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Processo: 00433/13.2BECBR
Secção: 1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão: 30-10-2020
Tribunal: TAF de Coimbra
Relator: Frederico Macedo Branco
Descritores: MUROS DE CONTENÇÃO; REPOSIÇÃO DA LEGALIDADE URBANÍSTICA; ARTº 102.º DO REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E EDIFICAÇÃO - RJUE
Sumário: 1 – Tendo os Serviços do Município reconhecido que a Santa Casa foi vítima de trabalhos realizados em terreno adjacente ao seu, mal se compreenderia que esta pudesse vir a ser penalizada em decorrência de
circunstância para a qual não contribuiu, nem por ação, nem por omissão, consubstanciada na verificada instabilidade da encosta.
2 – Uma vez que os verificados deslizamentos de terras resultaram comprovadamente das obras referentes ao «projeto de obra de construção de um muro de encosto para a consolidação e reparação de talude, no
loteamento da Quinta da Conchada», executadas por titulares de alvará válido, mas em desconformidade com o projeto aprovado, deverão estes ser responsabilizados pela ocorrência, e não a Santa Casa,
enquanto titular do prédio para onde deslizaram as terras.
3 - Correspondentemente, deveria o Município, nos termos do Artº 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - RJUE, designadamente, ter determinado ao titular do alvará, a reposição do
terreno no estado em que se encontrava antes do início das obras.
4 – Resultando dos Autos que a Santa Casa não promoveu a realização no seu prédio de quaisquer obras, muito menos aquelas que vieram a determinar os deslizamentos de terras, tendo-se, aliás, oposto
expressamente à sua efetivação, mostrar-se-ia inaceitável ser responsabilizada pelas consequências das obras levadas a cabo, e face às quais o Município, podendo e devendo tê-lo feito, não interveio na
reposição da legalidade Urbanística.
5 – Assim, deverá o Município, enquanto titular da obrigação de reposição da legalidade urbanística na sua área territorial, diligenciar diretamente, ou por via do titular do referido Alvará, no sentido de dar
satisfação às conclusões de relatório de inspeção realizada, tendente à reposição normalidade urbanística.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente: Santa Casa da Misericórdia de (...)
Recorrido 1: Município de (...)
Votação: Unanimidade
Meio Processual: Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão: Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico: N/A
1
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I Relatório
A Santa Casa da Misericórdia de (...), devidamente identificada nos autos, no âmbito da ação administrativa especial, intentada contra o Município
de (...), tendente à impugnação do despacho de 21/03/2013 e, cumulativamente, que o R. seja condenado a dar cumprimento ao projeto de desaterro e
de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião da Câmara Municipal de (...) de 16/07/2001, bem como às conclusões
constantes do relatório de inspeção efetuado no dia 29/01/2013 sobre o talude existente nas traseiras dos lotes n.ºs 17 a 35 do Loteamento n.º 427/99,
em nome da M., Lda., inconformado com a decisão proferida em 18 de abril de 2020, no TAF de Coimbra, na qual a Ação foi julgada improcedente,
veio interpor recurso jurisdicional.
