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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

Odilon Francisco Gomide Amaral

SISTEMAS DE SAÚDE:
Os modelos adotados pelo mundo e a opção brasileira

Belo Horizonte
Dezembro de 2022
1 INTRODUÇÃO

O SUS, que veio à luz na Constituição de 1988, renasceu durante a pandemia. Mas não escapou de
seu estado crônico de morbidez. O respiro deveu-se mais à força, à dedicação, ao sacrifício de seus
profissionais, que levaram o sistema a ser assunto e enaltecido quase que diariamente na mídia
tradicional e nas redes sociais. Mas ainda teve que resistir contra quem mais deveria tê-lo apoiado e
sustentado: o governo federal.

A Covid-19 escancarou os abismos sociais que atravessam o país e demonstrou ainda mais
claramente a necessidade de um sistema universal público, gratuito e funcional de saúde. Não fosse
a capilaridade do SUS e a expertise em campanhas nacionais, por exemplo, a vacinação teria
sofrido atrasos ainda maiores que os provocados por um comando que se desarticulou na troca
frequente de ministros -que culminou na nomeação de um especialista em logística que desconhecia
os estados da federação, alheio à área médica- e sob o comando de um presidente negacionista.

Neste trabalho, busca-se abrir mais uma frente de discussão sobre o funcionamento dos sistemas
nacionais de saúde -divididos teoricamente em três modelos básicos: o privado/Americano; o de
Bismarck, seguro social de mandatos obrigatórios; e o nacional, que segue o modelo de Beveridge.
Nenhum funciona autonomamente, apenas com os elementos próprios. Dadas as particularidades de
cada país que os adotam, aspectos de uns são incorporados a outros, já que a prática e a realidade
realçam contextos institucionais complexos e específicos de cada nação.

Por fim, é apresentada a opção (ou as opções) brasileiras no decorrer da história e os desafios de se
manter um sistema universal público e gratuito num país de dimensões continentais e problemas
universais de desigualdades. A implantação do SUS nunca foi completa. O sistema padece de
problemas crônicos de financiamento e é vítima de ataques que visam seu enfraquecimento em
nome de iniciativas privadas, que vêm na enorme população brasileira um promissor mercado -mas
praticamente inacessível à grande maioria de dessa mesma população.
2 SISTEMAS E MODELOS

No Brasil é lei e está na Constituição de 1988: a saúde é direito de todos e dever do Estado
(MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 55). Como isso é (ou deveria ser) feito é uma questão
complexa. E isso não se restringe às fronteiras nacionais. Apesar de serem divididos basicamente
em três modelos, os sistemas de saúde são variados e nenhum país se enquadra exatamente em um
deles. Mas essa tipologia oferece uma boa maneira de começar a pensar sobre o conjunto variado de
sistemas nacionais de saúde (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 322).

A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) propôs, na década de


1980, a tipologia proposta nestes três segmentos básicos: um modelo de serviço nacional, de
cobertura universal, financiado com impostos e de propriedade pública sobre a provisão de serviços
de atenção à saúde; um de seguro social, também de cobertura universal, financiado com
contribuições sociais, de propriedade pública e/ou privada; e um privado, regido pelo mercado,
financiado por contribuições particulares e propriedade privada sobre a provisão (MREJEN;
MILLET; HONE, 2022, p. 47). Essas três abordagens são representadas, respectivamente, como os
modelos conhecidos como Beveridge, Bismarck e Americano (BHATTACHARYA; HYDE; TU,
2014, p. 309). Reforçando, tratam-se de modelos, “construídos focando só em algumas
características dos sistemas realmente existentes que, em menor ou maior medida, apresentam
elementos de diferentes modelos (MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 50).

E, ainda, os sistemas nacionais de saúde tendem a sofrer mutações ao longo do tempo, movidos pela
globalização, mudanças demográficas, institucionais e tecnológicas. Por exemplo, sistemas de
serviço nacional de saúde têm incorporado serviços providos pelo setor privado, sistemas de seguro
social têm aumentado a relevância do financiamento através de impostos e sistemas privados
experimentam um crescimento na ingerência estatal na regulação e no financiamento (MREJEN;
MILLET; HONE, 2022, p. 51).

