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índice
1. A ideia de Deus 19
2. 0 argumento cosmológico 39
3. 0 argumento ontológico 63
4. 0 argumento do desígnio (o antigo e o novo) 87
5. Experiência mística e religiosa 109
6. Fé e razão 139
7. 0 problema do mat 169
8. Milagres e a mundividência moderna 199
9. Vida depois da morte 219
10. Predestinação, presciência divina e liberdade humana 241
11. Pluralidade de religiões 265
li
Introdução à Filosofia da Religião
12
Agradecimentos
W.L.R.
13
Introdução
Temos de contar a religião, sem dúvida, juntamente com a arte e a ciência, entre
os aspectos mais fundamentais e ubíquos da civilização humana. Como tal, é
digna do escrutínio e do estudo mais cuidadosos. Mas a religião é um aspecto
tão complexo da vida humana e de tão vastas consequências que jamais uma
só disciplina poderá estudá-la exaustivamente. Por isto se estuda a religião em
diferentes disciplinas: filosofia, história, antropologia, sociologia, psicologia.
A filosofía da religião é um dos ramos da filosofia, como a filosofia da
ciência, a filosofía do direito e a filosofia da arte. Podemos compreender
melhor o que é a filosofia da religião começando pelo que não é. Em p ri
meiro lugar, não se pode confundir a filosofia da religião com o estudo da
história das principais religiões de acordo com as quais os seres humanos
têm vivido. Ao estudar a história de uma religião particular — o cristianismo,
por exemplo — leríamos algo sobre a sua origem a partir do judaísmo, a vida
de Jesus, a emergência da igreja cristã no seio do império romano, o desen
volvimento das doutrinas características da fé cristã. Pode-se levar a cabo
estudos semelhantes a respeito de outras religiões importantes: judaísmo,
islamismo, budismo, hinduísmo. Embora tais estudos sejam importantes
para a filosofía da religião e por vezes possa haver sobreposição de ambas as
áreas, não as podemos confundir.
Em segundo lugar, não se pode confundir a filosofía da religião com a
teolqgia^A teologia é uma disciplina em grande medida interior à religião.
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Introdução ã Filosofia da Religião
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Introdução
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Introdução à Filosofia da Religião
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Capítulo 1
A ideia de Deus
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Introdução à Filosofia da Religião
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Introdução
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introdução à Filosofía da Religião
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Capítulo 1
A ideia de Deus
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Introdução à Filosofia da Religião
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A ideia de Deus
velhote no C éu», surgiu uma ideia de Deus muito mais sofisticada, a que
Robinson se refere como a ideia de Deus «lá fora».
Mudar do Deus «lá em cima» para o Deus «lá fora» é mudar de uma
concepção de Deus como um ser localizado no espaço a uma certa distância
da Terra para uma concepção de Deus como algo distinto e independente do
mundo, Segundo esta ideia, Deus não está em qualquer local ou região do
espaço físico. É um ser puramente espiritual^ um ser pessoal, perfeitamente
bom, omnipotente, omnisciente, que criou o mundo, mas não faz parte dele.
É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, julga-o, orienta-o para
o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi lentamente
desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como
Agostinho, Boecio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem
sido a ideia dominante de Deus na civilização ocidental. Se rotulamos o Deus
«lá em cima» como «o velhote no Céu», podemos rotular o Deus «lá fora»
como «o Deus dos teólogos tradicionais». E é o Deus dos teólogos tradicio
nais que Robinson considera ter-se tornado irrelevante para as necessidades
das pessoas de hoje em dia. Quer Robinson tenha ou não razão — e é muito
duvidoso que tenha — é inegavelmente verdade que quando nós, que herdá
mos maioritariamente a cultura da civilização ocidental, pensamos em Deus,
o ser em que pensamos é em muitos aspectos importantes parecido com o
Deus dos teólogos tradicionais. Será útil, portanto, ao clarificar as nossas
próprias ideias acerca de Deus, explorar com maior detalhe a concepção de
Deus que surgiu no pensamento dos grandes teólogos.
OS ATRIBUTOS DE DEXi^.
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Introdução à Filosofia da Religião
Na sua grande obra, Summa Theologica, São Tomás de Aquino, que viveu no
século X III, procura explicar o que é para Deus ser omnipotente. Depois de
indicar que, para Deus, ser omnipotente é ser capaz de fazer tudo o que é _
possível, Tomás explica cuidadosamente que há dois tipos de possibilidade,
a possibilidade relativa e a possibilidade absoluta, e investiga a que tipo de
possibilidade se alude quando se afirma que a omnipotência de Deus é a capa
cidade de fazer tudo o que é possível. Algo é uma possibilidade relativa quando-
um ou mais seres podem fazê-lo. Voar por meios naturais, por exemplo, é pos
sível relativamente às aves mas não relativamente a meros seres humanos. Algo
é uma possibilidade absoluta, porém, se não é uma contradição nos termos...
Derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez é algo muito difícil de fazer,
mas não é uma contradição nos termos; na verdade, isso já foi ocasionalmente
feito. Mas derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez depois de este
nos ter colocado em xeque-mate não é apenas algo muito difícil de fazer: não
se pode fazer sequer, visto que é uma contradição nos termos. Tornar-se um
solteiro casado, fazer a mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada,
22
A ideia de Deus
derrotar alguém no xadrez depois de ele nos ter colocado em xeque-mate são
coisas que não são possíveis em sentido absoluto; são actividades que, implícita
ou explícitamente, envolvem uma contradição nos termos.
Tendo explicado os dois tipos diferentes de possibilidade, Tomás indica que
tem de ser à possibilidade absoluta que se alude quando se explica a omnipo
tência de Deus como a capacidade de fazer tudo o que é possível. Porque se nos
referíssemos à possibilidade relativa, a nossa explicação não seria mais do que
afirmar que «Deus é omnipotente» significa que Deus pode fazer tudo o que está
em seu poder. E embora seja seguramente verdade que Deus pode fazer tudo
o que está em seu poder, isso nada explica. «Deus é omnipotente», portanto,
significa que Deus pode fazer tudo o que não envolve contradição nos termos.
Quererá isto dizer que ha coisas que Deus não pode fazer? Num certo sentido,
significa precisamente isso. Deus não pode fazer a mesma coisa ser ao mesmo
tempo redonda e quadrada e não pode derrotar-me num jogo de xadrez depois
de eu o ter colocado em xeque-mate. Claro que Deus podia sempre colocar-me
em xeque-mate antes de eu conseguir fazer-lhe o mesmo. Mas se Deus — por
uma razão qualquer — pudesse fazer-me entrar num jogo de xadrez e deixar que
eu o colocasse em xeque-mate, então Deus não poderia ganhar aquele jogo de
xadrez. Poderia aniquilar-me e ao tabuleiro de xadrez, mas não poderia ganhar
aquele jogo. Portanto, há muitas coisas que Deus, apesar da sua omnipotência,
não pode fazer. Seria um erro, porém, concluir a partir daqui que o poder de
Deus é de algum modo limitado, que há coisas que Deus não pode fazer mas que
poderia fazer se o seu poder fosse maior. Pois o poder, como observa Tomás,
abrange apenas aquilo que é possível. E nada há que seja possível fazer mas que
Deus não possa fazer por falta de poder. Assim, conclui Tomás: «Tudo o que
implique contradição não está no âmbito da omnipotência divina, porque isso
não pode ter o aspecto da possibilidade. Pelo que é mais apropriado afirmar que
não se pode fazer tais coisas, do que afirmar que Deus não as pode fazer. »2
2, São Tomás de Aquino, Summa Jheologica, I, Q 25, art. 3, in The Basic Writings of Saint
Thomas Aquinas, ed. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).
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Introdução à Filosofa da Religião
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A ideia de Deus
Em qualquer dos casos há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é
omnipotente.
A solução deste quebra-cabeças é ver que criar uma pedra tão pesada
que Deus não a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos
atributos essenciais de Deus — o atributo da omnipotencia. Porquanto se
existe uma pedra tão pesada que Deus não tem o poder de a levantar, então
Deus não é omnipotente. Logo, se Deus tem o poder de criar tal pedra, tem
o poder de fazer com que lhe falte um atributo (omnipotência) que lhe é
essencial. Então, a solução adequada do quebra-cabeças é afirmar que Deus
não pode criar tal pedra, do mesmo modo que não pode praticar uma má
acção. Isto não significa, evidentemente, que haja uma pedra na série infi
nita das pedras que pesam mil quilogramas, dois mil quilogramas, três mil
quilogramas, quatro mil quilogramas, e por aí em diante, que Deus não possa
criar. No caso de uma má acção, Deus não pode praticar essa acção porque a
sua perfeita bondade lhe é essencial. No caso de uma pedra tão pesada que
não a possa levantar, Deus não pode criar tal pedra porque a sua omnipo
tência lhe é essencial.
Vimos que não se pode compreender a omnipotência de Deus como algo
que inclui o «poder» de causar estados de coisas logicamente impossíveis ou
de realizar acções inconsistentes com seus os atributos essenciais. E quanto
a mudar o passado? Evidentemente, Deus podia ter impedido que Barack
Obama se tornasse presidente dos Estados Unidos. Mas poderá Deus fazê-lo
agorad Um estado de coisas em que Obama nunca tenha sido presidente não
é uma impossibilidade lógica; tão-pouco parece haver inconsistência entre
causar esse estado de coisas e a bondade de Deus ou qualquer outro dos seus
atributos essenciais. Mas parece que não está agora ao alcance de qualquer
ser, mesmo um ser omnipotente, fazer que Obama nunca tenha sido presi
dente. Assim, embora tenhamos aperfeiçoado a nossa compreensão da noção
de omnipotência e visto que a omnipotência de Deus não é o poder de causar
seja o que for em absoluto, não podemos afirmar ter dado uma explicação
completa da ideia de que Deus é omnipotente. Pois, como acabámos de ver,
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Introdução à Filosofia da Religião
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A ideia de Deus
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Introdução à Filosofia da Religião
coisas consiste apenas no facto de Deus as ter ordenado? Ou será que Deus
ordena que se faça estas coisas porque são correctas? Se formos pela segunda
opção, que Deus ordena estas coisas porque vê que são moralmente correctas,
parece que estamos a sugerir que a moralidade existe independentemente da
vontade ou dos mandamentos de Deus. Mas se formos pela primeira opção,
que é o facto de Deus as querer ou ordenar que torna essas coisas correctas,
parece que estamos a sugerir que não haveria bem nem mal se não houvesse
qualquer ser divino para decretar tais mandamentos. Embora ambas as res
postas sejam problemáticas, a que predomina no pensamento religioso acerca
de Deus e da moralidade é que aquilo que Deus ordena é moralmente bom
independentemente dos seus mandamentos. O facto de Deus nos ordenar
certas acções não as torna moralmente rectas; estas são moralmente rectas
independentemente das suas ordens e Deus ordena-as porque vê que são
moralmente rectas. Assim, em que sentido depende a nossa vida moral de
Deus? Ainda que a moralidade em si não dependa necessariamente de Deus,_
talvez o nosso conhecimento da moralidade dependa dos mandamentos divi
nos (ou pelo menos seja auxiliado por eles). Talvez os ensinamentos da reli
gião levem os seres humanos a ver que certas acções são moralmente rectas
e que outras são moralmente erradas. Além disso, pode ser que a crença em
Deus ajude a prática da moralidade. Pois embora cumprir o dever por res
peito ao próprio dever seja uma parte importante da vida moral, talvez seja
exagerado esperar que os seres humanos comuns sigam inflexivelmente a
vida do dever, mesmo sem razões para associar a moralidade ao bem-estar e à
felicidade. A crença em Deus pode ajudar a vida moral dando uma razão para
pensar que a relação entre ser boa pessoa e ter uma vida boa não é meramente
acidental. Ainda assim, o que faremos com a dificuldade de que certas coisas
são moralmente rectas independentemente do facto de Deus no-las ordenar?
Considere-se o facto de Deus acreditar que 2 + 2 = 4. Será 2 + 2 = 4 verdade
porque Deus acredita que é? Ou será que Deus acredita que 2 + 2 = 4 por
ser verdade que 2 + 2 = 4? Se vamos pela última, como parece que devemos
fazer, estamos a sugerir que certas afirmações matemáticas são verdadeiras
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A ideia de Deus
Auto-existência
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Introdução à Filosofia da Religião
3. Santo Anselmo, Monologium, VI, in Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N.
Deane (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1962).
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A ideia de Deus
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Introdução à Filosoña da Religião
facto acerca de algo (o calor da fogueira) que se explica não por outra coisa
qualquer mas pela natureza da própria coisa (a fogueira). Anselmo espera que
se virmos uma vez que um determinado facto acerca de algo se pode expli
car não por outra coisa qualquer mas pela natureza dessa coisa, a ideia de .
auto-existência deixará de nos parecer tão estranha. Quer seja ou não assim,
1devia ser claro tanto o que se quer dizer com auto-existência como por que
razão os teólogos tradicionais sentiram que se tratava de uma caracterís
tica fundamental do ser divino. Ser um auto-existente é ter na sua própria
natureza a explicação da sua existência. Como nada pode existir cuja exis
tência seja ininteligível, sem qualquer explicação (o princípio fundamental
de Anselmo), e como o ser supremo não seria supremo se a sua existência se
devesse a outra coisa, a conclusão inevitável é que a explicação da existência
de Deus (o ser supremo) está na sua própria natureza.
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Introdução à Filosofia da Religião
mesmo tempo em todos os lugares. Deus no seu todo está em Nova Iorque
e em Los Angeles ao mesmo tempo — na verdade, todo o tempo. Mas esta
perspectiva entra em conflito com a lei do espaço. Então a ideia de Deus que
emergiu na civilização ocidental é a de um ser supremo independente das leis
,.da natureza e que transcende mesmo a lei fundamental do espaço.
A ideia de que Deus não está sujeito à lei do tempo relaciona-se intima
mente, como veremos, com um dos significados de eternidade. De acordo
com a lei do espaço, nada pode existir inteiramente em duas regiões dife
rentes do espaço ao mesmo tempo. De acordo com a lei do tempo, nada pode
existir inteira e simultaneamente em dois momentos diferentes. Para com
preender a lei do tempo, basta considerar o exemplo do homem que existiu
ontem, existe hoje e existirá amanhã. O homem no seu todo existe em cada
um destes momentos diferentes. Isto é, não se trata de apenas o seu braço,
por exemplo, ter existido ontem, a sua cabeça existir hoje e as suas pernas
existirem amanhã. Mas ainda que o homem no seu todo exista em cada um
destes três momentos, o todo da sua vida temporal não existe em cada um
destes momentos. A parte temporal da sua vida que existiu ontem não existe
hoje; quando muito o homem pode participar nela recordando-a. E a parte
temporal da sua vida que existirá amanhã não existe hoje; quando muito
pode participar nela antecipando-a. Embora o homem no seu todo exista em
cada um destes três momentos, a sua vida inteira não existe em qualquer um
deles. A sua vida, portanto, divide-se em muitas partes temporais e em cada
momento particular só uma destas partes temporais lhe é presente. Assim,
a vida de uma pessoa exemplifica a lei do tempo. Pois de acordo com essa
lei as partes temporais individuais da vida de uma pessoa não podem estar
presentes ao mesmo tempo. Por razões que não precisamos de desenvolver
aqui, os grandes teólogos medievais hesitavam em dividir a vida de Deus em
partes temporais e, portanto, adoptaram a perspectiva de que Deus trans
cende a lei do tempo tal como transcende a lei do espaço. Ainda que seja
quase ininteligível, adoptaram a perspectiva, como Anselmo a exprime, de
que «a natureza suprema existe num lugar e num momento de tal maneira
34
A ideia de Deus
«Tudo o que está sujeito ao tempo, mesmo aquilo que não tem começo e que não
terá hm numa vida coextensiva com a infinidade do tem po — e foi assim que
Aristóteles concebeu o mundo —, é tal que não se pode correctam ente conside
rar eterno. Porquanto não abrange nem inclui o todo da vida infinita ao mesmo
tempo, dado que não abrange o futuro, que está ainda por vir. Logo, só o que
abrange e possui ao mesmo tempo toda a plenitude da vida infinita, da qual nada
de posterior nem de anterior está ausente, se pode com justeza chamar etern o .»5
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introdução à Filosofia da Religião
tinguir. Defenderam que Deus está fora do tempo, que não está sujeito à sua
lei fundamental. Outros teólogos, contudo, adoptaran! a perspectiva de que
Deus é eterno no primeiro sentido — que tem duração infinita em ambas as
direcções temporais. O teólogo inglês do século x v m Samuel Clarke, por
exemplo, rejeitou como absurda a ideia de que um ser pudesse transcen
der o tempo e adoptou a perspectiva de que ser eterno é simplesmente ser
perpétuo, existindo no tempo mas sem ter começo nem fim. Quando mais
tarde estudarmos o problema da presciência divina e da liberdade humana,
reconsideraremos estes dois sentidos de eternidade e observaremos as suas
implicações para a doutrina da presciência divina. De momento, contudo,
basta reconhecer que a eternidade é um elemento central na ideia tradicional
de Deus e que foi interpretada de duas maneiras distintas.
Temos vindo a explorar algumas características fundamentais que
constituem a ideia de Deus, que até agora têm sido centrais para a tradi
ção religiosa ocidental. Segundo esta ideia, Deus é um ser perfeitamente
bom, criador do mundo mas distinto e independente deste, omnipotente,
omnisciente, eterno e auto-existente. Ao explorar esta ideia de Deus, vimos
também muitas outras concepções do divino associadas ao politeísmo, ao
henoteísmo, ao monoteísmo e ao panteísmo. A ideia de Deus que será de
importância central para este livro, porém, foi elaborada pelos teólogos tra
dicionais ocidentais. É a ideia central de Deus das três grandes religiões da
civilização ocidental: judaísmo, cristianismo e islamismo. Até aqui usámos a
expressão de Robinson «o Deus lá fora» e a expressão «o Deus dos teólogos
tradicionais» para referir esta ideia de Deus. Doravante, contudo, chama
remos a esta perspectiva acerca de Deus «ideia teísta de Deus» . Ser teísta,
portanto, é acreditar na existência de um ser perfeitamente bom, criador
do mundo mas distinto e independente deste, omnipotente, omnisciente,
eterno (em qualquer dos nossos dois sentidos) e auto-existente. Um ateísta
é alguém que acredita que o Deus teísta não existe, ao passo que um agnós _
tico é alguém que ponderou na ideia teísta de Deus mas que não acredita na
existência nem na inexistência do Deus teísta.
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A ideia de Deus
REVISÃO
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Introdução à Filosoña da Religião
ESTUDO COMPLEMENTAR
.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1. Como definiría o termo «Deus»? Se a sua definição de Deus é diferente
da ideia teísta de Deus, explique as diferenças e dê razões em função das
quais a sua ideia de Deus possa ser melhor.
2. Que razões apresentaria para mostrar que Deus existe, tendo em conta
o modo como definiu Deus? Que razões poderia alguém dar para rejeitar
quer a sua definição de Deus quer a sua afirmação de que Deus (como o
leitor o definiu) existe realmente? Como lhes responderia?
. ......
, ..
■ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .
.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . - V . : , . ™ . - . -
................. :
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Capítulo 2
0 argumento cosmológico
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Introdução à Filosofia da Religião
6. São Tomás de Aquino, Summa Theologica, la, 2, 3, em The Basic Writings of Saint
Thomas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).
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O argumento cosmológico
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introdução à Filosoña da Religião
argumento procura provar que o ser aut o existente é o Deus teísta ou seja,
que tem as características que vimos constituir os elementos fundamentais
da ideia teísta de Deus. Consideraremos sobretudo a primeira parte do argu
mento, pois é contra a primeira parte que os filósofos, de Hume a Bertrand
Russell, têm apresentado objecções muito importantes.
Ao formular a primeira parte do argumento cosmológico vamos usar
dois conceitos importantes: o conceito de ser dependente e o conceito de ser
auto-existente. Por ser dependente entendemos um ser cuja existência se
explica pela actividade causal de outras coisas. Recordando a divisão de
Anselmo nos três exemplos — «explicado por outro», «explicado por nada»
e «explicado por si próprio» — é claro que um ser dependente é um ser cuja
existência se explica por outro ser. Por ser auto-existente entendemos um
ser cuja existência se explica pela sua própria natureza. Esta ideia, como
vimos no capítulo anterior, é um elemento essencial do conceito teísta de
Deus. Mais uma vez, nos termos dos três exemplos de Anselmo, um ser auto-
- existente é um ser cuja existência se explica por si própria. Munidos destes
dois conceitos, o de ser dependente e o de ser auto-existente, podemos agora
formular a primeira parte do argumento cosmológico:12
3
Validade dedutiva
Antes de olhar criticamente para cada uma das suas premissas, note-se que
este argumento é, para usar uma expressão do vocabulário lógico, dedutiva
mente válido. Para saber se um argumento é ou não dedutivamente válido,
basta que perguntemos: é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras
O argumento cosmológico
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Introdução à Filosofia da Religião
A nossa primeira premissa afirma que cada ser que existe (ou já existiu) ou
pertence ao género A ou ao género C. Nega que haja seres do género B. E é
esta negação que torna a primeira premissa simultaneamente importante e
controversa. A verdade óbvia a não confundir com esta negação é a verdade
de que todo o ser ou pertence ao género A ou não pertence ao género Ar'
Embora seja verdade, isto nem é muito importante nem controverso.
