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entendê-la como um conjunto concatenado de meios materiais e humanos, dotados de

uma especial organização e de uma direção, de modo a desenvolver uma atividade


segundo regras de racionalidade económica.

Assim, os seus elementos poderiam agrupar-se:

a) Num elemento humano – ficam abrangidos quantos colaborem na empresa.


b) Num elemento material – fala-se em coisas corpóreas, móveis ou imóveis, seja
qual for a fórmula do seu aproveitamento e de bens incorpóreos.
c) Numa organização – todos os elementos não estão meramente reunidos ou
justapostos; eles apresentam-se numa articulação consequente, que permite
depois desenvolver uma atividade.
d) Numa direção – trata-se do fator aglutinador dos meios envolvidos e da própria
organização.

O Direito português, através de inúmeras leis, reporta-se a “empresa” em duas


aceções:

1) Subjetiva, quando refere os direitos, os deveres ou os objetivos das empresas;


2) Objetiva, quando dirige a certas pessoas regras de atuação para com as empresas.

O Estabelecimento

Noção e elementos do estabelecimento

Aceções e noção geral

A empresa surge como um conceito-quadro de grande extensão e particular


versatilidade. Torna-se pouco adequada para transmitir regimes jurídicos concretos.

Compreende-se, assim que o Direito português tenha elaborado, a seu lado, um


outro conceito particularmente apto para traduzir o objeto unitário de determinados
negócios: o de estabelecimento.

No Código Comercial, o estabelecimento surge em 2 aceções:

o Como armazém ou loja: art. 95º/2 e 263º;


o Como conjunto de coisas materiais ou corpóreas: art. 425º.

MENEZES CORDEIRO: o estabelecimento traduz um conjunto de coisas corpóreas


e incorpóreas devidamente organizado para a prática do comércio. Digamos que
corresponde grosso modo a uma ideia de empresa, sem o elemento humano e de
direção.
COUTINHO DE ABREU: não distingue entre empresa e estabelecimento.

Elementos do estabelecimento

O estabelecimento comercial abrange elementos bastante variados. Em comum


têm apenas o facto de se encontrarem interligados para a prática do comércio.

Pode distinguir-se, no estabelecimento o ativo e o passivo:

o O ativo: conjunto de direitos e outras posições equiparáveis, afetas ao exercício


do comércio. No respeitante ao ativo, o estabelecimento abrange:
→ Coisas corpóreas: ficam abarcados os direitos relativos a imóveis,
particularmente os direitos reais de gozo, como a propriedade ou o
usufruto e os direitos pessoais de gozo, como o direito ao arrendamento.
Seguem-se os direitos relativos aos móveis: mercadorias, matérias-
primas, maquinaria, mobília e instrumentos de trabalho ou auxiliares,
documentos, ficheiros, títulos de crédito… Ficam, pois, abrangidas
quaisquer coisas que, estando no comércio, sejam, pelo comerciante,
afetas a esse exercício.
→ Coisas incorpóreas: obras literárias ou artísticas que se incluam no
estabelecimento, os inventos (patentes) e as marcas; direito à firma ou
nome do estabelecimento. A nossa doutrina, desde meados do séc. XX,
põe em relevo esta dimensão do estabelecimento. E bem: aquando da
negociação de um estabelecimento, é evidente que os referidos fatores
incorpóreos poderão ser determinantes para encontrar um valor. Há
estabelecimentos que valem, sobretudo, pelo nome que tenham ou pelas
marcas ou patentes que acarretem. Há que incluir também aqui os
direitos a prestações provenientes de posições contratuais. Assim sucede
desde logo com os contratos de trabalho; seguem-se-lhes outros
contratos de prestação de serviço, contratos com fornecedores, contratos
de distribuição, de publicidade, de concessão comercial, de agência, de
franquia e mesmo contratos relativos a bens vitais: água, eletricidade etc.
→ Aviamento e clientela:
• Aviamento: corresponde grosso modo à mais-valia que o
estabelecimento representa em relação à soma dos elementos
que o componham, isoladamente tomados: ele traduziria, deste
modo, a aptidão funcional e produtiva do estabelecimento;
• Clientela: conjunto, real ou potencial, de pessoas dispostas a
contratar com o estabelecimento considerado, nele adquirindo
bens ou serviços
O aviamento e a clientela não constituem, como tais, objeto de direitos subjetivos.
Eles correspondem, não obstante, a posições ativas e são objeto de regras de tutela.
Ambos estes fatores influenciam- ou podem influenciar- o valor do estabelecimento e,
sendo este transmitido, vão com ele.

o O passivo: corresponde às adstrições ou obrigações contraídas pelo comerciante,


por esse mesmo exercício. À partida, o passivo inclui-se no estabelecimento
embora seja frequente, em negócios de transmissão, limitá-los ao ativo.

