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e Capítulo 2: A "guewa" dm !

ínguas
e
e E o ato de falar ou de escrever revela muito mais do que simplesmente foi

e dito ou escrito. Por exemplo: pela fala das pessoas podemos saber imediata-

e mente de onde elas são (do Rio de Janeiro ou da Bahia...), se são pobres, ri-
cas ou remediadas, se frequentaram escola ou não, se leem livros e revistas ou
+ se nunca leram nada, até mesmo qual a atividade profissional delas -- mesmo
Capítulo 2
que o que elas estejam dizendo não tenha nenhuma relação com essesda-
e A"GUERRA'DASLINGUAS dos. Em geral, somos muito sensíveis a esses sinais secretos da fala: estamos

e sempre apa/bandoquem nos fala de um modo que ultrapassa simplesmente o

e significado estrito das palavras pronunciadas.

e
e Atividade l b) linguagem e marca social
Assim, quando alguém nos diz, por exemplo, Nóís pat assísfí o .logo agora,
a) os sittais da !irtguagetn
6 Uma língua não é apenasum conjunto de sinais neutros trocados
recebemos não apenas a informação de que as pessoas vão assistir a um jogo
nessemomento, mas também o fato de que a pessoa fala uma variedade da
+ entre um emissor e um receptor, como se fôssemos apenas "aparelhos' língua portuguesa não padrão, que provavelmentenão teve oportunidade de
de comunicaçãode mensagens.Na verdade,o conjuntode sinais-- frequentar escola por muito tempo, que muito provavelmentepertence à ca-
e conjunto de sons, no caso da fala, ou de letras, no caso da escrita - é mada mais pobre da população, e aí as informações "secretas" se desdobram:

8 apenaso ponto de partida para o que realmenteimporta e o que real-


mente significa: a [ zfenção de a/guém, baque/e que/a]a OL{daq eZeque
mora na periferia da cidade, é um trabalhador não especializado etc. Observe

e escoe'ye.
que nós levamos em consideração lojas essas informações implícitas quando
prosseguimos a conversa.
e Quando alguém nos diz, por exemplo, "a casacaiu" -- um conjunto E o que nos "diz" tudo isso na sentençaacima? Unicamente um sinal: o
+ de sons mais ou menos como "a káza kaíu" essessons só signihcam conjunto tzóisuai. Porque o }zóis, por si só, é de largo uso em todas as faixas
e alguma coisa quando entendemos a ínfenção de quem fala, isto é, a da população, pobres ou ricas; o corte do r de assistir é praticamente uni-
que a pessoa qLter nos dizer quando rios diz que "a casa caiu". Pode set versal no português do Brasil; o uso desse verbo sem preposição (assistir o
um pedido de socorro, pode ser uma simples informação, pode ser um jogo e não assistir ao ,jogo, como exigem as gramáticas normativas) também

e exagero, pode ser uma casa feita de cartas de baralho numa brincadeira
de crianças, pode seí um pedido de empréstimo no banco para bons
já estádisseminado pelo país afora. Mas o lzósPai é uma forma não padrão
esfigmaflzada. Isto é, alguns "erros" podem ser ditos sem problema; outros,
e fruir outra casa, pode ser uma desculpa pelo atraso ao encontro, pode em hipótese algumas
ser uma mentira. Se conhecemosa pessoaque nos diz isso, pode ser Em geral, tendemosa identificar o "corneto" como a forma que mais se
e uma coisa; se nunca vimos a pessoana vida, pode ser outra. aproxima do sistemada escrita: esseé um dos motores do poder da escrita
e Enfim, as palavras só ganham pleno signiHtcadono momento mes- na história dos povos modernos. Como a escrita é mais homogênea, esta-
e mo em que acontecem. SÓ então nós saímos do "sinal de código", do belecida, vigiada e controlada pelos meios de comunicação e pela máquina