Vimos que Anselmo adoptou como princípio fundamental a ideia de que
para tudo o que existe há uma explicação da sua existência. Como este prin
cípio fundamental nega que exista ou que tenha existido algo do género B, é
óbvio que Anselmo aceitaria a primeira premissa do nosso argumento cosmo
lógico. Os defensores setecentistas do argumento estavam também conven
cidos da verdade do princípio fundamental atribuído a Anselmo. E porque
estavam convencidos da sua verdade, aceitaram prontamente a primeira pre
missa do argumento cosmológico. Mas, no século xvni, o princípio fundamen
tal de Anselmo foi mais amplamente elaborado e recebeu o nome principiada^
razão suficiente. Uma vez que este princípio (doravante, PRS) desempenha um
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O argumento cosmológico
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introdução à Filosofia da Religião
A segunda premissa
De acordo com a segunda premissa, nem todos os seres que existem podem
depender de outros — isto é, nem todos podem dever a explicação da sua
^.existência a outro ser ou seres. Supostamente, o defensor do argumento pensa
que há algo de fundamentalmente errado na ideia de que todo o ser que existe
depende de outros, que cada ser existente foi causado por outro ser que por
sua vez foi causado por outro ser, e por aí em diante. Mas o que pensa ele
ao certo que esteja errado nesta ideia? Para nos ajudar a compreender o seu
pensamento, vamos simplificar as coisas supondo que agora apenas existe
uma coisa, A1, talvez um ser vivo, cuja existência foi causada por outra coisa,
A2, que pereceu pouco depois de ter causado a existência de Ar Suponha-se
além disso que a existência de A2foi causada de modo semelhante há algum
tempo por A3 e a de A3 por A4, e por aí fora em direcção ao passado. Cada um
destes seres depende de outro; deve a sua existência ao objecto anterior da
série. Se nada tivesse existido além destes seres, então o que a segunda pre
missa afirma não seria verdade. Pois se todo o ser que existe ou já existiu é um
A e foi produzido por um A anterior, então todo o ser que existe ou já existiu
dependeria de outro e, consequentemente, a premissa dois do argumento
cosmológico seria falsa. Assim, se o defensor do argumento cosmológico tiver
razão, tem de haver algo errado na ideia de que todo o ser que existe ou existiu
é um A e que todos formam uma série causal: Al causado por A2, A2 causado
por A3, Ag causado por A4„. An causado por Aníl. Como se propõe o defensor
do argumento cosmológico mostrar que há algo de errado nesta perspectiva?
Uma ideia popular mas incorrecta de como o defensor tenta mostrar
que algo está errado nesta perspectiva, a perspectiva de que todo o ser pode
depender de outro, é a de que a rejeita com o seguinte argumento:
Logo,
3. Nem todo o ser pode ser dependente.
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Introdução à Filosofía da Religião
que perguntamos por que razão existem e sempre existiram seres A. Não
basta afirmar que sempre houve seres A a produzir outros A — não podemos
explicar por que razão sempre houve seres A afirmando que sempre houve
seres A. Tão-pouco, supondo que nunca existiram senão seres A, podemos
explicar o facto de sempre ter havido A apelando a qualquer outra coisa que
não seja um A — pois tal coisa nunca teria existido. Assim a suposição de que
as únicas coisas que existem ou já existiram dependem de outras deixa-nos
com um facto para o qual não pode haver explicação — nomeadamente, o
facto de haver seres dependentes em vez de não haver.
48
O argumento cosmológico
uma explicação para cada urna das coisas que formam a colecção. Dado que,
■ ria colecção (ou série) inñnita de seres dependentes, cada ser que a compõe
tem de facto uma explicação — em virtude de ter sido causado por um mem
bro precedente da colecção — a explicação da colecção, segundo a crítica, já
foi dada. Como Hume comentou:
Respostas às críticas
7. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, pt. IX, org. H.D. Aiken (Nova
Iorque: Hafner Publishing Company, 1948), pp. 5 9 -6 0 . [Diálogos Sobre a Religião
Natural, Edições 70, Lisboa, 2005.]
49
Introdução à Filosofia da Religião
dentes é ela própria um ser dependente. Mas o mero facto de pensar que
tem de haver uma explicação não só para cada membro da colecção de seres
dependentes mas para a própria colecção não dá ao defensor do argumento
uma razão suficiente para concluir que tem de ver a própria colecção como
um ser dependente. A colecção de seres humanos, por exemplo, não é segu
ramente ela própria um ser humano. Tendo admitido isto, contudo, podemos
ainda assim procurar explicar por que razão há uma colecção de seres huma -
nos, por que razão há coisas como seres humanos de todo em todo. Pelo que o
mero facto de se exigir uma explicação para a colecção de seres dependentes
não prova que quem pede a explicação tem de supor que a própria colecção
é apenas mais um ser dependente.
A segunda crítica atribui o seguinte pedaço de raciocínio ao defensor do
argumento cosmológico:
Como vimos ao apresentar esta crítica, os argumentos deste género não são
normalmente de confiança. Seria um erro concluir que uma colecção de
objectas é leve apenas porque cada objecta da colecção é leve, porquanto, se
a colecção contém muitos objectas, pode ser muito pesada. Por outro lado,
se sabemos que cada berlinde pesa mais de 28 gramas, podemos inferir vali
damente que a colecção de berlindes pesa mais de 28 gramas. Felizmente,
contudo, não temos de decidir se a inferência de 1 para 2 é válida ou inválida.
Não precisamos de resolver esta questão porque o defensor do argumento
cosmológico não precisa de usar esta inferência para estabelecer que a colec
ção de seres dependentes tem de ter uma explicação. Não precisa de usar esta
inferência porque tem no PRS um princípio do qual se segue imediatamente
que a colecção de seres dependentes tem uma causa ou explicação. Pois,
50
O argumento cosmológico
51
Introdução à Filosofia da Religião
n ...
; s/ s✓ s✓ x¡/
52
O argumento cosmológico
3__________d?___d,
d
53
Introdução ã Filosoña da Religião
O
A verdade do PRS
54
O argumento cosmológico
55
introdução à Filosofia da Religião
pode conhecer) a verdade do PRS intuitivamente. Querem com isto dizer que,
se compreendermos integralmente e reflectirmos no que o PRS afirma, pode
mos ver que tem de ser verdadeiro. Sem dúvida que há ahrmações cuja ver
dade se conhece intuitivamente. «Todos os triângulos têm exactamente três
.ângulos» ou «Nenhum objecto físico pode ocupar duas regiões diferentes do
espaço ao mesmo tempo» são exemplos de afirmações cuja verdade podemos
apreender compreendendo-as apenas e reflectindo nelas. A dificuldade de
ahrmar que se conhece a verdade do PRS intuitivamente, contudo, está em
que diversos filósofos bastante capazes não conseguem, após uina reflexão
cuidada, apreender a sua verdade, e alguns desenvolveram argumentos sérios
sustentando a conclusão de que o princípio é de facto falso.8É evidente, por
tanto, que nem todos os que reflectiram no PRS Acaram persuadidos da sua
verdade e há quem esteja convencido de que há boas razões para pensar que
é falso. Mas embora o facto de alguns pensadores capazes não conseguirem
apreender a verdade do PRS, e de poderem mesmo argumentar que é falso,
seja uma razão decisiva para pensar que o PRS não é uma verdade tão óbvia
como, por exemplo, «Nenhum objecto físico pode ocupar duas regiões dife
rentes do espaço ao mesmo tempo», não basta para estabelecer que o PRS
não é uma verdade da razão. Talvez nesta fase tudo o qué se pode fazer seja
reflectir cuidadosamente no que o PRS añrma e formar um juízo autónomo
sobre se é uma verdade fundamental acerca do modo como a realidade tem
de ser. E, se após se reflectir cuidadosamente no PRS se tiver esta impressão,
pode-se ter justihcação racional para o considerar verdadeiro e, tendo visto
que sustenta as premissas do argumento cosmológico, aceitar como verda
deira a conclusão deste argumento.
A segunda maneira pela qual os filósofos e os teólogos que aceitam o
PRS procuraram defendê-lo é aArmando que, embora se possa desconhecer
a sua verdade, é ainda assim uma pressuposição da razão, um pressuposto8
8. Para uma breve explicação de dois destes argumentos ver o prefácio do meu The Cos
mological Argument (Nova Iorque: Fordham University Press, 1998).
O argumento cosmológico
57
Introdução à Filosofia da Religião
58
O argumento cosmológico
;9. Ver a famosa palestra de Stephen Hawking «The Beginning of Tim e», http: //www.
hawking.org.uk/lectures/bot. html.
59
Introdução à Filosofia da Religião
60
O argumento cosmológico
REVISÃO
61
Introdução à Filosofia da Religião
ESTUDO COMPLEMENTAR
11. Alguns filósofos pensam que Anselmo apresenta um argumento diferente e mais
cogente no Capítulo 3 do seu Proslogium.. Para este ponto de vista, ver Charles Hart-
shorne, Anselm’s Discovery (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1965} e Norman
Malcom, «Anselm’s Ontological Arguments», Vie Philosophical Review LXIX, n.° 1
(i960), pp. 41-62. Para uma explicação esclarecedora das intenções de Anselmo no
Proslogium, II e III, e em recentes interpretações de Anselmo, ver o ensaio de Arthur C.
McGill, «Recent Discussions of Anselm’s Argument» em The Many-Faced Argument,
org. John Hick e Arthur C. McGill (Nova Iorque: The MacMillan Co., 1967), pp. 33-110.
[Santo Anselmo, Proslogion, trad. Costa Macedo, Porto: Porto Editora, 1996.]
Introdução à Filosoña da Religião
ras. A ideia, contudo, continuou a assombrá-lo até que um dia se lhe tornou
clara a prova que procurara tão arduamente. É esta prova que Anselmo apre
senta no segundo capítulo do Proslogium.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
C o is a s q u e e x is t e m C o is a s q u e n ã o e x is t e m
Cada uma das coisas (ou géneros de coisas) apresentadas até agora tem a
seguinte característica: logicamente, podia estar no outro lado da linha.
A Fonte da Juventude, por exemplo, está no lado direito da linha mas logica
mente nada há de absurdo na ideia de que a Fonte da Juventude podia estar
no lado esquerdo. De igual modo, embora os cães existam, podemos segura
mente imaginar, sem cair em qualquer absurdo lógico, que os cães podiam
não ter existido: podiam estar no lado direito da linha. Registemos então
esta característica das coisas até agora apresentadas, introduzindo a ideia de
coisa contingente: algo que podia logicamente estar no lado da linha oposto
ao lado onde efectivamente está. O planeta Marte e o Abominável Homem
das Neves são coisas contingentes apesar de o primeiro existir e o último não.
64
O argumento ontológico
65
introdução à Filosofia da Religião
12. Anselmo admite que se possa pronunciar a frase «Deus não existe» sem que se tenha
no entendimento o objecto ou a ideia que a palavra Deus refere. Ver Santo Anselmo,
Prosí.ogíum, IV, em Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N. Deane (La Salle,
IL: Open Court Publishing Co., 1962). Mas quando se compreende de facto o objecto
que a palavra refere, então quando se usa a palavra numa frase que nega a existência
desse objecto, tem de se ter esse objecto no entendimento. É duvidoso, contudo, que
Anselmo pensasse que as expressões incoerentes ou contraditórias como quadrado
redondo refiram objectos que podem existir no entendimento.
66
O argumento ontológico
13. Anselmo fala de um ser em vez de o ser mais grandioso do que o qual nenhum ser se
pode conceber. O seu argumento é mais fácil de apresentar se exprimirmos a sua ideia
de Deus em termos de o ser. Em segundo lugar, para evitar as conotações psicológicas
de se pode conceber substituí essa expressão por possível
67
Introdução à Filosofia da Religião
àquilo que é tanto mais grandioso quanto melhor ou mais digno é — a sabe
doria, por exemplo».14 Contraste-se a sabedoria com o tamanho. Anselmo
ahrma que a sabedoria é algo que contribui para a grandiosidade de uma
coisa. Se algo passa a ter mais sabedoria do que antes (permanecendo as
, outras características na mesma), então esse algo tornou-se mais grandioso,
melhor, mais digno do que antes. Anselmo ahrma que a sabedoria é uma
qualidade produtora de grandiosidade. Mas o mero facto de algo aumentar
em tamanho (grandeza física) não torna esse algo melhor do que era antes.
Pelo que o tamanho, ao contrário da sabedoria, não é uma qualidade produ
tora de grandiosidade. Por maior do que Anselmo entende melhor do que,
superior a, ou mais digno do que, e considera que algumas características,
como a sabedoria e a bondade moral, são produtoras de grandiosidade, na
medida em que qualquer coisa que as tenha se torna uma coisa melhor do
que seria se não as tivesse (mantendo-se iguais as suas outras características).
Chegamos agora ao que podemos chamar a ideia crucial no argumento
ontológico de Anselmo. Anselmo pensa que a existência na realidade é uma
qualidade produtora de grandiosidade. Como devemos entender esta ideia?
Será que Anselmo quer dizer que uma coisa que existe é mais grandiosa do
que uma que não existe? Embora Anselmo não coloque esta questão nem
lhe responda, é talvez razoável pensar que não queria dizer isto. Isto porque,
quando discute a sabedoria como uma qualidade produtora de grandiosi
dade, Anselmo tem o cuidado de não añrmar que qualquer coisa sábia é
melhor do que qualquer coisa néscia; Anselmo reconhece que uma pessoa
justa mas néscia pode ser melhor do que uma pessoa sábia mas injusta.15
Sugiro que Anselmo queria dizer que qualquer coisa que não existe mas
podia ter existido (que está no lado direito da nossa linha mas podia estar
no esquerdo) seria mais grandioso do que é se tivesse existido (se estivesse
no lado esquerdo da nossa linha). Anselmo não está a comparar duas coisas
68
O argumento ontológico
69
Introdução à Filosofia da Religião
70
O argumento ontológico
71
Introdução à Filosoña da Religião
A crítica de Gaunilo
17. O breve ensaio de Gaunilo, a resposta de Anselmo e várias das principais obras de
Anselmo, traduzidas por Sidney N. Deane, estão coligidas em Saint Anselm: Basic
Writings.
72
O argumento ontológico
existe, então essa é uma ilha mais grandiosa do que a qual é possível haver
outra. Mas é impossível que a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma é
possível seja uma ilha mais grandiosa do que a qual é possível haver outra.
Portanto, a ilha mais grandiosa do que qual nenhuma é possível tem de exis
tir. Acerca deste argumento, comenta Gaunilo:
«Se um homem tentasse m ostrar-m e através de tal raciocínio que esta ilha existe
realmente e que não se devia duvidar mais da sua existência, das duas, uma: ou
pensava que ele estava a brincar ou já não sabia qual de nós era o maior tolo: eu
mesmo, supondo que aceitava esta prova; ou ele, se supusesse que tinha estabe
lecido com alguma certeza a existência desta ilh a .» 18
73
Introdução à Filosofia da Religião
nenhum é possível» pareça ter significado, assim que tentamos obter uma ideia
clara de como seria tal ser, descobrimos que não podemos sequer formar uma
ideia coerente dele. Isto porque nos pede para pensar numa coisa finita e limi
tada — um jogador de hóquei ou uma ilha — para depois pensarmos que essa
coisa exibe perfeições infinitas e ilimitadas. Talvez então, visto que o raciocínio
de Anselmo se aplica apenas a coisas possíveis, Anselmo possa rejeitar que seja
aplicável à ilha de.Gaunilo, com base em que a ilha mais grandiosa do que a
qual nenhuma é possível é, como o quadrado redondo, uma coisa impossível.
A crítica de Kant
74
O argumento ontológico
75
Introdução à Fílosoña da Religião
19. Talvez a apresentação mais sofisticada da objecção segundo a qual a existência não
é um predicado seja a de William P. Alston, «The Ontological Argument Revisited»,
The Philosophical Reinem, LXIX (i960), pp. 452-474.
76
O argumento ontológico
outro mais grandioso. Se assim for, portanto, o Deus de Anselmo não seria
um objecto possível, assim como não o é «o número natural maior do que
o qual nenhum é possível». O simples facto de haver graus de grandiosi
dade, contudo, não nos permite concluir que o Deus de Anselmo é como
<<o número natural maior do que o qual nenhum é possível». Os ângulos,
por exemplo, têm graus de tamanho — um ângulo pode ser maior do que
outro — mas não é verdade que, independentemente do tamanho de um
ângulo, seja possível haver um maior. É logicamente impossível que um
ângulo exceda a dimensão de quatro ângulos rectos, A noção de ângulo, ao
contrário da noção de número natural, implica um grau de tamanho que
é impossível ultrapassar. Será o Deus de Anselmo como o maior número
natural, e portanto impossível, ou como o maior ângulo, e portanto possível?
Alguns filósofos argumentaram que o Deus de Anselmo é impossível.20 Mas
os argumentos a favor desta conclusão não são persuasivos. Talvez por isso se
interprete melhor esta objecção não como prova de que o Deus de Anselmo
é impossível, mas como o levantar da questão de algum de nós estar ou não
em condições de saber que «o ser mais grandioso do que o qual nenhum é
possível» é um objecto possível. Pois o argumento de Anselmo não pode ser
uma prova eficaz da existência de Deus a menos que as suas premissas sejam
não só verdadeiras, mas também que se saiba que são verdadeiras. Logo,
se não sabemos que o Deus de Anselmo é um objecto possível, então o seu
argumento não pode provar-nos a existência de Deus — não nos permite
saber que Deus existe.
20. Ver, por exemplo, a discussão que C.D. Broad faz do argumento ontológico, em Reli
gion, Philosophy, and Psychical Research (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1953).
77
Jntrodução à Filosofia da Religião
uma crítica algo diferente do argumento, uma crítica sugerida pela convicção
fundamental que se indicou antes — nomeadamente, que, da mera análise
lógica de uma certa ideia ou conceito, nunca podemos determinar que existe
alguma coisa na realidade que satisfaça essa ideia ou conceito.
Suponha-se que alguém se nos dirige e diz:
78
O argumento ontológico
79
Introdução à Fi lo so ña da Religião
não existe qualquer ser absolutamente perfeito, nada haverá a que se possa
aplicar este conceito de Deus. Sendo assim, é óbvio que não se segue mera
mente desta definição de Deus que há algo existente que seja Deus. Só se
existir um ser absolutamente perfeito é que será verdade que Deus, como o
nosso amigo o concebe, existe.
80
O argumento ontológico
.-simples facto de nenhuma coisa inexistente poder ser um magião que alguma
coisa existente é um magião.21
Há, contudo, uma dificuldade importante nesta crítica ao argumento de
■Anselmo. Esta dificuldade surge quando atentamos na sua afirmação implícita
de que Deus é uma coisa possível. Para ver ao certo o que é esta dificuldade,
regressemos à ideia de coisa possível. Uma coisa possível, segundo determi
námos, é qualquer coisa que está ou no lado esquerdo da nossa linha ima
ginária ou que logicamente podia estar no lado esquerdo da linha. As coisas
possíveis, então, serão todas as coisas que, ao contrário do quadrado redondo,
não são impossíveis. Suponha-se que concedemos a Anselmo que Deus, como
ele o concebe, é uma coisa possível. É claro que o mero conhecimento de que
algo é uma coisa possível não nos permite concluir que essa coisa é uma coisa
existente. Visto que muitas coisas possíveis, como a Fonte da Juventude, não
existem. Mas se algo é uma coisa possível, então ou é uma coisa existente ou
uma coisa inexistente. Pode-se dividir exaustivamente o conjunto das coisas
possíveis em coisas possíveis que existem efectivamente e coisas possíveis
que não existem. Portanto, se o Deus de Anselmo é uma coisa possível, ou
é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Concluímos, contudo, que
nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo; portanto, parece que
temos de concluir com Anselmo que alguma coisa efectivamente existente
exemplifica de facto o seu conceito de Deus.
Para ver a solução desta importante dificuldade precisamos de regressar
a um exemplo anterior. Consideremos mais uma vez a ideia de um magião,
um mágico existente. Por acaso têm existido mágicos — Houdini, o Grande
■ Blackstone, e outros. Mas, obviamente, podia não ter sido assim. Suponha-
-se, momentaneamente, que nunca tinham existido quaisquer mágicos.
O conceito de mágico teria ainda aplicação, pois continuaria a ser verdade
que Merlin era um mágico. E quanto ao conceito de magião? Será que esse
81
Introdução à Filosofia da Religião
22. Estou em dívida para com o Professor William Wainwright, por me chamar a atenção
para esta ideia.
23. Na linguagem dos mundos possíveis, podemos afirmar que um objecto %é um magião
num mundo possível m, desde que i) %seja um mágico e m m e ii) x seja um mágico em
qualquer mundo que seja o mundo efectivo. Para mais informação sobre este assunto,
bem como uma discussão crítica de algumas versões do argumento ontológico, ver
o meu ensaio «Modal Versions of the Ontological Argument» em Louis Pojman, org.
Philosophy of Religion: An Anthology, 3.;1 ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1998).
82
O argumento ontológico
Penso que podemos ver que ao conceder a Anselmo a premissa de que Deus
é uma coisa possível concedemos muito mais do que pretendíamos. Pensá
mos conceder apenas que o conceito anselmiano de Deus, ao contrário do
conceito de quadrado redondo, não é contraditório nem incoerente. Mas,
sem nos apercebermos, estávamos de facto a conceder muito mais do que
isto, como se tornou visível quando considerámos a ideia de «magião». Nada
há de contraditório na ideia de um magião, um mágico que existe. Mas ao
afirmar que um magião é uma coisa possível, estamos, como vimos, a sugerir
83
Introdução à Filosofia da Religião
84
O argumento ontológico
Deus existe efectivamente. Mas a premissa adicional não añrma apenas que
o conceito anselmiano de Deus não é incoerente nem contraditório. Equivale
à afirmação de que um ser existente é supremamente grandioso. E como em
parte é isto que o argumento procura provar, cai em petição de princípio:
pressupõe a ideia cuja verdade devia provar.
Se a crítica acima está correcta, o argumento de Anselmo não pode ser
uma prova da existência de Deus. Contudo, isto não equivale a afirmar que
o argumento não é um trabalho de génio. Talvez nenhum outro argumento
na história do pensamento tenha levantado tantas questões filosóficas fun
damentais e estimulado tanta reflexão. Mesmo não conseguindo ser uma
:prova da existência de Deus, continuará a ser uma das maiores façanhas do
intelecto humano.
