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Direito Processual Penal III

Prof. Carlos Eduardo


Turma: XV

Resumo do julgamento do AP 975/AL no STF 1

Matheus dos Santos Caetano


Rozane M. Alves da Silva
Thamíris de Souza Valério

Trata-se de apelação interposta pelo réu RONALDO LESSA, ex-governador


do estado de Alagoas, após condenação pelo Juízo Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária
de Alagoas, à pena de 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e 360 (trezentos e
sessenta) dias-multa pelo crime previsto no art. 312, caput, do Código Penal (“peculato-
desvio”), relacionado a supostas irregularidades ocorridas no Projeto de Macrodrenagem
do Tabuleiro dos Martins, em Maceió-AL.
Na exordial, ajuizada em 04/11/2009, o Ministério Público Federal ofereceu
denúncia em face de 8 (oito) réus, então identificados como secretários de governo,
servidores integrantes de comissão licitatória e funcionários/dirigentes de empresas que
executaram a obra, imputando-lhes a prática dos crimes de dispensa ilegal de licitação
(art. 89, caput, segunda parte, da lei 8.666/93), locupletamento ilícito decorrente de
dispensa ilegal de licitação (art. 89, parágrafo único da lei 8.666/93) e peculato-desvio
(art. 312, caput, segunda parte do Código Penal).
Cerca de um ano após, em 24/11/2010, com base no aprofundamento das
investigações por parte da Polícia Federal, o Ministério Público Federal propôs
aditamento à denúncia, a fim de incluir no polo passivo da ação penal os ex-governadores
de Alagoas, Manoel Gomes de Barros e Ronaldo Augusto Lessa dos Santos.
Em sede de recurso, o acusado apresentou apelação no juízo de primeiro grau,
que remeteu ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região e, em razão da assunção
do cargo de deputado federal pelo ora recorrente, Ronaldo Augusto Lessa, o
Desembargador Federal relator do feito determinou o deslocamento da competência para
o STF.

1
Processo disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4927582
Na interposição de Apelação, o apelante alegou: (i) que a responsabilidade
penal é pessoal, não podendo o réu ser responsabilizado por atos de terceiros; (ii) houve
interpretação equivocada da teoria do domínio do fato, culminando em condenação
por responsabilidade objetiva; (iii) a teoria do domínio do fato não dispensa a prova da
culpa: o mero “ter que saber” não basta; (iv) a denúncia é inepta, pois não descreve a
conduta do réu, mas somente a de terceiros; (v) as conclusões do juiz foram as
constatações de procedimento do TCU em que o apelante sequer é apontado como
responsável e (vi) a sentença incidiu em bis in idem na dosimetria da pena e, apesar de
aplicar a continuidade delitiva, não indicou quais os crimes da mesma espécie
foram praticados pelo apelante.
Na sequência, o Parquet apresentou contrarrazões à apelação interposta pelo
réu RONALDO LESSA, nas quais rebate as alegações defensivas, argumentando, em
suma:
I – Em relação à inépcia:
Não há que se falar em inépcia da inicial, pois os fatos articulados na denúncia
permitiram o exercício do direito de defesa em sua plenitude.
II- Em relação à responsabilização penal ser pessoal
Se, por um lado não se pode responsabilizar o réu por fatos anteriores a
01/01/1999, por outro é igualmente correto concluir que anuiu e deu sequência a todas as
irregularidades iniciadas no governo anterior, tendo inclusive diligenciado a obtenção de
recursos para a conclusão da obra.
III – Em relação à interpretação equivocada da teoria do domínio do fato
A teoria do domínio do fato foi utilizada somente como reforço argumentativo
pelo juízo a quo, a fim de demonstrar que a continuidade do esquema não poderia ter
ocorrido sem a sua participação direta.
IV – Sobre a condenação por responsabilidade penal objetiva (teoria não
adotada pelo Direito Penal brasileiro);
Não foi apenas o fato de ter sido governador que levou à sua condenação, pois
as fraudes perpetradas eram de caráter amadorístico e gritante notoriedade, sendo
impossível que o apelante não tivesse ciência da inidoneidade da empresa e inviabilidade
da obra;
V- Em relação à teoria do domínio do fato não dispensar a prova da culpa;
O MPF alega que havia elementos suficientes na denúncia a apontar a prática
do crime de peculato, pois a simples leitura dos autos de concorrência, contrato com a
empresa GAUTAMA e subcontratação com a empresa CIPESA demonstram, a toda
evidência, as ilegalidades praticadas pelo antecessor de RONALDO LESSA no governo
estadual. O dolo em relação aos desvios públicos é aferido pela constatação de que,
mesmo diante de todas as notícias de irregularidades na obra, deu continuidade ao projeto,
firmando o convênio 003/2005, no qual, inclusive, utilizou o CNPJ da
Secretaria Coordenadora de Infraestrutura e Serviços, a fim de contornar
o impedimento imposto pelo TCU de paralisação de obras, por parte do Estado de
Alagoas, demonstrando que a continuidade do esquema não poderia ter ocorrido sem a
sua participação direta;
VI – Sobre as conclusões do juiz serem constatações de procedimento do
TCU em que o apelante sequer é apontado como responsável;
O MPF não apresentou contestação probatória específica a essa alegação, mas
reafirmou que as irregularidades são “notórias”.
VII – Por fim, sobre a sentença incidir em bis in idem na dosimetria da
pena e, apesar de aplicar a continuidade delitiva, não indicar quais os crimes da
mesma espécie foram praticados pelo apelante.
Nesse tocante, o MPF concorda que merece reparo a dosimetria, pois foi
valorada por duas vezes a condição de Governador de Estado para exasperar a pena.

