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IBEROGRAFIAS
AS NOVAS GEOGRAFIAS DOS PAÍSES
DE LÍNGUA PORTUGUESA | 2024

Coordenação:
Rui Jacinto

47
IBEROGRAFIAS
Coleção Iberografias
Volume 47
Título: As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Coordenação: Rui Jacinto
Apoio à edição: Ana Margarida Proença
Autores: Adinei Crisóstomo Almeida; Alan da Silva Vinhaes; Alexsandra Maria Vieira Muniz; Amanda Borges Pereira; Ana Lúcia
Duarte; Ana Paula Novais Pires Koga; Andrea Barbosa; Andréa Maria Narciso Rocha de Paula; Antonio Nivaldo Hespanhol; Arlete
Moyses Rodrigues; Breno de Abreu Lopes; Bruna Dienifer Souza Sampaio; C. Baratta; Camilla Carrea; Carla Taciane Figueiredo;
Carlos J. L. Balsas; Daniela Moreira S. Machado; Diogo Laércio Gonçalves; Dirce Maria Antunes Suertegaray; Elaine Santos;
Eustogio Wanderley Correia Dantas; Fabíola de Jesus Soares Santana; Felisa Cançado Anaya; Fernando Baptista Pereira; Francisco
José Araujo; Gabriel Fiorin Pereira; Giacomo Zanolin; Giampietro Mazza; Graça Moreira; Grete Pflueger; Helena Santana; Henrique
Eder Cavalcante Araújo; Humberto Yamaki; Inocencio de Oliveira Borges Neto; Joana Capela de Campos; João Almeida; Joel
Antonio Lameco; Joice de Almeida Lima; José Borzacchiello da Silva; José Luis Domínguez Álvarez; José Sampaio de Mattos Júnior;
Jucicleide Theodoro da Silva; Laila Alves da Silva; Laura Bernardi; Letícia Roberta Amaro Trombeta; Lúcio Cunha; Luis Manuel
Jerez Darias; Luísa Ribeiro; Márcia Aparecida da Silva Pimentel; Maria Clélia Lustosa Costa; Maria Conceição Dantas; Maria da
Penha dos Santos Costa; Maria da Penha Vasconcellos; Maria Madalena Ferreira; Maria Veronica Camerada; Messias Modesto dos
Passos; Mozart de Sá Tavares Júnior; Natália de Paula Narciso Rocha; Odilon Monteiro da SIlva Neto; Pedro Manuel Pereira da Silva
Tavares; Pilar Talavera Cordero; Rafael Zilio; Renata Maria Ribeiro; Ricardo Silva; Rogério Coelho; Rosangela Hespanhol; Rosário
Santana; Rui Missa Jacinto; Salvatore Lampreu; Sergiana Santos; Silvia Carrus; Tamires Regina Rocha; Thais Helena Gonçalves;
Tiago Estevam Gonçalves; Valéria Cristina Pereira da Silva; Vanessa Almeida Suzart dos Santos

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: Sofia Travassos | Âncora Editora


Fotografia: Centro de Estudos Ibericos

Impressão e acabamento:

1.ª edição: abril de 2024


Depósito legal n.º xxxxx/24

ISBN CEI: 978-989-8676-42-9


ISBN: 978 972 780 924 0

Edição n.º 41047

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
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www.facebook.com/ancoraeditora

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.

Apoio:
O Curso de Verão, a leitura do território e o diálogo trans-ibérico
Rui Jacinto 09
I. PAISAGEM E GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS
Dinâmica da paisagem e mudanças do uso e cobertura da terra na raia divisória São Paulo
- Paraná-Mato Grosso do Sul, Brasil: uma análise a partir dos dados do projeto MapBiomas
Diogo Laércio Gonçalves, Messias Modesto dos Passos 15
Mudanças no uso e cobertura da terra no projeto de assentamento corta corda,
Santarém, Pará, Brasil: uma análise através de imagens do Projeto MapBiomas
Gabriel Fiorin Pereira e Diogo Laércio Gonçalves 31
Análise do uso e cobertura da terra na bacia hidrográfica do Rio São Francisco a
partir de dados da plataforma Mapbiomas (1988; 2008; 2021)
Ana Paula Novais Pires Koga e Maria Conceição Dantas 49
Diagnóstico da paisagem aplicado à gestão de recursos hídricos na Unidade de
Gerenciamento de Recursos Hídricos Paranapanema (UGRH-Paranapanema), Brasil
Letícia Roberta Amaro Trombeta 63
As Transformações Paisagísticas da BR-163 - Uma Abordagem Geo-Foto-Gráfica
Messias Modesto dos Passos 81
Áreas Protegidas do Baixo Tapajós-PA: abordagem pela perspectiva da paisagem-território
Márcia Aparecida da Silva Pimentel 103
Paisagem e Território nas Terras da CTNP – Estratégias e módulos de ordenamento
Humberto Yamaki 115
Impacto das Cheias de 2023 no Rio Pacaás Novos para o Modo de Vida dos
Extrativistas residentes na Reserva Extrativista Rio Pacaás Novos, Rondônia, Brasil
Jucicleide Theodoro da Silva; Daniela Moreira S. Machado; Maria Madalena Ferreira;
C. Baratta; Lúcio Cunha 127
Serviços Ecossistêmicos Hídricos e Avaliação da Qualidade da Água na Bacia
Hidrográfica do Córrego Bebedouro, Mato Grosso do Sul, Brasil
Bruna Dienifer Souza Sampaio e Ana Paula Novais Pires Koga 149

II. AGRICULTURA E DESENVOLVIMENTO RURAL


Paisagens, Patrimónios e Desenvolvimento. Local: recursos do território e sustentabilidade
Graça Moreira 167
Relação Cidade-Campo no Município de Rosana-SP: Um estudo histórico sobre a
importância da CESP na dinâmica do município
Thais Helena Gonçalves e Diogo Laércio Gonçalves 171
Relação Cidade-Campo e a Agricultura Urbana e Periurbana em Jundiaí-SP
Alan da Silva Vinhaes; Antonio Nivaldo Hespanhol; Tamires Regina Rocha 187
O baixo Tapajós: da aldeia dos Tapaius aos sojicultores
Laila Alves da Silva; Messias Modesto dos Passos; Diogo Laércio Gonçalves 205
Le Mappe di Comuntà entre a educação e o desenvolvimento local.O Projecto Nativi
Giampietro Mazza; Giacomo Zanolin; Camilla Carrea; Laura Bernardi 215
Os efeitos do desmanche institucional do PAA e da Pandemia da COVID-19 sobre o
associativismo rural na Região de Dracena (São Paulo)
Rosangela Hespanhol; Antonio Nivaldo Hespanhol 227
Novos rurais: desafios na atração e retenção de talento em territórios rurais
Luísa Ribeiro; João Almeida; Andrea Barbosa 239
Territorialidades, nova cartografia social e povos tradicionais no Brasil
Andréa Maria Narciso Rocha de Paula; Adinei Crisóstomo Almeida; Felisa Cançado
Anaya; Natália de Paula Narciso Rocha 249
A cartografia participativa no Plano Diretor Municipal (PDM): uma nova abordagem
para compreender e transformar territórios
Elaine Santos; Rogério Coelho; Maria da Penha Vasconcellos 267
Espaços de Trabalho Colaborativo em Zonas Rurais: moda urbana ou oportunidade
de repovoamento?
João Almeida; Luísa Ribeiro; Andrea Barbosa 275

III. CIDADE E DINÂMICAS DO ESPAÇO URBANO


Fortaleza e a formação social urbana do Ceará
José Borzacchiello da Silva 289
Movimentos Sociais Urbanos e a Conferência Popular pelo Direito à Cidade
Arlete Moyses Rodrigues 305
A (IN) sustentável leveza de viver na Comunidade Vila Dois Rios – Ilha Grande – Angra
dos Reis- RJ: Territórios e/ou Territorialidades?
Carla Taciane Figueiredo; Ricardo Silva; Sergiana Santos 319
Resiliência Urbana: do urbanismo comercial ao consumo sustentável
Carlos J. L. Balsas 341
Reestruturação Urbana e Comércio: o Centro Fashion em Fortaleza
Alexsandra Maria Vieira Muniz e José Borzacchiello da Silva 351
Produção do espaço: os bens públicos no planejamento urbano de Fortaleza
Henrique Eder Cavalcante Araújo; Tiago Estevam Gonçalves; Maria Clelia Lustosa Costa 369
Análise dos principais desdobramentos espaciais do Ensino Superior no espaço
urbano de uma Cidade Média Cearense: breves notas
Breno de Abreu Lopes; Maria Clélia Lustosa Costa 383
Indústria de calçados e os novos territórios da produção nas pequenas cidades do
Ceará, Brasil
Maria da Penha dos Santos Costa; Alexsandra Maria Vieira Muniz 391
Temporalidades urbanas em Alcântara – MA- Brasil: de Tapuitapera às ruínas
coloniais e espaciais
Grete Pflueger 405
Patrimônio Urbano de Primavera (SP) - um olhar para a preservação e para o turismo
Renata Maria Ribeiro e Vanessa Almeida Suzart dos Santos 417
Património Mundial: conceitos, discursos, práticas e dinâmicas
Joana Capela de Campos 431
IV. SOCIEDADE E TERRITÓRIO
Políticas da educação superior e o perfil dos estudantes: o caso da UEMA
Fabíola de Jesus Soares Santana e José Sampaio de Mattos Júnior 453
Desequilibrios socioeconómicos y repercusiones territoriales. Un análisis comparativo
entre Cerdeña y Canarias
Salvatore Lampreu; Luis Manuel Jerez Darias; Maria Veronica Camerada; Silvia Carrus 467
Concepção dos Coordenadores de Cursos de Licenciatura sobre os indicadores de
qualidade do SINAES
Ana Lúcia Duarte 485
Da fronteira do capital à fronteira abissal na Amazônia: a construção do
“Amazonismo” e suas repercussões em conflitos geoepistêmicos
Rafael Zilio; Joice de Almeida Lima 499
A dinâmica do conceito fronteira. Um estudo na perspectiva da fronteira entre
Moçambique e Tanzânia
Joel Antonio Lameco 513
Cooperación transfronteriza y despoblación: instrumentos jurídico administrativos
para conseguir la integración territorial
Pilar Talavera Cordero e José Luis Domínguez Álvarez 529
Qual o rei para o atual tabuleiro de xadrez: democracia e um paradoxo para as
contradições
Francisco José Araujo 545

V. ARTE, CULTURA E LEITURAS DO TERRITÓRIO


As bandas filarmónicas enquanto espaços de criação, recriação e cultura: o caso
particular da Filarmónica Gratidão Riotortense
Helena Santana e Rosário Santana 567
A toponímia indígena da Paraíba: significado, persistência e mudança dos nomes
das sedes de município
Inocencio de Oliveira Borges Neto; Dirce Maíra Antunes Suertegaray; Amanda Borges
Pereira 585
D Joana de Áustria, La Princesa: As influências culturais entre as Cortes Ibéricas e a
evolução da forma de representação régia feminina durante o século XVI
Fernando Baptista Pereira; Pedro Manuel Pereira da Silva Tavares 613
Turismo, Interdisciplinaridade e Experiência: uma viagem, muitas lições
Renata Maria Ribeiro 627
Devoção franciscana no Ceará e sua inserção como patrimônio imaterial brasileiro
Eustogio Wanderley Correia Dantas e Odilon Monteiro da Silva Neto 641
Literatura, Cinema e Street Art como Poéticas da Cidade: Paisagens, Imagens e
Vivências Urbanas
Valéria Cristina Pereira da Silva; Mozart de Sá Tavares Júnior; Rui Missa Jacinto 651
O Curso de Verão, a leitura do território e o
diálogo trans-ibérico

Rui Jacinto1

O presente número da Coleção Iberografias sinaliza duas facetas importan-


tes do Curso de Verão, evento de referência e projeto emblemático entre os
promovidos pelo CEI: revela um tipo de matéria sobre a qual continua a acu-
mular informação ao coligir os trabalhos apresentados numa iniciativa que
constitui um dos momentos altos da programação anual do Centro. Além de
representar uma das razões da sua existência, o saber inerente ao património
coletivo assim tombado constitui, antes de mais, um dos pilares estruturan-
tes da missão do CEI, afirmando-o como ponto focal na articulação de inves-
tigadores ibero-americanos e como verdadeira plataforma de divulgação de
conhecimento.
O XXIII Curso de Verão, que decorreu nos dias 27 de junho e 1 de julho
de 2023 entre Coimbra, Guarda e Almeida, foi subordinado ao tema gené-
rico Novas fronteiras, outros diálogos: cooperação e desenvolvimento. As várias
Conferências e os diversos Painéis realizados naqueles dias foram prósperos em As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Comunicações e Debates, intercalados por sessões de Trabalho de Campo que le-


varam mais de uma centena de participantes a deambular por vários locais do
Centro de Portugal. Os textos incluídos neste volume correspondem às co-
municações apresentadas por investigadores de várias proveniências que
representam, além do Brasil (33), Portugal (7), Itália (1) e Moçambique (1).
A redação destes estudos envolveu perto de noventa (90) investigadores inte-
grados em distintas redes de investigação, internas a cada um daqueles países,

1
Centro de Estudos Geográficos e Ordenamento do Território (CEGOT)
Centro de Estudos Ibéricos (CEI)
9 //
ou em parcerias internacionais que conjugam, em alguns casos, investigadores
de universidades portuguesas e brasileiras.
Os temas abordados são diversificados, analisam problemáticas que fazem
as agendas atuais da investigação e que incluí matérias críticas e prementes
para a definição das políticas públicas, quer à escala global e nacional quanto a
nível regional e local. Por isso, os assuntos tratados nesta edição podem inte-
grar qualquer observatório das dinâmicas socioeconómicas em diferentes con-
textos territoriais e geopolíticos. Por outro lado, fazendo jus título que serviu
de mote ao Curso, foi valorizada a importância da cooperação para os proces-
sos de desenvolvimento sem esquecer o papel dos novos diálogos na procura
de soluções inovadoras para enfrentar novas problemas, emergentes numa
conjuntura mais crítica e de crescente incerteza. Os trabalhos apresentados
foram organizados em cinco coordenadas estruturantes: (i) paisagem e gestão
dos recursos naturais (9 artigos); (ii) agricultura e desenvolvimento rural (10);
(iii) cidade e dinâmicas do espaço urbano (11); (iv) sociedade e território (7);
(v) arte, cultura e as leituras do território (6).
A matriz do Curso de Verão sempre residiu no vínculo com o terreno ao
privilegiar o trabalho de campo como verdadeiro método de ensinar e de
aprender. As visitas de estudo, fundamentais para fomentar o interesse pela
leitura e interpretação dos territórios, permitem apresentar e debater in loco pro-
blemáticas diversificadas, desde as relacionadas com as paisagens naturais
e humanas às que se prendem com os patrimónios materiais e intangíveis.
10 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A análise destas dinâmicas tem tido como campo de observação privilegiado


os territórios de baixa densidade sobretudo os mais frágeis como são os espa-
ços fronteiriços localizados entre Portugal e Espanha.
A edição de 2023 integrou a programação do Centenário do Nascimento
de Eduardo Lourenço, Patrono, Mentor e Diretor Honorifico do CEI, ao incluir
especificamente o Roteiro Eduardo Lourenço. O itinerário passou, naturalmente,
por lugares que povoam a memória e o imaginário do ensaísta, onde relevam
Coimbra, Guarda, Almeida e São Pedro do Rio Seco. A leitura do território do
Centro de Portugal foi aprofundada a partir destes lugares e dos situados em
outros percursos complementares, selecionados para debater as paisagens e
o património natural durantes o trabalho de campo, tendo-se enfatizado, este
ano, as paisagens e o turismo literário. Além de Coimbra, lugar emblemáti-
co neste particular, percorreram-se as faldas da Serra da Estrela (Linhares e
Meios, p. ex.) e da Gardunha (Castelo Novo, Alpedrinha e Portela), sendo visi-
tados dois lugares determinantes no panorama do turismo literário da região:
Melo e Gouveia, onde nasceu e se encontra a Biblioteca Virgílio Ferreira; Póvoa
da Atalaia, no concelho do Fundão, que viu nascer Eugénio de Andrade como o
nome de José Fontinhas, no ano em que se comemorou, também, o centenário
do seu nascimento.
O Curso de Verão tem vindo a posicionar-se como ponto de encontro e de
debate entre investigadores, afirmando-se plataforma propícia para dinami-
zar o diálogo trans-ibérico. As publicações editadas pelo CEI refletem esta ten-
dência: se os primeiros números incidiram sobre o interior raiano do Centro
de Portugal, os territórios e as culturas ibéricas ou as múltiplas matizes que
assumem os espaços de fronteira, os títulos mais recentes têm como alvo as
múltiplas cambiantes que assumem As Novas Geografias dos Países de Língua
Portuguesa. Assim, após a primeira década que teve como foco a cooperação
transfronteiriça, o perímetro alargou-se nos últimos anos, intensificou-se a
cooperação transatlântica com o envolvimento do Brasil e dos demais Países
de Língua Portuguesa.

11 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
I. PAISAGEM E GESTÃO
II. II

DOS RECURSOS NATURAIS


14 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Dinâmica da paisagem e mudanças do uso e
cobertura da terra na raia divisória SP – Paraná-
-Mato Grosso do Sul, Brasil: uma análise a partir
dos dados do projeto MapBiomas

Diogo Laércio Gonçalves1


Messias Modesto dos Passos2

Introdução

Ao abordar a construção da paisagem da Raia Divisória SP-PR-MS, faremos antes de


tudo um apanhado histórico da porção do espaço geográfico onde a raia está inserida para
após, observar cada uma das regiões estaduais abrangidas por ela não só delimitando-as de
maneiras distintas, mas observando as suas descontinuidades objetivas. Este esforço inicial
se faz necessário para a compreensão dos fatos históricos e dos agentes sociais envolvidos
na transformação desta área sobretudo no último século.
De maneira geral, a Raia Divisória, encontra-se geograficamente localizada na bacia
do alto curso rio Paraná, mais especificamente na área de confluência do rio Paraná e seu
principal afluente nesta localidade: o rio Paranapanema (SOUZA, 2015). O rio princi-
pal e seu afluente mais importante neste trecho, servem de divisores geográficos naturais
entre três unidades de federação: São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. Sendo assim,
a Raia Divisória marca a zona de contato entre o Extremo Oeste Paulista (região co-
nhecida popularmente como Pontal do Paranapanema), o Noroeste Paranaense e Sudeste As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Sul-Mato-Grossense.
Como forma de aproximação e contato mais direto entre as porções que compõem
a raia, temos no município de Rosana no Estado de São Paulo como “epicentro raiano”
(Figura 1), uma vez que pela sua localização geográfica no ponto de encontro entre os rios
Paranapanema e Paraná, que, historicamente, serviu para o escoamento de mercadorias
e fluxo de pessoas entre os três estados, seja por meio fluvial ou pelas pontes e rodovias
1
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Tecnologia e Educação, Departamento de Geografia
e Planejamento, Ourinhos/SP, Brasil. – diogo.goncalves@unesp.br
2
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em
Geografia, Presidente Prudente/SP, Brasil. –modesto.passos@unesp.br
15 //
Fig. 1: Localização da Raia Divisória SP-PR-MS. Org.: Diogo Laércio Gonçalves, 2020

implantadas na segunda metade do século XX e em decorrência da construção de duas


usinas hidrelétricas pela Companhia Energética do Estado São Paulo (extinta CESP).
Embora historicamente a presença destes dois grandes rios serviu para “fragmentar”
esta paisagem, sua ocupação desde os povos primitivos, demonstrava que já havia uma
aproximação e contato entre estes. A presença de índios Guarani-Kaiowá e seus respecti-
16 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

vos subgrupos, registrada de maneira mais específica na região da raia desde os mapas da
segunda metade do século XIX, é um exemplo de povoação não só na raia, mas como de
toda a bacia do Alto rio Paraná. Hoje, poucos indígenas habitam ao longo da bacia do
Alto Paraná, sendo a maior parte deles concentradas no estado do Mato Grosso do Sul e
no Paraguai (PASSOS, 2005).
Tendo em vista que o processo de ocupação inicial de cada porção estadual foi
distinto, isso reflete até os dias atuais no panorama geral da Raia, embora nas últimas
décadas, agentes como a CESP e os movimentos sociais de luta pela reforma agrária, di-
rimiram parte destas diferenças, suscitando um aspecto de uma paisagem relativamente
homogênea.
Boa parte da ocupação do território raiano já encontrava-se consolidado, o que expli-
ca o baixo percentual de cobertura vegetal desde 1985. O impacto socioambiental mais
evidente nos últimos anos, foi as construções das hidrelétricas da CESP, que, concomitan-
temente, intensificou o fluxo migrátório entre os limites estaduais devido suas obras de
infraestrutura ligando São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul, via Rosana (município
central de dispersão entre os estados) (PASSOS, 2011)
Na década de 1960, foi ratificada pelo Governo do Estado de São Paulo, a fusão de
onze empresas responsáveis pela geração de energia no estado centralizando o planejamen-
to da produção e a geração de energia para a Companhia Energética de São Paulo (CESP).
Visando o crescimento da matriz energética no estado, a CESP iniciou as pesquisas para
o aproveitamento hidrelétrico dos principais rios paulistas, sendo os rios Paranapanema
e Paraná alguns dos selecionados. No decorrer da década de 1970 os estudos se intensifi-
caram, sendo que no início da década de 1980 a CESP confirma a construção de quatro
hidrelétricas no Pontal do Paranapanema.
As mudanças causadas pelo barramento dos rios Paraná e Paranapanema para a construção
das hidrelétricas da CESP, trouxeram alterações consideráveis na distribuição da hidrografia
local. O trecho mais expressivo, restringe-se ao estado do Mato Grosso do Sul onde toda a área
da extensa planície do rio Paraná foi inundada para a construção da UHE Engenheiro Sérgio
Motta, entre as décadas de 1980 e 1990. Com o enchimento do lago, o rio Paraná avançou em
uma faixa de aproximadamente 8 metros de largura na porção sul-mato-grossense, resultando
em um lago extenso, porém pouco profundo, dadas as próprias características do relevo, predo-
minantemente plano neste trecho da bacia (GONÇALVES, 2020).
Neste contexto, analisaremos o conjunto de dados fornecido pela Coleção 4 do
Projeto MapBiomas para a Raia Divisória SP-PR-MS (Figura 1) pela classificação de uso
e cobertura da terra da série Landsat em intervalos decenais, partiremos para uma análise
integrada dos anos analisados (1985, 1995, 2005 e 2017), levando em consideração a
transformação da paisagem neste período em cada porção estadual.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Procedimentos metodológicos

Para o entendimento da ação antrópica da área de estudo utilizamos o conjunto de


dados em série histórica da Coleção 4 da plataforma MapBiomas. Os dados fornecidos,
são oriundos do conjunto de imagens de satélite da série Landsat, sendo processados pixel
por pixel, obtendo uma resolução espacial de 30x30 metros e disponibilizados em cartas
por: municípios, bacias hidrográficas, unidades de federação ou unidades de conservação
de todo território nacional.
17 //
Ao todo, os dados da coleção 4 fornecem dados de uso e cobertura da terra desde o ano
de 1985 até 2018, sendo classificados em seis grandes classes principais: floresta, formação
natural não-florestal, agropecuária, área não-vegetada, corpos d’água e não observado, das
quais compõem 20 subclasses (Tabela 1)
A seleção dos dados para a Raia Divisória, envolveu a bacia do alto rio Paraná em in-
tervalos de tempo decenais que mostraram as mudanças no uso e cobertura da terra na área
de estudo, especialmente no aumento da fragmentação florestal e na construção de gran-
des barramentos nos rios Paraná e Paranapanema para a construção de usinas hidrelétricas.
Os anos escolhidos para análise foram: 1985 (ano anterior a construção de ambas as
hidrelétricas), 1995 (após a construção da UHE Rosana), 2005 (posterior a construção
da UHE Engenheiro Sérgio Motta) e por último num intervalo maior com doze anos,
escolheu-se o ano de 2017 (data de início da pesquisa em questão). Para a obtenção dos
dados utilizou-se a ferramenta de WebGIS Google Earth Engine a partir do conjunto de
ferramentas MapBiomas User Toolkit 1.1.3.

Tabela 1 – Classes de uso e cobertura da terra da Coleção 4 do MapBiomas


(1985-2018), para a Raia Divisória SP-PR-MS
Classe Tipo Cor
Floresta
Formação Florestal natural
Formação Savânica natural
Floresta Plantada antrópico
Formação Natural Não-Florestal
Formação Campestre natural
Outra Formação Natural não Florestal natural
Agropecuária
Pastagem antrópico
18 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Cultura Anual e Perene antrópico


Cultura Semi-Perene antrópico
Mosaico de Agricultura e Pastagem antrópico
Área não-vegetada
Infraestrutura Urbana antrópico
Mineração antrópico
Outra Área não-vegetada antrópico
Corpos d’água
Rio, Lago e Oceano natural
Fonte: MapBiomas Coleção 4 (2018) Org.: do autor
Ao todo foram observados nos intervalos de anos utilizados quatorze subclasses de uso
da terra de acordo com a metodologia do MapBiomas, das quais: cinco são de origem na-
tural e nove de origem antrópica. Além dos mapas produzidos para cada década, também
foram produzidos gráficos e tabelas com as informações processadas a partir do software
Excel disponível no Pacote Office da empresa Microsoft. Como forma de exemplificar o
comportamento das classes, utilizamos na análise final o Diagrama de Sankey, que indica
o fluxo das setas que representam cada classe ao longo de cada intervalo de ano, onde sua
largura indica maior ou menor fluxo de uma classe em determinado ano. Para isso, utili-
zamos o software online e gratuito SankeyMATIC.3

Resultados e discussões

A partir dos dados de uso e cobertura da terra, avaliamos a dinâmica da paisagem nas últi-
mas décadas, considerando a ação antrópica na área em estudo através dos dados da Coleção
4 do Projeto MapBiomas, cujo período abarca a série histórica de 1985 a 2018. A Coleção
4 do MapBiomas, utiliza como base a série histórica das imagens da National Aeronautics
and Space Administration (NASA) dos satélites Land Remote-Sensing Satellite (LANDSAT), a
partir do sensor Thematic Mapper (TM), sendo compatível com a escala de 1:100.000.
Para tanto, iremos analisar em intervalos decenais, sendo a última década ampliada
para o intervalo referente ao ano inicial desta pesquisa. Os anos selecionados foram: 1985
(anterior à construção das hidrelétricas da CESP), 1995 (período pós a formação do lago
da UHE Rosana e anterior ao lago da UHE Engenheiro Sérgio Motta), 2005 (já com as
duas usinas hidrelétricas estabelecidas) e 2017 (ano de início da pesquisa). As classes de uso
e cobertura da terra a serem analisadas, foram:
• Floresta: incluindo a Formação Florestal, Floresta Savânica (Cerrado) e Floresta
Plantada (Reflorestamento);
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
• Formação Natural Não Florestal: incluindo a Formação Campestre e outros tipos
de formações não florestais (a exemplo formações pioneiras, dos campos de várzea
da margem sul-mato-grossense do rio Paraná e do varjão do rio Paranapanema em
Rosana-SP);
• Agropecuária: envolve as áreas de pastagem e de agricultura (cultura anual e perene
e cultura semi-perene), bem como os mosaicos de pastagem e agricultura;
• Área não vegetada: áreas urbanas e outras áreas não vegetadas de origem antrópica;
• Corpos d’água: rios e lagos da bacia do Paraná e Paranapanema.

3
Disponível em: https://sankeymatic.com/build/
19 //
Uso e cobertura da terra para o ano de 1985

Observando os dados extraídos, vemos que já em 1985 neste ano boa parte da cober-
tura vegetal da Raia Divisória já havia sido removida, dando lugar ao desenvolvimento da
agricultura e da pecuária. Da área total da Raia neste ano, cerca de 76% eram de predomi-
nância de atividades agropecuárias, a mais expressivas delas a pastagem, com quase 70%
do total. Na porção paranaense o uso agropecuário foi o mais evidente com 92% da área,
seguido da porção paulista com 81%. Já a porção sul-mato-grossense, obteve 62% de sua
área destinada à agropecuária.
A classe Floresta representou neste ano cerca de 15% da área total da Raia, sendo a
maior parte (14,26%) representada pela Formação Florestal que envolve as áreas de Mata
Atlântica (Floresta Estacional Semidecidual), enquanto o restante, divide-se em áreas de
Floresta Savânica (Cerrado) com 1,06% e Floresta Plantada (de origem antrópica) com
0,01%. Ao analisar os dados pelas porções estaduais, vemos que a classe floresta apresenta-
-se mais evidente na porção sul-mato-grossense com 23% da área total desta porção, sendo
seguida pela paulista com 14%, enquanto a porção paranaense tinha já em 1985 apenas
6% de sua área com a cobertura florestal natural, o que contrasta com os números do uso
agropecuário supracitados.
As áreas de formações naturais não florestais que representaram neste ano cerca de
6% da área total da Raia também são mais evidentes na porção sul-mato-grossense, onde
ocupava cerca de 12% do total da porção, muito em função das áreas de formações pio-
neiras da extensa várzea do rio Paraná que existia naquela época e que foi suprimida com
a formação do lago da UHE Engenheiro Sérgio Motta. Na porção paulista, as áreas de
formações naturais não florestais representam 2%, sendo a área mais expressiva o varjão
do rio Paranapanema em Rosana. Já na porção paranaense, estas áreas ocupavam cerca
de 1% do total, a maior parte distribuídas ao longo da margem do rio Paranapanema e
seus afluentes.
20 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

No que se refere aos cursos d’água, estes representavam no ano de 1985 cerca de
3% da área total da Raia, sendo a maior parte referente a massa d’água dos rios Paraná
e Paranapanema. Cabe ressaltar que neste período, tanto a UHE Rosana como a UHE
Engenheiro Sérgio Motta encontravam-se em construção. Desta forma, os rios Paraná e
Paranapanema, apresentavam neste trecho o seu leito regular. As áreas não vegetadas que
envolvem a infraestrutura urbana e demais áreas sem vegetação à exemplo dos canteiros de
obras das UHEs da CESP, representaram menos de 1%. O mapa a seguir (Figura 2) mostra
a espacialização dos dados apresentados, a partir das classes da Coleção 4 do MapBiomas:
Fig. 2: Uso e Cobertura da Terra na Raia Divisória para o ano de 1985. Org.: Diogo Laércio Gonçalves, 2020

Uso e cobertura da terra para o ano de 1995

Dez anos após a primeira análise, vemos várias mudanças significativas no uso e co-
bertura da terra da Raia Divisória SP-PR-MS. A mais perceptível, diz respeito à formação
do lago da UHE Rosana no Rio Paranapanema concluída em 1987, tendo atingido uma
área de 220 km² entre a porção paulista e paranaense. Isto representou um acréscimo de
1% na área total da Raia para a classe corpos d’água e de 2% nesta classe para cada porção
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
estadual (São Paulo e Paraná).
Concomitantemente, houve um decréscimo na categoria florestal de cerca de 4%
comparado a 1985, que somados a 1% de decréscimo das áreas naturais não florestais,
representaram 5% de perda da paisagem natural. A porção estadual mais afetada foi a
sul-mato-grossense, onde do total de 23% relativos as áreas de florestas (Cerrado e Mata
Atlântica) em 1985 decaiu para 14% em 1995 (Figura 3).
Esta modificação refletiu-se principalmente pelo crescimento das áreas de atividades
agropecuárias sobretudo a pastagem e pelo alagamento de uma grande área. Em 1985, esta
classe representava cerca de 76% do total da Raia, um número já considerável. No ano
de 1995, o percentual pulou para 80% da área total, sendo o Estado do Mato Grosso Sul
21 //
um dos principais responsáveis por este aumento, já que em 1985 as áreas de uso agropecuário
nesta porção representava cerca de 62% do total, enquanto em 1995 houve um aumento de
quase 10% no uso agropecuário da raia sul-mato-grossense que passou a ter 71% desta porção.
As áreas não vegetadas, continuaram a figurar com menos de 1%, entretanto, soma-se
como acréscimo à classe de mineração em decorrência da exploração de argila nas porções
paulista e paranaense.

Fig. 3:Uso e Cobertura da Terra na Raia Divisória para o ano de 1995. Org.: Diogo Laércio Gonçalves, 2020
22 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Uso e cobertura da terra para o ano de 2005

Avançando mais uma década, a paisagem da Raia Divisória SP-PR-MS passou por
mais uma grande alteração da paisagem e do meio ambiente causada pela formação do
lago para a usina hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, um dos maiores do Brasil com
o total de 2.250 km² de superfície, concluída e inaugurada pelo Presidente da República
na época, Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1999. A área do lago atingiu princi-
palmente a vertente sul-mato-grossense (cerca de 80% do total), que outrora abrigava a
extensa faixa de várzea do rio Paraná.
Na região da Raia, isto significou um aumento de cerca de 100% na classe de uso
“corpos d’água”, que no ano de 1995 representava 4% do total da Raia passando para
8% em 2005. A área inundada pela usina abrigava um importante geocomplexo local
com uma extensa reserva de argila, além de um geocomplexo com características seme-
lhantes ao Pantanal. A grande várzea do rio Paraná, eram o berço de espécies importantes
da fauna brasileira, tais como: Panthera Onca (Onça-Pintada), Caiman latirostris (Jacaré-
do-Papo-Amarelo), Blastocerus dichotomus (Cervo-do-Pantanal), Myrmecophaga tridactyla
(Tamanduá-Bandeira) dentre outras.
O impacto também atingiu o meio socioeconômico com o deslocamento forçado de
quase 300 famílias ribeirinhas em toda a região atingida pelo lago. Desta forma, até mesmo o
setor agropecuário em plena expansão na Raia, sofreu um decréscimo de 1% do total das ter-
ras destinadas à esta classe, em razão da área alagada, haja vista que na porção sul-mato-gros-
sense (área mais atingida pelo lago), houve um aumento de 10% do uso “corpos d’água”.
Paralelamente, ressalta-se o crescimento de quase 4%, das áreas de lavoura, especial-
mente pela a expansão do setor sucroalcooleiro.
O reflexo do enchimento do lago da UHE Sérgio Motta, também atingiu as classes natu-
rais de: “floresta” (com decréscimo de 1%) e “formações naturais não florestais”, (com decrés-
cimo de 2%), comparados à década anterior. Na porção sul-mato-grossense, este decréscimo

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 4: Uso e Cobertura da Terra na Raia Divisória para o ano de 2005. Org.: Diogo Laércio Gonçalves, 2020
23 //
representou 3% do uso “floresta” e 5% do uso “formações naturais não florestais”. Não
houve decréscimo, neste período, das áreas de florestas da porção paulista, com apenas 1% de
diminuição das áreas naturais não florestais. Na Raia paranaense o resultado foi o contrário,
com 1% de diminuição das áreas de floresta e nenhum para as demais áreas naturais.
As áreas de uso antrópico não vegetadas, que correspondem principalmente: às áreas
urbanas, mineração, dentre outras, representaram novamente menos de 1% aumentando de
0,14% no ano de 1995 para 0,25% em 2005, sendo a maior parte na porção paranaense, em
razão da quantidade superior de núcleos urbanos comparadas às outras porções estaduais.
Em sequência temos a distribuição espacial representada no mapa (Figura 4).

Uso e cobertura da terra para o ano de 2017

O último ano analisado envolve um período um pouco maior que os anteriores (doze
anos), chegando ao ano de 2017 onde iniciamos esta pesquisa. Ao analisar estes dados, pri-
meiramente nos chama a atenção a questão do avanço da agricultura neste intervalo, repre-
sentando cerca de 15% da área total da raia, sendo que em 2005 representava menos de
4%. As áreas de maior avanço no uso e cobertura da terra, foram das culturas semi-perenes,
especialmente a cana-de-açúcar, fato já identificado de maneira mais branda no ano de 2005.
As primeiras usinas e destilarias de cana-de-açúcar presentes na Raia Divisória, datam a
década de 1970 com a criação do Programa Nacional do Álcool (ProÁlcool), iniciativa do
governo militar para fomentar a produção de biocombustível (etanol). Sendo assim, estabe-
leceu-se em Teodoro Sampaio-SP no ano de 1974 a Destilaria Alcídia S/A, hoje pertencente
ao grupo Atvos (anteriormente Odebrecht Agroindustrial). A segunda mais antiga é a Santa
Terezinha – Unidade Paranacity-PR, adquirida pelo grupo USACUCAR em 1987.
Com exceção dos dois complexos sucroenergéticos citados acima, os outros cinco exis-
tentes no território da Raia Divisória, datam justamente o último período estudado entre
24 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

2005 e 2017. No Mato Grosso do Sul, temos a Usina Laguna no município de Batayporã,
ativa desde 2016, além da Usina Aurora em Anaurilândia, esta última construída em 2012
fechou as portas no início de 2017 e encontra-se em litígio, tendo seu complexo requerido
pela prefeitura deste município. No Paraná, temos a unidade Terra Rica da Usina Santa
Terezinha construída em 2007, bem como a Destilaria Melhoramentos em Nova Londrina
adquirida em 2013, utilizando a sede da antiga COPAGRA. Por fim, em São Paulo temos
a Usina Conquista do Pontal em Mirante do Paranapanema, também de propriedade do
Grupo Atvos e construída em 2009.
Considerando que a maior parte destes complexos sucroenergéticos localizam-se
nas porções paranaense e paulista, a área produtiva da cana-de-açúcar também é mais
expressiva nestas porções. Boa parte dos produtores rurais destes estados tem destinado
suas terras para a produção da gramínea inclusive em áreas de assentamentos rurais.
No estado do Paraná ela representa aproximadamente cerca de 17%, em São Paulo
18%, enquanto no Mato Grosso do Sul representa menos de 4% em relação a área total
de cada porção se considerarmos o total de áreas de cultivos semi-perene. Todavia, embora
as áreas de cultivo tenham aumentado significativamente, houve uma redução de cerca de
1% do total do uso “agropecuária” com relação ao ano de 2005
Concomitantemente, o uso “floresta” aparece com 1% a mais do que no ano de 2005.
Isto se explica em parte, devido a ações de reflorestamento fomentados pela CESP e Duke
Energy em obras compensatórias pela construção das hidrelétricas da região, além de organi-
zações não-governamentais como o Instituto de Pesquisas Ecológicas, que realizam trabalhos
junto aos produtores rurais do Pontal do Paranapanema na recomposição das paisagens, via
corredores ecológicos. Os demais usos não obtiveram mudanças significativas, permanecen-
do na mesma proporção que da análise anterior. Vejamos no mapa a seguir (Figura 5).

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 5: Uso e Cobertura da Terra na Raia Divisória para o ano de 2017. Org. Diogo Laércio Gonçalves, 2020
25 //
Panorama final ao longo dos anos

Ao analisarmos a distribuição proporcional de cada classe de uso e cobertura da terra,


temos também outras possibilidades de compreensão da dinâmica da paisagem na Raia nas
últimas décadas. O uso “floresta”, que proporcionalmente possuía maior parcela na porção
sul-mato-grossense em 1985, desde os anos 2005 tem tido maior proporção em terras paulistas.
Isto deve-se em parte a criação de Unidades de Conservação, além de corredores ecológicos
entre áreas de reserva legal e APP, estabelecidos pela parceria com instituições como o IPÊ.
O uso agropecuário é o mais equilibrado, dado que sua distribuição é dominante em
toda Raia. Já o uso “cursos d’água” aparece com maior proporção no Mato Grosso do Sul,
em razão do lago da UHE Engenheiro Sérgio Motta, assim como as formações naturais
não florestais que compõem parte da APA Ilhas e Várzeas do Rio Paraná e unidades de
conservação criada como medida compensatória à construção da usina.
Através do Diagrama de Sankey, analisando as classes de uso agropecuário divididos
entre: pastagem, cultura anual e perene, cultura semi-perene (reunidos aqui em uma única
classe denominada: “agricultura”) e mosaicos de agricultura e pastagem, conseguimos ob-
servar que o comportamento da classe “agricultura”, se tornou mais evidente a partir de
2005, como podemos observar pela largura do fluxo das setas desta classe neste período
(Figura 6). Este fator é evidenciado especialmente pelo cultivo da cana-de-açúcar, com
diversos empreendimentos do setor sucroenergético em ambas as porções estaduais, em
26 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 6: Distribuição proporcional das classes de uso e cobertura da Terra ao longo dos anos observados, na Raia
Divisória SP-P R-MS, pelo Diagrama de Sankey Org.: Diogo Laércio Gonçalves, 2023
especial o estado de São Paulo, tendo em vista a sua produtividade nas terras areníticas da
Raia Divisória.
Com exceção das usinas criadas na época do ProÁlcool, a maior parte dos empreen-
dimentos do setor sucroenergético, especialmente na porção sul-mato-grossense da raia,
datam o período de meados dos anos 2000 até a atualidade.
No lado paranaense a presença da COCAMAR (antiga Cooperativa de Cafeicultores e
Agropecuaristas de Maringá Ltda,) que passou a atuar na região no cultivo de citrus, com
o Programa Fronteiras do Arenito em referência aos arenitos do Grupo Caiuá presentes na
região paranaense.
A produção de citros iniciou-se em Paranavaí em meados dos anos 1990 com a ins-
talação da COCAMAR-Indústria de Sucos Concentrado. No início dos anos 2000, boa
parte dos produtores desligaram-se deste projeto e decidiram investir no projeto de uma
nova indústria a CITRI Agroindustrial S/A com capacidade inicial de esmagar 2 milhões
de caixas de laranjas (SILVA, 2011). Entre 1997-1998, o governo do Paraná assumiu o
controle de alguns pequenos grupos que abandonaram seus projetos e fundou a Paraná
Citrus. Com a falência da Paraná Citrus, a COCAMAR assumiu o controle da empresa
em 1998 controlando-a completamente a partir de 2005.
De acordo com os dados da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (ADAPAR,2016),
a microrregião de Paranavaí representa hoje a maior área produtora de laranja do estado,
sendo seguidas pelas microrregiões de Maringá, Londrina e Cianorte, ambas no Norte do
Paraná. Com uma área de 10.256 hectares, representa uma produção de 374.605 tonela-
das, com um valor bruto da produção de R$109.287,263, o que corresponde a 48,77%
da produção de todo estado.
Enfim, a classe pastagem ainda é a mais presente. Todavia, a agricultura tem ocupado
um lugar de destaque nos últimos anos, modificando a estrutura agrícola das regiões que
seguem em movimentos parecidos, homogeneizando a paisagem pelo uso e cobertura da
terra, sem necessariamente se atentarem as suas divisas estaduais. Em tese, a “divisória”
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
desta raia, não se limita (até pela homogeneidade de suas paisagens naturais), o “desenvol-
vimento” contínuo do meio socioeconômico-territorial.

Considerações finais

Em suma, a partir da análise fornecida pelo conjunto de dados da Coleção 4 do


MapBiomas, podemos explorar um pouco mais as nuances que fomentaram o desenvolvi-
mento socioeconômico da Raia Divisória SP-PR-MS atrelado à ação antrópica e transfor-
mação da paisagem, especialmente nas últimas décadas.
27 //
A porção paulista cuja ocupação das terras, juntamente com à paranaense é a mais an-
tiga, já possuia em 1985, cerca de 81% de suas terras destinadas a atividades agropecuárias,
a maior parte destinada inicialmente para a pastagem o que levou a exploração das florestas
nativas datadas a partir de meados do século XX. Desde 1985, pouco mudou em relação às
categorias de uso da terra nesta porção. As mudanças mais evidentes diz em respeito ao uso
“cursos d’água”, referente ao represamento dos rios Paraná e Paranapanema para a constru-
ção das UHEs da CESP, que dobraram o valor deste uso entre 1985 (3%) e 2017 (6%).
O modelo de ocupação da porção paranaense seguiu, em parte, a lógica do paulista
(MONBEIG, 1945), com boa parte de suas terras destinadas ao setor agropecuário. No
âmbito da agricultura destaca-se, especialmente, a produção de citros nos arredores de
Paranavaí e mais recentemente a cana-de-açúcar com três polos de produção sucroalcoo-
leira em: Nova Londrina, Terra Rica e Paranacity. Entrentanto, a pastagem ainda é a prin-
cipal atividade agricola, especialmente a pecuária extensiva para corte e também a leiteira.
Já as mudanças mais notáveis na paisagem raiana restringiram-se na porção sul-mato-
-grossense, especialmente pelo gigantesco impacto causado pelo lago da UHE Engenheiro
Sérgio Motta. Em 1985, a área ocupada pelos cursos d’água, especialmente o rio Paraná
na porção sul-mato-grossense, representava cerca 3% das terras raiana no Mato Grosso do
Sul. Este percentual alavancou para cerca 14% após o enchimento do lago em 1999 sendo
uma das modificações antrópicas mais significativas numericamente.
Embora enxerguemos a raia, neste estudo, como um organismo único, cada parte
que a compõem dentro das divisas estaduais de: São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul,
representam ocupações distintas com características próprias, que nos últimos anos con-
vergiram para uma paisagem mais homogênea, dada pelo modelo agropecuário vigente,
bem como pelo impacto da construção das hidrelétricas.
Do ponto de vista ambiental, a diminuição da cobertura vegetal nativa em decorrência
do uso e cobertura da terra, sobretudo pela pastagem e agricultura, trouxe desequilíbrios
aos geocomplexos locais, dado a fragilidade dos solos areníticos presentes em maior núme-
28 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ro na Raia Divisória.
As consequências atreladas ao processo de fragmentação, fazem emergir a necessidade
de ações imediatas para a reconexão destas paisagens. Desta forma, a análise da Raia de
maneira una e múltipla não esgota aqui as possibilidades de investigação sobre esta temáti-
ca, tendo em vista que a análise das mudanças do uso e cobertura da terra, são fundamen-
tais para se pensar no planejamento ambiental da Raia Divisória em suas particularidades
estaduais.
Referências bibliográficas

ADAPAR, Agência de Defesa Agropecuária do Paraná. A citricultura no Paraná. Relatório apresen-


tado a Câmara Setorial de Citricultura – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento,
Brasília 09 de novembro de 2016
Gonçalves, D. L. Políticas Ambientais na Raia Divisória SP-PR-MS: estudo das áreas potenciais para
a criação de corredores ecológicos – Tese (Doutorado em Geografia) Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente-SP, 2020.
MAPBIOMAS, Códigos da Legenda da Coleção 4. Disponível em: https://brasil.mapbiomas.org/
wp-content/uploads/sites/4/2023/08/Codigos_da_legenda_Colecao_4.pdf . Acesso em 19 de
setembro de 2023.
___, Visão Geral da Metodologia. Disponível em: https://brasil.mapbiomas.org/visao-geral-da-me-
todologia/ . Acesso em 19 de setembro de 2023.
Monbeig, Pierre – A Zona Pioneira do Norte do Paraná – Geografia – Associação dos Geógrafos
Brasileiros – São Paulo, n.º 3 ano 1, pp. 221-236, 1935. Republicado em: Boletim Geográfico,
Ano III, n.º 25, Abril de 1945
Passos, M. M. dos. A raia divisória São Paulo – Paraná – Mato Grosso do Sul (Cenas e Cenários) – 1ª
edição, São Paulo: Outras Expressões, 2011.
___, Paisagem e meio ambiente (Noroeste do Paraná). Maringá: Eduem, 2013.
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Silva, V. M. Levantamento dos Agrotóxicos usados por citricultores dos municípios de Alto Paraná,
Guairaçá e Paranavaí-Paraná, no período de 2008-2009, Monografia para obtenção de título de
especialista (Curso de Especialização Gestão em Defesa Sanitária Vegetal) Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2011.
Souza, R. J. de. Raia Divisória ou Raia Socioambiental? uma redefinição baseada na análise da pai-
sagem através do sistema GTP. Tese de Doutorado, FCT-UNESP– Presidente Prudente, 2015

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


29 //
Mudanças no uso e cobertura da terra no projeto
de assentamento corta corda, Santarém,
Pará, Brasil: uma análise através de imagens
do Projeto MapBiomas

Gabriel Fiorin Pereira1


Diogo Laércio Gonçalves2

Introdução e justificativa

O espaço geográfico sofre com constantes transformações como a paisagem, que repre-
senta um dos componentes do espaço. Bertrand e Bertrand (2007) entendem a paisagem
como “resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológi-
cos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um
conjunto único e indissociável, em perpétua evolução”.
Por essa perspectiva se dão as relações sociais, pertencendo a práxis de uma socioes-
pacialidade. Nesse sentido, a paisagem é entendida como um elemento parte integradora
de um todo. Na Amazônia, ao entender a produção do espaço, de maneira peculiar na
formação do território e de suas territorialidades, entendemos, para além da paisagem, um
processo múltiplo que engloba os vieses histórico, cultural e geográfico.
Pensar o território brasileiro, se trata do pensar as transformações geopolíticas ligadas
a conflitos de terra desde o período colonial aos dias de hoje, aqueles que primeiro ocu-
param o território brasileiro, os povos indígenas, que em breve viriam a conhecer colo- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

nizadores que aqui chegaram. Em meio a lutas, conflitos e morte de indígenas contra os
colonizadores, a Amazônia é certamente o último reduto de escapatória desses conflitos
por terra. (OLIVEIRA, 1989)
Por vezes o território amazônico teve mudanças estruturais em meio às suas
faces de formação. Para Bertha Becker (2009) há três grandes pilares de formação na

1
Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC) CNPq, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências,
Tecnologia e Educação, Câmpus de Ourinhos-SP. – gabriel.fiorin@unesp.br
2
Professor Assistente Doutor do Departamento de Geografia e Planejamento, Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação, Câmpus de Ourinhos-SP. – diogo.goncalves@unesp.br
31 //
região: Formação Territorial (1616-1930), Planejamento Regional (1930-1985) e A
Incógnita do Heartland (1985-...), mas salientamos o período de Formação Territorial.
Belém, enquanto a primeira capital da Amazônia brasileira, foi fundada em 1616. No
primeiro período de ocupação portuguesa até 1777, houve uma lenta e gradativa apro-
priação territorial para além da linha de Tordesilhas, expressivamente pela exploração
econômica e exportação das chamadas “drogas do sertão”. (BECKER, 2009).

Mas a Amazônia começa a se tornar uma marcha dos interesses somente em 1850
e 1899, com a preocupação do império com interiorização do país e o que viria a ser o
“Ciclo da Borracha” o que faz delimitar seu território (BECKER, 2009). A “descoberta”
da borracha enquanto um produto fundamental na indústria, em plena expansão pela
Primeira Revolução Industrial, moldou os limites atuais da Amazônia Brasileira, trazendo
transformações sociais, culturais, arquitetônicas a capital paraense Belém e elevou Manaus
a condição de capital do recém-criado estado do Amazonas no período que ficou conheci-
do como Belle Époque Amazônica.
Da mesma forma, Santarém passa a exercer um papel fundamental na exploração do
látex ganhando notoriedade internacional. Localizada na região do baixo Tapajós, na calha
do rio Amazonas (Figura 1), Santarém foi fundada pelos portugueses em 1661. Hoje,
Santarém é o terceiro maior município do estado do Pará (IBGE, 2022), sendo desenvol-
vidas muitas atividades regionais, sejam elas econômicas, sociais ou políticas, muito disso
advindo de sua localidade ao longo do rio Tapajós e Amazonas.
Durante a primeira fase do ciclo da borracha, exploradores estrangeiros estiveram pela
região buscando novas fontes de exploração, o mais famoso deles, foi Henry Alexander
Wickham, botânico britânico, que em 1875, furtou cerca de 70.000 sementes das
seringueiras colhidas no baixo Tapajós para levá-las clandestinamente à Inglaterra, embar-
cando por Santarém (DRUMMOND, 2009).
A segunda revolução industrial, impulsionou ainda mais a produção da borracha mo-
32 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

tivada pelo advento da produção em larga escala de automóveis, especialmente pelo mo-
delo fordista. Este fator levou Henry Ford, então presidente da Ford Motor Company, a
conduzir dois projetos ousados na região do baixo Tapajós. O primeiro deles, Fordlândia,
foi estabelecido enquanto um distrito do município de Aveiro em 1927, numa vasta área
adquirida pela sucursal da Ford estadunidense a Companhia Ford Industrial do Brasil,
concedida pela iniciativa do então governador paraense Dionísio Bentes. O projeto fra-
cassou em sua primeira tentativa e Ford tentou levá-lo para outra região, em uma planície
mais elevada às margens do tapajós, fundando o então bairro de Bela Terra (posteriormen-
te, Belterra) em 1934, ligado à Santarém.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1: Localização Geográfica da Calha do rio Amazonas, com destaque para o Assentamento Corta Corda em
Santarém-PA. Org.: Gonçalves (2023)

Assim como o primeiro projeto, a iniciativa de plantação de seringueiras em Belterra


não prosperou e com a morte de Henry Ford, seu sucessor decidiu encerrar o projeto em
1945. Cerca de quatro décadas após o furto de sementes na calha do Amazonas/Tapajós
por Wickham, fazendeiros ingleses aprenderam a plantar a árvore de forma vasta, ordeira e
homogênea no esquema de plantations em locais como: Índia, Sri Lanka e Malásia, extrain-
do o látex em escala industrial e decretando a queda do ciclo da borracha na Amazônia.
(DRUMMOND, 2009).
33 //
A “redescoberta” da região como fonte de exploração econômica, se dá pelo movimen-
to de ocupação do território amazônico pelos governos da ditadura militar a partir dos
anos 1960, num movimento conhecido como “Integrar para não Entregar” (OLIVEIRA,
1989). Com uma série de políticas públicas voltadas à região amazônica e motivadas pela
criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) durante o go-
verno Castelo Branco em 1966. A região de Santarém e todo o baixo Tapajós se beneficiou
com a expansão do eixo rodoviário brasileiro para o norte, em decorrência da construção
de rodovias na década de 1970, como a BR-230 (Transamazônica) e o trecho Cuiabá-
Santarém da BR-163, ligando a região com o restante do país nos sentidos: Leste-Oeste e
Norte-Sul, respectivamente.
Diante deste contexto, a Floresta Amazônica torna-se palco de lutas, conflitos e sobre-
tudo de resistência, não apenas na força da floresta que se mantém em pé até os dias de hoje,
mas os povos que lá habitam, para além dos povos originários, ela é povoada por migrantes
que vieram no ciclo da borracha, sobretudo do Nordeste, por iniciativas de campanhas
governamentais (OLIVEIRA, 1989).
Atualmente, com uma população de aproximadamente de 300 mil habitantes e eco-
nomia voltada à: agricultura, pesca e pecuária, com predominância do extrativismo e tu-
rismo, a abertura de novas fronteiras agrícolas vinculadas à cultura da soja, a região passa
de ser impulsionada a produzir arroz, milho e soja, fazendo uso do canal da Calha do
Amazonas com escoamento (ALMEIDA, 2005).
Investidores de grupos particulares patrocinam ações de implementação da monocul-
tura, tendo participação de gestores do Estado. Nessa conjuntura desde o ano de 1999, e
na elaboração do Plano Plurianual (PPA) 2000-2003 os governantes do Pará, concederam
benefícios direcionados ao agronegócio, levando o nome de “Avante Pará: agronegócio o
Pará investe nisso!”. O estado do Pará, dando enfoque em Santarém, é uma área com clima
e solo propícios para a implementação do agro na região. Iniciativa essa feita pelo progra-
ma estatal “Pão Nosso”, com apoio da iniciativa privada (ALMEIDA, 2005).
34 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A presença de um Plano Plurianual (PPA), para a localidade no Pará não surgiu como
mera coincidência, o avanço do agronegócio para o Baixo Amazonas, vai além da justifica-
tiva de desenvolvimento econômico para o estado, ela tem potencial atrativo de investido-
res, que veem na região, como propícia para o cultivo de grãos e forte potencial no setor.
Os investimentos no plantio de soja se têm se expandido pelo estado, em Santarém, a
soja chega na década de 1990, ruralistas pertencentes a região centro-sul do país, cobiçam
a produção a região, através do grupo Quincó, apoiado pelo Governo do Pará, grupo este
responsável pela autoria da inserção de grãos no município (RODRIGUES, 2020).
O projeto do escoamento da soja no Pará vai além dos incentivos do Estado, com a
criação da Rodovia PA-370, inicialmente no eixo Santarém-Curuá-Una e, recentemente
Fig. 2: Rota do Escoamento de Grãos pela BR-163, em direção ao Atlântico. Fonte: Brasil de Fato (2016)

com a pavimentação do trecho Transuruará, além da própria BR-163 no trecho Cuiabá-


Santarém. A partir dessas rodovias que a cidade de Santarém se torna ponto chave, da
fronteira agrícola que antes se concentrava no Centro-Oeste do país, agora usa da região
Norte para escoar a produção de grãos de maneira globalizada tanto na em uma rota pelo
Oceano Atlântico (BARROS, 2018).
Vejamos na figura 23, a rota de escoamento de grãos, tendo a BR-163 como destino
principal em direção ao Porto de Santarém.
Foi a partir de 1997, que a soja começa a fazer parte da realidade do paraense, em
pouco tempo, com a construção do porto da Cargill, em 2003, se torna ainda mais propí-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
cio para escoamento da soja pelo Rio Amazonas (BARROS, 2018). Para que a implanta-
ção do porto fosse bem-sucedida, o município de Santarém teria que desenvolver ali um
produto de qualidade, mostrando ao agro que ela era uma região “próspera”, o governo
municipal usa das rodovias PA-370 e BR-163 para direcionar o rumo que a soja será dire-
cionada (RODRIGUES, 2020).
Com indica Santos e Silveira “A prática do neoliberalismo acarreta mudanças impor-
tantes na utilização do território, tornando esse uso mais seletivo do que antes e punindo,
assim, as populações mais pobres (...)” (2001, p.302). O Agronegócio está imerso nas
3
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/06/20/o-quilombo-que-parou-um-porto/. Acesso,
24 de setembro de 2023.
35 //
políticas presentes no neoliberalismo, em nosso recorte observamos que a BR-163 possui
em sua totalidade um completo asfaltamento, atraindo novos produtores favorecendo a
expansão da soja no estado do Pará.
O Banco da Amazônia (BASA), se trata de um banco de capital aberto, sendo
esse um dos principais financiadores do agronegócio, além disso há também o Fundo
Constitucional do Norte (FNO), eles os fazem por meio de incentivos de financiamento
na compra de maquinário, insumos e silos de armazenagem dos grãos, ambos visam so-
bretudo, o crescimento e desenvolvimento da região Norte, percebe-se que para que a soja
não encontre barreiras para se fixar e expandir na região, (BARROS, 2018).
A alteração na transformação da paisagem da substituição da agricultura convencional,
pela expansão da soja, não por acaso (HOMMA, 2005). Santarém tem se tornado cada
vez mais polo agro-globalizado da soja, muito disso se deve pelo porto Cargill, e a pelas
rodovias PA-370 e BR-163, há também na região um estabelecimento da EMBRAPA o
qual ajuda no desenvolvimento no manejo no campo (ALMEIDA, 2005). Porém o assun-
to ainda é sensível, a soja trouxe mudanças no cotidiano nas comunidades locais, gerando
conflitos entre ruralistas e agricultores, além de conflitos com os povos originários. O
incentivo do estado, acirram cada vez mais os conflitos, que estão cada vez mais distante
de terem um fim.
Certos fatores devem ser levados em consideração quando pensamos no avanço da soja
na Amazônia, há em si relações sociais por traz disso, são diversos os motivos: Preços bai-
xos das terras; inventivos fiscais, para comprar de insumos agrícolas e maquinários, além
de silos e armazéns; as altas taxas de demanda da soja no exterior, o que torna atrativo a
sua produção em larga escala.
“A construção de projetos de implantação de infraestrutura, como a ampliação
do porto da cidade, a construção de um terminal graneleiro para exportação de grãos
e a pavimentação da Santarém-Cuiabá com o objetivo de melhorias nos sistemas
viários, portuários e de comunicações, facilitando e agilizando o transporte e as ex-
36 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

portações, através da Cargill em Santarém.” (ALMEIDA, 2005 p.43)

Há existência de demarcadores quando observamos a diferença de quem são os rura-


listas e quem são as famílias assentadas, da parte dos ruralistas são elas:
• Concentração de acúmulos de terras griladas ou compradas de formas que resulta-
rão futuramente em conflitos agrários.
• Altas taxas de uso em insumos químicos, prejudicando o solo, e contaminando as
áreas ao entorno pertencente a pequenos agricultores,
• Poluição de águas subterrâneas, até mesmo o ar, deixando em débito com a popu-
lação que mais tarde sofrerá as mudanças.
Esse poder detido por ruralistas afeta de diversas maneiras as comunidades campesi-
nas, o que moldam o seu mundo político, o seu viver socioespacial e modificam a eco-
nomia local, é preciso entender de maneira profunda como isso os afeta. Soma-se a isto,
conflitos com comunidades indígenas e quilombolas, que ali residem e reivindicam suas
terras, tentando sobreviver ao avanço do agronegócio na região.
Só na região do Curuá-Una, existem mais onze comunidades que residem em sua mar-
gem, tais como: Porto Novo, Porto Alegre, Poraquê, São José da Água Branca, Castanheira,
Tambor, Xavier, Santa Maria do Aru, São José do Aru e Bananeira. A somatória da po-
pulação de todas essas comunidades está em cerca de 1900 (mil e novecentos) pessoas.
(ALMEIDA, 2005).
Como exemplo para este trabalho, escolhemos um outro trecho, o Projeto de
Assentamento Corta Corda. Criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) em 1997, numa área arrecadada pelo INCRA ainda em 1971. Com
uma área de 26.058 km2, a oeste do estado do Pará. Localizada a cerca 70 km do núcleo
urbano principal de Santarém, pertencendo a região do Baixo Amazonas, e residente às
margens do rio Curuá-Una, no trecho represado pela Usina Hidroelétrica Silvio Braga.
Possui capacidade física para assentar 468 famílias. Atualmente seu núcleo conta com
novo comunidades, sendo: Cícero Mendes, Bom Futuro, Água Azul, São Francisco da
Água Azul, Lagoa Azul, São Pedro, Moreá, Corta-Corda e Praia Chata, com o total de 331
famílias assentadas com média de 5 pessoas por família (ALMEIDA, 2005).
Neste contexto, caberá, uma investigação sobre as dinâmicas do uso e cobertura na
terra no período de 1985 a 2021, na região da Calha do rio Amazonas no baixo Tapajós,
com enfoque na expansão do eixo rodoviário da PA-370 que liga Santarém a Uruará até a
Transamazônica (BR-230), marcando-se notadamente, como um polígono do cultivo de
grãos, sobretudo Soja/Milho ligado pelo escoamento via BR-163 até o Porto de Santarém.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Procedimentos metodológicos

Para a obtenção dos dados de uso e cobertura da terra da região do Projeto de


Assentamento Corta Corda, utilizamos os dados compilados na coleção 8 do MapBiomas,
que abrange entre 1985 a 2021. O Projeto MapBiomas é uma iniciativa do Observatório
do Clima, sendo desenvolvido por uma rede multi-institucional que conta com universi-
dades, Organizações Não-Governamentais e empresas de tecnologia, que tem como intui-
to fazer o mapeamento anual do uso e cobertura da terra para todo o território brasileiro,
monitorando as mudanças nas paisagens (MAPBIOMAS, 2023).
37 //
Neste intuito, o projeto utiliza dados oriundos do conjunto de imagens orbitais da
série de satélites Landsat, disponibilizados pelo Serviço Geológico Estadunidense (USGS)
e pela National Aeronautics and Space Administration (NASA), também do governo dos
Estados Unidos. A partir dos dados das imagens com resolução espacial de 30x30 metros,
é feita uma classificação automatizada pixel a pixel, através de algoritmos de aprendiza-
gem de máquina (machine learning), utilizando como plataforma o Google Earth Engine,
WebGIS que permite uma grande capacidade para o processamento digital de imagens
em nuvem. Vejamos na figura 3 a metodologia empregada na geração dos mapas de uso e
cobertura da terra pelo projeto MapBiomas (MAPBIOMAS, 2023).

Fig. 3: Visão geral com a metodologia de geração dos mapas anuais de cobertura e uso da terra do MapBiomas
Fonte: MapBiomas (2023)

A seleção dos dados envolveu não só a área do Projeto de Assentamento Corta Corda,
como também, suas adjacências, envolvendo parte dos municípios de: Santarém, Belterra
e Mojuí dos Campos. Os anos escolhidos para análise foram: 1985 (primeiro ano de cole-
ta da Coleção MapBiomas), 1995 (após a construção da UHE Rosana), 1995 (dois anos
antes da instalação do assentamento), 2005 (oito anos após o início do assentamento),
2015 (avanço do cultivo de grãos para a Região Metropolitana de Santarém criada em
2012) e 2021 (cenário mais atual).
38 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Os da Coleção 07 fornecem dados de uso e cobertura da terra desde o ano de 1985 até
2021, sendo classificados em seis grandes classes principais: floresta, formação natural não-
-florestal, agropecuária, área não-vegetada, corpos d’água e não observado, das quais com-
põem 30 subclasses. Como forma de direcionar melhor a análise para os usos mais expressivos
da região, escolhemos no total as seguintes classes e subclasses de acordo com a tabela 1.
Para a obtenção dos dados utilizou-se a ferramenta de WebGIS Google Earth Engine a
partir do conjunto de ferramentas MapBiomas User Toolkit 1.19.0. O processamento final
das imagens para composição dos layouts dos mapas nos anos de: 1985, 1995, 2005, 2015
e 2021, foi realizado através do software de Sistema de Informação Geográfica, ArcGis Pro
da ESRI com licença disponível pela UNESP.
Além disso, foram realizados trabalhos de campo para observação da paisagem in loco,
e coleta de dados através de geofotografias extraídas pela Aeronave Remotamente Pilotada
(ARP), Mavic Air 2, fabricado pela DJI. Com a compilação dos mapas, foi possível analisar
previamente a realidade do uso e cobertura da terra nos últimos anos, fato que pode ser
evidenciado com maior precisão a partir das geofotografias feitas pelo ARP.

Tabela 1: Classes de uso e cobertura da terra escolhidas para análise da região do


Projeto de Assentamento Corda Corda, disponíveis na Coleção 7 do MapBiomas (1985-2021)
Classe Tipo Cor
1 – Floresta
1.1. Formação Florestal (Floresta Amazônica) natural
2 – Formação Natural Não-Florestal
2.1. Campo Alagado e Área Pantanosa natural

3 – Agropecuária

3.1. Pastagem antrópico


3.2. Agricultura antrópico
5 – Corpos d’água
5.1 Rio, Lago e Oceano natural
Fonte: MapBiomas (2021)

Resultado e discussões

Com base na análise obtidos quanto a mudança no uso e cobertura da terra, presente na
dinâmica da paisagem, ao longo das quatro últimas décadas, a presença da ação antrópica
tem profunda ação, estudo realizado com base nos dados obtidos pelo conjunto de satélites
Landsat, usando o conjunto de ferramentas do Projeto MapBiomas (Coleção 7), no período
de cobre a série entre os anos 1985 a 2021, numa resolução espacial de 30x30 metros.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Foi realizado uma análise com períodos intervalados decenais, sendo o último mapa um
intervalo de tempo menor, usando como referência os dias atuais. Os anos selecionados ocor-
rem: 1985 (anterior a demarcação do assentamento Corta-Corda, primeiro ano das imagens
do Projeto MapBiomas), 1995 (período pré demarcação do assentamento Corta-Corda),
2005 (com o assentamento já demarcado e familiar assentadas residindo no local), 2015 (ter-
ceira década de imagens do uso e cobertura da terra na região), 2021(último ano analisado).
As convenções cartográficas usadas quanto ao uso e cobertura da terra para análise foram:
• Floresta Amazônica: predominância da Floresta Amazônica.
• Campo Alagado: Pequenas manchas de manchas hídricas situadas próximas às áreas
de várzea.
39 //
• Pastagem: São áreas desmatadas que podem ou não estarem sendo usadas para pas-
tagem, mas ali já não há mais floresta.
• Corpos d’água: Rios e alguns lagos pertencentes ao Baixo Amazonas, e Rio Curuá-
Una e o Rio Curuá do Sul.
• Agricultura: Envolve culturas de agricultura sejam anuais ou perenes.

Uso e cobertura da terra em 1985

A primeira a análise dos dados examinados, vem que em 1985 ainda não havia a de-
marcação do Assentamento Corta-Corda (PA), nesse período existia uma predominância
maciça da presença de cobertura vegetal rica na Floresta Amazônica, além disso pode-se
observar a existência de Campos Alagados próximo a áreas de várzea tanto do Rio Curuá-Una
como do Rio Curuá do Sul.
É possível observar na imagem leves manchas de pastagem, muitas delas vem mar-
geando os Rios e algumas outras estão na parte está à Noroeste do recorte do mapa, tam-
bém há existência de pequenos pontos espalhados, e manchas próximas a rodovia PA-370,
vejamos na figura 4 a seguir:
40 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 4: Uso e Cobertura da Terra na região do P.A. Corta Corda em 1985


Fonte: MapBiomas (Coleção 7). Org.: Gonçalves e Pereira (2023)
Uso da terra em 1995

Uma década após a primeira análise, observamos mudanças significativas quanto ao


uso e cobertura da terra na região do Assentamento Corta-Corda (PA), o decreto que
viabiliza a demarcação do assentamento apenas seria concedido em 1997. Contudo já é
possível se perceber alterações quanto às classes do uso e cobertura da terra, os Campos
Alagados, deixa de existir e agora do lugar a pastagem. A pastagem foi quem mais sofreu
mudanças em dez anos, especialmente nas margens do rio Curuá-Una e no rio Curuá do
Sul. Além disso, com o aumento da pastagem, o percentual Floresta Amazônica diminuiu
proporcionalmente, vejamos na figura 5 em sequência:

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 5: Uso e Cobertura da Terra na região do P.A. Corta Corda em 1995


Fonte: MapBiomas (Coleção 7). Org.: Gonçalves e Pereira (2023)

Uso da terra em 2005

Ao passar de mais uma década vemos novamente as mudanças significativas na paisa-


gem na região Assentamento Corta-Corda (PA), no ano de 2005. Aqui, já com o assen-
tamento em formação, vemos manchas de pastagem em seu território e um adensamento
ainda maior desta classe no recorte total do mapa.
41 //
Surge também uma nova classe quando observamos aparição de áreas agricultáveis,
proporcionalmente ainda pequenas, mas já apresentam relevância, localizando-se, sobre-
tudo, em áreas anteriormente definidas como pastagem, o que pode indicar o avanço do
cultivo de grãos para este eixo, em decorrência da PA-370. Vejamos na figura 6 a seguir:

Fig. 6: Uso e Cobertura da Terra na região do P.A. Corta Corda em 2005


Fonte: MapBiomas (Coleção 7). Org.: Gonçalves e Pereira (2023)

Uso da terra no período mais recente: 2015 e 2021


42 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Com o passar de quatro décadas, agora em 2015 pode ser observado a expansão da ro-
dovia PA-370 e sua expansão tomando forma. Seu caminhar vai em direção a Uruará com
a existência da demarcação de seu trajeto, mas ainda não por completo asfaltado. As áreas
agricultáveis agora estão visíveis, elas se formam justamente ao longo da PA-370, a maior
parte dessas terras estão em Santarém, porém aparecem em pequenas manchas em Uruará.
Há também uma parcela em Mojuí dos Campos (município desmembrado de Santarém
em 2013) e em Prainha, mas às margens do Rio Curuá do Sul, além de uma área dentro
do próprio assentamento (Figura 7).
O último ano analisado se trata de um período recente, sendo esse o ano de 2021, o
último ano até então da realização da pesquisa, dos mapas disponíveis pelo MapBiomas. A
cobertura vegetal da Floresta Amazônica, ainda apresenta grande parte do uso e cobertura da
terra, mas sua diminuição fica evidente ao longo da PA-370 seguindo o padrão de desmata-
mento em “Espinhas de Peixe”, que são os desmatamentos que correm perpendicularmente
ao tracejado das rodovias (Figura 8). A partir desses eixos rodoviários é que há o avanço do
desmatamento floresta adentro. Esse processo é recorrente na região Amazônica, principal-
mente sobre as rodovias estaduais que cortam o Pará, na qual a PA-370 não foge à regra.
Áreas agricultáveis se mantiveram parecidas, porém houve um aumento da pastagem, não
necessariamente servindo à pecuária, mas estão abrindo espaço para a entrada da agricultura,
são essas as resoluções que mostram as análises desses anos todos de monitoramento da região.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 7: Uso e Cobertura da Terra na região do P.A. Corta Corda em 2015. Fonte: MapBiomas (Coleção 7). Org.:
Gonçalves e Pereira (2023).

A pavimentação da PA-370 no trecho entre a usina hidrelétrica do rio Curuá-Una


até Uruará, conhecida como “Rodovia Transuruará”, teve início das obras sendo em
10/11/2020, com investimentos de mais de 47 milhões de reais e prazo de entrega em 24.
Todavia, com a pandemia da COVID-19, houve atraso nas obras, especialmente no trecho
próximo ao rio Curuá-Una que ainda se encontra (em agosto de 2023) sem pavimentação
asfáltica como podemos ver na figura 9.
43 //
Fig. 8: Uso e Cobertura da Terra na região do P.A. Corta Corda em 2021.
Fonte: MapBiomas (Coleção 7). Org.: Gonçalves e Pereira (2023)
44 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 9: A: Placa indicando os valores e prazos para as obras de pavimentação da PA-370, trecho Transuruará.
B: trecho ainda não finalizado, sem pavimentação asfáltica nas proximidades da UHE no rio Curuá Uma.
Fonte: Trabalho de Campo 2023.
Todo o trecho que corta o Assentamento Corta Corda, porém, já se encontra asfalta-
do, o que tem aumentado a pressão pelo desmatamento para o cultivo de grãos, já existen-
tes ao longo do eixo da BR-163 e que agora liga-se a BR-230 pela pavimentação final da
PA-370, como pode ser observado pela imagem feita por Aeronave Remotamente Pilotada
(ARP), em trabalho de campo realizado em agosto de 2023 na região conhecida como
Comunidade Chapadão, que fica entre o assentamento e Uruará, ao longo da PA-370.
Nesta área, temos uma extensa mancha de soja/milho próxima a pavimentação da rodovia,
recortando a Floresta Amazônica (Figura 10).

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 10: Imagem de ARP mostrando o desmatamento da Floresta Amazônica para o cultivo de grãos na região da
comunidade Chapadão entre o Assentamento Corta Corda e Ururará-PA. Fonte: Trabalho de Campo 2023.

Considerações finais

A partir da análise realizada quanto ao uso e cobertura da terra com base nos dados
obtidos conjunto de satélites Landsat, usando como ferramentas do Projeto MapBiomas
(Coleção 7), no período de cobre a série entre os anos 1985 a 2021, nota-se que houveram
mudanças significativas quanto ao seu uso cobertura da terra durante os anos vigentes da
45 //
pesquisa, sobre as localidades do Assentamento Corta Corda, essa mudanças ocorreram de
forma sutil nos primeiros anos, mas que hoje já não conseguem se mascaram a modificação
do meio, sobretudo com o avanço da agricultura e da pastagem.
Quando olhamos do ponto de vista ambiental, há uma diminuição de cobertura ve-
getal de áreas florestadas, que são sobretudo em decorrência da substituição da vegetação
por pastagem e agricultura, que traz desequilíbrios ambientais imensuráveis às localidades,
alterando fauna e flora presentes.
Além disso, as comunidades ali pertencentes, incluindo os moradores do PA Corta
Corda, tem sofrido com a chegada destes “estrangeiros” advindos do centro-sul do país,
motivados pela “oferta” de novas terras ainda não desbravadas economicamente, sobretu-
do no sistema de plantation de commodities como a soja e o milho que tem ganho cada vez
mais espaço nesta região, a partir do final dos anos 1990.
A criação e pavimentação da malha rodoviária estadual pela PA-370, tem facilitado a
expansão do polígono dos grãos que são escoados até o Porto de Santarém enquanto loca-
lidade central no comércio destas commodities na escala global, sobretudo após a instalação
do complexo agroindustrial da estadunidense Cargill em Santarém, fazendo do polígono
formado entre os eixos rodoviários da: BR-163, BR-230 e PA-370, uma região favorável
ao desenvolvimento destas commodities, fortalecendo a centralidade de Santarém na rede
urbana não só paraense, mas da região amazônica brasileira como um todo.
Destarte, com os mapas de uso e cobertura da terra, aliado a trabalhos de campo na
região do Assentamento Corta Corda – PA e adjacências, fica nítido que mais pesquisas
devem ser realizadas quanto a essa temática, haja vista sua importância na compreensão
da dinâmica da paisagem e na resistência da Floresta Amazônica enquanto patrimônio
brasileiro e mundial da humanidade.

Referências bibliográficas
46 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

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47 //
Análise do uso e cobertura da terra na bacia
hidrográfica do rio São Francisco a partir de
dados da plataforma Mapbiomas (1988; 2008; 2021)

Ana Paula Novais Pires Koga1


Maria Conceição Dantas2

Introdução

A água é o elemento mais abundante no Planeta e o seu ciclo natural não muda
em termos quantitativos, entretanto, as mudanças em termos qualitativos são diversas.
Nesse sentido, a legislação brasileira tem na bacia hidrográfica, área de drenagem composta
pelo rio principal e seus afluentes, a unidade territorial para gestão de recursos hídricos,
conforme a Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei N.º 9.433/1997. Entretanto, é
importante ressaltar que a bacia hidrográfica, em seu sentido topográfico, é uma área de
drenagem formada por um rio principal e seus afluentes, sendo, portanto, formado pelo
binômio terra e água. Além disso, a bacia hidrogeológica é formado pelos divisores de água
freáticos, que pode sofrer variações ao longo do ano, sendo importante sempre considerar
as águas superficiais e subterrâneas, bem como o uso da terra quando se tem a bacia hidro-
gráfica como foco de análise ambiental e de aplicação da legislação.
No contexto da gestão hídrica a partir das bacias hidrográficas como unidades territo-
riais, os Comitês de Bacias Hidrográficas representam fóruns de discussões das demandas As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

e disponibilidades na bacia hidrográfica, objetivando a garantia de usos múltiplos da água


em cada bacia. As Agências de Águas dão suporte aos comitês, sendo responsáveis pela ge-
rência dos recursos oriundos da cobrança de água, assim como pelos estudos socioambien-
tais sobre a bacia, como, os exemplo, os planos de recursos hídricos, também conhecidos
como planos de bacia.

1
Instituto de Geografia, Universidade Federal de Catalão (IGEO, UFCAT), Catalão, GO, Brasil
- ana_novais@ufcat.edu.br
2
Instituto de Geografia, Universidade Federal de Catalão (IGEO, UFCAT), Catalão, GO, Brasil
- mariaconceicaodantas950@gmail.com
49 //
Diante disso, o artigo objetiva compreender a organização do uso e cobertura da terra
na bacia hidrográfica do rio São Francisco, tendo como recorte temporal o período de 1988;
2008 e 2021, partir dos dados secundários da plataforma Mapbiomas, que apresenta dados
de mudanças na cobertura da terra no Brasil a partir de recortes espaciais diferentes, com a
geração de mapas online e gráficos, com recorte temporal que abrange desde o ano de 1985.
Nesse sentido, o Rio São Francisco é o único rio perene a atravessar o sertão nordes-
tino, responsável por 63% da oferta hídrica da região Nordeste, possuindo 2.700 km
de extensão da sua nascente, na Serra da Canastra, Minas Gerais, à sua foz, no Oceano
Atlântico, entre Sergipe e Alagoas. O Rio São Francisco também é citado em documentos
oficiais como o rio da integração nacional, mas, no contexto popular, é conhecido como
Velho Chico, principalmente para a população que vive na área territorial da bacia do rio
São Francisco. Ressalta-se, também, que a bacia hidrográfica do Rio São Francisco (Figura
1) possui 639. 219 km² e ocupa 8% do território nacional, com mais de 15 milhões de
habitantes, sendo que a bacia possui uma divisão em regiões fisiográficas: alto, médio, sub-
médio e baixo São Francisco (PRHSF, 2016-2025; CBHSF, 2023). A divisão em regiões
fisiográficas compreende não apenas características geoambientais da bacia hidrográfica,
mas também os diferentes cenários socioeconômicos.
A nascente do rio São Francisco está situada na Serra da Canastra, a 1600 metros de
altitude, no Chapadão da
Zagaia, município de São
Roque das Minas, Minas
Gerais, e o comprimento
total da rede de drenagem
na bacia é de 121. 657 km
(CBHSF, 2023). Na bacia
hidrográfica do rio São
Francisco, a região fisiográ-
50 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

fica do alto São Francisco


representa o uso da terra
mais vinculado à indústria
e mineração, em Minas
Gerais e as regiões do
médio, submédio e baixo

Fig. 1: Regiões fisiográficas


da bacia hidrográfica do rio
São Francisco. Fonte: PRHSF
(2016-2025).
são francisco possuem maior uso da terra vinculado à irrigação, sendo que o médio e o sub-
médio também possuem áreas mais problemáticas quanto à escassez hídrica.
A bacia hidrográfica do rio São Francisco representa uma área territorial com cenários
diversos entre a porção fisiográfica do alto e do baixo São Francisco, sendo que, segundo o
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF, 2023), a bacia abrange 507
municípios. Assim sendo, as diversidades populacionais, de aporte hídrico, de característi-
cas do solo, estão, também, relacionadas aos diferentes investimentos em políticas públicas
em cada uma das regiões fisiográficas na bacia hidrográfica do rio São Francisco.

Aspectos metodológicos

O artigo objetivou compreender o uso e a cobertura da terra na bacia hidrográfica do


rio São Francisco para o período de 1988; 2008 e 2021 a partir dos dados da plataforma
Mapbiomas. Dessa forma, foi um estudo de natureza básica, objetivo exploratório e des-
critivo e explicativo, abordagem quali-quantitativa, tendo como procedimentos a revisão
teórica e documental.

A) Revisao teórica:
A revisão teórica baseiou-se nos seguintes autores e temáticas:
Ross (2019); Silveira (2001); Ribeiro (2008) no entendimento da bacia hidrográfica
como unidade sistêmica. Souza (2013), nas reflexões acerca dos ambientes fluviais, sendo
que as discussões partem do princípio da bacia hidrográfica como uma unidade na/da
paisagem, um conjunto. Para as discussões sobre as classes de uso e cobertura da terra
e a importância da sua localização, recorreu-se ao Manual Técnico de Uso da Terra, do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2006). Sobre as particularidades na/da bacia
hidrográfica do rio São Francisco em seus aspectos socioambientais recorreu-se a Pires
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
(2016; 2019), e Pires Koga e Passos (2021).

B) Dados secundários
Os procedimentos documentais abrangeram a análise do uso da terra a partir de dados
disponibilizados pela plataforma Mapbiomas, coleção 7.0, compreendendo o período de
1988; 2008 e 2021. Para tanto, a aquisição, sistematização e organização dos dados abran-
geram as seguintes atividades:
• Fase 1 – Escolha das variáveis para geração de figuras de localização e gráficos:
Primeiramente, no ambiente da plataforma online Mapbiomas (https://pla-
taforma.brasil.mapbiomas.org), foi necessário gerar um cadastro para criação de
51 //
mapas online. Posteriormente, foram selecionadas as variáveis para a geração de
dados, sendo estas:
Cobertura da terra – recorte territorial: bacia hidrográfica; selecionar múltiplos
territórios; territórios do alto, médio, submédio e baixo São Francisco. Classes de
uso: natural e antrópico.
• Fase 2 – Seleção de layout para a geração de figuras de localização:
Mapa base – branco (canvas);
• Fase 3 – Geração de outros materiais ilustrativos na plataforma (tabelas e gráficos):
A partir da seleção das variáveis, a plataforma gerou a visualização do uso e
cobertura da terra na bacia hidrográfica do rio São Francisco, assim como tabelas
e gráficos para a bacia, sendo que estes materiais subsidiaram a compreensão das
diferenças de uso e cobertura da terra na bacia para o período de 1988; 2008 e
2021. A análise dos dados e a organização textual foram referenciados pelos mate-
riais gerados pelo Mapbiomas, coleção 7.0. Tal fase também foi subsidiada, quanto à
compreensão de aspectos socioambientais da bacia, a partir do site Comitê da Bacia
Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) e do Plano de Recursos Hídricos da
Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (PRHSF 2016-2025).

A bacia hidrográfica como recorte espacial para usos da terra e da água

As representações quanto à água envolvem a reflexão de que a vida é sagrada, portanto,


o valor de uso da água deveria ser mais importante que a sua mercantilização (Shiva, 2006),
o que também é reforçado por Porto-Gonçalves (2005) ao afirmar que o ser vivo é composto
de água, pois esta faz parte de 70% do organismo humano, agindo na regulação da tempe-
ratura corporal, no transporte de nutrientes, na eliminação de substâncias tóxicas, dentre
outros. Ainda, para Bouguerra (2004), a humanidade é parte do ciclo global da água.
52 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Nesse contexto, entendendo a importância da Ciência Geográfica na localização dos


fenômenos, bem como da bacia hidrográfica como unidade espacial com importância
ecossistêmica e de gestão hídrica,
[...] que por sí só define uma unidade ambiental natural integrada a partir de
uma das variáveis da natureza, o rio principal e seus afluentes que se inter-relacionam
com a dinâmica climática, com o relevo, os solos, a base geológica e a cobertura viva
vegetal natural ou introduzida pelas atividades humanas (Ross, 2019, p. 29).
A legislação brasileira tem na bacia hidrográfica, uma área de drenagem composta por
um rio principal e seus afluentes ou tributários, a unidade territorial para aplicação das
Política Nacional de Recursos Hídricos.
Assim, Ribeiro (2008, p.31) ressalta que “[...] uma bacia hidrográfica pode englobar
diversas unidades territoriais, como a da própria bacia, e outras de caráter administrativo,
como a municipal, a estadual e a internacional”. Além disso, como reforça Foleto (2019),
a bacia hidrográfica extrapola os limites municipais já territorializados, o que também é
um dificultador/fragmentador da articulação as instituições de gestão.
Ainda no que se referem aos rios e a relação sociedade e natureza, Souza (2013) e a in-
terconexão relacionada aos sistemas e processos fluviais, é necessário, para tanto, estabele-
cer análises sobre questões hidrológicas, sedimentológicas, geomorfológicas e dos impactos
antropogênicos, pois, partindo-se da Teoria Geral dos Sistemas, do biólogo austríaco Karl
Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), que se amparava na ideia de um complexo de com-
ponentes em interação na natureza, uma análise de forma holística. Dessa forma, Mattos
e Perez Filho (2004), acerca do conceito de bacia hidrográfica numa perspectiva de análise
integrada, entendem que
A bacia hidrográfica não pode ser entendida pelo estudo isolado de cada um dos
seus componentes: sua estrutura, funcionamento e organização são decorrentes das
inter-relações desses elementos, de modo que o todo resultante não é resultado da
soma da estrutura, funcionamento e organização de suas partes. Analisar separada-
mente os processos que ocorrem nas vertentes e aqueles que acontecem nos canais
fluviais não permite compreender como o sistema bacia hidrográfica funciona en-
quanto unidade organizada complexa (Mattos; Perez Filho, 2004, p. 17).

Nesse sentido, há, ainda, que se diferenciar os conceitos hidrológicos, que envolvem a
rede de drenagem (rios), e os conceitos integrados, que envolvem o binômio terra e água
(bacia hidrográfica: recorte espacial – uso da terra – água como recurso). Assim, Silveira
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
(2001, p. 40), analisa que “a bacia hidrográfica é uma área de captação natural da água
da precipitação que faz convergir os escoamentos para um único ponto de saída, seu exu-
tório”, representando, portanto, a fase terrestre do ciclo hidrológico. Além disso, o autor
ainda compreende que a bacia hidrográfica é um sistema físico, com entrada de água,
referente ao volume de precipitação, e saída de água, referente ao volume escoado, con-
siderando-se, também outros fatores do ciclo hidrológico, como evaporação, infiltração.
O Artigo 1º, parágrafo V, da PNRH define a bacia hidrográfica como a unidade terri-
torial para implementação da PNRH, bem como para a atuação do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos, cuntudo, a referida lei não estabelece um conceito
53 //
para a bacia hidrográfica, mas, há uma distinção entre dominialidade dos rios perenes
entre União e estados, e a dominialidade estadual para as águas subterrâneas.
No Artigo 3º, que traz as Diretrizes Gerais de Ação quanto à PNRH, no parágrafo
V menciona a articulação da gestão hídrica com a do uso do solo, o que também expõe
questões legais entre o Código Florestal e o parcelamento do solo urbano pelos municípios.
Ressalta-se a Lei n.º 14.285, de 29 de dezembro de 2021 trouxe alterações aos dispositivos
legais do Código Florestal, Lei n.º 12.651, de 25 de maio de 2012, quanto às Áreas de
Proteção Permanente (APP) no meio urbano. Portanto, observa-se uma fragmentação entre
a PNRH, que legisla acerca das águas, e as legislações de uso do solo no contexto das áreas
marginais aos cursos d’água e outras áreas que também englobam uma bacia hidrográfica.
Acerca do uso da terra, que para alguns autores, Instituições e normativas é chamado de
uso do solo, segundo o Manual Técnico de Uso da Terra, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (2006), o conhecimento sobre o uso da terra é importante para trazer informações
sobre questões ambientais, sociais e econômicas, sendo que, no Brasil, os primeiros estudos de
uso da terra datam do final dos anos 1930. Já em 1970 houveram avanços nas classificações
das formas e dinâmicas de usos da terra, assim como no tratamento de dados estatísticos na
Geografia. Posteriormente, as informações oriundas do levantamento de recursos naturais do
RADAMBRASIL, primeiramente na Amazônia, e em 1975 em todo o Brasil.
Ainda segundo o Manual Técnico de Uso da Terra do IBGE (2006), o levantamento
do uso e cobertura da terra possibilita uma localização de tipos de uso através de padrões
de homogeneidade, necessitando, para tanto, pesquisas de gabinete e de campo.
O objetivo da geolocalização do uso e cobertura da terra é fornecer informações aos
mais diversos usuários, nas escalas local, regional e nacional e que estas informações pos-
sam ser atualizadas ao longo do tempo. Além disso, tal geolocalização abrange princípios
como a natureza da informação (sensores remotos), a unidade de mapeamento, da menor
54 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 2: Estruturação para a nomenclatura de uso e cobertura da terra. Fonte: IBGE (2006) adaptado de
Heymann (1994).
à maior escala (homogeneidade e diversidade, por exemplo, floresta, água), a escala de
mapeamento (proporção) e a nomenclatura (IBGE, 2006). A Figura 2 mostra uma orga-
nização para a nomenclatura do uso e cobertura da terra.
Há, ainda, na Ciência Geográfica, um entendimento de que se há uso da terra, há ocupa-
ção, que pode ser natural ou antrópica. Já a cobertura pode variar de natural, como uma flo-
resta, para modificada, como uma pastagem ou silvicultura. Além disso, o uso do termo terra,
nesse contexto, refere-se à ideia de território usado (SANTOS, 2005), pois, ainda de acordo
com Leite e Rosa (2012), o conhecimento das informações de uso da terra é importante para
a organização espacial e para o planejamento ambiental, conforme reforçam Araújo Filho et al.
(2007), ao refletirem que a obtenção de informações sobre o espaço geográfico, principalmen-
te de forma detalhada, auxiliam no planejamento e na tomada de decisões.

Uso e cobertura da terra na bacia hidrográfica do rio São Francisco


entre os anos de 1988, 2008 e 2021

Os recortes territoriais que o Mapbiomas apresenta, na coleção 7.0, por exemplo,


vão desde áreas de entes federativos (país, estados, municípios), além de biomas, regiões
hidrográficas, bacias hidrográficas, sendo que, para este último recorte, há uma divisão de
informações entre as quatro regiões fisiográficas da bacia hidrográfica do rio São Francisco:
Alto, Médio, Baixo e Sub-Médio, mas, para fins de visualização de imagens na plataforma,
há a opção de escolha de seleção de múltiplos territórios.
Ainda de acordo com o PRHSF 2016-2025, a maior parte da população da bacia hidro-
gráfica do rio São Francisco está na área urbana, sendo que, no Alto São Francisco, apenas
5% estão na área rural e, em conrapartida, no Baixo São Francisco é de cerca de 47%. Além
disso, a bacia é considerada de baixa densidade demográfica, com 22,5 habitantes/Km².
Acerca do potencial agrícola da bacia, o PRHSF 2016-2025 analisou que a maior
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
parte do território da bacia possui terras irrigáveis, com aptidão restrita ou moderada
(50%) e 48% de terras não irrigáveis, ressaltando-se, também, que não existem terras ará-
veis na bacias, que são classificadas como as com maior aptidão à irrigação.
Além disso, a cobertura vegetal da bacia apresenta singular biodiversidade. Dessa
forma, o bioma Caatinga engloba as porções do Médio, Sub-Médio e baixo São Francisco,
apresentando características arbóreas e arbustivas, composta por três estratos, sendo eles
arbóreo ( de 8 a 12 metros), arbustiva (2 a 5 metros) e herbácea (abaixo de 2 metros).
O Tabela 1 apresenta uma síntese de características bióticas da bacia hidrográfica do rio São
Francisco, sendo que os dados foram coletados em período anterior ao ano de 2016, pois foram
disponibilizaram pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco no ano de 2016.
55 //
Tabela 1 – Síntese de características bióticas na bacia hidrográfica do rio São Francisco

Fonte: PRHSF 2016-2025.

Acerca dos dados de uso e cobertura da terra para os períodos de 1988, 2008 e 2021,
a partir da Plataforma Mapbiomas e, ainda com subsídio do Plano de Recursos Hídricos
para informações socioambientais da bacia, observa-se que as classes de uso e cobertura
da terra para Floresta e Agropecuária representam as maiores porcentagens de área (ha).
Os percentuais e áreas de uso e cobertura da terra para o período de 1988, 2008 e 2021
estão organizados na Mosaico 1; 2 e no Tabela 2.

Mosaico 1 – Bacia hidrográfica do Rio São Francisco: percentual de ha de área total


por classe de uso e cobertura da terra, 1988;2008;2021% Área ha
56 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Mapbiomas (2023), Coleção 7.0. Org. e Adap.: DANTAS, Maria C.; PIRES KOGA, Ana P. N. (2023).
Tabela 2: Áreas (ha) de acordo com as classes e sub-classes de uso e cobertura da
terra na bacia hidrográfica do rio São Francisco (Cont.)

Fonte: Mapbiomas (2023), Coleção 7.0. Org. e Adap.: DANTAS, Maria C.; PIRES KOGA, Ana P. N. (2023).

Mosaico 2: Uso e cobertura da terra na bacia hidrográfica


do rio São Francisco, 1988;2008;2021

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Mapbiomas (2023), Coleção 7.0. Org. e Adap.: DANTAS, Maria C.; PIRES KOGA, Ana P. N. (2023).
57 //
Ainda, a porcentagem de área para a classe Floresta apresentou o montante de cerca de
9% de perda de área para o período. Já a classe Agropecuária houve, para o período, um
montante de aumento de cerca de 10% de área (ha).
Ressalta-se que, a classe Floresta, na Plataforma Mapbiomas, engloba todos os biomas
de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesse
sentido, na área territorial da bacia hidrográfica do Rio São Francisco, a classe Floresta cor-
responde à Mata Atlântica, Caatinga e Cerrado. Dessa forma, de acordo com o Quadro 2,
houve um aumento de 517 ha de área para a classe formação florestal entre os anos de 2008
e 2021. As áreas de restinga e mangue, estão, notadamente, no Baixo São Francisco, onde
a bacia apresenta influências fluviomarinhas e, ainda de acordo com o Quadro 2 e com a
Plataforma Mapbiomas, houve um aumento de área (ha) para mangues entre 2008 e 2021
e, para as áreas de restinga arborizada, houve uma diminuição em 2008 e um aumento em
2021. É importante observar que a própia ocupação e cobertura da terra ao longo da bacia
hidrográfica do rio São Francisco foi possibilitada pelos seus trechos navegáveis.
Além disso, para a Classe Agropecuária, a Plataforma identificou aumento de área (ha)
para os anos de 1988, 2008 e 2021, sendo que, apenas para a produção de algodão, não
58 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

foram encontrados dados para o ano de 1988. Ressalta-se a produção de soja, que apre-
sentou um significativo aumento no período analisado, com importante contribuição da
porção do Médio São Francisco, no Oeste da Bahia.
Quanto à Classe de Formação Natural Não Florestal, a área total da Classe, de forma
geral, apresentou diminuição entre os anos de 1988, 2008 e 2021. Nesse contexto,
Observou-se um aumento de área, entre 2008 e 2021, para a Classe Campo Alagado e
Área Pantonosa, em relação ao ano de 1988. Outro destaque é para a Classe Campestre,
que apresentou diminuição de área para os períodos de 1988, 2008 e 2021 e, ainda, no
bioma Cerrado, abrange as fitofisionomias de campo sujo, limpo e rupestre. Já na Mata
Atlântica e no Caatinga, abrangem áreas savânicas.
As áreas da Classe Apicum, que representam uma transição entre mangue e terra firme,
apresentaram aumento entre 1988 em relação ao ano de 2021. As áreas de restinga her-
bácea e arbustiva apresentaram aumento em 2008, em relação à 1988, e diminuição em
2021, em relação aos anos de 1988 e 2008. Para a Classe de Áreas Não Vegetadas, houve
um aumento em todas as Classes correspondentes no período de 1988 a 2021.
Por fim, a Classe Corpos D’água, as áreas referentes a rios, lagos e oceano tiveram um
aumento em 2008, em relação a 1988 e uma diminuição de área em 2021, em relação aos
anos de 1988 e 2008. Ressalta-se que o semiárido nordestino passou por um período de
estiagem entre os anos de 2012 e 2015 e que, conforme o Comitê da Bacia Hidrográfica
do Rio São Francisco (CBHSF, 2023), alicerçado por Pires (2016; 2019), as mais significa-
tivas contribuições para a drenagem do rio São Francisco estão à montante, notadamente
na sua margem esquerda, por exemplo, os rios Paracatu, Urucuia, em Minas Gerais; e
Carinhanha, Corrente e Grande, na Bahia. Aproximadamente 70% das águas localizam-se
num trecho de 700 km e existem 168 afluentes no São Francisco, totalizando 99 perenes
e 69 intermitentes.
Desde 2007, com o início das obras da transposição do rio São Francisco , que obje-
tiva, a partir de dois eixos de canais artificiais de concreto, levar água para a porção Norte
do Nordeste, outros usos da água e da terra poderão ser observados, principalmente no
Submédio São Francisco, única porção fisiográfica na bacia que é atendida pela trans-
posição, no estado de Pernambuco, com dois pontos de captaçao de água. Ressalta-se,
também, ainda e Pires (2016;2019), e Pires Koga e Passos (2021) que a Companhia de
Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), administrado-
ra de grandes projetos de irrigação na região Nordeste, por exemplo, fruticultura irrigada, é
a operadora do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do
Nordeste Setentrional, popularmente conhecido como transposição do rio São Francisco.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Considerações finais

O artigo objetivou compreender a organização do uso e cobertura da terra na bacia


hidrográfica do rio São Francisco nos periódos de 1988. 2008 e 2021, a partir de dados
secundários da Plataforma Mapbiomas. Assim sendo, a utilização destes dados a partir da
citada Plataforma possibilitou o entendimento do fenômeno no recorte temporal esco-
lhido e, dessa forma, na bacia hidrográfica do rio São Francisco, nas suas quatro porções
fisiográficas, existem diferentes organizações de uso e cobertura que, por sua vez, têm rela-
ção com a própria dinâmica natural dos biomas, da pluviosidade, como, por exemplo, as
classes restinga, mangue, as diferentes Subclasses relacionadas à Classe Floresta.
59 //
A pesquisa ressaltou que a Classe Floresta teve diminuição de porcentagem de área
entre os anos 1988, 2008 e 2021. Houve, também, um aumento da Classe Agropecuária
entre os anos de 1988 e 2008, além de uma pequena diminuição, entre os anos 2008 a
2021 (2,95% de área). As Classes Floresta e Agropecuária são as principais da bacia.
Como contribuição para o entendimento da dinâmica na bacia hidrográfica e a sua
relação com o uso e cobertura da terra, esta pesquisa pode auxiliar como contribuição às
análises do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que é
decenal, e a sua última publicação é referente ao período 2016-2025, sendo que os mapas
de uso da terra apresentam dados até o ano de 2010. Além disso, para outros pesquisadores
que queiram utilizar a plataforma para pesquisas nesta ou em outras bacias hidrográficas e/
ou regiões hidrográficas, os aspectos metodológicos desta pesquisa também podem auxiliar
na aquisição de dados, gráficos, quadros e figuras de localização na Plataforma Mapbiomas.
Para outras pesquisas acerca da temática, além de recortes espaciais diferentes, como
sub-bacias hidrográficas dentro da bacia hidrográfica do rio São Francisco, pode-se utilizar
softwares como o Qgis, que já possui um plugin do Mapbiomas, assim como o Google Earth
Engine, por meio de Toolkits, sendo possível exportar coleções do Mapbiomas a partir de
diversas geometrias, dentre elas, a bacia hidrográfica.
Além disso, é possível, também, analisar o uso da terra na bacia hidrográfica do rio
São Francisco na perspectivas dos estudos agrários e do fomento a produção para expor-
tação a partir da irrigação e da atuação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do
São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), por exemplo, os perímetros irrigados do Vale
do São Francisco, notadamente quanto à fruticultura irrigada na Bahia (exportação de
manga) e Pernambuco (exportação de uva), no Médio e Submédio São Francisco.