REVISÃO
1. O que se entende por ser impossível, ser possível, ser contingente, e ser
necessário? Dê um exemplo de cada um dos três.
2. Que distinção faz Anselmo entre a existência no entendimento e a exis
tência na realidade?
3. Qual é a ideia crucial no argumento ontológico?
4. Quais são, resumidamente, as três objecções tradicionais ao argumento
ontológico?
5. Explique a última objecção, que afirma que o argumento ontológico cai
em petição de princípio.
ESTUDO COMPLEMENTAR
85
Introdução à Filosofía da Religião
86
Capítulo 4
0 argumento do desígnio
(o antigo e o novo)
«Olhai o mundo em volta: contemplai o todo e cada parte: descobrireis que não
é senão uma enorm e máquina, subdividida num número infinito de máquinas
menores, que por sua vez se subdividem para lá do que os sentidos e faculdades
humanos conseguem seguir e explicar. Todas estas diversas máquinas, e mesmo as
suas partes mais diminutas, ajustam-se entre si com uma precisão que deixa estu
pefactos todos os homens que já as contemplaram. A curiosa adaptação de meios
a fins em toda a natureza assemelha-se exactamente, embora em muito os exceda,
aos produtos do engenho humano; do desígnio, do pensamento, da sabedoria e
da inteligência humanos. Visto que, portanto, os efeitos se assemelham entre si,
somos levados a inferir, segundo todas as regras da analogia, que as causas tam
bém se assemelham; e que o Autor da Natureza é de algum modo similar à mente
do hom em , embora detentor de faculdades muito mais vastas, proporcionais à
grandiosidade da obra que executou. Com este argumento a posteriori, e apenas
Introdução à Filosofia da Religião
24. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, II, org. H.D. Aiken (Nova
Iorque: Hafner Publishing Company, 1948), p. 17. [Diálogos sobre a Religião Natural,
trad. Alvaro Nunes, Lisboa: Edições 70, 2005.]
88
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
89
Introdução à Filosofia da Religião
90
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
91
Introdução à Filosofia da Religião
para nos permitir saber as horas. O mesmo sucede com as partes de outras
máquinas — automóveis, câmaras fotográficas ou telemóveis. As partes destas
máquinas relacionam-se todas entre si de tal modo que funcionam conjunta
mente sob as condições adequadas para servir uma finalidade.
-ï Captemos esta interessante característica das máquinas introduzindo a
ideia de sistema teleológico. Digamos que um sistema ideológico é qualquer
sistema composto de partes em que estas se encontram dispostas de tal modo
que funcionam conjuntamente sob as condições adequadas para servir uma
determinada hnalidade. Na sua maior parte, as máquinas são claramente sis
temas teleológicos. Além disso, uma máquina de alguma complexidade pode
muito bem ter partes que são elas próprias sistemas teleológicos. Um auto
móvel, por exemplo, é um sistema teleológico; as suas partes estão dispostas
de tal modo que sob condições adequadas funcionam conjuntamente para
permitir que alguém viaje rapidamente de um lugar para outro. Mas muitas
das partes de um automóvel são também sistemas teleológicos. O carburador,
por exemplo, é um sistema de partes dispostas de modo a fornecer a mistura
adequada de combustível e ar para a combustão.
Os defensores do argumento do desígnio afirmam que a base da analogia
entre o universo e as máquinas é que se encontra, no mundo natural, muitas
coisas, e partes de coisas, que são sistemas teleológicos. O olho humano, por
exemplo, é claramente um sistema teleológico. As suas partes exibem uma
ordem intricada e estão dispostas de tal modo que sob condições adequadas
funcionam conjuntamente para permitir que uma pessoa veja. Outros órgãos
nos seres humanos e animais são também indubitavelmente sistemas teleo
lógicos, cada um servindo uma hnalidade qualquer razoavelmente clara. Na
verdade, parece razoável pensar que as plantas e os animais que compõem
uma grande parte do mundo natural são sistemas teleológicos. Como o filó
sofo novecentista C.D. Broad comentou:
92
O argumento do desígnio {o antigo e o novo)
Podemos agora ver, penso, a força com que este argumento afecta a
imaginação dos seus defensores, Uma vez compreendido o que é um relógio,
como funciona e qual é a sua finalidade, seria completamente absurdo supor
que a sua origem se deve a algum acidente em vez de ao desígnio inteligente,
Mas se olharmos cuidadosamente para muitas coisas na natureza — plan
tas e animais, por exemplo — descobrimos que as suas partes exibem uma
disposição ordenada, adequada a uma finalidade (sobrevivência do orga
nismo e reprodução da sua espécie) que, quando muito, excede a organi
zação segundo ñns das partes do relógio. Que absurdo, portanto, supor que
o mundo natural surgiu por acidente em vez de desígnio inteligente. Parte
da força deste argumento na imaginação humana exprime-se na seguinte
observação do filósofo seiscentista, Henry More:
«Por que outra razão teriam as nossas pernas e braços três juntas, bem como os
dedos, senão por ser melhor do que ter duas ou quatro? E por que serão os nossos
dentes incisivos aguçados com o cinzéis de corte mas os nossos dentes in terio
res largos para tritu rar, e não o contrário? Mas talvez tivéssemos conseguido
sobreviver a custo nessa circunstância mais difícil. Mais uma vez, por que será a
disposição dos dentes tão feliz, ou, ao invés, por que não há dentes noutros ossos
25,: C.D. Broad, The Mind and Its Place in Nature (Londres: Routledge & Kegan Paul, Ltd.,
1925), p. 83.
93
Introdução à Filosofia da Religião
além dos maxilares? Porquanto poderiam ter sido tão eficazes como estes. Mas
a razão é nada ser feito tolamente ou em vão; isto é, há uma providência divina
que ordena todas as coisas.»26
26. Citado por J.J.C. Smart em «The Existence of God», em New Es sap s in Philosophical
Theology, org. Antony Flew e Alasdair MacIntyre (Londres; SCM Press Ltd, 1955), p. 43.
94
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
tomo máquinas) que são sistemas teleoiógicos. E isto significa que não temos
justificação para afirmar que o universo em si é como urna máquina. O que
talvez tenhamos justificação para afirmar é que o universo contém muitas
partes naturais (isto é, partes que não são feitas pelos seres humanos) que se
assemelham a máquinas; estas assemelham-se a máquinas porque, como elas,
são sistemas teleoiógicos. Aceitando esta limitação, podemos rever a nossa
formulação do argumento do desígnio, do seguinte modo.-
95
Introdução à Filosofia da Religião
27. Michael J. Behe, Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution (Nova
Iorque: The Free Press, 1996), p, 54.
96
O argumento do desígnio {o antigo e o novo)
28. William A. Dempski, No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be Purchased
Without Intelligence (Lanham, MD: Roman and Littlefield, 2002).
29. Michael L Behe, «The Modern Design Hypothesis: Breaking Rules», em God and
Design: The Teleological Argument and Modern Science, org. Neil A. Manson (Nova
Iorque: Routledge, 2003), pp. 277-291.
97
Introdução à Filosofta da Religião
adoptant a perspectiva de que não há razões suficientes para pensar que não
pode explicá-los.
Kenneth R. Miller, professor de biologia na Universidade de Brown e
teísta, concorda com Behe que, se o darwinismo não pode explicar a aparente
complexidade irredutível ao nível da célula viva, então está condenado. Miller
observa, contudo, que embora a biologia celular não existisse no tempo de
Darwin, este teve o cuidado de procurar explicar como a sua teoria podia
dar conta de um sistema irredutivelmente complexo, dando uma explicação
evolucionista do exemplo do olho humano, usado por Paley.30 Na perspectiva
de Miller, o argumento de Behe a partir da complexidade irredutível é apenas
mais uma tentativa falhada de encontrar no nosso planeta a ocorrência de
algo que a ciência é supostamente incapaz de explicar.
Enquanto teísta, Miller encara o universo como criação de Deus. Na ver
dade, argumenta que dada a teoria do Big Bang acerca da origem do universo
faz todo o sentido supor que a existência do nosso universo foi causada por
um ser sobrenatural. Mas Miller añrma que a teoria darwinista pode explicar
a lenta emergência ao longo do tempo de sistemas teleológicos intricados,
incluindo plantas, os animais inferiores e os seres humanos. Para Miller, só
da origem do nosso universo se pode razoavelmente afirmar que foi um acto
de criação e desígnio inteligente. Na verdade, ao contrário de Behe, Miller é
muito cuidadoso quanto a afumar que há acontecimentos no nosso planeta
que são inexplicáveis sem alguma actividade imediata, directa, de Deus. Pois
é demasiado frequente mostrar-se, a longo prazo, que os acontecimentos
terrenos supostamente resultantes da exclusiva intervenção directa de Deus
são consequência causai de forças puramente naturais. É a própria origem
do universo, cujas constantes são tais que permitem a emergência da vida
humana neste planeta tão insignificante, que Miller acredita ter sido direc
tamente causada por Deus. Visto que uma coisa é argumentar que Deus é
30. Kenneth R. Miiler, Finding Darwin’s God (Nova Iorque: HarperCollins Publishers Inc.,
1999), p .135.
98
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
99
Introdução à Filosofia da Religião
100
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
101
Introdução à Filosofía da Religião
102
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
33. Stephen Hawking, A Brief History of Time (Nova lorque; Bantam Books, 1988), p. 123.
[Breve História do Tempo, trad. Ribeiro da Fonseca, Lisboa, Gradiva, 1988.]
103
Introdução à Filosofia da Religião
modo que aí pudesse haver vida. Pegando num baralho de cartas que não
esteja viciado, é extremamente improvável que tirar cinco cartas aleatoria
mente resulte numa sequência ordenada de cartas do mesmo naipe. Mas se
houver milhares e milhares de baralhos de cartas que não estejam viciados,
de cada um dos quais se retira cinco cartas aleatoriamente, será muito prová-
veí, na verdade, que um desses lances seja uma sequência ordenada de cartas
do mesmo naipe. Talvez se passe o mesmo com o nosso universo de Big Bang,
caso em que não seria surpreendente que um universo de Big Bang contenha
vida. E, como somos seres vivos, fazemos forçosamente parte desse universo
não surpreendente.34
Há pouco considerámos as objecções do biólogo Kenneth R. Miller às
críticas de Michael Behe à selecção natural darwlnista como explicação dos
sistemas biológicos irredutivelmente complexos que se encontram no nosso
planeta. Enquanto cristão, Miller acredita que Deus é o criador do universo
no qual por acaso há um pequeno planeta com as condições adequadas à
emergência de seres vivos inteligentes. Contra a sua perspectiva considerá
mos uma objecção preferida dos não teístas. Porque, como vimos, se tivesse
havido milhões e milhões de Big Bangs resultando em milhões e milhões
de universos, seria provável um deles ter constantes que permitissem a
existência de vida humana. Miller, obviamente, está ciente desta possibi
lidade alternativa. Tem de se admitir, contudo, que uma vez que apenas
podemos observar o nosso próprio universo, não se pode obter indícios para
determinar se a hipótese do universo múltiplo está correcta. Miller conclui
razoavelmente que, sendo os indícios para a hipótese do universo múltiplo
inalcançáveis, há justificação intelectual para levar a sério a alternativa tradi
cional: que o nosso universo, em vez de ter ocorrido por acaso, foi criado por
Deus.35 Note-se, contudo, que qualquer ser sobrenatural com poder absoluto
e conhecimento suficiente seria também capaz de criar o nosso universo. Não
34. Para uma perspectiva mais completa desta objecção, ver Peter van Inwagen, Meta
physics (São Francisco: Westview Press, 1993) pp, 132-148.
35. Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God, pp. 230-232.
104
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
se exige, por exemplo, um ser que seja moralmente perfeito. Não obstante,
como não temos indicios a favor da hipótese do universo múltiplo, a alter
nativa de um criador sobrenatural permanece uma possibilidade genuína.
ARGUMENTOS ACEITÁVEIS
105
Introdução à Filosofia da Religião
36. William James, The Varieties o f Religious Experience (Nova Iorque: The Modern
Library, 1936), p.427.
37. Para uma explicação dos argumentos segundo esta linha, ver George F. Thomas, Philo
sophy and Religious Belief (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1970), Capítulo 6.
106
O argumento do desígnio (o antigo e o novo)
REVISÃO
ESTUDO COMPLEMENTAR
107
Capítulo 5
Experiência mística e religiosa
109
Introdução à Filosofia da Religião
110
Experiência mística e religiosa
Embora a experiência de Saulo seja claramente religiosa, não nos diz o que
é uma experiência religiosa, nem nos dá uma caracterização pela qual possa
mos distinguir a experiência religiosa da não religiosa. Não é preciso ver uma
luz ofuscante nem ouvir uma voz para ter uma experiência religiosa. Além
disso, ver uma luz ofuscante e ouvir uma voz apenas não basta para que uma
experiência seja religiosa. Como a caracterizaremos então?
111
Introdução à Fílosoña da Religião
112
Experiência mística e religiosa
A presença do divino
39. R.B. Blakney, Meister Eckhart: A Modern Translation (Nova Iorque: Harper & Row
Publishers, 194l), p. 200.
40. Ibid. pp. 200-201.
41. Citado por Walter T, Stace em Mysticism and Philosophy (Nova lorque: J. B. Lippincott
Co., I960), p. 233.
113
introdução à Filosofia da Religião
114
Experiência mística e religiosa
115
introdução à Filosofia da Religião
«De uma só vez senti [...] a presença de Deus — falo nisto tal como se deu na
minha consciência — como se a sua bondade e o seu poder me penetrassem por
completo [...] Então, lentamente, o êxtase abandonou o meu coração; isto é, senti
que Deus retirara a comunhão que concedera [...] Julgo por bem acrescentar que
neste meu êxtase Deus não tinha forma, cor, odor, nem sabor; além disso, que o
sentimento da sua presença não era acompanhado de qualquer localização deter
minada [...] No fundo, a expressão mais adequada para transmitir o que senti é
esta: Deus estava presente, embora invisível; não se deixava apreender por qual
quer dos meus sentidos, no entanto a minha consciência percepcionava-o.» 42
42. William James, The Varieties o/Reíigiotis Experience (1902) (Nova Iorque: Tire Modern
Library, 1936), pp. 67-68.
116
Experiência mística e religiosa
117
Introdução à Filosofia da Religião
118
Experiência mística e religiosa
pensar de outro modo. Isto é, quando outros, que estão em condições de ver,
afirmam que não há qualquer serpente, o leitor passa a ter uma razão para
pensar que a serpente não existe realmente. No nosso primeiro exemplo, se
supusermos que tudo o que o leitor sabe é que há lâmpadas vermelhas apon
tadas para a parede e que tais lâmpadas fariam a parede parecer vermelha,
mesmo sendo branca, a nossa razão para pensar de outro modo não é em si
uma razão para pensar que não há qualquer parede vermelha. É uma razão de
tipo B. Diz-nos que, seja a parede vermelha ou não, dadas as circunstâncias
{há lâmpadas vermelhas apontadas para a parede) a experiência do leitor
não é suficientemente indicativa da verdade de que a parede é vermelha.
Porquanto o leitor sabe agora que podia ter aquela experiência mesmo sendo
a parede branca.
Vimos que temos de distinguir entre o facto de uma experiência ser uma
boa razão a favor de uma afirmação e o facto de essa experiência justificar a
afirmação independentemente de tudo o mais que sabemos. Quem pensa
que ter uma experiência, supostamente de um objecto particular, é uma boa
razão para pensar que esse objecto particular existe reconhece que podemos
conhecer ou descobrir razões do tipo A ou do tipo B para pensar de outro
modo. Insiste apenas que na ausência de tais razões refutantes, quem tem tal
experiência tem justificação racional para acreditar que o objecto particular
existe. Richard Swinburne argumentou estar aqui em causa um princípio
fundamental de racionalidade, a que chama «princípio da credulidade».43
Segimdo este princípio, se uma pessoa tem uma experiência que parece ser de
X, então, a menos que haja uma razão para pensar de outro modo, é racional
acreditar que %existe. Concedendo este princípio, parece arbitrário recusar
a sua aplicação a experiências religiosas — experiências em que se sente a
presença imediata do divino. Portanto, a menos que haja uma razão para pôr
em causa estas experiências, parece racional acreditar que Deus ou algum
ser divino existe.
43, Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: The Clarendon Press, 1979), p, 254.
119
Introdução à Filosofia da Religião
120
Experiência mística e religiosa
121
Introdução à Filosofía da Religião
religiosa tenha justificação racional para não aceitar tais experiências como
percepções verídicas da realidade. Pois o facto de estas experiências susten
tarem tradições religiosas conflituantes nas quais estão inseridas pode dar a
essa pessoa uma razão para não aceitar como verídica qualquer experiência
religiosa particular,
Experiência extrovertida
122
Experiência mística e religiosa
Stace relata que em conversa com N.M. este llie disse que não só todos
aqueles objectos externos pareciam partilhar uma e a mesma vida, mas que
a vida partilhada por esses objectos era também a mesma vida que tinha e
tem em si próprio. A explicação de N.M. continua:
«Senti uma completa certeza de que naquele momento via as coisas como real
mente eram e ftquei cheio de dor ao me aperceber da situação real dos seres
humanos, vivendo continuamente no meio de tudo isto sem ter consciência.
Esta ideia apoderou-se do meu espírito e chorei. Mas chorei também pelas coisas
em si, que nunca vimos e que na nossa ignorância tornamos feias, e vi que toda
a fealdade era uma chaga da vida [...] Ganirei consciência do tempo outra vez e
a impressão de entrar no tempo foi tão nítida como se tivesse entrado na água,
passando de um elemento mais rarefeito para um mais denso.» 45
123
Introdução à Filosoña da Religião
Quando vê cada coisa separada das outras. E quando está acim a do en ten d i
m ento? Quando tudo vê em tudo; então, ergue-se o hom em acim a do m ero
entendim ento. » 46
Experiência introvertida
124
fci
«O nascim ento é im possível sem um com pleto afastam ento da sensação [...]
E exige-se uma grande força para reprimir todos os agentes da alma e fazê-los
deixar de funcionar. Congregá-los exige muita força, e sem essa força não pode
ser fe ito .» 47
125
Introdução à Filosofia da Religião
«Agora a alma tem de se esvaziar de todas estas formas, ñguras e imagens imagi
nadas, e tem de permanecer na escuridão a respeito destes sentidos para alcançar
a Divina U n ião.»49
48. Jbíd, p. 1 2 0 .
49. St, John of the Cross, The Dark Night of the Soul, trad, e org. K.F. Reinhardt (Nova
Iorque; Ungar Publishing Co., 1957), p. 51.
126
Experiência mística e religiosa
A TESE DA UNANIMIDADE
127
introdução à Filosofia da Religião
128
Experiência mística e religiosa
não satisfaziam outra condição necessária (estar acordado) para se ouvir a voz,
se é que estava realmente ali uma voz para se fazer ouvir.
Voltando à experiência mística, podemos agora ver a importância da
tese da unanimidade para a questão de a experiência do místico ser verídica
ou ilusória. O facto de vários indivíduos terem essencialmente a mesma
experiência é relevante para a questão de a experiência ser ou não verídica
desde que seja razoável pensar que há condições tais que, quando satis
feitas, uma pessoa teria a experiência se esta fosse verídica e não a teria
se fosse ilusória. Os místicos parecem de facto empenhar-se em satisfazer
certas condições (o desligamento, por exemplo) e têm amiúde a experiência
quando se satisfaz estas condições. Mas não há maneira clara ou segura de
saber se alguém satisfez realmente as condições exigidas pela experiência
mística. Além disso, pode acontecer que o objecto de experiência, se é um
ser divino, possa ou não optar por se revelar mesmo quando se satisfaz as
condições necessárias. Por estas razões, é difícil saber em que circunstân
cias se deve pôr em causa a veracidade da experiência mística pelo facto de
alguém se empenhar em satisfazer as condições para ter a experiência sem o
conseguir. Não obstante, parece razoável ver o facto de os místicos em toda
a parte terem a mesma experiência como um ponto a favor da veracidade
dessa experiência.
Mas será a tese da unanimidade verdadeira? Será que os místicos em
toda a parte têm basicamente a mesma experiência? Se pensamos em indi
víduos que gozam de experiências do tipo introvertido, talvez pareça que a
resposta tem de ser «sim». Pois sendo experiências místicas introvertidas,
terão as características de i a 6 , em cujos termos se caracterizou a expe
riência mística introvertida. Temos de nos lembrar, contudo, que o item
4 menciona o sentido de que se encontra «o divino», e que permitimos
intencionalmente que a expressão «o divino» substitua seja o que for que
qualquer grupo religioso reconheça como tal. Assim, quando Eckhart des
creve a sua experiência como aquela em que o eu se perde na divindade, a
natureza divina comum às três pessoas da trindade — o Deus Pai, o Deus
129
Introdução à Filosofia da Religião
«Numa noite escura, ao relento, avista-se algo que emite um brilho branco. Uma
pessoa poderá pensar que é um fantasma. Uma segunda pessoa poderá pensar
que se trata de um lençol estendido na corda da roupa. Uma terceira pessoa
poderá supor que se trata de uma pedra pintada de branco. Aqui tem os uma
única experiência com três interpretações diferentes. A experiência é genuína,
mas as interpretações podem ser verdadeiras ou falsas. Para com preender seja
o que for do m isticism o, é essencial que façam os uma distinção sim ilar entre
uma experiência m ística e as interpretações que dela se pode fazer quer pelos
próprios místicos quer pelos que o não são. Por exemplo, a mesma experiência
130
Experiência mística e religiosa
mística pode ser interpretada por um cristão em termos de crenças cristãs e por
um budista em termos de crenças budistas.»51
51. WT. Stace, The Teachings of the Mystics (Nova Iorque: New American Library, I960),
p. 10.