e 'valor de dicionário", para a vida real do significado. educacional, é quase irresisth'el a nossa tendência a vigiar também a fala
das pessoas.Mas há um detalhe: quando dizemos que alguém não sabe,por
+
e 49
O$cina de texto Capítttio 2: A "guerra" das Línguas e
exemplo, que o Everest é a montanha mais alta do mundo, trata-se apenas pênalti" que o fez lembrar "a várzea". De fato, normalmenteeu diria "de- e
de um detalhe sem importância, uma questão de "decoreba". Mas quando fender", e não "catar" (o que nem soa tão irreal). Mas, às vezes, é grande a
+
dizemos que alguém "fala errado", estamos também dizendo que esse al-
guém "não sabe falar", como se a nossa fala fosse a única possível, carreta
distância entre o que se diz cotidianamente e o que é dito no ar.
Se um time estiver perdendo o jogo, o torcedor quer saber se ele "vai
e
e verdadeira língua portuguesa. Dizer que a pessoa"fala errado" é também virar", e não "reverter o placas" (sendo que o placar não anda para trás). Ele
+
dizer que a pessoa"é errada' pede para o seu atacante "chutar no gol", e não "finalizar". E grita "quebra
Como rigorosamenteninguém fala como escreve,seremostodos "er- eles" quando espera que o jogador do seu time "detenha as investidas do e
rados"? E óbvio que nãosSignihca apenasque a escrita é uma modalida- ataque adversário com faltas' +
de muito específicada língua, e pode conviverpacificamentecom toda a O reforço que se apresentacom uma contusão "tá bichado"; o volante e
riqueza e a diversidadeda linguagem oral de todos os dias e de todas as com mais vontadeque habilidade é "grosso"; o técnico que fala muito, mas e
regiões do país. produz pouco é "presepeiro" e o time que "sofreu uma derrota por um placar
elástico" (?) foi "ensacolado". Caso a arbitragem tenha sido infeliz e preju-
Essadiversidade perpassapraticamente todas as atividades da vida coti-
diana -- o futebol, por exemplo Confira no texto que se segue: dicado um time, não há dúvida: "Meteram a mãos"
e
As vezes, a mídia assume o vocabulário do povão, como no caso dos
+
"gatos". E alguns jornalistas não são tão formais e falam em pancadase +
Texto l cacetadas,frangos e bicudas, amarelões e mascarados,em entortar e
atropelar. Não são palavras muito poéticas, mas a ação que descrevem é que e
Em bom português
Soninha
lhes dá o verdadeiro valor: uma pancada em um adversário é horrenda; uma
cacetada na bola pode ser linda. Atropelar um time com uma goleada é legal.
e
Entornar um jogador com um drible, como diria o Denílson, "é show
e
O futebol é jogado de muitas maneiraspelo Brasil e pelo mundo - te-
Se outros setores adotassem essejeito "Notícias Populares" de ser, o jor-
e
mos o 3-5-2, o 4-4-2 e ainda o futebol-arte, o futebol-moleque,A-futebol
de resultados. Essas táticas e estilos são analisados e discutidos basicamente nal não diria que houve um "superfaturamento das obras e consequente des e
em dois idiomas: o que é falado nas arquibancadas e mesas de bar e o que é
vio de verbaspúblicas", e sim que "o juiz ladrão meteu a mão na sua grana' e
empregado nos jornais, nas rádios e nas TVs. Não é bonito o vocabulário -- mas a jogada também não. e
Esse futebolês da mídia é contagioso. Há anos ouvimos jogadores, narra (Fo//zade S. Pnulo, 25/ 10/200 1, caderno D, p. 4)
dores, repórteres e comentaristas usando uma linguagem repleta de jargões e
e frases feitas, que reproduzimos automaticamente. Bom, falo por mim...
Roteirode leitura
e
Apanho para encontrar o tom entre a formalidade respeitosae a informali
dade original.
8
As vezes, a língua-mãe (ou filha da mãe) escapa:outro dia, eu disse em
l Com bom humor, o texto contrasta duas lirzgtiagensusadas no +
futebol. Quais são elas?
um programa da Rádio Globo que o Taffarel era reconhecido por "catar
+
pênaltis" ao mesmo tempo em que era chamado de "Frangarel" pela torci-
2 Observe que a autora se refere à linguagem "repleta de jargões e +
da implicante. Gérson, comentarista do programa, deu risada: "Há quanto
frases feitas" o "futebolês" da mídia, que é "contagioso". Você
conhece mais exemplos dessas "frases feitas"?
e
tempo eu não ouço issol" Penseique falava do "Frangarel", mas foi o "catar +

'i 50 51 e
e
g
O$cirta de texto Capíttllo 2: A "guerra" das línguas
e
e Em contraste com o "futebolês da mídia", a autora assinala algumas for- guas que, desde o flm da Idade Média, caminhavam inexoravelmente para

+ mas espontâneasdo torcedor. Vejaque o texto trata basicamenteda felzsão a extinção. Ladino, corso, bretão, galego -- idiomas semimortos praticados

e rzafura! que existe entre as formas comuns da oralidade, a linguagem de todo


dia, não vigiada, e as formas, digamos, "engravatadas" da linguagem -- o tex-
apenas por uns poucos gatos-pingados ressurgem com força insuspeitada, jus-
tamente agora, quando as fronteiras na Europa Ocidental estão virando me
+ to escrito, ou a linguagem mais formal das mesas redondas e das entrevistas ros rabiscos nos mapas. Reunidos em Estrasburgo, na França, representantes
de televisão e rádio, em que o tom coloquial é socialmente mais controlado de 26 países europeus adotaram uma Carta Européia das Línguas Regionais,
e dirigido. que encoraja o uso de línguas e dialetos de minorias -- um total de sessenta

e Falar em público implica sempre cofzsfrtlir ilha imagem verbíz/, aspecto idiomas, falados por 50 milhões de europeus. A carta afirma que a prática