Um sistema nacional de saúde é, segundo Mrejen, Millet e Hone (2022, p. 43) o conjunto de
recursos e organizações, públicas e privadas, destinados a manter, reabilitar ou melhorar a saúde dos
habitantes de um país. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são definidos por seis
pilares: serviços de atenção à saúde; trabalhadores de saúde; sistemas de informação da saúde;
insumos; financiamento da saúde; e liderança e governança. Seu objetivo deve ter em vista a
provisão de serviços de saúde efetivos, seguros e de qualidade a todos os que precisam e quando
precisam de forma eficiente, com garantia de acesso equitativo da população a produtos médicos,
vacinas e tecnologias cientificamente validadas e que sejam seguras, eficazes e custo-efetivas
(MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 44).

Segundo Bhattacharya, Hyde e Tu (2014, p. 308), existem três objetivos amplos que são alvo das
políticas de saúde: saúde, riqueza e equidade. Se tais metas pudessem ser alcançadas
simultaneamente, a política de saúde não seria uma fonte de infinito embate político. Alguns países
podem valorizar muito a equidade social e a população estar dispostos a pagar mais impostos para
alcançá-la. Outras pessoas podem preferir arcar com um prêmio maior à saúde e estarem dispostas a
tolerar mais risco moral ou preços de monopólio… Por enfrentar várias imperfeições do mercado e
porque muitas pessoas sentem que a saúde é um tipo especial de bem que deve ser acessível a todos,
os governos há muito se envolvem muito mais com a saúde do que em outros mercados.
(BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 306). Mrejen, Millet e Hone (2022, p. 45-46)
argumentam que o fortalecimento de sistemas de saúde exige avançar em direção à cobertura
universal de saúde, o meio eficiente para se alcançarem seus objetivos, para que seja garantido que
todas as pessoas tenham acesso a serviços de promoção, prevenção, curativos e reabilitativos da
saúde que tenham a qualidade.

2.1 O seguro privado - ou o Modelo Americano

O modelo completamente privado, na prática, não é adotado por nenhum país desenvolvido
(BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 310). No mundo real (e, com isso, entende-se: nos
Estados Unidos, principalmente), os mercados privados desempenham um papel central. Sua
história tem origem durante a Segunda Guerra Mundial, quando os salários foram congelados pelo
Congresso. Muitos empregadores adaptaram-se ao congelamento oferecendo aos funcionários
seguro de saúde como um benefício não salarial. Com isso, o Congresso lançou involuntariamente
as bases para o sistema moderno de seguro patrocinado pelo empregador nos EUA.
A cobertura é, na verdade, parte do pacote de remuneração total do trabalhador. Isso torna os
empregos com planos de saúde atraentes e gera uma isenção de imposto de renda para os
funcionários. Se o empregador não patrocinasse um plano de saúde, a renda do trabalhador seria um
pouco maior, mas o aumento seria tributado e ele mesmo teria que comprar um seguro de saúde no
mercado privado. Mas a tendência do seguro patrocinado pelo empregador de vincular os
funcionários aos seus patrões pode induzir um problema como o bloqueio de emprego, limitando a
mobilidade profissional. Um trabalhador, ainda que infeliz e insatisfeito, se veria preso ao seu
vínculo atual, pelo risco de o seguro numa nova posição ser mais caro ou seu salário mais baixo
(por causa de um repasse salarial para o pagamento ao plano mais alto) ou mesmo de perder o
benefício e ter que arcar com os gastos da saúde pagando as despesas ou um plano do próprio bolso.
A sociedade, portanto, perderia o ganho de produtividade que poderia haver com a mudança desse
trabalhador para um emprego onde seria mais eficiente (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p.
373, 378-379).

Obter o serviço fora do mercado de seguro do empregador sempre foi difícil e caro. No início da
década de 1960, o presidente Lyndon Johnson adotou o Medicare, um plano para cobrir os idosos e
deficientes, a que se juntou o Medicaid, programa semelhante, projetado para estender a cobertura
de seguro gratuita aos pobres. O seguro de saúde baseado no empregador, o Medicare e o Medicaid,
formam o sistema de saúde remendado, único, chamado de Modelo Americano
(BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 372). O seguro individual também está disponível, mas,
muitas vezes é inalcançável. Como a prestação é privada, médicos e hospitais podem cobrar
quaisquer preços que o mercado aceite. Constata-se a preferência política pela livre escolha. Mas
para quem pode. No país, há um grande grupo -com 50 milhões de pessoas ou mais- que não está
coberto por nenhum seguro (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 373).

