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O problema da compatibilidade entre

Livre-arbítrio e Determinismo

Professor: Mario A. L. Guerreiro

Disciplina: Ética IV

Período: 2010/02
O problema da compatibilidade entre Livre-arbítrio e Determinismo

Existem duas posições principais acerca do problema do livre-arbítrio: o


incompatibilismo e o compatibilismo. O incompatibilismo limita-se a fazer uma
afirmação condicional: se o determinismo é verdadeiro, então não somos livres. Dessa
afirmação seguem-se duas doutrinas: o determinismo radical e o libertarismo. O
primeiro afirma que o determinismo é verdadeiro e que não somos livres. O segundo
afirma que somos livres e que nossas ações livres não são causalmente determinadas.

O compatibilismo está em oposição ao incompatibilismo, porquanto afirma que


o determinismo não exclui a possibilidade de nós sermos livres. Segue-se dessa posição
o determinismo moderado, que sustenta que as nossas ações são ao mesmo tempo livres
e causalmente determinadas. Segundo esta doutrina, a liberdade não requer a ausência
de determinismo, apenas requer que as nossas ações sejam causadas de certa maneira.
Neste trabalho pretendo apresentar e discutir sucintamente o libertarismo, o
determinismo radical e o determinismo moderado, sendo esta última doutrina o foco
principal da discussão.

Os libertaristas sustentam que somos agentes com poder de tomar decisões


livres. Temos liberdade de escolha quando temos pelo menos mais do que uma opção de
escolha. Logo, uma escolha é livre quando existe a possibilidade de termos feito outra
escolha por conta própria. Se não temos livre-arbítrio, então quase por definição não
poderíamos ter decidido de outro modo. E se não poderíamos ter decidido de outro
modo, então não somos responsáveis por aquilo que fazemos. Em outras palavras,
somos responsáveis pelas nossas decisões e ações quando existe a possibilidade de
termos decidido ou agido de outro modo.

Um exemplo de comportamento não livre é o da pessoa que sofre de


cleptomania, isto é, uma tendência doentia e incontrolável para roubar, não conseguindo
evitar esse comportamento, mesmo que tenha consciência das indesejáveis
consequências. Nesse caso específico, o cleptomaníaco não deve receber a mesma
punição que receberia uma pessoa que roubasse por escolha própria, visto que esta
poderia ter agido de outro modo. O cleptomaníaco deve ser encaminhado para receber
um tratamento psiquiátrico apropriado. Somos responsáveis apenas pelas ações que
poderíamos ter evitado, isto é, pelas ações que praticamos livremente. Para os
libertaristas, se a liberdade de escolha existe, então o determinismo causal completo não
é verdadeiro.

Os deterministas radicais sustentam que nossas ações não poderiam ser


diferentes do que são, isto é, afirmam que em cada momento existe apenas um curso de
ação possível dadas as causas que o antecedem, em conjunto com as leis da natureza. E
se nossas ações não poderiam ser diferentes do que são, então não temos livre-arbítrio.
Em outras palavras, se o determinismo implica haver em cada ocasião apenas um curso
de ação possível, e se haver em cada ocasião apenas um curso de ação possível implica
não sermos livres, então o determinismo implica não sermos livres. Como consequência
disso, se o determinismo for verdadeiro, não podemos ser considerados responsáveis
pelas nossas ações, uma vez que só podemos ser responsabilizados por ações livres.

Suponhamos que de fato o determinismo é verdadeiro, isto é, que nossas


decisões e ações são causalmente determinadas por fatores fora do nosso controle, como
os genes e o ambiente. Como consequência disso, não temos condições de atribuir
liberdade e responsabilidade às pessoas. Desse modo, um cleptomaníaco seria tão
responsável pelo seu comportamento compulsivo de roubar quanto um motorista
imprudente que dirige alcoolizado e em alta velocidade, de modo que essa visão
determinista pode gerar consequências práticas desastrosas no âmbito do direito, pois
ambos os indivíduos seriam tratados do mesmo modo, embora intuitivamente haja uma
diferença evidente no comportamento de cada um.

Assim, se levarmos a sério o determinismo radical, não é possível legitimar a


eticidade e a legalidade. Esse é um argumento pragmático em favor do libertarismo,
pois tem em vista as consequências práticas desastrosas da rejeição do livre-arbítrio e,
por conseguinte, da atribuição de responsabilidade às pessoas, visto que liberdade e
responsabilidade são, por assim dizer, duas faces da mesma moeda. Em outras palavras,
argumenta o libertarista, devemos pensar e agir como se fossemos livres e responsáveis,
para tornar possível a convivência humana dentro de um estado de direito.

