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Escola Secundária José Saramago Ano Letivo 2022/2023

REFLEXÃO FILOSÓFICA
Livre-arbítrio

1. INTRODUÇÃO

Nesta reflexão, procuraremos responder à questão: temos livre-arbítrio?

No centro deste problema existe um conceito principal: livre-arbítrio. Recorrendo a


Simon Blackburn1, livre-arbítrio é o conceito que permite estabelecer a ligação de nós, como
consciência, às nossas ações - ao sermos autores das nossas escolhas, somos quem as
controlamos.

Existem 3 teorias que procuram responder ao problema: determinismo, o qual se


bifurca em determinismo radical e determinismo moderado, e libertismo. Ferrater Mora, em
Dicionário de Filosofia2, descreve o determinismo como sendo um sistema filosófico
segundo o qual todos os acontecimentos do universo são consequentes de leis naturais -
todos os eventos têm uma causa. À teoria defensora absoluta deste princípio é dado o nome
determinismo radical, onde se nega a existência de livre-arbítrio. O determinismo moderado,
ou compatibilismo, segundo Blackburn3, é a teoria que afirma que a liberdade e o
determinismo são dois conceitos compatíveis - apesar das nossas ações serem causadas,
ainda é possível haver livre-arbítrio. Paralelamente, o libertismo é definido, por Blackburn4,
como sendo uma perspectiva que legitima a conceção da existência da escolha livre, não
determinada, onde o agente da ação tem poder de controlo sobre a mesma.

A posição que aqui procuramos defender assemelha-se a um determinismo


moderado, sem, no entanto, deixar de existir certos pormenores que alteram a nossa visão
sobre esta questão de um determinismo moderado puro, para algo com uma diferente
construção.

1
BLACKBURN, Simon. Dicionário de Filosofia, Gradiva, 2007
2
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, Dom Quixote, 1978
3
BLACKBURN, Simon. op.cit.
4
Ibidem

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2. OBJEÇÃO AO DETERMINISMO RADICAL

Começamos por apresentar a nossa objeção ao determinismo radical: esta teoria, ao


defender que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão, e que todas as nossas ações
dependem de fatores fora do nosso controlo, encontra um dilema perante a questão judicial:
como se pode julgar algum indivíduo por alguma ação considerada imoral, se os motivos
que o levaram a executar essa ação não dependiam dele? Como podemos julgar alguém, se
ele não é autor dos seus próprios atos?

Partindo dum sistema judicial justo, as más ações são punidas porque são feitas com
uma certa intenção - porque são voluntárias. Logo qualquer sistema judicial presente numa
sociedade minimamente justa está assente num princípio libertista. É incongruente defender
uma posição determinista, pois estar-se-ia a compactuar com uma desagregação da base
do sistema judicial.

2.1. RESPOSTA DETERMINISTA RADICAL À OBJEÇÃO

Um determinista poder-se-ia defender ao argumentar que é justificável continuar a


punir indivíduos por atos ditos involuntários e imorais, com o principal objetivo de que estes
indivíduos não venham a ser as causas de imoralidade noutras pessoas na sociedade. Esta
é uma perspectiva extremamente hipócrita - se condenamos as pessoas pelas ações que
cometeram devido a uma causa exterior somente pelo futuro, impõe-se uma questão
importante: porque devemos punir inocentes agora, para proporcionar um futuro melhor?
Será o futuro mais importante que o presente? Não é passível que um sistema judicial se
possa conciliar com um determinismo radical, porque este levaria a uma profunda injustiça
social e a um desregulamento da estrutura da sociedade. No entanto, como determinista
moderado, ao opor-me a uma conjunção do determinismo radical com o sistema judicial,
apoio sim uma possibilidade de conciliar a posição que defendo com a de uma justiça.

2.2. O DETERMINISMO MODERADO E A JUSTIÇA

Sendo a principal marca do determinismo a de tornar as nossas ações dependentes


de algo, então todas as nossas ações são escolhidas dentro dum leque (pouco ou mais
limitado) de ações causadas por diversos motivos, sejam eles a biologia, a educação dada,
a sociedade, ou até a legislação sob a qual se vive. A posição que defendemos assenta

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sobre a ideia de que existe liberdade para regular a forma como as nossas ações são
causadas, sem no entanto realizarmos ações totalmente livres.

