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Módulo único
25 Unidades
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Este manual é propriedade da Universidade Católica de Moçambique, Centro de Ensino à
Distância (CED) e contém reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou
reprodução deste manual, no seu todo ou em partes, sob quaisquer formas ou por quaisquer
meios (electrónicos, mecânico, gravação, fotocópia ou outros), sem permissão expressa de
entidade editora (Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à Distância). O
não cumprimento desta advertência é passível a processos judiciais.
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Agradecimentos
A Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à Distância e o autor do presente
manual, dr. Lourenço Covane, agradecem a colaboração dos seguintes indivíduos e
instituições:
Índice
Visão geral 1
Bem-vindo à cadeira de Literaturas Africanas em Português II ...................................... 1
Quem deveria estudar este módulo ................................................................................ 1
Como está estruturado este módulo? .............................................................................. 2
Ícones de actividade ...................................................................................................... 3
Habilidades de estudo .................................................................................................... 3
Precisa de apoio? ........................................................................................................... 3
Tarefas (avaliação e auto-avaliação) .............................................................................. 3
Avaliação ...................................................................................................................... 4
Sumário ....................................................................................................................... 29
Exercícios.................................................................................................................... 29
Unidade 10: Literatura e Resistência: Luís Bernardo Honwana (Nós matámos o Cão-
tinhoso) 40
Introdução .......................................................................................................... 40
Sumário ....................................................................................................................... 42
Exercícios.................................................................................................................... 42
Exercícios.................................................................................................................... 62
Visão geral
Páginas introdutórias
Um índice completo.
Uma visão geral detalhada da cadeira, resumindo os aspectos-
chave que você precisa conhecer para completar o estudo.
Recomendamos vivamente que leia esta secção com atenção
antes de começar o seu estudo.
Conteúdo da cadeira
A cadeira está estruturada em unidades de aprendizagem. Cada
unidade incluirá, o tema, uma introdução, objectivos da unidade,
conteúdo da unidade incluindo actividades de aprendizagem,
um sumário da unidade e uma ou mais actividades para auto-
avaliação.
Outros recursos
Para quem esteja interessado em aprender mais, apresentamos uma
lista de recursos adicionais para você explorar. Estes recursos
podem incluir livros, artigos ou sites na internet.
Comentários e sugestões
Esta é a sua oportunidade para nos dar sugestões e fazer
comentários sobre a estrutura e o conteúdo da cadeira. Os seus
comentários serão úteis para nos ajudar a avaliar e melhorar este
manual.
Centro de Ensino à Distância 3
Ícones de actividade
Habilidades de estudo
Precisa de apoio?
Caro estudante:
Os tutores têm por obrigação monitorar a sua aprendizagem, dai o
estudante ter a oportunidade de interagir objectivamente com o
tutor, usando para o efeito os mecanismos apresentados acima.
Todos os tutores têm por obrigação facilitar a interacção. Em caso
de problemas específicos, ele deve ser o primeiro a ser contactado,
numa fase posterior contacte o coordenador do curso e se o
problema for da natureza geral, contacte a direcção do CED, pelo
número 825018440.
Os contactos só se podem efectuar nos dias úteis e nas horas
normais de expediente.
Avaliação
Introdução
Sumário
Exercícios
Introdução
Nesta unidade, vai estudar os aspectos marcantes que deram maior
impulso ao surgimento da literatuta escrita nas colónias africanas
de expressão em língua portuguesa.
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:
2.1 A Imprensa
A imprensa foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo
Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e
Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).
Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim
Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário
oficial e religioso, mas que também incluía textos literários
(poemas e crónicas).
Em geral, no século passado, excepto em Angola, a imprensa foi
menos importante devido à repressão. O semanário O progresso
(1868), de Moçambique, religioso, instrutuvo, comercial e agrícola,
teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir
Centro de Ensino à Distância 10
Exercícios
Introdução
Nesta unidade, portanto, conhecerá profundamente os grandes
marcos que diferenciam a negritude e o pan-africanismo, bem
como falar dos seus percursores.
1
O pan-africanismo é uma ideologia que propõe a união de todos os povos de
África como forma de potenciar a voz do continente no contexto internacional.
Centro de Ensino à Distância 15
Sumário
Exercícios
Introdução
Sumário
Exercícios
Introdução
Esta unidade debruça-se especificamente sobre o processo de
formação da literatura moçambicano, se compararmos com o de
outras colónias portuguesas.
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:
Literatura Moçambicana
De acordo com as pesquisas, a literatura moçambicana é incipiente,
em relação à literatura angolana e de Cabo Verde. No entanto, “não
será arriscar demasiado dizer que a actividade cultural de
Moçambique naquele período deve ter sido sobretudo orientada
para o jornalismo”. Mas para perceberes melhor este assunto, vais
estudar profundamente, nesta unidade didáctica, os marcos
importantes que estiveram na origem desta jovem literatura.
O processo de formação da literatura de Moçambique segue os
mesmos trâmites que o de Angola. A formação, sobretudo nas
zonas urbanas da Beira e Lourenço Marques (agora, Maputo), de
uma elite de alguns negros, mestiços e brancos que se apoderou,
aos poucos, dos canais e centros de administração e poder, é factor
preponderante na emergência de uma literatura que passa pelas
mesmas fases para Angola: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e
luso-tropicalista, nacional e pós-colonial.
Em termos de precursores desta literatura, há que referir Rui de
Noronha, João Dias e Augusto Conrado. Entre eles merece realce
Rui de Noronha, cujo livro de Sonetos foi publicado seis anos após
a sua morte. A sua poesia reveste-se de algum pioneirismo, não
pela forma, mas pelo conteúdo, uma vez que alguns dos sonetos
mostram sensibilidade para a situação dos mestiços e negros, o que
Centro de Ensino à Distância 20
Europeu me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem raiz de algum
pensamento europeu,
É provável...Não. É certo,
mas africano sou.
A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada
sobretudo por escritores que militavam na Frelimo. Entre eles,
destaque para Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes.
Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com comunicar uma
mensagem de cunho político e, algumas vezes , partidário. Como
literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar,
com alguns belos poemas de carácter intimista, no seu livro
Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é pouco ou nada
inovadora.
Sumário
A literatura moçambicana é incipiente, em relação à literatura
angolana e de Cabo Verde. No entanto, não será arriscar demasiado
dizer que a actividade cultural de Moçambique naquele período
deve ter sido sobretudo orientada para o jornalismo.
A literatura moçambicana segue os mesmos carris tais como seguiu
a angolana: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e luso-tropicalista,
nacional e pós-colonial.
Centro de Ensino à Distância 22
Exercícios
Os nossos músculos
São fardos de algodão
Amarrados de ódio.
O nosso passo
Sincronizou-se nas fábricas
Onde as máquinas nos torturam.
Introdução
O 4.° período, que vai de 1964 até 1975, ou seja, do início da luta
armada de libertação nacional à independência do país (a
publicação de livros fundamentais coincide com estas datas
políticas), é denominado “período de Desenvolvimento da
literatura”, e se caracteriza pela coexistência de maciça actividade
cultural e literária no hinterland, no ghetto, apresentando textos
cuja feição não explicita carácter marcadamente político (em que
pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio
Lisboa, Rui Knopfli, o português António Quadros, entre outros) e,
por outro lado, poemas anti-colonialistas que incitavam à revolução
e tematizavam a luta armada.
Sumário
Exercícios
O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram
enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho.
Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a
pedir qualquer coisa sem querer dizer.
Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do
pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor
Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a
andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.
O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu
gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o
Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava
todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os
bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.
Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros
cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar
debaixo do rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que
nunca, mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e
longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade.
Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-
Tinhoso. Depois zangavam-se e punham- se a ladrar, mas como ele não dissesse
nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar
debaixo do rabo uns aos outros e a correr.
Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e
avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as
2
Para completar a leitura deste conto, ver em anexo.
Centro de Ensino à Distância 26
orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o
que ele queria, teve medo e parou no meio da estrada.
Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar
a olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com
eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e
avançou devagar até onde estava o Cão- Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver
e nem se mexeu mando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente.
O Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi
a correr e disse qualquer coisa aos outros — o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a
Mimosa e o Luiu — e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-
Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles
zangaram-se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então
que ele recuou com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com o
rabo todo enfiado.
2. Classifique, a partir do trecho que se lhe apresenta, o narrador
quanto à presença e à ciência.
Introdução
Tendo em vista o que terá visto na periodização literária em
Moçambique, vai nesta unidade estudar as condições criadas pela
imprensa para as novas perpectivas técnico-ideológicas e temáticas
na literatura moçambicana.
.
Msaho
Sumário
Exercícios
Introdução
Noémia de Sousa nasceu em 20 de Setembro de 1926, em
Moçambique (Catembe/Maputo). Sem livro publicado, rumou a
Lisboa. Mais tarde, mudou-se para Paris. Regressaria a Portugal,
onde foi jornalista da agência noticiosa portuguesa, em Lisboa.
Morreu em 4 de Dezembro de 2002, Cascais, Portugal.
A Poesia da Negritude
Sumário
Exercícios
“Magaíça”
A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
3
Cf. Periodização literária moçambicana, unidade 6.
Centro de Ensino à Distância 34
E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.
A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.
In O Brado Africano, n. 787, 25.12.1935
Introdução
Como nos outros países, surge também em Moçambique um
número de escritores cuja obra poética é conscientemente
produzida tendo em conta o factor da nacionalidade, forjando a
consciência do que é ser moçambicano no contexto, primeiro da
África e, depois, do mundo. Estamos a falar de um José craveirinha
que, como vem sendo e vai ser dito ao longo deste manual, tanto se
rumou por uma poesia nacionalista. Sendo assim, vais ter, aqui, a
oportunidade de analisar a essência de Craveirinha.
.
Objectivos Identificar a idelogia nacionalista presente na obra de
Craveirinha;
Conhecer as fases da Poesia de Craveirinha;
Relacionar os conceitos de africanidade, Negritude e
moçambicanidade patentes na poesia de Craveirinha
Poesia Nacionalista
1. Vida e Obra
José João Craveirinha nasceu em 28 de Maio 1922 em Maputo. É
considerado o poeta nacional moçambicano. Iniciou a sua carreira
como jornalista no "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com
Centro de Ensino à Distância 36
2. Fases Poéticas
1.ª Fase: de Neo-realismo, implicando uma tradição poética
narrativizada, de que é exemplo flagrante a primeira parte do livro
Karingana ua karingana, justamente datada de 1945-50 e intitulada
«Fabulário». Os poemas têm versos curtos. Cada poema é como
que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena, um
ambiente, um tema). O fabulário alude, por outro lado, à tradição
popular, ancestral, tribal, de contar fábulas, aqui com personagens
humanas dentro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma
denúncia em moldes alusivos, expositivos, em linguagem
descarnada, contida, não propriamente contundente. Por outro lado,
a composição do tema, a imagética, porque voltadas para uma
finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentam-se sem
grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo
incipiente, privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos.
Karingana ua Karingana4
De hora a hora
e minuto a minuto cresce
cresce devagarinho a semente na terra escura.
E a vida curva-nos mais ao ritmo fantástico
do nosso chicomo relampejante áscua de chanfuta
subafricano amadurecendo as jejuadas manhãs
ao velho calor dos braçais intensos
4
Karingana wa Karingana é a expressão que os rongas utilizam para
iniciar as histórias tradicionais (xihitane) e que corresponde ao «era uma
vez» das narrativas luso-ocidentais. O narrador começa a história
dirigindo-se ao grupo ouvinte dizendo precisamente «karingana wa
karingana!» e o público responde em uníssono: «karingana!». No final da
narrativa, o contador de histórias tradicionais diz «Phu karingana!».
Centro de Ensino à Distância 38
E depois...
de capulanas e tangas supersticiosa a vida
vai espiando no céu os indecifráveis agoiros
que hão-de rebentar a nhimba da missava culimada
e na mórbida vigília dos ouvidos ao - Karingana
ua Karingana!? - todos juntos prescrutando a mafurreira
longínqua no horizonte e as mãos batendo a forja dos mil
sóis da tingoma dos corações enroscados de mambas
de ansiedade à luz da fogueira, respondendo - Karingana!
Sumário
Exercícios
Unidade 10: Literatura e Resistência: Luís Bernardo Honwana (Nós matámos o Cão-
tinhoso)
Introdução
LUÍS BERNARDO HONWANA nasceu em 1942, em Lourenço
Marques, dedicou-se ao jornalismo, muito amigo de Craveirinha a
quem dedicou seu único livro de contos, Nós matamos o cão-
tinhoso (1964), aos 22 anos de idade. Nunca mais publicou. Foi
Ministro de Cultura (representante de Moçambique no Acordo
Ortográfico).
Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:
Quando Honwana tinha vinte e dois anos, foi preso pela polícia
política. Foi durante o tempo passado na prisão que escreveu o seu
único livro, Nós Matámos o Cão-Tinhoso, com o objectivo de
demonstrar o racismo do poder colonial português. O livro chegou
a exercer uma influência importante na geração pós-colonial de
escritores moçambicanos. Muitos dos contos, escritos em português
europeu padrão, são narrados por crianças. O universo social e
cultural moçambicano durante a época colonial é o centro da
análise das narrativas de Nós Matámos o Cão-Tinhoso. De acordo
com Manuel Ferreira, “Os contos de Nós Mátamos o Cão-Tinhoso
apresentam-nos questões sociais de exploração e de segregação
racial de distinção de classe e de educação”. Cada personagem em
cada conto representa uma diferente posição social (branco,
assimilado, indígena e/ou mestiço).
Temas e simbolismo
O significado de Cão-Tinhoso
5
Ver o conto em anexo
Centro de Ensino à Distância 42
Os olhos azuis
O homicídio do cão
Quando os meninos matam o cão, este evento pode ser visto como
simbólico dum processo iniciático, de aprendidagem para a
personagem que encontra solidariedade afetiva.
Sumário
Exercícios
Introdução
Sumário
Exercícios
Introdução
A guerra civil que teve lugar em Moçambique, durante
quase toda a década de oitenta, é o cenário da maioria dos
autores que escrevem sobre a época. Mia Couto com Vozes
Anoitecidas revela esse sentido trágico, aproveitando essa
oportunidade introduzir na língua e na literatura uma nova
roupagem que, de uma forma, o singulariza e o identifica.
Nesta unidade didáctica, vamos fornecer-te uma informação
sobre a criatividade linguística pelo escritor moçambicano,
Mia Couto.
CRIATIVIDADE TEXTUAL
1. Criatividade e inventividade da linguagem para afirmar a
diferença linguística e literária no interior da língua do
colonizador. Ex. dois movimentos contraditórios: economia de
linguagem com elisão, o outro inflação com duplicações, ex.
deve ser talvez. Criatividade sintática: ex. os bois estão aqui,
perto comigo, colocação da vírgula desloca o significado.
2. Realismo em ações e personagens para dar um quadro do
social e particular.
3. Intromissão do imaginário ancestral, do fantástico, que
transforma o realismo num imprevisto realismo animista.
