é claramente válido, a questão
pendente diz respeito à premissa 2: se Deus sabe antes de nascermos tudo
0 que vamos fazer, então nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Por que razão devemos aceitar esta premissa? É evidente que se colocássemos

247
Introdução à Filosoña da Religião

a palavra predestina em lugar da palavra sabe a afirmação seria verdadeira.


Mas o propósito de abandonar a predestinação divina a favor da presciência
divina foi que embora

a) Se Deus predestinar antes de nascermos tudo o que faremos, então


nunca está em nosso poder agir de outra maneira.

pareça seguramente verdadeira, não parece verdade que

b) Se Deus souber antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca


está em nosso poder agir de outra maneira.

Como a premissa 2 é a mesma que b, por que razão devemos aceitar a sua
verdade? Quais são as razões pelas quais o defensor deste argumento espera
convencer-nos de que 2 é verdadeira?
A premissa 2 é sustentada por um raciocínio complexo, pelo que será
melhor desenvolvê-lo através de um exemplo. Suponhamos que são 14 horas
numa certa terça-feira e que o leitor tem uma aula de ftlosofta da religião que
começa às 14)130. Os seus amigos pedem-lhe que vá com eles ao cinema, à
tarde, mas, após considerar a proposta, o leitor consegue de alguma maneira
resistir à tentação e decide assistir à aula em vez e ir ao cinema. São agora I4h45
e o professor discorre acerca da presciência e do livre-arbítrio. Algo aborre­
cido, o leitor deseja agora ter ido ver o filme em vez de ter vindo assistir à aula.
Apercebe-se, contudo, que, apesar de lamentar agora a sua decisão, nada pode
fazer. Claro que pode levantar-se e apressar-se para ver o resto do filme. Mas
não pode agora, às 14I145, fazer que não tivesse ido à aula às I4h30, não pode
agora fazer que na verdade tenha ido ver o filme, ao invés. Pode lamentar o que
fez e decidir nunca cometer novamente o mesmo erro mas, quer queira quer
não, está agora a braços com 0 facto de ter ido à aula às I4h30, em vez de ter ido
ver o filme. Está a braços com este facto porque é um facto acerca do passado e
o passado não está em nosso poder. A nossa incapacidade de alterar o passado é

248
F
r '

Predestinação, presciência divina e liberdade humana

captada pelo coloquialismo «Não adianta chorar sobre o leite derramado», Até
certo ponto, contudo, o futuro parece aberto, maleável; podemos fazer que seja
de uma maneira ou outra. O leitor acredita que, por exemplo, na quinta-feira,
quando houver outra aula, estará em seu poder ir à aula ou, em vez disso, ir a
um cinema. Mas o passado não está aberto, está fechado, sólido como granito,
e não está de modo algum em seu poder alterá-lo. Como Aristóteles observou,

«Ninguém delibera acerca do passado mas apenas acerca do futuro e do que pode
ser de outra maneira, mas o passado não pode deixar de ter ocorrido; portanto,
tem razão Agathon ao añrmar: «Pois só isto está ausente, mesmo em Deus: tom ar
inocorridas as coisas q u ejá o co rre ra m » .» 123

Há evidentemente uma grande quantidade de factos acerca do passado


relativamente às 14.1145 de terça-feira. Além do facto de que às I4h30 o lei­
tor foi à aula, há o facto de ter nascido, o facto de se ter tornado estudante
universitário, o facto de terem ocorrido duas guerras mundiais no século
XX — na verdade, todos os factos da história anterior. E o leitor agora sabe
que às 14I145 não está em seu poder alterar quaisquer destes factos. Nada do
que possa fazer agora é tal que, caso o ñzesse, qualquer destes factos acerca
do passado deixaria de ser um facto acerca do passado. Ponderando na sua
impotência relativamente ao passado, 0 leitor repara que o professor escreveu
no quadro outro facto acerca do passado:

F. Antes de vocês terem nascido Deus sabia que viriam à aula às 14I130 esta
terça-feira.

Se Deus existe e a doutrina da presciência divina é verdadeira, F é segu­


ramente um facto acerca do passado, e foi um facto acerca do passado em

123. Aristotle, Nicomachean Ethics, VII, 2 ,1139b, em The Basic Works of Aristotle, org.
Richard McKeon (Nova Iorque: Random House, 194l). [Aristóteles, ÉticaaNicómaco,
trad. Antonio C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2006.]

249
Introdução à Filosoña da Religião

todos os momentos da vida do leitor. É um facto acerca do passado agora, às


14I145 de terça-feira; era um facto acerca do passado ontem; e será um facto
acerca do passado amanhã. Nesse momento, o professor volta-se e pergunta:
«Estaria em vosso poder às 14Í100 terem-se baldado à aula de hoje?» O leitor
pensa seguramente que sim — na verdade, lamenta agora não ter exercido
esse poder — pelo que o professor escreve no quadro:

A. Estava em vosso poder às i4hoo fazer outra coisa que não vir à aula às::
14I130 esta terça-feira.

Mas agora pensemos um pouco em F e em A. Às 14I100, F é um facto acerca ­


do passado. Mas, de acordo com A, estava em seu poder às 14Î100 fazer algo::
(por exemplo, ir ao cinema) tal que, se 0 fizesse, algo que é um facto acerca do
passado (F) não seria um facto acerca do passado. Pois, como é evidente, se
o leitor tivesse exercido o seu poder de se baldar à aula às I4h30, aquilo que
Deus sabia antes de o leitor ter nascido não seria aquilo que efectivamente
sabe — que 0 leitor iria à aula nessa terça-feira — mas algo muito diferente:
que faria outra coisa. E isto por sua vez significa que se F é um facto acerca
do passado — como seguramente é, no caso de a doutrina da presciência
divina ser verdadeira — e se A é verdadeira, então estava em seu poder às
i4hoo dessa terça-feira alterar o passado; estava em seu poder fazer algo (ir
ao cinema) tal que, se o fizesse, o que é um facto acerca do passado (F) não
seria um facto acerca do passado. Se, portanto, o passado nunca está em
seu poder, não pode dar-se 0 caso de F ser um facto acerca do passado e estar
também em seu poder às 14Í100 baldar-se à aula às 14I130 dessa terça-feira.
Acabámos de ver que, dada a doutrina da presciência divina e a afirma­
ção de que está em nosso poder ter feito algo que não fizemos, segue-se que:
o passado está em nosso poder. Pois dada a doutrina da presciência divina
segue-se que antes de 0 leitor ter nascido Deus sabia que o leitor iria à aula
às 14I130 esta terça-feira. E se agora afirmamos que às 14I100 estava em nosso
poder ter feito outra coisa, estamos a pressupor que às 14I100 estava em seu

250
Predestinação, presciencia divina e liberdade humana

poder agir de tal modo que, antes de você ter nascido, Deus não sabia que
o leitor iria assistir à aula às 14I130. Mas tínhamos concluído que os factos
acerca do passado não estão em nosso poder. Se mantivermos esta convicção
— como parece que temos de fazer — então temos de concluir que, se Deus
não sabia antes de o leitor nascer que iria à aula às I4h30 (esta terça-feira),
então não estava em seu poder às 14I100 agir de outra maneira. E, generali­
zando a partir deste exemplo particular, podemos concluir que se o passado
nunca está em nosso poder, então, se Deus sabe antes de nascermos tudo o
que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Abrimos caminho a custo, através do raciocínio complexo que se pode usar
para sustentar a premissa 2 do argumento concebido para defender o conflito
entre a presciência divina e a liberdade humana. Essa premissa, como o leitor
se recorda, afirma que, se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos,
então nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Na sua formulação
mais simples, o raciocínio apresentado a favor da premissa 2 consiste em argu­
mentar que, se 2 não é verdadeira, então temos poder sobre o passado. Mas
como o passado não está em nosso poder, 2 tem de ser verdadeira. De

I. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos;

IÏ. Por vezes está em nosso poder agir de outra maneira,

segue-se, de acordo com esse raciocínio, que por vezes está em nosso poder
determinar o passado. Como nunca está em nosso poder determinar o pas­
sado, as premissas I e II não podem ambas ser verdadeiras. Portanto, se I é
verdadeira, então ÍI é falsa. Mas afirmar que 1 é falsa é apenas afirmar que
nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Assim, se I é verdadeira,
então nunca está em nosso poder agir de outra maneira — e isto é exacta­
mente o que afirma a premissa 2.

251
Introdução à Filosofia da Religião

ALGUMAS SOLUÇÕES PARA O CONFLITO

Estivemos a ver o que talvez seja o argumento mais forte a favor da pers­
pectiva de que a doutrina da presciência divina, tal como a doutrina da pre­
destinação divina, entra fundamentalmente em conflito com a crença na
liberdade humana, um argumento que perturbou os filósofos e os teólogos
durante séculos. Chegou a altura de considerar as diversas «soluções» que
foram apresentadas e avaliar os seus pontos fortes e fracos.
O próprio argumento limita o número de soluções possíveis às quatro
seguintes:

L Rejeição da premissa 3: nega-se que só façamos algo livremente no caso


de estar em nosso poder agir de outra maneira.
II. Rejeição da premissa 2: nega-se que a presciencia divina implique que
nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
III. Rejeição da premissa 1: nega-se que Deus tenha presciência dos acon­
tecimentos do futuro.
IV. Aceitação da conclusão 4: nega-se que tenhamos liberdade.

As soluções III e IV são «radicais», pois redundam na negação quer da dou­


trina da presciência divina quer da liberdade humana. Nenhum teísta propõe
seriamente a solução IV, pelo que podemos pô-la de parte tranquilamente. A
solução III, contudo, como veremos, é a solução preferida por diversos teó­
logos importantes, incluindo Boécio e São Tomás de Aquino. Consideremos,
portanto, as primeiras três soluções para este problema intrigante.

A definição de liberdade

A primeira solução rejeita a premissa 3 do argumento, alegando que exprime


uma ideia errada da liberdade humana. Como vimos, há duas ideias dife­
rentes de liberdade. Segundo a primeira, agir livremente consiste apenas

252
Predestinação) presciência divina e liberdade humana

em fazer aquilo que se quer ou escolhe fazer; a liberdade não exige o poder
de agir de outra maneira. Quem aceita esta ideia de liberdade humana não
vê, e com razão, qualquer conflito entre ela e a doutrina da predestinação
divina. Uma solução semelhante foi desenvolvida mais plenamente pelo teó­
logo americano Jonathan Edwards {1703-1758). A adequação desta solução
depende inteiramente de se poder ou não defender, contra as críticas dos
filósofos, a sua ideia acerca daquilo em que consiste a liberdade humana .124
Contudo, tendo rejeitado esta ideia de liberdade em favor da segunda ideia —
a ideia de que só fazemos algo livremente se estiver em nosso poder agir de
outra maneira — não insistiremos nesta solução para 0 problema da presciên­
cia divina e da Uberdade humana. Pois dada a segunda ideia de liberdade
humana, tem de se aceitar a verdade da premissa 3.

Poder sobre o passado

A segunda solução principal rejeita a premissa 2, negando assim que a presciên­


cia divina implique que nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Na verdade, esta solução, se for boa, não mostra que 2 é falsa, mas antes
que o raciocínio em que se procurou sustentá-la não é bom. Que raciocínio
é esse? Bom, em termos mais simples: se 2 não é verdadeira, então está em
nosso poder determinar o passado — factos acerca do que Deus sabia antes
de termos sequer nascido. Mas, prossegue o raciocínio, nunca se dá o caso
de estar em poder de alguém determinar o passado; portanto, 2 tem de ser
verdadeira. A segunda solução põe em causa a afirmação de que nunca está
em nosso poder determinar o passado, argumentando que temos de facto o
poder de determinar alguns factos acerca do passado, inclusive factos acerca
do que Deus sabia antes de termos sequer nascido. Esta solução foi sugerida
pelo influente filósofo do século xiv, Guilherme de Ockham (1285-1349).

124, Para uma defesa brilhante da primeira ideia de liberdade, bem como uma resposta às
objeeções levantadas contra a mesma, ver Jonathan Edwards, Freedom of the Will,
org. A.S. Kaufman e W.K. Frankena (Indianapolis: The Bobbs-Merrill Co., 1969).

253
Introdução à Filosofia da Religião

A ideia básica em que assenta a segunda solução envolve uma distinção


entre dois tipos de factos acerca do passado: factos que são apenas acerca
do passado e factos que nâo são apenas acerca do passado. Para ilustrar
esta distinção, consideremos dois factos acerca do passado, factos acerca do :
ano de 1941 :

fi. Em 1941 o Japão ataca Pearl Plarbor.


Í2. Em 1941 inicia-se uma guerra entre o Japão e os Estados Unidos com a
duração de quatro anos.

Relativamente ao século x x i, fl e Í2 são ambas apenas acerca do passado.


Mas suponha-se que consideramos o ano de 1943- Relativamente a 1943, fi é
um facto que é apenas acerca do passado, mas Í2 não é apenas acerca do pas­
sado. E um facto acerca do passado relativamente a 1943, pois f2 é, em parte,
um facto acerca de 1941, e 1941 está no passado de 1943. Mas f 2 , ao contrário
de fi, implica um determinado facto acerca de 1944 — nomeadamente,

f3. Em 1944 o Japão e os Estados Unidos estão em guerra.

