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Diagnósticos errados em crianças com dificuldade de aprendizagem

Por Chris Bueno


29/11/2007

Várias crianças são diagnosticadas com uma enfermidade para justificar seu mau
desempenho escolar. Dislexia, hiperatividade, déficit de atenção, déficit do
processamento auditivo e deficiência mental são os nomes mais comuns dados ao
problema. Porém, o “diagnóstico” feito pelos educadores está correto em menos de
10% dos casos. Isso é o que aponta o trabalho dos pesquisadores do Centro de
Convivência de Linguagens, vinculado ao Laboratório de Neurolingüística da
Unicamp.

Fundado em 2004 pela professora Maria Irma Hadler Coudry, o grupo se destina ao
acompanhamento de crianças e jovens a quem foi atribuída alguma doença para
justificar o mau desempenho escolar. “Muitas crianças recebem um diagnóstico da
escola para justificar suas dificuldades de aprendizagem, mas, quando trabalhamos
com elas, percebemos que na maioria dos casos esse diagnóstico não se justifica”,
explica Coudry.

Muitos pais com filhos diagnosticados com uma enfermidade na escola - diagnóstico
que, muitas vezes, recebe respaldo de profissionais da área médica, como
fonoaudiólogos - procuram a medicina da Unicamp para tentar tratá-los, e acabam
sendo encaminhados a Coudry. “As pessoas me procuram por eu trabalhar com
questões de patologia e linguagem. Logo eu tinha uma lista com mais de 10 nomes
de crianças com esse mesmo problema, então resolvi montar esse grupo de
estudos”, explica.

O trabalho realizado no CCAzinho, como é chamado por seus integrantes, vai além
da pesquisa científica e envolve também o lado social da questão, dando atenção
especial às dificuldades que a criança tem de enfrentar ao receber um “rótulo” de
uma deficiência e a exclusão que ela sofre. “O ‘rótulo’ atribuído à criança, seja
‘dislexia’ ou qualquer outro ‘distúrbio de aprendizagem’, repercute de forma
negativa em sua vida, pois reforça apenas o que ela não é capaz de fazer, mexendo
com sua auto-estima e a desestimulando ainda mais a aprender”, explica a lingüista
Michelli Alessandra da Silva, uma das pesquisadoras do grupo.

Todas as crianças atendidas pelo centro receberam um diagnóstico que justificava


seu mau desempenho escolar. Porém, após avaliação e acompanhamento no
CCAzinho, os pesquisadores constataram que das 14 crianças encaminhadas até
hoje ao grupo, apenas duas realmente apresentavam uma doença. “Esses
diagnósticos geralmente estão errados. O mau sucesso da criança na escola se deve
a um conjunto de fatores que, muitas vezes, a escola não considera”, explica
Coudry. A falta de acesso a material de leitura; a responsabilidade precoce de ter
que ficar sozinho em casa cuidando dos irmãos, ou até mesmo de trabalhar para
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ajudar a família; a falta de comunicação na escola; o despreparo e a sobrecarga dos


professores; e a falta de recursos material e humano nas instituições de ensino são
alguns dos fatores apontados pelas pesquisas do grupo como dificultadores da
aprendizagem. “São tantas barreiras e empecilhos que chega a ser incrível que
algumas crianças consigam aprender num ambiente tão flagelado”, afirma a
pesquisadora.

Os estudos revelam ainda que a distância entre as tarefas propostas pela escola e a
vida da criança é um dos maiores empecilhos para a aprendizagem. Exercícios
descontextualizados, tarefas fragmentadas, enunciados equivocados e atividades
mecânicas (como ditados, cópia e listas de palavras) não exigem reflexão e não
fazem sentido para elas, tornando-se barreiras na hora de aprender. “Como as
crianças podem cumprir corretamente uma tarefa que elas não entendem e para
qual não vêem sentido?”, indaga Silva.

Epidemia

“Acho importante esclarecer que em nenhum momento negamos a existência real


dessas patologias, o que negamos é que elas tenham se tornado uma epidemia”,
afirma Sônia Sellin Bordin, fonoaudióloga e pesquisadora do CCAzinho. E continua:
“Quando uma criança nessas condições recebe um diagnóstico de distúrbio de
aprendizagem ou mesmo de dislexia, cria-se um ciclo vicioso porque ela passa a
corresponder ao diagnóstico recebido e a escola passa a esperar menos dela.
Facilita-se sua passagem pela escola, dificulta-se sua entrada ou permanência nos
processos de aprendizagens de fato”.