4. O Humor. Há vários tipos:
a. Humor de intriga, como a história improvável de Sidney
Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.
b. Humor de situação/acontecimento, envolvendo apenas um
episódio e não uma intriga completa, ex. “A Rosa Caramela”
(Juca aluga seus sapatos para os outros poderem ir ao futebol).
c. Humor de personagem
d. Humor de nomes próprios: Ascolino do Perpétuo Socorro, um
indo-português; Benjamin Katikeze, um seminarista.
e. Humor de narração, ex. “O ex-futuro padre e sua pré-viúva”, a
beleza de Anabela, a pré-viúva, é anabelíssima.
f. Humor de enunciação, sintaxe a moda popular
g. Humor de linguagem, nível sintático e lexical.
Sumário
Exercícios
Introdução
Outro escritor não menos importante na literatura moçambicana é
Ungulani Ba Ka Khosa, com o seu livro, Ualalapi, através do qual
moderniza a ficção moçambicana ao introduzir um género que se
enraíza no romance histórico. Nesta unidade didáctica importa-te
saberes até ponto a obra harmoniza a grande história de
Moçambique com a ficção.
Narrativa
Do ponto de vista narrativo, “Ualalapi” é, como já foi indicado,
um texto genericamente complexo. O livro abre com uma “nota do
autor” em que se situa o protagonista Ngungunhane na história
colonial.
A “nota do autor” serve de aviso ao leitor, para que distinga na
história do imperador Ngungunhane “a verdade irrefutável”
daquilo que ainda suscita dúvidas.
Cronologia do Reinado
O livro faz um relato cronológico do reinado de Ngungunhane, a
sua figura e os eventos específicos que ocorriam no seu reino. O
sexto texto - que mais interessa na presente análise - dá-nos “o
último discurso de Ngungunhane”.
O histórico Ngungunhane era famoso pela resistência que opôs aos
portugueses e era considerado um líder muito perspicaz. Foi o
último imperador de Gaza.
Na própria história apresentada no livro, desfilam vários exemplos
documentais como o relato semi-ficcional da vida de Ngungunhane
escrito por Khosa, mais os elementos míticos e sobrenaturais
rebuscados da cultura popular moçambicana.
De referir que o último de todos os capítulos da obra contém
citações da Bíblia e de vários documentos da época, de cunho
administrativo, bem como as “palavras últimas de Ngungunhane
antes do embarque”, referidas em língua tsonga e na tradução
portuguesa.
Prova da importância desta obra é que a mesma vai ser editada em
língua inglesa ainda este ano por uma das editoras do país,
pretendendo fazer chegar o livro a outros países, neste caso de
língua inglesa
Sumário
Exercícios
Introdução
Nesta unidade, vai ter a opotunidade de aprender os aspectos
relacionados ao nascimento da literatura angolana.
Exercícios
Introdução
Estudar uma literatura implica analisar a progressão temporal do
cultivo de uma língua com fins estéticos e culturais, bem como o
modo de encarar essa progressão, através de perspectivas críticas e
metodológicas que a condicionam. Na presente unidade vamos
importa-te essencilamente estudar à periodização da literatura
angolana.
Exercícios
Introdução
Castro Soromenho desempenha um papel fundamental para a
literatura angola sobretudo por reiniciar uma actividade que se
perdera, por algum tempo. Desta vez, sobre carris neo-relistas
aborda temas sociais , repressão, abusos de administração do
homem angolano, etc, que se encontram em sua obra célebre –
trilogia de Camaxilo. Nesta unidade importa-te como Soromenho
abarca todos os níveis daquela sociedade, brancos, mestiços e
negros.
Exercícios
Introdução
A emergência e o desenvolvimento de literaturas de povos
colonizados dependem de dois factores: “das etapas de
consciencialização nacional e da asserção de serem diferentes,
como temos vindo a dizer. Na primeira etapa, a literatura produzida
na colónia é escrita pelos próprios colonizadores. Na segunda, é
escrita pelos nativos mas apresenta uma total dependência em
relação ao modelo literário dopaís colonizador, e na terceira, há a
ruptura com o modelo literário e com a dependência cultural do
país colonizador. Na sequência desta divisão, vamos aqui falar da
primeira e segunda etapas correspondendo a 1849 a 1948 (1.º a 3.º
períodos da literatura angolana)6
6
Cf. Periodização angolana, Unidade 15
Centro de Ensino à Distância 68
Década de 50
O MNIA e a CEI foram responsáveis pelas principais publicações
poéticas na década de 50. A CEI desempenhou papel de primordial
importância na divulgação dos autores angolanos silenciados
pelabarreira da censura e contribuiu de forma decisiva para chamar
Centro de Ensino à Distância 69
Exercícios
Introdução
Como acontece com os outros países, a literatura de Angola
também não nasce por método espontâneo. Vários são os
antecedentes e os precursores que influenciam sobremaneira o
carácter social, cultural e estético da literatura e da poesia, em
particular. E não podemos nunca descurar, como factor de grande
influência, a tradição da oralidade em África, um dos antecedentes
de maior responsabilidade. É importante que nesta unidade
conheças o contexto sócio-cultual do surgimento da revista
Mensagem.
A partir dos anos 80, surge uma nova geração de escritores cujo
ecletismo é a característica mais marcante. Digna de nota é uma
pequena antologia publicada em 1988, e intitulada no Caminho
Doloroso das Coisas. Na introdução, o organizador da antologia
deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova
poesia angolana vai tomando: "São jovens, mas dentre eles há
poetas que são artistas nos seus versos como carpinteiros nas
tábuas.
Exercícios
Introdução
Um nome que não se pode esquecer na literatura de Angola é o de
Agostinho. Homem que não se deixou ultrapassar pela história de
Angola. Aliás, para além do enovolvimento físico, mostra através
da sua obra o poder de representar uma realidade social e rácica de
Angola. Por esta razão, importa-te nesta unidade estudar com
profundidade a obra deste valioso homem para a literatura
angolana.
Poesia
Escreveu em:
1957 Quatro Poemas de Agostinho Neto, Póvoa do
Varzim, e.a.
1961 Poemas, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império
1974 Sagrada Esperança, Lisboa, Sá da Costa (inclui os
poemas dos dois primeiros livros)
1982 A Renúncia Impossível, Luanda, INALD (edição
póstuma)
Obras principais:
Sagrada esperança, poemas escritos aproximadamente entre o ano
de 1945 e o de 1960. Texto épico da angolanidade. Comparado em
valor aos Lusíadas. É a fase exortativa do povo angolano à
conquista da sua identidade e independência.
Exercícios
Introdução
Desaparecida Mensagem, os escritores angolanos buscam outros
meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura
II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem. É à
volta deste assunto que na presente unidade pretendemos que
conheças as circuntâncias fizeram com que a Mensagem
desapareça.
Exercícios
Introdução
Luandino Vieira é profundo conhecedor da língua portuguesa dita
formal (e literária) e, por isso, conhecendo também a oratura
angolana, com suas tradições e maneira de falar do povo, foi capaz
de unir brilhantemente a concepção europeia de literatura à tradição
dos contos orais africanos. Também soube transformar em arte a
linguagem falada pelos luandinos, consequência do encontro de
culturas de colonizadores e colonizados. É este o motivo que nos
faz pensar em ti, estudante da Língua Portuguesa, e, ao mesmo
convidar-te para adquires um conhecimento sobre a re/criação que
Luandino, a estilo de Mia Couto, faz da língua.
Livros:
A cidade e a infância (1960)
Duas histórias de pequenos burgueses (1961)
A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974)
Vidas novas (1975)
Velhas estórias (1974)
No antigamente, na vida (1974)
Nós, os do Makulusu (1975)
Centro de Ensino à Distância 82
Macandumba (1978)
João Vêncio: os seus amores (1979)
Lourentinho, Dona Antonia de Sousa Neto & eu (1981).
Enquadra-e na geração da Cultura (anos 50), e da Mensagem
(1951-52).
faz: “Logo Jacó abriu a asa e pôs um barulho que parecia riso de
pessoa, antes de falar.”
