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O “PROBLEMA” DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE


DEMANDAS REPETITIVAS

Luiz Guilherme Marinoni

Resumo: O presente artigo analisa o incidente Stare Decisis. Collateral Estoppel. Right to be
de resolução de demandas repetitivas e o heard.
sistema de recursos extraordinário e especial
repetitivos em face do significados de Sumário: 1. Introdução; 2. Incidente de
precedente e collateral estoppel, bem como resolução de demandas repetitivas; 2.1
do direito de influir sobre o convencimento Meio processual para resolução de litígios de
do juiz. Propõe alternativas para a correção da que derivam casos em massa e sistema de
falta de participação dos terceiros no incidente precedentes das Cortes Supremas: decisão
e no recurso especial em que os seus casos são erga omnes e precedente; 2.2 Coisa julgada
resolvidos. sobre questão; 2.3 Non-mutual collateral
Palavras-Chave: Incidente de resolução de estoppel. A possibilidade de o terceiro alegar a
demandas repetitivas. Recursos extraordinário proibição de rediscutir a questão já decidida no
e especial repetitivos. Precedente. direito estadunidense; 2.4 Violação do direito
Collateral estoppel. Direito constitucional ao constitucional de participar em contraditório;
contraditório. 2.5.Solução para a preservação da técnica
processual; 3. Recursos extraordinário e
Abstract: The present article analyzes the especial repetitivos; 3.1 Compreensão dos
“incident of repetitive actions” and the system recursos extraordinário e especial repetitivos
of repetitive appeal regarding meanings of enquanto meios que viabilizam a elaboração
stare decisis and collateral estoppel, as well as de precedentes; 3.2 Direito ao recurso especial
the right to be heard. It proposes alternatives to e necessidade de enfatizar o contraditório;
correct the lack of participation in the incident 3.3 Amicus curiae e compensação da não
and in the appeal where cases are resolved. participação dos recorrentes; 4. Conclusão.
Keywords: “Incident of repetitive actions”.

Luiz Guilherme Marinoni

Professor Titular da Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutorado na


Università degli Studi di Milano. Visiting Scholar na Columbia University. Diretor
do Instituto Iberoamericano de Direito Processual. Membro do Conselho da
International Association of Procedural Law. Advogado

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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1. Introdução 2. Incidente de resolução de demandas


repetitivas
O Código de Processo Civil de 2015, 2.1 Meio processual para resolução de litígios
de que derivam casos em massa e sistema de
ao instituir o incidente de resolução de
precedentes das Cortes Supremas: decisão
demandas repetitivas e o sistema de recursos
erga omnes e precedente
extraordinário e especial repetitivos, buscou
otimizar a resolução de “casos idênticos”, O incidente de resolução de demandas
mas, com isso, restringiu a possibilidade de repetitivas se destina a regular casos que
participação dos litigantes na discussão das já surgiram ou podem surgir em face de
determinado litígio. O sistema de precedentes,
questões submetidas aos tribunais e às Cortes
de outro lado, tem o objetivo de outorgar
Supremas.
autoridade às rationes decidendi firmadas pelas
Raciocinou-se a partir da premissa de Cortes Supremas. Diversos casos, marcados por
que o incidente e os recursos repetitivos dão diferenças razoáveis, podem ser resolvidos por
origem a “precedentes” e, mais do que isso, um precedente que resolve uma questão de
que tais decisões não diferem dos precedentes direito. Mas as decisões firmadas nos incidentes
de resolução de demandas repetitivas não têm
que, nas Cortes Supremas, caracterizam-se
qualquer preocupação em orientar a sociedade
por rationes decidendi que colaboram para
ou a solução de casos futuros, porém objetivam
o desenvolvimento do direito1. Também não regular uma questão litigiosa que está presente
se percebeu que o recurso especial – ao em vários casos pendentes. O incidente de
contrário do recurso extraordinário baseado resolução é uma técnica processual destinada
em repercussão geral – ainda constitui direito a criar uma solução para a questão replicada
nas múltiplas ações pendentes. Bem por isso,
subjetivo do litigante.
como é obvio, a decisão proferida no incidente
De modo que se torna imprescindível
de resolução de demandas repetivas apenas
analisar a relação entre tais institutos e o resolve casos idênticos. Essa a distinção básica
direito de influir sobre o convencimento do entre o sistema de precedentes das Cortes
juiz, verificando-se, inclusive, os modos de Supremas e o incidente destinado a dar solução
correção da falta de participação dos terceiros a uma questão litigiosa de que podem provir
múltiplos casos.
no incidente e no recurso especial em que os
A circunstância de o incidente de
seus casos são resolvidos.
resolução tratar de “casos idênticos” tem clara
repercussão sobre o raciocínio que dá origem à
decisão judicial. Essa decisão obviamente não é
elaborada a partir da regra da universabilidade,
1 MARINONI, Luiz Guilherme, Julgamento nas ou seja, da regra que determina que um
Cortes Supremas, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
precedente deve ser aplicável ao maior número
2015.

