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O PROCESSO DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO 1

1. Noções introdutórias comportamentais. Ex.: o controle social exercido no


âmbito familiar das relações interpessoais entre pais e
Nesta parte da obra, pretende-se examinar o filhos.
controle social como tema fundamental para a O controle social secundário é aquele
Sociologia do Direito. Para tanto, serão apresentados o exercido por agrupamentos humanos maiores, que
conceito, as tipologias e os mecanismos de atuação conformam a existência individual, nas etapas mais
do sistema de controle social, enfocando-se avançadas de socialização. Caracteriza-se pela
preferencialmente o papel desempenhado pela ordem formalidade e pela institucionalização dos padrões de
jurídica. Outrossim, será demonstrado como a interação comportamental. Ex.: o controle social
ilicitude e as sanções jurídicas, negativas e positivas, exercido no âmbito estatal das relações entre
articulam-se nos processos sociológicos de controle governantes e governados.
das ações humanas em sociedade.
3.2 Controle social preventivo versus controle
2. Conceito de controle social social repressivo

O controle social é um processo sociológico O controle social preventivo abarca o


de modelagem dos comportamentos humanos e de conjunto de mecanismos que a sociedade oferece
adequação da personalidade individual aos cânones para evitar a ocorrência de infrações éticas (ex.:
socialmente aceitos. Trata-se, portanto, do processo descortesia, imoralidade ou ilicitude), a fim de induzir
de construção da dimensão social da vida humana, a adequação do comportamento aos cânones
que se desenvolve por meio de diversas instituições e socialmente aceitos. Para isso, se vale tanto da
de variadas instâncias normativas. coercitividade gerada pelas normas sociais (ameaça
O controle social constitui um tema central psicológica de aplicação de uma sanção-castigo)
da Sociologia. O termo aparece em estudos como também do uso de sanções positivas de
sociológicos no final do século XIX, quando se natureza premial (recompensas ou estímulos que a
examinaram os meios que aplica a sociedade para sociedade fornece para potencializar os
pressionar o indivíduo a adotar um comportamento comportamentos socialmente aceitos).
conforme os valores e cânones sociais, para, dessa O controle social repressivo abarca o
forma, garantir uma convivência humana equilibrada e conjunto de mecanismos que a sociedade oferece
pacífica. para repreender as infrações éticas já consumadas,
Com efeito, o processo de controle social por meio da imposição coativa de sanções-castigo, as
acompanha os diversos momentos da coexistência quais podem constranger o patrimônio (sanções
humana em sociedade, desde o nascimento até a patrimoniais) ou a pessoa (sanções pessoais) do
morte do indivíduo, definindo e estimulando padrões próprio infrator nas hipóteses de descortesia,
comportamentais, cuja violação implicará o imoralidade ou ilicitude.
estabelecimento de punições para as infrações ou
condutas desviantes. 4. Mecanismos de controle social

3. Tipologias de controle social O sistema de controle social apresenta dois


mecanismos básicos: a socialização e as sanções
O controle social pode ser classificado por normativas.
meio das seguintes categorias: A socialização é o processo de assimilação
de valores, visões de mundo e padrões
3.1 Controle social primário versus controle social comportamentais pelos agentes sociais. O homem,
secundário desde o nascimento até a morte, passa por esse
processo sociológico. A socialização é a base do
O controle social primário é aquele controle controle social, ou seja, é o processo de introjetar
exercido pelos primeiros agrupamentos humanos que valores e padrões de conduta.
conformam a existência individual, nas etapas iniciais Opera, portanto, a socialização com a
de socialização. Caracteriza-se pela informalidade e conformação da personalidade individual, viabilizando
pelo apego às emoções nas interações a permanente internalização de valores, crenças e