e às vezestão importante quanto o conteúdodo que se diz. Daí porque mui- de "uma língua regional na esfera pública e privada" é um direito inalienável
das minorias.
tas vezes as pessoas se "refugiam" nas frases feitas e lugares comuns como
© autodefesa.
e E claro que muitos outros aspectospodem interferir nessaatitude, inclu-
A resolução é consequência de uma barulhenta campanha feita por comu-
nidades minoritárias em seus próprios países, temerosas de ser engolidas por
e sive a simples timidez do falante. alas veja, no texto lido, como mesmo uma uma Europa federalizada. A pressão funcionou. SÓ neste ano, a Comunidade
e cronista experienteconfessaque às vezes"apanha" para descobrir o tom Europeia, CE, está torrando 4,2 milhões de dólares para, entre outras coisas,
e exato entre a linguagem formal e a informal. produzir programasde computador em gaélico destinadosà Irlanda e sus

e Essa é uma dualidade universal, que diz respeito a qualquer língua, ainda
tentar um centro de informações para as 420.000 almas que falam o frísio,
uma língua do ramo germânico usada em áreasrurais do norte da Holanda.
+ mais se submetida ao universo da escrita. Bem, se no Brasil as pessoas em
"A Europa já é uma torre de batel, e agora estão querendo construir mais
e geral se sentem um tanto insegurascom relação à língua, como vimos aci-
ma, tendendo sempre a considerar-se "erradas", em outros países a situação
alguns andares", protestou, em Bruxelas, um funcionário da CE descontente
com a medida. A ressurreição de línguas exóticas é mais intensa na Fiança,
pode ser diferente.
e Nesses casos, a variedade assume um sentido marcadamente político, e o
o país europeu de maior diversidade lingüística. No sul, o provençal, uma

e falante /az questão de ser diferente.


língua neolatina (como o português) consagrada pelos trovadores medievais,

e A esse respeito, leia o texto que se segue.


voltou a ser ensinadoem escolasprimárias, ao lado do francês. Calcula-se
que pelo menos 3 milhões dos 15 milhões de francesesque vivem na região
conheçam alguns rudimentos do provençal. Na Alsácia francesa, onde se
fala o alsaciano (cuja base escrita é o alemão), também foram criadas clas-
+ llEI Texto 2 ses bilíngues. E, na Bretanha, já há escolas com aulas em bretão, língua de
origem celta falada por apenas50.000 dos 2,8 milhões de habitantesdessa
As minorias falantes
e Líttguas exóticas, como o basco, ou semimortos, como o provertçat,
região, no noroeste da Fiança.
LÍNGUA OLÍMPICA - No país Basco, teimosamente fincado entre a
e gattham novo alento na Europa
Espanha e a Franca, já se pode ler jornais e assistir à televisão em basco, um

Como sc diz "bom dia" em bretão? E "muito obrigado" em provençal? idioma de origem misteriosa, sem nenhum parentescocom as demais línguas
+ As vésperas do século XXI, turistas desavisados que visitam determinados européias. O basco corre menos risco de ser engolfado por línguas majoritá-
e Fiações da Europa são surpreendidos pelo inesperado renascimento de lín- rias por causa do poderoso sentimento regionalista da região. Também ani-
e mado por uma renitente tradição autonomista na ilha francesa da Córsega, o