Porém, as próprias personagens do conto, mesmo que às vezes por
alguns motivos pensem na humanidade do papagaio, não aceitam o
bicho como ser pensante: “Verdade é que os monas lhe xingavam
de ouvir o papagaio, mas quem ensinou foi a Inácia, ela é quem
inventou. Papagaio não pensa, só fala o que ouve, o que estão lhe
dizer.”
Caso Exemplo
Variação pronominal tu/você na mesma oração “Então, você,
menino, não tens mas é vergonha?” p.8“Você és bandido, não é?”
p. 40“Você pensa que eu não te conheço, Bina? Oensas?” p. 102.
Repetição de palavras numa mesma oração ou período (também
pode ser um recurso literário) “As pessoas que estão a morar
lá dizem é o Sambizanga, a polícia que anda patrulhar lá, quer já é
lixeira mesmo.” P. 39
Omissão da preposição a entre verbos de ligação e de ação (no
Brasil, o fenômeno não ocorre, já que a forma verbal utilizada é o
gerúndio) “É a galinha, está falar conversa dela” (está a falar =
está falando). P. 107“Se eu fico dormir…” (se eu fico a dormir =
fico dormindo). P. 40
Objetos antepostos ao sujeito (trata-se de um fenômeno muito
comum no discurso oral, inclusive no português brasileiro)
“O ovo foi meu milho que lhe fez, pápulas!” p. 103 (Em
lugar de “foi meu milho que lhe fez o ovo”.)
Luuanda é riquíssima em presença de discurso oral (o próprio título
tem Luanda escrito com dois UU, procurando reproduzir a maneira
de o povo pronunciar o nome da cidade). Não é possível neste
trabalho enumerar todas as ocorrências dessa oralidade na literatura
e na obra analisada.
Exercícios
Introdução
Em geral, os poetas da "Geração de 70" escrevem textos que
reflectem uma situação de intensificação da repressão e da censura
colonial, assistidas no "ghetto", que dificultava a circulação dos
mesmos. Através de um discurso caracterizado pelo rigor e pela
concisão das palavras, discurso mais implícito do que explícito, por
força da censura, esses textos, com tiragens muito reduzidas,
reflectiam, então, a esperança de uma vitória certa, capaz de
conduzir Angola à liberdade.
eles te levavam
eles te levaram
na noite encoberta eles te levaram
irmãos te chorarm
irmãos te choraram
no lodo do rio irmãos te choraram
armas te velaram
armas te velaram
na manhã nascida armas te velaram
Poema da pági. nº 2, in «Caderno de um guerrilheiro», 1974
Exercícios
Introdução
Yaka
" A ideia do Yaka nasce em Benguela em 1975, estávamos
numa "espera " nocturna do inimigo e eu disse que tinha
que escrever um livro que aproveitasse o privilégio que eu
tive de ter nascido de uma família colonial, numa cidade
colonial, de ter lutado contra esse sistema colonial e de
estar na minha cidade natal quanto termina o
colonialismo...Foi aí que nasceu a ideia e a partir daí eu
juntei todos os textos sobre Benguela e sobre a região
centro sul, quando saí do governo, uma semana depois
comecei a escrever o livro, a dois de janeiro de 1983. Tive
que escrever o livro de pé. "Eu estava completamente preso
à história quando escrevi o Yaka"- Pepetela.
Conteúdo em Mayombe
Quanto ao conteúdo de Mayombe em Mayombe temos o traço
filosófico do homem como indivíduo e o seu comportamento como
guerrilheiro. É a história do guerrilheiro, da guerrilheira, mas
sempre dos indivíduos nas suas ideias.
Pepetela joga, nesta obra com outro tipo de legados, os culturais.
Veja-se a dedicatória do livro: a ogum o prometeu africano - Ogum
é Yoruba e foi para o Brasil na rota dos escravos, em Angola não é
conhecido. É com estes diversos legados culturais que o autor joga.
Mayombe é uma grande epopeia, a épica dos guerrilheiros.
Relembra alguns escritores franceses que escreveram sobre a
guerrilha da Indochina, especialmente " A condição Humana" de
André Malraux.
Mayombe é a primeira obra angolana que dessacraliza os heróis.
"É uma obra também contra o dogmatismo, o Sem-Medo era um
Anarquista, não podia ser mas de facto era. A obra tem já uma série
de advertências sobre o partido único mas a grande contribuição do
Sem-Medo foi a da religião na política." - Pepetela
Exercícios
Introdução
O ano de 1975 representa as independências dos países africanos de
língua portuguesa (exceto Guiné-Bissau, que já era independente
desde 1973). A literatura nestes países, no período anterior à
independência, representava armas de denúncia do oprimido ao
modelo colonizador, fazendo política e filosoficamente, através da
escrita, o terreno para a revolução. Abordava a relação colonizador
/ colonizado que enfrentava.
Exercícios
Bibliográfia
Anexo
Nós Matamos o Cão-Tinhoso
O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram
enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho.
Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir
qualquer coisa sem querer dizer.
Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do
pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor
Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a
andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.
O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu
gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o
Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo
a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e
dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.
Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães
a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo
do rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas
foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas
e as orelhas espetadas de curiosidade.
Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-
Tinhoso. Depois zangavam-se e punham- se a ladrar, mas como ele não dissesse
nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar
debaixo do rabo uns aos outros e a correr.
Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e
avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as
orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o que
ele queria, teve medo e parou no meio da estrada.
Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar a
olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com
eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e
avançou devagar até onde estava o Cão- Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver e
nem se mexeu mando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente. O
Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi a
correr e disse qualquer coisa aos outros — o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a
Mimosa e o Luiu — e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-
Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles zangaram-
se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então que ele recuou
com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com o rabo todo enfiado.
Quando passou por mim ouvi-o a chiar com a boca fechada e vi-lhe os olhos azuis,
cheios de lágrimas e tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa
sem querer dizer. Mas ele nem olhou para mim e foi pela sombra do pátio da
Escola, sempre com a cabeça a fazer balanço como os bois e a andar como uma
carroça velha, para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor.
Os outros cães ainda ficaram um bocado a ladrar para o portão da Escola, todos
zangados, mas voltaram para o capim do outro lado da estrada para continuar a
Centro de Ensino à Distância 101
correr, a rebolar, a fingir que se mordiam uns aos outros, a correr, a correr e a
cheirar debaixo do rabo uns dos outros.
De vez em quando o Bobí olhava para o portão da Escola e, lembrando-se do Cão-
Tinhoso, punha-se a ladrar outra vez. Os outros, ao ouvi-lo, deixavam de brincar e
punham-se também a ladrar, muito zangados, para o portão da Escola.
A Isaura não brincava com as outras meninas e era a mais velha da segunda classe.
A Senhora Professora zangava-se por ela não saber nada e dar erros na cópia, e
Centro de Ensino à Distância 102
dizia-lhe que só não lhe dava reguadas porque sabia que ela não tinha tudo lá
dentro da cabeça.
Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nada e a gente dizia — «Não se
ouve nada, não se ouve nada» —, e a Senhora Professora dizia que os meninos da
quarta classe não tinham nada que ouvir. Então os meninos da segunda classe
começavam a dizer: «Não se ouve nada, não se ouve nada». A Senhora Professora
zangava-se e fazia uma bronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as outras
meninas faziam uma roda com a Isaura no meio e punham-se a dançar e a cantar:
«Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinhoso, Isaura-Cão-Tinhoso,
Cão-Tinhoso, Tinhoso». A Isaura parecia que não ouvia e ficava com aquela cara
de parva, a olhar para todos os lados à procura de não sei quê, como dizia a
Senhora Professora.
