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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE

Centro de Ensino à Distância

Manual do Curso de Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa

Literaturas Africanas em Língua Portuguesa II


Código: P0209

Módulo único
25 Unidades
Direitos de autor (copyright)
Este manual é propriedade da Universidade Católica de Moçambique, Centro de Ensino à
Distância (CED) e contém reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou
reprodução deste manual, no seu todo ou em partes, sob quaisquer formas ou por quaisquer
meios (electrónicos, mecânico, gravação, fotocópia ou outros), sem permissão expressa de
entidade editora (Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à Distância). O
não cumprimento desta advertência é passível a processos judiciais.

Elaborado Por: dr. Lourenço A. Covane,


Licenciado em ensino da Língua Portuguesa pela UP-Beira.
Colaborador do Curso de Licenciatura em ensino da Língua Portuguesa no Centro de Ensino
à Distância (CED) da Universidade Católica de Moçambique – UCM.

Universidade Católica de Moçambique


Centro de Ensino à Distância-CED
Rua Correia de Brito No 613-Ponta-Gêa

Moçambique-Beira
Telefone: 23 32 64 05
Cell: 82 50 18 44 0
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E-mail: ced@ucm.ac.mz
Website: www.ucm.ac.mz
Agradecimentos
A Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à Distância e o autor do presente
manual, dr. Lourenço Covane, agradecem a colaboração dos seguintes indivíduos e
instituições:

Pela Coordenação e edição do Trabalho: dr. Armando Artur (Coordenador do Curso de


Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa);
Centro de Ensino à Distância i

Índice

Visão geral 1
Bem-vindo à cadeira de Literaturas Africanas em Português II ...................................... 1
Quem deveria estudar este módulo ................................................................................ 1
Como está estruturado este módulo? .............................................................................. 2
Ícones de actividade ...................................................................................................... 3
Habilidades de estudo .................................................................................................... 3
Precisa de apoio? ........................................................................................................... 3
Tarefas (avaliação e auto-avaliação) .............................................................................. 3
Avaliação ...................................................................................................................... 4

Unidade 01: Literatura Colonial Vs Literatura Nacional 5


Introdução ............................................................................................................ 5
Sumário ......................................................................................................................... 7
Exercícios...................................................................................................................... 8

Unidade 02: A Imprensa e o Ensino nas Colónias Portugesas 9


Introdução ............................................................................................................ 9
Exercícios.................................................................................................................... 12

Unidade 03: A Recuperação da Consciência Africana: Negritude e Panificanismo 13


Introdução .......................................................................................................... 13
Sumário ....................................................................................................................... 15
Exercícios.................................................................................................................... 15

Unidade 04: Precursores das Literaturas Africanas no domínio poético 16


Introdução .......................................................................................................... 16
Sumário ....................................................................................................................... 17
Exercícios.................................................................................................................... 18

Unidade 05: Literatura Moçambicana 19


Introdução .......................................................................................................... 19
Sumário ....................................................................................................................... 21
Exercícios.................................................................................................................... 22

Unidade 06: A Periodização da Literatura Moçambicana 23


Introdução .......................................................................................................... 23
Sumário ....................................................................................................................... 25
Exercícios.................................................................................................................... 25

Unidade 07: Perspectivas da Moçambicanidade e o Jornal Msaho 27


Introdução .......................................................................................................... 27
Centro de Ensino à Distância ii

Sumário ....................................................................................................................... 29
Exercícios.................................................................................................................... 29

Unidade 08: A Poesia da Negritude: Noémia de Sousa (Sangue Negro) 30


Introdução .......................................................................................................... 30
Sumário ....................................................................................................................... 33
Exercícios.................................................................................................................... 33

Unidade 09: Noções da Nações e Moçambicanidade: José Craveirinha 35


Introdução .......................................................................................................... 35
Sumário ....................................................................................................................... 38
Exercícios.................................................................................................................... 39

Unidade 10: Literatura e Resistência: Luís Bernardo Honwana (Nós matámos o Cão-
tinhoso) 40
Introdução .......................................................................................................... 40
Sumário ....................................................................................................................... 42
Exercícios.................................................................................................................... 42

Unidade 11: A Semântica do Ghetto: Geração de 70 (Rui Knopfli) 43


Introdução .......................................................................................................... 43
Sumário ....................................................................................................................... 45
Exercícios.................................................................................................................... 45

Unidade 12: A Renovação literária: Mia Couto 46


Introdução .......................................................................................................... 46
Sumário ....................................................................................................................... 50
Exercícios.................................................................................................................... 50

Unidade 13: A Épica e a Modernidade: Ungulani Ba Ka Khosa (Ualalapi) 51


Introdução .......................................................................................................... 51
Sumário ....................................................................................................................... 55
Exercícios.................................................................................................................... 55

Unidade 14: Literatura Angolana: 56

O Livro de Maia Ferreira e o nascimento da Literatura angolana 56


Introdução .......................................................................................................... 56
Exercícios.................................................................................................................... 60

Unidade 15: Periodização da Literatura Angolana 61


Introdução .......................................................................................................... 61
Centro de Ensino à Distância iii

Exercícios.................................................................................................................... 62

Unidade 16: O Neo-realismo: Castro Soromenho e a Trilogia romanesca (Terra Morta)63


Introdução .......................................................................................................... 63
Exercícios.................................................................................................................... 66
Introdução .......................................................................................................... 67
Exercícios.................................................................................................................... 69

Unidade 18: Contexto Sócio- cultural de Angola: Revista Mensagem 70


Introdução .......................................................................................................... 70
Exercícios.................................................................................................................... 72
Introdução .......................................................................................................... 73
Exercícios.................................................................................................................... 76

Unidade 20: angolanidade: Continuidade de Mensagem – A Revista Cultura(II) 77


Introdução .......................................................................................................... 77
Exercícios.................................................................................................................... 80

Unidade 21: A Renovação Literária: Luandino Vieira (Luuanda) 81


Introdução .......................................................................................................... 81
Exercícios.................................................................................................................... 86

Unidade 22: A Nova poesia anagolana: Os Poetas da Geração de 70 na situação de


Ghetto 88
Introdução .......................................................................................................... 88
Exercícios.................................................................................................................... 91

Unidade 23: A História e a Tematização da Guerra: Yaka (Pepetela) 92


Introdução .......................................................................................................... 92
Exercícios.................................................................................................................... 95

Unidade 24: Novo rumo da Literatura angolana no período Pós-independência (crítica


social) 96
Introdução .......................................................................................................... 96
Exercícios.................................................................................................................... 98
Centro de Ensino à Distância 1

Visão geral

Bem-vindo à cadeira de Literaturas Africanas em


Português II

Você tem em suas mãos o módulo único da cadeira de Literaturas


Africanas em Língua Portuguesa II. A cadeira de Literaturas
Africanas em Língua Portuguesa II (LALP II) leccionada no quarto
ano do curso de Licenciatura em Ensino do Português, aborda
aspectos gerais das literaturas africanas em Língua Portuguesa, em
particular a de Moçambique e Angola. Trata também do quadro
periodológico da sua literariedade, bem como os principais factores
que a influenciaram. Sendo assim, abordar-se-ão matérias de
natureza teórica e analisar-se-ão textos que espelham a realidade
literária nos dois países.
Objectivos da cadeira:

Quando terminar o estudo de Literaturas Africanas em Língua


Portuguesa II, o estudante (cursante) será capaz de:

Objectivos  Compreender as circunstâncias do advento das Literaturas


Africanas de Expressão Portuguesa;

 Distinguir a Literatura Colonial da Literatura Nacional;

 Relacionar a Literatura Moçambicana com a Angolana;

 Conhecer os aspectos formais e temáticos dos textos literários de


autores mais representativos nos dois países.

Quem deveria estudar este módulo

Este módulo foi concebido para todos aqueles Estudantes


candidatos ao Curso de Licenciatura em Ensino da Língua
Portuguesa, que devido a sua situação laboral, não têm a
oportunidade de poder estar num sistema de ensino totalmente
presencial. Espera-se que os futuros professores de Português
possam ensinar esta língua com correcção, tendo em atenção aos
Centro de Ensino à Distância 2

principais factores que influenciaram o surgimento das Literaturas


Africanas em Língua Portuguesa, virando um especial enfoque para
Moçambique e Angola.

Como está estruturado este módulo?

Todos os manuais das cadeiras dos cursos oferecidos pela


Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à
Distância (UCM-CED) encontram-se estruturados da seguinte
maneira:

Páginas introdutórias
Um índice completo.
Uma visão geral detalhada da cadeira, resumindo os aspectos-
chave que você precisa conhecer para completar o estudo.
Recomendamos vivamente que leia esta secção com atenção
antes de começar o seu estudo.

Conteúdo da cadeira
A cadeira está estruturada em unidades de aprendizagem. Cada
unidade incluirá, o tema, uma introdução, objectivos da unidade,
conteúdo da unidade incluindo actividades de aprendizagem,
um sumário da unidade e uma ou mais actividades para auto-
avaliação.

Outros recursos
Para quem esteja interessado em aprender mais, apresentamos uma
lista de recursos adicionais para você explorar. Estes recursos
podem incluir livros, artigos ou sites na internet.

Tarefas de avaliação e/ou Auto-avaliação


Tarefas de avaliação para esta cadeira, encontram-se no final de
cada unidade. Sempre que necessário, dão-se folhas individuais
para desenvolver as tarefas, assim como instruções para as
completar. Estes elementos encontram-se no final do manual.

Comentários e sugestões
Esta é a sua oportunidade para nos dar sugestões e fazer
comentários sobre a estrutura e o conteúdo da cadeira. Os seus
comentários serão úteis para nos ajudar a avaliar e melhorar este
manual.
Centro de Ensino à Distância 3

Ícones de actividade

Ao longo deste manual irá encontrar uma série de ícones nas


margens das folhas. Estes ícones servem para identificar diferentes
partes do processo de aprendizagem. Podem indicar uma parcela
específica de texto, uma nova actividade ou tarefa, uma mudança
de actividade, etc.

Habilidades de estudo

Caro estudante, procure reservar no mínimo 2 (duas) horas de


estudo por dia e use ao máximo o tempo disponível nos finais de
semana. Lembre-se que é necessário elaborar um plano de estudo
individual, que inclui, a data, o dia, a hora, o que estudar, como
estudar e com quem estudar (sozinho, com colegas, outros).
Lembre-se que o teu sucesso depende da sua entrega, você é o
responsável pela sua própria aprendizagem e cabe a se planificar,
organizar, gerir, controlar e avaliar o seu próprio progresso.
Evite plágio.

Precisa de apoio?

Caro estudante:
Os tutores têm por obrigação monitorar a sua aprendizagem, dai o
estudante ter a oportunidade de interagir objectivamente com o
tutor, usando para o efeito os mecanismos apresentados acima.
Todos os tutores têm por obrigação facilitar a interacção. Em caso
de problemas específicos, ele deve ser o primeiro a ser contactado,
numa fase posterior contacte o coordenador do curso e se o
problema for da natureza geral, contacte a direcção do CED, pelo
número 825018440.
Os contactos só se podem efectuar nos dias úteis e nas horas
normais de expediente.

Tarefas (avaliação e auto-avaliação)

O estudante deve realizar todas as tarefas (exercícios), contudo nem


todas deverão ser entregues, mas é importante que sejam
realizadas. Só deverão ser entregues os exercícios que forem
indicados pelo Tutor. Isto, antes do período presencial.
Podem ser utilizadas diferentes fontes e materiais de pesquisa,
contudo os mesmos devem ser devidamente referenciados,
respeitando os direitos do autor.
Centro de Ensino à Distância 4

Avaliação

A avaliação da cadeira será controlada da seguinte maneira:


 Três (3) Trabalhos realizados pelos estudantes, sendo
divididos em três sessões presenciais de acordo com a
programação do Centro.
 Dois (2) Testes escritos em presença e um (1) exame no fim
do ano.
Centro de Ensino à Distância 5

Unidade 01: Literatura Colonial Vs Literatura Nacional

Introdução

Nesta unidade introdutória, vai-se aprender uma breve noção sobre


o aparecimento da literatura de expressão portuguesa em África,
por forma de perceber melhor os traços comuns e descomuns que
há na história literária dos países africanos de expressão em língua
portuguesa.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Adquirir uma breve noção sobre o surgimento da litetautura


Africana de expressão portuguesa;
Objectivos
 Distinguir a literatura colonial da literatura nacional

Literatura Colonial Vs Literatura Nacional


As literaturas africanas em língua portuguesa tiveram seu
desenvolvimento a partir da segunda metade do século XIX, como
não poderia deixar de ser, tratando-se de países africanos, dotados
em sua maioria por culturas de tradição oral (embora não
exclusivamente). Diferentemente da produção colonial africana, as
literaturas africanas adotam um ponto de vista do colonizado, “de
dentro para fora”
.
Marcadas pelo colonialismo português, os conflitos e relações que
esta forma administrativa acarreta, foram com o passar do tempo,
inspiração constante na literatura das então colónias de Portugal,
actuais países de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau,
Angola e Moçambique. Por ter sido, o fazer literário nestes países,
muitas das vezes, formas de resistência e militância, serão
exactamente estas nuances que marcam as relações colonizador x
colonizado e as demais buscas de afirmação identitária que elas
acarretam. A literatura, então, passa a construir em forma de
militância política, de denúncia, de busca de uma identidade, a
ideologia para a independência e afirmação de identidades nestes
países.
Centro de Ensino à Distância 6

Quatro anos apenas após a instalação do prelo em Angola ocorre a


publicação do livro Espontaneidades da minha alma (1849), do
angolano, mestiço ao que parece, José da Silva Maia Ferreira, o
primeiro livro impresso na África lusófona.
O primeiro livro impresso, mas não a mais antiga obra literária de
autor africano. Por pesquisas que recentemente que se levam a
cabo, é anterior àquele, pelo menos, o poemeto da cabo-verdiana
Antónia Gertrudes Pusich, Elegia à memória das infelizes vítimas
assassinadas por Francisco de Mattos Lobo, na noite de 25 de
Junho de 1844, publicado em Lisboa no mesmo ano. Entretanto não
será deslocado citar-se o Tratado breve dos reinos da Guiné, escrito
em 1594, da autoria do cabo-verdiano André Alvares de Almada; e
de origem cabo-verdiana se supõe ser André Dornelas, autor do
século XVI, que assina uma descrição da Guiné.
Tal, porém, não se autoriza a remontar as origens da poesia
angolana a tão recuados tempos, como já, com alguma
intemperança, se se quer insinuar. Repondo, por isso, a questão
com certa objectividade pode afirmar-se que a literatura africana
chama a si mais de um século de existência. Este longo período de
mais de um século de actividade literária está, porém, contido em
duas grandes linhas: a literatura colonial e a literatura africana de
expressão portuguesa.
A primeira, a literatura colonial, define-se essencialmente pelo
facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao
homem europeu e não ao homem africano.
No contexto da literatura colonial, por décadas exaltadas, o homem
negro aparece como que por acidente, por vezes visto
paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque
a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à
categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o
portador de uma cultura superior. Exemplo: 'o único país que pode
explorar seriamente a África, é Portugal' (prefácio de Manuel
Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de
Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: 'É um homem na
forma, mas os instintos são de fera', p. 87). Paradoxalmente, o
branco é eleito como o grande sacrificado.
A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente
dinâmico e não o opressor: 'Fiel aos nossos deveres de dominador,
grata ao nosso orgulho, útil às populações', escrevia um homem
anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929).
Predominavam, então, as ideias da inferioridade do homem negro,
que teóricos racistas, como Gobineau, haviam derramado e para as
quais teria contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da
mentalidade pre-lógica, ― sendo certo, embora, que a renunciou
pouco antes de morrer.

Logo no último quartel do século XIX encontram os pioneiros


Centro de Ensino à Distância 7

desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai


atingir o ponto mais alto, na quantidade, na marca colonialista, na
aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza
motivado pelo exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de
apreender o homem africano no seu contexto real e na sua
complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela
qualidade de sua escrita João de Lemos, “Almas negras”, 1937,
porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um
meritório esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor
português, manietado pela distanciação colonialista, por norma, dá
ao seu discurso um sentido racista, hoje de inconcebível aceitação.
O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente,
era incapaz de se furtar à insidiosa instauração do fascismo em
Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí vinha já o
célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a
uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma
reformulação da mentalidade do europeu. Hoje, não há lugar para
dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento,
salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas
contingências de uma época e de uma mentalidade coloniais,
evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real
qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma
severidade implacável e arrumará a quase totalidade desta literatura
no discurso da acção colonizadora ou no nacionalismo imperial,
saudosista e deslumbrado.

Sumário

De uma forma geral, o percurso da Literatura de expressão


portuguesa divide-se em cinco momentos. No primeiro momento, o
escritor está em estado quase absoluto de alienação, inteiramente
absorvido pela cultura colonizadora, reproduzindo seus ideais. Os
seus textos poderiam ter sido produzidos em qualquer outra parte
do mundo: é o menosprezo e a alienação cultural. O segundo
momento corresponde à fase em que o escritor ganha a percepção
da realidade, apontando distinções geográficas, sociais etc. em
relação à “metrópole”. O seu discurso revela influência do meio,
bem como os primeiros sinais de sentimento nacional: é a dor de
ser negro; o negrismo e o indigenismo. O terceiro momento é
aquele em que o escritor adquire a consciência nacional de
colonizado. Liberta-se, promovendo um pensamento dialético entre
raízes profundas e coibição de sujeição colonial. A prática literária
enraízase no meio sócio-cultural e geográfico: é a desalienação e o
discurso da revolta. O quarto momento corresponde à fase histórica
da independência nacional, quando se dá a reconstituição da
Centro de Ensino à Distância 8

individualidade plena do escritor africano: é a fase da produção do


texto em liberdade, da criatividade.

Finalmente, há o quinto momento, marcado, ora, pela


despreocupação em valorizar-se excessivamente a africanidade: as
fragilidades humanas, as vulnerabilidades é que são, agora,
enfatizadas.

Exercícios

1. De uma forma sucinta, fale dos momentos da literatura nas


colónias portuguesas.
2. Distingue a literatura colonial da nacional.
Centro de Ensino à Distância 9

Unidade 02: A Imprensa e o Ensino nas Colónias Portugesas

Introdução
Nesta unidade, vai estudar os aspectos marcantes que deram maior
impulso ao surgimento da literatuta escrita nas colónias africanas
de expressão em língua portuguesa.
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Conhecer aspectos importantes que ditaram o surgimento


da literatura escrita nas colónias africanas;
Objectivos
 Caracterizar o ensino nas colónias;
 Indicar, em cada colónia, a data em que foi introduzida a
imprensa;
 Indicar, em cada colónia, os primeiros órgãos de
comunicação social.

2. A Imprensa e o Ensino nas Colónias Portuguesas

A imprensa e o ensino contribuiram sobremaneira para a eclosão


da literatura escrita nas colónias portuguesas, embora fosse mais
importentes numas e noutras não devido a repreensão e censura
intensificadas.

2.1 A Imprensa
A imprensa foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo
Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e
Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).
Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim
Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário
oficial e religioso, mas que também incluía textos literários
(poemas e crónicas).
Em geral, no século passado, excepto em Angola, a imprensa foi
menos importante devido à repressão. O semanário O progresso
(1868), de Moçambique, religioso, instrutuvo, comercial e agrícola,
teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir
Centro de Ensino à Distância 10

à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano chamado


Carvalho e Silva fundou quatro jornais, todos fechados, o último
dos quais foi assaltado, a tipografia destruída e o director agredido,
de que resultou sua morte. De facto, a história da imprensa não
oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos,
da colónia e de Lisboa.
Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra
a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os
mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na
consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados
pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909 - 1918), O
Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo
sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo noutros
moldes (1941 - 55).
Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, só apareceu em 1920.

Em Cabo Verde e São Tomé a imprensa contribuiu decisivamente


para o incentivo à criação literária no quadro da limitação insular.
No século XIX foi intensa e brilhante a actividade jornalística em
Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A
Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um
jornal pugnado pela abolição da escravatura, A civilização da
África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e
Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.
De 1860 até 1900, surge cerca de meia centena de títulos de
jornais, artesanais e epsódicos, mas de grande importância para o
fomento da actividade literária e intelectual. Desde o jornal de
Luanda (1878), que marca a transição do jornalismo de cariz mais
colonial para o proto-nacionalista, até O Pharol do Povo (Futuro de
Angola), muitos contribuiram para a informação, elevação cultural
e promoção das línguas locais.
O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881),
inauguando duas décadas de frenética actividade jornalística(até
aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre
africana, terminando com a fundação de A Província de Angola
(1923), primeiro jornal do tipo moderno, que passou a quotidiano
em 1926, perdurando ainda hoje as intalações ao serviço do Jornal
de Angola. Algumas publicações marcaram o desejo de
emancipação dos filhos do país: Voz d'Angola (1901) e revista Luz
e Crença (1902).
É, pois, através de jornais que os letrados fazem a aprendizagem da
escrita. Esse desígnio jornalístico marcaria decisivamente os
escritors de África, que quase sempre assistiam a divulgação de
seus textos através de antologia, antes de os poderem ver
estampados em um livro, objeto que poucas vezes tinham acesso
por várias dificuldades (censura, perseguição, pobreza, desleixo
etc. que foram aumentando e crescendo até a independência)".
Centro de Ensino à Distância 11

2.2 O Ensino nas Colónias Portuguesas


A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos
anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola,
quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto
dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando
os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar
uma elite muito restrita de assimilados para servirem no sector
terciário, ao mesmo tempo que deixava as populações entregues a
si próprias, sem permitir o seu auto-desenvolvimento ou, no pior
dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.
Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum
contratado» (1950):
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler.
e eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!
No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas
colónias. Com o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o
domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869, voltou a ser
apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo.
Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas
oficiais e particulares para brancos e nas zonas rurais havia as
missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos séculos,
exclusivamente a nível primário.
Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação
da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões religiosas por
laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem
auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda,
foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões
civilizadoras» foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno.
A língua usada nas escolas e fora delas, por professores,
missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com as línguas
nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra
Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas
autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política
governamental procurou acelerar a assimilação, fazendo um
esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver o
secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando
instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino
superior, ao contrário de outras colónias, inglesas ou francesas,
apenas estava ao alcance de um número muito reduzido de
estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a
pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do
início da luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram
instalados os Estudos Gerais, de nível universitário, a partir de
1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e Nova
Centro de Ensino à Distância 12

Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que


deles beneficiaram.
Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam
os partidos no poder, após 1975, criaram o seu ensino e
alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de
massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de
militantes na clandestinidade e faixas de população que os
apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-
Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não tiveram
tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir
a escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO
(1962) tinham essencialmente preocupações políticas e militares,
mas dedicavam uma atenção especial às questões culturais. Os
outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram
qualquer preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e
Príncipe) nasceu pouco antes da independência..

Exercícios

1. Identifique os factores ligados ao surgimento da literatura


nas colónias africanas de expressão portuguesa.
2. Caracterize o ensino no período colonial.
3. Preencha a tabela seguinte:
Colónia Ano da introdução da
tipografia
Moçambique 1854
Angola
1857
Guiné-Bissau
4. Diga por que é que em algumas colónias a imprensa foi
menos importante.
Centro de Ensino à Distância 13

Unidade 03: A Recuperação da Consciência Africana: Negritude e Panificanismo

Introdução
Nesta unidade, portanto, conhecerá profundamente os grandes
marcos que diferenciam a negritude e o pan-africanismo, bem
como falar dos seus percursores.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Ter conhecimentos sobre os principais movimentos de


Objectivos consciencialização dos negros;
 Ter uma perspectiva sumária da Negritude;
 Conhecer os percursores da Negritude;
 Distinguir as fases pelas quais o movimento negro passou
(Renascimento dos negros, indigenismo e negrismo).

Movimentos de consciencialização dos negros: Negritude;


Indigenismo e Negrismo

A ideia de Renascimento, indigenismo e Negrismo surge nas


américas, principalmente nos EUA e nas Caraíbas, como como
consequência das Luzes e do Romantismo que levaram á abolição
da escravatura que culminou com o surgimento dos movimentos de
liberdade dos povos.
A Negritude lançou as suas raízes até aos movimentos culturais
protagonizados por negros, brancos e mestiços que, desde as
décadas de 10, 20 e 30, vinham pugnando por uma busca e
revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e populares,
principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados
unidos da América, mas também um pouco por todo o lado.
Nas Caraíbas, esse movimento para a revalorização do negro e do
índio, espoliados na sua condição de seres humanos pela
prepotência do homem branco, esclavagista ou de mentalidade
afim, teve particular incidência em Porto Rico (através da escrita de
Luís Pales Matos), no Haiti (sob o nome de Indiginismo e a acção
de escritores como Jean Price Mars e Jacques Roumain) e em
Centro de Ensino à Distância 14

Cuba, onde adoptou a designação Negrismo Cubano e ganharam


extrema relevância, entre outros, os nomes dos poetas Regino
Pedroso, Marcelino Avozocena, Rodriguez Mendez e, em
particular, Nicolás Guillen, escritor e compositor, com grande
influência nos meios intelectuais neo-realistas, africanos e
modernistas brasileiros e cuja obra " Motivos de Son " (1930)
revoluciona por completo a poesia cubana. Na América do Sul,
mais concretamente no Brasil, o movimento tomou a designação de
Modernismo e teve nos poetas Castro Alves, Jorge de Lima, Lino
Guedes e outras figuras de grande destaque.
Esse grande movimento de renascimento e de revalorização do
negro, esse grito de revolta anti-colonialista que apelava à união e à
solidariedade dos negros de todo o mundo e que se denominou nos
seus primórdios Pan-africanismo1 (anos 10 e 20), chegaria à
Europa através da França (1935), onde permanecia uma
significativa comunidade de estudantes africanos e caribenhos, que
na diáspora se manifestavam profundamente apreensivos com a
situação dos negros a nível mundial. Ali ganharia o nome
universalmente consagrado de Negritude (1939) e para a sua
eclosão e afirmação contou com a profícua acção de escritores
como Léopold Sedar Senghor ( Senegal ), Aimé Césaire
(Martinica) e Leon Damas (Guiana), através, respectivamente, de
obras como " Chants d' Ombre ", " Cahiers d' un Retour au Pays
Natal" e " Pigments " bem como dos jornais "Légitime Defense "
e " L' Etudiant Noir" e a revista "Présence Africaine ".
Numa breve síntese, pode dizer-se que a Negritude consistia, para
além de tudo, na recusa pelo negro da assimilação e, para tal, era
necessário que este se reconhecesse nos elementos de uma cultura
enraizada no solo nacional, orgulhar-se dela, dos seus valores.
Buscava-se com ela o ressurgimento da consciência histórica,
cultural e política e do orgulho de ser negro, o que contribuiu para
despoletar no mundo negro um surto nacionalista sem precedentes.
Considera Pires Laranjeira que pela poesia da Negritude " perpassa
a decadência da civilização ocidental, o triunfo da raça negra... o
triunfo do riso, do canto e da esperança. Trata-se da recusa da
civilização ocidental, da evocação continuada dos negreiros e sua
repressão (tema maior do sofrimento do passado ), do cortejo da
violência, com a consequente ameaça de revolta, o despertar da
África, a reivindicação da Negritude, que levou o negro-objecto a
assumir-se como Negro-sujeito."
Constituem seus temas fundamentais a exaltação ou mitificação do
país distante, a ânsia de regresso à terra natal, a relevância
fundamental da raça e da cor da pele, a condição do negro em

1
O pan-africanismo é uma ideologia que propõe a união de todos os povos de
África como forma de potenciar a voz do continente no contexto internacional.
Centro de Ensino à Distância 15

África e fora dela, o país como um paraiso perdido da infância que


se opõe à frieza, agressividade e decadência da cultura dominadora
europeia.
Outro movimento não menos importante, aludido na nota anterior,
a referenciar é o pan-africanismo dada a sua irmanidade com a
negritude, como a seguir se realciona: “ pan-africanismo
propriamente dito não tivesse existido sem a conjugação de três
factores primordiais. O primeiro e o que lhe dá razão de ser; é o
esclavismo ocidental e a exploração das pessoas negras na América
e África bem como a carreira colonialista da Europa, na África. O
segundo factor será a presença nos Estados Unidos (de emigrados e
estudantes procedentes das Antilhas), uma área geográfica com
uma longa tradição de movimentos de emancipação e auto
libertação de escravos. Por último, cabe destacar a actividade e
produção de intelectuais negros como Du Bois”.

Sumário

Senghor foi um dos maiores divulgadores da negritude, que se


consolidava como um movimento cultural de resgate/construção da
identidade negra, buscando desvelar a alma negra cuja
característica essencial seria a emoção: "A emoção é negra, assim
como a razão é helênica". A atitude do negro frente ao mundo e aos
outros é de abandono e comunhão. Em si o negro é um campo de
impressão, que através da sensibilidade descobre o outro. Da
mesma forma que nesta interação ele não vê o objeto, mas o sente,
"é na sua subjetividade, no limite de seus órgãos sensoriais que ele
descobre o outro".

Exercícios

1. Diferencie Negritude de Pan-africanismo.


2. Relacione os movimentos de Negritude e Pani-africanismo
e as independências das colónias africanas de expressão
portuguesa.
3. Destaque os papéis de Sengor e Du Bois na criação de
movimentos de revalorização das cutltura do negro e
africanos, em geral.
Centro de Ensino à Distância 16

Unidade 04: Precursores das Literaturas Africanas no domínio poético

Introdução

Nesta unidade vai falar dos percursores das literaturas africanas,


sobretudo Rui de Noronha.
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Identificar percusores da literatura africana de expressão


portuguesa na arena poética.
Objectivos

Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências


diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha,
de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da
literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético.

A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente


escrita em Portugal, por volta de 1880. O arquipélago de S. Tomé
encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas
sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das
riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos
«filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco
dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura
insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da
condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do
seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era
hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa
Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial.

Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,


Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.

Não amas!... flor, que esta minha alma adora.

És a luz, eu a sombra pavorosa,


Centro de Ensino à Distância 17

Eu sou a tua antítese frisante,


Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.

(Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26)

Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos


suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência.
Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche,
prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua
impossível realização, em tanto que assimilado.

Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe


causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a
resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação
africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»:

"Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.


Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo...
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infinito...

A selva faz de ti sinistro eremitério


Onde sozinha à noite, a fera anda rugindo...
Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério
E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo...

Desperta! Já no alto adejam negros corvos


Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente em carne de sonâmbula.

Desperta! O teu dormir já foi mais que terreno


Ouve a voz do Progresso, este outro nazareno
Que a mão te estende e diz: África, surge et ambula!"

Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma


completa identificação com o seu povo.

Sumário

Rui de Noronha e Costa Alegre são considerados os mentores da


literatura africana de expressão no domínio poético.
Centro de Ensino à Distância 18

Exercícios

1. Num texto corrido (mínimo uma página) apresente a análise


comparativa dos poemas Surge et ambula de Rui de
Noronha e Aurora de Costa Alegre, tendo em conta os
aspectos da africanidade e da negritude. Não se esqueça de
falar dos aspectos temático-ideológicos, estético-estilísticos.
Centro de Ensino à Distância 19

Unidade 05: Literatura Moçambicana

Introdução
Esta unidade debruça-se especificamente sobre o processo de
formação da literatura moçambicano, se compararmos com o de
outras colónias portuguesas.
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Adquirir conhecimentos básicos sobre o surgimento da literatura


moçambicana;
 Reconhecer os percursores da literatura moçambicana nas
diferentes fases da sua história.
 Identificar em textos dados as marcas da poesia de combate.