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de espécies possíveis de casos2. A decisão de base na confiança que nele foi depositada. De
resolução de demandas repetitivas objetiva acordo com o código, a decisão proferida no
regular uma só questão infiltrada em casos que incidente de resolução de demandas pode ser
se repetem ou se multiplicam. revista em face de “casos futuros” (arts. 985, II e
É claro que a técnica da distinção não 986, CPC/2015), o que obviamente não a torna
tem a mesma relevância em se se tratando revogável como se fosse um precedente, que,
de resolução de demandas repetitivas. como se sabe, sempre está sujeito a aplicação
Nesses casos, caberá a distinção apenas para limitada ou extensiva e também a revogação
demonstrar que determinado caso é diferente com base em critérios bastante particulares.
daquele que foi já resolvido ou submetido ao Isso ocorre porque tais “casos futuros” nada
incidente. Mas aí jamais se utilizará a técnica têm a ver com casos que podem ser regulados
da distinção para limitar ou ampliar o alcance pela mesma norma de direito, mas constituem
do precedente em razão de circunstância não apenas os casos que, relacionados à questão
considerada no momento da sua elaboração. já decidida, são posteriormente apresentados
Isso só pode ocorrer quando o precedente ao Judiciário. De modo que a possibilidade
revela o direito que é racionalmente aplicável de revisão quer somente dizer que os novos
a determinada situação concreta, o qual, assim, ligantes estão autorizados a discutir a questão
pode não ser aplicável em face de certa situação já decidida.
ou ser racionalmente aplicável diante de outra.
Ademais, um precedente pode ser revogado, 2.2 Coisa julgada sobre questão
daí importando as situações que surgiram com
Portanto, é impossível confundir decisão que
resolve demandas repetitivas com precedente
2 A universabilidade, ou seja, a necessidade de que que atribui sentido ao direito e, nessa condição,
um argumento de validez deuma conclusão seja capaz de
deve ser respeitado. A decisão do incidente
sustentar igual resultado diante de narrativas análogas,
constitui regra de racionalidade do discurso prático, aplica-se em todos os processos pendentes
de que o discurso jurídico é apenas um caso especial.
que versem sobre idêntica questão de direito
Ninguém deve invocar um motivo para justificar uma
ação sabendo que não poderá utilizá-lo para justificar (art. 985, I, CPC/2015), vale dizer, impede que
ações similares, assim como ninguém pode invocar
os litigantes destes processos voltem a discutir
razão diversa para deixar de praticar ação com o mesmo
conteúdo. Diante da impossibilidade de se ter uma a questão resolvida. De modo que a única
interpretação ou uma decisão substancialmente correta
dificuldade está em esclarecer o que significa
e da consciência de que a tarefa das Cortes Supremas
é outorgar sentido ao direito mediante as “razões proibir rediscutir questão já decidida.
apropriadas” ou as “melhores razões”, a universabilidade
Como é possível chamar a decisão que, ditada
constitui critério de correção da racionalidade da
decisão, pois permite ver que as razões que a justificaram no processo de um para os casos de muitos,
a decisão não são “apropriadas” nem as “melhores”,
impede-os de relitigar a questão resolvida,
na medida em que inaplicáveis a casos similares, isto
é, a casos que deveriam ser solucionados mediante as submetendo-os? Perceba-se que a decisão
mesmas razões. V. MACCORMICK, Neil. Rhetoric and
tomada no referido incidente constitui uma
the Rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 1995.
p. 131 e ss.; PEREIRA, Paula Pessoa, Legitimidade dos nítida proibição de litigar a questão já decidida,
precedentes, São Paulo: Ed. RT, 2015.
que, nos casos de decisão negativa àqueles que

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não puderam participar e discutir, assemelha-se 2.3 Non-mutual collateral estoppel. A


a um inusitado e ilegítimo collateral estoppel. possibilidade de o terceiro alegar a proibição
Assim, tratando-se de decisão tomada de rediscutir a questão já decidida no direito
em incidente de resolução de demandas estadunidense
repetitivas, há, embora não dito, coisa julgada
sobre a questão presente nos vários casos Interessa lembrar que a proibição
repetitivos. É claro que aqui não incide a de relitigar questão já decidida surgiu no
premissa de que a coisa julgada recai apenas direito inglês e, posteriormente, foi bastante
sobre a parte dispositiva da decisão. A coisa desenvolvida no direito estadunidense. Apenas
julgada está a tornar indiscutível uma questão mais tarde foi vista como útil por alguns
imprescindível para se chegar ao alcance do doutrinadores da europa continental3. O que
resolução do caso, ou melhor, à resolução dos se chama de collateral estoppel no common
vários casos pendentes. law é, em substância, o que se denomina de
Note-se que o novo código não limita a coisa julgada sobre questões no civil law. Mas a
coisa julgada à parte dispositiva, mas admite a lembrança da origem do instituto é importante
para se demonstrar que o collateral estoppel
sua incidência sobre a questão, afirmando em
é um instituto que, antes de mais nada, está
seu art. 503, § 1o que a coisa julgada “aplica-
preocupado em preservar a autoridade da
se à resolução de questão prejudicial, decidida
decisão. Como é óbvio, poder rediscutir a
expressa e incidentemente no processo, se: questão que está à base do dispositivo da
i - dessa resolução depender o julgamento decisão implica em poder obscurecer a sua
do mérito; ii - a seu respeito tiver havido essência, fragilizando-se significativamente a
contraditório prévio e efetivo, não se aplicando sua autoridade.
no caso de revelia; iii - o juízo tiver competência Contudo, se a proibição de voltar a
em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la discutir questão determinante do resultado
faz parte de orientação presente há muito
como questão principal”. No caso de resolução
no common law, só mais recentemente, em
de demandas repetitivas, a questão é pinçada
meados do século XX, surgiu no Estados Unidos a
dos casos pendentes e submetida a expressa
discussão a respeito de a proibição da discussão
decisão do órgão julgador incumbido do da questão decidida poder ser invocada por
incidente. É óbvio que a resolução única da terceiro que não participou do processo. Essa
questão incidente nos casos repetitivos nada discussão foi iniciada no célebre caso Bernhard
mais é do que uma decisão que produz coisa v. Bank of America National Trust and Savings
julgada sobre a questão que interessa a todos
os litigantes dos processos pendentes. Significa
que se está diante de coisa julgada que se
3 Assim, por exemplo, Michele Taruffo, “Collateral
estende a terceiros. estoppel” e giudicato sulle questioni, Rivista di diritto
processuale, 1972, p. 290 e ss. Mais recentemente, ver
VOLPINO, Diego. L’oggetto del giudicato nell’esperienza
americana. Padova: Cedam, 2007.