Referências bibliográficas
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61 //
Diagnóstico da paisagem aplicado à gestão de
recursos hídricos na Unidade de Gerenciamento
de Recursos Hídricos Paranapanema (UGRH-
-Paranapanema), Brasil

Letícia Roberta Amaro Trombeta1

Introdução

A crescente preocupação com a disponibilidade de recursos hídricos tem se tornado


uma questão cada vez mais emergente nas regiões do sudeste e sul do Brasil, que, anterior-
mente, apresentavam situações mais confortáveis em relação à oferta de água. A relevância
dos estudos voltados para a gestão e manejo sustentável desses recursos tem aumentado
significativamente, pois enfrentamos desafios consideráveis para manter níveis adequados
de quantidade e qualidade da água, atendendo às múltiplas demandas humanas e garan-
tindo a integridade dos processos ecológicos.
Para enfrentar esses desafios, é fundamental que a gestão dos recursos hídricos esteja
intimamente alinhada com o planejamento territorial, destacando-se a necessidade de uma
ordenação eficaz do uso e ocupação da terra. Além disso, é fundamental promover a coor-
denação e integração dos planos existentes em níveis municipal, estadual e federal com
os planos de recursos hídricos, garantindo uma abordagem abrangente e sinérgica para a
sustentabilidade hídrica no país.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
O planejamento e a gestão das águas são construídos a partir de elementos e processos
dinâmicos, que tem múltiplas formas de se apresentar no ambiente, os quais são resultado
de interações constantes entre a sociedade e a natureza. Por isso, a análise integrada nesse
processo é tão necessária, sobretudo no alcance de resultados e proposição de ações mais
realistas para a bacia hidrográfica.
Diante desse contexto, a Geoecologia das Paisagens mostra-se uma ciência ambiental
que solidifica as bases teóricas e metodológicas do planejamento e da gestão ambiental,
concebendo a paisagem como um sistema, a partir da percepção do todo e compreendendo
1
Professora da Universidade Federal de São Paulo – Campus Zona Leste – Instituto das Cidades.
leticia.trombeta@unifesp.br
63 //
as inter-relações entre as partes no sistema (Mateo-Rodriguez et. al, 2010), como é o caso
de uma bacia hidrográfica.
Importante destacar, de acordo com Trombeta (2019), a bacia hidrográfica é com-
preendida como uma entidade complexa que permite a análise da dinâmica e interação
entre seus diversos elementos, sendo concebida como um espaço no qual todos os com-
ponentes estão intrinsecamente interligados por meio do fluxo de água. Essa abordagem
adota uma visão sistêmica, que enfoca não apenas partes ou áreas específicas de interesse,
mas a totalidade da bacia hidrográfica como um todo integrado.
O reconhecimento e entendimento da diversidade da paisagem desempenha um papel
bastante importante no planejamento e gestão de uma bacia hidrográfica, uma vez que
fornece informações essenciais para embasar decisões que levem em consideração os dife-
rentes ambientes presentes em uma determinada região.
E a Cartografia de Paisagens tem sido utilizada como uma metodologia de análise
desse ambiente diverso, complexo e sistêmico, especialmente na interpretação da relação
entre a sociedade e natureza, em diferentes escalas. O principal objetivo é delimitar uni-
dades sobre um determinado território a serem representadas em um mapa da paisagem,
instrumento que pode servir para variadas aplicações, como favorecer o diagnóstico da
paisagem, abordagem central deste artigo.
A área escolhida para elaboração deste estudo foi a Unidade de Gestão de Recursos
Hídricos Paranapanema (UGRH Paranapanema), inserida em dois estados brasileiros, São
Paulo e Paraná, com 247 municípios e uma população de aproximadamente 6,3 milhões
de pessoas (IBGE, 2022). Essa bacia hidrográfica conta com seis Unidades de Gestão
Estaduais: Alto Paranapanema, Médio Paranapanema e Pontal do Paranapanema, no
Estado de São Paulo; e, Norte Pioneiro, Piraponema e Tibagi, no Estado do Paraná.
A bacia hidrográfica do rio Paranapanema se destaca por sua relevância na produção
de recursos hídricos, geração de energia e pela população que ali vive. Além disso, sem-
pre houve o envolvimento e acompanhamento dos trabalhos e discussões no âmbito do
64 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paranapanema (CBH-Paranapanema).


Espera-se que este artigo contribua para alavancar as discussões sobre a utilização do
diagnóstico da paisagem em bacias hidrográficas, a partir do arcabouço teórico e me-
todológico da Geoecologia das Paisagens e desenvolvimento de mapeamentos com a
Cartografia de Paisagens.
Geoecologia das Paisagens como base para o planejamento e
gestão de bacias hidrográficas

A Geoecologia representa uma abordagem científica que transcende fronteiras discipli-


nares, analisando as paisagens geográficas como ecossistemas e reconhecendo os geocom-
plexos como entidades holísticas altamente interconectadas. Ela constitui uma abordagem
científica destinada a compreender, analisar funcionalmente e gerenciar as complexas inte-
rações entre a natureza e a sociedade, fundamentada nas teorias e métodos mais contem-
porâneos das áreas de Ecologia e Geografia (Priego, 2008).
Cabe enfatizar que as análises de natureza geoecológica das paisagens representam uma
abordagem que ascende a um nível de integração e síntese mais sofisticado no que diz res-
peito à complexidade da natureza, uma vez que viabiliza a visualização e compreensão das
interações e interdependências entre fenômenos naturais e processos sociais.
Está alicerçada sobre uma concepção sistêmica, a qual consiste em uma abordagem
em que qualquer diversidade da realidade estudada (objeto, propriedades, fenômenos,
relações, problemas ou situações) pode ser considerada como uma unidade, manifestando-
-se mediante categorias sistêmicas, como estrutura, elemento, meio, relações, intensidade,
dentre outros (Mateo-Rodriguez, 2010).
Para Mateo-Rodriguez et. al (2010), a Geoecologia das Paisagens parte de uma pers-
pectiva de considerar as questões ambientais por uma compreensão multidisciplinar, sem
análises padronizadas, já que as paisagens são diferenciadas, dedicando-se às características,
aos estudos e aos processos dos elementos da natureza e da sociedade.
Com isso, a Geoecologia das Paisagens compreendida como fundamento analítico
de uma visão sistêmica da análise ambiental, objetiva como destacam Mateo-Rodrigues e
Silva (2013, p. 86):
• Considerar a natureza como uma organização sistêmica, sendo formada pela intera-
ção sistêmica de diferentes componentes da natureza, tendo a sua própria autono-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
mia e suas lógicas de estruturação e funcionamento.
• Aceitar que os sistemas humanos têm a capacidade de transformar, até um certo limite,
os sistemas naturais, impondo uma certa estrutura e funcionamento de acordo com os
fatores econômicos, políticos, sociais e culturais, que variam conforme as escalas espa-
ciais e temporais. Isso é patê de que “esses sistemas organizam-se segundo propriedades
dinâmicas diferentes com estruturas e condições intrínsecas de funcionamento”.
• Assumir que a superfície do globo terrestre é, simultaneamente, moldada por uma
gama diversificada de unidades espaciais, formadas de acordo com a lógica preva-
lecente de certas formas de organização (natural, econômica, social e cultural), que
interagem de forma complexa.
65 //
Além do desenvolvimento conceitual a partir de análises espaço-temporais das dinâ-
micas e fenômenos produzidos na relação entre a sociedade e a natureza, a introdução e o
aperfeiçoamento do enfoque integrado sistêmico, a utilização de modelos e a elaboração
dos mapeamentos utilizando-se da Cartografia de Paisagens, tem sido ferramenta essencial
nessa compreensão.
A Cartografia de Paisagens é uma atividade ligada à Geografia, uma vez que
sua execução necessita de uma série de conhecimentos distintos que encontram na
Geografia física seus principais subsídios, a exemplo da morfologia dos solos, do
inventário florestal e do mapeamento geomorfológico (Cavalcanti, 2014, p.6).

Ainda para o autor, a paisagem como categoria de análise da Geografia, oferece suporte
à cartografia de síntese para os estudos de ordenamento territorial e/ou ambiental, sobre-
tudo às atividades de planejamento e gestão do ambiente, reconhecendo que a diversida-
de paisagística tem importância fundamental no planejamento do território. Além disso,
subsidia a tomada de decisões pautadas no conhecimento da diversidade de ambientes em
uma determinada localidade.
Para elaborar a cartografia das paisagens devem-se seguir algumas etapas metodoló-
gicas, como revisão bibliográfica, levantamento de campo e síntese final no gabinete. O
desenvolvimento e atualização dos mapas de paisagens é um processo complexo e de-
pendendo dos objetivos da pesquisa, da área de estudo e da escala de trabalho, pode-se
mencionar três etapa gerais de cartografia: Etapa I: Estudo prévio de gabinete; Etapa 2:
Levantamento de campo; e, Etapa 3: síntese final no gabinete (Priego, 2008).
Com isso, o mapa de paisagens, construído a partir da aplicação da Cartografia de
Paisagens, constitui um importante instrumento de análise sobre o território, não sendo
um mapa final de um processo de planejamento, mas a base para elaboração de diagnósti-
cos, prognósticos e formulação de programa de ações. Além de ser um meio para aplicação
de outras análises, como o diagnóstico das paisagens.
66 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Diagnóstico das paisagens como subsídio para classificação da


condição de bacias hidrográficas

A avaliação das paisagens requer uma análise detalhada e a classificação baseada em


diagnósticos, que possibilitam a identificação de sua capacidade e funcionalidade, funda-
mentadas tanto em seu padrão natural original quanto nas transformações que ocorreram
ao longo do tempo.
É importante destacar que a prática do diagnóstico das paisagens está intrinsecamente
ligada a um quadro conceitual mais abrangente, que tem evoluído teoricamente e metodo-
logicamente com base em perspectivas essenciais e relacionadas, incluindo a Geoecologia
das Paisagens, que combina diversas categorias analíticas da Geografia.
De acordo com Acevedo (1996), a análise das paisagens é resultado de um conjunto de
métodos e procedimentos técnicos e analíticos que visam a compreensão das regularidades
da estrutura da paisagem. Isso inclui o estudo de suas propriedades, índices, parâmetros,
bem como a investigação de sua dinâmica, história de desenvolvimento, condições, pro-
cessos de formação e transformação. Em resumo, a análise das paisagens desempenha um
papel bastante importante nas pesquisas geoecológicas do ambiente.
Nesse contexto, o diagnóstico da paisagem emerge como uma etapa importante, re-
velando as diversas condições e graus de alteração do ambiente, fornecendo informações
essenciais para uma abordagem mais holística e eficaz.
O termo “diagnóstico de paisagem” foi originalmente cunhado na década de 1950, por
Lingner e Carl, na Alemanha Oriental e foi pensado como a paisagem equivalente ao diag-
nóstico médico em medicina. Primeiro, o diagnóstico de paisagem foi restrito à detecção
de distúrbios no “organismo” de uma paisagem. Exemplos de tais distúrbios incluíram a re-
moção de sebes e outros elementos estruturais das áreas agrícolas; danos ao balanço hídrico;
o impacto das atividades de mineração; e poluição do ar (Bastian, Kronert; Lipsky, 2006).
O diagnóstico de paisagem, no passado, focava, principalmente, na detecção de dis-
túrbios ou danos nas paisagens, e tem evoluído consideravelmente, sendo reconhecido
como uma coleção diversificada de ferramentas e abordagens essenciais para avaliar as
paisagens do ponto de vista da relação entre a sociedade e natureza.
Seu principal objetivo é conduzir uma avaliação sistêmica e metodológica da capaci-
dade das paisagens em atender a uma variedade de requisitos sociais e ambientais, esta-
belecendo limites para preservar a estabilidade das condições naturais e, potencialmente,
melhorar sua capacidade de fornecer recursos e serviços essenciais. O diagnóstico se origina
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
dos resultados da análise da paisagem, que envolve a identificação da estrutura da paisagem
e dos processos que a moldam. Ele serve como ponto de partida tanto para a gestão prática
das paisagens quanto para a previsão de seu futuro (Bastian, Kronert; Lipsky, 2006).
Mateo-Rodriguez (2008) destaca o diagnóstico geoecológico das paisagens, defi-
nindo-o como um método que determina os processos que degradam a paisagem e
seu estado geoecológico, a eficiência da utilização das paisagens por parte da sociedade
(em suas diversas atividades) e a relação entre seu uso e potencial. Este diagnóstico
também inclui a determinação do potencial de uso dos recursos e serviços ambientais
ou ecossistêmicos, possibilitando a quantificação e a qualificação dos fatores antropogê-
nicos que podem incidir no uso das paisagens, determinando os tipos mais apropriados
67 //
de utilização da natureza, os impactos geoecológicos sobre as paisagens, seus efeitos e
consequências.
O diagnóstico das paisagens ainda não foi amplamente empregado em muitas pesquisas
brasileiras, particularmente no campo da Geografia. Diante desse cenário, houve uma busca
por índices embasados cientificamente, que foram aplicados para analisar as modificações
ocorridas nas paisagens e os problemas decorrentes dessas transformações em outras regiões
do mundo. Além disso, essa abordagem permitiu a caracterização e classificação das paisa-
gens com relação às alterações provocadas pela influência da ação antrópica no embiente.
Alguns desses índices bastante aplicados pela comunidade científica para o diagnós-
tico das paisagens são: diversidade, singularidade e naturalidade. Outros índices foram
adaptados ou construídos a partir de estudos realizados no Brasil, especificamente, para a
UGRH Paranapanema (fragilidade geoambiental e criticidade da quantidade e qualidade
dos recursos hídricos), para propiciar a integração com as especificidades.
A diversidade da paisagem reflete seu grau de variabilidade e, consequentemente, mostra
as tendências gerais de influência das atividades humanas sobre as paisagens (Turner, 1989).
E determina a riqueza de um ecossistema dentro da unidade da paisagem cartografada.
Baev e Lyubomir (1995) aplicaram o índice de diversidade de Shannon-Weaner, que
determina a heterogeneidade da paisagem, a riqueza fisionômica e sua distribuição es-
pacial. Com isso, quanto mais alto o grau de diversidade, mais rica é a composição de
elementos fisionômicos formadores da paisagem
O índice de singularidade, a partir do ponto de vista funcional e correta interpretação
da paisagem, requer a determinação do elemento dominante, o qual é aquele que ocupa a
maior superfície espacial, representando paisagens simples e pouco heterogêneas, e as pai-
sagens mais fragmentadas, tem uma ampla quantidade de paisagens raras ou únicas, com
uma estrutura complexa e heterogênea (Salinas; Ramón, 2016).
A naturalidade da paisagem considera a análise de critérios baseados na escala do quão
natural é a unidade da paisagem cartografada em relação ao seu extremo, ou seja, quando
68 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

apresenta paisagens bastante modificadas pela intensificação das atividades humanas, uti-
lizando como referência as aplicações de Machado (2004).
De acordo com Moroz-Caccia Gouveia et al. (2014), a identificação da fragilidade
geoambiental da UGRH Paranapanema, objetiva contribuir com o seu planejamento,
principalmente, nas etapas de caracterização de áreas sujeitas à gestão especial, confor-
me legislações vigentes que definem os conteúdos mínimos para os planos de recursos
hídricos. Dessa forma, utilizar a fragilidade ambiental como um índice diagnóstico das
paisagens, possibilita analisar a sensibilidade do ambiente face aos processos erosivos e de
inundação, orientando o ordenamento territorial e estabelecendo diretrizes de planeja-
mento para a bacia hidrográfica.
E o índice de criticidade da quantidade e qualidade dos recursos hídricos, que foi
elaborado, especialmente para a tese defendida por Trombeta (2019), apontando as áreas
com recursos hídricos em situação crítica em relação a sua quantidade e qualidade, bem
como a partir da indicação de áreas que apresentassem esses problemas meio de consulta
pública, com ampla participação da sociedade. A escolha por ressaltar a localização dessas
áreas críticas, quanto a disponibilidade e qualidade dos recursos hídricos, no território,
vai ao encontro, de entendê-las como sendo uma das principais causas do estresse hídrico.
A composição deste índice de criticidade da quantidade e qualidade dos recursos hí-
dricos tem fundamental relevância para aplicação nos estudos de planejamento de bacias
hidrográficas e gestão das águas.
Em suma, o diagnóstico da paisagem desempenha um papel fundamental na compreen-
são, análise e gestão das paisagens em constante evolução. Ao fornecer uma estrutura me-
todológica sólida para avaliar as transformações e os impactos humanos nas paisagens, ele
permite uma abordagem holística para a preservação e o planejamento sustentável do am-
biente. À medida que a pesquisa e a aplicação do diagnóstico da paisagem continuam a cres-
cer, se aprimora também a capacidade de proteger e otimizar a paisagem para as necessidades
presentes e futuras da sociedade. Portanto, o diagnóstico da paisagem permanece como um
instrumento essencial no campo da Geografia e da Geoecologia das Paisagens, contribuindo
para a busca de soluções ambientalmente responsáveis e socialmente conscientes.

Procedimentos metodológicos

A Geoecologia das Paisagens, juntamente com a Cartografia de Paisagens, ofereceu os


subsídios metodológicos e procedimentos técnicos para análise e avaliações do território
da UGRH Paranapanema, sob uma perspectiva multidisciplinar, sendo possível estabele-
cer a partir dos seus caminhos metodológicos unidades da paisagem e, posteriormente, o
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
diagnóstico da paisagem, para destacar áreas prioritárias para o planejamento e gestão da
bacia hidrográfica e das águas.
O principal instrumento para a construção desse diagnóstico foi o mapa de paisagem
da bacia hidrográfica do rio Paranapanema, que é um meio metodológico de interpretação
dos componentes paisagísticos, em quatro níveis taxonômicos de detalhamento, resultado
da sistematização, interpretação e análise dos elementos naturais e da sua relação com a
ação antrópica.
O mapa de paisagem foi o instrumento que possibilitou o diagnóstico da paisagem,
a partir da aplicação dos índices de diversidade, singularidade, Naturalidade, Fragilidade
Geoambiental e criticidade da qualidade e quantidade dos recursos hídricos, no qual as
69 //
suas unidades de paisagem foram construídas a partir do cruzamento espacial entre hip-
sometria, declividade, clima, litologia, solos e uso e ocupação da terra, conforme mostra
a Figura 1.
70 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1: Elaboração do Mapa de Paisagem da UGRH Paranapanema.


Fonte: Trombeta, 2019.

O trabalho de campo foi uma etapa muito importante da pesquisa, pois era um desafio
compreender as dinâmicas e processos de ocupação e uso de uma área tão grande e com
diversas paisagens como a bacia hidrográfica do rio Paranapanema e o campo possibilitou
essa percepção. Foram percorridos cerca de 1.300 km e coletados com aparelho de GPS
portátil aproximadamente 370 pontos, com informações de uso e ocupação da terra, for-
mas do relevo, problemas ambientais aparentes, dentre outros. Além da utilização das fotos
georreferenciadas do sobrevoo de reconhecimento realizado pela Ana em 2015, no âmbito
da elaboração do Plano de Recursos Hídricos do Paranapanema (PIRH-Paranapanema),
disponibilizadas no portal de metadados geoespaciais da ANA (https://metadados.ana.
gov.br/geonetwork/srv/pt/metadata.show?id=346&currTab=simple).
Utilizando a abordagem quantitativa e qualitativa das entidades (polígonos) que for-
mam o mosaico da paisagem, foram escolhidos os seguintes índices para o diagnóstico da
paisagem: diversidade, singularidade, naturalidade, fragilidade geoambiental e criticidade
da qualidade e quantidade dos recursos hídricos, sendo expressa a classificação realizada
para cada um na Tabela 1.
A diversidade da paisagem foi medida a partir do indicador de Diversidade de Shannon-
Weaner, baseado no estudo de Baev e Lyubomir (1995), que calcula a diversidade dos tipos
de unidades inferiores em uma unidade superior, ou seja, identificação do número de tipos
diferentes em cada unidade maior.
O índice de diversidade da paisagem representa a sua heterogeneidade, verificando a
riqueza das unidades fisionômicas e sua distribuição territorial nas unidades de paisagem
de 3º nível, em cinco classes. Este relacionou dois recortes escalares, verificando a diversi-
dade das unidades da paisagem de 3º nível em relação às de 4º nível.
O índice de singularidade foi baseado em Mateo-Rodriguez (2011), com a quantifi-
cação do número de polígonos para cada unidade maior. Quanto maior a quantidade de
entidades, maior a dominância da paisagem.
A singularidade da paisagem para a UGRH Paranapanema foi atribuída a partir da
aplicação do coeficiente de singularidade (Ks) atribuído por Mateo-Rodriguez (2008),
calculado mediante pela expressão Ks = área da unidade de paisagem de 4º nível / área
da unidade de paisagem de 3º nível, variando seu coeficiente entre 0 e 1, ou seja, quanto
menor a área (km²) da unidade de paisagem de 4º nível em relação a unidade de paisagem
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
de 3º nível em qual está inserida, mais única é a paisagem nesse nível.
O índice de naturalidade é uma ferramenta que realiza um diagnóstico ambiental da
área de estudo, utilizado para refletir e poder comparar, de maneira sucinta, o estado de
conservação de diferentes unidades territoriais, podendo ser áreas de conservação ou não.
A naturalidade da paisagem para a UGRH Paranapanema foi definida a partir da presença
de fragmentos de vegetação nativa dentro e fora de unidades de conservação nas unidades
da paisagem de 4º nível em cinco classes, simplificando e adaptando a metodologia de
Machado (2004).2
2
A UNESP – Campus de Presidente Prudente, possui licenças do software, na qual uma foi utilizada nesta
pesquisa.
71 //
Tabela 1 – Categorias dos índices utilizados no diagnóstico da paisagem da UGRH
Paranapanema

Geoambiental
Singularidade

Naturalidade

e quantidade
da qualidade

dos recursos
Criticidade
Fragilidade
Diversidade

% de recobrimento hídricos
Classe

Coeficiente de sin-

Grau de fragilidade
gularidade (Ks)
Descrição

Descrição
Categoria

Categoria

Categoria

Categoria
Áreas florestadas protegidas
Quando ocor-
por Unidades de Conservação.
rem 5 unidades
Pouca presença de elementos
de paisagem
Muito alta Paisagem Natural externos, infraestrutura ar- Baixa Muito
1 de 4º nível na < 0,1 < 10
diversidade Única protegida tificial mínima, temporária Fragilidade baixa
unidade de
e removível. Poluição físico-
paisagem de 3º
-química ausente ou pouco
nível.
significativa.
Quando ocorrem Áreas florestadas com pouca
4 unidades de presença de elementos exter-
Natural
paisagem de 4º Paisagem 0,1 a nos, infraestrutura artificial
2 Alta diversidade sem - Baixa 25 a 10
nível na unidade Rara 0,25 mínima, temporária e remo-
proteção
de paisagem de vível. Poluição físico-química
3º nível. ausente ou pouco significativa.
Áreas com possível presença de
espécies exóticas, mas não do-
Quando ocor-
minantes (baixo impacto) e de
rem 3 unidades
Natural elementos artificiais pequenos.
de paisagem Paisagem
Média diversi- 0,25 a com Poluição ocasional capaz de Média
3 de 4º nível na Subdo- Média 50 a 25
dade 0,5 transfor- ser assimilada pelo sistema, ou Fragilidade
unidade de minante
mações seja, ainda com capacidade de
paisagem de 3º
recuperação. Pouca extração de
nível.
recursos renováveis. Dinâmica
natural pouco alterada.
Áreas com infraestrutura an-
trópica escassa ou concentrada.
Possível domínio de espécies
Quando ocor- exóticas e elementos nativos,
rem 2 unidades consideravelmente, reduzidos.
Paisagem
72 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

de paisagem Adição ocasional de energia e/ou


Baixa diversi- Quase 0,5 a Pouco
4 de 4º nível na extração de recursos renováveis - Alta 75 a 50
dade Domi- 0,75 natural
unidade de ou materiais não relevantes.
nante
paisagem de 3º Dinâmica geral ainda contro-
nível. lada por processos naturais.
Pode incluir sistemas culturais
abandonados, em processo de
recuperação natural.
Áreas com infraestrutura im-
Quando ocorre portante e condicionamento
1 unidade de do meio físico, com produções
Paisagem Paisagens
Muito baixa paisagem de 4º 0,75 a biológicas fortes, moderada Alta Muito
5 Domi- modifica- 100 a 75
diversidade nível na unidade 1,0 adição de matéria (pode ter Fragilidade Alta
nante das
de paisagem de poluição associada). Possui
3º nível. elementos naturais mesclados e
manejo intensivo da água.
Fonte: adaptado de Trombeta, 2019.
A fragilidade geoambiental das unidades de paisagem foi obtida a partir do cruzamen-
to espacial das unidades da paisagem de 4º nível com o estudo e mapeamento realizado
para UGRH Paranapanema por Moroz-Caccia Gouveia et al. (2014), considerando o grau
de fragilidade em maior quantidade na unidade, classificando-os em três categorias.
O índice referente aos recursos hídricos foi derivado das informações de criticidade
de qualidade e quantidade por ottobacias e a recorrência de bacias hidrográficas indica-
das a partir de consulta pública sobre áreas prioritárias para UEGs no âmbito do PIRH
Paranapanema. As geometrias dessas três variáveis foram unidas e correlacionadas com as
unidades de paisagem de 4º nível, a fim de verificar a sobreposição espacial e porcentagem
de recobrimento. É necessário salientar que se optou por juntar os polígonos da consulta
pública com as ottobacias críticas em qualidade e quantidade de recursos hídricos, justa-
mente para reconhecer a participação da sociedade civil na indicação dessas áreas.
Cabe destacar, que os índices utilizados podem ser divididos em dois grupos: diversi-
dade e singularidade, são índices geométricos para análise da paisagem, que utilizam como
métrica a quantidade de polígonos das unidades de paisagem; e, naturalidade, fragilida-
de e de recursos hídricos, são índices diagnósticos da paisagem, que expressam atributos
qualitativos.
Todo o processo de cruzamento de dados e produção dos produtos cartográficos foi
realizado no ambiente do Sistema de Informações Geográficas (SIG) ArcMap®, os quais
tiveram algumas amostras validadas em campo.

Resultados e discussão

Partindo da identificação das unidades da paisagem para a UGRH Paranapanema, em


quatro níveis taxonômicos, foram aplicados alguns índices para diagnóstico das paisagens,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
a fim de quantificar e qualificar a bacia hidrográfica do rio Paranapanema.
Inicialmente, foram analisados os índices geométricos da paisagem, diversidade e sin-
gularidade, que avaliam a estrutura espacial das geometrias (formas e densidade) dos polí-
gonos das unidades de paisagem.
A UGRH tem paisagens que apresentam Alta Diversidade (46,9%), seguida de Muito
Alta Diversidade (24,8%) e Média Diversidade (23,1%), na qual é possível estabelecer
uma compartimentação para diversidade da paisagem na bacia hidrográfica, com uma
faixa que atravessa a unidade longitudinalmente, composta por diversidade Muito Alta,
sobretudo por serem áreas que apresentam mais diversidade no seu cultivo e um relevo
diferenciado (Figura 2).
73 //
Fig. 2: Mapa da Diversidade da Paisagem da UGRH Paranapanema. Fonte: Trombeta, 2019.

A porção sul e sudeste, contemplando as Unidades de Gestão (UGs) Tibagi, Norte


Pioneiro e Alto Paranapanema e a porção norte e leste do Médio Paranapanema, apresen-
tam Alta diversidade em suas paisagens, pela presença de cultivos mais heterogêneos e rele-
vo mais ondulado. E outra grande área que se estende do Médio Paranapanema ao Pontal
do Paranapanema (em quase toda a sua área) e em parte significativa do Piraponema têm
paisagens mediamente diversas, compostas de grandes extensões de monoculturas (cana-
-de-açúcar, soja e milho).
74 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

O outro índice geométrico analisado foi o de singularidade da paisagem, que represen-


ta as especificidades e os elementos marcantes na estruturação da paisagem, ou seja, quanto
mais única é a paisagem, mais especial e singular é tal localidade. Mais de 70% do territó-
rio da UGRH Paranapanema têm paisagens Subdominantes (36,8%), Quase Dominantes
(20,0%) e Dominantes (14,6%), justamente por grandes extensões serem de paisagens
com monoculturas e pastagens, variando pouco entre os relevos mais ondulados e suaves.
Assim, menos de um terço da unidade tem presença de paisagem Única (12,2%) e Rara
(14,9%), distribuídas espacialmente pelas UGs de maneira bastante heterogênea (Figura
3). As paisagens únicas são aquelas mais naturais, que aparecem em menor proporção na
bacia hidrográfica, especialmente os fragmentos de vegetação nativa.
Fig. 3: Mapa da Singularidade da Paisagem da UGRH Paranapanema. Fonte: Trombeta, 2019.

Foram escolhidos como índices diagnósticos da paisagem, ou seja, aqueles de caracte-


rísticas qualitativas, a naturalidade, a fragilidade geoambiental e a criticidade na qualidade
e quantidade dos recursos hídricos, sendo esses dois últimos pensados especificamente
nesta pesquisa para aplicação na gestão de bacias hidrográficas.
O índice de naturalidade da paisagem, aplicado nas unidades da paisagem de 4º nível,
indica uma situação preocupante na UGRH Paranapanema, já que 42,2% da área é pouco
natural e 37,2% é composta por paisagens modificadas, correspondendo a aproximada-
mente 80% da área. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Verifica-se que áreas que seriam de extrema importância estarem protegidas, como é o caso
das Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e reservas legais, estão degradadas, sem mata ciliar,
em diversas localidades, não cumprindo sua função natural de proteção para esses ambientes.
Este cenário chama atenção para a necessidade de criar mecanismos, instrumentos e
incentivos capazes de promover a recuperação e recomposição de áreas naturais, bem como
assegurar a existência das áreas naturais sem proteção, que representam 12,4% da UGRH
Paranapanema.
As áreas naturais aparecem de maneira bastante fragmentada e dispersa no territó-
rio da UGRH Paranapanema, o que demonstra a falta de conectividade entre elas e a
75 //
Fig. 4: Mapa da Naturalidade da Paisagem da UGRH Paranapanema. Fonte: Trombeta, 2019.

dificuldade na formação de corredores ecológicos, essenciais para circulação da fauna na


bacia hidrográfica.
As UGs do Pontal do Paranapanema e Piraponema são as que apresentam pior si-
tuação, com territórios muito antropizados e com poucas características naturais. O
Médio Paranapanema e o Norte Pioneiro também chamam atenção pela grande porção de
Paisagens modificadas, apenas seu extremo leste e nordeste (do Médio Paranapanema) e
sul (Norte Pioneiro) apresentam condição com áreas um pouco mais naturais (Figura 4).
O Alto Paranapanema e o Tibagi são as unidades com as melhores condições no índi-
76 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ce de naturalidade, com mais áreas de paisagens naturais, sobretudo sem proteção, o que
tornam essas unidades da paisagem frágeis, já que ficam suscetíveis ao desaparecimento
por não ter nenhuma regulação que proteja seu território. Também é notável a pouca
expressividade de unidades da paisagem com áreas naturais protegidas, apenas 0,8% da
UGRH Paranapanema.
A falta ou inexistência de áreas naturais prejudica a qualidade e a quantidade dos
recursos hídricos, já que a vegetação propicia direta e indiretamente a produção de água.
Muitas áreas, inclusive de nascentes, estão sendo comprometidas com a supressão da vege-
tação e o avanço do agronegócio e pecuária.
Fig. 5: Mapa da Fragilidade Geoambiental da Paisagem da UGRH Paranapanema. Fonte: Trombeta, 2019.

A fragilidade geoambiental da paisagem foi analisada com base nos processos erosivos
e de inundação emergente em cada unidade da paisagem de 4º nível. A maior parte das
unidades da paisagem da UGRH Paranapanema apresentam Média fragilidade geoam-
biental, correspondendo a 67,0% da área com grande extensão em todas as Unidades de
Gestão, sendo aquelas paisagens com solos frágeis e algum tipo de cobertura, que não a de
vegetação (Figura 5).
As áreas com Baixa fragilidade (25,6%) estão localizadas no centro da bacia hidrográfi-
ca, principalmente nos baixos cursos das unidades Tibagi e Norte Pioneiro e na porção sul
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
do Médio Paranapanema. Já as unidades da paisagem de Alta fragilidade concentram-se
nas áreas com declividades mais fortes, onde sem cobertura vegetal se tornam potenciais
para o desenvolvimento de processos erosivos de diferentes intensidades, e nas planícies de
inundação do baixo curso do rio Paranapanema.
As áreas com alta e média fragilidade ambiental evidenciam a necessidade de melhor
manejo do solo, bem como a importância da recomposição florestal nas áreas de solos
frágeis, com altas taxas de impermeabilidade, forte declividade e sem cobertura vegetal.
A criticidade dos recursos hídricos foi dada a partir do seu comprometimento qua-
litativo e quantitativo, além de áreas indicadas em consulta pública que apresentam tais
problemas.
77 //
Fig. 6: Mapa da Criticidade da qualidade e quantidade dos recursos hídricos da UGRH Paranapanema. Fonte:
Trombeta, 2019.

Nota-se que mais da metade da área da UGRH Paranapanema apresenta altos níveis,
53,5%, de criticidade na qualidade e quantidade dos recursos hídricos. Isso se dá, so-
bretudo, pela utilização de grandes quantidades de água na irrigação com pivôs centrais,
bastante encontrados na bacia hidrográfica, associado à falta de vegetação. A qualidade é
afetada, principalmente, pela falta de coleta e tratamento de esgoto doméstico das cidades
e efluentes de atividades industriais, que são despejados no rio sem tratamento.
As melhores situações, de Muito baixa (8,2%) e de Baixa (11,1%) criticidade dos
78 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

recursos hídricos são encontradas no alto curso das UGs Alto Paranapanema e Norte
Pioneiro. No entanto, essas mesmas unidades concentram a maior porção de unidades
da paisagem com muito alta criticidade. (Figura 6). O baixo curso da UG Pontal do
Paranapanema também apresenta baixos valores de criticidade dos recursos hídricos, bem
como as áreas próximas ao rio Paraná.
A partir da elaboração e análise desse diagnóstico das paisagens, utilizando a análise
da paisagem, Geoecologia das Paisagens e a cartografia de paisagens como fundamentos
teórico-metodológicos. é possível construir outras análises e utilizá-los, por exemplo, para
montar um indicador para a medir a quantidade e a qualidade das paisagens na bacia hi-
drográfica, assim como elaborar cenários e planos de ação para melhoria ambiental da área.
Considerações finais

O diagnóstico da paisagem evidenciou um cenário preocupante na UGRH


Paranapanema, principalmente quanto a diversidade da paisagem no Pontal e Médio
Paranapanema, paisagens dominantes na porção central do Médio Paranapanema e alto
curso do Tibagi. Chama muita atenção a pouca naturalidade que existe na bacia hidrográ-
fica, formada predominantemente por paisagens modificadas e com poucos fragmentos
de vegetação e áreas protegidas. A fragilidade geoambiental média em grande extensão da
UGRH Paranapanema, bem como a criticidade muito alta e alta dos recursos hídricos,
demonstram um estado de alerta que as políticas públicas ambientais e de uso e ocupação
das terras devem considerar.
Os mapeamentos referentes ao diagnóstico da paisagem, são produtos que podem ser
utilizados para diversos fins e análises a depender do objetivo que se pretende alcançar e
as narrativas a serem construídas na bacia hidrográfica do rio Paranapanema. A cartografia
obtida, permite realizar importantes análises, especialmente, da distribuição de diversos
componentes naturais e antrópicos na bacia hidrográfica, com foco nas questões que en-
volvem as suas águas, podendo ser de utilidade para trabalhos futuros.
Ainda pouco explorado em estudos brasileiros, o diagnóstico da paisagem, mostrou-se
bastante aderente para fazer parte da opção metodológica escolhida para estabelecer as
paisagens com maior prioridade na gestão, especialmente, dos recursos hídricos.
Importante salientar que, ainda que os processos de confecção dos mapeamentos te-
nham sido feitos a partir da aplicação em Sistema de Informações Geográficas, os resultados
finais de análise da paisagem dependem da capacidade de interpretação e sistematização
dos componentes da paisagem, não sendo possível uma operação totalmente automática,
além da validação de algumas amostras em campo.
Por fim, espera-se que este artigo contribua com a evolução da elaboração e aplicação
do diagnóstico da paisagem, a partir das concepções teórico-metodológicas da Geoecologia
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
das Paisagens e da Cartografia de Paisagens, nas bacias hidrográficas brasileiras, servindo
como instrumentos críticos e de apoio no processo de gestão dos recursos hídricos.

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de Ciências e Tecnologia.
80 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
As transformações paisagísticas da Br-163.
Uma abordagem Geo-Foto-Gráfica

Messias Modesto dos Passos1

Introdução

Aqui, realizamos uma análise multiescalar, a partir do método regressivo, partindo do


presente para remontar ao passado, num esforço para reconstituir os espaços significativos
das relações sociedade-natureza e da paisagem transformada pela ação antrópica, conside-
rando os cinco tempos selecionados: 1973, 2004, 2011, 2016 e 2020. A abordagem geo-
-foto-gráfica é realizada a partir de uma seleção de fotografias do acervo pessoal constituído
de mais de três mil fotografias tiradas nas diversas viagens de estudo, além de fotografias
pertencentes a arquivos icnográficos pessoais cedidas por colonos entrevistados. Também
são utilizadas imagens de satélite para auxiliar na interpretação das mudanças ocorridas na
paisagem e são elaborados mapas significativos que contribuem para o entendimento de
tais processos ao longo do tempo.
Aqui, relatamos os efeitos perversos decorrentes da pavimentação desse trecho da BR-
163, o desmatamento, a exploração do ouro, a ocupação do território, inicialmente, com
base em pequenos lotes doados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
(INCRA) a migrantes pobres provenientes principalmente do Nordeste do país. Os mi-
grantes pobres foram abandonados pelo Estado brasileiro, que passou a estimular a coloni-
zação baseada na apropriação de grandes áreas por empresas e por pecuaristas capitalizados
provenientes das regiões Sul e Sudeste do país.
A abertura e a pavimentação da BR-163 foram estratégicas para viabilizar o desloca-
mento de colonos, garimpeiros, grileiros, empresários dos ramos madeireiro e da minera-
ção, entre outros agentes que, ao adentrarem a região, comprometeram a sobrevivência das
populações originárias.

1
Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP, campus de Presidente Prudente/SP-Brasil
mmpassos86@gmail.com
81 //
Constatamos que, enquanto no Mato Grosso a BR-163 motivou a instalação de
grandes projetos agropecuários e de colonização realizados por grupos privados como
a Sinop, Colíder, Indeco e outras, no estado do Pará o projeto da rodovia não teve
forças para atrair o capital imobiliário privado, ficando a cargo do INCRA a coloniza-
ção oficial centrada no assentamento de agricultores pobres. As colonizações privada e
oficial tiveram resultados perversos sobre a floresta e a população local, notadamente
sobre os povos indígenas. Mais recentemente, o agronegócio, por meio de agricultores
“modernos” vindos das regiões Sul e Sudeste do Brasil e do norte do Mato Grosso,
apoiados pelas tradings, têm promovido a expansão do cultivo de grãos, especialmente
de soja e milho.
O território geográfico nasce da força dos homens que conquistam os espaços ainda
“vazios” e implementam agricultura, indústria, comércio, serviços [...]. Mas a que preço?
Grandes parcelas do território amazônico se constituem em verdadeiros ícones dessas
regiões que passaram, em menos de trinta anos, de floresta “virgem” à era do automóvel,
da televisão, do ar-condicionado, do celular. Essa prodigiosa conquista da Amazônia e a
integração dessas novas regiões econômicas ao mercado nacional e mundial não existem
sem a lembrança dos ciclos que ritmaram a história do Brasil: elas são também a sequên-
cia de uma marcha em direção ao interior do continente. Mas as consequências sociais e
ecológicas não são negligenciáveis: de um lado, morte ou exílio dos indígenas, pobreza,
miséria, luta pela terra, violências, e de outro lado, maciços desmatamentos, empobre-
cimento biológico, erosão dos solos e provável mudança climática, sem que pudéssemos
dar verdadeiramente a medida exata da importância de cada um desses que poderíamos
chamar de “danos colaterais”.
No governo do General Geisel (1974-1978) instituiu-se o Polamazônia, como forma
de facilitar, ainda mais, a entrada do capital oligopolista na região. Existem muitos
exemplos significativos e complexos que poderiam ser explicitados, a fim de se mostrar
como o modus facienti da política de ocupação da Amazônia se caracteriza por uma se-
82 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

quência de erros que resultam em injustiças sociais e na devastação dos recursos naturais.
O próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) altera os
seus objetivos segundo o momento político, como quando muda a “colonização social”
de opção pelos camponeses mais pobres (1970-1974), para a “colonização comercial”
caracterizada pela venda de terras a grandes fazendeiros (1975-1979).
A geo-foto-grafia

[...] J'ai découvert que lire un paysage, c'était lire le temps


(Chaunu, 1988, p. 27).

Entre as diferentes abordagens pertinentes à descrição e análise das dinâmicas e orga-


nizações espaciais, existem duas grandes orientações que, acredito, devem ser vistas como
complementares. Uma, “a análise espacial”, consiste em explicitar as grandes regras que
estruturam, organizam o espaço. A outra, “a geografia social”, aborda os processos de cons-
trução territorial pela análise dos comportamentos sociais. A abordagem paisagística se
propõe a costurar as relações entre essas duas orientações, para mostrar como as diferentes
combinações de comportamentos individuais induzem cada uma das construções paisagís-
ticas específicas e, pois, os modelos recorrentes de ordenamento do território.
A fotografia é uma tradição no trabalho dos geógrafos: assim que a ferramenta foi in-
ventada, eles a apreenderam, acumulando coleções impressionantes, como um testemunho
de fundo documentário conservado nas universidades, museus e sociedades geográficas.
Desde as origens da disciplina, desde Vidal de la Blache e de De Martonne, a análise de
“paisagem geográfica” passou por uma explotação de imagem demonstrativa, fotos e cro-
quis com o objetivo de completar/ilustrar os mapas. Jean Brunhes, um dos fundadores da
escola francesa de geografia e responsável pelo projeto “Archives de la planète” da fundação
Albert-Kahn, entre 1912 e 1930, teorizou e colocou em prática essa utilização da fotogra-
fia. Para ele, tratava-se de torná-la “instrumento de uma memória documentária do real”,
projeto que não estava limitado aos “meios”, mas fazia a parte bela do ser humano em seu
quadro de vida. As fotos se prestam a explicitar como o processo de ocupação do território
se materializou na paisagem. As fotos históricas foram obtidas nos acervos: do Cel. José
Meirelles, em entrevista que realizamos na residência dele, em Cuiabá/MT; do Instituto
Boanerges Sena, sediado na cidade de Santarém/PA; e do Instituto Socioambiental, sedia-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
do na cidade de São Paulo/SP. As fotos de 1973, 2004, 2011, 2016 e 2020 foram selecio-
nadas no arquivo de 3000 fotos registradas pelo autor, ao longo das inúmeras viagens de
estudos realizadas na Cuiabá-Santarém.
A paisagem é a fisionomia de uma região. É nela que as relações sociedade-natureza se
materializam. As fotos são reveladoras de três unidades distintas, onde a estrutura socioeco-
nômica atuou e atua sobre a estrutura geoecológica para construir a paisagem atual. O nosso
objetivo maior, a partir da explicitação geo-foto-gráfica ao longo da BR-163 – no trecho
desde a Serra do Cachimbo, na divisa do estado do Mato Grosso com o Pará, até Santarém,
na confluência do rio Tapajós com o rio Amazonas –, é apreender globalmente a paisagem na
sua dimensão socioecológica – o termo “ecológico” sendo compreendido numa perspectiva
83 //
histórica, que é aquela do “[...] estudo das relações entre as sociedades sucessivas e os espaços
geográficos que elas transformaram para produzir, habitar e sonhar” (Passos, 2013, p. 18).
Nós vamos abordar as mudanças paisagísticas ocorridas no eixo da BR163/sudoeste do
estado do Pará com base em 5 tempos: 1973, 2004, 2011, 2016 e 2020.

1973: a construção (e conflitos)

A pressa em “vender” a noção de desenvolvimento a qualquer preço (Sternberg,


1979), bem como a dissociação da questão ambiental da realidade social e do mode-
lo econômico, é conflitante e mesmo incompatível com a implantação de qualquer
política ambiental válida (Monteiro, 1981, p. 33).

A abordagem do processo de construção e dos conflitos, notadamente, com as popu-


lações indígenas existentes no entorno da BR-163, está sustentada em algumas realizações
de elevados significados: (a) a entrevista que nos foi concedida pelo Cel. José Meirelles,
ex-Comandante do 9º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, em sua resi-
dência, em Cuiabá/MT, no dia 2 de agosto de 2005; (b) a excelente obra “Panará: a volta
dos índios gigantes”, publicada pelo Instituto Socioambiental (1998), cujo texto brilhante,
de como autores Ricardo Arnt, Lúcio Flávio Pinto e Raimundo Pinto, foi valorizado pelo
ensaio fotográfico e relato de Pedro Martinelli; (c) inúmeras entrevistas com pioneiros que
foram instalados ao longo da BR-163 e que permanecem como testemunhos da história
dos impactos socioambientais dessa rodovia; e (d) as viagens de estudo que realizamos ao
norte do Mato Grosso e Oeste do Pará.
No Mato Grosso, a estrada motivou a penetração de grandes projetos agropecuários e
de colonização comandados por grupos particulares. No Pará, no trecho entre Santarém e
Rurópolis (no entroncamento da Cuiabá-Santarém com a Transamazônica), predominou
84 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

a colonização dirigida para pequenos proprietários, comandada pelo Instituto Nacional


de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Ao longo de toda a estrada, a valorização
das terras, a atração de correntes migratórias e a especulação fundiária tiveram impactos
imediatos sobre a população local – especialmente os povos indígenas.
Em julho de 1970, o Presidente Médici visitou o Nordeste, então assolado por forte seca,
e anunciou: “Vamos entregar a terra sem homens da Amazônia ao homem sem terras do Nordeste”
(Passos, 1998, p. 49). Nesse mesmo ano o governo brasileiro deu início ao projeto de constru-
ção das grandes estradas na Amazônia, com destaque para a Transamazônica, cortando a região
de leste a oeste, e a BR-163, a Cuiabá-Santarém, de sul a norte – estradas que se cortam em
forma de cruz, nas proximidades de Rurópolis, e abriam eixos de penetração e integração.
O primeiro ato concreto para a construção da BR-163 se deu a partir da transferên-
cia do 3º Batalhão Rodoviário do Exército, sediado em Carazinho, Rio Grande do Sul,
para a cidade de Cuiabá, Mato Grosso, com o nome de 9º Batalhão de Engenharia de
Construção (9º BEC), e a missão de juntamente com o 8º BEC, sediado em Santarém,
Pará, construir a BR-163, também conhecida como a Cuiabá-Santarém. Ao 9º BEC, sob
o comando do Cel. José Meirelles, coube a tarefa de construir o subtrecho sul, de Cuiabá/
MT a Serra do Cachimbo/PA. O 8º BEC, ficou responsável pela construção do subtrecho
norte, de Santarém a Serra do Cachimbo. A ligação rodoviária, entre Cuiabá e Santarém,
atendia aos objetivos do Plano Nacional de Integração, o PIN.
Uma das consequências imediatas da abertura da BR-163 foi o assédio muito grande de
migrantes que chegavam de todas as regiões do Brasil: a Amazônia era vista como a terra pro-
metida, o Eldorado! Coube ao INCRA a tarefa de realizar, às pressas2, a indispensável discri-
minação das terras devolutas a fim de arrecadar as terras públicas, preservando o patrimônio
fundiário da União, e, a partir dessa realização, ordenar a ocupação dos “espaços vazios”.
O INCRA, entretanto, não estava estruturado para realizar tal tarefa, agravada pelo
acelerado ritmo da construção da rodovia, e também pelo espontaneísmo e espírito de
aventura dos migrantes que se dirigiam a essa parcela do território brasileiro. A defini-
ção arbitrária, determinada pelo Decreto 1.164 de 1971, de que as terras não tituladas e
situadas na faixa de 100 km dos dois lados da BR163 pertenciam à União deixa clara a
incapacidade do órgão responsável pela colonização
O Exército, através do seu agente operacionalizador, o 9º BEC, efetivou parcerias com
órgãos públicos, com o pressuposto de melhor se capacitar para a gestão dos conflitos ine-
rentes a uma obra dessa envergadura, notadamente, sendo realizada num período da história
quando as dinâmicas territoriais eram determinadas por arranjos e rearranjos socioambien-
tais de outras parcelas do território brasileiro: seca no Nordeste, inundação de áreas agríco-
las no entorno dos grandes reservatórios de usinas hidrelétricas no Sul e Sudeste do Brasil,
geadas e colapso do modelo de colonização – baseado na cafeicultura e no parcelamento da
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
estrutura fundiária – no norte do Paraná e, ainda, na cultura migratória dos brasileiros dos
mais variados níveis socioeconômicos. A tarefa de construir a BR-163 priorizou algumas
parcerias, mais do que justificadas. No entanto, o que se pode afirmar é que essas parcerias se
notabilizaram por um caráter onde “tudo é outra coisa”, ou seja, o discurso foi bem elabora-
do, no entanto, o processo e os resultados não correspondem ao verbo.
Inicialmente, foram organizadas duas frentes de topografia: a primeira no sentido Sul-
-Norte do trecho; a segunda, Norte-Sul, a partir da Serra do Cachimbo. O trabalho da

2
A política de ocupação da Amazônia está revestida de duas variáveis – entre muitas outras – extremamente
negativas: (a) regra geral, as ações efetivas do Estado se manifestam a jusante dos impactos negativos; (b) o
Estado e a sociedade agem como se estivessem “trocando o pneu com o carro em movimento”.
85 //
topografia consistia na locação do
solo, do traçado da rodovia, através
da cravação de piquetes intervalados
a cada 20 metros. Esse traçado foi fi-
xado pela Engenharia Militar, calca-
do em fotografias aéreas fornecidas
pela extinta empresa de transportes
aéreos Cruzeiro do Sul – método
aerofotogramétrico em uso naquele
tempo. O traçado seguia o divisor
Fig. 1: Campo de pouso e acampamento, às margens do rio Teles
das bacias dos rios Tapajós e Xingu.
Pires. Fonte: Arnt et al., 1998, p. 21. As alterações desse traçado na loca-
ção foram mínimas3.
Para a 2ª turma, tinha-se por base logística a Base Aérea do Cachimbo. Dessa base par-
tiam todos os suprimentos para a frente de trabalho, até o ponto em que era possível o abas-
tecimento por terra. O trabalho da equipe de topografia exigia muito esforço dos homens
que passavam 60 dias em trabalho contínuo sob as árvores da floresta. Após esse período,
tinham uma semana de descanso. Na execução dos trabalhos a equipe avançava 2 km por
dia, em média. Os homens eram atacados por doenças, particularmente pela malária.
A implantação da BR-163, do ponto de vista técnico, não ofereceu grandes dificuldades,
como pode parecer à primeira vista, por se tratar da Amazônia. O leito da rodovia seguiu o
divisor das bacias do Tapajós e do Xingu, reduzindo, de modo significativo, a travessia de
grandes e médios rios e permitindo um traçado quase retilíneo no sentido sul-norte. No
entanto, a travessia dos grandes rios – Teles Pires e Peixoto de Azevedo – e o trecho inserido
na Serra do Cachimbo exigiram a construção de obras de arte (pontes e bueiros); na Serra
do Cachimbo, a implantação de uma camada à base de cascalho e terra argilosa, de modo a
“revestir” as areias quartzosas predominante na litologia dessa área mais elevada.
86 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A BR-163: rota de conflitos com os indígenas

A construção da rodovia transamazônica foi extremamente agressiva às populações in-


dígenas que viviam da caça, da colheita e da agricultura itinerante. A chegada em massa de

3
Em entrevista (2/8/2005), o Cel. José Meirelles, lembra que “[...] na fase da locação da rodovia, decidimos mudar
o traçado de um trecho da BR-163, a fim de que a rodovia não cruzasse um extenso castanhal. Ingenuamente,
imbuídos do espírito da predestinação da rodovia, pensávamos estar preservando recursos naturais dos mais im-
portantes da Amazônia. Hoje, não mais existe esse castanhal, como tantos outros mais” (BR-163..., 2005).
garimpeiros em terras Yanomami,
entre 1987 e 1990, custou a vida
de mais de um milhar deles, víti-
mas da violência e das doenças
(Albert; Kopenawa, 2003).
O eixo da atual BR-163 é um
espaço cuja evolução se articula em
dois tempos: o tempo longo de uma
história “sem história” ou ocultada –
até meados do século XX, os Kayabis
resistiram à entrada do branco em Fig. 2: Os primeiros ‘contatos’, ou melhor, a única maneira de
fotografar o povo Kranhacãrore era sobrevoar a sua aldeia: os
seu território –, e o tempo curto que indígenas assustados tentavam flechar o A-19. Fonte: Arnt et al.,
1998, p. 27.
aborda o processo de territorializa-
ção recente, sinônimo de uma ocupação humana agressiva. Até 1970, esse território foi per-
corrido apenas pelos indígenas, por algumas expedições de “bandeirantes” e pela expedição de
Peixoto de Azevedo no alto curso do rio Arinos – na primeira metade do século XX. Nos anos
1970, a construção da BR-163 determinou um novo modelo de valorização do espaço: aqui,
como alhures no Brasil, a rodovia motivou o avanço das frentes pioneiras.
Houve um choque no imaginário nacional. O encontro com os indígenas Panará foi
o mais divulgado “primeiro contato” de um grupo na época das telecomunicações moder-
nas. Durante anos, a busca dos índios gigantes foi acompanhada pela imprensa brasileira,
e pela estrangeira, com manchetes generosas e expectativas fantásticas. Em plena ditadura
militar, com o país embarcado na febre ufanista dos grandes projetos do “Brasil grande”,
como o Plano de Integração Nacional, a Transamazônica e a UHE de Itaipu, a presença
de índios extraordinários no caminho do progresso reativou os fantasmas da identidade
brasileira, dramatizando, aos olhos de todos, uma colisão da história com a pré-história.
Envoltos pela mística do “bom selvagem”, os Panará eram ainda mais notáveis, mais altos,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
mais nobres, mais fortes e mais misteriosos – e tão inverossímeis quanto intrigantes.

2004 – a estrada dos colonos

País de dimensões continentais, o Brasil teve na economia de fronteira e na geopolí-


tica dois núcleos centrais de sua formação. Becker (1997, p. 12).

A importância e a originalidade da colonização no Brasil estão na sucessão de ciclos


econômicos, que se caracterizam pela conquista de terras virgens e pelo ganho considerável
87 //
de áreas destinadas à produção
agrícola. O fenômeno da co-
lonização agrícola faz apelo à
noção de fronteira que está em
constante progressão. Ele cons-
titui um verdadeiro fato social e
representa, horizontalmente, o
processo de reprodução da so-
ciedade brasileira.
Até 1964 as políticas go-
vernamentais para a economia
brasileira tiveram um caráter
aleatório e isolado, sempre
respondendo às oscilações do
mercado internacional. A partir
da tomada do poder pelos mi-
litares (março/1964), há uma
“redefinição” capitalista com
uma dinâmica de reprodução
de capitais em bases políticas e
institucionais bem definidas e
expressas claramente nos planos
Fig. 3: Área de influência da BR-163. Fonte: Venturieri et al. (2010, p. 43). de desenvolvimento. Instituiu-
se uma política socioeconômica
“[...] que incentiva todas as formas de concentração de capitais segundo uma linha de
argumentação que ressalta a eficiência e a produtividade atribuídas dominantemente às
economias de escala” (Passos, p. 1998, p. 43).
88 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Nos 21 anos dos governos militares (1964-1985) a política brasileira se orientou pelos
princípios da segurança e do desenvolvimento. Tratava-se de obter altos índices de cres-
cimento econômico sob o controle do Estado, a fim de atingir os “objetivos nacionais
permanentes” sintetizados na meta do Brasil-Potência: ingresso do Brasil no mundo de-
senvolvido até o final do século.
Sendo o capital um fator internamente escasso, os níveis de acumulação passaram a
perseguir uma nítida e acentuada tendência para a concentração e o monopólio – uma
constante dirigida a todas as formas: agricultura, indústria, bem como nos diferentes seto-
res como o financeiro, imobiliário etc. Sob tal ímpeto de diversificação, o capital dirige-se
à terra (fator fixo) no sentido de expansão espacial, buscando atuar e apoderar-se de áreas
virgens de setores inexplorados. Um amplo movimento de multiplicação de oportunida-
des de investimentos dirigiu-se do “core” econômico no Sudeste para múltiplas fronteiras
nos espaços nordestinos, do Centro-Oeste e da Amazônia. E o modo de dirigir-se à terra
passou a se revestir de uma agressividade em termos ainda não atingidos.
O desenvolvimento regional pressupunha dois tipos de ação:
• Políticas públicas de desenvolvimento de infraestrutura no quadro do PIN, de
modo a ser coerente com o discurso de “homens sem-terra para a terra sem homens”,
e seleção de projetos de colonização agrícola coordenada pelo INCRA e de Polos de
Desenvolvimento;
• Ação privada baseada em investimentos em vários setores da economia, sobretudo
na pecuária, extração de minerais e industrialização.

No início a colonização esteve longe de atender às expectativas do ambicioso projeto


do governo militar. Em 1974, os custos de construção da rodovia já haviam excedido em
três vezes o orçamento inicial, e as vicinais não eram abertas; as sementes de arroz for-
necidas aos colonos em 1972-1973 não eram adaptadas ao clima local, o que provocava
a perda de colheitas inteiras e uma queda da produtividade, agravada pelo declínio dos
preços. A região, dadas as suas características ecológicas e às técnicas agrícolas então dispo-
níveis, jamais se tornaria o “celeiro do mundo” a curto prazo, como se esperava. A partir
de 1974, o governo volta a privilegiar exclusivamente a empresa privada para a ocupação
da região, agora também sob uma nova forma – a da “empresa rural familiar”.

Do homem sem-terra à terra sem homem

A história recente da inserção da ‘Amazônia legal’ ao capital oligopolista – nacional e


internacional – é deflagrada quando o então Ministro do Planejamento Roberto Campos
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lança em 1965, a bordo do Transatlântico Rosa da Fonseca, a “Operação Amazônia”.
Em 1970, o ‘projeto de modernização acelerada’ proposto por Campos é redefinido,
e, com apelos ideológicos, é lançado o “Plano de Integração Nacional” (PIN), através do
Decreto-Lei 1.106 (Brasil, 1970b), que determina o uso de 30% de fundos de incenti-
vos fiscais para o financiamento de uma estrada, a “Transamazônica” (BR-230), de 5000
quilômetros.
O deslocamento de camponeses de áreas submetidas à “pressão demográfica” é ofi-
cializado, e o discurso de “ligar o homem sem-terra do Nordeste à terra sem homem da
Amazônia” é posto em prática, de forma caótica e socialmente injusta.
89 //
O próprio INCRA altera os seus objetivos segundo o momento político, por exemplo,
quando muda a “colonização social”, voltada para camponeses mais pobres (1970-1974),
para a “colonização comercial”, caracterizada pela venda de terras a grandes fazendeiros
(1975-1979).
As primeiras ondas de migrantes pioneiros, nas décadas de 1950 e 1960, foram logo
seguidas pelos grandes proprietários e interesses comerciais, ansiosos para se locupletarem
dos generosos incentivos dados pelo governo, com a instalação de fazendas de criação de
gado, atividades madeireiras e de outro tipo, bem como para simplesmente deixar ociosa a
terra como garantia especulativa contra a inflação. Embora nas fases iniciais da colonização
houvesse ampla oportunidade para pequenos agricultores criarem um meio de sustento na
Amazônia, o ingresso subsequente de capital comercial e especulativo tornou a lua-de-mel
de curta duração, e eles passam a sofrer a pressão crescente para abandonar suas terras, que
são absorvidas pelas empresas maiores. Esse padrão reflete-se claramente nas estatísticas
sobre propriedade nas zonas de fronteira mais antigas, onde a terra se tornou tão concen-
trada como em todo o resto do país.
Entre 1970 e 1974 o INCRA priorizou o assentamento de colonos pobres em várias
áreas da Amazônia Legal, conforme proposta do projeto Polonoroeste, atendendo a três
objetivos básicos: (1) “objetivo econômico” – promover a agricultura para aumentar a pro-
dução de alimentos para abastecer o mercado interno e para a exportação; (2) “objetivo de-
mográfico” – isto é, é frear o êxodo rural e reorientar para a Amazônia o fluxo que se dirige
para as grandes metrópoles do Sudeste; (3) “objetivo social” – diminuir as tensões sociais
provocadas pelo latifúndio no Nordeste e pelo minifúndio no sul do País.
O segundo projeto concerne aos cerrados, cujos solos eram avaliados como pobres
e impróprios para a agricultura até 1970. A partir de fortes investimentos, graças aos
progressos da agricultura e ao desenvolvimento das comunicações, os cerrados atraem os
“sulistas” para as áreas do Planalto Central, tendo a soja como carro-chefe de uma agroin-
dústria exportadora. Nesse caso, priorizam-se os agricultores provenientes da região Sul,
90 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

mais aptos e capazes para desenvolver uma agricultura moderna e competitiva voltada,
essencialmente, para os mercados internacionais.
As sucessivas mudanças dos “planos de desenvolvimento”, ao sabor das conjunturas
políticas e econômicas, contribuíram para a falência da grande maioria dos projetos de
colonização – seria mais correto denominá-los de transferência de colonos –, conforme
podemos constatar a partir das viagens de estudos que realizamos nos últimos trinta anos
ao longo da Cuiabá-Santarém e da Transamazônica.
O destaque no trecho entre Novo Progresso e Trairão está na presença das centenas
de grandes serrarias que motivam o desmatamento e, também, o surgimento de inúmeras
corruptelas – pequenas vilas. Novo Progresso já desponta como centro aglutinador das
Fig. 4: Trecho da BR-163, entre a serra do cachimbo e a Fig. 5: Trecho da BR-163, entre a serra do cachimbo e
cidade de novo progresso/PA revela o desmatamento em a cidade de novo progresso/pa revela o desmatamento
1997. Fonte: Acervo do autor. em 2007. Fonte: Acervo do autor.

atividades ligadas ao comércio de madeira e dos serviços gerais. As “pequenas” clareiras,


pouco perceptíveis na escala da imagem Landsat (1:250.000) – figuras 4 e 5, acusam a
presença de “sulistas” que se deslocam do Médio Norte do Mato Grosso, notadamente, e
mantém a expectativa de plantio da soja. Assim que a BR-163 seja asfaltada.
No ano de 1985, chegaram ao território da atual de Novo Progresso mais de duas mil
famílias que foram desalojadas pela formação do reservatório da Hidrelétrica de Itaipu. A
indenização das terras e benfeitorias dessas famílias de paranaenses foi efetuada a partir de um
valor muito baixo. No entanto, o governo acenou e orientou o deslocamento desse grupo para
terras da Amazônia: terras baratas, férteis e de muitas oportunidades, segundo o discurso do
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
momento. Essa política de “integrar para não entregar” atendia, na verdade, a dois objetivos
do Governo Federal. Primeiro, evitar conflitos em áreas de dinâmicas territoriais negativas às
populações locais; segundo, povoar as terras sem homens, os “vazios” demográficos.
A essa leva de colonos “sulistas” se acrescentam os nordestinos, que chegaram à região
via Itaituba, se instalaram no Alto Tapajós e se dedicaram a atividades garimpeiras, uma
das últimas fronteiras em busca da sobrevivência.
Com a chegada dos paranaenses acontece a construção de casas de melhor padrão em
Novo Progresso e o surgimento mais regular da agricultura e pecuária.
Uma das tradições dos colonos paranaenses se manifestou em Novo Progresso, a par-
tir das serrarias e madeireiras, tendo reflexos na economia local-regional e no aumento
91 //
da população: dois mil na área urbana de Novo Progresso no momento da emancipação
(1992) e 34.000 mil, segundo o censo do IBGE, no ano de 2000.
O maior problema dessa região está na chamada “questão fundiária”, pois o Governo
Federal, o Incra e o Ibama não conseguiram acompanhar toda essa rápida dinâmica so-
cioambiental e, portanto, foram ineficientes no cumprimento dos papéis que lhes cabiam
O trecho entre Trairão e Santarém se notabiliza: (a) pela presença da Floresta
Nacional do Tapajós; (b) pelo desmatamento efetuado no território entre a BR-163 e a
Transamazônica/Rio Xingu, ou seja, nas áreas de assentamento de colonos, a partir de
1972 (foto 6) que, atualmente, se dedicam à cultura da pimenta-do-reino e da lavoura
branca. Muitos declararam que estão à espera dos sulistas/plantadores de soja para, então,
venderem os seus lotes (100 hectares) e se deslocarem para o interior da floresta amazônica,
nos Travessões.
No início, o Incra fornecia transporte gratuito ao futuro colono e à sua família, desde
o lugar de origem até à agrovila. O colono adquiria o lote rural, cujo pagamento deveria
acontecer ao longo de 23 anos, a juros baixos ou a juro nenhum. Segundo o Plano, seria
construída para cada colono uma casa simples dotada de utensílios, sendo desmatados dois
hectares do terreno pelo governo, que se comprometia a financiar novos desmatamentos
mais tarde. O Ministério da Agricultura, através do Incra, se comprometia a “instalar água
encanada e eletricidade em todas as moradias, e a pagar um salário-mínimo, ao colono,
nos primeiros seis meses”: uma sedução! Irresistível para a população pobre. O discurso do
Incra foi esquecido e o que constatamos é um quadro de pobreza e de frustração daqueles
que foram atraídos para a beira das grandes rodovias transamazônicas que, de forma mais
pertinente e coerente, deveriam ser chamadas de transmiserianas.
Muitos colonos declaram que estão à espera dos sulistas/plantadores de soja para,
então, venderem os seus lotes (100 hectares) e se deslocarem para o interior da floresta
amazônica, nos Travessões. As “agrovilas” implantadas ao longo da BR-163, a intervalos
de 10 km, compreendem uma área de 100 hectares, onde estão assentadas as moradias dos
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colonos, uma escola primária, uma capela ecumênica, um pequeno armazém, uma farmá-
cia e uma clínica, sendo dirigidas por Assistente Rural. Muitas dessas agrovilas retratam
a frustração do Projeto Incra e dos próprios colonos e se encontram em estado de total
pobreza e esquecimento por parte dos gestores públicos.

2011 – Pavimentando o corredor

Apesar de batizada como “Estrada dos colonos”, a BR-163 vai, progressivamente, se


revelando como “Corredor de exportação”. No ano de 2011, realizamos uma viagem de
Fig. 6: De Trairão a Santarém – de oeste para leste: o rio
Tapajós, a Flona do Tapajós, a BR-163 e a área de assen- Fig. 7: As “dunas continentais” da Serra do Cachimbo:
tamento de colonos que se estende até o rio Curuá: re- elevadíssima potencialidade erosiva (25/08/2004).
presado pela barragem da PCH do Curuá (30/10/2016). Fonte: Acervo do autor.
Fonte: Acervo do autor.

Fig. 8: Posto de Fiscalização na vila de Morais de Fig. 9: Uma boa parte da madeira explotada da floresta
Almeida/PA (24/08/2004). Fonte: Acervo do autor. amazônica é transportada de forma “clandestina” e escapa
ao controle do Ibama, qualquer que sejam as condições
de transporte (27/08/2004). Fonte: Acervo do autor.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 10: A pimenta-do-reino, principal cultura dos Fig. 11: Casa de Caboclo: pobreza e isolamento.
colonos instalados pelo Incra (1972) em lotes de cem Proximidades de Rurópolis/PA (26/08/2004).
hectares. Atualmente, essa cultura e os colonos, em crise, Fonte: Acervo do autor.
aguardam a chegada dos sulistas para, então, venderem o
lote e se deslocarem mais para o interior da floresta: po-
breza faz mal, também, ao meio ambiente (26/08/2004).
93 //

Fonte: Acervo do autor.


estudos desde Cuiabá até Santarém. Nessa viagem, constatamos que o essencial, em termos
de dinâmicas socioambientais e de dinâmicas territoriais, estava acontecendo no municí-
pio de Novo Progresso, por conta das operações da Polícia Federal e do Ibama no combate
ao desmatamento ilegal.
Outra dinâmica se dava por conta da pavimentação de trechos da BR-163, nota-
damente, entre a Serra do Cachimbo/divisa dos dois estados e o município de Novo
Progresso/PA.
A partir dessas duas situações relevantes, dirigimos as nossas investigações para as
cenas e cenários prospectivos na percepção de alguns agentes e sujeitos. Os depoimentos
mais recorrentes, dos sujeitos e agentes instalados na BR-163, notadamente os do setor
madeireiro, cujo polo estava em Novo Progresso, estão explícitos abaixo:
• até ao ano 2000 a fronteira de exploração madeireira se estendia sem limites [...].
Atualmente, a base legal para o desenvolvimento está definida: (a) pela Constituição
Federal: a área máxima legal de cada propriedade rural na Amazônia está limitada
a 2.500 ha;
• a região de Novo Progresso – e da Amazônia como um todo – atraiu muitos sulistas;
• em 2003 o Governo Federal começou a (re)discutir o asfaltamento da BR-163 e,
então, constatou-se que ‘não existe governo;
• em 2003, a regularização fundiária entra na pauta dos debates em torno do proces-
so de ocupação sustentável da Amazônia: 2.500 ha, estabelecido pela Constituição
Federal de 1988, tem como critério o “módulo fiscal” que, na Amazônia é de 100
ha/cada módulo; em Novo Progresso o módulo fiscal tem área de 75 ha;
• foi definido o TAC – Termo de Ajustamento de Conduta – para viabilizar as ati-
vidades de extração da madeira na região. O TAC tinha prazo até 2004. A renova-
ção do TAC foi negada com a alegação/proposta de regularização: Lei de Florestas
Públicas. O governo não conseguiu pôr em prática essa lei;
• a pecuária, em grande expansão na região: atividade ilegal, desmatamento ilegal. Os
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desmatamentos, seguidos de queimadas, para efeito de formação dos pastos artifi-


ciais, queimam a ‘madeira de lei’. Com a saída do TAC o governo engessou a região.
Equívoco: impediu a extração de madeira e ‘esqueceu’ a expansão da pecuária. O
governo fechou as empresas legais, e isto favoreceu o ilegal. O governo não faz a
transição, não define o que fazer enquanto a lei não é aplicada. A região não tem um
marco, uma referência legal. A cena atual: madeira e pecuária.

As fotos, a seguir, mostram o essencial da realidade da BR-163, em 2011, notadamente


os trabalhos de pavimentação.
Fig. 12: Terraplanagem, para receber a pavimentação, no Fig. 13: A precária ponte de madeira, em trecho da BR-
trecho da Serra do Cachimbo/PA (19/07/2011). Fonte: 163, proximidades de Trairão/PA (09/09/2009). Fonte:
Acervo do autor. Acervo do autor.

Fig. 14: Trecho da BR-163, na Serra do Cachimbo/


PA, pavimentada (19/07/2011).
Fonte: Acervo do autor.

2016 – O avanço dos sojicultores

O movimento de expansão de fronteira, fortalecido nos anos 1970 com os programas


governamentais que consolidaram a colonização nas margens dos grandes eixos rodoviá-
rios, abriu espaços à reprodução da pequena produção familiar e de sua constituição como
ator social que irá definir em larga escala a dinâmica política na atualidade de certas áreas As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

como a BR-163. A sucessão na terra por novos atores capitalizados, grandes empreendi-
mentos de infraestrutura portuária, minerais, de energia, de madeira e agronegócios se
contrapõem pela racionalidade instrumental e práticas de gestão com as lógicas e modelos
de funcionamento ainda dominantes em certos espaços dos municípios sob influência do
asfaltamento da BR-163.
A expectativa de asfaltamento da estrada tem mobilizado novos atores e atividades em
direção do Mato Grosso para Novo Progresso, Castelo de Sonhos e Moraes de Almeida,
pontos de encontro de antigas e novas atividades econômicas. Espaço também de aumento
de tensões e conflitos, locais e globais, em torno de projetos econômicos e políticos, mas
com domínio de mercado.
95 //
Certamente a área de influência da BR-163, do lado paraense, tem sua importância
destacada por se constituir uma área de expansão da fronteira da soja, no movimento do
Mato Grosso em direção à Calha Norte do rio Amazonas. Esse é um movimento importante.
Porém a expansão sojeira chega ao Pará também através do Maranhão, ganhando as terras de
Paragominas e do Tocantins em direção ao sudeste do estado, na linha sucessória da pecuária
e da atividade madeireira. O crescimento da área ocupada pela soja na última década foi mais
expressiva no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e em Goiás, fortalecidos pela alta produti-
vidade das plantações de soja nos anos 1990. Ainda que a produção do Pará seja inexpressiva
comparativamente, o avanço da produção de grãos constitui uma expectativa para grandes
empresas que apostam grossos investimentos de infraestruturas para logística portuária e de
transporte, na expectativa do desenvolvimento futuro do agronegócio.
Os grandes grupos industriais e de logística de transporte instalados no Mato Grosso
deslocaram-se para o norte, localizando-se estrategicamente na calha do rio Amazonas, como
estrutura de domínio no grande curso, a exemplo dos grupos Bunge, ADM, Maggi e Cargill.
A valorização das terras causada pela entrada dos sojicultores na região do planalto
santareno e imediações gerou dois processos diretos: a concentração de terras por meio da
compra e da grilagem e a transformação de terrenos antes considerados inviáveis para a
atividade extrativa e agrícola no rol de opções de investimentos.
A migração de camponeses expropriados pelas terras mais baratas gerou novas frentes
de desmatamento em regiões de fronteira revitalizada. Os camponeses vendem ou perdem
suas terras e, em troca, buscam novas áreas onde possam desenvolver a agricultura familiar
em áreas maiores ou de igual tamanho.
A ocupação e a colonização na parcela paraense da BR-163 se deu dentro de uma ma-
triz cultural e de um momento em que as políticas públicas e, notadamente, as empresas
colonizadoras não tiveram o mesmo dinamismo observado na parcela matogrossense.
96 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 15: Novo Progresso: da fronteira madeireira à fron- Fig. 16: O Porto da Cargill, em Santarém, na confluência
teira da produção de grãos! Em 2015, foram instalados no do rio Tapajós com o Amazonas: cujo suporte logísti-
município de Novo Progresso 06 secadores para atender a co atraiu os sojicultores para a Calha do rio Amazonas
produção de soja-milho que se realiza em áreas de pasta- (15/09/2004). Fonte: Acervo do autor.
gens degradadas (13/04/2016). Fonte: Acervo do autor.
A forte atração e fixação de pessoas e a circulação de mercadorias em cidades conside-
radas polos – Novo Progresso, Santarém, Altamira e Itaituba – têm provocado uma maior
concentração de serviços públicos e de infraestrutura em seus espaços microrregionais.
Essas cidades desempenham um papel de comando da economia regional, dada a con-
centração populacional e de serviços, que não só incrementa percentuais significativos de
adensamento populacional nas cidades circunvizinhas, como difunde seus dinamismos.

2020 – A calha do rio Amazonas: onde a estrada acaba e o rio começa

A Calho do rio Amazonas, alvo dessa abordagem geo-foto-gráfica, é constituída pelos


municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos.
O padrão de ocupação do território sempre foi de dispersão, com pequenas localidades
distribuídas ao longo das calhas de rios, acompanhando as suas várzeas, áreas mais propí-
cias ao plantio e que permitiam fácil deslocamento (Heckenberger, 2005).
O estabelecimento do terminal graneleiro da Cargill motivou o interesse das terras do
planalto santarena, por parte das grandes empresas de grãos do Mato Grosso.
A logística envolvida na chegada da soja ao porto compreende o seu transporte por
via rodoviária até Porto Velho/RO e depois de balsa passando por Itacoatiara, no rio
Amazonas, até Santarém. Tal trajeto representa uma diminuição em até 1000 km em re-
lação a Paranaguá, porto através do qual grande parte da soja do cerrado é ainda escoada.
Em 2003, ocorre o que já se convencionou chamar segunda onda de invasão da soja
na região de Santarém. Grandes produtores começam a ocupar áreas de terras devolutas
ao leste (Gleba Pacoval) e ao sul (Projeto de assentamento do Mojuí I e II) do planalto
santareno. Parte dessas áreas era de floresta primária e está demarcada em lotes maiores do
que a média até então observada (maiores de 2500 ha) (Becker, 1995).
Simultaneamente, esses grandes sojicultores começam um processo de compra de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
áreas de produtores familiares, que culmina com a simples expulsão dos agricultores re-
manescentes das áreas de maior especulação.Consequências imediatas desse processo de
especulação fundiária são o êxodo rural, com a migração de muitas famílias para a área
urbana de Santarém, e a fuga para áreas de terras devolutas ou para regiões mais afastadas
do próprio planalto, como o PA Corta Cordas.
A partir de 1997 o agronegócio da soja avança na região do oeste do Pará, principal-
mente por incentivos governamentais e o apoio do Banco da Amazônia (BASA), apoiando
principalmente os grandes produtores rurais, deixando à margem a agricultura familiar.
De início ocorre, por parte dos sojicultores, a compra de lotes da agricultura familiar que
não tinha suficiente apoio técnico e financeiro.
97 //
A soja foi trazida para a região santarena por meio do contato direto de governantes
locais, que na década de 1990, se dirigiram para o Mato Grosso e estimularam os produ-
tores daquele estado a se instalarem em Santarém. O planalto santareno era propício à
mecanização do solo e as terras nessa época eram baratas, o que facilitou o ingresso da soja
no município, porém, não houve nenhum tipo de estudo dos impactos que a soja poderia
desencadear às terras, aos rios, igarapés e aos povos locais.

Fig. 17: Uso da terra na Calha do rio Amazonas, registrada para o ano de 1990. Fonte: Acervo do autor.
98 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 18: Uso da terra na Calha do rio Amazonas, registrada para o ano de 2017. Fonte: Acervo do autor.
Fig. 19: Algumas pequenas parcelas de agricultura tradi- Fig. 20: Sede de estabelecimento de produção de grãos,
cional ainda resistem ao avanço da grande propriedade no entorno da Flona do Tapajós. Observa-se que essa
mecanizada. Na foto, terreiro com pimenta-do-reino, área, segundo as diretrizes do ZEE-BR-163 é determi-
Comunidade de Boa Esperança (02/09/2019). Fonte: nada aos assentados rurais para agricultura/pecuária não
Acervo do autor. mecanizada (23/08/2018). Fonte: Acervo do autor

Já no ano 2000, observa-se a expansão da agricultura mecanizada, tanto no entorno


de Santarém, mas, notadamente, em direção ao Curuá Una, no município de Mojuí dos
Campos, por uma relação direta: a compra das pequenas propriedades pelos sojicultores,
pois elas ofereciam a vantagem de já estarem desmatadas.

Considerações finais

Os municípios do planalto santareno (Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos)


passam por profundas transformações em sua paisagem, desde o final da década de
1990, quando tiveram início as grandes plantações de soja na Calha do rio Amazonas.
Esse modelo implicou a alteração de uma ‘geografia da seringueira’ para uma ‘geografia
da soja’, esta última contando com o fomento estatal e com o mercado internacional
muito aquecido.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
A constatação da ineficiência do Zoneamento Ecológico e Econômico parece seguir
o mesmo destino de parte dos projetos do INCRA, e a pressão do agronegócio contribui
para descaracterizá-lo. Como o território é fruto da sociedade, faz-se necessário conhecê-la
através de levantamento das condições socioambientais que possam subsidiar a implemen-
tação de políticas alternativas para amenizar os efeitos da insustentabilidade.
Consequências imediatas do processo de especulação fundiária são o êxodo rural, com
a migração de muitas famílias para a área urbana de Santarém, e a fuga para áreas de
terras devolutas ou para regiões mais afastadas do próprio planalto, como o Projeto de
Assentamento Corta Cordas. Esse segundo movimento gera, na disputa por terras devolu-
tas, um novo foco de tensão entre os sojicultores e os camponeses.
99 //
A ocupação territorial desordenada e a exploração predatória dos recursos estão
igualmente vinculadas a uma economia urbana marcada pela alta concentração da
renda, pela precariedade do emprego e pela ausência de acesso da maioria da população
aos serviços básico.
As sucessivas mudanças dos ‘planos de desenvolvimento’, ao sabor das conjunturas
políticas e econômicas, contribuíram para a falência da grande maioria dos projetos de
colonização. A nossa conclusão está voltada para algumas variáveis que apontam para a
insustentabilidade do modelo de desenvolvimento regional:
• Um modelo excludente: no esforço de escolher uma imagem que seja reveladora do
ambiente da fronteira atual eu diria que essa imagem é o da ‘exclusão’. A fronteira se
organiza em função dos mercados e das conjunturas momentâneas; ela alterna fases
de prosperidades com fases de depressões, de regressões. O sucesso no aumento da
produtividade não é revertido em benefício do produtor e nem mesmo do meio
ambiente. A fronteira continua avançando, mesmo que essa mobilidade não tenha
respaldo numa possível necessidade de produzir mais. Há muito mais áreas desma-
tadas do que as áreas efetivamente ocupadas economicamente.
• Um modelo produtivista – após trinta anos o agronegócio conhece o mais forte de-
senvolvimento, sustentado pela necessidade de o Brasil obter divisas a partir de
produtos exportáveis como a soja. A superfície plantada aumentou 43% no Brasil
entre 1980 e 1990, e em mais de 150% no Mato Grosso.

A Amazônia está na mídia mundial. Fala-se muito da floresta, da biodiversidade. Fala-


se pouco do homem, dos povos da floresta.
Ao longo das minhas várias viagens e das permanentes reflexões sobre as dinâmicas
socioambientais e territoriais presentes no universo amazônico, debrucei-me sobre as ima-
gens de satélite, mas também me nutri muito das narrativas dos colonos, do fotografar e
ler a paisagem, das esperanças e das agonias de quem já era amazônico e de quem se tornou
100 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

amazônico por opção ou por necessidade, enfim, me nutri e gostei do tempero do “pó
colorido” da estrada.
Não é pertinente/coerente o debate sobre a problemática amazônica que não contem-
ple, prioritariamente, o homem que lá vive: a grande maioria dos colonos não é de intru-
sos, devastadores. Eles foram atraídos pelas políticas públicas, notadamente as políticas
de ocupação e povoamento: não é justo e nem aceitável que a emergência de um novo
contexto político (proliferação das ONGs, fragilidade do Estado etc.) ignore e penalize os
colonos, os povos da floresta que lá chegaram para morar, trabalhar e sonhar.
A frase do colono Vicente, que migrou do Maranhão para Bela Vista do Caracol,
nos anos dos sonhos da Cuiabá-Santarém, ilustra bem o ânimo e o desânimo da grande
maioria dos colonos que chegou atraída pelo discurso do INCRA e agora sofre com a
falta de perspectivas nas regiões mais estagnadas do país: “Éramos todos jovens, sonhado-
res, com muita energia e com muita vontade de vencer. Hoje estamos velhos, fracos, pobres e
esquecidos”.

Referências bibliográficas

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102 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Áreas protegidas do Baixo Tapajós-PA:
abordagem pela perspectiva da paisagem-
-território

Márcia Aparecida da Silva Pimentel1

Introdução

O Estado do Pará, localizado na região da Amazônia brasileira, é marcado por gran-


de diversidade de paisagens que resultam, de modo geral, da relação entre a diversidade
do potencial ecológico, da exploração biológica e do uso e apropriação dos diferentes
grupos sociais que estão neste território (AB’SABER, 2003; BERTRAND, 1972).

No contexto da biodiversidade amazônica, povos originários, quilombolas e comuni-


dades tradicionais, principalmente extrativistas, vêm organizando seus territórios coexis-
tindo, geralmente em conflito, com outras formas de uso, como a pecuária, a agroindústria,
a mineração e exploração da madeira. A Floresta Nacional do Tapajós (Flona) e a Reserva
Extrativista Tapajós-Arapiuns (Resex) são duas Áreas Protegidas relevantes para a conser-
vação das paisagens e dos modos de vida das populações da Amazônia. Entretanto, a gestão
dessas áreas é complexa, uma vez que estão envolvidos diferentes grupos sociais, problemas
fundiários históricos, e interesses divergentes pelos usos dos recursos. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Historicamente, a instituição de Áreas Protegidas centrou-se na conservação das


paisagens para organismos biológicos (METZGER, 2003), sendo consideradas como
ilhas de biodiversidade circundadas por paisagens alteradas pela ação humana predatória
(FERREIRA, 2004, DIEGUES, 2008). Porém, desde a década de 1980, passou-se a vi-
gorar dentro das agências responsáveis pela criação e gestão de parques, a ideia de que o
sucesso da conservação dependeria diretamente da criação de alternativas, como a da per-
manência de populações tradicionais que promovem a sustentabilidade das paisagens dos
territórios em que estão inseridas. (SNUC, 2000, FERREIRA, 2004, PIMENTEL, 2019).
1
Universidade Federal do Pará. mapimentel@ufpa.br
103 //
No Brasil, Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Territórios Quilombolas
são considerados Áreas Protegidas. Em alguns casos, como na Flona Tapajós e na Resex
Tapajós-Arapiuns, contém sobreposição de territórios o que leva a disputas e conflitos
entre diferentes atores (IORIS,2014; CLAUZET et al. (2020).
Este artigo de síntese localiza-se no âmbito de um projeto de pesquisa maior, o
“Diagnóstico-prognóstico das transformações paisagísticas na Calha do rio Amazonas e no
assentamento Corta Cordas/INCRA”2. Especificamente, este texto, tem por objetivo re-
fletir a complexidade da relação paisagem-território (BERTRAND&BERTRAND, 2007;
PASSOS, 2021), na Flona Tapajós e da Resex Tapajós-Arapiuns, identificando na literatu-
ra consultada, as principais questões socioambientais que envolvem essas duas unidades.
Para tanto, a metodologia se apoiou no levantamento da produção científica do campo
da geografia, ecologia, antropologia, e em documentos técnicos oficiais, como o plano de
manejo dessas áreas. A partir desse material, foi realizada a sistematização de informações
sobre a natureza na Amazônia, organização dos territórios e formação das paisagens.

1. A paisagem natural entre os rios Amazonas e Tapajós

A paisagem é sempre o resultado de um conjunto, relativizado pela escala. Considerando,


inicialmente, o potencial ecológico da região pelas características geológicas, foi identifi-
cado que, em sua totalidade, é formada por arenitos intercalados por pelitos pertencentes
à Formação Alter do Chão que data do Cretáceo, e se configura na unidade superior da
Bacia Sedimentar do Amazonas (BSA). Esta bacia é uma unidade geotectônica alongada a
WSW-ENE, tendo seu limite oeste com a Bacia do Solimões marcado pelo Alto de Purús
e a Leste com a bacia do Marajó marcado pelo Alto de Gurupá. (CORTES, 2020).
Sob esta configuração, se assentou a bacia hidrográfica do rio Amazonas, destacando a
sua calha principal que é caracterizada como um sistema flúvio-lacustre (Figura 1). Sua for-
104 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

mação é resultante de um longo processo de transformações geológicas e climáticas. Próximo


à cidade de Santarém-PA, onde situa-se a confluência do rio Tapajós e Amazonas, no período
de vazante tendo os rios menor volume ficam evidentes na configuração do leito maior as
alterações ocasionadas pelos processos de erosão, transporte e deposição. (FARIAS, 2012).
Evidencias do processo de remodelação do seu leito do rio e, consequentemente, de
intensa erosão, conhecida como terras caídas, foram identificadas por Sioli (1985) e ob-
servadas pelos moradores da região. Este mesmo autor, classificou as águas do Amazonas

2
O projeto e pesquisa Diagnóstico-prognóstico das transformações paisagísticas na Calha do rio Amazonas
e no assentamento Corta Cordas/INCRA é Coordenado pelo Prof. Dr. Messias Modesto Passos (Unesp
Presidente Prudente). Aprovado pelo CNPq – Chamada n.º 40/2022.
como barrentas ou brancas, pelo transporte de material em suspensão proveniente dos
Andes; enquanto que as águas do Tapajós, cujas nascentes estão no Brasil central, são águas
claras por carregarem baixa quantidade de sedimentos e sólidos dissolvidos.

Fig. 1: (a) Delimitação da bacia Amazônica e altimetria regional, (b) projeção de minibacias e (c) detalhamento
da rede de drenagem. Fonte: Paiva et al.,2013

A herança fisiográfica e biológica contribuiu para uma fisionomia de baixos platôs, o


que caracteriza a porção centro-oriental da Amazônia. As unidades geomorfológicas, são
organizadas em três unidades principais, a região dos planaltos (Patamares do Tapajós),
com variação entre 100 e 300 metros de altitude que vão formar os divisores com a bacia
hidrográfica do Xingu a leste, a Depressão do Abacaxis, que marca o relevo na parte sul da
área e a Planície Amazônica localizada principalmente a norte e apresentada, neste trecho,
por um complexo sistema de ilhas, lagos, barras de acresção e terrenos inundáveis durante
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
o período das cheias ( CORTES, 2020).
Este mesmo autor, destaca que a desembocadura larga do rio Tapajós, assim como
outros tributários do Amazonas como o rio Xingu, Tocantins e rio Negro, é configurada
em vales “afogados” ou rias fluviais, que são definidas pelo alargamento súbito do canal,
cuja origem está associada às transgressões marinhas durante o Holoceno. Acrescenta-se
marcante rede de canais de drenagem que alimentam a bacia neste trecho.
No contexto climático, no predomínio do clima equatorial úmido, desponta na paisa-
gem três classes de floresta: Floresta Tropical Densa, Floresta Tropical Aberta e a Floresta
Tropical Pluvial com Palmeiras (ICMBIO, 2004).
105 //
A floresta tropical densa, também chamada de floresta ombrófila, ocorre em toda área
central do bioma Amazônico, acompanhando os rios Solimões, Amazonas e seus afluen-
tes, como o Tapajós. Nestas florestas são encontradas árvores de grande porte que podem
alcançar mais de 50 metros. Espécies como a castanheira do Pará (Bertholletia excelsa), gua-
riúba (Clarisia racemosa), sucupira (Diplotropis purpurea), seringueira (Hevea brasiliensis)
são típicas dessa área. (http://inct-bionat.iq.unesp.br/biomas/amazonia/)
A floresta tropical aberta foi desenvolvida em áreas de clarões, estão à margem da
floresta densa. Elas apresentam palmeiras, cipós, bambus e sororocas, que aproveitando as
frestas de luz na mata, colonizaram a região. Esta característica a classifica como área de
transição entre o bioma Amazônico e o Cerrado, portanto, é possível identificar espécies
vegetais que representam os dois biomas.
Entre as palmeiras tem destaque o babaçu (Orbignya phalerata), mumbaca (Astrocaryum
mumbaca), tucumã (Astrocaryum vulgare), inajá (Maximiliana martiana), distribuídas no alto
e baixo platô. na porção sul. A região central foi caracterizada por apresentar espécies similares
no alto e baixo platô da região. (ICMBIO, 2004). Os frutos, sementes e folhas são utilizadas
pelos moradores locais no cotidiano e como geração de renda do artesanato produzido.
De maneira geral, na Amazônia Centro-Oriental a floresta mantêm preservada,
em grande parte. Entretanto, a crescente ocupação ao longo das estradas, a atividade
agropecuária e a urbanização, tem promovido a degradação dos vários ecossistemas.
(SUEMITSU et al, 2013).

Na tabela 1, é possível relacionar tipologias de solo, relevo com a vegetação, resultando


em diferentes tipos de paisagem natural.

Tabela 1
106 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Plano de Manejo da Flona Tapajós, 2004.


2. Flona Tapajós e Resex Tapajós-Arapiuns: territórios criados para
preservação de paisagens

Afirmou Ab’Saber que a paisagem é sempre uma herança de processos fisiográfi-


cos e biológicos, e de patrimônio coletivo dos povos que herdaram como território
(AB’SABER, 2003). Bertrand (1972) disse que ela o resultado da combinação dinâmica,
instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que, está em perpétua evolução.
Essas duas visões se integram na perspectiva da paisagem-território.
É oportuno acrescentar ao tema da complexidade da paisagem, a reflexão apresenta-
da por Augustin Berque (2023) sobre pensamento-paisagem. O autor ressalta que nunca
se faltou tanto sobre paisagens como na época atual e, apesar disso, jamais observou-se
tanta destruição. Esta conclusão é assertiva, pois revela que a distância entre o pensa-
mento e as ações, no contexto amazônico, ações para efetividade da gestão ambiental.
Ao trazer para o debate o pensamento-paisagem, Berque mostra que as sociedades
ancestrais não pensavam sobre as paisagens, mas conseguiam criar estruturas organiza-
das, ou seja, essas sociedades viviam essa paisagem sem esse distanciamento científico
que faz da paisagem apenas um objeto.
Na Amazônia, a exploração territorial dos recursos naturais pelas comunidades an-
cestrais, que incluía o conhecimento sobre os ecossistemas de várzea e de terra firme, a
dinâmica de cheias e vazantes dos rios, os ciclos de reprodução da fauna e flora, estabe-
leceram modos de vida diferenciados. Exploração e manejo contribuíram para ativida-
des economicamente conectadas, culturalmente integradas e socialmente construídas
(MAGALHAES, 2013). Posto isso, defende-se, considerando vários estudos, que a for-
mação das paisagens das florestas amazônicas teve grande contribuição dos povos que
viviam na região, de coletores aos agricultores (COSTA et al, 2009) e estes foram res-
ponsáveis pela sustentabilidade dos sistemas florestais em função de suas práticas coti-
dianas. (POSEY,1996; FURLAN, 2006; ROCHA et al, 2021).
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Para elucidar essa complexa relação entre paisagem-território ancestral, adentra-se
na região do Tapajós pela toponímia. Tapajó é o nome que faz referência ao grupo in-
dígena que viveu na margem direita do rio Amazonas, próximo à foz do rio Tapajós, na
área do planalto, antes da chegada dos colonizadores. No século XIX, foram encontrados
registros de terra preta e cerâmicas na região, ao sul de Santarém: “tôdas essas moradias
antigas se localizavam em terra firme, ao abrigo da enchente. Não existem terras pretas, nem
outros vestígios de índios na faixa da largura de uma légua que se estende entre a margem do
Amazonas e o pé do planalto, ao sul de Santarém. É zona árida, arenosa e coberta de cerrado.
107 //
(NIMUENDAJÚ3, 1953). A rica descrição do etnólogo, aponta muitos elementos da
paisagem do baixo Tapajós. Desde elementos naturais, como o planalto e as várzeas e
os elementos da dinâmica da rede hidrográfica, aos aspectos socioculturais. Tudo indica
formação de paisagens.
A terra preta ou terra preta de índio (TPI) é nome dado aos solos escuros encontrados
na Amazônia que possuem elevada fertilidade química, que se contrapõe àquela dos solos
amazônicos, em geral pobres e ácidos. Esses solos férteis teriam sido resultado da prolonga-
da ocupação humana pré-histórica4. A formação desses solos é atribuída aos povos coleto-
res e horticultores, que viveram 1.000 anos antes da fase dos cultivos agrícolas intensivos,
coincidindo com a instalação da grande planície de inundação muito rica em biomassa
vegetal. (COSTA et al,2009). Do plantio à organização social, as paisagens culturais foram
construídas e organizadas por meio de atividades cotidianas, é possível que esse aspecto
esteja mais próximo do pensamento-paisagem de Berque.
Voltando à análise de Berque, o oposto ao pensamento-paisagem seria o pensa-
mento sobre a paisagem, se colocando à distância. Nesse sentido, entende-se que ela
(a paisagem) é a fisionomia de uma região. A paisagem-território: se define como um
fato geográfico territorializado/materializado. É um sistema territorial de complexi-
dade-diversidade, seja material ou natural. (PASSOS, 2021).

Algumas dessas paisagens-territórios foram transformadas em Áreas Protegidas, como


iniciativas de gestão ambiental para conservação da biodiversidade e de biomas ameaçados.
Essas unidades contribuem também para combater as mudanças climáticas, uma vez que
protegem cerca de 15% do estoque de carbono terrestre mundial (IUCN, 2010; SOARES
FILHO, 2016). Além destas funções ecossistêmicas, é importante reconhecer que, como
territórios formados por povos originários, quilombolas e populações tradicionais, contri-
buem para a formação do conceito de florestas culturais.
De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), a
108 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Floresta Nacional (Flona) é unidade de conservação de uso sustentável com cobertu-


ra florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso
múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica. Este território é de
posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites

3
Kurt Unckel (1883-1945) nasceu na cidade alemã de Jena e tornou-se etnólogo a partir da experiência de
contato e de pesquisa com povos indígenas no Brasil. Recebeu a alcunha de Nimuendajú (“o que fez seu as-
sento, o que se estabeleceu”, conforme tradução livre do linguista Aryon Rodrigues) pelos guaranis do oeste
paulistano, por volta do ano de 1905. Naturalizou-se brasileiro em 1920, adotando oficialmente o nome a
ele dado pelos indígenas. Fonte: http://portal.iphan.gov.br/indl/pagina/detalhes/1563.
4
Há evidências de ocupação paleoindígena, em sítios pré-cerâmicos no município de Monte Alegre datados
de 11.200 AP. (COSTA ET AL, 2009)
devem ser desapropriadas de acordo com o que dispõe a lei. Já a Reserva Extrativista
é um espaço territorial protegido cujo objetivo é a proteção dos meios de vida e a
cultura de populações tradicionais, bem como assegurar o uso sustentável dos recur-
sos naturais da área. (SNUC 2000).

Na bacia hidrográfica do rio Tapajós, que ocupa 6% do território brasileiro, constam


34 Terras Indígenas (TI) e 30 Unidades de Conservação (UC), sendo duas delas, a Floresta
Nacional do Tapajós e a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, localizadas no baixo curso
desta bacia. Ressalta-se que há sobreposição de territórios e que florestas, águas, bem como
as populações tradicionais que aí residem, são constantemente ameaçadas, contrariando
convenções internacionais (ICV, 2023).
No baixo Tapajós, as comunidades tradicionais têm suas terras tradicionalmente
ocupadas, reconhecidas com a criação de unidades de conservação de uso sustentável –
Reserva Extrativista (RESEX) e Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) – e dos
assentamentos ambientalmente diferenciados – Projeto Agroextrativista (PAE), Projeto de
Desenvolvimento Sustentáveis (PDS) e Projetos Agroflorestais (PAF). Estas são categorias
fundiárias cujas áreas são de domínio público, com usufruto da terra e dos recursos natu-
rais renováveis concedidos para as populações tradicionais (BENATTI, 2011)
A Flona do Tapajós está localizada na região oeste do estado do Pará, abrangendo
parte dos municípios de Belterra, Aveiro, Placas e Rurópolis. Ela está entre o rio Tapajós
e a rodovia BR 163 (conhecida como Santarém-Cuiabá). A unidade foi criada em
19/02/1974, com área de 582.149 mil hectares, atualmente, conta com 1.900 famílias. Já
a Resex Tapajós-Arapiuns, está na margem esquerda do rio Tapajós, entre os municípios
de Santarém e Aveiro. Sua criação data de 6/11/1998 com 647.611,00, abrigando 3.500
famílias. (ICMBIO, 2014)
Um mapa desenvolvido por pesquisadores de diferentes instituições brasileiras, (Figura
2) mostra a localização dessas Unidades de Conservação e das comunidades no seu inte-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
rior. Ressalta também os pontos de queimadas e a rodovia BR 163, que proporcionou a
ocupação, desde a década de 1970, no entorno da Flona Tapajós.
A criação FLONA, na década de 1970 foi efetuada no contexto das políticas de expan-
são das fronteiras amazônicas concebidas pelos governos militares daquele período. Nesse
período, essas políticas promoveram o estabelecimento não apenas de reservas florestais
para a produção de madeira, mas também de diversas outras reservas ambientais destina-
das à proteção integral. Estas ações foram reflexo de amplo de um ordenamento do ter-
ritório ligado à exploração de recursos florestais e à conservação ambiental na Amazônia.
(IORIS, 2014, BECKER, 2014).
109 //
Fig. 2: Localização das Unidades de Conservação: Resex Tapajós-Arapiuns e Flona do Tapajós Fonte: Freitas et
al. 2019.