Como Í2 implica í’3, um facto acerca do futuro relativamente a 1 9 4 3 , podemos


añrmar que, relativamente a 1943, f2 é um facto acerca do passado, mas não é
apenas um facto acerca do passado. Temos então três factos, fi, f2 e Í3 , acerca
dos quais podemos añrmar, relativamente ao século xxi, que são factos ape­
nas acerca do passado. Relativamente a 1943, contudo, só fl é apenas acerca
do passado; f2 é acerca do passado mas não apenas acerca do passado, e f3
não é sequer acerca do passado.
Tendo ilustrado a distinção entre um facto que, relativamente a um
determinado momento t, é apenas acerca do passado e um facto que relati­
vamente a t não é apenas acerca do passado, estamos agora em condições de­
ver a sua importância. Pense-se em 1943 e nos grupos de pessoas que estavam
então no poder, tanto no Japão como nos Estados Unidos. Não estava em

254
Predestinação, presciencia divina e liberdade humana

poder de qualquer destes grupos fazer coisa alguma a respeito de fi. Ambos
os grupos podiam lamentar as acções que tornaram fi um facto acerca do
passado. Mas é abundantemente claro que, entre todas as coisas que em 1943
estes grupos podiam fazer, nenhuma delas é tal que, caso a tivessem feito, fi
não seria um facto acerca do passado. Não faz qualquer sentido olhar para
trás, para 1943, e añrmar que se ao menos um destes grupos tivesse feito na
altura isto e aquilo, então fi nunca seria um facto acerca do passado. Não faz
sentido precisamente porque, relativamente a 1943, fi é um facto apenas
acerca do passado. Nada que alguém pudesse ter feito em 1943 teria alterado
o facto de que em 1941 o Japão atacou Pearl Píarbor.
Mas e quanto a Í2 , o facto de em 1941 se ter iniciado uma guerra entre
o Japão e os Estados Unidos com a duração de quatro anos, o que podemos
dizer? Sabemos que em 1943 nem um nem outro grupo fez coisa alguma que
alterasse este facto acerca de 1941. A questão, contudo, é se houve ou não
coisas que não se ñzeram em 1943, coisas que, não obstante, estavam em
poder de um ou outro grupo, ou ambos, de tal maneira que, se as ñzessem,
um determinado facto acerca de 1941, f2, não seria sequer um facto. Talvez
não tenha havido. Talvez o ímpeto da guerra fosse tal que nenhum dos grupos
tinha 0 poder de lhe pôr fim em 1943. Maioritariamente, suponho, pensamos
de outra maneira. Pensamos que provavelmente houve determinadas acções
que não se realizaram mas que um ou outro grupo podia ter realizado em
1943, acções que, se tivessem sido realizadas, teriam posto fim à guerra em
1943. Se aquilo que pensamos ser verdade o é de facto, então estava em poder
de um ou mais grupos, em 1943, determinar um facto acerca do passado;
estava em seu poder em 1943 fazer algo tal que, se o tivessem feito, um deter­
minado facto acerca de 1941, f2, não seria um facto acerca de 1941. A razão
fundamental por que, em 1943, f2 pode ter estado em poder destes grupos,
ao passo que fi seguramente não estava, é que, ao contrário de fi, f2 não é
apenas acerca do passado, no que diz respeito a 1943, porquanto f2 implica
um determinado facto acerca de 1944 — que em 1944, o Japão e os Estados
Unidos estão em guerra (f3 ).

255
Introdução à Filosofia da Religião

O raciocínio anterior sugere que a nossa convicção de que não podemos


alterar o passado é seguramente verdadeira, no que diz respeito a factos que
são apenas acerca do passado. Os factos que são acerca do passado, mas não
apenas acerca do passado, contudo, podem não estar além do nosso poder
de afectar. E Ockham viu que os factos acerca da presciencia divina em que
se baseia a negação da liberdade humana são factos acerca do passado, mas
não apenas acerca do passado. Considere-se novamente o facto de que, antes:
de o leitor nascer, Deus sabia que iria estar na aula às 14I130 esta terça-feira.
Queremos acreditar que às 14I100 estava em seu poder agir de outra maneira,
baldando-se à aula das I4h30. Atribuir-lhe este poder implica que estava em
seu poder às 14Í100 afectar um facto acerca do passado, o facto de que antes de
o leitor ter nascido Deus sabia que o leitor ia estar na aula às 14I130. Este facto
acerca do passado, contudo, não é, relativamente às i4hoo, um facto ape­
nas acerca do passado. Pois implica relativamente às i4hoo um facto acerca
do futuro — nomeadamente, que às I4h30 o leitor está na aula. E a solução
que estamos explorando defende que estava em seu poder alterar esse facto-
acerca do passado, se é que às 14I100 estava em seu poder, como acreditamos
que estava, ter ido ao cinema em vez de ir à aula. Pois o leitor tinha o poder
de fazer algo tal que, caso o fizesse, algo que até então era um facto acerca
de um momento anterior ao seu nascimento não seria sequer um facto; ao
invés, seria um facto que, antes de o leitor nascer, Deus sabia que 0 leitor não
estaria na aula às I4h30. Como é óbvio, haverá ainda muitos factos acerca
da presciência divina que não estão em poder do leitor: todos aqueles factos,
por exemplo, que relativamente ao momento em que se encontra são factos
apenas acerca do passado. O próprio facto que poderia estar em seu poder às
14I100 — o facto de que, antes de ter nascido, Deus sabia que o leitor estaria
na aula às I4h30 — é, às 14Í145, enquanto está sentado na aula a lamentar
não ter ido ao cinema, um facto que não pode então (às 14Î145) estar em seu
poder, porque às 14I145 é um facto apenas acerca do passado. E há muitos
factos envolvidos na presciência divina que não são apenas acerca do passado,
mas que, não obstante, o leitor não pode alterar, pois implicam factos acerca:

256
Predestinação, presciencia divina e liberdade humana

do futuro que ultrapassam o seu poder. Por exemplo, Deus sabia antes de o
leitor nascer que o Sol nasceria amanhã. Este facto acerca do passado não é
apenas acerca do passado porque implica um facto acerca de amanhã, que o
Sol nascerá. Não obstante, é um facto que o leitor não pode alterar.
Estivemos a considerar a segunda solução para o problema da presciência
divina e da Uberdade humana. Como vimos, esta solução consiste em negar o
raciocínio que sustenta a segunda premissa do argumento peio qual se desen­
volveu o problema, a premissa que añrma que, se Deus sabe antes de nascer­
mos tudo o que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Segundo o raciocínio que sustenta esta premissa, dada a presciência divina,
só está em nosso poder agir de outra maneira se está em nosso poder alterar
algum facto acerca do passado, um facto acerca do que Deus sabia antes de
termos nascido. A solução que estivemos a considerar aceita este ponto do
raciocínio apresentado a favor da premissa 2, mas nega o seguinte: que o pas­
sado nunca está em nosso poder. Daqui se argumenta que alguns factos acerca
do passado não são apenas acerca do passado, que alguns desses factos podem
estar em nosso poder, e que os factos acerca da presciência divina usados no
raciocínio que sustenta a premissa 2 são disso exemplos. Assim, de acordo com
a segunda solução principal, não temos boas razões para aceitar a segunda pre­
missa do argumento, que parte da presciência divina para concluir a negação
da liberdade humana. E, sem tais razões, tem ainda de se mostrar uma difi­
culdade real em defender simultaneamente que Deus sabe antes de nascermos
tudo o que faremos e que por vezes temos o poder de agir de outra maneira.

A negação da presciência

A terceira e última solução que consideraremos rejeita a premissa 1 do argu- '


mento, negando consequentemente que Deus tenha presciência dos acon­
tecimentos do futuro. Mais atrás chamei «radical» a esta solução porquanto,
ao contrário das primeiras duas, não procura reconciliar a presciência divina
com a liberdade humana, parecendo antes negar que haja sequer presciên-

257
introdução à Filosofia da Religião

cia. Todavia, como veremos, esta foi a solução preferida por muitos teólogos
importantes na tradição religiosa ocidental.
A terceira solução tem duas formas diferentes. A primeira é que as afir­
mações acerca de determinados acontecimentos do futuro, que poderão
ocorrer ou não, não são verdadeiras nem falsas; tornam-se verdadeiras (ou
falsas) quando os acontecimentos a que se referem ocorrem efectivamente
(ou não ocorrem). Por exemplo, agora, a afirmação «Você assistirá a uma aula
numa determinada hora, num determinado dia da próxima semana» não é,
na perspectiva em causa, verdadeira nem falsa. Na próxima semana, naquela
hora daquele dia em particular, a afirmação tornar-se-á verdadeira se o leitor
for à aula e falsa se não for. Desta perspectiva a respeito das afirmações sobre
o futuro, normalmente atribuída a Aristóteles, resulta que Deus não sabe
agora se o leitor vai ou não assistir à aula naquela hora da próxima semana,
que não tem presciência de tais acontecimentos do futuro. Porquanto só há
conhecimento acerca do que é verdade e, se as afirmações acerca do futuro :
não são verdadeiras nem falsas, não podem ser objecto de conhecimento.
A forma mais amplamente aceite da terceira solução assenta na ideia de que: :
Deus é «eterno» no segundo dos dois sentidos que apresentámos no Capítulo i.
Aí vimos que «ser eterno», no primeiro sentido do termo, é ter duração infinita
em ambas as direcções temporais. No segundo sentido, contudo, «ser eterno»
é existir fora do tempo e, portanto, independentemente da lei fundamental do:
tempo, segundo a qual a existência de tudo o que está no tempo, mesmo um ser
perpétuo, divide-se em partes temporais. Como escreveu Boécio,

«Pois tudo o que vive no tempo vive no presente, procedendo do passado para o
futuro, e no tempo nada é constituído de tal modo que possa abarcar de uma só
vez todo o âmbito da sua vida. Não chegou ainda ao amanhã e já perdeu o ontem;
mesmo a vida deste dia é vivida em cada momento transitório, passageiro. » 125

125. Boécio, The Consolation of Philosophy, prosa VI, trad. Richard Green (Nova Iorque:
The Bobbs-Merrill Company Inc., 1962).

258
Predestinação, presciência divina e liberdade humana

Por contraste com as coisas no tempo, concebe-se que a vida infinita,


interminável, de Deus lhe é inteiramente presente, toda de uma vez. Como
tal, Deus tem de estar completamente fora do tempo. Pois, como acabámos
de ver, a vida de tudo o que está no tempo divide-se em partes temporais,
sendo que num dado momento apenas uma destas partes temporais pode
estar presente a esse ser,
A ideia de que Deus é eterno no sentido de estar fora do tempo é direc­
tamente relevante para a doutrina da presciência divina. Porquanto a noção
de presciência sugere naturalmente um ser localizado num dado momento
no tempo, que sabe algo que irá ocorrer noutro momento posterior no tempo.
Assim, dizemos que Deus sabe num momento antes de o leitor nascer o que o
leitor faria às 14I130 desta terça-feira. Mas se Deus está fora do tempo, então
não podemos añrmar que tem presciência dos acontecimentos do futuro,
se com isso pressupomos que Deus está localizado num dado momento do
tempo e que nesse momento sabe o que irá ocorrer num momento posterior.
Segundo Boécio, Tomás e muitos outros teólogos que defendem a eternidade
de Deus no segundo sentido, nada acontece no tempo que Deus desconheça.
Todos os momentos no tempo estão sempre presentes a Deus no mesmo sen­
tido em que aquilo que acontece neste preciso momento, no nosso campo de
visão, nos está presente. O conhecimento que Deus tem do que para nós é o
passado e o futuro é exactamente como 0 conhecimento que podemos ter de
algo que nos acontece no presente. Estando acima do tempo, Deus apreende
todo o tempo num relance, tal como nós, que estamos no tempo, podemos
apreender com um relance algo que acontece no presente. Referindo-se ao
conhecimento que Deus tem do que ocorre no tempo, diz-nos Boécio:

«Abrange o leque infinito do passado e do futuro e contempla todas as coisas


na sua compreensão simples como se ocorressem agora. Assim, se se pensar na
presciência pela qual Deus distingue todas as coisas, considerar-se-á, correc­
tamente, que não se trata de presciência dos acontecimentos do futuro, mas de
conhecimento de um presente imutável. Por esta razão, chama-se «providência»

259
Introdução à Filosofia da Religião

à presciência divina em vez de «previsão», porque está acima de todas as coisas


inferiores e a todas observa a partir de cima. » 120

Segundo Boécio, Deus, estritamente falando, não tem presciência, pois


a sua posição não é a de quem sabe antecipadamente que algo vai acontecer.
E, no entanto, Deus sabe tudo o que ocorreu, ocorre e ocorrerá. Mas sabe-o
do mesmo modo que nós sabemos o que ocorre no presente. Talvez possamos
tornar a situação de Deus mais clara se distinguirmos dois sentidos de pres­
ciência- presciência1 e presciência2. Um ser tem presciência1 de um aconte­
cimento X, digamos, desde que exista num determinado momento anterior à
ocorrência de x e sabe, nesse momento, que x ocorrerá posteriormente. Este
é o género de presciência que Deus não pode ter, se for eterno no segundo
sentido, pois nesse caso Deus não existe num determinado momento no
tempo, estando antes inteiramente fora do tempo. Um ser tem presciência,,
de um acontecimento x, digamos, desde que a ocorrência de x esteja pre­
sente a esse ser mas de tal maneira que ocorra depois do momento em que
nós (que estamos no tempo) existimos agora. Sendo Deus eterno no segundo
sentido, não pode ter presciência1 de acontecimento algum, mas isto não o
impede de ter total presciênciaa de todos os acontecimentos que, do ponto
de vista de quem existe no tempo, estão ainda por vir.
Podemos agora ver como Boécio e Tomás resolvem o problema da pres­
ciência divina e da liberdade humana. Como vimos, o problema é que afir­
mar simultaneamente as duas proposições pressupõe que por vezes temos o
poder de alterar um facto acerca do passado, um facto acerca do que, num
determinado momento antes de nascermos, Deus já sabia. Se defendemos
que nunca está em nosso poder alterar quaisquer factos acerca do passado,
parece que temos de negar ou a presciência divina ou a liberdade humana.
Boécio e Tomás chamam a atenção para que isto só é um problema genuí­
no no caso de se atribuir presciência1 a Deus. Pois se Deus tem presciência^12
6