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Association, decidido pela Suprema Corte o collateral estoppel passou a ser designado
da Califórnia no início dos anos 404. Porém, de non-mutual collateral estoppel exatamente
a Suprema Corte estadunidense tratou pela para evidenciar a possibilidade de terceiro
primeira vez do assunto apenas em 1971, em poder invocar a proibição de rediscussão contra
Blonder-Tongue Laboratories Inc. v. University aquele que participou7.
of Illinois Foundation. Em Blonder-Tongue, a Não obstante, o non-mutual collateral
University of Illinois Foundation alegou violação estoppel foi pensado inicialmente em
da sua patente. Porém, a Foundation já alegara, perspectiva defensiva e, apenas posteriormente,
em ação anterior em que litigou com outra enquanto offensive collateral estoppel.Blonder-
parte, que a sua patente teria sido infringida, Tongue é um caso típico de defensive collateral
quando declarou-se a invalidade da patente. estoppel, já que Blonder-Tongue se defende
Diante disso, a Suprema Corte não teve dúvida contra a alegação de infrigência da patente da
em declarar que a Foundation estava proibida Foundation sob o argumento de que esta não
de rediscutir a validade da patente, uma vez pode voltar a discutir a questão, uma vez que a
que tinha tido “full and fair opportunity” de invalidade da patente foi declarada em processo
discuti-la na ação anterior, ainda que diante de em que a Foundation, ainda que litigando com
outro litigante5. outra parte, teve “full and fair opportunity” de
Deixe-se claro, porém, que tanto em participação. Mas existem vários casos em que
Bernhard quanto em Blonder-Tongue, firmaram- terceiro invoca a proibição de rediscussão para
se os seguintes requisitos para a admissão da obter condenação daquele que, num primeiro
proibição de rediscussão: i) a questão que se processo, foi responsabilizado e condenado
pretende discutir deve ser idêntica (the issue a pagar indenização em virtude do acidente
is identical) àquela que já foi discutida; ii) deve que também o vitimou. Fala-se, nesse caso, de
ter ocorrido julgamento final de mérito (a final offensive collateral estoppel8.
judgments on the merits) na ação anterior; iii) Nos casos de offensive collateral
o litigante que se pretende proibir de discutir estoppel, tornou-se necessário frisar que
a questão deve não só ter sido parte na ação o collateral estoppel só pode beneficiar
anterior, mas nela deve ter tido ampla e justa terceiro, mas jamais prejudicar. Se existem
oportunidade de participar6. Nessas condições, mil prejudicados, a derrota da empresa
dita responsável na primeira ação a torna
responsável perante os demais novecentos e

4 SCOTT, Austin Wakeman, Collateral Estoppel by


judgment. Harvard Law Review.Vol. 56. 1942; CURRIE,
Brainerd, Mutuality of Collateral Estoppel: Limits of the
Bernherd doctrine. Stanford Law Review. Vol. 9. 1957. Review. Vol. 30. 1988.
5 NONKES, Steven P, Reducing the unfair effects 7 PEREA, Ashley C., Broad discretion: a choise
of nonmutual issue preclusion through damages limits. in applying offensive non-mutual collateral estoppel,
Cornell Law Review. Vol. 94. 2009; GLOW, Lisa L., Arizona State Law Journal, Vol. 40. 2008.
Offensive Collateral Estoppel in Arizona: Fair Litigation v. 8 SEGAL, Joshua M. D., Rebalancing fairness and
Judicial Economy. Arizona Law Review. Vol. 30. 1988. efficiency: The offensive use of collateral estoppel in §
6 GLOW, Lisa L., Offensive Collateral Estoppel in 1983 actions. Boston University Law Review. Vol. 89.
Arizona: Fair Litigation v. Judicial Economy. Arizona Law 2009.

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noventa e nove prejudicados. Porém, todos os consequências muito importantes para o nosso
prejudicados conservam o seu direito de propor direito, especialmente para a sobrevivência do
ação ainda que dezenas de decisões já tenham incidente de resolução de demandas repetitivas:
sido favoráveis à empresa dita responsável.A i) o collateral estoppel proibe a rediscussão de
última situação abriu oportunidade para questão já decidida; ii) o non-mutual collateral
teorizações no direito estadunidense9. Quando estoppel permite que terceiro invoque a
alguém pode ser responsabilizado diante de proibição de discussão de questão já decidida
muitos em virtude de uma decisão negativa, desde que a questão posta no novo processo seja
mas nenhuma vantagem tem em face dos idêntica, tenha sido julgada mediante sentença
demais ao obter uma decisão positiva, surge final de mérito, e que aquele que se pretende
aos membros do grupo inúmeras chances - a dar proibir de discutir tenha adequadamente
origem a diversas estratégias - para a obtenção participado do primeiro processo; iii) os
de decisão favorável, ao passo que aquele que terceiros, quando a decisão não os beneficia,
pode ser responsabilizado assume uma pesada sempre conservam o direito de propor as suas
posição, considerando-se a necessidade de o ações sem qualquer limitação de dicussão; iv)
procedimento e a técnica processual tratar as o eventual responsável, exatamente por não
partes de modo equilibrado. poder proibir a rediscussão ainda que tenha
Para resolver este problema, são obtido decisão favorável, tem a alternativa de
apresentadas várias alternativas10. Entre convocar aqueles que podem responsabilizá-lo
elas, argumenta-se que a parte que pode para demandá-lo em conjunto, impedindo-se,
ser afrontada por muitos pode requerer a assim, a sobrevida de um grande número de
chamada de todos para participar da primeira chances para a obtenção de decisão que possa
ação proposta. Mas, se não há chamamento favorecer a todo o grupo.
por desídia do sujeito dito responsável, esse
continua sujeito a tantas demandas quantos 2.4 Violação do direito constitucional de
forem os prejudicados, sempre sujeitando-se participar em contraditório
aos efeitos da questão preclusa ou da proibição
de relitigar. Já é possível ser mais preciso. O
Do problema e da discussão levada a efeito incidente de resolução de demandas repetitivas
no direito estadunidense11 retiram-se tem o objetivo de solucionar uma questão que
é prejudicial à solução dos casos pendentes.
Essa questão deve ser, por imposição do
9 RICHARDSON, Eli J., Taking issue with preclusion: próprio Código de Processo Civil, uma questão
reinventing Collateral Estoppel. Mississipi Law Journal.
idêntica. De modo que não há como pensar que
Vol. 65. 1995; NONKES, Steven P, Reducing the unfair
effects of nonmutual issue preclusion through damages a decisão proferida no incidente não resolve
limits. Cornell Law Review. Vol. 94. 2009.
a mesma questão que prejudica a solução de
10 NONKES, Steven P, Reducing the unfair effects
of nonmutual issue preclusion through damages limits. todo os casos pendentes.
Cornell Law Review. Vol. 94. 2009. Ora, se a decisão que resolve o incidente
11 FREEDMAN, Warren, Res Judicata and Collateral
de resolução de demandas repetitivas resolve
Estoppel, Westport: Quorum, 1988.