e 52 53
e
CapítLtlo 2: A "guerra" das !ínguas
e
{ O$cina de texto
e
dialeto corso, de origem italiana, tem conseguido sobreviverapesar da pre- a gente perceba essa distinção, muitas vezes sutil, para um maior domínio da e
sença poderosa do idioma francês. Cerca de 80% dos 240.000 corsos conhe- língua, tanto quando escrevemoscomo quando lemos. e
cem bem o dialeto. 4. Vamosanalisara esfrutttrado lexia, observandoos parágrafos. Dê o e
"A defesa da língua sempre foi um fator de resistência política para povos assunto de cada um deles:
ío\
e
empenhados em preservar sua identidade", nota o professor de lingüística
©
rosé Luiz Fiorin, da Universidade de São Paulo. O fenómeno é visível na
febre nacionalistaque tem varrido o leste europeu na fase pós-comunista,
2')
Ro\
e
mas também pode ser detectado no triunfo da língua catalã na Espanha. +
Reprimido na ditadura franquista, quando o uso do idioma era considerado
40\
e
um "ato de insubordinação", o catalão sobreviveu. Falado por metade dos 8
1 1 milhões de catalães, no ano passado dividiu com o espanhol, o francês
e o inglês a condição de língua oficial da Olimpíada de Barcelona.
E:1:3 Atividade 2
e
O Brasil tem pelo menos um dialeto bastante distinto, o chamado diaZefo
(Meia,ed. 1303) ca@iru,que, da mesmaforma como a língua-padrão, tem sido objeto de gra-
máticas e estudos linguísticos, embora não seja ensinado nas escolas. Temos
e
também fortes variedades regionais, nos vários pontos do país. E em muitas
+
[11:11:3
Roteiro de leitura regiões se falam outras línguas, como o italiano, o holandês, o japonês, o ale- ©
mão, o polonês, quase sempre em modalidades não padrões. E, é claro, temos e
1. Antes de mais nada: qual o assuntodo texto? O texto tem unidade
famélica, ou fala de muitas coisasao mesmo tempos
igualmente as diferentes línguas (algo em torno de uma centena e meia) fala- e
2. Façaum resumodo texto lido, empregandoentre25 e 30 palavras.
das pelos vários povos indígenas do Brasil.
Paradiscutir: Por que não têm acontecido, no Brasi], movimentos de defesa
e
3. Observeque o texto é basicamentede ilzáormação isto é,Ateiescrito de minorias linguísticas como os que acontecem na Europa? Isso é bom ou
com a intenção principal de dar ílzjormações ao /eífor sobre o ressurgimento de isso é ruim? Por quê?
e
línguas regionais na Europa. Entretanto, o autor deixa passar alguns sinais do e
gele eíepefzsa sobre o qtíe está informando, isto é, ele informa também a opinião
Como exercício, ponha por escrito as suas conclusões sobre a questão
e
que ele [em a respeitodo que se passana Europa.
discutida. Não esqueça do títulos e
Por exemplo: quando ele diz que estão ressurgindo idiomas semirnorfos +
praficízdos apenas por uns poucos galos-p;ízgados, que opinião ele está pas-
sando ao leitor sobre essesidiomas9
Z:1:113
Linguagem oral X linguagem escrita e
Continuemos especulandosobre as diferenças entre a fala e a escrita.
Localize outros momentos do texto em que a informação está "contami-
nada" de opinião. Mas lembre-se: não há nada de errado nisso. boda infor- Outra distinção importante é a do vocabulário. Quando falamos, nós dispo- +
mação contém, em maior ou menor grau, uma opinião. Nós, leitores, sere-
mos de todo o vocabulário que a nossa memória consegue guardar, em torno e
mos sempre desafiados a concordar com ela ou dela discordar. b/lais adiante
de 3.000 a 5.000 palavras. Mas a língua, é claro, dispõe de muito mais pa- +
vamos ver em detalhes esseaspecto do uso da linguagem. O importante é que lavras -- no caso do português, cerca de 400.0001 Como ninguém tem tanta
e
+
. 54 55 e
e
e g O$cina de texto Capítulo 2: A "guerra" das línguas
8
e memória assim, essearsenal de palavras está armazenado nos dicionários, a) Os carastambém descobriram uns restosde bichos da ilha, numa parte da
e por escrito, para a gente não esquecer! terra que fica embaixo de onde estavam os esqueletos.

+ Esta é uma típica distinção entre as línguas que contam com um sistema b) Os cientistas também descobriram restos de fauna insular. numa camada

e de escrita e as que sobrevivem apenaspela oralidade. E é uma distinção que


está relacionadadíretamentecom o processocivilizatório. Isto é, cada vez
de terra inferior àquela em que foram encontrados os fósseis.

e que há um invento novo -- um avião, por exemplo cria-se junto com ele um
e sem-número de palavras novas para designar objetos que não existiam antes.
Algumas distinções são esfruflzrais, como veremos mais adiante. Por en-
quanto, interessa-nosa questão do vocabulário. O domínio da escrita exige
e Imagine, por exemplo, qual o significado de palavrascomo pírabrequim, uma ampliação do nosso vocabtz/brio por duas razões:
caro {rczdocp/afinado, para uma nação indígena que nunca viu um carro na
1. na produção de textos escritos, o vocabulário da oralidade, ótimo
© vida. NenhumaEm compensação,um índio é capazde nos dar 300 nomes
para conversar, revela-se quase sempre insu6lciente ou inadequado
e diferentes para aquilo que para nós não passariade Halo, ou planta.
para resolver as exigências de síntese e de clareza da escrita;
e Isso não quer dizer que uma língua seja me//zorque a outra; significa
apenasque as línguas que têm um sistemade escrita zêmmais palavras que
2. na leitura de textos escritos, com muita frequência encontramos
e as outras. Lembre-sede que o latim, a poderosalíngua do Império Romano
palavras de pouco ou nenhum uso na oralidade; se não as conde

+ que tomou conta de boa parte da Europa, em sua origem nada mais era do
cemos, nosso acesso à informação fica prejudicado.

e que uma espécie de "dialeto caipira", exclusivamenteoral, falado por meia-


E claro que ninguém precisa decorar as 400.000 palavrasda língua para
escrever bem -- nem sair por aí falando como um papagaio que decorou uma
+ dúzia de gatos-pintados da regiãodo Lábio, na ltália. E o português, hoje
enciclopédias Trata-se, simples e modestamente, de uma ampliação do hori-
8 uma das dez línguas mais faladasdo mundo, começou humildemente como
zonte dos significados que nos rodeiam.
e um dialeto de camponeses da Galícia.