126. Boécio, 77ie Consolation of Philosophy, prosa VI.

260
Predestinação, presciência divina e liberdade humana

haverá factos acerca de um momento no passado que, se temos liberdade


humana, teríamos de poder alterar. Segundo Boécio e Tomás, não podemos
atribuir presciência1 a Deus, pois isso pressupõe que Deus existe no tempo.
Deus tem presciência,, de tudo o que está ainda por vir. Mas a presciência2
não pressupõe a existência de um facto acerca de um momento do passado.
Pois Deus não existe no tempo sequer. A presciência2 que Deus tem de um
acontecimento no tempo não difere realmente do conhecimento que o seu
professor teve às 14I130 de terça-feira quando viu o leitor entrar na sala de
aula. Ninguém pensa que o conhecimento obtido por ver o leitor entrar na
sala de aula anula o poder que o leitor tinha antes de fazer outra coisa qual­
quer. De igual modo, a prescíência2de Deus, dado observar o tempo a partir
de cima e apreender o que no tempo é futuro mas que é presente do ponto
de vista de Deus, não impõe qualquer necessidade sobre aquilo que vê. Pois
não há um facto anterior, que envolva o conhecimento divino e que teria de
estar em seu poder, se o leitor tivesse a liberdade para agir de outra maneira.
Neste capítulo estudámos um dos problemas intemporais do teísmo,
o problema da presciência divina e da liberdade humana, e considerámos
detalhadamente as principais soluções que surgiram ao longo de séculos de
reflexão acerca do problema. Das três soluções que considerámos, só as duas
últimas são defensáveis se, como sugeri, a primeira assentar numa ideia ina­
dequada da liberdade humana. A última solução, dado basear-se na ideia de
que Deus existe fora do tempo, padecerá de quaisquer imperfeições associa­
das a essa ideia. Alguns filósofos pensaram que a ideia em si é incoerente, e
outros argumentaram que, embora a ideia possa ser coerente, qualquer ser
que seja eterno no sentido de existir fora do tempo nunca poderia agir no
tempo, e, portanto, não podia criar um mundo ou fazer um milagre — activi­
dades que em geral se atribui ao Deus teísta. Não é possível, todavia, abordar
estes assuntos aqui.127

127, Para um estudo excelente destes problemas, ver Nelson Pike, God and Timelessness
{Nova Iorque: Schocken Books Inc., 1970).

261
Introdução à Filosoña da Religião

A segunda solução ajusta-se bem à ideia de que Deus é eterno no pri­


meiro sentido apresentado no Capítulo 1, eterno no sentido de ser perpétuo,
ter duração infinita em ambas as direcções temporais. Nesta perspectiva,
atribui-se a presciência a Deus, mas argumenta-se que na medida em que
agimos livremente temos o poder de alterar alguns factos acerca do pas­
sado. Se tanto a segunda como a terceira soluções forem boas, então, quer se
añrme que Deus é eterno no primeiro sentido quer se afirme que é eterno no
segundo, o problema da predestinação divina e da liberdade humana deixa
de ser insolúvel para o teísmo.

REVISÃO

1. Explique as duas ideias diferentes de liberdade humana. Qual delas é


mais adequada? Porquê?
2. O que é o problema da presciência divina e da liberdade humana?
3. Explique o raciocínio básico que sustenta a afirmação de que, se antes-
de nascermos Deus sabe tudo o que faremos, então nunca está em nosso
poder agir de outra maneira.
4. Explique as diversas soluções que foram propostas para o problema da
presciência divina e da liberdade humana,
5. Como usam Boecio e Tomás a ideia de que Deus é eterno, na solução que:
adoptaram?

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Discuta o seguinte argumento:


Se Deus é eterno no sentido de existir fora do tempo, então nunca pode­
ria agir, porquanto toda a acção ocorre no tempo. Mas se Deus nunca
pudesse agir, nunca poderia criar coisa alguma, perdoar fosse a quem
fosse, responder a qualquer oração ou realizar quaisquer acções que
comummente se lhe atribui. Logo, se concebemos Deus como criador,

262
Predestinação, presciência divina e liberdade humana

benevolente, e por aí em diante, não podemos acreditar, sob pena de


inconsistência, que existe fora do tempo,
2, Das diversas soluções para o problema da presciência divina e da liber­
dade humana, escolha a que pensa ser a melhor e explique as suas razões
para a considerar melhor do que as outras soluções propostas.

263
Capítulo 11
Pluralidade de religiões

Nos capítulos anteriores mencionaram-se muitas das principais religiões do


mundo: judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo. A esta lista
deve-se adicionar o taoísmo, o confucionismo, o xintoísmo e talvez outras. Até
agora, contudo, não salientámos qualquer religião particular, nem procurá­
mos discuti-las todas. Ao invés, considerámos a característica básica comum
às principais religiões do Ocidente: judaísmo, cristianismo e islamismo. Esta
característica básica é a concepção teísta de deus como ser sumamente perfeito
e pessoal, que criou o mundo segundo o seu desígnio divino. Ao estudar esta
ideia de Deus e ao considerar as razões a favor e contra a crença de que tal ser
existe, ignorámos as muitas diferenças que separam o judaísmo, o cristianismo
e o islamismo. Na verdade, ignorámos mesmo algumas diferenças respeitantes
ao deus teísta — por exemplo, segundo o cristianismo, mas não segundo o
judaísmo ou o islamismo, deus é uma trindade e tornou-se humano de uma
maneira absolutamente única, na pessoa de Jesus de Nazaré (a encarnação).
Ignorámos também em grande medida aquelas tradições religiosas — hinduís-
mo e budismo, por exemplo — que se afastam significativamente da concep­
ção teísta da realidade última. Agora é tempo de considerar algumas diferen­
ças importantes entre estas tradições religiosas e levantar a questão de todas
estas religiões diferentes poderem ou não ser verdadeiras. E se, como parece
provável à partida, não puderem ser todas verdadeiras, temos de considerar
como pode ou deve a pessoa que adere a uma destas religiões encarar as outras.

265
Introdução à Filosofia da Religião

I ll
Embora tenhamos situado o conceito teísta de deus nas principais religiões
do Ocidente (judaísmo, cristianismo e islamismo), seria um erro pensar que só
nestas religiões se encontra o teísmo. Os que veneram o grande deus Vbcnu, no
Mnduísmo, por exemplo, pertencem também à tradição teísta. No hinduísmo,
a tradição teísta encontra-se mais plenamente desenvolvida no Bhagavad-
-Gita, os textos religiosos mais populares e com maior divulgação na índia.
O Bhagavad-Gita (Canção do Senhor) é um poema extenso que regista o diálogo
entre Crixna (a encarnação de Vixnu) e um homem, Arjuna, imediatamente
antes de uma grande batalha. Nesta obra, o caminho da devoção é apresentado
como o melhor meio de obter a salvação e a vida eterna. Assim, afirma Crixna:

Depressa acorro
A todos os que me oferecem
Cada acção,
Só a mim venerem,
A sua maior alegria
Com imperturbável devoção
Porque me amam
Estes são os meus escravos
E salvá-los-ei
Da dor mortal
E todas as ondas
Do oceano mortal da vida
Sede absortos em mim,
Em mim abrigai as vossas mentes:
Assim habitarão em mim,
Não o duvideis
Agora e doravante128

128. Swami Prabhavananda e Christopher Isherwood, trad., The Song of God: Bhagavad-
-Gita (Nova Iorque: Mentor Books, 1954), p. 98. [Poema do Senhor, Bhagavad-Guitá,
trad. Antonio Barahona, Lisboa, Relógio d’Água, 1996.] ■
Blip
■■I
fcillP
266 ¡ill
Pluralidade de religiões

Evidentemente, estes versos exprimem uma perspectiva teísta em que


se afirma que o melhor caminho para a salvação pessoal é a devoção total a
um ser divino com atributos pessoais.
Mas nos escritos sagrados mais antigos, os Upanixades, bem como no
budismo teravada, ensina-se a doutrina de que a realidade última, Brama, é
impessoal, e que nos libertamos do ciclo da morte e do renascimento quando
as nossas almas individuais são completamente absorvidas no estado de
nirvana. Assim, segundo a escola de pensamento hindu advaita vedanta,
Brama é totalmente uno, uma unidade absoluta, saturado de realidade.
O mundo das coisas e pessoas individuais é, em última instância, uma ilusão.
A libertação consiste em conhecer a absoluta unidade entre si e Brama.
É evidente, portanto, que há diferenças profundas entre as grandes reli­
giões do mundo. Em primeiro lugar, há uma profunda diferença relativamente
à realidade última ser um deus pessoal ou um absoluto impessoal. Em segundo
lugar, há diferenças importantes no que diz respeito à nossa vida terrena e
ao nosso destino último. Haverá um ciclo de morte e renascimento em que
as nossas almas sobrevivem à morte corpórea e reaparecem na Terra como
animais ou seres humanos (reencarnações), como as religiões do Oriente ensi­
nam e as do Ocidente negam? E será o nosso destino último perder a consciên­
cia no grande oceano do ser? Ou continuaremos como indivíduos distintos a
ter experiências e pensamentos na vida de união com o divino? Em terceiro
lugar, há uma diferença no que respeita ao iocus da revelação. No judaísmo,
o iocus da revelação divina é a Tora. Segundo o cristianismo, é a Bíblia que
contém a revelação sagrada. Mas no islamismo é o Corão. No hinduísmo são
os Vedas. Em quarto lugar, há diferenças no que diz respeito à encarnação
do divino. Segundo o cristianismo, Jesus é Deus. O judaísmo e o islamismo
negam-no. Mas segundo o hinduísmo, há muitas encarnações do divino na
vida humana. E, finalmente, há diferenças a respeito de a) o que está mal na
vida humana, b) o que nos é exigido para que nos libertemos daquilo que
está mal na vida humana e c) em que consiste a nossa salvação ou libertação.
Segundo a ortodoxia cristã, todo o ser humano está perdido no pecado devido

267
Introdução à Filosofia da Religião

ao acto voluntario de desobediência dos nossos pais originais, Adão e Eva.


O próprio Deus, na forma de Jesus Cristo, sofreu o castigo pelos nossos peca­
dos. Para obter a salvação, contudo, temos de aceitar a graça que Deus nos
oferece, estabelecendo uma relação de amor e obediência a Jesus Cristo. As
pessoas que assim se salvam do pecado entrarão, depois da morte, numa vida
eterna de comunhão com Deus. Segundo a escola hindufsta advaita vedanta,
contudo, o fardo da condição humana centra-se mais na ignorância do que em
actos pecaminosos voluntários. O mundo das coisas individuais é em última
instância uma ilusão. A nossa libertação do ciclo de morte e renascimento não
consiste em entrar noutra vida de comunhão com uma divindade pessoal, mas
em realizar a nossa unidade total com o absoluto (Brama) e em perder a nossa
identidade individual, unindo-nos àquela consciência universal, desprovida
tanto de qualquer conteúdo quanto de distinções.
Poderão todas estas religiões ser verdadeiras naquilo que añrmam acerca
da realidade divina, da existência humana e da salvação? Evidentemente que
não, pois afirmam coisas incompatíveis acerca destes assuntos. Após a morte
física, ou os seres humanos reencarnam noutra forma de existência terrena
ou não. Como as religiões diferem nesta matéria, algumas terão de ser cren­
ças falsas. Segundo o islamismo, Jesus foi um profeta importante mas não era
idêntico a Deus. Segundo o cristianismo, Jesus e Deus são idênticos. Alógica
exige que pelo menos uma destas afirmações seja falsa. Assim, na medida em
que estas declarações pretendem afirmar verdades literais acerca do modo
como as coisas são, nem todas as religiões podem ser verdadeiras relativa­
mente ao que añrmam. Reconhecendo isto, podemos voltar-nos agora para a
questão de como o membro de uma religião particular pode ou deve encarar
as outras tradições religiosas.