Na época de criação desta unidade, muitas famílias tiveram que deixar suas terras.
Com a discussão do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), documento
que se transformou na Lei Federal no ano 2000, as Florestas Nacionais passaram a aceitar
a presença de grupos humanos que fossem reconhecidos como “populações tradicionais”,
e cuja ocupação precedesse à criação das reservas, passando essas populações a terem o
direito de permanecerem em suas terras. (IORIS, 2014)
O movimento para criação da Resex Tapajós-Arapiuns teve início na década de 1980
com a mobilização da população da margem esquerda do Tapajós contra a empresas que
110 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

exploram os recursos naturais da região. A chegada dessas empresas ressaltava o problema


da regularização fundiária e este foi o motivo da luta coletiva para a formação, no final da
década de 1990, desta unidade de conservação de uso sustentável. (ICMBIO, 2014)
Constata-se que a questão fundiária tem sido considerada como tema fundamental na
questão socioambiental da região. Na maioria dos casos, as políticas ambientais de preservação
de áreas florestais, quando excluem a população local, têm sido acompanhadas de grande ten-
são social diante de restrições à ocupação e limitação de uso dos recursos por comunidades lo-
cais. (FERREIRA, 2003; VAZ FILHO, 2013; BICALHO& HOEFLE, 2014; LIMA, 2018)
Numa espécie de síntese, a materialização dos processos naturais e dos conflitos entre
os territórios, convergem para a configuração de problemas socioambientais que se refletem
como ameaças as paisagens (naturais e culturais) amazônicas. Importante salientar o as-
pecto político institucional regional que reflete na gestão das unidades. Sobre isso, Becker
(2010 e 2014), afirma que é necessário compreender a dinâmica regional contemporânea
de transformação do Estado e do território que se converte em dois vetores, o tecno-indus-
trial e o tecno-ecológico. Portanto, as políticas públicas de planejamento regional devem
considerar esse aspecto para dirimir os problemas regionais.
A tabela 2 resume as questões socioambientais emblemáticas que envolvem a dimen-
são paisagem-território nas duas unidades de conservação.

Tabela 2 – Gênese das questões socioambientais na


Flona Tapajós e Resex Tapajós-Arapiuns
Origem questões socioambientais Referência
Dinâmica da Paisagem – A erosão e estabilidade do solo podem ser afetadas pelo Cortes (2020)
(predomínio do potencial clima, corpos hídricos, relevo e outras causas naturais. Nestas Farias (2012)
ecológico) regiões ocorre o fenômeno da “terra-caída”, desmoronamen- Suemitsu (2013)
to de terra.
– Mudança do padrão de chuvas que interfere nas atividades
produtivas.
Dinâmica do território-paisagem – Conflitos de territorialidade entre grupos indígenas e Benatti, 2011
comunidades tradicionais. Freitas et al. (2019)
– Conflitos relativos à criação de gado na RESEX Tapajós- Nobre et al. (2023)
-Arapiuns. ICMBIO (2004, 2014
– Queimadas decorrentes da abertura de roçados em áreas de e 2022)
floresta nativa. Bicalho & Hoefle
– Desmatamento próximo à BR 163 e às cidades. (2014)
– Pesca excessiva efetuada por embarcações “de fora” da Clauzet et al (2020)
Resex Tapajós-Arapiuns.
Dimensão Institucional – Vulnerabilidade das instituições de gestão. Becker (2010 e 2014)
– Políticas públicas regionais desarticuladas. ICMBIO, 2004 e
– Mobilização para representatividade e participação das 2014, 2022)
comunidades locais nas estâncias de decisão. Benatti, 2011
Organização: a autora.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Considerações finais

São muitas as pesquisas sobre a Flona Tapajós e Resex Tapajós-Arapiuns realizadas por
diferentes campos da ciência, desde a antropologia à ecologia política. Os estudos referen-
ciados neste texto, acrescentaram informações sobre a dinâmica das paisagens e sua relação
com os territórios do baixo Tapajós. Foi necessário, ainda que de forma breve, referenciar a
organização dos povos ancestrais como um contraponto aos modelos atuais de organização
do território que provocam os problemas socioambientais evidentes na região.
As áreas protegidas, incluindo as Unidades de Conservação de uso sustentável, como
aquelas aqui apresentadas, são importantes para proteção das paisagens e como garantia do
111 //
território e da territorialidade das comunidades que ali vivem. Entretanto a gestão dessas
unidades enfrenta grandes desafios.
Cabe ressaltar a importância dos planos de manejo e de uso, para o ordenamento ter-
ritorial. Esses instrumentos de gestão, contribuem para abrandar os problemas internos,
sobretudo dos vários territórios: comunidades tradicionais, terras indígenas e quilombolas,
e da relação destes com os recursos da natureza. Apesar disso, a vulnerabilidade institucio-
nal relacionada aos agentes responsáveis pela gestão em escala regional, ainda é o principal
fator do aumento das ameaças externas a estas Áreas Protegidas.

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114 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Paisagem e território nas terras da CTNP –
Estratégias e módulos de ordenamento

Humberto Yamaki1

O início da colonização das terras da Companhia de Terras Norte do Paraná – CTNP


no Norte do Estado do Paraná está para completar cem anos. Uma viagem pela região
permite identificar extensas áreas de plantio, o parcelamento de terras homogêneo, rede
de estradas pelo espigão e a Estrada Mestre ao longo da qual foram implantadas a ferrovia
e patrimônios. Definiram diversidade de usos e a organização do território. Permitem ob-
servar a passagem do tempo e tradições culturais (Tudor, 2014).

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1. Planta de Colonização das Terras da CTNP/CMNP (1955). Fonte: Yamaki (2003).

1
Coordenador do Laboratório de Paisagem UEL
115 //
O estudo da paisagem e território resultante de um extenso projeto de colonização é
complexo. Envolve a história oficial contada pela Companhia de Colonização através de
suas publicações, relatórios de burocratas, relato de projetistas, pioneiros, narrativas de
viajantes e exploradores. Além disso, a documentação oficial composta por dezenas de
decretos de colonização, concessão de terras e ferrovias. A interpretação de cartografia his-
tórica do Norte do Paraná inclui desvendar e interpretar silêncios e desvios, num período
em que informações sobre concessão de terras e elaboração de mapas eram sinônimo de
poder (Harley, 2018).
A análise de conjunto de dados e interpretações permite identificar um módulo de
colonização onde as colônias de imigrantes tiveram papel fundamental no controle e or-
denação do território.

Paisagem e território

A paisagem é resultado de ideais e padrões de articulação de componentes, associado


com as marcas gravadas no tempo. McClelland (1999) afirma a necessidade de entender
os processos de identificação e avaliação, documentação de paisagem rural histórica.
Segundo o autor, na falta de uma data precisa que definiram as características, o interva-
lo de cinquenta anos pode ser considerado. Os processos de identificação considerados
são: atividades e uso do solo, padrões de organização espacial, resposta ao ambiente
natural e tradição cultural. As características definidoras do caráter da paisagem são
formadas pelo conjunto: relevo, vegetação, rede de caminhos, demarcação de corpos
d’água e edificações.
Estudar a paisagem do Norte do Paraná, é entender as questões que definiram padrões,
tais como: a Estrada Mestre definindo o eixo principal, a ferrovia definindo distanciamen-
to de patrimônios, a distribuição em glebas tendo os córregos como eixo, as estradas no
116 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

espigão e a divisão em lotes de dez alqueires com acesso à água e estrada.


É preciso considerar também que, segundo Meinig (1979), “Toda paisagem é simbó-
lica, expressão de valores culturais, comportamento social, e ações individuais sobre locais
determinados, ao longo do tempo”.
Afirma-se que imigrantes de 38 nacionalidades adquiriram terras no Norte do Paraná.
Definiram uma paisagem etnográfica sobre um padrão de ordenação pré-existente.
Analisar as colônias e grupos de imigrantes permite também entender as questões
simbólicas, seus significados e integridade (McClelland. 1999). Assim, ordenar paisagem
e território foi uma estratégia chave nas atividades da Companhia de Terras Norte do
Paraná – CTNP.
Apesar da imagem de precariedade, as atividades de início de colonização eram múl-
tiplas e complexas. Envolvia a questão de terras, decretos de colonização e concessão de
ferrovias entre outros.
Não menos importante foram as várias excursões de burocratas e dirigentes da CTNP
a empreendimentos de colonização ao longo de ferrovias no Estado de São Paulo na déca-
da de 1920. Os modelos estavam ali. Parcelar em lotes de dez alqueires, projetar patrimô-
nios e instalar Núcleos Coloniais de imigrantes.

As missões e excursões inglesas de reconhecimento

As experiências britânicas ultramarinas são apontadas por alguns autores como antece-
dente na colonização do Norte do Paraná. Podemos afirmar, todavia, que, o modelo adotado
pela Companhia de Terras Norte do Paraná – CTNP estava nas fazendas e Núcleos Coloniais
de Companhias de Colonização situadas ao longo de ferrovias no Estado de São Paulo.
Uma série de missões e excursões britânicas visitaram o Estado de São Paulo e Paraná
na década de 1920. Em abril de 1921, uma missão inglesa chefiada por Arno Pearse, se-
cretário geral da Associação Internacional de Produtores e Beneficiadores de Algodão, vem
ao Brasil. Visitam as cidades de São Carlos, Ribeirão Preto (fazendas de café), Campinas
(Instituto Agronômico), Piracicaba (Escola Agrícola). Seguem para as ferrovias Noroeste
e Sorocabana. Pearse detalha a visita a Biriguy na linha Noroeste em Relato de Viagem
(1921).
A Colônia El Dorado, Biriguy, era um empreendimento de colonização da Companhia
de Terras, Madeira e Colonização (Cia Lumber) do escocês Robert Clark. O relatório apre-
sentado traz uma descrição detalhada do clima, das condições do solo, legitimidade de
documentação, clima e ocorrência de geadas, fertilidade, processo de derrubada da mata
ao plantio. Faz considerações sobre as ferrovias, distribuição de estradas, patrimônios e o
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
desenvolvimento do Núcleo Colonial.
Um grupo de dirigentes da Masters Cotton Spinners Association –sindicato inglês
e industriais ingleses visitou, fazendas e empreendimentos de colonização no Estado de
São Paulo ainda em 1921. Dentre elas estava novamente Biriguy da Cia Terras, Madeira e
Colonização (Cia Lumber). Posteriormente seguiram viagem aos estados de Minas Gerais,
Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco.
Lord Lovat, um dos personagens principais no empreendimento do Norte do Paraná
realizou três expedições nos Estados de São Paulo e Paraná entre o final de 1924 e início
de 1925. Tinham como objetivo visitar fazendas em produção, hortos florestais, fren-
tes pioneiras de colonização e finalmente, aquisição de terras para empreendimentos de
117 //
colonização. Um fato importante é que, nessas excursões participavam Ministros e burocra-
tas do governo brasileiro, Superintendentes de companhias ferroviárias como a Sorocabana e
Noroeste, além de dirigentes de outras companhias de colonização (Lindley, 1935).
Na última expedição, em abril de 1925, Lord Lovat, Arthur Thomas, Eckstein e Emilio
Castello partiram de São Paulo, visitam a Companhia Marcondes de Colonização em
Presidente Prudente SP e seguem até o Estado do Paraná. Em seguida visitam novamente
o Núcleo Colonial El Dorado da Cia Lumber. Estava definido o modelo que a CTNP iria
adotar no novo empreendimento.
Paralelamente, as missões inglesas adquiriram terras da Cia Lumber como a Fazenda
Guatambu (SP, 1924), Fazenda Jangada (SP, 1925) e 180 000 alqueires em Cantu,
Guarapuava PR.
Podemos afirmar que, as missões, além de aquisição de terras, haviam observado as
técnicas de colonização, parcelamento e cultivo de terras. Mais ainda, a possibilidade de
introdução de colonos imigrantes, notadamente japoneses. A formação de colônias shoku-
minchi de imigrantes japoneses em SP, visitados por Thomas, Lovat e Montagu serviram
de modelo à CTNP. Imigrantes da mesma província, mesmo navio, mesmas colônias an-
teriores, mesmo dialeto, direcionados a uma mesma colônia facilitaria a administração.
O empenho da Companhia de Colonização resultaria na publicação de um Mapa
sobre as Terras do Sindicato Inglês no Norte do Paraná. Identificava as estações com colô-
nias de imigrantes japoneses e apresentava a conexão com o Norte do Paraná, via Estação
Rubião Junior.
A posterior publicação da brochura Norte do Paraná – A Califórnia do Brasil (CTNP,
1931) traria detalhes maiores sobre as virtudes do empreendimento. Mostrava aos imi-
grantes japoneses que as Terras do Sindicato Inglês seriam uma excelente oportunidade.
Eram comparáveis aos empreendimentos da Nambei Tochi (Cooperativa de Colonização)
e BRATAC que iniciavam os trabalhos na região.
118 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Os topógrafos migrantes e Alexandre Razgulaeff

Na década de 1920 e 30, topógrafos imigrantes acompanhavam as novas frentes de


colonização. Possuíam variados graus de conhecimento técnico.
O topografo geodesista Alexandre Razgulaeff projetou as primeiras Plantas Parciais das
Glebas e o patrimônio Londrina (CTNP). Cita em entrevista (1972) a passagem de três
meses por Birigui na linha Noroeste, por volta de 1924.
Nesse ano de 1924, a Brasil Plantations Syndicate adquire a fazenda Guatambu
no Núcleo Colonial El Dorado. Importante empreendimento da Companhia Lumber.
Posteriormente, Razgulaeff trabalhou no “repique” de terras em Primeiro de Maio e
Sertanópolis PR. As terras parceladas tinham dimensão de 10 alqueires. Essa dimensão
era determinada no Decreto de Colonização (1907). Foi aplicada em empreendimentos
de colonização da época.
A passagem de Razgulaeff por Biriguy, a experiência no parcelamento de lotes rurais
nas margens do Tibagi, confirmam a origem do modo de parcelamento no empreendi-
mento da CTNP. As visitas de dirigentes a frentes de colonização ao longo das linhas
Noroeste e Sorocabana, traziam certeza no modelo a ser adotado: a implantação da estrada
de ferro e de automóveis, a localização de estações, a incorporação de estradas antigas,
a morfologia de patrimônios e o parcelamento em glebas tendo como eixo um córrego.
Revelam forte preocupação com paisagem e território.
Resultou na organização do empreendimento em módulos. A análise visual das terras
da CTNP possui, portanto, características de áreas homogêneas firmemente associadas à
hidrografia, relevo, solo e padrões culturais.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 2. Detalhe da Planta de 1930 sem patrimônio e as Duas Ferrovias: a EFCP ajustada (CTNP, 1925) e a
CFSPP (1928). Autor: Yamaki (2023)
119 //
Um detalhe da “Planta Parcial Número 1 de Colonização das Glebas dos ribeirões
Três Boccas, Jacutinga e Vermelho” é apresentada na Figura 2. Traz uma data manuscrita
1930 na cópia de 1932. É a mais antiga planta de colonização existente. Foi desenhada em
escala 1:40 000. É possível considerar que foi ajustada para incluir a planta do patrimônio
Londrina (1932). (Fig.2)
O empreendimento obedecia ao Decreto de Colonização 218/1907 PR (75 artigos),
1642/1916 (4 artigos) as Concessões de ferrovias EFCP ajustada (CTNP, 1925) e CFSPP
(1928), além de experiências anteriores de colonização no Estado de São Paulo (Yamaki, 2017).
Voltando à Figura 2. Nela são reconhecíveis dois eixos: NS e LO. Cruzam-se num quadri-
látero deixado sem parcelamento de lotes rurais, a 1,5km da Nova Divisa de Terras da CTNP.
O eixo Norte Sul era o ramal 2 da Estrada de Ferro Central do Paraná ajustada, trans-
ferida da Cia Marcondes de Colonização para a Companhia de Terras Norte do Paraná
CTNP.
A CTNP tinha como tradição, a não divulgação de seus acordos de transferência de
terras. Temos como alternativa, a análise dos Relatórios de Governo seus decretos, pareceres
e interpretação de contrato. (Yamaki, 2017). A interpretação do traçado do ramal 2 permite
reconhecer um eixo ramal que parte do rio Ivaí e segue até o rio Paranapanema. No trecho
que atravessa Londrina é possível reconhecer curvas e declividade de ferrovia de 2%.
O eixo Leste Oeste era a ferrovia CFSPP projetada pela MacDonald & Gibbs (1928-
-1932) no trecho Cambará à Serra de Apucarana. A Estrada de Autos utilizava uma antiga
picada que foi aproveitada para o projeto do Patrimônio Londrina.
O retângulo deixado livre de parcelamento, no cruzamento, foi denominado de
“Chácara”. Eram seus limites o ribeirão Coati, o Novo Limite das Terras CTNP (1927), o
Patrimônio Três Boccas (1929), a Fazenda Coati e Fazenda particular. Formavam um qua-
drado de faces irregulares em cujo centro foi projetado o patrimônio. Existem várias ver-
sões descrevendo essa área deixada livre, denominada de “Chácara”. Detalhamos a seguir.
120 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A “Chácara”

Nas publicações iniciais da CTNP, essa área livre em volta do patrimônio é descrita
assim: “Os povoados são circundados de sítios e chácaras com grande produção de fructas
e cereaes”. (Álbum de Londrina, CTNP 1938).
No mesmo ano, 1938, o 12° Relatório de Balanço da Paraná Plantations Ltd. foi
apresentado em Londres. Ali, os patrimônios eram tratados simplesmente como new and
older townships. Não havia nenhuma especificação ou indicação sobre um modelo ou ca-
racterísticas de entorno de cidades.
Publicada nos 50 anos da CTNP, o livro Colonização e Desenvolvimento (Moraes,
1977, p. 125) afirma:
“Todas as cidades da área colonizada pela CMNP obedecem a um plano urba-
nístico previamente estabelecido...Um núcleo urbano dividido em datas, destinadas
à construção de prédios comerciais e residenciais, é circundado por um cinturão
verde repartido em chácaras que servem ao abastecimento da população”.

Em nenhum momento há a descrição de que o cinturão serviria para algum outro


uso, de lazer ou industrial. “Chácara” era área de contenção de expansão desordenada do
patrimônio.
Uma aproximação possível sobre áreas livres nos patrimônios. O Decreto de
Colonização (1907), exigia junto aos patrimônios uma área para experimentos agrícolas.
Áreas ligadas à manobras, manutenção e apoio da ferrovia necessitavam também de áreas
de reserva próxima.

As colônias Shokuminchi e a relação com a “Chácara”

As missões e excursões de dirigentes de sindicatos, companhias de colonização e buro-


cratas do governo visitaram as Colônias Shokuminchi de imigrantes japoneses no Estado
de São Paulo, ao longo das ferrovias Noroeste, Paulista e Sorocabana. As características dos
imigrantes de se organizarem em grupos, terem um sistema de ajuda mútua e a educação
como diretriz devem ter impressionado os visitantes.
Os imigrantes japoneses eram instalados em pequenos grupos, de 60 a 200 colonos em
lotes de preços menores localizados longe da ferrovia. O fato de se dedicarem à agricultura
era um fator que incentivava a permanência. Seriam qualidades que interessavam ao em-
preendimento no Norte do Paraná. Para a companhia, facilitava sobretudo a comunicação,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
a administração, a manutenção de estradas e a educação de crianças. Assentar grupos de
imigrantes agricultores evitava a ocupação dispersa. Dava estabilidade ao empreendimento.
A CTNP publicou em junho de 1931 o livreto Norte do Paraná – Califórnia do Brasil.
Visava direcionar os imigrantes japoneses com restrição à entrada nos EUA e Canada.
As colônias shokuminchi Número Um (Dai ikku), Numero Dois (Dai Niku) e
Central (Chuo ku) foram implantadas em locais afastados, a alguns quilômetros do futuro
patrimônio Londrina. Em Dai ikku a Companhia de Terras doou dois alqueires para a
instalação da escola.
A estratégia de implantação de colônias, definindo os limites da futura “Gleba do
Patrimônio” mostrou-se eficiente. Apesar disso, nos mapas da CTNP, as Colônias
121 //
Shokuminchi não eram representadas em suas publicações. Mais uma vez a distorção, as
omissões relatadas por Harley (2009). (Yamaki, 2008)
Finalmente, pouco conhecido é o nome de Estação Yamato (nome mitológico do
Japão) que foi dado à estação Apucarana no Mapa das Terras do Sindicato Inglês (1934)
publicado em japonês. Teria sido um atrativo a mais aos imigrantes. Uma tentativa de
evocar a terra natal, construir um símbolo para trazer novos colonos.

“Chácara” e a relação com a “Gleba do Patrimônio”

No período de 32 a 35, o empreendimento da CTNP apresenta aumento no número


de compradores de lotes urbanos e rurais. O patrimônio crescia além do plano inicial,
e passa a haver a subdivisão de chácaras do entorno. Visando atender essa demanda, a
CTNP amplia a área de Chácaras até os limites da Colônia Shokuminchi. (Fig.3)
122 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 3. Relação “Chácara “e “Gleba do Patrimônio”, Autor: Yamaki, 2023

A Planta Parcial – Gleba do Patrimônio de Londrina (1935) 1: 20 000 e a série de


“Glebas do Patrimônio” são projetadas no mesmo ano. Definiam assim, a área de ex-
pansão, definindo controle e abrandamento da expansão não coordenada. As Colônias
Shokuminchi foram importante faixa de contenção, otimizando as características sociais e
culturais dos imigrantes japoneses.
O estudo da “Gleba do Patrimônio” leva à conclusão de que a faixa livre do patri-
mônio não era a “Green Belt das “cidades jardins”. (PURDON, 1925). Elas não foram
previstas para o lazer e nem para usos industriais.

Patrimônio

O Decreto de Colonização (1907) previa a implantação de sedes ou patrimônios em


Núcleos Coloniais (acima de 60 famílias num raio máximo de 12km). O mesmo ocor-
ria com o Decreto de Concessão de Ferrovias. Previa a implantação de estações e para-
das a cada 11 a 15km. Incentivava ainda a implantação de patrimônios junto a estações.
Portanto, os patrimônios como sedes de Núcleos Coloniais (chamadas glebas na CTNP)
estavam previstos desde o início.
No Álbum de Londrina (CTNP, 1938) constava: “As cidades, villas e povoados (da
CTNP), são como verdadeiros milagres resultantes do toque mágico da varinha de con-
dão, de alguma fada de grande e extraordinário poder“. Na dificuldade de descrever a
sequência de patrimônios determinados pelos Decretos para colonização e concessão de
ferrovias, e de observações em frentes de colonização do Estado de São Paulo, era justifi-
cativa possível para a época.
Ainda sobre patrimônios, o 12.° Relatório de Balanço da Anual da Paraná Plantations
Ltd (Londres, 1938) descrevia Londrina como older township. Não havia indicação de
modelo ou morfologia de cidades implantadas pela subsidiária CTNP. (Paraná Plantations
Ltd, 1938).
A publicação dos 50 anos de colonização da CTNP (Moraes, 1977) detalhava: “Todas
as cidades da área colonizada pela CMNP obedecem a um plano urbanístico previamente
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
estabelecido...Um núcleo urbano dividido em datas, destinadas à construção de prédios
comerciais e residenciais”.
O mito da Londrina Cidade Jardim para 30 000 pessoas surge a partir dos anos 2000.
A faixa de chácaras passa a ser considerada “green belt”. Era, todavia, uma faixa de conten-
ção denominada de “Chácaras” e depois “Gleba do Patrimônio”.
Os patrimônios seguem sendo projetados obedecendo aos detalhes da Planta Geral
da CFSPP (MacDonald & Gibbs engineers de Londres). Incorporam picadas e a rede de
estradas de acesso localizadas no espigão. O relevo é o grande definidor das características
do traçado. Assim, “V” e tridentes vão sendo incorporados perto das estações, não como
figuras isoladas mas como incorporação de detalhes do relevo e estradas de acesso.
123 //
Módulo como estratégia da CTNP

A ordem de implantação de (1) Chácara, (2) Colônias Shokuminchi, (3) Patrimônio


(4) Gleba do Patrimônio definia um “Módulo de Colonização”. Era uma maneira calcula-
da de definir limites e contorno das áreas que iam sendo desmatadas (Fig.4).
124 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 4. Chácara, Colônia Shokuminchi, Patrimônio e Gleba do Patrimônio., Autor: Yamaki, 2023

Nesse conjunto, somavam-se os módulos Gleba das áreas rurais. Equivaliam a área
de raio de sete quilômetros. Uma gleba recebia o nome do córrego que atravessava. Eram
vales definidos pelas estradas no espigão e córregos como eixo de estruturação.
As Colônias Shokuminchi davam estabilidade ao limite de “Chácara” e “Glebas do
Patrimônio”. Evitavam a expansão desordenada de patrimônios e induzia um desenvolvi-
mento equilibrado do conjunto.

A Repetição do módulo

O modulo “patrimônio, chácara, gleba patrimônio e colônias shokuminchi” definiam


estrutura e hierarquia no seu formato final. Formavam, em conjunto, um módulo de co-
lonização. Cada componente tinha importante função na estrutura do empreendimento.
Seria reproduzido nas intervenções seguintes ao longo da ferrovia. Visavam, em con-
junto, ordenar a paisagem e território. (Fig.5)

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Fig. 5. A Repetição do Módulo de Colonização, Autor: Yamaki 2023

Conclusão

A centenária paisagem histórica do Norte do Paraná apresenta um conjunto de carac-


terísticas que definem seu caráter. São as picadas antigas incorporadas no traçado, os par-
celamentos, os usos do solo, a área de plantio, a distribuição de patrimônios e as tradições
e características de colônias de imigrantes. Definem módulos.
125 //
Essa homogeneidade é resultado de estratégias de colonização e de ordenação do terri-
tório conduzidas pela CTNP obedecendo a clausulas de decretos. Tinham como modelo
as experiências de Núcleos Coloniais no Estado de São Paulo.
A adoção de Módulos de Colonização, apesar de ausente na cartografia oficial, permi-
tiu a estabilidade e a ocupação não dispersa. Contribuiu ao desenvolvimento equilibrado
do empreendimento.

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Tudor, C.; (2014) An Approach to Landscape Character Assessment, Natural England, UK.
Yamaki, H. T. (20023), Iconografia Londrinense, Humanidades, Londrina
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___, (2017) Terras do Norte: Paisagem e Morfologia, Londrina, Londrina, Edições UEL
126 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Impacto das cheias de 2023 no Rio Pacaás.
Novos para o modo de vida dos extrativistas
residentes na Reserva Extrativista do Rio Pacaás
Novos, Rondônia, Brasil

Theodoro, J.* Moreira, D.* Ferreira, M. M.**


Baratta, C.* Cunha, L.**

Introdução

A Reserva Extrativista Estadual (Resex) do Rio Pacaás Novos foi criada sob o decreto
n.º 6953 de 14 de Julho de 1995 com uma área de 342.000,00 hectares, tendo o homôni-
mo Rio Pacaás Novos cruzando praticamente toda a extensão do território. Está localizada
no município de Guajará-Mirim e é circundada por áreas protegidas de diversas categorias
e usos sob as gestões estadual e federal, para além de Terras Indígenas, constituindo assim
um mosaico ecológico de áreas de preservação de diferentes categorias. Possui um quanti-
tativo de cerca de 54 famílias que fazem uso do território de forma simbólica, trazendo da
floresta a representação dos modos de vida ancestrais.
O acesso a essa Unidade de Conservação (UC) é realizado, atualmente, apenas através
da navegação pelo rio Pacaás Novos. Esse acesso limitado é considerado como um dos
fatores primordiais para a preservação desse espaço.
Entre as áreas protegidas vizinhas estão a Terra Indígena Rio Negro Ocaia e a Terra
Indígena Pakaás Novos. Essas duas áreas abrigam aproximadamente cerca de 5000 indíge- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

nas distribuídos em diversas aldeias. A relação entre indígenas e seringueiros/extrativistas


hoje é considerada amistosa e em muitos casos há relações de parentesco consaguíneo. No
entanto, no período do segundo ciclo da borracha há relatos de conflitos violentos entre
os dois povos pela disputa do território em busca das árvores seringueiras para a retirada
de látex para produzir a borracha, até então muito valorizada no mercado mundial. No
período quem ditava as regras eram os proprietários dos seringais, conhecidos como serin-
galistas, que recebiam grandes extensões de terra do governo, denominadas de Seringais,

* Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental – Rondônia


** Centro de Estudos de Geografia e de Ordenamento do Território – CEGOT
127 //
para explorar o “ouro branco” e, continuamente, traziam novos trabalhadores para as “co-
locações” de seringa, local onde vivia cada família seringueira.
Após o período de declínio da borracha, muitas áreas foram abandonadas e poste-
riormente arrendadas por pequenos extrativistas, que usavam o apoio dos bancos estatais
para dar continuidade à produção em pequena escala. No decorrer do tempo, o preço do
produto caiu vertiginosamente e as estradas de seringa foram abandonadas. No entan-
to, muitos desses seringueiros permaneceram residindo nessas áreas, passando a viver da
caça, da pesca, da agricultura familiar e eventualmente da coleta de castanha (Silva, 2014;
Perdigão & Bassegio, 1992).
Nas décadas de 1970 e 1980, com a implantação do Programa Integrado de
Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste), financiado pelo Banco Mundial,
houve um desmatamento sem precedentes no Território de Rondônia, transformado em
Estado de Rondônia no ano de 1981. Após intensa divulgação desse avanço do desma-
tamento na imprensa internacional, e sob pressão, o Banco Mundial (BIRD) encerrou o
Polonoroeste. Em seguida, o Governo Brasileiro criou o Plano Agropecuário e Florestal
do Estado de Rondônia (Planafloro), também com financiamento do BIRD, entretanto
esse Plano trazia em seu escopo, diretrizes ambientais pautadas nas recentes discussões e
deliberação de organismos internacionais. Entre as exigências ambientais do Planafloro,
estava a obrigatoriedade do Estado de Rondônia criar áreas de preservação, de dife-
rentes categorias, de forma a manter uma parcela significativa do Estado preservada
(Silva, 2014; Dantas, 2010; Fearnside, 2005; Alencar et al., 2004; Laurance et al., 2004;
Oliveira, 2003; Ott, 2002; Santos, 1998; Smeraldi & Millikan, 1995; Miranda, 1992;
Leonel, 1992).
Assim, foram criadas 21 (vinte e uma) Reservas Extrativistas (Resex) que estão sob a
gestão do Governo do Estado de Rondônia. Grande parte da área dessas Resex foi sobre-
posta a antigos seringais, onde viviam e ainda vivem os extrativistas remanescentes/descen-
dentes dos grandes ciclos da borracha, organizados socialmente nas chamadas “colocações”
128 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

(Almeida, 2012; Leal, 2007).


As “colocações” são delimitações estabelecidas sob a lógica produtiva das “estradas de
seringa” que, com o passar do tempo e o declínio da produção de borracha, passaram a
também ser chamadas de sítios, onde a produção preponderante atualmente é a pequena
agricultura familiar de produtos tradicionais e de bioeconomia. A maioria das “colocações”
dos extrativistas situam-se nas margens dos rios e é também nesse espaço que, geralmente,
são estabelecidas as moradias e demais benfeitorias. É importante ressaltar que a divisão
desse território é feita de forma simbólica, de acordo com uso que lhe é dado. Esses espa-
ços, por estarem localizadas nas margens do Rio, são suscetíveis a alagamentos no período
das chuvas (Almeida, 2012; Leal, 2007).
Este relatório traz informações sobre as consequências das cheias para a população
extrativista da Resex em tela, pelo que demonstra as condições socioeconômicas dessas fa-
mílias e procura compreender as nuances sociais e ambientais frente a este desastre natural.
Esse estudo traz um levantamento preliminar da situação vivenciada atualmente na
Resex Rio Pacaás Novos. Entretanto, considera-se a necessidade real de um aprofunda-
mento das informações sobre a situação de calamidade pública evidente nessa UC, dada
a vulnerabilidade social e econômica percebida pela equipe técnica da Sedam, de forma
a compreender os processo geradores das mudanças climáticas e, dessa forma, fomentar
políticas públicas que contemplem a criação de mecanismos de prevenção de catástrofes,
de mitigação dos danos e de adaptação da população local a situações análogas.

Descrição e análise dos resultados

1. Localização e Caracterização Social

A Reserva Extrativista Estadual do Rio Pacaás Novos possui, atualmente, um quan-


titativo de cerca de 54 famílias que fazem uso do território de forma simbólica, trazendo
da floresta a representação dos modos de vida ancestrais, ora pescando, ora realizando
plantios agrícolas e ora trabalhando com o extrativismo vegetal.
O levantamento realizado entrevistou 38 famílias, conforme informações apresentadas
abaixo:

Gráfico 1

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam
129 //
Alguns moradores não foram encontrados nas colocações/sítios, no período que as entre-
vistas foram realizadas. Algumas entrevistas foram realizadas em embarcações atracadas pois
os moradores foram encontrados em deslocamento pelo rio. E algumas entrevistas foram
realizadas na área urbana de Guajará Mirim, com alguns moradores que estavam na cidade.

Gráfico 2

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

Em suma, foram entrevistados, por comunidade, os seguintes quantitativos: Santa


Margarida 18, Boa Vista 8, Encrenca 7, Santa Isabel 3, Nova Brasília 2.

Gráfico 3
130 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

Em relação à estrutura das casas, a equipe da Sedam observou que a maioria é cons-
truída em madeira e coberta com telhas de amianto. Em poucos casos, as casas são de
paxiúba (ripas de coqueiro) e cobertas com palha de coqueiro.
Uso da água e abastecimento humano

A água é um bem essencial à vida entretanto, o abastecimento humano, com água


potável, é um dos maiores desafios que a humanidade enfrenta, atualmente. A disponi-
bilidade dos recursos hídricos nem sempre significa acesso a água com qualidade. Para as
populações tradicionais da Amazônia, esse desafio se torna ainda maior, considerando o
isolamento e a vulnerabilidade social dessas pessoas. Se em períodos normais essa é uma
realidade, ante os desastres naturais, a situação torna-se um problema de saúde pública.
No caso das enchentes, as fontes de água potável, em áreas isoladas, se tornam escassas,
quando não mesmo indisponíveis, levando assim a população a ingerir a água que está dis-
ponível no ambiente, independente da qualidade apresentada, com graves consequências
em termos de saúde individual e coletiva.

1. Fonte e Tratamento da Água Consumida

Através dos formulários aplicados na RESEX Rio Pacaás Novos, pela equipe técnica
da Sedam, foram levantados dados referentes às fontes de água utilizadas pela população,
bem como aos tratamentos empregados para o consumo.
Os resultados demonstraram, conforme figura abaixo, que 73,68% da população pes-
quisada consome a água diretamente do rio Pacaás, 15,79% consome água de igarapés
afluentes do rio Pacaás Novos, 10,53% consomem água de poços amazônicos, 5,26%
consomem água doada e 5,26% consomem água de mina/cacimba.

Gráfico 4

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam
131 //
Sobre os tratamentos empregados na água utilizada para o consumo humano, foi le-
vantado que 60,53% da população emprega a decantação para eliminação de sedimentos,
39,47% faz uso de cloro, 23,68% bebe a água como coletada no rio, 23,68% filtra a água e
apenas 2,63% faz a fervura da água a ser consumida, conforme demonstra a figura abaixo.

Gráfico 5

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

2. Aspecto e qualidade da água utilizada

Foram questionados os moradores da RESEX Rio Pacaás Novos sobre a sua percepção
quanto à qualidade da água utilizada. A figura abaixo demonstra que 28,95% dos inquiri-
dos consideram que a água consumida é boa e o mesmo percentual, 28,95%, a consideram
ruim. Ainda, 26,32% consideram a água como regular, 13,16% a consideram péssima e
2,63 a consideram muito boa.

Gráfico 6
132 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam
A maioria dos entrevistados percebeu alteração na água consumida.

Gráfico 7
Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

Quanto às mudanças observadas nas águas do rio Pacaás Novos e ao aspecto apresen-
tado durante o período da enchente, ficou demonstrado que 94,74% notaram mudanças
nas águas do rio, especialmente na cor, sabor, cheiro e temperatura. Apenas 5,26% não
notaram nenhuma mudança. Entre as mudanças observadas pelos moradores estão “gosto
de lama e capim podre”, “cor escura e com muita sujeira”, “gosto de lama e folha podre e
cor barrenta”, “cheiro de capim podre, barrenta e gelada”, “gosto e cheiro de capim podre,
cor de lama e muito fria”, “gosto de folha velha”, “gosto de podre e ferrugem”, “mau cheiro
e barrenta”, “fedida, mais escura e com muita planta podre”, entre outros.

3. Resultado da análise das amostras coletadas


As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Foram coletadas 5 amostras de água, sendo 2 amostras (denominadas amostras 01


e 02) coletadas em poços amazônicos que foram invadidos pelas águas do rio; 2 amos-
tras (denominadas amostras 03 e 04) coletadas em poços amazônicos não atingidos pelas
cheias e 1 amostra (denominada amostra 05) coletada diretamente da área de inundação
na frente de uma colocação.
Os resultados destas análises estão representados nos quadros que se seguem
133 //
AMOSTRA 1 AMOSTRA 2
Colocação: Itaituba Localização: Colocação: Lipuna Localização:
Data: 17/04/2023 Hora: 10h14 Data: 17/04/2023 Hora: 12h14
Obs: Poço amazônico atingido pelas águas do rio Obs: Poço amazônico atingido pelas águas do rio
Coliformes Termotolerantes 39,70 Coliformes Termotolerantes 1,00
Cor 14,43 Cor 11,52
Turbidez 1,93 Turbidez 2,95
Condutividade elétrica a 25º 11,96 Condutividade elétrica a 25º 19,64
pH 10,01 pH 8,81
Resultados Ferro * Resultados Ferro *
Cloreto 12,42 Cloreto 17,04
Oxigênio dissolvido 1,70 Oxigênio dissolvido 0,20
Nitrato * Nitrato *
Nitrito * Nitrito *
Sulfato * Sulfato *

AMOSTRA 3 AMOSTRA 4
Colocação: Sombra da Lua Localização: 11º12’12”S e 64º54’49”W Colocação: Encrenca Localização: 11º5’48”S e 63º3’34”W
Data: 17/04/2023 Hora: 12h30 Data: 17/04/2023 Hora: 12h41
Obs: Poço amazônico não atingido pelas águas do rio Obs: Poço amazônico não atingido pelas águas do rio
Coliformes Termotolerantes 22,60 Coliformes Termotolerantes 3,10
Cor 00,00 Cor 30,62
Turbidez 28,25 Turbidez 6,69
Condutividade elétrica a 25º 15,59 Condutividade elétrica a 25º 8,77
pH 9,53 pH 9,40
Resultados Ferro * Resultados Ferro *
Cloreto 14,02 Cloreto 17,75
Oxigênio dissolvido 1,20 Oxigênio dissolvido 0,81
Nitrato * Nitrato *
Nitrito * Nitrito *
Sulfato * Sulfato *

AMOSTRA 5
Colocação: Santo Antônio LOCALIZAÇÃO:
Data: 17/04/2023 Hora: 12h54
134 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Obs: Águas do rio, onde há coleta para consumo humano


Coliformes Termotolerantes 38,80
Cor 126,90
Turbidez 4,31
Condutividade elétrica a 25º 15,07
pH 8,95
Ferro *
Resultados Cloreto 14,55
Oxigênio dissolvido 0,50
Nitrato *
Nitrito *
Sulfato *
DBO 5 dias a 20ºC 23,00
Alcalinidade 7,20

Fonte: Laboratório de Águas do COREH/Sedam


Segundo o laudo emitido pelo Laboratório de Águas da Coordenadoria de Recursos
Hídricos da Sedam, as amostras coletadas nos poços amazônicos e analisadas apresentam
as seguintes conclusões:
• Conclusão microbiológica: a água analisada NÃO atende aos padrões bacteriológi-
cos de acordo com o anexo I, segundo a resolução CONAMA 396 de 03/04/2008,
que estabelece diretrizes para águas subterrâneas.
• Conclusão Físico-química: Os parâmetros analisados encontram-se em conformi-
dade do VMP (valor máximo permitido), segundo a resolução CONAMA 396 de
03/04/2008, que estabelece diretrizes para águas subterrâneas.
Ainda segundo o mesmo laudo, a amostra coletada no rio apresenta as seguintes conclusões:
• Conclusão microbiológica: A água analisada atende aos padrões bacteriológi-
cos de acordo com o artigo 15 inciso II, segundo a resolução CONAMA 357 de
17/03/2005, que estabelece diretrizes para águas superficiais.
• Conclusão Físico-química: Os parâmetros analisados encontram-se em conformi-
dade do VMP (valor máximo permitido), segundo a resolução CONAMA 357 de
17/03/2005 que estabelece diretrizes para águas superficiais, EXCETO cor (Artigo
15, inciso II), oxigênio dissolvido (Artigo 15, inciso VI) e DBO (Artigo 15, inciso V).

Caracterização socioeconómica da população extrativista

1. Fonte de renda

Para a população que vive na Resex Rio Pacaás Novos, segundo as entrevistas reali-
zadas, a agricultura de subsistência é a principal prática laboral que permite acesso aos
alimentos. A comercialização em geral acontece sob a venda do excedente, excluindo os
casos de produção de macaxeira para a manufatura da farinha artesanal e a produção de ba-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
nana. A comercialização destes produtos dá-se de forma heterogénea, havendo venda para
indígenas, vizinhos, no porto da Cidade de Guajará Mirim e comércios locais. O estudo
apontou uma média de renda anual bruta per capita, para o ano de 2022, de cerca de R$
2.027,37. O gráfico abaixo apresenta as caraterísticas da produção.
O extrativismo da castanha possui a característica de poupança para as famílias, pois o
ciclo de produção não é contínuo e possui períodos em que a safra é muito pequena e força
os extrativistas a buscarem outras formas de geração de renda. A coleta dos ouriços é feita
utilizando a delimitação dos piques de castanha, nas modalidades familiar ou individual.
A safra dura até 4 meses, iniciando em novembro e finalizando em fevereiro.
135 //
Gráfico 8

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

O mercado desse produto é muito forte na região de Guajará Mirim, pois a venda é
feita para atravessadores bolivianos que compram os produtos e revendem para as indús-
trias bolivianas. O preço pode variar, por exemplo na safra 2021/2022 a lata estava no
valor de R$ 80,00 e na safra 2022/2023 a mesma lata chegou a baixar para R$ 40,00. A
oscilação dos preços são fatores apontados como propulsores para dívidas, pois muitas
vezes a castanha é vendida ainda na árvore. As disputas pelos castanhais são, muitas vezes,
geradoras de conflitos entre os povos da região, principalmente quando há valorização do
preço da safra.
O “escambo” (troca ou permuta) é outra prática muito difundida entre os extrati-
vistas/seringueiros e indígenas. As trocas variam entre diversos produtos: alimentos por
frutas, alimentos por roupas usadas. Em suma, existe uma relação ora de comercialização,
ora de troca entre as populações e povos tradicionais.
O corte das seringueiras para a produção do “Cernanbi Virgem Prensado” – CVP é
uma das alternativas que vem estimulando os moradores a voltarem ao extrativismo da
136 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

seringa. No entanto, a retomada do fabrico, depende da abertura das estradas e aquisição


de insumos (canecas, bicas, tigelas, baldes e facas de seringa). Para o último item o governo
está com processo aberto, via SUPEL, para a aquisição, via licitação.
A Empresa VERT, Ltda tem aberto novas oportunidades no mercado, adquirindo a
borracha a preços que valorizam os serviços ambientais e qualidade.

2. Benefícios sociais

Em relação ao acesso aos programas voltados para o combate à pobreza, por exemplo
do programa Bolsa Família, verifica-se que há ampla adesão na UC. Como uma parte
considerável da população é idosa, a aposentadoria aparece como uma importante fonte
financeira para a aquisição especialmente de itens alimentícios, roupas e remédios.
Esse quadro associado aos demais talvez possa exemplificar a dependência do território
para a manutenção dessa produção e a urgência de políticas públicas que incentivem a
comercialização dos produtos agrícolas e extrativistas.

Gráfico 9

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

Impactos socioeconômicos e ambientais da cheia no rio Pacaás


Novos

1. Percepção dos efeitos das cheias


O levantamento realizado buscou compreender a extensão social da percepção dos
impactos da cheia, sentidos pelos moradores da Resex Rio Pacaás Novos. Assim, abaixo
visualiza-se essa percepção. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

2. Impactos na produção

Quanto às perdas na agricultura, 50% dos entrevistados tiveram perdas, parciais ou


totais do plantio e de fruteiras, 42,1% relataram que não sofreram nenhuma perda de
produção e 7,9 relataram que não possuem áreas de cultivo.
Sobre os impactos da cheia na produção extrativista no próximo ciclo de coleta, es-
pecialmente de castanha e borracha, 36,84% dos entrevistados acreditam que a cheia
não afetará, 21,05% afirmaram que os locais de coleta não foram atingidos, 15,78% não
137 //
Gráfico 10

Gráfico 11

Gráfico 12
138 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

pratica o extrativismo, 15,78% não sabem dizer se a produção extrativista sofrerá algum
impacto, 10,52% disseram que seus locais de coleta ficaram alagados e 5,26% disseram
que é provável que o próximo ciclo produtivo extrativista sofra algum impacto desta cheia.
Gráfico 13

Gráfico 14

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

Quanto ao percentual de perdas agrícolas, com a cheia de 2023, 52,63% dos entrevis-
tados afirmam que não teve perdas, 21,05% perderam mais de 90% do que tinha planta-
do, 7,89% dos entrevistados estimam que perderam de 50 a 70% do que haviam plantado,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
5,26% calculam perdas entre 30 a 50% do plantio, 2,26% pensam ter perdido entre 10 a
30% da agricultura e 10,53% não sabem responder sobre o tamanho do impacto, por mo-
tivos diversos, ou pelas áreas ainda estarem alagadas, ou por ainda não terem conseguido
ver a área do plantio, ou por terem tido que se retirar da colocação e ainda não retornaram.
Quanto à produção agrícola, os maiores impactos foram sentidos na produção de
banana e mandioca que, por sua vez, impacta diretamente na produção de farinha, um
dos produtos mais comerciais gerados pelos extrativistas. Os dados apontam que 39,47%
dos entrevistados perderam seu plantio de banana, 36,84 perderam o plantio de man-
dioca/macaxeira, 23,68% perderam o plantio de milho, 18,42% perderam o plantio de
abóbora/gerimum, 5,26% perderam suas roças de feijão e 28,95% perderam outros tipos
139 //
de produção como hortaliças, abacaxi, laranja, limão, tangerina, toranja e outras fruteiras,
bem como referido acima, a produção anual de farinha. Ainda houve perda de animais,
como gado, cachorro, pato, galinha.
Gráfico 15

Gráfico 16

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam
140 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Os relatos de perda foram diversos, como: “Encheu o bananal e o mandiocal. Perdi


toda a safra. O jacaré comeu os patos”; “Alagou todo o pomar, as frutas caíram e a maioria
das fruteiras morreu”; “Alagou tudo, a macaxeira apodreceu toda, o bananal alagou e mor-
reu, a plantação geral morreu”; “Alagou toda a colocação, perdi a plantação de mandioca,
abacate, laranja, mamão, limão, maracujá e cana. Perdi os animais (patos e galinhas)”;
“Com a terra molhada não podemos iniciar o plantio do feijão, e não podemos colher o
milho. O milho, quando colhido molhado, estraga. Com a terra muito molhada as pragas
atacam as raízes da mandioca”.
Sobre o planejamento para o cultivo, os entrevistados se guiam pelos períodos de
plantio, geralmente determinado pelas condições climáticas (período de chuva e de seca).
A mandioca/macaxeira, a banana e o milho são os principais produtos cultivados pelos
extrativistas. No caso da mandioca para fazer farinha, a maioria dos entrevistados tem a ex-
pectativa de fazer o próximo plantio entre os meses de setembro e dezembro, condicionado
pelo início das chuvas. Já para a macaxeira para consumo, alguns entrevistados planejam
iniciar o plantio também nessa época, mas entretanto, alguns extrativistas já se estão se
programando para plantar tão logo as águas baixarem e o solo secar. Sabem que plantando
nesta época a produção é menor, pois tem um período seco logo à frente, mas têm pressa
no plantio, pois esse é um item essencial na alimentação da família.
Muitos extrativistas ainda esperam as águas baixarem para avaliarem o tamanho da
perda, no que refere aos bananais, para então saberem se precisam ou não de replantar
essa espécie. Entretanto, alguns já sabem que perderam o que estava plantado e precisarão
refazer a área de cultivo. Alguns pensam em arriscar o plantio assim que a água ceder, cor-
rendo o risco de o plantio não vingar em função do período da seca (Julho a Setembro).
Muitos decidiram aguardar até final de setembro ou início de outubro, o próximo período
de chuva, para recompor as áreas de cultivo.
Numa lógica semelhante à das culturas acima mencionadas, a grande maioria dos
entrevistados fará o próximo plantio de milho entre os meses de setembro e novembro,
aproveitando o período chuvoso, pois é mesmo a época tradicional do plantio desse grão.

Gráfico 17

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam
141 //
Quanto à colheita, essa depende do período do plantio. Considerando que a maio-
ria dos entrevistados esperam fazer seus plantios a partir de setembro, a próxima safra
aguardada será praticamente toda para o ano de 2024, com algumas exceções, conforme
demonstra a figura abaixo.

Gráfico 18

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

3. Impacto no modo tradicional de vida ribeirinha/extrativista


142 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A principal fonte de proteína animal consumida por populações tradicionais, como


a de extrativistas, se baseia na caça e na pesca, juntamente com a pequena criação de aves
(galinha e patos). Esse é, também, o caso das famílias que fazem uso do espaço da RESEX
Rio Pacaás Novos. Com a enchente do Rio Pacaás Novos, essas famílias têm encontra-
do dificuldade para ter acesso a esse tipo de alimento. Os dados do Levantamento da
Enchente na Resex Rio Pacaás Novos demonstrou que parte dos animais domésticos des-
tinados à alimentação morreram diretamente em consequência da cheia ou então foram
predados. Os entrevistados apontaram, também, dificuldades em ter acesso ao pescado e à
caça, conforme demonstram as figuras abaixo.
Gráfico 19 Gráfico 20

Fonte: Levantamento de dados sobre as cheias de 2023 na RESEX Rio Pacaás Novos/Sedam

A maioria dos entrevistados apontaram que o motivo de terem dificuldade de caça re-
side no fato de que quando a água do rio sobe e alaga o igapó e a várzea, os animais fogem
e procuram abrigo nas áreas mais altas, a chamada de “terra firme”, longe das colocações.
Os entrevistados indicam ainda que o motivo de não estarem conseguindo pescar nesse
período é porque o rio está muito cheio, tem muita água, alagando as áreas de igapó. E é
exatamente nessas áreas de difícil acesso que os peixes se costumam refugiar nesse período.

Discussão dos resultados

Os dados coletados junto à população extrativista que faz uso da Resex do Rio Pacaás
Novos apontam indicadores preocupantes em relação às condições socioeconômicas dessa
população, especialmente no que diz respeito à segurança alimentar das famílias.
O questionário foi elaborado para atender exclusivamente à situação de emergência
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
provocada pela enchente do rio Rio Pacaás Novos mas, no entanto, foi possível vislumbrar
a situação precária em que essa população vive cotidianamente, independentemente dos
danos provocados pela enchente. A situação de catástrofe ambiental só amplia um quadro
económico e social já de si muito precário.
A maioria das famílias vive com menos de 1 salário mínimo por mês. As únicas pessoas
que conseguem ter esse rendimento são os aposentados que, por sua idade avançada, já não
conseguem praticar a agricultura, o extrativismo, a pesca e a caça como complemento de
renda e subsistência, ficando dependente exclusivamente desse benefício.
O acesso à água para abastecimento humano é precário, conforme demonstrado nos
dados coletados. A maioria das famílias consome diretamente a água do rio Pacaás Novos,
143 //
sem qualquer tratamento. A distribuição de cloro é irregular, os extrativistas não tem con-
dições financeiras para adquirir filtros e não possuem informação suficiente sobre o proces-
so de fervura da água para consumo humano. Há poucos poços amazônicos nas colocações
e a maioria está localizada em áreas de várzea, que sazonalmente são atingidos pelas águas
do Rio Pacaás Novos, ou em igarapés.
A análise das poucas amostras coletadas nas fontes de abastecimento humano em di-
versos pontos da UC, apontam contaminação e não atendem aos padrões bacteriológicos
estabelecidos pelos órgãos ambientais.
Quanto às fontes de alimentação, essa população depende quase exclusivamente da
agricultura de subsistência e da pequena agricultura comercial. Assim, o maior impacto da
enchente regista-se exatamente sobre as áreas de cultivo das famílias. Os dados coletados
apontam que um percentual considerável da população teve suas casas e roças atingidas
pelas águas. Um percentual elevado perdeu toda a produção do ano de 2023.
Os dados indicam também que o próximo ciclo de plantio dos principais produtos
cultivados na Resex só acontecerá a partir do final do mês de setembro, com o próximo
período de chuvas. Assim sendo, a próxima safra só está prevista para 2024, sendo que para
o milho há previsão de colheita a partir do mês de janeiro de 2024 e para a macaxeira para
alimentação, a partir de abril de 2024. A mandioca para fazer farinha e a banana somente
estarão aptas para a colheita a partir de setembro ou outubro de 2024.
O levantamento também apontou que o acesso à proteína animal é muito escasso pois
a maioria das famílias praticam a pesca e a caça de subsistência. Em períodos de cheia os
animais costumam buscar refúgio nas áreas de “terra firme”, ou seja muito longe das áreas
habitadas, tornando a caça muito difícil. Em relação à pesca, com o volume de água do rio,
e as águas adentrando a área de igapó, os peixes também buscam alimento e esconderijo
nessas áreas de difícil acesso.
Assim, a alimentação da população tradicional da Resex Rio Pacaás Novos ficou com-
pletamente comprometida neste período de cheias, neste ano produtivo e ainda no ano
144 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

seguinte, até ao próximo período de colheita.

Considerações finais

A situação das famílias atingidas pelas enchentes é calamitosa. Essa situação não se
resolverá a curto e médio prazo, especialmente no que tange à produção de alimentos, con-
forme já foi referido, uma vez que as famílias dependem dos ciclos produtivos que levarão
cerca de 1 ano e meio para se reestabelecerem com novas safras, desde que não haja mais
nenhuma intercorrência climática ou outra adversidade.
Diante deste quadro, o ideal é que essas famílias sejam inseridas em programas sociais de
distribuição de cestas básicas por um período alongado de 1 ano e meio a 2 anos, garantindo
assim a segurança alimentar dessas pessoas pelo menos até ao próximo período de colheita.
Seria importante também o estabelecimento de parcerias para disponibilizar assistên-
cia técnica agrícola, para que os extrativistas possam otimizar a sua produção e até passar a
produzir outros alimentos de ciclo curto e de fácil aceitação no mercado local.
Sobre a situação da água para o abastecimento humano, que não apresenta condições
mínimas de qualidade, a Sedam deveria enviar uma equipa do laboratório de águas para
fazer uma análise mais aprofundada da água consumida pelas famílias e, assim, gerar um
banco de dados substancial sobre a qualidade da água na Resex, tanto nos períodos de
cheias quanto nos períodos de estiagem.
Seria muito importante ainda estabelecer uma parceria com Secretaria de Estado da
Assistência Social (Seas) para a aquisição e distribuição de filtros de barro para 100% das famí-
lias que fazem uso do espaço dessa UC. Dever-se-ia procurar desenvolver um esforço coletivo
para que se consiga proceder à perfuração de poços artesianos pelo menos nas Comunidades,
para usufruto coletivo, e onde a população possa buscar água potável para suas casas.
Refere-se que a Sedam empenhou esforços para realizar um trabalho emergencial, em
parceria com a Seas, para proceder à distribuição de cestas básicas e água para atender
as famílias em vulnerabilidade social. O IFRO/Campi Guajará-Mirim também realizou
uma campanha de arrecadação de alimentos destinados aos moradores da Resex. A distri-
buição desses produtos foi realizada através de uma ação conjunta e com apoio de outras
entidades, como o Batalhão da Polícia Militar Ambiental de Guajará Mirim, o ICMBio/
NGI Guajará-Mirim, o Ifro/Campi Guajará-Mirim, a Coordenação Regional da FUNAI/
Guajará-Mirim, a Associação Etnoambiental Kanidé e a Associação indígena Santo André.
É fundamental ressaltar que, embora essas ações pontuais auxiliem nesse momento
de crise, elas não garantem a segurança alimentar dessas famílias a médio e longo prazo.
Diante desse grave quadro social, é necessário um trabalho mais coeso e robusto entre
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
instituições, de forma a promover a sustentabilidade dessas famílias a médio e longo prazo.

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


147 //
Serviços ecossistêmicos hídricos e avaliação
da qualidade da água na bacia hidrográfica
do Córrego Bebedouro, Mato Grosso do Sul,
Brasil

Bruna Dienifer Souza Sampaio1


Ana Paula Novais Pires Koga2

Introdução

Os serviços ecossistêmicos (SE) referem-se aos benefícios diretos e indiretos que a


população humana obtém da natureza, ou seja, gerados a partir das complexas interações
entre os componentes do capital natural. O bem-estar humano é profunda e indissocia-
velmente dependente dos serviços ecossistêmicos (DAILY, 1997; CONSTANZA et al.,
1997; MEA, 2005; ANDRADE et al., 2012), visto que eles compõem toda gama de
benefícios que um determinado ambiente é capaz de prover à população. Este conceito é
integrado ao estudo ambiental através da valoração ou avaliação individual ou coletiva dos
diversos serviços prestados por um determinado ambiente (OSCAR JR.; CAVALCANTE;
RUHBERG, 2021).
Os serviços ecossistêmicos são importantes para as atividades econômicas porque pro-
veem os recursos necessários à produção de bens e serviços econômicos e fornecem os
serviços/bens básicos para a manutenção da espécie humana, tais como alimento, água
pura, dentre outros (ANDRADE et al., 2012). Compreender a biofísica dos processos As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ecossistêmicos na perspectiva dos seres humanos como beneficiários desses serviços é um


avanço pelo potencial de proteger os ecossistemas e os serviços que eles fornecem. Assim,
a estrutura de serviços ecossistêmicos se vincula com a conservação e o desenvolvimento
pautado na saúde ambiental e humana, segurança e bens necessários para os seres vivos
(BRAUMAN et al., 2007).

1
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Departamento de Geografia (UFMS/CPTL), Três Lagoas,
MS, Brasil. bruna.sampaio@ufms.br
2
Universidade Federal de Catalão, Instituto de Geografia (IGEO/UFCAT), Catalão, GO, Brasil ana_no-
vais@ufcat.edu.br
149 //
Os serviços ecossistêmicos hídricos são fundamentais para a sociedade visto que as
florestas e áreas úmidas são mantenedores da segurança hídrica (SMITH et al., 2008).
Portanto, a valoração desses serviços hídricos voltados à produção de água em quantida-
de e qualidade adequadas, mediante práticas para diminuir a erosão e a poluição hídrica
tem-se destacado através dos programas de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA)
(FIDALGO et al., 2017; BRASIL, 2021).
A consolidação do termo serviços ambientais ocorreu a partir da publicação do
Millennium Ecosystem Assessment – MEA (2005) que os classificou em quatro categorias fun-
damentais: serviços de provisão, serviços de regulação, serviços de suporte e serviços culturais.
A Lei Federal n.º 114.119/2021 que instituiu a Política Nacional de Pagamentos por
Serviços Ambientais no Brasil, define os serviços ecossistêmicos como os benefícios rele-
vantes para a sociedade gerados pelos ecossistemas, em termos de manutenção, recupe-
ração ou melhoria das condições ambientais; e os serviços ambientais são as atividades
individuais ou coletivas que favorecem a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos
serviços ecossistêmicos (BRASIL, 2021, Art. 2, inciso II e III).
Os serviços ecossistêmicos hídricos são enfatizados por Smith et al. (2006) que classifi-
cou os serviços ambientais associados à água em bacias hidrográficas. A Figura 1 apresenta
a classificação dos serviços ecossistêmicos hídricos.
150 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1: Classificação dos serviços ambientais associados à água. Fonte: Smith et al. (2006). Org.: Autora, 2023.

Conforme Smith et al. (2006), os serviços ambientais associados à água são: os serviços
de provisão com o fornecimento de água, alimentos, bens não alimentares, energia; os ser-
viços de regulação como a regulação de fluxos de água; mitigação de desastres; controle de
processos erosivos; purificação de água; os serviços de suporte para manutenção de hábitat
para a vida selvagem; regime natural do fluxo de água; e os serviços culturais como as
atividades recreativas e cênicas; construção de identidades e heranças culturais; inspiração
artística, espiritual e científica.
De acordo com Fidalgo et al. (2017), os conceitos de serviços ecossistêmicos hidroló-
gicos terrestres e de serviços ambientais (SA) contribuem para a compreensão dos sistemas
ambientais hídricos como uma modalidade de serviços ecossistêmicos relacionados aos
processos hidrológicos, cuja provisão pode ser garantida, mantida ou mesmo recuperada
por intervenções humanas de proteção e conservação desses processos.
Os serviços hidrológicos terrestres são definidos por Brauman et al. (2007), como os
benefícios recebidos pelos seres humanos que são produzidos pela ação dos ecossistemas
sobre as águas continentais, ou seja, os corpos hídricos interiores ao continente.
O conceito de serviços ecossistêmicos hídricos abrange várias atividades econômicas,
sociais, ambientais e jurídicas, de modo, a interagir com diversos atores sociais e conciliar
os interesses que comprometem a proteção do potencial ecológico da água e da natureza.
Assim, há leis e regulamentos ambientais brasileiras que criam exigibilidades de avaliações
ambientais (AGUIAR JUNIOR; PASQUALETTO, 2020).
A Lei Federal n.º 9.433/1997 que instituiu a Política Nacional dos Recursos Hídricos
no Brasil traz o reconhecimento de valor intrínseco à natureza, enfatizando a água como
recurso hídrico com vistas ao desenvolvimento sustentável, tratando a função ecológica
da propriedade, da prevenção, do poluidor-pagador, do usuários-pagador que abrange os
princípios de pagamentos por serviços ambientais.
Dentre as leis e regulamentos ambientais brasileiras, tem-se a Resolução Federal n.º
357/2005, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) como embasamento
para avaliação da qualidade da água na bacia hidrográfica, que dispõe sobre a classificação
dos corpos de água e oferece diretrizes ambientais para o seu enquadramento, de modo,
que os cursos d’água sejam enquadrados conforme os padrões definidos.
O monitoramento é definido como a medição ou verificação de parâmetros de qua-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
lidade e quantidade de água, que pode ser contínua ou periódica, utilizada para acompa-
nhamento da condição e controle da qualidade do corpo de água (CONAMA 357, Art.
2º, Inciso XXV).
Para as águas doces, foram criadas cinco (5) categorias, a classe especial e as classes de 1 a
4, em uma ordem decrescente de qualidade, ou seja, a classe especial é a que tem melhor qua-
lidade da água e a classe 4 é a de pior qualidade (CONAMA 357, Art. 3º, SAMPAIO, 2018).
A abordagem da questão da água como recurso hídrico e componente principal para
manutenção da biodiversidade e vida terrestre salienta a dimensão da importância para o
melhor manejo e conservação dos recursos hídricos em bacias hidrográficas, de modo a,
criar estratégias de conservação focada nos usos múltiplos da água (PIRES et al., 2019).
151 //
Diante disso, o presente artigo tem como objetivo avaliar a qualidade da água na bacia
hidrográfica do Córrego Bebedouro, no Estado de Mato Grosso do Sul – Brasil, de forma
a propor medidas de uso e gestão adequada dos recursos hídricos e assim garantir a manu-
tenção dos serviços ecossistêmicos hídricos.

2. Material e método

2.1. Área de estudo

Este trabalho foi desenvolvido na delimitação geográfica da bacia hidrográfica do


Córrego Bebedouro/MS, localizada entre as coordenadas geográficas – latitudes 20º 25’
30” S e 20º 36’ 0” W e longitudes 51º 46’ 0” W e 51º 34’ 0” W, entre o limite dos muni-
cípios de Três Lagoas e Selvíria – no leste do Estado de Mato Grosso do Sul (MS). Trata-se
de um córrego afluente da margem direita do Rio Paraná, com uma área de aproximada-
mente 202,69 km².
A área de estudo foi escolhida por ser uma área na qual está localizada a fábrica da
empresa multinacional de produção de papel e celulose branqueada, considerada como
uma bacia “modelo” para o desenvolvimento sustentável. A Figura 2 apresenta o mapa de
localização da bacia hidrográfica.
152 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 2: Localização da bacia hidrográfica do córrego Bebedouro/MS. Fonte: Autora (2022).


2.2. Coleta de dados e parâmetros físico-químicos

Os dados físico-químicos para estudo de avaliação da qualidade da água utilizados


para esta pesquisa foram obtidos in locu através do trabalho de campo realizado na bacia
hidrográfica do córrego Bebedouro (MS/Brasil), utilizando o equipamento Horiba U50.
Para o monitoramento dos parâmetros físico-químicos da água foram realizados tra-
balhos de campo, que consistiram na coleta das amostras de água para avaliação dos in-
dicadores de qualidade em dez seções, todas localizadas na bacia hidrográfica do córrego
Bebedouro (MS/Brasil). As amostragens foram realizadas nos dias 16 de agosto de 2019,
22 de novembro de 2019 e 28 de fevereiro de 2020.
Em relação à descrição dos pontos amostrais, na Tabela 1 são apresentadas as coorde-
nadas geográficas dos pontos amostrais distribuídos ao longo da bacia hidrográfica.

Tabela 1 – Localização geográfica das seções amostrais


Seções Latitude (S) Longitude (O)
P1 20º29’41,45” 51º42’50,0
P2 20º29’26,3” 51º41’59,4”
P3 20º30’35,1 51º41’22,7”
P4 20º31’07,8” 51º38’45,9”
P5 20º30’59,7” 51º39’08,3”
P6 20º31’29,4” 51º40’46,5”
P7 20º30’06,4” 51º39’00,4
P8 20º32’23,1” 51º38’51,8”
P9 20º32’19,8” 51º37’49,4”
P10 20º31’30,3” 51º34’51,9”
Fonte: Autora (2022).

O ponto 1 (P1) localizado no bebedouro para dessedentação animal da Fazenda


Campo Limpo II, observou-se a presença de gado que mitigam a sede nesse ponto. O As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ponto 2 (P2) encontra-se à margem esquerda do rio (ponte) na Fazenda Campo Limpo
II. O ponto 3 (P3) está localizado em um bebedouro de gado – pequeno afluente do
Córrego Bebedouro. O ponto 4, é atingido após percorrer-se um trecho de cerca de 200m
dentro da vegetação palustre (brejo), sendo este aos arredores da vizinhança da Fazenda
Dois Irmãos. No ponto 5 a vegetação estava queimada, percorreu-se até o ponto no qual
foi observado um afloramento de rochas do Grupo Santo Anastácio, trata-se do próprio
fundo de canal da BHCB. O ponto 6 localiza-se na saída de um pequeno tubo na estrada,
e dependendo da estação do ano encontra-se seco, sendo assim, um curso d’água intermi-
tente. O ponto 7 trata-se de um local para dessedentação animal, observou-se o pisoteio
153 //
do gado. O ponto 8 localiza-se à margem esquerda da ponte (coletas realizadas antes do
tubo) dentro da Fazenda Bebedouro, a transparência da água é exuberante. O ponto 9 está
localizado em um canal escavado pelo proprietário da Fazenda Bebedouro para criação de
uma represa e ao entorno tem-se a plantação da silvicultura. E por fim, o Ponto 10 locali-
za-se à margem direita da BR-158 sentido Selvíria – Três Lagoas (MS/Brasil), a caminho
da sede da fábrica de papel e celulose. O Quadro 1 apresenta os pontos amostrais obtidos
em campo comparados com as imagens do Google Earth.
154 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Quadro 1 – Fotografias dos pontos amostrais comparados com as imagens do Google Earth.
Fonte: Trabalho de Campo (2020) e Imagens do Google Earth Pro. Organização: Autora (2022).

Em cada ponto de amostragem na bacia do córrego do Bebedouro (MS/Brasil), foram


obtidos dados, por meio do equipamento Horiba U50, de 10 parâmetros físico-químicos
são eles: temperatura do ar, temperatura da água, potencial hidrogeniônico (pH), potencial
de oxidação-redução (ORP), condutividade elétrica (CE), turbidez, oxigênio dissolvido,
total de sólidos dissolvidos (TDS), salinidade e velocidade, nas estações seca e chuvosa.

2.3. Correlação das variáveis físico-químicas

Os dados obtidos foram tabulados no excel, por meio da estatística descritiva as variá-
veis foram correlacionadas utilizando o coeficiente de correlação de Pearson (r) para medir
a intensidade e a direção das relações entre duas variáveis. Assim, quanto mais próximo dos
extremos do intervalo (-1 e +1) maior é a força da correlação. Quanto mais próximo do
centro do intervalo, zero, mais fraca é a correlação linear (PUTH et al., 2014). Portanto,
para efeitos da correlação considerou-se o r igual 0,50 como correlação moderada e o r
maior do que 0,70 como correlação forte.

3. Resultados e Discussão

3.1 Avaliação das variáveis físico-químico


A avaliação da qualidade da água foi realizada com base nos parâmetros de qualidade
de água especificados na Resolução CONAMA n.º. 357/2005, conforme a classificação
dos corpos d’água e definição dos limites máximos permitidos para as variáveis físico-quí-
micas e suas correlações.
A Tabela 2 apresenta as variáveis físico-químicas obtidas em agosto de 2019.

Tabela 2 – Variáveis físico-químicas obtidas em 16 de agosto de 2019


PONTOS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
HORARIO 8h32 8h14 9h50 13h59 14h18 10h17 12h26 10h49 13h44 14h58
TEMP AR ºC 21 20,79 22,25 21,80 28 24,92 27,22 22,22 26,24 23,61
TEMP ÁGUA ºC 20,44 20,5 20,7 20,8 21 26,52 21,62 26,26 23,39
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
27,6
pH 8,57 8,78 7,68 7,08 6,90 8,49 7,27 7,21 6,79 7,13
ORP (mV) 261 169 284 229 302 273 287 258 295 297
CE (mS/cm) 21 63 13 18 19 19 10 25 8 23
TURB (NTU) 1,3 5,6 0,9 2,8 1,5 12,9 11 1,2 2,4 8,0
OD (mg/L) 11,98 13,08 10,26 13 14,34 13,66 10,14 12,29 11,19 11,34
TDS (mg/L) 13 14 9 12 12 12 6 16 5 15
SALINIDADE (%) 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
VELOCIDADE 0,12 38 17,5 51,0 28 0,10 0,10 8,0 9 2
Fonte: Trabalho de Campo (2019). Organização: Autora (2022).

A temperatura do ar ou da água (ºC) é o parâmetro fundamental que representa a


intensidade de calor que altera a temperatura da água, frequentemente causada por fontes
155 //
naturais (radiação, condução e convecção) ou antropogênicas (despejos industriais e águas
de resfriamento de máquinas). Esse parâmetro avalia a intensidade do calor da água (ANA,
2009). Observa-se que no período de agosto (estação de inverno) a temperatura do ar
variou de 20,79ºC a 28ºC e o Ponto 5 teve a maior temperatura. A temperatura da água
variou entre 20,44ºC e 27,6ºC, com destaque para o maior valor no Ponto 7.
O pH (Potencial Hidrogêniônico) representa a intensidade de íons hidrogênio H+
(em escala antilogarítmica), dando uma indicação sobre a condição de acidez, neutralidade
ou alcalinidade da água. A faixa de pH é de 0 a 14, em que dados inferiores a 7 são con-
dições ácidas e superior a 7 são condições alcalinas, na vida aquática é recomendado o pH
de 6 a 9 (ANA, 2009; SAMPAIO, 2018).
Na estação de inverno, o pH variou entre 7,13 no Ponto 10 e 8,78 no Ponto 2. O
menor valor de ORP está no Ponto 2 com 169mV e o maior valor no Ponto 10 com
297mV.
A Condutividade Elétrica (CE) representa a capacidade que a água possui de conduzir/
transmitir a corrente elétrica em função da presença de substâncias dissolvidas que se dis-
sociam em ânions e cátions. Quanto maior a concentração iônica da solução, maior é a ca-
pacidade em conduzir corrente elétrica. Este parâmetro está relacionado com a presença de
íons dissolvidos na água, que são partículas carregadas eletricamente. Quanto maior for a
quantidade de íons dissolvidos, maior será a condutividade elétrica na água (ANA, 2009).
Conforme Brasil (2006) as águas naturais apresentam teores de condutividade na faixa
de 10 a 100 μS/cm, em ambientes poluídos por esgotos domésticos ou industriais os valo-
res podem ultrapassar até 1.000 μS/cm.
Observa-se na estação de inverno, a menor CE foi obtida no Ponto 9 com 8uS/cm e o
maior valor ocorreu no Ponto 2 com 63uS/cm. A maior Turbidez ocorreu no Ponto 6 com
12,9NTU e o menor valor no Ponto 3 com 0,9NTU.
A Turbidez (uT – Unidade de Turbidez) representa o grau de interferência à passagem
da luz através da água, conferindo uma aparência turva. Representa a presença de material
156 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

(sólidos) em suspensão, ocasionados por origem natural (partículas de rocha, argila e silte;
algas e microrganismos) e antrópica (despejos domésticos e industriais, microrganismos,
erosão), podendo prejudicar a fotossíntese pela redução da penetração da luz. A turbidez
natural das águas está, geralmente, compreendida na faixa de 3 a 500 NTU41 (VON
SPERLING, 1996; SABESP40 NTS008, 1999; SAMPAIO, 2018).
O Total de Sólidos Dissolvidos (TDS) “Sólido é o estado da matéria caracterizado pela
rigidez, por uma forma própria e pela existência de um equilíbrio com o líquido prove-
niente da sua fusão” (SABESP36 – NTS013, 1999). Os Sólidos em suspensão influenciam
diretamente na turbidez, pois o material particulado existente na amostra de água faz a
luz incidente dispersar em outras direções. Os Sólidos em suspensão advêm da erosão dos
solos, dos esgotos sanitários e outros efluentes industriais que, por sua vez, elevam a turbi-
dez das águas (ANA, 2009; SAMPAIO, 2018).
O Oxigênio Dissolvido (OD) expressa a qualidade do ambiente aquático e tem essencial
importância para os organismos aeróbios. As águas com baixos teores de OD indicam que
receberam matéria orgânica; a decomposição da matéria orgânica por bactérias aeróbias con-
some e reduz o OD da água; dependendo da capacidade de autodepuração do manancial, o
teor de oxigênio dissolvido pode alcançar valores muito baixos, ou zero, extinguindo-se os
organismos aquáticos aeróbios. Conforme Brasil (2006, p.50) para a manutenção da vida
aquática aeróbia são necessários teores mínimos de Oxigênio Dissolvido de 2 mg/l a 5 mg/l
O2, de acordo com o grau de exigência de cada organismo (ANA, 2009; SAMPAIO, 2018).
Observa-se que no período de agosto (estação de inverno), o maior valor de OD foi
encontrado no Ponto 6 com 13,66mg/L. Em relação ao TDS o Ponto 8 teve maior valor
com 18mg/L e o menor valor no Ponto 9 com 5mg/L. A maior velocidade da água ocorreu
no Ponto 4 com 51m/s.
A Tabela 3 apresenta as variáveis físico-químicas obtidas em novembro de 2019.

Tabela 3 – Variáveis físico-químicas obtidas em 22 de novembro de 2019


PONTOS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
HORARIO 9h18 9h01 10h27 13h44 14h40 seco seco 12h01 14h11 15h10
TEMP AR ºC 26,42 25,73 27,95 30,91 31 seco seco 28,73 29 29,68
TEMP ÁGUA ºC 27,31 24,45 25,93 26,11 25,24 seco seco 28,29 32 29,25
pH 9,17 9 8,81 8,91 9,03 seco seco 8,90 8,91 8,95
ORP (mV) 176 156 269 299 307 seco seco 267 296 310
CE (mS/cm) 24 72 4 21 25 seco seco 28 10 26
TURB (NTU) 8,1 9 0 3,8 4,2 seco seco 3,5 6,1 5,3
OD (mg/L) 9,52 11,81 10,81 11,23 11,80 seco seco 10 7,69 9,80
TDS (mg/L) 16 47 9 14 16 seco seco 18 6 17
SALINIDADE (%) 0,01 0,08 0 0,01 0,01 seco seco 0,01 0 0,01
Fonte: Trabalho de Campo (2019). Organização: Autora (2022). As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Observa-se que no período de novembro (estação de primavera) a temperatura do ar


variou de 25,73ºC no Ponto 2 a 31ºC no Ponto 5. A temperatura da água variou entre
24,45ºC no Ponto 2 e 29,25ºC, com destaque para o maior valor no Ponto 10. O pH
variou entre 8,81 no Ponto 3 e 9,17 no Ponto 1. O menor valor de ORP está no Ponto 2
com 156mV e o maior valor no Ponto 10 com 310mV. A menor CE foi obtida no Ponto 3
com 4uS/cm e o maior valor ocorreu no Ponto 2 com 72uS/cm. A maior Turbidez ocorreu
no Ponto 2 com 9 NTU e o menor valor no Ponto 3 com 0 NTU. O maior valor de OD
foi encontrado no Ponto 2 com 11,81mg/L. Em relação ao TDS o Ponto 2 teve maior
157 //
valor com 47mg/L e o menor valor no Ponto 9 com 6mg/L. Em relação a Salinidade o
maior valor ocorreu no Ponto 2 com 0,08%.
A Tabela 4 apresenta as variáveis físico-químicas obtidas em fevereiro de 2020.

Tabela 4 – Variáveis físico-químicas obtidas em 28 de fevereiro de 2020


PONTOS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
HORARIO 9h06 8h50 10h21 12h55 13h55 10h41 12h38 11h08 13h24 14h24
TEMP AR ºC 24,23 24,57 25,25 31,03 31,31 26,25 27,44 28,07 29,40 28,96
TEMP ÁGUA ºC 26,28 24,76 25,44 27,77 25,7 30,30 32 26,92 32,30 28,90
pH 8,87 9,17 9,32 9,96 9,94 9,94 10,16 9,89 10,07 9,86
ORP (mV) 264 231 309 320 337 318 298 293 328 328
CE (mS/cm) 126 150 154 192 192 194 204 189 203 188
TURB (NTU) 20,7 30,9 0 8,6 4,90 27,4 2,2 7,3 8,2 11,2
OD (mg/L) 10,23 11,98 10,58 10,96 12,11 9,05 8,66 10,72 8,75 9,90
TDS (mg/L) 13 24 8 12 9 9 5 14 6 15
SALINIDADE (%) 0,01 0,02 0 0,01 0 0 0 0,01 0 0,01
VELOCIDADE 0,019 0,037 0,013 0,018 0,014 0,013 0,008 0,022 0,009 0,023
Fonte: Trabalho de Campo (2020). Organização: Autora (2022).

Observa-se que no período de fevereiro (estação de verão) a temperatura do ar variou de


24,23ºC no Ponto 1 a 31,31ºC no Ponto 5. A temperatura da água variou entre 24,45ºC no
Ponto 2 e 32,30ºC, com destaque para o maior valor no Ponto 9. O pH variou entre 8,87
no Ponto 1 e 10,07 no Ponto 9. O menor valor de ORP está no Ponto 2 com 231mV e o
maior valor no Ponto 5 com 337mV. A menor CE foi obtida no Ponto 1 com 126uS/cm e o
maior valor ocorreu no Ponto 7 com 204uS/cm. A maior Turbidez ocorreu no Ponto 2 com
30,9 NTU e o menor valor no Ponto 3 com 0 NTU. O maior valor de OD foi encontrado
no Ponto 5 com 12,11mg/L. Em relação ao TDS o Ponto 2 teve maior valor com 24mg/L
e o menor valor no Ponto 7 com 5mg/L. Em relação a Salinidade o maior valor ocorreu no
Ponto 2 com 0,02%. E a maior Velocidade ocorreu no Ponto 2 com 0,037m/s.
158 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

3.2 Correlação das variáveis físico-químicos e os serviços ecossistêmicos hídricos

Em relação à correlação das variáveis físico-químicas da água, quando a mesma for


positiva significa que o aumento em uma variável implica no aumento da outra variável.
Enquanto que os valores de correlação negativos indicam que o aumento de uma variável
implica no decréscimo da outra variável, ou seja, são inversamente proporcionais (PUTH
et al., 2014). A Tabela 5 apresenta a matriz de tendência de correlação entre as variáveis
físico-químicas obtidas em agosto de 2019.
Tabela 5 – Matriz de tendência de correlação das variáveis
físico-químicas obtidas em 16 de agosto de 2019

VELOCIDADE
TURB (NTU)
TEMP ÁGUA
TEMP AR ºC

TDS (mg/L)
CE (uS/cm)

OD (mg/L)
ORP (mV)

(m/s)
pH
ºC
TEMP AR ºC 1
TEMP ÁGUA ºC 0,65 1
pH -0,55 -0,20 1
ORP (mV) 0,69 0,44 -0,59 1,00
CE (uS/cm) -0,53 -0,45 0,60 -0,85 1,00
TURB (NTU) 0,32 0,73 0,26 0,04 0,03 1,00
OD (mg/L) 0,02 -0,31 0,20 -0,31 0,40 -0,02 1,00
TDS (mg/L) -0,56 -0,60 0,31 -0,39 0,58 -0,11 0,52 1,00
VELOCIDADE (m/s) -0,28 -0,58 -0,08 -0,60 0,41 -0,38 0,44 0,15 1
Fonte: Trabalho de Campo (2020). Organização: Autora (2022).

No período de inverno (agosto/2019), as variáveis que tiveram correlação positiva


foram a Temperatura da água e a Turbidez (0,73). O pH teve correlação positiva com a CE
(0,60) e com o ORP (0,59). O ORP correlacionou negativamente com a CE (-0,85). A
CE correlacionou positivamente com o TDS (0,58). O OD correlacionou positivamente
com o TDS (0,52). A Tabela 6 apresenta a matriz de tendência de correlação entre as va-
riáveis físico-químicas obtidas em novembro de 2019.

Tabela 6 – Matriz de tendência de correlação das variáveis


físico-químicas obtidas em 22 de novembro de 2019 SALINIDADE
TURB (NTU)
TEMP ÁGUA
TEMP AR ºC

TDS (mg/L)
CE (uS/cm)

OD (mg/L)
ORP (mV)

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


(%)
pH
ºC

TEMP AR ºC 1
TEMP ÁGUA ºC 0,16 1,00
pH -0,32 -0,16 1,00
ORP (mV) 0,92 0,40 -0,54 1,00
CE (uS/cm) -0,49 -0,47 0,36 -0,65 1,00
TURB (NTU) -0,50 0,06 0,74 -0,64 0,68 1,00
OD (mg/L) 0,06 -0,95 0,03 -0,17 0,48 -0,14 1,00
TDS (mg/L) -0,55 -0,56 0,29 -0,69 0,99 0,60 0,54 1,00
SALINIDADE (%) -0,58 -0,52 0,24 -0,70 0,96 0,61 0,49 0,98 1
Fonte: Trabalho de Campo (2020). Organização: Autora (2022).
159 //
No período de primavera (novembro/2019), a Temperatura da água correlacionou
negativamente com OD (-0,95 ) e positivamente com o TDS (0,56). O pH correlacionou
positivamente com a Turbidez (0,74 ) e negativamente com o ORP (-0,54). O ORP corre-
lacionou negativamente com a Salinidade (-0,70), com o TDS (-0,69), com a CE (-0,65)
e a Turbidez (-0,64). A CE correlacionou positivamente com o TDS (0,99), a Salinidade
(0,96) e a Turbidez (0,68). A Turbidez correlacionou positivamente com a Salinidade
(0,61) e o TDS (0,60). O OD correlacionou positivamente com o TDS (0,54) e o TDS
correlacionou positivamente com a Salinidade (0,98).
A Tabela 6 apresenta a matriz de tendência de correlação entre as variáveis físico-quí-
micas obtidas em fevereiro de 2020.

Tabela 6 – Matriz de tendência de correlação das variáveis


físico-químicas obtidas em 28 de fevereiro de 2020

VELOCIDADE
SALINIDADE
TURB (NTU)
TEMP ÁGUA
TEMP AR ºC

TDS (mg/L)
CE (uS/cm)

OD (mg/L)
ORP (mV)

(m/s)
(%)
pH
ºC

TEMP AR ºC 1
TEMP ÁGUA ºC 0,27 1
pH 0,76 0,69 1,00
ORP (mV) 0,76 0,44 0,72 1,00
CE (uS/cm) 0,75 0,70 1,00 0,70 1,00
TURB (NTU) -0,52 -0,17 -0,45 -0,59 -0,40 1,00
OD (mg/L) 0,08 -0,90 -0,40 -0,29 -0,40 0,12 1,00
TDS (mg/L) -0,33 -0,61 -0,54 -0,69 -0,50 0,64 0,62 1,00
SALINIDADE (%) -0,28 -0,51 -0,51 -0,72 -0,48 0,55 0,52 0,95 1,00
VELOCIDADE (m/s) -0,32 -0,63 -0,53 -0,69 -0,49 0,60 0,63 1,00 0,94 1
Fonte: Trabalho de Campo (2020). Organização: Autora (2022).
160 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

No período de verão (fevereiro/2021), a Temperatura do ar e da água correlacionaram


positivamente com a CE (0,75 e 0,70) e o pH (0,76 e 0,69) e negativamente com o OD
(-0,90). O pH correlacionou positivamente com a CE (1,00), o ORP (0,72). O ORP cor-
relacionou positivamente com a CE (0,70). A Turbidez correlacionou positivamente com
o TDS (0,64), a Velocidade (0,60) e a Salinidade (0,55). O OD correlacionou positiva-
mente com a Velocidade (0,63), o TDS (0,62) e a Salinidade (0,55). O TDS correlacionou
positivamente com a Velocidade (1,00) e a Salinidade (0,95), assim como a Salinidade se
correlacionou positivamente com a Velocidade (0,94).
De acordo com Hackbart (2016) em relação aos serviços ecossistêmicos, os parâme-
tros que se mostraram mais adequados para monitoramento dos serviços hídricos frente
aos ganhos de florestas, com grande peso hierárquico na formulação de índices, foram:
turbidez, condutividade e sólidos totais dissolvidos – TDS. Hackbart (2016), hierarquizou as
variáveis pelo algoritmo Random Forest3 de forma a aferir suas relações com a quantidade
de floresta e formular índices de sete serviços hídricos.
A Figura 3 apresenta a interação na paisagem da bacia hidrográfica do Córrego Bebedouro
(MS/Brasil) obtidas por veículo aéreo não tripulável (VANT) em outubro de 2022.

Fig. 3: Sobrevoo com VANT na bacia hidrográfica do córrego Bebedouro (MS/Brasil).


Fonte: Autora (outubro de 2022).

Observa-se a interação sistêmica da vegetação de formação savânica-florestal com a sil-


vicultura de eucalipto. Segundo Hackbart (2016), quando a unidade territorial é a combi-
nação entre floresta e silvicultura há maior oferta de serviços hídricos, contudo com menor
quantidade de floresta o manejo da madeira e a presença de áreas degradadas mudam
completamente esse cenário favorável.
Portanto, a oferta de serviços hídricos responde pelo conjunto de ações que conduz a
uma qualidade efetiva e mensurável para cada porção territorial com suas respectivas con- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

dições de elementos naturais, tipos e interações entre ocupações e usos humanos.

Considerações

Dos parâmetros analisados e do arcabouço teórico foi possível correlacionar e avaliar as


variáveis físico-químicas evidenciando as relações complexas que ocorrem dentro da bacia
hidrográfica considerada modelo para empresa multinacional. Assim, a pesquisa trouxe
3
Algoritmo de aprendizado de máquina utilizado para realizar predições.
161 //
essa análise de forma a apresentar os parâmetros que se mostraram mais adequados para o
monitoramento dos recursos hídricos, a fim de garantir a manutenção dos serviços ecossis-
têmicos hídricos, estes fundamentais para vida terrestre.

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-graduação em Geografia – PPGGEO, à Universidade Federal


de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPTL, ao apoio logístico no transporte oferecido pela
empresa Eldorado Brasil para realização do trabalho de campo no desenvolvimento do
Projeto de monitoramento ambiental das bacias hidrográficas do córrego Bebedouro, cór-
rego Urutú e Ribeirão das Cruzes (MS), ao Laboratório de Sensoriamento Remoto (La-
SeR) por disponibilizar o Drone (VANT), aos integrantes da banca de qualificação pelas
contribuições na pesquisa e pelo apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Services. Gland: IUCN, 2008.
Tucci C. E.; Mendes, C. A. Avaliação ambiental integrada de bacia hidrográfica. Ministério do Meio
Ambiente. Brasília: MMA, 2006. 302 p.
Vágula, P. R.; Sampaio, B. D. S. Análise geomorfológica e limnológica do Córrego do Cedro,
Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. Os desafios da Geografia Física na fronteira do conhe-
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org/10.20396/sbgfa.v1i2017.1822. Disponível em: https://ocs.ige.unicamp.br/ojs/sbgfa/
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Von Sperling, M. Introdução ao tratamento de água e tratamento de Esgoto. 1.ª Edição. Belo Horizonte:
Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental; UFMG; 1996.

Anexo 1 – Variáveis físico-químicas obtidas em 2019 e 2020 na BHCB/MS


164 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Trabalho de Campo (2019-2020). Organização: Autora (2022).


II. AGRICULTURA
E DESENVOLVIMENTO RURAL
Paisagens, patrimónios e desenvolvimento
local: recursos do território
e sustentabilidade

Graça Moreira1

Introdução

Os conceitos de paisagem e património tiveram origem em várias áreas científicas,


como a geografia ou a história ou ainda a arquitetura, mas desde o fim do século passado
estão em abstrato, estabilizados na literatura.
A problemática do desenvolvimento local nas áreas rurais é bastante complexa, varia
de região para região de acordo com as suas características e os problemas específicos que
têm, as soluções que se têm experimentado variam quer na implementação quer nos re-
sultados esperados.
A UNESCO interessa-se pela valorização das paisagens culturais desde 1972, quando
publica a Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural.
A partir desse momento os vários países por todo o mundo vão candidatar ao seu
reconhecimento, um conjunto vasto de territórios com características muito particulares.
Em Portugal as paisagens culturais (não urbanas) reconhecidas pela UNESCO são:
• Paisagem Cultural de Sintra (1995) As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

• Laurissilva da Madeira (1999)


• Alto Douro vinhateiro (2001)
• Paisagem da vinha da Ilha do Pico (2004)

1
FAUL – mariagracamoreira@edu.ulisboa.pt
167 //
Paisagem e património construído

A paisagem como espaço que observamos à nossa volta, quer tenha intervenção huma-
na, quer não tenha, está naturalmente em permanente mutação, ou pelas estações do ano
com alterações de cores e formas, ou por acidentes naturais como derrocadas ou incêndios.
As paisagens que permanecem sem nenhuma intervenção humana são facilmente re-
conhecíveis e podem manter-se estáveis por muito tempo.
Mas como tem evoluído a paisagem rural nas zonas de baixa densidade em Portugal?
Estas áreas são cada vez maiores, a densidade média de população em Portugal con-
tinental em 2022 era de 111.7 hab/km2 mas apresenta a maior parte do território com
media inferior a 49 hab/Km2, nas áreas da raia e do Alentejo com valores entre os 4.3 e
21.5 hab/km2 (PORDATA, 2022) e quando se analisam os dados da taxa de variação da
população entre 2011-2021 os valores negativos abrangem a grande maioria dos municí-
pios. Só a Área Metropolitana de Lisboa, a Área Metropolitana do Porto, o litoral algarvio
e o concelho de Ourique têm dinâmicas positivas. Esta evolução mostra que as regiões de
baixa densidade tendem a expandir-se.
Com este processo de abandono das áreas rurais como é que a alteração demográfica
tem afetado a paisagem? Se as pessoas desaparecem as atividades que anteriormente desem-
penhavam, com reflexo na paisagem desaparecem e esta muda significativamente.
Como é que as alterações dos sistemas de agricultura alteram a paisagem (ex.: agri-
cultura intensiva, alteração de culturas)? Os sistemas agrícolas que se tem difundido nas
últimas décadas são pouco consumidores de mão de obra. Os aglomerados populacionais
estão praticamente vazios.
O conceito de património construído em meio rural levanta algumas questões sobre
como pode e deve ser preservado.
O conceito remete-nos para um passado mais ou menos distante e em que os edifícios
de uso corrente (de arquitetura vernacular), não eram valorizados sendo por isso destruí-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

dos ou adulterados. A arquitetura popular ou vernacular não era considerada porque ape-
nas a arquitetura erudita desenhada por arquitetos era valorizada e preservada.
Atualmente constata-se que a arquitetura popular tem um saber incorporado relacio-
nado com o conceito de sustentabilidade que é muito valorizado.
O conceito de preservação do património só nos últimos 30 anos está a ser difundido
na população. A sua implementação está diretamente relacionada com a sua valorização.
Como tem evoluído a preservação do património construído nos aglomerados rurais?
Quem o promove?
As Câmaras Municipais têm tido uma importância significativa pelo trabalho de sen-
sibilização, catalogação e divulgação dos edifícios que perderam a sua função económica.
168 //
A população urbana que usa, e por vezes é proprietária de edifícios nas áreas rurais,
como zonas de lazer, tem tido grande importância porque está mais sensibilizada para a
importância do desaparecimento.
O olhar das gentes sobre o património vai-se alterando com a mudança das gerações,
desaparece uma certa familiaridade com os edifícios e surge o reconhecimento do saber
que eles incorporam.

Sustentabilidade da paisagem

Muito do património construído até à introdução do cimento armado é bastante sus-


tentável quer pelos materiais usados, quer pela capacidade de adaptação que os edifícios
tinham. O mesmo não se pode dizer de muitas intervenções que se tem espalhado pelo
território nas últimas décadas.
A turistificação dos espaços rurais levanta vários problemas de sustentabilidade da
paisagem, nomeadamente pressão demográfica e de visitantes, falta de educação ambien-
tal, degradação da paisagem. No entanto tem tido um papel positivo na recuperação do
património edificado.
Novos usos como trilhos e passadiços nestas áreas e a consequente maior acessibilidade
para as percorrer, levantam questões sobre o que vamos proteger e como, uma vez que tem
como objetivo tornar facilmente acessível esses territórios.
As estruturas de passadiços em madeira surgem em 2015 nos “Passadiços do Paiva”
com grande sucesso para atrair turistas para a região. Desde esse ano já se contam mais de
30 estruturas desse tipo espalhadas por todo o país com percursos pequenos de 1 ou 2 km
até grandes distâncias de mais de 15 km.
Podemos considerar que os passadiços em madeira e os trilhos que muitas vezes são
complementares se podem dividir em vários tipos quanto ao nível de sustentabilidade da
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
paisagem que lhes são associados:
• De proteção como os que são instalados nas dunas (ex: dunas de Alvor)
• De manutenção de património de percursos ribeirinhos (ex: passadiço do Alamal)
• De abertura de novas frentes de uso (ex. Paiva).

Todos eles promovem o aumento de população que percorre estes espaços e acabam
por afetar a fauna que vive aí.
Estas estruturas que levantam muitas dúvidas sobre a sustentabilidade e preservação da
flora e da fauna parecem ser sobretudo pensadas para proteger a flora das zonas.
169 //
Se nos focarmos na sustentabilidade económica destas áreas estas instalações tem pro-
movido o turismo nas zonas onde são construídos.
Até agora nas paisagens culturais reconhecidas pela UNESCO em Portugal, não foram
construídos passadiços.

Conclusão

As paisagens intocadas não fixam a população, mas são uma reserva de fauna e flora
muito importante.
O património tende a promover a visitação e o turismo, que cria emprego, mas se não
for controlado pode destruir aquilo que quer promover.
A questão de difícil resposta é: como promover o desenvolvimento local, usando a
atividade turística de forma sustentável.

Referências bibliográficas

Comissão Nacional da Unesco, https://unescoportugal.mne.gov.pt/pt/temas/ proteger-o-nosso-pa-


trimonio-e-promover-a-criatividade/patrimonio-mundial-em-portugal (acedido a 9 de junho
2023)
PORDATA (2022). https://www.pordata.pt/municipios/densidade+populacional-452
UNESCO, (1972). Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural.
Chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://whc.unesco.org/archive/
convention-pt.pdf (acedido a 9 de junho 2023)
https://www.vagamundos.pt/passadicos-portugal/#Mapa_com_a_localizacao_dos_pontos_de_
partida_dosPassadicos_mais_bonitos_de_Portugal (acedido a 26 de Setembro 2023)
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
170 //
Relação cidade-campo no Município
de Rosana, SP: um estudo histórico sobre a
importância da CESP na dinâmica do município

Thais Helena Gonçalves1


Diogo Laércio Gonçalves2

Introdução

O município de Rosana-SP, encontra-se na ponta da raia divisória que divide os


Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná, com uma área de 741,216 km² sendo
banhado por dois grandes rios: o Paraná e o Paranapanema que circundam seu território
entre as divisas estaduais (Figura 1).
Seu reconhecimento se dá através do turismo, por suas belezas naturais e por abri-
gar duas grandes obras de usinas hidrelétricas. A Usina Hidrelétrica de Rosana no rio
Paranapanema e a Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta no rio Paraná, ambas cons-
truídas pela Companhia Energética de São Paulo (CESP), no decorrer das décadas de
1970 a 1990.
A demanda de mão-de-obra para a construção destas usinas, fez com que a população
de Rosana, adquire-se uma característica bastante heterogênea, com pessoas vindas de
diversas partes do Estado de São Paulo e do Brasil. Esta configuração só foi possível pela
infraestrutura grandiosa das usinas e pela construção da cidade de Primavera para abrigar As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

os chamados “barrageiros” e suas respectivas famílias.