O que causa as nossas ações não passa de um crivo. Se um indivíduo nasce em


Portugal, as suas ações vão ser, nalguns casos, diferentes que as de um outro indivíduo que
nasceu no México. Tomemos com exemplo a tolerância para com o picante. Um indivíduo
que nasceu no México terá uma genética que permite ao cérebro uma libertação mais rápida
de dopaminas para aliviar a dor provocada pelo picante, coisa que não acontecerá num
português devido à sua genética que, por não se ter desenvolvido dessa forma, leva a uma
demora na libertação de dopaminas. Logo, é claro que um mexicano comerá mais comidas
picantes que um português, porque a sua genética lhe impôs essa sua condição de maior
aptência para o picante. A esta condição também se impõe a sociedade: no México, por ter
uma gastronomia onde o picante é um elemento bem presente, as pessoas tendem a
apreciar mais as comidas se forem picantes. Não é o que acontece em Portugal, onde não é
cultivada a cultura do picante como no México. Não obstante, um português, se procurar
suportar e apreciar mais o picante, pode tentar preparar o seu organismo de forma a
modificar a sua tolerância ao mesmo. É, pois, possível que um português e um mexicano
tenham a mesma tolerância para o picante. Que conclusão tiramos daqui?

O mexicano tem todas as hipóteses alimentares, mas a sua genética faz com que ele
tenha uma maior apetência para as comidas picantes, o que o leva a escolher sempre as
comidas picantes. O português, de todas as comidas, por estar na sua genética, escolheria
comidas onde o picante estivesse menos presente. No entanto, se esse português adaptar a
sua tolerância para o picante, é provável que venha a escolher sistematicamente uma
comida mais picante. Da mesma forma que o português conseguiu alterar a sua tolerância e
o seu gosto por picante, coisa esta que o levou a alterar involuntariamente as suas escolhas,
também é possível escolher sob que causas é que podemos tomar as nossas ações. Mas
não é possível escolher de que forma essas causas determinam as nossas escolhas. É a
capacidade de ditar sob quais causas vão as minhas ações tomadas, que é possível
conciliar o determinismo moderado com a justiça. É claro que certas causas não são
mutáveis, como a genética (o português alterou somente a tolerância, não a genética) e
certas influências culturais, entre outros, havendo pois uma imensa quantidade de
determinismo incontrolável nas nossas ações. Existe liberdade de determinar o que nos
determina, mas não como nos determina. Mas como pode ser este um argumento
determinista moderado?

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A liberdade de determinar é o que permite atribuir uma responsabilidade moral a


alguém, porque os mesmos têm a capacidade de regular a sua conduta. No entanto, esta
liberdade não é a de ter livre vontade, mas a de conhecimento dos efeitos dos seus atos. A
liberdade reside na compreensão do seu determinismo, e, daí, agir livremente nele. Quando
o português decidiu aumentar a sua tolerância para com o picante, ele decidiu o seu
determinismo através do conhecimento do mesmo - autodeterminou-se -, mas não deixou de
ter as suas ações causadas. Um indivíduo que diga «Daqui para frente obedecerei a todas
as leis deste país», é um indivíduo que, devido a uma decisão inicial, determinou que todas
as suas ações estariam determinadas pelas leis daquele país. É através da compreensão do
seu próprio determinismo para se autodeterminar, que podemos condenar alguém. Não é a
causalidade dos atos, é a causa que os determina.

2.2.1. OBJEÇÃO LIBERTISTA

A este argumento, um libertista dirá que o facto de uma pessoa decidir seguir uma
certa legislação, não torna as ações determinadas. A cada momento que essa pessoa age,
estará a agir de uma forma livre. A existência de leis num país não é suficiente para ser a
causa que determina certos comportamentos. Haverá sempre decisões livres, sejam elas
para obedecer ou para desobedecer às leis dum país.