EXCLUSIVISMO

Talvez a postura mais natural para o crente de uma religião particular seja a de
que a verdade está na sua própria religião e que qualquer religião que defenda

268
Pluralidade de religiões

perspectivas opostas é portanto falsa. Trata-se de uma postura natural porque


ser crente de uma determinada religião é aceitar como verdadeiras as suas afir­
mações básicas. Se se acredita que depois da morte física todos os seres huma­
nos vão ou para o céu ou para o inferno, não se pode também concordar que
os membros do hinduísmo e do budismo reencarnam, como ensinam aquelas
religiões, noutra forma de existência terrena, depois da morte corpórea. Pode-
-se afirmar que a reencarnação é verdadeira para os crentes no hinduísmo e no
budismo. Mas isto é o mesmo que dizer que os membros dessas religiões acre­
ditam que a reencarnação é verdadeira. Não é o mesmo que dizer que depois
da morte os membros do hinduísmo e do budismo efectivamente reencarnam.
Assim, parece que o exclusivismo tem alguma verdade. Mas surge um problema
quando reparamos que uma religião não é apenas um conjunto de doutrinas;
também añrma ser um meio de salvação ou libertação relativamente ao que
está mal na vida.humana. Cada religião promete aos seus seguidores fiéis a
salvação ou a libertação. Tem de se colocar agora a questão de como deve o
membro de uma religião particular encarar as perspectivas de salvação daque­
les que aceitam outra religião qualquer. Até certo ponto, a religião a que se
adere pode responder a isto. Porquanto a nossa própria tradição religiosa dirá
ou que só ela é o caminho para a salvação ou que as outras religiões também
são caminhos genuínos para a salvação, ou então nada diz acerca do assunto.
Se uma religião particular declara ser ela o único caminho para a salvação, que
a salvação estará para sempre fora do alcance desses seres humanos a menos
que reajam adequadamente à sua mensagem, diremos que a religião em causa
é exclusivista. Se a nossa própria fé religiosa é exclusivista, então, a menos
que nos desviemos daquela doutrina particular, seremos exclusivistas no que
diz respeito à salvação, isto é, ao aderir a uma religião particular, acreditare­
mos no caminho para a salvação que nessa religião se ensina, e, acima de tudo,
acreditaremos também que a excepção daquele caminho particular para a
salvação não há salvação seja para quem for. É fácil compreender como uma
religião se torna exclusivista. Em primeiro lugar, quando as religiões se forma­
ram, pouquíssimo se sabia em geral acerca de culturas diferentes, de credos

269
Introdução à Filosofia da Religião

religiosos diferentes e de caminhos para a salvação ou libertação diferentes.


Em segundo lugar, com a emergencia do monoteísmo — a perspectiva de que
há apenas um deus e que esse deus único é o criador de tudo no universo — é
natural a expectativa de que a salvação dependa de se instituir uma relação
adequada com este deus, e é natural a crença de que o caminho exposto pela
nossa própria religião é o caminho que qualquer ser humano tem de seguir
para entrar nesta relação adequada. Foi assim que, por exemplo, a ortodoxia
cristã desenvolveu uma forte tendência exclusivista. Pode-se ver esta tendência
exclusivista tanto na doutrina católica romana como no protestantismo. No
concílio de Florença (1438-1445) afirmou-se que

«ninguém que permaneça fora da Igreja Católica, não só os pagãos mas também
os judeus ou heréticos ou cismáticos, pode participar da vida eterna; mas irão
para o «fogo eterno que foi preparado para o diabo e os seus anjos», a menos
que se juntem à Igreja antes de morrer, » 129

A afirmação católica romana de que não há salvação fora da igreja é igua­


lada pelo forte impulso missionário do protestantismo no século xix. A con­
vicção básica subjacente à acção missionária cristã em todo o mundo era a de
alargar a possibilidade de salvação aos que não tinham ouvido falar de Cristo.
Vamos considerar duas dificuldades no exclusivismo religioso. Em pri­
meiro lugar, há a dificuldade prática de que centenas de milhares de pessoas
vivem e morrem noutras religiões e culturas, sem alguma vez ter ouvido falar
do caminho da salvação ensinado por uma religião exclusivista particular.
Se um cristão defende que ser criado como cristão ou converter-se a Cristo
é essencial para a salvação de qualquer ser humano, defende portanto que
há centenas de milhares de pessoas que não são salvas, aparentemente pela
contingência de terem nascido em determinado lugar ou época.

129. John F. Clarkson, org., The Church Teaches: Documents of the Church in English
Translation (St. Louis, MO: B. Herder Book Co., 1955), p. 78.

270
Pluralidade de religiões

Falando como cristão, John Hick, destacado ñlósofo contemporâneo da


religião, põe as coisas da seguinte maneira:

«Afirmamos como cristãos que Deus é o deus do amor universal, que é o criador
e pai de toda a humanidade, que deseja o bem último e a salvação de todos os
homens. Mas também afirmamos, tradicionalmente, que o único caminho para
a salvação é o cristão. E no entanto sabemos, quando paramos para pensar no
assunto, que na sua grande maioria os seres humanos que viveram e morreram
até à data viveram ou antes de Cristo ou fora dos domínios da cristandade. Pode­
remos então aceitar a conclusão de que o deus do amor, que procura salvar toda
a humanidade, determinou apesar disso que os homens têm de ser salvos de
tal maneira que a salvação só abrange efectivamente uma pequena minoria ? » 130

A segunda dificuldade para uma religião exclusivista surge assim que nos
familiarizamos seriamente com outras religiões e com as vidas dos seus fun­
dadores e principais santos. Tal como acontece na nossa própria tradição reli­
giosa, encontramos figuras piedosas noutras religiões, indivíduos cujas vidas
exibem devoção religiosa e um compromisso ético profundo. Que Mahatma
Gandhi, por exemplo, tenha de ir para o inferno porque não se converteu
ao cristianismo ou a outra religião exclusivista parecerá uma ideia duvidosa,
se não mesmo absurda, a qualquer pessoa familiarizada com o hinduísmo e
com a vida de Gandhi.

INCLUSIVISMO

O estudante de religião cedo aprende que uma tradição religiosa é algo vivo
e vibrante, em constante mudança mesmo quando reafirma as suas ideias e
práticas básicas. Embora uma religião possa originalmente desenvolver uma

130. John Hick, God and the Universe of Faiths (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1973),
p .122.

271
Introdução à Filosofia da Religião

forte tendência exclusivista, é provável que ao longo do tempo modere o seu


exclusivismo de maneira a lidar com as duas dificuldades que acabámos de
referir. Para ilustrar como uma tradição religiosa pode moderar o seu exclu­
sivismo ao longo do tempo, veremos como o catolicismo romano modificou
ou reintêrpretou a sua posição de que não há salvação fora da igreja.131 Durante
o segundo concílio do Vaticano, em 1963-65, añrmou-se:

«Podem também obter a salvação eterna aqueles que sem culpa própria desco­
nhecem o evangelho de Cristo ou a Sua Igreja, mas no entanto procuram since­
ramente Deus e, movidos pela graça, se esforçam em actos por cumprir a Sua
vontade, como esta lhes é dada a conhecer pelos ditames da consciência. Tão-
-pouco a divina Providência nega a ajuda necessária à salvação àqueles que, sem
culpa própria, não chegaram ainda a um conhecimento explícito de Deus, mas
que se esforçam por ser boas pessoas, mercê da Sua graça. Qualquer bondade
ou verdade que se encontre neles é encarada pela Igreja como preparação para
o Evangelho. » 132

Penso que se pode ver nesta passagem uma tentativa de responder às


dificuldades práticas que o exclusivismo enfrenta. Parece que a ideia básica
é a seguinte: É ainda verdade, segundo o catolicismo romano, que não há
salvação fora da igreja. Mas o que se entende por estar no seio da igreja? Será
preciso ter sido efectivamente baptizado na igreja, conhecer o evangelho e
responder à sua mensagem com um acto explícito de fé? A anterior perspec­
tiva exclusivista no cristianismo tendia a responder afirmativamente a esta
questão, resultando nas dificuldades que vimos. O segundo concílio do Vati­
cano procura alargar a ideia daquilo que a salvação exige. Não é preciso ser-se
baptizado, ter conhecimento do evangelho de Cristo nem, aparentemente,

131. Devo esta explicação ao trabalho de John Hick. Ver em particular God and the Uni­
verse o f Faiths, Capítulo 9.
132. Segundo Concílio do Vaticano, Dogmatic Constitution on the Church (21 de Novembro
de 1964), Cap. II, parte 16.

272
Pluralidade de religiões

ter tido conhecimento de Deus {talvez nem sequer crença neste). Basta que
se faça o melhor possível por ser uma boa pessoa. Talvez se tenha também
de ter um desejo implícito de cumprir a vontade de Deus. Mas o principal é
aparentemente poder nascer, viver e morrer sem alguma vez ter ouvido falar
em Deus ou em Cristo e ainda assim conseguir a salvação no seio da igreja.
Um cristão inclusivista pode insistir que o cristianismo é o único cami­
nho para a salvação, que ninguém seria salvo sem a intervenção do divino
naquela religião particular. Mas um cristão inclusivista evita as dificuldades
do exclusivismo permitindo que no caminho cristão para a salvação se inclua
quem, sem culpa própria, está privado dos meios normais de salvação por
viver em lugares ou épocas onde e quando o evangelho de Cristo não lhes é
acessível. Assim, embora negue a validade última de outras religiões, o cris­
tão inclusivista pode ainda assim aceitar que os membros de outras religiões
alcancem a salvação seguindo os caminhos que essas religiões estabelecem.
Podem alcançar a salvação porque fazem o melhor que podem com a luz de
que dispõem e porque podem ter um desejo implícito de cumprir a vontade
do Deus cristão. Uma alternativa seria afirmar que aqueles que, sem culpa
própria, não tiveram a hipótese de responder ao evangelho de Cristo nesta
vida terão a oportunidade de o fazer no mundo que virá. Com pequenas alte­
rações deste género, a tendência exclusivista numa religião pode ser posta
de lado a favor do inclusivismo.

PLURALISMO

Vimos duas abordagens mais ou menos tradicionais ao problema de como o


membro de uma religião deve encarar as outras religiões e os seus membros.
A última perspectiva que consideraremos é a defendida por Hick. Perante as
muitas tradições religiosas diferentes que o nosso mundo contém, Hick pensa
que uma pessoa pode ter uma de três respostas possíveis. Em primeiro lugar,
dada a confusa diversidade de seres divinos que numa ou noutra altura foram
o foco da devoção nas diversas tradições religiosas do mundo, pode-se adoptar

273
Introdução à Filosofia da Religião

uma postura céptica relativamente a todas. Pode-se, por exemplo, encarar os


deuses e sistemas de crenças de todas estas religiões como ilusões, criações da
mente humana resultantes de desejos pessoais profundos e de uma tentativa
de influenciar as forças da natureza imaginando seres poderosos que as con­
trolem. Por razões que não temos de considerar aqui, Hick rejeita o cepticismo
universal acerca da religião. Em segundo lugar, pode-se adoptar a perspectiva
dogmática de que à excepção da nossa própria religião e dos seus seres divinos,
todas as religiões são ilusões. Hick pensa que tal perspectiva é dogmática por­
que acredita que as experiências que tornam racional que uma pessoa aceite
as crenças básicas de uma tradição religiosa também acontecem a pessoas
de outras tradições religiosas e tornam igualmente racional que aceitem as
crenças básicas dessas tradições. Assim, do ponto de vista de Hick, «a única
razão para tratar a nossa própria tradição de modo diferente das outras é a
razão, muito humana, mas não muito cogente, de que é a nossa!»133 Segundo
Hick, tanto o exclusivismo como o inclusivismo são perspectivas dogmáticas
acerca das tradições religiosas. Embora ele próprio seja cristão, Hick pensa que
é incorrecto ver as outras tradições religiosas como inferiores à nossa. Cada
uma das principais tradições religiosas, a seu ver, é uma resposta genuína à
presença do divino na vida humana; cada uma apresenta um caminho para a
salvação ou libertação igualmente legítimo para transformar os seres humanos
de pessoas centradas em si em pessoas centradas no divino. Por contraste com
o exclusivismo e o inclusivismo, esta perspectiva é pluralista. Recomenda que
o membro de uma religião particular encare as outras grandes tradições reli­
giosas e os seus caminhos para a salvação como igualmente legítimos, perante
a sua própria tradição. Assim, no esquema de Hick, as principais respostas
humanas à imensidão de tradições religiosas no nosso mundo são as seguintes:

C E P T IC IS M O D O G M ATISM O P LU R A L IS M O
E x c lu siv ism o In clu siv ism o

133. John Hick, An Interpretation of Religion (Londres: The Macmillan Press, 1989), p. 235.

274
Pluralidade de religiões

Comecemos a nossa análise do pluralismo religioso de Hick perguntando


como pode alguém acreditar que todas as religiões são igualmente verdadei­
ras ou legítimas. Porquanto, como vimos, se entendemos que as declarações
das diversas religiões pretendem afirmar verdades literais acerca do modo
como as coisas são, nem todas as religiões podem ser verdadeiras no que diz
respeito às suas afirmações básicas. E isto acontece porque as afirmações
básicas de uma dada religião colidem com as afirmações básicas de outras
religiões. Como pode então Hick pensar que todas as religiões são igualmente
verdadeiras ou legítimas?
À partida, Hick pedir-nos-ia para distinguir entre a questão de as dou­
trinas teológicas de uma determinada religião serem ou não verdadeiras e a
questão de o caminho para a salvação apresentado nessa religião transformar
realmente ou não a vida das pessoas, fazendo-as passar da centragem em si
para a centragem no divino. Quando Hick afirma que todas as principais reli­
giões são igualmente legítimas, quer sobretudo dizer que os seus caminhos
para a salvação ou libertação funcionam igualmente bem. Suponha-se que
concedemos isto a Hick. Que dizer então das afirmações teológicas básicas
nas diversas tradições religiosas? Será que o divino é realmente o deus trinitá-
rio do cristianismo, o deus puramente unitário do judaísmo, ou o deus Crixna
do hinduísmo — para referir apenas três dos muitos deuses que encontramos
nas tradições religiosas mundiais? Não adianta afirmar que todos são seres
divinos, que o politeísmo é verdadeiro e que é essa a razão pela qual religi­
ões diferentes que veneram deuses diferentes podem todas ser verdadeiras.
Porquanto, como Hick refere, cada tradição religiosa tende a afirmar que
a sua divindade é o «único criador ou fonte de toda a existência finita » .134
Pelo que o simples politeísmo não serve como defesa do pluralismo religioso.
A perspectiva de Hick é a de que a realidade divina está além de todos os
deuses distintos das diversas religiões. Mas não podemos ter directamente
experiência da realidade divina última. Ao invés, tem-se experiência da rea-

134. ifríd, p. 269.

