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Dossiê – TRÁFICO DE ESCRAVOS

Parte 3
Outras Bandeiras do Lucro Infame, por Richard Price 1

O auge do comércio de escravos foi liderado pela Grã-Bretanha e trouxe Europa e Estados Unidos para a
modernidade

Escravos capturados para serem vendidos no Suriname, em 1796. (Imagem: Reprodução)

Ao longo de três séculos e meio de tráfico transatlântico de escravos, cerca de 12,5 milhões de seres humanos
foram trazidos à força para as Américas. Entre 1492 e 1820, africanos escravizados constituíram mais de 80% das
pessoas que desembarcaram nas Américas. Que nações participaram deste crime sem precedentes contra a
humanidade? Que nações lucraram com o comércio?
Sabe-se que o Brasil recebeu cerca de 45% de todos os africanos trazidos como escravos para as Américas –
mais do que qualquer outra nação – e que navios portugueses (e brasileiros) conduziram 47% de todos os africanos
escravizados que cruzaram o Atlântico (37% deles foram transportados pelo Atlântico em embarcações que saíram do
Brasil – 5% de Pernambuco, 15% da Bahia e 17% do Sudeste brasileiro, particularmente do Rio de Janeiro). E quanto
às outras nações?
Deixando de lado Portugal/Brasil, as maiores nações comerciantes de escravos foram a Grã-Bretanha (cujos
navios carregaram 26% dos cativos), França (11%), Espanha (8%), Holanda (4%), Estados Unidos (2%) e os Estados
Bálticos (menos de 1%). Ao longo de todo esse comércio de escravos, “embarcações do Brasil, Inglaterra, França,
Portugal e Holanda carregaram 90% de todos os cativos transatlânticos removidos da África” , como escreveram em
seu atlas David Eltis e David Richardson, cujas estatísticas tomo como base para este artigo.
Nos primeiros anos, as maiores nações comerciantes de escravos eram Portugal e Espanha. O comércio
espanhol de escravos para as Américas começou em 1501, com embarcações partindo principalmente de Sevilha e, em
menor número, de Cádiz, carregando ferramentas, mosquetes, pólvora, panelas, roupas, miçangas, chapéus e bebidas
para trocar com africanos por pessoas escravizadas que eram muitas vezes cativos de guerras internas. Seus portos
africanos preferenciais estavam na África Central Ocidental. Navios portugueses deixavam seus portos de origem em