Formula o aqui Recorrente/Misericórdia nas suas alegações do Recurso Jurisdicional, apresentado em 29 de junho de 2020, as seguintes conclusões:
“1- Foi proferida sentença à ordem dos presentes autos na qual o Município de (...) (Réu, ora Recorrido) foi absolvido dos pedidos formulados pela Santa Casa da
Misericórdia de (...) (Autora, ora Recorrente), através dos quais se pretendia que aquele fosse condenado a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento
de muros de contenção de terras aprovado em reunião camarária do dia 16/07/2001, nos exatos termos da sua aprovação, bem como a dar cumprimento às conclusões
que constam do relatório da inspeção realizada no dia 29/01/2013 ao talude das traseiras dos lotes 17 a 35 do loteamento n.º 427/99, sito na Estrada de (...), em (...);
2- Na sentença recorrida, justifica-se a decisão com a urgência que haveria na resolução do problema que havia com o talude e que tal circunstância seria suficiente para
que se considerasse que naquele contexto nada mais seria exigível ao Município a não ser deixar que as obras efetuadas pelos contrainteressados pudessem ser
finalizadas (apesar de elas desrespeitarem por completo os projetos inicialmente aprovados). Do mesmo modo, considerou-se que jamais deveria ficar o Recorrido com o
ónus de dar cumprimento às conclusões inscritas no relatório relativo à inspeção realizada em 29/01/2013 na medida em que esse encargo cabe somente ao proprietário
dos terrenos afetados (a ora Recorrente);
3- Deverá ser dado como provado o seguinte facto: A execução das escavações por parte dos contrainteressados teve como consequência, nomeadamente, um aumento da
inclinação do terreno (20.º a 30.º) e a descompressão superficial dos pelitos, expondo-os a grandes variações do teor em água, por força do disposto no Doc. 10 junto
com a petição inicial;
4- Do mesmo modo, em função do teor da informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso, também deverá integrado na lista do acervo probatório dado
como provado o seguinte facto: A Santa Casa da Misericórdia de (...) nunca deu autorização aos contrainteressados para que estes pudessem fazer obras ou outras
intervenções similares nos seus terrenos, situação que foi atestada pelo próprio Município na informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso, datada de
06/07/2006;
5- O ponto 5) dos factos dados como provados na sentença sublinha que (e citando) “Nos termos da informação n.º 187/01, de 11/02/2001, a DGUC alertou para a
possibilidade de ocorrerem deslizamentos e/ou derrocadas, uma vez que tinham sido efetuados pela M., Lda. «trabalhos de desmonte na crista dos taludes posteriores dos
lotes, do lado Poente, tendo-se prolongado pela encosta adjacente, propriedade da Santa Casa da Misericórdia» tendo, em consequência, aquela sociedade sido
notificada, através de ofício de 02/03/2001, para apresentar, no prazo de 30 dias, um «projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente onde
tinham sido ou viessem a ser efetuados trabalhos»”;
6- Contudo, não foi tido em consideração o facto de a necessidade de se proceder à estabilização do talude ter decorrido diretamente da atuação dos contrainteressados
(nomeadamente a M.), sendo essa a única razão para que a partir do ano de 2001 tivesse passado a haver sinais evidentes (e preocupantes, segundo a informação
prestada por aquele organismo) de instabilidade na encosta (tal como evidenciado pelo Doc. 10 junto com a petição inicial);
7- A Recorrente sempre se opôs à realização e prolongamento das obras feitas pelos contrainteressados ao abrigo do alvará n.º 427/99 para terrenos que são sua
propriedade, facto que foi por inúmeras vezes reportado ao Município (como se pode constatar nos pontos 11), 13), 30) e 34) da matéria de facto dada como provada), ao
contrário do que havia sido transmitido pelos contrainteressados, de tal forma que a aprovação das obras de estabilização ficou pendente de apresentação de
comprovativo de consentimento que nunca foi junto;
8- O Município, ora Recorrido, deveria ter usado os mecanismos previstos nos art. 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, nomeadamente lançando
mão da medida de reposição do terreno no estado em que se encontrava antes do início das obras.
9- Ao invés, autorizou uma alteração ao projeto original que fez com que passasse a haver trabalhos em terrenos da Santa Casa da Misericórdia, sem a sua autorização e
sem ter sido consultada para o efeito pelo Município, com a agravante de ter sido crucial para o Recorrido deliberar no sentido da aprovação o facto de os
contrainteressados terem insistido na tese de que haveria autorização verbal por parte do então Provedor da ora Recorrente, sem que alguma vez tivesse sido
apresentado documento comprovativo (ver, neste âmbito, o ponto 36) dos factos dados como provados);
10- O Recorrido, salvo melhor opinião, demitiu-se na totalidade das suas obrigações enquanto garante da legalidade urbanística, até porque tanto no momento em que
teve conhecimento da instabilidade da encosta (em 2001), como à data da primeira comunicação remetida pela Recorrente (em 2002) seria certamente muito mais fácil
adotar na íntegra qualquer medida, sobretudo aquela que foi acima indicada, que repusesse a legalidade (razão pela qual, entre tantas outras, a Recorrente estranha que
