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2ª Frequência de

Direito Comercial I
PROFESSOR DOUTOR COUTINHO DE ABREU

Bigó
FDUC 2018/2019

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3. AS EMPRESAS EM SENTIDO OBJETIVO (CONTINUAÇÃO)

3.4. NEGÓCIO SOBRE EMPRESAS

3.4.1. TRESPASSE

3.4.1.1. N OÇÃO E F ORMA


Com referência a estabelecimento, é muito antigo na legislação portuguesa o emprego da
palavra “trespasse”, mas nenhuma das leis que o menciona contém uma definição sua, nem se
colhe um regime global do mesmo, sendo inúmeros os documentos doutrinais e jurisprudenciais.
Contudo, COUTINHO DE ABREU retira algumas conclusões.

O objeto de trespasse é um estabelecimento, que não tem de ser comercial. O trespasse


traduz uma transmissão que pode ser efetuada através de negócios variados, tais como a compra
e venda, a troca, a dação em cumprimento e a realização de entrada social: são negócios tanto
onerosos como gratuitos. Para alguns efeitos, o trespasse traduz-se em negócios necessariamente
onerosos, como para efeitos do direito de preferência do senhorio e da liquidação de sociedade. O
trespasse aparece nas leis com o significado de negócio inter vivos, por exemplo no art. 1112º, nº1
do CC.

Em suma, o trespasse é definível com transmissão da propriedade de um estabelecimento


por negócios entre vivos. Não representa uma especifica figura negocial, antes abrange um
conjunto de figuras diversas.

Quanto à forma, durante muito tempo fio exigida a escritura publica, depois do ano 2000,
passou a exigir simples escrito. Hoje, com o NRAU, deve entender-se que continua a ser exigido o
simples escrito, com base no art. 1112º, nº3, do CC, apesar de este se referir à transmissão da posição
de arrendatário. Com efeito, para COUTINHO DE ABREU, devemos fazer uma interpretação extensiva
do artigo 1112º, nº3, no sentido da exigência escrita também para o trespasse.

A transmissão de firma, que não pode ser feita sem a transmissão de estabelecimento, exige
escrito, artigos 44º, nº1 e 4 do RRNPC, assim como a transmissão de marca ou logótipo, artigos 31º, nº
5 e 6, 304º-P, nº3 do CPI. Seria estranho que a transmissão destes elementos exigisse escrito e não a
transmissão do conjunto.

E sobretudo porque a comunicação da transmissão da posição do arrendatário deve ser


feita ao senhorio para que este saiba o que está na base da transmissão, e para se realizar esta
comunicação é necessária a forma escrita para o próprio trespasse.

3.4.1.2. Â MBITOS DE E NTREGA


Quando um estabelecimento é transmitido por um dos negócios que o trespasse abrange,
uma questão que se coloca é a de saber o que está a ser transmitido. A este propósito, a doutrina
costuma falar de âmbitos de entrega.

Num concreto negócio de trespasse, gozam as partes da liberdade para excluírem da


transmissão alguns elementos do estabelecimento. Todavia, tal exclusão não pode abranger os bens

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necessários ou essenciais para identificar ou exprimir a empresa objeto do negócio. Desrespeitando-
se o âmbito mínimos (necessário ou essencial) de entrega (constituído, portanto, pelos elementos
necessários e suficientes para a transmissão de um concreto estabelecimento), impossibilitado fica
o trespasse; objeto do negócio translativo serão então singulares bens (ou conjuntos de bens) de um
estabelecimento, não o próprio estabelecimento.

1. Fazem parte do ÂMBITO NATURAL DE ENTREGA os elementos que se transmitem naturalmente


com o estabelecimento, isto é, os meios transmitidos, ex silentio, independentemente de
estipulação ad hoc; tais bens, não havendo clausulas a exclui-los, entram na esfera jurídica
do trespassário. Estaremos perante um problema de determinação do âmbito natural de
entrega quando, por exemplo, em um escrito de trespasse o estabelecimento é identificado
apenas pelo seu objeto e localização – não se inventariando quaisquer elementos e posições
jurídicas a transmitir; ou mencionando-se alguns elementos, mas a título exemplificativo.
a. Meios empresariais cuja propriedade pertença ao trespassante:
i. Por força da lei (supletiva), incluem-se no âmbito material os logótipos e as
marcas; o atual CPI continua a ser claro quanto à transmissão natural de
logotipos, com ressalva do art. 31º/5 – “Se no logótipo ou na marca figurar
nome individual, a firma ou denominação social do titular (...), é necessária
cláusula para a sua transmissão”. Se da marca não constar o nome, etc. do
titular, ela é transmitida naturalmente com o respetivo estabelecimento não
precisando de clausula ad hoc.
ii. Quanto a outros elementos, o silencio das partes é acompanhado pelo
silencio da lei. Sabemos, no entanto, que o estabelecimento é uma
organização de meios ou elementos para o exercício de uma atividade de
produção destinada à troca. Sejam ou não essenciais para a existência de
uma empresa, todos esses bens contribuem para a organização e são parte
do estabelecimento. Sabemos também que ele é bem jurídico complexo-
unitário, e coisa. O mais razoável será, portanto, que aqueles elementos sobre
que pesa o silencio se transmitam naturalmente; trespassado o
estabelecimento, fica o trespassante obrigado a entregar o complexo de bens
que o compõem. Entre esses bens contam-se, por exemplo, máquinas,
utensílios, mobiliário, matérias-primas, mercadorias, inventos patenteados,
modelos de utilidade, desenhos ou modelos.
iii. Os prédios têm suscitado mais controvérsia. Entendia tradicionalmente a
jurisprudência que, na falta de estipulação especifica, o trespasse não implica
a transmissão do prédio (do trespassante) onde o estabelecimento funciona.
Na doutrina, a pertinência dos imoveis ao âmbito natural é afirmada por uns
(B ARBOSA DE MAGALHÃES E FERRER CORREIA) e negado por outros (O RLANDO
DE CARVALHO – “âmbito convencional máximo”).
1. Para COUTINHO DE ABREU não avista razões que validem um
tratamento diferenciado do prédio em face de bens que, tal como
ele, fazem parte do estabelecimento, são seus elementos. Tanto mais
quanto é certo não ser em geral desprezível a importância dos imoveis.
Para já não falar dos estabelecimentos absolutamente vinculados, o
peso dos imoveis na estrutura organizatório-exploracional das
empresas é em muitos casos determinante – pense-se nos hotéis, nos
estabelecimentos de bairro de venda ao publico, nos cinemas, nos
parques de estacionamento e guarda de automóveis, nos pavilhões
desportivos, etc. Em muitos outros casos (indústrias transformadoras), os

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prédios são feitos à medida das empresas respetivas, são projetados
em função de especificas atividades empresariais. Por conseguinte,
quando num contrato de trespasse se não faça menção à transmissão
do prédio e não se conclua, por interpretação do negócio, que ele foi
excluído 1 , deve concluir-se que a propriedade do mesmo foi
naturalmente transmitida.
2. A este respeito há uma outra questão que é suscitada. A partir do ano
2000 deixou de ser exigida a forma de escritura pública para o
trespasse. Basta hoje um mero documento escrito. Tendo em conta
que a nossa lei (arts. 947º e 875º CC) exige hoje, para a validade dos
negócios de transmissão inter vivos de direitos reiais, a escritura publica
ou documento particular autenticado, pergunta-se: quando o
trespasse da empresa implicar a transmissão do direito de propriedade
(ou outro direito real) sobre o prédio bastará o escrito simples ou será
exigível a escritura publica ou o documento particular autenticado?
Entendemos que bastará o escrito simples. A favor desta opção
convocamos sobretudo os seguintes argumentos:
a. “Atendendo às finalidades de cada uma destas formas
(escritura pública ou documento particular autenticado), ao
facto de ser uno o negócios (de trespasse) e uno ser o seu
objeto (o estabelecimento, uma coisa embora complexa
constituída pelo prédio e outros bens – que ate podem ser mais
valiosos), e a facto de a lei não distinguir trespasse com ou sem
transmissão do prédio, tendo para afirmar (com duvidas,
certamente) a suficiência de documento particular.
Consequentemente o escrito simples será documento bastante
para o registo do prédio em nome do trespassário – 43º/1, 68º e
69º/1/d) do CRPred.)”
b. O DL 116/2008, de 4 de julho, dispensou a “vaca sagrada”
escritura publica para a transmissão da propriedade sobre
imóveis – alterou, entre outros, o art. 875º do CC (art. 4º),
revogou o nº1 do art. 8º do CNot. (arts. 8º e 34º/d)) e prescreve
no art. 22º: “Sem prejuízo do disposto em lei especial, só são
válidos se forem celebrados por escritura pública ou
documento particular autenticado os seguintes atos: a) Os atos
que importem reconhecimento, constituição, aquisição,
modificação, divisão ou extinção de direitos de propriedade
(...) sobre coisas imóveis” (al. g) e art. 23º/2).
c. O art. 101º/1/g) do CRPredial (na redação introduzida pelo DL
116/2008): “São registados por averbamento às respetivas
inscrições os factos: (...) A transmissão de imóveis por efeito (...)
de trespasse de estabelecimento comercial”. Portanto, a
própria letra da lei menciona que a transmissão do imóvel se dá
“por efeito” do trespasse. E uma vez que para o trespasse baste
o escrito simples, então também bastará para a transmissão do
imóvel, porquanto esta é uma decorrência daquele.

1 As partes excluem a transmissão do prédio, quando, por exemplo, o preço do estabelecimento foi
fixado em 100 000 e o valor do imóvel era de 200 000.

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b. Elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título obrigacional (o
trespassante tem o gozo desses bens por ser titular de direitos de crédito):
i. Por força de lei, as prestações laborais a que os trabalhadores subordinados
se haviam obrigado perante o trespassante continuam em princípio a contar-
se entre os elementos do estabelecimento trespassado. – Art. 285º, nº1 do CT.
ii. Por sua vez, outro enunciado normativo – o do nº1, a), do art. 1112º do CC –
tem o seguinte teor: é permitida a transmissão por ato entre vivos da posição
do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio, no caso de
trespasse de estabelecimento comercial ou industrial.
1. A menos que o prédio (arrendado) pertença ao âmbito mínimo, o
trespasse não implica necessariamente a transferência do prédio por
via de transmissão da posição do arrendatário (“é permitida” – diz o
preceito) ou por outra via de tipo obrigacional.
2. Mas não envolverá naturalmente o trespasse a transmissão da posição
do arrendatário? COUTINHO DE ABREU está com aqueles que
respondem afirmativamente (MOTA PINTO E PEREIRA COELHO).
Acrescentado ainda que outros autores, apoiando-se explicitamente
ou implicitamente numa conceção restritiva de “âmbito natural”,
chegam a resultados praticamente idênticos, é o caso de ANTUNES
VARELA, RUI DE ALARCÃO E JANUÁRIO GOMES.
iii. Racional semelhante vale para a transmissão da posição do locatário
financeiro – art. 11º/1, do DL 149/95, de 24 de junho.

Resulta de outras normas a não inclusão no âmbito natural (nem convencional) de outros
elementos empresariais a que o trespassante tem direito por título obrigacional. É o que sucede, por
exemplo, com as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e marcas objeto de licença
de exploração (art. 32º, nº 1 e 8, do CPI), e as máquinas, veículos, moveis, etc. alugados ou
emprestados – art. 1059º/2 (424º ss) e 1135º/f) do CC.

c. Certas situações de facto com valor económico – nomeadamente o “saber-fazer”


(know-how) – podem ser elementos de uma empresa.
i. Apesar de o saber-fazer (bem de contornos algo difusos) não dever ser
considerado coisa objeto do direito de propriedade ou de direitos reiais, ele
deve ser comunicado-transmitido pelo trespassante ao trespassário – sendo tal
dever um efeito “natural” (quando não essencial) do negócio de trespasse.

2. No ÂMBITO CONVENCIONAL de entrega incluem-se os elementos empresariais que apenas se


transmitem por meio de estipulação ou convenção (expressa ou tácita) entre o trespassante
e o trespassário.
a. Nele se integram a firma - art. 44º, nº1, do RRNPC.
b. Marca e logótipo quando neles figure nome individual, firma ou denominação do
titular estabelecimento – art. 31º, nº5, do CPI.
c. Os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos não
sejam meios do estabelecimento não devem considerar-se elementos ou meios
empresariais. Todavia, podem ser transmitidos juntamente com o estabelecimento
desde que haja acordo. Farão então parte do âmbito convencional de entrega – art.
577º CC.

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d. Os contratos e os débitos ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos não
sejam elementos do estabelecimento também não devem ser considerados
elementos ou meios empresariais, mas podem igualmente ser transmitidos juntamente
com o estabelecimento trespassado. Contudo, tais posições não fazem parte de
qualquer dos âmbitos de entrega. Para os contratos valem as regras do arts. 424º e
seguintes do CC. Quanto às dividas, são aplicáveis as regras gerais do direito civil e,
na vigência do atual CC, a jurisprudência e a doutrina dominantes negam a
transmissão automática de dividas. Por conseguinte, ainda que num escrito se diga
que o estabelecimento é trespassado “com todo o seu ativo e passivo”, esse facto
por si só não significa a assunção pelo trespassário das dividas do trespassante
relativas ao estabelecimento: a transmissão exige o consentimento dos credores.

3. ÂMBITO LEGAL -IMPERATIVO (elementos que obrigatoriamente se transmitem).


Excecionalmente, o trespassário pode ter de responder por dividas anteriores ao trespasse:
a. É assim nos casos regulados pelos art. 285º/6 do CT - o transmitente da posição de
empregador por efeito de trespasse “responde solidariamente pelos créditos do
trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, bem
como pelos encargos sociais correspondentes, vencidos até à data da transmissão
(...), durante os dois anos subsequentes a esta”.
b. Art. 209º, nº2, do CRCSPSS – “Em caso de trespasse, cessão de exploração ou de
posição contratual o cessionário responde solidariamente com o cedente pelas
dividas à segurança social existentes à data da celebração do negócio, sendo nula
qualquer clausula negocial em contrário”)
c. Casos de trespasse de e.i.r.l.

3.4.1.3. O BRIGAÇÃO IMPLÍCITA DE NÃO CONCORRÊNCIA


A obrigação de não concorrência decorrendo implicitamente dos negócios de alienação
das empresas é desde há muito reconhecida pela jurisprudência e doutrina de largo número de
países2, tendo sido admitida entre nós pela primeira vez em páginas da Revista de Legislação e de
Jurisprudência (RLJ). O trespassante de estabelecimento (e, eventualmente, uma ou outra pessoa
mais) fica em princípio obrigado a, num certo espaço e durante certo tempo, não concorrer com o
trespassário – nomeadamente, fica vinculado a não iniciar atividade similar à exercida através do
estabelecimento.

Têm sido avançados variados fundamentos para a obrigação: o princípio da boa fé na


execução de contratos, o princípio da equidade, usos do comercio, concorrência leal, garantia
contra evicção, dever de o alienante entregar a coisa alienada e assegurar o gozo pacifico dela.
Este último fundamento, com alguma tradição entre nós, parece ser o preferível.

A empresa que o trespassante tem de entregar é um bem complexo, com certos valores de
organização e de exploração. Normalmente, o alienante (ou os seus representantes) conhece as
características organizativas da empresa e mantinha relações pessoais com financiadores,
fornecedores e clientes. Seria, pois, particularmente perigosa a concorrência por ele exercida; essa
concorrência “diferencial” poria em risco a subsistência da empresa alienada, impediria uma efetiva
entrega da mesma ao adquirente.

2 Ex: Itália e Brasil

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A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios
incluíveis no conceito de trespasse: na venda (voluntária, executiva e falencial), na troca, realização
de entrada social, dação em cumprimento, doação.

A alienação de participações sociais não se identifica com a alienação de empresa social.


Porém, para certos efeitos, a alienação da totalidade ou da maioria das quotas é equiparável ao
trespasse de empresa social. Para COUTINHO DE ABREU, também para efeitos da obrigação implícita
de não concorrência, uma vez que a alienação opera uma transmissão indireta da empresa. Se,
para efeitos daquela transmissão, teve especial significado o estabelecimento em causa, então a
própria transmissão do controlo ou da totalidade das participações poderá equivaler eventualmente
ao próprio trespasse. Nestes casos, devemos adotar uma visão não formalista e reconhecer que o
que está em causa na realidade é uma transmissão de estabelecimento.

Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de
não concorrência. É o caso do cônjuge do trespassante (sendo relativamente indiferente para a
questão o regime de bens do casamento e a qualidade de bem comum ou próprio do
estabelecimento eventualmente a adquirir pelo cônjuge). Afora o facto de o trespassante poder
intervir na administração de empresa adquirida pelo cônjuge (art. 1678º, nº 2, als. f) e g), nº3, e art.
1679º, do CC) e de as dividas provenientes da exploração de tal empresa poderem responsabilizar
ambos os cônjuges (arts. 1691º/1 e 1695º do CC), o cônjuge do trespassante beneficiará
normalmente de conhecimentos deste relativos à organização, clientes, fornecedores, etc. do
estabelecimento trespassado (a sua concorrência seria por isso diferencial ou particularmente
perigosa).

É o caso, também, dos filhos do trespassante, quando com ele tenham colaborado na
exploração da empresa transmitida (para lá de poderem ter retirado proveito financeiro, direto e/ou
indireto, dessa exploração e do trespasse, eles possuem aptidão para uma concorrência diferencial).

E nos casos em que trespassante é uma sociedade, ficam vinculados pela obrigação, além
dela, também os sócios? Alguns podem ficar. Nomeadamente aqueles que possuem os
conhecimentos relativos à empresa trespassada indispensáveis a uma concorrência qualificada – ou
porque exerciam ativamente funções de administração, ou porque detinham participação social
dominante e exerciam efetivo controlo sobre a sociedade.

Entre os sujeitos ativos ou credores da obrigação implícita de não concorrência conta-se não
apenas o primeiro trespassário, mas também (enquanto a obrigação dever durar) os eventuais
sucessivos trespassários (cada um deles será credor do primeiro do sujeito passivo da obrigação, bem
como de outros trespassários-trespassantes, enquanto for proprietário do estabelecimento
transmitido).

Esta obrigação de não concorrência tem limites. Ela justifica-se apenas na medida em que
seja necessária para uma entrega efetiva do estabelecimento trespassado. Tem de ter, por
conseguinte, limites objetivos, espaciais e temporais. Caso contrário, haveria violação do princípio
da liberdade de iniciativa económica (art. 61º CRP) e das regras de defesa da concorrência.

Os sujeitos passivos da obrigação não ficam evidentemente proibidos de exercer qualquer


atividade económica. Não podem é (re)iniciar o exercício (de modo sistemático ou profissional) de
uma atividade concorrente com a exercida através da empresa trespassada, de uma atividade
económica no todo ou em parte igual ou sucedânea. Todavia, estes sujeitos não ficam impedidos
tão-somente de adquirir estabelecimento com objeto similar ao do alienado. Outros
comportamentos lhes são interditos, por exemplo, passarem a desempenhar funções de

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direção/administração em empresa alheia e concorrente da trespassada; entrarem em sociedade
com objeto idêntico ao do estabelecimento alienado, nela passando a exercer funções de
administração ou ficando a deter posição controladora.

Depois, a obrigação implícita de não concorrência tem limites espaciais e temporais: vale
apenas nos lugares delimitados pelo raio de ação do estabelecimento trespassado, e durante o
tempo suficiente para se consolidarem os valores de organização e/ou de exploração de empresas
transmitidas na esfera de um adquirente-empresário razoavelmente diligente.

Se os obrigados a não concorrer violarem a obrigação pode o trespassário exercer os direitos


previstos nas normas respeitantes ao não cumprimento das obrigações. Assim, pode
designadamente exigir indemnização por perdas e danos (798º CC), ou resolver o contrato de
trespasse (801º/2), ou intentar uma ação de cumprimento (817º) e requerer sanção pecuniária
compulsória (829º-A), ou exigir que o novo estabelecimento do obrigado seja encerrado (829º/1).

Note-se, por último, que a obrigação implícita de não concorrência pode ser afastada por
estipulação contratual (o sujeito dos interesses patrimoniais tutelados pela obrigação é o
trespassário, que deles pode dispor livremente). Significa a clausula de livre concorrência a
inexistência de um verdadeiro trespasse (havendo simples alienação de elementos empresariais), ou
uma efetiva transmissão do estabelecimento (ainda que algo desvalorizado)? Só a análise dos casos
concretos permitirá responder...

3.4.1.4. T RESPASSE DE ESTABELECIMENTO INSTALADO EM PRÉDIO ARRENDADO


A cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424º e seguintes,
sem prejuízo das disposições especiais deste capítulo – art. 1059, nº 2 do CC (1038º/f)). Uma das
disposições especiais é o artigo 1112º, nº1, al. a), que estabelece que, em caso de trespasse de
estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o trespassante-arrendatário
pode ceder a sua posição de arrendamento ao trespassário sem necessidade de autorização do
senhorio.

É uma norma expressiva da tutela da circulação negocial dos estabelecimentos, da própria


manutenção deles: a necessidade de autorização de senhorio conduziria muitas vezes à quebra da
referida defesa. Apesar disto, a lei consagra o direito de preferência do senhorio – art. 1112º, nº4 –
sendo necessária a comunicação dos elementos essenciais desse negócio.

Para COUTINHO DE ABREU, tutelam-se os interesses do trespassante em transmitir, sem entraves


do senhorio, estabelecimento integrado em prédio arrendado; do trespassário em adquirir empresas
o mais possível valiosas e funcionais; e o interesse económico-geral na continuidade e
desenvolvimento das empresas.

Nas palavras de RICARDO COSTA, a lei toma posição no conflito de interesses em matéria de
cessão da posição contratual do arrendatário quando o trespassante: por um lado, o interesse
comercial de efetuar a transmissão global da empresa é ,em principio, mais valorizada com a
manutenção do direito imobiliário; por outro lado, o interesse civilístico de “controlar”, no limite,
vedar, a mudança do arrendatário propiciada pela “viragem” do contrato de arrendamento com
o trajeto da empresa. A lei vem dar prevalência ao primeiro.

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Artigo 1112, nº2, al. a) do CC

Interpretando à letra a al. a) do art. 1112º, nº2, concluir-se-ia que o trespasse de um


estabelecimento exige a transferência de todos os seus elementos, bastando a falta de um deles
para que não exista o trespasse: prevê um controlo da existência de um verdadeiro trespasse. Assim,
a cessão da posição de arrendatário seria ilícita sem o consentimento do senhorio e fundamento de
resolução do contrato de arrendamento – art. 1083º, nº2, al. e) do CC.

O estabelecimento existe e como tal transmite-se quando existem e se transferem os


elementos do seu âmbito mínimo: não como infirmar, por aí, o trespasse. Portanto, para que o nº1
não tenha aplicação, não é suficiente que o senhorio prove não ter sido transmitido um ou mais
elementos componentes do estabelecimento. Terá de provar que sem esses elementos não subsiste
aquele concreto estabelecimento, que o mesmo não pode ter sido efetivamente negociado, tendo
havido antes simulação de trespasse. Entendemos que a al. a) está a desenvolver a função de alerta
para a necessidade de se transmitir verdadeiramente o estabelecimento, prevenindo os casos de
simulação da transmissão do estabelecimento apenas para transmitir a posição do arrendatário.

Artigo 1112º, nº2, al. b) do CC

A al. b) diz que não há trespasse quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outros
ramos de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a afetação a outro destino. A intenção de
mudança de destino pode ser revelada logo por declarações constantes no escrito do negócio ou
por declarações externas concomitantes. Mas isto é muito difícil de provar, uma vez que se prende
com intenções, o mais provável é ela ser revelada por factos posteriores.

Aqui, a mudança objetiva do estabelecimento, em especial, dentro de um fim comercial ou


em geral, para um fim não comercial ou habitacional, interessa enquanto reflexo da vontade das
partes no momento da celebração, de como não quiseram realizar efetivamente um contrato de
trespasse, mas sim a cessão do gozo do próprio imóvel, furtando-se à regra da autorização do
senhorio. O objetivo da lei é a prevenção e deteção de acordos simulatórios.

Assim, a mudança de destino pode ser feita em condições tais, nomeadamente após o
decurso de algum tempo após o trespasse, que indica que o trespassante e trespassário quiseram
mesmo realizar o contrato de trespasse.