O critério da sua inclusão

Perante o enunciado dos elementos acima efetuado, pergunta-se qual o critério


da sua inclusão. O critério do estabelecimento assenta em 2 ordens de fatores:

o Um fator funcional: apela ao realismo exigido pela própria vida do comércio.


Devemos, pela observação, verificar como se organiza efetivamente um
estabelecimento e como ele funciona. Procurar reduzi-lo a coisas corpóreas, por
muito que isso depois facilite o seu regime, é escamotear a realidade: o
estabelecimento existe e é autonomizado pelo comércio e pelo Direito
precisamente por organizar as coisas corpóreas, em conjunto com as incorpóreas,
num todo coerente para conseguir angariar clientela e, daí, lucro, A análise dos
factos diz-nos que, em regra, o estabelecimento gira sob um nome, tem insígnias,
usa marcas e patentes, disfruta de colaboradores etc.

o Um fator jurídico: a dimensão jurídica explica-nos que, em homenagem a essa


realidade que ele traduz, o Direito concede, ao conjunto dos elementos referidos,
um regime especial, inaplicável in solo.

Do regime específico do estabelecimento, destacamos:

→ O direito ao arrendamento, quando se inclua no estabelecimento, pode ser


transmitido, em conjunto com este, independentemente de autorização do
senhorio- art. 1112º CC;
→ A transmissão de firma só é possível em conjunto com o estabelecimento a que
ela se achar ligada- art. 44º RNPC;
→ O trespasse do estabelecimento fazia presumir a transmissão do pedido de
registo ou de propriedade da marca.

O sistema parece claro. O estabelecimento, para além de direitos reais relativos a


coisas corpóreas, envolve posições contratuais, como o arrendamento, ou o contrato de
trabalho e posições incorpóreas, como o direito à firma e a marca ou o pedido do seu
registo. Além disso, o aviamento e a clientela são valorados para efeitos de expropriação
por utilidade pública, prova de que existem e são tidos em conta pelo Direito.

É certo que alguns destes elementos- e muitos outros, com destaque para o
passivo e para os contratos que, por definição, impliquem uma prestação do comerciante
e logo, a esse nível, um passivo- só se transmitem plenamente com o consentimento do
terceiro cedido: art. 424º/1 e 595º CC. Essa necessidade não prejudica a especificidade-
que sempre é alguma, dos regimes acima apontados. Tão-pouco ela põe em crise os
aspetos funcionais ou o tipo social que representa a transmissão, em bloco, de todos os
elementos integrantes no estabelecimento.

Finalmente, o aviamento e a clientela valem muito para efeitos indemnizatórios.


Logo existem e são valorados pelo Direito.

O regime e a natureza do estabelecimento

A negociação unitária; o trespasse

O ponto mais significativo do regime do estabelecimento é a possibilidade da sua


negociação unitária.

Em princípio, perante um conjunto de situações jurídicas distintas, funciona a


regra da especialidade: cada uma delas, para ser transmitida, vai exigir um negócio
jurídico autónomo. Estando em causa um acervo de bens e direitos, a lei e a prática
consagradas admitem que a transferência se faça unitariamente. Trata-se de um aspeto
que não abrange apenas as coisas corpóreas articuladas, suscetíveis de negociação
conjunta através das normas próprias das universalidades de facto (art. 206º CC), mas,
também, todas as realidades envolvidas, incluindo o passivo.

Repare-se: não deixa de haver transmissão unitária pelo facto de, para a perfeita
transferência de algum dos elementos envolvidos, se exigir o consentimento de terceiros.
É o que vimos suceder com o passivo, com os contratos de prestações recíprocas e é o
que sucede com a própria firma. O trespasse do estabelecimento que tudo englobe
continua a fazer-se por um único negócio, com todas as facilidades que isso envolve.