A esta objeção, a nossa resposta é a seguinte: segundo esta interpretação do


determinismo moderado, depois de haver uma decisão inicial, neste caso, a de passar a agir
de acordo com todas as leis de um país, todas as seguintes ações são causadas pela força
das leis daquele país. Porquê? Por que é necessária a causalidade das suas ações pela lei?
A resposta mais objetiva a esta questão é simples: porque as leis exercem sobre nós um
poder exponencial. Este poder da legislação leva a que as nossas ações sejam
determinadas por ele através do medo. As sanções penais incutem medo na população,
seja este o medo da condenação, da corrupção da vida, ou da própria ilegalidade em si. O
medo da punição imposto na sociedade leva a que a mesma aja de acordo com a lei. Reagir
ao medo não é uma ação livre, é um impulso - sendo nós seres biológicos, somos amiúde
encaminhados a recusar o que está diretamente relacionado com a dor. Se existe um
conhecimento sobre as leis dum país e o que é por elas proibido (dum determinismo),
sabemos também o que é necessário fazer para evitar as punições que tanto são temidas. O
agir de acordo com uma lei resume-se a uma compreensão duma legislação, e fugir ao
máximo do ilegal por medo às consequências que isso pode trazer. A decisão inicial dum

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determinismo passa pela compreensão do mesmo, e, através disso, agir livremente dentro
do determinado. Qualquer indivíduo que haja de forma moralmente errada de acordo com a
legislação de um país, é um indivíduo cuja decisão inicial foi feita de forma errada, logo,
deve ser punido por tal.

2.2.2. OBJEÇÃO DETERMINISTA RADICAL

De uma visão determinista radical, poderia argumentar que a decisão inicial de se


passar a agir de acordo com as leis de um país é tomada devido ao medo das punições
antecipado durante essa decisão, logo não é livre. Ou seja, não é possível agir livremente
quando estamos sob o efeito de coerção, como quando intimados pelo medo. Se alguém
age de forma incorreta de acordo com uma certa lei, foi então, porque não agiu sob coerção,
logo poderá ser julgada.

Esta objeção afirma que a decisão inicial é causada pelo medo biológico da punição,
e que quem não age sob tal, é porque não foi forçado a isso, logo pode ser condenado. No
entanto, ao dizer que a decisão inicial de estabelecer o nosso determinismo depende dum
medo biológico à punição, então como podem haver pessoas que infringem a lei? Se os
humanos têm esse mecanismo automático, e biológico, de fuga à dor, como podem as
pessoas infringir as regras desse mecanismo? Ninguém pode corromper a sua própria
biologia. Esta visão é contraditória.

3. OBJEÇÃO AO LIBERTISMO

Agora vamos objetar a perspectiva libertista. Esta visão ao defender que as causas
para as nossas ações residem somente no nosso ser, e que existe de facto liberdade total
para realizar as ações que queremos, encontra um problema: como podemos descartar
totalmente a causalidade de fatores externos ao nosso ser? Esta é uma teoria sustentada na
individualidade da mente de cada um, fundamento este errado. Vejamos:

A nossa mente, não passa dum elemento ligado profundamente ao pensamento. A


nossa reflexão ao ser impulsionada pela mente, é originada no nosso cérebro, fruto de
circunstâncias biológicas, como a própria presença do cérebro indica, mas também de
condições socioculturais, ou até mesmo sentimentais e particulares de cada um, provocadas
por fatores exteriores. Todo o nosso processo reflexivo é originado no cérebro - estrutura

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biológica, física e química. Dissociar o pensamento da biologia da mente, é algo impensável.


Vamos tomar como exemplo uma experiência do Minnesota Study of Twins Reared Apart,
cujo principal objetivo era o de estudar a influência da genética na vida prática dos seres
humanos. A experiência de que vamos falar, é a realizada com Jim Springer e Jim Lewis,
dois gémeos idênticos, separados à nascença durante trinta e nove anos, e que em
5
fevereiro de 1979 se encontraram pela primeira vez. Estes gémeos foram submetidos a
mais de quinze mil perguntas sobre a sua vida, e a muitos testes com o objetivo de
relacionar a hereditariedade com o desenvolvimento humano. O que se concluiu no fim
desta experiência foi o seguinte: ambos casaram e depois divorciaram uma mulher chamada
Linda; casaram uma segunda vez, ambos com uma mulher chamada Betty; ambos
nomearam o seu primogénito de James Allan; ambos tiveram um cão apelidado de Toy;
ambos trabalharam a tempo parcial como ajudantes de xerife; partilhavam interessantes por
desenho mecânico e carpintaria; ambos gostavam de matemática mas não de ortografia;
ambos tinham um Chevrolet,e fizeram férias na Flórida; ambos fumavam e bebiam de
formas praticamente idênticas; ambos usavam o mesmo calão. Apesar destas semelhanças
assustadoras, também existiam certas diferenças: um expressa-se melhor através da
escrita, outro a falar; um usa o cabelo para a testa, o outro usa-o para o lado. Não obstante,
as diferenças são insignificantes perante a enorme quantidade de semelhanças. Aqui reside
o exemplo perfeito da influência da genética na vida de cada um. Ambos, com vidas
diferentes, em situações diferentes, acabaram por tomar muitas ações exatamente iguais. O
papel da genética, da física, da química, nas nossas ações é fundamental. Estes fatores,
que não são por nós controlados, afetam significativamente as nossas escolhas e decisões.
Existe de facto uma causalidade nas nossas ações.