Com o término das construções das hidrelétricas e o avanço de projetos de reforma
agrária em toda região do Pontal do Paranapanema, muitos barrageiros migraram para os
movimentos sociais de luta pela terra, contribuindo para a criação de vários assentamentos
no município, configurando-se como um dos municípios paulistas com o maior número
de famílias assentadas.
1
Programa de Pós-Graduação em Geografia Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual
Paulista, Presidente Prudente-SP. – thais.helena@unesp.br
2
Professor Assistente Doutor, Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação, Universidade Estadual Paulista,
Ourinhos-SP. – diogo.goncalves@unesp.br
171 //
Fig. 1 – Localização Geográfica do Município de Rosana Fonte: IBGE (2010) Elaboração: Gonçalves, D. L. (2016)

Atualmente, a economia de Rosana gira em torno dos royalties, das usinas hidrelétricas,
dividindo espaço com a agricultura familiar dos assentamentos rurais presentes no municí-
pio, a pecuária extensiva e o comércio e prestação de serviços, sobretudo em Primavera, maior
perímetro urbano do município. Entretanto, as marcas deixadas pela CESP, são evidentes, no
estilo das habitações, na infraestrutura urbana e na qualidade de vida dos moradores, muitos
deles aposentados da própria empresa, como pretendemos demonstrar ao longo deste artigo.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

O município de Rosana: histórico de ocupação

O histórico de ocupação de Rosana, remonta aos anos 1940, quando então várias re-
servas florestais foram desmatadas no estado de São Paulo, governado por Fernando Costa,
com o intuito com o prolongamento da Estrada de Ferro Sorocabana. Posteriormente
década de 1950, já perante governo de Ademar de Barros ficou decido a criação de um
ramal que sairia de Presidente Prudente, até o fim do limite do estado nas barrancas do rio
Paraná, próximo a confluência com o rio Paranapanema.
172 //
Nesse sentido, a empresa Camargo Correia ficou responsável por realizar os estudos
logísticos e topográficos para a construção um ramal que percorreria as reservas do Morro
do Diabo e do 13º Período no sentido Leste-Oeste. O ramal terminaria próximo a con-
fluência dos rios Paranapanema e Paraná, permitindo a ligação dos trilhos através de balsas
para o Estado do Mato grosso do Sul, especificamente até o município de Dourados, daí
surge o nome “Ramal de Dourados” (LEITE,1998).
Em 1954, a Camargo Correia iniciou as obras da construção do ramal. Neste período
toda região do Pontal do Paranapanema, foi ocupada fervorosamente pelos grileiros que
alegavam o direto de posse das terras naquela que era a última grande reserva florestal
do Estado de São Paulo a ser desmatada. Neste contexto, a Imobiliária e Colonizadora
Camargo Corrêa e Ribeiro S.A, optou por construir uma cidade, no ponto do encontro
dos rios Paranapanema e Paraná, como aponta Leite (1998):
[...] Eram 6.050 hectares. A cidade chamar-se-ia Rosana, nome de uma das
filhas de Sebastião Camargo3. O perímetro urbano seria constituído por 1.116 datas
com média de 500 m² cada. A “cidade de Rosana” seria cercada por lotes rurais com-
postos por 144 chácaras medindo de 5 a 10 hectares e mais dezesseis sítios maiores
medindo 116 a 193 hectares, situados no varjão do Paranapanema. (LEITE, 1998)

O edital do loteamento de terras foi publicado em 15 de julho de 1954, todavia, as


obras foram inicialmente embargadas pelo Governo do Estado, alegando que as terras
eram de domínio público. Mesmo com a proibição, enquanto tramitava o processo, a
Camargo Correia comercializou os lotes aos poucos, dando-se assim a criação de Rosana.
Em 1958, o então Governador do Estado de São Paulo Jânio Quadros, inaugurou
em Presidente Prudente os primeiros trechos do Ramal de Dourados. Todavia, devido aos
embates políticos acerca da viabilidade de continuação da obra, devido ao crescimento do
transporte rodoviário, a ideia inicial de levar os trilhos até o encontro dos rios nunca foi
finalizada, mesmo assim, muitas pessoas foram para Rosana em busca de novas oportuni-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
dades e condições de vida (NASCIMENTO,2007).
Inicialmente, Rosana surgiu como parte do município de Presidente Epitácio, sendo
incorporado posteriormente a Teodoro Sampaio em abril de 1964. Nesta época, a liga-
ção para a sede municipal era dada por uma via de estrada de terra de 110km. Também
havia ligações de balsa tanto para o Mato Grosso do Sul no rio Paraná pelo Porto João
Augusto e pelo Porto Primavera, como para o Paraná no rio Paranapanema pelo Porto
Tigre. (SALGADO, et. al., 1969 (2010))

3
Sebastião Camargo era o proprietário da Imobiliária e Colonizadora Camargo Corrêa e Ribeiro S.A, forte-
mente ligado à família do Governador o Estado de São Paulo Ademar Pereira de Barros. (LEITE,1998)
173 //
A população concentrada na região era predominantemente flutuante, composta em
sua maioria por migrantes nordestinos que vieram para o Estado de São Paulo na década
anterior, espalhando em várias regiões do território paulista. A maior parte das atividades
desenvolvidas eram de agricultura familiar de subsistência. Havia também o cultivo de
algodão em maior escala, intercalado com a produção de mamona (SALGADO, et. al.
1969 (2010)).
Na área do varjão, grande planície aluvial do rio Paranapanema, as áreas foram lotea-
das em lotes maiores com poucas habitações, possibilitando a produção em maior escala.
O solo encharcado com periódicas inundações em épocas de cheia, favoreceu o cultivo,
principalmente do arroz, do tipo bico-preto-cana-roxa. As culturas de subsistência limita-
vam-se neste período a pequenas produções de mandioca, milho, feijão opaquinho-minei-
ro, batata-doce, cana-de-açúcar e banana, estes situados em terrenos mais altos próximo ao
espigão divisor dos rios Paranapanema e Paraná (SALGADO, et. al. 1969 (2010)).
Neste contexto, no final da década de 1960 a década de 1970 a rizicultura predo-
minou, especialmente na época de chuvas. Neste período, era comum a maior parte dos
moradores deixarem suas residências e se abrigarem em casas de parentes ou conheci-
dos, durante o enchimento do varjão. Mesmo em terrenos mais elevados, em períodos
de chuva era passível de inundação, devido ao volume d’água apresentado na bacia do
rio Paranapanema. Neste contexto, Salgado et. al. (1969 (2010)), destacou em seus estu-
dos durante o ano de 1965 como era dada a produção de arroz na área do varjão do rio
Paranapanema:
O arroz é plantado em agosto-setembro e colhido em dezembro-janeiro.
Predomina o tipo “bico-preto-cana-roxa”. Cada alqueire do varjão produz comu-
mente 120 sacas de 100 litros. Nêste ano, entretanto, o excesso de chuvas em toda
bacia do Paraná ocasionou violentas enchentes que inundaram grande parte da vár-
zea, fazendo decair a produção para cerca de 25 sacas. Daí a expressão local: “o rio
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

comeu todo o arroz! ” (SALGADO, et. al., 1969 (2010) p. 39)

Toda produção era comercializada no Estado de São Paulo e no Paraná e Mato Grosso
do Sul por meio de balsas. O comércio se tornou crescente e próspero, tanto que na época
dos primeiros estudos apurados desta área, Salgado et. al. (1969 (2010)), mensurou o fu-
turo da região como um “Vale do Paraíba” no Pontal do Paranapanema, em comparação
com a região paulista-carioca de destaque na produção de arroz nas várzeas do rio Paraíba
do Sul. Entretanto, com a construção das hidrelétricas da CESP nas décadas seguintes, o
ritmo da produção diminui, e muitos trabalhadores rurais foram absorvidos para o traba-
lho na construção das usinas, como veremos adiante.
174 //
As Usinas Hidrelétricas da CESP e a criação da “Cidade de Primavera”

Em 1966, o Governo do Estado de São Paulo, decretou a fusão de onze empresas


responsáveis pela geração de energia, centralizando o planejamento e produção com a
criação da Companhia Energética do Estado de São Paulo (CESP). A partir disto, a CESP
concentrou na construção de novas usinas hidrelétricas por todo estado.
Por apresentar uma área privilegiada tanto do ponto de vista logístico como também
geográfico, a cidade de Rosana foi escolhida para abrigar dois novos projetos de usinas
hidrelétricas, sendo uma localizada no rio Paraná junto a divisa com o Estado do Mato
Grosso do Sul e outra localizada no rio Paranapanema, sendo esta na divisa com o Estado
do Paraná.
A construção das usinas se deu a partir de meados da década de 1970. No ano de 1978
visando o desenvolvimento da região, a Secretaria de Economia e Planejamento do Estado
de São Paulo, criou o Programa para o Desenvolvimento do Pontal do Paranapanema.
Leite (1998), afirma que desde o início da década de 1970 a CESP já realizava estudos de
prospecção para a construção de duas usinas: Porto Primavera no rio Paraná e Rosana no
rio Paranapanema, todas estas cerca de 25 km de distância da cidade de Rosana ao norte
e ao leste respectivamente.
Ao total, mais de 10 mil operários, trabalharam na construção das duas usinas.
Os “barrageiros” como eram conhecidos, vieram de várias partes do país, em busca do
sonho de melhores condições de vida. A Usina Hidrelétrica de Rosana foi a primeira a
ser construída e apresentava um projeto mais modesto com apenas 4 turbinas do tipo
Kaplan e um potencial de produção energética de 372MW, num reservatório de 220 km²
(GONÇALVES,2016).
O segundo projeto foi considerado o mais moderno e ousado da CESP. Batizado
de Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta (conhecida popularmente por Porto

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Primavera), possui um lago maior que da Usina ITAIPU Binacional com 2250km². O
projeto inicial apresentava a capacidade para 18 turbinas do tipo Kaplan, sendo destas 14
concluídas. A produção máxima é de 1800MW, entretanto, a produção média da usina
é de 900MW, média considerada baixa, frente a extensão do lago da usina o que faz de
Porto Primavera uma das mais hidrelétricas ineficientes do mundo (GONÇALVES,2016).
Devido à necessidade de mão-de-obra, especialmente no projeto da UHE Engenheiro
Sérgio Motta, a CESP decidiu construir uma cidade para os operários e suas famílias, dando
o nome de Primavera, em referência ao Porto Primavera, existente no rio Paraná. O projeto
foi coordenado pela Divisão de Arquitetura e Urbanismo da CESP, com o conceito linear
retilíneo e baseado em outros projetos da época como no caso de Ilha Solteira (DOURADO,
et. al 2003). As casas em sua maioria são de madeiras pois, além de menor custo, exigia
175 //
menor tempo de construção. A tabela 1 abaixo, mostra os diferentes níveis e quantidades de
alojamentos construídos para abrigar os trabalhadores solteiros em Primavera.

Tabela 1 – Quantidade de Alojamentos para


trabalhadores solteiros da UHE Eng. Sérgio Motta
Nível Tipo Material Quantidade
1 Provisório Madeira 16
2 Provisório Madeira 18
3 Provisório Madeira 08
4 Provisório Madeira 01
Total: 43
Fonte: CESP (1983)

Além disso, a CESP construiu cerca de 43 alojamentos de madeira (Figura 2) desti-


nados a instalação de até 5000 empregados solteiros, em 4 níveis diferentes (CESP,1983).
Esta área provisória que além dos alojamentos contavam com centro comunitário para
atividades de comércio, lazer e cozinha piloto com refeitório, foi, em parte, demolida
ou então destinada para outros usos após a construção da hidrelétrica, como na área que
atualmente encontra-se a Faculdade de Engenharia e Ciências da UNESP.
As casas possuem padrões diferentes de acordo com as camadas sociais as quais os
trabalhadores das usinas se encontravam (engenheiros, chefes, arquitetos, mecânicos, pe-
dreiros etc.), variando numa escala de 2 a 6, em casas de madeira e alvenaria. Este mo-
delo foi parecido ao aplicado no caso de Ilha Solteira. No total, foram construídas 4.890
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 2 – Alojamento provisório para solteiros na década de 1980. Fonte: CESP


176 //
moradias, sendo 880 unidades reaproveitadas do alojamento da Usina Água Vermelha em
Indiaporã-SP. Destas unidades, 508 foram destinadas ao uso pessoal dos trabalhadores da
Usina Hidrelétrica de Rosana (CESP,1983).
As moradias de níveis 2 a 4 dos tipos C a B1, B2, B3 e B4 (Figura 3), que contabilizam
4505 unidades, seguem o modelo de construções geminadas enquanto as de níveis 5 a 6
dos tipos A3, A3 e A4, que contabilizam 385 unidades, são de construções individuais,
como podemos ver na tabela 2 abaixo:

Tabela 2 – Quantidade de moradias construídas em Primavera


Nível Tipo Material Modelo Construtora Quantidade
2 C Madeira Geminada Belma 2.790
3 B2 Alvenaria Geminada C.C.C.C. 600
3 B4 Madeira Geminada Casa Bella 500
4 B1 Alvenaria Geminada Jaú 350
4 B3 Madeira Geminada Casa Bella /C.C.C.C. 265
5 A2 Alvenaria Individual Servix 245
6 A4 Alvenaria Individual C.C.C.C. 60
6 A3 Madeira Individual C.C.C.C. 80
Total 4.890
Fonte: CESP (1983)

No que se refere a infraestrutura de Primavera, a CESP investiu em 562.000 m² de


construções de equipamentos públicos como escolas, hospitais, prefeitura, bancos, polícia,

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Fig. 3 – Construção das moradias da Vila Piloto Porto Primavera no início da década de 1980, detalhe para o
padrão das casas de madeira “coladas” umas às outras. Fonte: CESP
177 //
bombeiros, Hotel da CESP, Horto Florestal, Coleta de Lixo, Cemitério, Correios, Igreja
Católica, Clubes de Lazer, Entreposto de Abastecimento etc.
Ao total foram construídas 5 escolas (sendo uma provisória, com cerca de 56 salas de
aula, distribuídas nos sentidos: Norte (atual EMEFEI Antônio Félix Gonçalves), Sul (atual
E.E. Porto Primavera), Leste (atual Centro de Ensino Superior de Primavera) e Oeste
(atual E.E. Profª. Maria Audenir de Carvalho).
Também foi construído um hospital definitivo com capacidade para 66 leitos, com
infraestrutura completa de U.T.I, Radiologia, Pronto-Socorro, Farmácia, Laboratório,
Ambulatório e Maternidade, além de diversos médicos especialistas, como: cardiologista,
otorrinolaringologista, ginecologista, pediatra etc. (CESP, 1981). Atualmente um novo
hospital regional construído pelo governo do estado, deu lugar ao hospital antigo da CESP,
que hoje ocupa apenas a ala dos pacientes permanentes.
Quanto aos equipamentos de lazer, foram construídos um estádio, um cinema (atual
Casa da Cultura), além de dois clubes Rosana Esporte Clube (R.E.C) e Associação Atlética
Porto Primavera (A.A.P.P.). O projeto de Primavera, também previa a manutenção de 3
grandes Áreas de Proteção Ambiental dentro da área urbana, sendo estas mantidas até hoje.
Além disso, vários terrenos foram mantidos como áreas verdes entre as quadras do distrito,
sendo atualmente vendidos em leilão pela CESP. Do total de áreas verdes o projeto inicial
contava com uma média de 78,5 m² por habitante, como podemos ver na tabela 3 abaixo:

Tabela 3 – Infraestrutura inicial da cidade de Primavera


Cidade de Primavera – Infraestrutura
Área total de ocupação 6.090.000 m²
Equipamentos Comunitários 562.000 m²
Área Construída (Residências) 550.000 m²
Áreas Verdes (78,5m² por habitante) 1.620.000 m²
Ruas (Extensão) 57.910 m
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Fonte: CESP (1981)

A vila piloto, foi incorporada ao município de Rosana e elevada à condição de distrito


por meio de um plebiscito realizado no ano de 2016. Muitos ex-funcionários, aposen-
tados, além de comerciantes e o pouco quadro de funcionários atuais das duas usinas
residem a maior parte no distrito de Primavera, sendo este mais populoso que a sede
municipal de Rosana, com cerca de 10.000 habitantes. Uma pequena população flutuante
é dada pelos estudantes universitários do Campus Experimental da UNESP, que conta
com dois cursos de graduação (Turismo e Engenharia de Energia). Atualmente a principal
atividade econômica do distrito é o comércio.
178 //
Reforma Agrária e as mudanças no espaço rural do município de
Rosana

Na segunda metade da década de 1980, devido a problemas de verba pela crise eco-
nômica vivida em todo país. As obras da UHE Engenheiro Sérgio Motta, foram parali-
sadas, fazendo com que muitos barrageiros ficassem sem emprego. Concomitantemente,
crescia no Pontal do Paranapanema, um importante cenário de luta pela terra, devido a
contestação dos títulos de posse das grandes propriedades rurais na área da Grande Reserva
do Pontal, o que desencadeou várias atuações de movimentos sociais de liderados pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que mais tarde ganharia forte
repercussão, tanto no cenário nacional como internacional. (PASSOS,2011)
A primeira ocupação oficialmente organizada pelo MST na região foi na Fazenda
Nova Pontal em Rosana no dia 14 de julho de 1990. De acordo com Silva (2010), mais
de mil pessoas ligadas ao MST ocuparam a fazenda as margens do rio Paranapanema, com
boias-frias, ‘barrageiros’ desempregados, arrendatários etc. Inicialmente os acampamentos
foram montados às margens da Rodovia Arlindo Bettio e em área provisória cedida pela
CESP, onde atualmente encontra-se o Cinturão-Verde, localizado as margens do núcleo
urbano de Primavera (PARALELO 19, 2014).
A ocupação perdurou até 1991, quando então os ocupantes foram para outro acampa-
mento. Mais tarde, em 1997 o Governo do Estado de São Paulo, com apoio do INCRA,
ITESP e CESP, negociou a desapropriação da Fazenda Nova Pontal, permitindo a criação
do assentamento em 1999. Presentemente 122 famílias residem no assentamento.
Outros três projetos de assentamentos rurais foram estabelecidos no município de
Rosana: o maior deles é o assentamento Gleba XV de Novembro, iniciado em março de
1984, por um grupo constituído por trabalhadores que havia perdido o emprego pelo
término das obras das hidrelétricas e por população ribeirinha, prestes a perder suas posses
pelo enchimento do lago. Todavia, a maior parte do grupo (92,8%) possuía experencia
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em agricultura, o que facilitou a criação do assentamento por parte do INCRA e ITESP
(ITESP,2005).
A CESP, por sua vez, ficou responsável pela construção de obras de infraestrutura para
o assentamento, como medida compensatória pela construção das usinas hidrelétricas no
município, o restante ficou a cargo do Instituto de Assuntos Fundiários (atual ITESP).
Atualmente a gleba conta com 13.310,76 hectares, distribuídos em 5 setores divididos em
571 lotes, que variam entre 13 a 40 hectares, de acordo com a aptidão agrícola da área.
Os menores lotes, possuem melhor qualidade para plantio, enquanto os maiores, possuem
solos menos férteis, destinado em sua maioria para a pecuária leiteira (ITESP,2005)
179 //
Com relação a infraestrutura da Gleba XV, de acordo com o ITESP (2005), exis-
tem quatro escolas públicas no assentamento, além de alguns núcleos emergências rurais
que oferecem a Educação Infantil e o Ensino Fundamental I. Além disso, o assentamen-
to possui dois postos de saúde nos setores II e III além de um Programa de Agentes
Comunitários (PACs) no setor V. No que diz respeito ao lazer, o assentamento possui
um campo de futebol no setor II e uma quadra de esportes no setor III. Há também três
barracões comunitários utilizados para guardar maquinário ou para realização de festas.
Os outros dois projetos de assentamento, são os menores do município, sendo eles:
Bonanza com capacidade para 33 lotes, criado em 1999 e o mais recente Porto Maria, com
capacidade para 41 lotes criado em 2008.Neste contexto, cabe ressaltar a importância de
Rosana neste cenário de reforma agrária e luta pela terra, já que o município é o segundo
maior em número de assentados do estado, ficando atrás apenas do município de Mirante
do Paranapanema. A tabela 4 abaixo, mostra a distribuição de assentamentos no município:

Tabela 4 – Assentamentos Rurais no município de Rosana


Nome do Assentamento Capacidade (Lotes) Famílias Assentadas Área total (ha) Data de Criação
Nova Pontal 122 115 2.786,90 10/12/1999
Bonanza 33 31 1.144 04/10/1999
Gleba XV de Novembro 571 562 13.310,76 14/12/1999
Porto Maria 41 41 1.064,98 30/12/2008
Fonte: Incra – Informações gerais sobre os assentamentos da Reforma Agrária. Disponível em: < http://painel.
incra.gov.br/sistemas/index.php > (Acesso, jul/2022)

Cinturão Verde, Campinho, Beira Rio e Periurbanização no município


de Rosana

No que se refere a periurbanização, os bairros: Cinturão Verde, Campinho e Beira Rio,


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são uma mostra de uma tendência de uma Nova Ruralidade vigente nos tempos atuais. De
acordo com Goméz (2001), esta Nova Ruralidade, está baseada em três fatores: a moder-
nização do setor agropecuário, a emersão de novas atividades não-agrícolas desenvolvidas
no âmbito rural (tais como lazer, turismo e etc.), além de um conjunto de novas atividades
agrícolas desenvolvidas para nichos específicos do mercado.
Neste contexto, podemos considerar esta Nova Ruralidade, como uma área rural pe-
netrada pelo meio urbano, constituída de novos e velhos personagens com ou não expe-
riencia no meio rural (GOMÉZ,2001). É neste contexto que se configura os bairros rurais
adjacentes aos núcleos urbanos de Primavera e Rosana. A construção das hidrelétricas, foi
responsável direto pelo povoamento efetivo do município, além de modificar as atividades
180 //
exercidas por parte dos pequenos produtores rurais ali existentes, que passaram a trabalhar
de mão-de-obra nas usinas.
Sendo assim, parte dos trabalhadores das usinas hidrelétricas já haviam experiência
no campo, o que de certa forma, fez com que muitos preferissem morar em áreas rurais
mantendo uma atividade agrícola para complementação de renda. É o caso dos moradores
dos bairros Campinho e Beira Rio.
O Bairro Campinho, foi estruturado na época da construção da sede municipal, ainda
pela empresa Camargo Correa, contendo pequenas propriedades rurais, chácaras de vera-
neio e fazendas. Com a divisão dos lotes para a construção do núcleo urbano de Rosana,
a Camargo Correa optou por lotear a porção sul do município para atividade agrícola,
envolvendo todo o varjão do rio Paranapanema até o encontro dos rios. Houve várias ten-
tativas de produção nesta área como o arroz devido aos solos úmidos, além da criação de
bubalinos, todas barradas pelo Ministério Público em função da área atualmente constituir
em uma Área de Proteção Ambiental.
Já o bairro Beira Rio, formou-se posteriormente na porção norte do município, as
margens do rio Paraná, composto essencialmente por pescadores que vieram para a região
pela fartura dos peixes ali apresentados. No que se refere a infraestrutura, a área conta com
um porto de areia em operação legalizada pelos órgãos ambientais competentes, desde o
início dos anos 2000, além de pousadas e hotéis para turistas e lanchonetes e restaurantes
com comidas típicas da região. Atualmente o bairro conta além dos pescadores locais, uma
população flutuante composta por turistas e proprietários de chácaras de veraneio.
Em ambos os casos, caracterizam-se como espaços plurifuncionais, onde coexistem ca-
racterísticas de uso do solo tanto urbano como rural, devido a presença do núcleo urbano
ser relativamente próxima (GUALDANI, et. al., 2005). Esta tendência se aplica pela coe-
xistência de atividades essencialmente agrícolas como não-agrícolas como turismo, lazer e
atividades ligada à imagem de qualidade de vida (Vale & GERARDI, 2006).
De acordo com Vale & Gerardi (2006), é comum atribuir a este tipo de turismo
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desenvolvido no espaço periurbano como turismo rural, como no caso de pesque-pague,
restaurantes e lanchonetes (típicos da região do bairro Beira-Rio), mesmo quando o pro-
prietário não apresente nenhum vínculo afetivo com o local, residindo inclusive no núcleo
urbano principal ou em outras cidades. Desta forma, desenvolvem-se atividades do âmbito
urbano no meio rural.
No caso do bairro Campinho, atualmente divide-se em pequenas propriedades rurais,
fazendas com a criação de gado e pequenos lotes com ranchos de veraneio na região cha-
mada de “Pontalzinho”, próximo ao encontro dos rios Paraná e Paranapanema. Muitos
proprietários utilizam a área como segunda residência, destinados ao descanso de fim de
semana. (Vale & GERARDI, 2006)
181 //
Já no extremo leste do perímetro urbano de Primavera, localiza-se o Cinturão Verde,
bairro periurbano, onde grande parte das atividades é voltada ao cultivo de hortaliças. O
caso do Cinturão Verde de Primavera, remete a outro caso envolvendo a CESP, na forma-
ção do Cinturão Verde de Ilha Solteira, concebido no intuito de dar suporte ao núcleo
urbano planejado para ser futura cidade, produzindo alimentos e gerando emprego, englo-
bando a demanda de terras e empregos a população. (MORAES, et. al, 2006)
Todavia, a criação do Cinturão Verde de Primavera, se deu de maneira diferente e
pouco compreendida até então. Inicialmente, as terras eram de propriedade da FEPASA,
cujo intuito, era para construção de parte da linha do Ramal de Dourados, que não foi
concluída devido a estagnação das obras na década de 1980. Com a ocupação da Fazenda
Nova Pontal no final dos anos 1980, a CESP negociou as terras da FEPASA e assentou
parte das famílias, dando origem ao cinturão verde.
Entretanto, nos documentos oficiais da CESP há poucas informações sobre a forma
pela qual foi dividido e distribuídos os lotes. Alguns ex-funcionários da CESP, possuem
lotes no local, utilizando-os como segunda residência. A comercialização dos lotes também
é realizada, mesmo em alguns casos não possuindo o registro da propriedade, algo comum
tanto nas propriedades rurais, como nas residências feitas pela CESP, que não possuem
escritura devido as divergências nos documentos após o repasse a prefeitura municipal.
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Fig. 4 – Mapa base do Município de Rosana. Elaboração: Gonçalves, D. L. (2017)


182 //
Este fator também se difere de Ilha Solteira, onde as titulações dos lotes surgiram no final
da década de 1990. (SANT’ANA, et. al, 2014)
Esta área também se evidencia como espaço periurbano, por caracterizar-se em uma
zona de contato direto, entre ambientes que tradicionalmente eram considerados distin-
tos: o urbano e o rural. Nestas áreas ainda que predominem atividades como cultivos de
hortaliças e criação de gado, a pressão exercida pelo urbano pela sua proximidade é muito
maior. Esta pressão, faz com que, possa emergir vários conflitos e diversas escalas no âm-
bito da relação cidade-campo (SÁNCHEZ, 2009). O mapa (Figura 4), mostra a atual
configuração do município, contemplando os assentamentos e espaços periurbanos.
Atualmente, novas moradias vêm sendo construídas ao longo do Cinturão Verde, em
diversos padrões. Em locais onde as terras não haviam sido loteadas, é crescente a cons-
trução de moradias para a população de baixa renda que tem ocupado o local em busca
da casa própria. Em outros casos, funcionários aposentados buscam na tranquilidade e na
proximidade com as práticas agrícolas que remetem ao seu passado, construindo moradias
amplas e confortáveis, com aparelhos de lazer como piscinas, tanto para residência fixa
como para segunda residência.
Quanto ao cultivo de hortaliças, grande parte da produção produzida no Cinturão
Verde por pequenos proprietários é vendida, sobretudo no distrito de Primavera, diaria-
mente em pick-ups, no centro do distrito, ou então na Feira Livre que ocorre semanalmen-
te as sextas-feiras no período noturno, juntamente com os produtos de agricultura familiar
advindos dos assentamentos do município.

3. Considerações finais

As particularidades que envolvem a formação e atual configuração do município de


Rosana, tem, em sua maioria, o papel da CESP como principal agente transformador, tanto
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no meio rural como urbano. No meio urbano, a criação do atual distrito de Primavera, é
a maior prova disso. O perímetro urbano foi totalmente planejado e até hoje conserva boa
parte das construções da época da CESP.
Já na área rural, a CESP também teve um papel fundamental no apoio e na infraestru-
tura para a criação dos assentamentos rurais, bem como na criação do Cinturão Verde no
extremo leste de Primavera. Atualmente, a agricultura familiar é uma das principais fontes
de renda no município, que conta com muitos ex-barrageiros em sua composição.
Nas regiões ribeirinhas como no caso do Pontalzinho, Beira-Rio e no bairro Campinho,
a pesca é a principal atividade econômica desenvolvida, movimentada principalmente pelo
183 //
interesse dos turistas. Também se desenvolvem nas beiras dos rios Paraná e Paranapanema,
praias de água doce que atraem os visitantes para o município.
Quando ao espaço periurbano do município, podemos caracterizar como um espaço
diverso e complexo, dado as diferenças estruturais da fundação de cada um dos bairros
mencionados. O bairro Campinho, que consiste em pequenos núcleos de agricultura fa-
miliar e latifundiários, dividindo o espaço com chácaras de veraneio e uma pequena popu-
lação ribeirinha na região do Pontalzinho.
O bairro Beira-Rio, com o seu histórico voltado ao desenvolvimento da atividade
pesqueira e recentemente a extração de areia do rio Paraná e o crescimento do Turismo
Rural, por meio de bares, lanchonetes, restaurantes, hotéis e ranchos de temporada. O
Cinturão Verde de Primavera, apresenta aspectos muito diferenciados de outros projetos
da CESP, como Ilha Solteira, onde não houve a presença efetiva tanto para a organização
dos produtores rurais quanto na disponibilidade de equipe técnica e equipamentos para o
desenvolvimento das atividades agrícolas entre os produtores assentados no local.
Por fim, a atual configuração do município de Rosana, demonstra que o mesmo se
encontra em processo de reconstrução. Dado o término das obras das usinas hidrelétricas,
o comércio e a prestação de serviços passam a ser as principais atividades econômicas de-
senvolvidas no município. A população diminui significativamente, com relação ao final
da década de 1990 e início da década de 2000, muito em decorrência da falta de oportuni-
dade, sobretudo para a população jovem, que tem migrado para cidades médias em busca
de estudos e emprego.

Referências bibliográficas

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Geografia: ações e reflexões,2006
185 //
Relação cidade-campo e a agricultura
urbana e periurbana em Jundiaí-SP

Alan da Silva Vinhaes1


Antonio Nivaldo Hespanhol2 Tamires Regina Rocha3

1.Introdução

O estudo da morfologia urbana tem sido um importante ponto de partida para se


compreender diferentes processos e fenômenos que estão atrelados às transformações em
curso no espaço urbano.
A agricultura urbana e periurbana (AUP) tem sido tema de diversas pesquisas nos
contextos brasileiro e mundial. A AUP integra o sistema econômico, ecológico e social
das cidades, além de proporcionar segurança alimentar, este modelo de agricultura pode
contribuir para gerar oportunidades de trabalho e renda.
A AUP modifica a paisagem urbana, proporcionando educação ecológica, inclusão
social e práticas de economia solidária.
Cabe a destacar que a pesquisa ainda se encontra em fase de desenvolvimento, sendo
apresentado, nesse trabalho, os seus resultados preliminares.
Para a consecução dos objetivos da pesquisa foram adotados os seguintes procedimen-
tos metodológicos: levantamento e análise da bibliografia que trata dos temas relacionados As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

às políticas públicas; agricultura urbana e periurbana; segurança alimentar e economia


solidária; morfologia urbana e espaço periurbano. Este levantamento consiste no estudo
de referências teóricas já publicadas em material impresso e eletrônico, como livros, artigos
científicos, páginas de web sites (FONSECA, 2002).

1
Doutorando pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Presidente
Prudente. – alan.vinhaes@unesp.br
2
Docente no Departamento de Geografia na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
Campus de Presidente Prudente. – nivaldohespanhol@unesp.br
3
Doutoranda pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Presidente
Prudente. – tamiresrerocha@hotmail.com
187 //
Também foi realizado o levantamento do processo de ocupação do município de
Jundiaí-SP.
O texto se encontra estruturado em duas seções, além da introdução, das conclusões
e das referências. Na primeira seção, abordamos a relação cidade-campo, o conceito de
urbanização difusa, e na segunda, tratamos da agricultura urbana e periurbana e suas de-
finições, além do papel da AUP no contexto da implantação do Programa Horta Urbana
em Jundiaí-SP.

2. As relações cidade-campo e suas definições

O período atual é caracterizado pela intensa urbanização de algumas áreas, havendo


repercussão sobre os espaços rurais situados nas proximidades das cidades, os chamados
espaços periurbanos que apresentam grande diversidade de usos do solo. Se no passado
as atividades desenvolvidas nos espaços urbano e rural os diferenciavam, atualmente, o
meio rural deixou de ser exclusivo das atividades agrícolas incorporando funções até então
exclusivas das cidades.
Para Lefebvre (2001), a relação cidade-campo mudou profundamente no decorrer do
tempo histórico, segundo as épocas e os modos de produção e são resultados da divisão
social do trabalho.
Marques (2002, p. 100) salienta que existem duas grandes abordagens sobre as defini-
ções de cidade-campo: a dicotômica e o continuum. Na abordagem “dicotômica o campo
se opõe a cidade; já na abordagem do continuum a industrialização seria elemento que
aproximaria o campo da realidade urbana. Sorokin, Zimmermann e Galpin (1986) são
referências da abordagem dicotômica e enfatizam diferenças entre rural e urbano”.
A cidade no passado “correspondia a funções de administração e centralização e o
campo isolamento e dispersão, ao identificar essas mudanças no tempo histórico, Lefebvre
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aponta que a separação entre esses dois espaços pode e deve ser superada a medida em que
se institui novas relações de produção” (OLIVEIRA; SANTOS, 2013, n.p). As relações
entre cidade e campo e urbano e rural passam a caracterizar-se mais pela complementari-
dade e menos pela oposição.
Para Sánchez (2019, p. 94) os processos já não são mais os mesmos, pois
[…] ni desde lo urbano, ni desde el espacio rural. Las ciudades, en sus tenden-
cias de expansión y crecimiento, ocupan áreas deshabitadas de muy bajo o nulo
valor productivo; por otro lado, también incorporan terrenos localizados en zonas
de producción agrícola. El proceso entraña una serie de transformaciones profundas
del espacio en cuestión.
188 //
Embora conceba que a relação cidade-campo se altera com o passar do tempo históri-
co, Lefebvre (2001) considera a urbanização um processo geral e inevitável no qual:
[...] a cidade em expansão ataca o campo, corrói-o, dissolve-o. [...] A vida urba-
na penetra na vida camponesa despojando-a de elementos tradicionais: artesanato,
pequenos centros que definham em proveito dos centros urbanos (comerciais e in-
dustriais, redes de distribuição, centros de decisão, etc). (LEFEBVRE, 2001, p. 74).

Um dos conceitos que vem ganhando relevância no meio acadêmico para entender a
relação cidade-campo é da urbanização difusa. O autor pioneiro a tratar de estudos referentes
ao espraiamento da cidade foi Gottmann (1961), ao analisar o Nordeste dos Estados Unidos.
Muitas expressões foram criadas ou recuperadas para analisar tal processo e as formas espa-
ciais associadas a ele, que são: urbanização e cidades difusas, urbanização e cidades dispersas,
difusão reticular, suburbanização, periurbanização, contraurbanização, entre outras.
Sposito (2007, p. 45) tendo como referência os estudos de Dematteis (1998) sobre di-
fusão reticular do território, identifica os principais fatores que caracterizam a urbanização
difusa: “a) crescimento populacional e territorial, sendo o último com maior proporção
em relação ao primeiro; b) ruptura da continuidade da malha urbana (consolidação de
fragmentos com vazios intersticiais); e, c) aumento da diferenciação”.
Dematteis (2015, p. 23) utiliza o termo difusão reticular da cidade e entende a “ur-
banização difusa como o restabelecimento, nos campos e nas pequenas cidades, de uma
população não agrícola que podia disseminar no território elementos tipicamente urbanos:
casas de campo, galpões, centros comerciais ao longo das estradas e similares”.
A urbanização difusa não está relacionada exclusivamente a mudanças nos valores e
nas atividades familiares, mas também a outros aspectos.
Com efeito, a dispersão da cidade, antes de suas periferias, depois ao redor delas
e, depois ainda, na cidade difusa, é o que aumenta vertiginosamente a diversidade

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das situações: a cidade, a cidade difusa principalmente, é ao mesmo tempo, concen-
tração, reinvenção de suas partes mais antigas, modificação das partes modernas,
densificação em rarefação, produção de novos lugares centrais de densidade, de pro-
ximidade e de distanciamento, de distância e de separação (SECCHI, 2007, p. 118).

De acordo com Sposito (2004), a urbanização difusa resulta em uma realidade terri-
torial complexa no município de Jundiaí devido à sua localização entre dois importantes
centros urbanos e consumidores: Regiões Metropolitanas de São Paulo e de Campinas,
além de possuir acesso privilegiado às principais vias de circulação: Rodovias Anhanguera
e Bandeirantes. Deste modo, é caracterizado por um meio regional urbanizado e indus-
trializado, apresentando os principais elementos que caracterizam a urbanização difusa.
189 //
Portanto, a delimitação entre urbano e rural se torna uma tarefa cada vez mais difícil,
pois, as atividades presentes em ambos se confundem, perdendo as características especificas
que possuíam anteriormente, em que, no campo eram realizadas as atividades ligadas à agri-
cultura e pecuária, e na cidade as atividades relacionadas a indústria e aos serviços. As novas
conformações ou características podem resultar na constituição de espaços periurbanos.
Puig (2016, p. 5-6) salienta que o espaço periurbano é considerado dinâmico e muda
[…] conforme la ciudad se expande sobre el suelo rural que la circunda. De esta
manera se materializarían sobre el territorio los distintos paradigmas de desarrollo
urbano, que son cambiantes en el tiempo e indisociables de las coyunturas sociales,
ambientales y económicas de cada momento. Es por ello que, en la bibliografía con-
sultada, resulta frecuente que la investigación sobre este espacio divida a los autores
en dos grandes bloques: aquellos que profundizan sobre el efecto que ejerce en un
sentido físico la expansión urbana (cambios en los usos del suelo, morfología de la
ciudad, infraestructuras, etc.); y aquellos otros que estudian estos procesos de periur-
banización desde una perspectiva eminentemente social y económica (difusión en el
ámbito rural de valores urbanos, segregación residencial, movilidad diaria, etc.). Más
que entrar en conflicto, ambos enfoques se complementan y resultan necesarios en la
concepción del espacio periurbano en un sentido integral; si bien será la perspectiva
física la que cobre mayor importancia en el desarrollo de este documento.

Vale (2005, p. 82) expõe que a plurifuncionalidade é uma característica muito impor-
tante do espaço periurbano,
[...] pois expressa uma realidade que o diferencia dos espaços rural e urbano. No
entanto, a mistura de usos do solo não é algo exclusivo do espaço periurbano, uma
vez que as práticas agrícolas em terrenos urbanos ou a implantação de indústrias em
áreas rurais é bastante comum. Ocorre que no espaço periurbano, essa mistura pode
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ser tão intensa, que dificulta a separação entre o que é rural do que é urbano. Isso
permite que a dinâmica periurbana tenha características próprias. Aliás, considera-
mos a importância do periurbano muito mais pela sua dinamicidade do que pelo
fato de ser um espaço rural ou urbano.

De acordo com España (1991) apud Alves e Vale (2013, p. 34) a integração do espaço
rural pela cidade ocorre por meio de duas etapas distintas: “1) crescimento compacto,
em forma de anéis concêntricos, invadindo os espaços mais próximos, integrando-os à
economia urbana, e 2) urbanização de áreas mais distantes. A essa segunda forma de urba-
nização, chamamos de difusa”.
Outra forma de conceber o espaço periurbano é a de espaço vazio,
190 //
[...] reserva especulativa do solo à espera de ocupação por atividades urbanas.
Assim, surgem extensas superfícies improdutivas que, muitas vezes, são tão importan-
tes quanto a superfície urbanizada. Essa transformação dos usos do solo acaba provo-
cando elevação nos preços dos bens ali produzidos, bem como o preço do solo. Dessa
forma, a terra rural passará a ser negociada em metros quadrados e não mais em hec-
tares. A manifestação da especulação imobiliária pode ocorrer, então, tanto na venda
dos lotes quanto na sua “estocagem” para venda posterior (Alves; Vale, 2013, p. 35).

Nesse sentido, percebemos claramente que “está em processo no espaço periurbano a


transformação da economia rural, baseada essencialmente na agricultura, em economia ur-
bana, baseada na indústria e nos serviços. Esse fato poderia nos levar a conceber esse espaço
como simplesmente um continuum urbano ou rural-urbano” (Alves; Vale, 2013, p. 36).
Puig (2016, p. 6) considera que as condições
que plantea para la actividad agraria periurbana el fenómeno urbanizador, no es
de extrañar que muchas de las aproximaciones teóricas a este espacio hayan surgido
precisamente desde el mundo de la agricultura urbana y periurbana. La definición de
la práctica agrícola periurbana, una actividad productiva con incidencia económica y
territorial, obliga a delimitar de manera teórica el espacio que soporta esta actividad.

A agricultura urbana e periurbana (AUP) costuma se estabelecer nestes espaços “va-


zios” ou indeterminados onde normalmente são cultivadas hortaliças, frutas e outros pro-
dutos perecíveis tanto para a subsistência quanto para a venda, sendo importante para
complementar a renda e mesmo para gerar renda.
Para se analisar a AUP se faz necessário entender o que é, como se distribui no tecido
urbano e suas dinâmicas nas cidades, para que assim, se possa considerar e identificar quem
são os agentes que participam, ou seja, quem são os agricultores urbanos e periurbanos,
quais são os canais de comercialização utilizados e como se dá a atuação governamental,
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especialmente da administração municipal.

3. A multifuncionalidade da agricultura urbana e periurbana em


Jundiaí-SP

Os termos agricultura urbana e periurbana são adotadas pela Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e está relacionado com o uso de pequenos
espaços localizados nas cidades ou nas áreas periféricas para o cultivo agrícola e cuidados
de animais, destinados ao autoconsumo ou a comercialização (MELO, 2016).
191 //
Estas práticas podem ser realizadas em espaços públicos ou privados “dentro do perí-
metro urbano e ainda no espaço periurbano de municípios, ocupações urbanas, parques,
áreas de proteção ambiental, praças, canteiros de estradas e rodovias, corredores ecológi-
cos, parques hortícolas, programas de habitações populares, condomínios, entre outros”
(Alves et al., 2019, p. 163).
A AUP tem sido considerada como
[...] uma solução para um conjunto de problemas sociais, ambientais e econô-
micos enfrentados na cidade pelos diversos órgãos internacionais, governos nacio-
nais, locais e diversas organizações da sociedade civil. A AUP tem sido defendida
como solução de múltiplos problemas, pois, além de ser uma atividade de geração de
renda, que pode promover a autonomia financeira e a qualidade de vida para pessoas
de baixa renda, pode ser uma atividade que promove economia nas compras alimen-
tícias, saúde psicológica, promoção do convívio comunitário, bem como a saúde
alimentar, ao aproximar as pessoas do consumo de produtos orgânicos e naturais
(GIACHÉ; PORTO, 2015, p. 45).

Azevedo et al. (2018) expõem que a prática de diversas atividades relacionadas à pro-
dução de alimentos, ocorre tanto no interior quanto nas áreas periféricas das cidades,
assim, se desponta como alternativa para a produção, autoconsumo, comercialização,
novas oportunidades de emprego, além de proporcionar melhores hábitos alimentares para
a populações das cidades.
A AUP vem demonstrando a capacidade de desempenhar um importante papel na diver-
sificação e fortalecimento de estratégias de planejamento e administração das cidades. A sua
definição perpassa por uma “variedade de categorias de análise que buscam a diferenciação do
conceito, afim de que aquela se torne um objeto de investigação distinto da agricultura prati-
cada no meio rural, bem como objeto de políticas públicas específicas” (ROSA, 2011, p. 3-4).
A AUP compreende diversas atividades relacionadas à produção de alimentos e conser-
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vação “dos recursos naturais dentro dos centros urbanos ou em suas respectivas periferias,
e surge como estratégia efetiva de fornecimento de alimentos, de geração de empregos,
além de contribuir para a segurança alimentar e melhoria da nutrição dos habitantes das
cidades” (MACHADO; MACHADO, 2002, p. 5).
De acordo com Ferreira (2013, p. 42), a AUP localiza-se dentro ou ao redor das cida-
des, sendo que
A área intra-urbana refere-se a todos os espaços dentro das cidades que podem
ter algum tipo de atividade agrícola. Podem ser áreas individuais ou coletivas ou
ainda áreas públicas dentro e entre os contornos das cidades, incluindo as vias públi-
cas, praças, parques e áreas ociosas como lotes e terrenos baldios.
192 //
Rosa (2011) expõe que a AUP pode estar relacionada em diferentes aspectos que vão
desde a sua localização, tipos de áreas, sua escala, modo de produção, diversidade de pro-
dutos e a comercialização.
As definições mais usuais da AUP, de acordo com Mougeot (2000, p. 3), se baseiam
nos seguintes elementos: “tipos de atividade econômica; localização intra-urbana ou pe-
riurbana; tipos de áreas onde ela é praticada; sua escala e sistema de produção; as categorias
e subcategorias de produtos (alimentícios e não alimentícios); e a destinação dos produtos,
inclusive sua comercialização”.
Como demonstrado na figura 1, o conceito de agricultura urbana está associado a
produção, entretanto, os conceitos mais atuais inserem também o processamento e a co-
mercialização, e as interações entre todas essas fases.
“Na agricultura urbana, a produção e a venda (e também o processamento) tendem a
estar mais interrelacionados no tempo e no espaço, graças à maior proximidade geográfica
e ao fluxo de recursos mais rápido” (MOUGEOT, 2000, p. 3).
Um dos elementos citados na figura 1 é a localização, pois se define o local em que será
praticada a atividade nas cidades (MOUGEOT, 2000).

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Fig. 1. Elementos que definem a agricultura urbana e periurbana. Fonte: Mougeot (2000, p. 3).

Mougeot (2000, p. 3-4) destaca que poucos estudos realizam uma verdadeira diferen-
ciação entre os locais intra-urbanos e os periurbanos, ou,
[...] se o fazem, usam critérios muito variados. Os que consideram essas dife-
renças têm usado como critérios, para definir a “agricultura intra-urbana”, o número
de habitantes; a densidade mínima; os limites oficiais da cidade (Gumbo e Ndiripo,
1996; Murray, 1997); os limites municipais da cidade (Maxwell e Armar-Klemesu,
1998); o uso agrícola da terra zonificada para outra atividade (Mbiba, 1994); e a
193 //
agricultura dentro da competência legal e regulamentar das autoridades urbanas
(Aldington, 1997, np.).

Já o critério empregado para estabelecer o tipo de área varia de um autor para outro.
Para Mougeot (2000, p. 4):
[...] há o critério da área com relação à residência do produtor (se dentro ou
fora do lote onde ele reside); ou com relação ao desenvolvimento da área (se ela está
construída ou baldia); ou com relação à modalidade do uso ou da posse (cessão,
usufruto, arrendamento, compartilhado, autorizado mediante acordo pessoal ou não
autorizado, direito consuetudinário ou transação comercial); ou com relação à cate-
goria oficial do uso do solo da zona onde se pratica a agricultura urbana (residencial,
industrial, institucional, etc.).

No quesito de sistemas e escalas de produção, “geralmente, o esforço investigativo se


concentra nas micro, pequenas e médias empresas, individuais ou familiares, em oposição
às empresas de grande escala, nacionais ou internacionais” (MOUGEOT, 2000, p. 4).
A United Nations Development Programme (UNDP) destaca a relevância da AUP pois traz
“significantly to the socio-economic development of towns and citis throughout the word.
In several economies, particulary developing ones, it is one of the largest urban productive
industries. In low-income cities, it is a prime generator of jobs” (UNDP, 1996, p. 3-4).
“Parte essencial da agricultura urbana consiste no que é produzido. De acordo com a
FAO, a AUP inclui atividades como a silvicultura, o cultivo de plantas ornamentais e me-
dicinais, a criação de animais e os cultivos de alimentos, tais como a horticultura e árvores
frutíferas” (ROSA, 2020, p. 51).
Arruda et al. (2011, p. 51-52) destacam que a AUP contemporânea tem sido destaque
no cenário mundial e tornou-se um instrumento de integração nos processos de “desenvolvi-
mento sustentável das pessoas e do ambiente. Neste sentido pode ser considerada como parte
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integral da gestão urbana, sendo uma ferramenta para a diminuição da pobreza, por meio da
geração de renda e empregos e também uma forma de trabalhar com o manejo ambiental”.
A AUP é importante para a segurança alimentar e nutricional porque
[...] oferece acesso a alimentos para autoconsumo, diversifica a dieta e os hábitos
alimentares, valoriza os cultivos nativos com alto valor nutritivo e melhora a dispo-
nibilidade de alimentos frescos, ricos em micronutrientes. As atividades de AUP são
ferramentas estratégicas para prover às populações urbanas pobres seu auto sustento,
tornando-se instrumentos para suprir as carências alimentares, pois viabiliza a eco-
nomia nos gastos com alimentação (MELO, 2016, p. 3).
194 //
A AUP contribui para a soberania alimentar; a preservação do meio ambiente; para a
saúde e o bem-estar, reduzindo a fome, fortalecendo o acesso a alimentos e gerando renda
(SMIT et al., 1996).
Os benefícios proporcionados pela AUP são, “qualitativos e quantitativos, resultando
em melhorias na qualidade da alimentação e no número de pessoas que têm acesso a ela
(...) a AUP também pode contribuir significativamente para combater a fome urbana e a
desnutrição” (ROSA, 2020, p. 55).
A AUP pode auxiliar no combate à pobreza urbana, pois ela tem potencial para gerar
novas oportunidades de emprego e renda, por meio da venda da produção, e não necessita
de trabalho especializado, nem de vastos recursos para a sua implantação (MELO, 2016).
Em relação à economia, a AUP gera possibilidades de trabalho para os mais jovens,
os adultos e os idosos. Também estimula o empreendimento e diminui a pobreza, além
de proporcionar o trabalho para o gênero feminino e outros grupos marginalizados da
sociedade (ROSA, 2020).
A AUP vem demonstrando a capacidade de desempenhar um importante papel na diver-
sificação e fortalecimento de estratégias de planejamento e administração das cidades. Assim:
Es una realidad el papel incipiente que tiene la agricultura urbana y periurbana en
la planificación del desarrollo urbano. Su consideración es muy variable en los diferen-
tes países en los cuales tiene presencia. Aun en sociedades de mayor desarrollo, es tenida
en cuenta según haya ganado presencia y espacios por la acción de grupos sociales
o frentes ciudadanos que impulsan su práctica mediante la recuperación de espacios
vacíos o semiutilizados, donde se fomentan modalidades alternativas de producción y
consumo. Generalmente, esos espacios se han mantenido como ámbitos de resistencia a
la continua pérdida de sus áreas verdes y para la producción de alimentos sanos. Si bien
su presencia es aún incipiente y sin peso real en los mecanismos del ordenamiento terri-
torial, han existido esfuerzos y políticas de corte municipal que mantienen la intención

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de convertir las prácticas en una constante en las ciudades (SÁCHEZ, 2019, p. 16).

Para Ferreira (2013) as atividades executadas na AUP são semelhantes, o que varia é o
tipo de produção realizado na cidade ou na área periurbana, os aspectos físico-geográficos
e as práticas alimentares características de cada local.
A prática da AUP se destaca em países como Canadá; Estados Unidos e México, con-
forme aponta Corbould (2013, p. 2):
Land plots to grow crops are diverse, including windowsills, rooftops, base-
ments, walls, recreational grounds and roadsides. These gardens mostly operate as
community gardens. Despite its growing popularity, urban agriculture feeds only a
very small percentage of the population in these cities. The North American Urban
195 //
Agriculture Committee estimates that urban areas produce only 5 per cent of urban
food consumption. Production capacity is limited by the amount of space available
and the high costs associated with urban farming.

Outro país em que a AUP tem um papel relevante é Cuba, pois a atividade possui
sua importância econômica e social, desde o início dos anos 1990. “A atividade se iniciou
de maneira espontânea, em virtude das restrições alimentares enfrentadas pela população
após a derrocada dos países do bloco socialista” (HESPANHOL, R.A.M., HESPANHOL,
A.N., 2018, p. 53).
As modalidades de AUP que se destacam em Cuba são: “os organopônicos, áreas de
cultivo de produtos hortícolas em canteiros e, em alguns casos, de criação de pequenos
animais, que são instaladas em terrenos cedidos pelo Estado no interior e no entorno das
cidades” (HESPANHOL, R.A.M., HESPANHOL, A.N., 2018, p. 53).
Nos últimos anos, a AUP se espalhou notavelmente “até mesmo na Grécia, tendo em vista
que não existia uma tradição histórica nessa atividade. Atores diversos, tais como grupos co-
munitários, redes agroecológicas e os governos locais, estão desenvolvendo projetos com vários
objetivos e diferentes padrões organizacionais” (MORÁN; CASADEVANTE, 2015, p. 26).
A “articulação de políticas ambientais, políticas voltadas à saúde e políticas urbanas
com as atividades de agricultura urbana podem transformar vazios urbanos em espaços de
convívio social que, além de função social, também possui funções ambiental e cultural
bem definidas” (ROSA, 2011, p. 15).
Neste contexto, o “melhor seria reconhecer a AUP como atividade legítima no con-
texto urbano, e integrar ações, projetos e políticas públicas com outras matérias que já
são alvo de planejamento e preocupações do poder público e da sociedade” (RESENDE;
CLEPS JÚNIOR, 2006, p. 198).
Rosa (2011, p. 12) expõe que é possível perceber que a “escala governamental de pro-
moção da AUP é, em sua essência, a municipal. No entanto, sem uma articulação com as
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demais esferas de governo, o município tem dificuldade de assegurar a viabilidade da AUP,


em especial com relação à oferta de crédito”.
Até 2018 não havia uma Política Nacional de Agricultura Urbana no Brasil. Várias
ações voltadas para a AUP começam a surgir a partir de 2004 voltadas ao combate à fome
e à promoção da segurança alimentar e nutricional. A condução dessas políticas foi de-
senvolvida pelo então Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e incluída na agenda
de políticas relativas à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Somente em 2018 foi
aprovada a Portaria nº 467, de 7 de fevereiro de 2018, que institui o Programa Nacional
de Agricultura Urbana e Periurbana, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social,
sob a responsabilidade da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
196 //
As metas do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana são as seguintes:
I – formalizar parcerias na perspectiva de promover a agricultura urbana, na
forma de produção agrícola sustentável, comunitária e/ou doméstica, por meio da
introdução de tecnologias de produção sustentáveis como catalizador da segurança
alimentar, geração de renda e inclusão social; II – fomentar o desenvolvimento de
ações voltadas para a gestão e o aperfeiçoamento das ações de agricultura urbana
e periurbana; III – promover a conscientização de possíveis financiadores para a
agricultura urbana e periurbana; e IV – sensibilizar as esferas estaduais e municipais
para desenvolver políticas regionais e municipais de agricultura urbana e periurbana,
principalmente nas escolas e associações comunitárias (BRASIL, 2021).

Na esfera estadual, o Estado de São Paulo fomenta alguns programas


[...] como o Programa São Paulo Orgânico e Guarapiranga Sustentável. O pri-
meiro programa foi lançado em 2013, por meio de uma parceria entre a Secretaria do
Meio Ambiente (SMA) e a SAA. Até esse momento, investiu em cursos de capacitação
e gestão da agricultura orgânica direcionada aos técnicos da SAA, além de ter previsto
o financiamento de até R$ 100.000,00 por agricultor e até R$ 400.000,00 por coo-
perativa que pretenda efetivar a transição da agricultura com uso de agrotóxicos para
a agricultura orgânica. (...) Já o Programa Guarapiranga Sustentável trata-se de uma
iniciativa do governo com o objetivo de incentivar a agricultura orgânica e familiar
próxima ao reservatório Guarapiranga, a fim de recuperar e preservar as áreas de ma-
nanciais. Em ambos os programas, não há especificação no que tange ao incentivo da
agricultura urbana agroecológica, embora o Programa Guarapiranga Sustentável atue
em regiões próximas aos centros urbanos da cidade de São Paulo, Embu das Artes,
Itapecerica da Serra e São Lourenço (GUIACHÉ; PORTO, 2015, p. 49).

No âmbito do município de Jundiaí há o Programa Horta Urbana que é uma política


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pública voltada aos agricultores urbanos e periurbanos.
O Programa Horta Urbana foi criado em 2021 e visa oferecer alternativas para promo-
ver a segurança alimentar dos munícipes de Jundiaí e uma fonte de renda alternativa para a
população, estimular a economia solidária e as práticas comunitárias em espaços públicos e
ainda estimular o contato de crianças e adolescentes com a natureza. Além disso, as hortas
também contribuem com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (PREFEITURA
DE JUNDIAÍ, 2021).
O mapeamento das áreas com bairros de “maior vulnerabilidade já foi realizado e
inicialmente são 15 áreas disponibilizadas, que abrangem os bairros: Novo Horizonte,
São Camilo, Santa Gertrudes, Vila Nambi, Fazenda Grande, Cecap, Jardim do Lago,
197 //
Ivoturucaia, Jardim Tamoio, Caxambu, Vila Maringá e Alvorada” (ESCOLA DE GESTÃO
PÚBLICA DE JUNDIAÍ, 2021).
“A definição das áreas levou em consideração aspectos como topografia e insolação
dos terrenos e a proximidade com áreas que apresentam maior vulnerabilidade social. Nas
hortas poderão ser cultivadas hortaliças, plantas medicinais, aromáticas, ornamentais e
espécies frutíferas” (ESCOLA DE GESTÃO PÚBLICA DE JUNDIAÍ, 2021).
Para se candidatar ao Programa Horta Urbana é necessário se cadastrar no “site da
Prefeitura, ser morador de Jundiaí, participar do curso de capacitação, com obtenção
do certificado de aptidão; comprometer-se com as atividades de manutenção da horta e
atender as legislações vigentes. Cada interessado pode se candidatar para até duas áreas”
(TVTEC JUNDIAÍ, 2021).
A prioridade será para pessoas que tenham residência próxima ao local da horta, que
façam “o uso coletivo do espaço como grupos representados por associações de bairro e
organizações sociais. O município ficará responsável pela preparação dos canteiros e pela
oferta inicial de insumos aos interessados em situação de vulnerabilidade, inscritos no
Cadastro Único” (TVTEC JUNDIAÍ, 2021).
A ação multiplataforma da Prefeitura de Jundiaí
com foco em incentivar o uso de espaços em área urbana para o cultivo de
verduras e legumes, promovendo a geração de renda e a alimentação saudável, de-
nominado Horta Urbana, teve o primeiro ciclo de capacitação realizado na Unidade
de Desenvolvimento Ambiental (UNIDAM). A capacitação conta com módulos
teóricos e práticos que auxiliarão as pessoas interessadas em cultivar os espaços desde
o trato com o solo, plantio, colheita até a comercialização (ESCOLA DE GESTÃO
PÚBLICA DE JUNDIAÍ, 2021).

O Programa Horta Urbana é coordenado pelo gestor de Planejamento Urbano e Meio


Ambiente e pela diretora de Urbanismo da Unidade de Gestão de Planejamento Urbano
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e Meio Ambiente (UGPUMA). O programa também conta com o apoio das Unidades
de Agronegócio, Abastecimento e Turismo, Infraestrutura e Serviços Públicos, Assistência
e Desenvolvimento Social, Escola de Gestão Pública, Governo e Finanças, Conselho
Municipal de Segurança Alimentar e Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural
(PREFEITURA DE JUNDIAÍ, 2021).
Plantar nas cidades e combater a fome nos centros urbanos tem sido um caminho apon-
tado para reduzir o índice de insegurança alimentar no Brasil. Um estudo revelou que só o
cultivo de alimentos nos telhados da cidade do Rio de Janeiro poderia suprir a demanda anual
de vegetais de 39,2% dos habitantes. Outro levantamento aponta que a agricultura urbana tem
potencial de alimentar 20 milhões de pessoas em São Paulo (CICLO VIVO, 2021).
198 //
No caso de Jundiaí, a prefeitura também vê o programa como um importante mecanismo
para fomentar à segurança alimentar. Além disso, busca-se gerar uma fonte de renda alternati-
va para a população, estimular a economia solidária, o contato de crianças e adolescentes com
a natureza e as práticas comunitárias em espaços públicos (CICLO VIVO, 2021).
O Programa Horta Urbana vai disponibilizar áreas públicas ociosas para os munícipes
que queiram cultivar hortaliças, plantas medicinais, aromáticas, ornamentais e espécies
frutíferas, conforme é demonstrado na figura 2.

Fig. 2. Programa Horta Urbana incentiva o uso coletivo e colaborativo das áreas que serão disponibilizadas
Fonte: Prefeitura de Jundiaí, 2022.

O município de Jundiaí (Mapa 1) possui localização privilegiada, estando entre as


regiões metropolitanas de Campinas e de São Paulo, além de ser cortada por duas vias de
acesso muito importantes, quais sejam as Rodovias Anhanguera e Bandeirantes.
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Em 2017, segundo o IBGE, o município possuía o 7º maior Produto Interno
Bruto (PIB) do Estado de São Paulo no valor de R$ 39,8 bilhões e PIB per capita de R$
100.679,50, maior que o de todas as capitais do país, e 109% maior que o PIB per capita
do Estado de São Paulo (IBGE, 2017). Jundiaí possui um IDH de 0,822, sendo conside-
rado alto (IBGE, 2016).
Em 2019, segundo dados da Prefeitura Municipal, Jundiaí possuía o 9º PIB industrial
do Estado de São Paulo e o 7º PIB em prestação de serviços e comércio. Apesar dessa
importância do setor industrial e de comércio e serviços, a agricultura e o espaço rural
tiveram e ainda têm importância no processo de formação e consolidação do município,
sendo conhecido nacionalmente pela expressiva produção de uva e morango.
199 //
Mapa 1. Localização do município de Jundiaí – SP

De acordo com o IBGE – em 2010, a população total correspondia a 370.126 habi-


tantes, sendo que a população urbana era de 354.204 (95,7%) e a rural de 15.922 (4,3%).
A densidade demográfica no município era de 858,42 habitantes por km².
Atualmente, segundo o IBGE (2020), Jundiaí conta com uma população total de
423.006 habitantes. Em relação à participação dos setores econômicos no Valor Total
Adicionado, Jundiaí aparece com 74,99% no setor de comércio e serviços, 24,67% no
setor industrial e 0,34% no setor agropecuário (SEADE, 2017).
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As dinâmicas proporcionadas pelo espaço periurbano a partir da análise do processo


de urbanização difusa, que se intensificou na década de 1980 no município de Jundiaí,
fizeram com que houvesse um avanço das áreas urbanas sobre as rurais. Sendo assim, a
tarefa de delimitar tais espaços se torna cada vez mais complexa.
Não é possível pensar no município de Jundiaí considerando apenas o perímetro ur-
bano, pois ocorreu o processo de expansão urbana sobre as áreas rurais. Essa é a situação
das grandes cidades do Brasil, principalmente as que se situam mais próximas de regiões
metropolitanas.
No município de Jundiaí a constituição dos espaços periurbanos está relacionada a
formação de uma complexa rede viária, que proporciona a circulação e o acesso rápido ao
200 //
trabalho e, principalmente, pela ação do mercado imobiliário que passa a atuar interessado
nas particularidades desses espaços, como é o caso da proximidade com a natureza.
Nos espaços periurbanos de Jundiaí de um lado, há a permanência de “territórios ru-
rais tradicionais constituídos historicamente a partir do trabalho do colono-imigrante e,
certamente, pela presença significativa da produção agrícola familiar em regime de peque-
na propriedade” (NORONHA, HESPANHOL, 2008, p. 95). De outro lado, essas áreas
rurais passam a combinar conteúdos e expressões entendidas como urbanas, como é o caso
dos loteamentos irregulares e os condomínios residenciais fechados.
O processo de produção do espaço em Jundiaí é complexo, o que resulta na constitui-
ção de inúmeros territórios urbanos que, atualmente, têm extrapolado os limites geográfi-
cos da cidade impostos pelas secretarias municipais com fins de planejamento e equidade
territorial. Tal movimento da sociedade capitalista, que é o mesmo da urbanização con-
temporânea, tem posto em evidência a existência de um “campo” que transcende o agrário
e o agrícola.

Considerações finais

A agricultura urbana sempre esteve presente nas cidades, pois ela é uma importante
forma de produzir alimentos. Além disso, deve-se considerar a identidade dos habitantes
que viviam no meio rural e passaram a morar nas cidades e encontraram na AU uma opor-
tunidade de continuar produzindo alimentos, tanto para comercialização dos produtos,
quanto para o autoconsumo.
Outras dimensões da AU a serem consideradas são a ambiental, econômica e a social.
A primeira dimensão, está muito relacionada a sua capacidade de contribuir para a manu-
tenção e recuperação de áreas verdes, o que pode favorecer o aumento da biodiversidade
urbana, enquanto que, as outras duas dimensões podem resultar em melhorias na segu-
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rança alimentar e nutricional, ampliando a disponibilidade de alimentos para a população
mais carente, e garantindo a chegada de alimentos frescos para os consumidores de baixa
renda, além de possibilitar a geração de ocupação e renda.
A conscientização e o incentivo à realização da AU, em especial, nas grandes cidades,
podem gerar profundas transformações e aumentar a qualidade de vida da população ur-
bana. No entanto, a prática da AU ainda carece de políticas públicas, sendo a esfera muni-
cipal a mais apropriada para elaborar essas políticas.
201 //
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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
204 //
O baixo Tapajós: da aldeia dos Tapaius
aos sojicultores

Laila Alves da Silva1


Messias Modesto dos Passos2 Diogo Laércio Gonçalves3

A formação territorial da Calha do rio Amazonas

A localização de Santarém em um rico território, no encontro do rio Tapajós com o rio


Amazonas, em área de solo fértil, de floresta consolidada, com abundante biodiversidade
e beleza cênica, boa conexão com outras aglomerações, explica os registros arqueológicos,
que datam ocupações anteriores a 7 mil anos, por civilizações portadoras de dinâmicas
urbanas, cultura própria, organização social e formação de redes. Apesar de oficialmente
a cidade possuir 356 anos, desde sua fundação como vila portuguesa, Santarém pertence
a um grupo de assentamentos humanos com profundas raízes pré-cabralianas, com área
urbana que apresenta indícios de ser um espaço ocupado desde o século X. (Figura 1).

Fig. 1 – Urna Mortuária, exposta no Museu


Histórico de Santarém, que se presta como com-
provante da presença de ocupação humana, anterior As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
à chegada dos portugueses na região. PASSOS:
10/08/2019.

1
Unesp campus de Presidente Prudente, Bolsista IC do CNPq. – laila.alves@unesp.br
2
Unesp campus de Presidente Prudente, – mmpassos86@gmail.com
3
Unesp campus de Ourinhos Projeto FAPESP: 2023/00210-7, – diogo.goncalves@unesp.br
205 //
A aldeia dos Tupaius

Em geral, qualquer compêndio ou notí-


cia que aborde os primórdios da antiga aldeia
dos Tapajós, toma como ponto de partida a
viagem de Pedro Teixeira, em 1626.
Nurandaluguaburabara é o nome do
Chefe indígena que governava a foz do
atual rio Tapajós, nos idos de 1542, con-
forme consta da “Relação que escreveu
Frei Gaspar de Carvajal, Padre da Ordem
de São Domingos de Gusman, no Novo
Descobrimento do famoso rio grande que
descobriu, por imensa ventura, o Capitão
Francisco de Orellana, desde a sua nascente
até sair do mar, com cinquenta homens que
trouxe consigo e se lançou à sua aventura Fig. 2 – Placa que está exposta na entrada da Catedral
de Nossa Senhora da Conceição, em Santarém/PA.
pelo dito rio, e, pelo nome do Capitão que o PASSOS: 10/08/2019.
descobriu, se chamou o “Rio de Orellana”.
E a famosa expedição foi descendo, assaltando, cá e lá, pequenas malocas que não
apresentassem resistência, e delas arrebatando tudo o que se pudesse comer.
As os escravos trazidos das costas d'África pelos navios negreiros eram caras, e o seu
custo nem sempre era compensado pelos serviços que prestavam. Então os comerciantes
portugueses localizados no Maranhão e no Pará se lembraram da “prata de casa”: os indí-
genas. Daí começaram as “entradas” pelo sertão para escravizar os silvícolas.
A “Tropa de Resgates” que, em 1626, sob a chefia de Pedro Teixeira e com assistência
de Frei Cristovam de São José, vinte e seis soldados e muitos índios mansos, chegou a taba
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

dos tupaius, depois chamados tapajós, o maior aldeamento da região que teria cerca de
quinhentas famílias ou casas.
“Resgatar” índios era tomar, comprar ou barganhar, a troco de bugigangas, prisio-
neiros que os silvícolas, por motivo de guerra entre as tribos vizinhas ou em traiçoeiras
caçadas, retinham nas suas malocas, na qualidade de escravos.
206 //
Padre Antônio Vieira: a catequese dos índios

Em janeiro de 1653, chegou ao Maranhão a caravela “Nossa Senhora das Candeias”,


conduzindo a seu bordo o grande apóstolo dos índios, Padre Antônio Vieira.
Começou daí a arrancada da Companhia de Jesus, na Amazônia, secundada pelos fran-
ciscanos e outros religiosos, em defesa dos silvícolas perseguidos e escravizados pelos reinóis.
Apesar de combatido, odiado, caluniado, maltratado, preso, deportado..., Antônio
Vieira foi o entusiasta propulsor das entradas missionários pelos inúmeros rios que despe-
jam as suas águas do rio Amazonas, inclusive o Tapajós.

Francisco Xavier de Mendonça Furtado

Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do marquês de Pombal, tinha 51 anos


de idade quando foi nomeado capitão-general e governador do Estado do Maranhão e
Grão-Pará, em 1751.
Uma das consequências das intrigas armadas pelos colonos portugueses do Brasil, que
se viam contrariados nas suas ambições pela ação enérgica dos missionários em defesa
dos silvícolas, intrigas que, depois, foram referendadas e apoiadas pelo próprio irmão de
Pombal, o governador Mendonça Furtado, que começou a impiedosa perseguição aos
jesuítas na Amazônia, e que, na opinião de muitos, ocasionou a paralisação quase total, ou
pelo menos, um atraso de mais de século no desenvolvimento da região.
A 22 de outubro de 1684, houve o decreto de Mendonça Furtado, com a autorização
real, que ordenava a prisão e deportação para Lisboa de muitos desses padres jesuítas. Essa
ainda era uma medida parcial, ou experimental. Outra viria, dois anos mais tarde – a gran-
de derrubada da Companhia de Jesus, não só em Portugal mas em todos os seus domínios,
com o confisco total dos bens da poderosa ordem dos jesuítas.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Em 1759, a Carta Régia que “regulava o sequestro dos bens da Companhia de Jesus,
e a reclusão e incomunicabilidade em que haviam de ficar os jesuítas, até ulterior deter-
minação”, e a 3 de setembro desse mesmo ano, a Lei que proscrevia, desnaturalizava e
expulsava de Portugal e de seus Domínios, todos os jesuítas, sendo os bens da Companhia
sequestrados para a Coroa de Portugal.
A 3 de julho de 1757, exatamente 98 anos depois da visita do padre Antônio Vieira
às terras tapajônicas, partia o último jesuíta da Companhia de Jesus, padre Luís Álvares,
fechando o ciclo jesuítico no baixo tapajós.
Foi o fim dos jesuítas na Amazônia e no resto do Brasil.
207 //
Ao passo que Mendonça Furtado instalava as vilas, o bispo do Pará criava as paróquias,
extinguindo as missões.
Enquanto isso, fugiam os silvícolas para suas florestas e igarapés centrais, onde, pelo
menos, havia liberdade e paz. Abandonavam as aldeias que haviam sido missões e estas, em
sua maioria, rapidamente se desagregavam.
Nos tempos em que Mendonça Furtado sonhava transformar a Amazônia em outro
Portugal, substituindo-lhe os “bárbaros nomes” nativos por outros da velha toponímia
lusitana, a Missão dos Tapajós constava de duas partes distintas que ainda não haviam
conseguido mesclar-se em definitivo: a zona dos brancos (portugueses e seus descendentes)
e a aldeia dos silvícolas.
Um grupo de patriotas, revoltados com os nomes dados a muitas localidades da
Amazônia por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, eram de cidades portuguesas!
Uma das consequências desse movimento, foi o decreto do governo José Joaquim
Machado de Oliveira, datado de 17 de maio de 1833, determinando a abolição dos
nomes portugueses que seriam substituídos pelos primitivos locais com raízes e signifi-
cados brasílicos. Santarém passou à Vila do Tapajós; Óbidos à Vila de Pauxis; Alenquer a
Surubimirim. Monte Alegre a Gurupatuba; Vila Franca a Arapiuns etc.
No entanto, em 30 de abril de 1841, o decreto do então governador Souza Franco,
cancelou a toponímia indígena e retoma à toponímia lusitana.
Podemos afirmar que a formação sócio espacial da Calha do rio Amazonas, passou por
diversos ciclos: da Borracha, a partir de 1870. É notório que o “ciclo da borracha” teve
curta duração, pois quando a borracha começou a ter valor econômico, surge a concorrên-
cia da produção inglesa, na Malásia.

Santarém
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Nunca é demais lembrar que Santarém desfruta de uma posição estratégica no baixo
Amazonas, por estar situada na confluência do grande rio Tapajós com o rio Amazonas.
O padrão de ocupação do território sempre foi de dispersão, com pequenas localidades
distribuídas ao longo das calhas de rios, acompanhando as suas várzeas, áreas mais propí-
cias ao plantio e que permitiam fácil deslocamento (Heckenberger, 2005).
O mito de que a região era despovoada e dispunha de recursos infinitos justificou o di-
recionamento de migrantes para a região (nordestinos refugiados da grande seca de 1915;
assentados rurais da região Sul na década de 1970; trabalhadores para as obras dos projetos
federais dos PNDs e do Polamazônia). Houve o crescimento de cidades, vilas, fazendas e
estruturas produtivas, agora conectadas também por estradas, e a reestruturação da antiga
208 //
rede urbana de padrão dendrítico (baseada nos rios), expandindo a cidade de Santarém em
dois principais vetores: o rio e a penetração do território.
Na escala da cidade, Santarém foi o resultado do amálgama de assentamentos gerados
por matrizes indígena, portuguesa e quilombola (Quadro 1). Seus bairros mais afastados
tiveram origem a partir de comunidades rurais. O novo arranjo regional repete esse mesmo
processo, por meio da combinação entre infraestrutura logística, mudança do uso da terra
e da ressignificação das pequenas cidades de Belterra e de Mojuí dos Campos e das vilas
existentes como “bairros distantes” da cidade. Um tecido urbano esgarçado com enclaves
de tipologias contemporâneas e gradativa precarização de estruturas tradicionais para libe-
ração das terras que ocupam novos usos e novas formas de produção (desde a monocultura
da soja até os novos loteamentos que convertem floresta secundária em cidade).

Quadro 1 – Caracterização das matrizes de ocupação do território

DIFERENTES MATRIZES DE OCUPAÇÃO DE TERRITÓRIO

Observa-se que, desde a metade do século XVII, com a chegada dos portugueses, a ocupação do território passou
a assimilar influências portuguesa e quilombola sobre a matriz originalmente indígena, que, dado o seu sucesso
histórico, influenciou o posicionamento das demais matrizes entre a floresta e o rio.

INDÍGENA PORTUGUESA

A forma como o território indígena estrutura as


A introdução da matriz portuguesa, colonizadora,
tipologias habitacionais, os espaços de vivências,
abrangeu desde a apropriação do sítio indígena na mar-
de rituais a partir de uma concepção de coletividade
gem do rio Tapajós, o posicionamento do assentamento
(sem individualização) e da transitoriedade (sujeita Ao
paralelo ao rio, ao longo de ruas definidas pelos
reposicionamento conforme a disponibilidade de ali-
sobrados portugueses, Com lotes individualizados,
mento) é menos agressiva e estabeleceu uma relação de
a apropriação do rio como vetor de escoamento da
interdependência com o meio.
produção e mobilidade Da população (visão logística).
QUILOMBOLA Os portugueses reproduziram em Santarém, mesmo
que em pequena escala, um padrão de urbani-
A matriz quilombola foi criada pela mistura da matriz
zação típico europeu, o qual, já no século XVIII,
africana com a indígena, também muito sensível às
racionalizava o uso da terra com ruas em sistema de
imposições da natureza e à disponibilidade de seus re-
grelha, quadras pequenas e lotes estreitos, com cen-
cursos (rios e floresta), mas com uma tendência de maior
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tralidade definida pela presença de igrejas, prédios
Aglomeração das casas que a indígena, também sem uma
públicos e largos.
organização espacial por sistema de ruas e quadras.

Outra fase de mudanças significativas no padrão de expansão da mancha urbana da


cidade ocorreu a partir dos anos de 1960, quando foram concebidos e implantados os pla-
nos de integração nacional. Novos fluxos migratórios foram direcionados para a região, sob
novas condições de assentamento (reforma agrária), e financiados pela Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), em paralelo à implantação de grandes projetos
de infraestrutura logística (porto, rodovia, aeroporto, hidrelétrica). O recuo de investimentos
ocorrido após a elevação dos juros pós-crise do petróleo deixou assentados sem assistência e
obras inacabadas, desencadeando um processo de transferência do contingente populacional
209 //
atraído para ações de caráter agrário e extrativo para as cidades. A partir dos anos de 1980, o
processo de periferização passou a atingir a capital e depois as cidades mais importantes do
Pará, como era o caso de Santarém (Becker, 1998). Nesse período, uma nova estratégia da
acumulação foi estabelecida, a qual ressignificou a terra pelo seu valor de troca e também a
produção da cidade. A partir de então, a organização da cidade, por meio de um plano de
alinhamento, deixou de ter importância, e as novas prioridades passaram a ser os elementos
de infraestrutura necessários para o escoamento da produção do agronegócio e da extração
mineral inseridos na cidade. A expansão de Santarém passou a ser definida pelas novas rodo-
vias de acesso à hidrelétrica de Curuá-Una, ao aeroporto e à rodovia BR-163.

A chegada do agronegócio na calha do rio Amazonas

Antes do ano 2000 a produção familiar era local/regional (mercados maiores eram
Manaus, Macapá e Belém) – arroz, milho, mandioca, tradicional de gado, frutas (banana,
limão) hortaliças e pimenta do reino.
Havia várias usinas de arroz em Santarém e Mojuí dos Campos. Havia fama de farinha
do Cucurunã e tapioca da Comunidade de Boa Esperança. Figura 3.
A partir de 1997 o agronegócio da soja avança na região do oeste do Pará, principal-
mente por incentivos governamentais e o apoio do Banco da Amazônia (BASA), apoiando
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Fig.3 – Igreja da Comunidade de Boa Esperança, localizada na PA-370, município de Santarém/PA. PASSOS,
4/09/2018.
210 //
principalmente os grandes produtores rurais, deixando à margem a agricultura familiar.
De início ocorre, por parte dos sojicultores, a compra de lotes da agricultura familiar que
não tinha suficiente apoio técnico e financeiro.
Os produtores de soja, encontraram, na Calha do rio Amazonas, uma área de ocupa-
ção já consolidada, por conta dos assentamentos do INCRA, no início da década de 1970.
As áreas desmatadas pelos assentados totalizavam cerca de 500 mil hectares; no entanto,
no entorno dessas áreas, ocupadas com agricultura tradicional, havia (e ainda há) muitas
parcelas de vegetação secundária.
Com a chegado da agricultura mecanizada (soja e milho) os pequenos lotes, desma-
tados, são comprados a preços muito baixos. Portanto, a agricultura mecanizada ocupa
áreas já desmatadas e, também, vão efetuar desmatamentos da vegetação secundária. Os
desmatamentos se dão das bordas para o interior dos remanescentes de vegetação florestal.
Nessas áreas de ocupação consolidada, como, por exemplo a Curuá-Una (PA-370) os
impactos são mais graves: desmatamento; agricultura mecanizada (compra de lotes dos
assentados); pulverização aérea de agrotóxicos; aniquilamento das culturas tradicionais;
impacto no abastecimento de produtos básicos da alimentação local: farinha, feijão etc.
O agronegócio chegou em Santarém no final da década de 1990, quando muitos fazendei-
ros de outras regiões vieram em busca de terras mais baratas para o cultivo de grãos, principal-
mente o arroz, a soja e o milho. Nos primeiros anos foram plantados apenas milho e arroz e em
seguida, iniciou-se o plantio da soja. Após a instalação do porto da Cargill em Santarém (2001
e 2002), houve um aumento da área plantada de soja passando de 50 ha de área plantada em
1997 para 22.000 ha em 2005 e caindo para 15.000 ha em 2007 (fonte IBGE 2009).

A expansão do agronegócio na Calha do rio Amazonas

Nós vamos analisar a expansão da agricultura mecanizada na Calha do rio Amazonas,


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a partir das imagens do satélite Landsat.
A figura 4 se presta para a localização da área de estudo.
A figura 5 permite visualizar o mapa do uso da terra na Calha do rio Amazonas. De
oeste para leste, temos o rio Tapajós, a FLONA do Tapajós, a BR-163 e o reservatório da
Pequena Central Hidroelétrica de Curuá Una. Ao norte, o rio Amazonas.
Em amarelo, as áreas de agricultura. Em 1990, esta área já estava consolidada pela
ocupação de pequenos agricultores, assentados pelo INCRA. Ainda é possível visualizar
que no entorno de Santarém as áreas florestadas estão mais preservadas, por duas razões: a
ocorrência da FLONA do Tapajós e poucos Projetos de Assentamentos do INCRA.
211 //
Fig.4 – Localização da Calha do rio Amazonas/área de estudo, com destaque para os municípios de Santarém,
Belterra e Mojuí dos Campos.
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Fig.5 – Uso da terra na Calha do rio Amazonas, registrada para o ano de 1990.
212 //
A figura 6, se presta para mostrar a evolução do uso do solo na porção da BR-163,
inserida na Calha do rio Amazonas. É nítido que entre 1990 e 2018, conforme acusa a
legenda do mapa, ocorreu expansão da área com agricultura, no caso, agricultura mecani-
zada. Lembrando que, inicialmente a agricultura mecanizada vai se apossar de áreas já des-
matadas, pois a Calha do rio Amazonas (Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos) estava
consolidada. No entanto, nos anos seguintes, observa-se o desmatamento dos fragmentos
de floresta ainda existente na área.

Fig.6 – Uso da terra na Calha do rio Amazonas, registrada para o ano de 2017.

Considerações finais
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Os municípios do planalto santareno (Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos) passam


por profundas transformações em sua paisagem, desde o final da década de 1990, quando
tiveram início as grandes plantações de soja na Calha do rio Amazonas. Esse modelo im-
plicou a alteração de uma ‘geografia da seringueira’ para uma ‘geografia da soja’, esta última
contando com o fomento estatal e com o mercado internacional muito aquecido.
A constatação da ineficiência do Zoneamento Ecológico e Econômico parece seguir
o mesmo destino de parte dos projetos do Incra, e a pressão do agronegócio contribui
para descaracterizá-lo. Como o território é fruto da sociedade, faz-se necessário conhecê-la
213 //
através de levantamento das condições socioambientais que possam subsidiar a implemen-
tação de políticas alternativas para amenizar os efeitos da insustentabilidade.
Consequências imediatas do processo de especulação fundiária são o êxodo rural, com
a migração de muitas famílias para a área urbana de Santarém, e a fuga para áreas de
terras devolutas ou para regiões mais afastadas do próprio planalto, como o Projeto de
Assentamento Corta Corda. Esse segundo movimento gera, na disputa por terras devolu-
tas, um novo foco de tensão entre os sojicultores e os camponeses.
A ocupação territorial desordenada e a exploração predatória dos recursos estão igualmente
vinculadas a uma economia urbana marcada pela alta concentração da renda, pela precariedade
do emprego e pela ausência de acesso da maioria da população aos serviços básico.
As sucessivas mudanças dos ‘planos de desenvolvimento’, ao sabor das conjunturas
políticas e econômicas, contribuíram para a falência da grande maioria dos projetos de
colonização. A nossa conclusão está voltada para algumas variáveis que apontam para a
insustentabilidade do modelo de desenvolvimento regional:
• Um modelo excludente: no esforço de escolher uma imagem que seja reveladora do
ambiente da fronteira atual eu diria que essa imagem é o da ‘exclusão’. A fronteira se
organiza em função dos mercados e das conjunturas momentâneas; ela alterna fases
de prosperidades com fases de depressões, de regressões. O sucesso no aumento da
produtividade não é revertido em benefício do produtor e nem mesmo do meio
ambiente. A fronteira continua avançando, mesmo que essa mobilidade não tenha
respaldo numa possível necessidade de produzir mais. Há muito mais áreas desma-
tadas do que as áreas efetivamente ocupadas economicamente.
• Um modelo produtivista: após trinta anos o agronegócio conhece o mais forte de-
senvolvimento, sustentado pela necessidade de o Brasil obter divisas a partir de
produtos exportáveis como a soja. A superfície plantada aumentou 43% no Brasil
entre 1980 e 1990, e em mais de 150% no Mato Grosso.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

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região da calha do Amazonas: o papel dos agentes e sujeitos no ordenamento do território e na
implementação de Políticas Públicas.
214 //
Le Mappe di Comuntà entre a educação e
o desenvolvimento local – o projecto Nativi

Giampietro Mazza1 Giacomo Zanolin2


Camilla Carrea3 Laura Bernardi4

1. Introdução

Nos últimos anos, apesar de os processos de globalização terem contribuído e ho-


mogeneizado as sociedades, gerando uma constante perda de eficácia do local, emergem
com força práticas de desenvolvimento territorial que visam valorizar as particularidades
locais e os lugares que definem um território. Como relata Milton Santos, “cada lugar é,
ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialetica-
mente” (Santos, 1999, p. 273), atribuindo-lhe um forte valor educativo. Os lugares repre-
sentam, assim, o mundo único em que uma comunidade se auto-reconhece, permitindo
a sua projeção à escala local e global. É importante salientar o papel que os processos de
participação podem desempenhar na identificação dos lugares de referência de uma co-
munidade, através dos quais os cidadãos são chamados a tomar decisões nos processos de
governance. Neste sentido, um papel estratégico pode ser desempenhado pelas Mappa di
Comunità, que representam um exemplo claro de representação subjetiva e participativa
do espaço, cuja origem remonta aos anos 80 na Grã-Bretanha, graças à experiência dos As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Parish Map escoceses (Clifford, King, 1996). As mappa di comunità iniciam um processo
através do qual as comunidades se tornam “atores ativos e distintos nos processos de desen-
volvimento” (Madau, 2015, p. 541, nossa tradução), identificando os lugares que caracte-
rizam o seu território. De facto, o lugar torna-se a dimensão territorial de referência. Estes
pressupostos estão na base do Projeto Nativi, nascido de um apelo ao desenvolvimento do

1
Università di Genova, Disfor, giampietro.mazza@unige.it.
2
Università di Genova, Disfor, giacomo.zanolin@unige.it.
3
Università di Genova, Disfor, camillacarrea@gmail.com.
4
Università di Genova, Disfor, laura.bernardi2298@gmail.com.
215 //
sector cultural através de novas formas de participação na vida cultural promovido pela
Fondazione Cariplo. O projeto, desenvolvido em parceria entre o Touring Club Italiano e
a Associação Italiana de Professores de Geografia (AIIG), tem como objetivo acompanhar
raparigas e rapazes das escolas secundárias à descoberta de lugares, iniciando um processo
de mapeamento comunitário destinado a estimular uma maior consciência dos valores
territoriais, com a esperança de aumentar o seu sentido de cidadania (Molinari, 2017).

2. Um diálogo entre a geografia e a pedagogia: a função pedagógico-


-educativa do território

Existe uma forte ligação entre a pedagogia e a geografia, sobre a qual várias reflexões têm
vindo a ser desenvolvidas desde há algum tempo; de facto, como refere Bertolini (1989), o
que une os conceitos de espaço e de educação e formação é muitas vezes esquecido.
No processo de formação do ser humano, a dimensão espacial pode ser considerada, de
facto, como um dos seus alicerces, uma vez que é intimamente influenciada pelos lugares onde
os sujeitos vivem e desenvolvem os seus projetos de vida. Além disso, há um constante inter-
câmbio entre a interioridade do sujeito e o mundo que o cerca (Ceruti e Mannese, 2020).
Se o conceito de território, elemento central da geografia, for observado através de
uma lente pedagógica, pode ser considerado como um conjunto de significados e recur-
sos, identificados pela comunidade de referência, nos quais se pode identificar um forte
valor educativo (Giorda e Puttilli, 2011). Neste sentido, é necessário aprofundar a relação
entre território e pedagogia, fazendo-nos debruçar mais sobre o sentido mais autêntico do
habitar, tal como desenvolvido por Heidegger (1978), que permite compreender a ligação
entre existir e habitar o mundo que nos rodeia.
Assim, a geografia desempenha uma função essencial na medida em que torna os su-
jeitos conscientes de pertencer e existir num determinado território, no qual se movem e
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crescem (Giorda, 2011).


Daqui emerge a possibilidade de os sujeitos em formação se localizarem naquilo que
é definido por Armand Frèmont (2005, cit. em Giorda e Puttilli, 2011) como “espaço
vivido”, ou seja, a união entre o espaço físico e o espaço representado.
O território em que os sujeitos vivem é inevitavelmente caracterizado por um forte sen-
timento afetivo, graças ao qual assume um determinado significado. Assim, desenvolve-se
a profunda ligação entre lugares e emoções, que se enraíza na memória dos seres humanos,
contribuindo desde o nascimento para a formação da sua identidade (Giorda, 2011).
Central a esta temática é o pensamento desenvolvido pelo investigador sino-ameri-
cano Yi-fu-Tuan (1974), que nos seus estudos alia a geografia a reflexões mais próximas
216 //
da pedagogia. Ele fala de topofilia, termo derivado do grego tópos ou “lugar” e philía ou
“amor”, com o qual o estudioso define a ligação emocional entre sujeito e território. Assim,
podemos definir a topofilia como um mapa pessoal que se constrói na interioridade de
cada um.
Além disso, Tuan (1978, p. 92) afirma: “o lugar não é apenas um facto a ser explicado
dentro da estrutura mais ampla do espaço, mas é também uma realidade que deve ser esclareci-
da e compreendida a partir da perspetiva das pessoas que lhe dão significado”.
A partir desta citação podemos, pois, apreender a importância de iniciar uma reflexão
em torno do território, que dá espaço e voz ao ser humano como ator.
As considerações feitas até agora, que sublinham a importância de centrar a atenção
nos aspetos valorativos e emocionais que caracterizam os lugares onde os sujeitos vivem,
permitem falar do território também em termos generativos. Erikson (1999), de facto, de-
fine a ideia de “generatividade” como o nível mais elevado de desenvolvimento do sujeito e
da sua comunidade. Isto permite lançar o olhar para o futuro, através de um compromisso
ativo no cuidado do território, construindo e deixando às gerações futuras um mundo rico
em sentimentos e experiências que, por sua vez, geram outros significados e interpretações,
num processo em contínua transformação.
Nesse sentido, a ideia de um território gerador parte do conhecimento e da identifi-
cação do sujeito no mesmo, para ir além do presente deixando uma marca: a do cuidado
e do amor pelos lugares que se habita. Só assim o território pode tornar-se um ponto de
conjunção entre passado, presente e futuro.
Para que isso aconteça, é necessário que os sujeitos sejam acompanhados em um pro-
cesso educativo que recebe o nome de: educação para o território. Giorda e Puttilli (2011)
defendem que educar para o território significa aprender a conhecê-lo em profundidade
e detetar os seus aspetos positivos e negativos, evidenciando o seu valor como construção
de identidade, como dimensão local do viver e do ser cidadão. Por isso, pode dizer-se que
educar para o território requer quatro ingredientes essenciais e interligados: conhecimen-
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to, representação, cuidado e governação (Magnaghi, cit. em Giorda e Puttilli, 2011).
Para concluir, parece-nos importante sublinhar como a educação territorial pode assim
representar o resultado do diálogo entre a geografia e a pedagogia, que nela encontram o
seu ponto de encontro.

3. Communitas: espaço de relações e experiências

Comunidade é um conceito que pode ser definido como contendo uma variedade de
interpretações, que têm sido investigadas por diferentes disciplinas.
217 //
Em latim, o termo communitas tem origem em communis, que significa literalmente
“comum” ou “agir com o outro” e enfatiza a dimensão da partilha (Pozzobon, 2020, cit.
em Petrella, 2022).
De facto, em relação a esta dimensão, a comunidade pode ser pensada como um con-
junto dinâmico de sujeitos que vivem no mesmo lugar, capaz de se adaptar de acordo com
os desafios que surgem com o passar do tempo.
O coração da comunidade é representado pelas relações que se estabelecem no seu
seio, uma vez que não poderia existir sem elas.
Nesse sentido, é necessário examinar esse conceito a partir de uma perspetiva
pedagógica, pois o que o une é justamente o foco na interconexão entre os sujeitos
(Petrella, 2022).
Duas definições de comunidade podem ser identificadas no discurso pedagógico: a
primeira examina o ponto de vista geográfico-territorial, centrando-se no ‘onde’ os sujei-
tos atuam (aldeia, lugarejo, cidade, escola...) e no perímetro dentro do qual as interações
sociais têm lugar; a segunda, por outro lado, refere-se à dimensão relacional, analisando a
qualidade e a quantidade de relações (Petrella, 2022).
Relativamente a este último ponto, Ius (2020, cit. em Petrella 2022), afirma que a co-
munidade representa um espaço no qual os sujeitos têm a oportunidade de se descobrirem
a si próprios e de desenvolverem as suas capacidades através de trocas contínuas.
Além disso, John Dewey também falou de comunidade, interpretando-a como um
recurso educativo e, portanto, essencial para contrariar os desafios que podem surgir na
vida quotidiana. O pedagogo está de acordo ao definir a comunidade como uma entidade
territorial, na qual se erguem redes de relações sociais (Dewey, 1984).
Cada indivíduo está, por natureza, predisposto a participar ativamente na sua própria
comunidade, mas isso deve ser apoiado por propostas educativas que estejam em conso-
nância com a comunidade a que pertence em todas as suas componentes (família, escola e
outras agências educativas, formais e não formais) (Milani, 1999).
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Em particular, Dewey (1971) considera a escola e outras instituições educativas como


contextos privilegiados para fomentar a criação de comunidades locais envolventes e trans-
formadoras, uma vez que só através delas é oferecida aos sujeitos a oportunidade de cres-
cerem e se realizarem.
Romano (2014, p.50, cit. em Petrella, 2022) a este propósito sublinha: “não há pessoas
que primeiro se juntam e depois criam a comunidade em conjunto, mas há em cada ser uma
natureza relacional e comunitária que cabe à educação e à formação incentivar, conscienciali-
zar cada um para as suas acções sociais e políticas” (português nosso).
Neste sentido, o papel do educador é fundamental, aliás, Balzano (2019, p. 229, citado
em Petrella, 2022) afirma:
218 //
“Al timone della comunità, di ogni buona comunità, ci sono gli educatori (…)
responsabili di guidare secondo le dinamiche partecipative e relazionali della pe-
dagogia, la pratica educativa di costruzione identitaria del cittadino responsabile
all’interno della frammentarietà del presente.”

Finalmente, é importante sublinhar que a comunidade também estabelece inevita-


velmente uma relação estreita com o território, que pode ser definida como bidirecional,
uma vez que o território é uma condição essencial para a existência da comunidade, mas ao
mesmo tempo é graças a esta última que o território pode ser transformado de um espaço
habitado por sujeitos indiferentes para um lugar que é efetivamente vivido.
De facto, Tramma (2009, p.81, citado em Petrella, 2022) afirma:
“Contribuire a favorire il passaggio del territorio da mero spazio attrezzato e
abitato da soggetti indistinti e anonimi a luogo comunitario effettivamente vissuto
dalle persone (…) Collocarsi nel territorio reale significa innanzitutto confrontarsi
con la sua possibilità che diventi o che torni a diventare un luogo, cioè uno spazio
relazionale e storico”.

Em relação ao que acaba de ser dito, a educação pode contribuir profundamente para
promover esta transição, também através da proposta de ferramentas específicas, como,
por exemplo, a construção de “mapas comunitários”.

4. Le mappe di comunità: uma ferramenta educativa e participativa

Os mapas comunitários tiveram origem na designação Parish Maps, que significa


“mapas paroquiais”. O termo Parish significa, de facto, “paróquia” e foi escolhido porque
enfatiza a estreita ligação entre sujeitos e lugares e recorda o sentimento de pertença à co-
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munidade. Além disso, o conceito chama a atenção para a dimensão da partilha e suscita
a questão: “O que é que temos em comum?” (Murtas, 2017).
O mapa comunitário pode ser definido como uma ferramenta que dá oportunidade
aos sujeitos de uma comunidade de se representarem a si próprios e ao seu território
através de um processo participativo (Madau, 2015). Além disso, permite que cada lugar,
mesmo os mais pequenos, que para aqueles que os habitam representam o núcleo do seu
mundo, seja o centro das atenções (Murtas, 2017).
Este processo permite que os membros da comunidade experimentem e investiguem
o seu próprio território em primeira mão, admirando as suas raízes, tradições e costumes
(Turchi, 2016), redescobrindo assim a sua própria identidade territorial.
219 //
Portanto, a peculiaridade dos mapas comunitários pode ser identificada no facto de
serem o resultado do envolvimento direto da população local, representando assim uma
expressão original de cidadania ativa (Bianchetti, 2013).

Fig. 1 Mapa comunitário de Castel San Pietro (Suisse). Fonte: https://visionscarto.net/mappe-di-comunita.

Além disso, o produto final (o mapa) possui como princípio orientador o facto de
se tornar portador de elementos e perceções do território que só podem ser identificados
pelos sujeitos que o habitam diariamente (Madau, 2015).
Os objetivos que podemos incluir no processo de realização do mapa comunitário são,
como defende Perlo (2017, pp. 18-19):
• “Reforçar o sentido de comunidade e estimular o diálogo;
• Instilar confiança nas capacidades e conhecimentos de cada um e no seu papel ativo
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dentro da comunidade;
• Aumentar a consciência de cada habitante sobre a riqueza cultural do seu território;
• Estimular a participação dos habitantes nos percursos de conservação da memória;
• Ativar processos espontâneos de valorização e gestão do património;
• Criar um terreno fértil a partir do qual possam surgir novos projetos de desenvolvi-
mento local” (português nosso).

Não existe um manual de instruções autêntico para a construção de um mapa comu-


nitário, uma vez que cada mapa representa uma experiência única, irrepetível e peculiar;
220 //
por conseguinte, as formas de o desenvolver podem ser variadas (Petrella, 2022). No en-
tanto, há um itinerário a seguir para o realizar.
O mapa final não tem de reproduzir fielmente a realidade, uma vez que o objetivo do
mapa é assegurar e transmitir eficazmente a mensagem que pretende comunicar. Por esta
razão, o ponto de vista estético não é relevante.
De facto, a representação do mapa, sendo confiada aos sujeitos, pode ser extremamen-
te livre e criativa e estruturada através de diferentes técnicas (desenhos, pinturas, fotogra-
fias, vídeos, bordados, colagens...) e materiais (Summa, 2009).
“The journeuy is as important as reaching the destination” (Keller, 2014, p. 146, cit. em
Petrella, 2022). A citação de Keller (2014, citado em Petrella, 2022) destaca uma cara-
terística adicional e fundamental dos mapas, nomeadamente o facto de não ser apenas o
produto final que é importante, mas sobretudo o caminho percorrido pela comunidade.
Os projetos que envolvem mapas comunitários podem ser implementados envolvendo
diferentes alvos. No início, dirigiam-se principalmente a comunidades de idosos, mas mais
recentemente a participação alargou-se também às gerações mais jovens. Atualmente, os
mapas têm sido mais introduzidos em ambientes de formação e educação, como as esco-
las, como uma ferramenta também destinada a promover uma compreensão crítica do
mundo; por conseguinte, as crianças e os jovens são cada vez mais os protagonistas deste
processo (Murtas, 2017).
“Le mappe formano uno strumento di apprendimento attraverso l’esperienza sul
campo. Il paesaggio diviene così il primo libro di testo tridimensionale che si impara
a leggere insieme camminando, osservando, toccando, chiedendo, rappresentando.5”

5. O projeto Nativi

O projeto Nativi foi desenvolvido em parceria entre o Touring Club Italiano (TCI) e
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a Associazione Italiana Insegnanti di Geografia (AIIG), através de um financiamento direto
da Fondazione Cariplo, com o objetivo de promover a revitalização do sector cultural em
contextos territoriais frágeis e em grupos populacionais com menos oportunidades. Neste
contexto, o objetivo do projeto é experimentar com alunos do ensino secundário percur-
sos de cidadania ativa que possam promover novas formas de conhecimento do território,
reforçando o seu sentido de cidadania. O projeto termina com a criação final de Mapas
Comunitários, que incluem os lugares identificados pelos participantes, cada um com um
forte valor simbólico. O elemento central do projeto não é, portanto, a concretização do
5
Murtas, D. (2017), “Mappe di comunità: conoscere e rappresentare il proprio mondo”, in Visionscarto,
https://visionscarto.net/mappe-di-comunita
221 //
dado final (o mapa), mas o processo que leva à sua definição, evidenciando também o valor
educativo que o território é capaz de desempenhar para as comunidades que nele residem
e o determinam (Leslie, 2007; Summa, 2009).
A primeira experiência piloto do Projeto Nativi teve início na Lombardia (Itália) durante
o ano letivo de 2022/2023 e terminou em agosto de 2023, envolvendo duas turmas do tercei-
ro ano de institutos de turismo: o Istituto Statale di Istruzione Superiore “G.D. Romagnosi”,
Erba (Como) e o Istituto Statale di Istruzione Superiore “E. Vanoni”, Vimercate (MB). O
calendário do projeto foi dividido em várias fases ao longo do ano letivo. No entanto, nas
suas repetições, foi decidido reduzir o número total de horas do projeto.
Na primeira fase, designada por Mapas Comunitários (Figura 2), foram desenvolvidos
oito encontros, alternando entre atividades em sala de aula e ao ar livre, com o objetivo
de estimular as raparigas e os rapazes das duas escolas a descobrirem o seu próprio terri-
tório, de forma a evidenciar os lugares mais significativos que tornam o seu espaço local
único, fomentando a educação para os valores do território (Dematteis e Giorda, 2013).
Surge assim um processo estimulante de implementação de uma consciência territorial,
cujos fundamentos são representados pela especificidade e diversidade dos lugares (Santos,
2000). O lugar adquire assim um forte valor simbólico caracterizado por múltiplos sen-
timentos e emoções, cuja combinação compõe e determina o território de referência da
“nossa” comunidade (estudantes).
Fig. 2. Repartição das fases do Projeto Nativi. Nossa realização.
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Logo nas primeiras reuniões do processo participativo, emergiu uma pluralidade de


lugares, representando os mundos individuais (Santos, 1999) em que as raparigas e os
rapazes se reconhecem e se identificam. São muitas vezes lugares onde a comunidade se
afirma e manifesta a sua sociabilidade, como centros comerciais, praças, parques, estações e
restaurantes de fast food. Mas também surgem lugares que evocam o património histórico
e cultural do território, como vilas, igrejas, pontes, castelos e centros históricos das cidades.
Uma parte da atividade envolveu um inquérito qualitativo realizado na sua própria área
para as duas turmas, para tentar detetar outros elementos que caracterizam o seu território
222 //
e para identificar os intervenientes que realizaram os passeios na área. De facto, a parte
final da primeira fase incluiu visitas e reuniões nos municípios de origem dos rapazes e
raparigas das duas escolas para intensificar o diálogo com as comunidades locais. Estes
guias foram também conduzidos graças à presença de actores territoriais identificados
pelos rapazes e raparigas, cuja presença foi indispensável para enriquecer a narrativa que
acompanhou o processo de mapeamento do lugar, com o qual se concluiu a primeira fase.
No total, surgiram mais de 300 lugares, cada um distinguido por uma estrutura específica
de elementos geográficos, sociais, culturais e económicos que o tornam único na comuni-
dade. As raparigas e os rapazes definiram então especificamente os lugares a que estão mais
ligados, que assumem um maior valor simbólico e que serão representados graficamente
nos mapas da comunidade
A segunda fase, Storytelling dos territórios, teve início em fevereiro de 2023, com o
objetivo final de proporcionar aos participantes uma experiência profissionalizada através da
qual pudessem aprender as técnicas de storytelling nas línguas individuais escolhidas para
criar conteúdos multimédia (figura 3). As raparigas e os rapazes das duas turmas trabalharam
juntos pela primeira vez, divididos em grupos de acordo com os seus interesses e paixões:
podcasts, comunicação nas redes sociais, mediação linguística e vídeo e escrita de viagens.