Houve um dia em que falei com a Isaura. Foi assim:
Estava sentado nas escadas da Escola, mesmo em frente ao portão, a comer o
lanche. Era o intervalo do lanche. A Senhora Professora estava a ler um livro e
passeava pela varanda, indo até uma ponta, virando-se e vindo para a outra. Como
ela passava por mim (ouvia os sapatos, cóc, cóc, cóc, no chão) eu estava para
saber se me havia de levantar ou não quando ela passava, porque era chato
levantar-me todas as vezes que ela passava por mim. De resto, era mesmo capaz
de estar a pensar que eu não dava por ela, por estar de costas para o sítio por onde
passeava, e não me perguntar depois, na aula, se os meus pais não me davam
educação.
Eu estava a pensar nisso e a comer o lanche, quando vi que a Isaura andava à
procura do Cão-Tinhoso. Depois foi lá para fora e espreitou a rua toda. Como não
visse o Cão- Tinhoso, ficou no portão a olhar para todos os lados até que me viu.
Ficou uma quantidade de tempo a olhar para mim e, depois, veio até às escadas, a
andar devagarinho e de lado, subiu-as, e quando chegou perto de mim voltou-se
para uma coluna e pôs-se lá a riscar qualquer coisa, muito distraída. Perguntou-me
como se estivesse a falar com outra pessoa que eu não via:
— Viste o meu cão? Heim? Viste?
Como eu não desse nenhuma resposta, porque era a primeira vez que ela falava
comigo, insistiu:
— Não passou lá para fora?...
Nisto, o Cão-Tinhoso apareceu no portão. Parou um bocado, e depois, em vez de
ir para as camas de poeira das galinhas do Senhor Professor, veio para as escadas.
Eu disse:
— Está ali.
A Isaura voltou-se logo:
— Aonde? Ah! Meu cãozinho... Tinhas ido passear?
A Senhora Professora parou mesmo atrás de mim (ouvi o cóc, cóc, cóc dela a vir e
um cóc mais forte mesmo atrás de mim. De resto, senti o perfume dela em cima de
mim).
A Isaura tinha corrido logo, escadas abaixo, a agarrar-se ao Cão-Tinhoso, quando
a Senhora Professora disse:
— Ó menina, que pouca vergonha é essa? Vai já lavar as mãos!
Eu estava ainda a pensar para saber se me havia de levantar ou não, porque ouvia-
a mesmo por sobre as minhas costas, embora não a estivesse a ver.
Centro de Ensino à Distância 103
suplente era o que eles diziam quando não queriam que eu jogasse, mas eu não
disse nada e fui para a varanda do clube. O Cão-Tinhoso estava lá.
O Senhor Administrador e os outros estavam na varanda do Clube, a jogar à sueca
como também era hábito todos os sábados à tarde. Eu estava a olhar para o Senhor
Administrador quando ele e o parceiro levaram um capote e ele disse ao Doutor da
Veterinária, que se estava a rir todo satisfeito, por lhe ter dado o capote: «Não
acho graça nenhuma... Isso foi leiteira»... Depois olhou para mim e viu que eu
também me estava a rir. Olhou para o Cão-Tinhoso e viu-o também a rir-se. Por
isso zangou-se e perguntou aos outros: «Eh! Quem é que disse que isto não era a
Arca de Noé?».
Depois continuaram a jogar à sueca e o Senhor Administrador e o parceiro
levaram uma limpa-quatro-bolas. Eu estava a olhar para ele quando ele disse ao
Doutor da Veterinária que se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas:
«Mas qual é a piada, porra? Com os trunfos todos na mão quem é que não fazia o
que vocês fizeram? Olha filho, toma! Toma! Chupa!... Eu chamo-lhe leiteira...».
Depois olhou para mim e zangou-se. Ele sabia que eu sabia que ele estava a
perder. Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso sem saber com qual de nós os dois
havia de correr primeiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu para nós os
dois, isto é, para um sítio entre nós os dois. Está-se mesmo a ver que o cuspo tanto
era para mim como para o Cão-Tinhoso.
O Doutor da Veterinária ainda se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas
e ele acabou com aquilo de uma vez:
— Ouve lá, o que é que este cão está a fazer ainda vivo? Está tão podre que é um
nojo, caramba! Bolas para isto! Ai que eu tenho de me meter em todos os lados
para pôr muita coisa em ordem...
O Senhor Chefe dos Correios, que era o parceiro do Senhor Administrador, já
estava a dar as cartas nessa altura, e por isso ficaram todos a ver quantos trunfos é
que lhes haviam de sair. Eu fiquei um momento a olhar para aquilo tudo até
compreender o que o Senhor Administrador queria dizer: — O Cão-Tinhoso vai
morrer! Olhei para ele: estava a dormir com a cabeça entre as patas, muito
descansado da vida.
Fui a correr para o campo de futebol para avisar a malta: «O Cão-Tinhoso vai
morrer». — O Gulamo disse-me: «Fora daqui!». — Agarrei-me a ele e voltei a
dizer-lhe que o Cão-Tinhoso ia morrer: «Larga-me». Ele só dizia isso. — «Larga-
me». Mas estava quieto.
Ficamos os dois a ver uma avançada do grupo do Quim. O Faruk, que era o ponta
direita deles, foi com a bola até ao canto, depois de ter batido o Narotamo em
corrida, e de lá centrou. O Quim passou por nós a correr para a baliza, mas o
Gulamo só dizia: «Larga-me». O Quim meteu o golo com uma cabeçada. O
Gulamo foi logo a correr: «Este golo não valeu porque este tipo estava a agarrar-
me». O Quim e os outros não quiseram saber: «Isso é que vale, estás a ouvir?».
Depois o Gulamo veio ter comigo:
— Ó filho da mãe, suca daqui para fora e não voltes a chatear, estás a ouvir? Suca
daqui antes que eu te rebente o focinho!
Bem, como o Gulamo dizia aquilo muito zangado eu fui-me embora para fora do
campo, mas fiquei chateado porque os outros não queriam saber do Cão-Tinhoso.
Quando ia já a sair do campo, o Telmo correu para mim e pôs-se a bater-me na
cabeça e a gritar:
— Só, só, só mais um! Só, só, só mais um!...
Centro de Ensino à Distância 105
rapazes, vocês pegam aí numa corda qualquer, procuram lá o cão e levam-no para
o mato sem grandes alaridos e aí ferram-lhe uns tiritos nos cornos, que tal?... Está
bem, está bem, calma, deixem-me acabar de falar...
O Quim bateu-me na boca:
— Deixa ouvir o Senhor Duarte, caramba!
— Olhem, vocês, eu sei que vocês andam por aí aos tiros às rolas e aos coelhos,
olhem que eu sei... Mas deixem lá que eu não levo a mal, malta é malta, isto é
assim mesmo, eu só não quero é que façam as coisas à minha frente porque tenho
responsabilidades, vocês sabem. Ora vocês já têm armas e por isso não tenho de
vos emprestar as Ponto 22 daqui da Repartição, aliás uma chega, mas se vocês
quiserem fazer tiro ao alvo, eu não tenho nada com isso... Mas, pst, sem fazer um
cagaçal que se oiça aqui na vila!... Pronto, rapazes, ide, ido divertir-vos um
pedaço, mas cuidado lá com as armas, hem? Nada de desatar a ferrar tiros nos
cornos uns dos outros...