Perante a relativa indefinição legal, e dada a exigência das tais autorizações, o


trespasse clássico tem vindo a perder terreno, a favor de esquemas societários. O
comerciante que pretenda fundar um estabelecimento constituirá uma sociedade
comercial mais ou menos (des) capitalizada, que irá encabeçar o acervo de bens e de
deveres a inserir no estabelecimento. Querendo alienar a sua posição, o comerciante em
causa, transferirá as suas posições sociais- quotas ou ações- para o adquirente.
Formalmente, não há qualquer modificação a nível do sujeito.
Este fenómeno apenas documenta uma certa perda de importância relativa que
o velho Direito comercial vem a acusar, a favor dos ramos comerciais mais novos, como
o Direitos das sociedades. Não obstante, e designadamente ao nível do pequeno
comércio, a transferência do estabelecimento, enquanto tal, continua a apresentar um
interesse marcado: basta ver a multiplicidade de casos juridicamente decididos.

O trespasse do estabelecimento, mormente para ter eficácia a nível de


arrendamento, devia ser celebrado por escritura pública. Todavia, o DL nº 64-A/2020, de
22 de Abril, alterou esta regra tradicional: passou a bastar a forma escrita, sob pena de
nulidade (nº3)- consequência discutível.

É verdade que o art. 1112/3 do CC refere-se, literalmente, à transmissão da


posição do arrendatário (prevista no nº 1). No entanto, este deve ser interpretado
extensivamente no sentido da exigência de escrito para o trespasse.

A transmissão de firma – que pode ser feita sem a transmissão do


estabelecimento – exige escrito (art. 44/1 e 4 do RRNPC); a transmissão de marca ou de
logótipo – envolvida naturalmente na transmissão do estabelecimento – exige escrito.
Seria estranho que a transmissão destes elementos (acessórios) requeresse escrito e não
o requeresse a transmissão do conjunto, o negócio (unitário) de trespasse do (unitário)
estabelecimento (com ou sem aqueles elementos).

Por outro lado, a transmissão da posição de arrendatário do trespasse deve ser


comunicada ao senhorio (parte final do art. 1112/3 do CC). Esta comunicação precisará
normalmente de ser acompanhada de cópia ou exemplar do contrato de trespasse.
Pressupõe isto, bem se vê, escrito enformando tal contrato.

Deve tratar-se de um estabelecimento efetivo, isto é: que compreenda todos os


elementos necessários para funcionar e que, além disso, opere, em termos comerciais.
O art. 1112º CC exprime essa ideia pela negativa; não haverá trespasse:

a) Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das


instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o
estabelecimento;
b) Quando, transmitido o gozo do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo de
comércio ou indústria ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino.

O trespasse exige, pois, uma transmissão do estabelecimento no seu todo ou


como universalidade: é insuficiente aquela que incida sobre apenas alguns dos seus
elementos. No entanto, as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, poderão, do
estabelecimento, retirar os elementos que entenderem. O trespasse não deixará de o ser
até ao limite de o conjunto transmitido ficar de tal modo descaracterizado que já não
possa considerar-se um “estabelecimento” em condições de funcionar. Trata-se do
chamado estabelecimento incompleto (Oliveira Ascensão/Menezes Cordeiro).

Posição do Prof. Coutinho de Abreu (âmbitos):

ÂMBITOS DE ENTREGA.

Num concreto negócio de trespasse, gozam as partes de liberdade para excluírem


da transmissão alguns elementos do estabelecimento. Todavia, tal exclusão não pode
abranger os bens necessários ou essenciais para identificar ou exprimir a empresa objeto
do negócio. Desrespeitando-se o âmbito mínimo, impossibilitado fica o trespasse; objeto
do negócio translativo serão então singulares bens (ou conjuntos de bens) de um
estabelecimento, não o próprio estabelecimento.

Dizer a priori em abstrato quais os elementos integrantes do âmbito mínimo, é


inviável. Pode dar-se o caso de um determinado trespasse não poder dispensar a
transmissão (juntamente com outros bens mais ou menos prescindíveis) de uma firma,
ou uma marca, ou uma patente, ou um prédio, ou certas máquinas, etc.