na sentença recorrida se refira que não seria adequado que se adotassem medidas de tutela de legalidade urbanística nesta situação em apreço);
11- Perante este problema, o Recorrido sempre teve a intenção de se demitir das responsabilidades que lhe cabiam, focando-se antes em passá-las para outras entidades,
sobretudo a Recorrente (veja-se, neste âmbito os pontos 25), 35) e 36) da matéria de facto dada como provada na sentença ora recorrida);
12- O Recorrido não fez o que lhe competia para que ficasse garantida a legalidade urbanística no caso em apreço e é apenas e só isso que está aqui em discussão, não
obstante em vários pareceres e recomendações ter querido dar à questão em análise uma aparência de problema do foro privado. A Recorrente nunca teve o intuito de
discutir nesta sede danos ou montantes indemnizatórios (por isso mesmo fez os pedidos constantes da petição inicial e apresentou ação num tribunal administrativo);
13- A Recorrente não fez obras no local, não as autorizou nos terrenos que são sua propriedade e opôs-se de forma evidente às mesmas. Como tal, não poderá ser
onerada com o cumprimento de obrigações decorrentes de uma situação que não criou nem tão-pouco agravou;
14- Apesar do conhecimento que o Recorrido tinha da situação desde o seu início e de nada ter feito para repor a legalidade, acresce ainda que, a título de exemplo, não
desempenhou devidamente as suas funções de fiscalização, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 93.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação;
15- As obras relativas à contenção, arranjo e estabilização do talude são parte integrante do projeto de obras de urbanização na medida em que o projeto que lhes diz
respeito foi considerado projeto complementar (ver ponto 8) da matéria de facto provada), ou seja, é parte integrante do projeto de obras de urbanização do alvará n.º
427/99;
16- Sabendo que a deliberação camarária de aprovação da receção definitiva das obras de urbanização nunca foi comunicada à Recorrente, não se poderá considerar,
ao contrário do que consta da sentença recorrida, que este aspeto já se encontra consolidado na ordem jurídica;
17- O Recorrido cometeu uma ilegalidade ao ter prescindindo das garantias bancárias com a aceitação da receção definitiva das obras, sabendo que parte delas não
respeitaram o projeto aprovado (mais concretamente, o projeto de desaterro, de construção de muros de suporte e de contenção);
18- Crê a Recorrente que, em sede destes autos, resulta devidamente provado que a atuação do Município, ora Recorrido, foi insuficiente;
19- Serão violados princípios tais como os da legalidade, da proporcionalidade, da razoabilidade e da boa-fé caso a Recorrente, por força de tão pobre desempenho do
Recorrido na defesa da legalidade urbanística, venha a ter em cima dos seus ombros o ónus de legalizar obras que não executou, não autorizou e que ultrapassaram os
limites do loteamento, ainda para mais sabendo que tais intervenções tiveram origem em trabalhos dos contrainteressados que causaram danos à estrutura da encosta,
simplesmente porque aquela é proprietária de um terreno afetado;
20- A argumentação da sentença recorrida vai, na sua generalidade, totalmente ao encontro do exposto na petição inicial, tendo resultado, porém, num veredicto oposto
àquele que deveria ter sido proferido, pelo que importa aqui adequar a decisão aos fundamentos invocados na sentença (para além da inclusão no catálogo da
factualidade dada como provada os factos a que já se fizeram referência em momento anterior nestas alegações, constantes dos pontos 5 e 7 das conclusões aqui
vertidas);
21- Finalmente, em face do exposto, deverá caber ao Recorrido a obrigação de dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção nos
exatos termos em que o mesmo foi aprovado (nomeadamente, lançando mão dos institutos previstos nos arts. 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e
Edificação). Caso se entenda que atualmente já não será possível utilizar tais instrumentos, deverá então o Município, pelo menos, providenciar pelo cumprimento das
conclusões vertidas no relatório elaborado na sequência de inspeção realizada no dia 29/01/2013 sobre o talude em apreço nestes autos, pedidos em relação aos quais a
Recorrente volta a pugnar nesta sede pela sua procedência.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser alterada a matéria de facto provada
através da inclusão da factualidade vertida nos pontos 3 e 4 das conclusões supra vertidas, devendo também ser revertida a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª
instância, sendo substituída por outra que dê provimento aos pedidos formulados pela Recorrente no sentido de o Município de (...), ora Recorrido, ser condenado a dar
cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião camarária do dia 16/07/2001, nos exatos termos da sua
aprovação, bem como a dar cumprimento às conclusões que constam do relatório da inspeção realizada no dia 29/01/2013 ao talude das traseiras dos lotes 17 a 35 do
loteamento n.º 427/99, sito na Estrada de (...), em (...). Assim se fará a necessária e habitual JUSTIÇA”
O Município Recorrido veio a apresentar as suas contra-alegações em 16 de julho de 2020, sem conclusões, terminando, referindo:
“Termos em que e nos mais de direito, deve o recurso interposto ser julgado totalmente não provado e improcedente, com todas as legais consequências, confirmando-se
a douta sentença recorrida. Assim se fazendo Justiça!”