Como vimos, o determinismo radical e o libertarismo são duas doutrinas


incompatíveis, pois a primeira afirma que somos determinados, ao passo que a segunda
afirma que somos livres. Se o libertarismo sustenta que somos livres quando temos pelo
menos um curso alternativo de decisão e ação, e se o determinismo radical sustenta que
nossas decisões e ações são inevitáveis, então essas duas doutrinas são incompatíveis.
No entanto, considerando uma posição compatibilista, um defensor do determinismo
moderado argumenta que existe apenas uma incompatibilidade entre os conceitos de
determinismo e liberdade. Se reformularmos tais conceitos, podemos admitir a
possibilidade de que nossas ações são ao mesmo tempo causalmente determinadas e
livres.

Antes de prosseguirmos, repassarei o determinismo radical e o libertarismo,


tentando colocar cada doutrina em termos mais claros. Os defensores do libertarismo
sustentam que nossas decisões e ações são incausadas. Nossas decisões e ações são de
certo modo incausadas no sentido de que não são causadas segundo leis invariáveis da
natureza, mas pela própria pessoa, que é a causa última de suas próprias decisões e
ações. Nesse caso, pode-se dizer que é a faculdade da vontade que é a causa última de
nossas decisões e ações, porém a vontade não é causada por um fator anterior que esteja
numa cadeia causal. A vontade é causa de si mesma. Nesse sentido que se afirma que
somos autodeterminados.

Os que defendem o determinismo radical sustentam que, se a vontade é causa


de nossas decisões e ações, então a vontade é causada por um fator anterior segundo leis
invariáveis da natureza. Em outras palavras, de acordo com o determinismo radical todo
o acontecimento B tem como causa um acontecimento anterior A, de modo que,
segundo as leis da natureza, B é uma consequência inevitável de A. Como vimos, para
os libertaristas as decisões e ações são livres apenas se estas não forem consequências
inevitáveis, e se forem causadas pela própria pessoa, que é autodeterminada. O conflito
entre ambas as doutrinas, afirmam os defensores do determinismo moderado, segue-se
da concepção de determinismo e liberdade que cada uma sustenta.

Para os defensores do determinismo moderado, os quais passarei a chamar de


compatibilistas, o determinismo implica haver em cada ocasião apenas um curso de
ação possível, mas haver em cada ocasião apenas um curso de ação possível não implica
não sermos livres, então o determinismo não implica não sermos livres. Os
compatibilistas rejeitam o conceito de liberdade segundo o qual uma ação é livre se o
agente tem mais do que um curso alternativo de ação ao seu dispor, não sendo inevitável
o que faz. Como consequência disso, se o determinismo for verdadeiro, argumentam os
compatibilistas, podemos ser considerados responsáveis pelas nossas ações, uma vez
que só podemos ser responsabilizados por ações livres.
No entanto, não basta simplesmente rejeitar aquele conceito de liberdade, é
preciso fornecer outro em seu lugar. Os compatibilistas entendem a liberdade como
sendo a ausência de coerções que nos impeçam de realizar aquilo que nós mesmos
decidimos escolher ou fazer, mesmo que essa decisão seja determinada. Em outras
palavras, se uma pessoa decidiu ou agiu sob alguma forma de restrição ou coerção, seja
externa ou interna, então essa pessoa não decidiu ou agiu livremente. Sendo assim, se
liberdade for entendida como ausência de coerções ou restrições, então esta se torna
compatível com o determinismo, pois ambos os conceitos admitem a noção de
inevitabilidade.

Podemos ilustrar essa nova ideia com o seguinte exemplo. Uma pessoa é
mantida contra sua vontade acorrentada e privada de se alimentar. Sua liberdade de
decisão não está sendo coagida por nenhum impulso interno fora do seu controle, como
no caso de uma pessoa que sofre de anorexia, mas sua ação está sendo fisicamente
restringida, de modo que esse impedimento é o que está restringindo sua liberdade.

