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Produção do Português Escrito

Departamento de Linguística Geral e Românica


2023-24
Especificidades da escrita
● A oralidade e a escrita são modalidades da língua que decorrem de condições de produção
e receção distintas.

→ Quando falamos de oralidade e de escrita, falamos de comunicação humana. E a comunicação é


um fenómeno complexo que não depende apenas de um elemento, seja ele o emissor, o recetor
ou o meio.

Modelo comunicacional de Shannon & Weaver 1949


● A escrita não é simplesmente uma representação da oralidade. Apresenta
características próprias no que diz respeito ao seu funcionamento e à forma como é
produzida e compreendida.

● Nas situações prototípicas, a oralidade e a escrita possuem princípios de funcionamento


claramente distintos. No entanto, estes dois modos de uso da língua não devem ser
sempre considerados em termos dicotómicos.

Os diversos tipos de práticas de produção textual e interação oral situam-se ao longo de
um continuum, que tem como extremos, por um lado, a escrita formal planeada e, por
outro lado, a conversação espontânea e coloquial.
A consciencialização das especificidades da escrita e das propriedades que estão
tipicamente associadas a esta modalidade da língua nos diferentes contextos poderá
constituir um contributo para o desenvolvimento da competência escrita.

→ Um escritor com maior conhecimento explícito é um escritor mais bem preparado. A escrita é uma
técnica e uma arte como qualquer outra.

Uma reflexão acerca destas propriedades poderá influenciar as nossas opções ao nível da
escolha linguística (seleção lexical, seleção de estruturas sintáticas) e da construção textual
(organização e estruturação da informação).

→ Diferentes tipos de texto implicam diferentes processos de escrita, incluindo diferentes escolhas de
estruturas.
Observação:

Não abordaremos a questão das línguas gestuais e do processo de


aprendizagem da escrita pelos indivíduos surdos que usam estas
línguas. Esta questão tem contornos específicos e implica uma
referência a fenómenos de bilinguismo e à distinção entre língua
materna e língua segunda, que saem do âmbito desta unidade
curricular.
1. O conhecimento da escrita como resultado de aprendizagem formal

A compreensão e a produção de discurso oral resultam, fundamentalmente, de um


processo espontâneo de aquisição linguística.

Todas as sociedades humanas possuem uma língua oral.


→ A língua é, portanto, uma componente essencial da nossa espécie – e de qualquer sociedade.

Todos os indivíduos (excluindo situações patológicas), desde que haja imersão linguística,
adquirem e usam uma língua oral. Fazem-no espontânea ou inconscientemente: é um
processo natural por defeito.


A oralidade é o modo primário da língua.

“É a oralidade, e não a escrita, que nos fornece toda a informação necessária para a
execução da descrição gramatical.” (Duarte 2000:379) → Concorda?
O conhecimento da escrita não resulta unicamente do desenvolvimento do indivíduo e da
sua inserção numa comunidade, mas implica um ensino formal.

Não existe escrita em algumas sociedades humanas


(→ línguas ágrafas vs línguas gráficas).

A escrita é recente na história humana. E a alfabetização generalizada da população ainda


mais.
Muitos falantes (sem situações patológicas) de línguas com sistema de escrita não sabem
usar a escrita.


A escrita é um modo secundário da língua.
“(…) só uma parte diminuta das línguas faladas do Mundo tem
representação escrita (muitas só a têm muito recentemente); todas
as línguas foram faladas muito antes de serem escritas; todos os
seres humanos (não afetados por patologia específica) possuem a
capacidade de falar a sua língua materna, mas só uma parte da
humanidade – a que foi sujeita à experiência cultural da
escolarização – tem acesso à leitura e à escrita.” (Silva et al. 2011:
11. Destaque meu.)
Resultando exclusivamente de um processo de aprendizagem propositada e explícita, a
competência escrita pode ser melhorada através do treino e do desenvolvimento de uma
consciência explícita

do funcionamento da língua
e
das especificidades que caracterizam esse modo de uso da língua em diferentes
contextos

Um escritor com conhecimento explícito, com intenção e com domínio formal da técnica é
um escritor mais eficiente. Tal como em outro qualquer ofício, tal como em qualquer outra
arte ou ciência.
2. Natureza regulamentável da escrita

A língua oral muda naturalmente (em termos sincrónicos e em termos diacrónicos) por
intervenção espontânea dos próprios falantes, o que permite um grau elevado de variação
linguística (sincrónica e diacrónica) e a torna dinâmica.