e C) vocabulário tem uma importância especialna escrita pelo fato de que,


na ausência do interlocutor, as palavras devem ser mlzífo /mais ;#ecisas, de
Exercício
e modo a evitar duplos-sentidos ou ambiguidades. Paravocê perceber na prática o potencial do vocabulário da língua, rees-
e Observe:
creva as sentenças abaixo substituindo as palavras e expressões destaca-
e a) Quebrou aquela pecinha meio torta que faz faísca ali, tá vendo? das por palavras e expressões sinânimas. Na dúvida, consulte o dicionários

b) Quebrou o platinada. Observe que, muitas vezes, uma mudança de palavra exige uma mudança de

+ estrutura por isso, é mtli/o imporzarzzetranscrever a senfeizçaiizfeíra

e Nesse caso, o uso da palavra "platinada" resolveu uma penca de proble-


1. A existência de óic/zos tão antigos com essa caracferíkfíca seria a

e mas de comunicaçãol
tropa de que a ilha não estava ligada ao continente antes da chega-
da dos primeiros homens à região.
e Além desse aspecto, há outro igualmente importante: a língua escrita dis-
2. As vésperasdo século.XXr, turistas desavísadosque visitam de
© põe de um vocabulário mais ou menos padronizado quase um "estilo" -- que
terminados ríncões da Europa são stlrpreelzdidos pelo inesperado
+ evita as inevitáveis repetições e redundâncias de nossa fala. A escrita sempre
renascimentode línguas que, desde o /im da Idade Média, cami-
e procura ir "direto ao assunto", de um modo que normalmente não usamos
na fala. Compare:
nhavam inexorapelmelzte para a exfílzção.

© 56 57
e
OPcina de texto Capítulo 2: A "guerra" das !írLgtias

3. No país Basco,teimosamentefincada entre a Espanhae a França, nominal(todas as casas apare/as consfrlt as pelos ePzgelzheíros
rios bairros
já se pode ler jornais e assistir à televisão em basco, um idioma de a/àsíados) - há marcas de plural(concordátzcia de núimro) e de masculino
origem misteriosa, sem nenhum parePztescocom as demais línguas e feminino(corzcordáízciade gêlzero:casasamarelas; bairros aÁasfados)em
europeias. praticamente todas as palavrasda sentença.
4. O basco corre menos risco de ser engolfado por línguas m@oHfárias Entretanto, nas variedades orais do português, nós temos uma tendên-
por causa do poderoso sentimento nacionalista na região. cia muito forte a suprimir algumasmarcasredundantesdo plural. E só
5. Também animado por uma rerziferzfetradição aufoízomisía na ilha prestar um pouco de atenção e ouviremos o tempo todo construções assim:
francesa da Córsega, o dialeto corso, de origem italiana, tem con- Os cara chegaramlá.
seguido sobreviverapesarda presençapoderosado idioma francês; Os engenheiro construíram as casa.
6. A resstÉrreição
de línguasexóflcasé mais ílzfensana trança, o país
atirarem de maior diversidade linguística.
Nessas variedades do falante urbano escolarizado, a supressão de con-
7. Enquanto a escrita cuneiforme e os hieroglifos egípcios desapa- cordância em geral se restringe à concordância nominal (substantivos e adje-
receram do uso corrente com o passar do tempo, darzdo lugar a
tivos) de número. A concordância verbal semantém, embora seja sistemático
linguagens que desembocavam nos anuais alfabetos, o chinês con-
o corte do s Rinaiem alguns casos:
fia a sendo falado e escrito por um quirzfo da população mundial.
Vamp lá agora?
8. Na China Antiga, os ossosde cordeiro eram tlsadospor adivinhos
e profetas para prwer o futuro.
Observeque, apesardo corte do s, a terminação mo marca o plural.
9. As tentativas mais remotas que o homem fez de comunicar-se afra-
uésde símbolosdatam de 20.000 a.C. Naturalmente, se o falante frequenta ou frequentou esco]a(onde há uma
vigilância policial contra erros de concordâncias), ele tem consciência dessa
10. Por ser a língua mais antiga ainda em uso rzop/alzefa, a (ã.mesa é a
diferença: ele cortará o s em situações informais (na cantina, no campo de
que melhor luar(ü as característicasde frarzsíçãoentre o desenho
e a escrita moderna. futebol...) e procurarázelosamenteconserva-lo nas situaçõesmais formais,
de modo a valorizar sua "imagem verbal
Caso bastante diferente é o do falante de variedades socialmente estigma-
Tópicos da escrita M [izadas (variedadesrurais, por exemplo), que frequentou pouca ou nenhuma
escola. Nessecaso, a dificuldade de dominar a concordância padrão será
concordância 1: sujeito depois do verbo maior, e é muito provável que ele sofra bastante pela língua que fala sempre
que quiser entrar no universo social dos "bem-falantes". Sabe-se que, do
Observe esta Sentença:
ponto de vista da linguística, nenhuma variedade é melhor ou pior que outra,
Todas as casas amarelas construídas pelos engenheiros nos
e que foi apertasum acidentehistórico que levou uma variedadea ganhar
bairrosafastadossofreraminfiltrações.
um sistema de escrita em detrimento das outras; mas as pessoas leigas não
pensam assim e, mais do que a variedade que ouvem, julgam a própria pessoa
Como você pode ver, na língua-padrãonós somos muito exigentesno como "melhor" ou "pior
que diz respeito à concordância verbal (as casas se/eram) e à concordância