Literatura Moçambicana
De acordo com as pesquisas, a literatura moçambicana é incipiente,
em relação à literatura angolana e de Cabo Verde. No entanto, “não
será arriscar demasiado dizer que a actividade cultural de
Moçambique naquele período deve ter sido sobretudo orientada
para o jornalismo”. Mas para perceberes melhor este assunto, vais
estudar profundamente, nesta unidade didáctica, os marcos
importantes que estiveram na origem desta jovem literatura.
O processo de formação da literatura de Moçambique segue os
mesmos trâmites que o de Angola. A formação, sobretudo nas
zonas urbanas da Beira e Lourenço Marques (agora, Maputo), de
uma elite de alguns negros, mestiços e brancos que se apoderou,
aos poucos, dos canais e centros de administração e poder, é factor
preponderante na emergência de uma literatura que passa pelas
mesmas fases para Angola: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e
luso-tropicalista, nacional e pós-colonial.
Em termos de precursores desta literatura, há que referir Rui de
Noronha, João Dias e Augusto Conrado. Entre eles merece realce
Rui de Noronha, cujo livro de Sonetos foi publicado seis anos após
a sua morte. A sua poesia reveste-se de algum pioneirismo, não
pela forma, mas pelo conteúdo, uma vez que alguns dos sonetos
mostram sensibilidade para a situação dos mestiços e negros, o que
Centro de Ensino à Distância 20

constitui a primeira chamada de atenção para os problemas


resultantes do domínio colonial. Rui de Noronha representa
também uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos
poéticos, o legado da tradição oral africana. Sirva, como exemplo,
o poema carregado de imagens do mundo mítico africano,
intitulado "Quenguelequêze!
Uma parte significativa da produção literária moçambicana deve-se
aos poetas da "literatura européia" ou seja, aqueles que, sendo
brancos, centram toda, ou quase toda a sua temática nos problemas
de Moçambique; foram eles que contribuíram decisivamente para a
formação da identidade nacional moçambicana. Merecem especial
realce: Alberto de Lacerda , Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória
Sant'Anna, Sebastião Alba, Luis Carlos Patraquim e António
Quadros. Alguns destes poetas escrevem poesia de carácter mais
pessoal, enquanto os outros estão virados para o aspecto "social".
Por exemplo, Reinaldo Ferreira e Rui Knopfli são poetas cuja obra
se debruça fundamentalmente sobre a África, a "Mãe África" e o
povo que vive e sofre as consequências do colonialismo. Por muita
desta poesia perpassa também a centelha da esperança da
libertação. São estes autores que contribuíram deum modo decisivo
para a emergência da literatura da "moçambicanidade". Em muitos
destes poetas podemos detectar a alienação em que se encontram
perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo
de Rui Knopfli:

Europeu me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem raiz de algum
pensamento europeu,
É provável...Não. É certo,
mas africano sou.
A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada
sobretudo por escritores que militavam na Frelimo. Entre eles,
destaque para Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes.
Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com comunicar uma
mensagem de cunho político e, algumas vezes , partidário. Como
literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar,
com alguns belos poemas de carácter intimista, no seu livro
Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é pouco ou nada
inovadora.

Como nos outros países, surge também em Moçambique um


número de escritores cuja obra poética é conscientemente
produzida tendo em conta o factor da nacionalidade, anterior, como
é evidente, à realidade do país que mais tarde se concretiza. São
eles que forjam a consciência do que é ser moçambicano no
Centro de Ensino à Distância 21

contexto, primeiro da África e, depois, do mundo. Entre os


principais autores deste tipo de poesia, encontram-se Noémia de
Sousa, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Mia Couto
e Luis Carlos Patraquim.
A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e
referência obrigatória em toda a literatura africana, é José
Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as
fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até
praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar
uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social,
política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de
marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande
pendor lírico e intimista.
Uma breve referência faz-se à poesia do período pós-independência
. Os poetas desta geração (é evidente que não me refiro aos
"grandes" de antes de 1975, como Reinaldo Ferreira , Knopfli e
Sebastião Alba) desviaram-se da poesia de cariz colectivo,
preferindo o individual e o intimista com que relatam a sua
experiência pós-colonial. Entre estes poetas , é obrigatória a
referência a Mia Couto, mas sobretudo a Luis Carlos Patraquim.
São dois grandes construtores da palavra, preocupados com a
linguagem poética. No caso de Mia Couto, penso que ele acaba por
transferir todo o seu potencial poético para a ficção. Luis Carlos
Patraquim revela influências de Craveirinha e Knopfli, sobretudo
nos seus poemas de maior pendor pessoal e lírico, a sua poesia
revela-se de certo modo, caótica, sensual e, por vezes, surrealista.
Patraquim desenvolve uma poesia que, em parte, é inovadora,
focalizada sobretudo no amor e no erotismo. Nota-se também uma
grande preocupação de ligar a sua experiência ao mundo universal
dos poetas para além das fronteiras africanas. Autor de três livros
(Monção, A inadiável viagem; e Vinte e tal Formulações e Uma
Elegia Carnívora) , Luis Carlos Patraquim representa a fusão entre
as duas grandes vertentes da poesia moçambicana: a da
moçambicanidade e a da linguagem lírica e sensual do "estar em
Moçambique".

Sumário
A literatura moçambicana é incipiente, em relação à literatura
angolana e de Cabo Verde. No entanto, não será arriscar demasiado
dizer que a actividade cultural de Moçambique naquele período
deve ter sido sobretudo orientada para o jornalismo.
A literatura moçambicana segue os mesmos carris tais como seguiu
a angolana: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e luso-tropicalista,
nacional e pós-colonial.
Centro de Ensino à Distância 22

Exercícios

1. Fale do valioso contributo da poesia de Noronha no âmbito


da literatura moçambicana.
2. Debruce-se sobre a literatura política e de combate, tendo
em conta
3. Fazendo um enquadramento do texto abaixo na poesia de
combate, refira-se do valor da repetição, da anáfora e do
paralelismo aí presentes.

Canto dos guerrilheiros


Nós nascemos do sangue dos que morreram,
porque o sangue
é terra onde cresce a liberdade.

Os nossos músculos
São fardos de algodão
Amarrados de ódio.

O nosso passo
Sincronizou-se nas fábricas
Onde as máquinas nos torturam.

Foi na profundidade das minas,


Onde o ar foge espavorido
Que os nossos olhos se abriram.

Nós, filhos de Moçambique


Pela pátria que nos levou no ventre,
Nosso grito de vingança das mulheres,

Pela viuvez gerada pelo chibalo


Nós juramos
Que a luta continua,

Pelo sangue de Fevereiro,


Juramos que as nossas bazzokas
Beberão mais aço.

Pela explosão de Fevereiro


Juramos que as nossas minas
Devorarão mais corpos

Pela ferida de Fevereiro,


Juramos que as nossas metralhadoras
Abrirarão clareiras de esperança.

Sérgio Vieira, poesiade combate 2, 1979


Centro de Ensino à Distância 23

Unidade 06: A Periodização da Literatura Moçambicana

Introdução

Como acaba de ver na unidade anterior, a literatura moçambicana


segue os mesmos caminhos que a de Angola, todavia, vai aqui
falar, especilamente, dos principais momentos literários , bem
como os factos que marcam o seu advento.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Conhecer o quadro cronológico da literature em Moçambique


Objectivos  Destacar os aspectos essenciais em cada período (preparação,
formação, desenvolvimento e consolidação)

Periodização da Literatura Moçambicana

Estudando e firmando uma periodização para a Literatura


Moçambicana, LARANJEIRA reconhece e define cinco diferentes
períodos, organizados do seguinte modo: um primeiro e um
segundo períodos que ele chama de preparação, um terceiro
período que ela chama de formação, um quarto período de
desenvolvimento, e um quinto período, de consolidação.

O 1.°período tem suas origens na permanência dos portugueses na


região índica e estende-se até o ano de 1924, ano anterior à
publicação de O livro da dor de João Albasini. Foi chamado pelo
autor período de Incipiência, por ser “um quase deserto secular,
que se modifica com a introdução do prelo, no ano de 1854, mas
sem os resultados literários verificados em Angola.” Campos
Oliveira (1847-1911), na poesia, e João Albasini, na prosa, são,
segundo o historiador, os nomes mais representativos desse
período.

O 2.° período, nomeado Prelúdio, estende-se da publicação de O


livro da dor até o final da II Guerra Mundial, e inclui o livro do
jornalismo João Albasini, os poemas dispersos, nos anos 30, de
Rui Noronha, depois publicados em livro, com o título de sonetos
(1946).
Centro de Ensino à Distância 24

A partir do início do século XX, escritores e jornalistas africanos


publicaram seu próprio jornal na capital. Apesar dos problemas de
censura colonial, a publicação actuou como um fórum para
escritores e intelectuais africanos ao longo do século. Desde então,
começou a ser estruturada a consciência da “moçambicanidade”.

Relacionados aos primeiros passos do nacionalismo, virão os


nomes de Noémia de Sousa, Marcelino dos Santos, Craveirinha,
Orlando Mendes, Rui Nogar, Virgílio de Lemos, Rui Guerra,
Fonseca Amaral, e outros. Está implantado o que LARANJEIRA,
chama de 3.°período.

O 3.° período abrangendo o intervalo de 1945-48 a 1963,


caracteriza-se pela intensiva Formação da literatura moçambicana.
Uma inaugural consciência de grupo instala-se no seio dos
escritores, tocados pelo Neo-realismo e, a partir dos primeiros anos
de 50, pela Negritude.

O 4.° período, que vai de 1964 até 1975, ou seja, do início da luta
armada de libertação nacional à independência do país (a
publicação de livros fundamentais coincide com estas datas
políticas), é denominado “período de Desenvolvimento da
literatura”, e se caracteriza pela coexistência de maciça actividade
cultural e literária no hinterland, no ghetto, apresentando textos
cuja feição não explicita carácter marcadamente político (em que
pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio
Lisboa, Rui Knopfli, o português António Quadros, entre outros) e,
por outro lado, poemas anti-colonialistas que incitavam à revolução
e tematizavam a luta armada.

Nós matamos o cão-tinhoso, livro de contos de Luís Bernardo


Honwana, publicado em 1964, torna-se marco da ampliação dos
horizontes da produção ficcional em Moçambique. Portagem, de
Orlando Mendes, escrito em 1966, ficará, contudo, registrado como
o primeiro romance moçambicano.

Um outro facto, todavia, vai modificar o quadro da literatura


moçambicana: a migração de muitos intelectuais e artistas antes e
depois da independência. Essa migração vai ampliar a natureza
híbrida da cultura moçambicana, pois muitos desses autores
passarão a sofrer influência mais incisiva da cultura europeia,
chegando mesmo àquilo de LARANJEIRA (1995:350) chama de
“identidade nacional indefinida, vacilante ou dupla”.

O último período definirá a situação atual da Literatura


Moçambicana, o 5.° período, inscrito entre 1975 e 1992, chamado
de Consolidação. A partir desse momento passou a não haver
dúvidas quanto à autonomia e extensão da literatura moçambicana.
Da independência até 1982, foi notável a divulgação de textos
engavetados ou dispersos. Texto típico foi Silêncio escancarado
Centro de Ensino à Distância 25

(1982), primeiro e único livro de Rui Nogar (1935-1993). Também


são encontrados textos de exaltação patriótica, de culto dos heróis
da luta de libertação nacional e de temas marcadamente
doutrinários, militantes ou empenhados, no tempo da
independência.

Sumário

LARANJEIRA reconhece e define cinco diferentes períodos,


organizados do seguinte modo: um primeiro e um segundo
períodos que ele chama de preparação, um terceiro período que ela
chama de formação, um quarto período de desenvolvimento, e um
quinto período, de consolidação.

Exercícios

1. Leia o seguinte trecho e diga o que simboliza a personagem


cão-tinhoso2.

O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram
enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho.
Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a
pedir qualquer coisa sem querer dizer.
Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do
pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor
Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a
andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.
O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu
gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o
Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava
todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os
bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.
Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros
cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar
debaixo do rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que
nunca, mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e
longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade.
Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-
Tinhoso. Depois zangavam-se e punham- se a ladrar, mas como ele não dissesse
nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar
debaixo do rabo uns aos outros e a correr.
Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e
avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as

2
Para completar a leitura deste conto, ver em anexo.
Centro de Ensino à Distância 26

orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o
que ele queria, teve medo e parou no meio da estrada.
Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar
a olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com
eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e
avançou devagar até onde estava o Cão- Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver
e nem se mexeu mando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente.
O Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi
a correr e disse qualquer coisa aos outros — o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a
Mimosa e o Luiu — e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-
Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles
zangaram-se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então
que ele recuou com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com o
rabo todo enfiado.
2. Classifique, a partir do trecho que se lhe apresenta, o narrador
quanto à presença e à ciência.

3. Identifique o autor deste conto e enquadre-o no respectivo


período literário
Centro de Ensino à Distância 27

Unidade 07: Perspectivas da Moçambicanidade e o Jornal Msaho

Introdução
Tendo em vista o que terá visto na periodização literária em
Moçambique, vai nesta unidade estudar as condições criadas pela
imprensa para as novas perpectivas técnico-ideológicas e temáticas
na literatura moçambicana.
.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Conhecer a primeira publicação referente a poesia e à


moçambicanidade;
Objectivos
 Salientar a poesia de Noémia de Sousa, compreendendo a
fusão do Neo-realismo com a Negritude;
 Destacar algumas características de poemas seleccionados.

Msaho

O jornal cultural, poético, intitulado Msaho (1952), tinha como


objectivo, à maneira da angolana Mensagem (1951-52), criar
condições para a produção e promoção da literatura moçambicana
segundo perspectivas de moçambicanidade (nativismo, telurismo,
casticismo, etc.), sem que o lirismo abstraccionista ou
transcendental fosse postergado. É importante que, nesta unidade,
conheças a relação existente entre o jornal Msaho e as perspectivas
de moçambicanidade.

Os próprios promotores da folha poética tiveram consciência,


explícita na apresentação, de que esse primeiro e único número
ainda não tinha possibilidade de se constituir como artefacto da
moçambicanidade no sentido de uma ideologia e estética
autonomizarem os textos num corpus literário diferenciado de
outros de língua portuguesa. Tratou-se de um projecto parcialmente
falhado.
Centro de Ensino à Distância 28

Não se pode todavia menorizar Msaho, que, desde logo, pela


escolha, em título, do nome de um canto do povo chope, e a
participação, com um poema cada, de Noémia de Sousa, Virgílio
de Lemos (1) e Rui Guerra, deixou entrever preocupações
intelectuais de empenho na formação da literatura moçambicana,
procurando fundamentar-se nas raízes da cultura tradicional e
abrindo-se à participação comprometida com um projecto de
mudança popular.

Por outro lado, desde o fim da II Guerra Mundial que a actividade


literária dos moçambicanos se podia considerar, pela primeira vez,
mais do que simplesmente individual, isolada, episódica, dispersa.
Para além de Orlando Mendes, a viver em Portugal desde 1944,
para poder estudar na Universidade, o qual publicou as «Cinco
poesias do mar Índico» na Seara Nova (1947), é fundamental
compreender que a escrita dos 43 poemas do caderno policopiado
Sangue Negro, de Noémia de Sousa, nos anos de 1948-51, em
Lourenço Marques (hoje Maputo), integrada no grupo intelectual
que englobava portugueses residentes (Augusto dos Santos
Abranches, João Fonseca Amaral, Afonso Ribeiro, Cordeiro de
Brito e outros), e moçambicanos (Noémia de Sousa, José
Craveirinha, Virgílio de Lemos), transforma radicalmente a
percepção da literatura que se fazia em Moçambique, passando a
haver, de imediato, nesses e noutros círculos (de Angola e
Portugal), a ideia clara de que a moçambicanidade sem
ambiguidades acabava de nascer.

Dois poemas de Noémia de Sousa foram seleccionados para a


Mensagem angolana, «Sangue Negro» e «Negra», que haviam
saído, respectivamente, em 1949 e 50, na revista Vértice. Nítida
intencionalidade negrista, negróide, determinando a irrupção da
Negritude naquela latitude. O texto de apresentação, da autoria de
Craveirinha (2), considera-a «o primeiro poeta verdadeiramente
moçambicano no alto sentido da sua poesia e pelo nascimento»,
saudando na conterrânea a «herança negra» e exactamente a
consciência de estar a lançar os fundamentos decisivos da poesia
moçambicana. Podem tomar-se essas palavras como uma alusão
aos poetas Rui de Noronha e Reinaldo Ferreira, do primeiro
conhecendo-se somente poemas de técnica perfeccionista, segundo
o modelo clássico, ainda que, num ou noutro caso, pudesse
apresentar uma imagética africanizante, como em
«Quenguelequêze!...». O segundo, nascido em Barcelona (filho do
célebre Repórter X), alinhava por uma estética devedora
especialmente do presencismo. Ambos como se nunca tivesse
existido a revolução futurista (sobretudo o segundo) e, em relação a
África, como se ela não pudesse ultrapassar, na poesia, o papel de
cenário étnico ou de fantasma expulso, quando não inconvocado.

Craveirinha considera Noémia, neste texto mensageiro, uma


poetisa verdadeiramente moçambicana, com uma «mensagem
Centro de Ensino à Distância 29

única rescendendo a seiva de cajueiros e micaias quando ela diz


‘nossa voz shipalapala’» e o «mocharisse dja péla dambo» (pássaro
que na hora do crepúsculo solta o seu mais belo canto), devido à
sua «devoção e orgulho de africana», porque a sua poesia é «cem
por cento africana» e «seus poemas é ela cantando para sua mãe
África» e todos os seus «irmãos de destino». Sem equívocos,
Craveirinha especifica o porquê da africanidade de Noémia,
inovadora em relação à poesia mais universal e cosmopolita dos
antecessores.

Sumário

O jornal cultural, poético, intitulado Msaho (1952), tinha como


objectivo criar condições para a produção e promoção da literatura
moçambicana segundo perspectivas de moçambicanidade
(nativismo, telurismo, casticismo, etc.), sem que o lirismo
abstraccionista ou transcendental fosse postergado.

Exercícios

1. Estabeleça a relação existente entre a imprensa (jornal


Msaho) e as perspectivas de moçambicanidade.
2. Identifique os percursores do jornal Msaho
3. Fale das circunstâncias que estiveram por detrás da criação
do jornal Msaho.
Centro de Ensino à Distância 30

Unidade 08: A Poesia da Negritude: Noémia de Sousa (Sangue Negro)

Introdução
Noémia de Sousa nasceu em 20 de Setembro de 1926, em
Moçambique (Catembe/Maputo). Sem livro publicado, rumou a
Lisboa. Mais tarde, mudou-se para Paris. Regressaria a Portugal,
onde foi jornalista da agência noticiosa portuguesa, em Lisboa.
Morreu em 4 de Dezembro de 2002, Cascais, Portugal.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Conhecer a vida e obra de Noémia;


 Indicar as características formais, ideológicas e estéticas do
Poema;

A Poesia da Negritude

A poesia de Noémia de Sousa situa-se na intersecção do Neo-


realismo com a Negritude. Embora a poetisa não conhecesse a
Negritude francófona quando escreveu os poemas (segundo seu
testemunho), a específica situação colonial de Moçambique, mas
dada à discriminação racial do que Angola, e o seu conhecimento
de língua francesa e inglesa, permitiram que as mesmas fontes
(Black Renaissance norte-americana, Indigenismo haitiano e
Negrismo cubano), associadas à divulgação de Neo-realismo e do
Modernismo em Moçambique, originassem um discurso de
Negritude intuitiva.

Assim, o caderno Sangue Segro foi entregue aos promotores da


Mensagem, em Luanda, por um intermediário ou quando a autora
por lá passou, em 1951, a caminho da Europa. De imediato, o
impacto dos 43 poemas foi enorme, tendo António Jacinto
recordado há poucos anos (1), o fascínio que despertaram,
indiciando a via pela qual a própria poesia angolana poderia seguir:
a valorização da herança negra e a revolta contra a dominação
colonial. O impacto dos poemas propagou-se à Casa dos Estudantes
Centro de Ensino à Distância 31

do Império. Noémia de Sousa nunca publicou qualquer livro, para


além desse caderno policopiado, de divulgação clandestina, pois
nem todos os textos poderiam circular sem problemas. Uma parte
dos poemas foi saindo em jornais, revistas e colectâneas,
nomeadamente em O Brado Africano, Itinerário, Vértice e
Mensagem (CEI) e nas mostras antológicas levadas a cabo, em
revista, jornal ou livro, por Mário de Andrade (1953,
1954,1958,1961,1969,etc.), Luís Polanah (1960), Alfredo
Margarido (1962) e outros.

O caderno é dedicado a dois amigos, um deles João Mendes, que


tem direito a uma secção própria, irmão do escritor moçambicano
Orlando Mendes, e significativamente tem duas epígrafes, uma de
Miguel Torga e outra de Carlos Oliveira, poeta do Novo
Cancioneiro coimbrão.

Torna-se imprescindível conhecer a organização do Caderno, para


quem pretender a leitura integral da obra (2). São as seguintes as
suas partes: «Nossa Voz», «Biografia», «Munhuana 1951», «Livro
de João» e «sangue Negro». Porque representam a melhor poesia
da autora e também a sua africanidade e moçambicanidade,
tornando-se consagrados, os seus mais divulgados e conhecidos
poemas são: «Nossa voz», «Se me quiseres conhecer», «Deixa
passar o meu povo», «Magaíça», «Negra», «Um dia», «Poema para
Rui de Noronha», «Godido», «A Billie Holliday, cantora» e
«sangue negro (3).

Antes de mais, convém salientar que a poesia de Noémia de


Sousa se organiza num discurso oralizado, exaltado, pleno de
emoção. Assim, a enunciação caracteriza-se por uma relação de
permanente diálogo e interpelação entre o locutor e o alocutário. As
expressões interjeicionais, as exclamações, as reticências, os
vocativos e apelativos, e outros discursos de proximidade entre os
interlocutores da enunciação, tipificam um discurso não analítico.

Vejamos alguns exemplos da sua poesia:

«Nossa voz» é dedicado a José Craveirinha (assim como outro


texto cultua o poeta Rui de Noronha). De imediato, salta à vista o
vincado anaforismo da retoma do título no corpo do texto. Essa
entrada sublinha a preponderância da voz colectiva, por sua vez a
voz figurando sinedoquicamente os corpos das pessoas do povo.
Repare-se, logo no primeiro verso, numa característica do
vocabulário de Noémia de Sousa, que pode entender-se como uma
parcial cedência à superficialidade do estereótipo herdado do
exotismo da literatura colonial(ista): o uso de qualificativos como
«bárbara», aqui aplicado à voz, que reaparecerá em « sangue
negro» (este, vincadamente apologético da raça, das raízes
específicas do ser negro). Depois, a referencialidade geo-social,
através de inequívocos antropónimo e topónimo, que indicam o
Centro de Ensino à Distância 32

personagem e o Continente: «Maguiguana» e «África». O uso de


referências étnicas, que circunscrevem um espaço físico e cultural
ligado ao mato, à ruralidade, isto é, à África profunda (não urbana):
o «atabaque» (instrumento musical, tambor); a lança (de
Maguiguana); os batuques de guerra; a «shipalapala» (instrumento
musical).

Todo o poema se constrói para a denúncia da violência contra o


colonizado, com especial incidência na «ESCRAVIDÃO», em
maiúsculas.

Em «Se me quiseres conhecer», assiste-se à comparação entre o


predicador e uma estátua ou estatueta maconde. O poema tem a
data de 25-12-1949, o que acrescenta um outro sentido às
potenciais leituras: nesse dia de fraternidade e alegria cristãs, para
conhecer os africanos é preciso olhar com profundidade e
compreensão a sua origem ancestral. Os «chicotes da escravatura»,
a «África da cabeça aos pés», a «minha alma de África», são frases
que reforçam a repetida ideia de um passado hediondo de
escravidão, que é sempre preciso recordar, para melhor tomar
consciência da origem da dominação, e de um Continente não
aculturado, que permanece ainda, em grande parte, ligado à
natureza.

A referência aos «batuques frenéticos dos muchopes» e à rebeldia


dos «machanganas» reafirma a tendência de a reivindicação neo-
realista se cruzar com o sentido de pertença étnica.

O poema «Negra», publicado na revista neo-realista Vértice (1950),


alem de, como se disse já, na Mensagem angolana (1952), é
também um dos mais conhecidos. O tema é a incapacidade de as
pessoas alheias à cultura moçambicana poderem cantar a mulher
negra. Grande parte dos epítetos de que os poetas exotistas ou
coloniais usaram e abusaram nas suas composições, nos seus
«formais e rendilhados cantos», estão aqui expostos numa panóplia
que desconstrói o mito poético de negra sedutora e lúbrica:
«esfinge de ébano», «amante sensual», «jarra etrusca», «exotismo
tropical», «demência», «animalidade», etc.
A negra, no final do poema, surge como a mãe da predicadora,
podendo ler-se essa MÂE, em letras maiúsculas, como a Mãe-
Negra, mãe de todos os negros, ou seja, a Mãe-África. A mulher
negra, exaltada e elevada a esse cume da Mãe-África, recupera no
texto a integridade que o olhar cúpido do poeta exógeno vinha
lançando sobre ela.

No contexto da viragem dos anos 40, Noémia, como outros


africanos, percepcionava a poesia como testemunho de uma
condição humana e denúncia social e política, ainda que sob a
forma de lamento ou piedade. Nesse sentido, o Neo-realismo
confunde-se com a Negritude da reivindicação cultural e da
Centro de Ensino à Distância 33

apologia racial e pode dizer-se, mais do que em relação a outros


escritores, que a fusão das componentes estéticas dos dois
movimentos nunca foi tão completa e, por vezes, quase
indestrinçável.

Para os africanos de língua portuguesa, especialmente Noémia de


Sousa, nesses anos decisivos, a Negritude foi assumida como
refinamento negro, a especificidade rácica do Neo-realismo,
tornando-se, além de uma estética anti-burguesa, uma ética anti-
imperialista. É nesse ponto que, porém, a Negritude se afasta em
definitivo do Neo-realismo: quando se exclui o branco dos seus
textos e os engloba numa condenação que impossibilita distinguir
os aliados de classe ou condição.

Sumário

O Caderno sangue negro, de Noémia de Sousa está organizado da


seguinte maneira: «Nossa Voz», «Biografia», «Munhuana 1951»,
«Livro de João» e «sangue Negro» e, representam a melhor poesia
da autora e também a sua africanidade e moçambicanidade,
tornando-se consagrados, os seus mais divulgados e conhecidos
poemas são: «Nossa voz», «Se me quiseres conhecer», «Deixa
passar o meu povo», «Magaíça», «Negra», «Um dia», «Poema para
Rui de Noronha», «Godido», «A Billie Holliday, cantora» e
«sangue negro.

Exercícios

1. Apresente, em duas páginas A4, a análise que faz no poema


abaixo indicado, tendo em conta as seguintes linhas
mestras: aspectos estético-estilístico; marcas do neo –
realismo e a negritude; e o enquadramento no período
correspondente na perspectiva de LARANJEIRA3.

“Magaíça”
A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,

3
Cf. Periodização literária moçambicana, unidade 6.
Centro de Ensino à Distância 34

seu coração apertado na angústia do desconhecido,


sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?


trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
á cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.
In O Brado Africano, n. 787, 25.12.1935

2. Explique a importância que Noémia de Sousa teve na


divulgação dos ideais da Negritude.
Centro de Ensino à Distância 35

Unidade 09: Noções da Nações e Moçambicanidade: José Craveirinha

Introdução
Como nos outros países, surge também em Moçambique um
número de escritores cuja obra poética é conscientemente
produzida tendo em conta o factor da nacionalidade, forjando a
consciência do que é ser moçambicano no contexto, primeiro da
África e, depois, do mundo. Estamos a falar de um José craveirinha
que, como vem sendo e vai ser dito ao longo deste manual, tanto se
rumou por uma poesia nacionalista. Sendo assim, vais ter, aqui, a
oportunidade de analisar a essência de Craveirinha.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

.
Objectivos  Identificar a idelogia nacionalista presente na obra de
Craveirinha;
 Conhecer as fases da Poesia de Craveirinha;
 Relacionar os conceitos de africanidade, Negritude e
moçambicanidade patentes na poesia de Craveirinha

Poesia Nacionalista

A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e


referência obrigatória em toda a literatura africana, é José
Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as
fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até
praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar
uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social,
política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de
marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande
pendor lírico e intimista.

1. Vida e Obra
José João Craveirinha nasceu em 28 de Maio 1922 em Maputo. É
considerado o poeta nacional moçambicano. Iniciou a sua carreira
como jornalista no "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com
Centro de Ensino à Distância 36

diversos orgãos de informação em Moçambique. Teve um papel


importante na vida da Associação Africana a partir dos anos 50
Craveirinha escreveu umam vasta obra poética.
Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa,
não tendo sido incluída nos livros que publicou até à data. Outra
parte permanece inédita.

Esteve preso pela Pide, de 1965 a 1969, na celebre Cela 1 com


Malangatana e Rui Nogar, entre outros.

Tem muitas obras publicadas, sendo considerado um dos grandes


poetas de Africa e da Língua Portuguesa.

Publicou as seguintes obras:


Chigubo (1964), Xigubo (1980)
Cantico a un dio de catrame (1966)
Karingana ua karingana (1974)
Cela I (1980)
Maria (1998).

A sua estreia em livro deu-se com Chigubo, editado em Lisboa em


1964 pela Casa dos Estudantes do Império e logo apreendido pela
PIDE, que o utilizou como prova nos processos de que foi vítima
durante o período em que esteve preso (na célebre cela 1 com
Malangatana e Rui Nogar, entre outros, entre 1965 e 1969). Foi o
Prémio Camões de 1991.

2. Fases Poéticas
1.ª Fase: de Neo-realismo, implicando uma tradição poética
narrativizada, de que é exemplo flagrante a primeira parte do livro
Karingana ua karingana, justamente datada de 1945-50 e intitulada
«Fabulário». Os poemas têm versos curtos. Cada poema é como
que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena, um
ambiente, um tema). O fabulário alude, por outro lado, à tradição
popular, ancestral, tribal, de contar fábulas, aqui com personagens
humanas dentro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma
denúncia em moldes alusivos, expositivos, em linguagem
descarnada, contida, não propriamente contundente. Por outro lado,
a composição do tema, a imagética, porque voltadas para uma
finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentam-se sem
grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo
incipiente, privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos.

2.ª fase: Negritude, expressa com nitidez em Chigubo (1964) e


Cantico (1966). Os poemas têm versos de média ou mais extensa
medida. Os predicadores e os predicatários e predicatados, em
geral, são negros. A revolta e a denúncia agressiva pontificam. O
Centro de Ensino à Distância 37

«Manifesto» ou o «Grito negro» mostram como a cor e a raça


negras (isto é, o grupo étnico) comandam a visão dos predicadores,
que se enaltecem e têm orgulho nas suas raízes negras, africanas.

3.ª Fase: Moçambicanidade ou identidade nacional, de que as 2.ª


e 4.ª partes de Karingana ua karingana, respectivamente intituladas
«Karingana» e «Tingolé (Tindzolé)», são emblemáticas, e que se
caracteriza pela expansividade dos poemas mais longos e dos muito
longos, em que o humor e a ironia desempenham papel decisivo,
sendo bastante clara a interrogação sobre a identidade dos
predicadores, suas origens e herança cultural. A «Carta ao meu belo
pai ex-emigrante» demonstra todas essas possibilidades de
interrogar-se e interrogar o que é ser-se moçambicano.