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Capítulo 6. O Processo de Controle Social e o Direito. In: SOARES, Ricardo Maurício Freire. Sociologia e Antropologia do
Direito. 2. ed. São Paulo :SaraivaJur, 2022.
padrões de conduta. A socialização ensina, portanto, o maior estímulo no sentido de ajustar sua conduta às
indivíduo a antecipar as expectativas sociais quanto ao condições existenciais.
próprio comportamento, possibilitando a adequação Ademais, saliente-se que o Estado (Poder
das suas ações aos cânones socialmente aceitos. Judiciário, Administração Pública ou Parlamento)
É por meio dessa antecipação de detém o monopólio da aplicação da sanção jurídica
expectativas que as pessoas podem fazer o que a (indenização por perdas e danos, multa, privação de
sociedade almeja. A socialização jamais poderá ser liberdade, suspensão de direitos políticos), enquanto a
integral ou absoluta, visto que a vida humana é sanção difusa pode ser aplicada por qualquer agente
essencialmente liberdade e que esta já está incrustada social, diante das manifestações de descortesia ou de
em todo ser. imoralidade.
Por sua vez, as sanções normativas
complementam o mecanismo de socialização. Tais 6. A ilicitude como objeto sociológico
sanções são aplicadas quando há a prática de
comportamentos que transgridam a uma norma ético- A ilicitude é aquele elemento da relação
social. A própria sociedade se incumbe de aplicar a jurídica que designa a conduta humana do sujeito
sanção. A transgressão a uma norma de etiqueta passivo que se revela contrária ao dever jurídico,
corresponde a uma descortesia; a transgressão a uma previsto abstratamente na norma jurídica e exigido
norma moral corresponde a uma imoralidade; a bilateralmente pelo sujeito ativo que titulariza um dado
transgressão a uma norma jurídica corresponde a um direito subjetivo.
ilícito. Em todas essas situações, será aplicada uma Uma norma jurídica prescreve o que deve ser,
sanção de natureza difusa ou organizada. mas aquilo que deve ser não corresponde sempre ao
que é no plano das interações comportamentais da
5. Controle social e o papel do direito sociedade. Se a ação humana real não corresponde à
ação prescrita no modelo normativo, afirma-se que a
O direito está situado na última fronteira do norma jurídica foi violada pelo infrator. À violação
controle social, configurando o núcleo duro das desse preceito da normatividade jurídica dá-se o nome
instâncias de normatividade ética, atuando a sanção de ilícito.
jurídica quando o espírito transgressor ingressa na Durante muito tempo, a ciência jurídica
zona mais restrita do juridicamente proibido, pois, enxergou o ilícito como a manifestação do antidireito,
sendo a vida humana a expressão de uma liberdade afastando a ilicitude do campo próprio das
essencial, tudo que não está juridicamente proibido especulações do jurista. Partia-se da concepção da
está juridicamente permitido. norma jurídica como comando ou imperativo, desde
O direito é, portanto, o modo mais formal do que o positivismo legalista do século XIX utilizou a nota
controle social formal, pois sua função é a de da coatividade para caracterizar a ordem jurídica.
socializador em última instância, já que sua presença No século XX, coube a Hans Kelsen objetar a
e sua atuação só se fazem necessárias quando as tese do imperativismo normativo, com a sua
anteriores barreiras que a sociedade ergue contra a formulação da norma jurídica não mais como um
conduta antissocial foram ultrapassadas, superando imperativo, mas, isto sim, como duplo juízo hipotético:
as condições de mera descortesia, simples “Dada a não prestação, deve ser sanção” – o preceito
imoralidade, até alcançar o nível mais grave do ilícito. primário que enuncia a ilicitude – e “Dado um fato
Por sua vez, o descumprimento de uma temporal, deve ser prestação” – o preceito secundário
norma jurídica gera uma ilicitude, a mais grave forma que expressa a licitude.
de infração social, quando comparada com a Foi com base nisso que o egologismo
descortesia e com a imoralidade. A sanção oriunda de existencial logrou situar o ilícito como resultado da não
uma ilicitude apresenta natureza organizada, porque já prestação ou do inadimplemento do dever jurídico,
está previamente determinada no sistema jurídico- abrindo margem para a sua consequência – a sanção.
normativo, ao contrário do que sucede com a Enquanto Hans Kelsen exacerbou a
mencionada sanção difusa. importância da ilicitude no direito, elemento constante
O controle social é exercido pelo direito, do raciocínio jurídico fundamental – o preceito
primeiramente, por meio da prevenção geral, aquela primário (“Dada a não prestação, deve ser sanção”),
coação psicológica ou intimidação exercida sobre Carlos Cossio incluiu o ilícito como uma das
todos, mediante a ameaça de uma pena para o possibilidades de manifestação da liberdade humana,
transgressor da norma. Em segundo lugar, o controle é ao lado da licitude, a saber: “Dado um fato temporal,
também realizado pela repressão, com a segregação deve ser prestação pelo sujeito obrigado em face do
do transgressor do meio social, ou a aplicação de uma sujeito pretensor (licitude)” ou “Dada a não prestação,