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Fig. 3. Cartazes de filmes realizados pelos alunos das duas turmas envolvidas no projeto.
223 //
A terceira fase foi uma oportunidade para experimentar e aprender técnicas de reali-
dade aumentada, centrando-se em alguns locais identificados no processo de participação.
Os alunos envolvidos trabalharam no terreno e com o software, enriquecendo a perceção
dos locais através de uma ligação direta no mapa, tanto na versão digital como na versão
em papel, através de um qrcode que permite o acesso a todo o conteúdo multimédia.
Os locais identificados pelas raparigas e rapazes das duas turmas foram cartografados
e constituem os mapas comunitários. Para cada escola, foi criado um mapa da área alarga-
da, incluindo todos os municípios de residência dos alunos e um mapa limitado às sedes
administrativas das duas escolas: Erba e Vimercate.
Os mapas foram apresentados nas duas escolas pelos alunos (quarta fase), com a partici-
pação de outras turmas, atores territoriais que acompanharam os alunos durante os seus pas-
seios na zona, jornalistas, pais e membros de algumas administrações municipais. Os mapas
indicam os lugares com um valor simbólico significativo para a comunidade e, para cada
lugar, é fornecida a narração (áudio, vídeo-filme, podcast e editorial) realizada pelos alunos.

Reflexões conclusivas

Este trabalho, em consonância com o Projeto Nativi, baseia-se no objetivo de fomen-


tar formas de participação ativa na vida cultural, especialmente para grupos populacionais
com menos oportunidades. Por isso, considerou-se necessário trabalhar com raparigas e
rapazes nas escolas secundárias, a fim de experimentar um caminho para implementar a
consciência dos valores do território. A primeira experiência de Nativi revela, no entanto,
alguns aspetos críticos que já se decidiu corrigir com vista a futuras experiências, que en-
volverão outras regiões italianas. Há dois criticidades sobre os quais se decidiu trabalhar:
por um lado, garantir que as fases estejam estreitamente ligadas também do ponto de
vista temporal, a fim de adquirir competências que possam ser utilizadas imediatamente
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e, por outro lado, a questão do tempo. Decidiu-se limitar o número de horas para tentar
tornar o processo o mais funcional possível, implementando a participação ativa da nossa
comunidade tanto quanto possível. Apesar dos vários elementos a melhorar, constata-se
que o projeto Nativi pode ser um instrumento útil de educação territorial devido à sua
capacidade de reforçar o sentido de cidadania ativa nos alunos envolvidos.
224 //
Referências bibliográficas

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225 //
Os efeitos do desmanche institucional do
PAA e da Pandemia da COVID-19 sobre o
associativismo rural na Região de Dracena
(São Paulo)

Rosangela Hespanhol1
Antonio Nivaldo Hespanhol2

Introdução

A disseminação do SARS-CoV-2 (COVID-19), que levou à Organização Mundial de


Saúde (OMS) a declarar a pandemia, no mês de março de 2020, impactou profundamente
o mundo. Governantes de diversos países adotaram medidas restritivas variadas, tais como:
a) maior controle ou fechamento das fronteiras; b) isolamento social; c) paralisação dos
transportes públicos; d) limitações no funcionamento das atividades comerciais e dos ser-
viços, entre outras, impondo profundas alterações no cotidiano das pessoas.
Os hábitos de consumo, por sua vez, foram fortemente afetados pela pandemia. As re-
feições realizadas fora de casa em restaurantes, lanchonetes etc. foram reduzidas, ao mesmo
tempo em que o preparo de refeições em casa aumentou em virtude da expansão do home
office como modalidade alternativa de trabalho.
No caso brasileiro, a pandemia ocorreu num contexto econômico e social que vinha se
deteriorando desde 2014 e que se agravou a partir de 2016 com o impeachment de Dilma
Rousseff e a ascensão de Michel Temer à presidência da república, seguida do governo de As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Jair Bolsonaro a partir de 2019.


Para os agricultores familiares e suas associações a situação da pandemia foi ainda mais
difícil, tendo em vista que houve restrições ao funcionamento dos mercados nos quais
tais agricultores e suas organizações comercializam a produção. A venda on line por meio
de aplicativos de mensagens foi uma alternativa, mas muitos agricultores já idosos não se
adaptaram ou enfrentaram muitas dificuldades para se adaptar àquela realidade momentâ-
nea, mas que acabou perdurando por vários meses.

1
UNESP de Pres. Prudente – São Paulo – Brasil
2
UNESP de Pres. Prudente – Brasil
227 //
O objetivo principal da pesquisa é analisar o associativismo rural na região de Dracena
– São Paulo – no contexto da descontinuidade institucional do PAA e da COVID-19. A es-
colha dessa área para a realização da pesquisa se deve ao fato dos 16 municípios que integram
o Escritório de Desenvolvimento Rural (EDR) de Dracena se destacarem no contexto do
Estado de São Paulo por possuir o segundo maior número de organizações coletivas e por sua
participação nas políticas públicas, seja em âmbito federal, como o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), ou estadual, como o Programa de Microbacias Hidrográficas.
A hipótese norteadora da pesquisa é a de que a descontinuidade institucional das polí-
ticas de segurança alimentar e nutricional afetou profundamente os agricultores familiares
em razão da grande importância dos mercados institucionais de alimentos, principalmente
do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e que a Pandemia veio agravar ainda mais
uma situação que já estava complicada em virtude da estagnação econômica e da retração
de recursos alocados nessa importante política pública.
A pesquisa, com abordagem qualitativa, foi conduzida com base em levantamento
bibliográfico, seleção e leitura de material disponibilizado em bibliotecas e em sites de
periódicos científicos, e na coleta, sistematização e análise de dados de fontes primárias e
secundárias. Foram feitas visitas exploratórias, bem como entrevistas com técnicos da Casa
de Agricultura de municípios do EDR de Dracena e com presidentes de associações rurais.
O texto está estruturado em três itens, além desta introdução, das considerações finais
e das referências.

Recorte espacial de estudo

A pesquisa teve como recorte espacial de análise os municípios que integram o


Escritório de Desenvolvimento Rural (EDR) de Dracena e localiza-se no Oeste do Estado
de São Paulo.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

De acordo com o último levantamento realizado – e disponível – em 2011 pela


Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI), se verificou que havia 1.087 orga-
nizações coletivas no território paulista. Entre as organizações coletivas havia 971 (89,3%)
associações, 107 (9,8%) cooperativas e 8 (0,7%) entidades diversas (sindicatos, colônias de
pescadores, organizações não governamentais) (GALLETTA, 2011).
Dentre os 40 EDRs do estado de São Paulo, o de Dracena (com 30 organizações
coletivas) se destaca pela presença de associações, as quais congregam, principalmente,
produtores de leite, frutas e hortaliças (GALLETTA, 2011; HESPANHOL, 2007).
O EDR de Dracena é composto por 16 municípios, como se verifica na Figura 1. Seu
território, segundo dados do IBGE (2010), abarca uma área de 4.767 km² e conta com
228 //
população total de 192.795 habitantes, que representa 0,44% da população total do esta-
do de São Paulo (SEADE, 2018).
No EDR de Dracena, a cultura da cana-de-açúcar e as pastagens, com plantel bovino
de corte, são predominantes nas médias e grandes propriedades, enquanto que a olericul-
tura, a fruticultura e a pecuária leiteira são realizadas nas pequenas propriedades rurais ou
nos lotes de assentamentos rurais (HESPANHOL, 2013; ANGELO; GHOBRIL, 2017).
No EDR de Dracena, do total de 8.638 UPAs, 27,0% dos responsáveis faziam parte
de associações rurais (SÃO PAULO, 2017).
Os municípios que compõem o EDR de Dracena concentra um grande número de
pequenas propriedades rurais (até quatro módulos fiscais), e de lotes em assentamentos
de reforma agrária que, embora ocupem uma área relativamente pequena no respectivo
contexto regional, cuja estrutura fundiária é marcadamente concentrada, são responsáveis
por parte significativa da produção de alimentos, além de absorverem o maior contingente
do pessoal ocupado no meio rural.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1: Localização dos municípios que integram o EDR de Dracena – Estado de São Paulo

Apesar de sua importância econômica e social, esses produtores têm enfrentado difi-
culdades de diversas ordens (econômicas, sociais, culturais, técnicas etc.), para permane-
cerem no meio rural.
229 //
Nos municípios que integram esse EDR, seja por pequenos proprietários ou de assen-
tados em projetos de reforma agrária, a participação em associações tem sido importante
para propiciar a reprodução social das famílias rurais.

Os efeitos do desmanche institucional sobre os agricultores familiares


e suas associações

A reeleição de Dilma Rousseff em 2014 se deu num contexto de estagnação econômi-


ca, implicando na realização de cortes na alocação de recursos públicos em diversas áreas e
programas sociais, entre eles o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Essa crise econômica foi agravada pelas dificuldades de articulação política por parte
do governo de Dilma Rousseff que acabaram redundando no seu impeachment no ano de
2016, alçando o vice-presidente Michel Temer, à Presidência da República, o qual adotou
medidas restritivas, com destaque a adoção do teto de gastos públicos, e deu celeridade a
um conjunto de reformas de cunho liberal.
Na reforma ministerial promovida por Michel Temer foi criado o Ministério do
Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) e extintos os Ministérios do Desenvolvimento
Agrário (MDA) e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), com redução dos re-
cursos alocados no PAA, além de terem sido aprovadas novas normas operacionais do programa.
Essas alterações normativas visavam coibir irregularidades que começaram a ser de-
nunciadas pela mídia, tais como desvios de recursos e fraudes no número de agricultores
participantes e/ou entidades e famílias beneficiadas, cobrança de taxas dos agricultores
pelas entidades proponentes (associações e cooperativas), entre outras. As notícias de ir-
regularidades divulgadas pela mídia e que começaram a ser investigadas pelo ministério
público (federal e estadual) estavam ocorrendo em municípios de vários estados do país
(BRASIL, 2016).
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De acordo com o Grupo Gestor, as mudanças nas normas do PAA visaram a proporcio-
nar maior transparência e agilidade nas operações de compra dos produtos (MDS, 2014).
Dentre as principais mudanças, Veloso e Hespanhol (2015, p.03) destacaram:
i) ampliação do limite de participação individual dos agricultores familiares, in-
clusive ao vender por meio de cooperativas; ii) possibilidade de participação em mais
de uma modalidade do PAA, com limites independentes; iii) participação sistemá-
tica das Unidades Recebedoras [Entidades da rede socioassistencial] na elaboração
da proposta e no processo de entrega e controle dos alimentos; iv) regulamentação
dos procedimentos para eventuais trocas de produtos; v) obrigatoriedade de que
as organizações fornecedoras [associações, cooperativas etc.] tenham a Declaração
230 //
de Aptidão ao Pronaf (DAP) Jurídica; e, vi) exigência de certificado no Cadastro
Nacional de Produtores Orgânicos no caso de aquisições de alimentos orgânicos ou
agroecológicos, bem como da exclusividade destes produtos na proposta.

Foi estabelecida também a exigência de proporção mínima de 40% de mulheres no total


de fornecedores do PAA nos projetos submetidos, com exceção da Cédula de Produto Rural
(CPR) Formação de Estoque, cuja cota mínima exigida de participação feminina é de 30%
do total3. A obrigatoriedade da participação das mulheres no PAA atendeu a uma demanda
dos movimentos sociais, já que, embora muitas delas trabalhassem na agricultura e fossem
responsáveis pela maior parte da produção entregue pelos companheiros no programa, como
elas não eram reconhecidas e cadastradas como agricultoras, não tinham o direito de receber,
em seus próprios nomes, a cota paga pelo PAA (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2011).
Até que as organizações coletivas -associações rurais – pudessem se adequar às normas
instituídas, muitos agricultores ficaram sem poder participar do PAA. Quando essas or-
ganizações conseguiram atender às normas, novas mudanças foram implementadas e em
2016, a partir do governo de Michel Temer, passaram a ser priorizados os projetos que
contemplavam os produtos orgânicos, de povos e comunidades tradicionais e de assenta-
dos rurais. No ano seguinte (2017) os recursos destinados ao PAA foram 37% inferiores ao
de 2016, sendo que a modalidade Doação Simultânea foi a mais afetada pelos cortes nos
recursos. Diante das mudanças, os agricultores e suas organizações coletivas foram redire-
cionados pelo governo a migrar para a modalidade Compra Institucional que possui maior
nível de exigência e, em consequência, dificulta a participação dos agricultores familiares
economicamente mais vulneráveis.
Com a ascenção de Bolsonaro ao poder, em 2019, várias políticas sociais tiveram seu
orçamento diminuido ou foram simplemente abandonadas. Em relação às políticas vol-
tadas à agricultura familiar, como o PAA, e o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF), uma das primeiras medidas implementadas pelo novo
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
governo federal ao tomar posse foi transferir a Secretaria Especial da Agricultura Familiar e
do Desenvolvimento Agrário para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(MAPA) que sempre foi mais identificado com os interesses do agronegócio.
Assim, a descontinuidade se deu não apenas desfigurando o desenho proposto para as
políticas públicas, mas promovendo “a eliminação real ou simbólica de sujeitos, grupos e
segmentos” mais vulneráveis para os quais elas foram elaboradas, entre eles, o da agricul-
tura familiar (MARQUES, et al. 2019, p. 8).

3
De acordo com o Artigo 3º, parágrafo 3, da Resolução nº 59, de 10 de Julho de 2013, do Grupo Gestor
do PAA. BRASIL. Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). PAA Resoluções. 2013. Disponível
em: http://www.conab.gov.br/conteudos.php?a=1294&t=2> Acesso em: 22 out. 2013.
231 //
Os efeitos da Pandemia de COVID-19 sobre os agricultores familiares
e suas associações

A disseminação da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 (o novo coronavírus), a


partir de março de 2020, agravou a situação de crise institucional, econômica e social do
país, causando o aumento do desemprego e da informalidade. De acordo com os dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de desemprego, que era de
11,9%, em 2019, subiu para 14,7% no primeiro trimestre de 2021.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da
Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), no mês de dezembro de 2020, constatou que
mais da metade da população enfrentava situação de insegurança alimentar e que 9% da
população brasileira (o equivalente a 19 milhões de pessoas) passavam fome, índice bem
superior aos 4,2% registrados em 2013, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio (PNAD – IBGE, 2014).
A crise sanitária decorrente da Pandemia que ceifou mais de 700 mil vidas agravou
outras crises que já vinham assolando o pais, tais como a crise econômica, decorrente do
agravamento da estagnação econômica que resultou no incremento do desemprego e da
informalidade, bem como no recrudescimento das taxas de inflação que impactou forte-
mente o preço dos alimentos básicos; a crise política, que se revelou na ausência de ações
concretas do governo Bolsonaro para reverter o quadro dramático da Pandemia.
Em consequência, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar teve cres-
cimento expressivo, passando de 36,6%, em 2018, para 55,2%, em 2020, de acordo com
os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto da Pandemia da
Covid-19 no Brasil (REDE PENSSAN, 2021). A situação em 2020 era mais grave do que a
apresentada em 2004, quando 9,5% passavam fome e pouco mais de um terço da população
(35,3%) enfrentava situação de insegurança alimentar, de acordo com os dados da PNAD –
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

IBGE (2004). Cabe pontuar, porém, como destacam Paula e Zimmermann (2021, p. 03),
que embora a pandemia tenha agravado a situação, a pobreza e a fome são aspectos estrutu-
rais da sociedade brasileira, no interior da qual as já profundas desigualdades
[...] foram particularmente ampliadas quando uma agenda neoliberal de des-
monte de políticas de proteção social passou a ser executada (COHON, 2020).
Sob a implacável asfixia da austeridade fiscal, o Estado brasileiro, obediente às re-
comendações do mercado financeiro, desidratou programas de estímulo à oferta de
alimentos pela agricultura familiar (SABOURIN et al., 2020), a exemplo do PAA e
PNAE, o que contribuiu decisivamente para o aumento do desemprego e da infor-
malidade no país (AIN, 2020), além de uma disciplina orçamentária que, através do
232 //
teto de gastos, reduziu os gastos obrigatórios em áreas essenciais para a população,
com saúde e educação.

A descontinuidade do PAA e de outras políticas públicas tem gerado ou agravado


vários problemas nas regiões que se inserem de maneira marginal na divisão territorial do
trabalho, como é os caso do EDR de Dracena.
Uma das formas dos pequenos agricultores familiares enfrentarem as dificuldades coti-
dianas foi a organização em associações, tendo em vista que os governos federal e estadual
estabeleceram a participação em associações como uma condicionante para o acesso às
políticas públicas.
Assim, a participação de agricultores familiares em organizações coletivas formais nos
municípios que integram o EDR de Dracena se constituíu no canal que viabilizou a sua
participação em políticas públicas de âmbito federal, como o PAA e o PNAE, e de âmbito
estadual, como o Programa Estadual de Microbacias I e II.
A relevância dessas políticas públicas ligadas ao meio rural se deve ao fato da economia
regional apresentar baixa expressividade do seu setor industrial, assumindo significativa
importância em termos de geração de emprego e de arrecadação de impostos, as atividades
relacionadas ao comércio e à prestação de serviços, além das atividades agropecuárias.
Para minimizar o problema da pequena escala de produção, uma alternativa encontra-
da pelos produtores rurais e, inicialmente (anos 1980) estimulada pelos técnicos extensio-
nistas das Casas da Agricultura e, mais recentemente, pelas políticas públicas, tem sido a
organização coletiva por meio do associativismo rural.
No Estado de São Paulo, essa tendência de estimular a formação de associações
rurais ou fortalecer as já existentes, foi verificada mais recentemente (2000-2008) com
a implantação do Programa de Microbacias Hidrográficas gerido pela Coordenadoria
de Assistência Técnica Integral – CATI da Secretaria de Agricultura e Abastecimento
do Estado de São Paulo. Nesse programa foram selecionadas áreas (microbacias) para a
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
implantação de ações para os produtores que já se encontravam organizados em associa-
ções, que foram revitalizadas, ou foi incentivada a formação de novas associações para a
participação no programa.
Verifica-se, assim, como essas políticas têm incentivado ou fortalecido a organização
coletiva dos produtores rurais, embora muitas dessas experiências estejam estreitamente
vinculadas à possibilidade de recebimento de recursos públicos e/ou à participação nos
programas de âmbito estadual ou federal.
A participação dos agricultores do EDR de Dracena por meio das associações rurais
no PAA acompanhou, em termos gerais, a evolução do programa em escala nacional, com
sua ascenção até 2013/2014, e redução entre 2019/2021.
233 //
Dessa forma, se verificou que a participação dos agricultores desse EDR no PAA teve
início em 2006, quando apenas quatro (4) associações rurais tiveram projetos aprovados,
totalizando, em valores corrigidos, R$ 1.068,2 mil e contando com a participação de 142
produtores associados; em 2014 foram aprovados 17 projetos do PAA, com um aporte de
mais de 10 milhões de reais, em valores corrigidos, e com a participação de 957 associa-
dos. Em 2019, apenas dois projetos do PAA estavam em execução, com a participação de
apenas 18 associados. Esses dois projetos do PAA foram aprovados, em um único muni-
cípio, em virtude da presença de assentamentos rurais, atendendo as alterações ocorridas
no programa. Em 2020 e em 2021, durante a pandemia, apenas um projeto do PAA foi
aprovado, com a aplicação de menos de 200 mil reais em cada ano, o que representa menos
de 2% do valor alocado em 2014 (CONAB, 2021)
Uma das consequências da não renovação dos projetos do PAA foi a redução do vo-
lume entregue à rede socioassistencial que recebia os alimentos por meio desse programa.
Assim, tanto as instituições da rede socioassistencial (creches públicas, associações filantró-
picas e religiosas etc.) como as famílias atendidas, deixaram de receber os produtos, já que
a rede socioassistencial não conseguiu prover a demanda total de alimentos das famílias
vulneráveis cadastradas, justamente no momento em que a crise econômica se manifes-
tava de maneira mais intensa no país, com cortes nos programas sociais (Bolsa Família,
Benefícios de Prestação Continuada etc.), aumento do desemprego, do nível de pobreza e
da fome. Outra consequência foi à diminuição do volume e da diversidade dos produtos
cultivados na região e que eram comercializados em pequenos mercados e nas feiras livres
municipais, pois muitos dos agricultores que participavam do PAA também comercializa-
vam seus produtos nestes locais e deixaram de fazê-lo em decorrência da desarticulação da
produção e da própria pandemia.
Do lado dos agricultores – que eram em sua maioria pouco capitalizados – que partici-
pavam do PAA e que deixaram de fazê-lo em virtude da não contratação de novos projetos,
muitos reduziram as áreas de cultivo e a diversidade produzida com receio de não terem
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

para quem vender seus produtos.


Alguns presidentes das organizações coletivas de produtores (associações e coopera-
tivas) da Região de Dracena entrevistados que tiveram experiência no PAA, informaram
que antes da existência do PAA, muitos desses agricultores produziam apenas para o au-
toconsumo, comercializando os excedentes nos mercados e feiras locais. Os dirigentes
entrevistados relataram que alguns agricultores voltaram a vender parte de seus produtos
a intermediários a preços menores e com prazo de pagamento maior do que os praticados
pelo PAA.
Para as associações (e cooperativas) de produtores rurais, que mediavam a participação
destes no PAA, também houve perdas monetárias que colocam em dúvida a capacidade
234 //
destas organizações coletivas em continuarem mobilizando os agricultores associados ou
cooperados, apesar das dificuldades que sempre existiram neste tipo de organização cole-
tiva formal.
De forma geral, se constatou que os efeitos econômicos sobre os agricultores que par-
ticipavam do PAA foram expressivos, chegando a inviabilizar a permanência de muitos
deles como produtores rurais. A situação se agravou ainda mais a partir de 2020, por conta
da COVID 19, a qual, em virtude da adoção de medidas de distanciamento físico entre
as pessoas, restringiu a comercialização realizada nas feiras livre e outros circuitos curtos,
restando a alternativa da venda direta por meio de aplicativos de mensagens. Esse canal de
comercialização, embora já existisse, cresceu substancialmente durante e após a pandemia,
mas ele foi mais acessível a agricultores jovens ou para aqueles que contam com a ajuda de
filhos ou outros membros da família.
A economia dos pequenos municípios do EDR de Dracena, por sua vez, foi duramen-
te atingida pela perda de importância do PAA, tanto em virtude da redução do poder de
compra dos agricultores, já que estes, diferentemente dos grandes proprietários de terras –
absenteístas –, fazem as suas compras no comércio local, quanto pela diminuição da oferta
de produtos nas feiras livres e outros canais de comercialização que, em consequência, pas-
saram a dispor de menor diversidade de produtos alimentares frescos e de boa qualidade
produzidos nas proximidades das áreas de consumo.

Considerações finais

A drástica redução nos recursos destinados ao PAA desde 2014 atingiu duramente os
agricultores familiares mais vulneráveis atendidos pelo Programa em todo o país.
O corte radical no número de projetos e beneficiários, bem como nos recursos direcio-
nados ao PAA na Região de Dracena resultou na diminuição do volume e da diversidade
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
dos produtos cultivados, na redução da renda dos agricultores familiares socioeconomi-
camente mais vulneráveis e em limitação de acesso a alimentos básicos para a população
pobre atendida pelas entidades socioassistenciais.
A população regional, como um todo, também foi impactada, em decorrência da re-
dução do volume e da diversidade dos alimentos produzidos localmente e vendidos em fei-
ras e outros canais curtos de comercialização. Os efeitos negativos do desmonte do PAA e
da pandemia verificados na Região de Dracena atingiram também outros territórios onde
o Programa tinha importância econômica e social para os agricultores familiares menos
capitalizados e para as famílias atendidas pela rede socioassistencial, as quais passaram a ser
afetadas pela insegurança alimentar.
235 //
O enfrentamento efetivo dos problemas relacionados à insegurança alimentar e à po-
breza exige reconhecer a profunda desigualdade social que marca a sociedade brasileira.
De acordo com Paula e Zimmermann (2021), se o modelo econômico atual favoreceu o
aumento dessas mazelas no país, é fundamental superá-lo, por meio da reorientação da
economia com uma visão mais inclusiva e com maior preocupação social.
Nessa perspectiva, o protagonismo do Estado precisa ser resgatado, com uma agenda
política que priorize, entre outras ações, a proteção social e a distribuição de renda, e que
recupere políticas voltadas para a produção de alimentos pela agricultura familiar.
Com a eleição de Luiz Inacio Lula da Silva para o seu terceiro mandato, iniciado
em Janeiro de 2023, as esperanças foram, de certa forma, renovadas, sobretudo para as
camadas populares mais vulneráveis economicamente. Além de trazer novamente para
o centro da arena política o combate a fome como uma prioridade de seu governo, ele
tem implementado algumas ações que são importantes para a consolidação de uma polí-
tica de segurança alimentar e nutricional para o país, tais como: a recriação do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar (Consea); a Medida Provisória 1.164, que reformu-
lou o Programa Bolsa Família; o reajuste de 39% dos valores do Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE), cujos recursos via Fundo Nacional de Desenvolvimento
Escolar (FNDE) são repassado a estados e municípios para compra de alimentação escolar;
e o relançamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Essas ações implementadas pelo governo federal colocam em evidência a importância
do papel do Estado no enfrentamento da fome, possibilitando construir uma nova arena
de debate com a participação da sociedade civil para desenvolver de forma mais efetiva
uma política de segurança alimentar/ nutricional no país.

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
238 //
Novos Rurais: desafios na atração
e retenção de talento em territórios rurais

Luísa Ribeiro1* João Almeida2*


Andrea Barbosa3*

Introdução

A situação pandémica que vivemos durante aproximadamente 3 anos, trouxe com


ela uma necessidade de (re)adaptação a novas realidades sociais que se impuseram. É
neste sentido que os territórios rurais mereceram uma visibilidade e valorização, há muito
tempo esquecidas.
A procura por estes territórios é, assim, um reflexo das novas formas de organização do
trabalho e da flexibilidade que daí se transportou para a vida pessoal, tornando os desafios
da pandemia em oportunidades para o meio rural.
Deste modo, é fundamental a compreensão dos fenómenos sociais que estão impli-
cados nesta transição para o meio rural e quais as motivações, desafios e fatores de apoio
sentidos pelas pessoas que escolheram mudar-se para estes meios.
Neste artigo, serão apresentados os resultados de um estudo qualitativo, suportado por
informação recolhida através de entrevistas semi-estruturadas e grupos de foco, contando
com cerca de 15 pessoas (até ao momento), que se mudaram para 8 localidades diferentes, As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

em Portugal.
Através destes levantamentos, pôde perceber-se que existem alguns desafios no que
respeita às questões burocráticas da mudança e adaptação, e também nas poucas oportu-
nidades de emprego em áreas profissionais não tão comuns nos meios rurais. O trabalho
remoto tem sido a modalidade que permite que várias pessoas se mudem para os territórios
1
Mestre em Sociologia, – luisaribeiro1997@gmail.com
2
GOVCOPP, DCSPT, Universidade de Aveiro (Portugal), – joaolopesalmeida@ua.pt
3
Universidade Católica Portuguesa, – andrearodriguesbarbosa@gmail.com
*Rural Move – Associação para a Promoção do Investimento em Territórios de Baixa Densidade (Miranda do
Douro, Portugal)
239 //
rurais, podendo continuar a trabalhar para as mesmas empresas, porém, à distância. Por
outro lado, existem também desafios de integração social, barreiras linguísticas e, por
vezes, discriminação de novos residentes, que podem ser ultrapassados com a existência de
um líder/gestor de comunidade que faça essa ponte entre ambas as partes.
Se bem trabalhadas as dinâmicas de cooperação entre locais e novos habitantes, alian-
do os saberes e competências de cada grupo para o desenvolvimento destes territórios,
trabalhando o espírito de comunidade e valorizando a cultura e tradições tão incorporadas
nestes espaços, estes, tornar-se-ão, como já é possível constatar, lugares de grande atração
e fixação de novas pessoas que encontram nas vilas e aldeias rurais aquilo que precisam e
desejam para viver num local onde se sintam em casa.

A Terra, o (re)encontro com a Essência

“Cá estou mais uma vez cingido à minha natureza profunda. Vestido como
qualquer camponês e a sentir-me bem dentro desta pele terrosa, cavo o quintal, ar-
ranco silvas, podo roseiras, racho lenha. E converso com gente do meu agro que me
vem visitar ou consultar, gente que nunca me leu, nem faz ideia do que é ser poeta,
que fala de trivialidades e quer ouvir respostas triviais. Alimento com todo o meu ser
essas conversas intermináveis, feitas de tudo e de nada, e quando elas acabam retomo
a enxada de boa consciência, na paz de quem compreendeu e foi compreendido.
Sabe bem compartilhar da condição comum. Lá em baixo sou uma ficção entre
ficções; aqui sou uma criatura entre criaturas.”
Miguel Torga,S. Martinho de Anta, 23 de dezembro de 1982 in Diário XIV.

Antes de passar à exposição da matéria que tem vindo a ser trabalhada em entrevistas e
grupos de foco para se perceber quais as motivações, desafios e oportunidades que as pessoas
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

que se mudam têm encontrado nestes espaços, considero que existe uma razão de origem
muito mais transcendente, por vezes, do que propriamente prática. Refletindo sobre as pala-
vras de Miguel Torga, e apesar de terem sido escritas há 40 anos, elas representam, nuamente,
a vontade de voltar a uma “essência”, mesmo que nunca tenha sido experimentada por boa
parte das pessoas que a anseiam. É quase uma espécie de nostalgia do que nunca foi vivido.
Estes tempos em que vivemos, fruto de uma Pós-Modernidade caótica, a “Modernidade
Líquida”, como Bauman (2001) apelidou, têm desencadeado uma urgência em viver uma
solidez que se sente presente nestes meios rurais, mantendo ainda uma simplicidade que
acaba por ser libertadora. É sobre isto que fala Torga – da simplicidade – no ser, no estar,
no conversar, no entender e no sentir.
240 //
Entre outras motivações importantes para o quotidiano de cada um, poderá muito
bem ser este o encontro que as pessoas desejam quando pensam em mudar a sua vida para
estes lugares.

Ruralidade: a complexidade dos conceitos e relações

A concetualização do termo rural é hoje algo difícil de expressar. Enquanto que antiga-
mente existia uma noção muito clara do mundo rural, circunscrita a um contexto espacial
muito bem caracterizado e delimitado, hoje, já não é assim tão linear. O desenvolvimento
socioeconómico a que os espaços rurais têm assistido tem contribuído para uma alteração
da perceção da ruralidade para além do espaço, transformando-a antes numa visão em rede
que recoloca o estatuto de ruralidade pelas relações que se estabelecem entre as populações
rurais com as da sua zona, região, país, até mesmo com o resto do mundo num sentido
mais lato (Covas, 2017).
Um outro aspeto que ajuda a definir o mundo rural consiste na qualidade do nível de
vida expressa através de indicadores convencionais como os serviços sanitários, educativos,
prestações sociais, habitação e outras infraestruturas físicas que caracterizam estes meios.
No entanto, com a exceção de alguns territórios muito específicos, a dicotomia entre o
urbano e o rural acaba por ser uma abordagem ultrapassada, pelo desenvolvimento que
tem sido observado.
Existe, assim, uma variável capaz de definir mais acertadamente este espaço: o sistema
de valores. Esta conceção também tem vindo a perder um pouco a sua força, à medida
que agentes externos vão ganhando influência nos modos de vida das comunidades rurais,
já que, se observarmos atentamente, a heterogeneidade de comportamentos e modos de
estar que distinguia ao longe uma pessoa do campo e uma pessoa da cidade, está a ficar
cada vez menos assente.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Dada toda esta complexidade na concetualização e definição do que é a ruralidade nos
dias de hoje, existem três definições essenciais que se interligam (Diniz, 1997):
• Definição sociocultural: esta pressupõe o comportamento e as atitudes que diferem
entre os habitantes de zonas de baixa densidade populacional e as zonas urbanas,
associando-se aos rurais um sistema de valores tradicionais. Esta visão tem uma
forte componente socioantropológica.
• Definição ocupacional: baseada na predominância de atividades económicas ligadas
ao setor primário. Esta distinção deixou de ser determinante, uma vez que, se tem
assistido, ao longo dos últimos anos, a uma integração dos agricultores em merca-
dos de trabalho do tipo não agrário, sendo a pluriatividade um elemento a ter em
241 //
conta nos meios rurais dos nossos dias , provocando até alguns enganos na diferen-
ciação ocupacional entre os rurais e os urbanos.
• Definição ecológica: considera o espaço rural como zona de pequenos aglomerados
com grandes espaços de paisagem aberta entre eles.

O espaço rural tem passado por diversas mutações e as suas estruturas económicas e
sociais tornam pertinente a análise do conteúdo concetual do termo. Se por um lado, este
reforça a relação com a natureza, como mero fornecedor de recursos naturais, por outro
debate-se a relação com a paisagem e atividade agrícola, ao mesmo tempo que cresce o
emprego nos setores secundário e terciário (Diniz, 1997). São estas transformações do
espaço e das dinâmicas, particularmente as dinâmicas de trabalho, que serão de seguida
refletidas no presente artigo.

Novas formas de trabalho: uma oportunidade para o meio rural

A aceitação do trabalho remoto, embora discutida desde a década de 1980 por pen-
sadores como Margrethe Olson (1983), experimentou uma rápida expansão durante a
pandemia. A pandemia da COVID-19, com suas adversidades, não apenas acelerou o tra-
balho remoto, mas também abriu portas para formas emergentes de emprego. As empresas
perceberam os benefícios da flexibilidade, incluindo aumento da produtividade e o acesso
global a talentos. Contudo, ainda há diversos desafios, como problemas de comunicação
entre equipas remotas, a necessidade de uma cultura organizacional mais forte, a necessi-
dade de capacitação para trabalhar eficientemente online.
A mudança para o trabalho remoto está a transformar não apenas a dinâmica entre
empresas e trabalhadores, mas também a geografia económica. Os escritórios estão a des-
centralizar-se, migrando para áreas suburbanas ou adotando políticas totalmente remotas.
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Paralelamente, os trabalhadores procuram ambientes menos congestionados, onde podem


garantir um equilíbrio pessoal e profissional maior (JLL, 2020).
Assim, o trabalho remoto, impulsionado como respostas às restrições impostas pela
pandemia, surgiu como uma oportunidade significativa para os meios rurais, revelando o
potencial inexplorado dessas regiões (Almeida, 2023). Existem empregos em diversas áreas
nos quais é absolutamente possível trabalhar à distância, o que torna isto uma oportunidade
única para a atração e fixação de talento, principalmente qualificado, para estes territórios.
Além disso, a mudança também apela à criatividade e, o mundo das artes e outros ofícios
mais alternativos, também têm procurado os territórios rurais para se criarem, como veremos
a seguir. Por fim, estas novas formas de trabalho também tem implicações no turismo e no
242 //
perfil do turista, levando a que cada vez mais pessoas juntem o trabalho ao lazer e procurem
passar maiores temporadas num determinado local (Almeida & Belezas, 2022)

Metodologia

Para melhor compreender os porquês que levam as pessoas a mudar-se para territórios
rurais para viver e trabalhar, têm sido feito um trabalho de investigação (em campo e on-
line), onde as motivações, os desafios, as relações e os olhares têm sido partilhados. Este
trabalho surge de parte da atividade de uma Associação para a Promoção e Investimento
em Territórios de Baixa Densidade, a Rural Move, na qual tenho realizado o meu percurso
profissional na minha área de formação, sociologia.
Para este estudo, aplicou-se a metodologia qualitativa e, como técnica de recolha de
informação, foram realizados grupos de foco (neste artigo serão partilhados os resultados
de um deles) e entrevistas semi-estruturadas a pessoas que se mudaram para 8 localidades
diferentes em Portugal. Importa referir que o público-alvo das entrevistas e dos participan-
tes do grupo de foco comporta pessoas qualificadas e trabalhadores remotos sendo, mais
tarde, as conclusões aplicadas a estas especificidades, não generalizando para grupos com
outras características.

Grupo de Foco: Caminha, Alto Minho

Para conhecermos as vivências de quem se mudou, foi organizado um grupo de foco


com novos residentes de várias freguesias do concelho de Caminha, onde os participantes
partilharam a sua experiência no processo de mudança.

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Caracterização do público-alvo

Este grupo contou com a presença de 5 pessoas de diferentes nacionalidades (brasilei-


ra, alemã, belga, portuguesa), que responderam e discutiram sobre várias questões entre si,
acerca da sua integração e adaptação ao território e à comunidade.

Principais resultados

De acordo com o que foi expressado no grupo de foco, ao nível dos obstáculos que
sentiram na mudança, estes foram os predominantes:
243 //
Fig. 1: Grupo de Foco na Quinta da Quinhas, Vila Praia de Âncora, Caminha

• A cultura e a língua – foram barreiras com as quais se depararam. Nem toda a gente
fala inglês no concelho minhoto e, num primeiro momento, dificulta a integra-
ção das novas pessoas. Além disso, diferentes modos de estar e de entendimento
específicos de cada cultura, também requerem uma atenção especial na hora de
comunicar e conviver.
• As áreas profissionais – como o yoga e práticas mais holísticas ainda não são muito
comuns na região, tornando-se difícil, especialmente para novos residentes estran-
geiros, estabelecer-se profissionalmente.
• O salário – o grupo confessou que trabalhar para fora (estrangeiro) compensa, mas
trabalhar para receber salários portugueses, não é atrativo.
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• O convívio e integração – sobretudo inicialmente, o convívio foi algo difícil por


muitos pontos de encontro estarem fechados no verão. Além disso, a desconfiança
e pouca abertura da população local para convidar os novos vizinhos para sua casa,
foram aspetos que surpreenderam os novos residentes.
• Questões administrativas – processos demasiado lentos e burocráticos (fator que se
estende a nível nacional).
• Discriminação – tendo sido relatada apenas por uma das pessoas presentes no grupo
(participante brasileira), esta é bastante frequente em relação às mulheres brasileiras.
Uma problemática sociocultural que merece toda a atenção, uma vez que é uma rea-
lidade muito presente em todo o país, independentemente da malha urbana ou rural.
244 //
Apesar dos contratempos apresentados, todos os participantes admitiram sentir-se fe-
lizes com a mudança e sentem que fizeram a escolha certa. Eis, abaixo, os principais fatores
que contribuíram para a sensação de “casa”.
• O espírito de comunidade – oferecer legumes e vegetais a quem chega de fora é recon-
fortante, principalmente quando os novos residentes não têm cá (Portugal) família.
Estes gestos criam uma ligação entre as pessoas e fazem com que elas se sintam em casa.
• A amizade – alguns participantes que já tinham vivido em vários países, contaram
que nunca tinham sentido que fizeram amizades verdadeiras nesses locais. O senti-
do da amizade ganhou-lhes significado quando chegaram a Caminha.
• A Quinta da Quinhas – o próprio espaço da Quinta, é muito querido pelo grupo,
tanto pelas pessoas que lá se abrigam, como também pelos que vão para lá trabalhar
diariamente, como é o caso de várias pessoas que participaram nesta conversa.
• Chat coletivo – um grupo online criado, onde os portugueses e novos residentes
estrangeiros do concelho trocam ideias, ajudam com recomendações e combinam
programas em conjunto. Este grupo, por exemplo, já conta com 50 pessoas e é o
reflexo do quanto o espírito de comunidade é capaz de mover.

Entrevistas

Na recolha que tem sido feita através das entrevistas (15) às pessoas que se mudaram
para territórios rurais, tem sido possível perceber quais são as motivações que levaram a
tal decisão e como tem sido a experiência na viver nestes territórios. Eles são: Miranda do
Douro, Castelo Branco, Caminha, Vila Nova de Cerveira, Serpa e Alvaiázere, Vila Real e
Ferreira do Zêzere.

Caracterização do público-alvo
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Foram entrevistadas pessoas do ramo das artes performativas, engenharia, jornalismo,


turismo, etnomusicologia, multimédia e educação. As nacionalidades correspondentes são
portuguesa, brasileira, americana e alemã, e os entrevistados têm idades compreendidas
entre os 30 e os 71 anos.

Principais resultados

Na conclusão deste estudo, destaca-se a interessante observação de como as percep-


ções das pessoas que conhecem uma localidade diferem significativamente daquelas dos
245 //
habitantes locais. Questões que para os locais são alvo de desagrado e desassossego, são
percebidas como insignificantes detalhes pelos novos residentes.
As preocupações com transportes, as distâncias (dependendo do território) e a falta de
outras estruturas como serviços de saúde ou serviços administrativos, que para os locais
representam um problema que afeta diretamente o seu quotidiano, acaba por ser encarado
de uma forma mais leve por parte dos novos residentes de forma geral.
Contudo, é importante ressalvar que as condições dos territórios rurais do interior
de Portugal não são as mesmas que as dos territórios rurais mais próximos do litoral. Os
territórios rurais da região minhota, por exemplo, têm uma caracterização em termos de
acessibilidade e facilidades bastante diferente da transmontana ou do Alentejo profundo e,
estas diferenças, foram constatadas no que os entrevistados partilharam.
Os principais motivos que levaram os entrevistados a mudar-se para um território
rural, bem como os pontos positivos, estão relacionados com:
• A Natureza – sentem que a ligação com a paisagem natural e as sensações que esta
provoca é imperativa para o seu bem estar. Alguns deles já tinham esta ligação ao
campo pelas raízes familiares, outros estavam cansados da vida desgastante da cida-
de e sentiram um forte apelo para uma vida mais calma.
• O espírito de comunidade – a população local é bastante prestativa para com os novos
residentes. É muito comum distribuírem produtos da horta pelos os novos vizinhos
e esta é uma forma de criar uma integração e interação agradável, que faz com que
se sintam acolhidos.
• A dinamização – os novos residentes têm contribuído para a dinamização dos terri-
tórios, criando dinâmicas participativas com os locais.
• A tranquilidade – mesmos que nas aldeias ou vilas onde se instalaram não existam
as estruturas de que necessitam e tenham de se deslocar às periferias próximas de
cidades mais pequenas, estas têm muito menos confusão quando comparadas com
áreas metropolitanas como o Porto ou Lisboa.
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• O custo de vida – as cidades onde viviam anteriormente (a maior parte em Lisboa),


tornaram-se insustentáveis. O preço absurdo das rendas e o aumento do custo de
vida no geral, é um fator bastante preponderante na hora de ponderar a decisão de
viver num meio rural, onde conseguem viver mais desafogados.

“Não é preciso ter pressa, e essa à também a mentalidade que nós temos. E agora
com o filho e tudo, lá está… acalmar, apreciar as coisas. Já não me imagino a sair
daqui tão cedo.” (Entrevistada 1, Castelo Branco)4

4
A fotografia corresponde a uma entrevista com uma americana que se mudou para o concelho de Caminha.
246 //
“A mudança proporcionou-me
uma reflexão. As distâncias tornaram-se
relativas. Onde é que tu queres dedicar
o teu tempo? É uma opção. É relativo,
tudo é relativo.” (Entrevistada 2, Pias,
Ferreira do Zêzere)

“Há muita partilha. Ontem apanhei


uma data de beterrabas, eu não dou vazão
àquilo tudo (...). Depois vem o outro
com ovos…há uma partilha. E eu estava
aqui a viver há dois dias e parecia uma
procissão dos vizinhos a darem-me as
boas vindas.” (Entrevistada 3, Alvaiázere)

Obstáculos sentidos na mudança

Quanto às dificuldades e obstáculos, estes foram, sobretudo, sentidos em relação à falta


de estruturas e incentivos culturais nestes territórios; alguma divergência face à atitude e
postura dos locais (esta dimensão não foi generalizada, está circunscrita a um território
específico, neste caso, o Alentejo); e, em alguns casos, os serviços de saúde e administra-
tivos não sabem dar resposta a certas necessidades, levando a que as pessoas tenham de se
deslocar a outras localidades para resolverem o que precisam.

Considerações finais
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As transformações sociais e as mudanças de hábitos e de objetivos que têm acom-


panhado a sociedade contemporânea são visíveis nas oportunidades que trazem para os
territórios do meio rural. Estes espaços começam, assim, a ganhar novas configurações,
diferentes daquelas que estamos acostumados a associar-lhes.
Neste artigo, vimos como as formas de trabalho atuais têm implicações positivas para
os territórios rurais, possibilitando a atração e fixação de talento nos mesmos, fazendo face
ao problema de despovoamento e “fuga de cérebros”. Além disso, as variáveis apresentadas,
fornecidas pelo público auscultado no grupo de foco e nas entrevistas contribuem para
uma alteração da visão arcaica e inferiorizada com que estes espaços eram olhados.
247 //
Características como a natureza, o espírito de comunidade, a tranquilidade e os custo
de vida mais baixo são bastante valorizadas por quem deseja mudar-se ou já fez mesmo essa
mudança, como é o caso da amostra analisada. Contudo, existem ainda alguns desafios
que precisam de ser ultrapassados no que diz respeito aos serviços de saúde e administra-
tivos, falta de oferta e de incentivos culturais em determinados territórios ou até mesmo
a postura e atitude de alguns locais, que pode dificultar um pouco a integração dos novos
residentes. Estas são dimensões que devem ser trabalhadas ao nível das políticas públicas e
sociais, que devem ser enquadradas em estratégias a longo prazo, integradas e envolvendo
em trabalho conjunto com os principais agentes do território, tais como associações locais,
autarquias, empresas e a própria comunidade.
Apesar de a amostra apresentada não ser representativa de todas as pessoas que se mudam
ou tencionam mudar-se, tanto em número como da própria caracterização do grupo alvo, no
futuro, pretende-se que este estudo seja alargado a uma população que apresente diferentes
condições, já que a questão do privilégio ou da sua ausência, é uma realidade que sociologica-
mente não pode ser ignorada pelo condicionamento que representa na (im)possibilidade de
escolha dos cidadãos. Assim, futuros estudos devem procurar perceber as barreiras e fatores
críticos no processo de mudança de outros perfis sociodemográficos, bem como analisar a
adequação das políticas e apoios existentes na resposta a estes grupos.

Referências bibliográficas

Almeida, J. (2023). Novas Formas de Trabalho e a (Nova) Função do Espaço Rural. In R. Jacinto
(Ed.), Revista Iberografias 45: Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de
Língua Portuguesa (pp. 195-210). Centro de Estudos Ibéricos.
Almeida, J. and Belezas, F. (2022), “The Rise of Half-Tourists and their Impact on the Tourism
Strategies of Peripheral Territories”, in Leitão, J., Ratten, V. and Braga, V. (Eds.), Tourism
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Entrepreneurship in Portugal and Spain: Competitive Landscapes and Innovative Business Models,
Springer International Publishing, Cham, pp. 181-191.
Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
Covas, A. (2017). Territórios e Desenvolvimento Territorial – Crónicas do Sudoeste Peninsular.
Edições Sílabo.
Diniz, F. (1997). Ruralidade: Definições e Tipologias. Gestão e Desenvolvimento, pp. 283-306.
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JLL (2020, May). Remote Work em Portugal. Retrieved September 7, 2022, from https://www.jll.
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Olson, M. H. (1983). Remote Office Work: Changing Work Patterns in Space and Time.
248 //
Territorialidades, nova cartografia social
e povos tradicionais no Brasil

Andréa M.ª Narciso Rocha de Paula1 Adinei Crisóstomo Almeida2


Felisa Cançado Anaya3 Natália de Paula Narciso Rocha4

Introdução

Os povos tradicionais no Brasil constituem grupos étnicos, portadores de modos de


vida singulares, que os conferem identidades e direitos específicos. São grupos que mantém
com a natureza, com a terra e com o modo de viver, relações que são passadas entre gera-
ções e constituem saberes tradicionais que possibilitam a reprodução da vida no território.
Na Constituição Federal do Brasil de 1988, foram reconhecidos os direitos coletivos
de povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos, visibilizando as lutas e
reivindicações dos novos sujeitos de direitos. No ano de 2007, o decreto 6040 regulamentou
os PCTs-Povos e comunidades Tradicionais como:
Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que pos-
suem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recur-
sos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral
e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição (BRASIL: Decreto 6.040, art. 3º, § 1º). As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A garantia da reprodução social, cultural, econômica, religiosa, ancestral é portan-


to, dever do Estado brasileiro, que é signatário da Convenção 169 (OIT Organização
Internacional do Trabalho) e, tem como competência a promoção de ações que respaldem
a autonomia e a regularização das terras tradicionalmente ocupadas.

1
Universidade Estadual de Montes Claros. – andrea.paula@unimontes.br
2
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. – adineicrisostomo@gmail.com
3
Universidade Estadual de Montes Claros. – felisaanaya@gmail.com
4
Universidade Estadual de Montes Claros. – nataliaedpaula@gmail.com
249 //
Os povos tradicionais dão visibilidade aos modos coletivos de gestão e apropriação dos
territórios, “... expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes
povos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza”, (Almeida, 2008:
p.26). São povos que expressam na atualidade o contexto histórico de expropriação e re-
sistência, pois mesmo tendo enfrentado séculos de expropriações territoriais e simbólicas,
os mesmos resistem nos territórios, utilizando formas de uso comum da terra e da gestão
distinta da natureza.
A tradição é compreendida pelos povos nas praticas apreendidas e vivenciadas nos
territórios através das praticas aprendidas por gerações familiares e ancoradas nos saberes
adquiridos com e entre os membros do grupo. Concordamos com Liltte (2002) que utiliza
o conceito de tradicional de Sallins (1997) para demonstrar que as tradições são atualiza-
das na dinâmica da transformação dos tempos.
Antonio Bispos dos Santos, conhecido como “Nego Bispo”, intelectual orgânico qui-
lombola, concorda que a Constituição brasileira os tornou sujeitos de direitos. Discutindo
a colonização e a guerra de narrativas, Nego Bispo, faz uma reflexão que, mesmo sendo
uma agressão terem ainda que lutar pela regularização fundiária de suas terras, compreen-
de que se faz necessário “jogar com o inimigo” para poder “confluir”. Utiliza conceitos
com confluência, transfluência para delimitar as diferenças sobre os modos de viver entre
os povos quilombolas, os povos tradicionais e os demais povos.
Até essa Constituição, ser quilombola era ser criminoso e ser indígena era ser
selvagem A Constituição de 1988 disse que nós temos direito a regularizar as nos-
sas terras pela escrita – o que é uma agressão, porque pela escrita nós passaríamos
a ser proprietários da terra. Mas os nossos mais velhos nos ensinaram a lidar com
essa agressão. (...)Assim, discutir a regularização das terras pela escrita não significa
concordar com isto, mas significa que adotamos uma arma do inimigo para transfor-
má-la em defesa. Porque quem vai dizer se somos quilombolas não é o documento
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

da terra, é a forma como vamos nos relacionar com ela. E nesse quesito nós e os indí-
genas confluímos. Confluímos nos territórios, porque nosso território não é apenas
a terra, são todos os elementos. ( Santos, 2018: p.41)

Com tais concepções, buscamos desenvolver nesse artigo a importância das territo-
rialidades para os povos tradicionais no Brasil. Realizamos junto aos povos tradicionais a
construção de mapas situacionais, que apresentam as realidades dos grupos étnicos com
quem desenvolvemos pesquisas de longa duração. Os mapas confeccionados através da
nova cartografia social, no núcleo do Estado de Minas Gerais auxiliam na descrição dos
modos de vida, na visualização dos conflitos enfrentados por pescadores, quilombolas,
vazanteiros, ribeirinhos entre outros. Grupos étnicos que se autodefinem, através da
250 //
identidade coletiva, das territorialidades específicas que são manifestas no território e fruto
da mediação vivida com a natureza.
Ailton Krenak, pensador e intelectual indígena, tem refletivo sobre a sociedade e o
futuro ancestral: “Se o colonialismo nos causou um dano quase irreparável foi de afirmar
que somos todos iguais,”(2022, p.42). Krenak provoca a reflexão sobre a diferença e como
que os modos de viver diferentes são fundamentais para nossa constituição e o território é
elemento que promove a diferença, através da constiuiçao do modo de ser e viver no lugar
tradicional. Portanto, é o território a reivindicação primeira dos povos tradicionais.

Território, territorialidades e identidades coletivas

A categoria território é fundamental para a compreensão dos povos tradicionais. É no


território que os grupos estabelecem as relações, que os fazem reconhecerem como perten-
cente a uma comunidade. O território é constituído no modo de viver dos grupos, através
da oralidade, da memória, do trabalho, do festejar e celebrar, dos signos e significados
atribuídos pelas pessoas aos lugares, aos rios, as plantas, as organizações e aos preceitos
elaborados e apreendidos.
Território é mais que a terra, é a construção coletiva do grupo ao vivenciar conjuntamente
determinado espaço físico. Dessa forma, o território para além de um objeto, de uma posse, é
um movimento que se repete e sobre o qual os indivíduos exercem controle, exercem relações
de poder. Concordamos com Raffestin (1993): “Ao se apropriar de um espaço concretamente
ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator territorializa o espaço”(p.143).
O reconhecimento mútuo no território, a percepção de unidade, as territorialidades,
atribuem identidade e concebe as fronteiras demarcadas pelo próprio grupo. A etnicidade
(Barth, 1998) auxilia que compreendamos que é na fronteira da diferença, que as coletivi-
dades se reconhecem e mantém seus laços de pertencimento. Os membros de um grupo se
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reconhecem e se distinguem em oposição. Assim, a fronteira étnica não é somente uma fron-
teira territorial. Pois pode materializar em uma fronteira simbólica, na língua, na religião. Os
povos se reconhecem na construção dessas fronteiras e nas relações cotidianas permeadas na
memória coletiva.A autoatribuiçao é o mais importante atributo étnico destes povos. Ao
atribuírem identidade étnica para o grupo e para os demais grupos, promovem a interação
interna e formam os grupos étnicos, sendo que são os grupos que determinam seus sinais
diacríticos de atribuição da identidade e identificação e diferenciação entre “nós e eles”.
Enquanto fator de identificação, a territorialidade promove através dos laços de reciproci-
dade e das regras comuns à defesa e a força do território. Portanto, as territorialidades são cons-
truídas no território, através das identidades acionadas e das relações de poder estabelecidas.
251 //
A construção das territorialidades dos povos tradicionais no Brasil é acionada através
das praticas de regime de propriedade comum, no sentido de pertencimento e na memória
coletiva como componentes da identidade coletiva. Para Almeida ( 2008, p.7) a identidade
coletiva provoca a consciência do território e a consciência de si mesmo pelos agentes sociais
mobilizados e organizados, na perspectiva da projeção no campo político na luta por suas rei-
vindicações ao estado brasileiro. O autor chama a atenção para a emergência das identidades
coletivas que a partir da Constituição de 1988, provocaram repensar a sociedade colonial.
Repensar a dimensão política das identidades coletivas, as fronteiras situacionais e as
diferenças relativas, impôs uma reflexão sobre os conflitos entre os povos tradicionais e o
Estado brasileiro em função da morosidade na titulação definitiva de suas terras coletivas.
Para Almeida, (2008) a recusa à titulação definitiva das terras coletivas é um “modus-
-operandi” de uma sociedade com intensas ligações com “... à ideologia da concentração
fundiária como sinônimo de progresso numa economia agrário-exportadora, apoiada na
monocultura, no trabalho escravo e na concentração fundiária –, procedimento que reme-
te à sociedade colonial,” (p.13).
A expropriação territorial provocou à mobilização dos povos tradicionais, pois eles
encontram-se cercados, “encurralados” pelos grandes empreendimentos minerários, pelas
monoculturas, pela pecuária extensiva que são financiados também pelo Estado brasileiro,
para a manutenção da situação colonial. Mas é a mobilização interna nos grupos e entre
os povos tradicionais que se transformam em formas de resistências realizadas no cotidiano
(Scott, 2008), para a manutenção dos seus territórios. Almeida(1989) chama atenção para
que a mobilização possa ser interpretada como unidade de mobilização. Onde não é o
valor racional da força de trabalho o componente principal, mas a coesão social. “Unidades
de mobilização de cuja coesão social, não se pode duvidar. Tanto pela uniformidade de
suas praticas, quanto pela força com que colocam nos enfretamentos,” ( p.5).
O impasse entre a oposição da expansão de terras para interesse industrial, militar, empre-
sarial e as terras tradicionalmente ocupadas, tem mobilizados os povos em forças sociais, que
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tem na reafirmação das territorialidades específicas (Almeida, 2008), uma forma de resistência.
A humanização dos recursos naturais pelas classificações coletivas e de parentesco,
evidencia a profundidade de tal politização. Assim, alguns povos privilegiam em sua de-
nominação um determinado elemento destacado do quadro natural, tal como: “floresta”
em “povos da floresta” ou “cerrado” em “povos do cerrado” ou ainda “povos da água”. Há
denominações em que esta relação está implícita como: “geraizeiros” e “ribeirinhos”. As
chamadas “quebradeiras de coco babaçu” consideram a palmeira como “mãe” ao contrá-
rio de outros povos que evocam a “mãe-terra”. ( ALMEIDA, 2008, p.96)
252 //
As territorialidades específicas atuam, segundo o autor, como uma forma de interlocução
entre os antagonistas e o poder do Estado. É no processo das constituições das identidades co-
letivas que se constroem os territórios. Autoatribuição como geraizeiro, vazanteiro, quilombo-
la, ribeirinho (atribuições de povos tradicionais em Minas Gerais) possibilita o fortalecimento
da identidade coletiva que se converte em movimento social e promove a luta e a reivindica-
ção das terras tradicionalmente ocupadas. São composições étnicas diversas, reafirmadas nos
dispositivos constitucionais e que demonstram a pluriétnicidade da nação brasileira.
A insistência do governo em legislar sem escutar as demandas das comunidades
significa que muitas das normas que regulamentam a vida dentro das unidades de con-
servação não condizem com a realidade de quem mora lá. Por exemplo, uma família de
beiradeiros tem permissão para morar de um lado do rio, mas a outra margem, onde a
mandioca cresce melhor, foi designada área de proteção integral e não pode ser tocada.
O cartógrafo que decidiu que a fronteira entre as duas áreas seria o rio provavelmente se
inspirou nas fronteiras entre países, como o rio Paraná, que separa o Brasil do Paraguai.
Mas não entendeu que, no modo de vida local, o rio não separa territórios distintos. O
rio é o principal unificador do território, a via que permite as trocas, as visitas, e o acesso
a áreas produtivas, tudo que faz do grupo uma comunidade.” (Furuie, Guerrero, 2021)

A constituição do modo de vida diferente promove formas diversas de conviver com


a natureza. As dimensões vivenciadas pelos povos tradicionais são (na sua maioria) de
compartilhar com a natureza os sentimentos, as percepções que são incorporadas aos
“entes”, aos encantados, que fazem parte das suas famílias. Árvores, rios, bichos pertencem
à dimensão das suas vidas nas ações práticas e simbólicas e, portanto a representação carto-
gráfica “deveria” levar em consideração essas dimensões. Concordamos com Viana (2010,
p.5), que “‘os mapas são territórios’, e mais, são “territórios em disputa em uma verdadeira
guerra simbólica de mapas.”.
Portanto, a nossa atuação no campo da ciência,necessita que seja na perspectiva de
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uma ciência engajada, baseada na reflexão sobre as situações de pesquisas, realizadas no
contexto da “guerra simbólica” de mapas, permeada nos instrumentos que os represen-
tam, delimitam e disputam os territórios.

Nova cartografia social

O mapa é uma representação da superfície, que estabelece limites e explicita relações


de poder. Enquanto representação cartográfica, o mapa promove nossa localização, nosso
espaço e nossa compreensão do território. A leitura dessa representação requer estudo e
253 //
interpretação da realidade, que ali está significada. Segundo Lacoste (1987) a leitura dos
mapas não é difícil, mas não se compreende a importância dela. A cartografia é um ins-
trumento de poder e, portanto, deve ser disputada, alertava o geógrafo que fazia criticas a
ciência geográfica como uma arma de fazer guerra.
A partir dos anos 90 do século XX, foi designado um processo de “virada territorial”,
que gerou na América Latina, um processo renovado de demarcação e titulação de terras
de povos indígenas e de comunidades negras, decorrentes de mapeamento participativo.
(Acserald, p.13, Hoffman, p.47). A disputa pelo território torna-se também uma disputa
pela sua representação nos mapas.
Os mapeamentos participativos promoveram a mobilização dos grupos sociais e a represen-
tação cartográfica baseado no conhecimento local. Assim, a cartografia social através da represen-
tação gráfica, visualizou um processo político de disputas e de formas de conceber o território.
A territorialização simbólica operada pelos mapas traz consigo reivindicações de
materialização de limites entre diferentes formas de uso da terra. À economia territorial
de signos – pela qual os mapas são produzidos – associa-se a uma política territorial de
reconhecimento e de pertencimento que pressupõe demandas por atribuição do acesso a
recursos materiais: descontinuidades e limites são, assim, reivindicados com vistas à de-
marcação do espaço, dada a vigência de culturas materiais distintas. mais especificamen-
te, configura-se uma fronteira/limite à expansão de usos, práticas e logicas que se supõe
ameaçar a continuidade de usos, práticas e logicas “tradicionais (Acserald,2010, P.18-19).

Os dispositivos jurídicos da Constituição Federal, do decreto 6040(2007) e a ratificação


brasileira a Convenção 169, fazem com que ganhem força e visibilidade, as lutas reivindica-
tórias pelos territórios e os conflitos entre os povos tradicionais e seus antagonistas. A carto-
grafia social, a nova cartografia social se tornam instrumentos de viabilização das experiências
locais e da representação cartográfica dos povos e comunidades tradicionais.
Como estratégia de mapeamento participativo, a cartografia social, segundo Acserald
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

(2010, p.09-10) tem uma marca de ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que foi cons-
truída para dialogar com grupos e comunidades desfavorecidas, para sua realização depen-
de da estrutura na qual se insere. O autor apresenta uma questão central: quem mapeia
quem? (2013 p.5). E questiona as tramas territoriais provenientes das disputas cartográ-
ficas e das disputas territoriais. Ao indagar sobre quem está mapeando quem, explicita a
necessidade que os comunitários, os povos tradicionais compreendam as suas representa-
ções no espaço cartográfico e possam assim possam assim munir de informações sobre o
território, nessa luta desigual e conflituosa das forças do aparato do Estado e dos povos.
Na perspectiva da cartografia social temos a modalidade da nova cartografia social. O
Projeto da Nova Cartografia Social da Amazônia ( PNCSA) começou em 2004, coordenado
254 //
pelo Professor Alfredo Wagner Berno de Almeida. Com o objetivo de auto cartografar os
povos e comunidades tradicionais da Amazônia.5 Em 2005, com o lançamento da obra
“Guerra ecológica nos babaçuais”6, o trabalho do PNCSA passou a ser conhecido e tor-
nou-se referência na discussão sobre povos e comunidades tradicionais no Brasil.
De acordo com apresentação do site do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia,
até o ano de 2017, já foram publicados 163 fascículos, 28 Boletins, 10 cadernos informa-
tivos, 07 publicações no Quênia e mais de 60 livros. Vários trabalhos foram desenvolvidos
em países da América Latina e também do continente africano. Novos projetos foram
executados, ampliando área de abrangência para os Estados do Nordeste, norte de Minas
Gerais e Espírito Santo, compondo uma rede de pesquisadores da nova cartografia Social7,
envolvidos em projetos capitaneados pelo PNCSA.
A utilização dos mapas situacionais para a representação da realidade de um grupo em
um determinado contexto é uma das proposições das equipes, que estudam as realidades lo-
calizadas, construídas em conjunto com os interlocutores. Nas comunidades, são os agentes
sociais que discutem, argumentam e deliberam sobre seu território, seus lugares de memória,
de plantação, de festejos, de vida e trabalho e os demarcam e os representam nos mapas.
Através dos mapas, o que o projeto permite é que as comunidades locais construam
suas memórias e estabeleçam suas identidades. São as discussões livres dentro das comu-
nidades – e não o inquérito conduzido por funcionários governamentais apoiados em
classificações arbitrárias e exteriores – que levam ao delineamento de estratégias políti-
cas e identitárias bem como a definição de políticas de memória. E a própria comuni-
dade local que se constitui como sujeito de conhecimento e ação política, funcionando
também como comunidade argumentativa. (PACHECO, 2013, p.13)

A construção dos mapas é proporcionada através de oficinas nas comunidades, consi-


derando à diversidade e inserção de saberes locais, que através da memória se autoafirmam
nas suas territorialidades específicas e com autonomia representam seus territórios, atuan-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
do como coautores da construção do conhecimento. Cada um e cada uma que auxilia na
construção da cartografia é identificado e assim não há uma homogeneização das realida-
des, que são sempre singulares. Entre resultados da nova cartografia são produzidos fascí-
culos, boletins, livros que descrevem os territórios, os modos de vida e os conflitos sociais,
ambientais, territoriais que vivenciam os grupos, naquele momento histórico.

5
Conferir em: http://novacartografiasocial.com.br/apresentacao/. Acesso em 20/09/2023.
6
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; CARVALHO, Cynthia Carvalho; SHIRAISHI NETO, Joaquim.
Guerra Ecológica nos babaçuais: São Luiz: Lithograf, 2005.
7
Referência citada no site e relação aos dados: Lima, Rosiane Pereira. Preservação digital e “divulgação” científica na
Amazônia. Manaus: UFAM /Dissertação, 2017. http://tede.ufam.edu.br/handle/tede/6049. Acesso em: 07 mar. 2018.
255 //
Os mapas situacionais são dinâmicos e passiveis de modificações, retratando a reali-
dade no momento que ela se apresenta. Compreendemos que a realidade é feita e refeita
entre os tempos passados, presentes e no porvir. “... tais mapas não devem possuir um
compromisso com um tempo linear, de maneira que no processo de produção possa ser
incluído o que assim desejar a comunidade, e que pode estar relacionado a algo que não
se encontra disponível no presente ou mesmo àquilo que essas comunidades perderam
efetivamente.” (Ascerald, Viegas, 2013, p.25)
Podemos definir a nova cartografia social, de acordo com Almeida (2013), como uma
nova descrição, uma descrição aberta, produzida pelos agentes sociais, na busca pela eman-
cipação do colonialismo. Ao mesmo tempo em que a nova cartografia trabalha com o rigor
científico e cartográfico, propõe que o agente social represente seu território e os pontos
importantes para o grupo, e assim, que ele seja o sujeito político de sua ação e não seja re-
presentado pelos outros, muitas vezes antagonistas. Ou seja, não perder o rigor acadêmico,
mas inserir o conhecimento tradicional, realizado por aqueles que vivenciam o território.
... cada uma destas produções incorpora o que os agentes sociais pensam, dizem,
fazem, reivindicam; nele apontam-se, em contexto de situacionalidade, as lógicas
temporalizadas da organização social, os princípios classificatórios, os interesses do
grupo, a sua posição no mundo que os rodeia; – Se, enquanto prática de etnografia
procede a estenografia do mundo social. (Marin, 2013, p.103)

As oficinas realizadas nas comunidades, com jovens, crianças, velhos, permitem o aces-
so à memória coletiva do grupo. Ao relatarem as histórias do grupo, das famílias e da
constituição do território, reforçam a identidade coletiva e explicitam as territorialidades
específicas que compõem o lugar de pertencimento e seus limites, implicando em con-
fronto direto com mapas ditos oficiais, que foram produzidos sem a participação deles.
“O mapa com (ou no) fascículo conta com autores, os membros da comunidade que par-
ticiparam da sua elaboração e a equipe de pesquisa, que em todos os fascículos/mapas do
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

PNCSA são identificados e explicitamente nomeados.” (Viana, 2013: p.95).


Nesse sentido, apresentamos uma das experiências das equipes da nova cartografia
social, equipe do núcleo de Minas Gerais, que é composta por pesquisadores lotados na
Universidade Estadual de Montes Claros, que fazem parte da rede de pesquisadores da
nova cartografia social, desde ano de 2016.8

8
Universidade Estadual de Montes Claros, através do Núcleo Interdisciplinar de Investigação
Socioambiental – NIISA, reconhecido no CNPq e na UNIMONTES.
256 //
Núcleo Minas Gerais da nova cartografia social

Compreendemos que dentro do campo cientifico, precisamos apresentar uma contra


narrativa ao cientificismo colonial acadêmico e a nova descrição etnográfica proposta pela
nova cartografia social de forma localizada, situacional, pode auxiliar nas lutas dos agentes
sociais, que estão à margem das decisões políticas. Nossa inserção da rede de pesquisado-
res tem sido importante para nossa reflexão sobre a ciência, a etnografia e as situações de
pesquisas vivenciadas.
As comunidades que realizamos a nova cartografia social em Minas Gerais, são comu-
nidades onde já desenvolvemos trabalhos etnográficos de longa duração e que se autorreco-
nhecem como: Vazanteiras, Pesqueiras, Quilombolas, apanhadoras de Flores, Geraizeiros.
Até o ano de 2022, o núcleo realizou a entrega para as comunidades de 04 fascícu-
los: Fascículo da Comunidade Quilombola e Vazanteira de Pau de Légua, Fascículo da
Comunidade Quilombola de Buriti do Meio, Fascículo da Comunidade Quilombola e
Apanhadores de Flores de Raiz, Fascículo da Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira
de Canabrava e 02 Boletins informativos: O Boletim Informativo da Comunidade Geraizeira
de Pindaíba e o Boletim Informativo da Articulação dos Vazanteiros em Movimento.
As comunidades estão localizadas nas regiões norte de Minas Gerais e Vale do
Jequitinhonha, conhecidas como as porções mais pobres do Estado. Tal designação pro-
vocou a intervenção estatal, através de projetos desenvolvimentista, baseados nos gran-
des projetos agropecuários, na industrialização, no reflorestamento e na irrigação. Houve
também estratégias governamentais de combate a longos períodos de estiagens. As políti-
cas públicas estabeleceram a “indústria da seca”, um processo de apropriação de recursos
financeiros públicos destinados às populações vítimas da seca. Foi e é uma estratégia de
grupos de políticos e de lideranças locais e regionais, dos coronéis detentores de grandes
extensões de terra, que formam a elite do sertão.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Nossa compreensão das regiões do norte e do Vale enquanto uma “região” pressupõe as
mesmas como um produto de atos de classificações, (Bourdieu: 2007). Portanto objeto de
lutas simbólicas entre atores que disputam a definição legítima sobre as mesmas. Nesse senti-
do, a região como produto de uma divisão seja, política, geográfica, antropológica, econômica
ou social, é delimitada em função de diferentes critérios que nunca coincidem perfeitamente.
Pois, a ciência ao propor critérios para representar uma realidade se limita a regis-
trar um estado de luta de classificações, ou seja,“um estado da relação de forças materiais
ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de classificação e que,
como ela, invocam frequentemente a autoridade científica para fundamentarem na rea-
lidade e na razão a divisão arbitrária que querem impor” (Bourdieu, 2007, p.115).
257 //
Os povos tradicionais que habitavam a região muito antes da colonização, são invisi-
bilizados, através dessa visão do mundo social que nas regiões existe um vazio demográfico
e que assim, os territórios são livres para serem explorados por mineradoras, fazendas de
gado e demais empreendimentos do capital em larga escala. Os povos do lugar são cerca-
dos, encurralados pelos grandes empreendimentos, pela pecuária e vivem o drama entre
permanecer “imprensados”, como relatam, ou saírem para as periferias das médias e gran-
des cidades. Ribeiro (2005) revela uma interpretação histórica da região norte de Minas,
como à periferia de Minas Gerais: “forma de descaracterizar toda uma ocupação anterior
daquele espaço geográfico por outras sociedades e justificar a penetração civilizada sobre
esse ‘vazio’ humano”, (p. 55). Nessa divisão os povos tradicionais expressam outras di-vi-
sões que fundamentam a disputa de significados. (Anaya, Paula, 2016)
Nessa disputa de significados, a nova cartografia social é um instrumento que auxilia na
compreensão dos territórios e na possibilidade da mobilização. As comunidades enfrentam
lutas comuns, a expropriação territorial, a luta pelo reconhecimento como comunidades
tradicionais e a regularização fundiária de seus territórios. As oficinas, a interpretação da lin-
guagem cartográfica, a discussão entre os comunitários sobre seu modo de viver, suas histó-
rias, conflitos e desafios nas etapas da realização da nova cartografia social, são possibilidades
da constituição de unidades de mobilização para a manutenção dos territórios tradicionais.
Descreveremos a seguir, algumas etapas da realização dos fascículos e boletins, ressal-
tando que as realidades são localizadas e singulares, portanto, exigem formas diferenciadas
de constituição do trabalho de campo, bem como, do estar lá. (Geertz, 2002).
As oficinas realizadas junto às comunidades foram: oficinas de cultura e memória,
redes sociais, comunicação/imagens, GPS, mapeamento social, georreferenciamento,
construção do croqui, entrevistas. E após a realização das mesmas, seguimos para a confec-
ção, a validação do mapa e a entrega do fascículo ou boletim.
Trabalhamos nas oficinas, as noções de cartografia, mapas, o globo e a bussola, no-
ções sobre composições de um mapa, coordenadas geográficas, legendas, símbolos, escalas,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

titulo do mapa, conceitos de escala, dimensões e legendas. Foram apresentados diversos


mapas da região, das comunidades para a compreensão da leitura cartográfica. Durante as
oficinas, realizamos atividades empíricas para a construção do Croqui e do mapa. O croqui
é construído pelos jovens, pelas crianças, adultos e velhos. Um momento de interação e de
compartilhamento das histórias para desenhar o território, fazer as legendas do mapa da
forma mais significativa para a comunidade.
A marcação de pontos de GPS para georreferenciamento do território é realizada pelos
comunitários, percorrendo todo o território. São realizadas entrevistas em profundida-
de para entender, o território e as lutas das comunidades. Nas oficinas de validação dos
fascículos e dos boletins é o momento para a comunidade refletir sobre o mapa, por eles
258 //
construído. Assim como, os relatos dos moradores que vão compor os fascículos e boletins.
Esse é um momento importante, pois pode haver divergências internas sobre o mapa, os li-
mites e a história. É o momento do dialogo, das tensões e das definições sobre o território,
que é realizada por eles. Lideranças, os mais velhos, demais habitantes do lugar precisam
chegar a uma decisão sobre o território. São momentos tensos e difíceis, mas que são im-
portantes para a autonomia e para a construção coletiva dos povos.
As várias idas a campo, possibilitam as trocas de informações, as realizações de entre-
vistas em profundidade e a escuta das narrativas sobre os conflitos e resistências enfren-
tadas. A história do território, da expropriação e da luta pela retomada são singulares em
cada comunidade, mas são comuns nas violências sofridas.
Apresentamos algumas narrativas dos agentes sociais, que participaram das produ-
ções dos fascículos e boletins nas comunidades. Em todas as falas, o modo de vida de ser
pescador, ser quilombola, geraizeiro, vazanteiro, apanhadora de flor são atribuídas em
consonância com natureza, o ambiente onde vivem. Ressaltamos que todos os relatos
apresentados aqui, constam nos fascículos e boletins produzidos.
As delimitações do território são implicadas, no modo de ser, viver e existir. As proi-
bições de acesso às terras de plantio, aos trechos de pesca nos rios, as áreas de extrativismo
que antes faziam parte dos territórios tradicionais, são impostas por grandes proprietários
de terra (muitos deles em terras da União, terras do Estado brasileiro). Ou por funcioná-
rios públicos de parques (política compensatória do Estado de Minas Gerais em função
de um grande empreendimento de agroindústria – Projeto Jaíba9), ou pelos empresários
dos empreendimentos minerários10 e tantos outros megaempreendimentos que provocam
a desarticulação dos modos de vida dos povos tradicionais.

Boletim – Articulação Vazanteiros em Movimento – norte de MG

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


O território a gente pensa o coletivo. O coletivo é a área para você morar, criar e viver!
Antes a gente pescava no São Francisco, mais hoje em dia os fazendeiros tomaram conta do
9
Nos anos 2000, as disputas territoriais na região passaram a ser também com as Unidades de Conservação (UCs),
implementadas como medida compensatória à expansão do agronegócio, servindo funcionalmente para a expan-
são da etapa 2 do maior projeto de fruticultura irrigada em extensão da América Latina, o projeto “Jaíba”.
10
O projeto de extração de minério de ferro no vale do Rio Pardo, atualmente nominado Projeto Bloco 8,
pertence a Sul Americana de Metais S/A (SAM) que é controlada pela chinesa Honbridge Holdings Ltd. No
referido projeto estão previstos: mina a céu aberto, usina de concentração do minério, barragem de rejeitos,
barragem de água no Rio Vacaria e mineroduto de 482 km de extensão até o Porto de Ilhéus-BA. O em-
preendimento foi classificado como Classe 6 (grande porte e grande potencial poluidor). A meganineração
da SAM/Honbridge Holdings Ltd prevê a extração e processamento de 30 milhões de toneladas de minério
de ferro concentrado por ano. A barragem de rejeitos terá a capacidade de estocar cerca de 850 milhões de
metros cúbicos. Conferir no Boletim Informativo da Comunidade Geraizeira Pindaíba – MG
259 //
rio, temos só a frente, nós não conseguimos chegar ao rio, a demarcação está abrangendo,
mas a gente não tem o acesso, porque a beira é dos fazendeiros(...) Hoje nós estamos lá no
meio encurralados nessas fazendas. Encurralados quer dizer imprensados, não tem espaço
nenhum, se nós vamos para a direita é fazendeiro, se nós vamos para a esquerda é fazendei-
ro, então você vive só naquele circulo ali (...)se pula pra lá é outra fazenda, se pula para o
fundo é outra fazenda, tudo lá é assim. Então nós não temos acesso ao rio São Francisco.”.
(João Batista / Pescador, quilombola da Comunidade da Ilha da Malhadinha.

Comunidade Quilombola Buriti do Meio – norte de MG

Era muito maior! (o território) então essas beiras aqui, tanto todo lado, norte, sul,
leste e oeste o menino falou lá... Tudo foi chegando nós pra dentro... Um círculo é, foi nos
circulando. Foi diminuindo... Aqui encostadinho aqui tem um mato aqui no fundo dessa
casa rosa, aí uns trezentos metros tem até uma cerca que é de uma fazenda que chegou pra
cá e não era isso tudo. (Rodrigo Neves, quilombola).

Comunidade tradicional vazanteira da Ilha de Pau de Légua – norte de MG

O Estado está nos encurralando, nós que tínhamos que retirar o Estado dali, e é o
Estado que está nos tirando, forçando a gente a ir para a cidade de Matias Cardoso. Então
se você atravessa lá (o parque), para escoar alguma mercadoria que você produz, se tem
que sair de barco pra cá se o barco afundar ou alguma coisa, eles não estão nem aí, quer
dizer a gente pode morrer... Como nós estamos simplesmente numa área do Estado, nós
não podemos plantar, não podemos usufruir de nada. (...)Não temos mais o direito e
pescar, porque a gente pescava as margens da lagoa, era lugar de plantio de hortas é e a
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

roça também a beira das lagoas, depois que ocupou com o parque ninguém pode mais ir à
lagoa pescar, nem plantar e nem fazer mais nada. (Natalino da Silva, pescador vazanteiro).

Comunidade geraizeira Pindaíba – norte de MG

O eucalipto, a gente não tinha conhecimento do estrago que ele trazia. Não tinha
conhecimento nenhum. Se ele ia fazer o que ele fez na nossa terra, no nosso solo. Agora,
da mineração, a gente sabe, que a gente já conhece tudo. Nós vamos ficar mobilizados e se
a gente existir, a gente vai lutar pra que não aconteça. A exploração da pesquisa foi feita.
260 //
Inclusive, eles (a mineradora) tiraram a amostra, de solo, e levou pra saber... Então, com
certeza eles sabem tudo o que tem na região... Nós barramos também na cabeceira da água,
nós barramos a sonda. Mandou mudar de lugar, porque eles ia já atingir a nossa mina de
água. Se não tiver água, nós não sobrevivemos... Tem que lutar pra que a Comunidade
continue vivendo do modo em que vive... (José Ferreira, geraizeiro.)

Comunidade pesqueira e vazanteira de Canabrava – norte de MG

Tivemos que nos refugiar na ilha da Esperança, uma ilha recém-formada. Criada pelo
rio São Francisco justamente para nos acolher e hoje é a ilha que está nos dando o suporte
de manter a nossa tradição, o cultivo das terras das vazantes, ali nós plantamos, abobora,
melancia, quiabo, tomate, pimentão. De tudo que a gente leva para lá, essa ilha dá para a
gente. E continuamos ai, na luta pela regularização do nosso território, continuamos na re-
sistência junto ao rio São Francisco, junto a Ilha da Esperança e as famílias da comunidade
tem esperança de retornar para o nosso território, porque nós precisamos de um território
mais alto, porque vivemos no caminho do rio, ele tem um período que precisa desse cami-
nho. Então nós temos que refugiar em um território mais alto, que é esse território onde,
nós reivindicamos hoje que foi tirado com muita crueldade da comunidade. (Clarindo
Pereira dos Santos, pescador e vazanteiro).

Comunidade quilombola e apanhadora de flores de raiz – Vale do


Jequitinhonha-MG

A gente é quilombola porque a gente é descendente de escravos, mas a gente é apa-


nhadora de flor, porque essa é a nossa tradição, desde nossos antepassados. “A gente é
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quilombola e apanhadora de flor” (Dona Preta, apanhadora de flor, quilombola71 anos).
O eucalipto tomou conta do lugar que nós coletávamos flor, acabou tudo, lá tinha um
lugar, um lugar fresco, lá no alto... Nós apanhávamos todo dia nós estávamos lá apanhando, lá
nem parece que já deu flor, lá, só está a areia seca, lá no campo, lá, não tem nada, não tem água,
não tem nada, acabou lá, nem parece que teve flor nesses quebrados aí. A gente sente tristeza,
né? Por que o eucalipto, ele parece que não é abençoado, você pode andar nos eucaliptos o dia
inteiro, que não vê uma cobra, você não vê um passarinho voando no meio do eucalipto, não
tem nada, não fica bicho nenhum ali nele, não. Os matos que tinham ali acabaram todos, tem
só as folhas secas do eucalipto. Da tristeza, eu saia e pegava, achava tudo, nossas lenhas, hoje só
uns galhinhos de eucalipto. (Dona Efigênia, apanhadora de flor, quilombola).
261 //
Observamos nas narrativas, nas situações de pesquisas no processo da construção dos
fascículos e boletins realizados nas comunidades, que ao descreverem e delimitarem seus terri-
tórios, a expropriação é relatada com detalhes, o território é delimitado com segurança através
dos marcos históricos. Os mais velhos lembram as muitas ameaças e violências sofridas por
eles ou por aqueles que os antecederam. Temem a repetição das histórias, das perdas de paren-
tes nos enfrentamentos provocados pelos conflitos. Aqueles e aquelas que hoje estão na frente
das lutas, muitos estão sendo ameaçados, alguns estão sobre proteção policial e/ou proteção da
Comissão de direitos humanos do estado de Minas Gerais ou do Governo Federal do Brasil.
E no cotidiano das resistências, pedem proteção aos encantados e a ancestralidade. A luta pela
terra-território é reforçada pela ancestralidade, tão importante para os povos tradicionais.

Considerações finais

Como pesquisadores da nova cartografia social, procuramos construir relações de pes-


quisa baseadas em conhecimentos dialógicos entre os saberes tradicionais e o acadêmico. Os
agentes sociais que convivemos, através das relações sociais estabelecidas no saber-fazer, são
quem nos apresentaram as territorialidades específicas, visibilizadas em uma nova descrição,
através dos mapas situacionais, realizados na lógica dos povos e comunidades tradicionais.
A pesquisa tem demonstrado que os conflitos socioambientais na região norte de Minas
Gerais e Vale do Jequitinhonha estão vinculados à apropriação privada e ilegal de terras
públicas, devolutas e da União, que conformam terras tradicionalmente ocupadas por distin-
tos grupos étnicos. Processo que envolve o interesse de grandes empreendimentos de base de-
senvolvimentista e que muitas vezes conta com a anuência e participação do próprio Estado.
Sabemos que as relações entre quem pesquisa e os pesquisados são assimétricas, a pes-
quisa é uma atividade que envolve interesses contraditórios. Ao classificarmos, coletarmos
conhecimentos, estamos reproduzindo a sociedade colonial. Provocando silêncios e ruídos
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

entre aqueles que pesquisamos.


Mas ao nos posicionarmos fazendo uso social da ciência, compreendendo o campo
cientifico como objeto de luta e disputa de visões de mundo, pode nos deslocar para a
apreensão da emergência dos sujeitos coletivos. Para a constituição das identidades cole-
tivas, construídas nos processos de autoidentificação e das territorialidades específicas que
auxiliam na reivindicação dos territórios tradicionais.
As atividades realizadas junto à rede da nova cartografia social tiveram a finalidade de
apoiar os povos e comunidades tradicionais na garantia de acesso aos territórios tradicio-
nalmente ocupados e reivindicados nos processos de afirmação, reconhecimento e defesa
dos lugares, frente a processos de expropriação territorial.
262 //
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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

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264 //
Imagens do trabalho de campo:Fazeres da Nova Cartografia Social - Núcleo Minas Gerais

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fotos da Comunidade quilombola de Buriti do Meio - Município de São Francisco - Norte de Minas Gerais.
Fonte: Acervo Nova Cartografia Social/Núcleo Minas Gerais.( 2019-2022)
265 //
266 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
A cartografia participativa no Plano Diretor
Municipal (PDM): uma nova abordagem
para compreender e transformar territórios

Elaine Santos1 Rogério Coelho2


Maria da Penha Vasconcellos3

Introdução

O mapeamento adquire uma dimensão mais ampla na geografia quando se introdu-


zem os debates relacionados à cartografia, utilizando recursos tecnológicos. A informática,
como ferramenta de apoio no processo de ensino-aprendizagem, já é amplamente utilizada
nesse contexto. De acordo com Machado e Sausen (2005), os Sistemas de Informação
Geográfica (SIG) desempenham um papel fundamental em sala de aula, ajudando a so-
lucionar problemas e capacitando os alunos a se tornarem participantes ativos e críticos.
Uma vez que a partir do conhecimento de cartografia, eles podem criar mapas temáticos
que facilitam a identificação e resolução de questões relacionadas ao território, ao uso e
cobertura do solo, e ao planejamento. E, desta forma, podemos ter uma análise da cidade
como prática social especializada, que, como afirma Carlos (2004), não diz respeito so-
mente à cidade, mas nos coloca como desafio pensar o urbano, o rural e suas transições
dentro do mesmo espaço.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Além disso, é importante notar que tecnologias da informação e comunicação (TIC),
como celulares, computadores e a utilização de GPS para localização, bem como o acesso
à internet, estão profundamente integradas à rotina da maioria das pessoas. Essa realidade
por si só justifica a adoção mais sistemática da cartografia digital como uma ferramenta
essencial para a compreensão e análise do espaço geográfico. Nesse contexto, a integração
de diversos elementos presentes no espaço, como paisagens, hábitos, costumes e vivências
do cotidiano no mapeamento, torna-se fundamental.

1
Pós Doutoranda no Instituto de Estudos Avançados – USP. – elainesantosabc@gmail.com
2
Geógrafo pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC). – rogerrtm@gmail.com
3
Docente da Universidade de São Paulo – FSP/IEA-USP. – mpvascon@usp.br
267 //
Com base nessa premissa, e atuando principalmente em pequenas e médias cidades, per-
cebeu-se a necessidade de expandir essa perspectiva para além do uso em sala de aula, que é
abordagem comumente utilizada, atuando com um mapeamento participativo, que pudesse
auxiliar as pessoas a mapear seus territórios a partir das suas dinâmicas (Silva & Verbicaro,
2016). Um outro dado importante que impulsionou a realização deste primeiro passo do pro-
jeto foi a compreensão que os pequenos e médios municípios, muitas vezes possuem escassos
recursos financeiros e de recursos humanos para realizar a produção, disponibilização e manu-
tenção das informações geográficas locais (Silva et al. 2018). Assim, é preciso encontrar pos-
síveis soluções para uma melhor produção e gestão dos dados geográficos nestes municípios.
Como pesquisadores atuando na revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) da ci-
dade de Capivari, a qual possui uma população de 50.068 habitantes, conforme dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, identificamos uma escassa
produção de dados geográficos locais, uma situação comum em municípios de pequeno e
médio porte, conforme apontado no artigo desenvolvido por Silva et al. (2018) e também
no trabalho de Gonçalves (2008), que criou um modelo conceitual para a modelagem de
Banco de Dados Geográficos (BDG) devido à verificação de que muitas prefeituras brasi-
leiras apresentavam problemas em seus sistemas cadastrais municipais.
Reconhecendo a importância da informação geográfica nas decisões urbanísticas, con-
forme proposto por Silva et al (2018) e considerando a existência de diversas plataformas
colaborativas e metodologias que podem aprimorar a coleta de dados locais de forma vo-
luntária e a participação da comunidade no processo de mapeamento, o grupo de pesquisa
envolvido na revisão do Plano Diretor de Capivari propôs a elaboração de um guia de ma-
peamento participativo. O objetivo do guia é transformar as comunidades educativas em
agentes multiplicadores para que possam promover, produzir e atualizar as informações
geográficas sobre os seus municípios, permitindo assim a valorização do conhecimento
local e a participação da sociedade, considerando a diversidade do perfil demográfico e so-
ciocultural e econômico, na formulação de políticas e decisões. Esse guia teria a finalidade
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

de ser aplicado não apenas pela população de Capivari, mas também por habitantes de
outras cidades que enfrentam desafios similares.
Com base nisto, e considerando que o processo de revisão do PDM precisa ser concre-
tamente participativo e territorializado, dentre as oficinas temáticas realizadas pela equipe
técnica, foi realizada uma oficina participativa on-line. Esta foi uma proposta inovadora,
visto que a oficina participativa on-line poderia ampliar a participação do público nas
oficinas da revisão do Plano Diretor Municipal, além de nos permitir ter uma percepção
das dificuldades da população na compreensão dos mapas técnicos. A oficina foi realizada
na fase de diagnóstico da revisão do PDM, o que permitiu ampliar a percepção sobre
como os moradores das cidades pensam e vivem neste território. Esta percepção também
268 //
aprofundou a compreensão sobre a forma como a população trabalha com a leitura de
mapas técnicos, fornecendo ideias para a preparação do guia. Ou seja, a oficina temática
nos permitiu tanto entender as dificuldades da população na compreensão dos mapas téc-
nicos, como também ser um momento de escuta e de construção na elaboração de mapas
que pudessem representar os problemas por eles enfrentados.
A concepção da oficina virtual também se baseou no fato de que a primeira oficina
temática presencial realizada pela equipe de pesquisadores na cidade foi transmitida atra-
vés da página do Facebook da prefeitura local. A partir disso, observou-se que um grande
número de pessoas assistiu à transmissão e fez comentários (aproximadamente 800 visua-
lizações), o que nos destacou a importância de criar uma versão virtual da oficina. Isso foi
planejado de forma a não prejudicar o formato presencial, mas com o propósito de atingir
um público mais amplo e que, normalmente, é engajado nas redes sociais.
Assim, este artigo se enquadra no primeiro passo deste desafio de produção de um guia
sobre o mapeamento participativo e relata a experiência da oficina participativa on-line
neste processo. Portanto, o artigo está estruturado da seguinte forma: na primeira parte,
descreve-se como a metodologia foi pensada e realizada na prática; num segundo momen-
to, discutimos os resultados deste processo.

Metodologia e prática

Conforme enfatizado por Chambers (citado por Silva & Verbicaro, 2016:2), entre
os vários métodos de desenvolvimento participativo previamente adotados, a cartografia
participativa destaca-se por seu principal contributo, que é capacitar e dotar os membros
das comunidades com habilidades e competências necessárias para a elaboração de seus
próprios mapas. Nesse contexto, nossa oficina virtual foi concebida não apenas como parte
das iniciativas relacionadas ao Plano Diretor Municipal, mas também com o objetivo de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
ampliar a participação de um público ativo nas redes sociais, como Facebook, Instagram e
YouTube, ao mesmo tempo em que buscava obter ideias sobre como a população partici-
pante da oficina virtual percebe os mapas técnicos e seu território.
No debate teórico, identificou-se a necessidade de adotar diversas abordagens sobre a
temática das metodologias participativas e dos recursos virtuais interativos para pensar o
geoprocessamento de forma descomplicada, conforme discutido por Fitz (2008), partindo
da ideia de como o espaço geográfico é construído, organizado, se estrutura e se traduz na
elaboração dos mapas por parte dos pesquisadores. Desta forma, a abordagem proposta
por Moran (2000) aliando as novas tecnologias ao ensino da geografia, também foi bas-
tante útil para pensarmos a oficina virtual e, consequentemente, a produção do nosso guia.
269 //
Moran (2000) nos inícios dos anos 2000, quando as ferramentas virtuais se tornaram mais
massivas, já indicava que no ensino o ideal era utilizar um mix de métodos entre o presencial
e o virtual e que a partir disso, deveriam ser consideradas as desigualdades de acesso, de ma-
turidade e até mesmo de motivação. Silva et al. (2018) demonstram um caso prático em um
projeto que utiliza a Informação Geográfica Voluntária (IGV) que são as principais fontes
de dados em plataformas como a Wikimapia e OpenStreetMap (OSM), que são plataformas
onde qualquer usuário pode acrescentar dados da sua região de forma simples. Por exemplo,
a localização de um posto de gasolina ou mesmo de um hospital, no caso brasileiro a IGV é
bastante utilizada para a gestão de riscos hidrológicos (Silva et al., 2018). Apesar deste artigo
descrever a forma como foi pensada a oficina virtual no contexto da revisão do PDM, a pes-
quisa de Silva et al. (2018) foi bastante útil nesta trajetória porque os autores demonstraram
de forma descritiva como o trabalho de mapeamento colaborativo, através de um software
livre como é o OSM, pode possibilitar uma melhor tomada decisão por parte dos gestores
públicos. Neste sentido, o artigo de Silva et al. (2018) foi um complemento à nossa oficina
e criação de guia porque partimos desta base comum, que é a de permitir que municípios
de pequeno porte possam se organizar conjuntamente com sua população em relação ao
mapeamento, produção e gestão dos dados de forma participativa.
A partir desta base teórica e em termos práticos, é importante ressaltar que a oficina
virtual foi conduzida no mesmo dia da realização da oficina presencial, optou-se pela não
divulgação da oficina virtual com antecedência, isto porque a nossa premissa foi a de prio-
rizar o formato presencial. Ou seja, houve ampla divulgação da oficina em seu formato
presencial, estimulando o comparecimento das pessoas. Isso se justifica pelo fato de que
as oficinas relacionadas ao Plano Diretor Municipal não são apenas legalmente obrigató-
rias, mas também englobam discussões e contribuições significativas para os territórios e
a população. Portanto, a nossa oficina virtual foi concebida como um complemento às
atividades realizadas no formato presencial. Logo, foi anunciada nas redes sociais algum
tempo depois do início da oficina presencial.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A nossa abordagem organizacional para a oficina virtual consistiu em realizar uma


triagem dos mapas que pretendíamos discutir, bem como a sua ordem de apresentação e
discussão. Como a oficina tinha como foco o ordenamento territorial, os mapas seleciona-
dos possuíam esta temática.
Dado o limite de tempo de duas horas destinado à oficina participativa, optamos por
iniciar com uma breve exposição esclarecendo os objetivos da oficina, a relevância do engaja-
mento e da participação no debate sobre o Plano Diretor Municipal (PDM) e a importância
do entendimento territorial. A oficina foi realizada recorrendo ao serviço de comunicação por
vídeo Google Meet, e o link de acesso foi divulgado por meio do perfil oficial do Município de
Capivari hospedado no Instagram e voltado para a Revisão do Plano Diretor.
270 //
Sequencialmente, realizamos uma breve explicação dos mapas, solicitando aos parti-
cipantes que contribuíssem abrindo seus microfones ou enviando mensagens no chat do
Google Meet. Essa interação permitiu um diálogo colaborativo, enriquecendo o entendi-
mento coletivo sobre os territórios e fomentando o engajamento dos participantes. Dessa
forma, a oficina participativa virtual seguiu a estrutura delineada a seguir, composta por
ferramentas de divulgação, ferramentas de transmissão e ferramentas de interação. A inter-
net e as redes sociais foram amplamente utilizadas nesta abordagem, permitindo o debate
focado no território e nós, os técnicos, participamos como motivadores (Moran, 2000).

Fig. 1: Ferramentas utilizadas na oficina virtual. Fonte: Elaboração dos autores

Na segunda imagem apresentada a seguir, é possível observar um dos mapas abordados


durante a oficina participativa realizada no formato virtual. Na mesma imagem, também
é visível a maneira como a oficina foi promovida nas redes sociais, imediatamente após o
início da oficina no formato presencial.
Em relação ao público, pode-se apontar que houve um equívoco na estratégia de divul-
gação. A oficina foi promovida no perfil oficial relacionado a revisão do Plano Diretor da
cidade. No entanto, o perfil oficial da Prefeitura de Capivari conta com um número signifi-
cativamente maior de seguidores. Portanto, podemos concluir que houve uma participação
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Imagem 1: Mapa utilizado na oficina virtual e divulgação através da rede social. Fonte: Elaboração dos autores
271 //
abaixo do esperado em relação ao público, cerca de oito pessoas. Esta participação poderia
ter sido maior, caso a divulgação tivesse sido realizada no perfil oficial da Prefeitura local.

Análise dos resultados

Com relação aos nossos objetivos, que consistiam em alcançar um público mais amplo
nas oficinas relacionadas à revisão do Plano Diretor e, ao mesmo tempo, compreender as
dificuldades da população na interpretação de mapas técnicos relacionados ao território
para embasar a criação do nosso guia para cartografia participativa, constatamos que os
resultados foram satisfatórios. Isto porque oficinas virtuais em revisões de planos diretores
não são usualmente realizadas, porque, privilegia-se o formato presencial. Essa abordagem
faz sentido, uma vez que a interação, a troca de ideias, as críticas e a disseminação de infor-
mações entre os residentes tendem a ser mais dinâmicas em encontros presenciais.
Adicionalmente, nossa experiência foi conduzida em um aglomerado urbano com um
pouco mais de 50 mil habitantes. Portanto, era esperado uma alta participação da popula-
ção, o que, por outro lado, poderia dificultar um debate aberto e profícuo limitado a duas
horas de duração no formato virtual. Durante as duas horas em que mantivemos contato,
notamos que a oficina proporcionou um espaço de diálogo e troca de informações sobre a
cidade bastante interessante. Algumas pessoas disseram não saber que o processo de revisão
do PDM estava em curso e que tiveram contato com a realização da oficina a partir da
divulgação nas redes sociais. Devido ao número tímido de participantes, todos puderam
contribuir, seja abrindo seus microfones ou enviando mensagens no chat sem um limite de
tempo definido, e isto nos permitiu conversar e entender mais profundamente as críticas e
sugestões de melhorias dos participantes.
Quando falamos de uma oficina realizada no formato virtual é importante ter em
conta eventuais problemas técnicos, como ausência do sinal de internet, falha ou inter-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

mitência na transmissão. No caso da oficina realizada, a gravação que fizemos sofreu uma
falha e, das duas horas de debate realizado, só conseguimos gravar e armazenar 18 minu-
tos. No entanto, conseguimos salvar todas as mensagens no chat, que foram a maioria,
e, desta forma, não houve prejuízo na participação. É importante considerar que tanto o
ambiente virtual quanto o presencial podem apresentar problemas, e é fundamental levar
em conta essas eventualidades na preparação da oficina.
Em relação a alguns dos mapas que selecionamos para discussão, que eram os mesmos
utilizados no formato presencial como forma de manter uma correspondência com os
debates abrangidos pela revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), observou-se que os
participantes on-line enfrentaram dificuldades em identificar as áreas correspondentes às
272 //
suas sugestões e críticas. Para contornar essa questão, optamos por utilizar o Google Street
View, algo que não estava previamente planejado, mas que pode ser considerado uma van-
tagem do formato virtual. Uma vez que, no formato presencial, o acesso a essa ferramenta
poderia ser mais difícil. Por outro lado, no formato presencial, no caso da existência de di-
ficuldades na interpretação dos mapas relativos ao ordenamento territorial, também foram
realizadas dinâmicas distintas como o “mapa falado”, como proposto por Lima, Diniz e
Araújo Vieira (2018).
Em relação ao impacto na representatividade dos mapas, observou-se que, devido à
temática da oficina estar relacionada ao ordenamento territorial, alguns mapas técnicos
precisaram ser minuciosamente explicados, tanto na modalidade presencial quanto na vir-
tual. No ambiente virtual, tivemos a vantagem de acessar o Google Street View, o que fa-
cilitou o detalhamento. Na modalidade presencial, desenvolvemos dinâmicas explicativas
com o intuito de aprimorar a compreensão, como mencionado. Contudo, essa dificuldade
encontrada também fortaleceu a nossa proposta de elaborar um guia de mapeamento par-
ticipativo, com o objetivo de tornar a leitura de mapas e a produção de dados uma prática
comum no dia a dia das pequenas e médias cidades.
Ao término da oficina virtual, procedemos ao arquivamento das sugestões e críticas
apresentadas no chat. Na condição de facilitadores, reservamos um espaço para a elabora-
ção de conclusões com relação às propostas. No encerramento da oficina virtual, também
estabelecemos contato com as pessoas que estavam na oficina presencial e falamos sobre o
nosso debate e as propostas que deveriam ser integradas na revisão do PDM. Esta parti-
cipação revelou-se de grande relevância, uma vez que, sem a realização da oficina virtual,
certamente os participantes não teriam tomado parte na oficina presencial, e, desta forma,
não teriam dado suas contribuições.