4.ª Fase: de Libertação, de que resultaram dois livros diferentes,


sendo um de poemas da prisão, escrito ainda antes da
Independência, em reclusão, mas paradoxalmente respirando
liberdade. Anote-se um exemplo de absoluta liberdade sob o peso
do cadafalso: «Foi assim que eu subversivamente / clandestinizei o
governo / ultramarino português». O outro livro, de homenagem à
falecida mulher, é elegíaco como o anterior, de textos curtos,
expondo um sentimento, um ambiente, uma ideia, um episódio,
com circunspecção, concretude e lirismo, por vezes com
pormenores que iluminam As características gerais da obra de
Craveirinha podem resumir-se, do seguinte modo: Neo-realismo;
narratividade; adjectivação luxuriante; ironia; elementos
surrealizantes; Negritude; moçambicanidade.

Leia o poema e analise os diferentes aspectos ditos no


apontamento:

Karingana ua Karingana4

De hora a hora
e minuto a minuto cresce
cresce devagarinho a semente na terra escura.
E a vida curva-nos mais ao ritmo fantástico
do nosso chicomo relampejante áscua de chanfuta
subafricano amadurecendo as jejuadas manhãs
ao velho calor dos braçais intensos
4
Karingana wa Karingana é a expressão que os rongas utilizam para
iniciar as histórias tradicionais (xihitane) e que corresponde ao «era uma
vez» das narrativas luso-ocidentais. O narrador começa a história
dirigindo-se ao grupo ouvinte dizendo precisamente «karingana wa
karingana!» e o público responde em uníssono: «karingana!». No final da
narrativa, o contador de histórias tradicionais diz «Phu karingana!».
Centro de Ensino à Distância 38

na lavra das lavras de uma lua


esfarrapada no meio do chão.

E a semente de milho cresce


cresce na povoação que a semeou com ternura
desidratada à preto nos sovacos da machamba
e a estrada passando ao lado vai-se abrindo
como uma mulher vai-se abrindo quente e comprida
aos beijos das rodas duplas da Wenela de cus
e dorsos a germinar os pesadelos dos mochos
bacilarmente
imperceptivelmente
desabrochando os profilácticos
férteis sudoríperos cereais em manuração.

E depois...
de capulanas e tangas supersticiosa a vida
vai espiando no céu os indecifráveis agoiros
que hão-de rebentar a nhimba da missava culimada
e na mórbida vigília dos ouvidos ao - Karingana
ua Karingana!? - todos juntos prescrutando a mafurreira
longínqua no horizonte e as mãos batendo a forja dos mil
sóis da tingoma dos corações enroscados de mambas
de ansiedade à luz da fogueira, respondendo - Karingana!

Oh! Os Xicuembos a chamar a chamar


nas facas de esmeraldas de milhos verticais na terrra!

Ah, o dia bom da colheita destes milhos de amor


e tédio vai começar e recomeçar nos inumeráveis chicomos
desalgodoando os algodões a mais sofisticados
de tractores que deviam estar e não estão.

Sumário

Os temas fundamentais são: escravatura, raça, crítica à civilização


ocidental, vitalismo, sensualidade, revalorização da tradição negra,
culto da Natureza, animização, etc., com recurso aos modelos da
Black Renaissance, Negritude e Neo-realismo, no intuito de
construir uma identidade poética moçambicana.
Centro de Ensino à Distância 39

Exercícios

1. Retome a leitura do apontamento. Faça o enquadramento do


poema Karingana Ua Karingana nas fases poéticas do autor.
2. Faça um levantamento pormenorizado das marcas do
nacionalismo presentes no Karingana ua Karingana.
3. Explique a simbologia presente no título do poema
Karingana ua Karingana.
4. Craveirinha, ao logo da sua poemática faz sérios
questionamentos à volta da identidade dos predicadores,
suas origens e herança cultural. Demonstre.
Centro de Ensino à Distância 40

Unidade 10: Literatura e Resistência: Luís Bernardo Honwana (Nós matámos o Cão-
tinhoso)

Introdução
LUÍS BERNARDO HONWANA nasceu em 1942, em Lourenço
Marques, dedicou-se ao jornalismo, muito amigo de Craveirinha a
quem dedicou seu único livro de contos, Nós matamos o cão-
tinhoso (1964), aos 22 anos de idade. Nunca mais publicou. Foi
Ministro de Cultura (representante de Moçambique no Acordo
Ortográfico).
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Ter um visão sobre a literatura como instrumento de resistência;


Objectivos  Reconhecer, aspectos essenciais de segregração racial, de
distinção de classe e de eduação presentes no conto.

Simbologia do Cão, no conto Nós matámos o Cão-tinhoso

LUÍS BERNARDO HONWANA nasceu em 1942, em Lourenço


Marques, dedicou-se ao jornalismo, muito amigo de Craveirinha a
quem dedicou seu único livro de contos, Nós matámos o cão-
tinhoso (1964), aos 22 anos de idade. Nunca mais publicou. Foi
Ministro de Cultura (representante de Moçambique no Acordo
Ortográfico).

Nós Matámos o Cão-Tinhoso é um livro de sete contos da autoria


do escritor moçambicano Luís Bernado Honwana, publicado em
1964 e considerado uma obra fundamental da literatura
moçambicana moderna. Os contos incluídos no livro são “Nós
Matámos o Cão-Tinhoso”, “Dina”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos
dos Pretos”, "Inventário de Imóveis e Jacentes”, "A Velhota" e
"Nhinguitimo".
Centro de Ensino à Distância 41

Quando Honwana tinha vinte e dois anos, foi preso pela polícia
política. Foi durante o tempo passado na prisão que escreveu o seu
único livro, Nós Matámos o Cão-Tinhoso, com o objectivo de
demonstrar o racismo do poder colonial português. O livro chegou
a exercer uma influência importante na geração pós-colonial de
escritores moçambicanos. Muitos dos contos, escritos em português
europeu padrão, são narrados por crianças. O universo social e
cultural moçambicano durante a época colonial é o centro da
análise das narrativas de Nós Matámos o Cão-Tinhoso. De acordo
com Manuel Ferreira, “Os contos de Nós Mátamos o Cão-Tinhoso
apresentam-nos questões sociais de exploração e de segregação
racial de distinção de classe e de educação”. Cada personagem em
cada conto representa uma diferente posição social (branco,
assimilado, indígena e/ou mestiço).

O primeiro e o mais extenso dos contos incluídos no livro, "Nós


Matámos o Cão-Tinhoso5" é narrado através dos olhos de um
menino moçambicano negro, chamado Ginho. A história
desenvolve-se à volta de um cão vadio que está doente,
abandonado e a morrer. Ginho é objecto de troça da parte dos seus
colegas da escola, inclusive durante os jogos de futebol. Ele
começa a sentir pena do cão e desenvolve um sentimento de
empatia em relação a ele. Um dia, o Ginho e um grupo de rapazes
da sua idade são persuadidos e chantageados pelo Doutor da
Veterinária para matar o cão. O Senhor Duarte representa esta
acção como um jogo de caça e tenta convecê-los como um amigo.
Apesar do Ginho estar emocialmente ligado ao cão, ele sente-se
pressionado para matá-lo, de modo a ser aceite pelos seus colegas.
Apesar de muitas discussões e pedidos aos outros meninos, ele não
consegue convencê-los a não matar o cão. A história acaba com ele
a confessar com remorso a responsabilidade que sente, apesar de
não ter querido participar no crime.

Temas e simbolismo

O significado de Cão-Tinhoso

O conto mostra a situação política do tempo. De acordo com a


interpretação de Inocência Mata, o Cão-Tinhoso representa o
sistema colonial decadente, em vias de ser destruído, e o prelúdio
de uma nova sociedade purificada, sem discriminação de qualquer
tipo. Para esta crítica é significativo o facto de o Cão-Tinhoso ter
sido abatido numa apoteose de tiros - de igual modo Moçambique
haveria de se purificar pelo fogo das armas.

5
Ver o conto em anexo
Centro de Ensino à Distância 42

Os olhos azuis

Ginho descreve o cão como tendo olhos azuis. Em The Golden


Cage: Regeneration in Lusophone African Literature and Culture,
Niyi Afolabi argumenta que a cor dos olhos é ambígua, podendo
ser simbólica do negro colonial dominado ou do colonizador
europeu. Cláudia Pazos Alonso escreve que o simbolismo dos
olhos pode apontar para uma representação de um assimilado negro

O homicídio do cão

Quando os meninos matam o cão, este evento pode ser visto como
simbólico dum processo iniciático, de aprendidagem para a
personagem que encontra solidariedade afetiva.

Sumário

Nós matamos o cão-tinhoso constitui a tematização de um processo


iniciático, de aprendizagem, para a personagem-narrador, que
encontra a solidariedade afectiva em Isaura, a menina que gosta do
cão-tinhoso, e no próprio animal de olhos azuis sem brilho, mas
irónicos e impasssíveis, que irritam os outros. O cão-tinhoso
representa o sistema colonial decadente, em vias de ser destruído, e
o prelúdio de uma nova sociedade purificada, sem discriminação de
qualquer tipo. É significativo o facto do cão-tinhoso ter sido
abatido numa apoteose de tiros, assim como Moçambique haveria
de se purificar pelo fogo das armas.

Exercícios

1. Procure mostrar até ponto a obra de Honwana constui forte


instrumento de resistência.
2. Discorra sobre toda a simblogia presente na obra Nós
Matamos o Cão-tinhoso.
3. Diga por que a obra de Honwana é fundacional da literatura
moçambicana moderna.
4. Num texto corrido, faça uma análise pormenorizada do
conto Nós Matámos o Cão-Tinhoso, respondendo as
perguntas que aparecem abaixo do conto em anexo.
Centro de Ensino à Distância 43

Unidade 11: A Semântica do Ghetto: Geração de 70 (Rui Knopfli)

Introdução

O quarto período da literatura moçambicana, segundo


LARANJEIRA, que vai de 1964 até 1975, ou seja, do início da luta
armada de libertação nacional à independência do país (a
publicação de livros fundamentais coincide com estas datas
políticas) caracteriza-se pela coexistência de maciça actividade
cultural e literária no hinterland no ghetto, apresentando textos cuja
feição não explicita um carácter marcadamente político (em que
pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio
Lisboa, Rui Knopfli, o portugués Antonio Quadros, entre outros) e,
por outro lado, poemas anti-colonialistas que incitavam à revolução
e tematizavam a luta armada. No caso particular, vamos falar da
obra de Rui Knopfil representando a poesia desta época.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Adquirir conhecimenntos sobre a semântica do ghetto;


 Estudar a poesia de Rui Knopfil como indicador da
nacionalidade literária de inclusão/exclusão.

A semântica do Gheto: “A Geração de 70”

A situaçao sócio – cultural de ghetto, que se vivia em todas as


cidades coloniais, teve uma expressão poética explícita em dois
livros, um angolano e outro moçambicano.
Rui Knopfli nasceu em 1932, em Inhambane, Moçambique, e
faleceu em 1997.
Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que
não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas,
assumindo-se antes como continuadora da tradição lírica do
Ocidente. Camões, Carlos Drummond de Andrade, Fernando
Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a
poética de Knopfli.
Centro de Ensino à Distância 44

Rui Knopfli viveu em Moçambique até aos 43 anos, tendo


colaborado em diversos jornais e codirigido, com Eugénio Lisboa e
o jornalista Gouvêa Lemos, de quem tinha um quadro pintado por
Neves e Sousa, pintor angolano, no seu escritório em Londres,
quando Adido Cultural de Portugal, os suplementos literários do
semanário A Voz de Moçambique e do diário A Tribuna.
Bibliografia: O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962),
Máquina de Areia (1964), Mangas Verdes com Sal (1969), A Ilha
de Próspero (1972), O Escriba Acocorado (1978), Memória
Consentida (1982), O Corpo de Atena (1984) e O monhé da cobras
(1997).
O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962) e Máquina de
Areia (1964) foram os seus primeiros livros, mas é Mangas Verdes
com Sal o seu livro da maturidade enquanto poeta.
Nele escreve: «Eu trabalho, dura e dificilmente, / a madeira rija dos
meus versos, / sílaba a sílaba, palavra a palavra», verdadeiro
testemunho do despojamento e da precisão que caracteriza o seu
estilo.

Knopfli olhava as correntes literárias em voga nas décadas de 60


com distanciamento e até ironia.
Apesar de ter experimentado escrever poemas concretistas, foi
sobre um estilo de depuramento clássico e formal que sempre se
debruçou com maior interesse.
Por outro lado, é frequentemente classificado como poeta barroco,
contribuindo para tal não só o desenvolvimento de temas como o
tempo e o desengano, como o próprio uso da linguagem rigorosa
com que talha os seus versos.
Daí a sua independência e originalidade, daí a dificuldade em
integrá-lo nas correntes literárias. O desencanto do poeta não soa a
revolta, antes a uma passividade indiferente.
As imagens podem ser violentas ou ameaçadoras, mas isso
acontece quase que subliminarmente, já que o que prevalece é a
serenidade das coisas, bem harmonizada com um estilo sóbrio,
revelador de algo que está para além da dor.
Em 1975 teve que partir para Londres, onde em 1982 assumiu o
cargo de conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal.
Rui Knopfli, que desde sempre pautara a sua poesia por uma forte
incidência urbana, onde o artificial se sobrepunha à natureza, vê-se
agora mergulhado no mais intenso cosmopolitismo, facto esse que,
em vez de se harmonizar com o seu sentir, antes lhe intensifica o
sentimento de exílio e, consequentemente, de desolação.
Daí que, na senda de outros poetas de língua portuguesa, confesse,
em 1978, no livro O Escriba Acocorado : «pátria é só a língua em
que me digo».
Centro de Ensino à Distância 45

A sua carreira literária prosseguiu em 1982 com a edição coligida


de toda a sua poesia, reunida no livro Memória Consentida - Vinte
Anos de Poesia, e O Corpo de Atena, de 1984, para além da edição,
conjuntamente com Grabato Dias, dos cadernos de poesia Calibán.

Sumário

Os temas da poesia da “ Geração de 70” são marcadamente


irónicos desligados da intenção política e, por outro lado, anti-
colonialistas que incitavam à revolução e tematizam a luta armada.

Exercícios

1. Dê uma suncita, fala da semântica do ghetto.


2. Caracteriza a poesia de Rui Knopfil;
3. Procure ler um ou mais poemas de Knopfil e indque os
aspectos temáticos, ironia e do resgate à formas clássicicas
e barrocas de escrever.
Centro de Ensino à Distância 46

Unidade 12: A Renovação literária: Mia Couto

Introdução
A guerra civil que teve lugar em Moçambique, durante
quase toda a década de oitenta, é o cenário da maioria dos
autores que escrevem sobre a época. Mia Couto com Vozes
Anoitecidas revela esse sentido trágico, aproveitando essa
oportunidade introduzir na língua e na literatura uma nova
roupagem que, de uma forma, o singulariza e o identifica.
Nesta unidade didáctica, vamos fornecer-te uma informação
sobre a criatividade linguística pelo escritor moçambicano,
Mia Couto.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Ter conhecimentos profundos sobre o Estilo e Criatividade:


Inventabilidade, realismo, anismo e humor presentes na obra de
Mia Couto;
 Reconher a multiplicidade etno-cultural na Obra Vozes
anoitecidas.

Criatividade textual em Vozes anoitecidas de


Mia Couto

MIA COUTO, Nasceu na cidade da Beira, em 1955. Em 1972 foi a


Lourenço Marques estudar medicina. Em 1974 começa a carreira
jornalística. Regressa à universidade de Eduardo Mondlane em
1985 para se formar em biologia. Em 1992 foi o responsável pela
preservação da Ilha de Inhaca.
Obra:
Raiz de orvalho (1983)
Vozes anoitecidas (1986)
Cronicando (1988)
Cada homem é uma raça (1990)
Terra sonâmbula (1992)
Estórias abensonhadas (1994)
A varanda de Frangipani (1996)
Contos do nascer da terra (1997)
O último voo do Flamingo (2000)

Analisa várias culturas e crenças do homem moçambicano.


Centro de Ensino à Distância 47

Humor incómodo. Os universos culturais variados são o melting-


pot afro-luso-sino-indo-arabe-goês: africano (bantu, negro), luso
(europeu, branco), chinês (amarelo), indo (indiano), arábico (árabe,
muçulmano), goês (indiano, português). São importantes os dois
paratextos a Vozes anoitecidas, o prefácio de José Craveirinha e
“Como se fosse um prefácio” de Luís Carlos Patraquim. Foi
criticado por construir uma linguagem própria. Como resposta
escreveu “Escrevências desinventosas” em Cronicando.

CRIATIVIDADE TEXTUAL
1. Criatividade e inventividade da linguagem para afirmar a
diferença linguística e literária no interior da língua do
colonizador. Ex. dois movimentos contraditórios: economia de
linguagem com elisão, o outro inflação com duplicações, ex.
deve ser talvez. Criatividade sintática: ex. os bois estão aqui,
perto comigo, colocação da vírgula desloca o significado.
2. Realismo em ações e personagens para dar um quadro do
social e particular.
3. Intromissão do imaginário ancestral, do fantástico, que
transforma o realismo num imprevisto realismo animista.
4. O Humor. Há vários tipos:
a. Humor de intriga, como a história improvável de Sidney
Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.
b. Humor de situação/acontecimento, envolvendo apenas um
episódio e não uma intriga completa, ex. “A Rosa Caramela”
(Juca aluga seus sapatos para os outros poderem ir ao futebol).
c. Humor de personagem
d. Humor de nomes próprios: Ascolino do Perpétuo Socorro, um
indo-português; Benjamin Katikeze, um seminarista.
e. Humor de narração, ex. “O ex-futuro padre e sua pré-viúva”, a
beleza de Anabela, a pré-viúva, é anabelíssima.
f. Humor de enunciação, sintaxe a moda popular
g. Humor de linguagem, nível sintático e lexical.

Vejamos alguns exemplos sintomáticos presentes em Vozes


Anoitecidas
Aqui se narra o confronto entre o mundo tradicional e o mundo
urbano, entre os valores míticos da cultura camponesa e a fria
racionalidade dos acontecimentos da guerra, caracterizados pela
tecnologia sofisticada das armas.
Por outro lado, descreve-se o choque constante entre a harmonia
gregária colectiva e a desordem caótica, que a miséria e o
desequilíbrio, sociais, provocaram nas margens urbanas e
suburbanas das populações.
Nestes contos há a procura de uma forma de ajustamento simbólico
para a situação referida, que se reveste de paradoxos aparentemente
inconciliáveis e que a língua procura actualizar. Assim, a língua
Centro de Ensino à Distância 48

que Mia Couto utiliza na escrita dos contos Vozes Anoitecidas


procura ser uma forma de mediatizar, de harmonizar a constante
crise que a sociedade moçambicana vive através das estórias
trágicas do seu quotidiano. A fim de conseguir tal intento a língua
é um dos processos escolhidos para recuperar a mundividência
mítica, as marcas culturais da oralidade da sociedade tradicional, o
onirismo e a simbólica a ela ligadas.
Aquilo que parece ser um recurso poético da língua, ou um estilo
de autor, como, por exemplo, o uso constante do
antropomorfismo, da animização, da concretização das noções
abstractas, da materialização do inefável e da sensibilização
relacional das personagens com os objectos- que já tínhamos
detectado na escrita de Craveirinha -, faz parte de um trabalho
maior que começa na língua, mas que a transcende.
Com efeito, a língua é o receptáculo das vozes que o narrador
ouviu e da forma como essas vozes pensam. O trabalho de escrita
do autor passa por essa espécie de filtragem da escuta, e posterior
criação e invenção. Na nota introdutória do livro Vozes Anoitecidas
este processo é explicado nos seguintes termos:

“Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de


qualquer coisa que me foi contada como se tivesse ocorrido na
outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra
escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de
escrever. A umas e outras dedico este desejo de contar e de
inventar.”
Interessa-nos analisar a forma como se processa essa combinatória
de vozes em escrita. Maria Lúcia Lepecki observou a este respeito:
“As vozes dos Narradores orais e a do Narrador por escrito,
ligando-se, formam superfície contínua. Logo a seguir surge uma
amálgama. Todas as vozes se juntam numa só e partilham a
experiência do contar e do reflectir sobre o contado.”
Esta partilha de saberes e experiências ouvidas é reformulada por
escrito em cada uma das histórias relatadas em Vozes Anoitecidas.
A Memória torna-se mais do que um elemento individual para se
transformar em Memória Ancestral (memória de muitas vozes e
muitos tempos), através da qual o autor (e as vozes nele
amalgamadas) procura exprimir uma Cultura Fundadora da
identidade moçambicana.
Ao escrever as vozes ouvidas, Mia Couto cenariza as suas
narrativas no confronto, por vezes trágico e constantemente
renovado, entre o passado e o presente de um país ainda
profundamente dividido entre Mito e História.
- Está falar, o gajo? (VA, p.33).
Centro de Ensino à Distância 49

As línguas bantu são essencialmente orais e veiculares de


culturas orais, e o seu contributo na configuração escrita da
literatura moçambicana, em língua portuguesa, revela-se ao nível
da oralização das estruturas dos estratos fónico-linguísticos, e da
incrustação lexical de elementos provenientes do imaginário das
culturas de que provêm.

Podemos, nos textos de Mia Couto, distinguir dois níveis de


trabalho da e na língua, cuja lógica se fundamenta também no
recurso à oralidade, e que o autor trabalha simultaneamente. Um
deles situa-se à superfície, no eixo da contiguidade, ou no plano
sintagmático, e implica transformações fonológicas, morfológicas,
sintácticas e lexicais. Podemos designá-lo por nível coloquial, mais
visível nos diálogos, e em que há uma proximidade maior da
captação do português oral moçambicanizado. Alguns destes
procedimentos, que o autor de Vozes Anoitecidas desenvolve,
tinham já sido experimentados na poesia de José Craveirinha, como
tivemos ocasião de referir na unidade didáctica referida ao poeta.
O outro nível, mais amplo, o plano associativo ou paradigmático,
abrange um conjunto de processos retóricos, que obsessivamente se
repetem, seja a personificação, a hipálage, a animização, a
metáfora, a comparação. Poderemos incluir, ainda, neste nível um
outro tipo de processos de recuperação de estratégias da oralidade,
como o recurso aos provérbios, a sentenças, a frases feitas e
portadoras de significação didáctico-filosófica. Semelhante
processo genotextual, alarga-se da palavra à frase e da frase à
narrativa, contaminando e estruturando uma dimensão de
significação mítico-cultural, que expande uma reconfiguração da
Memória e de seus sentidos didácticos.
De acordo com LARANJEIRA, as personagens de Vozes
Anoitecidas vivem este tipo de reajustamento, meio de reordenar o
equilíbrio, de “refazer” o mundo, recriando-o. Os velhos, que
representam a Memória e a sabedoria, são os protagonistas de A
Fogueira. Neste conto, deparamos com a necessidade de
preservação dos valores que expressam as relações entre homem e
mulher, homem e morte, e os valores comunitários. O fogo que
arrasta o velho homem para a morte, que deveria ser a da mulher,
repõe simbolicamente a fogueira comunitária, à volta da qual à
noite, antigamente, todos se juntavam para, com amor, ouvir as
estórias. A terra devolve-lhe essa quentura do coração,”alma”,
“anima”, esse equilíbrio que, não sendo possível com a vida, o é
com a morte. Uma vez mais nos deparamos com o processo de
“amálgama”; a morte ajusta-se à vida, a palavra Narrada ao fogo e
ao sonho, regeneradores de uma harmonia cultural.
Centro de Ensino à Distância 50

Sumário

A língua é o primeiro elemento a ser trabalhado no universo


ficcional de Mia Couto. A sobreposição de discursos, espaços e
tempos, permite conferir à língua a sua dinâmica de teia e tessitura,
num trabalho de reconfiguração cultural.

Exercícios

1. Explique o recurso constante da oralidade em Mia Couto.


2. “Assim, a língua que Mia Couto utiliza na escrita dos
contos Vozes Anoitecidas procura ser uma forma de
mediatizar, de harmonizar a constante crise que a
sociedade moçambicana vive através das estórias trágicas
do seu quotidiano.”
a) Comente.
Centro de Ensino à Distância 51

Unidade 13: A Épica e a Modernidade: Ungulani Ba Ka Khosa (Ualalapi)

Introdução
Outro escritor não menos importante na literatura moçambicana é
Ungulani Ba Ka Khosa, com o seu livro, Ualalapi, através do qual
moderniza a ficção moçambicana ao introduzir um género que se
enraíza no romance histórico. Nesta unidade didáctica importa-te
saberes até ponto a obra harmoniza a grande história de
Moçambique com a ficção.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Identificar o contributo da revista Charrua para a literatura após


a independência
 Reconhecer as características estético-estilísticas em Ualalapi de
Ungulani Ba Khossa

O livro “Ualalapi” de Un­gulani Ba Ka Khossa, publicado pela


primei­ra vez em Maputo em 1987, já recebeu vários prémios
literá­rios. A obra é um conjunto de “contos contínuos” intitulados
“Fragmentos do Fim”.
Nestes fragmentos, combina-se o material histórico-factual, com
recurso a fontes tanto escri­tas como orais, e os elementos fictícios.
Não é por acaso que a académica Ana Mafalda Leite (1998),
quando abordada sobre o livro, tenha referido que com esta obra a
ficção moçambicana “ introduz um género que se en­raíza no
romance histórico”.
A obra de Ba Ka Khosa questiona o passado e o presente, fazendo
uma releitura das fontes históricas do século passado. O autor
critica o poder político e tenta mostrar como a História pode
descrever o uso desses mesmos poderes. Num outro
desenvolvimento, Khosa faz uma reflexão sobre as noções de
cultura e de identidade cultural. Em “Ualalapi” acontece a
Centro de Ensino à Distância 52

desmistificação total de um grande herói nacional: o impe­rador


Ngungunhane, também conhecido por “Leão de Gaza”.

Narrativa
Do ponto de vista narrativo, “Ualalapi” é, como já foi indi­cado,
um texto genericamente complexo. O livro abre com uma “nota do
autor” em que se situa o protagonista Ngungunhane na história
colonial.
A “nota do autor” serve de aviso ao leitor, para que distinga na
his­tória do imperador Ngungunha­ne “a verdade irrefutável”
daquilo que ainda suscita dúvidas.

Por exemplo, na página 37 pode-se ler: “Tu és


Ngunhunha­ne!(...) Aterrorizarás as mulhe­res e os
homens!”, em referência ao próprio Ngungunhane e ao
império dos nguni. Este trecho representa uma introdução
si­nistra à história do personagem Ualalapi, que depois de
mandar executar Mafemane, o legítimo futuro rei, de noite
desapare­ceu na floresta.

Cronologia do Reinado
O livro faz um relato crono­lógico do reinado de Ngungu­nhane, a
sua figura e os eventos específicos que ocorriam no seu reino. O
sexto texto - que mais interessa na presente análise - dá-nos “o
último discurso de Ngungunhane”.
O histórico Ngungunhane era famoso pela resistência que opôs aos
portugueses e era con­siderado um líder muito perspi­caz. Foi o
último imperador de Gaza.
Na própria história apresen­tada no livro, desfilam vários exemplos
documentais como o relato semi-ficcional da vida de Ngungunhane
escrito por Kho­sa, mais os elementos míticos e sobrenaturais
rebuscados da cultura popular moçambicana.
De referir que o último de todos os capítulos da obra contém
ci­tações da Bíblia e de vários do­cumentos da época, de cunho
administrativo, bem como as “palavras últimas de Ngungu­nhane
antes do embarque”, re­feridas em língua tsonga e na tradução
portuguesa.
Prova da importância des­ta obra é que a mesma vai ser editada em
língua inglesa ainda este ano por uma das editoras do país,
pretendendo fazer che­gar o livro a outros países, neste caso de
língua inglesa

Ualalapi, de U.B.Khosa, é designado como romance, mas


organiza-se num conjunto de seis contos, que funcionam como
Centro de Ensino à Distância 53

unidades independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada


uma das narrativas é precedida de um pequeno texto em itálico
(muitas vezes com atribuição de autoria, outras vezes depreende-se
que são do autor da obra, e oscilando entre o testemunho histórico e
a ficção), intitulado, Fragmentos do fim, numerados de um a seis,
que estabelecem uma evolução e quadro cronológicos, até à queda
do império nguni.
Com o advento da independência de Moçambique, em 1975, a
figura de Ngungunhane foi recuperada como herói nacional e
figura mítica que representava o primeiro resistente moçambicano à
colonização portuguesa, anterior à luta de libertação pela
independência, levada a cabo pela Frelimo. Na sequência desta
reabilitação da personagem histórica, convém destacar, por
exemplo, o empenhamento dos moçambicanos na reabilitação do
“herói”, ao pedirem o envio, há poucos anos atrás, aos portugueses,
dos restos mortais do imperador que tinha sido exilado nos Açores,
no fim do século passado.
Acontece, no entanto, que o imperador, Ngungunhane, era um
invasor nguni, vindo do que é actualmente a África do Sul, que
ocupou os territórios do sul de Moçambique e escravizou os tsonga
e chope, grupos étnico-linguísticos do sul de Moçambique, quando
os portugueses iniciaram o processo de ocupação colonial.
Ungulani Ba Ka Khosa ao escrever o seu romance tenta
desmitificar esta figura, transformando o mítico herói naquilo que
ele era realmente, um ditador estrangeiro, prepotente, que manteve
sobre o seu domínio, escravizada, uma parte significativa do
território moçambicano. Este é o tema de que trata o romance de
Ungulani Ba Ka Khosa. Nesta medida é uma narrativa histórica,
que versa sobre as origens históricas e pré-coloniais, do actual país,
Moçambique.
Ualalapi organiza-se, assim, a partir destes textos de abertura, num
conjunto de seis contos que funcionam como unidades
independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada uma das
narrativas é precedida de um pequeno texto italicizado (muitas
vezes com atribuição de autoria, outras vezes deprende-se que são
do autor da obra, e oscilando entre o extracto escrito e oral),
intitulado, Fragmentos do fim, numerados de um a seis, e que
estabelecem um evolução cronológica até à queda do império. Os
contos sucedem-se a estes textos e a sua temporalidade situa-se
numa dimensão mais indefinida e mítica.
Na página anterior ao início dos contos, quatro deles são
precedidos de uma citação bíblica (Job 2), (Apocalipse 3), (Mateus
6) ou de frases tipo aforismo sobre Ngungunhane. Há de novo um
diálogo textual, agora triádico, entre os fragmentos e cada um dos
contos e as citações. Esse diálogo, provocatório, coloca os contos a
deconstruir as afirmações dos fragmentos, entrando as citações em
consenso, ou funcionando como mote às estórias. Tudo isto
visando a reconstrução da personagem histórica em personagem
Centro de Ensino à Distância 54

estórica, em simultâneo reconhecendo que a referida historicidade é


já estoricidade. Irreverência em relação à História pela inversão
parodicamente exagerada da representação histórica.
O primeiro conto, que dá título ao livro, conta como o guerreiro
Ualalapi foi incumbido de matar Mafemane, o herdeiro legítimo do
trono nguni, e a usurpação do poder que Ngungunhane pratica. A
partir desta transgressão inicial se conta o sucessivo declínio do
império, e os acontecimentos insólitos que se lhe seguiram.
Ngungunhane só surge como protagonista no conto final "O Último
discurso de Ngungunhane". Até aí, a sua personalidade, a forma de
governação, são referidos indirectamente através de outras
personagens que, similarmente, padecem de características anti-
heróicas. Os abusos de poder, a arbitrariedade, o despotismo, e a
covardia, são algumas das tendências mais marcadamente
assinaladas.
Há um percurso lento e paulatino de chegada ao protagonista,
quase à maneira de uma narrativa policial. As provas e as pistas
vão-se reunindo, conto a conto, através de uma focalização
múltipla. Outras fontes, forjadas pelo narrador, surgem no interior
dos textos, o testemunho oral e também o escrito. Uma vez que
Ualalapi é uma desmitificação das versão colonial e pós-
independência da figura de Ngungunhane (a colonial que é
paternalista e a revolucionária pós-independência — implícita, não
referida no texto — que lhe atribui um estatuto de herói) convida a
reflectir sobre a validade de uma e de outra, das fontes escritas e
das orais, e daquelas que o narrador convoca no seu próprio
discurso.