As Contrainteressadas T., Lda. e A. vieram apresentar as suas contra-alegações conjuntas em 15 de setembro de 2020, concluindo:
“1.ª A motivação do recurso apresentado pela Recorrente, assente no pedido de alteração/aditamento à matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida, e
na alegação de que a mesma desrespeita normas e princípios de direito administrativo, cujo cumprimento alega deveria ter sido assegurado pelo Município de (...) não
poderá proceder, porquanto assenta em fundamentos que carecem manifestamente de sustentação, subscrevendo-se na íntegra o entendimento plasmado na douta
sentença recorrida, bem como nas contra-alegações apresentadas pelo Réu Município de (...).
2.ª Carece de utilidade o aditamento da matéria vertida nas conclusões 3 e 4 das alegações de recurso ao elenco dos factos provados pela sentença recorrida, porquanto
não terá como consequência qualquer alteração do sentido da decisão recorrida, na medida em que a encosta a intervencionar está inserida em terrenos que não estão
abrangidos pelo Alvará de Loteamento n.º 427/99, e que são propriedade da ora Recorrente, pelo que no caso de se verificar qualquer situação de risco nessa encosta,
que exija uma intervenção exterior ao Talhamento/Alvará das obras de urbanização n.º 427/99, como se verifica in casu, conforme informação vertida no relatório de
ação de fiscalização realizada a 29.01.2013, é à Santa Casa que incumbe efetuar os trabalhos de consolidação dessa encosta e dos edifícios ou obras que nela existam.
3.ª A matéria alegada pela Recorrente nas conclusões 5 a 21 das alegações de recurso também terá que ser julgada improcedente, por não merecer qualquer censura o
julgamento vertido na sentença recorrida.
4.ª O projeto de desaterro e o projeto de muros de suporte e de consolidação e tratamento da encosta são projetos distintos, e relativamente ao projeto de desaterro, nada
ficou por decidir ou por executar, por parte dos titulares do alvará n.º 427/99 – cf. pontos 2, 3) e 4) do probatório.
5.ª As obras referentes ao projeto da obra de construção de um muro de encosto para a consolidação e reparação de talude, no loteamento da Quinta da (...) (aprovado
em reunião camarária de 16.07.2001), encontram-se hoje integralmente executadas, e de acordo as com alterações que lhe foram introduzidas em 2002 e 2005, após a
aprovação do projeto inicial.
6.ª As alterações ao projeto e respectivas obras justificaram-se pela necessidade de evitar uma possível derrocada do talude sobre as construções existentes, que exigia,
por isso, uma intervenção urgente, não compatível com uma execução do projeto nos exatos termos em que o mesmo tinha sido aprovado em 16.07.2001.
7.ª As sobreditas alterações não foram ainda aprovadas por não ter sido apresentado o documento comprovativo da autorização da Santa Casa da Misericórdia para a
realização de tais obras no seu terreno. No entanto, a loteadora apenas apresentou aquele projeto de contenção, procedeu à realização das obras de contenção dos
taludes, e apresentou os subsequentes projetos de alterações porque, na sua boa-fé, pretendeu obviar a uma eventual interrupção das obras e garantir as condições de
segurança das mesmas, pois a proprietária da encosta, a Santa Casa da Misericórdia, não se mostrava disposta a realizá-las em tempo oportuno.
8.ª O projeto aprovado em 16.07.2001 deixou de ser exequível face à realidade encontrada em obra e à urgência de fazer face à instabilidade dos taludes detetada no
decurso dos trabalhos realizados em obra, pelo que não pode proceder o entendimento que a Recorrente insiste em fazer valer, de que impende sobre os titulares do
alvará n.º 427/99 a obrigação de executarem aquele projeto nos exatos termos da sua aprovação.