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uma questão que interessa a muitos, tal teve “full and fair opportunity to be heard”12.
decisão não tem qualquer diferença daquela O fato de se dar ao demandado oportunidade
que, em ação individual, resolve questão que para rever a decisão quando algo indica que a
posteriormente não pode ser rediscutida. Essa sua participação foi indevidamente restringida
última decisão também resolve questão que (collateral estoppel) ou mesmo em virtude de
pode constituir prejudicial ao julgamento dos um critério temporal (incidente de resolução) é
casos de muitos. Sucede que, como não poderia algo completamente distante do problema que
ser de outra forma, a decisão proferida no aqui importa: ninguém pode ser prejudicado
caso de um apenas pode beneficiar terceiros, por decisão proferida em processo de que não
nunca prejudicá-los (art. 506, CPC/2015). Ou participou.
melhor, a decisão proferida no caso de um, O Código de Processo Civil, ao regular o
assim como a decisão proferida no incidente incidente de resolução de demandas repetitivas,
de resolução, não pode retirar o direito de não prevê a necessidade da presença de
discutir a questão daquele que não participou. um ente legitimado à tutela dos direitos dos
O contrário constituiria grosseira violação do litigantes presentes nos casos pendentes. Ao
direito fundamental de participar do processo contrário, afirma-se apenas que “o pedido
e de influenciar o juiz. de instauração do incidente será dirigido ao
Lembre-se que a mesma advertência presidente de tribunal: i) pelo juiz ou relator,
feita pela Suprema Corte estadunidense para por ofício; ii) pelas partes, por petição; iii) pelo
legitimar o non-mutual collateral estoppel se Ministério Público ou pela Defensoria Pública,
impõe em face do incidente de resolução de por petição”. (art. 977, CPC/2015). Dar ao juiz
demandas repetitivas. Isso porque uma decisão ou ao relator poder para instaurar incidente de
só pode prejudicar alguém que pôde participar resolução de demanda repetitiva é dar ao Estado
do processo. Afinal, todos têm o direito de falar o poder de sobrepor a otimização da solução
ao juiz (arts. 7º, 9º, 10 e 489, § 1º, inciso IV, dos litígios em face do direito fundamental ao
CPC/2015). contraditório. Enfim, também é fácil perceber
Frise-se que não faz qualquer diferença, que o poder conferido às partes, Ministério
para o ponto que aqui interessa, a circunstância Público e Defensoria Pública é para requerer a
de a decisão proferida no incidente atingir instauração do incidente e não para defender
apenas casos pendentes e, inclusive, poder ser ou tutelar os direitos dos vários litigantes
objeto de revisão em face de casos futuros. presentes nos casos que pendem.
Isso nada mais é do que limitar temporalmente
a proibição de discutir a questão. Ora, a
atenuação da proibição da discussão de questão
12 “The doctrine of Collateral Estoppel will not be
decidida sempre esteve presente no direito
applied unless it appears that the party against whom
estadunidense, na medida em que o collateral the estoppel is asserted had a full and fair opportunity
to litigate the issue in the prior proceeding, and that the
estoppel não se aplica quando o vencido no
application of the doctrine will not result in an injustice to
processo em que a decisão foi proferida não the party against whom it is asserted under the particular
circumstances of the case” (Rachal v. Hill, 435 F2d 59, 5th
Cir., 1970).

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Na verdade, o problema do incidente o seu adversário não foi14. Porém, isso está
de resolução de demandas repetitivas está na muito longe de significar qualquer identidade
falsa suposição de que a sua decisão é um mero entre stare decisis e collateral estoppel.
precedente, que, assim, poderia se aplicar a
todos os litigantes sem qualquer violação de 2.5. Solução para a preservação da técnica
direitos fundamentais processuais. Ocorre que processual
resolver uma questão que determina a solução
de diversos litigios está longe de ser o mesmo A doutrina tem sério e inafastável
do que resolver uma questão de direito que compromisso com os direitos fundamentais.
agrega sentido à ordem jurídica e, sobretudo, Assim, obviamente não pode dizer amém a um
apenas tem a intenção de orientar a sociedade procedimento que, embora dotado da elogiosa
e os diferentes casos futuros que possam ser ambição de dar otimização à resolução das
resolvidos pela mesma regra de direito ou pela demandas, viola o direito fundamental de ser
mesma ratio decidendi13. ouvido e de influenciar o juiz. Não obstante, a
É claro que a proibição de discussão invalidade constitucional de um procedimento
de questão já decidida deve ser relacionada é resultado extremo, que deve ser evitado
à estabilidade e à autoridade das decisões quando se pode corrigi-lo de modo a dar-lhe
judiciais. Aliás, Jeremy Bentham já dizia: há legitimidade constitucional.
razão para dizer que um homem não deve Não há razão para obscurecer a
perder a sua causa em consequência de uma realidade: no incidente de resolução de
decisão dada em anterior processo de que demandas repetitivas julga-se questão de
não foi parte; mas não há qualquer razão para muitos em processo de alguns. Como é óbvio, se
dizer que ele não deve perder a sua causa em no Estado Democrático de Direito a participação
consequência de uma decisão proferida em um é indispensável requisito de legitimação do
processo em que foi parte, simplesmente porque exercício do poder, não há como imaginar que
uma decisão – ato de positivação do poder
estatal – possa gerar efeitos em face de pessoas
que não tiveram oportunidade de participar.
Assim, em princípio existiriam duas saídas
13 HEINSZ, Timothy J., Grieve it Again: Of Stare
Decisis, Res Judicata and Collateral Estoppel in Labor para evitar a inconstitucionalidade. A primeira
Arbitration. Boston College Law Review. Vol. 38.
seria o chamamento de todos à participação,
1997.É por essa razão, a propósito, que é oportuno ler
o CPC/2015 a partir da teoria da tutela dos direitos, modelo vislumbrado nos Estados Unidos para
distinguindo-se especialmente um discurso voltado para
uma situação curiosamente diferente. Como
a solução de casos concretos (viabilização de decisões
de mérito justas, efetivas e tempestivas, art. 6º) e outro nos Estados Unidos não se ousa imaginar a
discurso voltado à ordem jurídica (a fim de outorgar-se
possibilidade de proibir o terceiro prejudicado
unidade ao direito mediante precedentes, arts. 926 e
927). Enquanto o incidente de resolução de demandas
repetitivas pertente ao discurso do caso concreto, os
precedentes atinem ao discurso da ordem jurídica
(Marinoni-Arenhart-Mitidiero, Novo Curso de Processo
Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, pp. 151/152, 14 BENTHAM, Jeremy. Rationale of judicial
vol. I). evidence, London: Hunt and Clarke, 1827, p. 579.