1. 4 Características linguísticas em Ualalapi


Ungulani Ba Ka Khosa valoriza nitidamente a oralidade, à qual
atribui poder e capacidade de permanência no tempo, como revela
esta passagem de “Ualalapi”, em que a propósito dos assuntos do
império, se diz que o imperador os resolvia “com a voz e os gestos,
pois papel não havia e as ordens eram escritas pela voz tonitruante
que ressoava nas manhãs e tardes chuvosas e secas” (KHOSA.
1991: 62). O poder é aqui simbolizado pelo adjectivo que qualifica a
voz, enquanto a ideia de permanência é dada pela “metáfora irónica”
que destacámos com o itálico. Portanto estamos em presença do
contraste entre a escrita e a oralidade, mas no qual se estabelece a
valorização da oralidade que se exprime através de uma
desvalorização da escrita, simbolizada pelo papel, a que as
personagens se referem sempre em termos pejorativos, como
atestam estas palavras de Ngungunhane, no seu discurso
premonitório, antes de partir para o desterro:
Estes homens da cor do cabrito esfolado que hoje aplaudis
[...] Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não
bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos
antepassados, a palavra que impôs a ordem nesta terras sem
Centro de Ensino à Distância 55

ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas


mães e mulheres. O papel com rabiscos norteará a vossa
vida e a vossa morte, filhos das trevas
Para mostrar as diferenças linguístico-culturais entre vários países
ou no interior de cada país, Mafalda Leite prefere utilizar o termo
“oralidades”. Afirma ela que:
O facto de usarmos no plural a palavra “oralidade” visa
exactamente demonstrar que, por um lado, as tradições
orais são diferentes de país para país, embora com um
registo linguístico-cultural bantu comum, e dentro de cada
país, de etnia para etnia, apesar de ser possível encontrar
elementos unificadores na caracterização dos géneros e dos
mitos, por exemplo. E o plural serve-nos neste caso,
também, para significar o processo transformativo que a
urbe provocou nas tradições rurais, modelando-as e
recriando-as. E usamo-lo ainda, para acrescentar outros
elementos, provenientes de outras oralidades, de que a
língua matriz é portadora na sua origem cultural.
Ao trazer as formas e ao recriar um certo imaginário da tradição oral
na sua obra, o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa (1991) deseja
provavelmente chamar a atenção para a cultura anulada e
considerada como superstição nos primeiros anos de independência,
que procurou eliminar os valores do mundo tradicional.

Sumário

De um modo geral, podemos entender a p contexto do surgimento


da revista charrua a comunhão de ideias, por um lado, simples
reconhecimento, depois um arquivar de todo o legado histórico-
literário numa espécie de museu memorial colectivo, e, por outro,
distanciamento ou rejeição.

Exercícios

1. “O surgimento da Charrua é um momento de rejeição e


redefinição da literatura pós-independência”. Argumenta
esta afirmação.
2. Relacione o surgimento da revista charrua e a escrita de
Ualalapi.
Centro de Ensino à Distância 56

Unidade 14: Literatura Angolana:


O Livro de Maia Ferreira e o nascimento da Literatura angolana

Introdução
Nesta unidade, vai ter a opotunidade de aprender os aspectos
relacionados ao nascimento da literatura angolana.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Adquirir noções básicas sobre o nascimento da literatura


angolana.

O livro de Maia Ferreira e o nascimento da Literatura


angolana.

Pertence também à primeira metade do século XIX a publicação do


primeiro livro de poemas de um escritor angolano,
Espontaneidades da Minha Alma - As Senhoras Africanas, Por
José da Silva Maia Ferreira, natural de Benguela. O livro
Constitui a primeira obra da incipiente literatura angolana, posto
que apareceu no momento preciso em que se debilitaram os antigos
vínculos entre Angola e o Brasil.
Com a abolição do tráfico de escravos em 1836 e a substituição
gradual por uma colonização baseada na agricultura e no comércio,
a partir dessa época, começou a produzir-se na sociedade de
Luanda e Benguela, portos de saída de escravos para a América do
Sul, favorecendo uma maior estabilidade económica e social, o que
deu origem a uma primeira burguesia africana. Estas pessoas
desenvolviam suas actividades profissionais no comércio, na
função pública e nos tribunais; e encontravam no periodismo
nascente o primeiro grande veículo para a expressão de suas
principais aspirações. Rapidamente, a imprensa se transformaria
num lugar de privilégio para o debate sócio-político.
Centro de Ensino à Distância 57

Ao longo de quase toda a metade do século XIX, se assistiu ao


nascimento de diversas publicações. O Boletim Oficial, fundado
em 1845, foi o ponto de partida. Seguidor das funções oficiais para
as quais foi criado, desempenhava também as funções de um
periódico que, apoiado por uma pequena elite de europeus recém
ligados a Colónia, contribuía consideravelmente para o incremento
do periodismo em Angola.
Assim se sucederam várias publicações entre os anos 1845 e 1880.
Ali se foi esboçando uma primeira linha de homens que, sendo
europeus, viviam quotidianamente os problemas da colónia,
fazendo da imprensa uma ampla tribuna para a defesa de seus
interesses. O procedimento tornou-se tradição e, mais tarde, o
periodismo se converteria na principal arma de luta dos intelectuais
africanos.
O primeiro periódico editado por africanos, "O Hecho de Angola",
data de 1881. Sua aparição abriria caminho para o despertar de
novos órgãos daquela que se chamou a imprensa africana, que se
caracterizou por conter publicações redigidas ora em kimbundu ora
em português. Entre estas, destacam "O Futuro de Angola", 1882;
"O Farol do Povo", 1883; "O Arauto Africano", 1889; e "1
Muen'exi", 1889; "O Desastre", 1889; e "O Policial Africano",
1890.
Este periódico teve uma vida bastante curta, posto que não passou
do quarto número. Somente dois dos escritores deste primeiro
movimento nos deram livros. Pedro de Félix Machado e Cordeiro
da Matta.
Com a perda das colónias do Oriente primeiro e do Brasil depois, e
sobretudo, depois da abolição da escravatura, Portugal viu-se com a
necessidade de intensificar a exploração dos territórios africanos, a
qual não podia continuar da maneira como era feita então, de forma
puramente mercantilista, sem falar na ameaça de que eram objecto
os territórios portugueses por parte dos holandeses e ingleses.
Assim, de colónia penal, Angola se transforma em colónia de
ocupação. Quando os portugueses começaram a chegar em número
crescente, a partir de meados do século XIX, encontram já uma
burguesia nacional em pleno desenvolvimento, constituída, em sua
maioria, por negros e mestiços.
Naturalmente, o crescente número de europeus acentuou as tensões
existentes. A imprensa livre colonial começa progressivamente a
dirigir seus ataques contra os "negros indígenas", sobretudo pelo
modo com que estes não se haviam convertido todavia em
instrumentos dóceis de trabalho para o fácil e rápido
enriquecimento dos colonos contra os "negros e mestiços inativos",
pelo destacado lugar que ocupavam na estrutura social e
económica.
Centro de Ensino à Distância 58

A partir dos finais do século XIX, os ataques sobem de nível. Já em


1901, a "Gazeta de Luanda", único periódico que então se
publicava, publicou um artigo - "contra a lei", pela greve - cujo
autor manifestava o mais escandaloso reacionarismo colonialista,
ao afirmar a inferioridade do negro em relação ao branco e negando
ao primeiro o direito mais elementar: o de formar uma parte da
humanidade.
As respostas não se fizeram esperar. Uma obra colectiva de onze
autores, "Voz de Angola", e "Clamando no Deserto", foi publicada
em Maio de 1901. Entretanto a obra sobrepuja o âmbito de uma
mera resposta e postula já alguns dos princípios que vão orientar a
vida das sucessivas gerações de intelectuais angolanos: a luta pela
auto-determinação.
Daquela que se chamou a primeira geração angolana de
intelectuais, até a geração de 1980, as obras que citamos são a
melhor indicação do que se produziu na segunda metade do século
XIX e na que o periodismo figura em um lugar destacado. Junto ao
periodismo, foi sem dúvida a poesia quem, como outra forma
literária merece ser destacada no final do século XIX.
Facto muito comum era também a aparição de numerosos
periodistas entre os poetas de maior renome, como é o caso de
Arcénio do Carpo, Faria Leal, Urbano de Castro e o já muito citado
Cordeiro da Matta.
No final do século XIX, por volta de 1896, é quando se assiste a
aparição de um novo grupo de jovens intelectuais, o grupo que
mais tarde se chamou de a geração de 1896. Talvez tenha sido esta
a geração de maior destaque entre os intelectuais angolanos, antes
da geração da mensagem, em 1948; esta última é a que estaria
presente no acontecimento da luta armada em 1961. Composta por
vigorosos pensadores, animados, como seus antecessores, pelas
melhores intenções e dispostos a tudo na luta em favor dos
interesses dos angolanos, a geração de 1896, impulsionada pelos
mais puros ideais, procurava elevar a sociedade a qual pertencia a
um estado mais alto de sua evolução.
Este grupo possuía uma orientação programática e como ponto de
apoio para sua actividade tinham a difusão da educação e da
instrução entre seus compatriotas. Desde esse momento, aqueles
pensadores compreenderam que na instrução do povo estava o
ponto de partida para o desenvolvimento socio-económico do país,
opondo-se desse modo a tendência acentuada do sistema
colonialista à desfiguração sócio-cultural e histórica de Angola.
Um nome muito importante que surge nesta época é o de António
de Assis Júnior, que apesar de pertencer a geração de 1896, só um
pouco mais tarde conseguiu alguma notoriedade. A sua importância
na literatura angolana é enorme. Além disso não existem outras
publicações importantes durante o período que vai de 1910 a 1940,
Centro de Ensino à Distância 59

adquirindo suas obras, desse modo, um ponto de referência


obrigatório. De facto, a geração de 1896, se silencia a partir de
1910.
Na esteira do trabalho desenvolvido por seus correligionários,
Assis Júnior defendia uma posição que pugnava pela defesa das
referências culturais e pela aspiração a um estabelecimento
definitivo de uma literatura própria, o que só se concretizaria mais
tarde com Castro Soromenho. Sua primeira obra, "Relato dos
acontecimentos de Dala Tando e Lucala", escrita no cárcere em
1917, retrata a amarga experiência pela qual passou em sua
tentativa de impedir que alguns indígenas fossem retirados seus
bens e fazendas. Logo foi acusado pelas autoridades coloniais de
ser o "autor ou dirigente de um movimento xenófobo". Por último,
o que lhe levou ao cárcere por duas vezes, em 1917 e 1922, foi sua
retitude de caráter, a honradez com que defendia os indígenas, por
meios legais, o que constituía um obstáculo a política de rapina e
espoliação, uma das grandes chaves para a implantação da ordem
econômica dirigida pelas grandes companhias agrícolas.
No transcurso destes acontecimentos, muitos outros intelectuais
angolanos foram encarcerados e deportados, a exemplo do que
aconteceu com o próprio Assis Júnior. É censurada a Liga
Angolana, que havia sido inaugurada em 1913 e se encerram os
periódicos africanos "O Imperial", "o Independente", "A Verdade"
e "O Angolense". A medida que a sociedade colonial se vai
estruturando, a pequena burguesia africana que tantos intelectuais
haviam constituído em seu país de origem vai consumindo-se, ao
mesmo tempo que se aniquilam as estruturas e a cultura nacional
angolanas.
E é só em 1928, depois de um exílio forçado de quatro anos, por
ocasião de uma estadia em Gabela, Amboim, onde "durante muito
tempo e várias vezes teve que contar sua história", que decide
reproduzir, e posteriormente publicar, primeiro nos folhetins do
periódico "A Vanguarda", em 1929, e reeditada mais tarde em 1925
em forma de livro: "O Segredo da Morta".
Esta novela se converteria em um marco notável no
encaminhamento da literatura angolana diante de sua identidade
nacional". Tendo escrito num período em que não existiam mais
registos de outra obra produzida por um autor angolano, esta
novela ocupa todo um vazio literário, formando uma ponte entre as
duas gerações dos escritores preocupados com a revitalização
angolana, as gerações que estavam anteriormente representadas por
Cordeiro da Matta e posteriormente, por Castro Soromenho. Por
um lado, a obra representa um início da ficção literária no século
XX, da qual Castro Soromenho é o mais ilustre representante; por
outro lado, uma continuidade: a geração de 1880, encabeçada por
Cordeiro da Matta, ao mesmo tempo que une como já dissemos a
todo o movimento, reflete sobre a angolanidade.
Centro de Ensino à Distância 60

É já ao largo dos anos 40 quando se reinicia, quase a partir do zero,


a elaboração da literatura angolana. Na verdade, toda a produção
literária deixada pelos intelectuais do século passado, salvo raras
excepções, se perdera. É a partir daqui que Castro Sormenho
começa a erigir uma obra monumental. Iniciando sua actividade
literária com temas que revelam a vida das sociedades tribais não
corrompidas pela presença do colonizador, publica os livros de
contos Ngári, "Calenga e Rajada" e as novelas "Noite de Angústia"
e "Homens sem Caminho".Entretanto a grande novela de Castro
Sormenho é sem dúvida "Terra Morta", publicada pela primeira vez
no Brasil em 1949, obra em que o autor aborda as relações dos
colonos com os africanos. Castro Soromenho é todavia um
paradigma no qual as nacionalidades biológicas e literária de um
autor não tem necessariamente que coincidir.
A partir da aparição das páginas literárias dominicais, primeiro, de
"A Província de Angola" e, mais tarde, do "Diário de Luanda",
começaram a revelar-se uma série de jovens escritores de certo
mérito no que diz respeito à época e ao meio no qual surgiram. No
entanto, mesmo que muitos deles tivessem descrito Angola com a
maior ternura, não conseguiram criar uma literatura de raiz
angolana que fugisse dos modelos da literatura colonial. Só em
1948, com o surgimento do movimento cultural "Vamos Descobrir
Angola", iniciado por Viriato da Cruz e com a publicação da
revista "Mensagem", três anos mais tarde, se abre uma nova página
na história da literatura angolana. Era um movimento no qual se
concentravam alguns expoentes da intelectualidade nacional, que,
lucidamente se volta face à realidade de então, propondo-se a
reconsiderar o conjunto da realidade angolana. Havia sido lançada
a semente a partir da qual começaria a germinar um grande
movimento literário que só se serenaria, triunfante, em Novembro
de 1975.

Exercícios

1. Relacione a obra Espontaneidades da Minha Alma - As


Senhoras Africanas com o surgimento da literatura
angolana.
2. A actividade literária angolana conhecera, a dado passo, um
interregno e depois recuperada mais tarde por Castro
Soromenho. Fale dos acontecimentos que ditaram tal facto.
Centro de Ensino à Distância 61

Unidade 15: Periodização da Literatura Angolana

Introdução
Estudar uma literatura implica analisar a progressão temporal do
cultivo de uma língua com fins estéticos e culturais, bem como o
modo de encarar essa progressão, através de perspectivas críticas e
metodológicas que a condicionam. Na presente unidade vamos
importa-te essencilamente estudar à periodização da literatura
angolana.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Adquirir uma visão global sobre a periodização literária


angolana

Literatura Angolana: Periodização

Podemos dividir a literatura angolana em sete períodos, que a


seguir se listam:

1.° Período – das origens até 1848, o da Incipiência.

2.° Período – da publicação de Espontaneidades da minha alma, de


José da Silva Maia Ferreira, em 1849 até 1902, o dos Primórdios.
Destacam-se Alfredo Troni com Nga mutúri (1882). Cordeiro da
Matta. É o período da chamada imprensa livre.

3.° Período – séc. XX (1903-1947), o do Prelúdio. Período do


nacionalismo, da literatura colonial.

4.° Período – entre 1948 e 1960, o da Formação da literatura, com


movimentos culturais organizados: Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola (MNIA) (1948), com o lema “Vamos
descobrir Angola”. Destaca-se Viriato da Cruz, Antonio Jacinto,
que editou em 1950, Antologia dos novos poetas angolanos.
Centro de Ensino à Distância 62

Em 1951 sai Mensagem. Mensagem marca, assim, o início da


poesia moderna de Angola. Nesta revista participa uma pleiade de
escritores que serão os responsáveis pela construção da literatura
do novo país. Na década de 50 há a influência do neo-realismo e da
Negritude:

a) Exaltação do povo (proletariado) , luta contra a burguesia


b) Busca da identidade nacional;
c) Integração no mundo negro. Destaca-se, neste período, a poesia
com influência do modernismo.

5.° Período – 1961-1971, incremento da atividade editorial ligada


ao Nacionalismo, surgem textos de temática guerrilheira. Em 1962,
Alfredo Margarido publica Poetas angolanos. Dois anos mais tarde,
em 1964, José Luandino Vieira recebe o Grande Premio de
Novelística por Luuanda (enquanto estava preso em Cabo Verde).

6.° Período – 1972 a 1980, o da Independência. Publica-se a


coletânea Angola, poesia 71. E em 1975 funda-se a União dos
Escritores Angolanos (UEA) e fundam a gazeta Lavra & Oficina.

7.° Período – 1981-1993, o de Renovação, que começa com a


formação da Brigada Jovem de Literatura, preparar os jovens para
os cursos superiores.

Exercícios

1. Complete essa informação, lendo LARANJEIRA, 1985.


Centro de Ensino à Distância 63

Unidade 16: O Neo-realismo: Castro Soromenho e a Trilogia romanesca (Terra Morta)

Introdução
Castro Soromenho desempenha um papel fundamental para a
literatura angola sobretudo por reiniciar uma actividade que se
perdera, por algum tempo. Desta vez, sobre carris neo-relistas
aborda temas sociais , repressão, abusos de administração do
homem angolano, etc, que se encontram em sua obra célebre –
trilogia de Camaxilo. Nesta unidade importa-te como Soromenho
abarca todos os níveis daquela sociedade, brancos, mestiços e
negros.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

Objectivos  Adquirir conhecimentos sobre o neo-realismo angolano;


 Interpretar temas e os grupos étnico-culturais em trilogia de
Camaxilo de Castro Soromenho.

Trilogia Romanesca: o Neo-Realismo

Castro Soromenho nasceu na Zambézia, Moçambique (1910) –


moçambicano de nascimento, cabo-verdiano de ascendência e
angolano de vivência. 2 fases: na 1a. destaca o sentido social,
lendário e histórico das comunidades tribalizadas dentro do
realismo mágico – Nhári, o drama da gente negra, 1938; Noite de
angústia, 1939; Homens sem caminho, 1941; Rajadas e outras
histórias, 1943; Calenga, 1945; Histórias da terra negra, 1960. 2a.
fase, neo-realista, aborda o espaço e os grupos humanos
modificados pela presença do europeu. Trabalha 3 grupos étnico-
culturais: negros brancos e mestiços (na anterior só o negro).
Temas: violência, repressão, abusos da administração,
sofrimento do homem angolano explorado, desencanto
existencial, com a trilogia – Terra morta, 1949; Viragem, 1957;
Chaga (póstumo), 1970.
É este, portanto, o contexto em que surge, em Angola, a produção
de Castro Soromenho e se estabelece a «matriz neo-realista» da
qual se destaca a chamada «Trilogia de Camaxilo». Terra Morta
(1949), Viragem (1957) e A Chaga, publicada postumamente em
Centro de Ensino à Distância 64

1970, são obras escritas sob o signo da ruína representada pelo


sistema colonial e a primeira manifestação de cunho nitidamente
realista/naturalista. Soromenho retoma as premissas do naturalismo
do século anterior e tece seus romances calcado no tripé
experiência, verdade e justiça que norteara a produção da chamada
geração de 1870.

Em perspectiva diacrónica, Soromenho descreve, em Terra Morta,


a decadência do sistema colonial metonimizado no fracasso dos
colonos em meio à crise mundial ocorrida durante as décadas de 20
e 30 do século XX. A queda da cotação da borracha no mercado
internacional ocasiona a bancarrota desses colonos, alguns deles
conhecidos como «brancos de segunda» por terem nascido em
África. A oposição racial descrita neste romance e nos demais da
trilogia abarca os três níveis existentes naquela sociedade: brancos,
negros e mestiços, todos envolvidos por um nível crescente de
apatia biológica e social. Tal qual os trabalhadores das minas do
norte da França, descritos no já mencionado Germinal, a atmosfera
reinante em Camaxilo é permeada pelo grisu, o gás tóxico e
imperceptível que ameaça e explode as minas de carvão descritas
no romance francês.

A questão social torna-se, deste modo, o fio condutor da trama, que


se ocupa ainda em evidenciar fissuras nos segmentos sociais que
compõem a narrativa. Os brancos, senhores ainda de uma terra à
deriva, são tomados pela hemiplegia de uma situação alienante.
Apresentam-se estáticos, parados de pé ou sentados defronte de
suas lojas, descalços e barbados à espera dos raros clientes que
sustentam seus negócios.

Irremediavelmente afastados da vida em Portugal, acabam por


desposar mulheres nativas, dando, com isso, origem a uma
descendência mestiça que lhes garantem mão-de-obra gratuita e a
perpetuação das relações imperialistas. Seus filhos assimilam
elementos culturais advindos da herança materna que se dá na
perpetuação dos mitos angolanos, os quais entram em conflito com
a necessidade premente de "embranquecimento", ou seja, de
adquirem status semelhante ao de seus pais e da cultura lusitana.
Deles herdam, sobretudo o tom de pele que, no entanto, não lhes dá
acesso ao universo dos brancos e que, por diversas vezes, interdita
seu pleno relacionamento com os outros negros. Estes, por sua vez,
são vítimas ainda de um sistema de desigualdade social que, pela
técnica de zoomorfização, os limita ao universo escravocrata que,
no presente enunciado permeia as relações entre Portugal e África.

Os cipaios negros a serviço dos brancos, criam fissuras na estrutura


social por serem os responsáveis pela manutenção da ordem que o
serviço e a necessidade de produção impõem, e que é
metonimizada pelo chicote que manipulam. Criam, assim, um
distanciamento de seus pares raciais, o que os leva a uma situação
Centro de Ensino à Distância 65

de estagnação: a natureza de seu trabalho não lhes franqueia


entrada no universo dos brancos, que os desprezam, e fomenta o
ódio racial por parte de outros negros que os renegam. Este
estilhaçamento se repete também na substituição sobas imposta
pelos portugueses. Líderes dos diversos kimbos angolanos e eleitos
pela ancestralidade nacional, foram, desde os primórdios da
colonização, despojados da hierarquia primordial que possuíam em
favor de outros de sua raça que atendiam aos ideais colonialistas e
favoreciam a penetração lusitana.

Estas são algumas das muitas imagens excludentes que Soromenho


lança mão em seu projecto narrativo. A elas somam- se outras
como, por exemplo, a oposição noite e dia. Se o dia é o espaço do
trabalho burocrático para os oficiais do exército português e demais
brancos, para o negro é a representação do trabalho árduo e
incessante. A noite, contudo, torna-se a unidade temporal que os
beneficia, pois é nesse momento em que, reunidos, evocam seus
mitos e as narrativas orais que medulam seu saber. Sentados à beira
das fogueiras e dançando ao som de tambores, demandam de seus
antepassados o alento e a vingança impostos pelo equívoco das
relações sociais. É neste espaço que o branco se afastado poder que
a luz do sol lhe outorga e passa a temer a fúria da ancestralidade
rejeitada ao brilho do sol e das diversas divindades evocadas nas
senzalas.

É, pois, durante o transe da noite africana que se revelam ainda


algumas relações conflituosas, desta vez originada entre
semelhantes. Ao iniciar seu relato com uma partida de baralho, à
luz amarela do candeeiro de petróleo que lança sombra sobre o
rosto de seus participantes, Soromenho exacerba aspectos cruéis do
colonialismo para os brancos de Camaxilo e que se dá no
distanciamento filosófico existente entre o secretário Silva,
Américo, Valadas e Vasconcelos, metonímias do individualismo e
do blefe exigidos em um jogo de cartas.

De igual modo, a sede do poder colonial encontra-se em local


geograficamente elevado, o que permite ao poder uma visão global
do espaço circundante. Os demais habitantes retratados por
Soromenho estão restritos a partes mais baixas da província, que
reduzem sensivelmente seus horizontes e revigoram o sistema
político vivido. Laura Padilha evidencia um cómodo da casa que
apresenta uma possibilidade de interseção entre os universos
branco e negro. As varandas são construídas em um espaço que se
prolonga do lado de fora da casa, ou seja, projetam-se sobre o solo
africano. No entanto, por serem despojadas de paredes e da
proteção assegurada pela territorialidade do interior da residência,
servem de exemplo da miscigenação cultural resultante do sistema
colonial e que pode ser expressa, como já observamos, pelo
casamento inter-racial e a descendência mestiça. Esta pode ser a
representação de um novo traço neo-realista/naturalista decorrente
Centro de Ensino à Distância 66

da evolução que se deu entre a produção literária do século XIX em


que esta interseção era interdita e a representação social do século
XX.

Permanece, contudo, o maniqueísmo espacial que, em Terra Morta,


se dá no espaço circundante. Além da dicotomia alto X baixo, este
pode ser expresso também na oposição esquerda X direita: a prisão
está localizada à esquerda da província de Camaxilo e o cemitério,
à direita. No meio, há apenas o espaço destinado ao trabalho árduo
e a sugestão de que os trabalhadores representados tendem,
necessariamente, a um ou a outro.

Apesar de Soromenho criticar o imperialismo português e enfatizar


a impossibilidade de os negros se tornarem sujeitos do discurso
histórico, este autor aponta uma possível solução ao impasse
retratado no romance. Américo é a personagem que age segundo a
semântica de seu nome, alegoria da glória portuguesa adquirida,
mas não perpetuada. Representa novas ideias e possibilidades que
se articulam com a fecundidade do solo e da cultura brasileira e,
sobretudo, pela independência deste país da tutela portuguesa. Sua
defesa de negros e mestiços o conduz, no entanto, a uma dimensão
de desterritorialização em que é rejeitado pela administração
colonial e pelos próprios negros que procura defender, incapazes de
compreender o fundo humanitário de seu gesto. A personagem
evidencia, portanto, uma alternativa ao caos retratado ainda que,
como as novas terras, tenha de ser cultivada e fecundada.

Estes elementos são usados pelo autor para inquirir a mistificação


da colonização e, de modo a superar o dilema dela advindo,
Soromenho sugere uma nova ordem baseada no materialismo
histórico como possibilidade, pela revolução, do resgate político,
social e cultural de Angola, metonímia do império português em
África.

Exercícios

1. Apresente toda a simbologia patente na trilogia de


Camaxilo de Castro Soromenho.
2. A obra de Soromenho apresenta duas fases importantes.
Enquadre numa delas a trilogia.
3. Mostre até que ponto a obra de Soromenho é
realista/naturalista.
Centro de Ensino à Distância 67

Unidade 17: A Poesia Angolana : De (1849 – 1948)

Introdução
A emergência e o desenvolvimento de literaturas de povos
colonizados dependem de dois factores: “das etapas de
consciencialização nacional e da asserção de serem diferentes,
como temos vindo a dizer. Na primeira etapa, a literatura produzida
na colónia é escrita pelos próprios colonizadores. Na segunda, é
escrita pelos nativos mas apresenta uma total dependência em
relação ao modelo literário dopaís colonizador, e na terceira, há a
ruptura com o modelo literário e com a dependência cultural do
país colonizador. Na sequência desta divisão, vamos aqui falar da
primeira e segunda etapas correspondendo a 1849 a 1948 (1.º a 3.º
períodos da literatura angolana)6

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Ter conhecimentos sobre a literatura angolana de 1849 - 1948


Objectivos

Poesia Angolana: (1849-1948)


Como apontamos, a primeira etapa, a literatura produzida na
colónia é escrita pelos próprios colonizadores. Esta etapa envolve
textos literários produzidos por representantes do poder
colonizador (viajantes, dministradores, soldados e esposas de
administradores coloniais). Tais textos e reportagens, com detalhes
sobre costumes, fauna, flora e língua, dão ênfase à metrópole em
detrimento da colónia; privilegiam o centro em detrimento da
periferia.
Na segunda, é escrita pelos nativos mas apresenta uma total
dependência em relação ao modelo literário dopaís colonizador, e
na terceira, há a ruptura com omodelo literário e com a
dependência cultural do país colonizador. Os textos literários
escritos sob supervisão imperial por nativos que receberam sua
educação na metrópole e que se sentiam gratificados em poder
escrever na língua do europeu (não há consciência de ela ser

6
Cf. Periodização angolana, Unidade 15
Centro de Ensino à Distância 68

também do colonizador). /.../Embora muitos dos temas (cultura


mais antiga do que a européia, a brutalidade do sistema colonial, a
riqueza de seus costumes, leis, cantos e provérbios) abordados por
esses autores estivessem carregados de subversão, sem dúvida não
podiam e não queriam perceber essa potencialidade.

A literatura angolana escrita em língua portuguesa, sendo um


produto derivado “das sequelas do colonialismo” (Laranjeira 1985,
p.10) europeu, não foge a essa regra. A sua primeira etapa de
desenvolvi mento engloba tudo o que foi produzido em Angola e
sobre Angola no período anterior a 1849. A segunda envolve os
textos produzidos a partir da publicação de Espontaneidades da
minha alma, de José da Silva Maia Ferreira, em 1849, indo até a
véspera da criação do Movimento Vamos Descobrir Angola em
1948, e a terceira começa com a eclosão desse movimento cultural
que fará surgir em Angola uma literatura de natyreza africana, livre
da dependência da metrópole.

O Moviemnto vamos Descobrir Angola


Angolanos negros, brancos e mestiços iniciaram em 1948, em
Luanda, o movimento cultural Vamos Descobrir Angola, tendo em
mente o estudo da terra em que nasceram e que tanto amavam, e
que, no entanto, mal conheciam. Esses rapazes, totalmente
assimilados à cultura européia, eram ex-alunos do liceu Salvador
Correia, que por um motivo ou por outro não puderam ir à
metrópole em busca de uma formação universitária.Eles haviam
estudado toda a cultura portuguesa e sabiam tudo sobre o país
colonizador: a geografia, o clima, a fauna, a flora, a literatura e as
tradições culturais; ao mesmo tempo em que desconheciam
A partir do Movimento Vamos Descobrir Angola, segundo
Ervedosa (Op. cit.), começava a germinar uma literatura que seria a
expressão dos sentimentos e o veículo das aspirações angolanas.
Em 1950, esse movimento transformou-se no Movimento dos
Novos Intelectuais de Angola (MNIA), adquirindo um caráter
quase exclusivamente literário. O Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de
poetas, virados para o seu povo e utilizando nas produções uma
simbologia que a própria terra exuberantemente oferece.

Década de 50
O MNIA e a CEI foram responsáveis pelas principais publicações
poéticas na década de 50. A CEI desempenhou papel de primordial
importância na divulgação dos autores angolanos silenciados
pelabarreira da censura e contribuiu de forma decisiva para chamar
Centro de Ensino à Distância 69

a atenção do mundo para os dramas que Angola vivia. Em 1948 a


CEI de Lisboa publicou o boletim literário Mensagem, enquanto
que a de Coimbra publicou o similar Meridiano. Dois anos depois
(1950), O MNIA publicou a Antologia dos novos poetas de
Angola, um modesto caderno artesanal contendo poemas de
António Jacinto, Viriato da Cruz e Maurício de Almeida Gomes. E
no ano seguinte, através do Departamento Cultural da Associação
dos Naturais de Angola (ANANGOLA), o movimento publicou a
revista Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, cujo projecto
vasto e ambicioso, era, a urgência de criar e levar a cultura
angolana além fronteiras.