:52. C.D. Broad, «Arguments for the Existence of God, II» The Journal of Theological
Studies XL (1939), p. 161.
131
Introdução à Filosofia da Religião
53. Bertrand Russell, Religion and Science (Londres: Oxford University Press, 1935), p. 187.
54. Ibid, p. 188.
132
Experiência mística e religiosa
133
Introdução à Filosofia da Religião
cora uma realidade, ou aspecto da realidade, com o qual não contactam de outra
m aneira.»56
56. C.D. Broad, Religion, Philosophy and Psychical Research (Londres; Routledge &
Kegan Paul, 1953), pp. 172 -173.
57. Broad, «Arguments for the Existence of God, 11», p. 163. O princípio de Broad é
similar ao princípio de credulidade discutido antes. A diferença principal é a de que
o princípio de Broad aceita uma experiência como verídica (a menos que haja razões
positivas para pensar que é ilusória) quando há uma série de experiências que con
cordam com ela. O princípio de credulidade não requer experiências concordantes.
134
Experiência mística e religiosa
«Sendo este o género de coisas (ratos e serpentes) que podíamos ver se estives
sem ali, o facto de não as podermos ver torna a sua ausência muito provável [...]
Parece assim razoável concluir que o acordo entre bêbados não é um sinal de
revelação mas de ilu são .»58
135
Introdução à Filosofia da Religião
Um caminho intermédio
136
Experiência mística e religiosa
É improvável que os estudos do misticismo ao longo dos anos que desde então
decorreram tenham invalidado estas conclusões. A terceira conclusão sim
plesmente observa que as experiências místicas estabelecem que há um modo
de consciência além do estado normal de consciência. Ao contrário de Russell
{temos boas razões para pensar que as experiências místicas são ilusórias) e
de Broad {temos boas razões para pensar que as experiências místicas são
verídicas), James adopta um caminho intermédio na sua segunda conclusão,
sugerindo que nós, não místicos, não temos quaisquer boas razões para ver
as experiências místicas como verídicas nem boas razões para as considerar
ilusórias. A isto acrescenta, na sua primeira conclusão, que os próprios mís
ticos não só vêem em geral as suas experiências como verídicas como têm
justificação para o fazer. Embora não tenhamos discutido a primeira conclu
são de James, as considerações que apresentámos neste capítulo apontam de
facto nas direcções adoptadas nas suas segunda e terceira conclusões.
Discutimos duas diñculdades na perspectiva de que o princípio da credu
lidade torna racional aceitar como verídicas experiências religiosas comuns.
Podemos agora resumir as nossas conclusões acerca da questão de as experiên
cias religiosas místicas darem ou não uma base racional para acreditar na rea
lidade do divino. Como concluímos, com James, que os não místicos não têm
de facto boas razões para aceitar a veracidade das experiências místicas, o facto
de haver experiências místicas não dá aos não místicos uma base racional para
acreditar na realidade do divino. Além disso, mesmo que os não místicos ali
nhassem com Broad, considerando provável a veracidade das experiências
místicas, o facto de diferentes místicos usarem diferentes concepções do divino
para interpretar as suas respectivas experiências tornaria difícil determinar se
a realidade apreendida pelos místicos é ou não divina, e em que sentido o seria.
O próprio Broad é cuidadoso, comentando que não pensa haver quaisquer boas
razões para supor que a realidade encontrada pelos místicos é pessoal. Portanto,
no que diz respeito ao Deus teísta, parece razoavelmente claro que as experiên
cias místicas pouquíssimo adiantam com respeito a uma base racional para
acreditar na existência de tal ser. E esta conclusão tanto se pode aplicar aos
i 137
introdução à Filosofia da Religião
místicos quanto aos não místicos. Pois embora possamos admitir com James
que os místicos têm justificação para considerar verídicas as suas experiências,
na medida em que a própria experiência é um encontro com a absoluta uni
dade, desprovida de distinções, a experiência não justificaria por si a crença no
Deus teísta. O místico teísta, que já acredita no Deus teísta, pode interpretar a
sua experiência como um encontro com algum aspecto daquele ser. Mas isto
é bastante diferente de defender que a própria experiência justifica a crença
do místico na realidade do Deus teísta.
REVISÃO
ESTUDO COMPLEMENTAR
138
Capítulo 6
Fé e razão
A questão central que tem ocupado a nossa atenção desde o primeiro capí
tulo é a de haver ou não fundamentos racionais que sustentem as afirmações
fundamentais das religiões teístas. Até agora a nossa preocupação foi o estudo
das razões que frequentemente se dá a favor da afirmação de que o deus teísta
existe. Na sua formulação mais geral, a questão central que temos vindo a
tratar é a seguinte: será que a razão estabelece a verdade do teísmo (ou a sua
probabilidade) ? Para tal, observámos com algum cuidado os indícios a favor
do teísmo veiculados pela experiência religiosa e os argumentos tradicionais
a favor da existência de Deus. Assim, para caracterizar a abordagem que
adoptámos, podemos afirmar ter avançado com base em dois pressupostos:
em primeiro lugar, pressupusemos que devemos ajuizar as crenças religio
sas, do mesmo modo que as crenças científicas e históricas, no tribunal da
razão; em segundo lugar, pressupusemos que as crenças religiosas só serão
aprovadas no tribunal da razão quando forem adequadamente sustentadas
por indícios favoráveis. Chegou o momento de deitar um olhar crítico aos
dois pressupostos.
Contra o nosso primeiro pressuposto, afirma-se frequentemente que só
podemos aceitar crenças religiosas com base na fé e não na razão. No mínimo,
portanto, temos de considerar o que é a fé e se é racional ou irracional aceitar
crenças religiosas com base nela. Contra o segundo pressuposto, observa-se
que nem toda a crença aprovada no tribunal da razão o pode ser em virtude
139
Introdução à Filosofia da Religião
de se apoiar noutra crença, que seja um indício a seu favor. Añrma-se que
algumas das nossas crenças são racionais (são aprovadas no tribunal da razão)
ainda que não as adoptemos com base em quaisquer outras crenças que pos
sam ser indícios a seu favor. Se isto for verdade (e penso que é), temos de
considerar a questão de as crenças religiosas poderem ou não integrar esta
categoria e serem portanto aprovadas no tribunal da razão, mesmo na ausên
cia de indícios favoráveis, dados por outras crenças que adoptamos.
CRENÇAS RELIGIOSAS E FÉ
140
Fé e razão
141
Introdução à Filosofia da Religião
humana » .60 Muitas destas verdades são importantes para a nossa salvação.
Pelo que embora a razão não as possa demonstrar, é importante que se acre
dite nelas. A crença nelas assenta na fé e não na razão. Como a razão não
impõe ao intelecto a aceitação destas verdades acerca do divino, podemos
aceitá-las livremente pela fé. Além disso, como a aceitação destas crenças é
um acto livre, o acto de fé do crente pode ser um gesto meritório, valendo-
-lhe a aprovação e a recompensa da parte de Deus. Para Tomás, portanto, a
fé não entra em conflito com a razão mas «aperfeiçoa o intelecto» e pode ser
um acto mental livre e meritório.
E quanto às verdades acerca do divino que podemos demonstrar pela
razão humana? Serão, ainda assim, objectos adequados da fé? Tomás res
ponde que é também apropriado sugerir a sua aceitação pela fé. Pois conhe
cer estas proposições pela demonstração da sua verdade é uma tarefa difícil,
para o sucesso da qual poucos dispõem de tempo, formação e recursos. Não
obstante, quem conhece estas proposições através da demonstração não as
aceita também pela fé. Pois é impossível a mesma proposição ser (ao mesmo
tempo) objecto de conhecimento e de fé. Na vida além-túmulo, quando os
fiéis puderem ver Deus claramente, deixarão de viver pela fé.
Há evidentemente muitas afirmações acerca do divino que excedem a
capacidade da razão humana para as apreender. Que Deus é trino, por exem
plo, não se pode provar nem refutar pela razão. Como determina Tomás quais
são as afirmações acerca do divino que se devem aceitar com base na fé? Por
exemplo, devemos acreditar que Deus é trino ou devemos acreditar que não
é? A resposta a esta questão está em ver que, embora a fé se distinga da razão,
não pode existir por si. Pois a razão guia a fé, mostrando que as afirmações
aceites com base na fé foram reveladas por Deus. Como afirma Tomás: «A fé
[...] não aceita seja o que for, excepto por ser revelado por Deus» .61
60. Vernon J. Bourke, trad., Summa Contra Gentiles, L.l, Cap. 3 (Nova Iorque: Doubleday
& Company, Inc., 1956).
61. São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II, pt. II, Ql, art. 1, in The Basic Writings
of Saint Thomas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).
142
Fé e razao
143
Introdução à Filosofta da Religião
64. William James, Essays in Pragmatism, org. A. Castell (Nova Iorque: Hafner Publishing
Co., 1948), pp. 88-109. [«A Vontade de Acreditar», in A Ética da Crença, org. Desi
derio Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2010.]
144
Fé e razão
Clifford añrma que este homem é culpado peia morte dos náufragos.
O facto de o armador acreditar sinceramente na robustez do seu navio não lhe
diminui a culpa, porquanto, sublinha Clifford, «não tinha o direito de acredi
tar, tendo em conta os indícios disponíveis». Em vez de subordinar a crença
à inspecção rigorosa das condições do navio, o armador optou por acreditar
sem quaisquer indícios adequados. Segundo Clifford, não há qualquer ju s
tificação para adoptar uma crença sem indícios suficientes. O armador, não
tendo obtido quaisquer indícios relevantes a respeito do estado do seu navio,
errou, portanto, ao acreditar que este estava em condições. Suponhamos que
o navio estava realmente em condições e que ffzera a viagem em segurança.
Teria isto alterado o juízo que Clifford faz do armador? Nada disso:
«O hom em não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do
correcto e do incorrecto tem que ver com a origem da crença do armador, e não
com o seu conteúdo; não é a crença que conta, mas o modo como a adoptou; não
se trata de a crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o
direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha.»66
Contra o juízo que Clifford faz do armador, poderíamos objectar que con
fundiu o facto de o armador acreditar que o seu navio está em condições com
a sua acção de enviar o navio para o mar sem inspecção adequada, É no
último, diríamos, que está a imoralidade. Afinal de contas, embora o armador
65. William Clifford, Lectures and Essays, vol. Il, org. F. Pollock (Londres: Macmillan and
Co., 1879), pp. 177-178. [«A Ética da Crença » , in A Etica da Crença, org. Desiderio
Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2010,]
66, Ibid., p, 178.
145
Introdução à Filosofia da Religião
acreditasse (sem bons indícios) que o seu navio estava em condições, podia
ainda assim ter ordenado uma inspecção adequada antes de enviar o navio para
o mar. O que é moral ou imoral são as acções e não a mera adopção de crenças.
Clifford, contudo, reconhece a distinção que fizemos entre a crença do
armador e a sua acção de enviar o navio para o mar. Concorda, além disso,
que a acção foi imoral. Mas insiste que é preciso condenar também a crença
do armador. Pois as crenças levam naturalmente à acção. E uma pessoa que
tenha o hábito de acreditar em coisas sem indícios suficientes, ou sem indí
cios sequer, irá frequentemente adoptar crenças que levam naturalmente
a acções de facto nocivas para outros, como ilustra o exemplo do armador.
Ao reflectir no exemplo do armador e nos comentários de Clifford, talvez
partilhemos a sua opinião. Quando uma crença é tal que leva naturalmente
a acções que podem ser nocivas para outros, é imoral adoptar essa crença
com base em indícios insuficientes. Não se deve adoptar tais crenças quando
não há quaisquer indícios a seu favor. Pois sabemos que quando as pessoas
se entregam a tais crenças na ausência de indícios adequados, os resultados
para a humanidade são muitas vezes nocivos, se não mesmo desastrosos. Mas
há seguramente crenças cuja adopção não leva tendencialmente a acções
nocivas para outros. Pode tratar-se de crenças insignificantes, coisas tri
viais, como acreditar que fazia calor há um ano neste mesmo dia, ou crenças
importantes que tendencialmente levam apenas a acções úteis aos outros,
como acreditar que os seres humanos são basicamente bons e amigáveis. Se
acreditar que os outros são essencialmente bons e afáveis, posso ficar mais
disposto a ser afável com eles do que se acreditasse no contrário. Com crenças
como estas, parece irrazoável, pelo menos superficialmente, afirmar que é
imoral adoptá-las na ausência de indícios adequados de que são verdadeiras.
Clifford, contudo, é intransigente na sua perspectiva:
« S e m e perm ito acreditar seja no que for com indícios insuficientes, da mera
crença pode não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca
ter ocasião de a exibir em acções públicas. Mas não posso deixar de com eter
146
Fé e razão
Seja uma crença trivial e tenda a gerar acções nocivas para os outros,
mu significativa e tenda a gerar acções benéficas, o juízo de Clifford con
tinua igual: só temos justificação para adoptar essa crença se tivermos
indícios suficientes de que é verdadeira. Pois de contrário prejudicar-nos
-emos, a nós e à sociedade, ao enfraquecer o hábito de exigir indícios a
favor das nossas crenças, um hábito que lentamente nos fez sair da era da
superstição e da selvajaria. É evidente, portanto, que Clifford não admite
excepções à sua regra de não acreditar numa coisa a não ser na presença
de indícios suficientes. Resume o seu ponto de vista com um comentário
citado por James em «A Vontade de Acreditar»; «É sempre errado, seja
onde for e por quem for, acreditar em qualquer coisa com base em indícios
:insuficientes» .68 É portanto evidente que no caso de Clifford ter razão não há
justificação para acreditar na verdade do teísmo sem indícios adequados a seu
favor. De igual modo, não há justificação para acreditar na verdade do ateís
mo sem indícios adequados a seu favor. Se nem temos indícios adequados a
favor do teísmo nem a favor do ateísmo, então, na perspectiva de Clifford,
não temos alternativa senão suspender 0 juízo — isto é, ser agnósticos.
147
Introdução à Filosofia da Religião
148
Fé e razão
Definições essenciais
Quando, e só quando, uma hipótese é 1 ) intelectualm ente ind ecid ível e 2 ) nos
apresenta uma opção genuína, não é incorrecto acreditar o qne nos apetecer a
respeito dessa hipótese, não é incorrecto deixar a nossa natureza passional decidir.
149
Introdução à Filosofía da Religião
entre duas hipóteses) pode estar viva ou morta para nós. Uma opção está
viva quando ambas as hipóteses estão vivas para nós, quando ambas nos
atraem e parecem possibilidades reais para as nossas vidas. James ilustra:
«Se lhe digo: “Torne-se um teósofo ou um maometano” , trata-se provavel
mente de uma opção morta, porque é improvável que para si qualquer destas
seja uma hipótese viva. Mas se digo: “torne-se um agnóstico ou um cristão” ,
sucede o contrário; tendo em conta a sua formação, cada uma destas hipóte
ses exercerá algum fascínio, por muito leve que seja, sobre as suas crenças» .69
Uma opção pode ser momentosa ou trivial. Uma opção é momentosa
quando podemos não vir a ter outra oportunidade de decidir entre as duas
hipóteses, não podemos reverter facilmente a escolha que ñzermos e há algo
de importância considerável que depende de fazer a escolha certa. Durante
a guerra do Vietname, muitos jovens tiveram de escolher entre servir o seu
país numa causa que sentiam ser injusta ou recusar-se a prestar esse serviço.
Tratava-se obviamente de uma escolha momentosa; a escolha errada podia
levar a perdas pessoais consideráveis; uma vez tomada a decisão, não se podia
revertê-la facilmente; tão-pouco era possível adiá-la.
Uma opção pode ser forçosa ou evitável. Uma opção é forçosa quando
as consequências de recusar decidir entre uma de duas hipótese são as mes
mas que decidir efectivamente entre uma delas .70 Se recebo uma proposta
de emprego importante e me dão um prazo absolutamente inadiável para
decidir, de tal maneira que ao fim desse prazo a oferta é retirada e proposta
a outra pessoa disposta a aceitá-la, a decisão que tenho perante mim é entre
responder dentro do prazo e aceitar a oferta ou responder dentro do prazo
e rejeitar a oferta, decisão que é forçosa. É forçosa porque as consequên
cias de me recusar a decidir entre aceitar ou rejeitar são as mesmas que as
de simplesmente rejeitar. As duas acções, responder para rejeitar a oferta e
150
Fé e razão
151
Introdução à Filosofia da Religião
a minha oferta de um milhão de euros. Pois o leitor tanto perde esta quantia
se suspender o juízo como perde se acreditar que o Futebol Clube do Porto
não vai ganhar o campeonato no próximo ano. Há portanto um sentido evi
dente em que as consequências (pelo menos uma consequência importante)
de suspender o juízo são as mesmas que acreditar numa das duas hipóteses.
Intelectualmente indecidível
152
Fé e razão
Para quem foi criado na tradição religiosa ocidental básica, como eu, é bem
provável que a opção entre acreditar que Deus existe ou acreditar que não
existe seja uma opção viva. E a decisão entre acreditar que Deus existe ou
acreditar que não existe parece momentosa, pelo menos num dos sentidos
de «momentosa». Pois se Deus existe e acreditamos nele, recebemos um
certo bem vital por acreditar — a vida eterna, a graça divina e outras bênçãos.
Se Deus existe e não acreditamos na sua existência, tudo isto se perde. Será
a decisão única e irreversível caso se mostre insensata? É menos claro se a
questão religiosa é momentosa em qualquer destes sentidos. Posso adoptar
a crença no próximo ano em vez de neste ano, ou posso adoptar uma crença
153
Introdução à Filosofia da Religião
agora e mais tarde alterá-la. Ainda assim, podemos concordar com James em
que a questão religiosa é momentosa no sentido mais relevante de nos dar um
bem de infinitas dimensões se escolhermos correctamente.
Será a opção entre acreditar que o deus teísta existe e acreditar que tal
ser não existe uma opção forçoscú Como vimos, esta opção não é forçosa
quanto à verdade e ao erro. Pois se Deus existe, o ateu cai em erro mas o
agnóstico não, já que para errar (ter uma crença falsa) é preciso ter uma
crença. Mas, como James salienta, se a hipótese religiosa for verdadeira,
então o agnóstico e o ateu estão no mesmo barco: ambos perdem o bem
vital que a religião tem para oferecer. Pelo que, se o teísmo for verdadeiro, a
opção entre acreditar que Deus existe e acreditar que não existe é uma opção
forçosa no que diz respeito ao bem vital. Falando da hipótese religiosa, James
ahrma que
«ao perm anecer cépticos e esperando que se faça mais luz [...] perdemos o bem,
no caso de ser verdade, tão certam ente com o se de facto escolhêssem os não
acreditar. É como se um hom em hesitasse indefinidam ente pedir uma mulher
em casam ento, por não ter a certeza absoluta de que depois de a levar para casa
ela continua a ser um anjo. Não estará a privar-se dessa possibilidade angélica
particular tão decisivamente como se casasse com outra pessoa?»71
Será talvez digno de nota o facto de James não provar que a opção entre
acreditar que Deus existe e acreditar que não existe é momentosa ou forçosa.
Tudo o que consegue provar é que é momentosa e forçosa se for verdade que
Deus existe. Pois só no caso de Deus existir é que estará em jogo na decisão
um bem vital (a vida eterna). Se Deus não existir, a decisão entre as duas
hipóteses não é momentosa. Nem forçosa. Porquanto, como vimos, a opção
não é forçosa a respeito da verdade e do erro; é-o apenas a respeito do bem
vital que é a vida eterna, a graça divina e as outras bênçãos que decorrem da
154
Fé e razao
crença. Mas no caso de o ateísmo ser verdadeiro, não há qualquer bem vital
que possa tornar forçosa a opção. Em resposta a isto, o melhor que podemos
dizer é que James mostrou que a opção religiosa pode ser momentosa e for
çosa; não temos como saber que não é. Isto significa, contudo, que para a
questão religiosa exemplificar a tese fundamental de James é preciso revê-la
mais ou menos da seguinte maneira:
72. Se por «bem vital» se entender determinados estados psicológicos (como a paz de
espírito), que o crente pode fruir, quer Deus exista realmente quer não, então a hipó
tese teísta pode exemplificar a afirmação original da tese de James. (Para essa expli
cação do bem vital, ver Nakhnikian, An Introduction to Philosophy, pp. 276-279.)
Mas se interpretarmos o bem vital como o ñz, como algo que o crente recebe apenas
de Deus, então a hipótese teísta exemplifica apenas a forma revista da tese jamesiana.
155
Introdução à Filosoña da Religião
«É como um general que diz aos seus soldados que mais vale evitar eternamente
a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre
inim igos ou sobre a natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão
156
Fé e razao
horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos tão certos de incorrer neles,
por muito prudentes que sejam os, uma certa ligeireza de espírito parece mais
saudável do que este nervosismo exagerado por sua causa. » 73
«Se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando esta
mos perante a verdade, parece que pregar tão solenem ente que tem os o dever
de aguardar pelo toque do sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade,
podemos aguardar, se quisermos — espero que não pensem que o nego —, mas,
se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em
todo o caso agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós
devia im por vetos aos outros, nem trocar palavras agressivas. Devemos, pelo
contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade m ental de cada um:
só então realizaremos a república intelectual, só então teremos aquele espírito
de tolerância íntim a sem o qual toda a tolerância exterior se to rn a oca [...] só
então vivemos e deixamos viver, nas coisas especulativas como nas p ráticas.»74
157
Introdução à Filosoña da Religião
158
Fé e razao
75. Alvin Plantinga, «Reason and Belief in God», em Faith and Rationality, org. Alvin
Plantinga e Nicholas Wolterstorff (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press,
1983), p. 17.