Em suma, não haverá trespasse se o objeto no negócio foi o imóvel e não o estabelecimento,
sendo que, para surpreender esta simulação, é necessário, segundo R ICARDO COSTA, denunciar a
vontade real dos intervenientes ao tempo da transmissão do estabelecimento, que pode ser
expressa nas declarações, ou de outras clausulas indiciadoras da fraude à lei, por exemplo, o preço
do trespasse em relação ao valor do estabelecimento; ou afirmar a expressão de vontade real dos
intervenientes numa situação ocorrida após a transmissão do estabelecimento, não só mudança de
destino, mas também outros atos que exprimam o decaimento dos valores de exploração e
organização da empresa, por exemplo, a venda dos bens significativos e o encerramento do
estabelecimento.

Declarada a simulação, a autorização do senhorio era necessária – arts. 1038º, al. f); 1059º,
nº2 e 424º, nº1 - e, por falta dela, pode o senhorio resolver o contrato – arts. 1083º, nº1 e 2, al. e) – e,
se for caso disso, pedir indemnização por perdas e danos decorrentes do incumprimento contratual
– arts. 1038º, al. f) e 798º.

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Note-se que SOVERAL MARTINS e RICARDO COSTA não têm a mesma posição que COUTINHO
DE ABREU. Eles defendem, que tanto o trespassante como o adquirente têm de ter a mesma
intenção, enquanto que Coutinho de Abreu defende que basta que o adquirente tenha esta
intenção. Isto porque senão estaríamos a pôr nas mãos do adquirente o destino do trespasse, que
poderia, por exemplo, ser alvo de uma ação de resolução por cessação ilícita pelo senhorio.

Artigo 1112º, nº5 do CC

O nº5 diz que o senhorio pode resolver o contrato quando seja dado outro destino ao prédio.
Considerou-se que este regime era mais favorável aos interesses do comércio só se justificaria se se
mantivesse aquele ramo do comércio. A mudança objetiva do destino do prédio parece ser assim
uma causa de cessão ilícita, sancionando-se automaticamente este comportamento,
independente da vontade genética das partes.

Esta norma é bastante criticada, havendo divergência na doutrina quanto à questão de


saber se a norma cria ou não um fundamento autónomo de resolução. Com efeito, parte da
doutrina entende que esta não é uma norma autónoma3.

Certos autores defendem que é uma confirmação do artigo 1112º, nº2, al. b): a
transformação posterior é um indício de uma vontade genética. Apenas vem trazer alguma certeza
a esta manifestação.

Outros defendem que o que está aqui em causa é a violação da finalidade do contrato de
arrendamento – art. 1083º, nº2, al. c), logo este nº5 é desnecessário. A fórmula “dar outro destino” é
absorvida na alteração do fim convencionado.

Entre nós, entendemos que é fundamento autónomo de resolução: mas como interpretar?

RICARDO COSTA faz uma interpretação restritiva, segundo a qual o nº5 apenas vale para a
mudança mercantil, para não mercantil ou mercantil para habitacional, não valendo quando haja
mudança de ramo comercial, protegendo desta forma a conversão dentro das atividades
mercantis. Esta até poderia ser uma interpretação declarativa, uma vez que apenas fala de
mudança de destino e a al. b) usa esta expressão para a mudança de mercantil para não mercantil
ou de mercantil para habitacional.

O autor critica a solução deste artigo, avançando três argumentos que suportam a
interpretação restritiva:

1. É uma solução prejudicial ao interesse da tutela da conservação do estabelecimento.


2. É depois um poder desmedido do senhorio, comparado com o direito de resolução a que
lhe assiste com base em incumprimento do fim convencionado. Mesmo quando se reserva o
imóvel para um fim específico, aceita-se que são permitidas, pela clausula contratual,
atividades que lhes estejam próximas, com o objetivo de limitar a intromissão do senhorio.
3. Finalmente, é uma opção atrofiante dos interesses empresariais. Visa-se a proteção da livre
circulação dos estabelecimentos comerciais, sem entraves colocados pelos senhorios. Ora,

3JANUÁRIO GOMES, OLINDA GARCIA, SOUSA RIBEIRO, RICARDO COSTA, CASSIANO DOS SANTOS,
GRAVATO MORAIS E PINTO FURTADO.

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se a empresa não estiver a funcionar bem e não puder ser alterada, podemos nunca ter um
estabelecimento suscetível de ser negociado.

CASSIANO DOS SANTOS defende também a interpretação restritiva, mas deve ser feita em função
do tempo que demora a conversão: a mudança após a transmissão tem de ser imediata, porque
isto é que é censurável, transpondo o juízo da al. b), segundo o qual uma mudança imediata é
indício de simulação.

COUTINHO DE ABREU considera que a norma é criticável, mas entende que ela cria fundamento
autónomo de resolução. E não é prejudicada pela norma da al. b) do nº2 do art. 1112º (os campos
de aplicação respetivos não coincidem necessariamente); o alcance prático desta fica diminuído.
Por outro lado, há diferenças de regime consoante se aplique uma ou outra norma.

A. A transformação de um bar em restaurante – NÃO HOUVE TRESPASSE - art. 1112º nº2, al.
b) do CC.
1. O senhorio pode resolver o contrato de arrendamento com base no 1083º, nº2, e)
– cessão ilícita; mas também pode faze-lo com fundamento no nº5 do qrt. 1112º.
B. Apesar da transformação do bar em restaurante, HOUVE TRESPASSE (trespassante e
trespassário negociaram objetivamente o estabelecimento-bar, o trespassário, no
momento do negócio, não tinha em vista exercer no prédio outro ramo de comércio).
1. Se o contrato de arrendamento comportasse outros fins comerciais (incluído a
restauração) – arts. 1027º, 1028º e 1067º - não havia lugar a resolução – o
trespassário, enquanto proprietário, podia perfeitamente converter o
estabelecimento adquirido noutro estabelecimento.
2. É para estes casos que o (novo) nº5 do art. 1112º (não o 1083º/2/c)) oferece
fundamento próprio para resolução.
i. A ratio da norma será: a lei concede ao trespassante e ao trespassário o
benefício consagrado nº1, a) do art. 1112º (não interferência do senhorio
na cessão da posição de arrendatário) a fim de facilitar a transmissão
negocial do estabelecimento de um para outro; se este estabelecimento
não se mantiver, deverá então o senhorio poder interferir na relação
arrendatária, resolvendo o contrato.
C. INEXISTÊNCIA DE TRESPASSE E DE AUTORIZAÇÃO PARA CEDÊNCIA DA POSIÇÃO DE
ARRENDATÁRIO
1. O senhorio pode resolver o contrato de arrendamento,
2. Mas também pode responsabilizar civilmente o trespassante e o trespassário –
quando os atos ilícitos e culposos destes (na cessão não autorizada da posição
arrendatícia) lhe cause danos (quanto ao trespassante – responsabilidade
contratual; e quanto ao trespassário – responsabilidade extracontratual)
D. EXISTINDO TRESPASSE E SUBSEQUENTE MUDANÇA DE DESTINO:
1. O senhorio pode resolver o contrato de arrendamento (nº5 do art. 1112º);
2. Mas não terá direito a indemnização (a cessão da posição de arrendatário foi
licita e o Trespassário, enquanto proprietário, tem o direito de converter o seu
estabelecimento),

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Resolução do Contrato de
Arrendamento (Trespasse)

INTENÇÃO DE DAR OUTRO DESTINO


AO PRÉDIO - NÃO HOUVE TRESPASSE
INEXISTÊNCIA DE TRESPASSE (o contrato não comporta outros MUDANÇA DO DESTINO DO
E DE AUTORIZAÇÃO PARA fins) TRESPASSE (o contrato
CEDÊNCIA DA POSIÇÃO DE comporta outros fins)
ARRENDATÁRIO OU
EXISTINDO TRESPASSE E SUBSEQUENTE
MUDANÇA

1112º, nº2, al. b) 1112º, nº5


1112º, nº2, al. a)

1083º, nº2, al. e) 1083º, nº2, al. c)


1083º, nº2, al. e)

1038º, al. f) + 798º


INDEMNIZAÇÃO

Assim, o nº5 distingue-se da al. a) e ainda do art. 1083º, nº2, al. c), pois é independente da
questão do fim contratual, mas estas causas de resolução podem-se cruzar: podemos ter várias
causas de resolução ao mesmo tempo. Por exemplo, muda o destino e ao mesmo tempo viola o fim
do contrato de arrendamento. Podemos até ter as 3 causas de resolução ao mesmo tempo.

Outra questão é a de saber se o artigo 1112º, nº5, depende do funcionamento da clausula


do art. 1083º, nº2. Com efeito, o artigo 1083º depende do funcionamento da cláusula de gravidade
do nº2: o senhorio só pode resolver o contrato com base naqueles fundamentos se se tornar inexigível
a manutenção do contrato de arrendamento. A primeira tese após 2006 era a de que todas as justas
causas de resolução têm de interagir com esta clausula; outros autores dizem que tem de ser ilidida
pelo arrendatário; outros, que são tão graves que não é preciso ir à clausula geral; outros ainda que
depende, tem de ser ponderado fundamento a fundamento.

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O art. 1112º, nº5, sendo uma justa clausula de resolução, tem de ser ponderado à luz da
clausula geral?

Depende da tese que adotarmos quanto à clausula: para R ICARDO COSTA, justas causa
depende da ponderação à luz da clausula geral, apesar de o juízo a fazer para cada fundamento
ser diferente. Há causas que são mais graves, por exemplo, a violação dos bons costumes. A
gravidade de partida é diferenciada.

Assim, ainda temos de passar pelo crivo do art. 1083, nº2, o que será improvável uma vez que,
quando temos um prédio desvalorizado e mudamos o seu destino para o estabelecimento ser viável,
não é inexigível a manutenção do contrato.

Isto também é aplicável à locação, por força do artigo 1109º, nº1. Mas aqui temos uma
particularidade, que é a que o locatário deve restituir a coisa locada tal como recebeu, e como tal
se alterar o destino está a violar esta obrigação.

Obrigação de comunicação

O artigo 1112º, nº3, estabelece que a transmissão da posição do arrendatário, sem


dependência de autorização do senhorio, deve ser-lhe comunicada. Esta norma repete o disposto
no art. 1038º, al. g) do CC, que estabelece a obrigação de comunicação do locatário ao locador
da cedência do gozo da coisa, sendo a cessão da posição do locatário ineficaz perante o locado
no caso de violação desta obrigação, art. 424º, nº2, para o qual remete o artigo 1059º, nº2.

Nos termos do art. 1038º, al. g) do CC, é obrigação do locatário “comunicar ao locador,
dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos (entre os quais se
conta a cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica – al. f)), quando permitida ou
autorizada”.

Não sendo feita tal comunicação, a cessão da posição de locatário é ineficaz perante o
locador (art. 424º/2, que remete para o art. 1059º/2). E pode o locador resolver o contrato (ver art.
1049º)

Sendo ineficaz relativamente ao senhorio a cedência da posição de arrendatário não


comunicada atempadamente, aquele, se não tiver reconhecido o cessionário como tal (art. 1049º),
pode resolver o contrato de arrendamento, de acordo com o previsto no art. 1083º, nº2, al. e) (cessão
ineficaz). Mas, normalmente, a resolução não será decretada pelo tribunal (art. 1084º, nº1) pelo
simples facto de a comunicação não ter ocorrido no prazo de quinze dias. É necessário, como se diz
no nº2 do art. 1083º, que o incumprimento, “pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível
à outra parte a manutenção do arrendamento”.

Interessa ao senhorio que lhe seja comunicada a cessão da posição de arrendatário: tem o
direito de saber quem aparece como novo inquilino e de verificar se houve ou não trespasse válido
que lhe imponha novo inquilino. Mas, havendo trespasse válido, o senhorio não tem poderes para
recusar o trespassário como arrendatário. Pelo que, para conduzir à resolução, não será suficiente
uma pequena ultrapassagem do citada prazo de quinze dias. Será suficiente, por exemplo, um
atraso de vários meses que tenha impedido o senhorio de, bem mais cedo, denunciar (livremente)
o contrato de arrendamento (1110º/1 e 1101º/c) do CC e 28º/3/a) do NRAU).

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3.4.2. LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO

3.4.2.1. N OÇÃO E ( ALGUM ) REGIME


A locação de estabelecimento é definível como o contrato pelo qual uma das partes se
obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento, mediante retribuição. Esta
noção enquadra-se com a noção geral de locação prevista no art. 1022º do CC: os
estabelecimentos podem ser locados; a locação de estabelecimento é um contrato nominado –
tanto na doutrina como na lei; tal como também é típico, isto é, está regulado na lei.

O artigo 1109º trata da locação de estabelecimento, mas não aborda muitos aspetos: até
porque remete para as próprias regras da subsecção em que se insere, que não são dedicadas à
locação, mas sim ao arrendamento para fins não habitacionais. Ora, parece estar em causa a
negociação do estabelecimento como um todo, ou seja, o prédio em conjunto com o
estabelecimento, e isto é importante porque vamos aplicar as regras da subsecção ao contrato de
cessão de estabelecimento e não apenas ao imóvel. Para além disso, o artigo 1109º não resolve uma
coisa que estava antes prevista na lei: não temos aqui um subarrendamento. O direito que o
locatário terá é apenas o direito de utilização do prédio no âmbito da exploração do
estabelecimento cujo gozo lhe foi cedido.

O nº2 dispõe que, havendo locação de estabelecimento, o senhorio não tem de dar
consentimento para o trespassário utilizar o imóvel onde está instalado o estabelecimento. Apenas
existe uma obrigação de comunicar embora seja no prazo de um mês. O próprio locatário pode ele
mesmo fazer a comunicação, apesar de quem tem a obrigação de comunicar é o locador.
Faltando a comunicação, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio e este
pode resolver o contrato – art. 1083º, nº2, al. e) .

Regime

O artigo 1110º, nº1 estabelece que as regras relativas à duração, denúncia e oposição à
renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas
pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para
habitação.

As partes na locação de estabelecimento com prazo certo, na falta de regime convencional


para denúncia, vale o previsto no artigo 1098º, nº 3 e 4 (denúncia apenas pelo locatário), exceto se
o prazo certo de duração for supletivo (5 anos), caso em que não poderá o locatário denunciar o
contrato com antecedência inferior a um ano, artigo 1110º, nº2.

Se o contrato tiver sido celebrado por duração indeterminada, o regime supletivo da


denúncia, pelo locatário e também pelo locador, é o dos artigos 1100º e 1101º.

COUTINHO DE ABREU argumenta que, no art. 1110º, nº1, refere-se também à oposição à
renovação, tendo em vista os contratos a tempo certo; este artigo não remete para o regime do
artigo 1096º, que diz que o contrato celebrado por prazo certo se renova automaticamente. Qual a
consequência disto? Vale o regime geral da locação (1054º), que é o da caducidade. Porém,
podem as partes prever a prorrogação do contrato. Bem como regras relativas à oposição à
“renovação” – se o não fizerem, deverá aplicar-se o art. 1055º.

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O art. 1111º refere-se a obras de conversação. Na opinião de COUTINHO DE ABREU, este é
inaplicável à locação de estabelecimento.

Em relação à forma, o artigo 1112º é aplicável segundo a primeira parte do nº3, o contrato
de locação de estabelecimento deve ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade.

Aplica-se o artigo 1113º, segundo o qual a locação de estabelecimento não caduca por
morte do locatário, podendo embora os sucessores renunciar à transmissão.

3.4.2.2. Â MBITOS DE ENTREGA


Tal como nos casos de trespasse, a locação de estabelecimento não pode prescindir dos
elementos necessário ou essenciais para a identificação da empresa objeto do negócio: o âmbito
mínimo tem de ser respeitado.

Salvo quando outra coisa resulte da lei ou do contrato, os elementos empresariais transferem-
se naturalmente para o locatário. Integra-se no âmbito natural de entrega a generalidade dos meios
empresariais pertencentes em propriedade ao locador: prédios, máquinas, ferramentas, logótipos e
marcas - arts. 31º/5 e 304º-P/3 CPI. Estes artigos supõem a transmissão do estabelecimento e a
locação, enquanto transmissão temporária, não pode deixar de ser abrangida.

Quanto aos elementos empresariais que se encontram na esfera jurídica do locador a título
obrigacional, a posição de empregador decorrente dos contratos de trabalho para o locador
transmite-se, pelo período da locação para o locatário – art. 285º, nº3 do CT.

Quando o estabelecimento funciona em prédio arrendado, entende-se que se transmite


naturalmente para o locatário da empresa o gozo do prédio. Coisa semelhante deve valer para
bens empresariais detidos pelo locador de estabelecimento a título de locação financeira ou de
simples aluguer, e ainda as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e marcas objeto
de licença de exploração (art. 32º, nº8 do CPI). Tal como no trespasse, as situações com valor
económico de elementos da empresa (saber-fazer/know-how) incluem-se no âmbito natural de
entrega.

Quanto à firma, em face do artigo 44º, nº1, também se integra no âmbito convencional de
entrega.

Com a locação de um estabelecimento diversos elementos de propriedade do locador se


transferem para o locatário. Mas a que titulo?

Deve entender-se que a propriedade dos meios empresariais fica com o locador, não se
transmite para o locatário. O negócio da locação incide sobre o estabelecimento, não sobre
singulares elementos seus. Por outro lado, a propósito de um dos elementos da empresa, o prédio, o
artigo 1109º, nº1 do CC não parece dar azo a hesitações ao falar de transferência temporária de
gozo do mesmo.

Com que direito, então, o locatário transforma ou aliena bens constituintes do capital
circulante e aliena bens do capital fixo que é necessário substituir?

Este poder ou direito de disposição sobre os meios empresariais não se funda no direito de
propriedade, mas sim no poder-dever de exploração do estabelecimento. O locário tem não apenas

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o direito de explorar-gozar o estabelecimento, mas também o dever de o fazer, sob pena de a
empresa sofrer diminuição no seu valor económico ou mesmo de extinguir-se.

O exercício de tal poder-dever implica necessariamente os referidos consumo e alienação


de elementos empresariais.

3.4.2.3. O BRIGAÇÕES DE NÃO CONCORRÊNCIA


Enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador está obrigado a não concorrer
num determinado espaço com o locatário – esta obrigado, designadamente, a não iniciar atividade
igual ou semelhante à exercida através do estabelecimento locado. Tal obrigação não é “implícita”.
Ela resulta de expressas disposições legais – arts. 1031º/b), e 1037º/1 do CC.

E pode o locatário, na vigência do contrato de locação, iniciar o exercício de uma atividade


concorrente com a exercida através da empresa locada e no espaço delimitado pelo raio desta,
sem o consentimento do locador? A resposta é negativa. Tal comportamento provocaria uma
diminuição do valor do estabelecimento locado – e, significaria, portanto, a violação do “dever de
manutenção e restituição da coisa” a cargo do locatário (art. 1043º do CC).

Terminado o contrato, e não ausência de um possível pacto de não concorrência, fica o ex-
locatário obrigado a não concorrer com o ex-locador? As respostas têm sido diversificadas.
COUTINHO DE ABREU entende que o ex-locatário fica livre para concorrer. O princípio é o da
liberdade de iniciativa económica e de concorrência. É certo que o ex-locador pode aproveitar
conhecimentos sobre a clientela e a organização empresarial adquiridos durante a locação. Mas
compete ao locador tomar a devida conta esse risco. Também os simples assalariados de um
empresário podem, extinta a relação laboral, aproveitarem-se igualmente de tais conhecimentos
para se estabelecerem – sendo pacifico que eles gozam (salvo pacto em contrário) de liberdade
de trabalho (art. 136º CT) e de empresa. Estes conhecimentos, além de serem adquiridos pelo
locatário no decurso de uma exploração pela qual pagou ao locador, eram também pertença
deste ou estavam ao seu alcance (al. b) do art. 1038º CC) e podem continuar a ser usados na
exploração do estabelecimento restituído.

3.4.2.4. L OCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO E ARRENDAMENTO


A locação de estabelecimento, mesmo quando envolve prédios, não é um contrato de
arrendamento (1023º CC). Apesar do art. 1109º/1, afirmar que ela se rege pelas regras da subsecção
VIII.

Também não é um contrato misto, associando o arrendamento do prédio ou fração e o


aluguer de estabelecimento ou dos móveis componentes do estabelecimento. O enunciado do nº1
do art. 1109º sugere essa perspetiva. A locação de estabelecimento prevista no art. 1109º é negócio
unitário com objeto também unitário: o estabelecimento, feito embora de elementos vários. O gozo
do prédio-elemento do estabelecimento é transferido para o locatário a título não autónomo, não
há específico negócio incidindo sobre o prédio; o prédio não é dado em arrendamento nem
subarrendado (salvo acordo em contrário) – o locador de estabelecimento e proprietário do imóvel
não passa a senhorio, o locador de estabelecimento e arrendatário do imóvel não cede a sua
posição arrendatícia nem subarrenda.

Uma questão muito discutida é a necessidade ou não de o senhorio autorizar a cedência do


gozo do prédio arrendado aquando a locação de estabelecimento nele instalado. Foi-se tornando
dominante a tesa da desnecessidade de autorização do senhorio.

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O NRAU consagrou no 1109º, nº2, a desnecessidade de o senhorio autorizar a cedência do
gozo do prédio. Apesar de o ter feito sem rigor linguístico: o que “não carece de autorização do
senhorio” não é “a transferência temporária e onerosa de estabelecimento instalado em local
arrendado”, é sim a transferência do gozo do prédio integrado no estabelecimento.

Até ao NRAU, havia também divergências na jurisprudência e na doutrina sobre se era


obrigação do arrendatário do prédio e locador de estabelecimento comunicar ao senhorio a
cedência do gozo do prédio integrado na locação da empresa.

Também aqui o art. 1109º, nº2, consagrou a solução mais acertada: a transferência do gozo
do prédio deve ser comunicada ao senhorio no prazo de um mês (o senhorio, tem interesse legitimo
em averiguar se houve ou não locação de estabelecimento – só quando ela exista é que a cedência
do gozo do prédio não carece da sua autorização).

Faltando a comunicação no prazo referido, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em


relação ao senhorio. Que poderá, por isso (salvo se tiver reconhecido o beneficiário da cedência
como tal – art. 1049º) resolver o contrato de arrendamento: art. 1083º, nº2, al. e). Mas, como dito a
propósito do trespasse, a falta de comunicação tem de, pela sua gravidade ou consequências,
tornar inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.

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4. RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS POR VIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS
Atualmente, no nosso sistema jurídico, são previstos três processos de recuperação de
empresas:

Recuperação de empresas

Processos Judiciais Processo extrajudicial

Regime Extrajudicial de
Processo com Plano de Processo Especial de
Recuperação de
Insolvência Revitalização (PER)
Empresas (RERE)

Aplicável a pessoas singulares,


Aplicável a devedores Aplicável a devedores entidades coletivas (com ou sem
(pessoas coletivas com (empresas ou não) em personalidade juridica) e
empresas ou não e pessoas situação económica difícil patrimónios autónomos que
singuleres com empresa ou em situação de tenham, ou explorem, ou sejam
grande) em situação de insolvência meramente empresas e que estejam em
insolvencia iminente situação económica dificil ou em
situação de insolvência iminente

4.1. PLANO DE INSOLVÊNCIA


Dispõe o art. 1º do CIRE: “O processo de insolvência é um processo de execução universal
que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência
baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou,
quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente (...)”.
Convém, no entanto, chamar a atenção para alguns pontos a este respeito:

• O “Plano de Insolvência”, mesmo quando aplicado a empresários, não tem de visar a


recuperação da empresa. Embora o desígnio recuperativo do plano deva ser considerado
primordial, este instrumento pode ser utilizado com objetivos destintos (que não passam pela
recuperação empresarial);
• A “recuperação” de empresa de que o CIRE trata deve ser entendida em sentido amplo,
incluindo-se aqui tanto a reorganização da empresa (para que (re)conferir condições de
vida autónoma) como a mera manutenção da empresa na titularidade do insolvente ou de
terceiro;
• A recuperação ou manutenção de empresa não implica a sua continuidade na esfera
jurídica do insolvente;
• O processo de insolvência é único, não se verificando formas de processo distintas para a via
da liquidação e para a via do plano de insolvência.

O CIRE oferece uma noção de empresa, no seu art. 5º: “toda a organização de capital e de
trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”. Esta é uma definição com

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escassa utilidade no contexto do CIRE porquanto a empresa, embora importante para efeitos vários,
não é essencial para o âmbito de aplicação subjetivo do Código – vide o art. 2º do referido Código.