Um caso que ilustra bem o problema é o de BN, que foi diagnosticada aos cinco
anos de idade como portadora de dislexia. Sem receber atenção da escola, BN foi
passando de ano até terminar o ensino médio. Na prova de vestibular, que era de
múltipla escolha, conseguiu a pontuação para ingressar no curso de Pedagogia. Mas
ao iniciar a graduação, suas dificuldades em compreender e redigir um texto eram
tantas que acabou procurando ajuda na Unicamp. Ela não tinha mais idade para
participar do CCAzinho, mas mesmo assim foi atendida individualmente por uma
pesquisadora do grupo, que a ajudou a enfrentar suas dificuldades. BN conseguiu
concluir seu curso e trabalhar na profissão.

Outro caso emblemático é o de LS, de nove anos, que por não conseguir ler ou
escrever, recebeu o diagnóstico de alteração do processamento auditivo e
dificuldade de aprendizagem. Na avaliação para ser atendida pelo CCAzinho, LS
mostrou seu caderno, onde havia várias páginas cheias de cópias de seu próprio
nome. “Uma das atividades que as crianças que não ‘acompanham’ a classe mais
faz é a cópia. Elas apresentam cadernos inteiros apenas de cópia, mas não lêem
uma só palavra escrita ali”, explica Bordin. “Essa criança segue todos os dias,
quatro horas por dia, nesse compasso. Um dia, alguém resolve que essa criança não
aprende porque deve ter algum problema, que supostamente se localiza no corpo
da criança”, relata.

Aprendendo a entender

“Nenhuma das crianças que atendemos hoje tem uma doença, mas todas têm uma
dificuldade, e precisamos trabalhar isso”, explica Coudry. Segundo a pesquisadora,
é preciso ter “sensibilidade” para perceber os processos de aquisição de linguagem
pelos quais a criança passa, e considerar todos os outros fatores externos que
interferem nesse caminho. As pesquisas realizadas no centro revelam a diversidade
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da relação da criança com a fala, a linguagem e a escrita e sobre o modo como o


processo de aquisição é conduzido. “É preciso aprender a entender”, afirma.

E é isso que o CCazinho se propõe a fazer. Os pesquisadores do centro buscam


colocar as práticas da escola mais próximas das crianças, através de atividades que
façam sentido para elas, como trabalhar no computador, escrever um jornal, deixar
bilhetes para os amigos, criar um roteiro de cinema, encenar peças de teatro,
discutir notícias. “Essas são práticas que fazem parte da vida dessas crianças e que
portanto fazem sentido para elas”, afirma Coudry. Essa experiência vêm mostrando
que as chamadas “patologias” são na verdade dificuldades que podem ser
superadas. O resultado já pode ser confirmado: as 10 crianças atendidas hoje pelo
centro já apresentaram avanços no desempenho escolar, com sensível melhora da
leitura e da escrita.
http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=3&noticia=369

As várias faces da rebeldia

Transtornos de Déficit de Atenção e Opositor Positivo são difíceis de


serem diagnosticados e dividem a opinião de médicos e especialistas
em saúde quanto a serem classificados como doença ou não e sobre
como deve ser o tratamento. No meio desse imbróglio, crianças ficam
sem a assistência necessária.

por Sueli Mello

Quem já precisou de uma consulta com psicólogo ou psiquiatra em um hospital


público sabe o quanto é difícil. Mesmo que seja usuário de um convênio particular –
que, em geral estabelece 15 minutos para consultas mensais – os psiquiatras se
limitam a prescrever medicamentos e encaminhar o “cliente” para um tratamento
psicológico, geralmente não coberto pela estrutura do convênio.

Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) não há como marcar previamente


uma consulta no primeiro contato. A orientação para quem deseja levar uma
criança para se consultar com um psiquiatra é que procure antes o atendimento de
um pediatra do hospital. É preciso ir pessoalmente para tentar o atendimento no
dia e, caso o pediatra considere necessário, ele faz o encaminhamento para um
psiquiatra da casa.

No Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da


Universidade de São Paulo IPq/HCFMUSP, teoricamente a triagem está aberta
permanentemente. Mas uma pessoa que procure hoje pelos serviços precisa ter um
encaminhamento do psiquiatra de um posto de saúde. Em outubro, a informação
era de que não havia mais vagas para este ano. A orientação recebida foi ligar
novamente na última semana de janeiro para participar da triagem de fevereiro.
Ou seja, quatro meses de espera. Outra informação é que a consulta só seria
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agendada dependendo da quantidade de vagas.