Fazem parte do âmbito natural de entrega os elementos que se transmitem


naturalmente com o estabelecimento trespassado, isto é, os meios transmitidos ex
silentio, independentemente de estipulação ad doc. Tais bens, não havendo cláusulas a
extingui-los, entram na esfera jurídica do trespassário. Estaremos perante um problema
de determinação do âmbito natural de entrega quando, por exemplo, em um escrito de
trespasse o estabelecimento é identificado apenas pelo seu objeto e localização – não se
inventariando quaisquer elementos e posições jurídicas a transmitir, ou mencionam-se
alguns elementos, mas a título exemplificativo.

No âmbito convencional de entrega incluem-se os elementos empresariais que


apenas se transmitem por mor de estipulação ou convenção (expressa ou tácita) entre
trespassante e trespassário. Nele se integram a firma, o logótipo e a marca quando neles
figure nome individual, firma ou denominação do titular do estabelecimento.

Os créditos do trespasse ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos não


sejam meios do estabelecimento não devem considerar-se elementos ou meios
empresariais, todavia, podem ser transmitidos juntamente com o estabelecimento desde
que trespassante e trespassário nisso concordem; farão então parte do âmbito
convencional de entrega – art. 577 e ss do CC.

Os contratos ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos (imediatos) não


sejam elementos do estabelecimento, bem como os débitos resultantes da exploração
do estabelecimento, também não devem ser considerados, recorde-se, elementos ou
meios empresariais. Mas podem igualmente ser transmitidos juntamente com o
estabelecimento trespassado. Contudo, tais posições contratuais e débitos não fazem
parte, em regra, de qualquer dos âmbitos de entrega; nem sequer do âmbito
convencional – pois a respetiva transmissão exige a intervenção de terceiros (não
bastando a convenção entre trespassante e trespassário). É o que resulta das normas
legais gerais.

Assim, para os contratos e ressalvas hipóteses previstas na lei, valem as regras dos
arts. 424 do CC – é necessário não apenas o acordo entre trespassante e trespassário,
mas também o consentimento do contraente cedido (art. 424/1).

Mais debatida que a cessão de posições contratuais ou de créditos tem sido a


transmissão singular de dívidas. Talvez por este domínio serem mais vincados os virtuais
conflitos de interesses. De um lado, os interesses dos credores do trespassante
reclamando a transmissão das dívidas ou, de preferência, a responsabilização de
trespassante e trespassário – uma vez que pode o trespasse envolver a diminuição da
garantia patrimonial dos créditos e ser impugnação pauliana impossível (art. 610 e ss do
CC). Do outro lado, os interesses do trespassário reclamando a não transmissão dos
débitos, pelo menos contra a sua vontade.

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Além da transmissão, o estabelecimento deve manter-se como tal. Daí o não


poder passar-se a exercer, no local, comércio diferente. Pode, todavia, passar a exercer-
se no local uma atividade anteriormente acessória (STJ).

A lei especifica, a propósito da transmissão do arrendamento, que o trespasse


deve abarcar “instalações”, “utensílios”, “mercadorias” e “outros elementos”. Não
oferecerá dúvidas reportar que “outros elementos” abrangerá os fatores incorpóreos,
como relevo para diversos direitos de crédito, nome, patentes e marcas.

Perante um trespasse de âmbito máximo, que englobe, pois, o passivo, teremos


de distinguir os seus efeitos internos dos externos:

o Efeitos internos: o trespassário adquirente fica adstrito, perante o trespassante,


a pagar aos terceiros o que este lhes devia;
o Efeitos externos: o alienante só ficará liberto se os terceiros, nos termos aplicáveis
à assunção de dívidas e à cessão da posição contratual, o exonerarem ou derem
acordo bastante.

O trespasse é, apenas, uma transmissão definitiva do estabelecimento. Quer isso


dizer que o trespasse pode operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico, que
assuma eficácia transmissiva: compra e venda, dação em pagamento, sociedade, doação
ou outras figuras diversas.
O regime do trespasse dependerá do contrato que, concretamente, estiver na sua
base. Para o tema aqui em causa, relevará apenas o seu efeito transmissivo do
estabelecimento.

Coutinho de Abreu: o trespasse é definível como transmissão definitiva da


propriedade de um estabelecimento por negócio inter vivos.

Deveres do trespassário

Apesar de ser esse o núcleo, cumpre apontar outras decorrências típicas do


trespasse:

o O art. 1112º/4 CC, retomando o art. 16º RAU, atribui ao senhorio um direito de
preferência, na hipótese de trespasse por venda ou dação em cumprimento;
o O trespassante poderá ficar investido num dever de não concorrência em relação
ao trespassário.