Exercícios

1. Faz um pequeno resumo sobre a literatura produzida no


período compreendindo entre 1849 a 1948.
2. Fala dos princiapais momentos e acontecimentos desta
literatura.
Centro de Ensino à Distância 70

Unidade 18: Contexto Sócio- cultural de Angola: Revista Mensagem

Introdução
Como acontece com os outros países, a literatura de Angola
também não nasce por método espontâneo. Vários são os
antecedentes e os precursores que influenciam sobremaneira o
carácter social, cultural e estético da literatura e da poesia, em
particular. E não podemos nunca descurar, como factor de grande
influência, a tradição da oralidade em África, um dos antecedentes
de maior responsabilidade. É importante que nesta unidade
conheças o contexto sócio-cultual do surgimento da revista
Mensagem.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Adquirir conhecimentos sobre o contexto sócio-cultural de


Angola no período que inicia com a publicação da reista
Objectivos
Mensagem.
 Caracterizar, especificamente, poesia produzida noo período
entre 1950 a 1970

O Contexto Socio-cultural de Angola (A Revista Mensagem)

Podemos considerar que a história da poesia de Angola divide-se


em duas fases, sendo a primeira a da escrita colonial, e a Segunda a
da poesia moderna e nacional, que inicia com a publicação da
revista Mensagem , em 1951.

Mensagem marca, assim, o início da poesia moderna de Angola.


Nesta revista participa uma pleiade de escritores que serão os
responsáveis pela construção da literatura do novo país. No
primeiro número de Mensagem colaboram, entre outros, Mário
António, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, António
Jacinto e Mário Pinto de Andrade. A publicação da revista , no
dizer de Ana Mafalda Leite, "foi o resultado concreto da ambição
desta nova geração de intelectuais de Angola de amplificar o
movimento cultural iniciado nos anos 40 por Viriato da Cruz."
Centro de Ensino à Distância 71

A produção poética angolana abrange três grandes períodos: de


1950 a 1970; o período de inovações - a década de 70; e a geração
de 80.

As duas décadas de 1950 a 1970, marcam a fase da viragem para a


conciencialização da problemática angolana, sobretudo em três
grandes vertentes - a terra, a gente, e as suas origens. A temática
dos escriotres da Mensagem gira à volta de tópicos que vão
caracterizar a poética que existe até aos nossos dias: a valorização
do homem negro africano e da sua cultura a sua capacidade de
auto-determinação, a nação africana que se antevê como estado
com autoridade e existência próprias. Muita da poesia é uma
poesia de protesto anti-colonial, sem deixar de ser humanista e
social. Agostinho Neto, Viriato Cruz e Mário António concentram
muito da sua produção nesta temática.

Quase todos estes poetas tratam os temas da identidade , da


fraternidade, da terra de Angola pátria de todos, negros, brancos e
mestiços; de grande importância é também o tópico da alienação (
sobretudo a que respeita ao estado de espírito do branco nascido e
criado em Angola). Muita da poesia é também de carácter intimista,
como é o caso da de Mário António.

Toda esta geração, utilizando recursos líricos e dramáticos,


consegue criar uma poesia de fundo e cariz emocional. Através da
poesia, descobre-se Angola, as suas origens , as suas tradições e
mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedagógica e
didáctica: com ela tenta-se recriar África e Angola, os valores
ancestrais do homem africano e da sua terra, bem como ensinar
esse mesmo homem a descobrir-se como individualidade. Esta
poesia põe em prática a reposição da tradição oral, onde as próprias
línguas nacionais ocupam um espaço importante. É, numa palavra,
a poesia da "angolanidade".

O autor que representa melhor toda esta problemática é, sem


dúvida, Agostinho Neto. A sua obra principal, Sagrada Esperança,
é uma amostra valiosa não só da poesia de combate e contestação
(sem ser panfletária, no entanto) mas também da poesia lírica e
intimista, frequentemente modulada por uma religiosidade
profunda.

Agostinho Neto revela um grande humanismo, em que são


evidentes o amor profundo pela vida e o conhecimento do sofrer
humano, que amiúde obriga o poeta a utilização de um realismo
feroz nos seus versos.

Na década de 70 surgem três nomes que vão ser os principais


responsáveis por uma mudança profunda na estética e na temática:
David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. Por
um lado, procura-se maior rigor literário; por outro, e como
Centro de Ensino à Distância 72

consequência do anterior, evita-se propositadamente o


panfletarismo. Entra-se também numa fase de maior
experimentalismo . Estes autores tentam também reconciliar os
temas políticos do passado com a procura de uma linguagem
poética mais universal. Por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho é
autor de uma poesia que, ao lado de uma grande ambiência de
oralidade e de um apontar para as consequências da guerra constitui
também uma reflexão sobre o próprio discurso poético. É, no
entanto, Arlindo Barbeitos a voz poética que melhor assume a
viragem e a ruptura com a tradição da Mensagem.

Arlindo Barbeitos tem ,até o momento, dois livros publicados:


Angola Angolê Angolema (1976) e Nzoji (1979). Numa nota de
introdução a Angola Angolê Angolema, Barbeitos traça as linhas
mestras de sua poética. Assim, a sua poesia tenta ser uma
reconciliação do homem com a sua condição; é um testemunho e
um instrumento de libertação.

A poesia tem como função primordial sugerir; ela é um


compromisso entre a palavra e o silêncio. A outra função é a de
relatar as formas culturais africanas e a vivência do autor. Arlindo
Barbeitos afirma, a propósito, que "só é poesia se sugere, só tem
expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se
simultaneamente retém e transcende a palavra". Sobre as
características da sua poesia, devemos dizer que ela é religiosa na
medida em que nela se relata a experiência do ser humano que
procura sempre a perfeição; por outro lado, há sempre o desejo de
retorno à imanência, e a vontade de construir a irmandade
universal. É, também, uma poesia que reflecte a dor, a guerra , a
situação colonial. Em relação à língua, Arlindo Barbeitos tenta, e
consegue, africanizar a língua colonial, numa tentativa continuada
de repossuir todos os valores e tradições culturais do país.

A partir dos anos 80, surge uma nova geração de escritores cujo
ecletismo é a característica mais marcante. Digna de nota é uma
pequena antologia publicada em 1988, e intitulada no Caminho
Doloroso das Coisas. Na introdução, o organizador da antologia
deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova
poesia angolana vai tomando: "São jovens, mas dentre eles há
poetas que são artistas nos seus versos como carpinteiros nas
tábuas.

Exercícios

1. Identifica a temática principal veiculda nos textos


produzidos entre os anos 50 a 70.
2. Diferencia a poesia dos anos 70 e 80.
Centro de Ensino à Distância 73

Unidade 19: Negritude, Compromisso E Revolução: Agostinho Neto (Sagrada


Esperança)

Introdução
Um nome que não se pode esquecer na literatura de Angola é o de
Agostinho. Homem que não se deixou ultrapassar pela história de
Angola. Aliás, para além do enovolvimento físico, mostra através
da sua obra o poder de representar uma realidade social e rácica de
Angola. Por esta razão, importa-te nesta unidade estudar com
profundidade a obra deste valioso homem para a literatura
angolana.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Adquirir um conhecimento profundo sobre o compromisso


assumido pela literatura no período que integra a obra de
Agostinho Neto;
Objectivos
 Analisar marcas da negritude e do espírito revolucionário
presents na obra netiana.

Negritude, compromisso e revolução

António Agostinho Neto foi um médico angolano, formado na


Universidade de Coimbra, que em 1975 se tornou o primeiro
presidente de Angola até 1979. Em 1975-1976 foi-lhe atribuído o
"Prémio Lenine da Paz". Fez parte da geração de estudantes
africanos que viria a desempenhar um papel decisivo na
independência dos seus países naquela que ficou designada como a
Guerra Colonial Portuguesa ou Guerra do Ultramar como também
é conhecida. Foi preso pela PIDE e deportado para o Tarrafal,
sendo-lhe fixada residência em Portugal, de onde fugiu para o
exílio. Aí assumiu a direcção do Movimento Popular de Libertação
de Angola (MPLA), do qual já era presidente honorário desde
1962.
Agostinho Neto morreu num hospital em Moscovo no decorrer de
complicações durante uma operação a um cancro hepático de que
sofria, poucos dias antes de fazer 57 anos de idade. Foi substituído
na presidência de Angola por José Eduardo dos Santos.
Centro de Ensino à Distância 74

Poesia
Escreveu em:
 1957 Quatro Poemas de Agostinho Neto, Póvoa do
Varzim, e.a.
 1961 Poemas, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império
 1974 Sagrada Esperança, Lisboa, Sá da Costa (inclui os
poemas dos dois primeiros livros)
 1982 A Renúncia Impossível, Luanda, INALD (edição
póstuma)

Obras principais:
Sagrada esperança, poemas escritos aproximadamente entre o ano
de 1945 e o de 1960. Texto épico da angolanidade. Comparado em
valor aos Lusíadas. É a fase exortativa do povo angolano à
conquista da sua identidade e independência.

Esta obra tem 3 fases: De 1945 a 48-50, fase neo-realista, com


textos curtos, (excepção para “Sábado nos messeques”). Nesta fase
agrupam-se 16 poemas do livro, de “Adeus à hora da largada” até
“contratados”, situando-se algumas numa fase de ambiguidade
entre o realismo social e a Negritude, como “Partida para o
contrato” ou “Caminho do mato”. De 1949 a 1955, a fase da
Negritude, do negro genérico de todo o mundo, mas também
africano e angolano, sem demasiados pormenores regionais em que
aparecem algumas excepções (“Não me peças sorriso”). De 1956 a
1960, a fase do combate, do apelo à libertação nacional.

A Negritude assenta sobre o fundo do neo-realismo. O neo-


realismo convém à descrição de ambientes opressivos miseráveis,
com figuras-personagens: prostituta, contratado, carregador,
vendedeira, aos temas universais como a denúncia (exploração,
alienação, dominação, revolta) numa linguagem expositiva,
realista.

A Negritude convém à exaltação da raça e da cor negra, à recusa


da civilização e da superioridade ocidental, à revalorização da
história e da cultura pré-colonial, etc.

Finalmente temos no livro A renúncia impossível – inéditos.


A renúncia impossível – inéditos (1982). O texto mais longo. Tem
3 partes: introdução: “Não sou Nunca fui/Renuncio-me/Atingi o
Zero”; filosofia de imagens e desejos; Desenvolvimento:
exemplifica a vida dos outros, do trabalho escravo, forçado e
assalariado. Peroração: a assunção do Nada, da Negação da
existência e do mundo. Negando o mundo do Outro, do Branco,
anula sua eficácia. O mundo, a vida e o comportamento do branco,
do europeu e do cristão estariam legitimados, absolvido de culpa,
crime e pecado, se o negro, o africano e o pagão não existissem.
Centro de Ensino à Distância 75

Mas é a sua existência que torna a existência dos outros


ignominiosa ou, pelo menos, culposa…

Vejamos a seguinte análise, por LARANJEIRA, A poesia de


AGOSTINHO NETO como documento histórico,
plaranj@fl.uc.pt.
O verso fulcral do poema que abre o livro Sagrada esperança –
"sou aquele por quem se espera" - foi escrito por Neto e é
premonitório. António Jacinto ou Viriato da Cruz não puderam
escrever tal verso, nem tinham condições para escrever poesia
como a de Neto, também por não serem negros. Não tinham
condições Vivenciais, ideológicas, doutrinárias e culturais. Não
podiam fazer essa poesia épica, que mostrasse as condições de
sofrimento, de ansiedade e de potencialidade revolucionária do
povo. Puderam escrever alguns poemas revolucionários, tanto
estética quanto ideologicamente, mas não um conjunto semelhante
ao de Neto. A história veio provar que aquele verso de Neto é não
só um dizer sobre todos "aqueles" que estavam prontos para servir
os outros num ideal para o colectivo - "sou aquele por quem se
espera" -, podendo "ser" qualquer popular empenhado na defesa de
uma nova pátria, a angolana, como também um dizer sobre ele
próprio – Neto – "aquele" por quem se podia esperar, por quem se
esperava, que podia esperar ser o móbil e o mobilizador, activador
das esperanças, já não "místicas", mas realistas e reais, o líder
político, o líder da liderança política. De facto, se compararmos as
histórias de vida, os percursos políticos e a obra cultural dos quatro
principais intelectuais-militantes angolanos da geração da
Mensagem, ou seja, Viriato da Cruz, António Jacinto, Mário Pinto
de Andrade e Agostinho Neto, verifica-se que este é a única figura
que apresenta uma substância literária predominantemente negro-
africana, uma potencialidade de representação social e rácica, uma
estratégia épica, colectiva, para o povo angolano e um sentido
pragmático da história, expresso em discurso poético, sem
idealismos, sentimentalismos exacerbados ou vacilações finalísticas
de mestiçagem conjuntural, como ele próprio explicou no poema
"O verde das palmeiras da minha mocidade". Haverá, então, um
Agostinho Neto messiânico, prometeico, um Moisés angolano?
Nesse poema "Adeus à hora da largada" acha-se explícita a
formulação de que a mística esperança já não consola o colonizado,
necessitado de uma certeza. Logo, o verso "sou aquele por quem se
espera" pode assim ser lido como decorrente da convicção pessoal
do autor, por sua vez sustentada na análise concreta da sociedade
angolana, de que reunia condições para se tornar o líder da luta de
libertação. De qualquer modo, e, ao contrário do que a sua filha
Irene sugeriu, ele não se via como um Moisés angolano, investido
das tábuas de uma lei sacralizada.
Centro de Ensino à Distância 76

Tal verso (e poema), que apresenta potencialidades


historiográficas, não pode ser apreciado exclusivamente como
poético, ou seja, estético, como que podendo significar
exclusivamente algo assim como o poeta por quem se espera. A
interpretação sociológica também não satisfaz: sou aquele ser de
palavras por quem o leitor espera. Não se trata de um messianismo
ou prometeísmo literário, inserto num mecanismo de leitura,
porque a poética de Neto não permite a concepção de um discurso
pós-modernista de fingimento, de mascaramento ou de colagem. A
sua poética é constituída por uma estratégia afinada pela política, a
ideologia e a intervenção histórica, no sentido mesmo de contribuir
para mudar o rumo da história, marcada por signos esvaziados de
ambiguidade e, portanto, plenos de verosimilhança, veracidade e
verdade, estando o desfecho da sua aventura pessoal e social
inscrito nesse verso, estava escrito nesse documento. É por isso que
a poesia de Neto tem capacidade de documentarismo histórico. Por
um lado, capacidade de expressão psicológica, social e cultural e,
por outro, de intervenção histórica, dado também o carácter
icónico, simbólico, referencial e exemplar do seu autor. Além
disso, não havendo, na época da sua produção, um discurso
historiográfico profissional suficiente segundo a perspectiva do
colonizado, esse discurso poético podia funcionar como discurso
historiográfico de duplo grau, ou seja, como discurso documental
que, avaliando a conjuntura histórica face ao passado, mostra, em
simultâneo, a subjectividade do sujeito: discurso da história de
longa duração e filigrana da história cultural e sentimental.

Exercícios

1. Apresenta um pequeno resumo acerca da obra de Agostinho


Neto.
2. De acordo com a temática analisada nesta obra, Sagrada
Esperança, enquadra-a no período correspondente.
3. De uma sintética, apresenta a simbologia do título do poema
“Sagrada Esperança”.
Centro de Ensino à Distância 77

Unidade 20: angolanidade: Continuidade de Mensagem – A Revista Cultura(II)

Introdução
Desaparecida Mensagem, os escritores angolanos buscam outros
meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura
II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem. É à
volta deste assunto que na presente unidade pretendemos que
conheças as circuntâncias fizeram com que a Mensagem
desapareça.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Conhecer o perfil de uma literatura reivindicatória trazida


para Angola pelos poetas da revista cultura II;
Objectivos
 Discutir no sentido macro a questão da angolanidade

A geração de 50 e a modernidade literária angolana

“Vamos descobrir Angola” são as palavras de ordem da geração de


50. De acordo com os historiadores da literatura angolana, o
primeiro a lançar esse grito foi o poeta Viriato da Cruz, que, em
1948, reunia-se com um grupo de escritores, discutindo a
necessidade de se criar uma poesia nova voltada para a cultura
angolana. Retomava-se, assim, o espírito destemido e questionador
dos escritores e jornalistas angolanos do final do século XIX e
início do século XX, como Cordeiro da Matta, que haviam
trabalhado em favor do resgate e da cultura dos valores nativos.
Desaparecida Mensagem, os escritores angolanos buscam outros
meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura
II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem. Tendo
desempenhado, entre 1945 e 1954, um papel cultural apenas
superficial, Cultura recomeçou a ser publicada em 1957, como
Cultura II, adotando um novo perfil: divulga poemas, textos e
ensaios protestatários e conscientizadores da situação sócio
política. Ao mesmo tempo em que se abre mais ao que está
acontecendo no mundo, a revista discute, cada vez mais
intensamente, temas voltados para as línguas e as culturas locais.
Centro de Ensino à Distância 78

Russell Hamilton não nos deixa esquecer que Cultura II marca o


início de uma crítica literária já com inclinação para a polémica. O
debate “Poesia em Angolana ou poesia de Angola” suscitará várias
questões que envolvem desde a origem geográfica e cultural do
escritor, até a cor da sua pele, a sua fixação no solo africano e o seu
compromisso social. Antonio Cardoso, Mário Pinto de Andrade,
Mário Antonio e Agostinho Neto são nomes que se envolvem nesse
debate. Como aponta ainda Hamilton (1981, p. 87), a autenticidade
cultural será medida, sobretudo, pelo grau de consciencialização
sócio política. Por outro lado, as reivindicações da cultura angolana
e da cor da pele não deixam de ser expressões importantes,
havendo, diversas vezes, confusão entre a reivindicação racial e a
cultural.
Poderíamos resumir as posições críticas do momento (Hamilton,
1981, p. 88 e 89), citando, brevemente, alguns pontos de vista.
Enquanto para António Cardoso era preciso dar ênfase ao
comprometimento político se social, Mário Antonio parecia frisar
as ambivalências e impedimentos de uma literatura aculturada; já
Agostinho Neto salientava a responsabilidade social do escritor de
restaurar a tradição oral africana, buscando incorporá-la à poesia
em língua portuguesa.
Como já se pode notar, são inúmeras e em diversos níveis as
tensões que acompanharam essa literatura, naquele período,
aflorando nas antologias e publicações da Casa dos Estudantes do
Império (CEI). Através dessas publicações, assistiremos ao
desenvolvimento e à afirmação de uma literatura reivindicatória
angolana, que, pouco a pouco destruirá os mitos que haviam sido
construídos em torno das culturas tradicionais de origem banta. Um
deles, o de que as línguas africanas não se prestavam à produção
poética escrita, vem por terra, com a publicação pela CEI de
poemas angolanos de expressão banta e com as pesquisas em torno
da literatura tradicional, como a de C. Easterman (2), o qual tentou
entender e analisar a natureza dos poemas colhidos nas tradições
banto.
O papel da tradição oral e o trabalho de linguagem, envolvendo as
línguas de origem banta e o idioma português, passam a fazer parte
da consciência crítica da época e afloram em publicações e
palestras de críticos e escritores como Agostinho Neto, que
demonstrou uma profunda consciência em relação a essa questão
para a afirmação da moderna literatura angolana.
As mudanças e renovações serão percebidas, em primeiro lugar, no
campo da temática. A urgência da mensagem fará com que o tema
prevaleça sobre a inovação estilística. Por outro lado, de acordo
com Margarido (1975, p. 362), essa literatura não pode ser lida
apenas como inventário de novos valores estéticos, pois um de seus
maiores objetivos será o inventário de valores da cultura angolana.
Daí a organização de uma antologia temática como a de Mário
Centro de Ensino à Distância 79

Pinto de Andrade (3), levantando os temas mais freqüentes da


poesia angolana de língua portuguesa.
A terra é o tema por excelência da poesia africana, podendo ligar-se
tanto ao desejo de retorno às origens, como na poesia de Alda Lara,
quanto à imagem perturbadora do trem, do comboio que leva os
contratados para longe de suas casa, como nota Russel Hamilton
(1981, p. 96), contribuindo para a desordem que se instaura no
espaço violentado da colonização. O retorno às origens, por sua
vez, evocará outro grande tema comum às demais literaturas
africanas: a homenagem à mãe negra, a mãe universal, sempre
telúrica, conforme Margarido (1975, p. 361), apontando, outras
vezes, para o desamparo e a exploração que separa precocemente a
criança do colo materno. A infância será também um tema bastante
recorrente, indicando um período preservado, em que as diferenças
sociais ainda não são tão acentuadas e apontando também para a
fase crioula de Luanda. Outro tema freqüente, segundo Hamilton,
se desenvolverá em torno da identidade cultural e da alienação. As
ambivalências do branco e do mestiço, que procuram identificar-se
com as aspirações populares, evidenciam-se, de forma criativa, em
poesias altamente reflexivas de Antonio Jacinto, Alda Lara, Ernesto
Lara ou Agostinho Neto.
Como podemos notar, muitos desses temas estão também bastante
ligados entre si e se estendem aos demais sistemas literários
africanos. Eles apontam não só para um conjunto de idéias e
valores africanos, mas também para uma linguagem africanizante
muitas vezes influenciada por correntes estético-ideológicas como
a Negritude, o Pan-africanismo e o Renascimento Negro.
Para Hamilton (1981, p. 103), na literatura angolana, esse processo
de reafricanização na linguagem se evidencia em diversos
momentos e pode ser facilmente exemplificado na produção
poética da Geração de 50: no esforço em combinar poesia narrativa
e ritmo sincopado, trazendo a estrutura musical da rebita – uma
dança popular de Luanda – para dentro da composição, como
vemos no Poema “Sô Santo”, de Viriato da Cruz; na inserção da
musicalidade da linguagem dos pregões dos bairros populares no
“Poema da alienação”, de Antonio Jacinto; e, principalmente, na
tentativa de Agostinho Neto de transmitir o ritmo acelerado da
música africana aos seus versos, seja pela abolição das pausas
marcadas, seja pela repetição de palavras, seja pela própria
acentuação das contradições lingüísticas e ideológicas.
Como vemos, o compromisso da Geração de 50 de “angolanizar” a
literatura levou os escritores a resgatar formas e valores da
oralidade, nos quais descobrem um modo de lutar contra o discurso
do opressor, afirmando a descolonização literária. As fontes da
cultura oral tornam-se, assim, um novo começo; o antiqüíssimo
passa a ser uma renovação. É o que mostra Laura Padilha,
pensando com Os filhos do barro de Otávio Paz: “o traço da
modernidade se pode encontrar no velho de milênios, se este rompe
Centro de Ensino à Distância 80

uma tradição, instaurando outra” (PADILHA, 2002, p. 49). Assim,


recuperar a tradição, segundo Padilha, significa trazer para o texto a
marca da alteridade, atingindo-se, a um só tempo, a afirmação
identitária e a modernidade.
O grito de “Vamos descobrir Angola” se fez ouvir, atualizando o
processo de desterritorialização de que fala Padilha (2002, p. 49),
procurando inverter os sinais de menos impostos às formas
culturais angolanas, abrindo um espaço para que elas pudessem se
expressar.
Nesse sentido, que, por sinal, não é exclusivo da literatura
angolana, podemos pensar que a produção literária da geração de
50, já nesse momento, acena para o desejo de intervenção no
próprio cânone ocidental. Ao radicalizar o comprometimento ético-
social e resgatar as fontes tradicionais da oralidade, a literatura
angolana contrapõe-se ao discurso hegemônico cristalizado. Traz
para a cena literária uma discussão em que valores como justiça
social e solidariedade não podem ser considerados secundários
frente aos padrões estéticos, incomodando uma boa parte da crítica
.O grito desses escritores é, portanto, um grito que termina por criar
novos caminhos para a discussão do próprio conceito de
modernidade literária.

Exercícios

1. De uma forma breve, apresenta a crítica que se faz aos


mensageiros e, ao mesmo tempo, os pontos fortes que
concorreram para a afirmação da angolanidade.
2. Discute o lema “ Vamos descobrir Angola” apresentado
pelos defensores da revista cultura II.
Centro de Ensino à Distância 81

Unidade 21: A Renovação Literária: Luandino Vieira (Luuanda)

Introdução
Luandino Vieira é profundo conhecedor da língua portuguesa dita
formal (e literária) e, por isso, conhecendo também a oratura
angolana, com suas tradições e maneira de falar do povo, foi capaz
de unir brilhantemente a concepção europeia de literatura à tradição
dos contos orais africanos. Também soube transformar em arte a
linguagem falada pelos luandinos, consequência do encontro de
culturas de colonizadores e colonizados. É este o motivo que nos
faz pensar em ti, estudante da Língua Portuguesa, e, ao mesmo
convidar-te para adquires um conhecimento sobre a re/criação que
Luandino, a estilo de Mia Couto, faz da língua.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Analisar o transcuro literário de Luandino Vieira e a renovação


que este faz da literatura;
Objectivos

Renovação Literária: José Luandino Vieira

José Luandino Vieira, Nasceu en Angola, em 1935, filho de


portugueses muito pobres. Anti-colonialista, foi preso em 1961 até
1972, no campo de concentração de Tarrafal (Cabo Verde), junto
com outros escritores. Hoje dirige sua editora em Luanda, participa
das Edições 70 (Lisboa) e Edições ASA (Porto). Em 1964 ganha o
Premio Motta Veiga em Luanda e no ano seguinte o Grande
Premio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores.

Livros:
A cidade e a infância (1960)
Duas histórias de pequenos burgueses (1961)
A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974)
Vidas novas (1975)
Velhas estórias (1974)
No antigamente, na vida (1974)
Nós, os do Makulusu (1975)
Centro de Ensino à Distância 82

Macandumba (1978)
João Vêncio: os seus amores (1979)
Lourentinho, Dona Antonia de Sousa Neto & eu (1981).
Enquadra-e na geração da Cultura (anos 50), e da Mensagem
(1951-52).

Os livros mais importantes são Luuanda e Nós, os do Makulusu,


este autobiográfico.
A sua obra se divide em 2 fases: estórias escritas até 1962, mantém
o discurso clássico, perto da norma do português europeu e
narrativas curtas como Maupassant.

Começa com Luuanda, a angolinização da língua portuguesa, usa


gírias, neologismos, e outros recursos orais e tradicionais africanos;
A linguagem tem influência das línguas bantas, do quimbundo, que
são línguas prefixais, aglutinantes e tonais. Luuanda, 3 estórias com
os temas principais: fome e escassez de meios. Topografia é de
Luanda nas primeiras 2 estórias “Vavó Xixi e seu neto Zeca
Santos”e “Estória da galinha e do ovo”.
Luuanda foi escrita também logo após Luandino ler Sagarana, de
João Guimarães Rosa. Segundo ele, Guimarães Rosa o ensinou que
“era necessário aproveitar literariamente o instrumento falado dos
personagens”, e que “um escritor tem a liberdade de criar uma
linguagem que não seja a que os seus personagens utilizam.” Isso
quer dizer que as personagens, para serem vistas como seres reais,
precisam falar como os seres reais falam; e o escritor, para utilizar
a linguagem informal, precisa conhecer a formal. Como se diz no
meio linguístico, o autor deve ser poliglota em sua própria língua.
A oralidade em Luuanda pode ser percebida especialmente em dois
aspectos: o da contação de histórias, decorrente da tradição oral, e o
linguístico, que tem a ver com o léxico, a sintaxe, a “mistura” do
quimbundo com o português etc.
O narrador surge nos três contos como contador de histórias.
Mesmo no primeiro conto, em que os traços da história contada de
acordo com a tradição oral estão menos visíveis (há quebras de
sequências temporais, há menos marcas de oralidade no narrador
etc.), é possível perceber algumas características de um contador de
histórias, como o uso do discurso indireto livre:
“Junto com os estalos da lenha a arder e o cantar da água
na lata, os soluços de Zeca Santos enchiam a cubata (…)
Mas também, Zeca não ganhava mais juízo, quando estava
ganhar o vencimento no emprego, que lhe correram, só
queria camisa, só queria calça de quinze embaixo, só
queria peúga vermelha, mesmo que lhe avisava para
guardar ainda um dinheiro, qual?!” (p.12)
Centro de Ensino à Distância 83

Nos outros contos, a ideia de contador aparece mais clara.


Começando pelas personagens, o fato de elas serem planas
demonstra, não uma incapacidade do autor em criar personagens
complexas, mas sim de uma intenção de Luandino em apresentar o
colectivo, e não o indivíduo. Além disso, nas narrativas orais não
aparece a complexidade dos seres sobre quem se conta a história, o
que interessa são os casos e as situações ocorridas com eles.
Outro discurso do qual Luandino se vale para mostrar que a história
escrita pode bem ser contada oralmente está na forma como o
narrador a inicia, isto é, ao estilo do “era uma vez…”: “A estória da
galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga,
nesta nossa terra de Luanda (EGO, p. 99). “Um tal Lomelino dos
Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas vivia com
a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga.” (ELP, p.
39).

A palavra estória foi criada por Guimarães Rosa, numa tentativa de


diferenciar os casos que não ocorreram daqueles que ocorreram de
facto (história). Assim, o autor procura deixar claro que aqueles
factos não ocorreram, enquanto o narrador tenta convencer o leitor
de que tudo aquilo é verdade: “Minha estória. Se é bonita, se é feia,
vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos
passaram nesta nossa terra de Luanda.”
Pode-se também notar a influência da tradição oral na obra a partir
da aproximação dos contos com histórias fantásticas, apesar de eles
narrarem situações verossímeis, passíveis de acontecer. Nesse caso,
vê-se uma certa mistura do género literário preocupado em relatar a
realidade e o gênero das histórias contadas, que necessitam de um
toque fantástico.
Em Angola, essas histórias sobrenaturais são chamadas de mi-
sosso. O mi-sosso é parecido com a fábula: há animais falantes e
pensantes, e uma “moral da história”, constituída geralmente da
vitória do mais fraco sobre o mais forte. Os contos de Luuanda não
são propriamente mi-sossos, mas possuem algumas características
comuns a esse gênero.
O primeiro conto é mais literário, está relatando mais a realidade,
isto é, o que realmente e literalmente (entenda-se que não se trata
de uma história metafórica) está acontecendo com o povo de
Luanda diante da colonização, e o colonizador (considerado mais
forte) é quem sai vencedor. O segundo conto já possui alguns
elementos mais difíceis de aceitar como fatos realmente ocorridos,
como é o caso da relação do papagaio e Inácia. Se na fábula
aparece um animal falante, o conto de Luandino apresenta um
papagaio que, apesar de não falar racionalmente, e sim apenas
repetindo os sons emitidos por sua dona, chega-se a desconfiar por
alguns momentos se esse animal não tem consciência do que fala e
Centro de Ensino à Distância 84

faz: “Logo Jacó abriu a asa e pôs um barulho que parecia riso de
pessoa, antes de falar.”
Porém, as próprias personagens do conto, mesmo que às vezes por
alguns motivos pensem na humanidade do papagaio, não aceitam o
bicho como ser pensante: “Verdade é que os monas lhe xingavam
de ouvir o papagaio, mas quem ensinou foi a Inácia, ela é quem
inventou. Papagaio não pensa, só fala o que ouve, o que estão lhe
dizer.”