O plano de insolvência pode definir-se como: “um instrumento de natureza jurídico-negocial


utilizável pelos credores que contém primordialmente medidas de recuperação de empresa do
devedor insolvente”.

Portanto, se o devedor insolvente continuar a explorar a empresa, os credores esperam


satisfazer-se basicamente com os resultados empresariais; no caso de a empresa ser transmitida,
satisfazem-se os credores principalmente com o produto da venda e/ou a aquisição de
participações em nova sociedade em troca de créditos sobre o insolvente. Podem apresentar
proposta do plano – art. 193º CIRE:

è O devedor;
è O administrador da insolvência;
è Um credor ou grupo de credores (com créditos correspondentes a, pelo menos, 1/5 do total
dos créditos classificados como “não subordinados” [a este respeito: arts. 47º/4, 48º e 49º
CIRE]);
è Qualquer responsável legal pelas dívidas da insolvência.

À apresentação da proposta seguem-se os seguintes passos:

1. Admissão da proposta de plano de insolvência pelo juiz – art. 207º CIRE;


2. Notificação das entidades mencionadas no art. 208º CIRE para emissão de parecer sobre a
proposta;
3. Convocação da assembleia de credores para discussão e votação da proposta de plano
(art. 209º/1 CIRE).
a. Só poderá realizar-se esta assembleia de credores após (art. 209º/2 CIRE):
i. Trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência;
ii. Esgotamento do prazo para a impugnação da lista de credores reconhecidos;
iii. Realização da assembleia de apreciação do relatório prevista no art. 36º/n) e
156º CIRE.
4. Realização da assembleia de credores e votação da proposta de plano de insolvência – arts.
209º a 213º CIRE;
5. Homologação da proposta por decisão judicial – arts. 214º a 216º CIRE.

Para que a hipótese de recuperação empresarial pareça plausível aos credores em


assembleia de discussão de proposta de plano de insolvência, é naturalmente importante que a
empresa não se encontre paralisada e mantenha o maior ativo possível. Ora, entre o início do
processo de insolvência e a verificação das condições do art. 209º/2 CIRE, há risco de serem tomadas
decisões que comprometam a manutenção da empresa. O Código prevê, porém, algumas
medidas que diminuem o risco – vide, designadamente, os arts. 31º, 33º. 55º/1/b) e 157º, 156º/2 e 3,
206º/1 e 2, 161º e 166º CIRE.

Na assembleia de credores para discussão e votação da proposta de plano de insolvência,


presidida pelo juiz (art. 74º CIRE), têm direito a participar os credores (com ou sem direito de voto),
bem como outras pessoas (art. 72º CIRE). Para se poder deliberar sobre o plano de insolvência é
necessário que estejam presentes ou representados na assembleia credores cujos créditos
constituam, pelo menos, 1/3 do total do total dos créditos com direito a voto (arts. 212º/1 e 211º/1
CIRE). Em geral, de acordo com o art. 73º CIRE, os créditos (não subordinados) conferem um voto
por cada euro ou fração. Todavia o nº 2 do art. 212º elenca os créditos que, para estes efeitos, não

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conferem direito de voto. A votação pode ser efetuada na própria assembleia ou por escrito fora
da assembleia (art. 211º CIRE). Em qualquer caso, a proposta ter-se-á como aprovada se obtiver mais
de 2/3 da totalidade dos votos emitidos e mais de 1/2 de votos emitidos correspondentes a créditos
não subordinados (art. 212º/1 CIRE).

O plano de insolvência aprovado pelos credores necessita, para ser plenamente eficaz, de
ser homologado por sentença judicial (art. 217º/2 CIRE 1ª parte). A homologação necessária pode
ser recusada em dois tipos de casos:

1. Não homologação oficiosa (art. 215º CIRE):


a. Violação não negligenciável de normas procedimentais;
b. Violação não negligenciável de normas respeitantes ao conteúdo do plano
(sobretudo, normas legais que impõem determinados consentimentos – vide,
nomeadamente, o art. 202º CIRE);
c. Não verificação das condições suspensivas do plano dentro de um prazo razoável
(art. 201º/1 CIRE);
d. Falta de prática dos atos que devem preceder à homologação dentro de prazo
razoável (art. 201º/2);
e. Falta de execução das medidas que devem preceder à homologação dentro de
prazo razoável.
2. Não homologação a solicitação dos interessados (art. 216º CIRE) à pressupostos (nº 1):
a. Tratar-se de devedor não proponente do plano, credor sócio, associado ou membro
do devedor;
b. Manifestação da oposição ao plano de insolvência logo nos autos antes da respetiva
aprovação;
c. Demonstração de uma de duas hipóteses (que resultarão da eficácia do plano):
i. A sua situação ficará pior com o plano do que sem ele;
ii. O plano proporciona a algum credor um valor patrimonial superior ao
montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor de
contribuições a que fique obrigado.

Mesmo verificando-se estes pressupostos, se reunidos os requisitos do nº 3 do art. 216º


CIRE, o juiz pode proceder à homologação (pois cessa o disposto no nº 1).

As providências ou medidas de recuperação de empresas que é possível estatuir num plano


de insolvência são muito variadas, dependendo fundamentalmente da imaginação e vontade dos
credores. Ainda assim, o legislador indica numerosas medidas – vide arts. 196º e 198º CIRE (atente-se
nas expressões “nomeadamente” e “pode”, as quais indicam a não taxatividade dos elencos; isto
sem prejuízo do disposto no art. 192º/2 CIRE), bem como no art. 199º. No que diz respeito ao 198º CIRE,
do qual constam “providências específicas de sociedades comerciais”, importa referir que
COUTINHO DE ABREU critica as providências referidas no nº 2, já que aí se elencam diversas medidas
que, segundo a legislação societária só podem ser tomadas pelos sócios e que, neste contexto,
permite-se serem “impostas” pelos credores da sociedade. Falamos, designadamente, das seguintes
medidas:

• Redução do capital social para cobertura de prejuízos, incluindo redução a zero ou a


montante inferior ao mínimo legal (em determinadas condições);
• Aumento do capital social a subscrever por terceiros ou por credores (designadamente
mediante conversão dos créditos sobre a insolvência em participações sociais), com ou sem

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respeito pelo direito de preferenciados sócios previsto legal (arts, 266º e 458º CSC) e
estatutariamente;
• Outras alterações dos estatutos da sociedade;
• Transformações da sociedade (em tipos diferentes);
• Alteração dos órgãos sociais;
• Exclusão de todos os sócios de sociedade em nome coletivo ou em comandita simples ou
dos sócios comanditados de sociedade em comandita por ações;
• Exclusão de todos os sócios de responsabilidade ilimitada, gerentes ou não;
• Exclusão de sócios comanditários de sociedade em comandita simples.

Entende COUTINHO DE ABREU, então, que é estranho que o Código não se baste com permitir
aos credores disporem do património da sociedade ou condicionarem a continuação dela à
adoção de medidas pelos respetivos órgãos, permitindo-lhes infundirem em alterações tão drásticas
na organização pessoal da sociedade.

Contudo, quando o insolvente seja uma sociedade anónima de responsabilidade limitada,


uma sociedade em comandita por ações ou sociedade por quotas de responsabilidade limitada,
cumpre ao juiz recusar oficiosamente a homologação do plano de insolvência que estatua um
aumento ou redução do capital social, porquanto as alíneas a) e b) do nº2 do art. 198º CIRE viola a
recém redigida Diretiva 2017/1132 (mormente, os seus arts. 68º, 73º e 74º).

Plano de pagamento para pessoas singulares que sejam pequenos


empresários:

Como exposto acima, o plano de insolvência aplica-se, além de a pessoas coletivas (com ou
sem empresa), tão-só a pessoas singulares que sejam empresários que sejam detentores de “grandes
empresas”. Todavia, os arts. 249º e ss. CIRE estabelecem um regime aplicável a não empresários e a
titulares de pequenas empresas, nos quais, em alternativa ao “plano de insolvência”, é disciplinado
o “plano de pagamentos”.

Nesta hipótese, quando preenchidos os requisitos enunciados no art. 249º/1 CIRE, o devedor
pode apresentar, conjuntamente com a petição inicial (ou na contestação, ao abrigo do art. 253º
CIRE) do processo de insolvência, um plano de pagamento aos credores (art. 251º CIRE). Neste plano
é formulada uma proposta de satisfação dos direitos dos credores, na qual podem ser previstos
expedientes como os elencados no nº 2 do art. 252º CIRE, entre outros. O processo decorrerá,
subsequentemente, nos termos previstos nos artigos seguintes.

4.2. PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO (PER)


O PER na modalidade regulada nos arts. 17º-A a 17º-H do CIRE destina-se a permitir à
“empresa” em crise ou desvitalizada (em situação económica difícil ou de insolvência iminente)
estabelecer negociações com os seus credores a fim de concluir com eles acordo (“plano de
recuperação”) conducente à sua “revitalização” (art. 17º-A, nº1).

O processo é iniciado mediante requerimento da empresa ao tribunal, acompanhado de


varias declarações e documentos – por exemplo, declaração escrita da empresa manifestando
convicção de que reúne condições para ser recuperada; declaração subscrita por contabilista
certificado ou por ROC atestando que a empresa não esta insolvente; declaração escrita em que a

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empresa e um ou mais credores (não especialmente relacionados com ela) titulares de, em regra,
pelo menos 10% dos créditos não subordinados manifestam a vontade de encetarem negociações
para a revitalização da empresa; proposta de plano de recuperação (arts. 1º/2, 17º-A/2 e 17º-
C/1,2,3,6).

Verificando-se os pressupostos para o prosseguimento, o juiz nomeia por despacho


administrador judicial provisório (art. 17º-C, nº4).

Todos os credores são convidados pelo devedor a participar nas negociações, todos eles
podendo ser participantes (nº1 e 7 do art. 17º-D). E todos eles têm oportunidade para reclamar
créditos (nº 2, 3 e 4). Findo prazo para impugnações da lista provisora de créditos, as negociações
devem ser concluídas no prazo de dois ou (se houver prorrogação) três meses (nº 5, 8, 9).

Depois do referido despacho do juiz, e enquanto durarem as negociações, as ações para


cobrança de dividas contra a empresa não podem ser propostas e são suspensas as instauradas
antes; estas ações extinguir-se-ão se e quando o plano de recuperação for aprovado e
homologado, salvo se ele previr a sua continuação (17º-E, 1). O nº8 do art. 17º-E (aditado pelo DL
79/2017) proíbe a suspensão de certos “serviços públicos essenciais” enquanto durarem as
negociações (nº9).

Por outro lado, depois do citado despacho do juiz nomeando administrador judicial provisório,
a empresa fica impedida de, sob pena da ineficácia, praticar atos de relevo especial para o
processo sem autorização do administrador (arts. 17º-E, 2 a 5, e 17º-C, 4, remetendo para o 34º).

O plano de recuperação, enquanto instrumento jurídico-negocial, pode conter quaisquer


providências não proibidas por lei. Por exemplo, perdão parcial de dividas, diminuição das taxas de
juro dos créditos, promoção de aumento do capital (de sociedade), obrigação de um ou mais
credores emprestarem dinheiro à empresa ou disponibilizarem-lhe (a crédito) meios de produção,
constituição de garantias a favor de credores.

Os dois últimos exemplos ligam-se ao art. 17º-H. “As garantias convencionadas entre a
empresa e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de
proporcionar àquela os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade,
mantem-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a sua
insolvência” (nº1). A estatuição, que resultaria do art. 120º, nº6, aplicar-se-á às garantias constituídas
no decurso das negociações do PER e autorizadas pelo administrador judicial provisório (arts. 17º-E/2
e 161º/3/f)). Por sua vez, diz o nº2 do art. 17º-H: “Os credores que, no decurso do processo, financiem
a atividade da empresa disponibilizando-lhe capital para sua revitalização gozam de privilégio
creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio mobiliário geral concedido aos
trabalhadores”. Estes negócios de financiamento (com meios de “capital” em sentido amplo) são
também insuscetíveis de resolução em benefício da massa insolvente (no caso de o devedor vir a
ser declarado insolvente) – 120º/6.

Se até ao termo das negociações a empresa depositar no tribunal um plano de revitalização,


este, decorrido certos prazos, é sujeito a votação (art. 17º-F, 1, 2 e 3).

A votação é feita por escrito, “sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório,
que os abre em conjunto com a empresa” (art. 17º-H, 6).

Atribuem direito de voto os créditos que constam da lista definitiva de créditos (nº4 do art.
17º-D) ou, se esta ainda não existir, os créditos não impugnados incluídos na lista provisoria (nº3 do
art. 17º-D) e ainda os créditos impugnados relativamente aos quais haja probabilidade seria de virem

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a ser reconhecidos (17º-F, 5). Em qualquer caso, porém, não conferem direito de voto os créditos
que não sejam afetados pelo plano de recuperação – arts. 212º/2/a) aplicável por analogia.

No caso de o plano de recuperação não ser aprovado por unanimidade (art. 17º-F, 4),
prescreve o nº5 do art. 17º-F que ele é aprovado se:

• Um terço do total dos créditos com direito de voto, mais 2 terços dos votos emitidos sejam a
favor e mais de metade dos votos favoráveis corresponder a créditos não subordinados (al.
a));
• Ou obtiver (a favor) a maioria dos votos emissíveis e mais de metade destes votos favoráveis
corresponder a créditos não subordinados (al. b)).

As alíneas a) e b) do nº5 do art. 17º-F terminam com a mesma frase: “não se considerando
como tal (?) as abstenções”. Ora, porque o voto escrito há de ser a favor ou contra o plano de
recuperação, nos termos do art. 211º, 2, para que remete o art. 17º-F, 6, não admitindo portanto a
abstenção, propriamente dita, aquela frase parece ter o sentido de que para o computo das
maiorias referidas não valem como votos a favor ou contra, principalmente, os votos em branco
(documentos assinados mas sem qualquer declaração-voto).

O plano de recuperação aprovado é objeto de decisão de homologação ou não


homologação do juiz (art. 17º-E, nº7).

Para as causas de não homologação vale, com adaptações, o disposto nos arts. 215º e 216º
- nº7 do art. 17º-F. Quanto aos efeitos da não homologação, o nº8 deste artigo remete para os nºs 2
a 7 do art. 17º-G.

“A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam


reclamado os seus créditos ou participado nas negociações (...)” – art. 17º-F, nº10.

A segunda modalidade do PER está regulada no art. 17º-I, que remete abundantemente para
os artigos anteriores. O que aqui importa realçar é o facto de o PER, nesta modalidade, iniciar-se
com a apresentação ao tribunal, pela empresa, de um acordo extrajudicial de recuperação
assinado por ela e por credores seus que representam pelo menos a maioria de votos prevista no nº5
do art. 17º-F, acompanhado de outros documentos (nº1 do art. 17º-I).

4.3. REGIME EXTRAJUDICIAL DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (RERE)


O RERE, criado pela L8/2018, “regula os termos e os efeitos das negociações e do acordo de
reestruturação que seja alcançado entre um devedor e um ou mais dos seus credores, na medida
em que os participantes manifestem, expressa e unanimemente, a vontade de submeter as
negociações ou o acordo de reestruturação ao regime previsto na presente lei” (art. 2º/1).

Nada impede que um devedor negoceie com credor(es) um acordo de recuperação, mas
sem que fiquem sujeitos ao RERE quer o processo negocial, quer o acordo. Por outro lado, podem as
partes submeter ao RERE tanto as negociações como o acordo de reestruturação, ou tão só o acordo
de reestruturação. E é possível que apenas o processo negocial (dirigido embora à conclusão de um
acordo de reestruturação) fique sujeito ao RERE: quando as negociações não cheguem a bom
termo e sejam “encerradas” (art. 16º, 1, b), c) e d)).

O RERE é aplicável às negociações e/ou aos acordos de reestruturação que envolvam


“entidades devedoras” referidas nas als. a) a h) do art. 2º do CIRE (pessoas singulares e coletivas,

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entidades coletivas sem personalidade jurídica, patrimónios autónomos) – “com exceção das
pessoas singulares que não sejam titulares de empresa” – que estejam em situação económica difícil
ou em situação de insolvência iminente (art. 3º,1, a) e b)).

Como se vê, o destinatário central voltou a ser o “devedor” – logo nos arts. 2º, 1 e 2, e 3º, 1 a
6, etc. – não a “empresa”.

Os devedores têm de ser titulares de empresa (em sentido objetivo)? Sim, se forem pessoas
singulares, como deflui claramente da exceção estabelecida na parte final da al. a) do nº1 do art.3º.
Quanto às outras entidades referidas neste preceito, e pese embora o nome dado ao Regime (que
inclui “empresas”) e ao facto de ele visar primordialmente entidades empresárias (parte final do nº2
do art. 2º), a resposta é negativa. O RERE é aplicável às entidades referidas (por remissão) no art. 3º,
1, a), que, mesmo quando não sejam titulares de empresas (p. ex., sociedades holding puras,
associações sem empresas), estejam sujeitas ao SNC (aprovado pelo DL 158/2009, de 13 de julho,
alterado e republicado pelo DL 98/2015, de 2 de junho; v. logo o art. 3º, 1) – v. o art. 7º, 3, b): o
protocolo de negociações é obrigatoriamente acompanhado pelos “documentos de prestação de
contas do devedor relativos aos três últimos exercícios”; por outro lado, as finalidades do “acordo de
reestruturação” (alteração da composição, das condições ou da estrutura do ativo ou do passivo,
etc. do devedor: art. 2º, 2) compatibilizam-se bem com essas entidades.

Para que as negociações visando um acordo de reestruturação sejam disciplinadas pelo


RERE é necessário que o devedor e credores com créditos não subordinados correspondentes, pelo
menos, a 15% do passivo daquele assinem um “protocolo de negociação” e promovam o seu
depósito na Conservatória do Registo Comercial (art. 6º, 1, 2 e 4). O prazo das negociações
resultantes do protocolo não podem exceder três meses a contar da data do deposito (art. 6º, 5).

O conteúdo do protocolo é estabelecido livremente pelas partes, embora deva integrar os


elementos mencionados no nº1 do art. 7º. Este artigo, nos nº 2 e 4, refere outros elementos que podem
ser incluídos no protocolo. E o nº3 manda que o protocolo seja acompanhado por certos
documentos. Entre os elementos obrigatórios, registe-se aqui o previsto na al. e) do nº1 do art.7º:
“Acordo relativo à não instauração pelas partes, contra o devedor no decurso do prazo acordado
para as negociações, de processos judiciais de natureza executiva, de processos judiciais que visem
privar o devedor da livre disposição dos seus bens ou direitos, bem como de processo relativo à
declaração da insolvência do devedor”.

Do depósito do protocolo decorrem vários efeitos.

“Após o deposito do protocolo de negociação, o devedor fica obrigado a manter o curso


normal do seu negócio e a não praticar atos de especial relevo, tal como definidos nos nºs 2 e 3 do
art. 161º do CIRE, exceto se previstos no referido protocolo ou se previamente autorizados por todos
os credores, diretamente ou através do comité de credores”.

Quanto às obrigações dos credores, diz o nº1 do art.10º: “Sem prejuízo do direito à resolução
do protocolo de negociações motivado por violação grosseira pelo devedor das obrigações dele
decorrentes, após o deposito daquele, os credores não podem desvincular-se dos compromissos ai
assumidos antes de decorrido o prazo máximo previsto para as negociações, embora possam cessar
a participação ativas nas mesmas”. E, tendo em vista o tortuoso nº4 do art. 10º, parece que os
credores, mesmo que exerçam o direito de resolução do protocolo, continuam obrigados durante
aquele período a não instaurar as ações previstas na al. e) do nº1 do art. 7º.

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Se um credor tiver requerido a declaração de insolvência do devedor, este processo
suspende-se logo que aquele passa a participara nas negociações protocoladas, se a insolvência
não houver sido ainda declarada (art.11º, 1).

Depois de o devedor comunicar aos prestadores de certos serviços essenciais o deposito do


protocolo de negociação, ficam eles impedidos de interromper o fornecimento de tais serviços com
fundamento em dividas anteriores ao deposito (art. 12º).

Algumas notas breves sobre o “acordo de reestruturação”.

O acordo é celebrado por escrito e as assinaturas de quem o subscreve e dos que


eventualmente depois a ele aderem (por termo de adesão) necessitam de reconhecimento (art.
20º). E deve ser depositado eletronicamente na Conservatória do Registo Comercial, produzindo
efeitos, em regra, só depois do deposito (arts. 22º, 1, 2, 23º, 1).

O conteúdo do acordo “é fixado livremente pelas partes, podendo compreender,


designadamente, os termos da reestruturação da atividade económica do devedor, do seu passivo,
da sua estrutura legal, dos novos financiamentos a conceder ao devedor e das novas garantias a
prestar por este” (art. 19º, 1 + 2º, 2). Por norma, somente os créditos e garantias de quem seja parte
do acordo podem ser afetados nos termos nele fixados (19º,5). Há que contar, porém, com o disposto
no art. 29º: “Se o acordo de reestruturação for subscrito por credores que representem as maiorias
previstas no nº1 do art. 17º-I do CIRE, ou a ele vierem posteriormente a aderir os credores suficientes
para perfazer aquela maioria, pode o devedor iniciar um PER com vista à homologação judicial do
acordo de reestruturação, devendo nesse caso acautelar que este cumpre o previsto no nº4 do art.
17º-I do CIRE”. Havendo homologação judicial, a eficácia do acordo é alargada aos demais
credores (não partes) – art. 17º-I, 6, e 17º-F, 10 do CIRE.

Entretanto, é de notar que a redução das obrigações do devedor estipulada no acordo


determina, salvo clausula em contrário, a redução proporcional das obrigações dos codevedores e
dos terceiros garantes (art. 19º, 7).

“Sem prejuízo de o acordo de reestruturação poder dispor diversamente, o seu deposito


determina a imediata extinção dos processos judiciais declarativos, executivos ou de natureza
cautelar, que respeitem a créditos incluídos no acordo de reestruturação e dos processos de
insolvência, desde que a mesma não tenha ainda sido declarada, que hajam sido instaurados
contra o devedor por entidade que seja parte no acordo de reestruturação, independentemente
de o credito que funde o pedido ter sido incluído ou não no acordo de reestruturação” (art.25º, 1).

Note-se, por fim, o que diz o nº1 do art. 28º: “Caso o devedor venha a ser ulteriormente
(posteriormente) declarado insolvente, são insuscetíveis de resolução em beneficio da massa
insolvente os negócios jurídicos que hajam compreendido a efetiva disponibilização ao devedor de
novos créditos pecuniários, incluído sob a forma de deferimento de pagamento, e a constituição,
por este, de garantias respeitantes a tais créditos pecuniários, desde que os negócios jurídicos hajam
sido expressamente previstos no acordo de reestruturação, ou no protocolo de negociação que o
proceder e que o acordo de reestruturação contenha a declaração prevista no nº3 do artigo
anterior (27º)”.

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CAPÍTULO IV – DOS SINAIS DISTINTIVOS DE EMPRESAS E DOS PRODUTOS

1. INTRODUÇÃO
Os sinais que vamos tratar são os logotipos, as marcas, as denominações de origem, as
indicações geográficas e as recompensas. São sinais distintivos de empresas, independentemente
da sua titularidade; e os produtos enquanto bens e serviços que decorrem dessa atividade.

Tradicionalmente, estes signos eram denominados por sinais distintivos de comercio, todavia,
esta designação é pouco rigorosa porque não individualizam apenas empresas mercantis e produtos
de atividade mercantil, não são atos de comercio objetivo e, ainda, não são utilizáveis apenas por
comerciantes.

Daí a sua inclusão, não no direito comercial propriamente dito, mas num outro ramo
autónomo, o direito industrial ou direito da propriedade industrial. Porém, também não abrange
apenas a indústria.

A natureza jurídica dos direitos sobre estes bens imateriais é controvertida. Para COUTINHO DE
ABREU são, enquanto bens imateriais, objeto de direito de propriedade, embora com regime
especial relativamente às coisas corpóreas ou materiais – art. 1303º, nº1 e 3 do CC.

Nomeadamente quanto aos modos de aquisição, são diferentes; mas, tal como qualquer
outro objeto de domínio, aplica-se o art. 1305º CC, uso pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição
e disposição, e os artigos 1º, nº4 e 6 do CPI.