A escrita é menos dinâmica, já que está sujeita a convenções ortográficas.

As convenções ortográficas são fixadas e alteradas por legislação, sendo impostas aos
falantes e usadas da mesma forma por todos eles.

A escrita restringe o máximo possível a variação sincrónica.
Por pressupor a utilização de convenções ortográficas comuns, a escrita:

● não permite, por defeito, captar fenómenos de variação regional de natureza


fonética presentes na oralidade.

Ex: <vinho>: [‘viɲu] / [‘iɲu]


<leite>: [‘lɐjti] / [‘leti]
<carro>: [‘kaRu] / [‘karu]
● não permite, por defeito, captar fenómenos de variação individual ou contextual de
natureza fonética (por exemplo, relacionados com a velocidade de elocução ou com o
contexto).

Ex:

<casas pretas>
[ʃ]

<casas brancas>
[ʒ]

<casas azuis>
[z]
● implica memorização das formas gráficas

Apesar de o alfabeto latino ter uma natureza fonética, a relação entre grafemas e sons
não é biunívoca, o que faz com que a escrita não represente fielmente a oralidade:

→ um grafema pode representar diferentes sons


(ex: sapato – asa – lápis; zumbido – feliz; arte – lima)

→ um som pode ser representado por diferentes grafemas


(ex: luz – carro; feliz – chá – casas; carro – rosa)
Cap. 1463 de A língua portuguesa é muito difícil
3. Planeamento

Tipicamente, considera-se que a escrita tem um grau de planeamento superior ao da


oralidade.

No entanto, existem diferentes graus de planeamento quer na oralidade quer na escrita,


dependendo das condições concretas de produção.

Ex.:

Oral menos planeado: conversa espontânea


Oral mais planeado: aula; conferência; discurso

Escrita menos planeada: bilhete escrito rapidamente; mensagem de telefone


Escrita mais planeada: texto para publicação; texto para avaliação
4. Formalidade

A escrita é frequentemente associada a um maior grau de formalidade do que a oralidade,


o que influencia as escolhas dos falantes a vários níveis: seleção lexical, construção sintática,
formas de tratamento, etc.

No entanto, o grau de formalidade é variável em ambas as modalidades da língua, uma


vez que depende das características da situação de escrita.

Ex.:

Oral menos formal: conversa entre amigos


Oral mais formal: aula; conferência; discurso

Escrita menos formal: mensagem a um amigo


Escrita mais formal: artigo para publicação; mensagem a alguém que não conhecemos/a
uma instituição/a um superior hierárquico
5. Coesão

Tipicamente (embora dependendo do grau de planeamento), o discurso oral


apresenta descontinuidades, sobreposições, hesitações, reformulações, falsos
começos, inserções, repetições, paráfrases.

Note-se, no entanto, que o discurso oral tem as suas especificidades e deve ser
avaliado como tal. Por exemplo, os aspetos referidos resultam, muitas vezes, de
estratégias usadas pelos falantes e cumprem certas funções pragmáticas ou
cognitivas.
Por exemplo:

“● ganhar tempo para o planejamento ou para a compreensão por parte do interlocutor


(pausas, hesitações, repetições);
● apresentar esclarecimentos, exemplificações, atenuações do que foi dito, reforçá-lo,
etc. (inserções, repetições, parafraseamentos), entre outras.
Assim sendo, o texto falado não é absolutamente caótico, desestruturado, rudimentar. Ao
contrário, ele tem uma estruturação que lhe é própria, ditada pelas circunstâncias
sociocognitivas de sua produção, e é à luz desta que deve ser descrito e avaliado.”
(Koch & Elias, 2009: 18)
Devido às condições que tipicamente estão presentes na sua produção – acima de tudo
o maior tempo disponível para tanto leitor como escritor processarem a informação –, o
texto escrito tende a ser mais organizado.