O Medicare é a maior seguradora do mundo em gastos e, de longe, o maior pagador do sistema de


saúde americano (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 384). É caro porque cobre idosos que
são menos saudáveis do que a população em geral e reembolsa qualquer procedimento que se
mostre clinicamente eficaz, independentemente do custo. Um dos principais princípios ao
financiamento do Medicare é que os prêmios pagos pelos inscritos devem ser muito menores do que
seriam os prêmios atuarialmente justos. Para a maioria dos inscritos, não há nenhum prêmio. O
restante é pago por impostos (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 386).

O O Medicaid fornece cobertura de seguro subsidiada para famílias de baixa renda que não têm
seguro e não poderiam pagar no mercado aberto. É administrado em conjunto pelo governo federal
e pelos governos estaduais. Quase todas as despesas do Medicaid são pagas com o dinheiro do
contribuinte. Em alguns estados, baixa renda por si só não qualifica as pessoas para o Medicaid.
Estado civil, número de filhos, gravidez, deficiência, saúde e status de imigração também são
levados em consideração e podem afetar a elegibilidade. Em geral, indivíduos fisicamente aptos
sem filhos não são elegíveis para cobertura, não importando quão baixa seja sua renda
(BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 389-390).

Existe ainda a parcela da população que não acesso algum aos seguro de saúde. Em 2012, nos EUA,
eram cerca de 50 a 60 milhões de pessoas. Algumas faltas são voluntárias. Um grande segmento da
população sem plano de saúde consiste em jovens razoavelmente saudáveis e que não veem motivos
para procurar um plano de saúde. Há outros que desejam cobertura de seguro, mas não têm
perspectivas de obtê-la tão cedo. Essas pessoas tendem a ser desempregadas de longa duração ou a
trabalhar em empregos que não oferecem seguro saúde. Para elas, o seguro por meio do mercado
individual pode ser inacessível, até mesmo para famílias de classe média. A falta de seguro
generalizada é considerada uma falha de equidade, uma vez que as populações vulneráveis são
tipicamente as menos prováveis de serem seguradas (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p.
393-394).

2.2 O seguro obrigatório - ou Modelo de Bismarck

O modelo de Bismarck é caracterizado pela inclusão obrigatória e universal dentro de algum


esquema de seguro social, mas baseada na situação no mercado de trabalho. O financiamento é
sustentado principalmente por contribuições atreladas ao nível dos salários e o pagamento é
compartilhado por empregados e empregadores. Geralmente, os serviços hospitalares são
executados por hospitais públicos ou sem fins lucrativos, mas outros serviços de atenção à saúde
são majoritariamente privados. O modelo tem como base a garantia do acesso a serviços segundo a
necessidade, e não vontade ou capacidade de pagamento, e também é conhecido como “modelo
corporativista” (MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 49-50).

Japão, Alemanha e Suíça estão entre os países que apresentam algum tipo de política de mandato
compulsório. O modelo não é gratuito para os governos e não os absolve de toda regulação do
mercado. Um mandato pode ser uma opção cara porque o próprio seguro de saúde pode ser caro, e
muitos cidadãos podem não conseguir pagar, mesmo que sejam legalmente obrigados a fazê-lo.
Normalmente, são acoplados a subsídios para famílias pobres que não poderiam pagar a cobertura
por conta própria ou são pagos com impostos sobre a folha de pagamento (para que os clientes de
renda mais alta paguem proporcionalmente mais). Esses subsídios ou impostos podem ser quase tão
caros quanto fornecer um seguro público universal. (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 311)

O modelo de Bismarck reflete dois grandes valores: a solidariedade e a liberdade econômica.


Normalmente, o plano é patrocinado por um empregador ou pelo governo e tende a ser
nominalmente privado, mas fortemente regulamentado e com preços definidos pelo governo. O
financiamento é feito via de folha de pagamento e outros impostos. Pessoas mais saudáveis na
população, com baixo gasto médico esperado, subsidiam o cuidado das pessoas mais doentes que
têm um gasto médico esperado mais alto (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 355). Os países
que adotaram um sistema de saúde de Bismarck tendem a ter maiores gastos nacionais nos setor em
comparação com os países de Beveridge (de cobertura pública universal) (BHATTACHARYA;
HYDE; TU, 2014, p. 355).