O terceiro conto também possui um animal como elemento


importante na história. Há um final feliz, como nos contos de fadas,
e o problema é resolvido entre as partes envolvidas, porém apenas
depois de uma tentativa inútil de se buscar a solução do lado
externo ao problema: na luta entre nga Zefa e Bina pela posse do
ovo botado pela galinha (propriedade de Zefa) no quintal de Bina,
buscou-se ajuda de vavó Bebeca que, por sua vez, pediu ajuda de
várias pessoas da cidade, que tentaram solucionar o problema de
forma a se beneficiarem de alguma forma com a situação.
Por fim, numa ameaça de perderem a galinha e o ovo, Zefa, Bina e
os moradores do musseque uniram suas forças contra aqueles que
queriam tomar o que lhes pertenciam. Mesmo aparentemente mais
fraco, foi o povo quem saiu vencedor. Uma maneira de se
interpretar esse conto é pensar nesse povo do musseque como
representante do povo angolano, e os interessados em se
beneficiarem da galinha e do ovo como os “invasores”. Pensando
dessa forma, o conto seria uma grande metáfora e se aproximaria
do mi-sosso neste sentido. Não há animais se comportando como
humanos, e sim o contrário. A grande salvação da galinha e a
vitória do povo do musseque só ocorrem quando os dois filhos de
Bina imitam a “fala”, isto é, o som da galinha, e esta foge das mãos
dos que a tomavam, indo até onde o barulho que ouve está sendo
emitido. Assim, vê-se o contrário do que ocorre na fábula, mas isso
não significa que o conto seja o contrário do gênero, mas ele em
seu inverso, ou seja, é uma fábula contada sob o ponto de vista dos
animais. Entenda-se: se para os humanos é sobrenatural um animal
reproduzir a fala humana (o que ocorre na fábula), para os animais,
seria sobrenatural um humano imitar sua linguagem e se fazer
compreender pelo animal, como ocorreu no conto em questão. Do
ponto de vista dos animais, portanto, o conto seria uma fábula
porque há o fantástico, que é o fato de os meninos conseguirem se
comunicar com a galinha, na linguagem dela. Os meninos
entendiam o que a galinha falava:
- Sente, Beto! – sussurrou-se Xico. – Sente só a cantiga dela!
E desataram a rir, ouvindo o canto da galinha, eles sabiam bem as
palavras, velho Petelu tinha-lhes ensinado.
(…)
Centro de Ensino à Distância 85

O miúdo esquivou para não lhe puxarem as orelhas ou porem


chapada, mas Xico defendeu-lhe:
- Não é, vavó! É a galinha, está falar conversa dela!
Este exemplo prova também certa humanidade da galinha, pois ela
diz em sua língua, ideias racionais, próprias de seres humanos.
Quando os meninos traduzem a linguagem da galinha à vavó, eles o
azem em quimbundo, e não em português:
- A galinha fala assim, vavó:
Ngêxile kua ngana Zefa
Ngala ngó ku kakela
Ka… ka… ka… kakela, kakela…
Nas fábulas, são os seres inferiores (animais) que precisam se
adaptar ao sistema linguístico e intelectual dos superiores
(humanos). Na EGO, a vitória do povo vem justamente na
adaptação dos superiores ao sistema linguístico dos inferiores.
Assim, pode-se pensar que uma possível vitória dos colonizados
sobre os colonizadores seria a adaptação do português ao
quimbundo e não o contrário, como ocorre na realidade. É por isso
que se diz que na Angola, a história remete àquilo que poderia ter
sido a História e não àquilo que ela realmente é.
Pensando nesse desejo do autor em que a cultura colonizadora se
adaptasse à colonizada, e sabendo que ocorre o contrário, é possível
perceber uma ironia nos contos, já que o texto é escrito em
português, mas incorpora algumas construções quimbundas e
léxicas dessa língua. Esse é um dos traços encontrados em outra
maneira de se perceber a oralidade na obra: a análise da estrutura
linguística decorrente do discurso informal.
No que diz respeito às construções sintáticas do quimbundo no
discurso em português, é possível encontrar vários exemplos nos
contos:
(1) “licença já não pede” p.7
(2) “Fome é muita, vavó!” p.8
(3) “Você lembra esse gajo, não é?” p. 46
(4) “você queria mesmo a galinha ia te pôr um ovo?” p. 104
(5) “Juro não fiz de propósito” p. 106
Essas expressões não são ouvidas no português falado, em sua
estrutura normal. Provavelmente o que ocorre é o uso da língua
portuguesa dentro de uma estrutura sintática quimbunda. Em (1)
vê-se a troca de posição da palavra licença. A expressão
equivalente em português seria: “já não pede licença.” Em (2), (3),
(4) e (5) vemos a omissão de artigos, preposições e conjunções,
respectivamente. Em português diria-se: “a fome é muita”, “você
só lembra desse gajo”, “juro que não fiz de propósito.”
Centro de Ensino à Distância 86

O quimbundo também é usado com o português no discurso no que


diz respeito ao léxico. Vemos frequentemente palavras como:
musseque, cubata, nga, sukuama, cap’verde, makutu, muximar, etc.
Isso sem dizer de ocasiões em que a personagem fala português e
quimbundo no mesmo instante de fala:
“- Sente, menina! Mu muhatu mu! Mbia! mu tunda uazele, mu
tunda uaxikelela, mu tunda uakusuka…” p. 19
(A mulher é como a panela: dela sai o que é branco, o que é preto,
o que é vermelho…)”
Além da presença do quimbundo dentro do português, é posível
também observar outras estruturas características da língua falada.
Abaixo segue um quadro com as ocorrências mais fortes do
discurso informal em Luuanda:

Caso Exemplo
Variação pronominal tu/você na mesma oração “Então, você,
menino, não tens mas é vergonha?” p.8“Você és bandido, não é?”
p. 40“Você pensa que eu não te conheço, Bina? Oensas?” p. 102.
Repetição de palavras numa mesma oração ou período (também
pode ser um recurso literário) “As pessoas que estão a morar
lá dizem é o Sambizanga, a polícia que anda patrulhar lá, quer já é
lixeira mesmo.” P. 39
Omissão da preposição a entre verbos de ligação e de ação (no
Brasil, o fenômeno não ocorre, já que a forma verbal utilizada é o
gerúndio) “É a galinha, está falar conversa dela” (está a falar =
está falando). P. 107“Se eu fico dormir…” (se eu fico a dormir =
fico dormindo). P. 40
Objetos antepostos ao sujeito (trata-se de um fenômeno muito
comum no discurso oral, inclusive no português brasileiro)
“O ovo foi meu milho que lhe fez, pápulas!” p. 103 (Em
lugar de “foi meu milho que lhe fez o ovo”.)
Luuanda é riquíssima em presença de discurso oral (o próprio título
tem Luanda escrito com dois UU, procurando reproduzir a maneira
de o povo pronunciar o nome da cidade). Não é possível neste
trabalho enumerar todas as ocorrências dessa oralidade na literatura
e na obra analisada.

Exercícios

1. Faça um comentário sobre alguns aspectos linguísticos


apresentados por Luandino Vieira.
2. A obra de Luandino é veículo de valores sociais e
expressões próprias de uma sociedade que pouco domina
Centro de Ensino à Distância 87

regras da língua portuguesa ou marcas do discurso


coloquial. Defenda a tese.
Centro de Ensino à Distância 88

Unidade 22: A Nova poesia anagolana: Os Poetas da Geração de 70 na situação de


Ghetto

Introdução
Em geral, os poetas da "Geração de 70" escrevem textos que
reflectem uma situação de intensificação da repressão e da censura
colonial, assistidas no "ghetto", que dificultava a circulação dos
mesmos. Através de um discurso caracterizado pelo rigor e pela
concisão das palavras, discurso mais implícito do que explícito, por
força da censura, esses textos, com tiragens muito reduzidas,
reflectiam, então, a esperança de uma vitória certa, capaz de
conduzir Angola à liberdade.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Compreender que o rigor e o discurso mais implícito presentes


nas obras reflectem a situação vivida na época.
Objectivos
 Comparar a temática dos textos de Angola, desta época, com os
de Moçambique.

Os Poetas da Geração de 70 na Situação do Ghetto

Poeta e advogado angolano, João Maria Vilanova é, de acordo com


a convicção de alguns ensaístas e críticos de literatura, o
pseudónimo literário de João Guilherme Fernandes de Freitas,
nascido em 1933. Contudo, mantêm-se ainda algumas reservas
quanto à sua verdadeira identidade civil, na medida em que sempre
a manteve com algum "segredo". A aceitar esta correspondência
entre o poeta Vilanova e o cidadão João Guilherme, podemos
afirmar que feitos os primeiros estudos na missão católica de São
Paulo, em Luanda, onde frequentou também o ensino liceal, se
licenciou em Direito e exerceu a magistratura. Depois da
proclamação da independência de Angola, em 1975, veio para
Portugal, onde continua a viver sem franquear a sua identidade. Foi
funcionário público na região leste angolana e, em 1974, exerceu o
cargo de director da revista Ngoma. Intelectual empenhado e
preocupado com o seu país, colaborou em vários suplementos
literários e revistas, nomeadamente na revista Cultura, no
Centro de Ensino à Distância 89

suplemento "Artes e Letras" do jornal A Província de Angola assim


como noutros órgãos moçambicanos e latino-americanos. Em 1971,
foi contemplado com o prémio "Mota Veiga" pelo seu livro de
poesia Vinte Canções para Ximinha, não tendo comparecido para o
receber.
Como poeta da "Geração de 70", os seus textos germinam numa
situação de intensificação da repressão e da censura colonial, numa
situação de "ghetto", que dificultava a circulação dos mesmos.
Através de um discurso caracterizado pelo rigor e pela concisão das
palavras, discurso mais implícito do que explícito, por força da
censura, esses textos, com tiragens muito reduzidas, reflectiam,
então, a esperança de uma vitória certa, capaz de conduzir Angola à
liberdade. Poesia com uma forte componente ideológica, enquanto
espelho do empenhamento do povo, ela exalta a euforia
revolucionária e a reconstrução da Pátria totalmente dilacerada.
Ao lado de David Mestre, João Maria Vilanova, que
obstinadamente se mantém no anonimato silencioso, é considerado
um dos poetas que permite definir em toda a plenitude o chamado
"espírito de ghetto", enquanto espírito caracterizador de uma
vivência escondida, marginal, irreverente e inventiva que se
projecta para além do período colonial. A sua obra figura em
diversas antologias conceituadas, tais como:
Angola Poesia 71; Cancioneiro Angolano (1972); Presença de
Ideialeda. Poetas Angolanos (1973); Kuzuela II (1974);
Monangola.A Jovem Poesia Angolana (1976); Antologia da Poesia
Pré-Angolana (1976); Literatura Africana de Expressão Portuguesa
(1976); Poesia de Angola (1976); No Reino de Caliban.Antologia
Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa,II (1976);
Textos Africanos de Expressão Portuguesa (1977); e Antologia do
Mar na Poesia Africana de Língua Portuguesa do Século XX
(2000). São suas as seguintes obras: Vinte Canções para Ximinha
(1971) - Poesia; Caderno de um Guerrilheiro (1974) - Poesia.

eles te levavam
eles te levaram
na noite encoberta eles te levaram
irmãos te chorarm
irmãos te choraram
no lodo do rio irmãos te choraram
armas te velaram
armas te velaram
na manhã nascida armas te velaram
Poema da pági. nº 2, in «Caderno de um guerrilheiro», 1974

João Maria Vilanova, poeta da geração de 70, é um nome que


esconde o maior enigma da literatura angolana, um heterónimo que
Centro de Ensino à Distância 90

encobre muito bem o seu autor biológico-histórico, continua


fictício até hoje.
Na linha do pensamento teórico que vai de Stephane Mallarmé a
Jonathan Culler “interessa reflectir sobre a teoria da textualidade: a
noção de que é a palavra que constrói a realidade, e, portanto, é
responsável pela criação daquele espaço criador que é o autor.
Nesta linha de pensamento, o autor desaparece para dar lugar a
palavras, cuja acção não só cria a obra, mas também o próprio
autor. Roland Barthes identifica esse fenómeno como o “espaço
discursivo de individuação” o qual estabelece certa unidade textual
que nos permite ultrapassar as contradições, nas quais se
neutralizam os dados biográficos (Barthes, Roland, «Roland
Barthes par lui-même», Paris: Seuil (1975)”, teorização
desenvolvida pela ensíata Joanna Courteau (Ames), ler o texto
intitulado «D´A varanda do frangipani à morte dos heterónimos»,
in Lusorama, nr. 50 (Juni 2002).
Jorge Macedo garante que conheceu o poeta quando esteve a
trabalhar no Kuanza Norte, ou seja, suspeita que tenha sido “um
juiz branco que gostava da poesia angolana, que conhecia as
diversas propostas poéticas”. Muitos são os escritores dessa
geração que lançam suspeitas para todas as direcções.
Galadoardo em 1971 com o Prémio Mota Veiga, atribuído a «Vinte
canções para Ximinha», nunca apareceu para receber o merecido
prémio. Mas não deixou de aparecer, em 1974, através da revista
Ngoma, mantendo-se na mesma no meio de uma «grande nuvem».
Em 1974, edita «Cadernos de um guerrilheiro».
João - Maria Vilanova é um poeta que usa o bilinguismo como seu
recurso de escrita e por ser assim “marcadamente bilinguista,
regionalista, vanguardista, intraduzível, e, portanto,
inequivocamente pré-angolana, a poesia de João Vilanova paga o
preço do desconhecimento mundial, enquanto a poesia de
Agostinho Neto, retórica, grandiloquente, alegórica, aristotélica,
aspirante ao universalismo, aufere fama de múltiplas traduções.
Vilanova realiza na poesia algo como José Luandino Vieira na
prosa: retira à História da Literatura Portuguesa poder de
anexação”, são palavras do crítico Pires Laranjeira.
O ensaísta vai mais longe na sua análise estrutural quando afirma
que “Não há recorrência ao empolamento do metaforismo e da
ruptura abrupta da ritmia do discurso, como seria usual nas
concepções poéticas latino-europeias. As rupturas e empolamentos
situam-se em níveis do discurso diferentes da literatura portuguesa.
A inovação é, por isso, de sinal radicalmente anticolonialista. O
discurso não pode ser apropriado pelas instâncias colonialistas por
se inscrever nos antípodas da sua boa consciência. A forma
dialógica é também inalienável da condição de herdeiro da
estrutura da narrativa bantu.”.
Centro de Ensino à Distância 91

Pires Laranjeira não deixa de realçar na sua crítica o apuramento


estilístico de Vinanova que foge do discurso directo: “A denúncia
do paternalismo, como de outras sequelas do colonialismo, quase
nunca se faz em linguagem expositiva, panfletária. A força, o
propósito do discurso poético não é do mesmo género do discurso
político.”
Os quimbos quietos pensados no silêncio (...) Da Evangélica os
cânticos se derramando na voz do vento: povo
Excerto de um poema in Vinte Canções para Ximinha.

Para o professor Manuel Ferreira, o poeta anónimo "será o que


mais conscientemente prolonga e renova as experiências dos poetas
da Mensagem e da Cultura (II). Tudo leva a crer que Vilanova
venha dos tempos da Mensagem, notadamente quando o seu
enunciado é a expressão de um certo quotidiano povoado de
rememorações; nelas e na narração evocativa um mundo de anseios
e suspensões significativas nos povoa a imaginação".
Ainda segundo Manuel Ferreira, em Caderno de um guerrilheiro, o
poeta elege como temática "o povo angolano crescendo na luta
armada." e considera-o como o poeta do "rigor e da elaborada
interiorização da gesta do povo angolano, com uma fala para cada
tema, uma gramática pessoal na fusão de níveis e áreas linguísticas,
mesmo quando o real é momentâneo e no seu verbo se trtansfigura
e dimensiona".

Exercícios

1. Apresente, em 1 página A4, a análise comparativa sobre os


textos de escritores angolanos e moçambicanos na mesma
época.
Centro de Ensino à Distância 92

Unidade 23: A História e a Tematização da Guerra: Yaka (Pepetela)

Introdução

Escritor angolano, Pepetela é um dos nomes mais relevantes da


literatura contemporânea de língua portuguesa. Conhecer a sua
obra implica conhecer um pouco mais da história de Angola. À
semelhaça do que aprendeste em Ungulani Ba Ka Khossa, obra
histórica, nesta unidade vais poder ver como Pepetela tematiza a
história de angola.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Ter uma visão sobre a história de Angola e a Guerra de


libertação, a partir das obras Yaka e Mayombe, respectivamente.
Objectivos

História e a Tematizaão da Guerra: em Yaka e Mayombe

PEPETELA Nasce em Benguela em 1941. Tem um único nome, o


verdadeiro é Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Em 1958
vai estudar em Lisboa, depois exílio na França e Argélia. Seu
segundo romance Mayombe é sobre a guerrilha na floresta do
mesmo nome. Curioso é que ocupa cargos de poder, como o de
vice-ministro da Educação. Escreve também teatro histórico, A
revolta da Casa dos Ídolos. Escreve sobre os povos do grupo
umbundo (ou ovimbundos), os mais numerosos de Angola.

Algumas obram publicadas:


MUANA PUÓ- A obra foi escrita em 1969 e publicado 1978
MAYOMBE- Escrito em 70/ 71, em Cabinda e publicado em 80
O CÃO E OS CALÚS - Escrito de 1978 a 82, foi trabalhado para
publicação em 1984 e publicado em 1985.

YAKA- Escrito em 1983 e publicado em 84 no Brasil e em 85 em


Portugal e em Angola.
Centro de Ensino à Distância 93

Yaka
" A ideia do Yaka nasce em Benguela em 1975, estávamos
numa "espera " nocturna do inimigo e eu disse que tinha
que escrever um livro que aproveitasse o privilégio que eu
tive de ter nascido de uma família colonial, numa cidade
colonial, de ter lutado contra esse sistema colonial e de
estar na minha cidade natal quanto termina o
colonialismo...Foi aí que nasceu a ideia e a partir daí eu
juntei todos os textos sobre Benguela e sobre a região
centro sul, quando saí do governo, uma semana depois
comecei a escrever o livro, a dois de janeiro de 1983. Tive
que escrever o livro de pé. "Eu estava completamente preso
à história quando escrevi o Yaka"- Pepetela.

É um livro sobre a história da colonização em Angola e,


simultaneamente a história da luta pela queda dessa colonização.
Uma saga sobre cem anos da história do país vistos através da
evolução de uma família e do seu percurso por Angola. Pepetela
acompanha a vida de personagens idos de Portugal para Angola no
século XIX, com personagens idos do Brasil, essencialmente
deportados, e pessoas descontentes com descontentes com a
independência do Brasil.

A história vai até à independência de Angola em 1975. Termina em


Benguela. Na última geração, como foi comum a muitas famílias
há histórias de vidas com opções diferentes dentro dos diferentes
partidos angolanos.

Toda a história é acompanhada por Yaka, a estátua que acompanha


toda a história da família e que no fim é entendida na sua
mensagem pelo último dos membros da família.

Nesta obra Pepetela assume em absoluto a sua função de


romancista-historiador:

" Nesse livro eu pretendia mostrar uma vertente


europeia na cultura que existe nas cidades da costa
angolana. Há a intenção de dizer que há um legado
cultural da colonização. Custou-me muito escrevê-lo
porque eu estava demasiado amarrado á história. É um
livro onde acredito não hajam muitos erros históricos."
Outra obra de maior destaque é Mayombe. Em Mayombe, romance
destacado na obra de Pepetela, a luta de libertação é palco de
glorificação de heróis nacionais, fenómeno que será relativizado
em A geração da utopia, quando o mesmo autor procura fazer um
balanço do período que vai do começo dos anos 60 até o tempo
indicado como “a partir de Julho de 1991”. Em A parábola do
cágado velho, Pepetela denuncia o absurdo dos combates que se
Centro de Ensino à Distância 94

prolongam para além da lógica de seus motivos iniciais e arrasam o


país.

Vejamos o Trecho do livro A geração da utopia, de Pepetela


“Costumo pensar que nossa geração se devia chamar a
geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Vítor antes, para só
falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou
depois, todos nós a um momento dado éramos puros e
queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que
íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem
privilégios, sem perseguições, uma comunidade de
interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma.
A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns
casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e
lutando por ele. E depois...tudo se adulterou, tudo
apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as
pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era
inevitável chegarem ao poder.
Cada um começou a preparar as bases de lançamento para
esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A
utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em
putrefação. Dela só resta um discurso vazio.”

O Mayombe começa com um comunicado de guerra. “Eu escrevi o


comunicado e...o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para
jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim
nasceu o livro." - Pepetela.
Escrito em 1970/71, em Cabinda e publicado em 1980. Se outras
obras têm o ir buscar à história a explicação para problemas
diversos, Mayombe conta história. é um livro de construção da
história.
Pepetela é, com esta obra, um dos primeiros sinais de critica interna
no MPLA, ao racismo, corrupção, machismo, isto levou a que
vários problemas se levantassem à publicação do livro. O escritor
teve que fazer muitas explicações e palestras sobre a obra. Ela foi o
primeiro testemunho público e assumido por um militante, de que o
MPLA não era perfeito embora tenhamos sempre que ter em conta
que é uma crítica feita dentro do limite possível de quem vê as
coisas do ponto de vista do participante.
Será um livro de história na medida em que é a realidade vivida
pelo autor tornada ficção. O único documento escrito que legitima
a presença do MPLA em Cabinda é esta obra de Pepetela - diz a
história oficial que o MPLA teria mandado os seus melhores
guerrilheiros para Cabinda.
Centro de Ensino à Distância 95

A publicação da obra tem também a sua história. Pepetela havida


dado a obra a Agostinho Neto para que este a lê-se, à semelhança
do que havia feito com outros trabalhos seus. Durante muito tempo
o próprio autor hesitou em publicar a obra, as razões eram políticas,
"será que é útil, a revolução era ainda muito recente... Poderia o
livro servir os inimigos?" - Pepetela.

Conteúdo em Mayombe
Quanto ao conteúdo de Mayombe em Mayombe temos o traço
filosófico do homem como indivíduo e o seu comportamento como
guerrilheiro. É a história do guerrilheiro, da guerrilheira, mas
sempre dos indivíduos nas suas ideias.
Pepetela joga, nesta obra com outro tipo de legados, os culturais.
Veja-se a dedicatória do livro: a ogum o prometeu africano - Ogum
é Yoruba e foi para o Brasil na rota dos escravos, em Angola não é
conhecido. É com estes diversos legados culturais que o autor joga.
Mayombe é uma grande epopeia, a épica dos guerrilheiros.
Relembra alguns escritores franceses que escreveram sobre a
guerrilha da Indochina, especialmente " A condição Humana" de
André Malraux.
Mayombe é a primeira obra angolana que dessacraliza os heróis.
"É uma obra também contra o dogmatismo, o Sem-Medo era um
Anarquista, não podia ser mas de facto era. A obra tem já uma série
de advertências sobre o partido único mas a grande contribuição do
Sem-Medo foi a da religião na política." - Pepetela

A Parábola do Cágado Velho


Nesta obra Pepetela volta a um caminho que se anuncia em Muana
Puó e que é o percurso de dialogar com os velhos mitos angolanos.
É novamente um trabalho muito ligado às tradições angolanas.
Outra analogia que podemos encontrar é o facto de voltarmos a ter,
nesta obra, uma estória de amor num cenário de luta, o cenário
angolano depois das eleições de 1992 com o eclodir da guerra, é a
marca que o autor transporta nesta obra embora o livro não se refira
nunca a uma época específica.

Exercícios

1. Apresenta a simbologia dos títulos das obras: Yaka e


Mayombe;
2. Procura ler toda a obra Mayombe e apresenta a análise que
faz dela em quatro páginas A4.
Centro de Ensino à Distância 96

Unidade 24: Novo rumo da Literatura angolana no período Pós-independência (crítica


social)

Introdução
O ano de 1975 representa as independências dos países africanos de
língua portuguesa (exceto Guiné-Bissau, que já era independente
desde 1973). A literatura nestes países, no período anterior à
independência, representava armas de denúncia do oprimido ao
modelo colonizador, fazendo política e filosoficamente, através da
escrita, o terreno para a revolução. Abordava a relação colonizador
/ colonizado que enfrentava.

Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:

 Compreender o percurso literário de Angola no período pós-


independência.
Objectivos

Literatura angola no período pós-independência


O ano de 1975 representa as independências dos países africanos
de língua portuguesa (exceto Guiné-Bissau, que já era
independente desde 1973). A literatura nestes países, no período
anterior à independência, representava armas de denúncia do
oprimido ao modelo colonizador, fazendo política e
filosoficamente, através da escrita, o terreno para a revolução.
Abordava a relação colonizador / colonizado que enfrentava.
De 1975 a 1980, ocorre o momento da utopia, da busca de um novo
homem na opção socialista. A Guerra Fria encabeçada pelos
Estados Unidos e pela ex-URSS é combatida em território africano,
através do estímulo aos movimentos anti-governos no continente.
Em Moçambique, a FRELIMO combatia a RENAMO (África do
Sul), em Angola os partidos políticos também brigavam. Estas
guerrilhas acabam com a utopia socialista nestes países (distopia),
que se desarticulam formando os “senhores da guerra” – que
ganham dinheiro com a guerra. Neste processo, os intelectuais
começam a fazer uma crítica feroz, mas agora ao governo
burocrático, havendo assim um “senso de missão” – a poesia
continua sendo “arma de combate”, mas realizada de forma
Centro de Ensino à Distância 97

diferenciada daquela no período colonial. Há então, poesia concreta


e crítica após as independências dos países africanos de língua
portuguesa. A poesia não fala mais, apenas do país. O leque da
temática se abre para mais subjetividade, para o eu-lírico falar
também de coisas mais subjectivas. Da mesma forma, fala da
tradição africana (na escrita) e da tradição ocidental também. A
literatura, escrita em língua portuguesa, busca demonstrar as
diversidades das etnias nos textos. Quebra-se a fronteira entre prosa
e poesia.
Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o
defender por vezes dessituo do espaço e tempo e tempo mais total.
O emendo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E
quando minha literatura transborda minha identidade é arma de luta
e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste
então o mundo universal. Escrever então é viver. Escrever assim é
lutar. Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador.
Dinâmico. Nunca estático para que além da defesa de mim me
reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a
desalienação do outro até que um dia virá e “os portos do mundo
sejam portos de todo o mundo”. (RUI, 1987, p. 30).
Será apresentada agora, uma breve análise do poema “A Manga”
(1984) de Paula Tavares, escritora angolana (Luanda) do período
pós-independência. Sendo escritora do período, demonstra, através
de seus versos, as características da literatura dessa época, marcada
de subjectividade. Levanta ainda, especificamente, a subjectividade
feminina, considerando a identidade angolana. Questiona o
momento da utopia que precedeu a independência de Angola,
através dessa subjetividade, ao mesmo tempo em que não perde a
utopia da igualdade. Assim, procura reiterar a subjetividade na
construção de um sujeito feminino (dotado de sentimentos
individuais). Especificamente no poema “A Manga”, apresenta de
forma individualista (subjetiva), uma visão do sexo própria dos
angolanos, contrastando a diferença da visão católica europeia.
A MANGA
Fruta do paraíso
companheira dos deuses
as mãos
tiram-lhe a pele
dúctil
como, se, de mantos
se tratasse
surge a carne chegadinha
fio a fio
ao coração:
leve
morno
mastigável
o cheiro permanece
Centro de Ensino à Distância 98

para que a encontrem


os meninos
pelo faro.

Percebe-se, logo nos primeiros versos, uma referência à Bíblia


católica (“fruta do paraíso companheira dos deuses”), aqui
representada pela manga (ao invés da maçã comida por Eva no
paraíso, como ocorre na Bíblia). Logo após, a referência à “tiram-
lhe a pele dúctil como se de mantos se tratasse”, leva o leitor a
identificar o ato de descascar a manga (“a pele” da manga), com o
ato de despir uma pessoa (“como se de mantos se tratasse”). Isso é
reafirmado nos versos seguintes: “surge a carne chegadinha fio a
fio”. A “carne da manga” é a imagem utilizada para representar a
carne (o corpo) humano jovem. Em seguida: “ao coração leve,
morno, mastigável”, caracterizam a narração da imagem de uma
pessoa sendo despida com muito prazer e carinho. “o cheiro
permanece” compara o cheiro da manga com o cheiro do sexo.
“Para que a encontrem os meninos pelo faro”, define finalmente, o
gênero feminino, ou seja, a manga é a imagem utilizada para
representar a mulher, sendo despida para o ato sexual com muito
prazer e carinho (contrariando a visão da sexualidade feminina do
catolicismo europeu, em que o sexo é somente para procriar). A
autora apresenta, portanto, sob um ponto de vista feminino e
angolano, a sexualidade da mulher, construindo com uma temática
subjectiva (a sexualidade), um sujeito feminino em forma de
poesia.

Exercícios

1. Faz uma ficha de leirura, apresentando os temas abordados


nesta fase da litertura angolana.
2. Apresenta a simbologia do título A MANGA
Centro de Ensino à Distância 99

Bibliográfia

ANDRADE, Mário de. Prefácio a Cadernos de Poesia Negra de Expressão


Portuguesa, C.E.I.,Lisboa, 1980.
FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban III, Antologia Panorâmica da
Poesia africana de Expressão Portuguesa, Lisboa, Plátano Editora, 1976
FIGUEIREDO, Fidelino, História de Literatura De Portugal, São Paulo,
Editora Nacional, 1996
LARANJEIRA, Pires, Lteraturas africanas de expressão Portuguesa, 1995
LOPES, Óscar. Manual Elementar de Literatura Portuguesa, Lisboa,
Livraria Didáctica, S/d.
MARRILHO, Maria. Sociologia da Negritude. Edições 70, Lisboa, 1976.
MENDES, Orlando. Sbre aLiteratura Moçambicana. INLD, Maputo, 1978
SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa, Lisboa,
Publicações Europa América
Centro de Ensino à Distância 100

Anexo
Nós Matamos o Cão-Tinhoso
O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram
enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho.
Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir
qualquer coisa sem querer dizer.
Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do
pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor
Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a
andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.
O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu
gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o
Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo
a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e
dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.
Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães
a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo
do rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas
foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas
e as orelhas espetadas de curiosidade.
Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-
Tinhoso. Depois zangavam-se e punham- se a ladrar, mas como ele não dissesse
nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar
debaixo do rabo uns aos outros e a correr.
Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e
avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as
orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o que
ele queria, teve medo e parou no meio da estrada.
Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar a
olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com
eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e
avançou devagar até onde estava o Cão- Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver e
nem se mexeu mando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente. O
Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi a
correr e disse qualquer coisa aos outros — o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a
Mimosa e o Luiu — e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-
Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles zangaram-
se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então que ele recuou
com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com o rabo todo enfiado.
Quando passou por mim ouvi-o a chiar com a boca fechada e vi-lhe os olhos azuis,
cheios de lágrimas e tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa
sem querer dizer. Mas ele nem olhou para mim e foi pela sombra do pátio da
Escola, sempre com a cabeça a fazer balanço como os bois e a andar como uma
carroça velha, para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor.
Os outros cães ainda ficaram um bocado a ladrar para o portão da Escola, todos
zangados, mas voltaram para o capim do outro lado da estrada para continuar a
Centro de Ensino à Distância 101

correr, a rebolar, a fingir que se mordiam uns aos outros, a correr, a correr e a
cheirar debaixo do rabo uns dos outros.
De vez em quando o Bobí olhava para o portão da Escola e, lembrando-se do Cão-
Tinhoso, punha-se a ladrar outra vez. Os outros, ao ouvi-lo, deixavam de brincar e
punham-se também a ladrar, muito zangados, para o portão da Escola.