9.ª E também não se vislumbra como é que o Município ora Recorrido poderia ter atuado nos termos pretendidos pela Recorrente – no sentido da reposição da
legalidade, lançando medidas de tutela da legalidade previstas na lei, quer embargando a obra, quer impondo medidas corretivas (que poderiam passar pela reposição
do terreno no estado em que se encontrava antes da intervenção) – atendendo a que as alterações ao projeto de contenção de muros, submetidas pelos titulares do alvará
n.º 427/99, foram ditadas por urgência imperiosa, e de forma a garantir a segurança de pessoas e bens face à comprovada instabilidade do talude.
10.ª A própria Recorrente reconhece que a adoção de medidas de tutela da legalidade urbanística já não é sequer possível, como deixou expresso no ponto 21 das
conclusões do seu recurso.
11.ª A deliberação camarária tomada em reunião de 27.02.2012, de aprovação da receção definitiva das obras de urbanização do alvará n.º 427, nomeadamente quanto
às infraestruturas viárias, de abastecimento de água e drenagem de águas residuais e pluviais, elétricas, de telecomunicações e de gás, e que determinou a libertação das
garantias existentes no valor de € 22.207,24, não foi oportunamente impugnada, pelo que se consolidou na ordem jurídica, com as legais consequências.
12.ª Não obstante, e sem prescindir, o projeto de contenção, arranjo e estabilização dos taludes e encosta adjacente é um projeto complementar dos projetos de obras de
urbanização relativos ao alvará n.º 427/99 e foi aprovado pelo Município Recorrido precisamente nesses termos, como projeto complementar – cf. ponto 8) do probatório
– pelo que se trata, pois, de um projeto autónomo relativamente a estes, e não de um projeto que é parte integrante daquele projeto de obras de urbanização, como a
Recorrente quer fazer valer a todo o custo, pelo que não existia qualquer fundamento para que não fosse aprovada, como foi, e bem, a receção definitiva das obras de
urbanização do alvará n.º 427.
13.ª Face aos fundamentos de facto e de direito supra expostos, não pode proceder, como se confia não procederá, o recurso da Recorrente no segmento em que pugna
pela condenação do Recorrido Município a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião camarária
do dia 16/07/2001, nos exatos termos da sua aprovação.
14.ª Também não poderá proceder, como se crê-se que não procederá, por manifesta falta de fundamentos atendíveis, o pedido de revogação do segmento da sentença
recorrida que julgou pela improcedência do pedido de condenação do Município Réu, por si, ou através de intimação dos titulares do alvará n.º 427/99, respetivamente a
expensas do Réu ou destes, a dar cumprimento às conclusões vertidas no relatório de inspeção de 29.01.2013 sobre o talude existente nas traseiras dos lotes n.º 17 a 35
do Loteamento n.º 427/99, em nome da M., Lda..
15.ª Sendo a Recorrente a proprietária dos terrenos onde se verifica, em concreto, a instabilidade dos taludes onde foram realizadas as obras de execução do projeto de
contenção, arranjo e estabilização desses taludes e encosta adjacente, não pode o Município Recorrido deixar de exigir-lhe, precisamente nessa qualidade de
proprietária dos terrenos – e independentemente de quem provocou a situação em que se encontram a encosta e os seus terrenos, que aqui não está manifestamente em
causa – a execução das obras dirigidas à estabilização dos taludes conforme as conclusões do relatório de inspeção de 29.01.2013.
16.ª Conforme bem ajuizou a sentença a quo, mesmo que se verificasse que foi a execução das obras relativas ao projeto de muros de suporte e de consolidação e
tratamento da encosta, levada a cabo pelos titulares do alvará n.º 427/99, que provocou a situação em que se encontra a encosta e os seus terrenos, tal como descrita no
relatório de inspeção de 29/01/2013, tal não constitui fundamento para que não possa ser exigida à Autora, na qualidade de proprietária dos terrenos em causa, e
perante uma situação de risco na encosta, exterior à área abrangida pelo alvará n.º 427/99, a execução das referidas obras dirigidas à estabilização dos taludes,
conforme as conclusões do dito relatório de inspeção.
17.ª A decisão da sentença a quo é a única possível face às circunstâncias de facto e de direito em causa no presente pleito, não existindo outra solução jurídica suscetível
de ter sido adotada, pelo que não lhe pode ser imputada a invocada violação dos princípios da proporcionalidade, justiça e boa-fé.