2.3 Seguro público universal

O modelo de serviço nacional de saúde é caracterizado por cobertura universal, baseada na


condição de cidadania ou residência no território nacional. Seu representante pioneiro é o Serviço
Nacional de Saúde da Grã-Bretanha. Geralmente, os serviços de atenção à saúde são gratuitos na
ponta e financiados através de impostos e são conhecidos também como “modelo Beveridge”
(MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 48). O seguro público universal é a política de muitos países
desenvolvidos, incluindo Reino Unido, Canadá e outros. Como o governo fornece seguro de saúde a
todos e paga quase todas as contas médicas, esses sistemas são conhecidos como sistemas de
pagador único (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 310). Pessoas ricas ainda podem receber
melhor tratamento em hospitais mais agradáveis, mas ninguém fica sem cobertura em um sistema
público universal (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 301).

Mas esse sistema não vem sem custos. Em vez de cobrar formalmente todos os cidadãos por
contratos de seguro, a maioria das nações com seguro público simplesmente o oferece “de graça”,
mas aumenta os impostos para financiar o programa. Impostos mais altos são um custo do seguro
público, mas podem não ser o único. A maioria dos impostos governamentais -como imposto de
renda e imposto sobre vendas- provoca distorções ao desencorajar o trabalho e o comércio, de modo
que toda a economia pode se tornar menos eficiente como resultado (BHATTACHARYA; HYDE;
TU, 2014, p. 310-311).

Os países que adotam o modelo promovem a solidariedade social ao garantir que os cidadãos não
precisem se preocupar com quão ricos são se ficarem doentes. Mas problemas crescentes com
longas filas e controle de custos levaram recentemente os países de políticas do tipo Beveridge a
adotar práticas típicas do modelo de Bismarck, com a indução elementos de competição privada
entre seus provedores públicos (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 326 e 331). Hoje, muitos
países de Beveridge também têm um sistema de saúde privado paralelo ao grande sistema público
financiado e administrado pelo governo (BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 343)

De forma geral, os sistemas Beveridge na Europa gastam menos com saúde do que os sistemas
Bismarck. Porém os países de modelo Beveridge são um pouco menos saudáveis do que os de
Bismarck. Os sistemas de Beveridge enfatizam a equidade e o acesso igualitário aos cuidados,
enquanto os sistemas de Bismarck enfatizam a escolha do paciente e a competição entre provedores.
Mas, na verdade, todos tendem a adotar alguns elementos de ambos os sistemas
(BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 369).

3 BRASIL - O SUS

As características principais do sistema brasileiro de saúde, antes do SUS, eram semelhantes às de


um modelo de seguro social, mas com a exclusão de grande parte da população, como “os
desempregados, inativos sem contribuições prévias, trabalhadores informais e, durante grande parte
do período, também alguns grupos ocupacionais (por exemplo, trabalhadores rurais e trabalhadores
domésticos)” (MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 58). O primeiro marco para a construção de um
sistema de saúde moderno “foi a sanção da lei da Caixa de Aposentadoria e Pensão dos empregados
de empresas ferroviárias, conhecida como Lei Eloy Chaves, em 1923” (MREJEN; MILLET;
HONE, 2022, p. 58). Tratava-se de um fundo de aposentadoria, pensão para sobreviventes
dependentes e assistência médica, financiado conjuntamente por empregados e empregadores. O
modelo se expandiu e se consolidou com a transformação progressiva das Caixas de Aposentadoria
e Pensão (CAPs) em Institutos de Aposentadoria e Pensões ( IAPs ) a partir da década de 1930.

Os agrupamentos passaram a ser por categorias ocupacionais e não mais por empresas e o Estado
participava também dos conselhos administrativos. O acesso à atenção médica dos trabalhadores
dependia do setor de atividade no qual estivessem inseridos. Só na Constituição de 1946, houve a
inclusão do direito às assistências sanitária, hospitalar e médica para o trabalhador e seus
dependentes. Mas grande parte da população, não inserida no mercado formal de trabalho,
permaneceu excluída do sistema (MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 54). A partir de 1964,

foram criados incentivos para o surgimento de um mercado privado de seguros de


saúde: deduções nas contribuições previdenciárias para empresas que oferecessem
cobertura de seguros privados de saúde aos seus empregados; e modificações legais
que habilitaram a dedução das despesas com saúde do imposto de renda (MREJEN;
MILLET; HONE, 2022, p. 55).