O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pêlos brancos cicatrizes e muitas


feridas. Ninguém gostava dele porque era um cão feio. Tinha sempre muitas
moscas a comer-lhe as crostas das feridas e quando andava, as moscas iam com
ele a voar em volta e a pousar nas crostas das feridas. Ninguém gostava de lhe
passar a mão pelas costas como aos outros cães. Bem, a Isaura era a única que
fazia isso.
O Quim disse-me um dia que o Cão-Tinhoso era muito velho, mas que quando
ainda era novo devia ter sido um cão com o pelo a brilhar como o do Mike. O
Quim disse-me também que as feridas do Cão-Tinhoso eram por causa da guerra e
da bomba atómica, mas isso é capaz de ser pêta. O Quim diz muitas coisas que a
gente nem pensa que podem não ser verdadeiras, porque quando ele as conta a
gente fica tudo de boca aberta. A malta gosta de ouvir o Quim a contar coisas de
outras terras e os filmes que vai ver lá em Lourenço Marques, no Scala, e as coisas
do El Índio Apache a jogar luta-livre e a fazer tourada, e aquilo que El Índio
Apache fez ao Zé Luís no Continental. O Quim diz que El Índio Apache só não
vai ao focinho ao Zé Luís porque não quer.
O Quim disse-me isso de o Cão-Tinhoso ser muito velho quando um dia o vimos a
bocejar sem dentes na boca. Foi nesse dia que me contou a história da bomba
atómica com os japoneses pequeninos a morrer todos que era uma beleza e o Cão-
Tinhoso a fugir depois de ela rebentar e a correr uma distância monstra para não
morrer. O Quim não me contou a história toda logo de uma vez e disse que só a
acabava se eu me portasse bem lá dentro, na prova. Eu passei-lhe quase toda a
prova mas a Senhora Professora topou e deu-lhe 8 reguadas no rabo. Quando
saímos eu não lhe pedi para acabar a história da bomba atómica porque ele era
capaz de se lembrar do que a Senhora Professora lhe tinha feito lá dentro e zangar-
se comigo. Ele só a acabou à tarde no Sá, antes de começarmos a jogar o sete-e-
meio a cigarros.
Todos ficaram de boca aberta a ouvir. Até o Sá deixou de atender os fregueses
para ouvir o Quim a contar.
Ele contou tudo desde o princípio sem ninguém pedir, mas era diferente daquilo
que tinha começado a contar na Escola, porque já não metia Cão-Tinhoso. Eu não
disse nada porque ele era capaz de se zangar comigo.
O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pêlos brancos, cicatrizes e muitas
feridas, e em muitos sítios não tinha pêlos nenhuns, nem brancos nem pretos e a
pele era preta e cheia de rugas como a pele de um gala-gala. Ninguém gostava de
lhe passar a mão pelas costas como aos outros cães.
A Isaura era a única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tempo todo com ele,
a dar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazer-lhe festinhas, mas a Isaura era
maluquinha, todos sabiam disso.
A Senhora Professora já tinha dito que ela não regulava lá muito bem e que o pai a
havia de tirar da Escola pelo Natal.

A Isaura não brincava com as outras meninas e era a mais velha da segunda classe.
A Senhora Professora zangava-se por ela não saber nada e dar erros na cópia, e
Centro de Ensino à Distância 102

dizia-lhe que só não lhe dava reguadas porque sabia que ela não tinha tudo lá
dentro da cabeça.
Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nada e a gente dizia — «Não se
ouve nada, não se ouve nada» —, e a Senhora Professora dizia que os meninos da
quarta classe não tinham nada que ouvir. Então os meninos da segunda classe
começavam a dizer: «Não se ouve nada, não se ouve nada». A Senhora Professora
zangava-se e fazia uma bronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as outras
meninas faziam uma roda com a Isaura no meio e punham-se a dançar e a cantar:
«Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinhoso, Isaura-Cão-Tinhoso,
Cão-Tinhoso, Tinhoso». A Isaura parecia que não ouvia e ficava com aquela cara
de parva, a olhar para todos os lados à procura de não sei quê, como dizia a
Senhora Professora.
Houve um dia em que falei com a Isaura. Foi assim:
Estava sentado nas escadas da Escola, mesmo em frente ao portão, a comer o
lanche. Era o intervalo do lanche. A Senhora Professora estava a ler um livro e
passeava pela varanda, indo até uma ponta, virando-se e vindo para a outra. Como
ela passava por mim (ouvia os sapatos, cóc, cóc, cóc, no chão) eu estava para
saber se me havia de levantar ou não quando ela passava, porque era chato
levantar-me todas as vezes que ela passava por mim. De resto, era mesmo capaz
de estar a pensar que eu não dava por ela, por estar de costas para o sítio por onde
passeava, e não me perguntar depois, na aula, se os meus pais não me davam
educação.
Eu estava a pensar nisso e a comer o lanche, quando vi que a Isaura andava à
procura do Cão-Tinhoso. Depois foi lá para fora e espreitou a rua toda. Como não
visse o Cão- Tinhoso, ficou no portão a olhar para todos os lados até que me viu.
Ficou uma quantidade de tempo a olhar para mim e, depois, veio até às escadas, a
andar devagarinho e de lado, subiu-as, e quando chegou perto de mim voltou-se
para uma coluna e pôs-se lá a riscar qualquer coisa, muito distraída. Perguntou-me
como se estivesse a falar com outra pessoa que eu não via:
— Viste o meu cão? Heim? Viste?
Como eu não desse nenhuma resposta, porque era a primeira vez que ela falava
comigo, insistiu:
— Não passou lá para fora?...
Nisto, o Cão-Tinhoso apareceu no portão. Parou um bocado, e depois, em vez de
ir para as camas de poeira das galinhas do Senhor Professor, veio para as escadas.
Eu disse:
— Está ali.
A Isaura voltou-se logo:
— Aonde? Ah! Meu cãozinho... Tinhas ido passear?

A Senhora Professora parou mesmo atrás de mim (ouvi o cóc, cóc, cóc dela a vir e
um cóc mais forte mesmo atrás de mim. De resto, senti o perfume dela em cima de
mim).
A Isaura tinha corrido logo, escadas abaixo, a agarrar-se ao Cão-Tinhoso, quando
a Senhora Professora disse:
— Ó menina, que pouca vergonha é essa? Vai já lavar as mãos!
Eu estava ainda a pensar para saber se me havia de levantar ou não, porque ouvia-
a mesmo por sobre as minhas costas, embora não a estivesse a ver.
Centro de Ensino à Distância 103

A Isaura afastou-se do Cão-Tinhoso e virou-se para a Senhora Professora. O Cão-


Tinhoso ficou também a o para ela. Foi aí que a Senhora Professora disse para o
Cão-Tinhoso:
— Suca!
O Cão-Tinhoso ainda ficou um bocado a olhar para a Senhora Professora, com os
olhos grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.
Eu vi-lhe lágrimas a brilhar em riscos no focinho. A Senhora Professora deu um
grito para o Cão-Tinhoso ouvir bem:
— Suca daqui!
O Cão-Tinhoso voltou-lhes as costas e desapareceu portão fora, sem dizer nada,
com o seu andar de carroça velha e com a cabeça a fazer balanço como os bois.
A Senhora Professora continuou a andar (cóc, cóc, cóc, de uma ponta da varanda
para a outra) e a Isaura ficou um bocado a olhar com aquela cara de parva para o
sítio atrás de mim onde a cara da Senhora Professora devia ter estado, e depois
veio devagarinho e a andar de lado e encostou-se outra vez à coluna, muito
distraída a riscar na cal. Daí a um bocado disse-me:
— Viste?...
E eu disse:
— Vi.
E ela:
— Correu com ele...
E eu:
— Sim.
Ficámos um bocado sem falar e depois ela veio numa corridinha pôr-se-me em
frente para me olhar com força. Os cantos dos olhos dela começaram a encher-se
de lágrimas e quando os olhos estavam cheios elas rebentaram e caíram-lhe pela
cara abaixo, a fazer dois riscos grossos. Perguntou-me:
— Viste?... Viste o que ela fez?...
Eu respondi:
— Vi.
E ela:
— Ela é má... É má...
Eu não disse nada e ela continuou:
— Todos são maus para o Cão-Tinhoso...
Os olhos dela não eram azuis, mas eram grandes e olhavam como os olhos do
Cão-Tinhoso como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.
Depois ela foi-se embora, lá para trás, onde os outros estavam a comer os lanches
e a brincar.
O Senhor Administrador cuspiu para nós os dois e disse aquilo do Cão-Tinhoso,
mas era só porque ele e o parceiro tinham levado uma limpa-quatro-bolas:
O Cão-Tinhoso costumava aparecer no Clube aos sábados à tarde para ver a malta
a treinar futebol. Eu não sei porque é que o Cão-Tinhoso gostava disso, mas a
verdade é que ele estava lá todos os sábados à tarde.
Houve um dia que a malta quis fazer um desafio a sério e não me deixou jogar. O
Gulamo nem me deixou jogar à baliza. Ele disse-me: «Aguenta um bocado na
varanda do Clube. Ficas como suplente. Daqui a pouco entras, mas há-de ser
quando estivermos à rasca ou a perder, porque aí entras tu e a gente resolve o
jogo». Eu vi logo que eles não me haviam de deixar jogar porque o jogo era a
dinheiro e quando é assim eles não me deixam jogar. Isso de eu ficar como
Centro de Ensino à Distância 104

suplente era o que eles diziam quando não queriam que eu jogasse, mas eu não
disse nada e fui para a varanda do clube. O Cão-Tinhoso estava lá.
O Senhor Administrador e os outros estavam na varanda do Clube, a jogar à sueca
como também era hábito todos os sábados à tarde. Eu estava a olhar para o Senhor
Administrador quando ele e o parceiro levaram um capote e ele disse ao Doutor da
Veterinária, que se estava a rir todo satisfeito, por lhe ter dado o capote: «Não
acho graça nenhuma... Isso foi leiteira»... Depois olhou para mim e viu que eu
também me estava a rir. Olhou para o Cão-Tinhoso e viu-o também a rir-se. Por
isso zangou-se e perguntou aos outros: «Eh! Quem é que disse que isto não era a
Arca de Noé?».
Depois continuaram a jogar à sueca e o Senhor Administrador e o parceiro
levaram uma limpa-quatro-bolas. Eu estava a olhar para ele quando ele disse ao
Doutor da Veterinária que se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas:
«Mas qual é a piada, porra? Com os trunfos todos na mão quem é que não fazia o
que vocês fizeram? Olha filho, toma! Toma! Chupa!... Eu chamo-lhe leiteira...».
Depois olhou para mim e zangou-se. Ele sabia que eu sabia que ele estava a
perder. Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso sem saber com qual de nós os dois
havia de correr primeiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu para nós os
dois, isto é, para um sítio entre nós os dois. Está-se mesmo a ver que o cuspo tanto
era para mim como para o Cão-Tinhoso.
O Doutor da Veterinária ainda se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas
e ele acabou com aquilo de uma vez:
— Ouve lá, o que é que este cão está a fazer ainda vivo? Está tão podre que é um
nojo, caramba! Bolas para isto! Ai que eu tenho de me meter em todos os lados
para pôr muita coisa em ordem...
O Senhor Chefe dos Correios, que era o parceiro do Senhor Administrador, já
estava a dar as cartas nessa altura, e por isso ficaram todos a ver quantos trunfos é
que lhes haviam de sair. Eu fiquei um momento a olhar para aquilo tudo até
compreender o que o Senhor Administrador queria dizer: — O Cão-Tinhoso vai
morrer! Olhei para ele: estava a dormir com a cabeça entre as patas, muito
descansado da vida.
Fui a correr para o campo de futebol para avisar a malta: «O Cão-Tinhoso vai
morrer». — O Gulamo disse-me: «Fora daqui!». — Agarrei-me a ele e voltei a
dizer-lhe que o Cão-Tinhoso ia morrer: «Larga-me». Ele só dizia isso. — «Larga-
me». Mas estava quieto.
Ficamos os dois a ver uma avançada do grupo do Quim. O Faruk, que era o ponta
direita deles, foi com a bola até ao canto, depois de ter batido o Narotamo em
corrida, e de lá centrou. O Quim passou por nós a correr para a baliza, mas o
Gulamo só dizia: «Larga-me». O Quim meteu o golo com uma cabeçada. O
Gulamo foi logo a correr: «Este golo não valeu porque este tipo estava a agarrar-
me». O Quim e os outros não quiseram saber: «Isso é que vale, estás a ouvir?».
Depois o Gulamo veio ter comigo:
— Ó filho da mãe, suca daqui para fora e não voltes a chatear, estás a ouvir? Suca
daqui antes que eu te rebente o focinho!
Bem, como o Gulamo dizia aquilo muito zangado eu fui-me embora para fora do
campo, mas fiquei chateado porque os outros não queriam saber do Cão-Tinhoso.
Quando ia já a sair do campo, o Telmo correu para mim e pôs-se a bater-me na
cabeça e a gritar:
— Só, só, só mais um! Só, só, só mais um!...
Centro de Ensino à Distância 105

Agarrei-lhe os braços e disse-lhe o que ia acontecer ao Cão-Tinhoso, mas ele


continuava: — Só, só, só mais um, só, só, só mais um...
Tive vontade de bater no Telmo, mas o Gulamo estava ali perto a olhar para mim
com os braços cruzados no peito e tive mesmo de me ir embora.
Quando passei pela varanda do Clube, o Senhor Administrador e os outros
estavam muito entretidos a jogar à sueca, e o Cão-Tinhoso estava muito quieto, a
dormir com a cabeça entre as patas sem ter percebido o que lhe havia de
acontecer.

Na segunda-feira de manhã fui ver o Cão-Tinhoso logo que cheguei à Escola. A


Isaura estava ao pé dele e dava-lhe o lanche dela, partindo o pão aos bocadinhos e
espalhando-os perto da boca do Cão-Tinhoso, que ia comendo devagar, porque
levava muito tempo a mastigar. Quando tocou para entrar, a Isaura despediu-se
dele e veio a correr para a chamada.
Lá dentro, enquanto fazia as contas e o desenho, e mesmo durante o ditado, fui
pensando no Cão-Tinhoso a ser morto pelo Doutor da Veterinária, depois de ter
escapado da bomba atómica e tudo, depois de ter corrido uma distância monstra
para não morrer por causa da bomba atómica. O Doutor da Veterinária se calhar
não tinha vontade nenhuma de matar o Cão-Tinhoso, mas como é que ele havia de
fazer, coitado, se foi o Senhor Administrador que mandou?
Perguntei ao Quim como é que o Doutor da Veterinária havia de matar o
Cão-Tinhoso, e ele disse-me: «Um cão mata-se com antibióticos». Eu perguntei-
lhe o que era isso de antibióticos e ele zangou-se e disse: «Ó seu burro!». E depois
de se calar um bocado e continuar a fazer o desenho, voltou a falar, mas já sem
estar zangado: «Meu Deus, quem é que te manda ser tão besta? E quem é que me
manda ter tanta paciência para te aturar. E que ainda por cima não sei
em que língua é que te hei-de falar porque não percebes nada de português,
chiça?! Um cão mata-se com uma bala de Ponto 22. Sim, para ti tem de ser assim.
E uma bala de Ponto 22 e pronto, arre!». Calou-se mas continuou: «Ou com
antibióticos...». E pouco depois: «A não ser que o Doutor da Veterinária seja tão
burro como tu que só o possa matar com uma bala de Ponto 22».
— Ó meninos, isto não é um bazar, heim...
Era a Senhora Professora.
— O que é que o Quim te estava a dizer? Sim, tu, Ginho, responde!
Eu ia a responder mas o Quim deu-me um beliscão.
— Não queres dizer? Será preciso usar a régua no teu rabinho?
— Não era nada, Senhora Professora, era por causa do Cão-Tinhoso. O Doutor da
Veterinária vai matá-lo.
— Vocês não têm tempo para tratar desses sigilosos negócios de estado durante a
hora do intervalo?
— Temos, sim, Senhora Professora.
— Então toca a fazer o desenho e bico calado.
Ficamos de bico calado a fazer o desenho.
Quando chegou a hora do intervalo a Isaura veio ter comigo, muito aflita:
— O que é que tu e o Quim estavam para ali a dizer?
Eu já tinha falado com ela uma vez, mas era como se fosse a primeira vez, porque
fiquei sem saber o que lhe havia de responder.
— O que é que tu e o Quim estavam para ali a falar do Cão-Tinhoso?
— Nada...
— Vão matá-lo? O Doutor da Veterinária vai matá-lo?
Centro de Ensino à Distância 106

— Não, isso é mentira do Quim...


— Então, porque é que estavam a falar nisso?
— Para passar o tempo. É que o desenho era chato...
— Vocês não sabem que não devem dizer mentiras? (Ela estava a armar em
Senhora Professora ou qualquer outra pessoa já crescida).
— O Quim é que disse mentiras, foi o Quim...
A Isaura respirou fundo (ainda a armar em pessoa crescida) e foi a correr para o
canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. Antes de chegar lá
parou e voltou-se para mim com as mãos a tapar a boca, mas como visse que eu
ainda estava a olhar para ela voltou-me as costas.
O Cão-Tinhoso viu-a chegar e pôs-se logo a abanar o rabo e a balancear a cabeça,
embora não estivesse a andar. A Isaura ajoelhou-se diante dele, agarrou-lhe a
cabeça e pôs-se a dizer-lhe uma data de coisas que não ouvi.
Depois sentou-se sobre os calcanhares, cruzou os dedos no regaço e pôs-se a olhar
para as mãos. Eu estava mesmo atrás dela quando ela disse:
— Não ligues a isso tudo porque é pêta do Quim, o Doutor da Veterinária não te
quer matar nem nada, isso é pêta. Nós ainda vamos falar das nossas coisas, e eu
hei-de dar-te de comer todos os dias. Também posso vir à tarde depois da hora do
lanche e trazer-te de comer, a minha mãe não diz nada, Cão-Tinhoso! Não sejas
malcriado! O que é que estás a querer ver debaixo das minhas saias? — E puxa a
saia para tapar os joelhos. — Oh! Desculpa-me, Cão-Tinhoso! Estás a ver a barra
da minha saia nova! Desculpa-me, eu devia saber que não és como esses meninos
malcriados que andam por aí. Não tinhas visto ainda a minha saia nova? Tem
muita roda, queres ver? — Levantou-se e esticou a saia pelos lados. Estava a fazer
uma voltinha quando me viu mesmo atrás dela. Ficou de boca aberta a olhar-me
depois virou-se para mim com a boca muito fechada e de mãos nas ancas: — O
que é que você quer daqui?
Fingi que estava a apanhar qualquer coisa com que tivesse estado a brincar e
tivesse ido parar ali sem ser de propósito, e depois fui-me embora a fingir que
metia a coisa ao bolso.
Um dia, o Senhor Duarte da Veterinária veio ter connosco quando estávamos no
Sá a contar filmes e anedotas e disse-nos:
— O rapazes, tenho uma coisa para vocês.
Claro que fomos todos atrás dele até ao muro da Veterinária.
— Oiçam, ó rapazes, tenho uma coisa para vocês — repetiu — depois de se sentar
ao alto do muro, com a malta em volta.
— É mesmo uma coisa para a malta.
Calou-se por um bocado e olhou para as nossas caras. «É uma coisa de malta,
mesmo de malta (agora só olhava para as unhas com os olhos quase fechados por
causa do fumo do cigarro). É coisa que eu com a vossa idade não deixaria de
fazer, se me pedissem para fazer. Bem, vocês sabem, o Doutor mandou-me dar
cabo de um cão, aquele, vocês conhecem-no, aquele que anda aí todo podre que é
um nojo, vocês não o conhecem?... Ora bem, o Doutor mandou-me dar cabo dele.
Bem, eu já o devia ter liquidado há mais tempo, mas o Doutor só me disse esta
manhã. Bem, acontece que eu tenho visitas em casa e é bera estar agora a pegar
em armas e zuca-zuca atrás de um cão, vocês compreendem, não é rapazes?... Mas
eu nem me afligi porque pensei cá para comigo — que diabo, os rapazes estão sem
fazer pêva e é para as ocasiões que a gente conta com os amigos — e pensei logo
em vocês, porque já se vê, vocês até devem gostar de mandar uns tiritos, hem?
Bem, calem-se não digam mais, eu já sabia que vocês são malta fixe. Olhem
Centro de Ensino à Distância 107

rapazes, vocês pegam aí numa corda qualquer, procuram lá o cão e levam-no para
o mato sem grandes alaridos e aí ferram-lhe uns tiritos nos cornos, que tal?... Está
bem, está bem, calma, deixem-me acabar de falar...
O Quim bateu-me na boca:
— Deixa ouvir o Senhor Duarte, caramba!
— Olhem, vocês, eu sei que vocês andam por aí aos tiros às rolas e aos coelhos,
olhem que eu sei... Mas deixem lá que eu não levo a mal, malta é malta, isto é
assim mesmo, eu só não quero é que façam as coisas à minha frente porque tenho
responsabilidades, vocês sabem. Ora vocês já têm armas e por isso não tenho de
vos emprestar as Ponto 22 daqui da Repartição, aliás uma chega, mas se vocês
quiserem fazer tiro ao alvo, eu não tenho nada com isso... Mas, pst, sem fazer um
cagaçal que se oiça aqui na vila!... Pronto, rapazes, ide, ido divertir-vos um
pedaço, mas cuidado lá com as armas, hem? Nada de desatar a ferrar tiros nos
cornos uns dos outros...
A malta pôs-se logo a correr, e o Senhor Duarte teve de se pôr de pé ao alto do
muro da Veterinária para nos chamar de novo. Depois esperou que chegássemos
bem ao pé dele para nos olhar bem na cara antes de falar com os olhos outra vez
quase fechados por causa do fumo do cigarro:
— Oiçam, rapazes, eu estou a falar entre homens, porra! Isto escusa de ser
propalado por aí aos quatro ventos, estão a ouvir? Eu só quis dar um prazer à
malta porque sei que vocês gostam de dar uns tiritos de vez em quando e eu não
levo a mal. ...Sim, sei que vocês gostam de dar por aí uns tiritos às rolas e aos
coelhos, mesmo sem terem licença de uso o porte de arma, para não falar na
licença de caça, e vocês sabem que se são apanhados por mim ou por um fiscal de
caça, chupam uns meses de prisão que se lixam. Mas deixa lá que eu não levo a
mal nem digo a ninguém que vocês usam as armas dos vossos pais ilegalmente.
Eu só quero que não me façam essas coisas mesmo debaixo do nariz, porque tenho
responsabilidades, vocês sabem. Eu não levo isso a mal, porque conheço bem a
malta, mas isto não é para ser espalhado por aí, vocês não acham?
De resto isto nem tinha de ser dito, porque estou a falar entre homens...
— Fique descansado. Senhor Duarte...
Foi o Quim.
— Pronto, rapazes, ide divertir-vos, mas pouco alarido...
O Sá, da varanda da loja, fazia-nos sinais para lhe irmos contar o que o Senhor
Duarte nos tinha dito, mas nós nem olhámos para lá. Fomos logo para a escola, e
no canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor lá estava o Cão-
Tinhoso a dormir. Quando nos viu, levantou-se e veio por ali fora a cobrejar, todo
cansado, com as patas a tremer. Olhou para todos nós com os olhos azuis, sem
saber que nós queríamos matá-lo e veio encostar-se às minhas pernas. Depois de
estar um bocado assim encostado, deixou escorregar o traseiro e sentou-se. Eu
senti-o a tremer como não sei o quê, enquanto os outros combinavam, e via os
meus sapatos a brilhar onde ele os lambia.
— Ouve lá, tu deixas esse cão todo podre que é um nojo encostar-se a ti? — O
Faruk estava
sempre a meter-se comigo, mas o Quim queria combinar as coisas e não queria
ouvir o que ele dizia:
— Deixa lá, é preto e basta, deixa lá... Bem, malta, o cão não sai daqui e a gente
vai cada um para a sua casa buscar as armas e depois levamo-lo para a mata atrás
do matadouro e damos cabo dele, óquêi?
— Como é que o levamos? Eu é que não o levo às costas...
Centro de Ensino à Distância 108

— Ó minha besta! — O Quim não gostava daquelas piadinhas. — E isso seria


demais? — Como é que vocês, os quadrúpedes, costumam levar as coisas? —
Depois virou-se para mim:
— Toucinho, tu trazes aquela corda que tens na tua casa debaixo do canhueiro.
— E quem é que leva o Cão? — (Eu não queria levar o Cão-Tinhoso).
— A gente depois atira uma moeda ao ar e vê quem é que o leva.
— Não me digam que este gajo também atira...
— Ó malta, vamos fazer o que o Senhor Duarte mandou ou não?
Fomos todos a correr para ir buscar as armas.
Quando cheguei a casa, a minha mãe estava sentada numa esteira mesmo à porta.
Escondi-me atrás de uma árvore para pensar como é que havia de levar a minha
Ponto 22 de um tiro sem ela se zangar, mas ela viu-me logo e chamou-me:
«Ginho! O que é que estás aí a fazer todo escondido?» — Corri para ela e entrei
em casa saltando-lhe por cima das pernas. «Eh! Que brincadeira é essa?» — Mas
eu já não a ouvia. Fui buscar a arma e voltei muito devagar, sem fazer barulho
nenhum, até ao corredor. Depois corri com força. — O que é isso? Para onde é
que levas a espingarda? Anda cá! Olha que eu faço queixa ao teu pai!
Só parei um bocado para levar o rolo de corda debaixo do canhueiro. Depois não
ouvi mais os berros dela. Enquanto corria para a escola fui pensando que afinal até
era bom matar o Cão-Tinhoso porque andava todo cheio de feridas que era um
nojo. E até era bem feito para a Isaura que andava cheia de manias por causa dele.
Quando cheguei à escola, apalpei o bolso da camisa para sentir as balas a
esfregarem-se umas nas outras. Bem, esqueci-me de dizer que, quando fui buscar
a espingarda, também levei algumas balas. Se as não levasse, como é que havia de
matar o Cão-Tinhoso?
Nós éramos 12 quando fomos para a estrada do Matadouro com o Cão-Tinhoso
O Quim, o Gulamo, o Zé, o Xangai, o Carlinhos, o Issufo e o Chico, iam pelo
meio da estrada com as espingardas apontadas para a frente. Atrás deles ia o
Faruk, que não tinha espingarda, a arrastar o Cão-Tinhoso pela corda. O Cão-
Tinhoso não queria andar e chiava que se danava, com a boca fechada. Nós, eu e o
Telmo de um lado, o Chichorro e o Norotamo do outro lado, íamos também
armados, meio metidos no capim, como o Quim tinha mandado, a bater o mato.
Eu não entrava muito pelo capim, porque, quando me aparecia uma micaia pela
frente, eu contornava-a pelo lado da estrada do Matadouro, por onde o resto da
malta ia, e volta e meia o Quim tinha de me perguntar se eu ia a bater o mato ou
quê, porque eu só queria era olhar para o Cão-Tinhoso, a chiar, que se danava e
mais aquele barulho de ossos lá dentro dele que às vezes ouvia quando o Faruk o
puxava com força, e mesmo lá na escola, no canto das camas de poeira das
galinhas do Senhor Professor, quando ele andava.
Quando chegámos ao matadouro os muleques do Costa vieram ver a malta a
passar:
— Onde vai jimininu? Leva xipingar, vai no caça? Mas aquele cão num prrêsta!
— Fora daqui, negralhada! — Era o Quim.
Os muleques julgaram que o Quim falava na brincadeira e não se mexeram, mas o
Quim apontou-lhes a arma e repetiu:
— Fora daqui, negralhada, fora daqui cabroada escura!
Desapareceram todos num instante, a correr, que batiam com os calcanhares no
cú, como dizia o Quim.
Avançámos para o mato, mas eu tinha a certeza de que eles nos estavam a seguir.
Centro de Ensino à Distância 109

— Ó pá, vocês ajudem-me, — era o Faruk — venha outro tipo puxar o sacana do
cão...
— Ó pá, mas a gente mandou uma moeda ao ar e ficaste tu...
— Então mandem outra vez...

— Bolas, assim não! Nós tínhamos combinado... Bem, óquêi... — O Quim


olhou para mim:
— Toucinho, anda tu!
— O pá, mas eu vou a bater o mato como tu disseste...
— O Faruk fica a bater o mato!
— O pá, não há o direito...
— Não há uma ova! Vai tu e não refiles! Dá a tua arma ao Faruk!
Os outros pararam um pouco atrás. Eu sabia disso, mas não fui capaz de parar. O
Cão-Tinhoso agora ia à frente de mim e eu é que andava devagar. Eu via-o de
cabeça esticada para a frente e de rabo espetado. Andava todo inclinado para a
frente, com as pernas a fazer músculos com o esforço de fugir da corda que lhe
apertava o pescoço.
Tínhamos entrado muito pelo mato adentro mas estávamos num sítio onde não
havia árvores e só havia capim. As árvores estavam à nossa frente e o Cão-
Tinhoso queria ir para lá. As vezes ele nem se via no capim alto, mas de vez em
quando andava tão depressa, que a corda se esticava e então eu tinha de andar um
pouco mais depressa para não sentir na mão, na cabeça, aqui dentro, no corpo
todo, a força dos ossos dele a chiar, a chiar e a chiar.
— Ei, para onde é que levas isso?
Parei e o peso veio todo na corda para dentro de mim.
Virei-me devagar e vi o Quim a meter um cartucho na Calibre 12 de Dois Canos.
— Ó Chico, o que é que dizes, SG ou 3A? — Agora falava com o Chico, com o
cartucho meio metido num dos canos e com o dedo a empurrá-lo devagarinho lá
para dentro da câmara.
— Ó Quim, pá, põe-lhe o número 4, não sejas bera que com isso escangalhas o
cão todo, pá...
— Ouve lá, para onde é que levas isso? — Eu estava parado, a sentir tudo aquilo
do Cão-Tinhoso que vinha pela corda esticada. O Cão-Tinhoso virou-se para mim
e atirou-se para trás de recuo a chiar por todos os lados. Eu sabia que ele me
estava a olhar com os olhos azuis, mas não pude deixar de olhar para a malta, que
estava a fazer meia roda, andando devagar e sem fazer barulho, sempre a armar e a
desarmar as espingardas. O Quim, em cima de uma pedra, olhava para mim com o
cartucho meio metido num dos canos da Calibre 12. 0 Faruk agarrava com força a
minha Ponto 22 de Um Tiro, e já lhe tinha metido uma bala expansiva na câmara.
Ele era o único que não estava sempre a mexer na culatra para armar e desarmar a
espingarda.
— Ó Quim, não atires com SG nem com 3A que isso é chato...

— Não atires, Quim, isso é bera...