18.ª Termos em que, pelos fundamentos supra expostos, não merece qualquer censura a decisão recorrida, pelo que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente,
por manifesta falta de fundamentação de facto e de direito atendível, o recurso interposto pela Autora, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, assim se fazendo
Justiça!”
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à
conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
As questões a apreciar resultam predominantemente da necessidade de verificar a suscitada alteração da matéria de facto dada como provada, mais se
propondo a reversão do sentido da decisão recorrida, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas
alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.
IV – Do Direito
A Sentença recorrida concluiu, a final, que “Ante todo o exposto (...) impõe-se concluir no sentido da improcedência do pedido de condenação do R., por si (devido à
omissão dos seus deveres de fiscalização e de tutela da legalidade urbanística) ou através da intimação para tanto dos titulares do alvará n.º 427/99, respetivamente a
expensas do R. ou destes, a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião da Câmara Municipal de
(...) de 16/07/2001, bem como às conclusões vertidas no relatório de inspeção efetuado no dia 29/01/2013 sobre o talude existente nas traseiras dos lotes n.ºs 17 a 35 do
Loteamento n.º 427/99, em nome da M., Lda.”
O presente recurso, interposto pela aqui Recorrente Santa Casa da Misericórdia de (...) tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal
Administrativo e Fiscal de Coimbra, em 18.04.2020, que julgou improcedente a ação administrativa instaurada, tendente, em síntese, à condenação do
Município a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião da CMC de 16.07.2001,
bem como às conclusões constantes do relatório de inspeção efetuado no dia 29.01.2013 relativo ao talude existente nas traseiras dos lotes n.ºs 17 e 35
do Loteamento n.º 427/99 em nome de M..
O Recurso tem por objetivo a alteração/aditamento à matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida, mais se alegando que a referida
decisão desrespeitará normas e princípios de direito administrativo, no pressuposto de que o Município deveria zelar pelo cumprimento do regime
vigente relativo ao Urbanismo.´
Se é certo que relativamente à alteração da matéria de facto, o entendimento que tem vindo a ser adotado pela Jurisprudência é relativamente limitativo
e excecional, aqui, como se verá, há necessidade de incorporar na matéria de facto dada como provado, alguma factualidade acrescida.
No entanto, em função da factualidade disponível nos Autos, mostra-se, efetivamente que os factos dados como provados, denotam algumas
insuficiências e lacunas que importa corrigir.
Com efeito, consta dos Autos um documento elaborado pelos Serviços do próprio Município, no caso, pela Divisão de Estudos e Projetos, em anexo à
informação n.º 739/06 da DERU, relativa às “Causas da Instabilização” onde significativamente se afirma que “A execução das escavações provocou um
aumento da inclinação do terreno (atualmente 20.º a 30.º) e descomprimiu superficialmente os pelitos, expondo-os a grandes variações do teor em água. A degradação
das suas propriedades mecânicas e consequente perda de resistência é muito rápida em presença da água, provocando a rotura dos taludes.
Desta forma, assim que novas superfícies de pelitos sejam expostas a variações do teor de água, novas instabilizações são geradas.
Em resultado da descompressão da rocha e da exposição à água, os pelitos evoluem em poucos minutos de uma rocha branda para um solo siltoso, ou mesmo uma lama,
quando saturados, criando instabilizações de taludes muito graves.
Os deslizamentos ocorridos são do tipo planar e surgiram devido a condições geológicas e hidrogeológicas desfavoráveis, tendo contribuído para este facto, a inclinação
do talude ser superior ao ângulo de atrito interno do material (16º)”
Sendo a referida informação relevante face às causas da instabilidade do talude que vieram a determinar a necessidade da realização das obras aqui
controvertidas, faz todo o sentido incluir o teor da referida informação como facto provado, não em sentido conclusivo, mas enquanto informação
descritiva e opinativa (Novo Facto 47).
Com efeito, incontornavelmente, foram os próprios Serviços do Município que reconheceram que a execução das escavações por parte dos
contrainteressados teve como consequência o aumento da inclinação do terreno (20.º a 30.º) e a descompressão superficial dos pelitos, expondo-os a
grandes variações do teor em água.