Na década de 19070, os benefícios foram expandidos incipientemente a populações até então


excluídas, como os trabalhadores rurais, as empregadas domésticas e os trabalhadores autônomos.
Mas os indivíduos pertencentes à população sem contribuições previdenciárias permaneciam
relegados a programas de atenção focados em problemáticas específicas, ao setor filantrópico ou ao
setor privado, se pudesse arcar com os custos. A criação do Sistema Único de Saúde no Brasil
depois da Constituição de 1988 pode ser pensada como uma mudança no modelo do sistema de
saúde brasileiro. O Sistema Único de Saúde (SUS) trouxe consigo uma ampliação do caráter
público, sem uma ruptura com o setor privado (SILVA; RUIZ, 2020, p. 1).

No SUS, “as ações e serviços públicos de saúde devem integrar uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituir um sistema único descentralizado e pautado pelo atendimento integral e
pela participação comunitária”, com financiamento baseado em recursos públicos. O sistema ainda
permitiu à iniciativa privada a oferta de serviços de assistência à saúde. O SUS foi estabelecido em
1990 como

o conjunto de ações e serviços públicos de saúde prestados por órgãos públicos das três
esferas de governo, ou fundações por estes mantidas, com vistas à promoção da saúde e à
prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, assistência médica básica, hospitalar e
ambulatorial, serviços de diagnóstico, intervenções sanitárias e ambientais e atividades de
pesquisa e produção de insumos para a saúde. A legislação também permite que o SUS
contrate serviços privados de atenção à saúde de forma complementar (MREJEN; MILLET;
HONE, 2022, p. 56).

O SUS se configurou num modelo de serviço nacional de saúde, com cobertura universal baseada
na condição de cidadania, serviços de atenção à saúde gratuitos na ponta, financiados através de
impostos e muitas vezes entregues em serviços públicos. Acabou se constituindo no maior serviço
nacional de saúde do mundo, a mais importante política de inclusão social na história do Brasil
(MREJEN; MILLET; HONE, 2022, p. 59).

3.1 Os dois segmentos do sistema de saúde brasileiro

O sistema de saúde brasileiro encontra-se dividido em dois. De um lado, “um sistema para ricos e
remediados, com redução ou quebra de cobertura nas doenças crônicas e na velhice”. De outro, o
SUS, de caráter público e universal, “fragmentado, múltiplo, descentralizado, com escassa
coordenação e articulação, sub-remunerado, com ênfase nas prestações médico-assistenciais sem
definição de prioridades, e orientado pela oferta de serviços”. O avanço da privatização no setor
deveu-se a políticas econômicas articuladas com concessão de benefícios e tributos, que permitiu
ganhar a adesão de empregadores e empregados (NORONHA et al, 2018, p. 2053).

Paim (2020, p. 21) acrescenta que a controversa relação público-privada no sistema de saúde
brasileiro expressa a contradição fundamental do SUS. “A contração de gastos no setor público faz
parte dessa problemática, quando a receita bruta das operadoras que atende cerca de 25% da
população é superior ao orçamento do Ministério da Saúde, responsável pela saúde de pelo menos
75% das brasileiras e brasileiros”. Em 2017, só 42% dos gastos com saúde eram feitos pelo governo
-uma proporção menor que a de países que não possuem sistemas universais de saúde. O Brasil se
transformou no único país do mundo com um serviço nacional de saúde que provê cobertura
universal onde o gasto privado é maior ao público. De acordo com Mrejen, Millet e Hone,
“aproximadamente 30 % dos gastos do governo federal em saúde são isenções fiscais a indivíduos
(deduções dos gastos em saúde no imposto de renda), empresas (deduções dos gastos com seguro de
saúde para empregados) e instituições sem fins lucrativos (isenções impositivas)” (2022, p. 60). Os
autores acrescentam que essa segmentação está associada a desigualdades de acesso: “pessoas com
seguros de saúde reportam maior acesso a serviços de atenção à saúde, têm taxas de utilização mais
elevadas e muitas vezes utilizam procedimentos custosos e de alta complexidade através do SUS”.