59
58
L:;
e g' Capítulo 2: A "guerra" das !ínguas
e O$cina de texto

Os resultadossaíram.
Mas vamos nos deter na escrita padrão, que é o que nos interessa aqui. Em
e geral, quem frequentou alguns anos de escola não tem muitos problemas com As usinas foram inauguradas.
+ a concordância, e consegue separar a oralidade da escrita. Cinquenta pessoasapareceram na festa

e Apenas uma estrutura sintática merece uma atenção especial: é aquela em

e que o sujeito aparece depois do verbo. Observe as expressõesdestacadas des-


te parágrafo do texto que lemos no primeiro capítulo:
Por isso, é preciso prestar uma atenção especialao escrever estruturas
semelhantes,para a oralidade não "contaminar" a concordância do padrão
Fo/ anunc/ada na semana passada uma descoberta que pode lançar novas escrito.
e luzes sobre as origens da língua escrita. Arqueólogos chineses encontraram nas
escavaçõesde um antigo altar usado para sacrifícios, na província de Shandong. Exercício
e leste da China, dois pedaços de ossos de cordeiro onde foram escu/pfdos o/fo
+ ca/alteres, consideradosuma forma primitiva de chinês. Junto com os ossos, Teste seu domínio da concordância: reescreva as orações abaixo substi-

e desenterraram-se360 peças de ceómfca pertencentesà cultura yueshi, que


viveu em Shandong 3.500 anos atrás.
tuindo as palavras sublinhadas pelas palavras entre parênteses
1. Faltou troco. mas no orimeiro dia de convivência com a nova nlaeda não
+ houve incidentes. (moedas / os primeiros dias / dinheiro)
e 2. Fechada no dia anterior, a..pesa!!!B trouxe boas notícias. (os levanta-
e Veja como a forma verbal an/ecoa o sujeito, concordando com ele:joi arzuíz-
ciada tina descoberta; juram esculpidos oito caracteres; desenterraram-se 360 mentosde preços)
+ peças de cerâmica. Observe outros exemplos básicos,de uso bastante comum: 3. Aconteceu, ao contrário do que previa aula!!çlárla, t!!na.bea.reçep!!vl
Saíram os resultados. dado ao novo sistema de avaliação. (os comentaristas / manifestações
e Foraminauguradasas urinas. de apoio)

+ Apareceram cinquenta pessoas na festa. 4. Deve começar, nos próximos dias. uma campanha nacional deescla
reç!!nenb. (as quedas de braço entre os supermercadose os consumi-

e Nesse tipo de construção, a tendência (muito fortes) da linguagem oral é


dores)

e suprimir a concordância:
5. Não aconteceu, na semana passada, nenhuma decisão imoortâotc em
Brasília que pudessepâr em risco a estabilidade. (reações políticas}
Saiu os resultado(s).
6. Se estivesse prestando atenção aos movimentos do consumidor, g pre
+ Foiinauguradoas urina(s).
sldenb poderia comemorar. (os ministros)
e Apareceucinquentapessoa(s) 7. No Brasil, é sempre um espanto a queda dos preços. (as quedas de
e preços)
e E não se trata simplesmente de "erro" de "ignorantes". Preste atenção 8. Qs..tules- que são o grande vilão do momento foram o tema de uma
e nos noticiários da televisão e do rádio, nas entrevistasde políticos e intelec- reunião ministerial. (a taxa de juros)

e tuais, e você perceberácomo é frequente essaocorrência na fala. Ê um caso


específico do sujeito akpois do verbo, porque de outra forma a concordância
9. Se persistirem, es.ililQS.a!!es levarão o país a uma recessão monumen

e se mantém sem problemas:


tal. (a taxa de juros)