A malta pôs-se logo a correr, e o Senhor Duarte teve de se pôr de pé ao alto do
muro da Veterinária para nos chamar de novo. Depois esperou que chegássemos
bem ao pé dele para nos olhar bem na cara antes de falar com os olhos outra vez
quase fechados por causa do fumo do cigarro:
— Oiçam, rapazes, eu estou a falar entre homens, porra! Isto escusa de ser
propalado por aí aos quatro ventos, estão a ouvir? Eu só quis dar um prazer à
malta porque sei que vocês gostam de dar uns tiritos de vez em quando e eu não
levo a mal. ...Sim, sei que vocês gostam de dar por aí uns tiritos às rolas e aos
coelhos, mesmo sem terem licença de uso o porte de arma, para não falar na
licença de caça, e vocês sabem que se são apanhados por mim ou por um fiscal de
caça, chupam uns meses de prisão que se lixam. Mas deixa lá que eu não levo a
mal nem digo a ninguém que vocês usam as armas dos vossos pais ilegalmente.
Eu só quero que não me façam essas coisas mesmo debaixo do nariz, porque tenho
responsabilidades, vocês sabem. Eu não levo isso a mal, porque conheço bem a
malta, mas isto não é para ser espalhado por aí, vocês não acham?
De resto isto nem tinha de ser dito, porque estou a falar entre homens...
— Fique descansado. Senhor Duarte...
Foi o Quim.
— Pronto, rapazes, ide divertir-vos, mas pouco alarido...
O Sá, da varanda da loja, fazia-nos sinais para lhe irmos contar o que o Senhor
Duarte nos tinha dito, mas nós nem olhámos para lá. Fomos logo para a escola, e
no canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor lá estava o Cão-
Tinhoso a dormir. Quando nos viu, levantou-se e veio por ali fora a cobrejar, todo
cansado, com as patas a tremer. Olhou para todos nós com os olhos azuis, sem
saber que nós queríamos matá-lo e veio encostar-se às minhas pernas. Depois de
estar um bocado assim encostado, deixou escorregar o traseiro e sentou-se. Eu
senti-o a tremer como não sei o quê, enquanto os outros combinavam, e via os
meus sapatos a brilhar onde ele os lambia.
— Ouve lá, tu deixas esse cão todo podre que é um nojo encostar-se a ti? — O
Faruk estava
sempre a meter-se comigo, mas o Quim queria combinar as coisas e não queria
ouvir o que ele dizia:
— Deixa lá, é preto e basta, deixa lá... Bem, malta, o cão não sai daqui e a gente
vai cada um para a sua casa buscar as armas e depois levamo-lo para a mata atrás
do matadouro e damos cabo dele, óquêi?
— Como é que o levamos? Eu é que não o levo às costas...
Centro de Ensino à Distância 108
— Ó pá, vocês ajudem-me, — era o Faruk — venha outro tipo puxar o sacana do
cão...
— Ó pá, mas a gente mandou uma moeda ao ar e ficaste tu...
— Então mandem outra vez...
Só eu é que respondi:
— Eu estou com medo — custou-me dizer aquilo porque mais ninguém estava
com medo, mas foi melhor assim — Eu estou com medo, Quim...
Apesar de já estar quase escuro eu via os meus sapatos a brilhar nos sítios onde o
Cão-Tinhoso os lambia. Mesmo com o capim e tudo. O Quim e a outra malta
riam-se com força e o Gulamo rebolava no capim de tanto se rir por eu ter medo.
— Esta é forte, malta — dizia o Quim, com a boca toda aberta com os olhos a
chorar de tanto rir.
— Esta é que foi — dizia o Gulamo que nem se via por estar a rebolar no capim.
Os outros riam-se muito, também.
Parece que eu tive muita vergonha por ter dito aquilo.
Voltei a sentir um peso monstro dentro de mim e no pescoço.
Eu não me mexia para os outros não se rirem mais de mim, mas as pernas
tremiam-me por causa do Cão-Tinhoso, a tremer encostado a elas.
— Esta é forte! — O Quim berrava outra vez.
— Esta é forte! O Gulamo dizia isto enquanto rebolava no capim de tanto se rir de
mim. — Esta é forte...
Os outros, às vezes calavam-se, e só o Quim é que se ria sempre, sempre e cada
vez com mais força. Os outros ouviam-no quando se calavam e voltavam a rir-se
com força como ele. E riam-se, riam-se, riam-se enquanto o peso no meu pescoço
e cá dentro aumentava cada vez mais. Parece que nunca mais acabavam de se rir, e
eu com aquilo só tinha vontade de chorar ou de fugir com o Cão-Tinhoso, mas
também tinha medo de voltar a sentir a corda a tremer de tão esticada, com o chiar
dos ossos a querer fugir da minha mão, e com os latidos que saíam a chiar,
afogados na boca fechada como ainda há bocado. Sim, eu nunca mais queria
voltar a sentir isso.
O Quim estava de novo em cima da pedra mas ainda se ria de vez em quando e
dizia esta é forte, esta é forte.
O Gulamo estava ajoelhado, sentado sobre os calcanhares e com a camisa limpava
a cara das lágrimas que saltaram dos olhos de tanto se rir de mim por eu ter medo
e também dizia esta é forte, esta é forte.
Os outros já não se riam mas de vez em quando concordavam com o Quim e com
o Gulamo nisso de esta é forte, esta é forte.
Já estava quase escuro e o Quim, do alto da pedra, disse para a malta:
— Eh, malta, agora é que vai ser: Eh! Toucinho, desata a corda!
Mas eu não era capaz de me mexer, todo envergonhado e com o pescoço a doer
como não sei o quê.
— Eh, malta, vocês nunca me viram a matar um preto?
— O Quim aproximou-se de mim: «Eh, Toucinho, desata a corda!»
O Gulamo aproximou-se também. «Eh, Toucinho, desata a corda».
O nó estava feito de tal maneira que custava a desatar, e eu não tinha força
nenhuma nos dedos. Tinha vontade de chorar ou fugir com o cão e tudo.
— Anda lá, senão rebentamos contigo, preto de um raio!
— Anda lá com isso, caramba, — agora era o Faruk — anda lá com isso, preto de
um raio!...
No pescoço, as feridas do Cão-Tinhoso já não tinham crosta por causa da corda,
mas só saía delas uma aguadilha vermelha que me molhava as mãos.
— Anda lá, não tentes ser besta,Toucinho!
Quando acabei de desapertar o nó, agarrei a corda com força para ela não cair e
continuei a mexer no pescoço do cão, mesmo com os olhos fechados.
Centro de Ensino à Distância 112
— Vamos deixar isto para outro dia, pá... Damos cabo do cão amanhã ou
outro dia...
Calou-se mas continuou logo:
— E que já está quase escuro e podíamos ferir alguém sem querer, no escuro com
tantas
espingardas...
— Quim, eu não quero dar o primeiro tiro... (Eles queriam que eu desse o primeiro
tiro).
— Anda lá, anda lá, não tenhas medo...
— Sabes, Quim, é que eu não quero matar o Cão-Tinhoso... O meu pai é
capaz de me bater quando souber... eu não quero, não...
— Vamos, pá. Eu disse-te que só davas o primeiro tiro, e é só isso o que vais
fazer.
— E que, sabes, pá... O meu pai lá em casa... Eu vou-me embora, ele está à minha
espera... Se chego tarde, ele bate-me... Bate-me, Quim, da outra vez bateu-me...
Centro de Ensino à Distância 113
— Vamos, vamos, deixa-te dessas coisas, não sejas medroso... Já viram isto,
malta, um de nós a borrar-se todo por causa do cão... E que eu não sei porque é
que este tipo anda connosco se não é macho de verdade... Já viram?
— Eu não me estou a borrar todo, Quim, eu só não quero dar o primeiro tiro... E
que eu sou um bocado amigo do cão e é chato ser eu a dar o primeiro tiro...
— Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não és macho, como a gente...
Maricas! Não tens vergonha? Dá lá o tiro, anda...
— Merda para ti, caramba! — Era o Gulamo — Preto de merda!
— Dispara, pá, não sejas medroso... Até parece que é a primeira vez que agarra
numa arma...
— Quim, eu não quero dar o primeiro tiro...