3.2 Problemas, problemas…

O financiamento público adequado (ou a falta de um) é um desafio constante para assegurar a
garantia do direito constitucional à saúde, desde a fundação e a implantação do SUS. Restrições
históricas, cortes mais que eventuais somaram-se à radicalização de movimentos opostos ao SUS e
buscando a sua substituição “por um sistema de saúde segmentado, fragmentado e americanizado”
(PAIM, 2020, p. 20-21). O ápice (ou o fundo deste poço), pelo menos até agora, foi atingido depois
do governo instalado com a derrubada da presidente Dilma Roussef (PT) em 2016. Segundo Paim
(2020, p. 21), a Emenda Constitucional 95 (EC-95), chamada de PEC do Teto, oficializou e
consolidou ainda mais o subfinanciamento do SUS até 2036, representando a mais radical das
intervenções voltadas para um “SUS reduzido”. Menezes, Moretti e Reis (2020, p. 58) vão mais
além: a EC-95 “transformou o subfinanciamento crônico da saúde em desfinanciamento do SUS”.

O Novo Regime Fiscal (NRF), criado pela Emenda Constitucional no 95/2016,

estabeleceu a limitação constitucional dos gastos públicos por até duas décadas, fato
internacionalmente inédito e que trouxe consigo elementos reveladores da
instauração do novo projeto neoliberal. Em sua essência, essa EC impossibilita ao
Estado o cumprimento das obrigações constitucionais previstas desde 1988. A norma
marca o fim do Estado garantidor de direitos, uma vez que a proposta impõe uma
inversão de prioridades (MENEZES; MORETTI; REIS, 2020, p. 61).

Em suma, ainda que o país cresça e que as receitas aumentem, as despesas primárias estão restritas
ao teto de gastos, sem possibilidades de ganhos reais vindos de qualquer crescimento econômico.
Os reajustes ao orçamento da saúde, no âmbito federal, congelados por 20 anos, passaram a ser
permitidos apenas pela inflação (medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
-IPCA). Necessidades, crescimento, envelhecimento da população, incorporação de novas
tecnologias e a própria inflação do setor -internacionalmente superior à dos demais setores- foram
desconsiderados (MENEZES; MORETTI; REIS, 2020, p. 63).

Noronha et al (2018, p. 2054) defendem que “o novo regime fiscal não precisaria da força de uma
emenda constitucional não fosse a necessidade de retirar recursos da saúde e educação que possuem
regras constitucionais para seus gastos”. Os autores relacionam o déficit público ao superávit do
setor privado e afirmam que a “responsabilidade fiscal é algo nocivo à sociedade. Deveriam os
tomadores de decisão de políticas públicas se pautar pela responsabilidade econômica e social
sintetizada nas variáveis inflação e emprego, bem como na construção de um Estado de Bem-Estar
Social”.

3.3 O mal do século: o governo e a Covid-19

Depois das eleições de 2018 e com a posse governo instalado em 2019, foi observado desmonte do
sistema proteção social fundado na solidariedade e, em particular, a desconstrução de um sistema de
saúde universal que sequer chegou a constituir os instrumentos adequados de financiamento
(MENEZES; MORETTI; REIS, 2020, p. 63). De saída, o país perdeu 8,5 mil médicos cubanos do
Programa Mais Médicos, “que atendiam a cerca de 30 milhões de brasileiros, em 2,9 mil municípios
e em aldeias indígenas” e testemunhou “a desistência de mais de mil médicos brasileiros que
chegaram a ocupar essas vagas (cerca de 15% do total de vagas), deixando a população
desassistida” (MENEZES; MORETTI; REIS, 2020, p. 63).

No início do segundo ano do governo, o país, a reboque do mundo, foi assolado pela e Covid-19. A
descoordenação na resposta à pandemia agravou ainda mais as fragilidades do SUS (MASSUDA;
MALIK, 2022, p. 94). A disseminação dos novo coronavírus encontrou o Brasil

com um governo de ultradireita, militarizado, desnorteado e submerso em uma crise


política, agravada por um baixo desempenho da economia […]. A pandemia atingiu
em cheio o narcisismo da sociedade, sempre alimentado pela satisfação com a
negação da realidade. Escancara-se a abissal desigualdade social agora tão
escandalosamente exposta quanto antes fora negada (COSTA; RIZZOTTO;
LOBATO, 202, p. 289).
Em acréscimo, as falhas na contenção da Covid-19 “resultaram em um aumento extraordinário no
consumo de recursos para tratamento de pacientes enfermos -como contratação de profissionais
para unidades de terapia intensiva, aquisição de respiradores e equipamentos de proteção
individual” (MASSUDA; MALIK, 2022, p. 90). Isso comprometeu recursos para outras áreas
estratégicas do sistema, havendo uma queda generalizada no número de procedimentos eletivos
realizados em 2020 em comparação com anos anteriores, principalmente os de rastreio de doenças
crônicas e cirurgias de baixa e média complexidade.