No entanto, um caso muito diferente é o de Gandhi, que decidiu não se


alimentar como forma de protesto. Nesse caso, não havia nenhum impedimento para
que ele se alimentasse, pois se ele quisesse se alimentar bastaria estender a mão para
qualquer um de seus seguidores que certamente um deles lhe proveria um pedaço de
pão. É por isso que vemos a privação de Gandhi como um feito admirável, pois ele agiu
livremente, isto é, agiu sem nenhuma forma de coerção. Contudo, argumentam os
compatibilistas, as decisões e ações de Gandhi foram causalmente determinadas, e
apesar disso foram livres, pois não havia nenhuma restrição ou coação, interna ou
externa, que lhe impediu de agir segundo suas próprias crenças e desejos. Segundo os
compatibilistas, Gandhi não tinha alternativas de ação, e apesar disso ele agiu
livremente.

Os libertaristas podem argumentar que as crenças e os desejos de uma pessoa,


assim como sua história de vida, não formam um conjunto suficiente de fatores
causalmente relevantes para a ação, o que significa que é a pessoa a origem última da
ação. Em outras palavras, mantendo-se inalterados todos os outros fatores, a ação
poderia ter sido diferente do que foi, visto que é a pessoa a causa última da ação.
Segundo essa análise, Gandhi tinha disponíveis cursos alternativos de ação, mesmo que
todos os outros fatores, tais como as circunstâncias em que ele se encontrava, os seus
desejos e as suas crenças, sua história de vida e tudo o mais se mantivessem idênticos,
pois ele próprio é a causa última da sua ação, sendo ele autodeterminado. Além disso,
todos esses fatores mencionados seriam apenas motivadores do comportamento de
Gandhi, isto é, não causariam seu comportamento, apenas influenciariam, sendo ele
próprio a causa de suas ações livres.

No entanto, argumentam os compatibilistas, para que Gandhi tivesse agido de


modo diferente, seria preciso que algum fator tivesse sido alterado mesmo que
ligeiramente, isto é, seria preciso que ele tivesse, por exemplo, uma variação em seus
desejos e crenças. Se a série de causas que conduziu Gandhi à decisão de praticar greve
de fome incluísse outros desejos e crenças, então ele poderia ter agido de outro modo,
caso nenhum obstáculo o impedisse. Sendo assim, Gandhi poderia ter agido de outro
modo, se tivesse escolhido agir de outro modo, caso seu passado fosse ligeiramente
diferente. Em outras palavras, embora tenhamos a impressão que poderíamos ter agido
de outro modo, todas as outras condições permanecendo as mesmas, nós poderíamos ter
agido de outro modo apenas se houvesse uma pequena diferença que conduzisse a uma
completa alteração no cenário. E essa análise, afirmam os compatibilistas, é compatível
com o determinismo.

Um exemplo que pode ajudar a tornar mais clara essa ideia é o seguinte. Uma
pessoa está entre duas alternativas, tendo que escolher apenas uma delas. Após um
longo processo de deliberação, essa pessoa escolhe a primeira alternativa, pois acredita
que esta é a melhor. Podemos entender o determinismo como a sequência do mesmo
futuro a partir do mesmo passado, e o livre-arbítrio, na forma concebida pelos
libertaristas, como diferentes futuros a partir do mesmo passado, quando ações livres
estão envolvidas no processo. Nesse caso, argumentam os compatibilistas, numa visão
libertarista teríamos que admitir que o mesmo processo de deliberação, as mesmas
crenças, os mesmos desejos e outros motivos que conduziram essa pessoa a escolher a
primeira alternativa, poderiam tê-la conduzido igualmente a escolher a segunda
alternativa.

Para os compatibilistas, essa conclusão não é plausível. Eles sustentam que


para essa pessoa escolher a segunda alternativa é preciso ocorrer alguma variação nos
fatores relevantes que causaram sua decisão. Essa pessoa poderia ter escolhido
diferentemente caso ela tivesse tido crenças e desejos diferentes, ou se tivesse
raciocinado de maneira diferente, então talvez tivesse escolhido a segunda alternativa. E
isso significa que o futuro seria diferente, caso o passado tivesse sido de alguma forma
diferente.

No entanto, os libertaristas podem argumentar que o que torna uma pessoa


responsável pelas suas ações é ter cursos alternativos de ação disponíveis, pois é o que
lhe garante poder agir de outro modo, sendo ela exatamente a mesma pessoa. O que
parece, segundo a argumentação compatibilista, é que uma pessoa poderia ter agido de
outro modo, caso fosse uma pessoa diferente. E o que está em causa é, pelo contrário,
saber se podemos responsabilizar moralmente uma pessoa pelo que faz sendo ela a
pessoa que é. Nesse caso, é preciso explicar como se pode atribuir responsabilidade
moral a uma pessoa, admitindo que sua escolha foi causalmente determinada, e que não
poderia ter agido de outra maneira, a não ser que tivesse sido de certo modo uma pessoa
diferente.