pena pecuniária, indenizatória, para ter, da próxima vez deve ser sanção pelo funcionário obrigado em face da
que se sentir inclinado a transgredir a norma jurídica, comunidade pretensora (ilicitude)”.
Com a negação kelseniana ao imperativismo violada, despontando a sanção jurídica como a
normativo, foi possível a colocação intrassistemática resposta à violação desse preceito normativo, que
do ilícito como elemento do raciocínio que pensa a configura a ilicitude. Todo sistema normativo do direito
relação jurídica, vale dizer, como condição admite, assim, a possibilidade dessa violação e um
imputativamente enlaçada à sanção, ressalvando-se, conjunto de expedientes sancionatórios para fazer
contudo, o exagero da teoria pura do direito de frente a essa modalidade de infração social.
considerar a ilicitude como a ratio essendi do próprio Com o objetivo de evitar os inconvenientes da
fenômeno jurídico. sanção moral interna, isto é, sua escassa eficácia, e os
No tocante ao tema, a dogmática jurídica da sanção externa difusa, sobretudo a falta de
procura oferecer critérios distintivos entre a ilicitude proporção entre violação e resposta, o grupo social
penal e a ilicitude civil. Sucede que não há critérios institucionaliza a sanção, ou seja, além de regular os
universais, sendo preferível entender o caráter comportamentos dos cidadãos, regula a reação aos
histórico condicionado desta dicotomia, afigurando- comportamentos contrários. Esta sanção se distingue
se a utilidade da visão sociológica de Émile Durkheim da moral por ser externa, isto é, por ser uma resposta
sobre o tema. de grupo, e da social por ser institucionalizada, isto é,
Com efeito, sustenta o grande mestre da por ser regulada, em geral, com as mesmas formas e
Escola Objetiva Francesa que a transição da ilicitude por meio das mesmas fontes de produção das regras
penal para a ilicitude civil pode ser compreendida com primárias.
base no aumento da divisão social do trabalho e da Do ângulo sociojurídico, é possível conceber
especialização funcional nas sociedades ocidentais. o direito como instrumento de controle social e de
Decerto, nas sociedades primitivas, regidas modelagem dos comportamentos humanos. Além da
pela solidariedade mecânica, a consciência coletiva socialização – processo de internalização subjetiva de
prevaleceria sobre o indivíduo, assumindo o direito valores, crenças ou padrões de conduta –, dispõem a
uma feição prevalentemente repressiva. O ilícito seria sociedade e as respectivas agências de controle social
uma nódoa a ser apagada do tecido social, sendo de sanções para reprimir a conduta desviante, visto
utilizadas sanções penais de exclusão social, v.g., que a socialização integral não é possível (liberdade
banimento e pena de morte. ontológica da vida humana).
Com o crescimento demográfico e o As sanções aplicadas pela agência de
incremento da divisão social do trabalho, as controle (família, igreja, escola, empresa, Estado)
sociedades mais avançadas não poderiam prescindir decorrem da infração às regras de convivência social
da individualização dos atores sociais, adquirindo o (normas de etiqueta, normas morais e jurídicas).
direito uma fisionomia mais restitutiva, porque voltada Enquanto a descortesia e a imoralidade são
para a restauração do estado anterior à lesão do bem sancionadas difusamente de modo espontâneo, a
jurídico, sendo aplicadas, em sua maioria, sanções ilicitude é sancionada de forma organizada. Isto
civis, e.g., indenização de perdas e danos. porque, desde que a humanidade se afastou dos
expedientes da vingança privada, da ordália e do talião,
7. A sanção jurídica como fenômeno sociológico o Estado moderno ocidental dispõe de um aparato
judicante autorizado a aplicar e impor inexoravelmente
Entende-se por sanção uma consequência as sanções jurídicas.
desagradável da ofensa a um dever ético, cujo fim é O sentido de uma cominação é que um mal
prevenir a violação ou, no caso em que a violação seja será aplicado sob determinados pressupostos; o
verificada, eliminar as consequências nocivas do ato sentido da ordem jurídica é que certos males devem,
infrator. O fim da sanção é a eficácia da normatividade sob certos pressupostos, ser aplicados, que – numa
social, ou, em outras palavras, a sanção é um fórmula mais genérica – determinados atos de coação
expediente para se conseguir que as normas sejam devem, sob determinadas condições, ser executados.
menos violadas ou que as consequências da violação Os atos de coação estatuídos pela ordem jurídica são
sejam menos graves. chamados de sanções, pois o direito figura como uma
No campo da ciência do direito, a sanção ordem coativa, não no sentido de que ele produz
figura como um dos elementos integrantes da relação coerção psíquica, mas no sentido de que estatui atos
jurídica, designando a consequência atribuída pelo coativos, designadamente a privação coercitiva da
sistema jurídico à prática da ilicitude pelo sujeito vida, da liberdade, de bens econômicos e outros,
passivo, seja por meio da imposição de um como consequência dos pressupostos por ele
constrangimento pessoal ao praticante do ilícito, seja estabelecidos.