A tutela dos direitos faz-se, em primeira linha, pela concessão de um juízo em face do INPI. O
CPI regula a tramitação que deve ser seguida junto do INPI (arts. 9º a 30º). Nos artigos 31º e 32º
regulam-se os direitos emergentes das transmissões e licenças: para gozar do sinal, não é necessário
ser transferido, basta ser licenciado.

Os artigos 33º e seguintes tratam das formas de extinção do direito de propriedade industrial,
a saber, a nulidade, anulabilidade, caducidade e renúncia.

2. LOGÓTIPOS

2.1. NOÇÃO
Durante longas décadas, o direito português pôs à disposição dos interessados dois sinais
especificamente individualizados das empresas em sentido objetivo: nome de estabelecimento e
insígnia de estabelecimento.

O logótipo, enquanto sinal distinto registável, foi introduzido no CPI em 1995, e continuou até
2008, juntamente com os nomes e insígnias de estabelecimento. O Decreto-Lei 143/2008 veio a
operar uma fusão daqueles três sinais num só, o logótipo.

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O logótipo é signo suscetível de representação gráfica / para distinguir “entidade” ou sujeito
/ e, eventualmente, estabelecimento(s) deste – art. 304º-A e 304º-B do CPI.

O logotipo serve primordialmente para distinguir sujeitos (individuais ou coletivos, públicos ou


privados: 304º-B) que prestem serviços ou produzam bens destinados ao mercado (nº2 do art. 304º-
A).

O sujeito titular de logotipo não tem de ser empresário. Não tem de ter empresa ou
estabelecimento.

Quando ele explore empresa é natural (mas não necessário) que use o logótipo para
individualizá-lo e distingui-lo de outros estabelecimentos. Isto mesmo é assinalado na 2ª parte do nº2
do art. 304º-A: o logótipo pode “ser utilizado, nomeadamente, em estabelecimentos, anúncios,
impressos ou correspondência”. Dai que digamos que é sinal distintivo bifuncional: distingue sujeitos
e estabelecimentos.

O mesmo sujeito, que só pode ter uma firma ou denominação, pode ter vários logotipos (art.
304º-C, nº2): mas não é necessário ter várias empresas para ter vários logotipos, pode haver uma
mesma entidade que, tenha ou não vários estabelecimentos, tenha vários logotipos.

2.2. COMPOSIÇÃO E PRINCÍPIOS INFORMADORES

2.2.1. E LEMENTOS COMPONENTES


“O logotipo pode ser constituído por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de
representação gráfica, nomeadamente por elementos nominativos, figurativos ou por uma
combinação de ambos” (nº1 do art. 304º-A).

São possíveis, portanto, logotipos nominativos (compostos por nomes ou palavras, incluindo
os nomes, firmas ou denominações, completos ou abreviados, dos respetivos titulares), figurativos
(formados por figuras ou desenhos) e mistos (combinando elementos nominativos e figurativos). Nisto
aproximam-se das marcas (art. 222º, 1) e afastam-se das firmas e denominações. Poderão ainda ser
constituídos por outros sinais representáveis graficamente (os exemplos do art. 304º-A, 1, não são
taxativos): conjuntos de letras e/ou números, combinações de cores, e ainda, certos sons e formas
tridimensionais (mas não as formas de produtos, que podem constituir marcas: arts. 222º,1, 223º, 1,
b)).

2.2.2. P RINCÍPIO DA C APACIDADE D ISTINTIVA


Enquanto sinais distintivos de entidades, os logotipos hão de ser constituídos de modo a
poderem desempenhar função individualizador-diferenciadora (art. 304º-A, 2).

Por falta de capacidade distintiva, não são registáveis logotipos compostos exclusivamente
por sinais referidos a entidade, estabelecimento, atividade ou produtos que sejam específicos,
genéricos ou descritivos, ou se tenham tornado de uso comum, ou sejam forma natural, funcional ou
esteticamente necessária de algo, ou sejam cores simples (não combinadas de forma peculiar) –
art. 304º-H, 1, b) e c), que remete para o 223º, 1, b) a e).

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Contudo, são excecionalmente registáveis logótipos constituídos tão-só por sinais específicos,
genéricos, descritivos ou de uso comum quando estes, antes do registo e depois do uso e
publicidade deles haja sido feito (como logótipos), tenham adquirido carater distintivo (secondary
meaning) – art. 304º-H, 2.

2.2.3. P RINCÍPIO DA V ERDADE


O logótipo não tem de conter indicações acerca da natureza, composição, atividade, etc.
do respetivo titular (pode ser inteiramente fantasioso). Mas se contiver, tais indicações ou referencias
hão de ser verdadeiras; não é registável um logótipo decetivo ou enganoso.

Assim, por exemplo, deve ser recusado o registo de logotipo que contenha: sinais “suscetíveis
de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a atividade exercida pela entidade que se
pretende distinguir” (art. 304º-H/37d)); a Bandeira Nacional, quando isso possa induzir o publico em
erro sobre a proveniência geográfica dos produtos ou possa levar a supor, erradamente, que os
produtos têm origem em entidade oficial (art. 304º-H/5/a) e b)); nomes ou retratos de pessoas sem a
devida autorização (art. 304º-I/1/d)); referencia a determinado prédio rustico ou urbano que não
pertença ao requerente do registo (art. 304º-I/3/c)).

2.2.4. P RINCÍPIO DA N OVIDADE


Para cumprir a função individualizador-diferenciadora, o logotipo de um sujeito deve ser
distinto, inconfundível ou “novo” relativamente a logotipos de outros sujeitos. Nos termos do art. 304º-
I/1/a), é fundamento de recusa do registo “a reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de
logotipo anteriormente registado por outrem para distinguir uma entidade cuja atividade seja
idêntica ou afim à exercida pela entidade que se pretende distinguir, se for suscetível de induzir em
erro ou confusão” (al. f)).

Um logotipo não é novo relativamente a outro quando, atendendo às respetivas grafia e/ou
sonoridade, figuração ou ideografia – sobretudo dos núcleos caracterizantes -, o consumidor
“médio” (o consumidor de normal capacidade, diligencia e atenção) não consegue distingui-los,
antes os confunde, tomando um pelo outro e um sujeito por outro ou, não os confundindo embora,
crê erradamente referirem sujeitos especialmente relacionados (crê, p. ex., que duas sociedades
autónomas estão em relação de grupo).

Deflui do citado art. 304º-I, nº1, al. a), que a novidade dos logotipos é exigida tão-só em
relação a entidades que exercem atividades idênticas ou afins (atividades concorrentes) – vale aqui
o chamado princípio da especialidade; sujeitos com atividades diferentes podem ter logotipos iguais
ou semelhantes. Mas há exceções.

É fundamento de recusa do registo de logotipo o facto de ele ser confundível com um


anterior que goze de prestígio em Portugal, ainda que pertença a um sujeito exercendo atividade
não concorrente, quando o logotipo posterior pudesse beneficiar indevidamente do caracter
distintivo ou do prestígio do logotipo anterior, ou pudesse prejudica-los (art. 304º-I/2, remetendo para
o art. 242º).

Por outro lado, mesmo quando as respetivas atividades são idênticas ou afins, pode um sujeito
conseguir o registo válido de logotipo confundível com um já registado em nome de outro sujeito:
desde que este nisso consinta (art. 304º-J, remetendo para o art. 243º).

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2.2.5. P RINCÍPIO DA L ICITUDE ( RESIDUAL )
Segundo o art. 304º-I, é fundamento de recusa do registo do logotipo a reprodução ou
imitação, total ou parcial, de marca anteriormente registada por outrem para produtos idênticos ou
afins aos produzidos ou fornecidos pela entidade que pretende o registo de logotipo, se for suscetível
de induzir o consumidor em erro ou confusão (nº1, al. b)); a infração de outros direitos de propriedade
industrial ou de direitos de autor (1, c), 3, b)); a reprodução ou imitação, sem autorização, de firma
ou denominação alheias, ou de parte característica das mesmas, se for suscetível de induzir o
consumidor em erro ou confusão (3, a)).

Por sua vez, manda o art. 304º-H que seja recusado o registo de logotipo que contenha certos
símbolos, brasoes, emblemas ou distinções, salvo autorização (nº3, als, a) e b)); “expressões ou figuras
contrarias à lei, moral, ordem pública e bons costumes” (3, c)); (tão-só) a Bandeira Nacional ou
alguns dos seus elementos (nº4); ou, entre outros componentes, a Bandeira Nacional, quando isso
seja suscetível de provocar desrespeito ou desprestigio dela ou de algum dos seus elementos (5, c)).

2.3. CONTEÚDO E EXTENSÃO DO DIREITO SOBRE O LOGÓTIPO


Em princípio, o direito de propriedade sobre o logótipo constitui-se pelo registo do mesmo no
INPI. O registo dura por 10 anos, mas é indefinidamente renovável por iguais períodos (art. 304º-L).

O titular de logótipo pode usá-lo para dar a conhecer, utilizando-o por exemplo em
estabelecimentos, anúncios, impressos ou correspondência (art. 304º-A, 2). E tem, nos termos do art.
304º-N, “o direito de impedir terceiros de usar, sem o seu consentimento, qualquer sinal idêntico ou
confundível, que constitua reprodução ou imitação do seu” logótipo. Bem entendido, os terceiros
não estão impedidos de usar, em atividade económica, signos confundíveis em função distintiva
(dos sujeitos, de estabelecimentos, de produtos) – art. 334º; por outro lado, o uso destes signos só é
proibido quando suscetível de induzir os consumidores em erro ou confusão (ressalva-se, porem, a
hipótese de o logotipo ser de prestígio).

Formas de tutela: mais analiticamente, a proteção do logótipo registado traduz-se


principalmente no seguinte:

• O respetivo titular tem legitimidade para reclamar contra pedido de registo (feito por
outrem) de logótipo ou outro sinal não “novo” (art. 17º);
• Bem como para requerer judicialmente a anulação do registo de tais sinais (arts. 304º-
R, 1, 266º, 1 e 239º, 1, b));
• O respetivo titular tem direito de exigir judicialmente (inclusive em procedimento
cautelar: art. 338º-I) que os terceiros deixem de usar os referidos sinais (art. 304º-N)
• E, sendo caso disso, o indemnizem (art. 338º-L);
• A propriedade de logótipo é tutelada contra-ordenacionalmente (art. 334º).

2.4. TRANSMISSÃO DO LOGÓTIPO


Sendo os logótipos sinais que distinguem primordialmente sujeitos, dir-se-ia serem
intransmissíveis ou, tal como vale tradicionalmente para as firmas, transmissíveis tão-somente com
estabelecimentos a que se achem ligados. Não é assim hoje...

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Segundo o art. 304º-P, um logótipo não usado em estabelecimento pode (como a marca)
ser transmitido autonomamente (desvinculado de qualquer outro bem), salvo se tal for suscetível de
induzir os consumidores em erro quanto à individualização do transmissário. É o que resulta do nº1
(em confronto com o nº2): “Os registos de logótipo são transmissíveis se tal não for suscetível de induzir
o consumidor em erro ou confusão”. Haverá possibilidade de indução em erro ou confusão quando,
por exemplo, o logotipo contem nome, firma ou denominação do transmitente.

Diz, por sua vez, o nº2: “Quando seja usado num estabelecimento, os direitos emergentes do
pedido de registo ou do registo de logotipo só podem transmitir-se, a título gratuito ou oneroso, com
o estabelecimento, ou parte do estabelecimento, a que estão ligados”.

E, transmitindo-se um estabelecimento, transmite-se naturalmente com ele o respetivo


logótipo – salvo se este contiver nome, firma ou denominação do titular, caso em que é necessária
convenção (expressa ou tácita): arts. 304º-P, 3, e 31º, 5.

A transmissão de logótipo por ato entre vivos “deve ser provada por documento escrito”
(art.31º, 6) – normalmente o documento que enforma a transmissão do estabelecimento, quando
aquele com este seja transmitido.

A transmissão de logótipo, por ato inter vivos ou não, está sujeita a averbamento no INPI (art.
30º, 1, a)). Só depois do averbamento produz a transmissão do logótipo efeitos em relação a terceiros
(art. 30º, 2).

2.5. EXTINÇÃO DO DIREITO SOBRE O LOGÓTIPO


1. O registo de logotipo é NULO, segundo o art. 304º-Q, nas hipóteses previstas no art. 33º, 1,
ou nos casos em que o registo tenha sido concedido com violação do disposto nos nºs 1, 3, 4 e 5 do
art. 304º-H (proibições absolutas de registo).

“A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado” (art. 33º, 2) e a respetiva
declaração tem de ser feita por tribunal (art. 35º, 1).

2. O registo é ANULÁVEL quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto no


art. 304º-I (proibições relativas de registo) – art. 304º-R, 1.

A ação de anulação pode ser proposta pelo M.P. ou qualquer interessado (art. 35º, 2) no
prazo de dez anos a contar da data do despacho de concessão do registo; mas o direito de ação
não prescreve se o pedido de registo tiver sido feito de má fé (com conhecimento da existência de
proibições relativas do registo conseguido) – art. 304º-R, 2 e 3.

3. O registo de logótipo CADUCA quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por falta
de pagamento de taxas (art. 37º, 1).

E caduca também, nos termos do art. 304º-S: a) Por motivo de encerramento e liquidação
do estabelecimento ou de extinção da entidade; b) Por falta de uso do logótipo durante cinco anos
consecutivos, salvo justo motivo”.

A primeira parte da al. a) do art. 304º-S é muito estranha. O logótipo é um sinal que distingue
primordialmente sujeito ou entidade; o sujeito, se possuir estabelecimento(s), tem a faculdade (não
obrigação) de nele(s) (ou em alguns deles) usar o logótipo. Como pode, então, caducar o registo

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por causa de encerramento e liquidação de estabelecimento em que o logotipo não era usado, ou
de estabelecimento em que era usado mas mantendo o sujeito outro ou outros estabelecimentos
(com uso atual ou potencial do logótipo), ou do único estabelecimento ou de todos os
estabelecimentos do sujeito (que usava nele(s) o logótipo) quando, ainda nesta hipótese, ele tem
possibilidade de adquirir ou constituir estabelecimento e de nele (ou a propósito dele) voltar a usar
(antes de 5 anos volvidos) o logótipo? Ora bem, se para algumas destas hipóteses bastaria interpretar
restritivamente o preceito em questão, não assim para outras. Por antinomia logica e normativa
desse preceito com o sistema disciplinador dos logotipos, deve o mesmo ser interpretado
revogatoriamente.

4. O titular de logotipo pode também RENUNCIAR ao respetivo direito (art. 38º)

3. MARCAS

3.1. NOÇÃO, ESPÉCIES, FUNÇÕES

Noção:

As marcas são signos suscetíveis de representação gráfica destinados sobretudo a distinguir


certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.

Esta definição afasta-se um pouco do que decorre de diversos atos normativos. O art. 222º,
nº1 do CPI, diz que a marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de
representação gráfica que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa
dos de outras empresas.

A expressão “produtos ou serviços” é redundante. Os produtos são bens que resultam da


produção, bens materiais ou corpóreos e bens imateriais ou serviços. Os bens assinalados por uma
determinada marca não têm de ser de “uma empresa”, podem ser produtos de uma não-empresa
ou de várias empresas.

Finalmente, não visam em regra individualizar certos bens de determinados sujeitos


relativamente a quaisquer bens de outros sujeitos, mas bens enquanto tal: é o princípio da
especialidade, não há uma relação com o titular.

Espécies:

Segundo diferentes critérios, podemos ter várias espécies de marcas.

Tendo em conta a natureza das atividades a que se ligam, fala-se de marcas (arts. 225º, a),
b), c) e e)):

1. De indústria (assinalam produtos da indústria transformadora e extrativa);


2. De comércio (assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas);
3. De agricultura (assinalam os produtos agrícolas em sentido amplo);

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4. De serviços (assinalam atividades do chamado setor terciário, v.g., de agências de
viagens e de publicidade, bancos, seguradoras, hotéis, empresas de radiofusão,
televisão, transportadoras).

Atendendo aos elementos componentes, pode falar-se de marcas (arts. 222º, 223º, 1, b), e)):

1. Nominativas (constituídas por nomes ou palavras);


2. Figurativas (formadas por figuras ou desenhos);
3. Constituídas por letras, números ou cores;
4. Mistas (juntam elementos nominativos e figurativos, ou letras e números etc.);
5. Sonoros ou auditivos (constituídos por sons representáveis – v. g. sons musicais
sinalizadores de programas de rádio ou de televisão);
6. Tridimensionais ou de forma (com três dimensões – comprimento, largura e altura – ou
volume);
7. Simples (constituídos com um só elemento, nominativo ou figurativo, etc.);
8. Complexas (compostas por vários elementos, do mesmo género ou não).

Olhando agora para os possíveis titulares das marcas, podemos ter marcas de empresários
ou não empresários (art 225º). Tradicionalmente, as leis da maior parte dos países permitiam a
titularidade de marcas individuais registadas somente a empresários, mas a situação é hoje diferente,
sendo geralmente admitido o registo de marcas por não empresários.

Ao lado das marcas individuais, associadas a um sujeito individual, é costume colocar as


marcas coletivas, de uma entidade coletiva, não significando que a propriedade destas seja
coletiva ou de uma pluralidade de sujeitos. De acordo com a lei, estas últimas podem ser marcas de
associação ou de certificação ou garantia – arts. 228º, 229º e 230º.

Quanto ao regime da proteção, temos marcas registadas (art. 224º, nº1), e não registadas,
de facto ou livres. Temos ainda marcas notórias e de prestígio, que mesmo quando não registadas
gozam de proteção especial – arts. 241º e 242º.

Funções:

ATENÇÃO: pergunta de exame ‼⤵

As marcas têm por função primordial distinguir produtos, mas como?

1. Segundo a conceção tradicional ou dominante, a função distintiva das marcas equivale


a uma função de indicação de origem ou proveniência – as marcas indicam que determinados bens
provêm de determinada origem, por alguns autores, entendida de forma estrita – uma empresa – e
de modo alargado por outros, atendendo aos fenómenos das marcas coletivas, de grupo e das
cedidas em licença. Ainda segundo a conceção tradicional-dominante, a função de indicação de
origem é a única função das marcas juridicamente tutelada (as chamadas funções publicitárias e
de garantia de qualidade seriam tão-só indireta ou reflexamente protegidas).

Todavia, cedo surgiram vozes discordantes (F. FERRARA, FRANCESCHELLI E FERRER CORREIA),
negando o caracter essencial desta função de indicação de origem. Disse-se que a marca é muitas
vezes um sinal anónimo, sem referência ao titular, e muitas vezes os titulares querem que seja assim.

VANZETTI foi durante muitos anos defensor da conceção tradicional-dominante, justificando-


a com base no ordenamento italiano, que estabelecia uma ligação incindível entre marca e

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empresa desde o momento do pedido do registo, passado pelo período de vida da marca, até ao
momento terminal. Perante novos dados legislativos que apagaram aquela ligação incindível,
continuar a falar de uma função jurídica de indicação de origem é “più che arduo, temo,
impossibile”, facto acentuado ainda mais pela livre cessão das marcas, admitida em vários
ordenamentos europeus. Se a cessão é livre, não poderá a marca garantir uma origem empresarial
constante. Também o sistema português é, por força do art. 262º, nº1 e 3, de cessão livre. Se
transmitem marcas independentes da transmissão de empresas, portanto não faz sentido aquela
posição. O titular da empresa pode ceder a marca e haver referencia a essa empresa, que não vai
corresponder à proveniência. O produto pode ser feito por várias empresas.

COUTINHO DE ABREU acrescenta que falha claramente nas marcas coletivas de certificação
(art. 230º), para além disto, há casos em que é legítimos dois ou mais sujeitos não ligados por
quaisquer relações jurídico-económicas usarem a mesma marca para produtos idênticos e
semelhantes – arts. 243º e 267º.

A função distintiva das marcas não se confunde ou identifica com a de indicação de origem
e proveniência.

Assim, podemos afirmar que a função distintiva das marcas não se esgota na indicação da
proveniência empresarial. Claro que em muitas marcas prevalece esta função, mas apenas como
parte de função distintiva.

2. Além da função distintiva, as marcas, uma vez tuteladas, têm outras funções. Uma delas é
a função atrativa ou publicitária de excelência, associada às marcas de prestígio. Isto decorre do
art. 242º, nº1.

Rompe com o princípio da especialidade, porque não se destina apenas a distinguir a marca,
prevenindo ou impedindo riscos de confusão. Já não está em causa a tutela da função distintiva
das marcas – a distancia económico-sectorial entre os produtos do titular da marca de prestigio e os
produtos de terceiro que adote sinal idêntico ou semelhante pode ser de tal modo grande que se
torna impossível justificar a ilicitude deste segundo sinal, por ele violar a função distintiva daquela
marca. O que está em causa é a tutela direta e autónoma da função atrativa ou publicitária
excecional das marcas de prestígio.

Mesmo quando há produtos muito longe da marca de prestígio, estes vão captar a função
atrativa associada a esta. Segundo o art. 242º, nº1, a proteção especial é conferida “sempre que o
uso da marca posterior procure tirar partido indevido do caracter distintivo ou prestígio da marca,
ou possa prejudica-los”.

No entendimento de COUTINHO DE ABREU, não haverá aproveitamento ilícito quando,


designadamente, o titular da marca de prestígio nisso consinta. Embora devendo ser conhecidas de
parte significativa do publico interessado, tais marcas não têm de ser super-notórias ou célebres; o
fenómeno é não só quantitativo, mas também qualitativo. Para serem de prestígio, as marcas, alem
de notórias, hão de ter boa reputação – assente na boa qualidade dos produtos respetivos e na
singularidade e originalidade dos signos.

O uso da marca posterior tirará partido do caracter distintivo da marca de prestígio quando,
nomeadamente, faça supor que os produtos assinalados provêm da mesma entidade ou de
entidades relacionadas, e tirará partido do seu prestigio quando se verifique uma transferência da
imagem de qualidade e de acreditamento no mercado desta marca para aquela. Por sua vez, o
uso do sinal posterior prejudicará o caracter distintivo da marca de prestígio quando provoque o

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aguamento ou banalização desta; e prejudicará o seu prestigio quando desencadeie indesejáveis
associações.

3. A terceira função das marcas é a função de garantia de qualidade. Tradicionalmente, há


quem entenda que esta função não deve ser reconhecida, ou pelo menos não deve ser
reconhecida de forma autónoma. É apenas uma consequência da função distintiva, sobretudo na
parte em que indica a proveniência.

COUTINHO DE ABREU tem uma posição diferente: entende que a função de garantia de
qualidade deve ser reconhecida, seja quanto às marcas coletivas de certificação, seja quanto às
marcas individuais. Quanto a estas, o art. 269º, nº2, al. b) refere-se à caducidade do registo das
marcas e autonomiza a qualidade.

O registo da marca caduca se esta se tornar suscetível de induzir em erro, designadamente,


quanto à sua qualidade do produto. São permitidas melhorias qualitativas, e também não são ilícitas
piorias não essenciais ou sensíveis de qualidade. Ilícitas são apenas as diminuições de qualidade
suscetíveis de induzir o publico em erro, isto é, as deteriorações qualitativas sensíveis e ocultas ou não
declaradas ao público.

Daqui não se pode concluir que a tutela dos interesses dos consumidores é objetivo central
da legislação sobre marcas, uma vez que esta serve essencialmente os interesses dos seus titulares;
porém, os interesses dos consumidores são também aqui tidos em conta e protegidos.

3.2. PRINCÍPIOS INFORMADORES DA CONSTITUIÇÃO DAS MARCAS

3.2.1. C APACIDADE D ISTINTIVA


Os sinais, para serem marcas, hão de ser capazes de individualizar e distinguir produtos (arts.
222º, 223º, 1, a)).

Por falta de capacidade distintiva, não podem ser marcas “os sinais constituídos,
exclusivamente, por indicações que possam server no comércio para designar a espécie, a
qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência geográfica, a época ou meio de
produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras características dos mesmos” (art. 223º,
1, c)). Dizendo de outro modo, não são marcas os sinais (exclusivamente) específicos, descritivos e
genéricos.