Por outro lado, se é certo que resulta dos Autos que a realização das obras aqui controvertidas ficaram dependentes da apresentação de documento
comprovativo da aceitação das mesmas por parte de Misericórdia, enquanto titular do prédio onde as referidas obras se teriam de realizar, o qual nunca
foi apresentado, entende-se que, a inclusão de tal circunstância nos factos provados, se consubstanciaria num facto negativo (Ausência de declaração)
ao que acresce que tal facto não teria a virtualidade de alterar o sentido da decisão proferida ou a proferir.
Assim, não se reconhece a necessidade ou utilidade de aduzir tal como facto provado.
O referido, não obsta, no entanto, a que se reproduza nos factos dados como provadas o teor relevante de informação dos Serviços Jurídicos do
Município, o que é diverso, passando a constituir o facto 48.
Com efeito, refere-se na informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso do Município de 06/07/2006, o seguinte:
“3.4. (…) Diga-se, ainda, que atendendo a que a execução deste projeto era feita, em parte, sobre terreno da Santa Casa da Misericórdia, considera-se que teria sido
pertinente exigir-se à requerente documento comprovativo de que tinha poderes bastantes para realizar as obras projetadas para o terreno da Santa Casa da
Misericórdia. Porém, não se encontra em todo o acervo documental relativo ao processo em análise qualquer alusão a essa questão.
3.5. (…) É, assim evidente, que as alterações foram realizadas sem precedência de autorização municipal, que, nunca foi dada, também não se comprovando que tenha
havido consentimento da Santa Casa da Misericórdia (…)”
Do Objeto do Recurso
Resulta desde logo do facto provado 5 que “Nos termos da informação n.º 187/01, de 11/02/2001, a DGU-C alertou para a possibilidade de ocorrerem
deslizamentos e/ou derrocadas, uma vez que tinham sido efetuados pela M., Lda. «trabalhos de desmonte na crista dos taludes posteriores dos lotes, do lado Poente,
tendo-se prolongado pela encosta adjacente, propriedade da Santa Casa da Misericórdia» tendo, em consequência, aquela sociedade sido notificada, através de ofício de
02/03/2001, para apresentar, no prazo de 30 dias, um «projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente onde tinham sido ou viessem a ser
efetuados trabalhos»”.
É assim manifesto que os próprios Serviços do Município reconhecem que a Santa Casa foi vítima de trabalhos realizados em terreno adjacente ao seu,
mal se compreendendo que pudesse vir a ser penalizada em decorrência de circunstância para a qual não contribuiu, nem por ação, nem por omissão,
consubstanciados na verificada instabilidade da encosta.
Aqui chegados, sempre teria e o Município como entidade gestora, por assim dizer, do Urbanismo no seu território, que diligenciar ativamente no
sentido de minorar os prejuízos para os quais foi alertada pelos seus próprios Serviços.
Não obstante o problema ter sido detetado, pelo menos, em 2001, só em 2013, a Divisão de Fiscalização Urbanística, através da informação n.º
403/2013 fez referência expressa ao facto de as obras de estabilização do talude deverem ser imediatamente realizadas por força da urgência na
resolução do problema.
Paradigmaticamente, refere-se na Sentença Recorrida que “(...) é certo que as obras referentes ao «projeto de obra de construção de um muro de encosto para a
consolidação e reparação de talude, no loteamento da Quinta da (...)» foram executadas pelos titulares do alvará n.º 427/99 em desconformidade com o projeto
inicialmente aprovado em 16/07/2001 (…)”.
Mais se refere na referida Sentença que “(…) foi a execução das obras relativas ao projeto de muros de suporte de consolidação e tratamento da encosta, levada a
cabo pelos titulares do alvará n.º 427/99, que provocou a situação em que se encontram a encosta e os seus terrenos, tal como descrita no relatório de inspeção de
29/01/2013 (…)” .
Não obstante as afirmações constantes da decisão recorrida, precedentemente transcritas, o tribunal a quo, não retirou das mesmas as devidas ilações,
antes pretendendo imputar a responsabilidade do sucedido e o ónus corretivo à Santa Casa, entidade que, como se viu já, não contribuiu para a referida
situação.
Correspondentemente, entende a Recorrente que o Município, nos termos do Artº 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, deveria
antes, designadamente, ter determinado ao titular do alvará, a reposição do terreno no estado em que se encontrava antes do início das obras, mal se
compreendendo que o tribunal a quo, ao invés, tenha entendido que não seria adequado que se adotassem medidas de tutela de legalidade urbanística
nesta situação.