Para Costa, Rizzoto e Lobato (2020, p. 290), a lógica antiproteção social foi ainda mais grave na
ação deliberada de desmonte do Ministério da Saúde, com demissão de quadros técnicos e troca de
três ministros, associadas a um presidente negacionista, orientando a população em sentido
contrário ao indicado pela ciência. Frente à pandemia da covid-19, emergiu com força gigantesca a
necessidade de planejar e executar estratégias sanitárias que pusessem em primeiro plano a proteção
coletiva, mas que não foi admitida pelo governo federal durante todo o desenrolar do período. A
proteção sanitária de todos colidiu frontalmente com a ideologia liberal, segundo a qual nada nos
indivíduos pode estar subordinado ao interesse público (BOUSQUAT et al, 20221, p. 15).

Por outro lado, o SUS, objeto de constantes ataques nos últimos anos, passou a ser valorizado
positivamente, registrando-se depoimentos em sua defesa, depois do início da pandemia, quase que
diariamente, muito associado ao esforço de seus trabalhadores. O sistema privado saiu de cena,
“mesmo beneficiado pela falta de uso dos serviços rotineiros por seus usuários acuados pelo surto”
mas que mantinham em dia suas mensalidades. O acesso universal do SUS contrastou com o que foi
visto nos EUA do também negacionista e representante da extrema direita Donald Trump, em que,
sem sistema público, muitos cidadãos com sintomas da Covid-19 fugiram do tratamento, morrendo
em casa, nas ruas e parques por medo da conta que não poderiam pagar (COSTA; RIZZOTTO;
LOBATO, 202, p. 291).

Para muitas pessoas foi surpreendente constatar que não lhes bastava ter um “plano de saúde”,
pouco importando se era dos mais modestos ou “VIP”.

Frente à condição social -de dimensão coletiva, portanto- de não se dispor de uma
vacina durante vários meses, não haver possibilidade terapêutica medicamentosa e
não se dispor de quantidade suficiente de leitos para terapia intensiva,
independentemente de se tratar de hospitais públicos ou particulares, foi imperioso
reconhecer que não há [havia] saídas individuais para o problema (BOUSQUAT et
al, 20221, p. 18).

Bousquat et al concluem que a pandemia escancarou que “a melhor forma de equacionar essas
novas necessidades passa por uma ação clara e inequívoca do Estado” (BOUSQUAT et al, 20221, p.
17).

4 CONCLUSÃO - SOS AO SUS

Dentre os modelos de sistema de saúde existentes, privado, de seguro obrigatório e universal


público, o último é o que aponta com mais precisão aos objetivos de equidade. O seguro público
universal garante que todos em uma sociedade estejam cobertos e possam acessar um padrão
semelhante de atendimento.

Este é o modelo adotado oficialmente pelo Brasil, a partir da Constituição de 1988. Mas o Sistema
Único de Saúde jamais conseguiu exercer suas prerrogativas plenamente, por sofrer de um
problema crônico que, de subfinanciamento passou a desfinanciamento. O SUS também enfrenta a
concorrência do sistema privado. Por isso se debate bastante a resistência de um sistema universal
ou de saúde como direito de cidadania com um SUS tão encolhido, precarizado. Ou seja, em vez de
rumar para a equidade, a saúde brasileira tende mais ir ao rumo da exclusão.

Menezes, Moretti e Reis (2020, p. 63) destacam que “o problema não é o gasto social caber no
orçamento público, mas os direitos universais caberem no imaginário das elites, que representam a
‘ralé’ como ‘não-gente’, indigna de direitos. Ameaçado pelas políticas ultraliberais, que defendem
um sistema voltado para o mercado (que só os mais abastados frequentam), o SUS enfrenta seu
maior desafio: o político, “sublinhando a relevância das lutas em defesa da democracia e das
conquistas civilizatórias que integram o projeto da Reforma Sanitária Brasileira” (PAIM, 2020, p.
15).