Específicos (1) são os signos que designam ou denotam a “espécie” dos produtos – nomes
comuns dos produtos ou figuras que os exprimem. Por exemplo, a palavra “ovo” ou o retrato de um
ovo não podem ser marcas de ovos. Os sinais descritivos (2) referem-se diretamente a características
ou propriedades dos produtos. Referem-se, por exemplo, à qualidade (“Pura Lã” para vestuário,
desenho de cinco estrelas para azeite), à quantidade (“1 Kg” para produtos de presunto, “1 Litro”
para vinho), ao destino (“Cabedais”, para pomada), ao valor (“Pechincha”), à época do produto
ou da prestação do serviço (“A toda a hora”, para os serviços de uma clinica), à proveniência
geográfica (“Coimbra” para louças fabricadas nesta cidade). Os signos genéricos (3) designam um
género ou categoria de produtos onde se incluem os produtos que se pretende marcar com um
desses sinais (p. ex., “Refresco” para laranjadas).

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Também não podem ser marcas, por falta de capacidade distintiva, os signos constituídos
exclusivamente por sinais que se tenham tornado de uso comum (4) para designar certos bens (p.
ex., desenho retratando um peixe, para artigos de pesca) ou para qualificar quaisquer outros
produtos (p. ex., “Super”, “Ótimo”, “Excelência”, “Extra”, “Ideal”, “Deluxe”) – art. 223º, 1, d).

Quando estrangeiras, as denominações especificas, descritivas, genéricas e de uso comum


já podem valer como marcas? Se elas forem conhecidas do público português ou do círculo de
clientes interessados, a resposta é negativa. Caso contrário, há que distinguir. Se as denominações
pertencerem a uma das línguas comunitário-europeias, parece que a regra deve ser a da
inadmissibilidade das mesmas como marcas – Portugal é parte do mercado “comum” ou “único”
onde circulam livremente produtos e pessoas; não é lícito, pois, ficarem os titulares de marcas
registadas no nosso país beneficiados em face de produtores nacionais e estrangeiros sem
possibilidade de noutros países registarem e usarem tais marcas e sem possibilidade de com idêntica
facilidade chegarem a estrangeiros residentes ou em transito no nosso país. | Por sua vez, se as
denominações pertencerem a línguas exóticas ou mortas e muito pouco conhecidas, então já
poderão ser marcas – tais denominações aparecem não como especificas, descritivas, etc., mas
como fantasia.

Todos estes sinais sem capacidade distintiva são irregistáveis como marcas quando apenas
eles estejam em causa, quando se pretenda registar marcas exclusivamente compostas por tais
sinais. Não assim quando sejam tão-só um dos elementos (ao lado de outros com capacidade
distintiva) das marcas (223º, 2). Contudo, excecionalmente, são registáveis marcas constituídas
exclusivamente por sinais específicos, descritivos, genéricos ou de uso comum quando estes, antes
do registo e depois do uso e publicidade que deles foi feito, tenham adquirido caracter ou
capacidade distintiva (Diretiva, art. 3º, 3, CPI, art. 238º, 3). Acolheu-se, portanto, a doutrina do
secondary meaning, de origem anglo-saxónica – um signo sem significado originário distintivo
adquire através de certo uso um segundo ou “secundário” sentido, passando a distinguir em termos
de marca determinados produtos.

São possíveis, as marcas tridimensionais, que podem ser constituídas designadamente pela
“forma do produto ou da respetiva embalagem” (222º, 1). Mas nem todas as formas dos produtos ou
das embalagens são suscetíveis de constituir marcas. Não podem ser marcas as formas sem qualquer
capacidade distintiva nem as formas cujo caracter distintivo não releva no campo das marcas,
relevando antes noutros domínios da propriedade industrial. Dizendo de outra maneira, não são
marcas as formas natural, funcional ou esteticamente necessárias. É o que resulta do art. 223º, 1, b):
não satisfazem as condições para serem marcas “os sinais constituídos, exclusivamente, pela forma
imposta pela própria natureza do produto, pela forma do produto necessária à obtenção de um
resultado técnico ou pela forma que confira um valor substancial ao produto”.

A “forma imposta pela natureza do produto” é a usual ou normal de que se revestem os bens
cujo género ou espécie pertence o produto, por exemplo uma tesoura ou um parafuso. “Forma
necessária à obtenção de um resultado técnico” é dada a um objeto de que resulta um aumento
da utilidade ou melhoria do aproveitamento do mesmo, e que poderá ser protegida como
“patente” ou como “modelo de utilidade” – arts. 51º e seguintes e 117º e seguintes. A lei não permite
que as formas funcionais sejam apropriadas a título de marcas, e são tutelas a tempo
potencialmente ilimitado, art. 255º. “Forma que confira um valor substancial” ao produto é a forma
cujo caracter estético ou ornamental influi decisivamente no valor comercial dos produtos e que
pode ser protegida como desenho ou modelo – arts. 173º e seguintes.

Só as formas “arbitrária” ou não “necessárias” podem ser marcas (p. ex. a forma de uma
garrafa oval para aguardentes velhas, a forma invulgar de frascos para perfumes).

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Ainda por falta de capacidade distintiva, uma única cor não pode ser marca; é possível,
porém, constituir uma marca com duas ou mais cores, quando “forem combinadas entre si ou com
gráficos, dizeres ou outros elementos por forma peculiar e distintiva”. (art. 223º, 1, e)).

3.2.2. V ERDADE
Visa à veracidade das marcas, e a sua principal concretização encontra-se no art. 238º, nº4,
al. d) do CPI, que estabelece a irregistabilidade das marcas que contenham sinais que sejam
suscetíveis de induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou
proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina.

O ponto relativo à proveniência geográfica precisa de algumas ponderações. O sinal pode


ser geográfico, com referência a uma zona, área ou região, e isto é importante porque uma
determinada área pode ter uma certa capacidade atrativa. Pode acontecer que os produtos sejam
originários da área indicada, estando respeitado o princípio da verdade; ou não ser originário, e aí
temos algumas hipóteses a distinguir.

O sinal é uma denominação ou indicação geográfica, arts. 325º e seguintes. Nesse caso, não
é possível registar.

Não é denominação de origem ou indicação geográfica, e a proveniência é muito


conhecida. Por exemplo, inclui-se na marca o nome “cuba” para charutos fabricados em Lisboa: a
marca não pode conter o nome porque está a enganar o público.

O nome geográfico pouco ou muito conhecido, surge aos olhos do público como uma
expressão da fantasia ou arbitraria (p. ex., “Estoril” para cigarros fabricados em Beja): porque não
decetivo, pode ser (ou fazer parte de) marca.

3.2.3. L ICITUDE ( RESIDUAL )


De acordo com o art. 238º, é recusado o registo da marca que contenha certos símbolos,
brasões, emblemas ou distinções, salvo autorização (nº4, als. a) e b)); “expressões ou figuras
contrárias à lei moral, ordem publica e bons costumes” (4, c)); a Bandeira Nacional ou alguns dos
seus elementos (nº5); ou, entre outros componentes, a Bandeira Nacional, quando tal seja suscetível
de provocar desrespeito ou desprestigio dela ou de algum dos seus elementos (6, c)).

Outros fundamentos de recusa do registo de marca aparecem no art. 239º. Tem interesses
mencionar aqui especialmente: a reprodução ou imitação, total ou parcial, de logotipo
anteriormente registado pertencente a sujeito que produz bens idênticos ou afins àqueles a que se
destina, se for suscetível de induzir em erro ou confusão (nº1, b)); a infração de outros direitos de
propriedade industrial (1, c)); a reprodução de nomes ou retratos de pessoas sem autorização (1, d));
a reprodução ou imitação, total ou parcial, de firma ou denominação que não pertençam ao
requerente de marca não autorizada, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão
(2, a)); a infração de direitos de autor (2, b)).

3.2.4. N OVIDADE E ESPECIALIDADE


Será ainda recusado o registo de marcas que sejam, diz a al. a) do nº1 do art. 239º do CPI,
“reprodução ou imitação, no todo ou em parte, da marca anteriormente registada por outrem para

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produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor ou que
compreenda o risco de associação com a marca registada”. Têm, pois, as marcas de ser novas,
distintas e inconfundíveis; mas tal novidade apenas tem de afirmar-se no âmbito de produtos
idênticos ou afins (art. 245º, 1, b)) – vigora aqui o princípio da especialidade.

Tendo em vista o art. 239º, 1, a) do CPI e o art. 5º, 1, da Diretiva sobre marcas, é possível traçar
o seguinte quadro dos casos em que o registo de marca deve ser recusado:

a) A marca cujo registo se requer é idêntica à marca anteriormente registada, e os


produtos respetivos também são idênticos;
b) Ambas as marcas são idênticas e os produtos são afins, existindo consequentemente
um risco de erro ou confusão para os consumidores;
c) As marcas são semelhantes e os produtos idênticos, com risco de erro ou confusão
para os consumidores;
d) Tanto as marcas como os produtos são semelhantes ou afins, derivando daí a
possibilidade de os consumidores serem induzidos em erro ou confusão.

Mais problemático é saber quando existe afinidade entre produtos, semelhança entre as
marcas e risco de confusão.

🤓 São AFINS OU SEMELHANTES OS PRODUTOS com natureza ou características próximas e


finalidades idênticas ou similares (p. ex., vinho maduro e vinho verde, esferográfica e canetas). Deve
também entender-se que são afins os produtos de natureza marcadamente diversa, mas com
finalidades idênticas ou semelhantes (p. ex., fios de linho e fios de seda para confeções). Trata-se,
num caso e noutro, de bens concorrentes, intermutáveis ou substituíveis.

Todavia, a afinidade não se fica por aqui. Devem ainda ser considerados afins os bens não
intermutáveis ou substituíveis que o público destinatário crê razoavelmente terem a mesma origem,
por serem economicamente complementares (p. ex., artigos de couro e pomadas para tratar e
conservar couro, fios de lã e vestuário de lã, camaras de vídeo e videocassetes) e por outras razoes
(aguardentes e vinhos, automóveis ligeiros e tratores agrícolas).

Não se deverá ir para além destas fronteiras. Parece razoável, p. ex., que à sombra do
agrupamento da crescente concentração/diversificação das empresas se entenda serem similares
todos os produtos de jardinagem, desde máquinas de aparar a relva até às sementes de plantas.
Por outro lado, irrazoável será também relativizar o conceito de afinidade dos produtos através da
ponderação das marcas: a semelhança de produtos dependeria da semelhança das marcas e de
outras características das mesmas, especialmente da sua afirmação comercial ou notoriedade. A
relativização deve atuar não a propósito da afinidade dos bens, mas a propósito do risco de
confusão.

As semelhanças ou parecenças entre as marcas podem ser, principalmente, de natureza


gráfica, figurativa ou fonética (245º,1, c)). A grafia e/ou a fonética interessam particularmente para
as marcas nominativas e as constituídas por letras e números, bem como para as marcas mistas em
que elementos daquele género prevaleçam. Para as marcas figurativas e tridimensionais interessa
sobretudo atender à figura e configuração.

Não obstante, as semelhanças podem ser também de ordem sonora – não fonética. E há
que contar ainda com as parecenças ideológicas ou conceituais.

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O novo código (art. 245º, 1, c)) ao acrescentou “ou outra” à tríade “gráfica, figurativa ou
fonética” à lei anterior.

No juízo sobe a similitude, devem as marcas ser apreciadas global ou sinteticamente; não
devem ser dissecadas analiticamente a fim de excluir do exame elementos ou segmentos,
designadamente os que não têm ou têm pouca capacidade distintiva (o exame deverá recair sobre
as marcas na sua totalidade). Não quer isto dizer, porém, que o juízo sobre a semelhança há de ser
“impressionístico”, não fundado em análise e ponderação das semelhanças e dissemelhanças. É
claro que os elementos que os elementos de caracter especifico, descritivo, genérico ou de uso
comum, embora não excluíveis da apreciação, têm peso menor do que os elementos arbitrários ou
de fantasia; depois há de ter em especial conta a parte preponderante ou “vedeta”, o “núcleo” ou
“coração” dos signos em exame (a semelhança é mais significativa quando se verifica no coração).

🤔🤔 Para que uma marca seja considerada não nova e insuscetível de registo não basta ser
idêntica ou semelhante a marca anteriormente registada por outrem para produtos afins ou
idênticos. É ainda necessário que tal identidade ou semelhança POSSA INDUZIR EM CONFUSÃO o
consumidor. Não existe risco de confusão sem que exista identidade ou semelhança entre os sinais
e simultânea afinidade ou identidade entre os produtos. Mas estas correspondências entre marcas
e produtos não implicam necessariamente risco de confusão.

O risco de confusão deve ser entendido em sentido lato, de modo a abarcar tanto o risco de
confusão em sentido estrito ou próprio como o risco de associação. Verifica-se:

• Risco de confusão em sentido estrito ou próprio quando os consumidores podem ser


induzidos a tomar uma marca por outra e, consequentemente, um produto por outro
(os consumidores creem erradamente tratar-se da mesma marca e do mesmo
produto);
• Risco de associação quando os consumidores, distinguindo embora os sinais, ligam
um ao outro e, em consequência, um produto ao outro (creem erroneamente tratar-
se de marcas e produtos imputáveis a sujeitos com relações de coligação ou licença,
ou tratar-se de marcas comunicando análogas qualidades dos produtos).

Ora o risco de confusão depende de vários fatores, nomeadamente do tipo de


consumidores, do grau de semelhança entre as marcas e entre os produtos assinalados, e da força
e notoriedade da marca registada.

Os consumidores a considerar são, em primeiro lugar, aqueles a quem os produtos assinalados


com as marcas em causa se destinam (p. ex., certas semelhanças entre sinais e entre produtos
podem não induzir, ou induzir dificilmente, em erro industriais ou consumidores especialistas,
enquanto que as mesmas semelhanças já podem criar facilmente confusão no espirito da
generalidade dos consumidores). Depois, entre os consumidores destinatários, há de atender-se ao
consumidor médio, nem particularmente atento nem particularmente distraído (o consumidor de
normal capacidade, informação e atenção). Por outro lado, deve ver-se o consumidor medio a ser
sensibilizado atualmente por certo sinal e, ao mesmo tempo, recordar a marca registada cuja
imitação se questiona (o confronto entre os dois sinais não é atual).

Releva também, evidentemente, o aludido grau de semelhança. O risco de confusão é tanto


maior quanto maior for a semelhança entre os sinais e entre os produtos. E estas semelhanças hão

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de ser correlacionadas: a afinidade entre os produtos pode ser tanto menor quanto maior for a
semelhança entre sinais, e vice-versa.

Por sua vez, o risco de confusão é maior quando a marca registada é “forte” (não “normal”
nem “fraca”), ou muito conhecida: a marca que se pretende registar tem então de apresentar
maiores dissemelhanças a fim de não induzir o público em erro. Marcas fracas ou débeis são marcas
com pouca capacidade distintiva, por conterem elementos específicos, genéricos, descritivos ou de
uso comum (referem-se diretamente à natureza ou qualidades dos produtos – são marcas
“expressivas” ou “sugestivas”). Pois bem, uma marca forte, tendo maior capacidade distintiva,
desperta maior atenção no público e perdura mais na sua memória; daí que leves semelhanças ou
imitações sejam suscetíveis de provocar trocas ou associações entre a marca de que se guarda
memória e o signo que se pretende registar. A mais disto, importa dizer que o titular de uma marca
expressiva há de ter consciência de que a opção por tal signo o expõe a riscos: outros sujeitos têm
legitimidade para compor as suas marcas igualmente com elementos sugestivos (art. 223º, 2). A
notoriedade da marca registada releva também. Ora, ainda que do ponto de vista empírico seja
duvidoso que o risco de confusão em sentido estrito aumente à medida do crescimento da
notoriedade da marca no mercado, é certo que o risco de associação é tanto maior quanto maior
for a notoriedade da marca registada.

3.3. CONTEÚDO E EXTENSÃO DO DIREITO SOBRE MARCA

3.3.1. R EGISTO
Para que se constitua um direito de propriedade sobre uma marca é preciso que a mesma
seja registada – art. 224º CPI -, e o registo é constitutivo. O processo normal de registo é regulado
pelos arts. 233º e ss. Para este processo, há hoje um regime especial de constituição on-line de
sociedades, que permite a simultânea aquisição de marca associada à firma da sociedade.

Tem direito de prioridade, para registo quem primeiro apresentar regularmente o respetivo
pedido (art. 11º), no entanto, quem tiver apresentado regularmente em qualquer país da União de
Paris ou da OMC, ou em qualquer organismo intergovernamental com competência para registar
marcas que produzam efeito em Portugal, um pedido de registo de marca gozará, para apresentar
o mesmo pedido em Portugal, do direito de prioridade durante seis meses a partir da data do
primeiro pedido (art. 12º do CPI, e art. 4º da CUP). Também “aquele que usar marca livre ou não
registada por prazo não superior a seis meses tem, durante esse prazo, direito de prioridade para
efetuar o registo, podendo reclamar contra o que for requerido por outrem” (art. 227º, 1, do CPI).

Os direitos conferidos pelo registo de marca são eficazes em todo o território nacional – art.
4º, nº1. Para a tutela noutros países, terá de requisitar o registo nesses países, salvo em relação aos
Estados-parte do acordo de Madrid, pois por intermédio do INPI pode requerer a proteção da marca
nesses países.

As “marcas da União Europeia” têm caracter unitário, produzem em regra os mesmos efeitos
em toda a União, sendo o seu registo (único) efetuado no Instituto da Propriedade Intelectual da
União Europeia (Reg. 2017/1001).

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3.3.2. D IREITOS CONFERIDOS PELO REGISTO
O titular de uma (licita) marca registada, gozando da “propriedade e do exclusivo dela” (art.
224º, 1, do CPI), pode naturalmente usá-la para assinalar os produtos respetivos, utilizá-la na
publicidade, transmiti-la e cedê-la em licença de exploração (arts. 31º, 32º, 262º, 264º), etc.

Por outro lado, pode reclamar contra pedido de registo feito por outrem de marca idêntica
ou semelhante (arts. 236º, 237º) – devendo o INPI, haja ou não reclamação, recusar tal registo se
existir risco de confusão (239º, 1, a)).

Pode propor ação de anulação de registo concedido contra disposto no art. 239º, 1, a) (art.
266º, 1).

Pode requerer judicialmente medidas inibitórias (cautelares ou definitivas) contra violações


do seu direito (arts. 338º-I, 338º-N), bem como indemnizações (art. 338º-L).

Por outro lado, ainda, o direito do titular da marca é protegido criminal e contra-
ordenacionalmente (arts. 323º, 324º, 336º + 319º).

3.3.3. L IMITAÇÕES AOS DIREITOS CONFERIDOS PELO REGISTO


O titular de marca registada não pode impedir que terceiros usem na sua atividade
económica o seu próprio nome e endereço ou indicações relativas à espécie, qualidade,
quantidade, artigo 260º al. a) e b). No entanto, isto só é assim quando o uso pelos terceiros seja feito
em conformidade com normas e usos honestos em matéria profissional, o que significa que os sinais
aludidos terão de aparecer em função descritiva, não como marcas.

Também não pode impedir que terceiros usem na sua atividade económica a sua marca,
quando tal uso não viole práticas honestas em matéria profissional e seja necessário para indicar o
destino dos produtos, nomeadamente no caso de acessórios ou peças sobressalentes, artigo 260º al.
c).

Outra limitação decorre do princípio do esgotamento.

Os direitos conferidos pela marca esgotam-se no momento em que coloca os produtos no


mercado, artigo 259º. Por exemplo, um produtor exporta para França, em França um comerciante
compra esses produtos mais baratos e vende novamente para Portugal. O titular da marca não pode
impedir a comercialização destes produtos com base na tutela da sua marca. Caso contrário, isto
levaria ao fechamento dos mercados nacionais, a que cedo se opôs o TJCE, corrente jurisprudencial
que foi adotada pela Diretiva 84/104/CEE no seu artigo 7º, que o artigo 259º CPI reproduz.

No entanto, o esgotamento não é invocável se se verificar o n° 2 da Diretiva ou o n° 2 do


artigo 259º: sempre que existam motivos legítimos, nomeadamente quando haja alteração do
estado das mercadorias. Um produto alterado, com a mesma marca, iria pôr em causa as funções
de indicação de origem, indicação de qualidade e atração publicitária da marca. A mesma coisa
sucede em princípio quando o sujeito apenas reembala os produtos. Só não é assim em
determinadas situações, por exemplo, quando a reembalagem não altera o estado originário do
produto (alteração da embalagem de cartão para plástico). Ou seja, a marca é protegida quando
se põem em causa as suas funções.

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3.3.4. P ROTEÇÃO DAS MARCAS DE FACTO , LIVRES OU NÃO REGISTADAS
As marcas de facto, além de gozarem do direito de propriedade para o registo nos termos
do artigo 227º CPI, podem ser protegidas nos termos do artigo 239º n° 1 al. e): deve ser recusado o
registo de marca idêntica ou confundível com marca de facto quando se reconheça que o
requerente pretende fazer concorrência desleal.

De protecção especial gozam as marcas de facto notoriamente conhecidas em Portugal e


no círculo de consumidores dos produtos em causa, artigo 241º n° 1 e 2. Mesmo antes do registo da
marca notoriamente conhecida, o terceiro que a use, contrafaça ou imite está sujeito a
responsabilidade criminal. Protecção semelhante têm as marcas de prestígio não registadas, artigos
242º, 266º n° 1 e 2, 323º al. e) e 324º.

3.4. TRANSMISSÕES E LICENÇAS

3.4.1. T RANSMISSÕES
O sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas independentemente da
transmissão das respetivas empresas. A propriedade de marca registada (bem como o pedido de
registo) é transmissível a título gratuito ou oneroso independentemente do estabelecimento, “se tal
não for suscetível de induzir o publico em erro quanto à proveniência do produto ou do serviço ou
aos carateres essenciais para a sua apreciação” (art. 262º, 1, 3). Por poder induzir o publico em erro,
será ilícita a transmissão autónoma de marca (sem o estabelecimento) quando, por exemplo, a
marca contenha nome ou a firma do transmitente, ou recompensas a ele atribuídas; ilícita será
também, quando os produtos do transmissário a assinalar com a marca sejam – embora da mesma
classe classificativa – de natureza diversa ou qualidade consideravelmente inferior às dos produtos
do transmitente (há uma adulteração da função da marca).

Trespassando-se um estabelecimento, transmite-se naturalmente (âmbito natural de entrega)


a marca (ou marcas) a ele ligada(s). Transferindo-se um estabelecimento a título temporário (p. ex.,
usufruto, locação), vale também a regra da transmissão natural das marcas.

A transmissão inter vivos das marcas, quando não integrada em negócio sobre
estabelecimento exigindo escrito, “deve ser provada por documento escrito” (art. 31º, 6). Em
qualquer caso, a transmissão só produz efeitos em relação a terceiros depois do respetivo
averbamento no INPI (art. 30º, 1, a), 2).

As marcas de facto, por não serem objeto de direito de propriedade, não são transmissíveis
autonomamente. Mas, enquanto elementos de empresas, podem com estas ser transmitidas.

3.4.2. L ICENÇAS
Atualmente, as licenças de exploração de marcas estão especialmente reguladas nos arts.
32º e 264º do CPI. Através de contrato (oneroso ou gratuito) pode o titular de marca registada cedê-
la a terceiro em licença de uso ou exploração. A licença pode ser total ou parcial (para todos ou
parte dos produtos para os quais a marca foi registada), destinada a certa zona ou a todo o território
nacional, vigente por todo o tempo do registo ou por prazo inferior, exclusiva (obrigando-se o
licenciante a não conceder outras licenças para a zona acordada enquanto aquela vigorar) ou
não exclusiva (ou simples) – arts. 32º, 1, 5, 6 e 7.

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O contrato de licença está sujeito a forma escrita (art. 32º, 3) e só produz efeitos em relação
a terceiros depois de averbado no INPI (art. 30º, 1, b), 2).

“Salvo estipulação em contrário, o licenciado goza, para todos os efeitos legais, das
faculdades conferidas ao titular do direito objeto da licença (...)” – art. 32º, 4. Todavia, salvo
estipulação em contrário, o licenciado não pode ceder a sua posição contratual nem conceder
sublicenças sem consentimento escrito do licenciante (art. 32º, 8 e 9).

Não prevê a lei o dever-poder (legal) de o licenciante controlar a qualidade dos produtos
com a sua marca assinalados pelo licenciado; nem prevê o dever (legal) de o licenciado respeitar
os critérios de qualidade respeitados pelo licenciante e/ou outros licenciados. Contudo, sempre se
poderá recorrer ao regime da caducidade, previsto no art. 269º, 2, b). O que a lei prevê (art. 264º e
25º, 2, da Diretiva) é que, prevendo o contrato de licença algo sobre a qualidade dos produtos
fabricados ou dos serviços prestados pelo licenciado (bem como outros aspetos relativos ao uso da
marca), o licenciante pode invocar contra o licenciado que infrinja essa(s) cláusula(s) – além do
regime geral do incumprimento dos contratos – “os direitos conferidos pelo registo” – arts. 258º e 323º,
f).