— Se continuas assim a gente depois conta lá na escola que tu tiveste medo de
matar o cão, que começaste com cagufas... A gente vai dizer que te borraste todo...
A gente vai contar isso, palavra que vai contar...
— Quim, eu não tenho cagufa nem nada, não tenho medo de matar o cão... É só
porque o meu pai está à espera lá em casa...
— Se em vez de estares aí a falar tivesses dado o tiro, já estaríamos despachados.
Anda lá, não sejas medroso!
— Medroso, me-dro-so! me-dro-so!
— Eu não sou medroso! Já disse, não sou medroso!
— És, és, és... Atira se não és! Atira!
— Atiro, sim, e depois? Eu mando já um tiro no sacana do cão...
— Isso é que é falar!... O Quim abraçou-me.
Eu tinha a arma apontada mas o Cão-Tinhoso fartava-se de dançar no ponto de
mira. O Quim não saía do meu lado:
— Não atires a matar, estás a ouvir? Mas se quiseres, podes atirar... Sabes, é só
porque tu estavas todo cheio de cagufa e era preciso mostrar à malta que não és
maricas. E por isso que tu és o gajo que vai dar o primeiro tiro... Eu se fosse a ti
atirava a matar e despachava o gajo logo... Não há azar nenhum nisso, foi o
Senhor Duarte que mandou... E assim poupavas o trabalho à malta. E que um tipo
chega para matar o cão, e escusávamos de encher o gajo de chumbo, que isso é
ser maldoso e se o Padreca souber disso é capaz de andar para aí a dizer que nós
somos ordinários. Sabes, Ginho... Eu acho que o Doutor da Veterinária devia ter
liquidado o sacana do cão com uma droga qualquer... Eu li numa revista que na
América os cães matam-se com drogas... Sim, lá na América, quando um Doutor
da Veterinária quer matar um cão que anda lá nas ruas cheio de feridas que é um
nojo, dá-lhe uma droga qualquer... Só para mostrar ao Doutor que ele não percebe
nada disto a malta devia não matar o cão... Não era por medo nem por nada, mas
era para o gajo ver... Ginho, não achas que devia ser assim? Não, não achas?
Hem?
— O Quim, pá, não podes conversar mais tarde com esse tipo? — Era o Gulamo.
— Sabes, pá... Eu estava a dizer aqui ao Ginho uma coisa bestial!.,. Não era,
Ginho? E uma coisa que a malta devia fazer, não era Ginho?
— Está bem, está bem, contas isso depois, agora vai para o teu lugar e deixa o tipo
dar o primeiro tiro para a malta atirar também... Ou será que o gajo voltou a ficar
com medo de atirar?
— Eu não estou com medo, já disse! — Eu virei-me para o Gulamo — Eu atiro
já...
— Está bem, está bem, eu só queria saber... Vamos, Quim, vai para o teu lugar...
Ou também estás com medo?
Centro de Ensino à Distância 114
O Quim riu-se como se aquilo fosse uma piada e foi com a arma dele para cima da
pedra. Quando lá chegou, gritou para mim:
— Então, atiras ou não?
A minha Ponto 22 de Um Tiro (a que estava com o Faruk) estava com um peso
danado, e por isso o Cão-Tinhoso fartava-se de dançar no ponto de mira. Só os
olhos dele é que não se mexiam nada e olhavam sempre para mim. Comecei a
puxar o gatilho muito devagar.
«Desculpa-me, Cão-Tinhoso, mas não vou atirar a matar»... Eu disse aquilo muito
baixinho, e só o Cão-Tinhoso é que ouvia. Eu só havia de dar o primeiro tiro
porque a malta queria que fosse eu, mas não havia de matar o Cão-Tinhoso! «E
que eu tenho medo, eu tenho medo, Cão-Tinhoso, mas eu vou atirar para a malta
não dizer que eu tenho cagufa».
Depois vi que afinal não estava a puxar o gatilho, porque tinha o dedo no guarda-
mato. Comecei a puxar o gatilho devagar para ter tempo de dizer tudo ao Cão-
Tinhoso: «Eu não tenho outro remédio, Cão-Tinhoso, eu tenho de atirar... Eu estou
cheio de medo, desculpa, Cão-Tinhoso... Deixa-me atirar e não me olhes dessa
maneira... Eu estou é com medo, estás a ouvir?... Estou com medo!... Se pudesse,
fugia e levava-te comigo. E depois tratava-te e nunca mais aparecias pela vila com
essas feridas que é um nojo, mas o Quim...»
A folga do gatilho acabou de repente e o peso da mola era tal, que o Cão-Tinhoso
dançava ainda mais sob o ponto de mira da minha arma. Tive de fechar os olhos e
era por causa dos olhos do Cão-Tinhoso, que estavam parados e olhavam para
mim muito quietos, mesmo quando ele dançava no ponto de mira.
— Vamos, pá, atira lá que nós estamos à espera de ti; mostra que és teso e que
podes continuar com a malta!...
A mola ia cedendo aos poucos e cada vez estava mais pesada. A tensão iria
aumentar até o cão saltar e perfurar a bala. Então não haveria mais resistência e o
gatilho viria até ao fim, com o estoire do cartucho na câmara e o ligeiro coice da
coronha. Tinha de falar mais depressa para acabar de dizer tudo antes do estoire, e
não podia abrir os olhos senão veria os olhos do Cão-Tinhoso e não seria capaz de
atirar.
«Não vais sofrer nada, porque o Quim meteu na Calibre 12 mais um cartucho SG,
e os outros também vão atirar ao mesmo tempo. Não te vai doer, tu ainda estás a
pensar em qualquer coisa e já estás morto e não sentes mais nada, nem as feridas a
doer por causa da corda nem nada...»
— Porra, atiras ou não, preto de merda?
«Tu morres e vais para o Céu, direitinho ao Céu... Vais gozar lá no Céu... Mas
antes disso eu hei-de enterrar o teu corpo e hei-de pôr uma cruz branca... E tu vais
para o limbo...
Sim, antes de ires para o Céu, vais para o limbo, como uma criança pequena...
Estás a ouvir, Cão-Tinhoso?»
A Senhora Professora perguntou se os nossos pais não nos davam educação lá em
casa e nós nunca mais falámos sobre o Cão-Tinhoso, mesmo quando estávamos no
Sá.
Logo depois do esteiro ouvi um grito monstro e nada mais. O meu tiro devia ter
mgoado muito o Cão-Tinhoso para ele gritar como uma pessoa. Fiquei sem saber
o que havia de fazer porque logo depois, o Cão-Tinhoso começou a gemer como
uma criança.
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Fui afastando as mãos da cara e depois abri os olhos. A Isaura estava agarrada ao
Cão-Tinhoso e era ela quem estava a gemer, mas não sei se não teria sido mesmo
o Cão-Tinhoso quem gritara ainda há bocado. A malta estava toda de boca aberta
a olhar para aquilo e só se ouvia a Isaura a gemer muito alto e a olhar para todos
os lados com os olhos todos saídos e muito agarrada ao Cão-Tinhoso.
O Quim foi o primeiro a falar:
— O que é que esta tipa veio para aqui fazer?
O Gulamo também tinha a voz rouca:
— Se calhar foram os pretos do Costa que lhe disseram...
Os muleques do Costa estavam por detrás da malta, disfarçados no escuro dos
troncos das árvores, e com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos todos saídos.
Todos eles iam dizendo «Hi!» e «He!», a olhar para a malta. O capataz dos
moleques do Costa escondeu-se ainda mais no tronco de uma micaia e falou com
os braços a voar para todos os lados:
—A nós não tem curpa! Ele que veio pruguntar, e gente veio com ele para ver
jimininu cum cão! A nós não tem curpa, só veio ver matar cão! Não tem curpa!...