Análise do mérito pelo relator ministro Edson Fachin

Em relação à inépcia da denúncia, o ministro relator Édson Fachin citou


diversas jurisprudências, e sobretudo, a já assentada na Suprema Corte, que afirma: “não
é inepta a denúncia que descreve ação típica, individualiza a conduta do denunciado,
menciona sua consciência quanto aos fatos imputados e aponta indícios de autoria e
materialidade." Julgando que NÃO pode ser considerada inepta a exordial que
possibilitou ao acusado a defesa de cada fato típico a ele apontado, denegando a apelação
em relação a essa alegação.
Entretanto, o ministro aponta em seu relatório, de ofício, a nulidade do
processo, por violação do princípio da correlação, pois segundo ele, embora hígida a
denúncia, o mesmo não se pode dizer da sentença que condenou o réu à prática do crime
de peculato. Ele verifica que a sentença exorbitou os limites traçados pela exordial
acusatória, impondo assim o reconhecimento de nulidade parcial da decisão. Relata ainda
que os vícios observados constituem flagrante violação a preceitos constitucionais,
maculando o feito com nulidade absoluta e insanável, a qual deve ser reconhecida de
ofício, porquanto tem aptidão para reduzir o âmbito condenatório.
No que concerne a essa nulidade, o ministro aponta ampla jurisprudência,
legislação e doutrina que indicam que não se acolhe acusação diversa à expressa na
exordial e passa a análise dessa imputação presente na condenação.
Ainda, em relação à sentença condenatória, o ministro narra que o réu foi
condenado pela prática de mais de 7 (sete) crimes de peculato, considerando, em sua
fundamentação, a participação do réu em fatos estranhos, não narrados na denúncia, a
saber: (i) a responsabilidade por atos praticados pelo secretário de infraestrutura
FERNANDO DE SOUZA; (ii) desvios e irregularidades havidas na gestão do Convênio
003/2005 e (iii) o desvio ocorrido em 23/11/2005, quando, por meio de TED, efetuou-se
a transferência irregular de valores da conta específica do Convênio 003/2005 para a conta
única do Governo do Estado de Alagoas. O parquet, ao descrever a conduta de
RONALDO AUGUSTO LESSA DOS SANTOS, em momento algum menciona
qualquer participação do réu em atos praticados por FERNANDO DE SOUZA ou mesmo
o vinculou a qualquer irregularidade relacionada ao Convênio 003/2005, não se admitindo
por isso, que a sentença inove, atribuindo ao réu responsabilidade por evento que não lhe
foi imputado. Consoante já mencionado, a exordial acusatória demarca a atuação
jurisdicional, constituindo nulidade absoluta a condenação por fato além do descrito
da denúncia.
A sentença que assim procede padece de vício irremediável, na medida em que
compromete as garantias de direito de defesa, devido processo legal e ainda usurpa o
monopólio da ação penal, concedido constitucionalmente ao Ministério Público.
Tem-se, neste caso, verdadeira condenação sem denúncia, a culminarem
invalidação total de parte da decisão por falta de um dos indispensáveis requisitos para a
persecutio criminis, conforme inteligência do art. 564, III do CPP. O julgamento extra
petita, em processo penal, compromete, a uma só vez, diversos princípios constitucionais.
Constitui-se, desse modo, evidente afronto ao princípio da ampla defesa e
contraditório (art. 5º,LV da CR), pois o réu é surpreendido, após finda a instrução
probatória, com fato que lhe é desconhecido e acerca do qual não lhe foi oportunizado se
manifestar. Também há violação ao princípio do devido processo legal (art. 5º LIV da
CR), pois o atuar do juiz, neste caso, deturpa a marcha processual e a sequência de atos
concatenados a que deve obediência e constituem garantia do cidadão.
Finalmente, também haverá, na hipótese, ação penal ex officio, em
desobediência ao modelo constitucional, que enuncia ser função institucional privativa