275
Introdução à Filosofia da Religião

lidade divina por intermédio do deus ou dos deuses que se venera. É a mesma
realidade divina de que se tem experiencia com Alá, com o deus do judaismo,
com o deus cristão, Crixna, Xiva, e com todas as outras divindades pessoais
através das quais os seres humanos nas diversas culturas e tradições religiosas
çncontraram a realidade última. As diversas divindades que povoam as gran­
des religiões do mundo são manifestações da realidade divina na experiência
humana. É porque todas estas divindades e as religiões em que operam mani­
festam a mesma realidade divina última que aqueles que respondem com a fé
a estas diversas divindades se podem transformar de seres centrados em si em
seres centrados no divino. Além disso, não só os deuses pessoais das religiões
do mundo manifestam a realidade divina última aos héis dessas religiões como
o impessoal absoluto Brama funciona da mesma maneira; também este mani­
festa a realidade divina ultima aos que têm experiência de Brama. O que torna
todas estas religiões legítimas e verdadeiras, então, é o facto de em todas se
encontrar a realidade divina última nos diversos deuses pessoais e absolutos
impessoais que são os focos da devoção e da experiência religiosas.
Temos de levantar duas questões acerca da teoria do pluralismo religioso
de Hick. Em primeiro lugar, o que poderá Hick dizer-nos acerca da realidade
divina última, de que se tem experiência por intermédio dos deuses pessoais
e absolutos impessoais das grandes tradições religiosas? Em segundo lugar,
dado haver tal realidade além dos numerosos deuses pessoais, qual é o esta­
tuto dos próprios deuses? Existirão todos? Se sim, não voltamos então ao
politeísmo, adicionando-lhe talvez uma realidade divina em que os muitos
deuses participam e a qual manifestam aos seus seguidores? Mas antes de
investigar estas questões, talvez queiramos perguntar por que razão pensa
Hick que a ideia que faz das tradições religiosas mundiais está correcta. Eis
como ele coloca esta questão:

«Mas como se pode chegar a tal perspectiva? Não estaremos a propor uma ima­
gem reminiscente da antiga alegoria dos cegos e do elefante, em que cada um
passa as mãos por uma parte diferente do animal, identificando-a de modo dife-

276
Pluralidade de religiões

rente, a perna com uma árvore, a tromba com uma serpente, a cauda com uma
corda, e por aí em diante? Evidentemente, na história descreve-se a situação do
ponto de vista de alguém que pode observar quer o elefante quer os cegos. Mas
onde está a posição a partir da qual se pode observar quer a realidade divina quer
os diferentes pontos de vista humanos e limitados, a partir dos quais se percep-
ciona diferentemente aquela realidade? O defensor da concepção pluralista não
pode fingir semelhante visão cósmica. Como pode então añrmar saber que a
situação é de facto como a representa? »13S

Antes de ver a resposta de Hick a esta questão, será útil considerar a


analogia do elefante. Suponha-se que um cego relata ter tido experiência de
uma árvore (a perna do elefante), outro relata ter tido experiência de uma
serpente (a tromba do elefante) e outro ainda relata ter tido experiência de
uma corda (a cauda do elefante). Na analogia, o elefante e as suas partes estão
em lugar da realidade divina última. As experiências que se tem do elefante
como árvore (a sua perna), como serpente (a sua tromba) e como corda (a sua
cauda), estão em lugar das experiências religiosas da realidade divina como
Xiva, como Crixna, como o deus da Tora, como Alá, como o pai celestial de
Cristo, como Brama, etc. Como Hick observa, ele próprio não está na posição
da pessoa que é capaz de ver que os cegos têm todos experiência da mesma
realidade (o elefante) de maneira diferente (como árvore, como serpente,
como corda). Como sabe então Hick que aqueles que afirmam ter experiência
de Brama (um absoluto impessoal) e aqueles que afirmam ter experiência
de Alá (um deus pessoal que criou o mundo) têm na verdade experiência
da mesma realidade (a realidade divina última) mas de um modo diferente
(como Brama, como Alá)?
A resposta cândida de Hick é que não sabe. O pluralismo religioso é para
ele uma hipótese, uma teoria que desenvolveu para explicar o facto de ocor-

135. John Hick, Problems of Religious Pluralisvi (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1985),
p. 37.

277
Introdução à Filosofia da Religião

rer em todas as grandes tradições religiosas do mundo uma transformação,


da centragem em si para a centragem no divino. Sendo isto o que é preciso
explicar, Hick propõe o pluralismo religioso como a hipótese que oferece a
explicação mais satisfatória.
s. Hick não foi o primeiro a desenvolver uma teoria do pluralismo religioso.
O eminente teólogo do século x x , Paul Tillich, apresenta uma perspectiva
algo semelhante. Tillich chama à realidade divina última ser-em -si; Hick,
nos últimos escritos, prefere chamar-lhe real em si. A ideia de Hick é a de
que temos de distinguir o real em si (a realidade divina última) do real tal
como dele temos experiência. Os deuses pessoais e os absolutos impessoais
que são os focos de veneração nas diferentes tradições religiosas são o real tal
como dele temos experiência. Que dizer então da realidade divina última que
está além dos diversos deuses e absolutos impessoais? Que dizer desta reali­
dade divina última, o real em si? A resposta de Hick é que nada de importante
se pode dizer do real em si. Porquanto a distinção entre o real tal como é em
si e o real tal como o concebemos e de que temos experiência implica que as
características positivas e negativas que se aplicam às diversas divindades e
absolutos impessoais não pertencem ao real tal como é em si mas ao real tal
como o concebemos e dele temos experiência:

«Assim, não se pode dizer que o real em si é um ou muitos, pessoa ou coisa, cons­
ciente ou inconsciente, intencional ou não intencional, substância ou processo,
bom ou mau, amoroso ou odioso. Nenhum dos term os descritivos que se apli­
cam ao domínio da experiência humana se pode aplicar literalmente à realidade
insusceptível de experiência que subjaz àquele domínio. » 136

Ao falar do real em si como a realidade divina última, podemos já ter


dito mais do que Hick pensa que podemos dizer, pelo menos literalmente.
Porquanto atribuímos a propriedade de ser divino ao real em si. Mas divino

136. Hick, An Interpretation of Religion, p. 350.

278
Pluralidade de religiões

é um termo descritivo, aplicável aos deuses que manifestam o real, aplicável


ao real tal como dele se tem experiência, e não ao real tal como é em si. O real
em si, segundo Hick, tem uma natureza que consiste em propriedades subs­
tantivas, mas nenhuma destas propriedades substantivas é conhecível por nós
ou mesmo exprimível em conceitos humanos. Pelo que os nossos conceitos
de «bom», «afectuoso» e «divino» não conseguem discriminar quaisquer
propriedades substantivas do real em si. Mas se a realidade última (o real em
si) não é boa, nem afectuosa, nem divina, porque se manifesta na experiência
como boa, como afectuosa e como divina? Poderá a hipótese do real em si de
Hick efectivamente explicar os fenómenos religiosos de contacto humano
com deuses, de quem se afirma serem bons, afectuosos e divinos?
Podemos conceder que as experiências que se tem desses deuses nas
diferentes religiões, quer sejam deuses pessoais ou absolutos impessoais,
parecem igualmente legítimas para transformar as vidas humanas. Mas é
difícil ver como uma realidade última cujas propriedades substantivas são
indescritíveis e inconhecíveis poderá ser um postulado que ajuda a explicar
por que razão o real como dele se tem experiência haveria de ter algum efeito
transformador nos seres humanos. Na verdade, podemos até questionar se
pode haver ou não um real em si como Hick o entende. Porquanto, como
vimos, Hick defende que o real nem tem a propriedade substantiva posi­
tiva de ser intencional nem a propriedade substantiva negativa de não ser
intencional. Mas muitos filósofos considerariam tal perspectiva simplesmente
incoerente. Seja o que for que existe ou que é real, diriam, tem ou de ter a
propriedade positiva de ser intencional ou a propriedade negativa de não
ser intencional. Uma coisa é negar que algo tem uma ou outra de duas p ro­
priedades contrárias, ou ambas, como estar quente ou estar frio; mas como
poderia algo não ter pelo menos uma de duas propriedades contraditórias,
como ser um lápis ou não ser um lápis? Evidentemente, o real, como Hick o
concebe, jamais poderia ter a propriedade de ser um lápis. Mas, precisamente
por isso, tem de ter a propriedade negativa de não ser um lápis. Como poderia
deixar de ter essa propriedade? Afirmar, como Hick, que o real em si nem

279
Introdução à Filosofia da Religião

tem a propriedade de ser uma pessoa nem a propriedade (contraditória da


anterior) de não ser uma pessoa, é arriscar a rejeição da sua teoria do plura­
lismo religioso por ser simplesmente incoerente .137
A nossa segunda questão dizia respeito aos diversos deuses que estão no
centro da veneração de diversas religiões mais importantes. Será que Hick
pensa que todos estes seres divinos existem independentemente da expe­
riência que temos deles? Isto seria adoptar o politeísmo adicionando-lhe o
real como aquilo de que os humanos têm experiência nos seus encontros
com os deuses das diversas religiões. Mas, como vimos, Hick não pensa que
o politeísmo possa fazer justiça ao género de propriedades que se atribui aos
deuses — por exemplo, ser o único criador de todas as coisas finitas. Deve­
mos então afirmar que na realidade há apenas um ser divino a que se chama
nomes diferentes? «Adonai» segundo os judeus, «o Pai Celestial» segundo
os cristãos, «Alá» segundo os muçulmanos, «Xiva» e «Crixna» segundo
os hindus, etc. ? Esta perspectiva, embora atraente à primeira vista, ignora o
facto de os diversos nomes divinos exprimirem

«compreensões diferentes da divindade, que são intrínsecas a tradições diferen­


tes e estão inseridas em histórias diferentes. «Adonai», como os judeus usam o
termo, significa específicamente o deus cuja aliança com os filhos de Israel está
documentada na Tora. O título «Deus», como os cristãos usam o termo, refere-
-se ao pai celestial ou a Jesus Cristo, cuja encarnação foi a auto-revelação divina
singularmente plena e final. O título equivalente «Alá», como os muçulmanos
usam o termo, refere-se ao revelador coránico, cuja mensagem, transmitida pelo
profeta Maomé, completa e cumpre as revelações iniciais contidas na Tora e no
Novo Testamento. E por aí em diante. » 138

137. Para uma discussão crítica da perspectiva de Hick de que não se pode atribuir proprie­
dades substantivas ao real, ver o meu ensaio «Religious Pluralism», Religious Studies
35, 2 (1999), pp. 139-150. Ver também os importantes ensaios sobre o pluralismo
religioso em Philip L. Quinn e Kevin Meeker, orgs., Vie Philosophical Challenge of
Religious Diversity (Oxford: Oxford University Press, 2000).
138. Hick, An Interpretation of Religion, p. 270.

280
Pluralidade de religiões

Se nem os muitos deuses nem o único deus, referidos por nomes ou


títulos diferentes nas diferentes religiões, existem, o que resta então para
Hick adoptar como perspectiva adequada dos muitos deuses diferentes das
maiores religiões do mundo? Sem subscrever explicitamente essa perspec­
tiva, Hick sugere que os deuses são «projecções da imaginação religiosa» ,139
São criações humanas que respondem a encontros com o que é de facto a
realidade última. Assim, embora tais seres não existam realmente, não são
apenas produtos mentais de necessidades psicológicas internas, como diríam
Freud e alguns cépticos religiosos. São produtos mentais adequados, tendo
em conta os encontros humanos com o que é verdadeiramente último e está
além de toda a descrição literal, sendo o próprio real.
Neste último capítulo vimos algumas dificuldades intelectuais colocadas
pela existência de diversas tradições religiosas no nosso mundo. Em parti­
cular, considerámos a questão de como o crente de uma tradição religiosa
particular pode ou deve encarar as afirmações de outras tradições religiosas.
Vimos que o exclusivismo é uma primeira resposta natural mas que enfrenta
duas dificuldades práticas. O inclusivismo, por outro lado, evita estas difi­
culdades conferindo um certo grau de legitimidade a outras religiões. Demos
alguma atenção a uma perspectiva mais radical, o pluralismo.
Ao longo da breve história da humanidade no universo, a religião é um
fenómeno quase universal. Como tal, é digna de estudo cuidadoso pelas
diversas disciplinas intelectuais: a filosofia, a história e a antropologia, entre
outras. Neste livro sucinto, examinámos algumas das questões principais que
surgiram no estudo filosófico da religião. Em particular, examinámos diver­
sas questões importantes envolvidas no escrutínio filosófico da religião teísta.
Se as conclusões a que chegámos ao longo do caminho não são tão definitivas
quanto gostaríamos, tem de se recordar que na filosofia, como na vida, o
que mais importa é amiúde a própria viagem e não o seu ponto de chegada.