76. Alguns filósofos têm uma perspectiva mais restrita do indiciarismo. Identificam-no
com a perspectiva de que as crenças religiosas só são racionais se forem sustentadas
por indícios suficientes.
159
Introdução à Filosofia da Religião
160
Fé e razão
através de outra crença racional que adoptamos tem de chegar ao fim. Tem de
haver crenças cuja adopção é racional sem as basearmos noutras crenças que
sejam indícios a favor das primeiras. Na esteira de Plantinga, chamemos-lhes
«crenças apropriadamente básicas». Uma crença apropriadamente básica é
uma crença que é racional adoptar mesmo não tendo indícios a seu favor, no
sentido de ter outras crenças racionais que a sustentem adequadamente.
Para compreender a perspectiva de Plantinga temos de distinguir as
crenças apropriadamente básicas das crenças que, embora sendo básicas,
não são apropriadamente básicas. Um jogador compulsivo pode subitamente
acreditar que o próximo naipe de cartas que receber será o naipe vencedor.
Pode não ter quaisquer outras crenças que considere indícios importantes
a favor desta crença. Talvez esta crença seja causada por uma necessidade
psicológica profunda. O jogador tem uma crença básica, mas não apropriada
mente básica. Porquanto nada há nele ou na circunstância em que se encon
tra que torne a crença racional. Contraste-se isto com a situação de alguém
que olha pela janela e tem a experiência visual que depreende ser de um
gato trepando a uma árvore, formando imediatamente a crença de que está
ali um gato trepando a uma árvore. A situação em que a pessoa se encontra
— de olhar pela janela e aparentemente ver um gato trepando a uma árvore,
etc. — torna racional a sua crença de que está ali um gato trepando a uma
árvore. Não se dá o caso de a pessoa ter outras crenças racionais, inferindo
daí a crença que agora tem — não diz para si própria: «Estou a olhar pela
janela e aparentemente vejo um gato trepando a uma árvore. Vejamos. O que
posso inferir a partir desta crença? Oh, sim, posso inferir que vejo um gato
trepando a uma árvore». A pessoa não tem quaisquer indícios a favor da sua
crença, no sentido de outras crenças com base nas quais adopta a crença de
que está ali um gato trepando a uma árvore. A sua crença é portanto básica
e racional (é uma crença apropriadamente básica). Podemos afirmar que
a crença dessa pessoa se baseia numa situação que dá à pessoa justificação
racionai para a adoptar. A crença do jogador ou não tem bases ou baseia-se
numa situação que não torna racional a sua adopção pelo jogador.
161
Introdução à Filoso ña da Religião
162
Fé c razão
concluir que Deus existe. Nesta situação, a crença de que se tem experiência
de Deus é básica, e será apropriadamente básica no caso de a experiência
da pessoa e a situação em que ela se encontra tornarem a crença racional.
Por outro lado, a partir' desta crença básica pode-se inferir imediatamente
a crença na existência de Deus, que por isso, estritamente falando, não é ela
mesma básica. (Plantinga observa que, tipicamente, a crença na existência
de Deus se infere a partir de crenças básicas que a implicam directamente.)
Plantinga, contudo, sugere um âmbito consideravelmente amplo de situações
que do seu ponto de vista geram uma crença apropriadamente básica que
implica directamente a existência de Deus.
«Ao 1er a Bíblia, pode-se ñcar impressionado com uma profunda sensação de
que Deus se nos dirige. Ao fazer o que considero desprezível, errado ou imoral,
posso sen tir-m e culpado aos olhos de Deus e formar a crença D eus desaprova
a m inha acção. Ao confessar-m e e ar repender-m e, posso sen tir-m e perdoado,
formando a crença Deus perdoa a minha acção.»77
77. «Is Belief in God Properly Basic?», NOUS 15 (1981), p. 46. [«É a Crença em Deus
Apropriadamente Básica?», in A Ética da Crença, org. Desiderio Murcho, Lisboa:
Bizâncio, 2010.]
163
Introdução à Filosofia da Religião
«Podemos supor que este teísta de catorze anos não acredita em Deus com base
em indícios. Nunca ouviu falar no argumento cosmológico, teleológico ou onto
lógico; na verdade, ninguém alguma vez lhe apresentou quaisquer indícios de
todo em todo. E embora lhe tenham falado muitas vezes em Deus, ele não vê
esses testemunhos como indícios; não raciocina da seguinte maneira: «todos
aqui afirmam que Deus nos ama e se preocupa connosco; quase tudo o que dizem
164
Fé e razão
165
Introdução à Filosofia da Religião
79. Esta crítica é desenvolvida por Philip L. Quinn in «In Search of the Foundations of
Theism», Faith and Philosophy 2 (1985), pp. 469-486, Para uma perspectiva relacio
nada, ver Stephen J. Wykstra, «Toward a Sensible Evidentialism: On the Notion of
“Needing Evidence”» , in Philosophy of Religion: Selected Writings, 3.a ed., org. W.L.
Rowe e W.J. Wainwright (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), pp. 481-491.
80. Regressaremos a esta questão no Capítulo 11: Pluralidade de Religiões.
166
Fé e razao
crença em Deus poder ou não ser apropriadamente básica para adultos con
temporâneos, inteiectualmente sofisticados, informados acerca da existência
de tradições religiosas muito diferentes e das principais razões a favor da
descrença que predominam na nossa cultura.
A defesa de Plantinga do carácter apropriadamente básico da crença
teísta em Deus tem também de explicar por que razão tantos seres huma
nos, racionais em todos os outros aspectos, nunca conseguem alcançar uma
crença apropriadamente básica na existência de Deus. À primeira vista, pen
saríamos que se Deus existe e nos criou com a tendência para formar crenças
teístas em circunstâncias diversas, a quantidade de pessoas a fazê-lo seria
maior, o que resultaria numa quantidade muito menor de ateus e agnósticos,
além de crentes cuja perspectiva do divino difere radicalmente do Deus do
teísmo clássico — como muitos hindus ou budistas, por exemplo. Respon
dendo a esta objecção, Plantinga sugere que o pecado humano pode distorcer
o funcionamento adequado da faculdade cognitiva, o nosso sentido do divino,
que nas condições adequadas dá lugar à crença no Deus do teísmo. Pelo que
a sua defesa do carácter apropriadamente básico da crença teísta depende
em parte da verdade das afirmações do teísmo ortodoxo acerca de Deus e do
pecado humano. Embora seja improvável que esta perspectiva ganhe sim
patizantes e influencie ateus e agnósticos, esse facto não é muito im por
tante para saber se a perspectiva é verdadeira ou falsa. É evidente que esta
sofisticada teoria apresenta uma nova abordagem da questão da justificação
racional da crença teísta. E num período em que a confiança nos argumentos
tradicionais a favor da existência de Deus está em declínio, merece a atenção
cuidada dos estudantes de filosofia da religião.81
81. O trabalho principal de Plantinga, onde expoe a sua perspectiva, é Warranted Chris-
tian Belief (Oxford: Oxford University Press, 1999).
167
Introdução à Filosofia da Religião
REVISÃO
1. O que entende Tomás por fé e como pensa que se relaciona com a razão?
2. Quais são as duas regras que regem as crenças, segundo Clifford? James
aceita ambas, apenas uma, ou nenhuma? Explique.
3. Explique o que James entende por opção genuína. Terá James razão ao
pensar que a hipótese religiosa nos surge como uma opção genuína inte
lectualmente indecidível? Explique.
4. Quais são as semelhanças e diferenças entre as perspectivas de James e
de Tomás quanto à fé? Como procura cada um deles mostrar que a fé não
é irrazoável?
5. O que é uma crença apropriadamente básica? Em que situações pode a
crença em Deus ser apropriadamente básica? Explique.
ESTUDO COMPLEMENTAR
1. Clifford defende que nunca é correcto fazer seja 0 que for que enfraqueça
«o hábito de testar as coisas e investigá-las». Concorda com Clifford? Se
não, porquê? Se concorda com Clifford, a defesa que James faz da política
do crente parece-lhe plausível? Explique.
2. Avalie criticamente o argumento, mencionado no início deste capítulo,
a favor da perspectiva de que a natureza da religião exige que as suas
crenças assentem na fé, e não na razão.
168
Capitulo 7
0 problema do ma
169
Introdução à Filosofia da Religião
O PROBLEMA LÓGICO
170
O problema do mal
é inconsistente com
Estabelecendo a inconsistência
Como podemos estabelecer que duas afirmações são inconsistentes entre si?
Por vezes não é preciso estabelecer seja o que for, porque as duas afirmações
contradizem-se explícitamente, como, por exemplo, as afirmações: «Eli-
sábete tem mais de um metro e meio» e «Elisabete não tem mais do que
um metro e m eio». É frequente, contudo, duas afirmações inconsistentes
171
introdução à Filosofía da Religião
Como é evidente, 6 e 7 não são logicamente inconsistentes entre si, visto que
ambas podem ser verdadeiras, ou poderiam ter sido. Não são logicamente
inconsistentes entre si porque nada há logicamente impossível na ideia de que a
moeda na minha mão direita seja uma moeda de vinte e cinco ou de cinquenta
cêntimos. (Contraste-se 6 e 7 com 3 e 4 - É óbvio que há algo de logicamente
impossível na ideia de que um dado objecto é vermelho e no entanto não é
colorido.) Mas note-se que podemos adicionar a 6 e 7 uma afirmação tal que
a partir das três se podem derivar afirmações explicitamente contraditórias.
173
Introdução à Filosoña da Religião
174
O problema do mal
82, Suponha-se, por exemplo, que há ocasiões em que o acto de perdoar a alguém uma má
acção é um bem que supera o mal cometido que se está a perdoar. Como é óbvio, nem
um ser omnipotente poderia causar este bem sem permitir a má acção que o bem supera.
Mais uma vez, suportar corajosamente a dor pode ser um bem que ocasionalmente
supera o mal da dor que é corajosamente suportada. Mas é logicamente impossível que
alguém suporte corajosamente uma dor atroz, sem que ocorra uma dor atroz.
175
Introdução à Filosofia da Religião
176
O problema do mal
A «defesa do livre-arbítrio»
177
Introdução à Filosoña da Religião
li. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo em que há
criaturas humanas livres e nenhum mal.
178
O problema do mai
O PROBLEMA INDICIÁRIO
83. Pode-se encontrar uma explicação mais elaborada da defesa do livre-arbítrio em Alvin
Plantinga, God, Freedom and Evil (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1974).
179
Introdução à Filosofia da Religião
180
O problema do mal
181
Introdução à Filosofia da Religião
Teísmo céptico
182
O problema do mal
183
Introdução à Filosofia da Religião
84. Ver Stephen J. Wykstra, «The Humean Obstacle to Evidential Arguments from Suffer^
ing: On Avoiding the Evils of Appearance», International Journal for the Philosophy
of Religion 16 (1984): 73-93. Ver também William L. Rowe, «Evil and the Theistic
Hypothesis: A Response to Wykstra», International Journal for the Philosophy of:
Religion 16 (1984): 95-100.
184
O problema do mal
«O fulcro da minha crítica tem sido o de que isto é precisam ente o que seria de
esperar no caso de o teísm o ser verdadeiro: pois se pensarm os claram ente no
género de ser em que o teísmo propõe que acreditem os, é inteiram ente plausí
vel — dado o que sabemos acerca dos nossos limites cognitivos — que estejam
normalmente muito além do nosso alcance os bens em virtude dos quais tal ser
perm ite o sofrim ento que conhecem os. Como esse estado de coisas é p recisa
m ente o que seria de esperar no caso de o teísmo ser verdadeiro, com o pode a
sua constatação ser um indício contra o teísm o?» (p. 9 1 )
No seu ensaio, Wykstra faz notar que tanto entre os crentes como entre
os descrentes há uma «intuição de que o sofrimento inescrutável no nosso
mundo retira de alguma maneira a força ao teísmo». Observa também que os
crentes têm uma ñrme tendência natural para encarar 0 sofrimento inescrutá
vel como uma dificuldade intelectual ou um obstáculo à crença, especialmente
quando afecta aqueles que essas pessoas mais amam, algo que na ausência de
uma explicação sensata tende a pesar contra 0 teísmo. Wykstra, não obstante,
pensa que esta intuição, comum a crentes e descrentes, é um erro. Pois tendo
em conta as nossas limitações e a omnisciência e a omnipotência de Deus,
Wykstra considera plausível que muito do sofrimento no nosso mundo seja
inescrutável para nós. Assim, conclui que os crentes e os descrentes simples
mente não conseguem ver 0 que a hipótese teísta de facto inclui.
Ao defender a razoabilidade da suposição de que os bens que justificam
os males horrendos no nosso mundo não são conhecíveis por nós Wykstra
recorre à analogia dos bons pais. A ideia é que Deus, sendo perfeitamente
amoroso, é para nós humanos como os bons pais são para os seus filhos, a
quem amam. E tal como os seus filhos muitas vezes não conseguem com
preender os bens devido aos quais os seus dedicados pais permitem que lhes
aconteça coisas, também nós, seres humanos, não conseguimos compreender
os bens devido aos quais Deus permite que nós, as suas criaturas, sofram os
males que nos atingem. Todavia, não há um consenso genuíno relativamente
à questão de a analogia proposta ser assim tão favorável ao teísmo como
185
Introdução à Filosofia da Religião
Wykstra supõe. É verdade que os pais dedicados podem ter de permitir que os
seus filhos doentes sejam separados deles, internados num hospital, forçados
a tomar medicamentos que sabem mal e entregues ao cuidado de estranhos,
para que possam ficar curados. A criança muito jovem, evidentemente, pode
não compreender por que razão os seus pais o tiraram de casa e o deixa
ram ao cuidado de estranhos. Da mesma maneira, dirá o teísta, um pecado
que cometemos ou algo que esteja além da nossa compreensão pode ter-nos
separado de Deus. Mas noutros aspectos a analogia dos bons pais não fun
ciona. Quando as crianças estão doentes e internadas num hospital, os pais
dedicados procuram por todos os meios possíveis consolar o ñlho, dando-lhe
garantias especiais do amor que lhe têm enquanto está separado deles e a
sofrer por uma razão que não compreende. Nenhum pai dedicado aproveita a
ocasião de o seu filho estar no hospital para tirar férias, dizendo para consigo
que os médicos e enfermeiras vão seguramente tomar conta do Joãozinho
enquanto os pais estão fora. Mas inúmeros seres humanos, incluindo muitos
crentes, suportam um sofrimento horrível sem quaisquer garantias do amor
e da preocupação divinos enquanto este período de sofrimento dura. Pode-se
encontrar indícios a favor desta afirmação na bibliografia acerca das vítimas
do holocausto. Na verdade, ao contrário do que pensa Wykstra, algumas das
pessoas que ponderam a questão do silêncio e da ocultação de Deus concluem
que, dados os horrendos males no nosso mundo, a ausência de Deus é um
indício decisivo da sua inexistência.85 Seguramente, añrmam, se existisse um
Deus bondoso, este desejaria que tivéssemos conhecimento da sua presença,
dado que os males horrendos no nosso mundo parecem dar-nos razão para
duvidar da sua existência. Como Wykstra reconhece, muita gente considera
o mal e o sofrimento no nosso mundo razões para concluir que Deus não
existe. E a aparente ocultação de Deus parece apenas dar razões adicionais
para concluir que nenhum ser assim existe. Os teístas cépticos, contudo, cha-
85. Ver J.L. Schellenberg, Divine Hiddenness and Human Reason {Ithaca e Londres: Cor
nell University Press, 1993).
186
O problema do mal
Teodiceias
86. Ver Hick: Evil and the God of Love (Nova Iorque: Harper and Row, 1966), em par
ticular o Capítulo XVII dá edição revista, publicada em 1978, God and the Universe of
Faiths (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1973) e o Capítulo 4 de Philosophy of Religion,
4.a ed. (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1990).
187
Introdução ã Filosofia da Religião
«A situação geral é assim a de que, tanto quanto sabemos, o sofrim ento ocorre
desorganizada, inútil e, portanto, injustificadamente. A sua relação com a edifi
cação da alma, no passado, no presente ou no futuro, parece meramente fortuita.
Em vez de servir um propósito construtivo, a dor e a angústia parecem atingir
o ser hum ano de uma form a desordenada e absurda, com o resultado de que
o sofrim ento é m uitas vezes im erecido e não raro ocorre em quantidades que
excedem seja o que for que pudesse ser objecto de um plano m o ra l.» 87
189
Introdução à Filosofia da Religião
«P arece então que, num mundo que servirá de cenário ao amor compassivo e
à abnegação pelos outros, o sofrim ento tem de recair sobre a humanidade com
alguma da desordem e da desigualdade de que temos agora experiência, Tem de
ser aparentem ente imerecido, absurdo e insusceptível de racionalização moral.
Pois é precisam ente esta característica da nossa humanidade comum que gera a
empatia entre os homens e evoca a generosidade, a bondade e a boa vontade que
se conta entre os valores mais elevados da vida pessoal.»90
190
O problema do mal
191
Introdução à Filosofia da Religião
serve o objectivo de Deus; por outro lado, parece possível mostrar que o objectivo
divino [...] não podia fazer-se cumprir num mundo concebido como um paraíso
hedonista p erm anente.»91
Vimos que a teodiceia de Hick é incapaz de nos dar um bem que justificaria
a:permissão, por um ser omnipotente e omnisciente, do sofrimento intenso
do corço ou do sofrimento atroz da criança inocente, O melhor que Hick pode
fazer é argumentar que um mundo completamente destituído de mal natural
e moral impossibilitaria a realização dos bens que Hick postula como justifica
ções para a permissão do mal por um ser omnipotente e omnisciente. Todavia,
como impedir o sofrimento do corço ou da criança inocente não destituiria
completamente o nosso mundo de mal natural ou moral, o argumento tudo-
- ou-nada de Hick não responde à nossa questão. Tão-pouco adiantará afirmar
que se um ser omnipotente e omnisciente impedisse o sofrimento do corço ou
da criança inocente seria por isso obrigado a impedir todos os outros males. Pois
se o ñzesse, como Hick argumentou, podia dar-se o caso de pararmos de nos
empenhar consideravelmente na ediñe ação da alma. A teodiceia de Hick deixa
mos o problema de ser perfeitamente razoável acreditar que alguns dos males
que ocorrem podiam ser impedidos sem diminuir o nosso desenvolvimento
moral e espiritual nem comprometer a nossa confiança no funcionamento do
mundo segundo leis naturais. A teodiceia de Hick, portanto, não consegue dar
mos uma razão para rejeitar a premissa 1, segundo a qual existem males sem
sentido, exemplos de sofrimento que um ser omnipotente e omnisciente podia
impedir sem com isso impedir a ocorrência de qualquer bem superior.
192
O problema do mal
em honra do filósofo do século xx, G.E. Moore, que o usou eficazmente ao lidar
com os argumentos dos cépticos. Filósofos cépticos como David Hume apre
sentaram argumentos engenhosos para provar que ninguém pode ter conhe
cimento da existencia de qualquer objecto material. As premissas dos seus
argumentos usam princípios plausíveis, princípios que muitos filósofos ten
taram rejeitar directamente, mas apenas com resultados questionáveis. Moore
seguiu um procedimento completamente diferente. Em vez de argumentar
directamente contra as premissas dos argumentos dos cépticos, observou ape
nas que estas premissas implicavam, por exemplo, que ele (Moore) não tinha
conhecimento da existência de um lápis. Moore argumentou então indirecta
mente contra as premissas dos cépticos, da seguinte maneira:
Moore observou então que este argumento é tão válido quanto o argumento
dos cépticos, que ambos contêm a premissa «Se os princípios dos cépticos
forem correctos, Moore não poderá saber da existência deste lápis», e con
cluiu que a única maneira de escolher entre os dois argumentos (o do próprio
Moore e o dos cépticos) é decidindo em qual das primeiras premissas é mais
racional acreditar — a premissa de Moore, «Sei que este lápis existe», ou a
premissa dos cépticos, que afirma que alguns princípios cépticos são correc
tos. Moore conclui que a sua primeira premissa é a mais racional das duas.92
92. Ver, por exemplo, os dois capítulos sobre Hume em G.E. Moore, Some Main Problems
of Philosophy (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1953).
193
Introdução à Filosofia da Religião
Antes de vermos como o teísta pode aplicar o desvio de G.E. Moore ao argu
mento básico a favor do ateísmo, devemos observar a estratégia geral do
desvio. Dão-nos um argumento: p, q, logo, r. Em vez de argumentar directa
mente contra p, construímos outro argumento — não r,,q, logo, não p — que
começa com a negação da conclusão do primeiro argumento, mantém a sua
segunda premissa e conclui com a negação da primeira premissa. Compa
remos ambos:
I. p II. nao-r
q q
r não-p
É uma verdade da lógica que se I for válido II sê-lo-á igualmente. Uma vez que
os argumentos são iguais no que diz respeito à segunda premissa, qualquer
opção entre eles tem de dizer respeito às respectivas primeiras premissas.
Argumentar contra a primeira premissa p construindo o contra-argumento
II é usar o desvio de G.E. Moore.
Aplicando uma versão convenientemente adaptada do desvio de G.E.
Moore contra o argumento indiciárío a favor do ateísmo, o teísta pode argu
mentar do seguinte modo:
194
O problema do mal
195
Introdução à Filosofia da Religião
196
O problema do mal
por exemplo, que urna amiga sua embarca num avião para o Havai. Horas
depois da descolagem você descobre que o avião caiu no mar. Depois de uma
busca de vinte e quatro horas, não se encontra sobreviventes. Nestas cir
cunstâncias é racional que o leitor pense que a sua amiga não sobreviveu.
Mas dificilmente será racional que ela própria acredite nisso enquanto está a
boiar ao sabor das ondas com um colete salva-vidas, perguntando-se por que
razão os aviões de busca não a conseguem encontrar. O teísmo e o ateísmo
não podem ser ambos verdadeiros. Mas na medida em que a experiência e
o conhecimento diferem de pessoa para pessoa, uma pode ter justificação
racional para aceitar o teísmo ao passo que outra tem justificação racional
para aceitar o ateísmo.