A mãe de P. um garoto de 9 anos, que há dois anos começou a apresentar


problemas de socialização e agressividade, procurou o Hospital das Clínicas, onde,
segundo afirma, a triagem para obter um tratamento é muito concorrida. Com a
ajuda de uma amiga conseguiu, por meio de uma carta, explicar a situação de seu
filho para a chefia do setor de psiquiatria infantil e ele foi atendido. Os médicos
diagnosticaram Dislexia, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
e Transtorno Opositivo Desafiador (TOD). Atualmente, a criança toma medicações,
recebe atendimento psicológico e os pais participam de um grupo de orientação
familiar. “Meu filho é uma criança com o remédio, e outra sem ele!”, relata a mãe.
O menino foi aceito numa nova escola (particular), na qual vem se adaptando
perfeitamente e evoluindo bastante.

Mas os transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Opositivo


Desafiador (TOD) e de Conduta (TC) dividem a opinião dos médicos. O primeiro, já
bastante conhecido, caracteriza a criança por demais irriquieta, que não consegue
se concentrar em suas tarefas e atividades, enfrentando por isso dificuldades de
aprendizado e discriminação por parte de colegas, professores e outras pessoas de
sua convivência, que não conseguem conviver com esse temperamento agitado. E
os dois últimos, incluídos na Classificação Internacional de Doenças, sob a sigla
CID-10, em 1992, são definidos por uma postura agressiva ou desafiante da
criança ou adolescente, em relação a qualquer figura que represente autoridade.
Extrapola as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente. Incluem episódios,
nos casos mais graves (TC), de crueldade em relação a outras pessoas ou animais,
destruição de bens de terceiros, condutas incendiárias, roubos, mentiras
freqüentes, fuga da escola ou da casa.

Um dos responsáveis pelo atendimento no HC, o psiquiatra Paulo Germano


Marmorato, acredita que os diagnósticos da psiquiatria infantil são alvo de polêmica
porque “as manifestações psíquicas são difíceis de ser mensuradas e as fronteiras
do normal e do patológico nesse campo não são nítidas”, afirma. Além disso,
aponta, há o fato de que os conceitos diagnósticos em psiquiatria infantil vêm
recebendo atenção significativa da medicina há relativamente pouco tempo (a
partir de 1950) – estudos esparsos sobre psiquiatria infantil existem pelo menos
desde o século XIX, mas ganharam impulso científico no pós Segunda Guerra – e
como estão em processo de construção são naturalmente imperfeitos, como
acontece com a epilepsia e até o enfarto cardíaco, estudados há muito mais tempo
e mais facilmente investigados a partir de dados mais concretos, como o uso de
eletro-encefalograma ou exames laboratoriais. “De qualquer forma, um bom clínico
ou cientista sabe que o diagnóstico não é um dado concreto, mas uma entidade
abstrata, uma representação do entendimento humano da realidade”, ressalta.

A médica Rogéria Ribas Prestes, da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba – PR,


alerta sobre a necessidade de seus colegas – médicos de família – dedicarem maior
atenção às famílias com crianças e adolescentes que apresentam esses
transtornos. Ela fala da situação da escola pública, em que se verifica que a cada
oito salas de primeiro ano iniciadas, sobre apenas uma de oitava série ao final do
ciclo (fenômeno atribuído em parte ao TDAH). Prestes conta que a prevalência
desses transtornos, de acordo com estudos internacionais, afetaria cerca de 5% da
população. Os fatores que poderiam contribuir para o seu desencadeamento são
hereditariedade, mau funcionamento do córtex pré-frontal do cérebro e histórico
familiar (violência, brigas, uso de drogas e álcool). A médica destaca que se o
Transtorno Opositivo Desafiador não for devidamente cuidado, pode evoluir para o
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Transtorno de Conduta, e defende o tratamento a partir da adequação de práticas


educativas e condutas psicoterapêutica e farmacológica. “O que mais chama a
atenção é a ligação do TOD a depoimentos de hiperatividade”, diz Prestes. Os
psicólogos explicam: a criança sente-se tão mal pela dificuldade de aprendizado e
de aceitação social que gradativamente vai se tornando mais e mais rebelde.