Conclusão
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A realização da oficina e a aplicação da cartografia participativa se mostraram ferramen-


tas eficazes para fortalecer o entendimento espacial-territorial em um contexto de revisão do
Plano Diretor Municipal (PDM). A inclusão de uma oficina on-line durante este processo
contribuiu significativamente para ampliar a representatividade e a participação da popula-
ção local, aumentando assim a legitimidade das decisões tomadas no âmbito do PDM.
Os resultados obtidos com a oficina não apenas enriqueceram o processo de revisão do
PDM, mas também destacaram a importância da consulta pública e do envolvimento da
comunidade na definição das políticas territoriais. Desta forma, este caso prático poderá
ser utilizado como justificativa na produção de guia para o mapeamento participativo,
273 //
explicando os limites percebidos durante a oficina e destacando as experiências positivas
vivenciadas pelos participantes durante o processo.
Além disso, esta experiência bem-sucedida pode servir de inspiração para outras ini-
ciativas semelhantes em diferentes contextos geográficos e administrativos. Ou mesmo em
casos em que seja necessário ampliar o alcance de um tema, a divulgação e realização de
oficinas on-line podem ser bastante úteis.
A combinação da cartografia participativa com a inclusão de oficinas interativas on-li-
ne demonstrou ser uma abordagem promissora para promover o engajamento e fortalecer
o processo de tomada de decisões relacionadas ao planejamento territorial. Portanto, as
ideias derivadas deste caso prático têm o potencial de influenciar positivamente a forma
como as políticas de desenvolvimento urbano são formuladas e implementadas em diver-
sas comunidades, respeitando suas características.

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

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274 //
Espaços de trabalho colaborativo em zonas
rurais: moda urbana ou oportunidade de
repovoamento?

João Almeida1* Luísa Ribeiro2*


Andrea Barbosa3*

Introdução

O espaço rural tem vindo a sofrer vários desafios (sociais, económicos, ambientais,
políticos, e tecnológicos) estruturais que afectam o seu potencial de desenvolvimento e
que ameaçam a coesão social e económica nos países e regiões europeias (Almeida &
Daniel, 2022). Por outro lado, podemos estar perante uma das maiores oportunidades
para o espaço rural nas últimas décadas – as novas formas de trabalho relacionadas com o
tele-trabalho e trabalho remoto que podem ajudar a atrair e reter pessoas nestes territórios,
fazendo face ao problema do despovoamento e falta de capital humano. O espaço rural
pode, através destes novos residentes, voltar a ser um espaço de trabalho e de vida e não
apenas um espaço produzido/consumido para/por visitantes ocasionais (Almeida, 2023).
Neste sentido, várias políticas e acções têm sido desenvolvidas para agarrar esta opor-
tunidade. Têm proliferado espaços de trabalho colaborativo (coworking e coliving) em
zonas rurais, quer por iniciativa privada, mas principalmente por iniciativa pública a nível
local e nacional. Apesar do interesse e investimento, os resultados prácticos são ainda es-
cassos, existindo uma grande percentagem destes espaços que estão vazios ou com reduzida As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

utilização e muito poucos que conseguem ter uma dinâmica e um impacto positivo na
comunidade em que estão inseridos.
Estes espaços têm um potencial de não só contribuir para a atracção e retenção de talento,
como de se tornarem um espaço de encontro comunitário, onde se encontram novos residentes
com a comunidade local existente, e onde se criam dinâmicas sociais, culturais e económicas,

1
GOVCOPP, DCSPT, Universidade de Aveiro (Portugal). – joaolopesalmeida@ua.pt
2
Rural Move (Portugal). – luisaribeiro1997@gmail.com
3
FFCS, Universidade Católica, Braga (Portugal). – andrea.barbosa@ruralmove.org
* Rural Move – Associação para a Promoção do Investimento em Territórios de Baixa Densidade (Miranda
do Douro, Portugal)
275 //
como foi possível verificar em muitos dos casos analisados. Estas infraestruturas podem assim
ocupar o lugar de outros espaços comunitários que têm vindo a desaparecer nas últimas déca-
das, como os pequenos mercados, café centrais, escolas primárias, centros cívicos, entre outros.
Esta comunicação centrar-se-á numa análise empírica dos desafios e factores críticos
de sucesso dos espaços de trabalho colaborativo em zonas rurais. Através de diversas visitas
e entrevistas realizadas, bem como análise dados secundários da criação e utilização destes
espaços, percebeu-se que grande parte das vezes existe uma cópia de modelos e infraestru-
turas urbanas que raramente são bem implementadas e recebidas em territórios rurais. Por
outro lado, nos ‘casos de sucesso’ identificados, a existência de gestor(es) de comunidade,
a integração com outro actores locais, a multi-funcionalidade do espaço, e o sentido de
comunidade são factores críticos de sucesso
O trabalho encontra-se dividido em cinco partes. Primeiramente, é apresentada um
panorama geral da evolução, desafios e oportunidades dos territórios rurais. Em segun-
do lugar, abordam-se as novas formas de trabalho e a sua importância. De seguida, são
discutidos os espaços de trabalho colaborativo, nomeadamente de coworking e coliving.
Depois, são apresentados três casos em Portugal. Por fim, são discutidas as conclusões
deste trabalho e lançadas algumas implicações teóricas e práticas para continuar a discus-
são no tópico aqui apresentado.

Espaço rural: evolução, desafios e oportunidades

O mundo rural agrícola e produtor já há muito que não existe. Hoje em dia, o espaço rural
aparece como um grande mosaico de configurações sociais e económicas, com o turismo, a in-
dústria, mas principalmente os serviços a representarem a grande fatia de produção de riqueza e
de população empregada das economias rurais. Esta transformação aliada a uma crise identitária
e esquizofrenia funcional (F. Baptista, 2010) tem mergulhado estes territórios num ciclo vicioso
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

de declínio com graves consequências sociais, económicas e ambientais. Um dos principais de-
safios está relacionado com as tendências sociais e demográficas – um crescente envelhecimento
da população, migração e urbanização. Há uma tendência global de urbanização que provoca
fuga de jovens e população activa para cidades onde as oportunidades de educação, emprego
e melhores salários estão localizadas. Na Europa, a esmagadora maioria das regiões com maior
taxa de dependência de idosos, taxas de fertilidade mais baixas e com maior redução da popu-
lação nas últimas décadas, são regiões rurais. Por outro lado, estes territórios sofrem também de
diversos problemas de acessibilidade e mobilidade, especialmente no que respeita aos serviços de
interesse geral (educação, saúde, etc.), mas também no que toca às infraestruturas tecnológicas,
que limitam o acesso à informação (OECD, 2018), desafiam a qualidade de vida e potencial
276 //
de desenvolvimento (Sessa et al., 2020). A falta de investimento público e privado, que é di-
reccionado para as grandes cidades, agrava ainda mais este acesso a oportunidades de educação,
profissionais ou de melhor qualidade vida para as pessoas, mas também a oportunidades de
crescimento para os empreendedores e empresas (ESPON, 2019b).
Este ciclo estrutural de desafios afecta a capacidade destas regiões de resistir ou recuperar
dos choques de mercado, sociais e ambientais e de potenciar a sua trajectória de desenvol-
vimento (Giannakis & Bruggeman, 2020). Além disso, este ciclo acelera as disparidades
territoriais relacionadas com níveis mais baixos de rendimento, conduzindo a um maior
isolamento e exclusão social e digital, cujo agravamento nas próximas décadas é expectável
(ESPON, 2019a). Estes factos aumentam a fragmentação social, polarização política e ali-
mentando uma crescente onda populista que tem aproveitado e reforçado o discurso dos
“lugares que não importam” (Rodríguez-Pose, 2018).
No entanto, as mesmas características deste espaço rural trouxeram também várias
oportunidades de ‘diferenciação’ destes territórios (Credit et al., 2018). Os territórios rurais
podem liderar os investimentos na dupla-transição (verde e digital) e em sectores como as
energias renováveis, a economia circular ou a economia social. As tecnologias emergentes
e a crescente conectividade digital podem ajudar a resolver a falta de capital humano e a
desbloquear o empreendedorismo e a inovação nos sectores tradicionais destes territórios
(OECD, 2018). Por outro lado, potencia também algumas oportunidades de desenvolvi-
mento, nomeadamente a digitalização e adopção de tecnologia, a cooperação e inovação, as
novas percepções sobre a importância do espaço rural e as novas formas de trabalho (trabalho
remoto, teletrabalho, nomadismo digital) (Almeida & Daniel, 2022). Os autores realçam o
crescimento exponencial, durante a pandemia, de novos grupos de pessoas que procuram
novas experiências fora da cidade, que têm maiores preocupações ambientais e com o bem-
-estar, que procuram ter impacto positivo nas comunidades locais e que utilizam novas for-
mas de trabalho para aumentar a sua qualidade de vida. Assim, o espaço rural, especialmente
num contexto pós-pandemia, pode assumir a liderança destas tendências, devendo desenhar
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
estratégias inovadoras que vão de encontro a estes ‘novos’ públicos e que, ao mesmo tempo,
contribuam para o seu desenvolvimento social e económico. Através destes novos residentes,
o espaço rural pode voltar a ser um espaço de trabalho e de vida e não apenas um espaço
produzido/consumido para/por visitantes ocasionais (Almeida, 2023).

Novas formas de trabalho e as implicações para o espaço rural

As transformações no mundo do trabalho, caracterizadas pelo surgimento do trabalho


remoto, teletrabalho, trabalho híbrido e nomadismo digital, têm desencadeado mudanças
277 //
significativas nas dinâmicas laborais contemporâneas. O trabalho remoto possibilita que
os trabalhadores executem as suas tarefas maioritariamente no seu local de residência, em
espaços de coworking, ou transitando entre diferentes locais (nomadismo digital). Essas
mudanças, embora já antecipadas por Margrethe Olson em 1983, ganharam uma ampla
adopção e reconhecimento a partir de 2020, com a pandemia de COVID-19 que eviden-
ciou as vantagens intrínsecas destas novas modalidades de trabalho. Para as organizações,
estas levam a um aumento da produtividade, acesso ao mercado global de talentos e redu-
ção de custos, com imóveis por exemplo. Por sua vez, os trabalhadores desfrutam de vanta-
gens como a eliminação de deslocações, melhoria na qualidade de vida, maior flexibilidade
e redução de custos relacionados às viagens ou habitação.
Apesar destes benefícios, surgem preocupações e desafios inerentes a estas novas formas
de trabalho. Algumas profissões exigem presença física ou beneficiam dela, enquanto que pro-
blemas de comunicação e desconexão entre equipas de trabalho são obstáculos a serem ainda
superados por algumas empresas. Além disso, a falta de capacitação, tanto em competências
técnicas (plataformas de comunicação e colaboração) quanto em competências pessoais (au-
to-motivação, gestão do tempo, concentração, etc.) é também uma questão relevante.
Estando perante uma nova fase da forma como trabalhamos, é importante perceber e discu-
tir as implicações que isso terá na nossa forma de viver, principalmente onde e como viveremos.

Implicações para o espaço rural

O crescimento do trabalho remoto tem reconfigurado a relação espacial entre trabalha-


dores e empresas, desafiando os modelos económicos urbanos e as estratégias de desenvolvi-
mento local tradicionais. Durante décadas, as grandes empresas concentraram-se em pólos
urbanos. No entanto, o maior reconhecimento de que a proximidade física não é essencial
para manter altos níveis de cooperação e produtividade está a levar a uma descentralização
crescente dos escritórios para áreas suburbanas, periféricas ou à adopção de políticas de traba-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

lho totalmente remoto, onde os trabalhadores estão distribuídos por todo o país ou mundo.
Do lado dos trabalhadores, a pandemia de COVID-19 e a preocupação com estar em
locais fechados e densamente povoados, juntamente com crescentes preocupações ambien-
tais e de sustentabilidade, geraram uma procura por “ar fresco”, moradias com espaço ao
ar livre e cidades com menor poluição, menos congestionadas e com maior contato com
a natureza. Também o crescimento de um novo tipo de turismo relacionado a essas novas
formas de trabalho, conhecido como “half-tourists” (turistas a tempo parcial, que viajam
para cidades ou países diferentes para visitar e, ao mesmo tempo, trabalhar remotamente
durante a sua estadia), tem estado a atrair a atenção do sector e em particular das zonas
rurais e periféricas (Almeida & Belezas, 2022). Estas mudanças e tendências no mercado
278 //
de trabalho e na forma como as pessoas escolhem viver e trabalhar têm o potencial de
transformar estes territórios, revitalizando-os e promovendo um desenvolvimento econó-
mico e social sustentável. Consequentemente, é crucial que governos, comunidades locais e
investigadores compreendam essas dinâmicas e desenvolvam estratégias adequadas para tirar
proveito das oportunidades e fazer face aos desafios que decorrem desta nova era do trabalho.
Diversas estratégias estão a ser desenhadas para promover as oportunidades de trabalho
remoto em zonas rurais com o objectivo de revitalizar as comunidades e economias dessas
regiões. Essas estratégias incluem criação de infraestruturas, campanhas de comunicação,
incentivos financeiros e vistos. Em Portugal, por exemplo, o governo financiou a criação de
uma “Rede Nacional de Espaços de Teletrabalho” em 88 municípios de baixa densidade em
2021, contando ao todo com cerca de 730 lugares de cowork disponíveis. Um outro exemplo
notável é a Irlanda, que na sua estratégia de desenvolvimento rural 2021-2025 (‘Our Rural
Future’), colocou o trabalho remoto como um dos motores de desenvolvimento das áreas
rurais. Isso incluiu a oferta de vouchers para trabalhadores remotos usarem hubs digitais
gratuitamente, a instalação de 10.000 lugares de trabalho, um investimento de 5 milhões de
euros para melhorar 81 espaços de trabalho colaborativo em todo o país e um financiamento
de 50.000 euros para cada autoridade local promover oportunidades de trabalho remoto nas
suas regiões (Department of Rural and Community Development, 2022).

Espaços de trabalho colaborativo em zonas rurais

Os espaços de trabalho colaborativo (ETCs), tais como espaços de coworking ou es-


paços de coliving ganharam popularidade substancial desde meados da década de 2000,
oferecendo uma alternativa à configuração convencional dos escritórios, com horários e
localizações rígidas (Vogl & Akhavan, 2022).
Na sua essência, os espaços de coworking representam ambientes dinâmicos e colabora-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
tivos, proporcionando uma plataforma onde pequenas empresas, freelancers e empreende-
dores se podem reunir para interagir, partilhar ideias e colaborar nos seus projectos (Fuzi,
2015). Este conceito, embora inicialmente muito focado em grandes centros urbanos, devi-
do à sua grande concentração de serviços e profissionais qualificados (Mariotti et al., 2017), é
extremamente promissor para cidades mais pequenas e regiões menos povoadas, ainda pouco
discutidas na literatura sobre este tópico, havendo assim necessidade de mais estudos que
explorem as implicações destes espaços nas zonas rurais (Vogl & Akhavan, 2022).
Segundo diversos autores, os ETCs podem ter importantes implicações para as zonas
rurais. Por um lado, diminuido o tempo de deslocação para o trabalho, aumentando a
qualidade de vida e equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal do trabalhador. Por
279 //
outro lado, estes espaços promovem a interação entre utilizadores, estimulando colabo-
rações e criação de novos projectos, e fomentando redes que vão muito além do local de
trabalho. Por fim, estes ETCs podem ser ainda motores da revitalização de centros histó-
ricos e edifícios abandonados ou sub-aproveitados. Estes efeitos podem não só atenuar os
desafios do despovoamento, como potencialmente desencadear um influxo de indivíduos
para áreas não urbanas (Hölzel & de Vries, 2021), tendo um impacto demonstrável no
rejuvenescimento social e económico das regiões rurais (Fuzi, 2015).
No entanto, criar e desenvolver ETCs em zonas rurais não está isento de desafios. Uma
preocupação evidente identificada na literatura é a ausência de redes de colaboração pré-es-
tabelecidas. Esta escassez constitui um obstáculo considerável ao crescimento orgânico das
comunidades de coworking nestas áreas. Outro dos desafios é a potencial discrepância na
procura, particularmente em regiões onde os trabalhadores independentes são relativamente
escassos. Outros factores como a infraestrutura digital, a acessibilidade a serviços essenciais
como a educação e os cuidados de saúde, e a infraestrutura de mobilidade são também im-
portantes na atratividade de ETCs em zonas rurais (Mariotti et al., 2023). Assim, compreen-
der estas dinâmicas é fundamental para o desenvolvimento sustentável dos ETCs. Vários
estudos apontam para o papel crucial dos anfitriões, gestores de comunidade ou facilitadores
destes espaços no bom funcionamento destas estratégias (Judit & Szeréna, 2017).
À medida que o fenómeno do coworking continua a evoluir, aumenta a necessidade de
políticas adaptadas e de iniciativas de base comunitária que impulsionem, ainda mais, o seu
crescimento nas zonas periféricas e rurais, preservando ao mesmo tempo a essência colaborativa
e flexível destes espaços, mas também a adequada adaptação à realidade local (Fuzi, 2015).

Casos de espaços de trabalho colaborativo em zonas rurais de Portugal

O crescimento do interesse nas ‘novas formas de trabalho’, especialmente durante o


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período da pandemia e pós-pandemia, levou à criação e/ou impulsionamento de diversos


espaços de trabalho colaborativos (públicos e privados), como forma de atrair e fixar tra-
balhadores remotos e/ou nómadas digitais e como parte das estratégias de repovoamento
e revitalização dos territórios rurais. Neste trabalho apresentamos três casos de diferentes
naturezas. Primeiro, o caso de uma rede de espaços criados em aldeias da Serra da Estrela
por uma associação de desenvolvimento local. Em segundo lugar, o caso de um albergue
e alojamento turístico que criou um espaço de trabalho colaborativo. Finalmente, o caso
de um Município que criou um espaço de cowork associado a um espaço empresarial exis-
tente. Além dos três casos aqui apresentados, para este trabalho foram também incluídas
notas de visitas, reuniões e observações feitas em outros locais e junto de outros actores,
280 //
como por exemplo, o espaço de teletrabalho de Miranda do Douro, espaço de teletrabalho
de Soure, Cowork Fundão, European Rural Coworking Project, entre outros.

Caso 1: Cooperativa Cowork – Aldeias de Montanha

Em 2021, a Associação de Desenvolvimento Integrado da Rede das Aldeias de


Montanha (ADIRAM) lançou o projecto Cooperativa Cowork4 em várias aldeias do
Parque Natural da Serra da Estrela – Alvoco das Várzeas (Oliveira do Hospital), Lapa
dos Dinheiros (Seia) e Videmonte (Guarda), Alpedrinha (Fundão). Em parceria com as
Juntas de Freguesia, o projecto criou espaços de trabalho em ambiente rural, aproveitando
espaços que estavam sem uso nessas aldeias. Os espaços distinguem-se não só pelo local
onde estão, mas pela forma como foram construídos, com materiais locais, e pela ligação
à população local que foi “parte integrante do processo de reabilitação e cocriação destes
espaços” (Francisco Rolo, Presidente ADIRAM).
As vantagens percebidas pelos utilizadores destes espaços são inúmeras e incluem a
oferta cultural, a proximidade com a natureza e os menores custos de habitação. Rui Pina,
utilizador do espaço em Videmonte realça que “este espaço de coworking oferece-me as
condições necessárias ao meu trabalho, e assim a possibilidade de poder estender as esta-
dias aqui em Videmonte e ao mesmo tempo continuar a trabalhar (...) dá para continuar
a gozar o tempo com a família que está longe mas fazer o trabalho na mesma que faria em
casa.” (Turismo do Centro, 2022). Também em Videmonte, Andreia Proença desta que
“percebi que consigo estar aqui e ter uma vida social e ter mundo (...) além disso, pago

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1 – Espaço Cooperativa Cowork de Videmonte. Fonte: ADIRAM.

4
Ver mais sobre o projecto em https://coworkaldeiasdemontanha.pt/
281 //
uma renda muito baixa e o que não gasto nisso e numa vida de cidade permite-me fazer o
que estou a fazer agora, que é viajar” (A. Baptista, 2022).
Na Lapa dos Dinheiros, Sónia Jerónimo, empreendedora na área de TI, destaca que “em-
preender nesta zona é fantástico (...) um sítio muito menos populoso, para mim faz toda a
diferença já que demoro 5 minutos pela ausência de trânsito a chegar aqui, e tenho uma paisa-
gem fantástica pelo caminho, e este back to nature é muito importante para mim. Do ponto de
vista da habitação é muito mais acessível, tem imensa oferta cultural, tem poucos mas ótimos
restaurantes, hospitais, universidades. Eu não consigo ver desvantagens honestamente nesta
região, isto do meu ponto de vista e da minha opinião pessoal (Turismo do Centro, 2022).
O projecto tem atraído muita atenção mediática nacional e internacional. Em março
de 2022, o jornal Financial Times publicou uma notícia intitulada “The rise of the rural
remote work” onde dá o exemplo deste projecto e onde conta a história de uma das primei-
ras utilizadores do espaço (Balch, 2022). Até julho de 2023, de acordo com a ADIRAM,
tinham já passado por estes três espaços cerca de 400 pessoas (Jornal O Interior, 2023).

Caso 2: HYGEE Coworking (Quinta da Quinhas – Albergue e Cowork


Rural)

O HYGGE Coworking5 resultou da reconstrução dos antigos estábulos e pocilgas de uma


antiga propriedade familiar, agora transformados em confortáveis espaços de trabalho. Além
dos espaços individuais, existem também sala de reuniões, sala de ioga e formação, uma copa
de apoio, um balneário, e mesas de trabalho na varanda e no jardim, com vista para a horta e
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 2 – HYGEE Coworking. Fonte: Autores.


5
Ver mais sobre o projecto em https://quintadaquinhas.pt/hygge/
282 //
Fig. 3 – Quinta da Quinhas Albergue e Cowork Rural. Fonte: Quinta da Quinhas.

para as Serra. Nas palavras da fundadora, Patrícia Labandeiro “ao juntar o alojamento (albergue
já existente) ao espaço de coworking, surge o regime de coliving, onde temos a possibilidade
de acolher e bem receber nómadas digitais e outros trabalhadores remotos” (Barreiro, 2022).
Durante uma visita a este espaço e vários encontros com trabalhadores remotos utili-
zadores, verificou-se um grande interesse por utilizar um espaço como este para encontrar
novas pessoas e “pertencer a uma comunidade”. Além disso, existe um interesse crescente
por parte dos actores locais em promover essas estratégias já que existe uma oportunidade
de aliar o coworking a outros públicos, como os surfistas ou os peregrinos de Santiago
(Entrevista – Quinta da Quinhas, 2023).
Os vários entrevistados destacaram o papel crucial dos proprietários do albergue como
anfitriões, facilitando o processo de chegada e integração dos novos residentes, e como
gestores de comunidade, dinamizando cultural e socialmente o território e envolvendo os
diferentes actores nesta estratégia. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

No entanto, existem ainda desafios ligados à falta de coordenação entre actores locais
que não permite escalar esta estratégia, bem como à integração social dos novos residentes,
em especial os estrangeiros.

Caso 3: Espaço de Cowork Centro Investe (Figueiró dos Vinhos)

Com o objetivo principal de diversificar os espaços disponíveis para atividades empre-


sariais e atrair outros públicos, o Município de Figueiró dos Vinhos instalou um espaço de
283 //
Fig. 4 – Espaço Coworking – Figueiró dos Vinhos. Fonte: Autores.

coworking no seu Complexo Empresarial SONUMA6. O espaço está ao dispor de empre-


sas e indivíduos que realizem o seu trabalho de forma remota, estando equipado com mo-
biliário apropriado, acesso à Internet, uma área de reuniões, acesso a serviços de cafetaria e
refeitório e um ambiente informal e acolhedor. Segundo o Presidente do Município, Jorge
Abreu, esta iniciativa “possibilita a fixação de jovens qualificados que podem, à distância,
desenvolver o seu trabalho, residindo em Figueiró dos Vinhos” (CM Figueiró dos Vinhos,
2022b).
O espaço encontra-se neste momento totalmente ocupado (6 lugares), maioritaria-
mente por pessoas que se mudaram de outras cidades/países para viver em Figueiró dos
Vinhos e de diferentes áreas como o marketing, desenvolvimento de softwares, gestão de
projectos, assistência virtual, engenharia, etc. Um exemplo é Marco Catarro que trabalha
na área de consultoria informática e que escolheu Figueiró dos Vinhos por causa da “qua-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

lidade de vida que oferece. Após alguns anos a viver na periferia da grande Lisboa, com o
crescimento populacional e tudo o que envolve pensamos que será um bom local para as
crianças crescerem” (CM Figueiró dos Vinhos, 2022a).

Considerações Finais

As novas tendências de trabalho relacionadas com o trabalho remoto e o nomadis-


mo digital apresentam-se como uma importante oportunidade para os territórios rurais

6
Ver mais sobre o projecto em: https://www.centroinveste.pt/index.php/espaco-de-coworking-sonuma
284 //
atraírem e reterem pessoas, fazendo face ao problema do despovoamento e falta de capital
humano (Almeida, 2023).
Os espaços de trabalho colaborativo têm sido cada vez mais percebidos pelas autorida-
des regionais e municipais como um importante componente dos futuros serviços públi-
cos (Bähr et al., 2020). Vimos, neste estudo, três casos de espaços de trabalho colaborativos
em Portugal. Os exemplos apresentados demonstram o interesse por parte de diferentes
actores nesta estratégia e público-alvo como forma de desenvolvimento do seu território.
No entanto, existem ainda diversos desafios relacionados com a escala destes espaços para
assegurar a sua sustentabilidade, a coordenação dos diversos actores locais para esta estra-
tégia, as estratégias de marketing e inovação territorial partilhadas entre estes actores, e,
finalmente, a melhor integração social dos novos residentes (permanentes ou temporários)
que utilizam estes espaços. Nos diversos casos apresentados, confirmou-se a importância
dos afintriões ou gestor de comunidade, como elo de ligação entre os novos residentes /
utilizadores do espaço com a comunidade local (Judit & Szeréna, 2017).
Assim, urge desenvolver políticas adaptadas para incorporar estes espaços e novas ten-
dências de trabalho nas estratégias de desenvolvimento local e regional. Os decisores políticos
devem ir além das abordagens tradicionais, procurando definir estratégias partilhadas e par-
ticipativas que envolvam os diferentes actores locais e regionais e os diferentes sectores eco-
nómicos e sociais. Além disso, há também a necessidade de adaptar estes espaços à realidade
local, para não aumentar ainda mais as projecções urbanas que empurram o espaço rural para
uma artificialização cada vez maior da sua identidade (Covas, 2011). No caso dos territórios
rurais, estas infraestruturas devem ir além da “moda urbana”, podendo ocupar o lugar de
outros espaços comunitários que têm vindo a desaparecer nas últimas décadas como os cafés,
associações culturais, escolas primárias, configurando-se assim não só como espaços de tra-
balho, mas como um efectivo instrumento de revitalização e repovoamento das zonas rurais.

Agradecimentos
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Este trabalho foi apoiado pela Rural Move – Associação para a Promoção do
Investimento em Territórios de Baixa Densidade.

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286 //
III. CIDADE E DINÂMICAS
DO ESPAÇO URBANO
Fortaleza e a formação social urbana
do Ceará

José Borzacchiello da Silva1

Fortaleza, como todo o sistema urbano brasileiro, vem passando por transformações
rápidas, modificando substancialmente sua fisionomia urbana. Essas transformações são
indiscutivelmente efeitos de medidas políticas, econômicas e sociais, que alteraram acen-
tuadamente a sociedade brasileira nos últimos tempos. A industrialização foi, sem dúvida,
o fator propulsor dessas mudanças do que resultou a organização desse sistema urbano, até
então inexistente. Nessa fase anterior ao surgimento de grandes cidades, o país vivia eco-
nomicamente dependente da economia agrícola, voltada para o mercado externo. A cidade
apresentou a partir dos anos sessenta, acentuado crescimento demográfico, um dos fatores
explicativos de sua expansão recente com acentuado aumento do número de favelas, cons-
trução de enormes conjuntos habitacionais, formação de extensas áreas periféricas. A po-
pulação da metrópole se aproxima dos quatro milhões de habitantes. A antiga franja pobre
de seu espaço metropolitano alterou substancialmente o seu perfil, condomínios de luxo,
shoppings centers disputam espaço com extensas áreas ocupadas por bairros proletários e
conjuntos habitacionais. É a nova realidade espacial da cidade que conheceu uma expan-
são urbana sem igual, e que explica a sua nova configuração metropolitana. São várias as As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

empresas que migraram em busca de novas localizações e provocaram a polinucleação da


cidade fragilizando o centro tradicional.
Nessa passagem de país agrícola para país industrializado, muitos problemas se agu-
çaram, sendo que a problemática urbana surge como a mais séria. A população urbana do
país em 1940 era constituída por apenas 31% da população total, sendo que hoje, esse
percentual chega a 87%. Além do mais, a população urbana tende cada vez mais a se con-
centrar nas grandes aglomerações.

1
Professor Titular e Emérito da UFC (PPG Geografia da UFC) e da PUC-Rio.
289 //
Se, de um lado, esse processo de industrialização modificou as estruturas internas do
país, no que se refere à sua realidade espacial, por outro lado, essas mudanças foram brus-
cas. Esse processo de urbanização acelerado é resultado da industrialização do Brasil que se
deu de forma concentrada no Sudeste, especialmente em São Paulo.
O acelerado crescimento econômico agilizará o processo de expansão das re-
lações capitalistas sobre o espaço, desvinculando organicamente o homem de seus
laços com as condições materiais de trabalho, expropriando a terra ao campesinato
e os meios de produção aos artesãos e forçando a concentração dos homens na for-
taleza do capital: a cidade. O espaço concentrado que se inicia com a destruição da
pequena produção pela manufatura, agora se completa. Os campos se despovoam e
as cidades engordam e se multiplicam(MOREIRA, 1981, p. 101).

Nessa fase do processo se estrutura uma hierarquia urbana nacional que reforça o papel
de várias cidades, especialmente as capitais estaduais, que se transformam em grandes cen-
tros de redistribuição de produtos industrializados e centros coletores da produção agrícola
de suas respectivas áreas de influência. Fortaleza é um exemplo típico dessa situação. O
papel assumido pelo setor terciário justifica em parte seu crescimento e a influência que
ela exerce, sobre um vasto espaço que se estende além dos limites estaduais. Os fluxos
migratórios para Fortaleza têm sido intensos, e o aumento dos índices de pobreza urbana,
também são alarmantes.
Tanto no Nordeste como no Ceará, a indústria não encontra a expressão que tem no
Centro-Sul do país. Ao contrário,
... no momento, pois, em que a expansão do sistema capitalista no Brasil tem seu
locus na ‘região’ Sul comandada por São Paulo, o ciclo toma espacialmente a forma de
destruição das economias regionais, ou das ‘regiões’. Esse movimento dialético destrói
para concentrar, e capta o excedente das outras ‘regiões’ para centralizar o capital. O
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

resultado é que, em sua etapa inicial, a quebra das barreiras inter-regionais, a expansão
do sistema de transporte facilitando a circulação nacional das mercadorias, produzidas
agora no centro de gravidade da expansão do sistema, é em si mesma, tantas outras
formas de movimento de concentração; e a exportação de capitais das ‘regiões’ em es-
tagnação são a forma do movimento de centralização. Aparentemente, pois, sucede de
início, uma destruição das economias ‘regionais’, mas essa destruição não é senão uma
das formas de expansão do sistema em escala nacional (OLIVEIRA, 1978, p. 75-76).

No caso Cearense, a indústria mesmo sem a expressão que alcança no Centro-Sul e


mesmo noutros Estados nordestinos, está concentrada em Fortaleza e ela se impõe cada vez
mais, como que repetindo o processo visto acima para o todo estadual.
290 //
“Ao contrário de São Paulo, onde ocorre o deslocamento de grande número
de indústrias para outras cidades, permanece na cidade, a gestão da produção. Em
Fortaleza, dada sua particularidade, as indústrias continuam concentradas na capital,
ocorrendo nas últimas décadas a atração de indústrias do Sul e Sudeste para a RMF”
(SILVA e Muniz, 2022, p. 76).

Fortaleza exerce papel de metrópole regional, comandando um espaço significativo no


Nordeste. A área de influência de Fortaleza Abrange cinco capitais regionais, 34 centros
sub-regionais, 58 centros de zona e 630 cidades, cuja rede urbana encabeçada pela cidade
alcança uma população de mais de 20 milhões de habitantes2. O crescimento da popula-
ção de Fortaleza tem sido superior ao crescimento da população do Estado, como pode ser
visto na tabela 01:

Tabela 01– População do estado do Ceará e do município de Fortaleza no Período


de 1890 a 2022 (Números absolutos e crescimentos intercensitários)
Crescimento Crescimento
ANOS CEARÁ Fortaleza
Intercens. Intercens.
1890 805.687 - 40.902 -
1900 849.127 5,38 48.369 18,2
1920 1.319.228 55,3 78.536 62,2
1940 2.091.032 58,5 180.185 129,4
1950 2.695.450 28,9 270.169 49,9
1960 3.337.856 23,8 541.813 90,5
1970 4.491.590 34,5 857.980 66,6
1980 5.380.432 19,7 1.308.919 62,5
1991 6.366.647 18,32 1.768.637 35,12
2000 7.430.661 16,71 2.141.402 21,0
2010 8.452.381 13,75 2.452.185 14,5

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2022 8.791.688 4,0 2.428.678 -1,0
Fonte: Dados para o Ceará período de 1890 a 1970 – Sinopse Preliminar do 8º Recenseamento Geral-Ceará
e Anuário Estatístico do Brasil, 1976. Dados para Fortaleza, período 1890 a 1970 – Sinopse Preliminar do 89
Recenseamento Geral. Dados para 1980: Sinopse Estatística do Brasil – 1981. FIBGE. IBGE Cidades (Série
Histórica: 1991-2000-2010-022).

Além das causas gerais vistas anteriormente, esse crescimento demográfico de Fortaleza
está intimamente vinculado às secas periódicas que ocorrem no interior do Estado e à estrutu-
ra fundiária calcada na grande propriedade ligada à criação de gado, esta última, atividade que
dispensa cada vez mais a mão-de-obra utilizada, e as duas no conjunto dificultam a fixação

2
IBGE. REGIC – Regiões de Influência das Cidades. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/
cartas-e-mapas/redes-geograficas/15798-regioes-de-influencia-das-cidades.html. Acesso em: 21.ago.2023.
291 //
da população no interior. Em decorrência dessa situação aumentam os fluxos migratórios que
têm em Fortaleza um excelente foco de atração (mas que as vezes não fica contida somente na
capital e expande para outros estados) e cujos efeitos podem ser vistos na tabela 02.

Tabela 02 – Imigrantes e emigrantes interestaduais no Ceará


Décadas Ceará
Imigrantes % Emigrantes %
1950-1960 107.539 - 268.486 -
1960-1970 156.269 45,31 345.021 28,56
1970-1980 150.434 -3,73 464.781 34,71
1980-1990 293.392 95,03 482.355 3,78
1990-2000 343.605 17,11 439.153 -8,9
2000-2010 248.153 -27,77 373.957 -14,84
Fonte: Queiroz e Baeninger, 2015. Queiroz, 2016.

Apesar do número de emigrantes ser maior do que de imigrantes, boa parte deste
contingente que partiu passou por Fortaleza, ou seja, a cidade continua sendo uma centra-
lidade atrativa, sobretudo no que diz respeito à sua Região Metropolitana. O crescimento
demográfico da capital chama a atenção pelo fato de não existir em Fortaleza um setor in-
dustrial capaz de absorver essa massa populacional que flui constantemente para a cidade,
mesmo diante de uma situação de aumento da atividade industrial. Segundo os dados do
Censo Demográfico de 2010 do IBGE, e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios,
também do IBGE, a participação da população economicamente ativa (PEA), na Região
Metropolitana de Fortaleza era a seguinte: 253.621 (1970); 543.404 (1980); 887.996
(1991); 1.246.998 (2000). A ampliação da malha urbana aqui representada quase sempre
pela expressão da periferia caracterizada pelos loteamentos clandestinos. Pelo processo de
autoconstrução nesses loteamentos e a criação de um mercado de trabalho não fixo que
atrai o homem do campo por um lado e por outro impede que ele trabalhe na “retaguarda
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rural”, porque grande parte desse solo já está totalmente, parcelado e em “pousio” para a
especulação imobiliária. Dessa forma o setor primário fica prejudicado no que se refere ao
emprego de mão-de-obra e compromete muitas vezes sua rentabilidade. O setor secun-
dário por sua vez mascara um pouco a realidade, pois parte desse “emprego industrial”,
nada mais é do que trabalho feito por uma mão-de-obra feminina (em sua maioria (aliás
muito importante para a economia da cidade), empregada em pequenos estabelecimentos
(artesanato e confecções) sem as características necessárias capazes de incluí-los no setor
secundário numa classificação mais rígida.
A análise do quadro urbano cearense não pode ser feita sem que se associe as rela-
ções espaciais resultantes de um processo histórico, quando da ocupação e organização
292 //
do espaço contido hoje nos limites do Estado. Nessa análise o papel desempenhado por
Fortaleza tem que ser destacado, principalmente quando se compara a sua importância em
relação as outras cidades do interior e se procura compreender como que a pequena vila
do passado chegou à condição de grande cidade.
A capital do Ceará não possuía nem uma baía profunda como Salvador nem a
foz de um rio como o Recife onde as embarcações de pequeno e médio porte pu-
dessem se abrigar, no período colonial, com um mínimo de segurança. Seu porto
teria que ser construído em mar aberto e em uma área onde a costa é atingida pela
corrente das Guianas e onde os ventos constantes de direção nordeste provocam
o assoreamento da foz dos rios e o caminhar incessantes das dunas, dificultando a
construção de portos. Se as condições naturais inicialmente, não a favoreceram, as
condições econômicas também não foram, nos primeiros tempos muito favoráveis.
Localizada em uma área de clima semiárido, não produzia a sua hinterlândia pro-
dutos de exportação cobiçados no mercado europeu, dedicando-se à pecuária com a
finalidade de fornecer carne e animais de trabalho à região açucare ira pernambucana
economicamente mais dinâmica. Com a Revolução Industrial e a intensificação da
demanda de algodão pelo mercado inglês, passou o Ceará a produzir um produto de
exportação e a intensificar o povoamento de seu território e a abertura de sua econo-
mia. Foi como porto exportador de algodão e, posteriormente, de cera de carnaúba,
que Fortaleza ganhou importância no século XX e teve suas instalações portuárias
construídas (ANDRADE, 1978, p. 91).

Fica clara a compreensão dessa passagem de pequena vila sem função e a formação de
uma grande cidade com função de comando sobre um extenso espaço à partir da conquista
da hinterlândia por parte de seu porto.
Se Fortaleza foi aos poucos assumindo essa posição que possui hoje no sistema urbano
brasileiro, no interior por sua vez, apenas Sobral e o aglomerado urbano de Crato-Juazeiro
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do Norte se destacam como centros comerciais e industriais. Como já foi dito anterior-
mente, a criação de gado foi marcante no processo de povoamento e ocupação do espaço
cearense. A predominância da criação extensiva impediu em parte o surgimento e cresci-
mento de cidades, haja vista o papel da atividade pecuária na dispersão da população. A
concentração da população e a origem de “pequenos centros locais, quase sempre forma-
dos pela aglutinação da população em torno de uma capela. Os núcleos populacionais
do Ceará evoluíram para a condição de cidade quando encontraram facilidades para se
tornarem centro de trocas de mercadorias” (SUDEC, 1975).
Se Fortaleza hoje é a maior cidade do Estado, no entanto foi Aquiraz a primeira vila
criada no Ceará em 1713. Porém hoje, essa primeira vila é cidade sede do município com
293 //
o mesmo nome, contido na Região Metropolitana de Fortaleza. Por sua vez, Fortaleza só
foi elevada à categoria de vila em 1726. As demais vilas criadas no Estado, posteriormente,
ainda no século, XVIII foram: Icó (1738), Aracati (1748), Caucaia (1759), Crato (1764),
Baturité (1764), Sobral (1773), Granja (1776), Quixeramobim (1789) e Guaraciaba do
Norte (1796).
No início do século XIX começaram as primeiras atividades de exportação pelo Ceará,
como capitania emancipada (Desmembrou-se em 1799 da Capitania de Pernambuco), e
em 1826, a vila de Fortaleza, foi elevada a condição de cidade. Após Fortaleza foram ele-
vadas à condição de cidade, ainda no século passado somente as vilas de: Sobral (1841),
Icó e Aracati (1842), Crato (1843), Quixeramobim (1856) e Baturité (1858). Das cidades
cearenses, aquelas originárias de vilas criadas no século XVIII, ainda hoje constituem, com
raras exceções, as mais importantes do Estado. Poucas mudanças ocorreram na hierarquia
urbana cearense se for considerado o tempo transcorrido entre a fundação da primeira vila
(Aquiraz – 1713) e o quadro atual da realidade urbana estadual. No século XVIII, segundo
pesquisa realizada pela SUDEC, assim se configurava a “rede urbana cearense”, presente
no quadro 01:

Quadro 01 – Tentativa de identificação


da rede urbana cearense no final do século XVIII
VILA OU POVOADO NÍVEL FUNÇÃO BÁSICA
Aracati 1° Comercial / Administrativa / Serviços
Icó 1º Comercial / Administrativa / Serviços
Sobral 1º Comercial / Administrativa / Serviços
Crato 1º Agrícola / Administrativa / Industrial
Camocim 2º Comercial / Industrial
Acaraú 2º Comercial / Industrial
Quixeramobim 2º Comercial / Serviços Básicos
Fortaleza 3° Administrativa
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Aquiraz 3° Administrativa
Granja 3º Industrial
Fonte: SUDENE/SUDEC – Estruturação do Espaço Urbano e Regional no Ceará
– Uma Abordam Histórica – 1974.

Uma análise do quadro 01, permite observar o papel importante assumido pelas ci-
dades de Aracati e Icó (ambas elevadas à condição de cidade no ano de 1842). Aracati,
antiga São José do Porto dos Barcos, mais tarde Santa Cruz de Aracati, expandiu-se pouco
a pouco, chegando a estender sua influência sobre todo o território do Ceará. Sua condi-
ção de porto de entrada e saída de mercadorias, principalmente carne-de-sol, muito in-
fluenciou seu crescimento. O advento das charqueadas no Ceará contribuiu sobremaneira
294 //
para a pujança de Aracati que se tornou o mais movimentado e rico centro da capitania
do Ceará. A acirrada concorrência da Paraíba e do Rio Grande do Norte no comércio de
gado bovino para o abastecimento da região canavieira pernambucana, fez com que os cea-
renses optassem pela venda de um produto preparado e comercializado no local, no caso
a matança do gado e preparação de mantas de carne conservadas pelo sol, ficando assim
resistentes a viagens longas. Em face dessa atividade, Aracati tornou-se o grande centro
urbano cearense do passado. Hoje sua influência restringe-se ao litoral, nas imediações
da desembocadura do Jaguaribe. A exploração da carnaúba para extração de cera e outros
aproveitamentos, provocou a interiorização das funções urbanas para Russas e limoeiro do
Norte, em detrimento de Aracati. Icó, por sua vez, se constituiu aos poucos no principal
centro coletor da produção do interior e o maior centro distribuidor de bens para uma
imensa região que se estendia pelo vale do Salgado, médio e alto Jaguaribe, além dos ser-
tões da Paraíba. A cidade de Icó mantinha intercâmbio com Campina Grande e com o
Recife. Uma simbiose urbana permitiu a coexistência de um grande centro sertanejo no
interior, com o grande empório e porto no litoral.
Fortaleza, como foi visto na citação de Manuel Correia de Andrade, apesar de sua fun-
ção de capital administrativa, não tinha expressão urbana, aparece no quadro acima como
centro de 3º nível. Sobral, localizada a Noroeste do Estado, no vale do Acaraú, constituía
um centro de 1º nível e era como ainda é hoje um dos principais centros do interior. Sua
função comercial, administrativa e de serviços se estendia por todo o Noroeste, alcançan-
do parte do Piauí. Acaraú e Camocim foram cidades portuárias que se desenvolveram no
litoral norte como portas de entrada e sarda de produtos comercializados em Sobral.
No interior do Estado, quase no limite com Pernambuco, a cidade de Crato, localiza-
da nas encostas da Chapada do Araripe, era o grande centro do Cariri. Com relações mais
intensas com o Recife, mantinha-se praticamente isolado do litoral cearense.
Não havia no Ceará ‘Nordeste’ açucareiro, nem qualquer outra atividade pro-

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dutiva que não fosse determinada pela estrutura típica do latifúndio-minifúndio. O
Ceará era, antes da entrada do Nordeste na divisão internacional do trabalho pela
via da produção do algodão, um vasto e subpovoado curral de gado, com algumas
microzonas como a do Cariri, onde medrou também a atividade açucareira (com
razão era o Cariri do Ceará muito mais ligado à estruturas de reprodução vigentes
no ‘Nordeste’ açucareiro de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas)
(OLIVEIRA, op. cit. p. 55-56).

Esses quatro centros interioranos, Aracati, Icó, Sobral e Crato, exerciam influência em
quase toda a extensão da província. A Aracati, cabia o comando da faixa litorânea, a Icó,
o sertão jaguaribano, a Sobral, o vale do Acaraú e a região da Ibiapaba, enquanto que, ao
295 //
Crato, cabia o Cariri. Dos quatro, apenas o Crato aparecia com função agrícola, o que re-
vela sua tradição agrária, decorrência de melhores condições climáticas e de aproveitamen-
to da terra no Cariri. A cana-de-açúcar já era cultivada e se constituía no principal produto
da área, razão por que também o Crato exercia função industrial, com os engenhos ali
instalados para produzir açúcar e rapadura. O Cariri era responsável pelo abastecimento
desse produto para o sertão pecuário.
O desenvolvimento da lavoura algodoeira e a colocação desse produto no mercado
internacional provocaram a projeção de Fortaleza como centro urbano. Pouco a pouco a
capital cearense foi adquirindo destaque entre as cidades do Estado e posteriormente entre
as cidades brasileiras.
Os resultados censitários, a partir de 1940, demonstram o rápido crescimento
da população de Fortaleza. Assim, o município, de acordo com o Recenseamento de
1950, apresentou um acréscimo populacional de 49,9% em relação à década anterior.
Nos decênios seguintes, Fortaleza posicionou-se dentre as capitais do Nordeste que
vem apresentando os maiores índices de crescimento” (OLIVEIRA, op. cit. p. 55-56).

De uma pequena cidade nos fins do século passado, com somente 40.902 habitantes,
em menos de um século alcança e ultrapassa a cifra de cidade com mais de um milhão de
habitantes, surpreendendo a todos. Recife e Salvador, tradicionais capitais nordestinas,
sempre foram importantes centros desde o início da colonização portuguesa. A Fortaleza
cabia apenas o papel de ser a capital da província do Ceará, apesar de inferior aos dinâmi-
cos centros de Aracati e Icó. Sua condição de capital administrativa e, como consequência,
sede de repartições públicas de vários níveis, além de outros órgãos ligados à administra-
ção, a construção da ferrovia, o melhoramento do porto, a construção de rodovias entre
outras medidas, contribuíram para que Fortaleza fosse aos poucos adquirindo feições de
grande cidade, e que fosse competindo com as demais cidades do interior.
As secas periódicas que assolavam o interior e principalmente a abertura de estra-
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das e construção de rodovias, ligando a capital aos municípios mais distantes e outros
Estados, muito contribuíram para que a capital alencarina se transformasse aos poucos,
num polo de atração para a população migrante. Esses e outros fatores teriam criado as
condições necessárias para que ocorresse um vertiginoso crescimento demográfico e, a
partir dele, um esforço das funções urbanas de Fortaleza, que dia a dia vai expandindo
sua área de influência. Os números por si demonstram a sua importância como foi
visto na tabela 2. Ao que tudo indica, seu crescimento demográfico acentuou-se, tanto
provocado pelo seu papel de polo de atração, como também pelas condições repulsivas
de vida em grande parte do interior do Estado. Este papel concentrador de Fortaleza
pode ser observado mesmo em sua Região Metropolitana, onde ela detém cada vez mais
296 //
um maior contingente demográfico em detrimento dos municípios integrantes desse
espaço metropolitano. A tabela 03 é bem significativa para demonstrar esse papel con-
centrador de Fortaleza, agora, já num espaço menor e de limites mais preciosos (Região
Metropolitana de Fortaleza).
Nota-se que a população de Fortaleza no quadro geral da composição da população
total da Região Metropolitana era de 62,48% em 1940, passando para 62,2% nos últi-
mos resultados censitários, haja vista a inserção de mais municípios (passando de cinco
para dezenove) e os eventos decorrentes da pandemia do Coronavírus a partir de 2020,
que fizeram com que a capital perdesse um número considerável de habitantes entre os
censos de 2010 e 2022. Além de Fortaleza, Maranguape também sofreu com perdas de-
mográficas significativas, mas a capital continua sendo a principal cidade da RMF. Hoje
a malha urbana de Fortaleza já alcança praticamente o seu limite sul e oeste em direção
aos municípios de Maranguape, Pacatuba, Maracanaú e Caucaia, provocando mudanças
na distribuição da população nos últimos anos. A expansão do setor industrial através
da localização do Distrito Industrial de Maracanaú modificou a direção dos fluxos de
deslocamento da mão-de-obra operária e da construção civil. Imensos conjuntos habita-
cionais foram e continuam sendo construídos pelo sistema financeiro, desde o B.N.H.
Estas medidas provocaram uma descentralização de Fortaleza, fortalecendo os vínculos
metropolitanos. Fortaleza hoje é praticamente a imagem de sua área metropolitana.
Além disso, a melhoria dos serviços de transportes coletivos (Metrô e VLT, por exemplo)
e o aumento constante do preço do solo urbano facilitam e forçam o deslocamento de
parte da população para áreas mais distantes. Como consequência, a população fica mais
dispersada em relação ao todo metropolitano, e, aumentam as densidades ao nível mu-
nicipal. Esse poder concentrador de Fortaleza, presente até em sua região metropolitana,
simboliza bem uma economia dependente dos mercados extrarregionais,
centro de um espaço de ‘drenagem’ de matérias primas, de capitais e de popula-

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ção de sua área de influência. O ritmo explosivo do crescimento demográfico, de
Fortaleza representa bem as dificuldades econômico-sociais do Estado (SUDEC,
op. cit., p. 63).
297 //
Tabela 03 – Região Metropolitana de Fortaleza – População Recenseada
nos Recenseamentos Gerais a partir de 1940 Valores absolutos e relativos
Município/Censos

Chorozinho

Maracanaú
Horizonte
Fortaleza

Guaiúba

Itaitinga
Cascavel

Caucaia

Eusébio
Aquiraz

20.429 - 30.082 - - 180.185 - - - -


1940

7,8% - 10,42 % - - 62,48% - - - -

23.870 - 37.832 - - 270.169 - - - -


1950

6,06% - 9,62 % - - 68,67 % - - - -

26.592 - 42.572 - - 514.818 - - - -


1960

4,06% - 6,50% - - 78,65% - - - -

32.700 - 54.754 - - 872.702 - - - -


1970

3,10% - 5,23% - - 82,86% - - - -

45.807 - 94.106 - - 1.338.793 - - - -


1980

2,84% - 5,89% - - 82,87% - - - -

46.305 - 165.099 - 20.410 1.768.637 - - - 157.151


1991

2,02% - 7,21% - 0,91% 77,25% - - - 6,86%

60.469 - 250.279 18.707 31.500 2.141.402 19.884 33.790 29.217 179.732


2000

1,91% - 7,90% 0,60% 0,99% 67,64% 0,63% 1,06% 0,92% 5,67%


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72.628 66.142 325.441 18.915 46.033 2.452.185 24.091 55.187 35.817 209.057
2010

2% 1,82% 9% 0,52% 1,3% 67,81% 0,66% 1,52% 1% 5,8%

80.243 72.626 355.679 20.163 74.170 2.428.678 27.217 74.754 64.648 234.392
2022

2% 1,9% 9,1% 0,5% 1,9% 62,2% 0,7% 1,9% 1,7% 6%


298 //
São Luís do Curu
São Gonçalo do
Pindoretama
Maranguape

Paraipaba

Amarante
Pacatuba

Paracuru

TOTAL
Pacajus

Trairi
39.212 - 18.523 - - - - - - 288.431

13,60% - 6,42% - - - - - - 100%

41.585 - 19.990 - - - - - - 393.446

10,57% - 5,08% - - - - - - 100%

46.205 - 24.458 - - - - - - 654.645

7,06 % - 3,73% - - - - - - 100%

59.622 - 31.916 - - - - - - 1.053.333

5,76% - 3,05% - - - - - - 100%

91.137 - 42.106 - - - - - - 1.615.648

5,74% - 2,66% - - - - - - 100%

71.705 - 60.148 - - - - - - 2.289.365

3,13% - 2,62% - - - - - - 100%

88.135 44.070 51.696 - - - 35.608 - - 2.984.489

2,78% 1,4% 1,63% - - - 1,12% - - 100%


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113.561 61.838 72.299 - - 18.683 43.890 - - 3.615.767

3,14% 1,71% 2% - - 0,51% 1,21% - - 100%

105.093 70.534 81.238 38.691 32.216 23.345 54.021 10.822 58.415 3.906.855

2,6% 1,8% 2% 1% 0,9% 0,6% 1,4% 0,3% 1,5% 100%

Fonte: IBGE.
299 //
Afora a concentração da capital, só nas áreas circunvizinhas dos centros regionais de
Crato-Juazeiro do Norte-Barbalha e Sobral é que o quadro urbano se destaca no cenário
estadual. Num outro nível, surgem Iguatu e Crateús, Tianguá e Itapipoca como impor-
tantes centros urbanos em relação às regiões onde eles estão inseridos. No contexto nor-
destino, é o Ceará o Estado que apresenta um maior desnível no seu sistema urbano, no
que se relaciona à hierarquia, isso quer dizer que é o Estado que apresenta maior diferença
em termos demográficos entre sua maior cidade e a segunda mais importante (cerca de
2.321.400 habitantes de diferença entre Fortaleza e Caucaia, a segunda maior cidade).
Nos demais Estados, nota-se certo equilíbrio entre essas duas cidades, isso é claro que feito
em relação à situação cearense. Os exemplos de relação mais equilibrados podem ser vistos
entre São Luiz e Imperatriz (764.655 habitantes de diferença), para o Maranhão; Teresina
e Parnaíba (704.411), para o Piauí; Maceió e Arapiraca (723.220), para Alagoas; Natal e
Mossoró (589.862), para o Rio Grande do Norte; Aracaju e Nossa Senhora do Socorro
(484.881), para Sergipe; João Pessoa e Campina Grande (403.184) para a Paraíba. Recife
e Jaboatão (949.687), para Pernambuco (Poderia ser também Caruaru, caso não se queira
considerar municípios contidos nas áreas metropolitanas) e por fim Salvador e Feira de
Santana (1.801.726) para a Bahia apresentam os maiores desníveis após o Ceará.
Os exemplos demonstram bem a realidade urbana dos Estados Nordestinos. No caso
cearense, a maior cidade depois de Fortaleza é Juazeiro do Norte, tendo essa cidade como
já foi dito anteriormente, uma população aproximadamente dez vezes menor que a da
capital. Além do mais, sua infraestrutura urbana é incompatível com o seu contingente
demográfico. Assentada sobre um sítio de relevo pouco acidentado, a cidade se apresenta
com uma forma compacta, com a população excessivamente adensada e distribuída numa
compartimentação urbana em forma de quadrilátero, apresentando um alto índice de
pobreza, marcado pelo constante fluxo de peregrinação em torno da:
... figura mística e mítica do Padre Cícero Romão Batista, que, em 1872,
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assumiu a capelânia daquele povoado, tornando-se também seu primeiro prefeito.


O Padre Cícero, através de lendas e devoção popular, tornou-se venerado em todo o
Nordeste e é responsável pela transformação do pequeno povoado em grande centro
de romarias, razão primeira de seu surto de crescimento”(SUDEC, 1980).

Mesmo se tratando de um importante centro de comércio varejista, as marcas de sua


condição de centro de peregrinação de romeiros pobres e sua maioria, oriundos de todo o
Nordeste e outras regiões do país são profundas. Essas marcas alteram ou criam de forma
acentuada a paisagem urbana dessa cidade.
Dessa forma apresenta-se o quadro urbano cearense. O poder concentrador de Fortaleza
revela a fragilidade do sistema urbano que não consegue reter a população no interior. Por
300 //
sua vez é a população mais pobre que migra com mais facilidade. Consequentemente
surge como resposta espacial, uma cidade dominada pela pobreza e que tem essa realidade
mascarada por alguns bairros elitizados, ocupados por confortáveis mansões e edifícios
elegantes. A grande maioria da população vive em péssimas condições e, em muitos casos,
confinada em bairros longínquos sem o mínimo de conforto e sem uma infraestrutura de
serviços capaz de atender às necessidades básicas dessa parcela significativa da população.
Para que se tenha ideia das reais condições dessa população e presumir sua distribuição
geográfica e arrumação espacial no contexto urbano de Fortaleza, basta analisar a tabela 04
que mostra o nível de renda da população, de acordo com o Censo de 2010.

Tabela 04 – Rendimento mensal de todas as fontes segundo o número de famílias,


na Região Metropolitana de Fortaleza
Mais de
Município / Renda / Até 1 salário De 1 a 2 salá- De 2 a 5 salá- Sem rendi-
5 salários Total
Número de famílias mínimo rios mínimos rios mínimos mento
mínimos
Aquiraz 1.369 87 25 - 364 1.845
Cascavel 1.157 51 51 8 522 1.789
Caucaia 5.756 526 156 8 2.232 8.678
Chorozinho 230 15 - - 98 343
Eusébio 851 118 43 5 346 1363
Fortaleza 43.342 8.182 3.089 791 14.071 72.475
Guaiúba 371 33 - 11 272 687
Horizonte 866 83 - - 397 1346
Itaitinga 552 22 6 - 258 838
Maracanaú 4.007 397 66 24 1.579 6.073
Maranguape 2.892 241 88 9 748 3.978
Pacajus 1.155 108 32 - 284 1.579
Pacatuba 1.414 107 38 - 677 2.236
Paracuru 532 14 19 - 280 845

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Paraipaba 557 18 22 - 169 766
Pindoretama 417 39 7 - 173 636
São G. do Amarante 780 46 7 10 338 1181
S. Luís do Curu 192 3 - - 97 292
Trairi 1.229 45 10 - 427 1.711
Total 67.669 10.135 3.659 866 23.332 108.661
% 63 10 4 1 22 100
Fonte: IBGE – Censo 2010.

O quadro não é nada animador e indica a situação de extrema pobreza a que está sub-
metida grande parte da população. Apesar de tão importante no cenário urbano brasileiro
301 //
pelo seu contingente populacional, Fortaleza não possui uma urbanização à altura de seu
tamanho demográfico. Salvo sua importância comercial e de serviços, face ao seu grande
espaço de influência regional, seu comércio é grande, porém pobre, se comparado com
outras praças. Trata-se de um comércio típico de uma população com pequeno poder de
compra. Ultimamente um comércio de melhor qualidade vem se instalando nos bairros
Aldeota e Meireles e em suas imediações, atendendo a uma incipiente classe média que
apresenta melhor poder de compra. A mudança de uso de antigas residências que se trans-
formam em estabelecimentos comerciais vem ocorrendo com frequência naqueles bairros.
Os dados por si indicam a qualidade de urbanização que se estende pelos municípios vizi-
nhos. Se os dois primeiros níveis de renda forem somados, ter-se-á um percentual de 70%
do total de famílias que residem na região metropolitana, com renda familiar de menos de
até 1 salário mínimo e de 1 a 2 salários mínimos.
Segundo dados oficiais do censo de 20103, o município de Fortaleza possuía 108.903
domicílios nas favelas da cidade, com uma população de 396.370 habitantes. Os números
não assustam. No entanto, o Censo só considera aquelas “favelas” (cuja denominação utili-
zada pelo IBGE é de aglomerados subnormais) caracterizadas pela concentração de mora-
dias pobres e pela ausência de infraestrutura urbana nessas concentrações. Levando-se em
conta os loteamentos periféricos com o uso domiciliar caracterizado pela autoconstrução,
pela ausência de infraestrutura básica, além de vários bairros da cidade extremamente
pobres, esses números seriam mais elevados. Esses loteamentos e bairros só não são consi-
derados «favelas», devido à posse da terra por parte do morador (proprietário). Sem dúvida
alguma, quanto ao seu aspecto formal no contexto da paisagem e sua configuração na
estrutura urbana, eles não apresentam muita diferença em relação às típicas favelas.
As contradições residem mesmo nas informações. Basta relacionar os dados de ní-
veis de renda (Censo 2010), com os de favelas para 2010 e os da PNAD4 para 2010 que
apresentam os seguintes resultados: Para 1.027.772 domicílios particulares permanentes
contidos nos 15 municípios (até o Censo de 2010) integrantes da região metropolitana
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de Fortaleza (os outros quatro municípios foram incluídos em 2014: Paracuru, Paraipaba,
Trairi e São Luís do Curu) cerca de 898.518, eram servidos pelo abastecimento d’água.
Daquele mesmo total, 4.667, não tinham iluminação elétrica, e, 512.909 estavam ligados
à rede geral de esgotos.
A situação da urbanização no Brasil, apesar dos avanços alcançados nas últimas déca-
das, ainda mantém fortes semelhanças com as cidades dos países do Sul Global, também
conhecido como Terceiro Mundo que para (ROCHEFORT, 1981) têm um crescimento

3
Censo 2010 – IBGE.
4
IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Censo 2010.
302 //
muito mais rápido do que as dos países desenvolvidos, em função do crescimento natural e
das importantes migrações da população do campo... esta população que se concentra nas
grandes cidades está muito mais que nos países desenvolvidos dominada pela pobreza de
um grande número, acarretando uma falta de recursos para a massa da população urbana
(ROCHEFORT, 1981).
Como destaca e generaliza Rochefort, Fortaleza não foge à regra. Os intensos fluxos
migratórios e a concentração da pobreza tem sido uma constante no processo de urbani-
zação da capital cearense. No seu conjunto, o sistema urbano cearense se apresenta consti-
tuído de um grande número de centros locais, de pequena expressão. O número de cidades
de porte médio é reduzido como já foi analisado. É realmente Fortaleza, malgrado a pobre-
za reinante entre a maioria de sua população a grande cidade que comanda praticamente
toda a vida de relações do Estado. Ao mesmo tempo, ela impede que as cidades do interior
tenham uma ação maior nas suas respectivas áreas de influência. A fragilidade da atividade
industrial talvez explique a ação retraída do quadro urbano cearense, caracterizado pela
predominância de centros eminentemente terciários. Nesse contexto, Fortaleza domina
e controla praticamente todas as atividades estaduais, se firmando cada vez mais como o
polo concentrador – a metrópole cearense.

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SUDENE.
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304 //
Movimentos sociais urbanos e a conferência
popular pelo direito à cidade

Arlete Moyses Rodrigues1

Introdução

Entre os dias 3 e 5 de junho de 2022, em São Paulo, foi realizada a plenária final
da Conferência Popular pelo Direito à Cidade2, organizada pelos movimentos sociais e
intelectuais alinhados à proposta de reforma urbana. Este texto apresentará algumas das
propostas resultantes desse evento a fim de contribuir para a sua divulgação.
O Direito à Cidade implica uma perspectiva civilizatória na dimensão da vida coti-
diana de sujeitos coletivos em suas territorialidades. Tal direito adquiriu uma importância
maior no século XXI, não só porque a grande maioria das pessoas mora em cidades, mas
também porque a cidade é tida como o projeto de civilidade, de progresso (real ou imagi-
nário), colocando em pauta um horizonte para a vida.
O horizonte do possível é indispensável para que a sociedade avance, para que a con-
quista de direitos e de viver em condições adequadas se realize. Segundo Henry Lefebvre
(2008, p. 149), “o Direito à Cidade é semelhante aos que se encontram estipulados na
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Declaração Universal dos Direitos do Homem, como constitutiva da democracia”. Mesmo
que nunca cumpridas, as utopias, como a do Direito à Cidade, representam perspectiva
para a vida em todas as suas dimensões.
De uma maneira geral, pesquisas acadêmicas têm realizado análises teóricas e pro-
postas sobre os direitos. Nesse sentido, o Direito à Cidade também aparece, em sua es-
pecificidade, nesses estudos que contribuem para que a sociedade tenha clareza sobre a
opressão, a dominação e as possibilidades emancipatórias que se apresentam como uto-
pias concretas. As utopias permitem trazer para o centro as necessidades e os direitos que
1
Prof.ª Livre Docente. UNICAMP e UFPB. – moysesarlete@gmail.com.
2
Para evitar longas repetições, utilizaremos Conferência Popular quando estivermos nos referindo a 1ª.
Conferência Popular pelo Direto à Cidade, realizada em 2022.
305 //
estão nas margens dos debates e das propostas políticas liberais e neoliberais, como afirma
Boaventura de Souza Santos (1995). Em que pese que elas não possam ser concretizadas
em sua plenitude, é possível desvendar, por diferentes percursos, o que está escondido por
espessas cortinas de fumaça, ou seja, pela ideologia dominante.
Trazer para o centro o que está às margens quer dizer colocar o horizonte nas lutas concre-
tas que visam obter direitos os quais, embora escritos na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, presentes nas Conferências da ONU sobre os assentamentos humanos e expressos
nas agendas HABITAT I, HABITAT II e HABITAT III, estão muito longe do horizonte da
maioria. Portanto, colocar em evidência aquilo que pode auxiliar a alteração na dinâmica da
produção, da reprodução e do consumo das e nas cidades contribui para compreender as con-
tradições e os conflitos da vida cotidiana expressos na desigualdade da segregação socioespacial.

Conferência Popular pelo Direito à Cidade

Apresentamos, de forma sucinta, a Plataforma de Lutas, resultante da 1ª. Conferência


Popular, organizada pelos movimentos populares urbanos com vista a obter o Direito à
Cidade. Como vimos, o objetivo deste texto é difundir as ideias que perpassam as lutas
cotidianas que em geral ficam restritas aos próprios movimentos.
A ideologia dominante do período neoliberal oculta as causas da desigualdade socioes-
pacial, da conexão dos direitos com a realidade, esmaece a qualidade da produção cientí-
fica e, principalmente, as reivindicações dos trabalhadores que moram e vivem de forma
precária. A ideologia dominante cria e recria paradigmas científicos que mais ocultam do
que desvelam, com argumentos retóricos em que o atendimento de necessidades aparece
como prêmios e não direitos, ocultando a realidade em sua complexidade, além de retirar
a voz dos que lutam pela concretização da utopia pelo Direito à Cidade.
Dessa forma, o foco aqui é dar voz aos que lutam na vida cotidiana para obter os direi-
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tos humanos, expressos no artigo 6º. da Constituição Brasileira de 1988 (Brasil, 1988). Os
debates realizados durante o ano de 2022, em várias cidades, evidenciaram que o ideário
do direito à cidade, proposto pelos movimentos, não se contrapõe ao debate teórico rea-
lizado na academia e mostram a multiplicidade das questões que envolvem as lutas popu-
lares na vida cotidiana, num país como o Brasil, em que a diversidade de áreas urbanas se
expressa desde as metrópoles até as pequenas vilas e povoados.
Participaram da 1ª. Conferência Popular mais de 600 entidades de movimentos sociais e
de intelectuais que partilham dos princípios e das ações das lutas populares, como a AGB –
Associação dos Geógrafos Brasileiros3. No total, foram realizados 232 eventos preparatórios
3
Participaram da Conferência Popular pela AGB: André Pasti, Arlete Moyses Rodrigues e Gabriela Pinto.
306 //
em cidades onde havia movimentos organizados. Os debates resultaram em propostas, orga-
nizadas em 16 eixos temáticos e entendidas como plataforma de expressão das reivindicações
sobre o tema (Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022). As propostas apontam para
o atendimento das necessidades da maioria, em especial dos que têm baixos ou nenhum salá-
rio e que moram nas periferias das cidades, locais onde, em geral, não se tem infraestrutura e
equipamentos coletivos. Além disso, elas enfatizam a necessidade de moradia com garantia de
posse/propriedade e a mobilidade na diversidade da formação socioespacial brasileira.
Como metodologia, debates foram realizados em vários locais, e as propostas apresen-
tadas foram sistematizadas para aprovação na Conferência Nacional. Esse procedimento
foi semelhante às conferências organizadas pelo Ministério das Cidades e pelo Conselho
das Cidades, desde 2003 que, juntos, promoveram cinco conferências: a primeira se deu
em 2003, seguida pelas demais que ocorreram em 2005, 2007 e 2009/10 (Rodrigues,
2010) respectivamente, finalizando em 2012/13. A 6ª. Conferência, prevista para ser rea-
lizada em 2016, foi adiada e, posteriormente, cancelada com a extinção do Ministério
da Cidade e do Conselho das Cidades em 20194. Tornava-se urgente, assim, apresentar
propostas pelo Direito à Cidade com real participação social.
Embora com formato semelhante, tanto o conteúdo como a própria organização foram
diferentes das conferências promovidas anteriormente. Os movimentos sociais organizaram,
coordenaram e realizaram as atividades sem nenhum vínculo institucional, o que mostra seu
potencial e sua importância para que sejam ouvidos pela sociedade. A Conferência Popular
ampliou os temas debatidos, colocando questões que não haviam aparecido claramente nas
conferências dos Ministérios, apesar de sua importância, pois, naquele momento, as propostas
ficaram atreladas às atribuições de cada órgão executivo que fazia parte do governo federal5.
Agora, em 2022, ampliou-se também os grupos participantes: indígenas, quilombolas,
população em situação de rua, grupos de mulheres, LGBTQIA+, grupos que lutam contra
o racismo, grupos culturais, idosos e jovens e assessores técnicos para as edificações foram
inseridos, mostrando a diversidade da formação socioespacial brasileira. Desse modo, ape-
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sar de trajetória semelhante à institucional, os debates foram marcados pela diversidade e
pela heterogeneidade, com propostas que visavam ao direito a ter direitos.
O objetivo da Conferência Popular foi o de “convergir anseios, esperanças e lutas
pelo Direito à Cidade – entendido como o direito de construir uma nova cidade, uma nova
sociedade, com novas formas de relações entre os seres humanos e destes com o meio ambiente”
(Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 3, grifos nossos).

4
A 6ª. Conferência tinha como tema debater tanto a aplicabilidade da função social da cidade e da proprie-
dade como a participação social.
5
No período de 2003 a 2015, foram realizadas Conferências das Cidades, da Educação, do Meio Ambiente
entre outras que centravam os resultados nas atribuições de cada Ministério.
307 //
A moradia digna esteve presente em praticamente todos os grupos de debates, pois
ninguém vive sem ocupar espaço, sem ter endereço, sem ter um lugar para as necessidades
biológicas e sociais. Apesar de ela ocupar um dos centros das reivindicações, os movimen-
tos populares apontam para a utopia do Direito à Cidade na perspectiva de uma sociedade
sem desigualdades sociais e espaciais e da predominância do valor de uso do espaço urbano.

Os temas da Conferência

Apresentamos, por eixo6, alguns dos pressupostos contidos no documento final da


Conferência para dar visibilidade àquilo que pensam os movimentos populares. O objeti-
vo é trazer para o centro dos debates científicos o que em geral fica às margens, que é o que
os movimentos populares debatem e propõem.

Eixo 1. Educação, Arte, Cultura e Patrimônio Cultural

Neste primeiro eixo, propõem-se: universalização da educação infantil de qualidade; au-


mento do número de escolas e creches em tempo integral, em especial nas áreas periféricas;
transporte escolar gratuito, para permitir deslocamento e integração; alimentação de qualida-
de com gêneros alimentícios adquiridos da agricultura familiar; e atendimento psicossocial.
Além disso, há a indicação de que as escolas tenham bibliotecas, com salas multiuso e acesso
à internet, e ideias sobre os currículos escolares foram apresentadas, como a necessidade do
ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena. Dessa forma, aponta-se que o viver
na cidade não se resume à casa e que o morar dignamente prevê a necessidade de equipamen-
tos escolares para crianças e jovens com educação pública de qualidade, ao mesmo tempo
em que possibilita às mulheres exercerem atividades econômicas. Em vários outros eixos, é
destacada também a importância do ensino, a necessidade de políticas de transporte para
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permitir os deslocamentos e o protagonismo das mulheres, ficando evidente a expressão de


reivindicações para a vida cotidiana em suas várias dimensões, e que, mais do que a forma
urbana, os movimentos consideram o conteúdo da produção e do uso do espaço7.

6
Os temas foram separados por eixo e estamos seguindo a ordem da publicação deles.
7
Nas conferências organizadas pelo Ministério das Cidades e pelo Conselho das Cidades, das quais participa-
mos, quando apareciam temas específicos, as propostas eram remetidas ao Ministério que tinha a atribuição
de cuidar do assunto. Dessa forma, temas específicos da educação, por exemplo, eram encaminhados ao
Ministério da Educação.
308 //
Eixo 2. Democracia Urbana, Participação Social e Esfera Pública

No eixo da democracia urbana, a proposta é a de que haja ampla participação popular


para garantir a gestão democrática das políticas e dos planos urbanos, sendo necessário,
portanto, “Assegurar o planejamento urbano e políticas públicas voltadas à implementação
de infraestrutura urbana e social e à efetividade do direito à cidade nos bairros e territórios
periféricos” (Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 11).
Há uma preocupação em prover, nas áreas periféricas das cidades, infraestrutura e
equipamentos coletivos. Fica claro que a cidade é vista em sua totalidade e, para que isso
se torne real, deve-se ter uma participação social efetiva no planejamento e não apenas em
referendar agendas.
Além de apontar a necessidade de urbanização de favelas, como garantia de perma-
nência no lugar, o documento enfatiza que é necessário “Trazer a favela e a periferia como
tema central no debate do direito à cidade, reconhecendo os territórios, seus moradores e
movimentos populares organizados” (Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p.
13). O objetivo é trazer para o centro do debate aquilo que está às margens, pois as favelas
ainda continuam a ser tidas como lugares de bandidos, deixando de se analisar, correta-
mente, que ela é resultado do preço da terra, das edificações e dos baixos salários. O texto
da conferência deixa notório que a favela e as ocupações de terra/imóvel são decorrentes da
falta de condições de acesso à moradia digna e que, para sua inserção no urbano, é neces-
sário promover a urbanização, com implantação de infraestrutura, equipamentos coletivos
e transporte de qualidade.
A regularização fundiária de interesse social é fundamental para se obter o Direito à
Moradia e à Cidade. Por isso, a Conferência Popular (2022, p. 15) aponta a necessária
“regularização fundiária plena com perspectiva de implementar um processo de conquista
efetiva do direito de morar”. A regularização fundiária de interesse social com a garantia de

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permanência nos lugares ocupados para moradia foi alterada em 2017 (Rodrigues, 2019),
por isso, os movimentos colocam a necessidade de ela ser retomada de forma plena, ou
seja, garantindo a segurança de posse e a urbanização.

Eixo 3. Planejamento Urbano, Direito Urbanístico e ATHIS (Assessoria


Técnica de Habitação de Interesse Social)

Os movimentos que construíram essa plataforma de lutas articulam a necessidade de o


planejamento urbano ter programas de assistência técnica (ATHIS) nos estados e nos municí-
pios, fazendo com que haja formação e capacitação da população para resolver os problemas
309 //
de uso do espaço e de edificação das unidades, isto é, aplicando a lei que estabelece a assistên-
cia técnica para o planejamento e a produção de unidades habitacionais (Brasil, 2008).
Dessa forma, eles enfatizam a necessidade de se considerar os territórios de identida-
de, em suas práticas cotidianas, como referência para o planejamento urbano, ressaltando,
com isso, que é necessário “assegurar o planejamento urbano e as políticas públicas voltadas
à implementação de infraestrutura urbana e social e a efetividade do direito à cidade nos
bairros e territórios periféricos” (Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 11).
Para um planejamento que atenda às necessidades, deve-se ter controle social nos projetos e
na execução dos programas de construção de moradias, na delimitação de Zonas Especiais
de Interesse Social – ZEIS, na regularização fundiária de interesse social, na urbanização de
favelas e na implantação de equipamentos coletivos e de infraestrutura adequada.

Eixo 4: Favelas, Periferias e Bairros Populares na Luta Pelo Direito à


Cidade

Assim como em outros eixos, aqui se propõe que as intervenções urbanas incluam a
participação dos moradores como metodologia a fim de se exprimir a realidade e não os
padrões urbanos genéricos que não consideram a especificidade da vida. Dessa forma, o
documento aponta que dados gerais não permitem entender cada favela, cada bairro po-
pular em suas especificidades, dada a extensão e a diversidade do espaço urbano brasileiro,
e que apenas a participação social efetiva pode permitir que a produção da e na cidade seja
compatível com a realidade da população citadina.
Neste eixo, articulando-se com questões ambientais, os movimentos apontam como as
mudanças climáticas interferem na vida cotidiana, explicitando, assim, a necessidade de pro-
gramas que considerem tais mudanças, na medida em que elas aumentam os deslizamentos e as
enchentes, atingindo mais diretamente aqueles que estão nas periferias e nas áreas sem infraes-
trutura e mostrando, ainda, a necessidade de se realizar drenagens adaptadas à realidade, além
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de se ter espaços livres, tanto para as atividades lúdicas como para a retomada da vegetação.
A complexidade da produção do espaço urbano não pode ser relegada a projetos
pontuais que não consideram todas essas questões. Portanto, segundo o documento, é
fundamental “Trazer a favela e a periferia como tema central do debate do direito à cida-
de, reconhecendo os territórios, seus moradores e os movimentos como protagonistas na
formulação, produção e gestão de políticas públicas” (Conferência Popular pelo Direito
à Cidade, 2022, p. 13). Isso vem demonstrar que a utopia de trazer para o centro o que
estava às margens é importante para melhorar a vida cotidiana e buscar o direito à cidade8.
8
Em fevereiro de 2023, foi criada a Secretaria da Periferia, integrando o Ministério das Cidades. Tal secretaria
explicitou que a prioridade seria a urbanização de favelas.
310 //
Eixo 5. Propriedade e Posse da Terra, Função Social da Terra e da
Cidade, Espaço Público Urbano

O fundamental neste eixo é garantir o direito à moradia, priorizando o valor de uso.


Para isso, é preciso combater os imóveis/terras ociosas, a especulação imobiliária e a grilagem
em terras públicas. Dessa forma, articula-se a função social da terra ao que está exposto na
Constituição e no Estatuto da Cidade (Brasil, 2001). A função social da terra precisa estar liga-
da ao planejamento urbano e à participação social para que a cidade exerça sua função social.
Reafirma-se, com isso, a necessidade, como consta em vários outros eixos, de regulari-
zação fundiária plena com a “perspectiva de implementar um processo de conquista efetiva
do direito de morar” (Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 15), evitando
os despejos forçados que jogam na rua famílias inteiras, sem qualquer retaguarda. Nesses
despejos, o que prevalece é o valor de troca e não a necessidade e o direito de moradia e
esta é uma questão fundamental para mostrar como a ideologia dominante, apesar do que
consta no Estatuto da Cidade, prioriza os documentos formais de propriedade e não o
uso dela. Este eixo, então, relaciona direito à moradia e função social da propriedade e da
cidade para garantir o direito à cidade, ou seja, entende que o valor de uso é a base para a
concretização do direito à cidade.
A periferia é apontada como o lugar de maior vivência dos trabalhadores que possuem
baixos salários. Portanto, é necessário equipá-la com infraestrutura e equipamentos de
consumo coletivo para garantir a função social da cidade. Isso assinala a necessidade de
identificar e respeitar os espaços coletivos e de garantir a morada em áreas com infraestru-
tura e com equipamentos públicos, com espaços de lazer, enfim com o que se considera
que a cidade tem que oferecer aos citadinos em geral.

Eixo 6. Mulheres, População LGBTQIA+, Sexismo e Vivência nas Cidades

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A preocupação explícita na plataforma é o respeito à sociodiversidade. Nessa perspectiva,
trata de assegurar o direito de titularidade da posse da terra e da moradia às mulheres e à po-
pulação LGBTQIA+, para permitir sua autonomia e emancipação econômica. A titularidade
das mulheres na propriedade/posse da moradia é fundamental e tem sido objeto de uma longa
luta. A Conferência Popular, ao dar destaque à titularidade, mostra que o direito à cidade
precisa ser entendido em toda a sua complexidade. A autonomia e a emancipação das mulhe-
res estão presentes nos eixos da educação, da participação social, no planejamento, ou seja,
a ênfase é a necessidade do reconhecimento da igualdade, para se atingir o direito à cidade.
Para atingir os objetivos da igualdade, os movimentos apontam que é fundamental ter
políticas públicas universais, fortalecimento de programas de enfrentamento à violência em
311 //
geral e à violência doméstica em particular. A vida não se resume à moradia, mas sem um
lugar para morar, sem a possibilidade de as mulheres serem as titulares da posse/propriedade,
não há como aplicar as demais políticas que são fundamentais para a emancipação.

Eixo 7. Meio Ambiente, Saneamento, Saúde e Segurança Alimentar

O meio ambiente é compreendido em sua complexidade e, assim, apresenta-se a ne-


cessidade de estancar o criminoso desmatamento nas áreas urbanas e rurais, preservar e
recuperar os mananciais florestais e hídricos para influir positivamente nas mudanças cli-
máticas. Destaca-se, dessa forma, que é fundamental descontinuar o desmatamento, re-
florestar áreas degradadas, repor as matas ciliares, despoluir rios e córregos, para reduzir
riscos de deslizamentos e enchentes, relacionando a vida cotidiana às questões ambientais
de preservação e à ocupação desenfreada que visa à especulação imobiliária.
Neste eixo, é mencionada, também, a necessária demarcação das terras indígenas, das
comunidades tradicionais e das unidades de conservação como guardiões das florestas e
das condições naturais.
Com relação à saúde, além da alimentação saudável, aponta-se que o saneamento bá-
sico, o abastecimento de água potável, a coleta e a deposição adequada de resíduos sólidos
são indispensáveis. Com isso, são incluídas nas propostas a agroecologia e o uso coletivo
de áreas para hortas urbanas, como forma de permitir alimentação saudável e barata, des-
tacando o atendimento à saúde com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS.
Todavia, para que tudo isso se efetive, é ressaltado que a moradia, seja nas áreas urba-
nas ou rurais, deve ter acesso aos equipamentos públicos em geral e que todas as propostas
devem ser realizadas com a participação social no planejamento urbano.

Eixo 8. Transporte Público, Mobilidade e Acessibilidade


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Neste eixo, destaca-se, como fundamental, o combate ao racismo e ao assédio às mu-


lheres nos transportes coletivos. Além disso, observando-se que a mobilidade urbana está
relacionada a esses transportes públicos, os quais permitem, à classe trabalhadora, os des-
locamentos necessários, faz-se urgente a luta pela tarifa zero.
Destarte, os movimentos que compuseram a conferência popular apontam, ainda, a
necessidade de implantação de ciclovias que permitam maior mobilidade urbana e eco-
nomia de combustíveis fosseis, mostrando que a questão socioambiental é fundamental
para a proposição do direito à cidade, e destacam que as pessoas que moram na periferia
são as que mais necessitam de transportes públicos adequados, por isso, estes devem ser
expandidos.
312 //
A cidade, em sua totalidade, aparece quando a mobilidade urbana é articulada ao local
de moradia, à precariedade de transporte públicos, ao preço das tarifas, ao assédio às mu-
lheres e ao racismo. Portanto, as lutas sociais de moradia, de transporte, de equipamentos
e de meios de consumo coletivo mostram a sua diversidade e concretude.

Eixo 9. Moradia e ATHIS (Assessoria Técnica em Habitação de Interesse Social)

A moradia adequada, “sem discriminação de classe, renda, etnia, orientação sexual,


idade, comorbidade e crenças [...], deve contar com segurança de posse; qualidade e ha-
bitabilidade; garantia de serviços e equipamentos públicos de qualidade; [e] localização
adequada com acesso a tudo que a cidade oferece” (Conferência Popular pelo Direito à
Cidade, 2022, p. 25).
Para a concretização da moradia digna, destaca-se a necessidade de retomada de um
programa nacional de habitação, da regularização fundiária de interesse social e da luta
contra os despejos forçados. Sem lugar adequado para morar e sem garantia de permanên-
cia, não há possibilidade de vida digna.
Como forma de impedir a especulação imobiliária, o documento reforça que é fun-
damental a participação social para definir, em cada lugar, a função social da cidade e da
propriedade, destacando, ainda, o fortalecimento das mobilizações e da organização social
e a necessidade de implementação do trabalho técnico e social para que se atinja o direito
à uma moradia digna.

Eixo 10. Desigualdades Raciais na Vivência do Direito à Cidade

Neste eixo, o Estatuto da Igualdade Racial é apresentado como pressuposto para o com-
bate à discriminação étnica e social. Por isso, a criação de equipamentos em espaços públicos
de apoio a população negra, em especial às mulheres negras, segue como proposta. Para ga-
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rantir a igualdade de práticas religiosas, o documento destaca que todas as crenças, as práticas
e os cultos religiosos precisam ter lugar no espaço urbano, ressaltando a importância de ma-
nutenção dos territórios quilombolas e a preservação do patrimônio histórico-cultural, tanto
material como imaterial, da memória negra. A moradia adequada é relacionada às crenças,
aos territórios quilombolas e à preservação da memória e da história.

Eixo 11. Povos Originários e Populações Tradicionais

O reconhecimento e a demarcação de terras, no geral, e, em especial, quando se trata do


urbano, é fundamento para garantir o direito à cidade em sua plenitude. Assim, é preciso
313 //
“garantir o respeito, reconhecimento, preservação e retomada dos lugares sagrados, rituais,
práticas espirituais e as religiosidades, considerando a diversidade das cosmovisões e asse-
gurando a laicidade do Estado dos povos indígenas, populações tradicionais, quilombolas,
ribeirinhos, ciganos, extrativistas, pescadores artesanais, faxineiros, caiçaras, marisqueiros,
quebradoras de coco, entre outras” (Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 30).
Desta forma, este eixo e suas propostas mostram que, para os movimentos, o respeito
à diversidade e às formas de vida é inerente à luta pelo Direito à Cidade. Por isso, eles pro-
põem que, nos diferentes espaços ocupados, reconstrua-se a vegetação nativa, fazendo com
que as moradias estejam em harmonia com as florestas, com as matas e com os rios. Como
em outras propostas, aqui também é importante que a moradia seja integrada às fontes de
vida e ao meio ambiente, além de se ter efetivado o respeito aos territórios indígenas, qui-
lombolas, de populações tradicionais, pois, sem isso, tal direito é apenas formal e não real.

Eixo 12. Trabalho e Renda

As propostas sobre trabalho e renda estão centralizadas nas formas de trabalho predomi-
nantes na periferia, ou seja, na relação empregatícia informal. Assim, não aparece no docu-
mento, as questões estruturais sobre trabalho e renda, mas o que diz respeito à vida cotidiana.
Dessa forma, propõem-se a valorização do trabalho em cooperativa, envolvendo tra-
balhadores da cultura, ambulantes, restaurantes populares e coletores de resíduos sólidos.
Muitos desses trabalhadores vivem nas cidades, mas não são reconhecidos como cidadãos
que produzem e contribuem com a vida nesses locais. É nesse sentido que a Conferência
Popular deu destaque ao chamado trabalho informal, articulando o trabalho com a renda
e propondo um programa de renda básica cidadã.
Ao mesmo tempo, mostrou-se que a questão dos transportes e os deslocamentos são
fundamentais, retomando, assim, a proposta da tarifa zero ou, no limite, meia tarifa para
os trabalhadores informais. Desse modo, busca-se mostrar o valor das atividades que são
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exercidas para os que estão fora do mercado formal de trabalho que, em geral, são mora-
dores das áreas periféricas urbanas e sem meios de deslocamentos adequados.

Eixo 13. Recursos Públicos e Orçamento

Neste eixo, há a defesa de uma reforma tributária com aumento de impostos sobre grandes
fortunas e, ao mesmo tempo, uma diminuição de impostos sobre consumo em geral que é o que
mais onera os trabalhadores. Há, também, a reivindicação, somada a uma proposta geral da so-
ciedade, da imediata revogação da Lei de Tetos de Gastos que limita os investimentos públicos9.
9
Estava em votação, no final de agosto de 2023, a nova lei de Regime Fiscal que altera a Lei de tetos de gasto.
314 //
Dessa forma, propõem-se que, nos “orçamentos municipais, os recursos sejam distri-
buídos entre os bairros de acordo com indicadores de vulnerabilidade social” (Conferência
Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 35), ou seja, que essa distribuição se dê, em espe-
cial, nas periferias sem infraestrutura.
Percebe-se que a proposta é haver uma articulação entre o uso de recursos e a partici-
pação social, em especial com orçamentos públicos participativos, como já apontado no
eixo sobre planejamento urbano. Isso deixa evidente que, para se atingir o direito à cidade,
são necessários recursos públicos que devem ser distribuídos de acordo com critérios e com
a participação social.

Eixo 14. Segurança Pública

Além de se constatar a ausência de equipamentos que cuidam da segurança pública, ou


seja policiamento adequado e unidades de atendimento, este eixo ressalta a necessidade de
desmilitarizar as forças de segurança, propondo uma política de formação dos policiais em
direitos humanos para que a diversidade seja reconhecida e respeitada.
A ideia central é a de que a política de segurança pública tenha como princípio central
a garantia de direitos e a integração social e territorial. O direito à cidade é assim pensado
não apenas em equipamentos de segurança, mas também no atendimento real e concreto
das necessidades, das diversidades e dos direitos sociais e políticos.

Eixo 15. População em Situação de Rua

Ao se ter clareza de que este segmento social vive em situação de risco, decorrente de
várias questões pessoais e sociais, propõem-se a implementação de programas de moradia
que possam atender às necessidades especificas de renda, de segurança alimentar, de saúde
física e mental, com assistência social, e de educação em suas diversas modalidades.
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A rua não permite a realização das necessidades básicas, desse modo, é preciso um tipo
de moradia que atenda às características específicas desse grupo social, algo que só poderá
ser construído com a participação da própria população em situação de rua. As propostas
deste eixo apontam, também, para a necessidade de se realizar um levantamento que con-
sidere o número e as características da população que vive na rua, o que não tem sido feito.
A inserção de propostas específicas para aqueles que vivem em situação de rua de-
monstra que os movimentos populares estão atentos, tanto em relação à produção da
moradia e da cidade em geral, como à diversidade social.
315 //
Eixo 16. Jovens e Pessoas Idosas

Em que pese que os jovens e as pessoas idosas participaram dos debates de outros eixos
e considerando que, nas cidades, pessoas de todas as idades residem e circulam, foram
apresentadas algumas propostas, ponderando que os idosos podem não se enquadrar em
ofertas de casa própria. Assim, essas propostas específicas para esse grupo que vive preca-
riamente e sem políticas sociais atentam para programas de locação social e instauração de
instituições que acolham em longa permanência. Como em todas as proposições, obser-
vou-se o cuidado de construir propostas com a participação dos próprios idosos.
Na outra ponta, dado o desemprego, muitos jovens não têm atividades e também precisam
de espaços de convivência. Por isso, as propostas ressaltam a necessidade de políticas nacional,
estaduais e municipais para atendimento, formação e qualificação profissional desses jovens.
Fica mais uma vez demonstrado que os movimentos, além de se preocuparem com
a produção de casas, também se preocupam em equipar as cidades com infraestrutura e
equipamentos, para todos os citadinos, em todas as etapas de sua vida e organização.

Considerações Finais

A plataforma de lutas resultante da Conferência Popular deixa evidente que o Estado


capitalista precisa garantir que o Direito à Moradia prevaleça em relação à propriedade
privada, seja com a produção de moradias populares de qualidade e bem localizadas, seja
com a urbanização de favelas e a regularização fundiária plena, com ênfase na titularida-
de para as mulheres. Tal plataforma mostra, também, a necessidade de programas que
atentem para a igualdade racial, e para o atendimento de moradia e infraestrutura para as
comunidades tradicionais e povos originários, além de preocupar-se com o imperativo de
desenvolvimento de programas sociais e habitacionais para a população em situação de
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rua, para os idosos, e políticas de atendimento social para os jovens e adolescentes.


A periferia pobre está no centro dos debates, pois é nesse local onde mora a maioria
dos trabalhadores de baixa ou nenhuma renda. Ao se ressaltar que a favela e as ocupações
são decorrentes da falta de condições de acesso à moradia digna e que é necessário promo-
ver a urbanização, com implantação de infraestrutura e equipamentos coletivos e trans-
porte de qualidade, leva-se para o centro as questões pouco consideradas em programas
governamentais. O transporte público, a mobilidade urbana, o ambiente sadio são outros
destaques importantes. A moradia digna é o elemento que se relaciona com o trabalho,
com a propriedade da terra, com o lugar que cada moradia ocupa na cidade, com a neces-
sidade de equipamentos e meios de consumo coletivos, com o fim dos despejos forçados,
316 //
com o respeito à diversidade de gênero, de cor, de idade, de culturas e religiosidade, bem
como dos diferentes trabalhos que exercem.
O Direito à Moradia está contido no Direito à Cidade, mas a moradia tem de ser en-
tendida na sua relação com o trabalho para evidenciar que morar em favela, em cortiços,
em casas precárias, na periferia, é resultado da acumulação do capital que não paga o que
é estipulado pela Constituição e pelas Leis trabalhistas.
Para auxiliarmos a construção de utopias concretas, é preciso mostrar que tanto a
moradia como direito, quanto a moradia como necessidade contrapõem-se à mercadoria
terra/casa urbana. São dialeticamente indissociáveis como parte das contradições do viver
no modo de produção capitalista.
“Se a cidade é síntese das contradições e das injustiças de nosso capitalismo periférico
e dependente, é o lugar da expressão e da manifestação da diversidade e das resistências”
(Conferência Popular pelo Direito à Cidade, 2022, p. 3). A Conferência Popular constitui
a afirmação da capacidade dos movimentos populares de “reconhecer as diferenças entre os
muitos movimentos e lutas urbanas e, ao mesmo tempo ao promover a convergência dessa
enorme e diferenciada potência existente em nossas cidades” (2022, p. 5).
Pretendemos, portanto, ao expor as propostas da Conferência popular, contribuir para
a conquista da igualdade socioespacial e mostrar que a cidade, palco de disputas, como dizia
Milton Santos, é também o lugar de proposições de solução e de esperança. Intelectuais e
movimentos sociais têm a mesma perspectiva em relação ao Direito à Cidade, isto é, sabem
que é o local onde se pode ter outra forma de produzir, onde predomine o valor de uso.

Referências bibliográficas

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Constituição da


República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Diário Oficial da Uni, 05 de outubro de 1988
___, Lei n.º 10.257/2001. Estatuto da Cidade. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 10 de julho As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

de 2001.
___, Lei 11.888/2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para
o projeto e a construção de habitação de interesse social. Brasília, DF, Diário Oficial da União,
24 de dezembro de 2008.
Conferência Popular pelo Direito à Cidade. Plataforma de Lutas pelo direito à Cidade. São Paulo,
2022, Disponível em: https://forumreformaurbana.org.br/plataforma-de-lutas-pelo-direito-a-
-cidade/. Acesso em: set. 2023.
Lefebvre, Henry. 2008. Espaço e Política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.
Rodrigues, Arlete Moysés. Conselho das Cidades – Uma Avaliação. 2010. Revista Terra Livre.
Associação dos Geógrafos Brasileiros, São Paulo, ano 26, v.1, n.º 34, p. 1-281, jan.-jun./2010.
317 //
___, A propriedade da terra como um elemento da desigualdade territorial nas cidades brasileiras. 2019.
Ibero Geografias n.º 26. Coleção Iberogeografias, Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Cooperação e
Desenvolvimento Territorial, Guarda/Lisboa, v. 36, ed. 41036, p. 195-206, 2019.
Santos, Boaventura Souza. 1995. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortes Editora.
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318 //
A (IN) sustentável leveza de viver na
Comunidade Vila Dois Rios – Ilha Grande
– Angra dos Reis– RJ:
territórios e/ou territorialidades?

Carla Taciane Figueiredo1 Ricardo Silva2


Sergiana Santos3

Analisar o cotidiano da Vila Dois Rios, Angra dos Reis-RJ onde localiza-se o Ecomuseu
Ilha Grande requer diálogo interdisciplinar. A complexidade geográfica no acesso, a con-
figuração sociohistórica, socioambiental, e vivência antropológica enquanto realidade em-
pírica de estudos demonstra a relevância sócio cientifica da pesquisa. Inquietações iniciais:
Como a comunidade do entorno do ECOMIG percebe a instituição e atividades desen-
volvidas? Quais os conflitos socioambientais presentes na Vila Dois Rios, Ilha Grande
– Rio de Janeiro, estas originaram objetivos como: analisar a representação do ECOMIG
para comunidade da Vila Dois Rios. Identificar demandas comunitárias, compreender a
perspectiva teórica da sustentabilidade, contradições socioeconômicas, e políticas vivencia-
das pela comunidade da Vila Dois Rios.
Os princípios heurísticos da pesquisa se fundamentaram nas questões históricas com-
preendidas na revisão sistemática RUSEN, (2007), classificação das fontes, observação
participante durante imersão etnográfica entre os meses de janeiro, fevereiro e março de
2023 na Vila Dois Rios-Ilha Grande-Rio de Janeiro. O método histórico dialético e et-
nográfico foram utilizados para responder o problema da pesquisa e cumprir os objetivos As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

propostos. A História oral como técnica, segundo Freitas (2006) e a entrevista semies-
truturada como instrumento de pesquisa, permitiu os sujeitos entrevistados residentes
da Vila Dois Rios, e agentes sociais da comunidade explicitar as principais dificuldades e
seu insustentável cotidiano. O fio condutor teórico sobre sustentabilidade Sachs (2010),
reflexão sobre as contradições socioeconômicas, territoriais vivenciadas na comunidade
Vila Dois Rios, fundamentou-se no método histórico dialético conforme Coelho (2010).

1
carlatacianeefigueiredo@gmail.com
2
ricardosilva.ufal@gmail.com
3
sergianasantos1010@gmail.com
319 //
A abordagem dialética como pressuposto teórico metodológico na análise das relações
contraditórias entre os princípios que definem a sustentabilidade versus as condições sócioe-
conômicas, vivenciadas pela comunidade Vila Dois Rios, permitiu identificar quais ações do
sujeito que na reciprocidade constituem a singularidade do acontecimento (sobreviver) ou
mesmo do objeto de estudo. Os moradores residentes da Vila Dois Rios, sujeitos da pesquisa,
e o objeto de estudo “contradições explícitas (infraestrutura, oferta de serviços, relação tra-
balho, conflitos socioambientais,) e contradições implícitas na Vila Dois Rios” inqueriram
uma investigação das relações estruturais, com a finalidade de identificar quais características
as relações de trabalho apresentam, tendo em vista concepção ECOMUSEU4. Investigar as
condições de trabalho existentes na comunidade Vila Dois Rios enquanto fenômeno histó-
rico pressupõe enxergar essa categoria conceitual e sua função analítica diante do aconteci-
mento histórico de institucionalização do ECOMIG e CEADES.
Os resultados contribuíram epistemologicamente com o conhecimento sobre o
Ecomuseu da Ilha Grande, explicitaram informações sobre a percepção da comunidade do
entorno sobre o ECOMIG, possibilitaram compreender coma a dimensão dos atores sociais
promovem territorialidades e reterritorialização das instituições e da comunidade da Vila
Dois Rios, principalmente após a inserção da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

1. Concebendo o Espaço, Território, a realidade empírica: percorrendo


a Vila Dois Rios

A realidade de estudo investigada, Vila Dois Rios, na Ilha Grande no Rio de Janeiro
precisa ser compreendida a partir do plano conceitual das categorias territórios, territorialida-
des, espaço. Nessa perspectiva, Santos (2006, p.39), geográfico crítico, estabelece “O espaço
é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de
objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no
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qual a história se da”, isto é, o espaço é o resultado dos objetos criados pelo homem, junto
as ações que é a vida que anima e dá intencionalidade às coisas. Assim, para esse autor, é a
relação entre sistemas de ações e sistemas de objetos, que forma o Espaço Geográfico.
Henri Lefebvre (2000, p.111), outro geógrafo crítico, compreende “o espaço (social)
não é uma coisa entre as coisas, um produto qualquer entre os produtos; ele engloba as
coisas produzidas, ele compreende suas relações em sua coexistência e sua simultaneidade:

4
Segundo Viviane Valença (2020., p.78) A ideia de Ecomuseu vai se desdobrando no mundo, a partir desta
perspectiva. No Brasil, em especial, tornou-se um símbolo de identidade comunitária capaz de encontrar
um meio de excepcionalidade centrada no acesso aos meios de apropriação do patrimônio local, utilizando-o
como memória coletiva e servindo aos interesses de um grupo que buscava reorientar a sua identidade.
320 //
ordem (relativa) e/ou desordem (relativa).” Dessa forma, o Espaço é o produto resultante
das relações sociais e de poder que acontece na sociedade moderna.
Em primeiro lugar, a concepção de território que Haesbaert traz é de uma di-
mensão espacial que se revela em processos de dominação mais concretos, tanto
pela produção material quanto em termos jurídico– políticos. É também um espaço
apropriado em termos imateriais na produção de Identidade, subjetividade e sim-
bolismos com certo lugar. O território também assume um viés multidimensional
(político-jurídico, econômico e culturalista) e os movimentos dos agentes e grupos
entrando e saindo de territórios (tidos como seus e de outros) manifesta os processos
de desterritorializações e (re) territorializações (p. 20, FUINI, 2017).