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de discutir a questão decidida – lembrando- Na verdade, os legitimados à tutela dos direitos


se que isso foi inclusive grifado pela Suprema dos grupos nunca deveriam ter sido afastados
Corte estadunidense -, o non-mutual collateral do incidente de resolução de demandas. Isso
estoppel apenas pode ser invocado em face porque esse incidente não pode ser pensado
da parte que adequadamente participou em como artíficio indiferente à participação e ao
contraditório. Porém, quando um conflito direito de defesa. O modo como o incidente
envolve centenas ou milhares contra uma foi desenhado pelo legislador, frio e neutro em
pessoa jurídica, a ampla possibilidade de relação aos direitos discutidos e, especialmente,
ajuizamento de ações individuais obriga a ao direito de discutir, torna-o um instrumento
pessoa jurídica a não perder qualquer ação para ilegítimo, destinado a viabilizar os interesses
não ser responsabilizada perante todos aqueles de um Estado que não tem compromisso com
que ainda não foram vencidos. Essa situação a adequada tutela dos direitos, fim básico de
gerou reação na doutrina estadunidense, todo e qualquer Estado constitucional.
que, para não abrir mão dos benefícios do A pedra de toque para a correção da ilegitimidade
non-mutual collateral estoppel, advertiu que constitucional, portanto, está no art. 979 do
o réu, em tais situações, pode requererer o Código de Processo Civil, que adverte que a
chamamento dos que podem demandá-lo “instauração e o julgamento do incidente serão
para desde logo participar da ação ajuizada sucedidos da mais ampla e específica divulgação
(mandatory joinder15). É realmente curioso, pois e publicidade, por meio de registro eletrônico
a necessidade de convocar os terceiros ocorre no Conselho Nacional de Justiça”. Essa “ampla
para que a pessoa jurídica - a quem nunca foi e específica divulgação e publicidade” deve
negada a participação – não seja prejudicada16. dar aos vários legitimados à tutela dos direitos
De qualquer maneira, a convocação de todos os em disputa, nos termos da Lei da Ação Civil
terceiros a participar, ainda que no Brasil com Pública e do Código de Defesa do Consumidor,
outro propósito, inviabilizaria completamente o a possibilidade de ingressar no incidente para
incidente de resolução de demandas repetitivas. a efetiva defesa dos direitos. Cabe-lhes, afinal,
Por isso, a melhor alternativa é tornar presentes a tutela dos direitos dos membros dos grupos,
no incidente de resolução de demandas ou seja, dos direitos daqueles que têm casos
repetitivas os legitimados à tutela dos direitos pendentes que reclamam a solução de “questão
individuais homogêneos – conforme Lei da Ação idêntica”17. Quer dizer que os legitimados à
Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor. tutela dos direitos dos membros do grupo
jamais poderiam ter sido afastados do incidente
sob pena não só de inconstitucionalidade por
falta de participação dos litigantes individuais,
15 HERSHKOFF, Helen, Aggregation of parties,
claims, and actions, Civil litigation in comparative context. mas também de negação da Lei da Ação Civil
New York: Thomson/West, 2007, p. 369 e ss.
16 Isso significa que a coletivização da demanda
individual nada mais é do que uma garantia do litigante
único e não algo que pode ser utilizado para abreviar de
forma indevida a tutela dos direitos dos membros dos 17 Ver ARENHART, Sérgio, A tutela coletiva de
grupos. interesses individuais, São Paulo: Ed. RT, 2013.

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Pública e do Código de Defesa do Consumidor. sociedade e para o Estado, seja do ponto de


Pelas mesmas razões, a falta de intervenção de vista jurídico, social, econômico ou político.
qualquer legitimado implica, inevitavelmente, a Daí o motivo pelo qual o filtro recursal que lhe
intervenção do Ministério Público na qualidade confere adequada oportunidade para exercer
de legitimado à tutela dos direitos do grupo. a sua função é denominado de “repercussão
Note-se que, a não ser assim, não apenas o geral”18.
direito de participar dos litigantes individuais O Superior Tribunal de Justiça, embora
continuará a ser violado, como o incidente cuide do direito federal infraconstitucional,
estará retirando do Ministério Público o seu situa-se em dimensão semelhante. Lembre-
poder-dever de tutelar os direitos individuais se que as Cortes de Cassação e de Revisão
homogênos. européias, que inspiraram as Cortes Supremas
de correção latino-americanas, foram pensadas
3. Recursos extraordinário e especial para corrigir as decisões com base na norma
repetitivos que estaria presente na lei19. Imaginava-se que
3.1 Compreensão dos recursos extraordinário a Corte, mediante a interpretação, poderia
e especial repetitivos enquanto meios que encontrar o “exato sentido da lei” mediante a
viabilizam a elaboração de precedentes jurisprudência20. O objetivo da Corte era tutelar a
lei e garantir a unidade do direito objetivo. Nessa
O CPC de 2015, ao aludir aos recursos linha o recurso é visto como direito do litigante,
extraordinário e especial repetitivos, pode ser um direito de ter o caso resolvido de acordo com
mal interpretatado. Pode fazer supor que a a lei. Com a evolução da teoria da interpretação
tarefa das Cortes Supremas seja a de resolver e o impacto do constitucionalismo, resta clara
casos que se mulplicam perante o Poder a ideia de que o texto da lei é potencialmente
Judiciário. Essa certamente não é a missão do equívoco, dele sendo possível extrair vários
Supremo Tribunal Federal, nem a do Superior resultados-intepretação21. Esses resultados
Tribunal de Justiça. são estabelecidos mediante valoração do
O Supremo Tribunal Federal tem a
função de elaborar precedentes que outorguem
unidade ao direito mediante a afirmação do 18 MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel,
Repercussão geral no recurso extraordinário, 3a.ed., São
sentido da Constituição ou que desenvolvam o Paulo: Ed. RT, 2013.
sentido da Constituição, tornando a legislação 19 TARUFFO, Michele, Cassazione e revisione:
un problema nella storia delle istituzioni giudiziarie, Il
infraconstitucional com ela conforme. O
vertice ambiguo – Saggi sulla cassazione civile, Bologna:
recurso extraordinário e o litígio constituem Il Mulino, 1991, p. 46 y ss.
apenas meios que dão ao Supremo Tribunal 20«Secondo la teoria che converremo di chiamare
"cognitivistica" – ma talora della "formalistica" – la
Federal oportunidade de colaborar para o quale risale alle dottrine giuridiche dell’Illuminismo,
desenvolvimento e a frutificação do direito. O l’interpretazione (ivi inclusa quella giudiziale) è atto
di scoperta o conoscenza del significato» (GUASTINI,
que realmente tem relevância para o Supremo Riccardo, Interpretare e argomentare, Milano: Giuffrè,
é o conteúdo da sua decisão, que não pode 2011, p. 409).
21 TARELLO, Giovanni, L‘interpretazione della legge,
deixar de espelhar questão relevante para a
Milano: Giuffrè, 1980.