Essa posição é contestada por Ana Cecília Sucupira, coordenadora da área técnica
de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde. “O que mais
chama a atenção é como se produzem doenças!”. Para ela, os diagnósticos seriam
inconsistentes e as medicações prescritas pelos psiquiatras prejudiciais à saúde. “O
metilfenidato pode viciar ou comprometer o crescimento da criança, e a fluoxetina
(antidepressivo), pode causar dependência e levar ao suicídio. Era considerada
como doping e proibida no país até a década de 1980”, alerta.

No entender de Sucupira está havendo uma “medicalização” de crianças e


adolescentes e a transformação de um comportamento – resultante da falta de
estabelecimento de limites pelos pais e/ou cuidadores – em doença. Por trás de
tudo, acusa, estaria o interesse dos fabricantes dos remédios. “Foi a indústria que
mais cresceu. Aumentou o faturamento em cerca de 400%!”, destaca.

Em um artigo sobre Dificuldades Escolares que escreveu em co-autoria com a


médica Maria Aparecida Affonso Moysés, professora do Departamento de Pediatria
da Unicamp, destaca que antes de uma incapacidade, a falta de atenção de uma
criança em sala de aula pode significar uma falta de motivação decorrente da não
interação professor/aluno e/ou métodos pedagógicos inadequados. Ela explica
também que as crianças que não têm acesso à pré-escola não foram familiarizadas
com os padrões de comportamentos exigidos e irão passar pela socialização
secundária (a primeira refere-se à socialização em família) simultaneamente ao
processo de alfabetização. “Espera-se dos alunos das escolas de periferia
comportamento igual ao de crianças já habituadas ao ambiente escolar. Assim, são
consideradas hiperativas quando, desconhecendo a disciplina, conversam,
levantam-se, enfim, não mantêm a atenção requerida pela escola para a
aprendizagem”, expõe.

Outra crítica de Sucupira diz respeito ao crescimento infantilizado das crianças de


famílias mais abonadas. “Enquanto as crianças pobres sobem em árvores, jogam
bola, soltam pipa, as crianças de classe média nem saem à rua sozinhas”, observa.
Logicamente, estímulos diferentes levam a habilidades diferentes. “As pobres
muitas vezes não têm habilidade para preencher um questionário porque não
conhecem isso e, erroneamente, recebem o diagnóstico de TDAH”.

Era de se esperar que a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade,


entidade nacional que congrega médicos que atuam em postos e outros serviços de
Atenção Primária em Saúde, incluindo os do Programa de Saúde da Família (PSF),
defendesse uma posição a respeito do tema, e que tivesse alguma política
estabelecida para atendimento de famílias com crianças e adolescentes com
dificuldades semelhantes às classificadas como transtornos.

No entanto, durante cerca de dois meses em que foi procurada para falar sobre o
assunto, a presidente da entidade em São Paulo, Renata Luciana Fregonezi,
limitou-se a indicar Raul Gorayeb, professor do Departamento de Psiquiatria da
Unifesp, chefe do setor de Psiquiatria da Infância e Adolescência e diretor do
Centro de Referência da Infância e Adolescência (Cria), que não é ligado à SBMFC.
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Seguindo a linha de raciocínio de Sucupira, Gorayeb diz que a transformação de


comportamentos em doença tornou-se uma das principais características da
psiquiatria de hoje, que se pretende “moderna” e “científica”. “Os nomes TDO e
TDAH, embora constem das classificações oficiais das Doenças Psiquiátricas, não
passam de descrições de comportamentos que arbitrariamente são considerados
doenças, sem que ninguém tenha até hoje demonstrado qualquer evidência de que
exista uma perturbação biológica que os explique”, pondera.

Clínico com mais de trinta anos de experiência em serviços públicos e privados,


Gorayeb não considera que existam tais “transtornos”, mas sim crianças que se
desenvolvem nem sempre de acordo com o que os adultos esperam. “Esses adultos
nunca pararam para se perguntar qual a sua responsabilidade, como adultos, pais
e educadores, quando alguma coisa não vai de acordo com o que eles desejam. É
mais fácil apelar para a ‘ciência’ e encontrar uma explicação que lhes exima da
responsabilidade”, acusa.