Caracterizámos o teísta como alguém que pensa que o Deus teísta existe
e o ateu como alguém que pensa que o Deus teísta não existe. À luz do nosso
estudo do problema do mal, talvez devamos introduzir distinções comple
mentares. Um ateu amigável pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o Deus teísta existe. Um ateu hostil pensa que
ninguém tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta existe. Há
que fazer distinções semelhantes a respeito do teísmo e do agnosticismo. Um
agnóstico hostil, por exemplo, é um agnóstico que pensa que ninguém tem
justificação racional para acreditar que o Deus teísta existe e que ninguém
tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta não existe. Mais
uma vez, temos de observar que o ateu (ou o teísta) amigável não acredita
que o teísta (ou o ateu) tem uma crença verdadeira, apenas que pode perfei
tamente ter justificação racional para adoptar essa crença. Talvez a lição final
a retirar do nosso estudo do problema do mal seja que as versões amigáveis
do teísmo, do agnosticismo e do ateísmo são todas preferíveis às respectivas
versões hostis.
197
Introdução à Filosofia da Religião
REVISÃO
ESTUDO COMPLEMENTAR
1. Discuta a questão central que opõe o teísta ao ateísta no que diz respeito
à versão indiciária do problema do mal. Qual deles terá, na sua opinião,
o melhor argumento? Explique.
2. Discuta o seguinte argumento:
198
Capítulo 8
Milagres e a mundividência moderna
199
Introdução à Filosoña da Religião
93. Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1961),
p. 5. Sublinhados meus.
200
Milagres e a mundividência moderna
94. Ibid., p. 5.
201
Introdução à Filosofia da Religião
O segundo ataque, muito mais sério, contra os milagres afirma que embora
seja possível acreditar em milagres nunca é razoável fazê-lo. A formulação
clássica desta perspectiva ocorre num ensaio famoso de David Hume.95 Neste
ensaio, Hume baseia o seu principal argumento numa certa compreensão do
que é um milagre. Contudo, antes de considerarmos a explicação de Hume
sobre o que é um milagre, será útil observar que a palavra milagre tem pelo
menos dois sentidos diferentes. No primeiro sentido, o seu significado popu
lar, um milagre é um acontecimento benéfico inesperado. Assim, um aluno
que não se tenha preparado adequadamente para um exame, ao receber uma
nota suficiente para passar de ano, poderá exclamar: «É um milagre ter pas
sado no exame!» (Por muito mal preparado que esteja, um aluno que reprova
num exame não diz: «É um milagre ter reprovado no exame!» Porquanto, no
sentido popular, um acontecimento tem de ser visto como benéfico para que
o consideremos um milagre.) A palavra milagre tem também um significado
estrito, e é neste sentido que Hume usa o termo. Em sentido estrito, um mila
gre é um acontecimento que satisfaz duas condições distintas. Em primeiro
lugar, é um acontecimento que não teria ocorrido se apenas se devesse a cau-
95. O ensaio «Sobre os Milagres» aparece como Secção X do Enquiry Concerning Human
Understanding e está nas páginas 109-131 da edição Selby-Bigge dos Enquiries de
Hume, 2.a ed. (Londres: Oxford University Press, 1902) [fiiuesligação Sobre o Enten
dimento Humano, trad. João Paulo Monteiro, Lisboa: INCM, 2002), A explicação que
darei, embora derivada do ensaio de Hume, não pretende abranger as questões pro
blemáticas que surgiram nas diversas interpretações deste ensaio. Para uma explicação :
de algumas destas questões, ver Antony Flew, Hume’s Philosophy o/Belief (Londres; :
Routledge & Kegan Paul Lda., 196l), Capítulo VIII.
202
Milagres e a mimdividência moderna
sas naturais; a ordem natural não teria produzido esse acontecimento. Temos
a certeza, por exemplo, de que quem estiver morto durante um período de
tempo considerável, e cujo corpo se encontre em decomposição, não regres
sará subitamente à vida. Pois sabemos o suficiente acerca do funcionamento
das causas naturais para saber que se o que acontecer for apenas o resul
tado causal de forças naturais um cadáver permanecerá morto e continuará
a decompor-se. Pelo que um milagre, em sentido estrito, é, em parte, um
acontecimento que não teria ocorrido apenas pela acção de causas naturais.
A segunda condição exigida para que um acontecimento seja um milagre
em sentido estrito é resultar da intervenção directa de Deus ou de algum
agente sobrenatural. Se um acontecimento ocorresse sem qualquer causa
natural, se apenas acontecesse inesperadamente mas sem se se dever à acti-
vidade causal de Deus ou de algum agente sobrenatural, não seria um mila
gre no sentido que consideramos — embora satisfaça a condição de ser um
acontecimento que não teria ocorrido se se devesse apenas a causas naturais.
Assim, no sentido estrito, um milagre é um acontecimento que 1) ocorre mas
não ocorreria se se devesse apenas a causas naturais, e 2) ocorre porque foi
causado por Deus ou por qualquer outro agente sobrenatural. Esta é basica
mente a explicação humiana. A própria definição que Hume dá de milagre é:
«a transgressão de uma lei da natureza por uma volição particular da divin
dade, ou pela intervenção de um agente invisível» ,96
203
Introdução à Filosofia da Religião
«Um milagre pode ser ou não susceptível de ser descoberto pelo homem. Isto não
altera a sua natureza e essência, A ascensão de uma casa ou um navio em pleno
ar é um milagre visível. A subida de uma pena, quando o vento carece da mínima
força que tal efeito exige, é um milagre igualmente real, embora não tão percep
tível relativamente a n ó s ,» 97
97. Ibid.
204
Milagres e a mundividência moderna
205
Introdução à Filosofia da Religião
tem de ser uma violação de uma lei da natureza não é uma condição necessá
ria para que algo seja um milagre. R.F. Holland, por exemplo, sugere o exem
plo de uma criança que deambulou para uma linha ferroviária sem saber que
um comboio se aproxima a grande velocidade. O comboio tem pela frente
uma curva, o que impede o maquinista de ver a criança. Precisamente no
momento certo, o maquinista desmaia, devido a alguma causa natural que
nada tem que ver com a presença da criança nos carris. Ao desmaiar, a sua
mão deixa de exercer pressão na alavanca de controlo, fazendo o comboio
parar a alguns metros da criança. A mãe da criança, observando à distân
cia e incapaz de ajudar, «agradece a Deus o milagre; que nunca deixa de
considerar como tal, embora, como a seu tempo vem a saber, nada haja de
sobrenatural na maneira como os travões do comboio foram accionados».98
Temos de supor neste exemplo que o acontecimento extraordinário — a
paragem do comboio a apenas alguns metros da criança — se deve inteira
mente a causas naturais. Se a criança não estivesse nos carris, o comboio
teria parado exactamente no mesmo local. Se a criança estivesse nos carris
apenas alguns metros mais perto do comboio, então, sem intervenção divina,
teria morrido. Onde está então o milagre? Onde está a mão de Deus neste
acontecimento espectacular? Concedamos que uma causa natural provocou
o desmaio do maquinista. Talvez a mãe acredite que, embora o desmaio se
deva a uma causa natural, o facto de o desmaio ter sido tão oportuno, de não
ter ocorrido alguns momentos depois, se deve de alguma maneira à inter
venção de Deus. Tem de se fazer uma certa distinção, parece, entre uma feliz
coincidência e um milagre genuíno. E, mal tentamos fazer esta distinção,
é provável que acabemos nas duas condições de Hume. Consequentemente,
embora possa haver dúvidas acerca da adequação da caracterização humiana
de «milagre», não é claro que qualquer outra caracterização seja mais ade
quada.
98. R.F. Holland, «The Miraculous», American Philosophy Quarterly (l96S), pp. 43-51,
206
Milagres e a mundividência moderna
«Um milagre é uma violação das leis natureza; e na medida em que uma experiên
cia firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra um m ilagre, pela
própria natureza do caso, é tão completa como qualquer argumento baseado na
experiência que imaginar se possa. Porquê pensar que é mais do que provável que
todos os homens têm de m orrer, que o chumbo não pode, por si, hear suspenso
no ar, que o fogo consome a madeira e se extingue com a água, senão porque se
considera que estes acontecim entos concordam com as leis da natureza, sendo
preciso uma violação destas leis, ou, por outras palavras, um milagre, para os
impedir? [...] Mas é um milagre que um morto ressuscite; porque isso nunca foi
observado, em qualquer época ou país. É forçoso que haja, portanto, uma expe
riência uniforme contra cada acontecim ento milagroso, de contrário o aconte
cimento não seria digno do seu n o m e.» 99
207
Introdução à Filosofia da Religião
209
introdução à Filosofia da Religião
Hume não aceita que o testemunho humano possa ser tão abrangente
e fidedigno a ponto de tornar mais do que razoável acreditar que um acon
tecimento absolutamente extraordinário ocorreu, um acontecimento que
contraria «a ordem habitual da natureza» :
Mas podemos ver por esta passagem que Hume pensa que a quantidade
de testemunhos a favor do acontecimento tem de ser incrivelmente enorme
antes de poder contrabalançar o peso dos indícios contra o acontecimento
retirados da nossa experiência anterior. Só se a falsidade do testemunho for
mais milagrosa do que o acontecimento testemunhado é que Hume se dispõe
a acreditar que o acontecimento ocorreu e não que as testemunhas se enga
naram. E no que diz respeito às histórias de milagres do cristianismo e de
outras religiões, o parecer de Hume é evidentemente que o peso dos indícios
sugere que as testemunhas estão enganadas.
210
Milagres e a mundividência moderna
211
Introdução à Filosofia da Religião
101. Para uma explicação mais detalhada segundo esta orientação, ver R.G. Swinburne,
«Miracles», The Philosophical Quarterly XVIII, n.° 73 (1968), pp. 320-328.
212
Milagres e a mundividência moderna
213
Introdução à Filosoña da Religião
A ideia geral é a de que na aferição que Hume faz dos indícios é difícil com
preender como alguém poderia razoavelmente acreditar que ocorreu uma excep
ção a uma suposta lei da natureza, porquanto a suposta lei terá a seu favor uma
experiência invariável. É evidente, contudo, que as excepções às supostas leis
ocorrem e é também evidente que as pessoas razoáveis revêem em consonância
102. C.D, Broad, «Hume’s Theory of the Credibility ofMiracles», reimpresso em Alexander
Sesonske e Noel Fleming, orgs., Human Understanding (Belmont, CA: Wadsworth,
1965), pp. 91-92. O ensaio de Broad foi publicado originalmente em Proceedings of
the Aristotelian Society XVII {Londres, 1916-1917), pp. 77-94.
103. Broad, «Hume’s Theory», p. 93.
214
Milagres e a mundividência moderna
104. Um acontecimento pode violar uma iei da natureza não tendo qualquer causa natural
e ainda assim não ser um milagre em virtude de não ter uma causa divina. Mas se um
acontecimento se deve apenas à actividade directa de Deus, então, se é um aconte
cimento abrangido por uma lei natural, violará também essa lei e será portanto um
milagre.
215
Introdução à Filosofia da Religião
minadas circunstâncias seria razoável acreditar que ocorreu algo que não se
deve a qualquer força ou causa natural. Mas tem de se reconhecer que isto
não significa que é razoável acreditar que ocorreu um milagre. Pois há ainda
a questão de o acontecimento se dever ou não à actividade de Deus. Que
rabões, poder-se-ia perguntar, teríamos ou descobriríamos para pensar que
o acontecimento em causa se deve à intervenção de Deus?
Se temos já boas razões para acreditar que Deus existe e que exerce uma
vigília providencial sobre a sua criação, então podemos ter boas razões para
pensar que uma violação particular de uma lei da natureza se deve a Deus. Pois
o próprio acontecimento e as circunstâncias em que ocorre podem ser exac
tamente o que esperaríamos no caso de Deus existir e de exercer uma vigília
providencial sobre a sua criação. Na verdade, desde que tenhamos razões para
acreditar que Deus existe e vigia providencialmente a sua criação, a ocorrên
cia esporádica de milagres pode ser aquilo que seria razoável esperar.
Se não temos qualquer razão para acreditar que Deus existe, será muito
mais difícil descobrir razões para pensar que uma violação particular de uma
lei da natureza se deve à actividade de Deus. Pois teríamos então de ter razões
para pensar que a violação é ela própria um indicio a favor da existência de
Deus. E se é o Deus teísta que nos preocupa, dificilmente parece possível que
isto seja assim .105
Neste capítulo ocupámo-nos de três questões: 1) Que condições um
acontecimento tem de satisfazer para ser um milagre genuíno? 2) Poderá a
mundividência que resulta do crescimento da ciência e da tecnologia tornar
as pessoas de hoje incapazes de acreditar em milagres? 3) Será em circuns
tância alguma razoável acreditar na ocorrência de um milagre genuíno? No
que diz respeito à primeira questão, seguimos a definição de Hume em ter
mos de a) ser uma violação de uma lei da natureza e b) dever-se à actividade
105. R.G. Swinburne argumentou que pode ser razoável inferir a existência de algum
género de divindade se a violação ocorrer de maneiras e circunstâncias «fortemente
análogas» àquelas em que os acontecimentos ocorrem devido a agentes humanos. Ver
o seu «Miracles», The Philosophical Quarterly XVIII, n° 73 (1968), pp. 320-328.
216
Milagres e a mundividência moderna
REVISÃO
1. Por que razões pensa Bultmann que as pessoas de hoje não podem acre
ditar em milagres? Serão as suas razões convincentes?
2. Explique a noção humiana de milagre e indique algumas objecções que
é possível levantar-lhe.
3. Qual é o argumento central de Hume a favor da perspectiva de que nunca
é razoável acreditar que ocorreu um milagre?
4. Que debilidades podemos encontrar no argumento de Hume?
217
Introdução à Filosofia da Religião
ESTUDO COMPLEMENTAR
TIPOS DE IMORTALIDADE
219
Introdução à Filosofia da Religião
ou um fantasma mas sem qualquer vida real» .106 O que sobrevive é apenas
uma sombra da pessoa que em tempos viveu na Terra. Na morte, o espírito
de um ser humano assume uma forma de existência persistente no Hades,
a terra dos mortos. Comparada com a vida antes da morte, contudo, a vida
depois da morte é vista como uma forma mais pobre de existência. Assim
diz Homero pela boca do poderoso Aquiles: «Não venhas com uma conversa
doce sobre a morte, Ulisses, luz das assembleias. Digo que é melhor lavrar a
terra como trabalhador assalariado para algum camponês pobre, vivendo de
rações de emergência, do que governar sobre todos os esgotados mortos» .107
A crença homérica na imortalidade, portanto, é uma crença num género de
sobrevivência à morte corpórea. Mas o que sobrevive aparentemente não é
senão uma sombra da mente e da alma que habitam o corpo terreno.
A concepção platónica de imortalidade envolve o abandono da ideia
homérica de que só os deuses são imortais. Também os seres humanos, do
ponto de vista de Platão, são verdadeiramente imortais. Os seus corpos,
como é óbvio, perecem com a morte. Mas não há propriamente uma iden
tificação entre a pessoa e o seu corpo; a pessoa é a alma humana, e a alma é
aquele algo espiritual em nós que raciocina, imagina e recorda. Enquanto
dura a sua vida terrena, a alma está ligada a um corpo particular, ou apri
sionada nele. Mas com a morte física a alma escapa ao cárcere do corpo e
alcança o seu verdadeiro estado de vida interminável. No diálogo Fédon, Pla
tão desenvolve dramaticamente estas ideias. Sócrates, que foi condenado a
beber o veneno da cicuta, encontra-se pela última vez com os seus seguidores
e argumenta a favor da perspectiva de que ele não é o seu corpo mas que na
verdade é uma alma espiritual no seu corpo, que a alma é indestrutível e,
portanto, imortal, e que a vida da alma depois da morte corpórea é superior
106. Homero, Iliad, livro 23, trad. W.H.D. Rouse (Nova Iorque: Tfie New American Library,
1950), p. 267. [ilíada, trad, Frederico Lourenço, Lisboa; Livros Cotovia, 2005.]
107. Homero, Odyssey, livro 11, trad, Robert Fitzgerald (Garden City, NY: Doubleday &
Company, Inc., 1963), p. 201. [Odisseia, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Livros
Cotovia, 2003,]
220
Vida depois da morte
108. Platão, Phaedo, 115 C, D, em Plato: The Last Days of Socrates, trad. Hugh Tredennick
(Baltimore, MD: Penguin Books, 1954), p. 179. [Fédon, trad. Maria Teresa Schiappa de
Azevedo, Coimbra: Minerva, 1998.]
221
Introdução à Filosofia da Religião
222
Vida depois da morte
à morte pela reunião da alma com o corpo ressuscitado. A estas duas formas
principais da ideia de vida depois da morte subjaz uma convicção comum: a
pessoa humana existe e tem experiências depois da morte do corpo. Na versão
platónica identiñca-se a pessoa com a alma; na versão crista encara-se a pessoa
humana como um composto de alma e corpo. O que nos interessa, contudo, é a
convicção fundamental de que a pessoa sobrevive à morte do seu corpo.
Temos de levantar duas perguntas que no que diz respeito à convicção
básica de que a pessoa humana sobrevive à morte do seu corpo. Há a p e r
gunta conceptual será que a convicção faz sentido? E há a pergunta factual:
será a convicção verdadeira? Claro que só podemos sensatamente levantar
a pergunta factual se pressupusermos uma resposta afirmativa à pergunta
conceptual. Assim, é melhor começarmos por esta. Será que a ideia de que a
pessoa humana sobrevive à morte corpórea faz sentido?
A INTELIGIBILIDADE DA IMORTALIDADE
1. Acções e intenções,
2. Sensações e emoções,
3. Pensamentos e memórias,
4. Percepções e
5. Características físicas {altura, cor, forma, peso).
223
Introdução à Filosofia da Religião
224
Vida depois da morte
A FAVOR DA IMORTALIDADE
110, Para discussão complementar destes temas conceptuais ver Anthony Quinton, «The
Soul», The Journal of Philosophy XLIX (1962), pp. 393-409; Peter Geach, God and the
Soul (Londres: Routledge & Kegan Paul Lda., 1969); e Terrence Penelhum, Simui/uaí
and Disembodied Existence (Londres: Routledge & Kegan Paul Lda, 1970).
225
Introdução à Filosofia da Religião
O argumento filosófico
226
Vida depois da morte
«M esm o que admitamos a natureza simples da alma, nom eadam ente, que não
contém qualquer diversidade de constituintes exteriores entre si, e portanto
qualquer quantidade extensionai, não podemos ainda negar no seu caso, como
não podemos negar para qualquer outro existente, que tenha quantidade inten-
sional, isto é, um grau de realidade respeitante a todas as suas faculdades, ou
antes, a tudo 0 que constitui a sua existência, e que este grau de realidade pode
diminuir ao longo de todos os graus infinitam ente pequenos. Desta maneira, a
suposta substância [...] pode tornar-se nada, não por dissolução, mas por perda
gradual dos seus poderes.»111
Kant procura mostrar que embora uma substância imaterial não tenha
quantidade extensionai e, portanto, não possa ser destruída por dissolução
(separação de partes) pode ter quantidade intensional e, portanto, estar
sujeita à destruição pela redução a zero dessa quantidade intensional. Dado
que a alma tem consciência, por exemplo, pode ter mais ou menos consciên
cia. Isto é, a alma pode ter consciência em maior ou menor grau (quantidade
intensional). Se o seu grau de consciência diminuir para zero e ocorrer uma
redução similar nas suas outras funções, então podemos dizer que a alma,
embora seja uma substância imaterial, foi destruída.
111. Immanuel Kant, Critique of Pure Reason, trad. Norman Kemp Smith (Londres; Mac
millan & Co., 1956), p. 373. Sublinhados meus. [Crítica da Razão Pura, trad. M.P. dos
Santos et al. Lisboa: Gulbenkian, 1985.]
227
Introdução à Filosofia da Religião
228
Vida depois da morte
O argumento científico
229
Introdução à Filosofia da Religião
113. O relatório está no S.P.R. Journal XXXIX (1957). Uma análise detalhada do caso
encontra-se em C.D. Broad, Lectures on Psychical Research (Londres: Routledge &
Kegan Paul, Lda., 1953), Capítulo XV, pp. 350-383.
230
Vida depois da morte
231
Introdução à Filosofia da Religião
(O com itente interpôs a questão: «poderá dizer-nos exactam ente o que acon
te ceu ?» e o m édium continu ou com o se segue.) Ele desmaiou na água. Não :
creio que se trate de uma p iscin a para nadar. Estou numa p iscin a privada, e
sinto m ergulhar e coisas sem elhantes. Sim , estou ao ar livre, não estou num
espaço fechado — é com o um a piscina privada [...] Sabe, ele sofreu um golpe
na cabeça antes de desmaiar [...] Havia uma prancha de mergulho, não sei se
alguém lhe bateu ou não [...] L em bra-se de cair e sen tir uma nítida pancada
na cabeça. Não podia emergir, dado que aparentem ente perdera a consciência
debaixo de água [...] É uma piscina ao ar livre, e diz que deve ter caído para a
fren te, p r e c ip itá n d o s e e batido com a cabeça [...] Vou tentar reconstitu ir o
seu falecim ento, que ele me tenta m ostrar: “Deslizava para o fundo da piscina
extrem am ente debilitado, devido a ter caído para a frente de alguma maneira e :
batido com a cabeça imediatamente antes.”114
232
Vida depois da morte
foi concebida para alcançar por meios mecânicos resultados que antes só se
obtinha com trabalho manual qualificado. Não estava ainda patenteada e fora
montada com razoável secretismo por Vandy numa sala da casa de um primo.