A investigação implica compreender a dimensão espacial e dominação presentes na


Vila Dois Rios, Ilha Grande. A apropriação sócio espacial, relaciona-se tanto com a repro-
dução das relações de poder, como a significação das identidades, do pertencimento dos
moradores a Vila e a Ilha Grande. As relações de poder se estabelecem inicialmente pela
Institucionalização do Instituto Penal Candido Mendes, considerando a espaço temporal de
1940 a 1994, tempo do presidio, 1997 a 2023, período onde a relação de poder presente
na Vila Dois Rios, tem como atores a Universidade Estadual do Rio de Janeiro representada
pelo CEADES e Ecomuseu Ilha Grande, este a partir de 2002. A dinâmica dos agentes e
grupos que se territorializam e se reterritorializam foi perceptível durante observação parti-
cipante sistemática e revisão bibliográfica, explicitou-se ainda processos de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização, dos agentes sociais presentes no espaço.
Segundo Araújo (2010, p. 02) o Instituto Penal Candido Mendes,
[...] atua no imaginário de visitantes e na percepção dos residentes, já que a ilha
era tida como “lugar proibido” e “inacessível” pelos primeiros e “local de trabalho”
para os últimos. Acredita-se que a visão de cada um deles interfira no significado do

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presídio para o turismo e para o modo de vida local por configurarem lógicas dis-
tintas. Desta forma torna-se possível identificar como ocorreu a “invenção” da Ilha
Grande enquanto atrativo turístico”.

As relações de poder são ressignificadas em cada período, condicionadas aos proces-


sos históricos de transformação do território e do espaço. Como afirma Milton Santos
(2005,255) “O território são formas, mas o território usado são objetos e ações, sinônimo
de espaço humano, espaço habitado”.
A “invenção” da Ilha Grande enquanto território turístico obedece uma lógica da
simultaneidade, as formas de vida que constituíram o território se mantem e resistem as
321 //
territorialidades que se constituem, e acontecem simultaneamente, como a valorização do
potencial turístico, a preservação ambiental, e ressignificação local.
De acordo como Santos (2005, 256): Esse acontecer simultâneo, tornado possível gra-
ças aos milagres da ciência, cria novas solidariedades: a possibilidade de um acontecer soli-
dário, malgrado todas as formas de diferença, entre pessoas, entre lugares. “Hoje, quando
vivemos uma dialética do mundo concreto, evoluímos da noção, tornada antiga, de Estado
Territorial para a noção pós-moderna de transnacionalização do território” Na realidade,
esse acontecer solidário apresenta-se sob três formas no território atual: um acontecer ho-
mólogo, um acontecer complementar e um acontecer hierárquico.5
A Vila Dois Rios, é marcada historicamente pelo poder hierárquico do sistema escra-
vagista , em seguida pelo sistema prisional (1940-1994), a institucionalização do Parque
Estadual da Ilha Grande em 19716, e posteriormente as microvilosidades do poder via
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1998 a 2023. A presença dessas instituições pro-
movem um processo de territorialização e desterritorialização das atividades, das relações
econômicas e sociais da comunidade, sendo importante discutir essas categorias. Os agen-
tes sociais residentes na vila, são submetidos ao poder, escravagista do sistema colonial,
Estatal, e institucional, cada um sem eu tempo.

2. As implicações do processo de territorialização e desterritorializção


nas atividades socioambientais do entorno de Unidades de Conservação

2.1 Unidades de Conservação

As áreas protegidas são espaços territorialmente demarcados cuja principal função


é a conservação e/ou a preservação de recursos, naturais e/ou culturais, a elas associa-
dos (MEDEIROS, 2006). O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)
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5
Segundo Milton Santos: O acontecer homólogo é aquele das áreas de produção agrícola ou urbana, que se
modernizam mediante uma informação especializada e levam os comportamentos a uma racionalidade pre-
sidida por essa mesma informação que cria uma similitude de atividades, gerando contigüidades funcionais
que dão os contornos da área assim definido. O acontecer complementar é aquele das relações entre cidade
e campo e das relações entre cidades, conseqüências igualmente de necessidades modernas da produção
e do intercâmbio geograficamente próximo. Finalmente, o acontecer hierárquico é um dos resultados da
tendência à racionalização das atividades e se faz sob um comando, uma organização, que tendem a ser
concentrados e nos obrigam a pensar na produção desse comando, dessa direção, que também contribuem
à produção de um sentido, impresso na vida dos homens e na vida do espaço. (2005, p.256)
6
Grande Decreto Estadual n.º 15.273, de 26 de junho de 1971. Redução de 2/3 da área protegida: Decreto
Estadual n° 2.062, de 28 de agosto de 1978. Ampliação e consolidação da área total do Parque, quando foram
acrescentadas todas as demais terras localizadas acima da cota de 100 m, excetuando-se aquelas pertencentes à
Reserva Biológica Estadual da Praia do Sul: Decreto Estadual n.º 40.602, de 12 de fevereiro de 2007.
322 //
brasileiro foi legalmente regulamenta pela Lei de 9.985 de 18 de julho de 2000, fixou cri-
térios e normas finalizando a implantação e gestão de Unidades de Conservação. O SNUC
efetivou a regulamentação das unidades de conservação brasileiras, incorporou as áreas
protegidas já previstas em lei e possibilitou inserção de outras categorias. Além disto, defi-
ne e regulamenta as categorias de unidades de conservação nas instâncias Federal, Estadual
e Municipal (RYLANDYS; BRANDON, 2005).
No seu Art. 7º o SNUC especifica que as unidades de conservação integrantes divi-
dem-se em dois grupos, com características específicas:
• Unidades de Proteção Integral que inclui Parques Nacionais, Reservas Biológicas,
Estações Ecológicas, Monumentos Naturais e Refúgios de Vida Silvestre.
• Unidades de Uso Sustentável que permitem diferentes tipos e intensidades de interfe-
rência humana, com a conservação da biodiversidade como um objetivo secundário
que são: Floresta Nacional, Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante interesse
ecológico, Reservas Extrativistas, Reservas de Fauna, Reservas de Desenvolvimento
Sustentável e Reservas Particulares do Patrimônio Nacional. Como o Parque
Estadual da Ilha Grande, classifica-se como Unidade de proteção Integral essa pes-
quisa tem como análise principal essa categoria.

Art. 11. O Parque Nacional que tem como objetivo básico a preservação de
ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a
realização de pesquisas cientificas e o desenvolvimento de atividades de educação e in-
terpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
Ele é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus
limites serão desapropriadas, de acordo com que dispõe a lei (BRASIL, 2000, p. 5).

É perceptível que as unidades de proteção integral quando instituídas normalmente


ocasionam áreas de conflitos socioambientais, esse fato decorre da falta de diagnósticos
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participativos envolvendo as comunidades do entorno. Nessa perspectiva pode se afirmar
que medidas preservacionistas impactam na reorganização territorial das relações societais
em diversas dimensões: econômica, política, cultural das comunidades tradicionais e/ou
que convivem no entorno.
Para caracterizar o cotidiano da Vila Dois Rios, fez necessário compreender as relações
sociohistóricas situadas. A relações de poder historicamente construídas na Vila Dois Rios,
remete a um tempo pretérito marcado por relações hierarquicamente estruturadas. A con-
vivência com a comunidade, especificamente os moradores da Vila Dois Rios com a regula-
mentação de uma unidade de proteção integral é harmônica. Não se verifica pesca predatória,
extrativismos animais, minerais ou vegetais, vários pesquisadores conseguem desenvolver
323 //
pesquisas científicas em parceira com o CEADES74. Já o Ecomuseu atua na preservação da
memória e do patrimônio do lugar. Entretanto, é visível os conflitos socioambientais no ter-
ritório. A finalidade distinta das instituições presentes e das praticas sociais, o pertencimento
da comunidade ocasionam conflitos constantes, estes oriundo desde 1903 durante a Colônia
Correcional de Dois Rios ate a contemporaneidade com a atuação do CEADES, este por sua
vez promove uma invisibilização dos moradores, enfatizando a produção cientifica no campo
da biologia, oceanografia, ecologia. Os conflitos sociais podem ser historicizados, assim os
fatos comprovam a resiliência, e a marca conflituosa do lugar.

3. Historicizando a Vila Dois Rios – Ilha Grande – Rio de Janeiro

Em 1903 a Colônia Correcional de Dois Rios (CCDR), segundo Santos (2006) em seu
artigo “Os Porões da República: A colônia Correcional de Dois Rios entre 1908 e 1930.
Explicita o contexto histórico que originou a construção da CCDR, a principio trata-se de
uma medida de “higienização social das ruas do Rio de Janeiro”, Santos (2006) introduz a dis-
cussão mencionado o “ isolamento dos indesejáveis”. Realizando uma retrospectiva informa:
Nos séculos anteriores, a condição de isolamento da Ilha Grande propiciou pro-
teção e liberdade para aqueles que procuravam refúgio da ordem instituída. As his-
tórias mais antigas da Ilha envolvem relatos sobre a ocupação daquele território por
tamoios, piratas e mercadores ilegais de escravos. Ao longo do século XX, entretanto,
uma transformação importante aconteceu, pois de refúgio a ilha tornou-se o lugar
de suplício dos que ameaçavam a lei. Não só as autoridades passaram a ter controle
sobre lugares mais distantes, como os colocavam à sua disposição para o controle da
ordem. (SANTOS, 446, 2006).

Caracterizada como território insular de proporções consideráveis, a Ilha Grande


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(Figura 4), é a segunda maior ilha oceânica do Brasil, localiza-se entre os Estados do Rio
de Janeiro e São Paulo, fica a 150 km do Rio de Janeiro e a 400 km de São Paulo, estes,
centros urbanos importantes do país, sociopolítica e economicamente.
As relações de poder o acontecer hierárquico, como caracteriza Santos (2004) são explícitos
a Colônia Correcional. Inicialmente a CCDR, tem como finalidade aprisionar, alcóolatras,
bêbados, moradores de rua, capoeiras e “vadios, ou seja, pessoas que não exerciam atividades
remuneradas, Santos (2006) complementa as décadas de 1930 e 1964 o objetivo das Colônias
Agrícolas se direcionam a cumprimento do período final das penas dos sentenciados.

7
Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável, Vinculado a Universidade Estadual do Rio
de Janeiro.
324 //
As influências oriundas de outros países como Estados Unidos da América, com o
modelo de prisões de segurança máxima como ALCATRAZ, mobilizaram o governo bra-
sileiro a institucionalização do Instituto Penal Cândido Mendes na década de 1940, com
capacidade para mil detentos de alta periculosidade, o denominado “caldeirão do diabo”
“gestou a primeiras lideranças de facções criminosas, iniciando pelo comando Vermelho,
proponente de ações criminosas, envolvendo tráficos, assalto a banco etc. os relatos orais
informam que as instalações e a criminalidade interna do presídio simultaneamente con-
vivia com maus tatos, fuga constantes e abuso de poder.
Santos (2006) afirma:
Distante do objetivo declarado de recuperar os contraventores, a Colônia secarac-
terizou por isolar indivíduos, em sua grande maioria, pobres, negros,desassistidos, e que
morriam em poucos meses de doenças resultantes de má alimentação e falta de higiene,
como beribéri e disenteria. Além disso,à medida que manifestações de ruas e organiza-
ções políticas melhor seorganizaram, a CCDR passou a receber não apenas indivíduos
sem renda ou residência fixa, mas um número crescente de manifestantes políticos.

A organização criminosa originaria do IPCM o “Comando Vermelho”, responsável


por inúmeras ações criminosas, dentro e fora do presídio, e pelo tráfico de drogas. Durante
seu funcionamento, o IPCM empregava em torno de 120 pessoas, que moravam na Vila
Dois Rios ou na Vila Abraão.
Concordando com Santos (2006), a justificativa e finalidade da CCDR, de recupera-
ção de contraventores, se contradiz, pois a colônia isolou indivíduos em sua grande maioria
pobres, negros, sem assistência, muitos chegavam a óbito em poucos meses com doenças
como beribéri e diarreia, desnutrição e condições precárias de saneamento. Utilizou a mão
de obra prisional nas atividades de infra estrutura, domestica, de jardinagem, campone-
sa Gradativamente os movimentos sócio políticos somados a ditadura, originou a prisão
de componentes de organizações político partidárias, como Graciliano Ramos, Carlos
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Marighela, Cipriano Barata, ou seja a caracterização dos detentos se modifica, somando-se
aos indivíduos sem residência fixa, ou sem “trabalho” os manifestantes políticos, e crimi-
nosos oriundos de outros estados como de Estado do Pernambuco, Fernando de Noronha
compunha a população carcerária do Instituto Penal Cândido Mendes.
Santos (2006) complementa a ampliação do conceito de contravenção, constitui ma-
nobra para inserir os manifestantes políticos no IPCM, explicita que nos anos 1920 a re-
forma da legislação penal e inovação da repressão foram marcas do sistema penal brasileiro.
O controle sistemático objetivado pelo isolamento da Ilha Grande-RJ, assegurou relações
de poder territorializadas na Vila Dois Rios. Subsidiadas por uma comunicação praticamente
inexistente, fator este, que desencadeou poder imensurável as autoridades locais. Contradição
325 //
que percebemos na contemporaneidade, em pleno século XXI, onde as tecnologias de infor-
mação e comunicação são exponenciais, a capilaridade do poder exercido inicialmente pelo
diretor do presidio na década de 1920, e atualmente pela Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, representado localmente pelo Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento
Sustentável (CEADES) e pelo Ecomuseu Ilha Grande, tem o elemento fundamental a falha
de comunicabilidade existente entre a comunidade da Vila Dois Rios e a legislação consti-
tucional que regulamenta a condição cidadã brasileira. Essa circunstância nutre à ideia de
reorientação dos conflitos sociais, socioambientais interdependentes a subsistência humana.
O processo histórico apresenta as praticas de poder e suas implicações, nos remetem
a reflexão de Charbonnier (1983, p. 11) que afirma: A implementação da soberania terri-
torial do Estado, os instrumentos de conquista e de aprimoramento do solo, mas também
as lutas sociais ocorridas nessas circunstâncias – tudo isso forma a base de uma relação
coletiva com as coisas da qual vivemos hoje os últimos momentos.

3.1 A territorialidade entrelaçando as relações sociais na Vila Dois Rios

A territorialidade sempre foi relacionada com o meio animal, onde as espécies utili-
zavam de estratégias para defender seu território, em 1920 a noção de territorialidade foi
difundida nas relações sociais, como cita RAFFESTIN, (1993).
A história dessa noção está por ser feita [...]. Embora pressentida há mais ou
menos três séculos, essa noção só foi verdadeiramente explicitada pelos naturalistas
em 1920 [...]Howard por exemplo, que a definiu como “a conduta característica
adotada por um organismo para tomar posse de um território e defendê-lo contra os
membros de sua própria espécie. (RAFFESTIN, 1993 p.159)

Não diferente, nas comunidades tradicionais os representantes lutam para garantirem


seu espaço, preservar sua cultura e seus direitos. A territorialidade no Brasil assume o ca-
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ráter dos diversos grupos sociais formadores da identidade do país durante seu processo
histórico e suas inter-relações específicas com os ecossistemas que ocupam, além das rela-
ções sociais mantidas uns com os outros, transformando, assim, as parcelas do ambiente
em seus territórios, (LITTLE, 2002). A territorialidade está ligada às relações sociais e é
fruto da produção de cada território, o que a torna determinante para a construção de uma
identidade, cada território possui suas particularidades, ele reflete a multidimensão do que
é vivido pelos membros em coletivo (SAQUET, 2007; RAFFESTIN, 1993).
Na Vila Dois Rios a dimensão social se fundamenta no pertencimento ao lugar e me-
mória biográfica, esta por sua vez, vincula a historia individual e coletiva ao território, a
resiliência em permanecer mesmo com todas as dificuldades de sobrevivência, acesso aos
326 //
direitos básicos de saúde é marca fundamental entre os moradores que sobrevivem as rela-
ções ditatoriais do Estado. A vida insular, tem outra conotação, convivem com e luta pela
identidade caiçara pressuposto definitivo para os conflitos socioambientais.
O território, nesse sentido, decorre dos procedimentos de territorialidade de um grupo
social, que envolvem, ao mesmo tempo, suas formas de dominação político-econômica e
suas apropriações mais subjetivas e/ou simbólico-culturais (HAESBAERT, 2004).
O conflito mais evidente durante as entrevistas se referiam a mobilidade, e acesso a
transporte e a moradia. A Vila Dois Rios, é habitada por funcionários aposentados do
IPCM, dessedentes de militares, agentes penitenciários em conjunto com alojamentos
funcionais da UERJ. As residências são cedidas via Termo de Cessão e Uso entre o Estado
do Rio de Janeiro e Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Os moradores que vivem
no território desde a época do presidio requerem o direito a posse da casa, para assim ter
liberdade e melhorar condições estruturais, e eliminarem a instabilidade de conviver com
a imprevisibilidade de despejo, ou desapropriação pelo setor patrimonial da UERJ.
A disparidade de interesses, consequentemente, estabelece relações desiguais de apro-
priação do espaço e de controle das relações sociais de produção, configurando territoria-
lidades distintas.
O conceito de territorialidade humana envolve “o controle sobre uma área ou
espaço que deve ser concebido e comunicado”, mas ela é “melhor entendida como
uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou controlar recursos e pessoas, pelo
controle de uma área e, como estratégia, a territorialidade pode ser ativada e desati-
vada (HAESBAERT, 2004, p. 105).

De forma mais contundente, Haesbaert (2004, p. 105) define territorialidade como “a


tentativa, por um individuo ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas,
fenômenos e relacionamentos, pela delimitação e afirmação do controle sobre uma área
geográfica”, ou seja, o território. A conflito latente existe entre a UERJ e moradores que
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não satisfeitos com o controle da moradia, ou seja é visível uma territorialidade conflitan-
te, principalmente por conta do processo histórico de chegada da UERJ.
Para Heidrich (2009), essas territorialidades, adjetivadas por ele como conflitantes,
podem referir-se ao mesmo objeto, ao uso ou expectativa de uso, não é exatamente por
áreas delimitadas, por espaços85 representados, vividos e seus usos. Desta forma, não é
unicamente certa área em poder de alguém o fator da territorialidade. A relação que cria
nem sempre necessita do sinal da demarcação. Esse fenômeno é o que se verifica nas

8
Espaço, segundo Correia (2001), pode ser concebido como locus da reprodução das relações sociais de pro-
dução, isto é, reprodução da sociedade.
327 //
implicações decorrentes da implantação das UC’s do Parque Estadual da Ilha Grande,
CEADES, ECOMUSEU-Ilha Grande, e comunidade da Vila Dois Rios.

3.2. Fios de Ariadne: implicações da institucionalização e legislação na Vila


Dois Rios

O processo de institucionalização de Unidades de Conservação de Proteção Integral


insere os diversos territórios já existentes daquela localidade e os seus atores em uma nova
dinâmica social, política e econômica, norteada pelas premissas SNUC (2000). Essa dina-
micidade atinge de modos diferentes os atores sociais envolvidos explicitando e potencia-
lizando desigualdades de poder pré-existentes.
A definição de áreas para a preservação ambiental põe em relação, muitas vezes
de modo conflitante, uma demanda geral da sociedade pela conservação dos recur-
sos naturais e paisagens e os usos estabelecidos do lugar, muitos destes tradicionais.
Em relação às áreas protegidas, o espaço objeto de controle explicita-se pela de-
marcação e pelo estabelecimento de limitação ou impedimento de usos da terra.
(HEIDRICH, 2009, p.271).

Complementando a ideia de Heidrich, Robert Sack (1986) define tais unidades como
territórios, nos quais se tem o objetivo de manter o controle sobre os recursos, as pessoas
e suas ações. Já em outra concepção, a ocupação e o uso já realizados nessas áreas também
se constitui em expressão de território, assim como os vínculos de identificação de lugar.
Considerando que a delimitação de UC constitui-se como território, e o poder Estatal
de um Campus Universitário da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, assim como as
atividades já desenvolvidas pelas populações locais também se caracterizam como territórios
tendo em vistas as relações de poder exercidas. Pode-se afirmar então, que ocorre o fenômeno
de sobreposição de territórios. Neste contexto, entende-se o conceito de território como:
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O território [...] é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir


de relações de poder. A questão primordial, aqui não é, na realidade, quais são as caracte-
rísticas geoecológicas e os recursos naturais de uma certa área, o que se produz ou quem
produz de um dado espaço, ou ainda quais as ligações afetivas e de identidade entre um
grupo social e seu espaço. Estes aspectos podem ser de crucial importância para a com-
preensão da gênese de um território ou do interesse por tomá-lo ou mantê-lo [...] mas o
verdadeiro Leitmotiv é o seguinte: quem domina ou influencia e como domina ou influencia
esse espaço? Este Leitmotiv traz imbutida, ao menos um ponto de vista não interessado em
escamotear conflitos e contradições sociais. A seguinte questão inseparável, uma vez que
328 //
o território é essencialmente um instrumento de exercício de poder: quem domina ou
influencia quem nesse espaço e como? (SOUZA, 1995, pp.79-9).
Referindo-se ao o conceito de território apresentado anteriormente, Souza ainda afirma que:
Sem dúvida, sempre que houver homens em interação com o espaço, primei-
ramente transformando a natureza (espaço natural) através do trabalho, e depois
criando continuamente valor ao modificar e retrabalhar o espaço social, estar-se-à
também diante de um território, e não só de um espaço econômico: é inconcebível
que um espaço que tenha sido alvo de valorização pelo trabalho possa deixar de estar
territorializado por alguém. Assim como o poder é onipresente nas relações sociais,
o território está, outrossim, presente em toda a espacialidade social – ao menos en-
quanto o homem também estiver presente.(SOUZA,1995 p.96)

Fundamentado nos conceitos supracitados, a sobreposição de território acontece


quando um território (delimitação de UC) se impõe política e juridicamente sobre outro
território tradicionalmente já existente. Na Vila Dois Rios, Ilha Grande Rio de Janeiro, é
perceptível a sopreposição de territórios, numa analise inicial, a partir do Instituto Penal
Cândido Mendes as relações de poder estabelecidas tem um caráter hierárquico, centrali-
zada no Diretor do Presídio e expandindo se pelo território da Ilha Grande. Quando ocor-
re a implosão do presidio a comunidade local manifesta-se, num sentimento de abandono
e “desgoverno”, ausência de mandatários, lideranças, ou mesmo referencia de poder. A
estrutura do IPCM demolida através de uma implosão por ordem estatal, conforme figura 1,
impõe uma reterritorialização comunitária.

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Fig. 1 Implosão do Instituto Penal Candido Mendes, Fonte: https://patrimonioemfoco.blogspot.


com/2019/04/instituto-penal-candido-mendes-dois.html
329 //
Fig. 2 – Instituto Penal Candido Mendes Fonte: https://patrimonioemfoco.blogspot.
com/2019/04/instituto-penal-candido-mendes-dois.html

A implosão do IPCM, proporcionou na memória coletiva um sentimento de abando-


no, tendo em vista que o acesso a saúde dos presidiários se estendia aos moradores da vila,
o transporte, apesar de precário servia aos moradores, e a manutenção de trafegabilidade
da estrada de aproximadamente 9km da Vila Abraão a Vila Dois Rios era realizada pelo
Estado via IPCM.
As relações hierárquicas de poder são perceptíveis internamente ate mesmo na dis-
tribuição dos presos no próprio presídio, durante o regime militar, os “presos comuns”
ocupavam o térreo, o primeiro e o terceiro pisos do edifício central. Os “presos políticos”
ficavam em um regime ainda mais fechado, no segundo piso. Na imagem acima uma vista
aérea do presídio. A mão de obra utilizada nas construções da Vila Dois Rios foi predomi-
nante dos presidiários, circunstância esta, induzindo ao trabalho compulsório, conforme
figura (3) reafirmando as relações de poder.
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De acordo com o pensamento de Heidrich (2009), a delimitação de territórios é um


instrumento legal que garante um controle eficaz e limita o acesso e uso dos recursos naturais
das áreas protegidas, visando à preservação da natureza. Entretanto, se faz necessário associar
demandas sociais com a conservação ambiental, quando refere-se a comunidades que vivem
em territórios com unidades de conservação, como caracteriza-se a Vila Dois Rios.
As comunidades, através da legislação em vigor, tiveram a garantia do direito à ma-
nutenção de sua cultura, apesar de que o conflito mais explicito evidenciado durante os
meses posteriores a imersão etnográfica, foi a luta da comunidade pelo reconhecimento
enquanto comunidade tradicional caiçara. Na Vila Dois Rios o Fórum das Comunidades
Tradicionais reconhece a Vila Dois Rios como comunidade tradicional caiçara. Nisso, o
Poder Público deverá agir respeitando as próprias formas que o grupo utiliza na ocupação
330 //
Fig. 3 – Presidiários construindo edificações na Vila Dois Rios.https://patrimonioemfoco.blogspot.
com/2019/04/instituto-penal-candido-mendes-dois.html

da terra. Para que sejam protegidos e respeitados os modos de criar, fazer e viver das co-
munidades tradicionais é preciso garantir a propriedade cujo tamanho e características
permitam a sua reprodução física e cultural (MATTOS, 2005). Contudo, em todo país
as pessoas que compõe as comunidades remanescentes lutam para fazer valer o direito à
propriedade de suas terras. Na Vila Dois Rios o conflito mencionado pelos depoentes foi
referindo-se a posse das casas, hoje patrimônio gerido pela UERJ, como informado.
As atividades econômicas desenvolvidas atualmente na Vila Dois Rios atualmente ca-
racterizam-se como territorialidades, a apropriação do espaço antecede a institucionaliza-
ção do Campus da UERJ, especificamente o CEADES e posteriormente o Ecomuseu. O
CEADES além de vincular-se a pesquisas científicas, recebe discentes em suas instalações
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para aulas de campo, os mesmos são alojados e contribuem financeiramente com a hospe-
dagem e alimentação. No ECOMIG são comercializados produtos, oriundos da comuni-
dade, outra atividade presente na Vila é realização do transporte de turistas entre as praias
da Ilha Grande – RJ, executada por dois moradores da Vila Dois Rios. Essas circunstancias
permitem afirmar o processo de desterritorialização das atividades exercidas no período do
presídio por presidiários e geridas pelos carcereiros como (construção, pesca, produção de
alimentos como pães e distribuição entre os moradores da Vila), uma vez que suas práticas
não se adequavam à legislação trabalhista. Ainda durante a vigência do presidio a prática
da pesca para fornecimento de sardinha ao conjunto de indústria vigentes desde a década
1930 até 1970 foram recorrentes. Essas industrias de sardinhas prensadas eram sediada nas
proximidades na Vila Abrão, em Bananal, Matariz, praia vermelha, Araçatiba, Sitio forte,
331 //
a pesca realizada pelos presidiários abasteciam o presidio e ainda eram comercializadas.
Após o declínio das atividades pesqueiras na década 1980, algumas fábricas foram fechadas
impactando a situação econômica da Ilha Grande.
Atualmente o processo de reterritorialização econômica ocorre em Provetá, conside-
rado o principal núcleo pesqueiro do Estado, um dos maiores barcos pesqueiros do litoral
sul de Rio de Janeiro. Na Vila Dois Rios as atividades de pesca são praticadas casualmente
por alguns moradores locais, apenas para consumo. Exporaticamente para comercialização
de refeições em dois restaurantes da Vila.
É importante frisar que essa desterritorialização acontece de acordo com as peculiari-
dades de cada território e o poder que essas unidades institucionais exercem na localidade.
No caso específico deste estudo é notória a diferença de domínio territorial existentes entre
o CEADES comparadas com ECOMIG. Enquanto o CEADES tem uma infraestrutura
que responsabiliza-se pela logística de transportes e manutenção da Vila Dois Rios ma-
nutenção da estrada em condições de trafegabilidade, o ECOMIG exerce forte influencia
sócio política na localidade. Condicionamentos estes, que dificultam gestão das relações
socioambientais na comunidade, tendo em vista ser explicito o conflito existente entre
a instituições, mesmo ambas pertencentes a UERJ. Evidente a relação comunidade-E-
COMIG caracterizada por uma harmonia discrepante em relação comunidade-CEADES.
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Fig. 4 – Mapa da Baía da Ilha Grande. Fonte: SANTOS, Gilberto et al, 2020.
332 //
Outro ator social que representa a comunidade é a Associação de Moradores da Vila Dois
Rios, que em reunião com a Reitoria explicitou algumas demandas comunitárias que tor-
nam insustentáveis a sobrevivência na vila, agente social composta por moradores locais.
A inexistência de atendimento médico é fator principal na negligencia aos direitos bá-
sicos de saúde, a comunidade tem assistência apenas em urgência emergência pelo Corpo
de bombeiros e posto de saúde da vila Abraão. O CEADES responsável pela mobilidade
dos moradores, colaboradores e servidores da UERJ, atende essa demanda com carros e
ônibus precários, vagas reduzidas destinadas a comunidade, tendo em vista que a priori-
dade são estudantes visitantes do local em aulas de campo. A trafegabilidade da estrada é
impraticável conforme Figura 5, e as condições de transporte são precárias.
De acordo com o mapa abaixo Figura (4) percebe-se que a Vila Dois Rios onde se
situa o Ecomuseu Ilha Grande, localiza-se na margem da Ilha mais distante do continente
e com acesso a mar aberto, enquanto a Vila Abraão situa-se nas proximidades das terras
continentais, Mangaratiba-RJ e Angra dos Reis-RJ.
As dificuldades de deslocamento entre a Vila Abraão e Vila Dois Rios, ocasionaram
a mudança necessária e providencial para efetivação da pesquisa. Nessa perspectiva, para
compartimentar a produção de dados numericamente e qualitativamente eficazes, fez-se
necessário realizar a pesquisa com membros da comunidade residente na Vila Dois Rios,
onde se localiza o Ecomuseu Ilha Grande.
O processo de pesquisa de campo iniciou-se numa viagem do Rio de Janeiro a
Conceição de Jacareí-RJ, com destino ao Porto de Conceição de Jacareí, onde deslocamos
de “Flex Boat” para Vila Abraão localizado na Ilha Grande, viagem com duração de apro-
ximadamente 50 minutos. Em visita a Sede do Parque Estadual da Ilha Grande, onde o
diretor do Ecomuseu Ilha Grande por meio de parceria conseguiu o transporte para che-
garmos a Vila Dois Rios, viagem que durou aproximadamente três horas em virtude das
condições estruturais da estrada, conforme figuras 5 e 6 logo abaixo.
A principal dificuldade reside num trajeto de 9 km, com duração entre duas e três
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horas aproximadamente, dependendo das condições da estrada. Este trajeto caracteriza-se
por ser muito difícil em decorrência das condições de trafegabilidade e vegetação no seu
entorno conforme Figura (6).
É válido destacar que essas imagens datam de dezembro de 2022, nesse sentido pude
comprovar as condições de trafegabilidade presença das crateras oriundas das chuvas de
verão, tornando o transito de veículos impossível.
A inserção etnográfica durante a pesquisa de campo na Vila Dois Rios, explicitou a
marca histórica no e do lugar, a violência do processo de escravização, a violência do siste-
ma prisional, a resistência de uma comunidade que convive com o fantasma do autoritaris-
mo explicito inicialmente numa Colônia Correcional, e posterior Instituto Penal Cândido
333 //
Fig. 5 – Ação de Retirada das Árvores da estrada Vila Abraão Vila dois Rios, mês de dezembro de 2022. Fonte:
Arquivo a Associação de Moradores da Vila Dois Rios, imagem cedida pelo presidente da Associação Ururaí Campos.

Fig. 6 – Retirada das Arvores da Estrada Vila Abraão – Vila Dois Rios. Fonte: Arquivo a Associação de
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Moradores da Vila Dois Rios


Mendes. Conforme Figura (2). Vivenciar a vila por dois meses permitiu comprovar os
conflitos decorrentes da regulamentação jurídica, da presença das instituições e principal-
mente do desconhecimento da comunidade sobre questões de ordem jurídicas, sociais,
direitos humanos. E por que não afirmar as questões ambientais. A institucionalização de
Unidades de Conservação, normalmente desencadeia conflitos socioambientais, políticos
e econômicos como explica Valença (2021, p.306):
Atualmente, na Ilha Grande, apesar de problemas ambientais como o turismo
descontrolado e o lixo deixado por visitantes, a natureza ainda é conservada – gra-
ças aos moradores, ativistas e pesquisadores é reconhecida pela UNESCO como
Reserva da Biosfera da Mata Atlântica”. Identificar os conflitos decorrentes do modo
334 //
de sobrevivência “caiçara” e regulamentação jurídica inerente a uma unidade de con-
servação de proteção integral. A localização geográfica da Ilha Grande “A aproxima-
ção com regiões urbanas, industriais e portuárias cria uma constante tensão entre
desenvolvimento e preservação ambiental.” (VALENÇA, 2021, p.321).

O território, portanto, não é constituído apenas de chão, fronteiras, relevo, base ma-
terial, ele se faz antes pelas relações sociais que por sua vez são carregadas de relações de
poder, intencionalidades e conflitos, desencadeados pelos atores sociais presentes no terri-
tório, e pelas concepções ambientais vigentes nas instituições, e entre a comunidade.

4. Refletindo a Sustentabilidade e o Território da Vila Dois Rios

Compreender a realidade vigente no entorno do Ecomuseu Ilha Grande é im-


prescindível apesentar perspectivas teóricas conceituais de sustentabilidade, ecode-
senvolvimento e verificar qual concepção dialoga com as características do território.
De acordo com Figueiredo (2011).

Alguns movimentos sociais, norteados por uma “visão ecologizada” (ecossistêmica)


de mundo, partem para denunciar os impactos ambientais originados do modelo tecno-
-industrial altamente poluidor, consumidor dos recursos naturais e gerador da atual
desordem global da biosfera. Esses movimentos, sendo orientados por éticas diferenciadas,
reivindicam mudanças do quadro social e ambiental da sociedade atual a fim de garantir as
necessidades das futuras gerações, condizendo com o discurso do desenvolvimento susten-
tável, que de certa forma não contempla a realidade da problemática ambiental.
A problemática ambiental desenvolvida por Camargo (2003) apud Figueiredo (2011)
apresenta a concepção de ecodesenvolvimento, segundo o autor surgiu de modo a ame-
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nizar a polêmica gerada entre os partidários do “crescimento selvagem” e os defensores do
“crescimento zero” – vítima do absolutismo de critério ecológico (Sachs, 1986ª, p.110),
define o ecodesenvolvimento como “o desenvolvimento socialmente desejável, economi-
camente viável e ecologicamente correto”. Essas questões implicam na necessidade de re-
posicionar o limiar crítico das relações humanas, ecossistêmicas, do biológico com o social,
num amadurecimento do debate teórico e político fundamentado no questionamento da
contemporaneidade: Qual o papel científico e tecnológico na superação da crise ambien-
tal?. A hipótese é efetivação de iniciativas que dialogam com o social, considerem os povos
originários, e compreenda as populações tradicionais.
335 //
Considerando que a comunidade local da Ilha Grande caracteriza-se em sua complexi-
dade como uma população tradicional, as concepções Diegues (1994) afirmam elementos
característicos entre as populações tradicionais:
[...] e a natureza é a noção de “território” que pode ser definido como uma
porção da natureza e espaço sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e
garante a todos, ou a uma parte de seus membros, direitos estáveis de acesso, contro-
le ou uso sobre a totalidade ou parte dos recursos naturais aí existentes que ela deseja
ou é capaz de “utilizar” (DIEGUES, 1994, p.27).

A partir dessa informação e analise do ECOMIG, é indissociável uma crítica à pro-


posta do desenvolvimento sustentável que visa “internalizar” as “externalidades” sócio am-
bientais ao sistema econômico (LEFF, 1998, p.16). Explicitar a reivindicação dos direitos
e harmônica convivência com o “os” territórios da Ilha Grande é imprescindivel. A critica,
se baseia na cooptação desse conceito pelo modelo econômico vigente do capitalismo. De
acordo com Carneiro (2005):
Para avançar na crítica à ideologia do desenvolvimento sustentável, é preciso
ir além e examinar a seguinte questão: será que o desenvolvimento autocontradi-
tório do moderno sistema produtor de mercadorias produz “apenas” problemas de
“financiamento da reposição das condições naturais” como condição da produção
de mercadorias e de outros usos sociais, ou será que esse desenvolvimento também
produz a “destruição das próprias condições naturais” de que depende (e que de-
pendemos todos)? Noutras palavras: se se resolvessem as dificuldades crescentes de
financiamento, haveria lugar para um desenvolvimento capitalista que não destruísse
os fundamentos naturais que asseguram sua continuidade e perpetuação da vida e
dos usos não capitalistas desses fundamentos? (CARNEIRO, 2005, p. 30-31).

A tecnologia associada aos anseios econômicos propiciados pelo sistema capitalista


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vigente nos remete a um único questionamento: Os rumos do progresso científico e seu


estímulo podem ser vistos como um perigo para a natureza e para espécie humana? O
desafio enquanto senhores da Revolução Tecnológica, é colocar essa revolução a serviço da
natureza e da humanidade?
“[...] a produção de conhecimento deve necessariamente contemplar as inter-
-relações do meio natural com o social, incluindo a análise dos determinantes do
processo, o papel dos diversos atores envolvidos e as formas de organização social
que aumentam o poder das ações alternativas de um novo desenvolvimento, numa
perspectiva que priorize novo perfil de desenvolvimento, com ênfase na sustentabili-
dade socioambiental.” (JACOBI, 2002, p. 190).
336 //
Neste aspecto, a crise ambiental com enfoque nos princípios da sustentabilidade
socioambiental, é perceptível desde a idealização do ECOMIG, contextualizados como
marco limite sinalizador na orientação do processo de institucionalização, na composição
da equipe e na laboração dos núcleos, assim pretendemos compreender como a comuni-
dade percebe essa praticas, e atividades desenvolvidas desde a transformação gradativa do
ecomuseu, os princípios da sustentabilidade ambiental se fazem presentes?.
Segundo Leff (2007), apud Figueiredo (2011) a degradação ambiental é consequência
de uma crise que abrange a civilização, caracterizada com seu modelo de modernidade,
conduzida pelo desenvolvimento de tecnologia racional e estruturada na organização da
natureza, esta, como suporte e condição potencial do processo de produção. Leff (2007)
complementa, a racionalidade da modernidade coisifica a natureza pela lógica do sistema
capitalista, em contraposição a homogeneidade dos movimentos sociais, necessitando a
inferência de uma auto governança dos direitos que fazem emergir uma nova racionalidade
jurídica, com reflexos na racionalidade ambiental, e respeito à diversidade sócio cultural.
Nessa discussão paradigmática a racionalidade ambiental critica a racionalidade da
ciência moderna, incorporando novos princípios, valores, e impede que suas estratégias
possam ser avaliadas em termos de modelo de racionalidade gerada pelo capitalismo. O
autor fundamenta suas ideias na ética, nos movimentos sociais ambientalistas e na cida-
dania, propõe a construção de uma racionalidade ambiental processual fundada na ne-
cessidade de um amadurecimento e envolvimento das comunidades locais. Processo este,
prejudicado pela ordem econômica globalizante que impõe de cima para baixo suas for-
mas, valores e técnicas de apropriação que homogeneíza os grupos culturais.
Outro autor que contribui na compreensão do objeto é o Ignacy Sachs (2002) teórico
que mais difundiu o conceito de ecodesenvolvimento, apresenta dimensões da susten-
tabilidade: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica e política. Ainda
consoante com as concepções de Sachs (2002):
• “Sustentabilidade social”, aspecto que deve ter como base o estabelecimento de
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uma proposta de desenvolvimento que assegure um crescimento estável, com dis-
tribuição equitativa de renda, garantindo o direito de melhoria de vida das grandes
massas da população.
• “Sustentabilidade econômica”, possível a partir de um fluxo constante de inversões
públicas e privadas, além do manejo e alocação eficiente dos recursos naturais.
• “Sustentabilidade ecológica”, através da expansão da capacidade de utilização dos
recursos naturais disponíveis no planeta terra, com menor nível de impacto ao meio
ambiente. Impondo-se, ainda, a necessidade de redução do volume de substâncias
poluentes, a partir da adoção de políticas de conservação de energia e de recursos,
entre outras medidas.
337 //
• “Sustentabilidade geográfica”, uma vez que a maioria dos problemas ambientais
tem sua origem na distribuição espacial desequilibrada dos assentamentos humanos
e das atividades econômicas. Dois exemplos citados, para ilustrar tal questão, é a
excessiva concentração da população em áreas metropolitanas, e a destruição de
ecossistemas frágeis, de fundamental importância, pela falta de controle nos pro-
cessos de colonização. Estes exemplos revelam a necessidade de se buscar uma nova
configuração para questão rural-urbano de forma mais equilibrada.
• “Sustentabilidade cultural”, esta se apresenta de forma mais complexa para efetiva-
ção, uma vez que exigiria pensar o processo de modernização de forma endógena,
trabalhando as mudanças de forma sintonizada com a questão cultural vivida em
cada contexto específico.

Deste princípio, emerge a hipótese de um acesso a modernidade a partir de múltiplas


vias, onde segundo Touraine (1988), “além da necessidade de se traduzir o conceito nor-
mativo de desenvolvimento sustentável numa pluralidade de soluções locais, adaptadas
a cada ecossistema, a cada cultura e, inclusive, soluções sistêmicas de âmbito local, uti-
lizando-se o ecossistema como um paradigma dos sistemas de produção elaborados pelo
homem...” (apud SACHS, p.475).
Esse arcabouço teórico sobre ecodesenvolvimento, sustentabilidade e modernidade
foram premissas para discutir com os dados produzidos durante a pesquisa de campo, ou
seja a perspectiva de territorialidades e reterritorialização precisam dialogar com a susten-
tabilidade cultural, e assim consideras o atores locais da Vila Dois Rios.

Considerações Finais

A complexidade das relações de poder e de produção na atualidade se ramificaram de


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múltiplas formas, compondo assim territórios cada vez mais múltiplos e dinâmicos. Desse
modo, o território constitui-se em um dos conceitos-chave para o estudo das questões
ambientais, para se pensar e compreender as tensões produzidas pelas disputas entre os
grupos sociais pela apropriação do espaço, em especial em áreas de unidades de conserva-
ção ambiental.
O processo de territorialização que envolve a Comunidade Vila Dois Rios as ativida-
des econômicas e culturais desenvolvidas ao longo dos anos desde a implantação do IPCM
e institucionalização do Parque Estadual da Ilha Grande, Centro de Estudos Ambientais
e Desenvolvimento Sustentável e Ecomuseu Ilha Grande expressam relações de poder e
de conflitos uma vez que reproblematizam a presença dessas unidades de produção seja
338 //
pelo seu impacto ambiental, seja pelas relações de trabalho e produção e reconfiguração na
identidade da comunidade da Vila Dois Rios.
O estudo demonstrou que a questão ambiental, as relações institucionais, ao produzir
novos territórios recria relações de poder e tende a reproduzir as relações de subordinação
e dominação. Isto porque os atores sociais envolvidos se encontram em condições de desi-
gualdade econômica, política e cultural.
Explicitou a dissidência de conflitos socioambientais no entorno das Unidades de
Conservação. A proliferação de áreas ambientalmente protegidas precisam conduzir os
planos de manejo, e refletir as relações quando no território tem presença comunitária,
muitas vezes a instituições representativas do Estado, nesse caso específico a UERJ con-
figura-se como uma política governamental de justificação pública e invisibiliza os atores
sociais que vivem no entorno das UC’s, ou mesmo na Vila Dois Rios, localidade onde
funciona o CEADES e ECOMIG.
Normalmente não são realizados diagnósticos participativos, além de uma sobrepo-
sição hierarquizada de poder político econômico e sócio cultural. A territorialidade e o
poder sempre estiveram a serviço das elites ou do poder politico situados historicamente,
socialmente e espacialmente situadas.

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
340 //
Resiliência Urbana:
do urbanismo comercial ao consumo
sustentável

Carlos J. L. Balsas1

Introdução e motivação

Muito boa tarde. O título da minha apresentação é Resiliência Urbana: Do urbanismo


comercial ao consumo sustentável. Eu vou falar não tanto sobre resiliência urbana, mas mais
sobre o modo como eu cheguei à necessidade de investigar as questões do consumo susten-
tável enquadradas na revitalização urbana e no melhoramento dos espaços públicos, e de um
modo geral, na gestão urbana e na questão das políticas públicas para os centros das cidades
(Balsas, 2019c). Portanto, este é o contexto e eu vou recuar no tempo de modo a que vocês
percebam como é que as políticas públicas são complicadas, e o que é hoje verdade, passado
dez ou quinze anos pode já não ser a verdade total que era anteriormente (Balsas, 1999).
Eu apercebi-me deste desfasamento quando fui estudar para os Estados Unidos há
umas décadas atrás. Quando eu fui para os Estados Unidos tinha a sensação de que os
Estados Unidos era o país dos automóveis, e que era um país muito grande, bastante dife-
rente de Portugal e dos países europeus. Sobretudo, onde as distâncias eram muito longas
e daí a necessidade do uso regular do automóvel (Holtz Kay, 1998), mas inicialmente não As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

me apercebi dos altos níveis de consumo (Bauman, 2007). Como vocês sabem, os Estados
Unidos tem tirado proveito da sua dimensão para construir cidades novas e para crescer as
cidades (Garvin, 1996; Balsas, 2017), e isto muito na base do automóvel, ao contrário das
cidades europeias, onde nós ainda enveredamos por mais tentativas de revitalização urbana
e temos cidades algo compactas, e ainda pensamos talvez um pouco mais na gestão urbana
integrada das áreas urbanas e das metrópoles (Balsas, 2020).

1
Ph.D., AICP – Ind. scholar, Albany, Nova Iorque, EUA. – cbusa06@yahoo.com
Transcrição da comunicação oral no XXIII Curso de Verão “Novas fronteiras, outros diálogos: cooperação
e desenvolvimento”, Guarda – Portugal, 29 de junho de 2023
341 //
Consumo urbano e influências globais

Este primeiro diapositivo mostra esta ideia do país dos automóveis (Holtz Kay, 1998),
do consumo, do consumo não só dos automóveis, mas do consumo de um modo geral, da
pessoa que vai à loja, que vai ao centro comercial, ao armazém comercial, que faz compras
e leva para casa, utiliza e descarta (Bauman, 2007). Depois o descarte vai para o lixo, aquilo
que nós comumente chamamos de lixo ou de resíduos sólidos urbanos.
Quando eu fui estudar para os Estados Unidos em 1996 estava muito interessado em
perceber os mecanismos de revitalização urbana, assim como em dar resposta às questões
da modernização do comércio local e do melhoramento dos espaços públicos urbanos
(Balsas, 1999; Paumier, 2004). A tal ponto, que eu quase que me esqueci da necessidade
do consumo sustentável, uma ideia que eu só me apercebi uns anos mais tarde. Se nós
incentivarmos apenas a revitalização urbana e o melhoramento dos centros das cidades, e
ajudarmos à modernização do comércio local, indiretamente podemos estar a fazer com
que mais pessoas consumam um maior volume de materiais, de produtos, no fundo de
coisas (Balsas, 2019b; 2019c).
Na ótica da sustentabilidade ambiental, nós quase que nos esquecemos do consumo
sustentável, uma vez que a prioridade é a revitalização urbana, a qualidade de vida urbana,
e a modernização do comércio tradicional. Deste modo quase que nos passa despercebido
o lado (in)desejado desta revitalização urbana que é o consumo desenfreado e a nobilização
urbana que pode levar à gentrificação, onde as pessoas que residem nos centros históricos
não têm possibilidade de se manter naquelas áreas, e têm que passar a viver nos subúrbios,
ou são expulsas para outras áreas geográficas (Balsas, 2024 no prelo).
Por outro lado, essa nobilização pode levar ainda a um aumento do consumo dos
bens, e o que é que acontece a muitos desses bens? Que no fundo vão naqueles saquinhos,
são os sacos de plástico, ou os sacos dos embrulhos; é que tornam-se em amontoados de
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coisas, por vezes de utilidade bastante reduzida. Esta tendência de estar constantemente a
comprar porque é apelativo, é relativamente barato, e é feito na China e chega à Europa e
aos Estados Unidos de um modo mais barato, quase que nos leva a esquecer a necessidade
de também incentivar um consumo mais sustentável. E no fundo é isto que eu vos venho
aqui apresentar com um conjunto de diapositivos baseados em diferentes livros e artigos
que publiquei ao longo destas duas décadas (ver Referências).
Só mais recentemente, quando eu comecei a pensar o que é que me faltava pesquisar,
é que me lembrei de tentar perceber o consumo sustentável. Portanto não é só incentivar
a revitalização urbana e o consumo mas é fazê-lo de um modo mais sustentável, aonde a
pegada ecológica global não seja tão elevada ao ponto de estarmos a esgotar os recursos
finitos (Balsas, 2019c).
342 //
Aqui estão duas imagens que eu retive quando cheguei aos Estados Unidos e fui visitar
a zona da Times Square no centro de Nova Iorque (Houstoun, Jr., 1997; Sadik-Khan &
Solomonow, 2016). Como vocês sabem a Times Square tem aqueles holofotes, aqueles
néons todos, tem muita atividade e muito comércio, mas eu fiquei impressionado não só
com todos esses aspetos da paisagem urbana, mas também com a existência de brigadas
de limpeza que estavam prontas a limpar os detritos, e o lixo que se ia acumulando devido
à passagem de centenas de milhares de pessoas por esta área central da cidade de Nova
Iorque todos os dias (Balsas, 1999).
Quando fui visitar Filadélfia apercebi-me dos melhoramentos urbanos, do alargamen-
to dos passeios, do embelezamento das ruas, do mobiliário urbano novo, da sinalética ur-
bana, das paragens dos autocarros remodeladas, das floreiras, e de todo o ambiente urbano
especial que estava a ser preparado para no âmbito de operações de revitalização urbana
atrair mais pessoas de regresso ao centro da cidade (Dunbar, 1999; Balsas, 2019b).
Como muitos dos outros visitantes, eu fiquei surpreendido com todas estas estratégias
que estavam a ser implementadas e não me apercebi na altura do que estava em falta, e só
depois de recomendar “estratégias de revitalização urbana à americana”, como a moderni-
zação do comércio local e o melhoramento dos espaços públicos (Paumier, 2004), consta-
tei que nós em Portugal ainda estávamos a enviar muitos resíduos para aterros sanitários
e que tínhamos taxas de reciclagem e de reuso de resíduos sólidos urbanos muito abaixo
das praticadas nos vários países da União Europeia, e foi aí que eu me apercebi do que me
faltava na pesquisa que andava a realizar.

Economias de escala

Uma ideia fundamental é que os Estados Unidos é um país com muitos habitantes,
que produzem muito lixo, e estamos a falar de mais de trezentos milhões de pessoas, com-
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parado com os dez milhões que nós temos cá em Portugal. E o que é que acontece a muitos
destes resíduos sólidos urbanos? Muitos deles vão para aterros sanitários, são cobertos com
solo de modo a diminuir os maus cheiros e a dispersão do lixo, e depois há canalizações
destinadas a captar o gás metano e a criar energia renovável. Esse é um aspeto positivo
dos aterros sanitários, quando eles são bem feitos, o que nem sempre é o caso; contudo, já
começa a ser uma prática bem melhor do que era há uns anos atrás.
Mas é um facto de que há muitos materiais que poderiam ser reciclados e que ainda
continuam a ir para os aterros sanitários porque não há uma separação seletiva desses
materiais que acabam por ir para os aterros, não só nos Estados Unidos, mas também em
Portugal. Contudo, devo dizer que a situação está bastante melhor agora que estamos no
343 //
ano 2023, mas quando eu comecei a pesquisar esta ideia por volta de 2016 e 2017 ainda
tínhamos muito trabalho para fazer nesta área.
Por exemplo, nos Estados Unidos sabe-se que 97% do lixo pode ser reciclado, o que
é uma percentagem enorme. Em Nova Iorque houve também uma tendência para selar
os aterros sanitários antigos e para os transformar em parques. Uma das estratégias foi o
aproveitamento do gás metano para a produção de energias renováveis tal como mencio-
nei anteriormente, e outro exemplo foi a conversão de antigos aterros em parques. Um
exemplo notável em um dos maiores aterros sanitários dos Estados Unidos, que se chama
Fresh Kills, teve lugar na ilha localizada a baixo de Manhattan (Correia & Vauléon, 2005).
A ideia foi fazer daquele antigo aterro sanitário um parque para as pessoas que vivem na
metrópole de Nova Iorque, e isto com base no princípio da cidade sem resíduos, a Zero
Waste City (Zaman & Lehmann, 2011).
Este é um princípio que, de certo modo, articula a pesquisa que eu vos estou aqui a
apresentar. Um dos principais objetivos, e que é de relativamente fácil concretização, é
a separação do lixo orgânico do lixo que pode ser reciclável. Muitas cidades dos Estados
Unidos já têm práticas correntes, por exemplo aqui apresento-vos o caso de São Francisco,
onde os lixos orgânicos são completamente separados de outros materiais porque há reci-
pientes próprios para fazer essa seleção na origem, e não à posteriori.

Herança além-fronteira e práticas domésticas

Agora deixo os Estados Unidos e tento pegar na realidade nacional Portuguesa.


Quando eu visitei Macau na Ásia encontrei este mural junto do Templo de A-Ma Gao, que
deu origem ao nome de Macau. Se vocês verem a caricatura com atenção, são duas crianças
perto de recipientes de resíduos sólidos urbanos que atiram o caroço da maçã para o chão,
e depois aparece uma outra miúda com a mãe a apontar o dedo ao desrespeito, e a dizer
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que isto não se deve fazer. A mensagem que eu aqui estou a tentar ilustrar é que deixámos
uma herança em Macau, não só a herança das ruínas de São Paulo, ruínas da antiga Igreja
da Madre de Deus e do Colégio de São Paulo, que constituiu a primeira Universidade ao
estilo Europeu na Ásia, portanto uma presença física, mas que também deixámos uma
herança cultural, que a pouco e pouco se tem mantido, apesar das grandes transformações
sociais e políticas (Balsas, 2019a; Wieczorek, 2020).
Tal caricatura era uma fotografia que eu tinha tirado em 2011 quando estive de pas-
sagem em Macau, mas mais ou menos por volta dessa altura tínhamos a investigadora
professora Doutora Luísa Schmidt em Lisboa a escrever um livro com o título, “País (In)
Sustentável”; que Portugal que era um país insustentável porque ainda tínhamos práticas
344 //
que já não eram aceites em outros países desenvolvidos, e que ainda tínhamos que cami-
nhar no sentido de uma maior sustentabilidade ambiental (Schmidt, 2007). Eu constatei
que era uma ideia com bastante interesse, e ela não só nesse tal livro, mas em outros traba-
lhos que tem escrito, documentou lixeiras a céu aberto ainda no virar do século: resíduos,
sucata, e lixo onde não deviam estar – naquela ideia de que atirávamos o caroço da maçã
para o chão, ou deixávamos cair o papel e ele ali ficava, ou abandonávamos uma garrafa
depois de bebermos o sumo ou a água.
No fundo, comportamentos que se quereriam cívicos, e que nós poderíamos utilizar
para fazer passar uma mensagem diferente, e que no virar do século não estavam ainda
enraizados na cultura cívica Portuguesa. Ou melhor, estavam em algumas partes do país,
e em algumas cidades e metrópoles, mas não em outras áreas; e isto a propósito deste dis-
curso, e espero que não pensem que eu estou a ser miserabilista, e da pergunta que o pro-
fessor José Borzacchiello Silva de Fortaleza no Brasil fez hoje de manhã ao professor João
Ferrão de Lisboa: e as metrópoles? E o resto do país? E o interior? E as áreas de fronteira?
O diapositivo mostra ainda o lema de que “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem” – isto
é um slogan que já tem uns 50 ou 60 anos – mas o ditado é antigo e de difícil resolução.
Lentamente começamos a instalar as papeleiras, os recipientes para a reciclagem, para a
separação do vidro, do cartão, do papel, mas tem sido um processo relativamente lento se o
compararmos com os de outros países da União Europeia. Parece-me bastante importante
não abandonarmos a noção de que estamos na União Europeia; a União Europeia trouxe
coisas boas e outras menos boas. Mas na minha opinião, nós temos que olhar sempre para
o patamar mais elevado de modo a evitar erros que deveriam ter sido corrigidos anterior-
mente, e que por ventura ainda perduram no tempo.
Do outro lado do diapositivo estão duas fotografias que mostram qual é o caminho em
termos de deixar os lixos e os resíduos sólidos urbanos no passeio público e esperar que al-
guém os leve sem uma preocupação de maior. De um modo geral, a preocupação principal
é que pagamos uma taxa moderadora de recolha de lixo e achamos que isso é o suficiente;
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mas não é, temos que ir mais além. É esta ideia que eu quero aqui trazer à baila e em que,
por exemplo, áreas como a Expo’98 em Lisboa onde existe um sistema que permite que
o residente deite o saco do lixo em uma conduta e há uma sucção e o saco vai parar a um
armazém de resíduos sólidos que está enterrado debaixo dos edifícios. Isto é uma gestão
tecnológica bastante avançada dos resíduos sólidos, mas só tivemos uma Expo’98, depois
tivemos outros programas de revitalização urbana e de requalificação do espaço público,
mas com um alcance bem mais reduzido.
Aos poucos e poucos, como eu vos estava a dizer, vamos conseguindo alguns progressos,
aqui é um exemplo em uma área bastante central de Lisboa onde podemos observar a ins-
talação destes contentores que estão parcialmente enterrados e que reduzem aquele lixo que
345 //
tradicionalmente se amontoava nos cantos dos quarteirões e em outros locais públicos. Não só
em Lisboa, mas também no Porto, no âmbito de operações de revitalização urbana e de pro-
jetos de urbanismo comercial, assistiu-se à instalação de mobiliário urbano novo para ajudar a
gerir os resíduos sólidos urbanos. A fotografia mostra os caixotes de recolha seletiva de resíduos
sólidos urbanos em uma rua emblemática da baixa da cidade do Porto (Balsas, 2024 no prelo).

Métodos e estudo de caso

Portanto, quando eu comecei a realizar esta pesquisa, a minha ideia era rever os tra-
balhos sobre urbanismo comercial que tinha realizado e tentar perceber se havia uma
correlação direta entre o melhoramento dos espaços centrais das cidades e o aumento da
produção de resíduos sólidos e/ou do envio desses materiais para aterros sanitários. O que
eu fiz foi para além de andar por várias cidades do país, peguei em dados estatísticos e em
taxas de adesão aos projetos de urbanismo comercial e fui ver se encontrava essa correlação
ou não, e eu já vos vou mostrar três gráficos que, de certo modo, sintetizam os resultados
que eu consegui obter (Balsas, 2019c).
Mas ainda assim quero que vocês tenham uma noção que a instalação destas pape-
leiras, e destes recipientes do lixo, pode ser feita de um modo bastante atrativo e que se
podem enquadrar nos projetos de revitalização urbana e de urbanismo comercial; aqui
vemos por exemplo o mobiliário urbano em uma área muito próxima da Times Square
em Nova Iorque, onde aqueles caixotes foram desenhados de um modo bastante cuidado
e atrativo, e estão em espaços públicos perto de parques e jardins bastante centrais, e, de
certo modo, há um grande interesse no embelezamento da paisagem urbana. Também em
Pelotas no Rio Grande do Sul no Brasil, só para vos mostrar a separação dos resíduos reci-
cláveis dos resíduos orgânicos, esta é uma ideia que encontramos em diferentes contextos
geográficos e vários tipos de cidades no continente americano.
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Por fim, este esquema mostra o percurso possível dos recursos sólidos em Portugal,
desde a recolha que pode ser seletiva ou recolha indiferenciada, a passagem pelo centro de
triagem e o que é que acontece aos resíduos sólidos urbanos quando entram no centro de
triagem, os que são rejeitados, os que vão para aterro, e os que são incinerados, ou ainda
os que podem ser reaproveitados através de reciclagem. Este gráfico mostra que de 1995
até 2014, a quantidade de resíduos sólidos urbanos que tem sido depositada em aterros
sanitários em Portugal tem vindo a diminuir porque tem havido uma valorização multi-
material bastante grande nos últimos anos, o que é um passo que nos coloca aos níveis
mais elevados dos países da União Europeia (Balsas, 2024 no prelo).
346 //
O Norte de Portugal

O que eu fiz foi ver aonde é que os projetos de urbanismo comercial, que tiveram lugar
entre 1997 e 2007, investiram mais verba na requalificação do espaço público e na mo-
dernização dos estabelecimentos comerciais locais, e cheguei à conclusão que esse investi-
mento tinha sido feito em apenas quatro distritos do norte do país: Aveiro, Braga, Porto,
e Viana do Castelo. O que eu fiz depois foi analisar as várias cidades e vilas destes distritos
e comparar as taxas de adesão aos projetos de urbanismo comercial com a informação que
obtive da pordata.pt de capitação de resíduos sólidos urbanos e de níveis de reciclagem.
Este primeiro gráfico mostra a taxa de adesão aos projetos de urbanismo comercial e a
produção de resíduos urbanos entre 2002 e 2014. Nas cidades onde as taxas de adesão aos
projetos foram mais elevadas, registaram-se menores envios de resíduos para aterros, o que
é uma boa notícia, e que de certo modo me contradiz relativamente à motivação inicial na
base desta pesquisa.
No segundo gráfico quis perceber o que é que acontecia em termos geográficos Norte-
Sul e cheguei à conclusão que nesses quatro distritos, quando começamos a descer de
norte para sul houve uma diminuição do envio para aterros sanitários, se excluirmos a Área
Metropolitana do Porto, que é uma área metropolitana bastante grande.
O último gráfico documenta a evolução das taxas de adesão com a percentagem de
reciclagem dos resíduos sólidos urbanos; assim, altas taxas de adesão coincidem com um
aumento dos níveis de reciclagem, e isto sobretudo porque o tratamento dos espaços pú-
blicos tiveram em conta a instalação dos tais recipientes para resíduos nas estratégias de
instalação de mobiliário urbano que nalgumas partes das cidades que foram interven-
cionadas poderão ter levado as pessoas a ter um comportamento ambientalmente mais
responsável; e eu fiquei bastante feliz com estes resultados (Balsas, 2019c).

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Incentivar hábitos de consumo mais sustentável

Mas cheguei à conclusão de que ainda era necessário alterar os hábitos da população
porque as taxas de adesão têm sobretudo a ver com áreas centrais, e quando nós vamos aos
centros das cidades, por vezes, compramos as coisas nessas áreas, mas não as consumimos
lá; estas são levadas para casa e o descarte é feito em áreas bastante mais periféricas. Daí que
a taxa de adesão seja um indicador importante, mas só por si não revele a verdade toda.
Deste modo e para obtermos uma noção mais completa temos que ter em atenção o
modelo da cidade sem resíduos, a Zero Waste City (Zaman & Lehmann, 2011), assim como
os três Rs da Redução, da Reciclagem, e da Reutilização (Fernandes, 2007); princípios
347 //
importantes e bem conhecidos no planeamento ambiental, mas que ainda têm que entrar
de um modo pleno nas esferas da requalificação e da revitalização urbana.
Isto de modo a fomentar um consumo mais sustentável, e a baixar a pegada ecológica
global do consumo dos recursos finitos (Greenstein & Sungu-Eryilmaz, 2004). Muitas
vezes nós vamos às lojas e pensamos apenas se é uma boa compra ou não, mas nem sequer
pensamos no impacto da compra na pegada ecológica global.

Conclusão – Três Rs e economia circular

Para terminar tenho dois diapositivos, este fala-nos da economia circular, um tema
bastante atual, onde a principal ideia é pegar nos três Rs da Redução, da Reciclagem, e da
Reutilização e enquadrar os resíduos sólidos nestas cadeias de valor económico de modo
a não perdermos a riqueza que poderia desaparecer se os resíduos sólidos urbanos fossem
apenas encaminhados diretamente para os aterros sanitários. Deste modo há uma recircu-
lação do material que é consumido em cadeias económicas de valor.
Para terminar e voltando ainda a Nova Iorque, o fecho da Broadway Avenue em 2010
trouxe, tal como em muitas cidades Portuguesas, o aumento da calçada e das áreas pedo-
nais (Sadik-Khan & Solomonow, 2016), o que tem sido bastante positivo em termos de
qualidade de vida e de turismo; por um lado há menos poluição atmosférica, há menos
veículos a circular pelos centros urbanos, as pessoas andam mais a pé, há mais qualidade
de vida urbana, mas se calhar há também mais consumo urbano, o que leva à necessidade
de reincentivar mais a economia circular, e a redução da pegada ecológica global e das
alterações climáticas (Balsas, 2020).

Referências bibliográficas
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Trabalhos do autor sobre as temáticas do urbanismo comercial, revi-


talização urbana, e urbanismo sustentável:

(1999) Urbanismo Comercial em Portugal. Lisboa: GEPE.


(2017) Urbanismo comercial em Phoenix: um estudo de quatro formatos comerciais no Arizona.
urbe Revista Brasileira de Gestão Urbana, 9(1), 83-95
(2019a) The role of public markets in urban habitability and competitiveness. Journal of Place
Management and Development, 13(1), 30-46.
(2019b) Urbanismo Comercial, Revitalização Urbana, Parcerias, e Gestão Urbana. 2.ª Ed. Curitiba:
Editora CRV.
348 //
(2019c) Walkable Cities: Revitalization, Vibrancy, Sustainable Consumption. Albany, SUNY Press.
(2020) Urbanismo Sustentável: História, Conhecimento Económico-Ambiental, e Prática Profissional.
Curitiba: Editora CRV.
(2024 no prelo) Resiliência urbana, boas práticas e consumo sustentável. Portuguese Studies Review.

Outros trabalhos mencionados na apresentação:

Bauman, Z. (2007) Consuming Life. Cambridge: Polity Press.


Correia, D., & Vauléon, Y. (2005) A geografia do desperdício. Arquitectura e Vida, 57, 74-77.
Dunbar, R. (1999) Philadelphia. Firenze: Bonechi.
Fernandes, J. (2007) Urbanismo sustentável: Redução, reciclagem e reutilização da cidade. Revista
da Faculdade de Letras – Geografia, II Série (I), 163-178.
Garvin, A. (1996) The American City: What works, what doesn’t. Nova Iorque: McGraw-Hill.
Greenstein, R., & Sungu-Eryilmaz, Y. (2004) Recycling the City – The use and reuse of urban land.
Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy.
Holtz Kay, J. (1998) Asphalt Nation – How the automobile took over America and how we can take it
back. Berkeley: University of California Press.
Houstoun, Jr., L. (1997) BIDs – Business Improvement Districts. Washington DC: Urban Land Institute.
Paumier, C. (2004) Creating a Vibrant City Center. Washington DC: Urban Land Institute.
Sadik-Khan, J., & Solomonow, S. (2016) Street Fight – Handbook for an Urban Revolution. Nova
Iorque: Viking.
Schmidt, L. (2007) País (In)Sustentável: Ambiente e qualidade de vida em Portugal. Setúbal: Esfera do Caos.
Wieczorek, M. (2020) The ruin problem: negotiating cultural heritage in Macau. Revista Portuguesa
de Estudos Regionais, 56(3), 7-18.
Zaman, A., & Lehmann, S. (2011) Challenges and opportunities in transforming a city into a
“Zero Waste City”. Challenges, 2, 73-93.

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349 //
Reestruturação Urbana e Comércio:
o Centro Fashion em Fortaleza

Alexsandra Maria Vieira Muniz1


José Borzachiello da Silva2

Introdução

Fortaleza se firma como metrópole terciária, com preponderância do comércio e dos


serviços vis a vis, ocorre o processo de reestruturação urbana com obras de desenvolvimen-
to regional e programas de infraestrutura urbana, edificações dos espaços produtivos e de
reprodução social com o impulso à metropolização industrial, turística e comercial.
A expansão da malha urbana da capital e o surgimento de novas centralidades, sobre-
tudo a partir dos anos 1970, culminaram na consolidação da área central enquanto lócus
do comércio e serviços voltados para o atendimento de demandas da classe de menor
poder aquisitivo. Com isso, o Centro voltou-se predominantemente ao comércio popular.
O objetivo deste artigo é analisar a dinâmica da atividade comercial na cidade de
Fortaleza, notadamente o comércio popular de confecção diante do contexto de reestru-
turação urbana e da recente Covid-19, doença causada pelo Coronavírus (SARS-CoV-2).
Para tanto delimitamos como estudo de caso, o Centro Fashion. Esta pesquisa qualiquan-
titativa tem caráter exploratório. Para tanto, foram adotados procedimentos metodológi- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

cos de revisão bibliográfica, levantamento de dados secundários e pesquisas de campo com


aplicação de questionário.
Desta forma estruturou-se o artigo nos seguintes tópicos, quais sejam, Fortaleza:
Espaço tradicional do comércio; Economia urbana de Fortaleza; Centro Fashion, na se-
quência, as considerações finais.

1
Profa. Adjunta do Departamento de Geografia da UFC. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles –
Núcleo Fortaleza(Lapur) – geoalexsandraufc@gmail.com
2
Prof. Titular do Departamento de Geografia da UFC
Pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Fortaleza(Lapur) – borzajose@gmail.com
351 //
Fortaleza: Espaço tradicional do comércio

Além de exercer diferentes funções de sede administrativa do Ceará, Fortaleza se fir-


mou como excepcional empório comercial, situação que ostenta até hoje.
O centro reunia todas as funções necessárias para atender as demandas da capital cea-
rense. Era pólo administrativo, comercial e de serviços. Possuía sede do governo de todos
os poderes e de empresas ligadas aos setores comercial e financeiro.
A cidade crescia conforme os ditames da economia cearense baseada na produção e
comércio internacional do algodão.
De meados do século XIX ao início do século XX, Fortaleza passou por inúmeras
mudanças urbanas, no período denominado Belle Époque, no que tange a instauração de
novos equipamentos e serviços urbanos, tais como transporte coletivo (bondes de tração
animal), eletricidade, calçamento, praças públicas, canalização de água, cafés, escolas de
ensino superior, cinema e teatro.
A malha urbana espraiava-se, em todas as direções. A expansão, entretanto, não foi sufi-
ciente para que o centro ultrapassasse os limites traçados no século XIX. A cidade de Fortaleza
até o final do século XIX se resumia ao perímetro dos boulevards de Adolfo Herbster.
As plantas arquitetônicas de Adolfo Herbster (1859 e 1875) seguiam um padrão or-
togonal, inspirado por Silva Paulet (1726), visando o ordenamento e o embelezamento da
cidade, bem como serviam de orientação para os caminhos de expansão da malha urbana,
que já demonstrava uma tendência a transposição dos chamados Boulevards, aos moldes
da cultura e arquitetura francesa, que hoje são conhecidas como as Avenidas do Imperador,
Duque de Caxias e Dom Manuel.
A cidade antes restringida aos limites dos Boulevards, se propagava horizontalmente e
de forma desigual e segregada no território, permanecendo no Centro em maior parte as
atividades comerciais, serviços e equipamentos públicos.
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A elite fortalezense, detentora de grande prestígio político e econômico, gradual-


mente distanciava-se das proximidades da área central, num primeiro momento insta-
ladas no bairro Jacarecanga, primeiro reduto da burguesia e, em seguida, nos bairros
mais a leste do Centro, hoje conhecidos como Aldeota, Meireles, Bairro de Fátima e
Praia de Iracema.
Formavam-se, a partir daí, novas centralidades na capital. Se sobressaem, nesse sentido,
as centralidades da Aldeota, Antônio Bezerra (e corredor da Avenida Bezerra de Meneses),
Messejana e Barra do Ceará (LOPES, 2006, p. 149).
Segundo Lopes (2006, p. 150) a policentralidade de Fortaleza:
[...] é um fato incontestável a partir dos anos de 1990, entretanto a deterioração
do Centro não é um fato natural, é muito mais resultante da falta de investimento
352 //
do Poder público na área, em detrimento dos investimentos em outros locais da
cidade, agora mais atrativas para os investimentos locais ou internacionais (LOPES,
2006, p. 150).

Se em um primeiro momento se verifica uma macrocefalia urbana, a partir de uma rela-


ção interdependente entre Fortaleza e os municípios circundantes, Silva (2009) afirma que:
O crescimento demográfico, a forte pressão sobre o território da capital, a espe-
culação imobiliária e a necessidade de se estabelecer políticas metropolitanas, entre
outros itens, fazem da RMF um imenso laboratório, com uma dinâmica muito es-
pecial devido ao forte comando exercido pela capital. Espaço de contrastes por exce-
lência, vê-se ocupado mais intensamente nos últimos anos, especialmente nas franjas
periurbanas integradas direta ou indiretamente à malha urbana de Fortaleza onde a
precariedade é dominante (SILVA, 2009, p. 18).

Observava-se, assim, a concepção da Região Metropolitana de Fortaleza – RMF (Lei


Complementar Federal n.º 14/1973) no cenário urbano cearense. É nesse panorama que,
segundo Maricato (2002, p. 4) ocorre um desaceleramento no crescimento das metrópo-
les, onde as periferias passavam a crescer mais do que os núcleos urbanos.
A expansão da malha urbana da capital e o surgimento de novas centralidades, sobre-
tudo a partir dos anos 1970, culminaram na consolidação da área central enquanto lócus
do comércio e serviços voltados para o atendimento de demandas da classe de menor
poder aquisitivo. Segundo Costa
O crescimento populacional provocou um adensamento no núcleo central,
obrigando seus habitantes a irem gradativamente se afastando para as áreas perifé-
ricas. Houve uma seleção de atividades permanecendo, no centro, as tipicamente
comerciais. (COSTA, 2009, p.157).

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Com isso, o Centro voltou-se predominantemente ao comércio popular com o co-
mércio varejista e ambulante, com presença marcante do circuito inferior da economia
(SANTOS, 1979). Por outro lado, observa-se as novas centralidades resultantes da expan-
são do tecido urbano e das novas lógicas de uso e consumo. Para Dantas (2012, p.63):
É a possibilidade de atendimento de suas necessidades materiais e imateriais fora
do Centro da cidade de Fortaleza o motivador do abandono do Centro pelos seg-
mentos das classes de maior poder aquisitivo da sociedade fortalezense, tornando-se
seus “novos usuários”, basicamente, a população de baixa renda, camelôs e pedintes
(DANTAS, 2012, p. 63).
353 //
Fortaleza é atualmente uma metrópole multifuncional com preponderância da ativi-
dade comercial que lhe garante uma enorme área de influência que extrapola os limites do
estado. No que tange às relações intraurbanas a cidade se reconfigura com visíveis mudan-
ças sócioespaciais. O advento do shopping center alterou sobremaneira, o perfil urbano da
cidade. Essa nova forma de consumo instituída por esses equipamentos de grande porte
é acompanhada pelos condomínios fechados e loteamentos murados que exigem uma
reestruturação do sistema viário, responsável pelo esgarçamento da malha e aumento con-
siderável do uso do automóvel particular.
É neste contexto que emerge a necessidade de aprofundamento de pesquisas de inves-
tigação de Fortaleza, que passa por reestruturações face às novas áreas comerciais que se
consolidam na metrópole e sua região metropolitana.
Conforme Salgueiro (1995, p. 183),
O comércio é importante para a cidade por uma série de razões. Em primeiro
lugar, a troca é aí uma atividade tão significativa que diversos autores veem nela a razão
essencial do urbano. [...] Em segundo lugar, o comércio e alguns serviços contribuem
fortemente para definir a estrutura dos núcleos de povoamento e para a integração fun-
cional dos bairros periféricos. [...] Em quarto lugar, o comércio é um meio poderoso de
intervenção urbanística através da sua capacidade polarizadora [...].

Acompanhando a tendência mundial de investimento no setor terciário, a metrópole


de Fortaleza não se firma como cidade industrial, mas avança como cidade do terciário,
em razão do crescimento do comércio e dos serviços, das atividades ligadas ao turismo,
ao mercado imobiliário e ao agronegócio, atendendo na maioria das vezes às demandas
espaciais que ultrapassam as fronteiras do Ceará e do Brasil.
O comércio faz cidade ao atrair clientes e mercadorias, ao vivificar determinadas
áreas e precipitar o declínio de outras, mas a sua evolução, do ponto de vista eco-
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nómico e espacial, é também influenciada pelas mudanças da sociedade, a transfor-


mação dos valores e estilos de vida, a evolução dos aglomerados da estrutura urbana
(SALGUEIRO; CACHINHO, 2009, p. 10).

As transformações na economia mundial fazem com que o comércio ganhe uma nova
dinâmica na cidade, atuando no processo de urbanização dispersa. O predomínio do setor
terciário de Fortaleza reflete na configuração espacial urbana com influência nas relações
para além da capital e sua região metropolitana, bem como no espaço transnacional.
Com o abandono da antiga rede urbana em que a hierarquia se dava entre as cidades
vizinhas, da maior para a menor, hoje são várias as redes que se articulam a espaços cada
vez mais longínquos. Isto pode ser constatado pela rede de relações que Fortaleza mantêm,
354 //
seja para distribuição e consumo final da produção, seja para suprir as demandas das di-
versas etapas da produção.
Desta forma, o comércio, como parte do terciário influencia fortemente as cidades,
pois se percebem práticas socioespaciais de diversos agentes, como comerciantes, promo-
tores imobiliários, produtores/fabricantes, consumidores.
Os shoppings se apresentam como um contínum na ampliação do processo de repro-
dução do capital, seja o capital comercial, financeiro ou imobiliário.
Não podemos esquecer que o shopping-center envolve o sistema rentista do
capital imobiliário, ou seja, os espaços das lojas são alugados e, além disso, é cobrado
um percentual sobre os lucros de cada loja; portanto, a renda permanente do aluguel
acrescida do percentual de lucros sobre as vendas. Lembro aqui que esses grandes
negócios imobiliários tiveram, desde o início, a participação de bancos privados e
públicos... (PINTAUDI, 2018, p.11)

Este processo se intensifica durante os anos 1980 e nos anos 1990. Novas atividades
começam a surgir em áreas não centrais, evitando as possíveis desvantagens da área central
e, ao mesmo tempo, beneficiando-se das vantagens das áreas distantes do centro.
[...] a criação de “novas centralidades” contribuindo para lançar as bases de uma
estrutura policêntrica de territórios ligados em rede à custa da perda da importância
docentro tradicional e da estrutura monocêntrica de base hierárquica, ao mesmo tempo
em que favorece a proliferação de implantações de tipo pontual (centros comerciais,
condomínios de luxo, grandes edifícios de escritórios, conjuntos de habitação social,
parques temáticos), isoladas, ou no seio de territórios com outro uso, que adquirem
grande visibilidade e se opõem à organização tradicional em manchas homogêneas.
Representam a reapropriação da centralidade por atividades e grupos sociais de
maior poder econômico que se vêm justapor ao tecido preexistente e introduzem ruptu-

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ras bruscas entre os territórios ocupados pelos vários grupos e organização que, embora
sejam contíguos, não apresentam qualquer continuidade (SALGUEIRO, 1998, p. 42).

O centro de Fortaleza, entretanto, permanece exercendo suas funções e mantendo sua


centralidade sobre a cidade. A despeito disto, não se pode negar a perda da hegemonia de
outrora do centro da cidade.
Com a continuada descentralização da atividade comercial, a multiplicação das
formas de comércio, o aparecimento de novos centros de comércio e serviços espe-
cializados, tanto na cidade como na periferia, e a perda de importância do Centro
de comércio tradicional, o esquema “clássico” de organização urbana da activi-
dade começa a ser desafiado na sua dupla vertente da estrutura hierárquica e da
355 //
proeminência do centro único. Assiste-se à substituição progressiva deste modelo
de organização por outro, mais complexo, constituído por vários pólos, uns mais
generalistas outros mais especializados, no seio do qual se desenvolvem complemen-
taridades e concorrência entre diferentes tipos de centros, formas de comércio e for-
mato de estabelecimentos. Entre as novas centralidades e as antigas, como mercados
e “velhos” centros, se partilham os fluxos dos consumidores determinados agora por
um complexo de factores e não apenas pelo simples princípio da proximidade e da
centralidade (SALGUEIRO; CACHINHO, 2009, p. 17).

Economia urbana de Fortaleza

Fortaleza é a quarta cidade mais populosa do país com uma população, conforme
IBGE (2022) de 2.428.678 habitantes. Contudo, mesmo concentrando mais de 60% da
população do Estado do Ceará, entre os anos de 2000 e 2010, o ritmo de crescimento
populacional de Fortaleza já apontava redução (Muniz, 2014) com crescente dispersão
para a RMF e demais municípios do estado, dentre outras coisas, diante do incentivo à
interiorização nos investimentos produtivos.
Para compreender o reflexo do contexto de reestruturação urbana e o peso da atividade
comercial na economia fortalezense é preciso primeiramente caracterizar em quais setores
econômicos se fundamentam a economia urbana da capital.
Fortaleza concentra as principais atividades econômicas e a oferta majoritária de servi-
ços e equipamentos. O forte domínio da capital fortalezense reflete o desequilíbrio da rede
urbana cearense, com número limitado de cidades de porte intermediário, que tem origem
nas características estruturais da formação socioespacial do Estado do Ceará.
Evidencia-se em Fortaleza a importância dos setores mais dinâmicos, tais como, servi-
ços, administração pública e a indústria, conforme Tabela 1. Isso é reflexo da atuação do
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governo do estado que atuou por meio de diferentes estratégias para avançar na reestru-
turação do capital, notadamente para setores da indústria, do turismo, dos serviços e do
agronegócio de exportação.
Nota-se também a participação crescente da administração pública em Fortaleza
mesmo no período de crise (2016 a 2019), passando de 15,6% para 16,9%; por outro
lado, a participação no setor industrial, embora também representativa, vem apresentando
descontinuidade, com crescimento no início do período de crise econômica de 1,1% e
queda no período pré-pandemia, chegando a 13,7% em 2019.
356 //
Tabela 1 – Valor Adicionado Bruto Setorial a preços correntes (R$ 1.000)
Fortaleza
2014 2015 2016 2017 2018 2019
VAB Total 100 100 100 100 100 100
VAB Agropecuária 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1
VAB Indústria 16,8 17,9 17,4 13,7 14,0 13,7
VAB Serviços, exclusive administração 68,4 66,5 67,1 69,8 69,8 69,3
VAB Administração Pública 14,8 15,6 15,4 16,4 16,1 16,9
Fonte: IBGE.

A política industrial exerce papel fundamental quanto à concessão de incentivos de


interiorização, entretanto ocorre forte concentração industrial na capital e nos municípios
metropolitanos.
Como é possível observar na Tabela 1, dentre as atividades econômicas, o setor de
serviços possui a maior participação do Valor Adicionado Bruto (VAB) em Fortaleza com
69,3% em 2019. Isso reforça a pujança desse setor na economia da capital, que se sobressai
como metrópole do terciário, em razão do crescimento do comércio e dos serviços, para
atender às demandas da população e de outros setores da economia, inclusive o turismo, o
agronegócio e o mercado imobiliário.
Ademais, a oferta de empreendimentos imobiliários somada ao crescente fluxo do
turismo nacional e internacional propiciou a construção de complexos turístico-imobiliá-
rios. Empreendimentos ligados ao imobiliário turístico, como resorts, flats, condomínios
e condomínios-hotéis, vêm ressignificando cidades litorâneas, imprimindo uma série de
mudanças na produção do espaço litorâneo metropolitano.
O turismo, na condição de atividade dinamizadora da economia da capital, impacta
outros subsetores, a exemplo dos de alojamento, alimentação, transporte, armazenagem e
distribuição. Dessa forma, a valorização dos espaços litorâneos para o lazer e para o turis-
mo impulsiona o setor de serviços e o comércio.
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O comércio ligado à produção têxtil e confeccionista tem forte representatividade
em Fortaleza e, por conseguinte, no Ceará, com extensão para escala regional, nacional e
internacional (Muniz, 2014), atraindo um grande contingente de compradores, princi-
palmente sacoleiras e turistas provenientes de outros estados, e países, como Cabo Verde,
Guiana Francesa e Suriname.
Em termos de serviços, Fortaleza destaca-se nos setores educacionais e de saúde.
Entretanto, os serviços no período de crise e inflexão diminuíram a participação setorial
na capital em 2015 em 2,1%, muito embora, a partir de 2016 apresenta um pequeno
crescimento de 0,6% para quase estabilizar até o período pré-pandemia em 69%.
357 //
Em estudos anteriores, Muniz e Silva (2020) e Muniz(2022) retratam questões rele-
vantes ligadas à economia urbana e ao mercado de trabalho cearense e metropolitano de
Fortaleza, em particular. Em Fortaleza a instabilidade no mercado de trabalho foi agravada
pela pandemia. Os fatos evidenciam um crescente número de desligamentos de empregos
formais acompanhados, ao mesmo tempo, de admissões em alguns segmentos.
O emprego formal de Fortaleza, mesmo em um ano atípico de pandemia, continua
como destaque para os grupos ocupacionais nos setores de serviços, comércio, indústria e
construção civil, conforme Gráfico 1.

Gráfico 1 – Estoque de Empregos e Remuneração Média em Fortaleza

Fonte: RAIS (2020).

Já os serviços em Fortaleza, que é o de maior peso na economia, foi o mais atingido


pela pandemia de Covid-19; decresceram 13,6 % no primeiro ano da pandemia (2020),
sobretudo por demandar maior atendimento ao público do que outras áreas.
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A capital cearense é geradora de fluxos de toda ordem, sendo um importante polo


comercial e de prestação de serviços.
No desagregado dos dados RAIS quanto ao setor de serviços, o segmento que se so-
bressai logo após administração pública, saúde, educação e serviços sociais com 247.079
são os Serviços de Informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profis-
sionais e administrativas com 195.023 estoque de empregos em 2020. Atividades ligadas
ao serviço delivery, o comércio eletrônico e o teletrabalho foram intensificados com o
agravamento da pandemia.
No recorte temporal de 2005 a 2021, é possível ver no gráfico 2 construído a partir
da tabulação de dados quantitativos do RAIS(Relação Anual de Informações Sociais), o
358 //
crescimento dos estabelecimentos comerciais no intervalo de 2010 a 2017, acompanhados
de uma queda no ano de 2018, mas logo após (2019 a 2021) observamos crescimento de
estabelecimentos comerciais, inclusive no ano de 2020 que é um ano atípico devido as
consequências advindas da pandemia de Covid, estabelecimentos comerciais, passando de
76,232 estabelecimentos para 86.177 estabelecimentos comerciais.

Gráfico 2 – Estabelecimentos Comerciais em Fortaleza – 2005-2021

Fonte: RAIS. Elaboração própria.

Quanto a representatividade do emprego no comércio em Fortaleza, é possível analisar


pelo gráfico a seguir, que Fortaleza ocupa papel de destaque e que assim como os estabeleci-
mentos comerciais também houve um aumento do emprego no intervalo de 2005 a 2014,
quando então segue em declínio, até uma rápida recuperação em 2019, já no ano de pan-
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demia o reflexo se fez notório na redução de empregos, passando de 144.571 para 132.733.
Na escala estadual é a RMF que se destaca na representatividade do setor comercial e
nesta o destaque é para a capital (Muniz, 2022). Em Fortaleza tem-se o bairro Jacarecanga,
adjacente ao espaço central da cidade como espaço tradicional da produção têxtil e confec-
cionista e hoje notadamente bairro residencial, de comércio e serviços.
Partindo desse pressuposto, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, tomando como
base o contexto histórico e as diferentes modificações na configuração espacial do bairro
Jacarecanga desde sua origem, como bairro aristocrático da cidade, passando por seu período
de industrialização, com a criação da primeira zona industrial do Estado, notadamente a Av.
Francisco Sá e os bairros do entorno da Avenida, incluindo o bairro Jacarecanga.
359 //
Gráfico 3 – Vínculos do Comércio em Fortaleza – 2005-2021

Fonte: RAIS. Elaboração própria.

Localizado na zona oeste de Fortaleza, o bairro Jacarecanga tem seu início por volta da
década de 1920, nas proximidades do riacho de mesmo nome, quando a elite fortalezense
da época encontrou naquele espaço o refúgio à conturbação do centro da cidade.
Nos primeiros anos do século XX, o Centro de Fortaleza, primeiro local de concen-
tração dessa elite, passa por um processo de reestruturação com a inserção do comércio
e serviços, atrelados ao adensamento populacional oriundo da chegada de imigrantes do
interior do Estado castigados pela seca persistente. Esta mudança passou a incomodar a
classe mais abastada que logo começou a se deslocar para Jacarecanga, e o bairro assim foi
se urbanizando.
No entanto, esse status de opulência de bairro aristocrático só se estendeu até a década
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de 1930 quando segundo AMORA (2005), surge o período de implantação das primeiras
indústrias no Ceará, período que compreende o final do século XIX estendendo-se até os
anos de 1950, dando início a uma nova configuração espacial do bairro: implantação de
indústrias e comércios, a chegada do operariado na cidade, construção de vilas. O bairro
cheio de rugosidades ganha novos fluxos, novas classes sociais e espacialidades. E então
novamente a classe elitista se desloca, dessa vez, para os bairros Benfica, Praia de Iracema
e Aldeota.
A história do bairro Jacarecanga se desenvolveu dentro da trajetória industrial, identi-
ficando-se três períodos de implantação industrial: “o primeiro inicia-se no final do século
XIX e estende-se até os anos 1950; o segundo, compreende os anos 1960 até meados
360 //
da década de 1980, quando começa um terceiro período, ainda em curso” (AMORA
2005, p.371). Durante cada um desses períodos do desenvolvimento industrial, o bairro
Jacarecanga é permeado desde seu início, pela reestruturação do seu arranjo espacial, com
o surgimento de novos fixos e fluxos, reescrevendo a dinâmica do bairro.
A ação do poder público na construção de distritos e pólos industriais na região me-
tropolitana, a oferta de atrativas vantagens fiscais para instalação de empresas em cidades
interioranas favoreceram a migração de indústrias da capital para outros municípios da
RMF, como Maracanaú, Horizonte, Pacajus e o esvaziamento da função industrial ao
longo dos bairros no entorno da av. Francisco Sá, como o Jacarecanga.
Hoje, apesar de ainda existirem algumas indústrias em funcionamento, a configuração
territorial do Jacarecanga é outra, deixando de ser prioritariamente industrial e passando
a ser um bairro comercial, de serviços e residencial, e, a ocupação é majoritariamente de
famílias de baixa renda. Torna-se então visível a influência da atividade industrial na es-
truturação do espaço do bairro, bem como sua migração para outros polos, pois também
modificou profundamente a organização interurbana do Jacarecanga.
Neste percurso e já em outro contexto tem-se com a desconcentração industrial, a
nova dinâmica proporcionada pela construção do Centro Fashion Fortaleza em local antes
ocupado pela antiga Indústria São José, no bairro delimitado para o presente estudo. O
arranjo espacial advindo com a implantação de um novo agente modificador de sua dinâ-
mica, o Centro Fashion Fortaleza, será tratado nas seções seguintes.

O Centro Fashion

O Centro Fashion é um empreendimento localizado na avenida Filomeno Gomes,


430, no bairro Jacarecanga, entre o Cemitério São João Batista e a Vila São José, em
Fortaleza, Ceará (Figura 1).
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Com cerca de 70 mil metros quadrados, o Centro Fashion foi inaugurado em 2017 e
conta com 8400 boxes e 300 lojas. Este empreendimento ligado ao comércio de confecção
chegou com a proposta de movimentar o mercado popular cearense além de, proporcionar
uma melhor estrutura aos feirantes da rua José Avelino, já que parte dos permissionários
atuantes no início do empreendimento também eram ou ainda são originários desta feira.
O centro Fashion possui 4 andares e é dividido em setores diferenciados por cores, são
estes: os setores verde, amarelo, azul, branco, roxo. Os corredores do empreendimento têm
um predomínio de categoria (revendedores ou fabricantes) e possuem nomes de ruas fa-
mosas do centro da cidade, como a Coronel Ferraz e a General Sampaio, os boxes também
possuem números e a sequência desses números é indicada por placas.
361 //
O setor Verde é um dos mais movimentados pelo fato de estar na entrada. A maioria
das lojas deste setor trabalha com produtos para revenda, apesar do número de lojas com
confecção própria ou mista, ou seja, revenda e confecção própria, ter crescido nos últimos
anos. Em maioria, grande parte dos boxes comercializam peças jeans femininas, mas há
também, em minoria, lojas com artigos infantis, acessórios para celular e pet shop. A
média de preços deste setor costuma ser semelhante aos preços apresentados na feira da
José Avelino, de onde migraram muitos dos permissionários presentes no Centro Fashion.
No setor amarelo, temos o predomínio de revendedores, sendo visível uma concentração
de boxes de moda praia, as lojas deste setor vendem tanto produtos de fabricação própria,
como biquínis e saídas de praia, como revendem acessórios, como chapéus e óculos de sol.
No setor azul já podemos identificar boxes com fabricantes, sendo assim, os preços já
são mais reduzidos com produtos de cerca de R$ 10,00. No setor Azul encontramos, em
sua maioria jeans, roupas femininas e masculinas, as lojas que trabalham com revenda em
sua maioria são as de cama, mesa e banho e as de acessórios para celular, que apesar de não
representarem a maioria no setor Azul, estão mais presentes nesta área do que nos demais
setores do Centro Fashion.
O setor branco concentra as megalojas, as boutiques, com preços mais diferenciados
que os demais setores. É nítida a diferença de estrutura entre o setor branco e os demais,
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Fig. 1 – Mapa de Localização do Centro Fashion.º Fonte: Muniz e Souza, 2021


362 //
lojas similares às lojas de Shoppings Centers, algumas com até dois andares, o que con-
trapõe aos demais boxes do complexo, por serem bem menores. Neste setor estão lojas de
segmentos variados, existindo até mesmo filiais de lojas reconhecidas na cidade, logo, os
valores encontrados são consideravelmente maiores do que os das demais lojas.
No último andar é onde se encontra o setor Roxo, durante a pesquisa concluiu-se que
este é o setor mais vazio do complexo, com um fluxo menor de pessoas e menos boxes
ocupados. Tal setor também tem o predomínio se fabricantes e também pode ser conside-
rado o setor mais barato do local, onde grande parte dos produtos vendidos variam entre
R$ 10 a R$ 30. Pode-se dizer que o menor fluxo no setor roxo ocorre pelo fato de estar
localizado no último andar do empreendimento. Nesta área a maioria dos boxes trabalha
com produtos de confecção própria.
Além dos boxes, o empreendimento apresenta todo um equipamento estrutural (figu-
ra 2) para receber permissionários e clientes tanto do varejo como do atacado.
O grande diferencial apresentando no Centro Fashion, é a possibilidade da hospeda-
gem, pois o local conta com um hotel, localizado a 700 metros do empreendimento, perto
da Vila São José, o espaço conta com 370 leitos, recebendo pessoas de todas as regiões
do país, em sua maioria guias, sacoleiros e motoristas, que desembarcam muitas vezes na
pequena rodoviária que há por perto. Os quartos podem ser individuais, duplos, triplos

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Fig. 2 – Infraestrutura do Centro Fashion.º Fonte: Muniz e Souza (2021)


363 //
ou para até 4 pessoas, com diárias mínimas em torno de 50 reais, também é possível pagar
uma taxa para guardar pertences e usar os chuveiros, sem pernoite.
Podemos afirmar que o fato de o local possuir um hotel e uma mini rodoviária, pro-
porciona uma melhor estrutura de permanência para quem se desloca de uma outra loca-
lidade para o Centro Fashion. O Centro Fashion atrai compradores de diferentes regiões
do Brasil, como o Sudeste, mais precisamente de São Paulo, além da região Norte e claro
do próprio Nordeste. Isso ratifica a elevada rede de alcance do empreendimento no que
diz respeito às compras no atacado tendo em vista que os compradores de outras regiões
brasileiras, em sua maioria, são o que chamamos de sacoleiros, compradores de uma quan-
tidade grande de mercadorias para a revenda.
Para verificar o perfil de empreendedores do Centro Fashion foram aplicados questio-
nários3 com 28 pessoas que se dividiam em dois grupos: permissionários e funcionários.
O questionário, cujo resultado apresentamos, a seguir, enfocou questões ligada à gêne-
ro, faixa etária, escolaridade, perfil do box, tempo de funcionamento, modo de divulgação
e venda, tipos de fabricação e impactos da pandemia.
O gênero feminino é predominante no Centro Fashion, como se observou, após coleta
das respostas dos questionários. Nesse cenário, as mulheres são maioria em porcentagem
de funcionários e permissionárias do Centro Fashion, representando 78,6%, enquanto os
homens representam apenas 21,4% do total de 28 questionários respondidos.
No que se refere à faixa etária com maior porcentagem das respostas ao questionário
aplicado é a de 41-51 anos, representando 28,6% da amostra. Ressaltamos que as faixas
etárias de 18-24 e 25-30 anos, representam 21, 4%, respectivamente.
Com o questionamento acerca da faixa etária dos trabalhadores do centro Fashion foi
constatado que no quesito idade, apresenta-se de certa forma bem dividida, com proximi-
dades nos percentuais de faixas etárias específica de 18 a 30 anos, totalizando a maioria de
42.8%. Já a faixa etária de 31 a 40 anos é a menos representativa neste empreendimento.
Pudemos analisar a média de escolaridade por níveis, sendo: Ensino Fundamental Completo,
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Ensino Fundamental Incompleto, Ensino Médio Completo, Ensino Médio Incompleto,


Ensino Superior Completo e Ensino Superior Incompleto. A maior porcentagem se encontra
no nível de Ensino Médio Completo com 55,6%, em segundo está o nível de Ensino Superior
Incompleto com 18,5%, enquanto que o Ensino superior completo com 11,1%.
Sobre a maior porcentagem, vale ressaltar o perfil de pessoas que concluem o ensino
médio e se encontram na necessidade de encontrar uma renda e ainda sobre a porcen-
tagem de ensino superior completo e incompleto, durante a aplicação do questionário,

3
Questionários aplicados com ajuda de uma equipe de alunos de graduação do curso de Geografia orienta-
dos durante disciplina ministrada pela autora principal.
364 //
algumas pessoas relataram terem outras profissões fruto da graduação, mas que pela falta
de emprego, principalmente durante a pandemia, optaram pela venda no atacado e varejo
confeccionista do Centro Fashion como forma de superar a crise financeira.
Acerca do Perfil do Box verificamos a situação em que o empreendedor se encontra,
em relação ao box, se aluga ou é permissionário, constatamos que 57,1% dos comerciantes
possuem box próprio e 42,9% é alugado. Em 2017, o valor para ser permissionário de um
box custava cerca de 15 mil reais, além das taxas de manutenção e limpeza, que possuem
variáveis a depender do período e frequência de funcionamento da loja.
Quanto ao tempo de funcionamento no Centro Fashion, a maioria dos boxes estava a
menos de um ano, representando 37,0%, visto que grande parte dos box incluídos nessa por-
centagem estavam com menos de 5 meses de funcionamento, alguns com menos de 1 mês. Em
contrapartida, as lojas com 4-5 anos de funcionamento são de propriedade dos que se encon-
tram na faixa etária de 41-50 e 51 anos acima, com a venda do setor de cama, mesa e banho.
Em relação ao tipo de produto vendido, sendo de fabricação própria ou revenda ou a ver-
tente mista, que seria a venda de produtos de fabricação própria e revenda, demonstra que mais
de 50% das lojas do Centro Fashion vendem produtos de fabricação própria, enquanto 37%
vendem produtos de revenda, alguns importados, destacando o setor de cama, mesa e banho.
Quanto à forma de divulgação em Rede Social ou venda, o Instagram, com 43,1%, é a
rede social mais utilizada em divulgação e venda. Enquanto 75% possui comércio online,
os que se utilizam do WhatsApp é de 31%, Facebook é de 22,4% e os que não utilizam
nenhuma rede social para comercialização ou meio de divulgação é de 3,4%.
É valido ressaltar os impactos da pandemia de COVID-19 no Centro Fashion, pois foi
necessária a tomada de uma série de medidas para reduzir sua difusão. Houve severo controle
sobre o desenvolvimento de atividades e a definição do que era essencial durante o lockdown
revelou cidades com comércio e indústrias com suas portas fechadas, redução acentuada dos
fluxos e fechamento de diversos estabelecimentos que acabaram por comprometer as pessoas
que dependiam da venda como renda financeira. No Centro Fashion ocorreu o fechamento
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temporário, estimulando os vendedores na busca por alternativas viáveis para a venda. As
redes sociais foram a principal alternativa no contexto de pandemia.
Na pesquisa foi questionado sobre os impactos da pandemia nos negócios, sendo unâ-
nime respostas que afirmavam as dificuldades nas vendas, como por exemplo: “as vendas
online, foram o sustento durante a pandemia”; “vendia online antes, mas com a pandemia
passei a vender muito mais pelo online”; “as vendas caíram com as medidas de fechamen-
to, contas a pagar, demissão de trabalhadores”; “passamos um tempo fechado sem atendi-
mento on-line. Baixamos preços para não ficar parado e voltamos com on-line e quando
retornamos ao presencial tivemos que fazer promoções, renovar a fidelidade dos clientes e
atrair novos” (Pesquisa Direta, 2022).
365 //
Considerações Finais

A dinâmica comercial de Fortaleza caracterizada pela predominância do comércio


popular guarda estreitas relações com o processo de expansão urbana da cidade e o surgi-
mento de novas centralidades. Tal fator foi desencadeado a partir da migração de serviços
e funções iniciadas em meados do século XX. Ao longo deste período, o centro da cidade
deixou de se constituir em espaço de lazer e moradia das elites locais, especializando-se na
função de comércio popular. A instalação de equipamentos como o centro Fashion na ad-
jacência da área central, como também o comércio preponderantemente ligado ao circuito
inferior da economia na rua José Avelino ratificam tal característica.
Este estudo permitiu identificar as relações que o Centro Fashion tem com o cres-
cimento do comércio na economia de Fortaleza e como este fixo espacial é reflexo da
reestruturação urbana e a difusão de fixos espaciais ligados ao comércio popular nas sub-
centralidades da capital.
Foi possível evidenciar as interelações entre setores secundário e terciário, com mudan-
ças na forma de equipamentos urbanos e refuncionalização, como também a imbricação
entre os circuitos superior e inferior, o impulso ao trabalho e consumo no comércio de
confecção de moda popular a preços baixos, com destaque do Ceará no mercado nacional
e internacional.
O Centro Fashion trouxe uma ressignificação para o bairro Jacarecanga, além de im-
pactar na economia local com os serviços que abrange, os empregos gerados e o capital
utilizado no consumo e investimento do setor terciário, sem esquecer o fato do comércio
no Centro Fashion permitir uma relação entre diversos Estados brasileiros e estrangeiros,
acarretando uma forte movimentação da economia Cearense.
Ademais o presente estudo permitiu entender como o Centro Fashion é de certo modo
um regulador do espaço urbano do centro da cidade, implicando na mobilidade de muitos
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compradores da capital ocasionando congestionamento das ruas do entorno, como tam-


bém atraindo consumidores vindos do interior, de outros Estados e até de outros países.
A ação estatal nos centros de produção e comercialização têxtil e confeccionista reflete
no desenvolvimento de novas dinâmicas, no caso do Centro Fashion, formado em grande
parte por antigos ambulantes da feira da Rua José Avelino, é observada a influência das ações
governamentais sobre os comerciantes e consequentemente sobre o espaço, uma vez que a
saída e chegada de ambulantes dos dois locais se relacionam com o planejamento urbano.
366 //
Referências bibliográficas

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
368 //
Produção do espaço: os bens públicos
no planejamento urbano de Fortaleza

Henrique Eder Cavalcante de Araújo1 Tiago Estevam Gonçalves2


Maria Clelia Lustosa Costa3

Introdução

A produção do espaço urbano perpassa pela constituição e uso de equipamentos pú-


blicos que são utilizados para fomentar as políticas públicas e atender às necessidades
da população. Refletimos que o estudo impulsiona mais debates sobre a importância do
patrimônio público municipal na expansão, consolidação e na dinâmica urbana, pois é
instrumento de políticas públicas efetivas para a cidade de Fortaleza (Figura 01).
Assim, tem-se como objetivo central: estudar a produção do espaço urbano por meio
do entendimento dos bens públicos no planejamento de Fortaleza-CE. Tem-se com ob-
jetivos específicos: identificar os tipos de equipamentos públicos distribuídos no espaço
urbano da capital cearense; dialogar sobre a importância dos bens públicos no direito à
cidade e a justiça social; discutir a governança urbana e o papel do poder público por meio
dos instrumentos urbanísticos na promoção e garantia dos uso e ocupação dos bens públi-
cos pelos citadinos. Daí tem-se como questão de partida: “Como a governança urbana e
o poder público, por meio dos instrumentos urbanísticos, promovem e garantem os uso e As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ocupação dos bens públicos pelos citadinos?”.