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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intérprete, embora devam ser devidamente Bem vistas as coisas, um caso repetitivo,
justificados mediante argumentação racional assim como outro qualquer, apenas deve ser
e aceitável22. A Corte Suprema, então, assume conhecido pelo Supremo Tribunal Federal
naturalmente outra função, deixando de lado quando envolver questão de repercussão geral.
a de corrigir as decisões mediante a afirmação E é apenas por isso, e não por outra razão, que
da lei para assumir a de atribuir sentido ao dá origem a precedente. É certo que o art.
direito e de desenvolvê-lo. Diante disso, as 1.035, § 3o do CPC/2015 afirma que “haverá
decisões da Corte Suprema revelam conteúdo repercussão geral sempre que o recurso
indispensável à regulação da vida social e impugnar acórdão que: ii) tenha sido proferido
passam a interessar a todos – e não apenas em julgamento de casos repetitivos”. Porém,
aos litigantes. As razões contidas nas decisões, para que essa norma não tenha o significado
agora vistas como precedentes, assumem de um grosseiro equívoco, torna-se necessário
naturalmente eficácia obrigatória23. Note-se que interpretá-la mediante conjugação à norma do
o precedente não é parâmetro para o controle § 1o do mesmo art. 1.035, que diz que, “para
da legalidade das decisões, mas erige critério a efeito de repercussão geral, será considerada
ser necessariamente seguido para a resolução a existência ou não de questões relevantes
dos casos futuros, verdadeiro modo de ser do do ponto de vista econômico, político, social
direito em determinado contexto histórico24. ou jurídico que ultrapassem os interesses
Isso quer dizer que uma Corte Suprema, ao subjetivos do processo”. Nessa linha, o Supremo
decidir um caso que pode ou não se repetir, Tribunal Federal só terá motivo para discutir
pode elaborar um precedente, ou melhor, uma recurso extraordinário interposto contra
norma que empresta sentido ao direito25 e, acórdão que julgou “casos repetitivos” quando
apenas por isso, deve ser observada pelos juízes esses espelharem questão de repercussão
e tribunais incumbidos de resolver os futuros geral. No Superior Tribunal de Justiça, enquanto
conflitos. Significa que é equivocado supor que não houver filtro similar à repercussão geral, o
há precedente em casos repetitivos e não em conhecimento do recurso especial dependerá
casos não suscetíveis de repetição. O raciocício de demonstração de violação de lei federal
não pode ser invertido. Um caso não deve ser ou de divergência entre os tribunais acerca da
resolvido por uma Corte Suprema apenas por interpretação de lei, mas também nunca será
ter se multiplicado. suficiente apenas a existência de acórdão que
deu resolução a “casos repetitivos”.
Imaginar que casos repetitivos, apenas por
22 GUASTINI, Riccardo, Interpretare e argomentare, isso, possam abrir oportunidade à atuação do
cit., p. 407 e ss.
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal
23 MARINONI, Luiz Guilherme, Precedentes
obrigatórios, 3a. ed., São Paulo: Ed. RT, 2013. de Justiça não tem qualquer cabimento. Isso
24 BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; significaria completo desvirtuamento das
MORAWSKI, Lech e MIGUEL, Alfonso Ruiz, Rationales for
precedent, in: Interpreting precedents: a comparative funções destas Cortes Supremas.Faria supor
study, London: Dartmouth, 1997, p. 485. que têm a função de definir critérios para
25 MITIDIERO, Daniel, Cortes Superiores e Cortes
a facilitação da resolução dos casos que se
Supremas, 2a. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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repetem. Ora, casos desse tipo podem não ter 3.2 Direito ao recurso especial e necessidade
qualquer relevância para o desenvolvimento de enfatizar o contraditório
do direito. Na verdade, ao se criar fórmula para
dar unidade à solução dos casos repetitivos É interessante notar que, tratando-se de
corre-se o risco de esquecer da função das recursos extraordinário e especial repetitivos,
Cortes Supremas em nome da otimização do confere-se especial atenção ao conteúdo da
julgamento dos casos de massa, como se a razão discussão travada nos recursos selecionados.
para respeitar um precedente estivesse aí. Fala-se que os recursos selecionados no
É por isso que também os recursos tribunal ou na Corte Suprema devem ser
extraordinários e especiais repetitivos devem ser “representativos da controvérsia” (art. 1.036, §§
pensados meios para a fixação de precedentes 1o e 5o, CPC) Aliás, outorga-se ao relator, na Corte
que atribuem sentido ao direito e, apenas por Suprema, a possibilidade de selecionar “outros
essa razão, devem regular os demais casos. recursos representativos da controvérsia”
Retenha-se o ponto: os precedentes formados e de, no momento da decisão de afetação,
em recursos extraordinário e especial repetitivos requisitar a diferentes tribunais “a remessa de
devem ser respeitados por constituirem rationes um recurso representativo da controvérsia”
decidendi elaboradas pelas Cortes Supremas (artigos 1.036, § 4o e 1.037, III CPC). Por fim,
e não por constituirem resoluções de casos de o § 6o do art. 1.036 esclarece que “somente
que derivam recursos em massa. podem ser selecionados recursos admissíveis
Aliás, não deveria haver motivo para que contenham abrangente argumentação e
usar esse modelo recursal apenas para otimizar discussão a respeito da questão a ser decidida”.
o trabalho das Cortes Supremas, uma vez É certo que uma Corte Suprema não
que estas, na verdade, jamais deveriam se pode ter o exercício da sua função prejudicada
confrontar com vários recursos. Note-se que ou indevidamente limitada pelos litigantes. Se a
a repercussão geral, no Supremo Tribunal decisão da Corte interessa ao desenvolvimento
Federal, já é suficiente para suspender os do direito e à sociedade, aquilo que se entende
recursos extraordinários que versam a mesma que pode afastar o juiz da adequada resolução
questão. No Superior Tribunal de Justiça, caso já de um litígio, por constituir manifestação da
existisse filtro recursal similar, o mesmo poderia liberdade da parte, não vale quando a Corte
ocorrer. está diante de um recurso que lhe oferece
Porém, o que realmente diferencia possibilidade de exercer a sua função. Assim, o
o recurso repetitivo é o fato dele constituir Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade
mecanismo voltado à criação de um precedente de indeferir pedido de desistência do recurso
especialmente preocupado com casos especial, ainda que compartilhada pelas duas
pendentes, ao passo que os precedentes, em si, partes, para decidir o caso e firmar tese que
miram os casos futuros, objetivando dar tutela reputou relevante para o desenvolvimento
à previsibilidade no direito.