Como um um mecanismo de atenção aos pobres, o SUS foi reduzido e assim tem sido preservado.
O sistema que inovou o atendimento à saúde na América Latina e foi apontado como referência
mundial, precisa de reforços na sua defesa. É preciso pensar no longo prazo, mirando o
financiamento sustentável como um objetivo central; alocar recursos em áreas estratégicas para
fortalecer a governança do sistema, integrar serviços, dar robusteza a sistemas de informação,
formar bons profissionais; envolver a sociedade civil e a academia e investir em tecnologia
(MASSUDA; MALIK, 2022, p. 92-93).

Essas são apenas algumas questões internas relativas ao funcionamento do sistema. Mas há outras
ameaças. Por exemplo, o envelhecimento da população mundial é um fenômeno que desafiará as
políticas de saúde em quase todos os países desenvolvidos nas próximas décadas. O modelo de
financiamento dos sistemas sociais e de saúde em todo o Ocidente depende de transferências
monetárias em grande escala das populações mais jovens para as mais velhas e aposentadas. Mas
esse primeiro contingente tende a diminuir em relação ao segundo. E há um limite para o quanto os
governos podem e vão financiar o aumento dos gastos com saúde causados pelo envelhecimento da
população. A forma como os governos administram a política de saúde em face do envelhecimento
da população será um dos principais desafios da política doméstica do século XXI
(BHATTACHARYA; HYDE; TU, 2014, p. 420).

Segundo as projeções do IBGE, a população de maiores de 65 anos no Brasil teria triplicado de


1988 para 2018, atingindo a cifra de 18,3 milhões, e chegará, em 2048, a 49 milhões de brasileiros,
dos quais 14 milhões com mais de 80 anos -lembrando que o censo de 2020, que tria números mais
precisos, só começou a ser realizado em 2022, fechando o ano sem ter a fase de coleta de dados
concluída. O cenário aponta para a coexistência de problemas decorrentes diretamente da pobreza
associados a um quadro de predomínio das doenças crônico degenerativas, agravado por um
elevado contingente de eventos provocados por causas externas -e a pandemia mostrou isso de
forma muito enfática (NORONHA et al, 2018, p. 2055).

Mantidas as opções tecnológicas vigentes, Noronha et al (2018, p. 2057) afirmam que apenas a
mudança no perfil demográfico, implicaria num aumento dos gastos com atenção à saúde, em 20
anos, da ordem de 38%. Num país com dimensões continentais, com 27 unidades federadas e 5.570
municípios, torna-se praticamente impossível pensar em sistema de saúde equitativo que responda
a essas condições sem forte coordenação e integração federativa.
REFERÊNCIAS

BHATTACHARYA, Jay; HYDE, Timothy; TU, Peter. Health economics. Palgrave Macmillan, 2014.

BOUSQUAT, Aylene et al. Pandemia de covid-19: o SUS mais necessário do que nunca. Revista USP, n.
128, p. 13-26, 2021.
(BOUSQUAT et al, 20221, p. )

COSTA, Ana Maria; RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa. Na
pandemia da Covid-19, o Brasil enxerga o SUS. Saúde em Debate, v. 44, p. 289-296, 2020.

MASSUDA, Adriano; MALIK Ana Maria. O Financiamento do Sistema de Saúde Brasileiro, A Saúde do
Brasil. Org: Rudi Rocha, Miguel Lago, Fabio Giambiagi. Editora Lux, São Paulo, 2022.

MENEZES, Ana Paula do Rego; MORETTI, Bruno; REIS, Ademar Arthur Chioro dos. O futuro do SUS:
impactos das reformas neoliberais na saúde pública–austeridade versus universalidade. Saúde em debate, v.
43, p. 58-70, 2020.

MREJEN, Matías; MILLET, Christopher; HONE, Thomas. Sistemas de Saúde: O que são, por que são tão
Diferentes em cada País e como o Brasil se Compara? A Saúde do Brasil. Org: Rudi Rocha, Miguel Lago,
Fabio Giambiagi. Editora Lux, São Paulo, 2022.

NORONHA, José Carvalho de et al. Notas sobre o futuro do SUS: breve exame de caminhos e descaminhos
trilhados em um horizonte de incertezas e desalentos. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, p. 2051-2059, 2018.

PAIM, Jairnilson Silva. Os sistemas universais de saúde e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). Saúde
em debate, v. 43, p. 15-28, 2020.

SILVA, Welison Matheus Fontes da; RUIZ, Jefferson Lee de Souza. A centralidade do SUS na pandemia do
coronavírus e as disputas com o projeto neoliberal. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 30, p. e300302,
2020.

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