1
Richard Price é professor emérito de Estudos Americanos, Antropologia e História do College of William & Mary nos Estados Unidos e
coautor de O nascimento da Cultura Afro-americana (Editora Pallas, 2003).
Lisboa e, em número menor, no Porto, também rumo à África Central Ocidental. Navios portugueses armados nesse
período no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro tomavam o mesmo destino. Os espanhóis carregavam suas cargas
humanas da África principalmente para o Caribe, enquanto os portugueses as levavam principalmente para o Brasil e,
em menor escala, para a América Espanhola. Entre 1501 e 1641, embarcações portuguesas ou brasileiras respondiam
por três quartos do total do comércio, com navios espanhóis carregando o outro quarto (outros europeus transportaram
apenas entre 1 e 2%). Mas o tráfico transatlântico de escravos estava apenas começando: todo esse período inicial
representou apenas 7% do total de africanos escravizados que seriam transportados para as Américas até o século
XIX.
Ao longo da costa ocidental africana, os europeus construíram fortes que constantemente mudaram de mãos
nas guerras entre nações. Europeus conhecidos como “feitores” representavam companhias comerciais e negociavam
escravos com líderes africanos, para os fortes ou castelos. As nações europeias se especializaram em diferentes
mercadorias na troca por escravos. Os britânicos negociavam prioritariamente com “lãs e linhos de Manchester e
Yorkshire, chitas da Índia, sedas da China, e facas, espadas, mosquetes, pólvora, barras de ferro e bacias de latão de
Birmingham e Sheffield, além de lençóis velhos (muito procurados), chapéus pomposos, contas de vidro e várias
bebidas destiladas”, segundo Daniel P. Mannix e Malcolm Cowley. Uma vez que a maioria destes produtos era de
fabricação inglesa, aquela nação lucrava duplamente no tráfico de escravos. Franceses e holandeses também se
utilizavam de bens manufaturados em seus próprios países, como têxteis e ferramentas de baixo custo. Neste aspecto
os portugueses estavam em desvantagem, pois precisavam comprar na Holanda a maior parte dos bens para suas
trocas.
Foi na segunda metade do século XVII e durante o longo século XVIII (até 1807) que o comércio
transatlântico de escravos realmente decolou. As nações cujos navios carregaram a maior parte dos escravos durante o
período foram, em ordem, os britânicos, com 3.247.000 cativos (38% do total), os portugueses, com 3.061.000 (36%),
os franceses, com 1.188.000 (14%), os holandeses, com 541.000 (6%), os norte-americanos, com 292.000 (3%) e os
espanhóis, com 42.000 (menos de 1%).
Durante o século XVIII, toda a costa ocidental e central ocidental africana estava explorada, mas diferentes
nações europeias preferiam partes específicas do continente, onde haviam estabelecido relações especiais com os
governantes. Os portugueses mantinham laços com Angola e Congo – 75% de todos os africanos levados para o Brasil
saíram destas regiões, em parte porque a distância entre essa região e o Brasil é menor (Salvador foi uma exceção:
estabeleceu uma ligação forte com a enseada de Benin) Os britânicos comercializaram mais ao norte da costa
ocidental, sendo o Golfo de Biafra, a enseada de Benin e a Costa do Ouro suas áreas preferidas.
Surpreendentemente, cerca de 46% de todas as viagens transatlânticas de escravos foram organizadas nas
Américas, e o Brasil respondeu por mais de 75% delas. Na Inglaterra, Liverpool, Londres e Bristol foram armados
30% dos navios usados nesse comércio. Os portos franceses de Nantes, La Rochelle, Le Havre e Bordeaux respondem
por cerca de 12% do total. Lisboa armou 4%, portos holandeses 4% e espanhóis 1%. Quanto aos Estados Unidos, que
respondem por apenas uma pequena parte (1%) do tráfico de escravos, os principais portos escravistas estavam,
curiosamente, no norte: New London (em Connecticut), Newport, Bristol e Providence (em Rhode Island), e Boston e
Salem (em Massachusetts).
O comércio transatlântico de escravos foi formalmente abolido pelas nações europeias entre 1803 (data do
banimento dinamarquês) e 1836 (quando Portugal se tornou a última nação do continente a banir o tráfico), e pelos
Estados Unidos em 1807. Mas o tráfico continuou até 1867, quando o último navio negreiro chegou a Cuba. Durante
todo esse período ilegal, mais de 1 milhão de escravos africanos desembarcaram nas Américas: 70% para o Sudeste do
Brasil e a maior parte dos restantes para Cuba. O comércio ilegal foi organizado principalmente a partir de portos
franceses, espanhóis e portugueses. Nantes era o maior, seguido por Lisboa, mas outros portos europeus participaram
– como Liverpool, Le Havre e Cádiz.
Não é possível classificar nações a partir do quão cruéis eram as condições em seus navios negreiros: a vida a
bordo era sempre miserável. Em alguns casos infames, capitães pensavam que poderiam ter mais lucros resgatando
apólices de seguros de escravos do que vendendo-os em seus destinos, então simplesmente atiravam africanos vivos
ao mar, alegando às seguradoras que eles haviam ficado doentes e morrido.
Desde a publicação do livro “Capitalismo e Escravidão” 2, que seu autor, Eric Williams argumentou que a
escravidão e o comércio de escravo forneceram o capital para a Revolução Industrial na Grã-Bretanha, houve muito
debate sobre a lucratividade do comércio negreiro e se ele foi abolido por razões econômicas (porque a escravidão não

2
Capitalism and Slavery, livro clássico de Eric Williams, publicado em 1944.
era mais rentável do que o emprego de trabalho livre) ou por motivos humanitários. Parece claro que o comércio
transatlântico de escravos desempenhou um papel fundamental não apenas fornecendo capital para a Grã-Bretanha,
mas também trazendo a Europa e os Estados Unidos completamente para a época moderna.
Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 10, nº 104, Setembro 2014, p. 23-25.

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