Não se encontram normalmente na escrita as descontinuidades características da


oralidade.

Um texto escrito é, idealmente, um objeto coeso, sendo diversos os elementos que


contribuem para a coesão textual:
coesão lexical
coesão estrutural (frásica e interfrásica)
coesão referencial
6. Aspetos lexicais e gramaticais predominantemente associados à escrita

Embora seja difícil encontrar fenómenos gramaticais exclusivos de uma das modalidades da
língua, é possível chegar a algumas generalizações:

● A língua escrita apresenta, normalmente, uma maior variação lexical do que a língua
oral, recorrendo mais frequentemente a vocabulário erudito ou culto.

● Na oralidade, predominam frases simples e curtas, enquanto a escrita se caracteriza, em


termos gerais, por uma maior frequência de estruturas mais longas e complexas.

● Na oralidade, existe uma predominância de sequências unidas por conexões paratáticas


(coordenação sindética ou assindética: justaposição e intercalação). Por sua vez, na escrita,
encontram-se mais frequentemente conexões hipotáticas (subordinação).
→ Exemplo:
Apesar de ter perdido o comboio, o Pedro não chegou atrasado à aula, de modo que não
terá de pedir apontamentos aos colegas.

O Pedro perdeu o comboio, mas não chegou atrasado à aula e não vai ter de pedir
apontamentos aos colegas.

O Pedro perdeu o comboio. Não chegou atrasado à aula, não vai ter de pedir
apontamentos aos colegas.

O Pedro perdeu o comboio (mandou-me mensagem). Não chegou atrasado à aula, não
vai ter de pedir apontamentos aos colegas.
Construa dois textos, um que represente a língua escrita e outro que represente a
língua oral, que transmitam essencialmente a mesma mensagem com estratégias
lexicais e sintáticas (e outras, se assim o desejar) diferentes.

Ex.:

Existem argumentos científicos que podem ser contrapostos à tese que defende
que a Humanidade tem vindo a causar um período climático de aquecimento
global no planeta Terra.

Acho que dizerem que o aquecimento global é por culpa do ser humano é uma
treta. Quer dizer, não faz sentido nenhum.
7. Frequência de conectores

Certos conectores são típicos do discurso oral, sendo usados, muitas vezes, de forma
repetida.
Ex: então, depois, e, portanto, etc.

Na escrita (sobretudo na escrita mais planeada), é mais frequente o uso de conectores,


de forma a explicitar os diferentes nexos que se estabelecem entre os fragmentos do
discurso (causalidade, consequência, exemplificação, enumeração, contradição, reforço,
etc.).

A presença de conectores contribui para a clareza do texto.


8. Clareza do texto

A natureza tipicamente diferida e não presencial da comunicação através da escrita torna


necessária uma maior preocupação com a clareza (que estará igualmente presente em
situações de oralidade se a comunicação for também diferida).

Uma das formas de garantir a clareza do texto consiste em evitar a ambiguidade.

A ambiguidade pode decorrer de diferentes fatores:


ambiguidade lexical
ambiguidade estrutural
ambiguidade referencial
● Ambiguidade lexical:

Resulta da ocorrência de palavras polissémicas ou de palavras que mantêm uma relação


de homonímia com outras.

Ex:
O Pedro adora os caracóis da Maria.
O Pedro estragou a manga.

A presença, no texto, de elementos contextuais que permitam determinar o significado


pretendido é fundamental para a interpretação adequada de palavras polissémicas ou de
palavras homónimas de outras.
● Ambiguidade estrutural:

Resulta da possibilidade de se atribuir mais do que uma estrutura sintática a uma


expressão ou a uma frase, o que dá origem a mais do que uma interpretação.

Ex:
O Pedro ouviu o barulho da janela.
O Pedro comprou dois ramos de cravos enormes para oferecer aos amigos.

A ambiguidade das expressões pode ser desfeita de duas formas principais: (i) por
elementos contextuais que, estando presentes no texto, assegurem a interpretação
adequada por parte do leitor; (ii) pela alteração da ordem das palavras.
● Ambiguidade referencial:

Resulta de diferentes relações referenciais que se podem estabelecer entre expressões


que ocorrem numa frase ou em diferentes frases ao longo do texto.