— Ah, negros cabrões! — O Quim apontou-lhes a Calibre 12 de Dois Canos.
— Num mata nós, num tira, patrão... Hi! — e desapareceram todos com um
cagaçal medonho pelas micaias, a gritar «HÍ!» e «Hi!».
O Quim virou-se para a Isaura, que estava meio escondida no capim e com os
olhos todos de fora, a olhar para a malta e a gemer:
— Ó tipinha, não te disseram que nós não queremos fêmea a esta hora? O que é
que
vieste para aqui fazer? Não queremos gajas a atrapalhar o que nos mandaram
fazer, ouviste?
A Isaura não dizia nada e só gemia para a malta.
Ficou tudo calado por um instante e a malta a olhar uns para os outros, sem saber
o que fazer.
— Eh, malta, temos de matar o cão... Foi o Senhor Duarte quem mandou... Ele
disse que contava connosco... — O Quim já não estava rouco. — Estamos aqui a
demorar isto não sei porquê...
— Quem é que está com cagaço? Quem é que se borra nas calças?...
— Eu não!...
— Eu não!...
— Eu não!...
Toda a malta disse eu não e ficaram a olhar para mim a ver o que eu dizia.
— Eu não estou com cagaço, Quim... Eu não me vou borrar nas calças, Quim... —
Eu estava a tremer todo quando disse aquilo, mas garanto que não estava com
medo nem nada. Então a gente não tinha vindo para matar o cão que andava todo
podre que era um nojo? Foi o Senhor Duarte que disse, e porque é que não
havíamos de dar uns tirites? Eu estava era com pena de o matar depois de ele
correr uma distância monstra para não morrer por causa da bomba atómica e mais
nada.
— Ginho, tira a gaja de cima do cão!
O Quim falava sem olhar para mim.
O Faruk veio buscar a Ponto 22 de Um Tiro, que me tinha caído das mãos quando
disparei, e voltou para o lugar dele.
— Então, Ginho, estás com cagaço ou quê?
—Não, Quim, não estou com cagaço, nem nada... Estou só a pensar...
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— Pensas depois. Agora vai tirar a gaja do cão. — O Quim falava sem olhar para
mim, só a malta é que não tirava os olhos de cima de mim, para ver se eu tinha
cagaço ou não.
— Anda lá depressa, que já está escuro... O Senhor Duarte disse para
despacharmos o cão num instante...
A Isaura gemia e olhava para a malta com os olhos todos de fora. Fui andando
para onde a Isaura e o Cão-Tinhoso estavam, e ela, quando me via a ir para lá,
gemia cada vez mais de alto.
— Isaura, sai daí...
— Tira a gaja, não vês que ela não quer sair?...
— Isaura... A gente quer fazer o que nos mandaram fazer... Sai daí...
— Mas que burro que ele é!... Arranca a tipa, não ouves?
Agarrei-a por debaixo dos braços e ela sacudiu-se toda para que eu a deixasse. Fiz
mais força mas ela dobrava as pernas e não ficava de pé. Mas já não lutava como
no princípio e só gritava como se eu lhe estivesse a bater.
— Isaura, não vês que foi o Senhor Duarte que mandou?
— O Xangai também queria explicar aquilo à Isaura.
Puxei-a devagarinho e ela largou o pescoço do Cão--Tínhoso, que ficou a olhar
para ela e a ganir com a boca fechada como ainda há pouco.
— Isaura...
aos sábados à tarde, para o Quim a contar coisas na loja do Sá, para a Isaura a dar-
lhe o lanche e a falar com ele, sempre quando olhava, estava a pedir qualquer
coisa que eu não entendia mas que não devia ser só para lhe tratarem as feridas,
para lhe darem de comer ou para lhe fazerem uma casinha.
— TRÊS!
Ficou tudo parado e até a Isaura calou-se e ficou dura.
— Atirem, porra!
— Isaura... — Eu queria dizer-te qualquer coisa, queria dizer-te tudo o que estava
a pensar.
— ... E depois meti dois as e mandei-os quase ao mes-mo tempo para os cornos
do gajo. O tipo deve ter ficado com a cabeça toda rebentada...
— Ó pá, tu com o SG mataste-o logo... A gente atirou para um alvo já
morto...
— E depois? O que é que tens com isso?... Eu atiro com o que bem me apetece...
A Isaura gemia para mim e chorava baixinho, sem lhe saírem lágrimas dos olhos.
O cabelo dela estava cheio de capim mas só cheirava à pólvora quando se me
metia pelo
nariz adentro.
— Isaura...
A barriga dela ficou dura, toda colada à minha.
— Vamos embora...
As unhas dela furavam-me o pescoço, mas eu gostava e não me mexia.
— Isaura...
A cara dela estava quente como a barriga.
— Eu só gostava de saber o que é que aqueles dois estão para ali a fazer
escondidos no capim há uma data de tempo...
— Foi o Quim.
A Isaura levantou-se logo e pôs-se a compor o vestido, toda envergonhada. Depois
olhou para mim e fugiu para as árvores. Durante algum tempo ainda ouvimos o
barulho do vestido dela a rasgar-se pelas micaias, mas depois ficou tudo em
silêncio.
— Vamos embora!...
O Quim veio ter comigo no intervalo do lanche. Eu vi que era ele mesmo sem
deixar de olhar para os cães a brincar do outro lado da estrada.
— Ginho...
—Diz.
— Isto é uma chatice...
—É...
Sentou-se nas escadas ao pé do mim e ficou também a olhar para os cães.
— Eles não queriam brincar com o Cão-Tínhoso — apontava para eles — eles não
queriam brincar com o Cão-Tinhoso !...
Falava com muita força e espalhava os braços para todos os lados. — Foste tu que
me contaste isso, não foste?...
Os sapatos da Senhora Professora faziam «cóc, cóc, cóc», atrás de nós, mas como
eu estava a conversar com o Quim e a olhar para outra coisa, não precisava de me
levantar.
— Sabes?... A Isaura foi dizer ao pai que nós...
— O quê?
— Ela pediu ao pai para nos bater...
— Bater?... Porquê?
— Porque nós matamos, o Cão-Tinhoso !...
E ria-se com força, todo torcido. — Não é tramada? E esta, heim?... Bater-nos
porque nós matamos o Cão-Tinhoso !...
Depois calou-se. Aí falou a Senhora Professora:
— Meninos, para a aula!
— Ginho... Tu passas-me a prova? — O Quim abraçou-me pelos ombros. —
Deixas-me
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copiar?...
— Está bem.
— Ginho... Tu estás zangado comigo? A gente não devia ter liquidado o cão?...
Foi o Senhor Duarte que mandou... Tu também estavas lá...
— Eu não estou zangado nem nada...
— Então passas-me os problemas?... Passas-me?.,. Eu faço-te o desenho...
— Está bem.
— Meninos! Para a aula! Para a aula, já disse!
E fomos para a aula.
3. O espaço
3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.
3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).
4. O tempo
4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no
tempo (quer o histórico, quer o cronológico).
5. A acção
5.1Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua
escolha.
5.2O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou
encaixe? Justifique.
6. O Narrador
6.1. Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.
4. O tempo
4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no
tempo (quer o histórico, quer o cronológico).
5. A acção
5.1. Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua
escolha.
5.2. O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou
encaixe? Justifique.
6. O Narrador
6.1. Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.
7. Modos de Expressão
7.1. Retire do texto exemplos de: • narração • descrição • diálogo • monólogo
interior
8. Indique o tema do conto de Luís Bernardo Honwana. Justifique a sua opção.
9. O que entende por parábola?
9.1. Poderá este conto ser considerado uma parábola? Justifique.
10. Imagine um final diferente para o conto.
11. A linguagem
11.1. Retire do texto palavras próprias do vocabulário moçambicano
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