Outras salas da casa continham algumas máquinas ligadas à empresa, mas
nesta sala só se mantinha a recentemente construída máquina de desenho.
Na sessão com Miss Bacon, o irmão de Vandy, Harold, perguntou: «pode
ele [Vandy] descrever a natureza do seu trabalho principal?» Respondeu do
seguinte modo:
«Era extremamente bom em algo que estava a fazer e isto deixou-o terrivelmente
perturbado, porque todo o seu trabalho terreno parou. Esta era a sua maior
mágoa [...] Mostra-me uma sala e não sei se tem a ver com telégrafos ou rádio,
mas é como maquinaria e máquinas a funcionar muito rapidamente, como se
estivessem a produzir algo. Toda esta maquinaria parece subir e descer. Não digo
que seja eléctrica, as máquinas produzem de facto algo [...] Parece que ele tem
de fazer algo para as vigiar. Não percebo claramente. Há um barulho terrível. »11S
«Não na sala onde estava. Piá noutras partes, mas parece que há apenas uma
perto dele [...] Havia mais máquinas, mas ele fez algo específico Teriam talvez
a ver com litografia ou algo semelhante? Ele diz: “ litografia ou algo a ver com
impressão” [...] Não sei se ^ fotografía também entra, mas tenta mostrar-me
chapas ou algo assim [...] Parece um trabalho muito delicado, mas na sala em
que está não vejo muitas máquinas e sim uma m áquina em e sp ec ia l Noutras
partes do edifício há mais, mas ele tinha uma especial, Era muito cuidadoso com
aquilo e orgulhava-se muito.»116
233
Introdução à Filosofia da Religião
234
Vida depois da morte
O argumento teológico
CONTRA A IMORTALIDADE
235
Introdução à Filosofia da Religião
119. Bertrand Russell, Why í Am Not a Christian (Nova Iorque: Simon and Schuster, 1957),
p, 51. [Porque Não Sou Cristão, trad. Mário Alves e Gaspar Barbosa, Porto: Brasilia,
1970.]
236
Vida depois da morte
como uma pessoa fechada numa sala com apenas uma janela, podemos com
preender prontamente a dependência das funções mentais relativamente ao
corpo sem precisar de supor que com a morte do corpo a vida da mente tem
de cessar. Pois se uma pessoa estiver fechada na sala, a experiência que tem
do mundo exterior dependerá do estado da janela. Tape-se a janela total ou
parcialmente com tábuas e afectar-se-á tremendamente o género de expe
riências que a pessoa que está na sala pode ter. Da mesma maneira, quando a
pessoa humana está viva no corpo, as mudanças que ocorrem no corpo (em
particular no cérebro) terão um efeito considerável no género de experiências
mentais que a pessoa é capaz de ter. Mas talvez a morte corpórea seja análoga
ao acto de a pessoa se libertar da sala fechada, pelo que deixa de depender
da janela para ter experiência do mundo exterior. Talvez no momento da
morte, como McTaggart sugere, a mente perca a sua dependência dos órgãos
do corpo, nomeadamente do cérebro. O simples facto de a mente depender
do funcionamento do cérebro enquanto está associada ao corpo vivo não
é uma prova de que a mente deixará de funcionar no momento da morte
corpórea, tal como o facto de a pessoa depender da janela enquanto está na
sala também não é uma prova de que sem a sala e sem a janela a pessoa deixa
de ter experiências do mundo exterior .120
Como avaliaremos os indícios a favor e contra a imortalidade? Eviden
temente, o argumento mais forte a favor da imortalidade assenta na crença
de que o Deus teísta existe. Muitos teístas não contestariam esta conclusão.
As razões a favor da ideia de vida depois da morte talvez não sejam melho
res nem piores do que as razões que temos para aceitar o teísmo. O argu
mento científico contra a imortalidade parece bastante forte. Talvez, como
McTaggart argumenta, a sua força dependa de aceitarmos uma determinada
perspectiva da relação entre a mente e o corpo. Mas, contra McTaggart, os
indícios parecem mostrar que a relação entre os nossos corpos e a nossa
120. Ver J.M.E. McTaggart, Some Dogmas of Religion (l906; reimpresso, Nova Iorque;
Krays Reprint Co., 1969), pp. 103-106.
237
Introdução à Filosofia da Religião
vida mental é muito mais íntima e complexa do que a relação entre um ser
humano e uma sala em que este por acaso se encontra fechado. Se excluímos
o argumento baseado na perspectiva de que a alma é uma substância ima
terial, ñcamos com o argumento baseado no extraordinario fenómeno da
mediunidade mental. Esse fenómeno pode dar alguma razão para acreditar
numa forma de sobrevivência pessoal à morte corpórea. Mas ao contrário
do conhecimento comum que temos acerca da dependência da nossa vida
mental relativamente à existência e ao funcionamento adequado do cérebro,
os indícios derivados de fenómenos mediúnicos não nos são prontamente
acessíveis e são portanto menos dignos da nossa confiança.
Talvez, então, a perspectiva mais razoável de aceitar nesta fase seja que
i) o argumento filosófico a favor da vida depois da morte baseado na natureza
da alma é bastante inconvincente; 2) tanto 0 argumento científico a favor da
sobrevivência pessoal como o argumento cientifico contra a sobrevivência
pessoal têm algum mérito; 3) dada a nossa maior familiaridade e confiança
a respeito dos factos que sustentam o argumento científico contra a ideia de
vida depois da morte, devemos dar mais peso a este do que ao argumento:
a favor da ideia de vida depois da morte baseado nos relatos de médiuns; e
4) portanto, à parte a crença no teísmo, temos mais razões para pensar que-
não sobrevivemos à morte corpórea do que para pensar que sobrevivemos.
Resumindo, então, a menos que tenhamos boas razões para aceitar o teísmo,:
não temos, em geral, uma boa razão para acreditar na sobrevivência pessoal
depois da morte corpórea.121
121. Note-se que além dos argumentos que considerámos foram apresentadas diversas
razões a favor da crença na vida depois da morte. Para uma perspectiva favorável aos
principais argumentos a favor da vida depois da morte, ver Robert Almeder, Death &
Personal Survival (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 1992).
238
Vida depois da morte
REVISÃO
ESTUDO COMPLEMENTAR
239
Capítulo 10
Predestinação, presciência divina
e liberdade humana
241
Introdução à Filosofia da Religião
Talvez seja melhor começar pela ideia de liberdade humana. Porquanto, como
veremos, esta ideia foi compreendida de duas maneiras muito diferentes,
e a maneira que adoptarmos faz muita diferença para o tópico em causa.
Segundo a primeira ideia, agir livremente consiste em fazer o que se quer ou
escolhe fazer. Se o leitor quer sair do quarto mas o impedem, pela força, de
242
Predestinação, presciência divina e liberdade humana
o fazer, certamente concordamos que dear no quarto não é algo que o leitor
faça livremente. Não ñca no quarto de livre vontade porque isso não é o que
escolheu ou quis fazer; trata-se de algo que acontece contra a sua vontade.
Suponha-se que aceitamos esta primeira ideia de liberdade humana,
segundo a qual agir livremente consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer.
O problema da predestinação divina e da liberdade humana acaba então por
não ser um grande problema sequer. Porquê? Bem, para tomar o exemplo da
minha conversão juvenil: esta foi livre se foi algo que quis fazer, que escolhi
fazer e que não hz contra a minha vontade. Suponhamos, como creio que seja
verdade, que a minha conversão foi algo que escolhi e que quis fazer. Haverá
alguma dificuldade em acreditar também que desde a eternidade Deus decretou
que naquele momento particular da minha vida eu me converteria? Não parece.
Porquanto Deus podia simplesmente ter predestinado também que naquele
momento particular da minha vida eu quereria escolher Cristo, quereria seguir
o caminho de Deus. Sendo assim, portanto, segundo a nossa primeira ideia de
liberdade humana, o meu acto de conversão foi um acto livre da minha parte e
foi simultaneamente predestinado por Deus desde a eternidade. Na nossa pri
meira ideia de liberdade humana, portanto, não parece haver qualquer conflito
real entre a doutrina da predestinação divina e a liberdade humana.
Será correcta a primeira ideia de liberdade humana? Uma razão para
pensar que não foi dada pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704). Locke
pede que suponhamos que se leva um homem enquanto dorme para um
quarto. A porta, que é a única saída do quarto, é então firmemente trancada
a partir do exterior. O homem não sabe que a porta está trancada, não sabe,
portanto, que não pode abandonar o quarto. Acorda, dá consigo no quarto,
olha em volta, e repara que há pessoas amigáveis, com quem gostaria de
conversar. Assim, decide hear no quarto em vez de sair.122
122. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, livro II, Cap. XXI, par. 10,
org. Peter H. Nidditch (Londres: Oxford University Press, 1975), p. 238. [Ensaio Sobre
0 Entendimento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1999.]
243
Introdução à Filosofia da Religião
O que diremos deste homem? Será que hear no quarto é algo que fez
livrem ente? Bom, segundo a nossa primeira ideia de liberdade humana,
parece que sim. Pois hear no quarto é o que ele quer fazer. Pondera a hipótese
de sair, sem saber que não o pode fazer, mas rejeita-a porque prefere hear
no; quarto e iniciar uma conversa amigável. Mas poderemos mesmo acreditar
que hear no quarto é algo que ele faz livremente? Afinal, é a única coisa que
pode fazer. O homem fica no quarto por necessidade, dado que não tem o
poder de sair do quarto. Qual é a diferença entre este homem e um segundo,
colocado de igual modo num quarto, que quer sair mas, sendo incapaz de o
fazer, também permanece no quarto por necessidade? Estará a diferença no
facto de o primeiro homem fazer algo livremente, ao passo que o segundo
não? Ou dar-se-á antes o caso de o primeiro homem ter apenas mais sorte do
que o segundo? Cada um faz o que faz (hear na sala) por necessidade, e não
livremente, mas o primeiro homem tem mais sorte na medida em que aquilo
que tem de fazer é exactamente aquilo que quer fazer. Locke conclui que o
primeiro homem não é mais livre do que o segundo, apenas que tem mais
sorte. Pois a liberdade, argumenta Locke, consiste em mais do que apenas
fazer o que se quer ou escolhe; tem também de ser o poder de agir de outra
maneira. E a razão por que nenhum dos homens ficou livremente no quarto
é a de não poderem agir de outra maneira, abandonando a sala.
244
Predestinação, presciência divina e liberdade humana
245
Introdução à Fiiosoña da Religião
Mas se Deus não decretou desde a eternidade tudo o que acontecerá, como
lhe é possível ter conhecimento, desde a eternidade, de tudo o que acon
tece? Será que a doutrina da presciencia divina não pressupõe a doutrina
da predestinação divina? Decretar que algo vai acontecer num determinado
momento seria uma maneira de Deus saber de antemão que isso acontecerá.
Mas não é a única maneira de Deus poder ter tido tal conhecimento. Temos
telescópios, por exemplo, que nos permitem saber o que acontece em lugares
distantes, porque através do telescópio podemos vê-los acontecer. Imagine-
-se que Deus tem algo semelhante a um telescópio temporal, um telescópio
que permite ver o que acontece em tempos distantes. Girando as lentes foca-
-se uma determinada época, digamos, à distância de mil anos no futuro, e
vê-se os acontecimentos que ocorrem nessa época. Com esta imagem, pode
mos explicar a presciência de Deus sem supor que o seu conhecimento deriva
de ter anteriormente decretado que os acontecimentos em causa ocorrerão.
Deus conhece de antemão os acontecimentos que ocorrerão antevendo-os
e não predestinando-os. A doutrina da presciência divina, portanto, não
pressupõe a doutrina da predestinação divina. E, como vimos, não parece
haver qualquer conflito entre a presciência divina e a Uberdade humana. Pois
embora a predestinação de algo por Deus imponha a ocorrência desse algo, a
presciência que Deus tem de algo não impõe a sua ocorrência. Não é por Deus
saber as coisas de antemão que elas ocorrem; ao invés, é por elas ocorrerem
que Deus tem delas presciência.
Infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Há um problema grave
acerca da presciência divina e da liberdade humana. E embora talvez não
sejamos capazes de o resolver, será instrutivo tentar compreendê-lo e ver que
diversas «soluções» foram apresentadas por importantes filósofos e teólogos.
246
Predestinação, presciência divina e liberdade humana
247
Introdução à Filosoña da Religião
Como a premissa 2 é a mesma que b, por que razão devemos aceitar a sua
verdade? Quais são as razões pelas quais o defensor deste argumento espera
convencer-nos de que 2 é verdadeira?
A premissa 2 é sustentada por um raciocínio complexo, pelo que será
melhor desenvolvê-lo através de um exemplo. Suponhamos que são 14 horas
numa certa terça-feira e que o leitor tem uma aula de ftlosofta da religião que
começa às 14)130. Os seus amigos pedem-lhe que vá com eles ao cinema, à
tarde, mas, após considerar a proposta, o leitor consegue de alguma maneira
resistir à tentação e decide assistir à aula em vez e ir ao cinema. São agora I4h45
e o professor discorre acerca da presciência e do livre-arbítrio. Algo aborre
cido, o leitor deseja agora ter ido ver o filme em vez de ter vindo assistir à aula.
Apercebe-se, contudo, que, apesar de lamentar agora a sua decisão, nada pode
fazer. Claro que pode levantar-se e apressar-se para ver o resto do filme. Mas
não pode agora, às 14I145, fazer que não tivesse ido à aula às I4h30, não pode
agora fazer que na verdade tenha ido ver o filme, ao invés. Pode lamentar o que
fez e decidir nunca cometer novamente o mesmo erro mas, quer queira quer
não, está agora a braços com 0 facto de ter ido à aula às I4h30, em vez de ter ido
ver o filme. Está a braços com este facto porque é um facto acerca do passado e
o passado não está em nosso poder. A nossa incapacidade de alterar o passado é
248
F
r '
captada pelo coloquialismo «Não adianta chorar sobre o leite derramado», Até
certo ponto, contudo, o futuro parece aberto, maleável; podemos fazer que seja
de uma maneira ou outra. O leitor acredita que, por exemplo, na quinta-feira,
quando houver outra aula, estará em seu poder ir à aula ou, em vez disso, ir a
um cinema. Mas o passado não está aberto, está fechado, sólido como granito,
e não está de modo algum em seu poder alterá-lo. Como Aristóteles observou,
«Ninguém delibera acerca do passado mas apenas acerca do futuro e do que pode
ser de outra maneira, mas o passado não pode deixar de ter ocorrido; portanto,
tem razão Agathon ao añrmar: «Pois só isto está ausente, mesmo em Deus: tom ar
inocorridas as coisas q u ejá o co rre ra m » .» 123
F. Antes de vocês terem nascido Deus sabia que viriam à aula às 14I130 esta
terça-feira.
123. Aristotle, Nicomachean Ethics, VII, 2 ,1139b, em The Basic Works of Aristotle, org.
Richard McKeon (Nova Iorque: Random House, 194l). [Aristóteles, ÉticaaNicómaco,
trad. Antonio C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2006.]
249
Introdução à Filosoña da Religião
A. Estava em vosso poder às i4hoo fazer outra coisa que não vir à aula às::
14I130 esta terça-feira.
250
Predestinação, presciencia divina e liberdade humana
poder agir de tal modo que, antes de você ter nascido, Deus não sabia que
o leitor iria assistir à aula às 14I130. Mas tínhamos concluído que os factos
acerca do passado não estão em nosso poder. Se mantivermos esta convicção
— como parece que temos de fazer — então temos de concluir que, se Deus
não sabia antes de o leitor nascer que iria à aula às I4h30 (esta terça-feira),
então não estava em seu poder às 14I100 agir de outra maneira. E, generali
zando a partir deste exemplo particular, podemos concluir que se o passado
nunca está em nosso poder, então, se Deus sabe antes de nascermos tudo o
que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Abrimos caminho a custo, através do raciocínio complexo que se pode usar
para sustentar a premissa 2 do argumento concebido para defender o conflito
entre a presciência divina e a liberdade humana. Essa premissa, como o leitor
se recorda, afirma que, se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos,
então nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Na sua formulação
mais simples, o raciocínio apresentado a favor da premissa 2 consiste em argu
mentar que, se 2 não é verdadeira, então temos poder sobre o passado. Mas
como o passado não está em nosso poder, 2 tem de ser verdadeira. De
segue-se, de acordo com esse raciocínio, que por vezes está em nosso poder
determinar o passado. Como nunca está em nosso poder determinar o pas
sado, as premissas I e II não podem ambas ser verdadeiras. Portanto, se I é
verdadeira, então ÍI é falsa. Mas afirmar que 1 é falsa é apenas afirmar que
nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Assim, se I é verdadeira,
então nunca está em nosso poder agir de outra maneira — e isto é exacta
mente o que afirma a premissa 2.
251
Introdução à Filosofia da Religião
Estivemos a ver o que talvez seja o argumento mais forte a favor da pers
pectiva de que a doutrina da presciência divina, tal como a doutrina da pre
destinação divina, entra fundamentalmente em conflito com a crença na
liberdade humana, um argumento que perturbou os filósofos e os teólogos
durante séculos. Chegou a altura de considerar as diversas «soluções» que
foram apresentadas e avaliar os seus pontos fortes e fracos.
O próprio argumento limita o número de soluções possíveis às quatro
seguintes:
A definição de liberdade
252
Predestinação) presciência divina e liberdade humana
em fazer aquilo que se quer ou escolhe fazer; a liberdade não exige o poder
de agir de outra maneira. Quem aceita esta ideia de liberdade humana não
vê, e com razão, qualquer conflito entre ela e a doutrina da predestinação
divina. Uma solução semelhante foi desenvolvida mais plenamente pelo teó
logo americano Jonathan Edwards {1703-1758). A adequação desta solução
depende inteiramente de se poder ou não defender, contra as críticas dos
filósofos, a sua ideia acerca daquilo em que consiste a liberdade humana .124
Contudo, tendo rejeitado esta ideia de liberdade em favor da segunda ideia —
a ideia de que só fazemos algo livremente se estiver em nosso poder agir de
outra maneira — não insistiremos nesta solução para 0 problema da presciên
cia divina e da Uberdade humana. Pois dada a segunda ideia de liberdade
humana, tem de se aceitar a verdade da premissa 3.
124, Para uma defesa brilhante da primeira ideia de liberdade, bem como uma resposta às
objeeções levantadas contra a mesma, ver Jonathan Edwards, Freedom of the Will,
org. A.S. Kaufman e W.K. Frankena (Indianapolis: The Bobbs-Merrill Co., 1969).
253
Introdução à Filosofia da Religião
254
Predestinação, presciencia divina e liberdade humana
poder de qualquer destes grupos fazer coisa alguma a respeito de fi. Ambos
os grupos podiam lamentar as acções que tornaram fi um facto acerca do
passado. Mas é abundantemente claro que, entre todas as coisas que em 1943
estes grupos podiam fazer, nenhuma delas é tal que, caso a tivessem feito, fi
não seria um facto acerca do passado. Não faz qualquer sentido olhar para
trás, para 1943, e añrmar que se ao menos um destes grupos tivesse feito na
altura isto e aquilo, então fi nunca seria um facto acerca do passado. Não faz
sentido precisamente porque, relativamente a 1943, fi é um facto apenas
acerca do passado. Nada que alguém pudesse ter feito em 1943 teria alterado
o facto de que em 1941 o Japão atacou Pearl Píarbor.
Mas e quanto a Í2 , o facto de em 1941 se ter iniciado uma guerra entre
o Japão e os Estados Unidos com a duração de quatro anos, o que podemos
dizer? Sabemos que em 1943 nem um nem outro grupo fez coisa alguma que
alterasse este facto acerca de 1941. A questão, contudo, é se houve ou não
coisas que não se ñzeram em 1943, coisas que, não obstante, estavam em
poder de um ou outro grupo, ou ambos, de tal maneira que, se as ñzessem,
um determinado facto acerca de 1941, f2, não seria sequer um facto. Talvez
não tenha havido. Talvez o ímpeto da guerra fosse tal que nenhum dos grupos
tinha 0 poder de lhe pôr fim em 1943. Maioritariamente, suponho, pensamos
de outra maneira. Pensamos que provavelmente houve determinadas acções
que não se realizaram mas que um ou outro grupo podia ter realizado em
1943, acções que, se tivessem sido realizadas, teriam posto fim à guerra em
1943. Se aquilo que pensamos ser verdade o é de facto, então estava em poder
de um ou mais grupos, em 1943, determinar um facto acerca do passado;
estava em seu poder em 1943 fazer algo tal que, se o tivessem feito, um deter
minado facto acerca de 1941, f2, não seria um facto acerca de 1941. A razão
fundamental por que, em 1943, f2 pode ter estado em poder destes grupos,
ao passo que fi seguramente não estava, é que, ao contrário de fi, f2 não é
apenas acerca do passado, no que diz respeito a 1943, porquanto f2 implica
um determinado facto acerca de 1944 — que em 1944, o Japão e os Estados
Unidos estão em guerra (f3 ).
255
Introdução à Filosofia da Religião
256
Predestinação, presciencia divina e liberdade humana
do futuro que ultrapassam o seu poder. Por exemplo, Deus sabia antes de o
leitor nascer que o Sol nasceria amanhã. Este facto acerca do passado não é
apenas acerca do passado porque implica um facto acerca de amanhã, que o
Sol nascerá. Não obstante, é um facto que o leitor não pode alterar.