60 61
O$cina de texto Capítulo 2: A "guerra" dm títtguas
e
©
10. Se for mudado agora, por decreto, adirecionamento económico, o país Aqui a forma do verbo (inflnitivo rzãoJlexíonado) não tem sujeito; é como e
levará um choque. (as regraseconómicas) se o verbo fosse,na verdade,um substantivo:A fala é fácil; o difícil é o en-
tendimento . ..
e
+
concordância 2: infinitivo flexionado Essescasos não apresentam nenhum problema. e
Observe estas sentenças:
Riasagora veja:
e
Para nós falarmos na reun/ão, temos de estar preparados.
1..A resolução é consequência de uma barulhenta campanha feita por
comunidades minaritárías em seus próprios países, temerosas de seí e
ergo\idas por uma Europa federalizada.
Aqui as formas verbais são pessoais,isto é, têm um sujeito (lzós). E agora, a
+
Pergunta: temerosas de ser eizgolidas ou temerosas de serem engolidas?
sentença está certa? Ou deveria ser lemos de esfanlzosprq)arados?
Se você às vezes vive essa dúvida, console-se: os gramáticos e dos bonsl
8
apanham" muito do infinitivo, tentando sistematizar seu uso. O gramática
+
2. Os pa/ses estão torrando m//iões de dó/ares para produzir programas Rocha Lama, em sua Gramática fzormaflva, acaba confessando sobre o infi- e
de computador. nitivo flexionado e o não flexionado: "Até hoje não foi possívelaos dramáti- e
Pergunta: Para produzir ou pízra produzirem? cos formular um conjunto de regras Rixas,pelas quais se regesseo emprego +
de uma e outra forma"'. A verdadeé que, estabelecidauma regra, logo se
encontram inúmeros exemplos na literatura que a contradizem, como se o
3. A língua sempre foi um fator de resistência política para pavas empe
emprego do inHlnitivo fosse quase um zerrí/órío lípre da /írzguagem, em função
+
nhados em preservar sua /dent/date.
do estilo, da ênfase ou da clareza, como assinala o próprio Rocha Lama. Isso
Pergunta: Empen/ladosem preservar ou emperzhadosem preservarem?
com respeito ao uso literário da linguagem, que ainda serve de base à imensa e
â
maioria das gramáticas. e
4. E/es podem ler .forma/sem basco. Valetudo, então?
e
Pergunta: Podem ler ou podem lerem? Não é bem assim. Embora o inGlnitivo flexionado seja em boa parte facul- e
Com certezavocê já sentiu uma certa insegurançaao escreverformas
tativo, há algumas situações em que ele não pode ocorrer e outras em que ele
é bastante recomendável. Podemos formular algumas regrinhas muito úteis,
e
verbais semelhantes: usar o singular ou o plural (ou, mais precisamente, fle se pensarmos que o padrão escrífo colzlemporáneo do português está não só no
xionar ou não flexionaro verbo)? texto literário, mas também na língua dos meios de comunicação de massa. +
As formas assinaladasacima Zec/!eram,produzir/produzirem etc. -- são e
chamadas pela gramática normativa de formas do ínl/in;tiPOpessoal, ou .Pexío- t . Usa-seo infinitivo não flexionado: e
rzado. Isto é, nessescasos, a forma básica do verbo (ler; produzia presemízE..), a) Em locuções com verbos auxiliares com ou sem prepostçao: e
que em geral é imutável (WPeré lutar, como no verso famoso de Gonçalves . devemos dizer e
Dias), /Zexíorzam-sede acordo com o sujeito.
Confira:
' queremsaber e
1. Llb'IA, Rocha. Gramática lzormafípada língua portuguesa. Rio de janeiro: rosé Olympio
Fa\ar é fácil; o difícil é eíç\endet esse tal de infinitivo. Editora, 1976. 18. ed. p. 380.

62 63
e
ü.bi
+ Capítulo 2: A "guerra" das línguas
e O$cina de texto

© poderíamos afirmar ' Apesar de e/es serem, sem nenhuma dúvida, os culpados do crime, nada
e tentaríamos fazer se fez até agora

e vão contradizer 0 fato de os #scais enconf/alem farta documentação não significou nada
no andamentodo processo.
+ acabaram de falar
Para nós desenharmos um círculo, precisamos de compasso. (Observe
tornam a reclamar
como, aqui, a ausência do nós desobriga-nosde flexionar o verbo: Para
' começaram a cair desenhar um círculo, precisamos de compasso.\
e etc
As regrinhas acima, que não têm nenhuma intenção de esgotar essecom-
e Pode-sedizer, hoje, que estaregra é obrígafóría,isto é, excito em usos plexo tópico gramatical da língua portuguesa, cobrem a maior parte das dú-
8 muito específicos da linguagem literária, principalmente em escritores clássi- vidas de quem escrevee podem servir de orientação. A prática da leitura e
cos, a flexão do infinitivo nessas locuções não ocorre. da escrita acabará por dar maior segurança a você. E lembre-se: no caso do

+ inRinitivo.o otlvido costumaser um bom conselheiro.A sentençasoa bem?