139. Ibid., p. 273.

281
introdução à Filosofia da Religião

REVISÃO

1. Que diferenças importantes há entre as principais religiões do mundo?


2. Explique o exclusivismo e indique duas dificuldades desta posição.
3. Em que difere o inclusivismo do exclusivismo? Explique.
4. O que é o pluralismo religioso? Porque será que esta perspectiva distin­
gue a realidade divina última em si dessa realidade tal como a concebe­
mos e dela temos experiência?
5. Será que a hipótese do real em si de Hick efectivamente explica por que
razão ocorrem experiências religiosas transformadoras nas principais
religiões do mundo? Explique.

ESTUDO COMPLEMENTAR

1. Em vez de postular o real em si, por que não postular um ser pessoal infi­
nito que aparece às pessoas em religiões diferentes e a que se dá nomes
diferentes? Que razões pode dar a favor e contra esta ideia?
2. Suponha que aceitamos algo semelhante ao pluralismo religioso de Hick.
Será que isto significa que não há maneira de avaliar religiões diversas?
Poderia ainda haver um critério para avaliar as religiões como melhores
ou piores? Explique.

282
Glossário de conceitos e ideias importantes

CAPITULO 1: A IDEIA DE DEUS

Agnosticismo: Ausência de crença ou descrença em Deus — isto é, suspensão


do juízo acerca da existência de Deus.
Deísmo: Crença de que Deus criou o universo e as leis da natureza, mas não
intervém no mundo.
Deus imanente: Um ser divino que impregna ou existe em todas as coisas
que existem.
Deus transcendente: Um ser divino que está acima do mundo, sendo distinto
e independente do mesmo.
Henoteísmo: Crença em múltiplos deuses mas veneração de apenas um, o
deus supremo ou o deus da própria tribo.
Monoteísmo: Crença numa divindade única, universal, global.
Panteísmo: Crença de que o universo e Deus são o mesmo.
Politeísmo: Crença de que há uma pluralidade de seres divinos ou deuses.
Ser auto-existente: Um ser cuja existência se explica pela sua própria natureza.
Ser concebível: Um ser que se pode conceber sem contradição.
Ser contingente: Um ser tal que a) se existe, poderia logicamente não ter
existido e b) se não existe, poderia logicamente ter existido.
Ser dependente: Um ser cuja existência se explica pela acção causal de outro
ser ou seres.
Ser em acto: Um ser que existe.

283
Introdução à Filosofia da Religião

Ser impossível: Um ser que não existe e não pode logicamente existir.
Ser necessário: Um ser que existe e não pode logicamente deixar de existir.
Ser possível: Um ser que ou existe ou podia logicamente existir.
Ser que existe no entendimento: Um ser no qual pensamos.
S.er que não está em acto: Um ser que não existe.
Teísmo: Crença na existência de um Deus perfeitamente bom, criador do
mundo, distinto e independente do mundo, omnipotente, omnisciente,
eterno e auto-existente.

CAPÍTULO 2 ; O ARGUMENTO COSMOLÓGICO

Argumento a posteriori: Argumento tal que nem todas as suas premissas bási­
cas são proposições a priori (de modo equivalente: pelo menos uma das
suas premissas básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento a priori: Argumento tal que todas as suas premissas básicas são
proposições a priori (de modo equivalente, nenhuma das suas premissas
básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento cosmológico: tentativa de derivar a existência de Deus a partir
da existência do universo.
Princípio de não contradição: Para qualquer afirmação e respectiva negação,
P e não P, no máximo uma é verdadeira (de modo equivalente, nenhuma
afirmação pode ser simultaneamente verdadeira e falsa — nada pode,
ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ter uma propriedade e carecer
dessa propriedade).
Princípio de razão suficiente: Para tudo o que existe, o facto de essa coisa existir
tem de ter uma explicação; e para qualquer facto positivo acerca de qual­
quer coisa que exista tem de haver uma explicação para o facto em causa.
Proposição a posteriori: Proposição que só se pode conhecer através da expe­
riência sensorial.
Proposição a priori: Proposição que se pode conhecer prévia ou indepen­
dentemente da experiência sensorial.

284
Glossário de conceitos e ideias importantes

CAPÍTULO 3 : O ARGUMENTO ONTOLÓGICO

Argumento ontológico: Tentativa de derivar a existência de Deus a partir da


definição ou conceito de Deus,
Crítica de Gaunílo: A ilha mais grandiosa possível não existe.
Crítica de KanU A existência não é uma qualidade ou predicado.
Ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo: A existência na realidade
é uma qualidade produtora de grandiosidade.
Mais grandioso: Melhor, mais digno.

CAPÍTULO 4 : O ARGUMENTO DO DESÍGNIO (O ANTIGO E O NOVO)

Antigo argumento do desígnio: Como as máquinas são produzidas por desíg­


nio inteligente e muitas partes naturais do universo se assemelham a
máquinas, provavelmente o universo (ou pelo menos muitas das suas
partes naturais) foi produzido por desígnio inteligente.
Argumento do desígnio: Tentativa de derivar a existência de Deus a partir do
desígnio, da ordem ou da finalidade das coisas no universo.
Argumento por analogia: Se um objecto atem as propriedades F, G, H, etc.,
bem como a propriedade Z, e o objecto b tem as propriedades F, G, H,
etc., então provavelmente o objecto b tem a propriedade Z.
Outras questões: O debate sobre se a teoria darwinista pode ou não explicar
a «complexidade irredutível» ao nível molecular.
As objecções de Hume a respeito da vastidão do universo e da inadequa­
ção do argumento do desígnio para estabelecer que o criador teria os
atributos do deus teísta.
A questão levantada pela existência de um planeta {a Terra) com as cons­
tantes necessárias para permitir a existência de vida humana.
Sistema teleológico: Sistema de partes em que estas estão dispostas de tal
modo que, nas condições adequadas, funcionam conjuntamente para
servir uma determinada finalidade.

285
Introdução à Filosofia da Religião

CAPÍTULO 5 : EXPERIÊNCIA MÍSTICA E RELIGIOSA

Crença apropriadamente básica: Crença cuja aceitação é racional para nós


mesmo não havendo quaisquer indícios a seu favor, no sentido de outras
, crenças racionais que a sustentem adequadamente.
Crença auto-evidente: Crença tal que ao ser compreendida vemos que é ver­
dadeira.
Derrotadores: Razões para pensar outra coisa.
Experiência ilusória: Experiência cujos conteúdos nem correspondem a qual­
quer aspecto da realidade nem o representam correctamente.
Experiência religiosa (Otto): Experiência em que se está directamente ciente
de outro ser como sagrado ou divino.
Experiência religiosa (Rowe): Experiência em que se sente a presença ime­
diata do divino.
Experiência religiosa (Schleiermacher): Experiência em que se é tomado pelo
sentimento de absoluta dependência.
Experiência religiosa mística extrovertida: Experiência em que se olha para
fora, através dos sentidos, para o mundo à nossa volta, e aí se encontra
o divino.
Experiência religiosa mística introvertida: Experiência em que se olha para
dentro e se encontra o divino na parte mais profunda do eu.
Experiência religiosa mística: Experiência em que se sente a união com o divino.
Experiência religiosa não mística: Experiência em que se sente a presença
do divino como um ser distinto de quem tem a experiência.
Experiência verídica: Experiência cujos conteúdos correspondem a um
aspecto da realidade ou o representam correctamente.
Fé: Crença que não assenta numa prova lógica ou num indício material.
Fundacionalismo clássico: Todas as nossas crenças têm de ser ou auto-
- evidentes ou baseadas em crenças auto-evidentes.
Opção genuína: Decisão entre duas hipóteses quando 1) ambas são hipóteses
vivas, 2) a decisão é forçosa e 3) a decisão é momentosa.

286
Glossário de conceitos e ideias importantes

Princípio de credulidade: Se uma pessoa tem uma experiência que parece ser
de %, então, a menos que haja uma razão para pensar de outro modo, é
racional acreditar que x existe.
Tese da unanimidade: Os místicos de diferentes religiões têm basicamente
todos a mesma experiência.

CAPÍTULO 6: FÉ E RAZÃO

Clifford acerca da crença: «É errado sempre, em todo o lado e para toda a


gente, acreditar em qualquer coisa com indícios insuficientes.»
Plantinga acerca da crença: Algumas crenças (como as que versam sobre a
existência do mundo exterior, a existência de outras mentes e a existên­
cia de Deus) são apropriadamente básicas para alguns crentes.
Razões conducentes à verdade: Razões que tendem a mostrar que uma
crença é verdadeira.
Rabões pragmáticas: Razões que tendem a mostrar que um bem vem ou pode
vir de ter uma crença.
Tomás acerca da fé: A fé é a aceitação de determinadas afirmações acerca de
Deus e das suas actividades, afirmações que excedem a capacidade da
razão humana para prová-las.

CAPÍTULO 7: O PROBLEMA DO MAL

Analogia Deus-pai: Deus é para os seres humanos como os bons pais são para
os seus filhos, a quem amam. Os bons pais, contudo, fazem o melhor que
podem para confortar e acompanhar os seus filhos quando estes sofrem
por razões que não compreendem.
Ateu amigável: Um ateu que pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o deus teísta existe.
Ateu hostil: Um ateu que pensa que ninguém tem justificação racional para
acreditar que o deus teísta existe.

287
Introdução à Filosofia da Religião

Defesa do livre-arbítrio: Deus, embora omnipotente, pode não ter sido


capaz de criar um mundo com criaturas humanas livres sem com isso
permitir a ocorrência de um mal considerável.
Desvio de G. E. Moore: Inverter o argumento, começando pela negação da
conclusão e concluindo com a rejeição da premissa crucial.
Mal sem sentido: Um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com
isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal igual ou pior.
Ocultamento de Deus: Ausência de Deus na experiência humana, em parti­
cular na experiência de seres humanos que sofrem por razões que não
compreendem.
Pressuposto da defesa do livre-arbítrio: É logicamente impossível que uma
pessoa realize livremente um acto qualquer tendo sido causalmente
determinada a realizá-lo.
Problema indiciário do m al A ahrmação de que o mal no nosso mundo dá
sustentação racional à crença de que Deus não existe.
Problema lógico do m al A afirmação de que a existência de Deus e a exis­
tência do mal são logicamente inconsistentes entre si.
.Resposta do teísmo céptico: Não se mostrou que é provável que exista mal
sem sentido, dado não haver qualquer boa razão para pensar que temos
conhecimento dos bens que Deus conhece.
Teísta amigável: Um teísta que pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o deus teísta não existe.
Teísta hostil Um teísta que pensa que ninguém tem justificação racional
para acreditar que o deus teísta não existe.
Teodiceia: Tentativa de explicar quais poderão ser os propósitos de Deus em
permitir a abundância do mal no nosso mundo.

CAPÍTULO 8: MILAGRES E A MUNDIVIDÊNCIA MODERNA

Argumento de Hume contra os milagres: Os indícios da experiência prévia a


favor de uma lei da natureza são extremamente fortes. Sendo um mila-

288
Glossário de conceitos e ideias importantes

gre a violação de uma lei da natureza, os indícios contra a ocorrência


de milagres são extremamente fortes.
Dois pontos fracos no argumento de Hume: i) Hume não considera os indí­
cios indirectos, factos que podemos explicar melhor pela ocorrência de
um milagre. 2) Hume sobrestima 0 peso que devemos dar à experiência
prévia a favor de um princípio que pensamos ser uma lei da natureza.
Milagre (definição humiana): Acontecimento que 1) ocorre mas não teria
ocorrido se aquilo que acontece se devesse apenas a causas naturais
e 2) ocorre porque foi provocado por Deus ou por um agente sobre­
natural.
Milagre (sentido popular): Um acontecimento benéfico inesperado.

CAPÍTULO 9 : VIDA DEPOIS DA MORTE

Analogia de McTaggart: Talvez aquando da morte corpórea a mente possa


funcionar sem estar já dependente do cérebro.
Argumento a favor da imortalidade, baseado na mediunidade mental:
O caso de Edgar Vandy.
Argumento de Russell contra a imortalidade: A nossa vida mental depende
da condição do cérebro humano. Logo, é muito provável que quando
o cérebro se decompõe com a morte corpórea a nossa vida mental já
não possa ocorrer.
Argumento filosófico a favor da imortalidade da alma: Uma coisa só pode
ser destruída pela separação das suas partes. Como a alma não tem
partes, não pode ser destruída.
Argumento teológico a favor da imortalidade da alma: Deus criou pessoas
finitas para existirem em irmandade consigo.
Concepção homérica: Só os deuses são imortais, embora a alma humana
sobreviva no Hades como fantasma, mera sombra da antiga pessoa.
Concepção platónica: Os seres humanos são imortais e a alma é a pessoa
(aquilo que raciocina, relembra, etc.).

289
Introdução à Filosoña da Religião

Crítica kantiana ao argumento filosófico: Pode haver modos de destruição


além da separação de partes; por exemplo, reduzindo permanentemente
o seu grau de consciência para zero.
Outras objecções: a) Lucrécio: a alma, como o corpo, é material; b) a aima
i ou mente é apenas uma série de acontecimentos mentais ligados pela
memória,
Reencarnação: A alma sofre a transmigração (passagem para outro corpo
aquando da morte) até alcançar a libertação, a saída da alma do ciclo de
renascimento, e é absorvida por deus, a alma universal.
.Ressurreição do corpo: A pessoa é vista como uma unidade de alma e corpo.