3.1. RESPOSTA LIBERTISTA À OBJEÇÃO

Um libertista poderia dizer que: a) os gémeos foram separados, mas possivelmente


deixados ambos em condições similares (em famílias com práticas semelhantes, em cidades
e bairros com as mesmas condições). Este fator significa que as ações dos gémeos foram
as mesmas devido às influências terem sido muito parecidas, descartando a hipótese duma

5
Esta é uma notícia presente em diversos sites. Usámos, como fonte:
CHEN, Edwin. Twins Reared Apart: A living lab (1979), The New York Times.
https://www.nytimes.com/1979/12/09/archives/twins-reared-apart-a-living-lab.html (consultado em
18/02/2023);
RODRIGUES, Luís. Texto presente em Psicologia 12º.
http://www.paginasdefilosofia.net/determinismo-biologico/ (consultado em 18/02/2023).

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causalidade da genética, mas criando a possibilidade de influências iguais que


desencadearam comportamentos voluntários iguais. b) pessoas com genéticas diferentes
podem realizar ações iguais. É possível encontrar dois indivíduos sem nenhuma
semelhança genética, e no entanto terem realizado ações iguais, devido à influência cultural,
social, ou à própria individualidade. Ou até mesmo existirem indivíduos com influências e
genética diferentes, que haviam realizado os mesmos atos. O facto destes gémeos terem
feito as mesmas escolhas, não significa uma causalidade genética, mas somente um acaso,
como os há muitos no mundo.

À objeção a) podemos responder que existem pessoas que estiveram sob as


mesmas influências toda a vida, e as suas ações não foram causadas por elas. Numa
perspectiva libertista, era possível que aqueles gémeos tivessem tomado rumos diferentes.
É facto que o libertismo não nega a influência de certos fatores, mas, se a causalidade não
fosse verdadeira, é certo que estes gémeos seriam muito mais diferentes, do que na
realidade são. Até poderíamos considerar uma hipótese de uma diferente decisão inicial de
determinismo para cada um dos gémeos - cada um poderia ter optado por causalidades
diferentes (princípio este desenvolvido no subcapítulo 2.2.), mas, como a genética não é
algo mutável, estes gémeos estavam determinados pela genética partilhada por ambos.
Como vimos pequenos pormenores das suas vidas eram diferentes. Talvez a sua alteração
de um determinismo esteja nessas pequenas divergências. Mas a nossa genética tem um
poder fortíssimo sobre as nossas decisões. Logo, o número de semelhanças é muito maior
do que as diferenças, isto só prova uma causalidade das nossas ações advinda da genética.

À objeção b) conseguimos formular a seguinte resposta: o facto de existirem certas


pessoas com as mesmas características, só é um elemento que comprova o determinismo.
Pode este não ser um determinismo concatenado à genética (porquanto não partilhavam
genética), nem aos princípios socioculturais (não viveram sob as mesmas influências), mas
a uma outra causa. Não poderá haver somente um determinismo da humanidade? Não pode
somente existir algo que nos determina por somente sermos humanos? Estas duas
pessoas, que, certamente, poderão ser muitas mais, não passam de pessoas cujas ações
refletem uma causalidade una. Podemos descartar a genética, a sociedade, a cultura, e
ainda assim algo resta de semelhante. Isto só nos mostra que há um determinismo que é
comum a muitos à nascença, ou talvez a todos. Esta condição de sermos seres humanos é
também um determinismo. É certo que muitos divergem, mas esses podem ser somente os

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que decidem diferentes determinismos para a sua vida. Ações iguais, com diferentes
genéticas e culturas, transmitem um determinismo comum.