Ex:
O Pedroi pediu à Mariaj para [-]i/j ligar a televisão.
O Pedroi disse à Mariaj que os seusi/j livros já chegaram.

A Anai foi cedo para a Faculdade. Ao chegar, encontrou a Mariaj e ficaram a conversar.
Acabaram por se atrasar e tiveram de faltar à primeira aula. Elai/j ficou muito
contrariada.

Tal como na ambiguidade lexical, a presença de elementos contextuais é fulcral para que a
possibilidade de mais do que uma interpretação seja anulada.
Mas:
A ambiguidade pode estar intencionalmente presente em certos textos. Ex: textos
humorísticos, textos publicitários

(http://ginasiocoreau.blogspot.pt/2013/11/ambiguidade-em-generos-textuais-do.html=)
(https://www.pinterest.com/dandaracagliari/tirinhas-e-charges/)
Mesmo com ar-condicionado de série, vamos abafar!
(frase publicitária de um anúncio de uma marca de automóveis)

O seu destino depende das suas escolhas.


(frase publicitária de um anúncio de uma companhia aérea)
A ambiguidade é um recurso que todas as línguas utilizam
9. Escrita e pontuação

O uso de sinais de pontuação é uma característica específica da escrita – e as regras que


utilizamos hoje são muito recentes.

Os sinais de pontuação não têm uma função meramente prosódica. Servem muitas vezes
para marcar a presença de certas construções sintáticas, que estão na origem de
interpretações específicas.

Ex:
Os rapazes irritados saíram da sala.
Os rapazes, irritados, saíram da sala.

As cadeiras que são de madeira não pertencem a esta sala.


As cadeiras, que são de madeira, não pertencem a esta sala.

Todos os frutos que têm cor vermelha são ricos em substâncias antioxidantes.
*Todos os frutos, que têm cor vermelha, são ricos em substâncias antioxidantes.
Embora a vírgula seja muitas vezes associada a fatores prosódicos (entoação, pausas), os
dados de oralidade mostram que não há equivalência plena entre ruturas prosódicas e
pontos da frase em que devem ser colocadas vírgulas.

Ex:
Quantos pais / não tentam constantemente / cumprir as já velhas teorias / que
defendem o diálogo, / em substituição da sevícia / ou do castigo, / e se angustiam /
quando a mão lhes foge, / pesada, / em direcção aos filhos?/
(Dados de Viana, M. C., L. C. Oliveira & A. I. Mata (2002). Fraseamento Prosódico: uma Experiência de Avaliação. Actas
do XVII Encontro Nacional da APL. Lisboa: APL.)
Assim, o uso adequado dos sinais de pontuação implica o conhecimento de
um conjunto de regras, muitas delas estabelecidas com base em aspetos
sintáticos.

Trata-se de mais um exemplo de como a escrita implica uma aprendizagem


formal e sistemática, divergindo, por isso, da espontaneidade, do
automatismo que caracterizam a aprendizagem da oralidade.
Por outro lado, o não domínio das
regras de pontuação nem sempre
impede o correto entendimento do
texto. Por isso podemos ler textos mal
escritos sem grande dificuldade.

→ O nosso uso da língua é flexível,


pragmático, plenamente apontado
ao que, no final de contas, está em
causa: a comunicação. Se a
mensagem passa, tendemos a não
complicar.
Concluindo:

• A oralidade e a escrita são duas modalidades da língua que possuem características de


produção e receção próprias.

• No entanto, não devem ser encaradas de forma puramente dicotómica. Para além das
situações prototípicas, existem diversos tipos de práticas de produção textual, que se
situam ao longo de um continuum.

• A competência da escrita pode ser melhorada através do treino e do desenvolvimento de


uma consciência explícita quer das suas especificidades quer de aspetos relacionados
com o funcionamento da língua e com a organização textual.
Referências bibliográficas:

Duarte, I. (2000). Língua Portuguesa – Instrumentos de análise. Lisboa: Universidade


Aberta.

Silva, F., F. Viegas, I. M. Duarte & J. Veloso (2011). Oral – Guia de Implementação do
Programa. Ministério da Educação. Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento
Curricular.

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