Marmorato discorda e afirma que a mesma postura equivocada em relação à


epilepsia ocorre com quem responsabiliza, ou pior, culpa os pais por sua suposta
incompetência em educar seus filhos, e estigmatiza as crianças por acreditarem
que seriam plenamente responsáveis por suas atitudes. “Assim como se argumenta
que simplesmente dar remédios é uma solução fácil, culpar os pais ou a índole da
criança pode ser mais fácil, pois não implica na grande responsabilidade que
prescrever uma medicação representa. E ainda pior: pode ser uma atitude
arrogante, injusta e, por isso mesmo, cruel”, defende. E provoca: “é comum que
profissionais que meramente culpam os pais pelo comportamento de seus filhos
não se ocupem, de fato, em ajudar essas famílias a se relacionarem melhor – ou
não passem do bordão ‘tem que dar limite’”.

Incidência dos transtornos

O médico Raul Gorayeb diz que existem trabalhos que se pretendem “científicos”,
baseados em questionários dirigidos apenas aos pais e professores, sem que os
“pesquisadores” tenham tido qualquer contato com a criança. “Chegam a encontrar
em certas cidades, uma porcentagem de 40% de crianças com este problema. Um
índice que, para qualquer problema humano, seria considerado uma epidemia, um
problema de saúde pública super prioritário”, exaspera-se.

“No hospital em que trabalho, há um índice muito pequeno de problemas de


comportamento desse tipo. Quando avaliamos corretamente uma criança com os
sintomas descritos, encontramos desde uma criança normal, cujo comportamento
está sendo mal interpretado, até dificuldades psicológicas, ou resultantes das
atitudes dos pais ou professores, não específicas de um único problema”, relata.

Mas em 2002, foi feito no Brasil um estudo epidemiológico, coordenado pela


psiquiatra Bacy Fleitlich-Bilyk, do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP, que avaliou
a incidência de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes entre 7 e 14
anos, em municípios do sudeste de São Paulo. Em Taubaté, entre 1.251 crianças,
foi encontrada a prevalência de 1,5% de transtornos hipercinéticos (TDAH) e 7,0%
de Transtornos de Conduta (o próprio TC mais o TOD). O estudo, baseado em
entrevistas, contou com a colaboração de Roberto Goodmand, do Institute of
Psychiatry, King’s College, London, e financiamento do Wellcome Trust, órgão
britânico de financiamento de pesquisas, além do apoio das prefeituras de Taubaté
e Campos do Jordão.
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Com relação aos medicamentos, Gorayeb diz que não existe qualquer teoria, nem
dados experimentais que proponham um modelo de compreensão a respeito
desses problemas em nível biológico, no sistema nervoso central ou no organismo
como um todo, que justifique o seu uso. No caso do TDAH, por exemplo, em que
um dos sintomas atribuído a ele é a hiperatividade, ou seja, comportamento
agitado, é curioso que a medicação proposta para “tratá-lo” seja um estimulante
cerebral.

Essa opinião vai no sentido contrário às afirmações de Marmorato, que afirma que
há estudos que mostram importantes componentes biológicos que poderiam causar
tanto o TDAH quanto os Transtornos de Conduta. Um desses estudos, realizado por
Van den Ooord e outros autores, em 1994, constatou maior ocorrência em filhos de
pessoas com esses diagnósticos, mesmo quando se procurava afastar possíveis
influências no modo de criação, como no caso de estudos realizados com crianças
adotadas. E outro que mostra alterações no metabolismo do córtex frontal em uma
parcela destas crianças, realizado por Casey, em 1997. “Isto não quer dizer que se
atribuam esses quadros a causas puramente biológicas. Já está claro que fatores
ambientais têm importante influência na gênese e manutenção desses quadros. É
comum observar a ocorrência em crianças que vivem num ambiente de constante
conflito, onde as práticas educativas são inconsistentes, agressivas ou
simplesmente negligentes em relação às necessidades emocionais da criança”, diz
o médico do HC.

Na realidade, afirma, causas genéticas e ambientais ocorrem concomitantemente e


tendem a se reforçar. Por exemplo, crianças naturalmente mais inquietas e
irritáveis, difíceis de se acalmar, costumam gerar posturas menos adequadas por
parte dos cuidadores. Com isso sofrem mais repreensões, são mais castigadas e
recebem menos carinho. Reagem então com mais irritabilidade e agressividade
formando um círculo vicioso no qual o ambiental e o biológico se alimentam
mutuamente.