4. A POSIÇÃO DEFENDIDA

Depois de termos formulado as nossas objeções às duas teorias que consideramos


erradas, vamos expor a nossa visão sobre a questão aqui tratada. Defendemos um
determinismo moderado com algumas diferenças no pensamento tradicional desta teoria
(diferenças essas possíveis já exploradas no subcapítulo 2.2).

Para iniciar a exposição da nossa posição, vamos recorrer a uma citação de Clarice
Lispector (1920-1977), uma das mais importantes personalidades da escrita brasileira,
presente no livro A Descoberta do Mundo (1984), onde se lê:

“É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio


determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino
que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter
um destino. Este é o nosso livre-arbítrio.” 6

Esta é uma visão que completa este trabalho com enorme maestria. Nesta citação,
Lispector apresenta-nos a sua visão, que é também a nossa, de livre-arbítrio. A expressão
“próprio determinismo” é a chave para conceber o determinismo moderado que procuramos
defender. Cada um de nós, ao compreender, aceitar e no fim seguir o determinismo, está a
tomar uma posição de liberdade extrema. Ao analisar o determinismo, compreendemos a
individualidade que o determinismo nos reserva. Cada um tem o seu próprio, e vive sob ele.
No entanto, aquela decisão inicial de autodeterminação, é a representação pura da
propriedade que podemos atribuir ao determinismo. Cada um, ao refletir e decidir o
determinismo, está submetido a uma liberdade imensa, porque, de facto, “Prisão seria seguir
um destino que não fosse o próprio.”. «Estarmos sem liberdade» seria as nossas ações
coagidas ao determinismo de outrem. Mas a verdade reside na compreensão dum destino
próprio, ou da autodeterminação do mesmo, e agir de acordo com ele. Existe de facto uma
“grande liberdade” em sermos determinados. Porque o determinismo é individual, tal como

6
LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo, Rocco, 1998.

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as nossas ações causadas por ele. E o livre-arbítrio resume-se a esse determinismo ímpar,
que causa as ações de cada um de nós.

A compreensão da nossa posição também se consegue resumir a uma frase de


Agostinho da Silva (1906-1994), filósofo, poeta, e ensaísta português:

“Consiste o livre-arbítrio em voluntariamente cumprir o


fado.” 7

Aqui, é possível concluir a nossa interpretação da visão de Agostinho da Silva


perante o livre-arbítrio: a conceção dum destino (“fado”) que se estabelece pelas escolhas
deliberadas do Homem. A compreensão da etimologia da palavra «destino» ajuda-nos a
compreender mais claramente a nossa visão: no sentido original, destino significa “fixar” e
“estabelecer”, ou “meta”. Destino significa, etimologicamente, um fim já antes estabelecido.
Acreditamos nesta ideia de destino, como uma meta, uma linha final para a qual nos
encaminhamos enquanto agimos. Todos nós temos um destino traçado. Como podemos
saber disso? É difícil, digo até impossível, compreender qual o nosso destino na sua
totalidade, mas, no mínimo, todos o sabemos parcialmente. O que nos une a todos,
humanos, é a morte - todos os que já viveram, morreram; todos os que vivem, morrerão; e
todos os que viverão, morrerão. Por isso, o nosso destino, no mínimo, é essa morte, essa
«meta» para a qual nos preparamos. Quer isto dizer que todas as nossas ações são
determinadas por algo de forma a cumprir este fado de mortalidade? Sim, e não. O destino
pode ser muito mais que a morte, mas a nossa condição de humanos conduz-nos à verdade
indestrutível da morte, e essa é sem dúvida uma parcela do destino a ter em conta.
Contudo, nunca teremos um conhecimento profundo dum destino, porque, como vimos
acima, com Lispector, cada um tem o seu determinismo. Cada indivíduo reserva em si um
determinismo diferente, logo o entendimento total do mesmo nunca poderá ser alcançado. A
única certeza da sua existência é a morte.

O que Agostinho da Silva nos traz nesta citação, é a compreensão do livre-arbítrio


compatível com este determinismo de sermos mortais. O “fado” a que se refere Agostinho, é
esse determinismo que causa a nossa vida, e que nós fazemos cumprir voluntariamente. Ao
agirmos, estamos a caminhar para uma «meta», que é, no seu estado mais simples, esta
7
SILVA, Agostinho da. Espólio.