Aparentado com o contrato de licença é o contrato de merchandising de marca – através


do qual o titular de marca (registada) de prestígio concede a outrem o direito de usar o signo para
distinguir produtos não idênticos nem afins dos produtos para que ela foi registada. Apesar de não
tipificado legalmente, deve este contrato ser considerado lícito. Na verdade, o titular de uma marca
de prestígio tem o direito de impedir que outrem a use para quaisquer espécies de produtos (arts.
243º, 323º, c)); por conseguinte, este uso só será legitimo havendo acordo do titular da marca.

3.5. EXTINÇÃO DO REGISTO DAS MARCAS OU DE DIREITOS DELE DERIVADOS

3.5.1. N ULIDADE
Segundo o art. 265º, 1, do registo de marca é nulo nos casos previstos no art. 33º, 1, e quando
na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto nos nºs 1, 4, 5 e 6 do art. 238º (proibições
absolutas de registo).

A declaração judicial da nulidade é requerível a todo o tempo por qualquer interessado ou


pelo Ministério Público (arts. 33º, 2, 35º, 1, 2). No entanto, “a eficácia retroativa da declaração de
nulidade (...) não prejudica os efeitos produzidos em cumprimento de obrigações (relativa, p. ex., ao
pagamento por parte de licenciado de retribuições vencidas), de sentença transitada em julgado
(que, p. ex., tenha condenado ao pagamento de indemnização alguém que usou sinal imitando a
marca posteriormente declarada nula), de transação, ainda que não homologada, ou em
consequência de atos de natureza análoga” (art. 36º).

3.5.2. A NULAÇÃO
É anulável o registo de marca quando na sua concessão tenha sido infringido o previsto nos
arts. 239º a 242º - assim determina o art. 266º, 1.

As ações de anulação podem ser propostas pelo Ministério Público ou por qualquer
interessado dentro do prazo de dez anos a contar da data do despacho de concessão de registo

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(art. 35º, 1, 2, 266º, 4). Mas não prescreve o direito de pedir a anulação de marca registada de má
fé (com conhecimento da existência de marca, sinal, ou direitos anteriormente incompatíveis com
a marca cujo registo se obteve, e intenção de prejudicar e/ou beneficiar em detrimento do titular
daqueles sinais ou direitos) – art. 266º, 4.

Porém, “o titular de uma marca registada que, tendo conhecimento do facto, tiver tolerado,
durante um período de cinco anos consecutivos, o uso de uma marca registada posterior, deixa de
ter direito, com base na sua marca anterior, a requere a anulação do registo da marca posterior, ou
a opor-se ao seu uso, em relação aos produtos ou serviços nos quais a marca posterior tenha sido
usada, salvo se o registo da marca posterior tiver sido efetuado de má fé” (art. 267º, 1).

3.5.3. C ADUCIDADE
O registo de marca caduca independentemente da invocação de causa - art. 37º, 1:

a) Quando tiver expirado o seu prazo de duração;


b) Por falta de pagamento de taxas.

E caducará se as respetivas causas forem invocadas por interessado e houver a


correspondente declaração pelo INPI - arts. 37º, 2, e 270º:

1) Se a marca não tiver sido objeto de uso sério durante cinco anos consecutivos sem
justo motivo (nº1 do art. 269º);
2) Se a marca se tiver transformado na designação usual no comércio do produto para
que foi registada, em consequências de atividade ou inatividade do titular (art. 269º,
2, a));
3) Se a marca se tiver tornado decetiva (art. 269º, 2, b)).

As causas de caducidade referidas sob 1) e 2) merecem algumas linhas a mais.

O uso de marca é sério quando ela assinala produtos colocados no mercado de modo
estável ou não esporádico e em quantidades significativas ou não irrisórias, quando a utilização não
é meramente “simbólica”. Mas o uso sério poderá bastar-se com a utilização da marca em
campanhas publicitárias preparatórias da introdução dos bens no mercado. O uso relevante da
marca pode ser feito pelo titular do registo, por licenciados (art. 268º, 1, a)), por “terceiro, desde que
seja sob controlo do titular e para efeitos da manutenção do registo” (art. 268º, 1, c)), ou, em geral,
por quem seja autorizado pelo titular (p. ex. sociedades filiais).

Há justo motivo para não uso da marca quando existam circunstâncias independentes da
vontade do titular que tal imponham – p. ex. casos de força maior (guerras, catástrofes naturais) e
medidas de autoridades públicas proibindo a produção ou a comercialização dos respetivos
produtos.

De todo o modo, o registo não caduca por falta de uso injustificado da marca durante cinco
anos consecutivos “se, antes de requerida a declaração de caducidade, já tiver sindo iniciado ou
reatado o uso sério da marca” (art. 269º, 4); contudo, “o inicio ou o reatamento do uso sério nos três
meses imediatamente anteriores à apresentação de um pedido de declaração de caducidade,
contados a partir do fim do período ininterrupto de cinco anos de não uso, não é (...) tomado em
consideração se as diligencias para o inicio ou reatamento do uso só ocorrerem depois do titular
tomar conhecimento de que pode vir a ser efetuado esse pedido de declaração de caducidade”
(arts. 269º, 4, 268º, 4 + 19º, 3, da Diretiva).

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O preceito do art. 269º, 2, a) do CPI, que reproduz substancialmente o do art. 20º, a) da
Diretiva, refere-se ao fenómeno da chamada (sobretudo em Itália) “vulgarização” da marca.

O registo da marca é passível de caducidade quando ela se transforma na designação


comercial usual do produto para que foi registada, quando se converte no nome comum ou signo
“especifico” do produto (a marca deixa de aparecer como sinal distintivo de bens com certo nome,
aparecendo como denominação comum, como o próprio nome desses bens). São clássicos os
exemplos da Cellophane (Celofane), Thermos (termo), Polaroid (polaroide), Jeep (jipe), etc.

Esta conversão pode realizar-se por iniciativa do titular ou explorador da marca (utilizando-a
como denominação especifica), dos concorrentes (utilizando ilicitamente a marca ou designado
especificamente os produtos através da marca), dos consumidores (solicitando produtos não pelo
seu nome ou pelo nome e marca, mas por determinada marca).

Todavia não basta o uso generalizado de uma marca como denominação especifica de
produto para que o registo possa ser declarado caduco. A lei não perfilhou a tese “objetiva” da
caducidade por vulgarização, mas sim a “subjetiva”. Isto é, a caducidade só pode ser declarada
quando a vulgarização da marca seja “consequência da atividade, ou inatividade, do titular”.
Resulta da atividade do titular quando é ele que inicia ou promove a utilização da marca como
nome comum do produto. Resulta da inatividade do titular quando são outros que iniciam ou
promovem essa utilização sem que ele reaja, sem se opor a tal emprego.

3.5.4. R ENÚNCIA
Por declaração unilateral reptícia (dirigida ao INPI), pode o titular de marca renunciar (total
ou parcialmente) ao direito de propriedade sobre ela (art. 38º, 1, 2). Porém, “a renuncia não
prejudica os direitos derivados (p. ex. fundados em licenças de exploração) que estejam averbados,
desde que os seus titulares, devidamente notificados, se substituam ao titular do direito principal, na
medida necessária à salvaguarda desses direitos” (art. 38º, 5).

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4. DENOMINAÇÕES

4.1. NOÇÃO
Denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos
excecionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja qualidade
ou caraterísticas se devem essencial ou exclusivamente ao meio geográfico – aos seus fatores
naturais (solo, clima) e/ou socioeconómicas (técnicas de produção) – e que é produzido,
transformado e elaborado na área geográfica delimitada (art. 305º, 1, do CPI). São igualmente
consideradas denominações de origem de certas denominações tradicionais, geográficas ou não,
que designem produtos originários de uma região ou local determinado, cujas qualidades ou
características se devem essencialmente ao meio geográfico e cuja produção, transformação e
elaboração ocorrem nas áreas geográficas delimitadas (art. 305º, 2 + art. 2º, 3, do Regulamento
2081/92). Exemplos: “vinho verde”, “queijo da serra”.

Indicação geográfica é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos


excecionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja reputação,
determinada qualidade ou característica podem ser atribuídas a essa origem geográfica e que é
produzido, transformado ou elaborado na área geográfica delimitada (art. 305º, 3).

A diferença principal entre denominações de origem e indicações geográficas está no facto


de as primeiras identificarem produtos cuja qualidade global ou características se devem
essencialmente ao meio geográfico, / enquanto que as segundas designam produtos que, podendo
embora ser produzidos com idêntica qualidade global noutras zonas geográficas, devem a sua fama
ou certas características à área territorial delimitada de que deriva o nome-indicação geográfica
(ex. Maçã da Cova da Beira)

ATENÇÃO: Pergunta de exame ‼⤵

Como se vê, as denominações de origem e as indicações geográficas visão distinguir


produtos – tal como as marcas. Mas não se confundem com estas. As possibilidades de constituição
das marcas (art. 222º) são muito vastas do que as respeitantes àqueles sinais, sempre nominativos e
consistindo quase sempre em nomes de zonas geográficas; as marcas pertencem a sujeitos
determinados, e as denominações de origem e indicações geográficas são propriedade comum
dos residentes ou estabelecidos, de modo efetivo e sério, na localidade, região ou território
demarcados (art. 305º, 4); ao invés da generalidade das marcas, aqueloutros sinais distinguem
sempre produtos originários de certas áreas geográficas. Não obstante, é muito grande a
proximidade entre as denominações de origem, indicações geográficas e marcas coletivas
constituídas por nomes indicando a proveniência geográfica dos produtos (art. 228º, 2). Ainda aqui,
porém, subsistem as diferenças relativas aos sujeitos que podem ser titulares e usuários de uns e outros
sinais; a mais disso, deve notar-se que as possibilidades de controlo da produção e comercialização
dos produtos assinalados por uns e outros sinais são em geral mais vastas no respeitante às marcas
coletivas – arts. 228º, 3, 231º, 1, b), 2, 305º, 5.

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4.2. PROTEÇÃO
A tutela das denominações de origem e das indicações geográficas exige, em regra, que
elas estejam registadas. O registo deve ser concedido às denominações e indicações respeitadores
dos requisitos previstos no art. 305º, 1, 2 e 3:

• não confundíveis com denominações de origem ou indicações geográficas


anteriormente registadas;
• não decetivas;
• não ofensivas de direitos de propriedade industrial ou de direitos de autor;
• nem da lei, da ordem pública ou dos bons costumes;
• não suscetíveis de favorecer atos de concorrência desleal – art. 308º.

O registo destes sinais confere o direito de impedir o uso da(s) palavra(s) característica(s)
dele(s) componente(s), ou de signos confundíveis, em marcas e outros sinais distintivos, etiquetas,
rótulos, mensagens publicitárias, documentos mercantis para assinalar, apresentar ou referir produtos
idênticos ou afins mas não provenientes das regiões demarcadas a que se reportam as
denominações de origem ou as indicações geográficas (art. 312º, 1, a), 2 e 3). Mas aquele uso é
ainda proibido em relação a produtos não idênticos nem afins quando a denominação de origem
ou a indicação geográfica gozem de prestígio em Portugal ou na Comunidade Europeia e “sempre
que o uso das mesmas procure, sem justo motivo, tirar partido indevido do caracter distintivo ou do
prestígio da denominação de origem ou da indicção geográfica anteriormente registada, ou possa
prejudica-los” (art. 312º, 4). Também nestes casos, é ultrapassado o “principio da especialidade”.

O art. 312º, 1, permite impedir ainda “a utilização que constitua um ato de concorrência
desleal, no sentido do art. 10-bis da Convenção de Paris” – al. b) – e “o uso por quem, para tal, não
esteja autorizado pelo titular do registo” (al. c)). Para COUTINHO DE ABREU disposições desnecessárias.
Quanto à primeira, a tutela decorre das restantes disposições do art. 312º parece não deixar
qualquer espaço para uma (autónoma) tutela em termos de concorrência desleal. A segunda
encontra-se já, melhor formulada, no nº4 do art. 305º. Além da proteção consagrada no art. 312º,
deve ser tida em conta a relativa à responsabilidade civil nos termos dos arts. 483º, ss, do CC (do CPI,
305º, 4, 310º, 316º, 338º-L) e à responsabilidade criminal (art. 325º).

As denominações de origem e indicações geográficas não registadas também gozam de


alguma proteção. Vejamos o disposto na parte final do art. 310º: tais sinais são protegidos por regras
“que forem decretadas contra as falsas indicações de proveniência (p. ex., o Acordo de Madrid de
14 de abril de 1891, com várias alterações), independentemente do registo (...)”.

4.3. Extinção
O registo é nulo, designadamente, quando na sua concessão tenha sido violado o disposto
nas als. b), d) e f) do art. 308º (falta de requisitos essenciais para a qualificação como denominações
de origem ou indicações geográficas, decetividade (causar deceção) originária, contrariedade à
lei, à ordem pública ou aos bons consumes) – art. 313º.

É anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto nas als. a), c), e) e
g) do art. 308º (falta de legitimidade do requerente, reprodução ou imitação de denominação de
origem ou indicação geográfica anteriormente registadas, infração de direito de propriedade
industrial ou de direito de autor, possibilitação de atos de concorrência desleal) – art. 314º, 1.

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“O registo caduca, a requerimento de qualquer interessado, quando a denominação de
origem, ou a indicação geográfica, se transformar, segundo os usos leais, antigos e constantes da
atividade económica, em simples designação genérica de um sistema de fabrico ou de um tipo
determinado de produtos” (art. 315º, 1). Parece estar aqui consagrada uma conceção
primordialmente “objetivista” (diversamente do estabelecido para as marcas). Contudo, não ficam
sujeitos à caducidade por “vulgarização” “os produtos vinícolas, as águas mineromedicinais e os
demais produtos cuja denominação geográfica de origem seja objeto de legislação especial de
proteção e fiscalização no respetivo país” (art. 315º, 2; art. 13º, 2, do Regulamento 510/2006).

5. RECOMPENSAS

As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos


(condecorações, medalhas, diplomas, atestados, etc.) concedidos a empresários por mor da
bondade dos respetivos estabelecimentos e/ou produtos (arts. 271º, 272º, 273º, 274º, c) e d), 276º, c)
do CPI).

As recompensas conferidas aos empresários “constituem propriedade sua” (art. 273º). E deve
entender-se que a propriedade lhes é reconhecida independentemente do registo das mesmas (art.
276º, c)). Aqui, o registo parece não ser constitutivo; serve antes para, a mais de publicitar a
titularidade das recompensas, garantir a veracidade e autenticidade dos títulos de concessão das
mesmas (art. 4º, 3) e possibilitar que na referência ou cópia deles se indique “Recompensa registada”
ou «‘R.R’», «’RR’» ou «RR» (art. 278º).

O registo de recompensa é anulável quando se prove que a mesma não foi concedida ao
sujeito mencionado no registo, ou quando o título de recompensa for anulado (art. 280º); caduca
quando a concessão da recompensa for revogada ou cancelada (art. 281º, 1); e o titular pode a ele
renunciar nos termos do art. 38º.

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PARTE II: LETRAS E LIVRANÇAS
1. NOÇÕES GERAIS

1.1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA COMO CHAVE PARA A COMPREENSÃO DAS


PARTICULARIDADES DA LETRA

1.1.1. C ONTRATO DE CÂMBIO , CÂMBIO TRAJETÍCIO E TRANSPORTE DE MOEDA : A “ CARTA DE


PAGAMENTO ”
Podemos situar o início do desenvolvimento da letra na Idade Média, em finais do século XIII,
com ligação ao contrato de câmbio e às necessidades do comércio.

Este contrato, na sua forma mais simples de câmbio manual, dava corpo à principal atividade
dos cambistas e consistia na simples troca presencial de uma moeda por outra, em razão do seu
peso, lei ou procedência, de forma não muito distinta da que ainda hoje se emprega para a
aquisição de divisas ao balcão de um banco.

A necessidade do câmbio radicava na diversidade da moeda com curso nos diferentes


locais onde os sujeitos exerciam o seu comércio, necessidade que se viu potencial na época pela
descentralização excessiva do direito de cunhagem de moeda e pela variação constante dos seus
valores relativos.

O que impulsionou a evolução para a modalidade do câmbio trajetício foram as dificuldades


associadas ao transporte de moeda causadas pela escassa segurança das vias de comunicação,
pelos custos associados ao transporte de dinheiro e pelas proibições de saída de numerário e metais
preciosos das cidades ou países. O contrato de câmbio passou assim de uma troca presencial de
moedas para uma operação que envolvia a antecipação de uma quantia em dinheiro contra a
promessa de resgatar mais tarde outra equivalente em lugar e moeda distintos. É aqui que surge a
carta de pagamento que o banqueiro emitia sobre o seu correspondente estrangeiro e entregava
ao cliente.

Nesta fase a circulação da letra era mais física do que jurídica, pois o sujeito indicado na letra
como portador não tinha a faculdade de transmitir, só ele estava autorizado a exercer o dinheiro. A
cláusula à ordem, que vem tornar possível a aquisição e exercício do direito por sujeitos inicialmente
não nomeados através do endosso, só compare no início do século XVII.

As letras associadas ao contrato de câmbio eram muitas vezes usadas só para transferir
fundos entre praças. Foram os comerciantes que perceberam o potencial da letra para fazer um uso
produtivo dos fundos enquanto estão fora, através do empréstimo desses fundos a outrem contra
remuneração, sendo o financiamento central no âmbito do contrato de câmbio.

A ligação intrínseca deste financiamento ao contrato de câmbio trajetício tornava-o


especulativo. O mercador ou banqueiro que emprestasse dinheiro nunca podia estar seguro quando
ao ganho que iria receber da transação, pois as taxas de câmbio flutuavam entre o momento da
entrega e o da devolução dos fundos, podendo até ter uma perda. Era assim usado para fugir à
proibição canónica da usura, pois do ponto de vista externo era difícil distinguir entre ganhos

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ocasionais decorrentes de flutuações de valor das moedas e ganhos premeditados correspondentes
à retribuição do uso do dinheiro.

Os agentes económicos começaram assim a utilizar a letra também como instrumento de


execução de simples mútuos onerosos, desligando-a da função de transporte de dinheiro, com a
chamada operação de câmbio fictício ou seco.

1.1.2. D ESLOCAÇÃO DO CENTRO DE GRAVIDADE PARA O PLANO DOCUMENTAL


Para a letra atingir os contornos atuais e deixar de estar ligada ao contrato de câmbio a
evolução foi lenta e difícil. Implicou a deslocação do centro de gravidade para o plano documental,
até então valorado como simples elemento de prova, e completou-se com a concentração da
disciplina jurídica sobre esse mesmo plano.

Fundamental para o desenvolvimento da letra entre os séculos XV e XVI foram as feiras, como
a de Champagne ou Lyon, que se realizavam durante o ano, tomadas como locais de pagamento
do preço titulado nas letras. A segurança e celeridade que o sistema envolvia deu azo a um
formalismo quase ritual tanto nas declarações como nos procedimentos, que impulsionou o que hoje
conhecemos por rigor cambiário e que esteve na origem dos estereótipos legais das diversas
declarações carrilares, que se bastam com a assinatura do declarante em determinado sítio da letra.

Gradualmente diminui a importância das feiras, e a circulação física e jurídica expande-se


através do endosso. O domínio das letras deixa de ser assunto de especialistas para se tornar ume
expediente comum ao alcance do agente económico vulgar.

Entramos no período da letra como meio de pagamento, que dispensa e ocupa o lugar do
dinheiro.

1.1.3. A L EI U NIFORME
No século XIX iniciou o chamado movimento unificador, que teve na base a urgência em
facilitar a circulação alargada de letras e livranças, fomentando a certeza, segurança e rapidez dos
seus circuitos.

Assim, em 1928, o Conselho da Sociedade das Nações convocou a Conferência, que veio
reunir em Genebra em 1930, que aprovou três convenções, uma relativa à Lei Uniforme sobre Letras
e Livranças; outra destinada a regular certos conflitos de leis em matéria de direito cambiário; e a
última respeitante ao imposto de selo sobre letras e livranças.

A Convenção de Genebra surgiu como resposta a uma necessidade de uniformização


sentida no plano internacional pelos agentes económicos, mas a harmonização não foi uniforme
como a que se pretendia. Isto porque muitos Estados ou não ratificaram as convenções, ou fizeram
algo uso das reservas que estas permitiam.

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1.2. PARA QUE SERVEM E COMO SÃO HOJE UTILIZADAS AS LETRAS E LIVRANÇAS

SAQUE

sacador sacado
Compra e Venda
A B
O

5.000 €
SS
DO
EN

ACEITE

tomador aceitante
C

D E

portador
AVAL F

avalista

1.2.1. P RINCIPAIS FUNÇÕES


As letras e livranças desempenham uma função de garantia em sentido amplo (1) ou de
reforço do crédito. Na ausência de cumprimento voluntário por parte do aceitante ou do emitente,
o credor dispõe de um meio expedito para obter a satisfação do seu direito. Não necessita de
interpor uma ação declarativa para fazer prova da existência e validade do crédito emergente da
relação fundamental, nem necessita de provar o incumprimento do devedor, basta-lhe mover uma
execução com base na letra ou livrança.

Desempenham igualmente uma função de garantia em sentido estrito (2), pois são utilizadas
como mecanismo de adjunção de patrimónios responsáveis a uma determinada dívida. Este
fenómeno está claro na prestação de aval ou nas assinaturas de favor, e aparece exponencial
quando na mesma posição obrigacional cambiária encontramos diversos subscritores.

Os títulos cambiários desempenham ainda uma importante função de financiamento (3), pois
a sua emissão cauciona a concessão de uma dilação de pagamento.

Ausente fica a tradicionalmente destacada realização do valor patrimonial da letra e


livrança através da sua transmissão por endosso, a utilização destes títulos com função de
pagamento.

1.2.2. T IPOS DE UTILIZAÇÃO


Traço mais saliente do utilizo das letras e livranças é o da ausência de circulação dos títulos,
os quais não chegam a sair das mãos do tomador, sendo também constante que este coincida com
o sacador, quer dizer, que este saque à sua própria ordem. Substitui-se a trilateralidade subjacente
à emissão de letras por um contexto bipessoal, no qual se esvazia de sentido a clássica apresentação
da letra ao aceite, já que o mais vulgar é o aceite ser contemporâneo da própria emissão da letra.

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A circulação tem como destinatário habitual uma instituição bancária e processa-se no
âmbito de uma operação de desconto. Verificou-se um declínio do endosso em favor da figura do
aval com pluralidade de destinatários no domínio da vinculação cambiária das sociedades,
constituindo quase uma regra a prestação de avalo pelos gerentes ou pelos sócios sempre que as
sociedades aceitam letras ou emitem livranças.

O recurso a letras e livranças em branco assume uma expressão muito significativa no âmbito de
prestações contratuais duradouras envolvendo uma componente financeira.

1.3. A RELAÇÃO JURÍDICA CAMBIÁRIA

1.3.1. N ÃO SE CONFUNDE COM O DOCUMENTO


O regime jurídico das letras e livranças está contido na Lei Uniforme das Letras e Livranças
(LULL), aprovada por convenção internacional em Genebra em 1930 e que vigora como direito
interno português desde a sua ratificação em 1934.

As letras e livranças são documentos escritos dotados de elevado grau de formalismo, que
assumem grande importância enquanto suporte físicos infungíveis de legitimação ativa e passiva.
Mas não são negócios jurídicos cambiários, nem se confundem com a relação jurídica cambiária
que desses negócios jurídicos procede. Além da relação cambiária propriamente dita, temos uma
relação jurídica real sobre o documento em si, que em cada momento há-de pertencer a alguém.
Temos também relações obrigacionais extracartulares, geradas pelas convenções executivas e
relações fundamentais.

1.3.2. C ONTEÚDO E ESTRUTURA


A relação cartular pode descrever-se como uma relação jurídica obrigacional, em cujo lado
ativo encontramos um direito de crédito cujo objeto consiste numa prestação em dinheiro.

No lado passivo encontramos uma obrigação principal auxiliada por um sistema de


obrigações de garantia que impendem sobre os outros subscritores cambiários.