do Ministério Público, a promoção da ação penal pública (art. 129, I, CR). A respeito do
julgamento extrapetita no âmbito processual penal leciona a doutrina: “O julgamento
extra petita é absolutamente nulo, por violar o direito de defesa, correspondendo a
verdadeira condenação sem denúncia. Quando o juiz julga na sentença um fato diverso
do imputado, haverá mais sentença em relação à denúncia, causando a
responsabilidade por evento que não lhe foi imputado. Consoante já mencionado, a
exordial acusatória demarca a atuação jurisdicional, constituindo nulidade absoluta a
condenação por fato além do descrito da denúncia.
A sentença que assim procede padece de vício irremediável, na medida em que
compromete as garantias de direito de defesa, devido processo legal e ainda usurpa o
monopólio da ação penal, concedido constitucionalmente ao Ministério Público.
Tem-se, neste caso, verdadeira condenação sem denúncia, a culminar em invalidação total
de parte da decisão por falta de um dos indispensáveis requisitos para a persecutio
criminis, conforme inteligência do art. 564, III do CPP.
Entretanto, o Código de Processo Penal, já antevendo a possibilidade do
surgimento de novos fatos, não descritos na denúncia, previu em seu artigo 384, um
remédio para evitar a nulidade do feito. O juiz ou o Ministério Público deve, nestes casos,
proceder à mutatio libelli, baixando os autos para aditamento da denúncia e renovação da
instrução probatória. Garante-se assim, o pleno exercício dos direitos de defesa, o devido
processo legal e observa-se a função institucional do Ministério Público. Esta saída,
contudo, resta de todo afastada em instância recursal, não só pela notável violação que
implicaria ao duplo grau de jurisdição, como por força da própria Súmula 453 deste
Tribunal.
Assim, restando inviável proceder-se à mutatio libelli, o juiz declara NULA
parte da sentença tão somente no que tange à condenação do réu RONALDO LESSA por
participação nos atos de gestão cometidos por FERNANDO DE SOUZA e relacionados
ao Convênio nº 003/2005.
No entanto, segundo o relatório do ministro, tal medida não importa julgamento
acerca da existência ou não das irregularidades ali reportadas e nem obstaculiza a
propositura de nova ação penal por parte do Ministério Público Federal, se assim entender
conveniente. Por força do princípio da conservação dos atos processuais e não entendendo
configurada relação de causalidade quanto aos demais fatos a que foi condenado o ora
apelante (art. 573 do CPP).
Assim, o ministro passa a julgar a apelação na parte que não restou invalidada.
Em relação à imputação da teoria do domínio do fato, o ministro assevera que
há falha no silogismo, pois a teoria do domínio do fato não preceitua que a mera posição
de um agente na escala hierárquica sirva para demonstrar ou mesmo reforçar o dolo da
conduta. Do mesmo modo, também não permite a condenação de um agente com base
em conjecturas, tangenciando à utilização do Direito Penal Objetivo, como
equivocadamente se fez no caso concreto. Com efeito “imputar a alguém uma conduta
penal tão somente pelo fato de ocupar determinado cargo significa, na prática, adotar a
responsabilização objetiva na esfera penal.”i
Portanto, a Turma, por votação unânime, deu provimento ao recurso de
apelação a fim de absolver o réu, com base no art. 386, V, do CPP, nos termos do voto
do Relator. Falaram: pelo apelante, o Dr. José Fragoso Cavalcanti, e pelo Ministério
Público Federal, o Dr. Edson Oliveira de Almeida. Ausente, justificadamente, o Ministro
Dias Toffoli. Presidência do Ministro Edson Fachin. 2ª Turma, 3.10.2017.

i
(AP 898, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 12/04/2016, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-097 DIVULG 12-05-2016 PUBLIC 13-05-2016)

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