CAPÍTULO 10: PREDESTINAÇÃO, PRESCIÊNCIA DIVINA


E LIBERDADE HUMANA

Agir livremente, sentido i: Consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer.


Agir livremente, sentido 2: Consiste em fazer o que se quer quando estava
em nosso poder não o fazer. Esta perspectiva parece entrar em conflito
com a predestinação divina.
Argumento para mostrar que a presciência divina também entra em con­
flito com a acção livre no sentido 2: O argumento depende da verdade
da afirmação: se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos,
então nunca está em nosso poder agir de modo diferente.
Concepção boeciana de eternidade: Transcender o tempo; estar além ou fora
do tempo; não ter a própria vida dividida em muitas partes temporais,
tais que em cada momento apenas uma destas partes esteja presente a
nós mesmos.
Concepção tradicional de eternidade: Ter existência interminável, sem
começo nem hm; ter duração infinita em ambas as direcções temporais.
Objecção de Locke: Pode-se escolher fazer algo e querer fazê-lo ainda que
não se pudesse ter feito outra coisa (o homem escolhe hear no quarto
fechado).

290
Glossário de conceitos e ideias importantes

Presciência divina: Deus sabe de antemão o que acontecerá porque prevê


esses acontecimentos e não por predeterminar a sua ocorrência futura.
Solução de Ockham para o aparente conflito entre a presciência divina e a
liberdade humana: Pode estar em nosso poder alterar factos acerca do
passado, desde que não sejam apenas acerca do passado.
Solução de Tomás para o aparente conflito entre a presciência divina e a
Uberdade humana: Deus não é presciente porque é eterno, no sentido
de existir fora do tempo.

CAPÍTULO 11: PLURALIDADE DE RELIGIÕES

Diferenças importantes: A realidade divina é um deus pessoal; a realidade


divina é um absoluto impessoal; há um ciclo de morte e renascimento;
há apenas uma vida antes do céu ou do inferno; o nosso destino último
é ver pessoalmente deus; o nosso destino último é perder a consciên­
cia individual no grande oceano do ser; o locus da revelação divina é a
Bíblia; o locus da revelação divina é o Corão; o locus da revelação divina
são os Vedas; o locus da revelação divina são todos os três.
Exclusivismo: Há apenas uma religião verdadeira e não se pode ser salvo,
iluminado ou abençoado de alguma maneira, em qualquer caminho ofe­
recido pela religião, sem abraçar explícitamente a única religião verda­
deira como sua.
Inclusivismo: Só uma religião é verdadeira, mas o deus dessa religião também
salva crentes virtuosos de outras religiões.
Pluralismo: As diversas religiões são interpretações culturalmente influen­
ciadas de uma única realidade divina subjacente. Cada uma é igualmente
verdadeira e igualmente legítima como meio para a salvação.

291
Leitura complementar

A d a m s , Marilyn, Horrendous Evils and the Goodness of God, Ithaca, Nova


Iorque: Cornell University Press, 1997.
A l s t o n , Williams P., Divine Nature and Human Language: Essays in Philo­
sophical Theology, Ithaca, Nova lor que: Cornell University Press, 1989.
A l s t o n , Williams P., Perceiving God: The Epistemology of Religious Expe­
rience, Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1991.
BEHE, Michael J., Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evo­
lution, Nova Iorque: The Free Press, 1996.
broad, C.D., Religion, Philosophy and Psychical Research, Londres: Rou­
tledge & Kegan Paul, 1953-
By r n e , Peter, Prolegomena to Religious Pluralism, Nova Iorque: St. Martin’s
Press, 1995.
C r a i g , William Lane e Quentin Smith, Theism, Atheism and Big Bang Cos­
mology, Oxford: Clarendon Press, 1993-
C r a i g , William Lane, The Kalam Cosmological Argument, Nova Iorque: Bar­
nes & Noble Books, 1979.
d a v is , Stephen T., Logic and the Nature of God, Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1983.
D EM BSK i, W.A., No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be
Purchased Without Intelligence, Lanham, MD: Rowman & Littlefield,
2002.

293
Introdução à Filosofia da Religião

d u casse, Curt John, A Critical Examination of the Belief in a Life After


Death, Springfield, IL: Thomas, 1961.
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gale, Richard, On theNature andExistence of God, Cambridge: Cambridge
■; University Press, 1991.
HASKER, William, God, Time and Knowledge, Ithaca, Novalorque: Cornell
University Press, 1989.
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h ic k , John, The Fifth Dimension: An Exploration of the Spiritual Realm,
Oxford University Press, 2004.
ja m es, William, Varieties of Religious Experience, Nova Iorque: Green and
Company, 1902.
K a t z , Steven T., org., Mysticism, and Philosophical Analysis, Oxford: Oxford
University Press, 1978.
K e n n y , Anthony, The God of the Philosophers, Oxford: Oxford University
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m a c k ie , J.L., The Miracle of Theism, Oxford: Oxford University Press, 1983.
m a r t in , Michael, org., Um Mundo Sem Deus: Ensaios Sobre 0 Ateísmo, Lis­
boa: Edições 70, 2010.
MAVRODES, George L, Belief in God, Nova Iorque: Random House, Inc., 1970.
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tleheld, 1998.
otto, Rudolf, The Idea of the Holy, Oxford: Oxford University Press, 1958.
penelh um , Terrence, Immortality, Belmont, CA: Wadsworth, 1973-
pen elh um , Terrence, Religion and Rationality, Nova Iorque: Random
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p ik e , Nelson, Religion and Rationality, Novalorque: Random House, Inc., 1971.

294
Leitura complementar

p l a n t in g a , Alvin, Does GodHave a Nature?, Marquette, WI: Marquette


University Press, 1980.
PLAN TINGA, Alvin, God, Freedom and Evil, Nova Iorque: Harper & Row
Publishers, 1974.
rea, Michael, World Without Design: The Ontological Consequences of
Naturalism, Oxford: Oxford University Press, 2002.
Ro w e , William L., Can God be Free?, Oxford: Oxford University Press, 2004.
ROWE, William L., The Cosmological Argument, Princeton University Press,
1975. Reimpresso (com novo prefácio) pela Fordham University Press, 1998.
s m it h , Wilfred Cantwell, Towards a World Theology, Filadélña: Westminster
Press, 1981.
Sw i n b u r n e , Richard, Será Que Deus Existe?, Lisboa: Gradiva, 1998,
Ta l i a f e r r o , Charles e Griffiths, Paul I , orgs., Filosofia das Religiões, Lisboa:
Piaget, 2008.
WAiNWRiGHT, William!., Mysticism: A Study of Its Nature, Cognitive Value
and Moral Implications, Madison, WL University of Wisconsin Press, 1981.
WAINWRIGHT, William I , Reason and the Heart, Ithaca, Nova Iorque: Cornell
University Press, 1995-
WAINWRIGHT, William I , Religion and Morality, Aldenshot, Inglaterra: Ash-
gate Publishing Co., 2005.
WIERENGA, Edward R., The Nature of God: An Inquiry into Divine Attributes,
Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1989.
YANDELL, Keith, Christianity and Philosophy, Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1984.
YANDELL, Keith, The Epistemology of Religious Experience, Cambridge:
Cambridge University Press, 2004.

295
Indice remissivo

A posteriori - 39, 87, 284 Argumentos


A priori - 39, 40, 63, 284 a posteriori - 39
Agnósticos - 36, 37 , 147 ,15 0 ,15 3 , 154 ,156, a priori - 39
158,160,167,197 por analogia - 88, 89, 236, 237
amigáveis, não amigáveis - 197 validade dos - 42, 43
risco assumido por - 156,157 Argumento do desígnio, novo - 99,102,107
Agostinho, Santo - 21, 200 Aristóteles - 35, 40, 249, 258
Alma, aimas - 20,113,124,125,126,187, Ateísmo, 0 mal como base racional a favor
189,192, 219, 220, 221, 222, 223, 224, do - 18, 37, 3 8 ,147,153,155,169,170,
226,227, 228, 238, 267, 289,290 171,194, ,195,196,197,198,294
ideia crista de - 222 Ateus - 19, 37 , 153 , 154 ,156,160,165,167,
ideia platónica de - 221 197 ,287
imortalidade da - 219-220 amigáveis, não amigáveis - 197
perspectiva kantiana da - 227 definição de - 37,197
reencarnação da - 221-222 risco assumido por - 156,157
reunião entre o corpo e a - 222 Auto-existência de Deus - 16, 21, 22, 29,
transmigração da - 222 32, 36, 37 , 41 , 42 , 4 4 , 52, S3 , 55 , 61,105,
unidade entre o corpo e a - 222 169,283, 284
vazio da -124 Auto-existência, ser com - 29
Analogia - 31, 87, 88, 92,185,186, 236, 277, Avicena - 21
285,287, 289
analogia dos bons pais - 185,186 Behe, Michael J. - 96, 97, 98,104, 293
argumento por - 88, 89, 236, 237 Boaventura, São - 21
falsa - 236, 237 Ver também Giovanni di Fidanza
Analogia dos bons pais - 185,186 Bondade de Deus - 25, 27
Anselmo, Santo - 29, 30, 35, 63, 66, Brama - 121,127,130,131,166, 267, 268,
Aquiles - 220 276,277
Aquino, São Tomás de - 16, 22, 23, 40,140, Broad, C.D. - 77, 92, 9 3,127,131,133, 134 ,
142, 252 135,136, 1 3 7 , 138, 214, 230, 234, 293
acerca da existência de Deus - 40, 41 acerca das experiências místicas -133,134
acerca da fé por oposição à razão - 141- Budismo - 15, 32,166, 221, 265, 267, 269
143

297
Introdução à Filosofia da Religião

Bultmann, Rudolph - 19,199, 200, 201, Dependente, definição de ser - 42, 47, 48,
202,217 50, 51, 52, 53 , 5 4 , 55, 61 , 111, 112, 143 ,
acerca de milagres - 200, 201 283
Desígnio, argumento do - 11, 39, 40, 87,
Cepticismo, o mal e o - 236, 274 88, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 99,100,
Céptico, teísmo - 12,182,184,187, 288 101.102.103.106.107, 285
Ciencia - 15, 16, 59, 96, 98,102, 199 , 200, conceitos básicos do - 87-99
■ 201,216,236 criticas de Hume ao - 98, 99,100
milagres por oposição a - 199-201 novo argumento do desígnio - 98,101,
Clarke, Samuel - 36, 41, 58 102,107
Clifford, William - 144,145,146,147,148, Desígnio inteligente, indícios a favor do -
149 ,153,156,157,158, 159,168,287 88, 90, 93 , 95 ,9 6 , 97 ,9 8 , 9 9 ,1 0 0 ,103,
Comunicador - 230 105.107, 285
Comuns, experiências religiosas - 127,137 «Desvio de G.E. Moore» - 192,194, 288
Ver Não místicas, experiências Deus. Ver também crença em Deus
religiosas Argumentos a favor da existência de
Consistência Lógica -170-174 a posteriori - 39, 87, 282
Contradições - 277 a priori - 39, 40, 63, 284
Controlo - 20, 170, 206, 230, 245 cosmológico - 39, 40, 41, 42, 43,
Cosmológico, argumento a favor da 4 4 , 4 5 , 46, 4 7 , 48, 4 9 , 50, 51, 5 4 ,
existência de deus - 39, 40, 41, 42, 43, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 6 3 ,105,
4 4 , 4 5 , 46, 47, 48, 4 9 , 50, 51,52, 5 4 , 5 5 , 106,109,164,169, 284
56 , 57 , 58, 5 9 , 61, 62, 63,105,106,164, do desígnio - ll, 39, 40, 87, 88, 90,
284 91, 92, 9 4 , 95 , 96, 97 , 98, 9 9 , 100,
crítica ao - 48-49 101, 102,103,105,106, 107,109,
principais desenvolvimentos do - 40-41 169,285
princípio da razão suficiente e - 43-45 ontológico - 40, 63, 68, 69, 70, 74,
respostas às críticas ao - 49-54 75, 76, 77, 78, 82, 85,86,105,106,
Credulidade, princípio de -120,121,134, 164,166,169,195, 285
138,287 atributos de - 21, 41
Crença em Deus. - 18,19, 28, 39,106,109, auto-existente - 22, 29, 32, 36, 37, 41,
116,160,163,164,165,166,167,168,169 42, 4 4 , 52, 53 , 55 , 61,105, 169, 283,
Ver também ideias religiosas 284
fé por oposição à razão como base para bases para acreditar em - 109,127-137
-140-149 bondade de - 25, 27
James acerca da - 144 distinto - 32
Tomás de Aquino acerca de - 141-143 eternidade de - 34, 35, 37, 243, 259
Criação e a teoria do Big Bang - 101-104 ideias de
de Robinson - 36,109
Darwin, Charles - 96, 97, 98, 99,102,104, monoteístas - 32, 33
107,285, 293 panteístas - 32, 33
Dedutiva, Validade - 42 politeístas - 20
Demonstration of the Being and teístas - 101,103,104,105,106,115,
Attributes of God, A (Clarke) - 41 137,138,139,152, 153 ,154 ,155 ,
Dempski, William - 97 156,157,158,160,164,166,167,
Dependência absoluta - 111,112 169,170,171,179,182,183,185,