O acionamento desse sistema depende da concretização do risco correspondente ao


conteúdo da garantia, isto é, a ocorrência de falta de aceite ou de pagamento. Verificado esse
risco, as obrigações cambiárias comportam-se como obrigações solidárias em face do credor. O
risco garantido é o relativo à falta de pagamento, pois o aceite tende a ser contemporâneo da
própria emissão da letra.

1.4. OS NEGÓCIOS JURÍDICOS CAMBIÁRIOS

1.4.1. C ARACTERÍSTICAS COMUNS


Os negócios jurídicos cambiários têm carácter constitutivo, pois a emissão da letra ou livrança
dá origem a uma específica relação jurídica separada e distinta de outra já existente. Cada
assinatura aposta sobre a letra, seja qual for a qualidade em que o sujeito intervém, faz nascer contra

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o subscritor uma obrigação nova, substantiva e distinta de qualquer outra já existente. Ao titular ativo
será reconhecido o correspondente direito de crédito cambiário. A emissão do título funciona como
pressuposto da constituição do direito, ao contrário do que sucede nos títulos declarativos, que se
limitam a declarar ou manifestar um direito existente.

Outra característica é a incondicionalidade, o impedimento legal de que os seus efeitos


sejam submetidos a condição. A presença de uma condição retiraria a terceiros a possibilidade de
avaliar o valor real do direito através da simples leitura das inscrições constantes da letra ou livrança.
Resulta do artigo 1º, n° 2 LULL para o saque, do artigo 12º-I para o endosso e do artigo 26º-I para o
aceite, sendo que esta última imposição constitui a regra-base para a modelação da
responsabilidade cambiária de todos os obrigados de garantia (sacadores, endossantes e avalistas).

Os negócios cambiários constituem um desvio ao princípio da necessidade de indicação da


causa: o conteúdo negocial cambiário não manifesta a causa económico-social, mas a ordem
jurídica sanciona a produção do efeito pretendido. Todavia a subscrição de uma letra ou livrança
desempenha, em cada caso concreto, uma determinada função económico-social, portanto o
negócio cambiário possui uma causa. Estamos perante uma separação analítica da fattispecie, que
faz com que a justificação da atribuição patrimonial realizada através do título deva ser procurada
fora do título. A causa pressupõe um contexto económico-jurídico bilateral, um pacto ou um acordo
extra-cartular, designado por convenção executiva, que torna inteligível a subscrição do título por
cada um dos sujeitos.

A relação jurídica cartular tem um processo de formação peculiar. No seu lado passivo
encontramos uma pluralidade de obrigados cujos vínculos se constituem em momentos sucessivos e
provêm de fontes diferentes, os vários negócios jurídicos cambiários.

A relação jurídica cambiária apresenta uma formação sucessiva, constituindo-se e


modificando-se por meio de negócios unilaterais que, além de incondicionais, se caracterizam pela
exiguidade de conteúdo. A LULL, salvo no caso da declaração do sacador, limita-se a exigir a
assinatura do declarante e a sugerir a utilização de determinada fórmula, que pode ser substituída
por expressão equivalente. A origem histórica deste formalismo sincopado remonta ao período das
letras de feira, em cujo contexto se generalizou a utilização de simples marcas ou iniciais apostas
sobre as letras para indicar certos factos ou negócios. Existe algum espaço de modelação deixado
à autonomia privada nos diversos negócios cambiários, mais ampla do lado passivo que do lado
ativo e, estas estipulações, assumem a estrutura jurídica de negócios unilaterais, constituem cláusulas
acessórias do respetivo negócio cartular.

1.4.2. S AQUE
O saque é o negócio jurídico unilateral que tem por efeitos a constituição e atribuição do
direito cambiário, bem como a vinculação do sacador à garantia da aceitação e pagamento da
letra. O conteúdo da declaração negocial é fixado no art. 1º do LULL, que estabelece os requisitos
essenciais da letra, que dizem respeito à declaração do sacador e constituem a sua forma,
podendo-se afirmar que o saque cria a letra, isto é, cria o suporte documental formal de uma relação
de crédito dotada de características próprias e sujeitas ao regime especial da LULL.

Além da constituição do direito cambiário, o saque determina a aquisição desse direito por
determinado sujeito, que pode ser o sacador ou terceiro – arts. 3º-I e 1º, nº6 LULL.

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Produz também efeitos obrigacionais por força do art. 9º-I LULL: o sacador, designado por
“obrigado cambiário inicial”, responde pelo pagamento da letra e pela respetiva aceitação.

1.4.3. A CEITE
O aceite é negócio jurídico unilateral dirigido à constituição da obrigação cambiária
principal. É o sacado quem se obriga pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento, logo é ao
aceitante que o portador se deve dirigir para cobrar o crédito cambiário, art. 28º-I LULL.

O conteúdo da declaração do aceitante não é fixado por lei (art. 25º-I LULL), mas é
imprescindível a assinatura do declarante. Segundo o sistema de localização das assinaturas
constituído pela LULL a assinatura do sacado é aposta na parte anterior da letra e, no caso do aceite,
deve acrescer o facto de se tratar da assinatura do sacado, porque o sacado está sempre e
necessariamente identificado (arts. 1º, nº3 e 2 LULL), sob pena de não se constituir o próprio título.

Na lógica da LULL a constituição da obrigação do aceitante corresponde a um momento


ulterior ao do saque e pressupõe a realização de um ato de apresentação do aceite. Contudo, na
prática, o aceite tende a ser a primeira declaração cambiária inscrita no título, ou quando muito
contemporânea do saque.

1.4.4. E NDOSSO
O endosso é um negócio jurídico unilateral cujo efeito fundamental consiste na transmissão
do direito cambiário (art. 14º-I LULL), par com a transferência da propriedade do documento.

Em simultâneo, a lei investe o endossante na obrigação de garantia da aceitação e


pagamento da letra (art. 15º-I LULL). A doutrina refere outra consequência do endosso, o chamado
efeito de legitimação formal do portador da letra. De acordo com o art. 16º-I LULL, o portador da
uma letra é considerado legitimo sempre que justifica o seu direito por uma serie ininterrupta de
endossos. O estatuto de portador legitimo permite ao sujeito beneficiar da aplicação do regime
especial contido no art. 16º-II, suprindo falhas do nexo de derivação do direito cambiário. Por outro
lado, o devedor cambiário que realiza o pagamento ao portador legitimo fica validamente
obrigado, em conformidade com o art. 40º-III LULL. O estatuto de portador legitimo permite ao sujeito
que detém a letra dispor do direito cambiário ou exerce-lo, o que explica que desse estatuto se faça
decorrer uma prestação de titularidade ou de legitimação material.

CAROLINA CUNHA entende que não se possa considerar a legitimação formal um efeito do
endosso enquanto negócio jurídico. Semelhante legitimação surge como um efeito da declaração
escrita no título na sua mera factualidade, corresponda-lhe ou não um negócio de endosso. Se
alguém encontrar uma letra onde um sujeito figura como tomador, pode falsificar a assinatura e a
respetiva declaração de endosso a seu favor e, de seguida, endossar a letra a outra pessoa. A
legitimação formal do portador será, portanto, um efeito da aparência de endosso documentada
no título. O que releva, para apurar uma série ininterrupta, é o conteúdo ostensivo da letra.

O negócio jurídico de endosso transmite, em simultâneo com o direito cambiário, a


propriedade da letra enquanto documento. O artigo 14º-I LULL, que se refere à transmissão de
“direitos”, pode ser interpretado como dizendo respeito a outro direito emergente da letra, o direito
de propriedade sobre o título. Ainda, o artigo 586º CC, sobre a cessão de créditos, consagra uma
obrigação de entrega a cargo do cedente relativa aos documentos e outros meios probatórios do

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crédito. Podemos, portanto, dizer que, como estão em causa documentos dispositivos, se reconhece
uma verdadeira transmissão da propriedade de tais documentos, acompanhando a cessão do
direito documentado, não sendo aceitáveis as teses que dão primazia ao perfil real no processo de
transmissão do título.

Quanto à designação do beneficiário-adquirente do direito, ao lado do endosso nominativo,


a LULL permite o endosso em branco. Neste caso, o portador do título poderá transmiti-lo brevi- manu,
artigo 14º-II, n° 3, por forma a evitar a obrigação de garantia prevista no artigo 15º.

Quanto ao conteúdo da declaração de endosso, a lei não faz exigências especiais,


permitindo que, no caso do endosso em branco, seja reduzido até à mera assinatura do endossante,
desde que com uma localização precisa no documento, artigo 13º-I.

O termo “endosso” é ainda utilizado para designar o endosso por procuração, artigo 18º LULL,
e o endosso em garantia, artigo 19º LULL, que não envolvem a transmissão do direito cartular.
Diferentes são os endossos não-translativos “encobertos”, em que a um endosso translativo, subjaz
ou um mandato para cobrança do crédito cambiário ou a constituição de uma garantia que toma
esse crédito por objeto.

1.4.5. A VAL
A declaração de aval corresponde a um negócio jurídico unilateral através do qual o avalista
assume a obrigação de garantir o pagamento de uma letra, artigo 30º-I LULL. É um negócio que
respeita ao lado passivo da relação jurídica cambiária, produzindo meros efeitos obrigacionais,
característica que o aproxima ao aceite. No entanto, ao contrário do aceite, o avalista não assume
a obrigação principal, mas só uma obrigação de garantia, semelhante às que da lei derivam para
o sacador endossante.

Tanto o sacador como o endossante ingressam no círculo cambiário com um propósito


diverso da assunção de uma garantia. As suas declarações dirigem-se à criação do título, a construir
o direito e a transmiti-lo. As obrigações cambiárias surgem aí como um contrapeso associado por lei
à produção desses efeitos. São um expediente para acautelar a formação sucessiva da obrigação
principal do aceitante e para reforça o valor de circulação do título, enquanto que o avalista assume
voluntária e diretamente uma obrigação de garantia, sem qualquer nexo funcional com a criação
ou transmissão do direito.

O ingresso do avalista no círculo cambiário requer a ligação ao avalizado, pois o artigo 31º-
IV LULL prescreve que o aval deve indicar a pessoa por quem se dá.

Qual o teor de tal ligação?

A doutrina divide-se quando à caracterização do aval: alguns consideram-no como uma


garantia subjetiva, destinada a caucionar o pagamento da letra por parte de um dos seus
subscritores, outros como uma garantia objetiva, destinada a caucionar o pagamento da letra tout
court. CAROLINA CUNHA entende não possa ser considerado uma garantia subjetiva, porque, mesmo
sendo estruturalmente uma garantia pessoal, a LULL não permite tal inferência.

Falha, desde logo, a característica da acessoriedade, que consiste em a obrigação de


garantia ficar subordinada e acompanhar a obrigação garantida. Nos termos do artigo 32º-II a
obrigação do avalista permanece mesmo no caso da obrigação que ele garantiu ser nula, e não

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existe qualquer preceito que autorize o avalista a invocar contra o credor meios de defesa próprios
do avalizado.

Falha, depois, a característica da subsidiariedade, de acordo com a qual se concede ao


garante a faculdade de recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver executado todos os
bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito, artigo 638º n° 1 CC. O credor cambiário na
sequência da recusa de aceite ou pagamento, pode optar por acionar o avalista ou o avalizado,
artigo 47º-II LULL, sem que o primeiro disponha da prerrogativa de exigir a excussão prévia dos bens
do segundo.

O regime uniforme não permite, portanto, afirmar que o avalista garante ou cauciona a
obrigação do avalizado. Cauciona o pagamento da letra, inserindo-se a sua obrigação de garantia
na que singulariza o lado passivo da relação jurídica cambiária.

Isto não equivale a negar uma ligação entre a obrigação cambiária do avalista e a
obrigação cambiária do avalizado, pois aflora em diversos pontos da LULL, como a exigência da
indicação da pessoa por quem o aval se dá, artigo 31º-IV. Identificada a pessoa do avalizado, a sua
posição jurídica vai ser utilizada pela LU no contexto dos artigos 32º-I, 32º-II in fine, e 32º-III.

O artigo 32º-I permite estender subjetiva e objetivamente a obrigação do avalista, ou seja,


permite determinar perante quem responde e por que quantia responde, e a informação é
fornecida pela obrigação cambiária do avalizado.

O artigo posiciona o avalista na cadeia cambiária de regresso, permitindo determinar o


círculo de sujeitos perante os quais responde, e o posicionamento é necessário porque o ingresso do
avalista não ocorre por força da criação ou transmissão do direito. Vai responder perante os mesmos
sujeitos em face dos quais o avalizado é responsável.

Também decorre do artigo que a configuração cambiária da responsabilidade do avalizado


vai servir de molde objetivo à responsabilidade do avalista, pois se trata de assegurar que a
responsabilidade cambiária do avalista não tenha um conteúdo mais gravoso do que corresponde
ao teor literal da obrigação cambiária do avalizado.

A ligação com a obrigação do avalizado pode relevar como causa de insubsistência da


obrigação do avalista, cuja vinculação não se mantém sempre que a obrigação do primeiro seja
nula por vício de forma, artigo 32º-II. Estão em causa as situações em que o simples exame do título
permite concluir que a obrigação do avalizado não se constituiu validamente ou não se constituiu
de todo.

A posição jurídica do avalizado á utilizada pela LU para situar a pretensão do avalista que
paga a letra na ceia dos direitos de regresso, artigo 32º-III. A norma posiciona o avalista na cadeia
dos direitos de regresso em simetria com o ponto de inserção da sua obrigação no círculo cambiário.

1.4.6. E MISSÃO DE LIVRANÇA


A emissão de livrança é o negócio jurídico unilateral através do qual o emitente constitui e
atribui direito cambiário, vinculando-se ao mesmo tempo a cumprir a principal obrigação cambiária,
sendo que o artigo 75º emprega a mesma técnica legislativa utilizada para o saque.

Na livrança, contudo, o ato de emissão constitui em simultâneo o direito cambiário e a


obrigação principal. O emitente vincula-se a pagar uma determinada soma e atribui a outrem o

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correlativo direito de exigir tal pagamento. Está ausente o processo de formação sucessiva da
relação jurídica próprio das letras e produz, portanto, um efeito obrigacional, artigo 78º LULL, ao
mesmo tempo que cria e atribui o direito cambiário, determinando o sujeito que o vai encabeçar,
artigo 75º, n° 5 LULL.

Assinala-se, do ponto de vista económico-jurídico, a aproximação entre a letra e a livrança


levada a cabo pela prática através da combinação entre a frequência estática do saque à ordem
do próprio sacador e o modo através do qual se processa a criação da letra. Por outro lado, é
possível discernir uma marcada tendência para o recurso a livranças, em detrimento das letras.
Podemos concluir que o paradigma cambiário atualmente dominante em Portugal é o que
corresponde à livrança, seja pela assiduidade do recurso direto a esta categoria de título, seja pela
utilização das letras dentro de um quadro funcional coincidente.

Ao mesmo tempo, houve um afastamento do clássico contexto trilateral. Ainda que


estejamos em presença de letras, só residualmente iremos deparar com a tríade sacador/sacado-
aceitante/tomador, a qual se contraiu para dar lugar ao par aceitante/sacador à própria ordem.

1.5. C IRCULAÇÃO E EXERCÍCIO DO DIREITO CAMBIÁRIO

1.5.1. C IRCULAÇÃO E CLÁUSULA NÃO À ORDEM


Afirma-se frequentemente que a relação jurídica cambiária se caracteriza pela
indeterminação do sujeito ativo, individualizando-se o credor cambiário através da posse do título.
CAROLINA CUNHA não concorda com esta posição.

Parte de um pressuposto não demonstrado, que o direito cambiário se adquire como efeito
automático da aquisição de um direito real sobre o documento, mas mesmo admitindo isto, o credor
nunca é desconhecido sendo o que, no momento em causa, se apresentar como proprietário ou
possuidor do titulo.

Mas a questão não se põe nestes termos. O ingresso na titularidade ativa da relação
obrigacional cambiária dá-se por força de um negócio jurídico cambiário dirigido à sua aquisição.
Portanto a relação não apresenta como característica a indeterminação do credor, este pode
mudar com a circulação do título, mas é sempre e em cada momento perfeitamente conhecido e
identificado de forma direta, como decorre dos artigos 11º-I e 1 n° 6 ou 75º, n° 5 e 77, segundo os
quais a cláusula à ordem é um elemento natural das declarações cambiárias.

O seu significado jurídico consiste essencialmente em autorizar o credor originário a colocar


um outro sujeito no seu lugar. A vinculação decorrente da subscrição do título já é assumida no
pressuposto de que poderá ter de vir a realizar o pagamento não ao sujeito que de momento ocupa
a posição de credor cambiário, mas sim “à sua ordem”. Os obrigados devem estar cientes dos riscos
que a subscrição do título os expõe em termos de perda de exceções pessoais. Para alertar os
subscritores, o documento deve conter a palavra letra.

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1.5.2. A SOLIDARIEDADE PASSIVA SUI GENERIS : VENCIMENTO E PAGAMENTO
A relação jurídica cambiária caracteriza-se pelo facto de termos uma tendencial pluralidade
de devedores. Para credor cambiário poder exercer o direito cartular contra os obrigados de
garantia, terá de comprovar a verificação do risco garantido, ou seja, a recusa do aceitante em
pagar a letra no vencimento através de um ato notarial forma o protesto, artigos 7º, n° 1, al. c), 14º e
119º a 130º Código do Notariado e artigos 44º-I e IV LULL.

Caso não seja lavrado protesto dentro do prazo fixado, o portador da letra perde os seus
direitos de ação contra todos os obrigados cambiários de garantia, restando-lhe unicamente o
direito de exigir o cumprimento pelo aceitante, artigo 53º LULL.

Na fase que podemos chamar das “relações externas”, o artigo 47º LULL estabelece a
responsabilidade solidária de sacadores, aceitantes, endossantes e avalistas, e deles o portador
pode reclamar, além da quantia inscrita no título, juros de mora e reembolso das despesas de
protesto e afins, artigo 48º LULL.

1.5.3. A SOLIDARIEDADE PASSIVA SUI GENERIS : DIREITO DE REGRESSO


Surgem diferenças do regime-regra na fase das relações internas, no que diz respeito ao
exercício do direito de regresso do obrigado solvens sobre os restantes codevedores.

Segundo a lógica cambiária, quem deve suportar em definitivo o pagamento da quantia


inscrita no título é o aceitante da letra ou o emitente da livrança, na sua qualidade de obrigado
principal. Portanto, ou foi o aceitante/emitente quem pagou ao credor, facto que desencadeou a
extinção satisfatória de toda a relação jurídica cambiária, desobrigando todos os codevedores, ou
foi um dos garantes que efetuou o pagamento ao credor, dando início à complexa fase de
liquidação da relação cambiária.

Esta fase põe em movimento um sistema compartimentado e sequencial, em cujo interior a


responsabilidade, concretizada através do direito de regresso cambiário, se desloca num sentido
inverso ao percorrido pela circulação do título. A relação de liquidação processa-se unicamente
entre o solvens e os seus garantes, artigo 49º-I LULL, tipicamente, os obrigados anteriores.

Ao mesmo tempo, o pagamento efetuado por um dos obrigados de garantia ao credor desonera
todos os obrigados posteriores, consubstanciando a rasura dos endossos subsequentes, permitida
pelo artigo 50º-II LULL, a tradução cartular dessa libertação. A LU assinala ao pagamento efetuado
ao credor um efeito liberatório sobre a vinculação interna de obrigados diferentes do solvens.

1.6. AS OUTRAS RELAÇÕES JURÍDICAS CONVOCADAS PELO TÍTULO

1.6.1. A CONVENÇÃO EXECUTIVA : O “ PORQUÊ ” DA SUBSCRIÇÃO E O EXERCÍCIO DO DIREITO


CAMBIÁRIO INTER PARTES
Os negócios cambiários se esgotam num puro efeito de direito, seja a transmissão ou criação
do direito cambiário seja a assunção da obrigação, seja uma combinação de ambos.

Configuram um desvio ao princípio da necessidade de indicação da causa, e conteúdo


negocial não a manifesta e, não obstante, a ordem jurídica sanciona a produção do efeito

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pretendido. Mas a subscrição desempenha uma determinada função económico-social, possui uma
causa, ainda que a sua localização não deva procurar-se no imediato conteúdo da declaração
unilateral emitida.

É fora do título que devemos procurar a função económico-social desempenhada por cada
negócio jurídico cambiário, e essa causa implica necessariamente uma relação, uma bilateralidade:
constitui-se ou transmite-se o direito em benefício de alguém, assume-se a obrigação em benefício
de alguém.

Existe sempre um pacto ou um acordo extra-cartular, expresso ou tácito, envolvendo o sujeito


que emite a declaração cambiária e outros sujeitos, pacto que explica a subscrição do título e que
é designado por convenção executiva.

1.6.2. A CONVENÇÃO EXECUTIVA E A RELAÇÃO FUNDAMENTAL


A causa vertida na convenção executiva traduz com frequência a escolha da função
desempenhada pelo negócio cambiário em face de uma outra relação jurídica, que intercede entre
os mesmos sujeitos da convenção executiva e é conhecida pelo nome de relação fundamental.
Leva a doutrina a distinguir entre a convenção executiva enquanto causa próxima e a relação
fundamental enquanto causa remota do negócio cambiário.

O negócio cambiário surge como complementar ou instrumental em face de uma relação


jurídica ad hoc entre os mesmos sujeitos, relação suscetível de subsistir e se desenrolar desligada de
qualquer letra ou livrança. É esse nexo de instrumentalidade que vai ar conteúdo à convenção
executiva, aquela que intercede entre os sujeitos que são partes na relação fundamental, podendo
integrar o próprio negócio fundamental ou ser objeto de um acordo posterior.

Porém, poucas vezes as partes celebram de forma expressa a convenção executiva, e


quando o fazem é frequente que o acordo celebrado se venha a revelar lacunoso quando a
aspetos essenciais.

Com muita frequência a convenção executiva corresponde a um enunciado tácito quanto


à concreta função dos negócios cambiários a que respeita e lacunoso quanto ao programa de
coordenação entre as relações cambiárias e fundamental. A função poderá ser determinada
através de inferências contextuais e aplicando o artigo 217º CC.

Às vezes a obrigação cambiária surge como executiva da obrigação fundamental: ambas


buscam a satisfação do mesmo interesse económico do credor. Dado que tal satisfação só deve
ocorrer uma vez, a relação entre ambas a obrigação é necessariamente de alternância. Cabe às
partes estabelecer o programa de coordenação na convenção executiva, algo que raramente
fazem, tornando-se por isso delicada a tarefa da interpretação e integração da convenção, nos
termos dos artigos 236º e 239º CC.

1.6.3. A CONVENÇÃO EXECUTIVA NA AUSÊNCIA DE RELAÇÃO FUNDAMENTAL


Encontramos um grupo significativo de casos nos quais a função económico-social do
negócio cambiário não está ao serviço de uma relação jurídica diferente e separada entre os
mesmos sujeitos, mas diz respeito ao aproveitamento de utilidades inerentes ao instituto jurídico das
letras e livranças.

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Pode nem sequer existir uma relação fundamental, só existe uma convenção executiva, que
vai estabelecer de que modo e em que termos tencionam as partes aproveitar jurídico-
economicamente as tais utilidades inerentes às subscrições cambiárias. Essas utilidades reportam-se
ao reforço da tutela do crédito pela adjunção de novos devedores, é o que sucede no aval e nas
subscrições de favor. Como o aval não é omisso quanto à causa, artigo 30º-I LULL, não se torna
necessário que a convenção executiva estabelece a sua função económico-social. Nas subscrições
de favor a função económico-social de garantia está estruturalmente separada do negócio
cambiário e localiza-se na convenção executiva, a convenção de favor. Não existe uma relação
fundamental ad hoc que sirva como “causa remota”, basta a “causa próxima” plasmada na
convenção de favor.

Noutro grupo de casos encontramos as situações de endosso para desconto bancário: aqui
existe uma relação fundamental, mas a sua fisionomia vai ser modelada sobre a relação jurídica
cambiária e não vice-versa. Não é ad hoc no sentido em que não subsiste independentemente da
existência da letra, é gerada por causa do endosso da letra.

2. ALGUM REGIME

2.1. LEGITIMAÇÃO ATIVA E PASSIVA: OS ARTIGOS 16º E 40º DO LULL

2.1.1. A S FUNÇÕES DO DOCUMENTO CAMBIÁRIO


As relações cambiárias estão representadas num documento particular, que possui uma
imediata função probatória, artigo 376º CC.