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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do direito26. Nessa mesma perspectiva deve manifestação de pessoas, órgãos ou entidades


ser compreendido o art. 1.029, § 3o, do CPC com interesse na controvérsia, considerando
de 2015, ao dizer que “o Supremo Tribunal a relevância da matéria e consoante dispuser
Federal ou o Superior Tribunal de Justiça
o regimento interno”. Na verdade, a admissão
poderá desconsiderar vício formal de recurso
da participação de terceiros, na hipótese, além
tempestivo ou determinar sua correção, desde
de ter relação com a relevância da matéria,
que não o repute grave”.
Contudo, em caso de recurso repetitivo, vincula-se também à circunstância de se estar
em que se elabora precedente considerando- resolvendo os casos de muitos em recurso de
se casos pendentes, a necessidade de a Corte um ou de alguns poucos.
buscar a essência da discussão a partir da Numa Corte Suprema que não trabalha
seleção de casos realmente representativos da com filtros como a repercussão geral, há
controvérsia pode ter outra conotação. Aqui dificuldade em admitir a não participação
não importaria apenas a circunstância de que a
daqueles que podem ser prejudicados pela
Corte não está decidindo para as partes, porém
decisão a ser tomada no repetitivo. É preciso
o fato de que a Corte está a decidir um caso
ter em conta que o requisito da repercussão
pendente em vários recursos.
geral elimina a suposição de que o recurso
O art. 1.038, I do CPC de 2015 afirma
extraordinário é um direito subjetivo da parte,
que o relator poderá “solicitar ou admitir
de modo que, no Supremo Tribunal Federal, a
formação de um precedente que pode recair
sobre terceiros não pode ser vista ser vista como
26 No REsp 1.308.830, a 3a. Turma do STJ indeferiu,
em Questão de Ordem, requerimento de desistência no Superior Tribunal de Justiça. Na verdade, a
do recurso especial, que contou com a anuência do
verdadeira solução para esta questão está na
recorrido. Disse a Ministra relatora que o julgamento
do recurso especial, por importar à definição do sentido instituição de um filtro semelhante à repercussão
do direito federal, não pode ficar à livre disposição dos
litigantes. Deixou-se claro o caráter de precedente da geral no Superior Tribunal de Justiça27. Enquanto
decisão que resolve uma questão federal, consignando-
isso, a falta de participação dos interessados
se que deve ser levado em conta o papel atribuído ao STJ
pela Constituição, “que transcende o de ser simplesmente deverá ser compreendida de modo diferente
a última palavra em âmbito infraconstitucional,
sobressaindo o dever de fixar teses de direito que servirão no recurso especial. Nesse recurso, ao contrário
de referência para as instâncias ordinárias de todo o país.
do que acontece no recurso extraordinário,
A partir daí, infere-se que o julgamento dos recursos
submetidos ao STJ ultrapassa o interesse individual das a participação do amicustem necessidade de
partes nele envolvidas, alcançando toda a coletividade
para a qual suas decisões irradiam efeitos” (REsp compensar a não participação direta dos vários
1.308.830, Questão de Ordem, 3.ª T., rel. Min. Nancy
recorrentes, e não apenas viabilizar uma mais
Andrighi, DJe 19.06.2012). Essa tese apenas pode ser
admitida quando se constata que o STJ não é uma mera aprofundada discussão da questão de direito.
Corte de Revisão posta ao interesse do jurisdicionado.
Supõe, sem qualquer dúvida, que o STJ tem uma função
pública, de colaboração para o florescimento do direito
adequado ao convívio social em todo o território nacional.
Ver MARINONI, Luiz Guilherme, O STJ enquanto Corte de 27 MARINONI, Luiz Guilherme, O STJ enquanto
Precedentes, 2a. ed., São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 185 e ss. Corte de Precedentes, 2a. ed., cit., p. 146 e ss.

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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3.3 Participação dos legitimados e do não há lógica em dar-lhe oportunidade para