Tem aplicação, em tudo o que a lei comercial não prescreva diretamente, o


regime geral das preferências legais. Designadamente: salvo situações de abuso de
direito, a preferência não funciona quando o estabelecimento seja usado para a
realização de capital social.

Preferência do senhorio

A preferência do senhorio fora instituída por uma lei, vindo, mais tarde, a
desaparecer. O RAU restabeleceu-a e isso com 2 finalidades essenciais:

o Permitir ao senhorio uma vantagem potencial, aquando da transmissão do


estabelecimento instalado no objeto da sua propriedade;
o Facultar um certo controlo da sociedade civil, sobre as simulações operadas no
tocante a trespasses.

A preferência em causa, após a reforma de 2006, encontrou guarida no novo art.


1112º/4 CC, ainda que a título supletivo.

O direito de preferência conferido ao senhorio não é um direito de resgate da


coisa, de modo a conseguir desmantelar o estabelecimento, só para reaver o objeto da
sua propriedade. Trata-se de uma preferência na venda ou dação em cumprimento do
estabelecimento. O senhorio interessado não pode agir na hipótese de qualquer
trespasse, mas, apenas, na de venda ou dação. Além disso, ele terá de adquirir todo o
estabelecimento, mantendo-o em funções, nas precisas condições em que o faria o
trespassário interessado.

Resulta ainda daí que a preferência do senhorio só seja possível quando, ele
próprio, esteja em condições de, licitamente, adquirir o estabelecimento. Tratando-se de
uma farmácia, exige-se que o senhorio seja farmacêutico; estando em jogo um
estabelecimento para o exercício de profissão liberal, o senhorio deverá ter as
habilitações necessárias para prosseguir essa exploração. Além disso, não cabe
preferência no caso de integração, com o estabelecimento, de quota social: em princípio
não há aqui venda ou dação em pagamento, ficando, todavia, ressalvada a hipótese de
abuso de direito.

Dever de não-concorrência (implícita)

MC: O dever de não-concorrência do trespassante perante o trespassário, quando


não seja expressamente pactuado, poderá ser uma exigência da boa fé.

EX. um comerciante conhecido angaria larga clientela. Trespassa, depois, por bom
lucro, o seu estabelecimento e vai, de seguida, abrir um estabelecimento semelhante,
mesmo em frente. É evidente que a clientela, que já o conhece, irá segui-lo: o trespassário
adquire algo que, sem clientela, pouco ou nada vale.

Impõe-se assim pela boa fé uma obrigação de não-concorrência, a qual apenas


pode ser ponderada caso a caso. A sua violação pode acarretar deveres de cessar a
concorrência indevida e de indemnizar o lesado, reconstruindo a situação que existiria se
não fosse a violação perpetrada.

Têm sido avançados vários fundamentos para a obrigação: princípio da boa-fé na


execução dos contratos, princípio da equidade, usos do comércio, concorrência leal,
garantia contra evicção, dever de o alienante entregar a coisa alienada e assegurar o gozo
pacífico dela. Este último fundamento, com alguma tradição entre nós, parece ser o
preferível.

O Prof. NUNO AURELIANO diz, contudo, que esse dever de não-concorrência só


existe se estiver expresso no contrato; caso contrário violar-se-á a liberdade de iniciativa
económica, tomando este por base a aplicação analógica do contrato de agência (art. 9º)
e do de trabalho. Já o Prof. COUTINHO DE ABREU fala neste âmbito de uma obrigação
implícita e o Prof. MC afirma que este dever decorre do princípio da boa fé.

Outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não


concorrência:

o Cônjuge do trespassante, sendo relativamente indiferente para a questão o


regime de bens do casamento e a qualidade de bem comum ou próprio do
estabelecimento eventualmente a adquirir pelo cônjuge (pois o cônjuge
beneficia, normalmente, dos conhecimentos deste relativos à organização,
clientes, fornecedores e etc. do estabelecimento trespassado);
o Filhos (quando colaboraram na exploração da empresa transmitida – possuem
aptidão para uma concorrência diferencial);
o Sócios (no caso de uma sociedade – que tenham conhecimentos relativos à
empresa trespassada indispensáveis a uma concorrência qualificada)
• Exigem-se ativas funções de administração ou porque detinham
participação social dominante e exerciam efetivo controlo sobre a
sociedade.
• Não basta ser mero sócio e nunca intervir.
o Entre os sujeitos ativos (ou credores) da obrigação implícita de não concorrência
conta-se não só o primeiro trespassário como os sucessivos: cada um é credor do
primeiro sujeito passivo da obrigação, bem como de outros trespassários-
trespassantes, enquanto for proprietário do estabelecimento transmitido