No caso das medicações, explica Marmorato, o metilfenidato tem um efeito


estimulante nas vias dopaminérgicas (vias cerebrais que utilizam o
neurotransmissor dopamina, relacionando o sistema límbico – região das emoções
e aprendizagem – e o córtex – região dos mecanismos conscientes). Assim,
estimula a capacidade de atenção e do autocontrole motor, contrabalançando
justamente a inquietação involuntária excessiva típica do TDAH. Seu uso não visa a
imposição de um controle externo às crianças, mas exatamente o contrário: maior
autocontrole sobre a atenção e sobre atos muitas vezes impulsivos e irrefletidos.
Segundo ele, basta observar e questionar a grande maioria das crianças que usam
o medicamento para se constatar que elas não parecem robotizadas, entorpecidas,
involuntariamente obedientes, “pelo contrário, ganham maior autonomia e poder
de escolha. Se passam a obedecer mais, isto não ocorre diante de qualquer
comando, mas nas situações em que se apercebem de que isto é favorável a elas
próprias”, diz Marmorato.

Caso sejam verificados efeitos colaterais relevantes, ou quando a criança relata


significativo desconforto, a medicação deve ser suspensa, alerta o psiquiatra,
ressalvando que “após algumas décadas de uso sistemático do metilfenidato não se
verificaram efeitos adversos importantes (como prejuízo do desenvolvimento
corporal e intelectual) a curto ou longo prazo”. E cita um estudo, realizado por
Biedermann, em 1990,) em que se verificou que crianças que fizeram uso de
Metilfenidato apresentaram menos envolvimento com drogas que crianças com
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TDAH não tratadas.

Alternativa para atendimento às famílias

Na opinião de Gorayeb, há uma distorção grave na assistência à saúde, que é a


crença na “superespecialização”. De acordo com ele, os serviços de atendimento à
Saúde Mental no Estado de São Paulo existem em número razoável, constituídos,
na maioria das vezes, por equipes multidisciplinares e multiprofissionais,
especialmente os que atendem crianças e adolescentes. Isso garante um olhar
diversificado e menos preconcebido para os problemas que se apresentam.
Qualquer criança que apresente suspeitas de problemas clínicos deve ser levada a
um desses postos de atendimento e, se os pais não se sentirem satisfeitos com a
orientação recebida, devem procurar uma segunda opinião. Quanto ao Serviço de
Psiquiatria da Infância e Adolescência da Unifesp, o médico informa que atende
crianças e adolescentes até dezoito anos, com qualquer problema clínico, sem fazer
distinção quanto ao diagnóstico. “As estratégias clínicas de trabalho é que são
diferenciadas para atender cada caso, conforme sua necessidade”, destaca.

Marmorato diz que se tem verificado que, numa sala de aula do ensino
fundamental, com cerca de 30 alunos, encontram-se com freqüência umas duas
crianças que se recusam a obedecer às solicitações, são facilmente irritáveis,
impulsivas e agressivas e não estabelecem vínculos afetivos duradouros. Um
possível diagnóstico de TOD nesses casos teria a função de chamar a atenção para
a necessidade de ajuda que essas crianças e suas famílias requerem, seja por meio
de orientações especializadas, seja por psicoterapias ou medicações.

Por conta dessa situação, o médico da USP, com o apoio de uma equipe
multidisciplinar composta por psicólogos, professores, pedagogos, artistas e pelos
próprios familiares de crianças e jovens atendidos no Ipq, está criando a ONG Sinal
– Socialização da Infância e Adolescência Laborada, destinada ao acompanhamento
de crianças e adolescentes e familiares com dificuldades no convívio social,
atendidos no ambulatório de socialização do Instituto de Psiquiatria do HC.

“O grupo acredita que apenas um trabalho que informe, oriente, fortaleça e trate a
família (os cuidadores) possa modificar a vida de crianças com problemas de
socialização e quebrar o ciclo de comportamentos anti-sociais e exclusão social.”
Quem define é Christiane D’Angelo Fernandes, educadora, mãe de um adolescente
hiperativo, que resolveu se integrar à equipe e trabalhar pela causa. “Uma das
propostas é realizar novos estudos sobre a prevalência dos transtornos na
população brasileira, visando suprir uma escassez de estatísticas nacionais a
respeito do tema. Mas tudo depende de recursos a serem ainda alcançados”,
destaca.

Onde buscar mais informações sobre TDAH:

http://www.tdah.org.br

http://www.hiperatividade.com.br

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