e b) Normalmente, usa-seo inhnitivo não flexionadoem locuçõesregidas Faça um teste, assinalando no exercício que se segue os casos obrlgafóríos e
os facultatiL'os.
e por preposição (de, para, em, a...), como nos exemplos iniciais:
. [as comunidades] temerosas de ser engolidas. 1. 0s descendentes
de escravos,vindosda Bacia ou da área rural do
Estado do Rio, só tinham os atabaques para tocar/tocarem.
e ' [os países] estimu]ados para produzir programas...
2. Para combater/combaterem o preconceito, eles se vestiam o melhor
e ' [povos] empenhados em preservar.
possível.

e . [os deputados]

. etc
dispostos a recusar o prometo...
3. Os sambistas cariocas do final da década de 20 gostavam de se ex/b/r/

+ ex/f)/rem um para o outro


Esta parece ser a tendência dominante da linguagem contdnporânea,
+ nas estruturas com preposição. Assim, você não precisa se preocupar com
4. Foi para esquentadesquenfarem o desafio que eles resolveram cromo

e a flexão: use o infinitivo "puro" sem medos Entretanto, um gramático teria


rer/promoverem uma competição para ver/verem quem era o melhor.

e dificuldade de afirmar, com absolutasegurança,que o emprego do in6initivo 5. No ano seguinte, era vez de O G/oóo. o ãouríng C/uó e a prefeitura do
Distrito Federal/nst/fu/r/instituúem um concurso.
e flexionado nesses casos estaria errado, porque o uso da flexão pode ser inter-
6. Foi quando as escolasficaram.obrigadas a manter/mar7ferem a ala das
+ pretado como um recurso estilístico para dar mais ênfase à afirmação. Veja:
baianose a bateria
e Os povos marginalizados, na luta contra os poderosos, estão empenha-
dos, cada vez mais, ano após ano, em preservarem suas tradições.. 7. Até 1930 o próprio samba era um género /nde/7n/do= a classificação
e Mas, na dúvida, fique com a forma não llexionada: é o uso corrente.
valia tanto para o maxixe como para variações da polca e do chorinho,
+ que podiam ser/serem ótimos no salão, mas eram ruins para se dançar/

e 2. Flexiona-se o inHinitivo obrigaloriameníe em um único caso: quando o


dançaremao longoda rua.

+ verbo tem um sujeito próprio, expressona sentença.Confira:


E para encerrar: volte ao início deste tópico e responda às quatro pergun
tastnictats
. Para os po//ciafs darem uma ordem de prisão, é necessárioo flagrante.

e
+ '} 64 65
CapítLtio 2: A "gtwrra" dm !ínguas
+
O$cina de texto
e
escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas ©
Leitura livre
para pega-las, mira-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) e
No aeroporto
pâ-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém e
Cardos Drummond de Andrade
duvido que mantenha este juízo diante de Pedra, de seu sorriso sem malícia
e
e de suas pupilas azuis -- porque me esqueciade dizer que tem olhos azuis,
cor que afasta qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima
e
Viajou meu amigo Pedro. Fui leva-lo ao Galeão,onde esperamostrês
de seus ates.
horas o seu quadrimotor. Durante essetempo, não faltou assunto para nos
eRtretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre Poderia acusa-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os +
tivemos muito assunto, e não deixamos de explora-lo a fundo. Embora Pedro cómodos, e o que Ihe ocorria fazer, fazia em qualquer partemZangar-me e
seja extremamente parco de palavras, e. a bem dizer, não se digne de pro com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. jamais me voltei 8
nunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas;o mais é conversa de gestos para cedro que ele não me sorrisse; tivesseeu um impulso de irritação, e me
sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas
e
e expressões, pelos quais se faz entender admiravelmente. E o seu sistema.
coisas eram indiferentes à nossa amizade -- e, até, que a nossa amizade lhes
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria
conferia caráter necessáriode prova; ou gratuito, de poesia e jogo. e
para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi
secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana Ihe dá prazer. Seu sor- Viajou meu amigo Pedro.Fico refletindo na falta que faz um amigo de um e
riso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções ano de idade a seu companheirojá vivido e puído. De repenteo aeroporto
para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de ficou vazio. e
rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos,gratificados com essesorriso (Do livro Cadeira de Balanço. Reprod. em: Poesia rompia/a e prosa. e
(encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação. Rio de janeiro: rosé Agui]ar Editora, ]973, p. 1 107-1 108)
e
Devo dizer que Pedra, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários
especiais, comidas especiais, roupas especiais,sabonetes especiais, caiados es-
e
pedais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e +
privilégios maiores. Recebiatudo com naturalidade, sabendo-se merecedor
das.distinções, e ninguém se lembraria de acha-lo egoísta ou importuno. e
Suas horas de sono -- e Ihe apraz dormir não só à noite como principalmen- e
te de dia -- eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos
e
erguer a voz para não acorda-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não
se zangada com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o
e
corte de seussonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito con- e
certo para violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se +
forjaram à tortura da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos e
tropeções no escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.
+
Objetos que visse em nossamão, requisitava-os.Gosta de óculos alheios
e
(e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de
e
66 67
©
+
b.

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