Se é certo que o Município não aprovou o projeto de alteração apresentado, tal não invalidou, no entanto, que se tenha eximido às suas obrigações de
Reposição da Legalidade Urbanística, nomeadamente, zelando para que a mesma pudesse ser preservada, garantindo que o responsável material pelo
verificado deslizamento de terras, assegurasse, no mínimo, a mitigação dos prejuízos causados a terceiros.
Mal comparado, seria como se num acidente de viação, a vítima do mesmo fosse responsabilizada pelo mesmo, tão-só por se encontrar
inadvertidamente no local.
Resulta incontornavelmente dos Autos que a Santa Casa não promoveu a realização no seu prédio de quaisquer obras, muito menos aquelas que vieram
a determinar os deslizamentos de terras, tendo-se, aliás, oposto expressamente à sua efetivação, em face do que se mostra, no mínimo, inaceitável ser
responsabilizado pelas consequências das obras levadas a cabo, e face às quais o Município, podendo e devendo tê-lo feito, não interveio na reposição
da legalidade Urbanística.
Tal como afirmado pela Misericórdia em sede contra-alegações, “entender-se que a ora Recorrente tem o ónus de promover pela legalização das obras feitas nos
seus terrenos pelo simples facto de ser proprietária, sabendo que não houve autorização para a realização de tais trabalhos e que estes foram feitos em desrespeito ao
projeto de desaterro, é um absurdo que escancara a porta a todo o tipo de abusos ao direito de propriedade.”
Acresce que resultou provado (Facto 42) que por despacho do Chefe da DFU/CMC, Eng.º J., exarado em 11/04/2012, se concluiu que a instabilidade do
talude resultou das obras de edificação no âmbito do talhamento/Alvará de Urbanização 427/99.
Por outro lado, mas no mesmo sentido, decorre do facto provado 41 que em resultado de uma ação de fiscalização ao talude realizada em 29/01/2013
pela Comissão de Vistoria, no âmbito da intervenção decorrente do referido Alvará de loteamento n.º 427/99, se concluiu que:
“Face às considerações expostas, entende a Comissão de Vistoria que deverá ser promovida a estabilização global dos taludes e respetiva rede de drenagem de águas
pluviais.
Até que se verifique o desenvolvimento dos trabalhos necessários à estabilização referida, deverá ser efetuada a monitorização das áreas potencialmente mais instáveis”.
Aqui chegados, não é difícil concluir que deverá o Município, enquanto titular da obrigação de reposição da legalidade urbanística na sua área
territorial, diligenciar diretamente, ou por via do titular do referido Alvará, no sentido de dar satisfação às conclusões do referido relatório da inspeção
realizada em 29/01/2013, uma vez que resulta dos autos que se mostra já inexequível proceder ao cumprimento do originário projeto de desaterro e de
licenciamento de muros de contenção nos exatos termos em que o mesmo foi aprovado.
Diga-se finalmente e A Latere, e por se tratar de questão suscitada no Recurso, que igualmente mal se atinge por que razão o Município libertou as
garantias bancárias relativas às Obras de Urbanização conexas com controvertido alvará n.º 427/99, ao receber definitivamente a totalidade das obras,
quando é notório que as mesmas, pelo menos, face ao projeto de construção de muros de suporte e de contenção da encosta, não se encontram
executadas.´
Se é certo que o referido projeto de contenção, arranjo e estabilização se trata de um projeto complementar do projeto inicial, tal não o exclui do
mesmo, antes se integrando naquele, o que reforça o entendimento de acordo com o qual não estavam reunidos os pressupostos justificativos da
verificada receção definitiva das obras e a correspondente libertação da Garantia Bancária.
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Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em
julgar Procedente o Recurso, revogando-se a Sentença Recorrida, mais se determinando;
a) A anulação do Despacho de 21.03.2013 do Chefe de Divisão de Fiscalização Urbanística do DGURU do Município de (...)
b) A condenação do Município a assegurar a Reposição da legalidade urbanística, por si, ou através do titular do Alvará n.º 427/99, de modo a dar
satisfação às conclusões constantes do relatório da inspeção realizada em 29/01/2013.
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Custas pelos Recorridos
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Porto, 30 de outubro de 2020