298
índice remissivo

186,192, 194 , 195 , 196 , 197 , 198 , Hades - 219,220,289


199 ,216, 217 , 235 , 237 , 242,245 , Hawking, Stephen - 59,103
252,261, Henoteísmo - 20, 32, 36, 37, 283
independência de - 22 Hera - 219
omnipotência de - 22, 23, 24, 25, 32, Hick, John - 12, 63,187,188,189,190,191,
41,174,175 ,177 ,178 ,185 192,271, 272, 273, 274,275,276,277,
Diálogos sobre a Religião Natural (Hume) 278,279, 280,281, 282,
- 41, 49, 87, 88, 91 , 99 acerca da realidade divina - 273-279
Distinção de Deus - 32 acerca do pluralismo - 12, 273, 275, 276,
Divina, crença na intervenção - 206, 215 277, 278, 280, 281,282, 291
Divino, presença do - 113,114,115, 274, Elinduísmo - 15, 32,121,127,130,166, 221,
286 265, 266,267,269,271, 275
Hipótese
Eckhart, Mestre - 112,113,123,125,129 maneiras de responder à - 152
Edificação da alma, teodiceia para a - 187, religiosa de James - 152,154,168
188,191,192 Holland, R.F, - 206
Edwards, Jonathan - 253 Homero - 219, 220, 221
Eterno, definição de - 35-36 EJonesf to God (Robinson) - 19
Eternidade de Deus - 35, 37, 259 Hume, David - 41, 42, 4 9 , 51, 87, 88, 99,
«Ética da Crença, A» (Clifford) - 144,145, 100,101,103,107,193, 202, 203, 204,
163,294 205, 206, 207, 208, 209, 210, 212, 213,
Exclusivismo - 268, 269, 270, 272, 273,274, 214, 215, 216, 217, 218, 285, 288, 289
281,282, 291 acerca de milagres - 202-217
Experiências Huxley, Aldous - 127, 131
experiências religiosas místicas - 109,
116,120,122,127,129,130,133,134, Idea of the Holy, The (Otto) - 294
135.137.138 Ilusórias, experiências - 115,117,132,134,
experiências religiosas não místicas - 135,137 ,138
116.120.134.138 Imortalidade
ilusórias por oposição a verídicas - 115, argumento científico a favor da - 229
117.132.134. 135 . 137 .138 argumento filosófico a favor da - 225,
interpretação por oposição a - 130,131 226,228,238, 289
Extra-sensorial, Superpercepção - 234, 235 argumento teológico a favor da - 235,
hipótese da - 234 289
concepção homérica por oposição à
Fariseus - 222 platónica - 219, 220, 221, 222, 223,
Fé 224, 225,226, 289
razão por oposição a - 139,140,141, contra a - 236, 237, 289
142,143,144,145,147,148,149,158, individual por oposição a não
160,168,287 individual - 221
Fédon (Platão) - 220, 221 inteligibilidade da - 223
Filosofía da religião - 11,12 ,15,16 ,17,18 , Inclusivismo - 271, 273, 274, 281, 282, 291
128,167, 248 Independência de Deus - 22
Ver também Liberdade humana
Gaunilo - 72, 73, 74, 284 Interpretação por oposição a experiência -
Guilherme de Ockham - 253 130,131,152

299
introdução à Filosofia da Religião

Ioga -125 problema lógico do - 174, 288


Islamismo - 15, 32, 36,121,166, 222, 265, sem sentido - 181, 288
266, 267, 268 Materialismo - 228
McTaggart, J.M.E. - 236, 237, 289
Jainismo ~ 166, 221 Meditação -125
James, William - 57,105,106, n ó, 127,140, Médium, definição de - 229, 230, 231, 232,
144 234
í. acerca da crença religiosa - 149-154 Mediúnicos, fenómenos - 229, 230, 238
acerca da experiência mística - 136 Milagres - 1 8 ,143,199, 200, 201, 202, 203,
Jesus - 1 5 , 110,121,127, 199 , 265, 267, 268, 204, 205, 207, 209, 210, 211, 215, 216,
280 217,218, 288,289
João da Cruz, S. - 126 a definição de Hume - 203, 216
Judaísmo - 15, 27, 32, 36,121,166, 265, Bultmarm acerca dos - 19,199, 200,
266,267,275,276 201, 202, 217
ciência por oposição a - 199-201
Kalam, argumento cosmológico - 58, 59, coincidência feliz por oposição a - 206
61, 293 Flume acerca de - 202-217
Kant, Immanuel - 59, 74, 75, 227, 285, 290 invisíveis - 205
intervenção divina e - 206, 215
Leibniz, Gottfried - 41, 45,175 significado estrito de - 202
Liberdade humana significado popular de - 202
definição de - 242, 243, 244, 252, 253, visíveis - 205
262,290 Miller, Kenneth R. - 13, 98,104
predestinação por oposição a - 241,242, Místicas, experiências religiosas - 120,122,
243, 245,246, 248, 252, 253, 262, 290 127, 137 ,138
presciência divina por oposição a - 18, como base racional para a crença - 116,
36,241, 242, 245, 246,246,247,248, 128
249,250,251, 252, 253, 255, 256, 257, extrovertidas -■ 122
258, 259, 260,261, 262, 290, 291 introvertidas - 122,124,127,129
primeira ideia de - 243, 244, 245, 253 o estudo de James sobre - 136-137
segunda ideia de - 244, 245, 247, 253 perspectiva de Broad sobre - 77 , 92, 9 3 ,
Livre-arbítrio, defesa com base no - 177, 127,131,133,134,135,136,137,138,
179,180,187,198,241, 242, 248,288 214,230,234,293
Locke, John - 143, 243, 244, 290 Rejeição por Russell das - 132
Lourdes, França - 199 Tese da unanimidade das - 127,128,129,
Ver também Milagres 130,131,134,136,287
Lucrecio - 228, 290 Mística, tradição católica - 126
Monologium (Anselmo) - 30, 35, 63, 67,
Macbeth - 115,117,128 68
Maimónides - 21 Monoteísmo - 20, 32, 33 , 36, 37 , 270, 283
Mal Moore, G.E. - 192,193, 194 , 288
como base racional a favor do ateísmo - Moral, mal - 188,191
18, 37,179 Moralidade - 27, 28, 29
moral por oposição a natural - 188,191 More, Henry - 93
problema indiciário do - 182,187, 288

300
Índice remissivo

Morte, vida depois da - 1 7 ,18, 219, 220, Passado


221,222, 223, 224,225, 228,235,237, alterabilidade do - 249-251
238,239 ,289 poder de alterar o - 254-256
Ver imortalidade Paulo, São - 110, 222, 224
Mundiais, religiões - 275, 276 Plantinga, Alvin - 159,161,162,163,164,
diferenças teístas nas - 158-181 165,166,1Ó7,179, 287,2 9 5
exclusivismo nas -■ 268-270 Platão - 40,148, 220, 221, 226
inclnsivismo nas - 27-273 Plotino -113
pluralismo nas - 273-281 Pluralismo - 12, 273, 275, 276, 277, 278,
realidade divina nas - 268-282 280,281, 282, 291
Politeísmo - 20, 32, 36, 37,107, 275, 276,
Não mística, experiência religiosa - 116, 280,283
120,134,136,138, 286 Poseidon - 219
Natural, causa - 203, 206, 208, 211, 215, Possibilidade relativa por oposição a
216 absoluta - 22, 23
Natural, mal - 188,191,192 Predestinação divina em oposição a
Natureza liberdade humana - 241, 242, 243, 245,
lei da - 203, 206, 207, 208, 209, 210, 246,248,252, 253, 262, 290
211, 212, 214, 215, 216, 217, 218, 288, Presciência divina por oposição a
289 liberdade humana - 18, 36, 241, 242,
violação da - 207, 210, 217 245,246,246,247,248,249,250,251,
Nirvana -131, 267 252,253,255,256,257,259,260,261,
262, 290,291
Omnipotência de Deus - 22, 23, 24, 25, 32, Previdência por oposição a decreto - 246
41, 60,174,175,177,178,185 Princípio de credulidade - 119,120,121,
Ontológico, argumento a favor da 134.137.138.287
existência de Deus - 40, 63, 68, 69, 70, Princípio da razão suficiente {PRS} - 44, 45,
74,75, 76,77, 82, 8 5 ,8 6 ,105,106,164, 47, 50, 54, 55, 56, 57, 58, 61, 62,105,106
166,169,195, 285 verdade do
conceitos básicos de - 64-69 Prosiogíum (Anselmo) - 63
crítica ao - 72-80 Protestantismo - 241, 270
crítica de Gaunilo ao - 72-73 PRS. Ver princípio de Razão Suficiente
crítica de Kant ao - 74-76
de Anselmo - 69-72 Razão por oposição a fé - 139,140,141,142,
Opções 143.144.148.149.158.160.168.287
evitáveis - 150,151,191 Reencarnação - 222, 269,290
forçosas - 150,151,154,155 Religião - 11,12 ,15 ,16 ,17 ,18 ,19 , 28, 41,
Oração - 17,125, 262 4 9 , 58, 87, 88, 91 , 9 9 ,1 2 8 ,140,152, 154 ,
Ver também Meditação; Místicas, 159.167.168, 213, 219, 239, 248, 265,
experiências religiosas; Religiosa, 268,269,270, 271,272, 273, 274, 275,
experiência 280,281,291
Otto, Rudolph - i ll, 112,113, 286, 294 filosofia da - 11,12,15,16 ,17,18 ,128 ,
167,248
Paley, William - 91, 98 Religiosa, experiência - 18,110,111,112,
Panteísmo - 32, 33, 36, 283 113,114,115,116,120,122,127,133,138,
Paradoxo da pedra - 24 139.153.169, 276, 286

301
Introdução à Filosofía da Religião

Ver também Místicas, experiências Ver Desígnio, argumento do


religiosas Telelógico, sistema
Ressurreição do corpo - 222, 290 definição de - 92
Robinson, Bispo John - 19, 20, 21, 36,109 Teodiceias -187
Russell, Bertrand - 13, 42, 48,127,131,132, edificadoras da alma - 187
135 ,137,138,160, 236,289 Teologia - 15,16,101
acerca da experiência mística - 132 filosofia da religião por oposição a -15-16
í acerca da imortalidade - 236 natural -16
revelada - 16
Satanás - 20 Teresa, Santa - 130
Ver também Mal Thomas, Drayton - 231
Saulo - 110,111,114,115,116,121 Tillich, Paul - 19, 37 , 278
Ver também Paulo, São Transmigração das afinas - 221
Schleiermacher, Friedrich - 111,112, 286
Segundo Concílio do Vaticano e o Ulisses - 220
exclusivismo ■■ 272 Unanimidade, tese da - 127,128,129,130,
“sentimento de criatura” - 111,112 131,134,136, 287
Ser auto-existente - 22, 29, 32,36, 37,41,42, Universal, alma - 222, 290
4 4 , 46, 52, 53 , 55 , 61,105,169, 283, 284 Universo, conceitos do - 11, 20, 21, 33, 5 4 ,
Ser dependente - 42,44, 46, 47, 48,49, 50, 58, 59, 60, 87, 88, 90, 91, 92, 9 4 , 9 5 ,
51, 52, 53, 54, 55, 61, i ll, 112, 283 98, 99,100,101,102,103,104,105,107,
Sessão espírita - 229-230 270, 281, 283, 284,285
Sobrevivência, hipótese da - 234, 235 como máquina - 90, 94, 233
Sociedade para a investigação Psíquica monoteísmo e - 20-21
(Sd.P) - 229, 231 teoria do Big Bang - 98,102
Sócrates - 220, 221 Upanixades - 221, 267
Sofrimento - 166,175,179,180,181,182,
183,184,185,186,187,188,189,190, Validade dedutiva - 42
191,192, 195 ,198 Vandy, Edgar - 230, 231, 232, 233, 234, 289
mau em si - ISO Vazio - 125,126,131
sem sentido -181 Vida depois da morte - 17,18, 219, 220, 221,
Stace, WT. - 113,122,123,127,130,131 222,223,224,225,228, 235, 237, 238,
239,289
Teaching of the Mystics, The (Stace) - 130 Vixnu - 266
Teísmo - 12, 37, 38, 60, lo i, 105, 106, 107 , «vontade de acreditar, A» (James) - 144,
139,147, 153 ,1 5 4 , 156 ,164,166,107, 147,ISO
170,171,177,182,184, 185,187,193,195,
196,197,198, 218, 235, 237, 238, 261, Westminster, confissão de fé de - 241, 242,
262, 266, 284,288 294,295
Teístas - 101,103,104,115,139,152,153, Wykstra, Stephen - 166,184,185,186
160 ,16 7, 171,186,199,237
amigáveis, não amigáveis - 197 Zeus - 219
definição de - 36
risco assumido pelos - 156
Telelógico, argumento a favor da existência
de Deus - 225, 235, 239, 241, 289

302
Yerbo
é uma chancela

idfce

TRODUÇÃO À F IL O S O F IA DA R ELIG IÃ O
William L. Rowe

T I T U L O OR IG IN A L
Philosophy of Religion; an Introduction

Edição © BABEL, 2011


Texto: William L, Rowe, 2010

TR A D U Ç A O
Vítor Guerreiro

REVIS ÃO Cl EN TÍ RI CA
Desiderio Murcho

Este livro foi composto com os tipos


Leitura News e Leitura Sans por Guidesign
e impresso por Guide para a Verbo
em Março de 2011

ISBN
978-972-22-3022-3

DE PÓ SI TO LE G A L
0835633

BABEL
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