pela aplicação de um constrangimento patrimonial ao A noção de sanção jurídica está associada ao
infrator. significado de coerção (elemento psicossocial de
Quando a ação humana real não corresponde antecipação dos elementos aflitivos da sanção) e ao
à ação prescrita, afirma-se que a norma jurídica foi sentido de coação (atualização do expediente
sancionatório pelo emprego da força). Decerto, o (sanção-nulidade), menos que perfeitas (sanção-
direito positivo congrega coerção e coação, notando- castigo), mais que perfeitas (sanção-nulidade +
se, na evolução jurídica, a ênfase à coercitividade. Isto sanção-castigo), existiriam ainda as normas
porque, ao nível da coerção, o constrangimento da imperfeitas, desprovidas de sanção jurídica, como
liberdade permite a atuação preventiva do controle aquelas que disciplinam as obrigações naturais, e.g.,
social, dispensando o emprego da violência legítima dívida de jogo. Ao revés, há quem venha a negar esta
do Estado. possibilidade, considerando que a norma jurídica,
Durkheim já afirmava que o direito figura como ente lógico, não poderia prescindir de um dos
como o fato social mais coercitivo. Hoje, reconhece-se seus elementos constitutivos: a sanção.
o valor da coerção como modalidade de violência
simbólica, na condição de elemento mais eficaz de 8. A dicotomia sanções negativas versus sanções
adequação comportamental, o que se observa na positivas
adoção ampla, pelas sociedades contemporâneas, do
modelo do panopticum (e.g., monitoramento O estudo acerca do papel desempenhado
eletrônico do comportamento humano), imaginado pelas sanções na sociedade humana afigura-se
pelo utilitarismo de Bentham e estudado mais extremamente relevante para a compreensão do
recentemente na vasta obra de Michel Foucault. funcionamento do sistema de controle social, do qual
No tocante à classificação das sanções faz parte a ordem jurídica.
jurídicas, a ciência do direito costuma promover a O controle social se operacionaliza por meio
diferenciação entre sanções não coativas, que de sanções negativas e positivas, especificadas
dispensam o uso da força (v.g., direito de retenção, durante o processo de socialização e seus
exceção de contrato não cumprido ou as chamadas mecanismos, que agem desde cedo para incutir na
sanções premiais, que figuram como certos estímulos personalidade valores e modelos normativos,
oferecidos pelo direito para prevenir e inibir as conformando a capacidade individual de estabelecer
infrações sociais, a exemplo do livramento condicional juízos éticos no âmbito do convívio grupal.
e da isenção tributária), e coativas, que reclamam a As sanções negativas, também chamadas de
utilização da força, podendo ser difusas, quando a sanções-castigo, são aquelas punições, difusas ou
força for aplicada pelos particulares (e.g., legítima organizadas, que a sociedade impõe coativamente
defesa), ou mesmo organizadas, quando a força for para aqueles que praticam infrações éticas
aplicada institucionalmente pelo Estado (e.g., (descortesia, imoralidade ou ilicitude), acarretando
aplicação de uma pena privativa de liberdade), desde um constrangimento patrimonial – Ex. 1: indenização
que a civilização humana superou a fase primitiva da por perdas e danos por meio de uma sanção civil – ou
autodefesa e da vingança privada. constrangimento físico – Ex. 2: privação da liberdade
Pode-se afirmar que, se há coincidência entre por meio de uma sanção penal.
o dever da sanção e o dever primário de cuja não Logo, as sanções negativas ou sanções-
prestação resultou a sanção, teremos a execução castigo integram a dimensão repressiva do sistema de
forçosa (v.g., penhora do patrimônio pelo credor em controle social.
face do inadimplemento de uma dívida). Caso não haja As sanções positivas, também denominadas
coincidência entre o dever da sanção e o dever sanções premiais, são aqueles benefícios, difusos ou
primário de cuja não prestação resultou a sanção, organizados, que a sociedade oferece aos agentes
teremos a indenização (e.g., inadimplemento de uma sociais para inibir a ocorrência de condutas
obrigação de fazer) e o castigo (v.g., aplicação de uma socialmente desviantes, evitando, deste modo, pela
pena de cerceamento da liberdade diante do delito de atribuição de recompensas, a configuração de
homicídio), sempre que houver a impossibilidade infrações éticas (descortesia, imoralidade ou
objetiva de restaurar a situação jurídica ao estado ilicitude). Podem ser elencadas as seguintes sanções
anterior à não prestação do dever jurídico pelo sujeito positivas ou premiais no âmbito jurídico: livramento
passivo. condicional e delação premiada no Direito Penal e
Por fim, ressalte-se, ainda, a persistência do Processual Penal; isenção fiscal no Direito Tributário;
debate doutrinário acerca da possibilidade de ou o desconto de prestações cumpridas antes do
existência de normas jurídicas sem sanções. Existem vencimento no Direito contratual.
juristas que, seguindo a tradição do Direito Romano, Destarte, atuam as sanções positivas ou
admitem a existência de normas jurídicas sem premiais na dimensão preventiva do sistema de
sanções. Com efeito, além das normas perfeitas controle social.

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