Ainda, a redação deste documento é exigida por lei para a válida constituição dos vínculos
jurídicos cambiários, artigos 1º, 2º, 75º e 76º LULL, o que significa que os negócios jurídicos cambiários
são formais. Portanto, o documento escrito tem igualmente uma função constitutiva no que diz
respeito aos vínculos jurídicos cuja criação torna possível.

O que denota a importância do documento é a sua função dispositiva: a ligação entre o


documento e o direito reveste um carácter duradouro já que, mesmo ultrapassado o momento
genético, aquele concreto documento permanece fundamental para o exercício e transmissão do
direito cartular nele representado.

No que respeita ao exercício do direito, é requerida, artigo 38º-I LULL, a apresentação física
da letra no momento do pagamento ao sacado-aceitante, para que ele possa proceder à
verificação exigida pelo artigo 40º-III LULL.

Depois de pagar o sacado-aceitante tem o direito de exigir que a letra lhe seja entregue,
artigo 39º-I LU, faculdade de que goza qualquer dos coobrigados que pague a letra, artigo 50º-I LU.
Este poder visa, consoante o estatuto cambiário do solvens, proporcionar-lhe a segurança de lhe
não voltar a ser exigido o pagamento e o exercício do direito de regresso.

Também a transmissão do direito por via de endosso tem de constar do título, tornando a
respetiva exibição e entrega igualmente essencial à confirmação da titularidade do direito pelo
endossante e à possibilidade da sua subsequente cobrança.

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Esta ligação permanente entre o direito e o papel que o documenta exprime apenas um
regime jurídico que fixa requisito de legitimação ativa e passiva.

2.1.2. L EGITIMAÇÃO ATIVA E PASSIVA : SIGNIFICADO E FUNDAMENTO LEGAL


O conceito de legitimação ativa traduz a habilitação para o exercício do direito cartular, que
pertence ao portador que justifica a sua posição cambiária por uma série ininterrupta de endossos,
artigo 16º-I LU.

O conceito de legitimação passiva exprime o carácter liberatório assinalado ao


cumprimento da dívida cambiária. Fica validamente desobrigado o devedor que paga ao
legitimado ativo no vencimento, artigo 40º-II LU.

O efeito prático imediato destas normas é o de dispensar o portador de provar e o devedor


de averiguar a titularidade do direito cambiário, sendo exceções à regra pela qual a titularidade do
direito coincide com a legitimidade para o seu exercício, e à regra de que a prestação deve ser
feita ao credor sob pena de não extinguir a obrigação, pois o portador legítimo não é
inexoravelmente o titular do direito cartular, situação análoga à do artigo 583º, n° 2 CC. O que
distingue o mecanismo cambiário da legitimação passiva é uma ideia de economia de meios: um
único e mesmo documento exibe um registo sequencial de transmissões.

2.1.3. A POSSE NÃO VALE TÍTULO


Em matéria de letras e livranças não é a simples apresentação do documento que legitima
o portador-possuidor a exercitar o direito, ou que confere carácter liberatório à prestação que o
devedor realize. A legitimação é dada pela regular sucessão de endossos, o documento serve de
mero veículo ou suporte destinado evidenciar e comunicar a continuidade formal do nexo de
derivação do crédito cartular.

Segundo CAROLINA CUNHA, o decisivo não é a posse do título, meramente instrumental e


com função comunicativa, é a legitimação formal que o título ostenta. Contudo, a doutrina
dominante inclina-se para condensar a legitimação na posse do documento.

No caso de eventual dissociação entre a posse e a legitimação formal que consta do título,
o fator de legitimação formal documentada prevalece sobre o fator posse, o que permite demonstrar
onde se situa o centro de gravidade: não é correto dizer que a legitimação decorre da posse do
título, ela resulta das declarações apostas no título, sendo a exibição o modo de as dar a conhecer
ao interessado.

Esta afirmação só não se aplica ao caso especial da letra ou livrança que circula endossada
em branco, isto porque uma tal circulação opera através de transmissões não documentadas,
consubstanciadas na simples traditio do papel no quadro do regime dos títulos ao portador.

2.1.4. O ARTIGO 16 º -II E O “ DESAPOSSAMENTO ”


A circulação do direito cambiário pode conhecer uma quebra decorrente da falta ou
patologia de um dos negócios transmissivos. O artigo 16º-II permite suprir essa quebra, atribuindo o
direito cambiário a um terceiro, verificadas determinadas condições.

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Constitui uma exceção à regra nemo plus iuris, com a particularidade de dizer respeito à
circulação de um direito de crédito e não de direitos reais.

Devem estar verificados dois requisitos: que o título ostente uma “série ininterrupta de
endossos”, ou seja, um registo sequencial das transmissões do direito cambiário, desembocando no
terceiro; e que este não haja adquirido de má-fé ou cometendo uma falta grave, respeitando este
requisito ao estado subjetivo do terceiro no momento em que adquire a letra, reportado ao
conhecimento ou cognoscibilidade da irregularidade anterior.

Basta ao portador demandado para devolver a letra exibir a cadeia de endossos exarada
no título, não tendo que fazer qualquer prova da ausência da má-fé. É ao desapossado que que
cabe demonstrar essa má-fé reportada ao momento da aquisição da letra. Na ausência daquela
cadeia de nada aproveita ao portador um eventual estado psicológico de boa-fé.

O terceiro é protegido porque e na medida em que se confiou numa aparência de


titularidade. As expectativas e a confiança tuteladas pelo artigo 16º-II são as que se fundam
objetivamente na cadeia de declarações exaradas no título, tuteladas através de uma presunção
ilidível, sendo o artigo 16º-II in fine uma inversão do onus probandi. Apesar de não ter efetivamente
confiado na aparência da titularidade documentada na letra, o terceiro pode ainda assim vir a
beneficiar da atribuição do direito cambiário a non domino, basta que o desapossado não consiga
provar que a letra foi adquirida de má-fé ou cometendo uma falta grave.

2.1.5. R EIVINDICAÇÃO E REFORMA


A LU abstém-se de disciplinar os aspetos ligados à materialidade do documento. O papel é
uma res corpórea, sujeita ao risco de se perder, de se deteriorar, de ser destruída, furtada ou
roubada. O sistema lida com a concretização deste risco em duas frentes.

Da conjugação do artigo 484º CCom. com os artigos 1069º a 1072º CPC podia o proprietário
lançar mão de um processo judicial especial de reforma de documentos, de modo a obter um “novo
título”, mas este processo foi eliminado com a Reforma do CPC de 2013, pelo que a reforma de letras
e livranças seguirá agora os termos do processo comum.

Contudo, o processo judicial de reforma não é adequado aos casos em que o proprietário
do título extraviado conhece o seu paradeiro atual, isto é, sabe quem o tem em seu poder. Ai deverá
intentar uma ação de reivindicação contra esse sujeito, artigo 1311º CC.

Estes dois regimes incidem sobre o documento na sua materialidade, reconhecendo-se um


“direito sobre o papel” que deriva do regime jurídico que o torna imprescindível e quase- infungível
no plano do exercício e transmissão do direito de crédito. Por quase infungibilidade entende-se a
genérica impossibilidade de o substituir ou de fazer valer em seu lugar uma cópia, exceto nos casos
previstos pelo artigo 51º LU, o que conduz à necessidade de autónoma tutela jurídica do valor
económico do papel, através do instrumento jurídico do direito de propriedade, não bastando
expedientes mais brandos como os previstos nos artigos 575º e 576º CC para a cessão de créditos.

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2.2. O ARTIGO 17º LU E A INOPONIBILIDADE DE EXCEÇÃO AO PORTADOR MEDIATO

2.2.1. R ELAÇÕES IMEDIATAS E RELAÇÕES MEDIATAS


A abstração é uma técnica jurídica: opera uma cisão entre os efeitos jurídicos e a respetiva
causa, pois os efeitos jurídicos produzem-se com abstração da sua causa e, portanto, com abstração
das vicissitudes que possam afetar essa causa. No sistema jurídico alemão a abstração corresponde
a uma opção legislativa de fundo aplicável a um conjunto de situações. No sistema jurídico
português não encontramos qualquer princípio da abstração e, quando o termo é usado em
algumas situações, nem parece ser adequado.

O regime da LU encerra uma dualidade incontornável. Por um lado, as exceções ditas causais
fazem parte das exceções fundadas sobre relações pessoais, inoponíveis a um terceiro portador da
letra, nos termos da regra fundamental consagrada pelo artigo 17º.

A ratio do preceito prende-se com a tutela da circulação do direito cambiário, cuja


segurança se pretende reforçar com a impossibilidade de o terceiro adquirente ver o exercício do
seu direito rechaçado mediante a invocação de vicissitudes emergentes de relações jurídicas que
lhe são estranhas. Por outro lado, a todo os ordenamentos jurídicos subjaz também ideia de que seria
excessivo e injustificado impedir semelhantes exceções causais de relevar inter partes, isto é, sempre
que o credor e o devedor cambiário que em concreto se defrontam sejam, simultaneamente, partes
na mesma convenção executiva.

Admite-se uma incontornável dualidade na posição defensiva do devedor cambiário,


consoante se encontre ou não ligado por relações pessoais ao credor cambiário que
concretamente o demanda. No plano terminológico, fala-se de “relações imediatas” e de “relações
mediatas”, coincidindo a ideia de imediatismo não com a contiguidade na sequência cambiária
mas com a participação numa mesma convenção executiva.

Como se explica e fundamenta esta dualidade na posição defensiva do devedor cambiário?

Segundo a doutrina tradicional fundamenta-se na abstração das obrigações cambiárias e


explica-se através de um mecanismo de interruptor on/off: a abstração só vale no domínio das
relações mediatas e “desliga-se” sempre que nos encontramos em presença de relações imediatas.

Segundo CAROLINA CUNHA, isso não é abstração no sentido rigoroso do termo, e não
precisamos de cunhar uma categoria de “abstração intermitente” para compreender algo que
decorre das regras gerais das obrigações, isto é, do princípio res inter alios acta.

2.2.2. I NOPONIBILIDADE DE EXCEÇÕES NAS RELAÇÕES MEDIATAS : PRINCÍPIO RES INTER ALIOS ACTA
O princípio res inter alios acta aliis neque nocere neque prodesse potest é o núcleo
fundamental da inoponibilidade das exceções causais ao terceiro credor cambiário, é a ideia de
que um terceiro não deve ser nem prejudicado nem beneficiado por contingências de vínculos
obrigacionais em que não tomou parte.

A relatividade é apontada como característica típica dos direitos de crédito pela


generalidade da doutrina, quer nos sentido estrutural de o direito de crédito implicar uma relação
entre dois sujeitos, quer no sentido de a sua eficácia se desenvolver exclusivamente perante o

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devedor: só a ele pode ser oposto e só por ele pode ser violado. A relação obrigacional é desprovida
de eficácia externa, é irrelevante para terceiros.

É este princípio res inter alios acta que é reiterado pelo artigo 17º LU. Para estimular a
circulação dos títulos há que conferir ao adquirente do direito cambiário a segurança que decorre
da desnecessidade de averiguar relações pessoais alheias.

O artigo 585º CC permite que o devedor cedido oponha ao cessionário todos os meios de defesa
que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com a única ressalva dos que provenham de facto
posterior ao conhecimento da cessão.

Estamos perante um afastamento do princípio res inter alios acta: o cessionário acaba
prejudicado pelos efeitos decorrentes de uma relação obrigacional alheia. A ratio apontada a esta
solução reside na tutela do devedor-cedido: não seria justo que fosse colocado em pior situação
pela mudança operada, sem a sua intervenção ou consentimento, na titularidade ativa do vínculo.

Por que motivo não merece o devedor cambiário proteção idêntica à do devedor comum, já que
também a ele não é dado intervir ou consentir na concreta transmissão do crédito cartular?

O que justifica a radical diferença de estatutos entre o devedor-cedido na cessão de créditos


e na transmissão do direito cambiário consiste na chamada “cláusula à ordem”. Decorre dos artigos
11º-II e 1º n° 6 LU que a cláusula à ordem é um elemento naturalmente integrante das declarações
cambiárias.

O seu significado jurídico condiste em autorizar o credor originário a colocar outro sujeito no
seu lugar. A vinculação decorrente da subscrição do título cambiário já é assumida no pressuposto
de que o subscritor poderá vir a realizar o pagamento não ao sujeito que de momento ocupa a
posição de credor cambiário, mas sim à sua ordem, com as consequências que o regime da
transmissão por endosso acarreta no campo da inoponibilidade de exceções.

Assim se compreende a exigência legal de que o documento contenha a palavra letra


inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a respetiva redação:
pretende-se alertar o subscritor para a exposição ao risco inerente à circulação do título cambiário.

2.2.3. O PONIBILIDADE DE EXCEÇÕES NAS RELAÇÕES MEDIATAS : LICITUDE DA RECUSA DE


CUMPRIMENTO

Enquadramento geral do problema

As vicissitudes que afetam a relação cambiária não possuem todas o mesmo calibre, quer no
que toca às consequências que geram, quer no que toca à possibilidade de serem utilizadas como
obstáculo à pretensão de cumprimento. A determinação daquelas que o devedor cambiário pode
opor com sucesso à execução movida pelo credor imediato deverá ser levada a cabo partindo da
convenção executiva e dependerá dos contornos da situação concreta.

A simplificação procedimental inerente ao exercício do direito cambiário confere ao credor


a faculdade de exigir o pagamento de uma quantia em dinheiro com a simples apresentação do
título, nada mais tem que alegar ou provar para obter a satisfação do seu direito. Essa satisfação
pode ver-se impedida pelo êxito da oposição do devedor, mas o credor cambiário beneficia da

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vantagem da inversão do ónus da prova, já que é ao devedor que cabe alegar e provar os facto
respeitantes à causa.

Esta simplificação combina-se com o estatuto de título executivo conferido às letras e


livranças pelo artigo 703º n° 1 al. c) CPC, pois servem de fundamento à instauração direta de um
processo executivo, sem precedência de processo declaratório. A invocação de exceções causais
pelo devedor terá de se acomodar no quadro processual traçado para a oposição à execução
mediante embargos, artigos 728º e seguintes CPC.

Licitude da recusa de cumprimento da obrigação cambiária

Segundo CAROLINA CUNHA deve ser reconhecido ao devedor demandado o poder


potestativo de negar o cumprimento da obrigação cambiária, com fundamento numa exceção de
direito material atribuída pela convenção executiva. Esta figura corresponde à “situação jurídica
pela qual a pessoa adstrita a um dever pode, licitamente, recusar a efetivação da prestação
correspondente”. A sua particularidade é, no caso, de a sua fonte não residir na lei, mas sim no
acordo das partes vertido na convenção executiva.

Havendo uma cisão entre o enunciado unilateral produtor do efeito jurídico (o negócio
cambiário) e a bilateralidade que o torna materialmente inteligível enquanto lhe assinala uma
função económico-social (a convenção executiva), as contrariedades surgidas ao nível da relação
fundamental não afetam “automaticamente” a existência ou a validade do direito cambiário, pois
este constituiu-se como um vínculo diferente e separado.

Portanto, a faculdade de o devedor recusar a prestação ao abrigo de uma exceção de


direito material caracteriza-se por deixar incólume o direito ao qual é oposta. Não se questiona a
validade ou eficácia da respetiva constituição, nem tão pouco se faz valer a posterior a verificação
de um qualquer evento extintivo. O direito apenas fica suspenso, através de um efeito contrário.

Sendo as letras e livranças títulos executivos, o devedor deverá deduzir a exceção de direito
material de que dispõe no âmbito da oposição à execução que lhe for movida, carreando para o
processo as vicissitudes que acometem a relação fundamental e demonstrando que, à luz da
interpretação da convenção executiva, tais factos o legitimam a recusar licitamente o cumprimento
da pretensão cambiária, extinguindo a execução, artigo 732º, n° 4 CPC.

2.2.4. O UTRAS MODALIDADES DE EXCEÇÕES FUNDADORAS SOBRE RELAÇÕES PESSOAIS PREVISTAS NO


ARTIGO 17 º
O artigo 17º LU determina a inoponibilidade das vicissitudes emergentes de relações jurídicas
que envolvem o devedor demandado, mas não o credor demandante: as exceções fundadas sobre
relações pessoais dele com outros sujeitos.

Além das exceções causais, que decorrem da relação fundamental, podemos ter duas outras
modalidades.

As exceções que decorrem de convenções sobre o exercício do direito cartular dizem respeito aos
impedimentos emergentes de convenções ad hoc sobre o exercício do direito cambiário. Negóócios
como o pactum de non petendo regulam o modo de exercício do direito cartular entre os dois
concretos sujeitos que os celebram, sempre que venham defrontar-se nas vestes de credor e

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devedor cambiários. Os obstáculos que tais negócios coloquem só poderão ser levantados quando
o direito seja exercido por aquele credor contra aquele devedor.

As exceções que decorrem de relações obrigacionais estranhas ao título, podem dizer-se


fruto de um acaso: acontecem quando, num plano alheio à relação jurídica cartular, o devedor
cambiário é credor do sujeito que concretamente o demanda. Em tal hipótese, na medida em que
lhe seja permitido lançar mão do instituto da compensação, o devedor pode eximir-se a
desembolsar a quantia objeto da prestação cambiária, mas apenas se o credor cambiário que lhe
exige o pagamento coincidir com o sujeito que lhe deve.

Embora o artigo 17º consagre tão-só a inoponibilidade destas exceções a terceiro, a norma
também consagra, por argumento a contrario, a inoponibilidade das mesmas exceções pessoais
entre os sujeitos dessa relação jurídica, solução em conformidade com os princípios gerais de direito
das obrigações, em particular com a regra pacta sunt servanda.

2.2.5. A PARTE FINAL DO ARTIGO 17 º LU COMO CONCRETIZAÇÃO DA CLÁUSULA DOS BONS


COSTUMES
O artigo 17º permite a oposição de toda e qualquer exceção pessoal a um portador mediato
que ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Trata-se de uma concretização particular da proibição do exercício inadmissível de posições


jurídicas alicerçada na cláusula geral dos bons costumes, suplantando a imunidade que a esse
exercício confere o princípio res inter alios acta vertido no primeiro segmento da norma.

A imunidade conferida pelo artigo 17º não deriva de uma boa fé subjetiva que o terceiro
credor deva exibir, mas automaticamente do funcionamento do princípio res inter alios acta. Daí que
o portador nada tenha de demonstrar quanto às circunstâncias que rodearam a sua aquisição para
beneficiar de uma automática imunidade às exceções pessoais de que o devedor demandado
disponha.

A parte final do artigo 17º justifica-se por ser conhecida a necessidade de um mecanismo
corretor de situações extremas, que impliquem a violação dos bons costumes, e que poderiam ficar
sem resposta adequada sob a cobertura formal do princípio res inter alios acta, ao contrário das
ressalvas dos artigos 10º, 16º, e 40º, que supõem a boa fé subjetiva.

A diferença reside no facto de o artigo 17º não remeter para a violação de deveres de
conduta no quadro de relacionamentos intersubjetivos, mas sim para a imposição de um decisivo
limite externo à atuação da autonomia privada.

2.3. O ARTIGO 10º E A SUBSCRIÇÃO EM BRANCO


O artigo 10º LU aplica-se aos casos em que uma letra incompleta no momento de ser passada
haja, entretanto, sido completada e que se encontre nas mãos de um portador. Soluciona a
desconformidade entre o preenchimento da letra e o que designa por “acordos realizados”,
dirimindo o conflito de interesses latente: o embate entre o interesse do sujeito que subscreveu a letra
“incompleta” e o interesse do sujeito que é portador da letra “completada”.

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2.3.1. C ONTEXTO PRÁTICO DA UTILIZAÇÃO DE TÍTULOS EM BRANCO
Num contexto prático-teleológico, a emissão voluntária de um título incompleto explica-se
como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe normalmente uma
relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido, ou no
seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito.

Ocorre no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente


para fazer face ao espectro do incumprimento. Determinante do recurso à letra em branco é o
carácter ilíquido, futuro e incerto da dívida (por exemplo, contratos de locação financeira ou de
mútuos) O acordo de preenchimento apresenta-se geralmente como uma cláusula do contrato
escrito e o incumprimento do cliente são os factos que tipicamente desencadeia o acionamento do
título.

Estão presentes dois fatores: a incerteza, derivada do carácter eventual e quantitativamente


indeterminado da responsabilidade extracambiária do subscritor, e a garantia que para o respetivo
credor apresenta a posse do título em branco. Garantia no sentido amplo de reforço ou segurança
da posição creditória, pelo acesso imediato que faculta à via executiva e porque proporciona ao
credor a segurança de ficar desde logo com o título em seu poder. Chegado o momento, completá-
lo-á segundo o convencionado, mas sem dependência de qualquer nova manifestação de
vontade do devedor.

2.3.2. C ONFLITO E SOLUÇÃO DO ARTIGO 10 º LULL

O artigo 10º visa resolver um conflito que se equaciona em termos simples: o portador de um
título completo pretende exercer o direito nele documentado; o obrigado cambiário demandado
opõe-se, sustentando que o título foi por si subscrito em estado incompleto e que o preenchimento
não correspondeu à vontade que então manifestou.

O interesse do subscritor da letra ou livrança em branco aponta para que a declaração


cartular valha em conformidade com a vontade por si manifestada. Interessa-lhe que os elementos
inseridos por outrem coincidam com os que indicou querer. É-lhe irrelevante que o sujeito que
preenche o título esteja a atuar em obediência a instruções suas, o seu interesse será igualmente
servido por uma inscrição, mesmo aleatória, que coincida com a sua vontade.

Quanto ao modo como o subscritor se expôs ao risco de ver o seu interesse frustrado, quando
existe uma destinação ao preenchimento por outrem, a exposição ao risco deu-se de forma
deliberada. Quando é emitido incompleto por lapso, a exposição ao risco foi desencadeada por
uma atuação negligente e, portanto, culposa em sentido técnico. Nestes casos o subscritor tem a
possibilidade de afastar o risco, o que permite afirmar que a sua criação lhe é imputável.

Quanto ao portador do título completo, o seu interesse aponta no sentido de que o título
valha conforme foi completado, mas a dignidade de tutela jurídica do seu interesse apresenta
intensidades diversas.

O título valerá conforme foi completado quando o sujeito o adquiriu já preenchido e


desconhecia efetivamente a sua “história”, a sua incompletude, sacrificando-se neste caso o
interesse do subscritor.

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Caso o portador conheça a efetiva vontade do subscritor e, apesar disso, adquiriu o título preenchido
ou adquiriu em branco completando-o incorretamente, a sua atuação é censurável e não merece
proteção.

2.3.3. P REENCHIMENTO ABUSIVO : ÓNUS DA PROVA E CONSEQUÊNCIAS


Quem voluntariamente emite uma letra incompleta suporta o risco inerente a essa sua
atuação, o risco da inserção de um conteúdo não coincidente com a sua vontade, a menos que se
verifique um particular desmerecimento na posição do portador-adquirente por a sua atuação ser
passível de um juízo de censura ético-jurídica.

O portador limitar-se-á a exercer o direito tal como está documentado no título: o ónus da
prova recai sobre o subscritor em branco. É ele quem terá de provar que a letra ou livrança foi
preenchida “contrariamente” à vontade por si manifestada e, depois, para que essa
desconformidade seja motivo de oposição ao portador, terá igualmente de provar que este adquiriu
a letra de má-fé ou cometendo falta grave.

Só demonstrando a desconformidade do conteúdo e a má-fé do portador o subscritor


conseguirá reconfigurar a pretensão correspondente ao conteúdo inscrito no título, uma vez que a
formulação do artigo 10º determina que, de outro modo, não pode a inobservância da vontade
manifestada ser motivo de oposição ao portador.

É unânime na doutrina a afirmação de que o ónus da prova cabe ao devedor demandado.


São admissíveis todos os meios de prova, incluindo a prova testemunhal por presunções. Não se
aplica a conjugação do artigo 394º CC com o artigo 351º CC, pois aqui não está em causa um
ataque ao valor probatório do documento, mas sim a questão preliminar da discrepância entre a
própria declaração e a vontade do subscritor.

Existe possibilidade de tutela indemnizatória do subscritor que consegue provar a


desconformidade do preenchimento com a vontade por si manifestada, mas não a má-fé ou falta
grave do portador e se vê, por isso, constrangido a pagar a letra ou livrança nos termos em que foi
completada.

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