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morte que nos determina como humanos. Logo, o livre-arbítrio advém da compreensão da
nossa mortalidade - da compreensão duma parcela do nosso determinismo - que nos leva a
agir de acordo com ela. No entanto, a perceção do nosso determinismo, não abandona a
ideia de atos voluntários. Agimos livremente, de acordo com o nosso destino. Uma meta não
requer um percurso exato, apenas restringe o fim do caminho. Todas as nossas escolhas,
serão filtradas por esse crivo do nosso determinismo, que nos encaminhará a um
cumprimento do nosso “fado” - a morte, no mínimo.

4.1. OBJEÇÃO LIBERTISTA

Um libertista poderia responder a esta posição criticando a nossa percepção de


“fado”. Poderia facilmente dizer que este “fado” é somente o nosso caminho de vida. Não é a
morte, nem a finalidade dos nossos atos, mas sim a reunião de todas as nossas escolhas
voluntárias. Argumentaria que essa conceção de destino não passa de uma ilusão para
facilitar a nossa relação com os nossos atos. Através da exposição da morte como
determinismo, retira-se a importância das nossas ações.

A pergunta que fazemos, é: mas afinal a morte não é uma realidade? Desde sempre
que as pessoas têm vindo a morrer, e, penso, que não é uma generalização apressada se
disser que para sempre continuarão. Mesmo que os nossos atos não tenham uma causa,
tudo o que fizermos encaminhar-nos-á à morte. É inevitável. Logo tudo acontece com uma
causa primordial de criar dessa ação voluntária uma consequência que nos levará à morte.

4.2. OBJEÇÃO DETERMINISTA

O determinista dirá que o voluntarismo dessas ações não passa duma ilusão. Ora, se
morremos, todas as nossas ações serão causadas com o objetivo, duma força maior, de nos
levar até à morte. Logo, nunca teremos livre vontade de agir, afinal, nunca ninguém escapou
à morte.

Podemos continuar, perante esta objeção, a usar o mesmo argumento das ações
livres que nos levam à morte - tudo acontece com uma causa primordial de criar dessa ação
livre uma consequência que nos levará à morte. No entanto, essa causa da ação, não a
torna determinada. Continua a existir a liberdade da ação, mas, no fundo, as escolhas que
poderíamos realizar foram filtradas de forma a cumprir o “fado”. Quando se diz que não

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existe liberdade nas ações, porque somos levados a agir com a finalidade de morrer - algo
do domínio duma força maior -, não se está a compreender o princípio de destino. Afinal,
morrer é a principal ação coagida da nossa vida - nós somos obrigados a morrer. Logo dizer
que não somos livres quando morremos, é uma tautologia. Nem mesmo em situações de
suicídio: a morte é coagida, o ato, causado pelo determinismo do indivíduo, que o leva a
cometer suicídio, não (se considerarmos esta uma ação realizada sem perturbações mentais
que alteram a liberdade individual, claro). Logo, tudo o que nos encaminha para o destino,
são os nossos atos voluntários. A compreensão da nossa morte, mesmo que seja algo
distante, leva a uma explicação das nossas ações. Claro que justificar uma ação dizendo
«Porque vou morrer» é algo que nos parece estranho, mas a verdade é que a morte é só a
última resolução duma cadeia de consequências. Desde que se entenda que agimos para
uma certa finalidade - portanto agimos com uma causa, de forma a criar essa consequência
- temos livre-arbítrio, porque não fomos coagidos a agir, mas sim agimos livremente,
cumprindo o “fado” que nos é individual.

5. CONCLUSÃO

A nossa posição concilia o livre-arbítrio com o determinismo: determinismo


moderado. Acreditamos num voluntarismo das ações, sem no entanto estas serem
determinadas por causas exteriores, que levam a que os nossos atos livres cumpram um
destino para cada indivíduo, estipulado por uma força superior (a causa primordial).
Acreditamos, também, numa autodeterminação: a decisão inicial de tomar como causa certo
determinismo. Esta posição permite, igualmente, conciliar a perspectiva dum determinismo
moderado, com a justiça como atualmente opera.

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