Estivemos a considerar a segunda solução para o problema da presciência
divina e da Uberdade humana. Como vimos, esta solução consiste em negar o
raciocínio que sustenta a segunda premissa do argumento peio qual se desen
volveu o problema, a premissa que añrma que, se Deus sabe antes de nascer
mos tudo o que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Segundo o raciocínio que sustenta esta premissa, dada a presciência divina,
só está em nosso poder agir de outra maneira se está em nosso poder alterar
algum facto acerca do passado, um facto acerca do que Deus sabia antes de
termos nascido. A solução que estivemos a considerar aceita este ponto do
raciocínio apresentado a favor da premissa 2, mas nega o seguinte: que o pas
sado nunca está em nosso poder. Daqui se argumenta que alguns factos acerca
do passado não são apenas acerca do passado, que alguns desses factos podem
estar em nosso poder, e que os factos acerca da presciência divina usados no
raciocínio que sustenta a premissa 2 são disso exemplos. Assim, de acordo com
a segunda solução principal, não temos boas razões para aceitar a segunda pre
missa do argumento, que parte da presciência divina para concluir a negação
da liberdade humana. E, sem tais razões, tem ainda de se mostrar uma difi
culdade real em defender simultaneamente que Deus sabe antes de nascermos
tudo o que faremos e que por vezes temos o poder de agir de outra maneira.
A negação da presciência
257
introdução à Filosofia da Religião
cia. Todavia, como veremos, esta foi a solução preferida por muitos teólogos
importantes na tradição religiosa ocidental.
A terceira solução tem duas formas diferentes. A primeira é que as afir
mações acerca de determinados acontecimentos do futuro, que poderão
ocorrer ou não, não são verdadeiras nem falsas; tornam-se verdadeiras (ou
falsas) quando os acontecimentos a que se referem ocorrem efectivamente
(ou não ocorrem). Por exemplo, agora, a afirmação «Você assistirá a uma aula
numa determinada hora, num determinado dia da próxima semana» não é,
na perspectiva em causa, verdadeira nem falsa. Na próxima semana, naquela
hora daquele dia em particular, a afirmação tornar-se-á verdadeira se o leitor
for à aula e falsa se não for. Desta perspectiva a respeito das afirmações sobre
o futuro, normalmente atribuída a Aristóteles, resulta que Deus não sabe
agora se o leitor vai ou não assistir à aula naquela hora da próxima semana,
que não tem presciência de tais acontecimentos do futuro. Porquanto só há
conhecimento acerca do que é verdade e, se as afirmações acerca do futuro :
não são verdadeiras nem falsas, não podem ser objecto de conhecimento.
A forma mais amplamente aceite da terceira solução assenta na ideia de que: :
Deus é «eterno» no segundo dos dois sentidos que apresentámos no Capítulo i.
Aí vimos que «ser eterno», no primeiro sentido do termo, é ter duração infinita
em ambas as direcções temporais. No segundo sentido, contudo, «ser eterno»
é existir fora do tempo e, portanto, independentemente da lei fundamental do:
tempo, segundo a qual a existência de tudo o que está no tempo, mesmo um ser
perpétuo, divide-se em partes temporais. Como escreveu Boécio,
«Pois tudo o que vive no tempo vive no presente, procedendo do passado para o
futuro, e no tempo nada é constituído de tal modo que possa abarcar de uma só
vez todo o âmbito da sua vida. Não chegou ainda ao amanhã e já perdeu o ontem;
mesmo a vida deste dia é vivida em cada momento transitório, passageiro. » 125
125. Boécio, The Consolation of Philosophy, prosa VI, trad. Richard Green (Nova Iorque:
The Bobbs-Merrill Company Inc., 1962).
258
Predestinação, presciência divina e liberdade humana
259
Introdução à Filosofia da Religião
260
Predestinação, presciência divina e liberdade humana
127, Para um estudo excelente destes problemas, ver Nelson Pike, God and Timelessness
{Nova Iorque: Schocken Books Inc., 1970).
261
Introdução à Filosoña da Religião
REVISÃO
ESTUDO COMPLEMENTAR
262
Predestinação, presciência divina e liberdade humana
263
Capítulo 11
Pluralidade de religiões
265
Introdução à Filosofia da Religião
I ll
Embora tenhamos situado o conceito teísta de deus nas principais religiões
do Ocidente (judaísmo, cristianismo e islamismo), seria um erro pensar que só
nestas religiões se encontra o teísmo. Os que veneram o grande deus Vbcnu, no
Mnduísmo, por exemplo, pertencem também à tradição teísta. No hinduísmo,
a tradição teísta encontra-se mais plenamente desenvolvida no Bhagavad-
-Gita, os textos religiosos mais populares e com maior divulgação na índia.
O Bhagavad-Gita (Canção do Senhor) é um poema extenso que regista o diálogo
entre Crixna (a encarnação de Vixnu) e um homem, Arjuna, imediatamente
antes de uma grande batalha. Nesta obra, o caminho da devoção é apresentado
como o melhor meio de obter a salvação e a vida eterna. Assim, afirma Crixna:
Depressa acorro
A todos os que me oferecem
Cada acção,
Só a mim venerem,
A sua maior alegria
Com imperturbável devoção
Porque me amam
Estes são os meus escravos
E salvá-los-ei
Da dor mortal
E todas as ondas
Do oceano mortal da vida
Sede absortos em mim,
Em mim abrigai as vossas mentes:
Assim habitarão em mim,
Não o duvideis
Agora e doravante128
128. Swami Prabhavananda e Christopher Isherwood, trad., The Song of God: Bhagavad-
-Gita (Nova Iorque: Mentor Books, 1954), p. 98. [Poema do Senhor, Bhagavad-Guitá,
trad. Antonio Barahona, Lisboa, Relógio d’Água, 1996.] ■
Blip
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266 ¡ill
Pluralidade de religiões
267
Introdução à Filosofia da Religião
EXCLUSIVISMO
Talvez a postura mais natural para o crente de uma religião particular seja a de
que a verdade está na sua própria religião e que qualquer religião que defenda
268
Pluralidade de religiões
269
Introdução à Filosofia da Religião
«ninguém que permaneça fora da Igreja Católica, não só os pagãos mas também
os judeus ou heréticos ou cismáticos, pode participar da vida eterna; mas irão
para o «fogo eterno que foi preparado para o diabo e os seus anjos», a menos
que se juntem à Igreja antes de morrer, » 129
129. John F. Clarkson, org., The Church Teaches: Documents of the Church in English
Translation (St. Louis, MO: B. Herder Book Co., 1955), p. 78.
270
Pluralidade de religiões
«Afirmamos como cristãos que Deus é o deus do amor universal, que é o criador
e pai de toda a humanidade, que deseja o bem último e a salvação de todos os
homens. Mas também afirmamos, tradicionalmente, que o único caminho para
a salvação é o cristão. E no entanto sabemos, quando paramos para pensar no
assunto, que na sua grande maioria os seres humanos que viveram e morreram
até à data viveram ou antes de Cristo ou fora dos domínios da cristandade. Pode
remos então aceitar a conclusão de que o deus do amor, que procura salvar toda
a humanidade, determinou apesar disso que os homens têm de ser salvos de
tal maneira que a salvação só abrange efectivamente uma pequena minoria ? » 130
A segunda dificuldade para uma religião exclusivista surge assim que nos
familiarizamos seriamente com outras religiões e com as vidas dos seus fun
dadores e principais santos. Tal como acontece na nossa própria tradição reli
giosa, encontramos figuras piedosas noutras religiões, indivíduos cujas vidas
exibem devoção religiosa e um compromisso ético profundo. Que Mahatma
Gandhi, por exemplo, tenha de ir para o inferno porque não se converteu
ao cristianismo ou a outra religião exclusivista parecerá uma ideia duvidosa,
se não mesmo absurda, a qualquer pessoa familiarizada com o hinduísmo e
com a vida de Gandhi.
INCLUSIVISMO
O estudante de religião cedo aprende que uma tradição religiosa é algo vivo
e vibrante, em constante mudança mesmo quando reafirma as suas ideias e
práticas básicas. Embora uma religião possa originalmente desenvolver uma
130. John Hick, God and the Universe of Faiths (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1973),
p .122.
271
Introdução à Filosofia da Religião
«Podem também obter a salvação eterna aqueles que sem culpa própria desco
nhecem o evangelho de Cristo ou a Sua Igreja, mas no entanto procuram since
ramente Deus e, movidos pela graça, se esforçam em actos por cumprir a Sua
vontade, como esta lhes é dada a conhecer pelos ditames da consciência. Tão-
-pouco a divina Providência nega a ajuda necessária à salvação àqueles que, sem
culpa própria, não chegaram ainda a um conhecimento explícito de Deus, mas
que se esforçam por ser boas pessoas, mercê da Sua graça. Qualquer bondade
ou verdade que se encontre neles é encarada pela Igreja como preparação para
o Evangelho. » 132
131. Devo esta explicação ao trabalho de John Hick. Ver em particular God and the Uni
verse o f Faiths, Capítulo 9.
132. Segundo Concílio do Vaticano, Dogmatic Constitution on the Church (21 de Novembro
de 1964), Cap. II, parte 16.
272
Pluralidade de religiões
ter tido conhecimento de Deus {talvez nem sequer crença neste). Basta que
se faça o melhor possível por ser uma boa pessoa. Talvez se tenha também
de ter um desejo implícito de cumprir a vontade de Deus. Mas o principal é
aparentemente poder nascer, viver e morrer sem alguma vez ter ouvido falar
em Deus ou em Cristo e ainda assim conseguir a salvação no seio da igreja.
Um cristão inclusivista pode insistir que o cristianismo é o único cami
nho para a salvação, que ninguém seria salvo sem a intervenção do divino
naquela religião particular. Mas um cristão inclusivista evita as dificuldades
do exclusivismo permitindo que no caminho cristão para a salvação se inclua
quem, sem culpa própria, está privado dos meios normais de salvação por
viver em lugares ou épocas onde e quando o evangelho de Cristo não lhes é
acessível. Assim, embora negue a validade última de outras religiões, o cris
tão inclusivista pode ainda assim aceitar que os membros de outras religiões
alcancem a salvação seguindo os caminhos que essas religiões estabelecem.
Podem alcançar a salvação porque fazem o melhor que podem com a luz de
que dispõem e porque podem ter um desejo implícito de cumprir a vontade
do Deus cristão. Uma alternativa seria afirmar que aqueles que, sem culpa
própria, não tiveram a hipótese de responder ao evangelho de Cristo nesta
vida terão a oportunidade de o fazer no mundo que virá. Com pequenas alte
rações deste género, a tendência exclusivista numa religião pode ser posta
de lado a favor do inclusivismo.
PLURALISMO
273
Introdução à Filosofia da Religião
C E P T IC IS M O D O G M ATISM O P LU R A L IS M O
E x c lu siv ism o In clu siv ism o
133. John Hick, An Interpretation of Religion (Londres: The Macmillan Press, 1989), p. 235.
274
Pluralidade de religiões
275
Introdução à Filosofia da Religião
lidade divina por intermédio do deus ou dos deuses que se venera. É a mesma
realidade divina de que se tem experiencia com Alá, com o deus do judaismo,
com o deus cristão, Crixna, Xiva, e com todas as outras divindades pessoais
através das quais os seres humanos nas diversas culturas e tradições religiosas
çncontraram a realidade última. As diversas divindades que povoam as gran
des religiões do mundo são manifestações da realidade divina na experiência
humana. É porque todas estas divindades e as religiões em que operam mani
festam a mesma realidade divina última que aqueles que respondem com a fé
a estas diversas divindades se podem transformar de seres centrados em si em
seres centrados no divino. Além disso, não só os deuses pessoais das religiões
do mundo manifestam a realidade divina última aos héis dessas religiões como
o impessoal absoluto Brama funciona da mesma maneira; também este mani
festa a realidade divina ultima aos que têm experiência de Brama. O que torna
todas estas religiões legítimas e verdadeiras, então, é o facto de em todas se
encontrar a realidade divina última nos diversos deuses pessoais e absolutos
impessoais que são os focos da devoção e da experiência religiosas.
Temos de levantar duas questões acerca da teoria do pluralismo religioso
de Hick. Em primeiro lugar, o que poderá Hick dizer-nos acerca da realidade
divina última, de que se tem experiência por intermédio dos deuses pessoais
e absolutos impessoais das grandes tradições religiosas? Em segundo lugar,
dado haver tal realidade além dos numerosos deuses pessoais, qual é o esta
tuto dos próprios deuses? Existirão todos? Se sim, não voltamos então ao
politeísmo, adicionando-lhe talvez uma realidade divina em que os muitos
deuses participam e a qual manifestam aos seus seguidores? Mas antes de
investigar estas questões, talvez queiramos perguntar por que razão pensa
Hick que a ideia que faz das tradições religiosas mundiais está correcta. Eis
como ele coloca esta questão:
«Mas como se pode chegar a tal perspectiva? Não estaremos a propor uma ima
gem reminiscente da antiga alegoria dos cegos e do elefante, em que cada um
passa as mãos por uma parte diferente do animal, identificando-a de modo dife-
276
Pluralidade de religiões
rente, a perna com uma árvore, a tromba com uma serpente, a cauda com uma
corda, e por aí em diante? Evidentemente, na história descreve-se a situação do
ponto de vista de alguém que pode observar quer o elefante quer os cegos. Mas
onde está a posição a partir da qual se pode observar quer a realidade divina quer
os diferentes pontos de vista humanos e limitados, a partir dos quais se percep-
ciona diferentemente aquela realidade? O defensor da concepção pluralista não
pode fingir semelhante visão cósmica. Como pode então añrmar saber que a
situação é de facto como a representa? »13S
135. John Hick, Problems of Religious Pluralisvi (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1985),
p. 37.
277
Introdução à Filosofia da Religião
«Assim, não se pode dizer que o real em si é um ou muitos, pessoa ou coisa, cons
ciente ou inconsciente, intencional ou não intencional, substância ou processo,
bom ou mau, amoroso ou odioso. Nenhum dos term os descritivos que se apli
cam ao domínio da experiência humana se pode aplicar literalmente à realidade
insusceptível de experiência que subjaz àquele domínio. » 136
278
Pluralidade de religiões
279
Introdução à Filosofia da Religião
137. Para uma discussão crítica da perspectiva de Hick de que não se pode atribuir proprie
dades substantivas ao real, ver o meu ensaio «Religious Pluralism», Religious Studies
35, 2 (1999), pp. 139-150. Ver também os importantes ensaios sobre o pluralismo
religioso em Philip L. Quinn e Kevin Meeker, orgs., Vie Philosophical Challenge of
Religious Diversity (Oxford: Oxford University Press, 2000).
138. Hick, An Interpretation of Religion, p. 270.
280
Pluralidade de religiões
281
introdução à Filosofia da Religião
REVISÃO
ESTUDO COMPLEMENTAR
1. Em vez de postular o real em si, por que não postular um ser pessoal infi
nito que aparece às pessoas em religiões diferentes e a que se dá nomes
diferentes? Que razões pode dar a favor e contra esta ideia?
2. Suponha que aceitamos algo semelhante ao pluralismo religioso de Hick.
Será que isto significa que não há maneira de avaliar religiões diversas?
Poderia ainda haver um critério para avaliar as religiões como melhores
ou piores? Explique.
282
Glossário de conceitos e ideias importantes
283
Introdução à Filosofia da Religião
Ser impossível: Um ser que não existe e não pode logicamente existir.
Ser necessário: Um ser que existe e não pode logicamente deixar de existir.
Ser possível: Um ser que ou existe ou podia logicamente existir.
Ser que existe no entendimento: Um ser no qual pensamos.
S.er que não está em acto: Um ser que não existe.
Teísmo: Crença na existência de um Deus perfeitamente bom, criador do
mundo, distinto e independente do mundo, omnipotente, omnisciente,
eterno e auto-existente.
Argumento a posteriori: Argumento tal que nem todas as suas premissas bási
cas são proposições a priori (de modo equivalente: pelo menos uma das
suas premissas básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento a priori: Argumento tal que todas as suas premissas básicas são
proposições a priori (de modo equivalente, nenhuma das suas premissas
básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento cosmológico: tentativa de derivar a existência de Deus a partir
da existência do universo.
Princípio de não contradição: Para qualquer afirmação e respectiva negação,
P e não P, no máximo uma é verdadeira (de modo equivalente, nenhuma
afirmação pode ser simultaneamente verdadeira e falsa — nada pode,
ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ter uma propriedade e carecer
dessa propriedade).
Princípio de razão suficiente: Para tudo o que existe, o facto de essa coisa existir
tem de ter uma explicação; e para qualquer facto positivo acerca de qual
quer coisa que exista tem de haver uma explicação para o facto em causa.
Proposição a posteriori: Proposição que só se pode conhecer através da expe
riência sensorial.
Proposição a priori: Proposição que se pode conhecer prévia ou indepen
dentemente da experiência sensorial.
284
Glossário de conceitos e ideias importantes
285
Introdução à Filosofia da Religião
286
Glossário de conceitos e ideias importantes
Princípio de credulidade: Se uma pessoa tem uma experiência que parece ser
de %, então, a menos que haja uma razão para pensar de outro modo, é
racional acreditar que x existe.
Tese da unanimidade: Os místicos de diferentes religiões têm basicamente
todos a mesma experiência.
CAPÍTULO 6: FÉ E RAZÃO
Analogia Deus-pai: Deus é para os seres humanos como os bons pais são para
os seus filhos, a quem amam. Os bons pais, contudo, fazem o melhor que
podem para confortar e acompanhar os seus filhos quando estes sofrem
por razões que não compreendem.
Ateu amigável: Um ateu que pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o deus teísta existe.
Ateu hostil: Um ateu que pensa que ninguém tem justificação racional para
acreditar que o deus teísta existe.
287
Introdução à Filosofia da Religião
288
Glossário de conceitos e ideias importantes
289
Introdução à Filosoña da Religião
290
Glossário de conceitos e ideias importantes
291
Leitura complementar
293
Introdução à Filosofia da Religião
294
Leitura complementar
295
Indice remissivo
297
Introdução à Filosofia da Religião
Bultmann, Rudolph - 19,199, 200, 201, Dependente, definição de ser - 42, 47, 48,
202,217 50, 51, 52, 53 , 5 4 , 55, 61 , 111, 112, 143 ,
acerca de milagres - 200, 201 283
Desígnio, argumento do - 11, 39, 40, 87,
Cepticismo, o mal e o - 236, 274 88, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 99,100,
Céptico, teísmo - 12,182,184,187, 288 101.102.103.106.107, 285
Ciencia - 15, 16, 59, 96, 98,102, 199 , 200, conceitos básicos do - 87-99
■ 201,216,236 criticas de Hume ao - 98, 99,100
milagres por oposição a - 199-201 novo argumento do desígnio - 98,101,
Clarke, Samuel - 36, 41, 58 102,107
Clifford, William - 144,145,146,147,148, Desígnio inteligente, indícios a favor do -
149 ,153,156,157,158, 159,168,287 88, 90, 93 , 95 ,9 6 , 97 ,9 8 , 9 9 ,1 0 0 ,103,
Comunicador - 230 105.107, 285
Comuns, experiências religiosas - 127,137 «Desvio de G.E. Moore» - 192,194, 288
Ver Não místicas, experiências Deus. Ver também crença em Deus
religiosas Argumentos a favor da existência de
Consistência Lógica -170-174 a posteriori - 39, 87, 282
Contradições - 277 a priori - 39, 40, 63, 284
Controlo - 20, 170, 206, 230, 245 cosmológico - 39, 40, 41, 42, 43,
Cosmológico, argumento a favor da 4 4 , 4 5 , 46, 4 7 , 48, 4 9 , 50, 51, 5 4 ,
existência de deus - 39, 40, 41, 42, 43, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 6 3 ,105,
4 4 , 4 5 , 46, 47, 48, 4 9 , 50, 51,52, 5 4 , 5 5 , 106,109,164,169, 284
56 , 57 , 58, 5 9 , 61, 62, 63,105,106,164, do desígnio - ll, 39, 40, 87, 88, 90,
284 91, 92, 9 4 , 95 , 96, 97 , 98, 9 9 , 100,
crítica ao - 48-49 101, 102,103,105,106, 107,109,
principais desenvolvimentos do - 40-41 169,285
princípio da razão suficiente e - 43-45 ontológico - 40, 63, 68, 69, 70, 74,
respostas às críticas ao - 49-54 75, 76, 77, 78, 82, 85,86,105,106,
Credulidade, princípio de -120,121,134, 164,166,169,195, 285
138,287 atributos de - 21, 41
Crença em Deus. - 18,19, 28, 39,106,109, auto-existente - 22, 29, 32, 36, 37, 41,
116,160,163,164,165,166,167,168,169 42, 4 4 , 52, 53 , 55 , 61,105, 169, 283,
Ver também ideias religiosas 284
fé por oposição à razão como base para bases para acreditar em - 109,127-137
-140-149 bondade de - 25, 27
James acerca da - 144 distinto - 32
Tomás de Aquino acerca de - 141-143 eternidade de - 34, 35, 37, 243, 259
Criação e a teoria do Big Bang - 101-104 ideias de
de Robinson - 36,109
Darwin, Charles - 96, 97, 98, 99,102,104, monoteístas - 32, 33
107,285, 293 panteístas - 32, 33
Dedutiva, Validade - 42 politeístas - 20
Demonstration of the Being and teístas - 101,103,104,105,106,115,
Attributes of God, A (Clarke) - 41 137,138,139,152, 153 ,154 ,155 ,
Dempski, William - 97 156,157,158,160,164,166,167,
Dependência absoluta - 111,112 169,170,171,179,182,183,185,
298
índice remissivo
299
introdução à Filosofia da Religião
300
Índice remissivo
301
Introdução à Filosofía da Religião
302
Yerbo
é uma chancela
idfce
TRODUÇÃO À F IL O S O F IA DA R ELIG IÃ O
William L. Rowe
T I T U L O OR IG IN A L
Philosophy of Religion; an Introduction
TR A D U Ç A O
Vítor Guerreiro
REVIS ÃO Cl EN TÍ RI CA
Desiderio Murcho
ISBN
978-972-22-3022-3
DE PÓ SI TO LE G A L
0835633
BABEL
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