Ministério Público Federal e compensação da apresentar argumentos jurídicos. Porém, não
não participação dos recorrentes é correto pensar que a intervenção só pode
se dar para esclarecer questão técnica ou fato
Como visto, nos recursos extraordinário e que exija esclarecimento especializado. É certo
especial repetitivos autoriza-se a intervenção que na França a figura do amicus é construída
de terceiro “com interesse na controvérsia”. O a partir das regras relativas às verifications
terceiro intervém como amicus curiae, figura personnelles do juiz, em princípio equiparando-
processual típica do direito anglo-americano, se o amicus a um perito ou técnico. Contudo,
mas já admitida no Supremo Tribunal Federal mesmo na França, e sem qualquer resistência
há algum tempo. no common law, admite-se que o juiz possa
A intervenção do amicus no recurso consultar um terceiro acerca de questões
repetitivo não se funda no ideal que deu jurídicas.
origem à figura no direito inglês.28 O terceiro Nos Estados Unidos, o amicus pode
não intervém apenas para auxiliar a Corte ou esclarecer qualquer questão, de fato ou
para, de forma neutra, esclarecer os fatos para estritamente de direito, porque a sua intervenção
que a Corte não decida de forma equivocada. ocorre para o completo esclarecimento
A intervenção, embora não ocorra em razão do da controvérsia em nome dos terceiros
litigante, mas de terceiros não representados, insuficientemente representados. E isso se
objetiva que a questão de direito seja resolvida dá exatamente porque o precedente poderá
em favor de uma das partes. De modo que prejudicar as partes não adequadamente
a intervenção é, por assim dizer, parcial. representadas. Com efeito, a intervenção de
Esclareça-se, aliás, que mesmo no common amicus em nome de terceiros interessados na
law, especialmente nos Estados Unidos, há formação de precedente não é incomum nos
bastante tempo o amicus curiae deixou de ser Estados Unidos.30
um “disinterested bystander” para se tornar um Na verdade, a dificuldade em compreender
sujeito que ativamente participa do processo a possibilidade de o amicus falar sobre
em nome de terceiros interessados no êxito de questões jurídicas decorre da dificuldade em
uma das partes.29 se aceitar que a intervenção possa se dar para
Alguém poderia supor que o amicus só tem razão suprir a deficiência de argumentação da parte,
para intervir para abordar ponto que não pôde ainda que para beneficiar terceiros. Isso fica
ser esclarecido pelas partes e que, portanto, mais fácil de ser aceito quando se percebe que
o precedente firmado em recurso repetitivo é,
igualmente, a decisão de um caso que também
28 V. KRISLOV, Samuel. The amicus curiae brief. pertence a terceiros.
From friendship to advocacy.Yale Law Journal, 72, 1963,
p. 694 e ss.
29 V. LOWMAN, Michael K. The litigating amicus
curiae: when does the party begin after the friends leave? 30 RUDER, David S. The development of legal
The American University Law Review, 41, 1992, p. 1243- doctrine through amicus participation: the SEC
1299. experience. Wisconsin Law Review, 1989, p. 1.167 e ss.

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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Muito embora a Corte Suprema esteja a do incidente está muito longe de poder ser vista
firmar um precedente que atribui sentido ao como precedente que atribui sentido ao direito
direito, e que, assim, pode raciocinar a partir e, por isso, regula a vida em sociedade e obriga
de qualquer recurso, é preciso voltar a lembrar os juízes dos casos futuros. Por esse motivo, o
que o recurso especialainda é franqueado a incidente, nos moldes em que regulado pelo
todos que podem afirmar violação da lei ou Código de Processo Civil de 2015, não detém
divergência jurisprudencial. Por isso, admitir legitimidade constitucional. A alternativa para
o afastamento daqueles que já interpuseram a correção da inconstitucionalidade está na
recursos especiais, excluindo-os do exercício convocação dos legitimados à tutela dos direitos
do direito de influenciar a Corte, exige atenção. individuais homogêneos para intervirem na
Vale dizer: a figura do amicus não deve ser vista defesa dos direitos dos litigantes cuja questão
da mesma forma no Superior Tribunal de Justiça é posta à discussão. Isso, porém, não pode
e no Supremo Tribunal Federal. excluir a possibilidade de o Ministério Público
Em virtude da fraca e insuficiente também intervir para tutelar os direitos, tenha
regulamentação do recurso repetitivo, um legitimidado já ingressado no processo ou
no Superior Tribunal de Justiça o direito não.Aliás, o Ministério Público, em caso de falta
fundamental à participação no processo exige de intervenção de qualquer outro legitimado,
a abertura e o chamamento à participação dos deve obrigatoriamente participar em nome da
legitimados à tutela dos terceiros que podem tutela dos terceiros.
ser prejudicados pela decisão e, inclusive, Tratando-se de recurso extraordinário
do Ministério Público. Uma vez amplamente e especial, a formação de precedente
noticiada a possibilidade de intervenção (art. obviamente não depende de a questão estar
979, §3o, CPC/2015), a participação do amicus replicada em vários casos ou recursos. Bem por
deve ser a mais ampla possível. Não há como isso, é necessário cautela na interpretação da
retirar daqueles que representam terceiros o norma que afirma repercussão geral em caso
direito de apresentar petições escritas, realizar de acórdão que julga incidente de resolução
sustentação oral e, inclusive, apresentar de demandas repetitivas (art. 1.035, § 3o,
embargos de declaração. A participação do CPC/2015). Essa norma tem que ser conjugada
amicus deve ser vista como o contra-ponto num com a que prevê a necessidade de repercussão
procedimento em que a Corte emite decisão que geral da questão constitucional introduzida no
resolve recursos de terceirosque têm o direito extraordinário, pois o Supremo Tribunal Federal
de influenciá-la. certamente não é uma Corte que está a serviço
do julgamento dos casos múltiplos.
4. Conclusão Porém, quando o Supremo vislumbra a
repercussão geral da questão posta em recurso
O incidente de resolução de demandas extraordinário - o que, diga-se de passagem,
repetitivas nada mais é do que processo em que já seria suficiente para suspender os demais
se discute e decide questão prejudicial à solução recursos - , autoriza-se a Corte decidir a partir
de casos pendentes. Como é óbvio, a decisão de caso ou casos exemplares sem viabilizar a

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Precedentes, Súmulas e Enunciados
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participação de terceiros. Isso porque esses


não têm direito subjetivo de ver os recursos
extraordinários conhecidos e discutidos,
na medida em que a repercussão geral é
expediente legítimo para permitir a seleção de
casos em nome do exercício da função da Corte
Suprema de desenvolver o direito. Note-se que
os tribunais não têm esta função, mas apenas e
tão somente a de resolver conflitos.
Sucede que ainda não há –
lamentavelmente – instrumento similar à
repercussão geral no Superior Tribunal de
Justiça e, por conta disso, todos têm direito
subjetivo ao recurso destinado a demonstrar
a inadequada resolução da questão federal
infraconstitucional. Sendo assim, a figura do
amicus deve ser vista de modo particular em
face do recurso especial repetitivo. Aí o amicus
não pode ser visto como alguém que intervém
apenas em razão da relevância da questão de
direito. Cabe a qualquer legitimado à tutela
dos direitos individuais homogênos intervir
em nome da tutela dos direitos dos litigantes,
inclusive o Ministério Público, cuja participação,
aliás, é absolutamente imprescindível na falta
de participação de outro legitimido. E essa
participação, como é evidente, deve ser plena e
adequada.

Publicado originalmente na Revista de


Processo civil, do mês de Novembro de 2015.

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Precedentes, Súmulas e Enunciados

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