Consideremos o seguinte exemplo. Dois homens cometem o crime de


homicídio contra suas esposas. Um deles comete o crime em plena consciência, sendo
assim responsabilizado moralmente pelo delito. O outro comete o crime enquanto está
sofrendo uma crise de epilepsia temporal, isto é, uma desordem mental que faz com que
a pessoa cometa ações violentas, sendo posteriormente incapaz de lembrar-se do que
fez. De acordo com uma perspectiva libertarista, o primeiro agiu livremente, e não de
maneira causalmente determinada, sendo isso o que o torna moralmente responsável por
sua ação. O segundo não agiu livremente, visto que sua ação foi causalmente
determinada pelo estado de seu cérebro, isto é, ele não poderia ter agido de outro modo.

Suponhamos que a ciência descobriu como rastrear e mapear claramente um


complexo de causas que explique as ações do primeiro homem do exemplo, o que foi
julgado moralmente responsável, e que devido a um conjunto de fatores que estavam
fora do seu controle ele foi conduzido a cometer o crime. Nesse caso, sua decisão será
considerada como tendo sido causalmente determinada. Mas a razão de ainda podermos
atribuir responsabilidade a esse homem está no fato de que seu comportamento pode ser
considerado socialmente maleável, isto é, passível de ser alterado de algum modo, seja
através de recompensa e punição, seja através de informação e argumento, e por isso
ainda podemos falar em responsabilidade moral. Em outras palavras, embora os
compatibilistas defendam que, numa dada situação, uma pessoa tem apenas um curso de
ação, e que sua ação é livre caso esta não seja coagida e esteja de acordo com seus
desejos e crenças, pode-se falar em responsabilidade moral devido à possibilidade de
correção do comportamento dessa pessoa.

Com o que foi exposto neste trabalho, numa concepção compatibilista a


liberdade é o oposto de constrangimento, compulsão e coerção, ou coerção
injustificável, mas não é o oposto de determinismo, pois este nem sempre atua contra a
nossa vontade, nem nos impede de fazer o que queremos, ao passo que
constrangimento, compulsão e coerção atuam contra a nossa vontade, impedindo-nos de
escolher ou fazer o que queremos. O determinismo causal, afirmam os compatibilistas,
significa apenas que certos acontecimentos decorrem de outros acontecimentos
anteriores de acordo com leis invariáveis da natureza, mas isso não significa que
vivemos acorrentados pelas leis da natureza. Pelo contrário, nossas ações livres são
causadas por fatores que nos são interiores, como nossos desejos, crenças, motivos e
razões, e por isso podemos ser responsabilizados pelas nossas ações. Para os
compatibilistas, ações livres são não constrangidas, e não incausadas.

Para concluir, podemos apenas ressaltar que o libertarismo, o determinismo


radical e o determinismo moderado assumem diferentes posições acerca do problema do
livre-arbítrio, porém estas teorias dizem respeito a questões descritivas e não
normativas, isto é, nenhuma delas faz afirmações acerca de a liberdade ser uma coisa
boa ou má, mas apenas se somos ou não agentes livres. Porém, cabe aqui ressaltar que a
crença de que somos agentes livres pode gerar consequências boas, pelo menos numa
concepção libertarista ou compatibilista, pois para a primeira essa crença pode nos
influenciar a tomarmos atitudes positivas que melhorem nossas vidas, e para a segunda
essa crença pode ganhar um papel causal relevante no conjunto de fatores que
determinam nossas ações, de modo a gerar uma modificação nelas. Contudo, para os
deterministas radicais, acreditar ou não que somos agentes livres em nada mudaria
nossas ações, e essa ideia vai de encontro às nossas intuições de que existem diversos
casos em que acreditar que somos livres de fato muda positivamente o nosso
comportamento. Desse modo, creio que entre essas três teorias, as melhores opções são
a libertarista e a compatibilista, ao passo que o determinismo radical deve ser deixado
de lado.

Referências
BROOK, Andrew e STAINTON, Robert. Knowledge and Mind: A Philosophical In-
troduction. Cambridge, MA: The MIT Press, 2002.

GUERREIRO, M.A.L. Liberdade ou Igualdade? Porto Alegre. EDIPUCRS, 2002.

KANE, Robert. A Contemporary Introduction to Free Will. Nova Iorque: Oxford


University Press, 2005.

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