Quanto ao dever de não-concorrência, existem três limites apontados pela


doutrina:

→ Limite material – tem de existir uma similitude entre a atividade praticada nos
estabelecimentos;
→ Limite temporal – não se observar um prazo de consolidação do novo
estabelecimento (geralmente 2/3 anos);
→ Limite espacial – tem de existir uma proximidade geográfica entre os dois
estabelecimentos, que possa ser suscetível de atrair clientela do estabelecimento
trespassado.

De contrário, haveria violação do princípio da liberdade de iniciativa económica


(art. 61 da CRP) e das regras de defesa da concorrência.

Os sujeitos passivos da obrigação não ficam evidentemente proibidos de exercer


qualquer atividade económica. Não podem é (re)iniciar o exercício (de modo sistemático
ou profissional) de uma atividade concorrente com a exercida através da empresa
trespassada, de uma atividade económica no todo ou em parte igual ou sucedânea.
Todavia, estes sujeitos não ficam impedidos tão-somente de adquirir (para exploração)
estabelecimento como objeto similar as do alienado. Outros comportamentos lhe são
interditos – ex: passarem a desempenhar funções de direção/administração em empresa
alheia e concorrente da trespassada.

Depois, a obrigação implícita de não concorrência tem limites espaciais e


temporais: vale apenas nos lugares delimitados pelo raio de ação do estabelecimento
trespassado, e durante o tempo suficiente para se consolidarem os valores de
organização e/ou de exploração da empresa transmitida na esfera de um adquirente-
empresário razoavelmente diligente.

Basta que se viole um destes limites para que seja violado o dever de não-
concorrência. Existindo uma violação do dever de não concorrência, poder-se-á intentar
um procedimento cautelar para a cessação do estabelecimento novo por concorrência
indevida e poderá dar lugar a indemnização, reconstruindo a situação que existiria se a
violação não tivesse sido consumada.

Coutinho de Abreu: Se os obrigados a não concorrer violarem a obrigação, pode


o trespassário exercer os direitos previstos nas normas respeitantes ao não cumprimento
das obrigações. Assim, pode designadamente:

→ Exigir indemnização por perdas e danos (art. 798 do CC);


→ Resolver o contrato de trespasse (art. 801/2);
→ Intentar ação de cumprimento (art. 817);
→ Requerer sanção pecuniária compulsória (art. 829-A);
→ Exigir que o novo estabelecimento do obrigado seja encerrado (art. 829/1).

Note-se, por último, que a obrigação implícita de não concorrência pode ser
afastada por estipulação contratual (o sujeito dos interesses patrimoniais tutelados pela
obrigação é o trespassário, que deles pode dispor livremente):

→ Coutinho de Abreu: significa a cláusula de livre concorrência a inexistência de um


verdadeiro trespasse (havendo simples alienação de elementos empresariais)
uma efetiva transmissão do estabelecimento (ainda que algo desvalorizado)? Só
a análise dos concretos casos permitirá responder.
→ Januário: mas isso pode querer dizer que afinal as partes não quiseram negocial
o estabelecimento enquanto unidade – ele é negociado, mas quanto à entrega
pode colocar-se em dúvida o âmbito do negócio e se o quid que foi entregue é
mesmo um estabelecimento –> não é ilícito, mas tem efeitos para o regime (como
a autorização do senhorio do art. 1112º, por exemplo).

O trespasse é um ato comercial objetivo, uma vez que é o que resulta de uma
interpretação atualista do art. 2º/1ª parte CCom, mesmo que não esteja expressamente
previsto no CCom (segundo MC).

NOTA: não há um verdadeiro trespasse se, uma loja, ainda que tenha um cartaz a
dizer “Trespassa-se”, estiver vazia, pois não se sabe o que é que se praticava nesse
estabelecimento.

A insolvência

Introdução

A insolvência traduz a situação daquele que está impossibilitado de cumprir as


suas obrigações, normalmente por ausência da necessária liquidez naquele momento, ou

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