— Assim, o gajo quina logo...
— O Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número qualquer, o Senhor Duarte
disse que nós também podíamos atirar...
— Poça, Quim, isso não!
O Cão-Tinhoso já não fazia força e de repente senti a corda lassa. Daí a pouco o
Cão-Tínhoso encostava-se às minhas pernas, todo a tremer e a chiar baixinho.
Centro de Ensino à Distância 110

O Quim acabou de meter o cartucho num dos canos da espingarda e endireitou-a


devagar até fechar a câmara. A arma ficou voltada para mim. Eu não pude olhar
mais para lá, mas era por causa dos olhos do Quim, que me olhavam quase
fechados, a brilhar sem ele estar a chorar.
Eu é que tinha uma danada vontade de chorar mas não podia fazer isso com
aqueles todos a olhar para mim.
— Quim, a gente pode não matar o cão, eu fico com ele, trato-o das feridas e
escondo-o para não andar mais pela vila com estas feridas que é um nojo...
O Quim olhou para mim como se nunca me tivesse visto em nenhum lado, mas
respondeu aos outros:
— Vocês que se lixem, eu atiro com o cartucho que quero e pronto!
— Atiras um raio é que atiras! Não julgues que temos medo de ti!
O Quim olhou para o Gulamo e perguntou devagar e em voz baixa:
— Ó meu filho da mãe, queres que eu te rebente o focinho?
— Rebentas uma ova, tu aqui não armes em mandão que eu não tenho medo de ti!
O Gulamo tinha-se virado para o Quim, com arma e tudo.
— Ouve lá, queres ter alguma coisa comigo, monhé de um raio?
O Quim não teve medo da arma de Gulamo.
— Isso era o teu avô, meu labreguinho ordinário! Nunca te contaram isso lá na tua
aldeia? Seu maguerre!...
— Monhé! Filho de um corno!
— Ó Quim, não atires com SG nem 3A que isso é ser chato...
— Não atires, Quim, isso é bera...
O Quim tinha descido da pedra e avançava para o Gulamo.
— Ó Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número qualquer, o Senhor Duarte
disse que nós também podíamos atirar...
— Poça, Quim, isso não!
O Cão-Tinhoso chiava baixinho e roçava-se pelas minhas pernas a tremer. O
Faruk agarrava a minha espingarda com força e apontava-a para mim com as
pernas afastadas, mas olhava para o Cão-Tinhoso, com os olhos grandes de medo.
Os outros todos ficavam também com os olhos cheios de medo quando olhavam
para os olhos azuis do Cão-Tinhoso.
— Eh, malta, vamos acabar com isto que é tarde e está quase escuro. Vocês não
desatem aqui aos tiros para os cornos um do outro... O Quim parou e virou-se para
o Xangai:
— Cornos tem o teu pai, estás a ouvir? Eu não deixo que um monhé abuse sem
levar na cara! De mim ninguém se fica a rir... E se ladras mais também comes no
focinho... Tu ou qualquer outro! Vocês todos estão a ouvir?
O Quim gritava como um doido, mas o Gulamo não tinha medo dele porque
começou a arregaçar as mangas da camisa.
Já estava quase escuro e o Cão-Tinhoso tremia contra as minhas pernas como não
sei quê.
— Eh pá, vamos deixar isto para o outro dia — o Faruk olhava para o brilho do
cano da Ponto 22 de Um Tiro — vamos deixar isto para amanhã ou outro dia...
Ele talvez ficasse por aqui, mas como o Quim deixasse de berrar para ouvir o que
ele dizia, continuou:
— E que já está quase escuro e podíamos ferir alguém sem querer, no escuro, com
tantas espingardas...
O Quim gritou logo:
— Ó meus filhos da mãe, vocês estão com medo?
Centro de Ensino à Distância 111

Só eu é que respondi:
— Eu estou com medo — custou-me dizer aquilo porque mais ninguém estava
com medo, mas foi melhor assim — Eu estou com medo, Quim...
Apesar de já estar quase escuro eu via os meus sapatos a brilhar nos sítios onde o
Cão-Tinhoso os lambia. Mesmo com o capim e tudo. O Quim e a outra malta
riam-se com força e o Gulamo rebolava no capim de tanto se rir por eu ter medo.
— Esta é forte, malta — dizia o Quim, com a boca toda aberta com os olhos a
chorar de tanto rir.
— Esta é que foi — dizia o Gulamo que nem se via por estar a rebolar no capim.
Os outros riam-se muito, também.
Parece que eu tive muita vergonha por ter dito aquilo.
Voltei a sentir um peso monstro dentro de mim e no pescoço.
Eu não me mexia para os outros não se rirem mais de mim, mas as pernas
tremiam-me por causa do Cão-Tinhoso, a tremer encostado a elas.
— Esta é forte! — O Quim berrava outra vez.
— Esta é forte! O Gulamo dizia isto enquanto rebolava no capim de tanto se rir de
mim. — Esta é forte...
Os outros, às vezes calavam-se, e só o Quim é que se ria sempre, sempre e cada
vez com mais força. Os outros ouviam-no quando se calavam e voltavam a rir-se
com força como ele. E riam-se, riam-se, riam-se enquanto o peso no meu pescoço
e cá dentro aumentava cada vez mais. Parece que nunca mais acabavam de se rir, e
eu com aquilo só tinha vontade de chorar ou de fugir com o Cão-Tinhoso, mas
também tinha medo de voltar a sentir a corda a tremer de tão esticada, com o chiar
dos ossos a querer fugir da minha mão, e com os latidos que saíam a chiar,
afogados na boca fechada como ainda há bocado. Sim, eu nunca mais queria
voltar a sentir isso.
O Quim estava de novo em cima da pedra mas ainda se ria de vez em quando e
dizia esta é forte, esta é forte.
O Gulamo estava ajoelhado, sentado sobre os calcanhares e com a camisa limpava
a cara das lágrimas que saltaram dos olhos de tanto se rir de mim por eu ter medo
e também dizia esta é forte, esta é forte.
Os outros já não se riam mas de vez em quando concordavam com o Quim e com
o Gulamo nisso de esta é forte, esta é forte.
Já estava quase escuro e o Quim, do alto da pedra, disse para a malta:
— Eh, malta, agora é que vai ser: Eh! Toucinho, desata a corda!
Mas eu não era capaz de me mexer, todo envergonhado e com o pescoço a doer
como não sei o quê.
— Eh, malta, vocês nunca me viram a matar um preto?
— O Quim aproximou-se de mim: «Eh, Toucinho, desata a corda!»
O Gulamo aproximou-se também. «Eh, Toucinho, desata a corda».
O nó estava feito de tal maneira que custava a desatar, e eu não tinha força
nenhuma nos dedos. Tinha vontade de chorar ou fugir com o cão e tudo.
— Anda lá, senão rebentamos contigo, preto de um raio!
— Anda lá com isso, caramba, — agora era o Faruk — anda lá com isso, preto de
um raio!...
No pescoço, as feridas do Cão-Tinhoso já não tinham crosta por causa da corda,
mas só saía delas uma aguadilha vermelha que me molhava as mãos.
— Anda lá, não tentes ser besta,Toucinho!
Quando acabei de desapertar o nó, agarrei a corda com força para ela não cair e
continuei a mexer no pescoço do cão, mesmo com os olhos fechados.
Centro de Ensino à Distância 112

— Eu tenho medo, desculpa-me Cão-Tinhoso — eu disse aquilo tão baixinho que


só o Cão-Tinhoso me podia ouvir— eu tenho medo, Cão-Tinhoso. — Eu vou
pedir isso ao Quim e à malta, e eles deixam com certeza, e eu levo-te e trato-te e
depois vais outra vez dormir para as camas de poeira das galinhas do Senhor
Professor. Eu vou pedir ao Quim e à malta e eles deixam. Mas, não me olhes
como se eu tivesse culpa, Cão-Tinhoso! Desculpa, mas eu tenho medo dos teus
olhos...
Abri os olhos e o Cão-Tinhoso estava com os olhos em cima de mim, como se não
tivesse percebido o que eu tinha pedido. Tive de desviar a cara depressa e por isso
a corda caiu-me das mãos...
— Ei, o que é que estás para aí a dizer? O quê, já acabaste?
— Quim, a gente pode não matar o cão, eu fico com ele, trato-lhe as feridas e
escondo-o para não andar mais pela vila com estas feridas que é um nojo!...
O Quim não queria saber do que eu estava a dizer e, por isso, agarrou-me pela
gola da camisa e perguntou-me o que é que eu estava para ali a dizer.
O Cão-Tinhoso tremia, cada vez mais enfiado nas minhas pernas com o rabo a dar
e a dar e eu empurrei o Quim para voltar a agarrar a corda no pescoço do cão para
os outros não verem.
— O que é que estás a dizer? — Era o Gulamo.
O Cão-Tinhoso olhava-me com força. Os seus olhos azuis não tinham brilho
nenhum, mas eram enormes e estavam cheios de lágrimas que lhe escorriam pelo
focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa
a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Quando eu olhava agora para dentro
deles, sentia um peso muito maior do que quando tinha a corda a tremer de tão
esticada, com os ossos a querer fugir da minha mão e com os latidos que saíam a
chiar, afogados na boca fechada.
Eu tinha uma danada vontade de chorar mas não podia fazer isso com a malta toda
a olhar para mim.
O meu braço estava todo molhado pelo sangue das feridas do pescoço do Cão-
Tinhoso, mas tinha de me abaixar um pouco mais, só mais um bocadinho, para
apanhar a corda.
O Faruk falava muito baixinho e depressa. Devia estar outra vez a olhar para o
brilho do cano da espingarda:

— Vamos deixar isto para outro dia, pá... Damos cabo do cão amanhã ou
outro dia...
Calou-se mas continuou logo:
— E que já está quase escuro e podíamos ferir alguém sem querer, no escuro com
tantas
espingardas...
— Quim, eu não quero dar o primeiro tiro... (Eles queriam que eu desse o primeiro
tiro).
— Anda lá, anda lá, não tenhas medo...
— Sabes, Quim, é que eu não quero matar o Cão-Tinhoso... O meu pai é
capaz de me bater quando souber... eu não quero, não...
— Vamos, pá. Eu disse-te que só davas o primeiro tiro, e é só isso o que vais
fazer.
— E que, sabes, pá... O meu pai lá em casa... Eu vou-me embora, ele está à minha
espera... Se chego tarde, ele bate-me... Bate-me, Quim, da outra vez bateu-me...
Centro de Ensino à Distância 113

— Vamos, vamos, deixa-te dessas coisas, não sejas medroso... Já viram isto,
malta, um de nós a borrar-se todo por causa do cão... E que eu não sei porque é
que este tipo anda connosco se não é macho de verdade... Já viram?
— Eu não me estou a borrar todo, Quim, eu só não quero dar o primeiro tiro... E
que eu sou um bocado amigo do cão e é chato ser eu a dar o primeiro tiro...
— Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não és macho, como a gente...
Maricas! Não tens vergonha? Dá lá o tiro, anda...
— Merda para ti, caramba! — Era o Gulamo — Preto de merda!
— Dispara, pá, não sejas medroso... Até parece que é a primeira vez que agarra
numa arma...
— Quim, eu não quero dar o primeiro tiro...
— Se continuas assim a gente depois conta lá na escola que tu tiveste medo de
matar o cão, que começaste com cagufas... A gente vai dizer que te borraste todo...
A gente vai contar isso, palavra que vai contar...
— Quim, eu não tenho cagufa nem nada, não tenho medo de matar o cão... É só
porque o meu pai está à espera lá em casa...
— Se em vez de estares aí a falar tivesses dado o tiro, já estaríamos despachados.
Anda lá, não sejas medroso!
— Medroso, me-dro-so! me-dro-so!
— Eu não sou medroso! Já disse, não sou medroso!
— És, és, és... Atira se não és! Atira!
— Atiro, sim, e depois? Eu mando já um tiro no sacana do cão...
— Isso é que é falar!... O Quim abraçou-me.
Eu tinha a arma apontada mas o Cão-Tinhoso fartava-se de dançar no ponto de
mira. O Quim não saía do meu lado:
— Não atires a matar, estás a ouvir? Mas se quiseres, podes atirar... Sabes, é só
porque tu estavas todo cheio de cagufa e era preciso mostrar à malta que não és
maricas. E por isso que tu és o gajo que vai dar o primeiro tiro... Eu se fosse a ti
atirava a matar e despachava o gajo logo... Não há azar nenhum nisso, foi o
Senhor Duarte que mandou... E assim poupavas o trabalho à malta. E que um tipo
chega para matar o cão, e escusávamos de encher o gajo de chumbo, que isso é
ser maldoso e se o Padreca souber disso é capaz de andar para aí a dizer que nós
somos ordinários. Sabes, Ginho... Eu acho que o Doutor da Veterinária devia ter
liquidado o sacana do cão com uma droga qualquer... Eu li numa revista que na
América os cães matam-se com drogas... Sim, lá na América, quando um Doutor
da Veterinária quer matar um cão que anda lá nas ruas cheio de feridas que é um
nojo, dá-lhe uma droga qualquer... Só para mostrar ao Doutor que ele não percebe
nada disto a malta devia não matar o cão... Não era por medo nem por nada, mas
era para o gajo ver... Ginho, não achas que devia ser assim? Não, não achas?
Hem?
— O Quim, pá, não podes conversar mais tarde com esse tipo? — Era o Gulamo.
— Sabes, pá... Eu estava a dizer aqui ao Ginho uma coisa bestial!.,. Não era,
Ginho? E uma coisa que a malta devia fazer, não era Ginho?
— Está bem, está bem, contas isso depois, agora vai para o teu lugar e deixa o tipo
dar o primeiro tiro para a malta atirar também... Ou será que o gajo voltou a ficar
com medo de atirar?
— Eu não estou com medo, já disse! — Eu virei-me para o Gulamo — Eu atiro
já...
— Está bem, está bem, eu só queria saber... Vamos, Quim, vai para o teu lugar...
Ou também estás com medo?
Centro de Ensino à Distância 114

O Quim riu-se como se aquilo fosse uma piada e foi com a arma dele para cima da
pedra. Quando lá chegou, gritou para mim:
— Então, atiras ou não?
A minha Ponto 22 de Um Tiro (a que estava com o Faruk) estava com um peso
danado, e por isso o Cão-Tinhoso fartava-se de dançar no ponto de mira. Só os
olhos dele é que não se mexiam nada e olhavam sempre para mim. Comecei a
puxar o gatilho muito devagar.

«Desculpa-me, Cão-Tinhoso, mas não vou atirar a matar»... Eu disse aquilo muito
baixinho, e só o Cão-Tinhoso é que ouvia. Eu só havia de dar o primeiro tiro
porque a malta queria que fosse eu, mas não havia de matar o Cão-Tinhoso! «E
que eu tenho medo, eu tenho medo, Cão-Tinhoso, mas eu vou atirar para a malta
não dizer que eu tenho cagufa».
Depois vi que afinal não estava a puxar o gatilho, porque tinha o dedo no guarda-
mato. Comecei a puxar o gatilho devagar para ter tempo de dizer tudo ao Cão-
Tinhoso: «Eu não tenho outro remédio, Cão-Tinhoso, eu tenho de atirar... Eu estou
cheio de medo, desculpa, Cão-Tinhoso... Deixa-me atirar e não me olhes dessa
maneira... Eu estou é com medo, estás a ouvir?... Estou com medo!... Se pudesse,
fugia e levava-te comigo. E depois tratava-te e nunca mais aparecias pela vila com
essas feridas que é um nojo, mas o Quim...»
A folga do gatilho acabou de repente e o peso da mola era tal, que o Cão-Tinhoso
dançava ainda mais sob o ponto de mira da minha arma. Tive de fechar os olhos e
era por causa dos olhos do Cão-Tinhoso, que estavam parados e olhavam para
mim muito quietos, mesmo quando ele dançava no ponto de mira.
— Vamos, pá, atira lá que nós estamos à espera de ti; mostra que és teso e que
podes continuar com a malta!...
A mola ia cedendo aos poucos e cada vez estava mais pesada. A tensão iria
aumentar até o cão saltar e perfurar a bala. Então não haveria mais resistência e o
gatilho viria até ao fim, com o estoire do cartucho na câmara e o ligeiro coice da
coronha. Tinha de falar mais depressa para acabar de dizer tudo antes do estoire, e
não podia abrir os olhos senão veria os olhos do Cão-Tinhoso e não seria capaz de
atirar.
«Não vais sofrer nada, porque o Quim meteu na Calibre 12 mais um cartucho SG,
e os outros também vão atirar ao mesmo tempo. Não te vai doer, tu ainda estás a
pensar em qualquer coisa e já estás morto e não sentes mais nada, nem as feridas a
doer por causa da corda nem nada...»
— Porra, atiras ou não, preto de merda?
«Tu morres e vais para o Céu, direitinho ao Céu... Vais gozar lá no Céu... Mas
antes disso eu hei-de enterrar o teu corpo e hei-de pôr uma cruz branca... E tu vais
para o limbo...
Sim, antes de ires para o Céu, vais para o limbo, como uma criança pequena...
Estás a ouvir, Cão-Tinhoso?»
A Senhora Professora perguntou se os nossos pais não nos davam educação lá em
casa e nós nunca mais falámos sobre o Cão-Tinhoso, mesmo quando estávamos no
Sá.
Logo depois do esteiro ouvi um grito monstro e nada mais. O meu tiro devia ter
mgoado muito o Cão-Tinhoso para ele gritar como uma pessoa. Fiquei sem saber
o que havia de fazer porque logo depois, o Cão-Tinhoso começou a gemer como
uma criança.
Centro de Ensino à Distância 115

Fui afastando as mãos da cara e depois abri os olhos. A Isaura estava agarrada ao
Cão-Tinhoso e era ela quem estava a gemer, mas não sei se não teria sido mesmo
o Cão-Tinhoso quem gritara ainda há bocado. A malta estava toda de boca aberta
a olhar para aquilo e só se ouvia a Isaura a gemer muito alto e a olhar para todos
os lados com os olhos todos saídos e muito agarrada ao Cão-Tinhoso.
O Quim foi o primeiro a falar:
— O que é que esta tipa veio para aqui fazer?
O Gulamo também tinha a voz rouca:
— Se calhar foram os pretos do Costa que lhe disseram...
Os muleques do Costa estavam por detrás da malta, disfarçados no escuro dos
troncos das árvores, e com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos todos saídos.
Todos eles iam dizendo «Hi!» e «He!», a olhar para a malta. O capataz dos
moleques do Costa escondeu-se ainda mais no tronco de uma micaia e falou com
os braços a voar para todos os lados:
—A nós não tem curpa! Ele que veio pruguntar, e gente veio com ele para ver
jimininu cum cão! A nós não tem curpa, só veio ver matar cão! Não tem curpa!...
— Ah, negros cabrões! — O Quim apontou-lhes a Calibre 12 de Dois Canos.
— Num mata nós, num tira, patrão... Hi! — e desapareceram todos com um
cagaçal medonho pelas micaias, a gritar «HÍ!» e «Hi!».
O Quim virou-se para a Isaura, que estava meio escondida no capim e com os
olhos todos de fora, a olhar para a malta e a gemer:
— Ó tipinha, não te disseram que nós não queremos fêmea a esta hora? O que é
que
vieste para aqui fazer? Não queremos gajas a atrapalhar o que nos mandaram
fazer, ouviste?
A Isaura não dizia nada e só gemia para a malta.
Ficou tudo calado por um instante e a malta a olhar uns para os outros, sem saber
o que fazer.
— Eh, malta, temos de matar o cão... Foi o Senhor Duarte quem mandou... Ele
disse que contava connosco... — O Quim já não estava rouco. — Estamos aqui a
demorar isto não sei porquê...
— Quem é que está com cagaço? Quem é que se borra nas calças?...
— Eu não!...
— Eu não!...
— Eu não!...
Toda a malta disse eu não e ficaram a olhar para mim a ver o que eu dizia.
— Eu não estou com cagaço, Quim... Eu não me vou borrar nas calças, Quim... —
Eu estava a tremer todo quando disse aquilo, mas garanto que não estava com
medo nem nada. Então a gente não tinha vindo para matar o cão que andava todo
podre que era um nojo? Foi o Senhor Duarte que disse, e porque é que não
havíamos de dar uns tirites? Eu estava era com pena de o matar depois de ele
correr uma distância monstra para não morrer por causa da bomba atómica e mais
nada.
— Ginho, tira a gaja de cima do cão!
O Quim falava sem olhar para mim.
O Faruk veio buscar a Ponto 22 de Um Tiro, que me tinha caído das mãos quando
disparei, e voltou para o lugar dele.
— Então, Ginho, estás com cagaço ou quê?
—Não, Quim, não estou com cagaço, nem nada... Estou só a pensar...
Centro de Ensino à Distância 116

— Pensas depois. Agora vai tirar a gaja do cão. — O Quim falava sem olhar para
mim, só a malta é que não tirava os olhos de cima de mim, para ver se eu tinha
cagaço ou não.
— Anda lá depressa, que já está escuro... O Senhor Duarte disse para
despacharmos o cão num instante...
A Isaura gemia e olhava para a malta com os olhos todos de fora. Fui andando
para onde a Isaura e o Cão-Tinhoso estavam, e ela, quando me via a ir para lá,
gemia cada vez mais de alto.
— Isaura, sai daí...
— Tira a gaja, não vês que ela não quer sair?...
— Isaura... A gente quer fazer o que nos mandaram fazer... Sai daí...
— Mas que burro que ele é!... Arranca a tipa, não ouves?
Agarrei-a por debaixo dos braços e ela sacudiu-se toda para que eu a deixasse. Fiz
mais força mas ela dobrava as pernas e não ficava de pé. Mas já não lutava como
no princípio e só gritava como se eu lhe estivesse a bater.
— Isaura, não vês que foi o Senhor Duarte que mandou?
— O Xangai também queria explicar aquilo à Isaura.
Puxei-a devagarinho e ela largou o pescoço do Cão--Tínhoso, que ficou a olhar
para ela e a ganir com a boca fechada como ainda há pouco.
— Isaura...

O Quim estava em cima da pedra e toda a malta apontava as espingardas para o


cão.
— Isaura... — Eu queria dizer-lhe qualquer coisa mas não sabia o quê.
— Ummmm... — O Quim começou a contar.
Todos haviam de atirar ao mesmo tempo e por isso as balas não haviam de ser
muito custosas para o Cão-Tinhoso.
Ele estava ainda a pensar em qualquer coisa e já estava morto.
— Isaura... O Cão-Tinhoso deve já ter visto que os outros cães não querem brincar
com ele... Ninguém gosta dele... Eu nunca vi ninguém a passar-lhe a mão pelas
costas como se faz com os outros cães...
— Dooooooiiiis... (O Quim levou um tempo enorme a dizer dois).
— Ele deve saber que é melhor morrer do que aturar aquilo tudo, os miúdos de
primeira classe a atirar-lhe pedras e a fazer rodinhas para lhe chamar Cão-
Tinhoso, a Senhora Professora a dizer-lhe suca e o Senhor Administrador a
mandar o Doutor da Veterinária matá-lo por ele ter feridas por causa da bomba
atómica...
— liiiii...
A Isaura gemia e estava toda mole, a não querer andar e com os olhos todos saídos
a olhar o Cão-Tinhoso. Eu também tinha pena de ver o Cão-Tinhoso a morrer, mas
não adiantava nada levá-lo para casa e tratar-lhe as feridas e fazer uma casinha
para ele dormir, porque ele era capaz de não gostar disso. Eu sabia que ele já sabia
de muitas coisas para só querer o que qualquer cão podia ter. O Cão-Tinhoso
devia estar à espera de qualquer coisa diferente do que os outros cães costumam
ter, sempre com os olhos azuis a olhar, mas tão grandes que parecia uma pessoa a
pedir qualquer coisa sem querer dizer. E mesmo quando olhava para os outros
cães, para as árvores, para os carros a passar, para as galinhas do Senhor Professor
a debicar no chão por entre as patas dele, para os miúdos de primeira classe a
jogar berlindes ou outra coisa qualquer, para o Senhor Administrador e para os
outros a jogar à sueca na varanda do Clube
Centro de Ensino à Distância 117

aos sábados à tarde, para o Quim a contar coisas na loja do Sá, para a Isaura a dar-
lhe o lanche e a falar com ele, sempre quando olhava, estava a pedir qualquer
coisa que eu não entendia mas que não devia ser só para lhe tratarem as feridas,
para lhe darem de comer ou para lhe fazerem uma casinha.
— TRÊS!
Ficou tudo parado e até a Isaura calou-se e ficou dura.
— Atirem, porra!
— Isaura... — Eu queria dizer-te qualquer coisa, queria dizer-te tudo o que estava
a pensar.

— Poça, ninguém atira?


— Hum?... — A Isaura olhava para mim com aqueles olhos todos.
— A gente não pode dar nada ao Cão-Tinhoso... A gente não sabe o que ele quer.
Palavra que a gente não sabe...
A Isaura ficou a olhar para mim sem ter compreendido, porque eu falei muito
depressa.
— Eu vou contar outra vez até três, mas ai do gajo que não atirar!...
— Isaura!...
— Um... Dói... zi... Três!...
Logo ao primeiro tiro a Isaura agarrou-se-me de tal maneira que caímos, e eu
fiquei com tanto medo que lhe gritei: «Tapa-me os ouvidos!» Ela meteu-se toda
no meu peito e procurou-me as orelhas com as mãos. Os tiros rebentavam por
todos os lados e mesmo com os olhos fechados eu via fogo a saltar dos canos das
espingardas. O corpo da Isaura estava duro e estremecia a cada esteiro.
Os tiros rebentavam sem parar, mas quando a Calibre 12 de Dois Canos do Quim
disparava, o chão tremia e as árvores faziam «Haa!..,» até ao longe. O cão já devia
estar morto mas eles continuaram a atirar. Sentia o ar quente como o corpo da
Isaura e tinha a boca cheia de pólvora, e isso dava--me uma danada vontade de
tossir, mas não conseguia fazer isso porque estava cheio de medo do assobiar das
balas que passavam por cima de nós; é que esse assobiar só acabava noutro
esteiro, que também não tinha eco porque mesmo antes de a bala acabar de
assobiar o mato rebentava com outro estoiro.
Os tiros acabaram de repente e a Isaura ficou como morta, por cima de mim, mas
muito rija. Quando ia a sacudi-la, vi por entre o capim o Quim a meter um
cartucho na câmara e a fechá-la. O mato todo estava ainda cheio do barulho dos
tiros a afastar-se de nós, quando do buraco escuro do cano da Calibre 12 brilhou
um fogo rápido e quase branco e ao mesmo tempo se ouviu o esteiro. A Isaura deu
um berro com toda a força e voltou a enfiar-se pelo meu corpo.
Depois, ao mesmo tempo que o estoiro ia rebentando pelo mato fora, cada vez
mais longe, ouviam-se outra voz os gemidos da Isaura. Eu sentia a barriga dela
muito quente e suada, toda colada à minha.
— Chega, malta, vamos embora — O Quim estava mais rouco do que ainda há
bocado. A nossa volta o capim fazia «fff-fff» quando eles andavam.
— Ó pá, quando mandei o SG, o tipo comeu em cheio no peito... Eu vi-o levantar-
se todo do chão e a enterrar-se todo no capim... Ainda ressaltou como se fosse de
borracha, vocês não viram?

— Eu acertei-lhe no olho esquerdo quando o tipo ainda estava de pé. O focinho


até lhe ficou todo para o lado com a força da bala...
Centro de Ensino à Distância 118

— ... E depois meti dois as e mandei-os quase ao mes-mo tempo para os cornos
do gajo. O tipo deve ter ficado com a cabeça toda rebentada...
— Ó pá, tu com o SG mataste-o logo... A gente atirou para um alvo já
morto...
— E depois? O que é que tens com isso?... Eu atiro com o que bem me apetece...
A Isaura gemia para mim e chorava baixinho, sem lhe saírem lágrimas dos olhos.
O cabelo dela estava cheio de capim mas só cheirava à pólvora quando se me
metia pelo
nariz adentro.
— Isaura...
A barriga dela ficou dura, toda colada à minha.
— Vamos embora...
As unhas dela furavam-me o pescoço, mas eu gostava e não me mexia.
— Isaura...
A cara dela estava quente como a barriga.

— Eu só gostava de saber o que é que aqueles dois estão para ali a fazer
escondidos no capim há uma data de tempo...
— Foi o Quim.
A Isaura levantou-se logo e pôs-se a compor o vestido, toda envergonhada. Depois
olhou para mim e fugiu para as árvores. Durante algum tempo ainda ouvimos o
barulho do vestido dela a rasgar-se pelas micaias, mas depois ficou tudo em
silêncio.
— Vamos embora!...
O Quim veio ter comigo no intervalo do lanche. Eu vi que era ele mesmo sem
deixar de olhar para os cães a brincar do outro lado da estrada.
— Ginho...
—Diz.
— Isto é uma chatice...
—É...
Sentou-se nas escadas ao pé do mim e ficou também a olhar para os cães.

— Eles não queriam brincar com o Cão-Tínhoso — apontava para eles — eles não
queriam brincar com o Cão-Tinhoso !...
Falava com muita força e espalhava os braços para todos os lados. — Foste tu que
me contaste isso, não foste?...
Os sapatos da Senhora Professora faziam «cóc, cóc, cóc», atrás de nós, mas como
eu estava a conversar com o Quim e a olhar para outra coisa, não precisava de me
levantar.
— Sabes?... A Isaura foi dizer ao pai que nós...
— O quê?
— Ela pediu ao pai para nos bater...
— Bater?... Porquê?
— Porque nós matamos, o Cão-Tinhoso !...
E ria-se com força, todo torcido. — Não é tramada? E esta, heim?... Bater-nos
porque nós matamos o Cão-Tinhoso !...
Depois calou-se. Aí falou a Senhora Professora:
— Meninos, para a aula!
— Ginho... Tu passas-me a prova? — O Quim abraçou-me pelos ombros. —
Deixas-me
Centro de Ensino à Distância 119

copiar?...
— Está bem.
— Ginho... Tu estás zangado comigo? A gente não devia ter liquidado o cão?...
Foi o Senhor Duarte que mandou... Tu também estavas lá...
— Eu não estou zangado nem nada...
— Então passas-me os problemas?... Passas-me?.,. Eu faço-te o desenho...
— Está bem.
— Meninos! Para a aula! Para a aula, já disse!
E fomos para a aula.

Interpretação global do conto


A Estrutura Interna
1. Divida o conto em três partes:

A – Antes da morte do Cão –Tinhoso.


B – A morte do Cão- Tinhoso.
C – Depois da morte do Cão- Tinhoso.
A – Antes da morte do Cão –Tinhoso.
1. As Personagens
1.1. Indique as personagens desta parte do conto.
1.2. Refira quais as principais.
1.3. Aponte as personagens secundárias.
2. Proceda à caracterização da(s) personagem(ns) principal(is).
2.1. Recolha do texto as expressões que fundamentam as suas afirmações.
2.2. A caracterização das personagens é directa ou indirecta? Justifique a
resposta.

3. O espaço
3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.
3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).
4. O tempo
4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no
tempo (quer o histórico, quer o cronológico).
5. A acção
5.1Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua
escolha.
5.2O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou
encaixe? Justifique.
6. O Narrador
6.1. Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.

B – A morte do Cão- Tinhoso


1. As Personagens
1.1. Indique as personagens desta parte do conto.
1.2. Refira quais as principais.
1.3. Aponte as personagens secundárias.
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2. Proceda à caracterização da(s) personagem(ns) principal(is).


2.1. Recolha do texto as expressões que fundamentam as suas afirmações.
2.2. A caracterização das personagens é directa ou indirecta? Justifique a
resposta.
3. O espaço
3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.
3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).
4. O tempo
4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no
tempo (quer o histórico, quer o cronológico).
5. A acção
5.1Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua
escolha.
5.2. O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou
encaixe? Justifique.
6. O Narrador
Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.

C – Após a morte do Cão- Tinhoso


1. As Personagens
1.1. Indique as personagens desta parte do conto.
1.2. Refira quais as principais.
1.3. Aponte as personagens secundárias.
2. Proceda à caracterização da(s) personagem(ns) principal(is).
2.1. Recolha do texto as expressões que fundamentam as suas afirmações.
2.2. A caracterização das personagens é directa ou indirecta? Justifique a
resposta.
3. O espaço
3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.
3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).

4. O tempo
4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no
tempo (quer o histórico, quer o cronológico).
5. A acção
5.1. Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua
escolha.
5.2. O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou
encaixe? Justifique.
6. O Narrador
6.1. Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.
7. Modos de Expressão
7.1. Retire do texto exemplos de: • narração • descrição • diálogo • monólogo
interior
8. Indique o tema do conto de Luís Bernardo Honwana. Justifique a sua opção.
9. O que entende por parábola?
9.1. Poderá este conto ser considerado uma parábola? Justifique.
10. Imagine um final diferente para o conto.
11. A linguagem
11.1. Retire do texto palavras próprias do vocabulário moçambicano
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11.2. Encontre vocábulos, no português de Portugal, que possam explicar esses


termos.
11.3. Retire construções sintácticas próprias do português de Moçambique.
11.4. Aponte os níveis de língua presentes no texto.
11.5. Aponte alguns dos recursos estilísticos presentes no conto e refira a sua
expressividade.
11.6. Identifique onomatopeias no conto.
A Mulher do Padeiro de Arnaldo Santos

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