O recorte temporal tem como marco a legislação aplicada ao ordenamento urbano
municipal, em especial a lei federal de parcelamento do solo, lei federal 6.766, de 19 de
dezembro de 1979 (dispositivo legal que delimitou a destinação específica de bens pú-
blicos para a Administração Pública municipal, por meio do parcelamento do solo – nos
casos de loteamentos, desmembramentos – com percentuais definidos de doação) e a lei

1
Prefeitura Municipal de Fortaleza – henriquecavalcantearaujo@yahoo.com.br
2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará-IFCE – tiagoestevam@ifce.edu.br
3
Universidade Federal do Ceará – clelialustosa@gmail.com
369 //
de uso e ocupação do solo municipal, lei 5.122-A, aprovada no governo Lúcio Alcântara
(1979-1982), em 13 de março de 1979, pois apresentam forte relevância num dos princi-
pais instrumentos da ação do poder público municipal que são o processo de aquisição e
destinação dos bens públicos municipais. Atrelado a Planos Diretores, leis ordinárias que
motivaram os estudos de 1979 a 2020, lapso temporal da pesquisa.
O rebatimento a nível municipal da lei federal de parcelamento, de 1979, com a
observância dos mecanismos oriundos da Constituição Federal de 1988 e das leis infra-
constitucionais – como o instituto da desapropriação – e outras normas do município de
Fortaleza até os dias atuais serão o referencial jurídico/legislativo do nosso estudo.
Neste contexto, parte-se da leitura sobre: origem, classificação, nomenclatura e dispo-
nibilidade dos bens públicos municipais que tem como base legal a Constituição Federal
de 1988, a lei federal de parcelamento do solo (n.º 6766/1979), o Código Civil de 2002
(n.º 10.406/2002), a lei de licitações (n.º 8.666/1993).
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Fig. 01 – Mapa de Localização de Fortaleza-CE. Fonte: Elaborado pelos autores (2023)


370 //
Deste modo, foram realizados levantamento e fichamento bibliográfico e documental –
com a catalogação de leis, documentos e leitura voltados para compreender teórica e empiri-
camente os aspectos da expansão, planejamento de Fortaleza e da formação dos bens públicos.
No campo dos procedimentos metodológicos, usamos modelos computacionais,
como os Sistemas de Informações Geográficas – SIGs que foram necessários para mapear e
possibilitar uma leitura espacial para assim tecermos uma caracterização e o entendimento
empírico dos bens públicos municipais. Além disso, utilizamos de pesquisa documen-
tal, coletada em órgãos públicos municipais, em especial na Secretaria de Planejamento,
Orçamento e Gestão – Sepog, Consideramos que os bens públicos em Fortaleza têm em
sua grande maioria como proprietário o próprio município, como 3.541 bens. A União
disponibiliza para uso municipal 65 bens. O Governo do Estado do Ceará 36 bens e os
particulares (comodato) disponibilizam 25 bens para uso público municipal.

Legislação Urbana

A legislação municipal de Fortaleza descrita na Figura 02, 1962-1989, já demonstra a preo-


cupação do legislador em reservar um percentual das terras oriundas do parcelamento do solo
para a utilização pelo poder público municipal. Evidenciamos, outrossim, que a lei federal de
parcelamento do solo, de 1979, indica as diretrizes que os municípios devem basear-se.
Deste modo, as cidades brasileiras recebem os parâmetros necessários para o orde-
namento urbano efetivo, por isso, exporemos o surgimento da base patrimonial a partir
do advento da lei federal de parcelamento do solo, para evidenciarmos a importância da
legislação urbanística no processo de aquisição dos bens públicos municipais.
A lei federal n.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, promulgada no período da
Ditadura militar brasileira, dispõe sobre o parcelamento do solo urbano municipal, com as
orientações sobre as ações que devem ser tomadas pelo poder público a nível das cidades,
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no intuito do ordenamento urbano, com definições claras a respeito de que o parcelamen-
to deve ser realizado por loteamentos ou desmembramento e diretrizes como a infraestru-
tura básica necessária para o parcelamento do solo urbano, bem como os terrenos com uso
apropriados e os sem condições de parcelamento, como os terrenos alagadiços e sujeitos a
inundações, aterrados com material nocivo à saúde pública etc.
Alguns requisitos urbanísticos como o as dimensões mínimas do lote, as articulações
com vias adjacentes, bem como a parte do loteamento/parcelamento a ser destinada ao
poder público municipal são diretrizes que irão nortear os elementos urbanos oriundos
das glebas. Referindo-se em específico à destinação de terras ao poder público municipal
temos os seguintes artigos:
371 //
As áreas de vias, as praças, as áreas destinadas a edifícios públicos, assim como
outros equipamentos urbanos que são destinados ao uso público coletivo ou para
cumprir uma atividade específica do poder público municipal, como sede de órgãos
públicos são oriundos de loteamentos e desmembramentos na sua grande maioria,
como veremos ao longo deste trabalho.

A lei federal de parcelamento do solo de 1979 institucionaliza a doação compulsória


de parte da área loteada/desmembrada para o domínio público, a partir da data de registro
do loteamento no cartório de registro de imóveis.

Fig. 02 – Percentuais destinados aos bens públicos municipais oriundos do parcelamento do solo municipal –
1962 a 1989. Fonte: H. E. C. Araújo (2022)

No que concerne aos bens públicos municipais, ao contrário do rol taxativo previsto
para a União e os Estados na CF/88, os bens municipais não foram descritos. O cons-
tituinte arrolou no Título VI, capítulo II – da Política urbana – as diretrizes de atuação
urbana, dentre elas a obrigatoriedade do plano diretor para municípios com mais de 20
mil habitantes e o diretrizes sobre planejamento urbano e ordenamento territorial que
devem ser determinados por lei específica, esta que só veio ser efetiva em 10 de julho de
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2001, lei 10.257, chamada de Estatuto da Cidade, na qual trouxe uma série de medidas
que regulam o planejamentos urbano das cidades e também e identificamos que também
contribuem para a formação do patrimônio municipal.
A regulamentação dos artigos 282 e 283, da Constituição Federal de 1988, através da
lei 10.257 – Estatuto da cidade – veio corroborar o caráter participativo e inclusivo, no
processo de democratização do acesso às cidades, em especial ao ratificar o papel da pro-
priedade como função social inequívoca para o bem-estar nas cidades brasileiras.
O Estatuto da Cidade traz às diretrizes gerais, os instrumentos de políticas urbanas, as orien-
tações para a composição do Plano Diretor e as garantias para a busca da gestão democrática das
cidades, que estas devem ter no seu processo de construção e consolidação da propriedade urbana.
372 //
Fig. 03: Embasamento legal sobre os bens públicos municipais Constituição Federal – 1998 a 2017. Fonte: H.
E. C. Araújo (2022)

A Constituição Federal de 1988, reflexo do processo de redemocratização do Brasil,


com seu desdobramento no Estatuto da Cidade buscam espelhar o caráter democrático
e participativo que se faz necessário também nas políticas públicas voltadas para o pla-
nejamento urbano, em especial na elaboração de normas para o ordenamento territorial
baseadas na legislação municipal.
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza – PDDU– FOR, lei
7.061/1992, promulgado no primeiro mandato do prefeito Juraci Magalhães, descreve
em seu art. 89 que a Lei de Uso e Ocupação do Solo – Luos – deve definir os percentuais
destinados ao sistema viário, áreas livres, áreas institucionais e fundos de terras, sem trazer
grandes novidades sobre os percentuais de terras destinados aos bens públicos municipais.
Já na gestão de Antônio Cambraia – 1993-1996 – aprova-se a primeira Luos de Fortaleza
pós-redemocratização do país, lei 7.987/1996, na qual não trouxe grandes novidades ao
já conhecido percentual de terras destinadas aos bens públicos municipais, apenas espe-
cificou em seu art. 16, §3º, que quando excedida a porcentagem de 20% das terras do
loteamento/desmembramento para o sistema viário, o poder público municipal poderá
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utilizar o instituto da desapropriação para aquisição das terras excedentes.
Ressaltamos que essa Luos recebeu trinta e duas alterações até a aprovação da nova lei
de uso e ocupação em 2017, fator que demonstra o caráter imediatista da legislação muni-
cipal e faz-nos indagar se houve efetiva participação popular nesse processo de construção
de importante instrumento urbano para a cidade de Fortaleza.
O Plano Diretor Participativo de Fortaleza – PDPFOR, lei 62/2009, no então gover-
no da petista Luizianne Lins, trouxe alguns mecanismos específicos para as áreas públicas,
como o descrito no capítulo II – da política de terras públicas; a seção IV – do sistema de
áreas verdes; as diretrizes para composição dos fundos de terras, no Art. 178 e os critérios
para a localização de áreas públicas, no art. 180.
373 //
As tipologias e características da atual destinação dos bens públicos
em Fortaleza

A origem, classificação, nomenclatura e disponibilidade dos bens públicos municipais


remontam ao arcabouço legal descrito na Constituição Federal de 1988, a lei federal de
parcelamento do solo (n.º 6766/1979); no Código Civil de 2002 (n.º 10.406/2002), na
lei de licitações (n.º 8.666/1993), nas leis municipais e outros mecanismos infralegais que
disciplinam o funcionamento dos bens na cidade de Fortaleza.
Sobre a relação entre espaço, planejamento urbano e por sua vez o direito urbanísti-
co, mais especificamente as leis que tratam a respeito da cidade, concordamos com Gomes
(2002, p.37) quando afirma que “O espaço é hierarquizado, assim como os poderes que
sobre ele são exercidos. Sua estrutura é complexa assim como o são as disposições formais (da
lei) que o regem e controlam sua dinâmica”. Essa hierarquização e dinâmica social refletida
nas leis que orientam também os bens públicos buscam retratar a complexidade da proprie-
dade pública, com “amarrações legais”, no intuito de regular a ação do agente público.
A origem do bem público municipal é descrita pelas leis infralegais – federais e mu-
nicipais, pois a Constituição Federal é categórica ao explicitar os bens da União e dos
Estados (artigos 20 e 26, respectivamente), mas não faz menção expressa de quais seriam
os bens públicos municipais, só reconhecendo no artigo 30 da Carta Magna a competên-
cia municipal para o ordenamento, planejamento e controle do solo urbano, fator que se
solidifica nos artigos 182 e 183 da carta magna, ao descrever ações e planos que regulam
a política urbana municipal.
Tendo, por conseguinte, na lei de parcelamento do solo federal, lei n.º 6.766 de 1979,
e nos desdobramentos constitucionais como o Estatuto da Cidade, e a nível municipal o
Plano Diretor, LUOS, etc., mecanismos que solidificam a construção da base patrimonial
dos municípios.
No caso de Fortaleza, como veremos, serão analisadas as categorias mais específicas,
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voltadas para origem dos bens públicos municipais e o uso desses bens pela máquina pú-
blica municipal.
Com base na Lei Orgânica do município de Fortaleza, lei n.º1 – de 15 de dezembro
de 2006, nos artigos 103 a 113, um espelho do descrito nos artigos 98 a 103, do Código
Civil de 2002, poderemos analisar a destinação, características e uso dos bens públicos em
Fortaleza.
Já as nomenclaturas utilizadas no Plano Diretor, lei complementar 62/2009 e Lei de
Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo – LPUOS, lei 236/2017 apresentam terminolo-
gias mais próximas do parcelamento do solo, encontradas nos loteamentos e fracionamen-
tos do solo urbano, como as áreas verdes, áreas institucionais, os equipamentos de saúde
374 //
– postos, hospitais, clínicas e farmácias populares; equipamentos de educação – creches,
escolas primárias secundárias e centros educacionais; equipamentos de transportes – ter-
minais rodoviários; equipamentos de lazer e controle urbanístico, como praças, areninhas,
parques e áreas verdes em geral.
O Código Civil de 2002, lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, trouxe a classificação
dos bens públicos, fator essencial para nortear o uso, a destinação, a disponibilidade e a
titularidade, ou seja, reconheceu a disposição dos bens para aplicabilidade pelo ente fede-
rativo na estrutura urbana, no intuito de promover as ações necessárias ao planejamento
governamental. O Código Civil já apresenta a seguinte classificação para os bens públicos:
• Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas
de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a
que pertencerem.
• Art. 99. São bens públicos:
• I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
• II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço
ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou muni-
cipal, inclusive os de suas autarquias;
• III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de
direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas
entidades.
• Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os
bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estru-
tura de direito privado.
• Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalie-
náveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
• Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigên-
cias da lei.
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• Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
• Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, con-
forme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem
(CÓDIGO CIVIL, Lei federal n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

É de suma importância detalhar cada artigo supracitado, no intuito de identificarmos


o enquadramento legal do bem público, de acordo com o Código Civil, no qual detecta-
mos a titularidade, a destinação e as características dos bens públicos.
O domínio público é fator essencial para o convívio social, em especial em espaços
urbanos, pois efetivam a circulação de pessoas e veículos, prestação de serviços essenciais e
375 //
dinamização do ambiente urbano, como nos casos de lagos, lagoas, estrada, ruas e equipa-
mentos de saúde, lazer e educação:
A necessidade de bens que pertençam a todos está no cerne do convívio comunitário,
pois representam à finalidade pública de promover o bem estar social, com políticas efeti-
vas, como foco no interesse público, para isso se fazem imprescindíveis os bens públicos,
com o uso efetivo para o interesse público.
Outro fator relevante sobre as características dos bens públicos, em conformidade com
o descrito nos Arts. 100 a 103 do Código Civil de 2002 são a inalienabilidade, a impenho-
rabilidade, a imprescritibilidade e a não onerabilidade.
Os bens públicos são impenhoráveis, ou seja, não se sujeitam à penhora, não podem
ser objeto de constrição judicial4, por inadimplemento por parte da entidade pública.
Ressalta-se o privilégio e a segurança patrimonial da Administração Pública para resguar-
dar o patrimônio público frente às possíveis intempéries do gestor à época (MAZZA,
2017, p.910).
A imprescritibilidade dos bens públicos significa que seja qual for a sua natureza são
insuscetíveis de aquisição mediante usucapião – prescrição aquisitiva do direito de pro-
priedade – outro mecanismo para resguardar a base patrimonial (MAZZA, 2017, p.911).
A não onerabilidade é preceito legal no qual o bem público não pode ser posto como
garantia, no caso de inadimplemento do ente público, que nenhum ônus real de garan-
tia sobre coisa alheia (penhor, anticrese5 e hipoteca) pode recair sobre os bens públicos
(MAZZA, 2017, p.911).
O regramento dos bens públicos por origem, titularidade, destinação e caracterís-
ticas são dispositivos legais para nortear o sistema jurídico brasileiro e a organização da
Administração Pública em todas as esferas – federal, estadual, distrital e municipal, no
intuito de facilitar o uso desses bens públicos.
O domínio público, essencial para a vida em sociedade, recai sobre as pessoas jurídicas
de direito público interno, citado no artigo 98, referindo-se segundo o Art. 41 do próprio
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Código Civil de 2002, à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e aos de-
mais órgãos e entidades de caráter público criado por lei, ou seja, a titularidade reproduz-se
quanto à natureza da pessoa titular, que no caso dos bens públicos brasileiros aludem sobre
a égide federal, estadual, distrital ou municipal.
No município de Fortaleza existem 126 bens públicos que são propriedade de outras
esferas federativa, estadual e particular, com cessão à municipalidade, no intuito de aten-
der às necessidades locais, como construção de escolas, postos de saúde ou praças, sendo:
4
É o meio pelo qual o titular é impedido de alienar a coisa ou onerá-la de qualquer outra forma.
5
Contrato em que o devedor entrega um imóvel ao credor, transferindo-lhe o direito de auferir os frutos e
rendimentos desse mesmo imóvel para compensar a dívida.
376 //
65 bens federais, dentre eles a orla de Fortaleza, área federal cedida pelo Projeto
Orla6, no qual dentre outras ações é promovida a regularização fundiária e ações de
ordenamento da orla da cidade;
25 bens cedidos por particulares em regime de comodato, numa parceria
público-privada;
36 bens do Governo do Estado do Ceará.

Tabela 01 – Propriedade dos Bens Públicos disponibilizados para o poder público


municipal distribuídos pelas Secretarias Regionais em Fortaleza
SER SER SER SER SER SER SER SER SER SER SER
Propriedade SER I
II III IV V VI VII VIII IX X XI XII
PMF 291 235 230 232 220 463 379 451 349 285 313 93
União Federal 31 11 5 2 - 1 1 - - - 6 8
Governo do Estado do
6 3 3 - 4 3 3 6 - 1 3 4
Ceará
Particular (Comodato) 5 5 4 - - 4 3 1 - 1 1 1
Fonte: Secretaria do Planejamento, Orçamento e Gestão de Fortaleza – Sepog (2021).

Pelos dados acima tabulados, identificamos que a maioria absoluta dos bens públicos
municipais em Fortaleza tem na sua posse/propriedade7 é do próprio município, com in-
serção por todo o perímetro da cidade, tendo nas regionais mais afastadas da área central
da cidade um quantitativo maior de bens públicos. Os bens disponibilizados pela União
Federal, Governo do Estado e por particulares em regime de comodato são escassos e loca-
lizam-se em regiões centrais da cidade.
Os bens disponíveis ao município de Fortaleza, pela União, Governo do Estado e par-
ticulares representam uma pequena proporção dos bens disponíveis, mas são relevantes,
como no caso da orla da cidade, nos bairros Vicente Pinzón, Cais do Porto e Pirambu.
Ao detalhar os dados distribuídos espacialmente na Figura 01, identificamos a seguin-
te distribuição dos bens quanto a origem pelas regiões administrativas de Fortaleza (ver
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tabela 2).
A maioria dos bens públicos municipais em Fortaleza, pelo exposto no Quadro 02,
tem sua origem na disposição legal do parcelamento do solo, através do ordenamento legal
disposto na LPUOS, com as destinações já previstas para áreas verdes, áreas institucionais,
fundo de terras e logradouros.

6
Programa de ação integrada da orla marítima, coordenada atualmente pelo Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão do Governo Federal, no intuito do uso adequado de áreas públicas. Fonte: Ministério
do Meio Ambiente. Disponível em: https://antigo.mma.gov.br/informma/item/941-projeto-orla.html
Consultado em 18/12/2021
7
Entende-se por propriedade o registro no cartório de registro de imóveis – transcrição ou matrícula;
377 //
Tabela 02 – Origem dos Bens Públicos do poder público municipal
distribuídos pelas Secretarias Regionais em Fortaleza
SER SER SER SER SER SER SER SER SER SER SER SER
Origem
I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII
Loteamento Praça/Área Verde 171 130 83 84 130 167 286 184 187 172 192
Desapropriação 68 70 119 92 32 62 23 51 27 32 79 49
Cessão 37 15 8 3 4 5 4 7 1 1 9 12
Loteamento Área Institu-
30 12 10 13 26 89 50 98 43 57 24
cional
Loteamento Conjunto
7 1 8 24
Habitacional
Outros – Compra e Venda 5 6 23 1 3 3 1
Doação 4 5 2 4 1 7 4 4 12 7 2 38
Comodato 4 5 4 4 3 1 1 1
Permuta 2 3 1 1 7 6 1 3 1 1 2
Outros – Logradouro
2 2 1
Público
Outros 1 8 4 10 2 1 2 1
Loteamento Sistema Viário 1 4 1
Adjudicação 1 1
Usucapião 1
Loteamento Conjunto
Habitacional de Interesse 17 21 12 7
Social
Outros – Posse 2 2
Fonte: Secretaria do Planejamento, Orçamento e Gestão de Fortaleza – Sepog (2021)

A destinação dos bens públicos apresenta-se como a forma efetiva de uso dos bens
para melhor adequação ao usufruto da população, com disponibilidade, formas, espaço e
adequação ao dia a dia das necessidades da Administração pública municipal. As tipologias
descritas nos artigos 98 a 103 do atual Código Civil brasileiro é uma nomenclatura geral,
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tendo em cada ente federativo suas especificidades, como no caso de Fortaleza.


Os bens de uso comum do povo, descritos no Art. 99, inciso I são aqueles que podem
ser utilizados por qualquer pessoa, de forma isonômica, independente do consentimento
do poder público, como por exemplo: as ruas, as praias, as estradas, as calçadas.
Esses bens de uso coletivo ou comum são essenciais para locomoção, lazer e estrutura
urbana da cidade, com o uso comunitário também descrito nas leis municipais e planos
previstos para o ordenamento urbano, como o Plano Municipal de Caminhabilidade de
Fortaleza – PMCFor, Projeto Orla e as normas/diretrizes descritas no Código da Cidade e
na atual Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo – LPuos.
378 //
Não identificamos nos dados acostados ao banco de dados disponibilizado pela
Secretaria do Planejamento, Orçamento e Gestão de Fortaleza – Sepog, informações sobre
o quantitativo de logradouro público, calçadas ou outros bens de uso comum do povo.
Podemos perceber, pelo descrito em relação aos bens de uso comum por ente fede-
rativo, que de acordo com a competência, a relação de bens apresenta uma variação sig-
nificativa, como nos bens dos municípios, com logradouros, praças, jardins, ou seja, um
arcabouço de patrimônio público mais voltado para o cotidiano da população.
Os bens de uso especial são aqueles voltados para um uso específico por parte do
poder público, uso administrativo, com prestação de serviço. Ex.: escolas, postos de saúde,
hospitais, quartéis, escolas, veículos oficiais.
Existem 85 tipologias de bens públicos de uso especial em Fortaleza, o que caracteriza uma
grande variedade de tipologias dos bens que a municipalidade oferece aos cidadãos, desde bens
bem gerais como áreas verdes, até bens bem peculiares e restritos a alguns lugares da cidade,
como lavanderias comunitárias, como a identificada na Secretaria Executiva Regional I.
Identifica-se também na tabela supramencionada a caracterização a nível municipal dos
bens de uso especial, com tipologias/nomenclaturas que facilitam a identificação do bem
público municipal e a logística de manutenção e aprimoramento desse patrimônio público.
Consideramos como bens de uso especial as áreas verdes, parques, bosques edifícios
como sede diversos órgãos, escolas, posto de saúde, centros comunitários, Centro de refe-
rência de Assistência Social – CRAS etc., pois esses bens têm ação efetiva para os habitantes
das cidades, em especial de Fortaleza, como o uso para lazer, e também apresentam o uso
regulado por órgãos municipais e prestam serviços públicos como a disponibilização de
mudas à população e recebem, como citado acima, tipologias específicas a nível municipal.
Identificamos uma grande variedade de equipamentos públicos e sua distribuição
pelas 12 regionais, o que evidencia a importância dos bens de uso especial para o cotidiano
da população e o planejamento de políticas públicas que visam o ordenamento urbano de
Fortaleza, bem como a gestão pública da cidade.
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Os bens dominiais ou dominicais constituem patrimônio de direito público sem des-
tinação pública específica, como explicita o parágrafo único do Art. 99 do Código Civil
(CC), configurando-se como estrutura de direito privado, portanto passível de uso pelo
Estado para “fazer renda”. São exemplos de bens dominiais: as terras sem destinação espe-
cífica, os prédios desativados; a dívida ativa, os terrenos de marinha.
Os bens de uso comum e uso especial, como descrito no Art. 100 do C.C., são ina-
lienáveis, ou seja, não podem ser vendidos, comprados, doados, usados como permuta
ou locados enquanto tiverem o uso destinado para algum uso público comum – estão,
portanto, afetados ao bem público.
379 //
Fig. 03: Ecoponto. Bairro Granja Portugal. Fonte: H. E. C. Fig. 04: Escola Municipal Alba Frota. Bairro: Centro.
Araújo (2022) Fonte: H. E. C. Araújo (2022)

Fig. 05: Escola Areninha. Bairro: Granja Portugal. Fonte: Fig. 06: Praça da Juventude. Bairro: Granja Portugal.
H. E. C. Araújo (2022) Fonte: H. E. C. Araújo (2022)

Convertidos em bens dominiais, através do instituto da desafetação, é permitida sua


alienação – transferência de domínio a terceiros, podendo ser feita através do designado na
legislação aplicada ao ordenamento da venda, troca, doação dos bens públicos: leis fede-
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rais: 8.666/1993 – lei das licitações, lei 8.883/1994, lei 11.196/2005, lei 11.481/2007, lei
11.952/2009, Código Civil – lei 10.406/2002, lei 6.383/1976, esta descreve medidas sob
terras devolutas de bens públicos federais.
No caso específico de Fortaleza foi aprovada a lei n.º 10.953, de 06 de novembro de
2019, ainda na gestão do prefeito Roberto Cláudio – PDT, que criou o Fundo Municipal
Imobiliário (FIMOB), no qual autoriza a desafetação e promove a alienação de bens
públicos, em âmbito administrativo, ou seja, sem o trâmite pela Câmara Municipal de
Fortaleza, por decreto do chefe do executivo municipal.
Os recursos do FIMOB, de acordo com o Art. 3.º da lei supracitada, devem ser apli-
cados exclusivamente para aquisição, ampliação ou melhoramento de bens públicos para
380 //
atender a utilidade púbica ou o interesse social, sendo a alienação nos moldes descritos na
lei, para imóveis com terreno de área igual ou superior 20.000 m². Mantiveram-se a prévia
avaliação e licitação nos moldes da lei geral das licitações, lei 8.666/1993.
A alienação direta pela Administração municipal dos bens públicos – desafetados pelo
decreto, chamados pelo artigo supra da lei de “patrimônio disponível”, engloba, portanto,
os bens de uso especial sem previsão de destinação pública, com a premissa de que seja
emitido prévio parecer técnico que comprove que o bem não tem previsão de execução por
parte do poder público. As áreas verdes, oriundas de loteamentos e desmembramentos de
glebas nos municípios, não podem ser desafetadas pelos ditames da referida lei.
O patrimônio público municipal também pode ter seu uso privativo outorgado tem-
porariamente a determinados particulares – no caso de bens públicos de uso comum,
uso especial e até os dominiais, com ato administrativo discricionário – com avaliação da
conveniência e oportunidade – através dos institutos da autorização de uso, permissão e a
concessão do direito real de uso.
A autorização tem sua disponibilidade por ato unilateral do poder público, sem licitação
e de interesse predominantemente privado. A permissão é um ato de interesse predominante-
mente público, através de licitação em qualquer modalidade e com uso do bem público por
prazo indeterminado. A concessão é realizada através de um contrato administrativo bilateral
entre o ente público e o privado, com prazo determinado e de interesse predominantemente
público. A concessão de direito real de uso, instituído pelo Decreto federal n.º 271/1967, dire-
ciona para a regularização fundiária, cultivo da terra etc., com possível transferência a terceiros.
Vimos que os bens públicos afetados, com uso específico que atendem a uma finalidade
pública são essenciais para manter o funcionamento das cidades e que por interesse público
podem ser desafetados – com possível alienação – bem como disponibilizados a terceiros,
tudo isso com os bens ainda sob a égide do poder público municipal. Identificamos agora
como os bens públicos de Fortaleza que foram ocupados irregularmente, sua estrutura e
tipologia pela cidade, trazendo por sua à tona essa reflexão tão essencial para o entendi-
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mento do planejamento urbano de Fortaleza.

Considerações finais

Os bens públicos municipais foram identificados ao demonstrarmos as características,


tipologias e a atual destinação dos bens públicos municipais em Fortaleza. Para isso, foram
utilizadas as unidades de gestão do município de Fortaleza, ou seja, a atual divisão admi-
nistrativa do município, no intuito de facilitar o entendimento sobre os bens públicos e
suas condições de uso na atualidade.
381 //
Os bens públicos identificados em Fortaleza têm em sua grande maioria como proprie-
tário o próprio município, como 3.541 bens. A União disponibiliza para uso municipal 65
bens. O Governo do Estado do Ceará 36 bens e os particulares (comodato) disponibilizam
25 bens para uso público municipal.
De acordo com o Art. 98, do atual Código Civil, os bens públicos dividem-se em
bens de uso comum do povo, bens de uso especial e os bens dominicais. Durante toda a
pesquisa, foram descritos essas tipologias de bens em Fortaleza, sendo que os bens de uso
especial, aqueles com afetação direta – postos, hospitais, escolas – possuem 85 tipologias
no município.
A identificação dos bens públicos citados durante o estudo e também no dia a dia da
Prefeitura Municipal de Fortaleza – PMF (pelos dados disponibilizados) foi facilitada pelo
uso de geotecnologias, como os SIGs; o que nos leva a concluir que os sistemas compu-
tacionais no mapeamento dos espaços urbanos, em especial para identificação, caracterís-
ticas e geolocalização dos bens públicos é fundamental para o planejamento urbanos das
cidades, em especial para o município de Fortaleza-CE.

Referências bibliográficas

Araújo, Henrique Eder Cavalcante (2022). Bens públicos municipais: uso e ocupação na cidade
de Fortaleza-CE. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Ceará,
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___, (2022). Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.
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___, (2002). Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

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___, (1979). Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
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Fitz, Paulo Roberto (2008). Cartografia básica. São Paulo: Oficina de Textos, 2008.
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Maricato, Ermínia (2003). Metrópole, legislação e desigualdade. Estudos Avançados, v. 17, n.º 48, p.
[151]-166 Tradução. Acesso em: 11 jun. 2022.
Mazza, Alexandre (2007). Manual de Direito Administrativo. 7. Ed. São Paulo: Saraiva.
Rocha, Sílvio Luís Ferreira da (2005). Função Social da Propriedade Pública. São Paulo: Maheiros.
382 //
Análise dos principais desdobramentos
espaciais do Ensino Superior no espaço
urbano de uma Cidade Média Cearense:
breves notas

Breno de Abreu Lopes1


Maria Clélia Lustosa Costa2

Introdução

Esse artigo analisa os desdobramentos espaciais ocasionados pelo ensino superior no


município de Sobral, no Estado do Ceará, Nordeste do Brasil. Inicialmente, parte-se do
pressuposto o qual o ensino superior, caracterizado no Brasil como um nível de ensino
que se realiza após a educação básica, também ocasiona impactos no espaço urbano e na
organização espacial das cidades. Santos e Silveira (2010) afirmaram que existe intrínse-
ca relação desse ensino com o território. Ainda neste pensamento, Baumgartner (2015)
complementa esse pensamento ao explicar que o ensino superior promove intervenções de
importância na realidade urbana das cidades médias.
O estudo analisa, portanto, o caso de Sobral, uma cidade média do Estado do Ceará
tida como um centro de função universitária na região noroeste do Estado. Tal cidade é
sede da Região Metropolitana de Sobral (RMS), foi estabelecida a condição de município
no ano de 1772, no presente ela conta com população de 203.023 habitantes IBGE (2022)
e caracteriza-se como uma importante cidade média do Estado (HOLANDA, 2007). As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Assim, o presente artigo tem o objetivo de analisar os principais desdobramentos espa-


ciais do ensino superior em Sobral no Ceará. Ela oferece cursos de nível superior, tendo em
vista as instituições de ensino superior que oferecem cursos de graduação e pós graduação
a sujeitos de diferentes centros urbanos. Metodologicamente, o estudo possui abordagem
qualitativa e natureza exploratória e foi realizado mediante pesquisas bibliográficas sobre o
tema e trabalhos de campo na cidade de Sobral-CE e nas instituições de ensino superior.

1
Doutorando em Geografia, Universidade Federal do Ceará (UFC). – breno.abreu@hotmail.com
2
Professora Dra. do Departamento de Geografia, Universidade Federal do Ceará (UFC). – clelalustosa@ufc.br
383 //
A primeira seção do artigo diz respeito a esta introdução. A segunda analisa alguns
aspectos sobre a cidade objeto empírico tratado no artigo para, após, traçar na terceira os
desdobramentos espaciais em tela. Encerra-se com as considerações finais.

Aspectos sobre a Cidade Média de Sobral, Ceará, Brasil

Nesta seção faz-se necessário discutirmos traços da realidade da cidade média de Sobral
no Ceará. Os dados do REGIC (2018) reforçam a influência das instituições de ensino
superior em Sobral, evidenciando sua posição de destaque em todo o país. O ranking
proposto pelo REGIC identifica trinta cidades que se destacam pela centralidade definida
pelas posições de pessoas em busca de acesso ao ensino superior, e Sobral ocupa a primeira
posição nesse ranking (REGIC, 2018, p. 98). Isso confirma que o ensino superior desem-
penha um papel significativo nessa cidade, proporcionando transformações substanciais
em seu espaço urbano e no movimento de pessoas destinadas a ela.
Nessa perspectiva, é evidente que a cidade de Sobral desempenha um papel universitário
fundamental que há algum tempo tem impulsionado mudanças importantes, as quais con-
sideramos, neste contexto, como repercussões e implicações socioespaciais. Em outras pala-
vras, o papel universitário de Sobral tem gerado diversas repercussões em seu espaço urbano.
Sendo assim, Sobral oferece uma série de atrativos tanto para os estudantes locais
quanto para aqueles que vêm de cidades vizinhas e de outros estados. A Universidade
Estadual Vale do Acaraú (UVA) foi a primeira instituição de ensino superior a ser esta-
belecida na cidade e desempenhou um papel fundamental na criação de oportunidades
educacionais de nível superior. O intervalo de tempo entre sua fundação e a criação das
instituições subsequentemente demonstra claramente que a UVA foi uma pioneira nesse
contexto. Desde o seu estabelecimento em 1968, o que ocorreu antes do último período
de expansão, ela já vinha exercendo um papel estudantil e universitário importante, haja
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vista ser representativa para essa cidade e sua região.


Além disso, é importante considerar que o período de estabelecimento das outras
instituições subsequentes está diretamente relacionado à expansão do ensino superior. Foi
durante esse período que um número significativo de instituições de ensino superior se
instalaram nesta cidade média. Por exemplo, a Universidade Federal do Ceará (UFC),
fundada na capital em 1954, iniciou suas operações em Sobral em 2001. Já o Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) chegou a Sobral em 2007,
como parte da expansão da rede federal que aconteceu naquela época.
Do mesmo modo, algumas instituições de ensino superior particulares também se
estabeleceram em Sobral. Entre elas, destacam-se as instituições pertencentes a grupos
384 //
educacionais locais, como a UNINTA e a FLF. Além disso, foram implantados polos de
educação a distância, exemplificando a expansão do ensino superior em Sobral, com uma
instituição originária de Londrina, no estado do Paraná, localizada na região Sul.
As instituições mencionadas desempenham um papel fundamental na afirmação de um
aspecto altamente distintivo de Sobral, que é o ensino superior. Percebemos que esse nível
de ensino atua como um dos principais impulsionadores da integração desta cidade com sua
região, ao mesmo tempo que promove dinâmicas no seu espaço intraurbano.
O papel universitário de Sobral desenvolveu uma série de dinâmicas e movimentos
importantes, que podemos resumir da seguinte maneira: Em primeiro lugar, as instituições
de ensino tornam Sobral um destino diário muito procurado por estudantes e profissionais
de diversas cidades da região norte do Ceará. É uma cena comum no cotidiano da cidade
observar os transportes escolares disponibilizados pelas prefeituras de municípios vizinhos,
que transportam diariamente estudantes para esta cidade média. Além disso, é frequente
a permanência de alunos e professores que optam por morar em Sobral, ajustando-se aos
calendários acadêmicos com o tempo de permanência nela, o que causa alguns outros
determinantes espaciais.
Feito este preâmbulo, na seção seguinte faz-se uma discussão específica dos desdobra-
mentos espaciais do ensino superior em Sobral-CE.

Desdobramentos espaciais do Ensino Superior em Sobral-CE

Nesta seção faz-se uma análise dos principais desdobramentos espaciais do ensino su-
perior em Sobral. Parte-se do princípio em que o ensino superior, incluindo neste con-
junto as universidades, centros universitários, institutos e outras instituições similares,
desempenha um papel social crucial na promoção da difusão da ciência, da formação inte-
lectual da população e para o desenvolvimento das competências exigidas pelo mercado de
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trabalho. São aspectos de todo importantes, no entanto, além deles, é importante também
considerar o impacto que o ensino superior tem na perspectiva do espaço urbano. É o caso
de Sobral e as instituições de ensino superior mencionadas na seção anterior que geram
implicações significativas no ambiente urbano.
Com base em nossos trabalhos de campo e reflexões, identificamos algumas das prin-
cipais implicações que o ensino superior promove na perspectiva do espaço urbano de
Sobral. Essas implicações abrangem a mobilidade das pessoas, o impacto nas atividades
econômicas e na organização espacial da cidade.
Em relação a tais implicações, uma delas refere-se à circulação de pessoas no espaço
da cidade, ou seja, aos fluxos de indivíduos que se deslocam entre as diversas instituições
385 //
de ensino nesta cidade de médio porte. Identificamos que essa circulação segue algumas
lógicas principais. Primeiramente, é notável que os estudantes utilizam diferentes meios
de transporte disponíveis para se deslocarem até suas instituições de ensino. Muitos optam
por utilizar veículos próprios ou serviços de carros por aplicativo, embora em menor
escala, para acessar sua instituição que é matriculado.
Ainda em relação à circulação de pessoas, também vê-se uma movimentação im-
portante do espaço regional a Sobral com vista o fluxo de estudantes universitários. Tais
movimentos ocorrem nos horários de início e término de aulas, reforçando o aspecto inter-
municipal. Desta feita, notamos que o acesso às instituições de ensino em Sobral também
é bastante frequente por meio de ônibus e transportes escolares provenientes de outros
municípios. Isso ocorre devido ao fato de Sobral receber diariamente um grande número
de estudantes de cidades vizinhas, o que contribui significativamente para o aumento do
tráfego urbano nos horários de início e término das aulas, por exemplo. Além disso, ob-
servamos uma clara redução no volume de tráfego nas vias de acesso fora dos horários de
aulas e durante os recessos escolares.
Continuando com as implicações do ensino superior na cidade, é importante con-
siderar a relação entre o ensino superior e as atividades econômicas que estão ligadas à
dinâmica universitária. Como exemplo, podemos listar estabelecimentos como serviços
gráficos, restaurantes, livrarias e no setor imobiliário, entre outros, que demonstram
uma conexão direta com as operações das instituições educacionais e as necessidades da
comunidade acadêmica.
Neste aspecto, nota-se que muitos estabelecimentos buscam se destacar frente ao mer-
cado e ao público universitário adotando estratégias como a redução de custos conforme a
quantidade de páginas, a rapidez na entrega de trabalhos e a competitividade refletida nas
pequenas diferenças de preço, tudo com o objetivo de atrair, inovar e manter a fidelidade
dos clientes. Embora possa parecer simplista à primeira vista, pensamos que isso representa
uma implicação significativa no espaço urbano, em resposta à presença de instituições
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de ensino para atender a uma demanda de mercado. O ensino superior, nesse contexto,
também contribui para a formação de nichos de mercado.
Ainda, percebeu-se que é frequente que a comunidade acadêmica gaste em serviços
gráficos, incluindo fotocópias de livros, textos, encadernações e rendimentos de trabalhos,
que fazem parte das práticas institucionais e representam uma área de investimento rele-
vante no âmbito da cidade. Na nossa perspectiva, isso reforça alguns aspectos importantes.
Primeiramente, demonstra que o ensino superior possui a capacidade de atração de ativi-
dades específicas, como é o caso de serviços essenciais para a comunidade acadêmica. Em
segundo lugar, destaca que o ensino superior pode trazer modificações nas áreas adjacentes
às instituições de ensino.
386 //
Os trabalhos de campo nos permitiram observar que outra atividade econômica que se
relaciona diretamente com a função universitária de Sobral é o setor de empresas de forma-
turas. Essas empresas prestam serviços diretamente ligados à dinâmica universitária, como
a cobertura fotográfica das cerimônias de colação de grau, aluguel de becas e paramentos
para essas cerimônias, registro fotográfico das “aulas da saudade”, organização de bailes de
formatura, realização de ensaios temáticos com como turmas concluintes.
Além disso, é comum observar representantes dessas empresas visitando as instituições
de ensino para apresentar seus serviços, discutir as condições de pagamento e mostrar produ-
tos como álbuns fotográficos e placas de homenagem, com o objetivo de conquistar novos
clientes. Em particular, quando um contrato é firmado, os membros da comunidade univer-
sitária passam um período prolongado pagando prestações para ter acesso a registros fotográ-
ficos, festas e celebrações com a turma com a qual compartilharam sua jornada acadêmica.
Além de serem exemplos das implicações do ensino superior nesta cidade do ponto
de vista dos serviços, essas empresas também desempenham um papel de fortalecimento
de alguns aspectos da vida cotidiana em Sobral. Isso ocorre porque muitas das turmas
que utilizam esses serviços optam pela realização de seus ensaios fotográficos em locais
emblemáticos do espaço urbano desta cidade média. Dessa forma, muitas dessas turmas
escolhem locais importantes na cidade, como o Arco do Triunfo, a Praça do Patrocínio,
o Teatro São João, o complexo da Margem Esquerda, entre outros. Assim, essas empresas
não apenas registraram um momento significativo na jornada estudantil dos alunos, mas
também voltadas para fortalecer a imagem universitária que Sobral possui.
Também é importante destacar que essas empresas não são apenas exemplos das impli-
cações do ensino superior nesta cidade em termos de serviços, mas também desempenham
um papel de reforço para alguns aspectos do cotidiano de Sobral. Isso ocorre porque mui-
tos grupos de estudantes que utilizam esses serviços optam por seus ensaios fotográficos em
locais característicos do cenário urbano desta cidade média.
Há ainda tais desdobramentos no mercado imobiliário, setor que é profundamen-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
te impactado devido à função universitária desempenhada por Sobral. É evidente que o
mercado imobiliário, incluindo aluguel e locação de imóveis, representa uma atividade
econômica que tem experimentado uma série de nuances e situações quando relacionadas
com a dinâmica universitária. Esse é um exemplo de uma relação de causa e efeito entre o
ensino superior e o espaço urbano que ainda requer uma análise mais profunda e investi-
gação adicional, visto que provavelmente há muitos elementos a serem compreendidos e
desvendados nesta interação complexa. A proximidade desses imóveis com as instituições
de ensino, pontos de ônibus, intercampus, supermercados, gráficas e outros equipamentos
urbanos da cidade também desempenham um papel estratégico. Nesse contexto, parece
estratégico que alguns empreendedores do mercado imobiliário construam prédios com
387 //
pequenos apartamentos, originalmente planejados para uso residencial comum, mas que,
na prática, atendam à demanda específica relacionada à função universitária.
Portanto, observamos uma clara relação entre a função universitária e o mercado imo-
biliário, especialmente no que diz respeito à localização de determinados imóveis e às condi-
ções de moradia. Parece ser um mercado em plena atividade e expansão, pois atende a uma
necessidade constante e lucrativa, sobretudo do ponto de vista dos investidores imobiliários.
Percebemos que todos esses elementos previamente mencionados são considerados e
dimensionam para a vida urbana e o cotidiano de Sobral. A dinâmica urbana desta cidade é
impulsionada pelas relações e interações que essas instituições promovem, pela mobilidade
dos estudantes universitários e dos demais profissionais que trabalham nessas instituições de
ensino. Como muitos indivíduos optam por permanecer em Sobral devido às exigências de
suas atividades acadêmicas e profissionais, buscam outras atividades oferecidas nesse ambiente
urbano durante os momentos que não estão nas instituições de ensino.
Isso é um aspecto que confere vitalidade ao cotidiano de Sobral. Muitos espaços cul-
turais, de lazer, para festas e outros exemplos são frequentados também pelo público uni-
versitário. Essa realidade ocorre quando, por exemplo, eles decidem buscar atividades que
vão além de suas obrigações acadêmicas. Podemos citar diversos exemplos, como a relação
entre o público universitário e espaços culturais como teatros e museus, encontros de
confraternização em restaurantes e pizzarias, conversas nas áreas externas das instituições.
Em resumo, pensamos que o ensino superior também tem implicações significativas
na perspectiva do cotidiano. Essas implicações se manifestam de diversas maneiras, em di-
ferentes intensidades e em diversos espaços, o que nos leva a concluir que o ensino superior
não apenas promove repercussões pedagógicas e educacionais, mas também desempenha
um papel fundamental na compreensão do ambiente urbano dessa cidade.

Considerações Finais
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

As breves notas de pesquisa ante expostas apontam a conclusão que Sobral é uma
cidade dinâmica do ponto de vista urbano e regional e as instituições de ensino superior
atraem um conjunto de alunos a seu espaço urbano. Esse movimento de atração agencia
impactos na perspectiva da dinâmica urbana, na circulação de pessoas pelo intraurbano e
no aspecto regional, uma vez que há um conjunto de municípios que interligam-se a ela
com vistas ao ensino superior.
Os resultados apontam concluir que Sobral é uma cidade importante do ponto de vista
urbano, regional e político por possuir diferentes funções e atividades. As instituições de
ensino superior (IES) de capital privado e público localizadas nela atraem um conjunto de
388 //
alunos, professores universitários e outros profissionais a seu espaço urbano diariamente.
Tal atração promove impactos do ponto de vista urbano como na circulação de pessoas, nos
pequenos serviços, comércios, aluguéis, dentre outras questões. Logo, alguns dos principais
desdobramentos espaciais do ensino superior são: integração e relacionamento da escala in-
traurbana e regional; impactos de natureza econômica por suprimentos básicos universitá-
rios, itens de primeira necessidade e outros, além do aumento do fluxo de pessoas.
Com a realização do estudo, vimos também o que a literatura acadêmica considera
como movimento pendular que são aqueles que se originam por motivos de trabalho e es-
tudos. Como Sobral atrai um número de estudantes, é fato que eles realizam movimentos
pendulares de outros municípios com vistas ao ensino superior, o que ainda merece outros
estudos detalhados.
Por fim, neste breve estudo ainda exploratório trouxemos aproximações importantes para
compreensão dos movimentos populacionais por motivos de estudos destinados a essa cidade,
relacionando o ensino superior com o ambiente urbano de uma cidade média. De igual modo,
foi possível constatar que o ensino superior desempenha um papel fundamental na articulação
e dinamização da cidade, que, por sua vez, desempenha uma função universitária sólida. Assim,
alguns desdobramentos espaciais do ensino superior nesta cidade incluem a mobilidade das
pessoas, o impacto em certas atividades econômicas, o desenvolvimento do setor imobiliário, a
influência na morfologia urbana, as mudanças no cotidiano da população.
Encerrando nossa análise, buscamos fornecer elementos que contribuam para uma
compreensão mais profunda do ensino superior no contexto urbano, ao mesmo tempo em
que examinamos o papel universitário desempenhado por Sobral. Destacamos a urgente
necessidade de conduzir pesquisas adicionais que explorem essa relação complexa, a fim de
refletir sobre as implicações do ensino superior no ambiente urbano e no que diz respeito
à questão dos movimentos populacionais e pendulares ocasionados pelo ensino superior.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


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390 //
Indústria de calçados e os novos territórios
da produção nas pequenas cidades do
Ceará, Brasil

Maria da Penha dos Santos Costa1


Alexsandra Maria Vieira Muniz2

Introdução

Para a indústria calçadista, a região nordeste do Brasil se apresenta como um dos mais
importantes territórios da produção de calçados do país. A importância da região para a
indústria em questão foi soerguida a partir da instalação de dezenas de fábricas pertencen-
tes a empresas com sede em tradicionais polos de produção calçadista – São Paulo e Rio
Grande do Sul. O impulso para a instalação de unidades produtivas do ramo calçadista foi
fundamentado pela reestruturação produtiva em curso e as políticas atrativas de estados da
região nordeste ofertadas a partir da década de 1990.
A reestruturação produtiva incluiu as cidades pequenas e médias do nordeste brasileiro
no circuito da produção de calçados, tornando-as território central do processo produtivo,
uma vez que são nessas cidades onde ocorrem o “acontecer da produção”. A região nordeste
apresenta-se como um fragmento do espaço responsável pelo cumprimento das ordens da
produção, essa por sua vez ainda localizada no sul e sudeste do Brasil, onde ainda encontram-
-se concentrados os setores de comando das fábricas das empresas localizadas no nordeste. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Cabe enfatizar que a relocalização ou desconcentração da indústria calçadista brasileira


para o nordeste foi condicionada pelo processo de flexibilização da produção que fez emer-
gir a fragmentação territorial do processo produtivo. A flexibilização está inserida dentro
de um contexto global assistido durante a década de 1970 de “ajuste” técnico do processo
produtivo (Muniz, 2019).

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), –
penhavaz19@gmail.com.
2
Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Docente do Curso de Graduação e do Programa
de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), – geoalexsandraufc@gmail.com.
391 //
Conforme Benko (2002) a flexibilidade produtiva é uma das principais características da
nova organização industrial no âmbito de um regime de acumulação flexível. O novo regime
realizou transformações nos modos de produção e consumo, bem como nas transações e
relações sociais, essa por sua vez fundamentada em mecanismos institucionais de regulação.
Além disso, as modificações determinaram a reestruturação espacial da sociedade, a redefi-
nição do conteúdo dos espaços, o estabelecimento de uma nova divisão social e espacial do
trabalho, bem como fez emergir novos espaços da produção e do consumo (BENKO, 2002).
O novo regime de acumulação e as técnicas de produção flexíveis favoreceram a “de-
sintegração vertical das relações de proximidade entre dirigente e subcontratante, a troca
contínua de informações e, portanto a proximidade espacial, que permite a interação e a
regulação final do processo de produção global” (BENKO, 2002, p. 29). Com isso, novos
territórios passaram a exercer diferentes funções no circuito da produção.
A reestruturação produtiva promoveu a fragmentação territorial da produção, através
da cisão entre produção industrial e gestão empresarial (LENCIONI, 1998). Com isso,
a gestão do capital industrial passou a ser centralizado em um local – centros economica-
mente mais dinâmicos – enquanto a produção foi deslocada para as regiões periféricas do
país, ou seja, as fábricas dispersaram-se pelo espaço geográfico, em busca da ampliação dos
lucros, através da redução dos custos da produção.
A indústria calçadista foi um dos ramos industriais a se apropriar dessa estratégia ad-
vinda da reestruturação produtiva e a fragmentar territorialmente a produção calçadista. A
partir da década de 1990, a indústria em tela passou por um processo de desconcentração
produtiva, onde a região nordeste se apresentou como destino da “concentração” das uni-
dades fabris das empresas que se apropriaram da flexibilização da produção.
O deslocamento da indústria calçadista para o nordeste brasileiro teve como funda-
mento os incentivos fiscais e territoriais ofertados pelos governos das unidades da federação.
Estados nordestinos exerceram papel de destaque no que confere a oferta de um conjunto
de incentivos fiscais, dentre os quais se incluiu a redução do Imposto sobre Circulação de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), doação de terrenos para instalação das fábri-
cas e soerguimento de infraestruturas para atender o fixo industrial (PEREIRA JÚNIOR,
2011; TELES; COSTA, 2023).
No Ceará, a indústria de calçados se direcionou para as cidades não metropolitanas,
sobremaneira, as cidades pequenas e médias do estado. As políticas atrativas foram um dos
fatores responsáveis pela interiorização da indústria calçadista e da tendência de localização
nas cidades pequenas. Além disso, o fator de influência política das elites locais foi crucial
na instalação da indústria de calçados em determinadas cidades do estado.
No decurso da década de 1990, cidades da região de Planejamento do Vale do Curu
no Ceará receberam a instalação de unidades fabris de empresas como Paquetá e Dass,
392 //
a primeira originária de Sapiranga, no Rio Grande do Sul e a segunda do município de
Saudade, Santa Catarina. No Vale do Curu, as instalações das fábricas da Paquetá se deram
nos municípios de Itapajé, Uruburetama e Pentecoste, enquanto a Dass instalou suas fá-
bricas em Itapipoca.
Diante dessa realidade, o presente estudo objetiva analisar a dinâmica industrial calça-
dista nas pequenas cidades da região do Vale do Curu, Ceará, Brasil. Para a realização da
pesquisa, foram realizadas revisão conceitual e bibliográfica, levantamento documental e
estatístico, e produção cartográfica.
O manuscrito encontra-se organizado em cinco seções, incluindo a introdução e consi-
derações finais. Na primeira seção realizamos uma discussão teórica e conceitual acerca das
cidades pequenas brasileiras e de modo específico, na ciência geográfica. Nas seções que se
sucedem, analisamos os desdobramentos da desconcentração industrial na região nordeste,
notadamente nas pequenas cidades da região do Vale do Curu, no estado do Ceará.

Abordagens teóricas e conceituais de cidades pequenas

As cidades não metropolitanas de pequeno e médio porte são caracterizadas por serem
cidades com níveis e complexidades inferiores às metropolitanas (SPOSITO, 2009) que
apresentam “formas espaciais da urbanização com diferentes conteúdos e topologias”
(SILVA, 2015, p. 266). Apesar das cidades pequenas ocuparem uma posição inferior na
rede urbana, elas não deixam de contribuir para os processos e a lógica da produção capita-
lista e, em muitos casos, desempenharem um importante papel ao abrigar estabelecimen-
tos industriais de importância nacional/internacional.
A conceituação de pequena cidade ainda é emblemática na ciência geográfica, visto
a inexistência de um consenso conceitual sobre cidade pequena, para além das classifi-
cações demográficas apresentadas pelo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
(IBGE). Cabe enfatizar, que não existe nenhuma teorização geral que possa ser aplicada
para a realidade de todos os países. No caso da realidade brasileira a “conceituação e a
classificação das pequenas cidades variam de um Estado para o outro e até entre as re-
giões de um mesmo Estado” (FERNANDES, 2018, p. 17).
O IBGE classifica as cidades a partir da estrutura demográfica, considerando aglo-
merados urbanos com até 50 mil habitantes como cidade pequena ou cidade de pequeno
porte. Por essa perspectiva, essas cidades se limitam a um quadro meramente quantitativo,
onde não apresentam os aspectos que permeiam a realidade e suas especificidades.
Para a classificação acerca das cidades pequenas pelo seu aspecto demográfico, o IBGE
delimita como pequena cidade aqueles aglomerados de até 20.000 habitantes, enquanto
393 //
entre pesquisadores brasileiros, cidades com população total de até 50 mil habitantes tor-
na-se o mais usual para a classificação de cidade pequena (MIKRIPOLI, 2021; SILVEIRA
et al., 2022).
Recorrendo a uma análise qualitativa, Santos (1982) identifica as cidades pequenas
como “cidade local”, uma vez que se apresentam como centro funcional, no entanto, não
dinâmico da região circundante. Assim, a “cidade local” é definida como “uma aglome-
ração capaz de responder às necessidades vitais mínimas, reais ou criadas, de toda uma
população, função esta que implica em uma vida de relações” (SANTOS, 1982, p. 71).
Conforme Silva (2011), a cidade pequena apresenta materialidade em seu plano es-
pacial, forma no processo de urbanização e uma imaterialidade que está relacionada aos
fluxos informacionais que traduzem os sentidos econômicos, políticos e culturais. Nas
cidades pequenas também há a predominância das relações capitalistas que se estendem,
através, das relações econômicas e produtivas que elas realizam globalmente. Assim, enten-
de-se que as cidades pequenas se apresentam como,
Núcleos urbanos que representam uma extensão menor se comparada a centros
de outro porte e atendem ao pressuposto da realização da vida, da produção do
espaço e da reprodução capitalista, na divisão territorial do trabalho em escala inter-
nacional (SILVA, 2011, p. 54).

No caso da realidade brasileira, Melo (2008) enfatiza a existência de particularidades


quanto às pequenas cidades e as regiões onde estão inseridas, uma vez que há cidades
pequenas localizadas em áreas economicamente mais dinâmicas, a exemplo das cidades
inseridas em áreas de agricultura moderna que conseguem atender as demandas tanto da
população quanto da produção agrícola. Há ainda cidades pequenas que se apresentam
como reservatório de mão de obra e que passam por processos migratórios de jovens em
idade ativa. Além das funcionalidades já citadas, muitas cidades pequenas se inserem em
um contexto mais amplo, uma vez que se constituem como cidades turísticas, industriais,
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religiosas e etc. E por fim, há ainda cidades de pequeno porte nos limites metropolitanos
e que apresentam características distintas das demais (MELO, 2008).
Acerca da importância das cidades pequenas, Fresca (2011) identifica tais espaços
como uma particularidade da urbanização brasileira, uma vez que passaram a exercer
novos papéis na rede urbana. As recentes transformações ocasionaram a redefinição das
cidades pequenas como “lócus privilegiado da realização de uma parcela da produção pro-
priamente dita” (FRESCA, 2011, p. 75), possibilitando que as referidas cidades estejam
inseridas em articulações espaciais de grande alcance e não mais limitado à escala local.
Assim, a cidade pequena, analisada sob a perspectiva das relações que estabelece na
região é entendida como um aglomerado populacional onde as dinâmicas econômicas
394 //
estão centradas em atividades de transformação e circulação de mercadorias, bem como
um significativo engajamento da população na prestação de serviços (CORRÊA, 2011).
Além disso, Corrêa (2011) destaca que a definição da pequena cidade se dá mediante o
grau de centralidade e não somente do tamanho demográfico, logo, essas cidades se apresen-
tam como centro local, ou seja, as cidades pequenas em menor complexidade exercem centra-
lidade no seu território municipal, local onde está concentrada uma determinada população.
Conforme dados da REGIC (2018), em escala nacional o nordeste concentra o maior
contingente de cidades que se classificam como centros locais3, ou seja, cidades que na hie-
rarquia urbana ocupam o último nível hierárquico. No nordeste, 1438 cidades se destacam
como centro local, significando uma participação de 35,6% no nível hierárquico da rede
urbana brasileira.
Conforme o último censo do IBGE, o Brasil possui 5.570 municípios, desses 88,2%
dispõem de até 50 mil habitantes, isto é, 4.914 municípios que compõem os espaços que
carecem de estudos analíticos para o entendimento do papel que exercem na rede urbana
(IBGE, 2023). Assim, ao analisarmos o panorama do porte de municípios do país, consta-
ta-se que dos municípios de até 50 mil habitantes, 27% são de até 5 mil habitantes, 23,8%
possuem entre 5000 e 10.000 habitantes, enquanto entre 10.000 e 20.000 representam
27,7%. Por fim, 21,4% dos municípios detêm de 20.000 a 50.000 habitantes.
A região nordeste concentra o maior quantitativo de municípios do país, totalizando
1.794, localizados nos estado do Maranhão (214), Piauí (224), Ceará (184), Rio Grande do
Norte (167), Paraíba (224), Pernambuco (185), Alagoas (102), Sergipe (75) e Bahia (417).
No Ceará, 79,3% dos municípios possuem até 50 mil habitantes, dessas 16% (24) tem
até 10 mil habitantes, 44% (64) desses possuem entre 10 e 20 mil habitantes, 22% (32)
e 18% (26), detêm uma população de 20 a 30 mil e entre 30 e 50 mil, respectivamente.
No estado, os municípios de pequeno porte apresentam distintos aspectos e configurações
socioeconômicas que perpassam os limites da relação campo/cidade.
Observa-se que após 1990, muitas cidades do interior do Ceará foram contempladas
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com projetos de cunho desenvolvimentista, através das políticas de incentivos fiscais que con-
duziram para as cidades pequenas e médias investimentos econômicos que culminaram na
inclusão desses locais na economia mundial. De modo específico, tal processo se deu a partir
da instalação de estabelecimentos industriais em dezenas de cidades não metropolitanas. Na
próxima seção, a discussão permeia a indústria de calçados no nordeste e no estado do Ceará.

3
A rede urbana brasileira está dividida em cinco níveis hierárquicos, a saber: Metrópoles, Capitais Regionais,
Centros Sub-Regionais, Centros de Zonas e Centros Locais. Os centros locais, aqui identificadas como as
cidades pequenas, apresentam-se como cidades “cidades que exercem influência restrita aos seus próprios
limites territoriais, podendo atrair alguma população moradora de outras Cidades para temas específicos,
mas não sendo destino principal de nenhuma outra Cidade” (REGIC, 2018, p. 13).
395 //
Indústria de calçados no Estado do Ceará, Nordeste do Brasil

A produção industrial calçadista em grande escala, até a década de 1990 esteve histo-
ricamente localizada nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, tendo a partir da rees-
truturação produtiva e da oferta de incentivos fiscais, deslocado para o nordeste brasileiro
dezenas de fábricas de médio e grande porte para operarem na região. Em pouco mais de
três décadas o nordeste tornou-se um dos principais locus da produção de calçados no país.
O deslocamento de unidades produtivas do ramo industrial calçadista para o nordeste
brasileiro teve por objetivo absorver as vantagens competitivas que as empresas buscavam
naquele período de maior ápice da reestruturação produtiva. A nova localização da indús-
tria segue a lógica da desconcentração industrial observada por Lencioni (1998) como um
processo de relocalização da produção industrial e a efetivação de um tipo de cisão territo-
rial da produção, possibilitando que fábricas estejam territorialmente dispersas.
No caso da indústria calçadista, produção e comando, em escala nacional, estão regio-
nalmente separados e em articulação através dos fluxos impressos no território, por via dos
“circuitos da produção e círculos de cooperação” (SANTOS e SILVEIRA, 2006). Com isso, o
Ceará vem se reafirmando como um território industrial calçadista que o torna funcional para
fins de lucratividade e competitividade, logo da reprodução do capital produtivo industrial.
Pereira Júnior (2011) ressalta que gêneros tradicionais de produção, como a indústria
calçadista, que requer um grande quantitativo de mão de obra, foram as que passaram
mais intensamente pelo processo de desconcentração industrial, todavia deslocando para
o interior do país somente as fábricas, concentrando nos tradicionais pólos, os setores de
decisão, inovação e desenvolvimento (LENCIONI, 1998).
No Ceará, a indústria calçadista encontrou um arcabouço de incentivos fiscais e terri-
toriais que possibilitaram a espacialização do processo de desconcentração industrial, atra-
vés da concessão de incentivos fiscais, via Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI),
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esse por sua vez, a principal política de desenvolvimento econômico do estado.


O FDI abriga o Programa de Incentivo Industrial (Provin), um programa de natureza
industrial que, assim como outros programas voltados para o desenvolvimento econô-
mico, concede às empresas incentivos fiscais, através do diferimento do Imposto Sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Os incentivos provenientes do FDI, no que
diz respeito ao diferimento do ICMS podem chegar até a 99% durante um prazo de até
dez anos, podendo esse ser prorrogado, caso apresentem as metas estabelecidas pelo proje-
to, a saber: produção, geração de empregos e volume de investimentos (ADECE, 2023).
Muniz (2016) destaca que a industrialização cearense foi embasada pelo aporte legal criado
no âmbito do FDI para atrair grandes investimentos para o estado. As políticas atrativas contri-
buíram para a expansão e desenvolvimento das indústrias têxteis, de confecções, bem como da
396 //
indústria de calçados. Assim, através da oferta de incentivos o Estado passou a assumir “o papel
de locomotiva das transformações”, uma vez que passou a utilizar “seu aparato institucional,
adaptando a organização social, espacial e econômica às novas necessidades do capital e assim
organizando um espaço apto ao desenvolvimento da atividade capitalista” (Muniz, p. 434).
Em 2021, empresas localizadas em 48 municípios do Ceará foram incentivadas pelo
FDI, com destaque para o setor de “Preparação de couros e fabricação de artefatos de
couro, artigos para viagem e calçados”, que naquele ano registrou 39 empresas instaladas
e tendo gerado aproximadamente 58 mil empregos formais. Grendene, Paquetá, Dass,
Dakota e Democrata fazem parte do grupo de empresas de grande porte incentivadas pelos
programas do FDI (ADECE, 2021).
Esses fatores possibilitaram que fábricas de importantes empresas calçadistas concentras-
sem sua produção no Ceará. A busca por posições estratégicas importantes no mercado global
possibilitaram a inclusão do Ceará no ranking dos principais produtores de calçados do país,
posto a criação de condições que possibilitaram às empresas atraídas uma maior margem de
lucratividade comparada a outros importantes centros de produção (COSTA; TELES, 2023).
A partir da política estadual de incentivos fiscais, a indústria de calçados foi um dos
ramos industriais a interiorizar a produção no Ceará, sobretudo nas cidades pequenas e
médias. Além dos incentivos industriais, a indústria em tela dispôs de benefícios territo-
riais – reestruturação do território para atender as dinâmicas industriais – e a disponibili-
dade de mão de obra adquirida a baixo custo, ou seja, a localização da indústria no interior
foi permeada por fatores que incluíram os incentivos fiscais e a redução nos custos da
produção, a partir dos baixos salários.
É importante destacar que antes da instalação de estabelecimentos industriais calçadis-
tas de grande porte a produção cearense de calçados apresentava-se como modéstia, volta-
da para atender o mercado estadual, com poucas unidades produtivas, essas concentradas,
sobretudo na região do Cariri e na capital do estado, Fortaleza. A produção calçadista
no Ceará era “[...] sinônimo de trabalho artesanal, pequena produção e lenta evolução
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
tecnológica” (PEREIRA JÚNIOR, 2011, p. 356), modificada após as ações oriundas da
reestruturação produtiva, desconcentração industrial e das políticas atrativas de cunho
desenvolvimentista ofertadas pelo estado cearense.
Em nível de Brasil, fábricas instaladas em estados do nordeste foram responsáveis por
52,4% do volume produzido no ano de 2022, com destaque para os estados do Ceará e
Paraíba que participam em 24,3% (205,9 milhões) e 16,1% (136,6), respectivamente.
Além dos estados mencionados, Bahia (6%), Pernambuco (4,8%) e Sergipe (1%), juntos
contribuem em aproximadamente 12% na produção nacional (ABICALÇADOS, 2022).
No que se refere à produção advinda dos municípios espacialmente próximos da re-
gião nordeste, esses identificados como pólos produtores, o polo de Campina Grande
397 //
(Paraíba) se destaca como o maior produtor de calçados do país, com volume de aproxima-
damente 131,1 milhões de pares. A expressividade do polo em questão se dá em razão da
operação das fábricas das empresas Alpargatas S.A e da TESS Indústria e Comércio LTDA,
a primeira fabricante das sandálias da marca Havaianas e a segunda dos calçados Kenner
(PEREIRA, 2022). O segundo maior polo produtor de calçados é o de Sobral (Ceará), cida-
de que comporta as fábricas da empresa Grendene S.A, responsável pela produção de quase
60% – isto é 123 milhões de pares – da produção estadual (ABICALÇADOS, 2022).
Em relação à participação da indústria de calçados na indústria de transformação na
economia cearense, os estabelecimentos do ramo calçadista representam uma participação
de 2,4% (248), enquanto o quantitativo de vínculos da indústria analisada corresponde a
25,7% (62.156) de todos os postos de empregos registrados na indústria de transformação
cearense (RAIS/CAGED, 2021).
No Ceará, as cidades de Horizonte e Sobral concentram os maiores índices de em-
pregos formais do estado, bem como do Brasil, com uma participação aproximada de
3,8% dos empregos do ramo em escala nacional. Em Sobral, a Grendene, produtora das
marcas como Ipanema, Grendha, Zaxy, contabiliza aproximadamente 12.000 postos de
empregos, enquanto em Horizonte, a Vulcabras, fabricante das marcas Olympikus, Under
Armour e Mizuno, é responsável por empregar próximo a 10.000 trabalhadores.
Com a instalação de grandes fábricas, cidades pequenas e médias do estado do Ceará
passaram a ser globalmente importantes para a produção mundial de calçados, em função
do papel que essas cidades exercem no volume nacionalmente produzido. Para além dos
fatores atrativos já mencionados, a proximidade geográfica do Ceará com os principais
mercados consumidores, Estados Unidos e países da Europa, também se apresentam como
atrativos para a instalação industrial. Para a realização dos fluxos da produção, o estado
também dispõe do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, Porto do Mucuripe e o
aeroporto internacional de Fortaleza Pinto Martins.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Território, indústria calçadista e tendência locacional na região do


Vale do Curu, Ceará, Brasil

Nosso recorte territorial analítico se dar a partir das cidades da região de planejamento
do Vale do Curu do estado do Ceará, região essa composta por 12 municípios4. Estão lo-
calizadas no Vale do Curu, pela perspectiva da rede urbana, cidades que desempenham o

4
Compõem a região do Vale do Curu, os municípios de Amontada, Apuiarés, General Sampaio, Irauçuba,
Itapajé, Itapipoca, Miraíma, Pentecoste, Tejuçuoca, Tururu, Umirim e Uruburetama.
398 //
papel de Centros Sub-Regionais B5, a saber, Itapipoca e Itapajé que também se destacam
como principais centros da produção de calçados na região. O Vale do Curu é formado por
cidades de pequeno e médio porte, com a atividade industrial calçadista como principal
agente a fomentar a geração de empregos formais.
A Região de Planejamento do Vale do Curu contabiliza 385.427 habitantes (IBGE,
2022), com maior concentração nos municípios de Itapipoca, Itapajé e Amontada. Dos mu-
nicípios que compõem o recorte regional analisado, apenas General Sampaio possui menos de
10 mil habitantes, enquanto aproximadamente 41% dos municípios detêm entre 10 e 20 mil
habitantes, sendo eles: Apuiarés (12.893), Miraíma (14.196), Tururu (15.412), Tejuçuoca
(17.154) e Umirim (17.470). Enquanto, 50% dos municípios registram acima de 20 mil ha-
bitantes, a saber: Uruburetama (20.189), Irauçuba (23.915), Pentecoste (37.813), Amontada
(42.156), Itapajé (46.426) e Itapipoca (131.123), como mostra o mapa da Figura 1.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1 – Quantitativo populacional dos municípios do Vale do Curu. Fonte: IBGE (2022).
5
Centros Sub-Regionais são cidades de menor porte populacional que possuem em média 70 mil habitantes
e que desempenham atividades de gestão menos complexas e que influenciam municípios circunvizinhos,
no entanto, em uma porção menor do que as Capitais Regionais (IBGE, 2018).
399 //
Quanto à participação da região no Produto Interno Bruto (PIB) do estado do Ceará,
dados do IPECE (2020) apontam uma participação de 2,61, porquanto que na mensuração
do PIB per capita, o Vale do Curu (R$10.777) ocupa a décima posição do Ceará. Em rela-
ção à participação dos municípios da região no Valor Adicionado Bruto da indústria (VAP),
essa foi de 2,43%. De modo geral, a atividade industrial na região se volta para a indústria
de transformação, com expressividade para a produção de couro e calçados (IPECE, 2020).
Antes da instalação de empresas industriais do ramo calçadista, o Vale do Curu se
apresentava como uma região típica do semiárido nordestino, com uma economia pouco
expressiva e complementar à pecuária. Com uma produção voltada para atender ao mer-
cado local e os excedentes destinados a atender o comércio de Fortaleza, Caucaia e Sobral,
eram produzidos na região algodão, mandioca, feijão, milho, arroz, cera de carnaúba,
mamona, cana-de-açúcar, cebola, batata-doce, manga e banana, além da produção de bo-
vinos, caprinos, ovinos e suínos. O beneficiamento era realizado em casas de farinha, en-
genhos, usinas e barracões localizados na própria região. A economia regional do Vale do
Curu baseava-se no beneficiamento agrícola (MARTINS, 2001).
As mudanças na economia da região se deram após as políticas de atração industrial
pós-1990, quando a região é incluída no projeto de interiorização industrial do governo do
estado do Ceará. É evidente, a participação do estado e dos municípios para a instalação de
médias e grandes plantas industriais no interior cearense, mediante uma agressiva política
de atração de investimentos que concretizaram a interiorização da indústria calçadista.
Ações como redução de ICMS (Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços e
Transportes Interestaduais e Intermunicipais e de Comunicação), redução de ISS (Imposto
sobre Serviços de qualquer natureza), IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) viabiliza-
ram a interiorização de plantas produtivas pertencentes ao ramo industrial calçadista não só
nas cidades analisadas, mas em todos os municípios onde foram instaladas grandes fábricas.
Como já mencionado, as empresas localizadas na região foram contempladas com
incentivos fiscais concedidos através do Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI) que
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abriga programas voltados para a atração industrial, a exemplo do Programa de Atração


de Empreendimentos Estratégicos (PROADE) que tem como finalidade principal a im-
plantação de estabelecimentos industriais dos ramos tidos como prioritários – nos quais a
indústria de calçados foi incluída – nos municípios do interior do estado.
Estão localizados na região de planejamento do Vale do Curu, 37 estabelecimentos espe-
cializados na produção de calçados, dos doze municípios pertencentes à região, apenas qua-
tro não registraram estabelecimentos do ramo calçadista – Amontada, Miraíma, Tejuçuoca,
Umirim e General Sampaio. Na região (Tabela 1), a indústria em questão atua nos municí-
pios de Tururu (1), Apuiarés (1), Uruburetama (3), Itapipoca (5), Pentecoste (5), Irauçuba
(7) e Itapajé (15), de acordo com dados da RAIS (2021), como apresentado na Figura 2.
400 //
Tabela 1 – Panorama estatístico da indústria de calçados no Vale do Curu, Ceará
Municípios Estabelecimentos Vínculos
Apuiarés 1 326
Irauçuba 7 576
Itapajé 15 2.012
Itapipoca 5 4.495
Pentecoste 5 1.816
Tururu 1 112
Uruburetama 3 1.481
Total 37 10.818
Fonte: RAIS/CAGED (2022).

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Fig. 2 – Estabelecimentos e vínculos da indústria de calçados no Vale do Curu. Fonte: RAIS/CAGED (2022).

No Vale do Curu, a produção de calçados é expressiva na geração de emprego na re-


gião, visto que dos 12.531 vínculos na indústria de transformação, mais de 86% estão re-
gistrados na indústria calçadista, que totaliza 10.818 empregados. Dos 12 municípios que
formam a região, Itapipoca, Itapajé, Pentecoste e Uruburetama possuem estabelecimentos
com mais de mil trabalhadores, isto é, fábricas de grande porte.
401 //
Foram atraídas para o Vale do Curu as empresas calçadistas Dass e Paquetá, ambas com
sede administrativa em estados do sul do país, responsáveis por boa parte da parcela dos em-
pregos industriais da região, sobretudo nas cidades de Itapipoca, Pentecoste, Uruburetama e
Itapajé. As unidades fabris das empresas citadas atraíram ainda micro e pequenos estabeleci-
mentos voltados para a produção de calçados de materiais diversos, componentes e costura,
como a calçados Becker, Palminorte, Simples passo, HDias, Martins calçados e serigrafia,
Becker, dentre outras. Na região, as cidades que concentram o maior índice populacional são
também as que comportam estabelecimentos de médio e grande porte.
A Dass, com uma de suas fábricas instaladas em Itapipoca, é uma empresa fabricante
de calçados, vestuário e acessórios esportivos, fundada na cidade de Saudade em Santa
Catarina. Com unidades produtivas em operação no Ceará, Bahia e na Argentina, a Dass
é fabricante de marcas de expressão global, a exemplo da Adidas, Nike, Puma, entre outras.
Em Itapipoca, a Dass se apresenta como o único estabelecimento industrial calçadista de
grande porte, totalizando 4078 trabalhadores.
Já em Itapajé, a Paquetá é a principal responsável pela contratação da mão de obra aloca-
da na indústria calçadista no município, além de ateliers voltados para a costura de calçados,
advindos da Paquetá e de outras empresas instaladas no estado do Ceará. Itapajé contabiliza
2012 trabalhadores vinculados à indústria de calçados, desses quase 70% (1.402) são traba-
lhadores da Paquetá, porquanto que 30% estão vinculados aos ateliers de costura localizados
no município, alguns desses também advindos de estados da região sul do país.
Além de Itapajé, a Paquetá também possui instalações industriais em outros dois mu-
nicípios do Vale do Curu, Pentecoste e Uruburetama. Assim como em Itapajé, nessas
cidades a Paquetá é a principal indutora dos postos de empregos formais na indústria
em análise, em Pentecoste o quantitativo chega a 1219 trabalhadores, porquanto que em
Uruburetama esse total chega a 1285 vínculos.
Na região do Vale do Curu, as empresas industriais calçadistas reconfiguraram o mer-
cado e as relações de trabalho, uma vez que passaram a atuar, sobretudo nas pequenas cida-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

des. Por sua vez, as cidades pequenas do recorte espacial analisado passaram a se apresentar
como local de produção industrial, articuladas a diferentes escalas, por meio dos circuitos
da produção e da divisão territorial do trabalho.
A dispersão de unidades produtivas no Vale do Curu demonstra a construção de ló-
gicas espaciais distintas construídas no interior do território brasileiro em decorrência da
reestruturação produtiva e espacial, onde as empresas produzem um território produtivo
próprio, esse por sua vez cada vez mais estruturado para atender os seus interesses lucra-
tivos. A indústria em foco projetou novas localizações e distintas relações nas pequenas e
médias cidades do Ceará, ao mesmo tempo em que estabeleceu para esses territórios dife-
rentes funções no que diz respeito ao circuito espacial da produção.
402 //
Considerações finais

Os resultados apontam que a indústria calçadista se destaca como um dos ramos que
mais se apropriou da reestruturação produtiva e territorial com o intuito de aumentar a sua
produtividade, lucratividade e competitividade. Tendo como escopo a redução dos custos
produtivos, estados como o Ceará, sem tradição industrial passaram a efetivar uma maior
participação na produção e exportação de calçados.
Os incentivos fiscais e a disponibilidade de mão de obra tornaram-se fatores essenciais para
a interiorização da indústria de calçados no nordeste brasileiro, possibilitado pelo ajuste institu-
cional dos estados em prol da expansão da indústria na região. Com isso, em pouco mais de três
décadas, estados nordestinos passaram a compor o rol de importantes produtores de calçados
do Brasil, ultrapassando até mesmo importantes centros tradicionais de produção, visto que as
maiores empresas do ramo calçadista direcionaram para a região grandes fábricas.
No caso do Ceará, o Estado fomentou a instalação dessas fábricas no interior cearense, atra-
vés do direcionamento de investimentos para as áreas mais distantes da capital, sendo, pois, o
fator distância o principal condicionante para o retorno do volume de incentivos ofertados para
as empresas interessadas em atuarem no estado. Assim, grandes empresas do ramo calçadista,
como Grendene, Democratas, Vulcabras, Paquetá e outras, instalaram suas unidades produti-
vas em diversos municípios, sobretudo em cidades pequenas e não metropolitanas.
Cidades do Vale do Curu, também foram contempladas com a instalação industrial
calçadista, estando localizadas na região as empresas Dass, Paquetá e dezenas de micro e
pequenas empresas prestadoras de serviços de costura, identificadas como ateliers. Muitos
desses ateliers também são advindos do sul do país e são atraídos pelas grandes empresas
para atuarem no raio de alcance dessas fábricas.
No recorte territorial analisado, a atividade industrial calçadista reconfigurou o mer-
cado e as relações de trabalho, uma vez que as empresas passaram a atuar, sobretudo nas

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


pequenas cidades da região. Por sua vez, as cidades pequenas do Vale do Curu passaram a
se apresentar como local de produção industrial, articuladas a diferentes escalas, por meio
dos circuitos da produção e da divisão territorial do trabalho. Constatamos que a indústria
de calçados é responsável por dinamizar o emprego industrial na região e a influir direta-
mente na economia local.

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404 //
Temporalidades urbanas em Alcântara
– MA– Brasil:
de Tapuitapera às ruínas coloniais e espaciais

Grete Pflueger1

Origens ancestrais: a aldeia tupinambá – Tapuitapera

Calvino (2002), em seu livro As cidades invisíveis, alerta que a cidade não conta seu
passado, ela o contém escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos
das escadas. Ela é feita das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do
passado. Nessa perspectiva, Alcântara foi diferentes cidades em sua trajetória de 370 anos.
Em sua origem, foi uma populosa aldeia tupinambá denominada “Tapuitapera”, ponto de
passagem de navegadores europeus, que foi elevada à categoria de vila religiosa de Santo
Antônio de Alcântara em 1648 pelos portugueses e transformada em distrito e sede da
aristocracia rural agroexportadora de algodão em 1754. Alcântara só foi elevada à condi-
ção de cidade em 1836, embora já desfrutasse de importância no estado e logo entrou em
processo de decadência econômica e social no final do século XIX, com a mudança dos
mercados de algodão e a abolição dos escravos.
Por causa da fragilidade do seu tecido urbano e social e da letargia econômica no início
do século XX, a cidade foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Nacional (Iphan) em 1948, ação que tinha o ímpeto de proteger o conjunto urbano em
ruínas. No entanto, logo em seguida, o governo estadual decidiu implantar, na praça prin-
cipal da cidade, o presídio de segurança máxima entre 1950 e 1965, isolando e excluindo a
cidade do turismo e dos investimentos estaduais. As esperanças econômicas só renasceram
diante da implantação, em 1980, do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que a
transformou numa cidade espacial. O local e o global se confrontaram na perspectiva de

1
Doutora em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB UFRJ) e professora Associada
I do curso e arquitetura e Urbanismo e do Mestrado em Desenvolvimento socioespacial e Regional da PPDSR
– UEMA – Universidade Estadual do Maranhão , São Luís, MA, Brasil – grete@uema.br
405 //
uma nova dinâmica socioeconômica. Hoje em 2023 que cidade é Alcântara? Que desafios
enfrenta a cidade para sua preservação e sobrevivência na era da globalização?
A história social, econômica e política de Alcântara foi contada pelos autores mara-
nhenses Viveiros (1999), Lopes (1957) e Lima (1998). No início, era Tapuitapera, a aldeia
dos índios tapuios que exerceu importante papel na conquista do Maranhão nos primórdios
da colonização.

Fig. 1: Mapa do Maranhão e da aldeia Tapuitapera em 1631, de João Teixeira Albernaz. Fonte: Mapoteca do
Itamaraty – Rio de Janeiro.

A aldeia Tapuitapera foi um ponto de passagem dos conquistadores franceses na fun-


dação da capital São Luís em 1612, no âmbito do transitório sonho da “França equino-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

cial”, disputada pelos holandeses entre 1640 e 1646, período em que invadiram a capital,
e pelos portugueses que tomaram a cidade em 1618. Por sua localização estratégica, guar-
dando a Baía de São Marcos no lado oposto a São Luís, a vila religiosa foi fundada pelos
portugueses em 1648, com a denominação de Vila de Santo Antônio de Alcântara, sede
da capitania de Cumã. E foi implantada num promontório, onde a Coroa portuguesa
instalou, na praça principal, o pelourinho e a Câmara Municipal, símbolos da monarquia
real. O traçado da vila se articulou a partir da tríade religiosa de conventos e igrejas das
carmelitas e mercedários e da matriz dedicada a São Mathias ao lado pelourinho na praça
principal. A transição do século XVII para o XVIII é marcada pela presença dos agentes
da formação histórica: as ordens religiosas, os índios e a Coroa portuguesa, concretizando
406 //
as disputas pela ocupação do território. A vila eleita em 1648 segue até 1700 sem gran-
des transformações, com sua pequena estrutura em torno das edificações religiosas. A
sede da aristocracia rural agroexportadora O apogeu econômico e social foi no século
XVIII, quando a vila foi a sede da aristocracia, momento da ascensão da aristocracia rural
agroexportadora do algodão impulsionada pela Cia. Grão-Pará-Maranhão, fundada pelo
Marquês de Pombal em 1755

Fig. 2: Planta da Vila de Alcântara – 1755. Fonte: Reis Filho, N.G (2000, p. 144).

Apogeu colonial e decadência – a cidade em ruínas

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


O Marques de Pombal influenciaria também no modelo urbano e arquitetônico ado-
tado, denominado de “alçado pombalino”, que foi um padrão arquitetônico estabeleci-
do na reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755. O esforço dessa reconstrução
significou um marco de mudança no planejamento urbano da colônia, com profundas
influências no traçado e na arquitetura das vilas e cidades do Brasil do século XVIII.
Esse planejamento urbano pode ser observado no mapa de 1755 (Figura 2), em que se
percebe a transformação da aldeia indígena e religiosa na vila estruturada com seus eixos
de crescimento. Ruas e quadras configuram um novo traçado urbano. Em seu apogeu
urbano e social entre o final do XVIII e metade do século XIX, de acordo com Viveiros
(1992), trabalhavam, na freguesia principal e em outras do município de Alcântara, oito
407 //
mil escravos, e moviam-se 15 engenhos de açúcar, 120 fazendas de lavoura de mandioca,
arroz, fumo, algodão e outros gêneros e umas 40 fazendas de gado. Até meados de 1880,
a cidade era próspera. Com a abolição dos escravos e a mudança dos mercados produtores
e exportadores no final século XIX, a cidade entrou em declínio. A elite se transfere para a
capital, São Luís, abandonando seus engenhos e suas fazendas.
Vários fatores históricos contribuíram para o início da decadência de Alcântara.
Durante a primeira metade do século XX, a cidade permaneceu em estado de letargia. Não
existiram projetos para alavancar economia rural e urbana, e, por causa dessa situação de
abandono e isolamento, houve a decisão política de implantar o presidio público do estado
em 1950, fatores que agravaram a estagnação socioeconômica que tantos reflexos trazia
para o tecido urbano. Seus edifícios sofreram um processo de arruinamento decorrente
não somente do abandono, como também do vandalismo da população empobrecida que
usava as pedras para construção de ruas e baldrames de casas. Alcântara também foi ex-
cluída do ímpeto industrial (1890-1960) do estado do Maranhão, e não chegaram novos
investimentos nem novas perspectivas econômicas ao município. Os entraves citados por
Gaioso (1970), como falta de braços, de técnicas alternativas para a produção e de terras e
investimentos – o que foi responsável pela decadência da lavoura no estado do Maranhão
– são percebidos no processo de decadência econômica e social de Alcântara, uma vez
que a aristocracia rural não se preparou no período da prosperidade para as dificuldades,
e a sociedade rural estava centrada na monocultura despreparada para diversificação. A
elite ficou ainda absorvida em disputas políticas partidárias e não formou sua população
para a prática rural. Posteriormente, a industrialização não atingiu essa região, e a falta de
imigrantes na região, por causa do clima quente e do isolamento, desestimulou as novas
colônias, configurando novos entraves ao desenvolvimento da região.

A cidade monumento e cidade presídio


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Diante desse quadro de fragilidade e vulnerabilidade do patrimônio construído de


Alcântara, o Iphan decide em 1948 tombar o conjunto histórico da cidade No entanto, as
políticas públicas estaduais e federais não contribuíram para o incremento imediato eco-
nômico da cidade nem para a reversão do estado de conservação dos imóveis. A primeira
metade do século XX consolida o total arruinamento da cidade de Alcântara. Diante das
ideais de modernização e progresso da capital, que implicavam a tentativa de higienização
do espaço urbano, o governador do estado Sebastião Archer da Silva, por meio da Lei n.º
61, de março de 1948, autorizou a transferência da penitenciária estadual do Maranhão
de São Luís para Alcântara.
408 //
Fig. 3: Ruínas da igreja da matriz, Alcântara. Fonte: Foto de
Márcio Vasconcelos.
Fig. 4: Intendência: presídio de Alcântara. Fonte: Revista do
Norte, de 1905, acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite
(BPBL), em São Luís, no Maranhão.

O governo tinha como meta implantar um projeto agrícola para o trabalho dos deten-
tos, cujo objetivo era que os presidiários considerados adaptáveis ao convívio social pudes-
sem abastecer as cidades de São Luís e Alcântara com a produção de alimentos. Contudo,
o projeto agrícola não funcionou a contento. A implantação do presídio estadual de se-
gurança máxima na antiga Casa de Câmara e Cadeia, símbolo da cidade colonial, foi
para Alcântara um golpe de misericórdia. Essa decisão eliminou qualquer possibilidade
de revitalização da cidade, que poderia acontecer após o tombamento em 1948. A cidade
ficou definitivamente refém de suas ruínas e torna-se uma cidade presídio por 15 anos.
Entre 1959 e 1960, o Iphan deslocou para Alcântara os arquitetos Pedro Alcântara e Dora
Alcântara, que passaram a morar na cidade, com o propósito de elaborar um plano de
recuperação para o município que foi publicado em1970. Esses arquitetos, que já tinham
em comum com a cidade o sobrenome, foram pesquisadores e defensores do patrimônio
histórico de Alcântara e São Luís. Eles moraram em Alcântara e participaram ativamente
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do processo de inscrição de São Luís na lista de patrimônio da humanidade da Unesco.
Como estratégia do plano, ressaltavam a necessidade de integrar um planejamento setorial
do tipo “preservação de bens culturais” ao esforço do desenvolvimento global de um estado
marginalizado como o Maranhão. O plano de Alcântara apresentado ao então governador
Matos Carvalho objetivava transformar a cidade de Alcântara num centro de cultura e
lazer, dinamizando o acervo histórico, estimulando o artesanato e criando serviços neces-
sários de infraestrutura para o turismo.
409 //
A cidade em ruínas

Em 1970, o tecido urbano resiliente cedia ao abandono e arruinamento, diminuindo


o tecido urbano da cidade. Alcântara possui uma especificidade em seu centro histórico
que é o número expressivo de ruínas. Essas ruínas são fragmentos do apogeu do passado
que contam a história da cidade. Em Teoria do restauro, Cesare Brandi (2004) ressalta
que a ruína não se define por uma mera realidade empírica, mas como algo que deve ser
pensado de modo simultâneo sob o ângulo da história e da conservação, na sua consis-
tência presente, no seu passado e no futuro, para o qual deve ser assegurada como vestígio
ou testemunho da obra humana. Para Brandi (2004), do ponto de vista histórico, a ruína
deve permanecer como está, todo trabalho de reconstrução, portanto, deve ser excluído
a priori, admitindo-se apenas a “anastilose”, ou seja, a recomposição de partes existentes,
mas desmembradas. Os elementos de integração deverão ser sempre reconhecíveis e redu-
zir-se ao mínimo necessário, para assegurar as condições de conservação do monumento
e restabelecer a continuidade de suas formas. A conservação urbana de Alcântara, em face
do abandono, ficou prejudicada, e a própria comunidade, empobrecida, num processo
de antropofagismo, foi comendo as pedras das ruínas para transformar em baldrames,
calcamentos, ruas e estruturas, comprometendo ainda mais a integridade do tecido urbano

Transformações urbanas

A Cidade Espacial – CLA

A instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) foi feita por meio de


decreto do governo estadual (n.º 7820, de 12 de setembro de 1980) e foi um dos fato-
res responsáveis pela transformação econômica e territorial do município, por causa da
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desapropriação em 1980 de uma área de 52 mil hectares, equivalente à metade da base


territorial de Alcântara. Havia na época uma expectativa muito grande de que esse em-
preendimento alavancaria a economia da cidade, gerando empregos e renda. O CLA, na
verdade uma base militar espacial, foi construído com instalações administrativas, resi-
denciais e militares, ocupando uma parte do litoral do município, onde muitos povoados
de pescadores e comunidades negras se localizavam. Esse processo levou ao deslocamento
compulsório (FERNANDES, 1998) de mais de duas mil famílias de povoados localizados
à beira-mar para agrovilas no interior do município, gerando desagregação social e eco-
nômica. Essa transformação modificou as formas de sobrevivência do município, incenti-
vando o êxodo rural e atraindo para a sede do município muitos trabalhadores de outras
410 //
Fig. 5: Mapa cadastral do plano de Pedro Alcântara, 1970. Mimeografado. Fonte: Acervo autora

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Fig. 6: mapa Alcântara. Fonte: Google Maps.


411 //
Fig. 7: Desenho sobre o mapa-base de prefeitura de 2000. Com indicação da tríade original e ruas. Fonte:
Elaborado pela autora

regiões, o que deu início ao processo de inchamento das periferias do centro histórico
decorrente da favelização e ocupação desordenada das encostas e dos mangues com ocu-
pação irregular das áreas e sítios arqueológicos. No auge da obra do CLA, em 1980, cinco
mil peões trabalharam na construção da infraestrutura das plataformas de lançamentos e
das vilas militares. Nesse período, o Iphan alertou sobre a necessidade da construção de
uma avenida, chamada de anel de contorno, para desviar o fluxo de transportes pesados e
caminhões do centro para a periferia, pois o movimento de cargas era intenso. O objetivo
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de proteger as ruas históricas foi alcançado, mas a avenida acabou incentivando a ocupação
periférica, dando origem a uma ocupação irregular chamada de Anel do Contorno, com-
posta de trabalhadores rurais oriundos das áreas desapropriadas. Hoje, 43 anos depois, essa
ocupação irregular está consolidada nas encostas da cidade histórica. A municipalidade, o
estado e o Patrimônio Nacional, incapazes de enfrentar tamanho desafio e preocupados com
a gravidade do processo de Alcântara, solicitaram apoio ao Ministério da Cultura, que criou
em 1980 o GT-Alcântara, grupo de trabalho para um diagnóstico da situação da cidade em
face das externalidades. Um dos objetivos do grupo de trabalho (GT) foi proceder a uma re-
visão do processo de tombamento e propor um plano estratégico para o município. Naquele
momento, diversos relatórios foram produzidos após as reuniões técnicas. Poucas conquistas
412 //
concretas, no entanto, foram alcançadas diante do volume do empreendimento do Centro
de Lançamento e muitos problemas se concretizaram na cidade, sem suporte para enfrentar
tamanha transformação. O fato é que a cidade não estava preparada para esse empreendi-
mento, a fragilidade da estrutura local se confrontou com um empreendimento global e com
a nova dinâmica que surgia no mundo da globalização e das redes globais.

Do local ao global espacial

Nas décadas de 1970 e 1980, algumas tentativas foram empreendidas para recuperar
a economia da cidade, apoiadas na crença de que o crescimento econômico do Estado,
sobretudo da capital, incluiria Alcântara nas áreas beneficiadas. Além dos efeitos indiretos,
o incentivo ao turismo seria a alternativa viável. No entanto, não foram feitos todos os
investimentos necessários à melhoria da infraestrutura física, indispensáveis à dinamização
da cidade.
Depois do fracasso das tentativas, a situação geral foi agravada pela desapropriação do
território do município. Havia no ar a expectativa de que a implantação da base de fogue-
tes alavancaria a economia alcantarense, transferindo para a comunidade os benefícios do
projeto. Assim, renasceram as esperanças da recuperação econômica do município. Havia
no ar a expectativa de que a implantação da base de foguetes alavancaria a economia al-
cantarense, transferindo para a comunidade os benefícios do projeto. Assim, renasceram as

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Fig. 8: Linha do tempo do desenvolvimento urbano de Alcântara. Fonte: Elaborada pela autora.
413 //
esperanças da recuperação econômica do município. Havia, no entanto, uma contradição
com a realidade local, pois a comunidade estava despreparada para participar de tal em-
preendimento, e a demanda específica do Centro de Lançamento excluiu os alcantarenses
e a cidade de Alcântara dos benefícios do centro. Como era previsível, pois a vila militar
criou uma estrutura independente da cidade histórica. Destacamos ainda ações relevantes
no contexto da mitigação dos impactos na área da educação com a implantação de um
núcleo do Instituto Federal do Maranhão (IFMA) para formação de mão de obra técnica
para o turismo e a cultura; mesmo com muita evasão e dificuldade de professores, essa ação
se configurou em uma nova oportunidade para o município. Mas os desafios de Alcântara
são maiores e extrapolam as ações pontuais federais na busca do dinamismo para cidade e
na integração das comunidades rurais diante das novas perspectivas globais do centro de
lançamento de desapropriações de terras, assim como na busca de uma nova perspectiva
econômica para geração de renda e emprego na cidade histórica. Somente um esforço ar-
ticulado entre os níveis municipal, estadual e federal, compreendendo a complexidade do
processo social e econômico, poderia alavancar projetos e políticas públicas para dinamizar
a cidade.

Conclusões

De fato, o que se apreende no caso de Alcântara é que as ruínas configuram o tempo


passado, o presente e o futuro da cidade. A cidade histórica abandonada, em sua decadên-
cia econômica, cultural e social, observa a cidade no presente com um empreendimento
global e hoje convive com a dura realidade das ruínas da plataforma incendiada e com
todo o investimento da vila militar abandonado. O projeto do CLA não foi utilizado
como o planejado, não interagiu com o núcleo histórico e rural como esperado e nem
gerou os lucros pretendidos; hoje parte dele encontra-se obsoleto. A desapropriação das
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terras e os efeitos provocados pelo modelo de implantação de agrovilas numa comunidade


de pescadores levaram os moradores a abandonar as vilas e migrar para São Luís ou ocu-
par o entorno da cidade histórica, gerando desagregação social e urbana. A expectativa da
cidade em renascer no século XXI com o CLA foi frustrada, e ainda os altos custos sociais
são observados: pobreza extrema, baixos indicadores, violência e falta de perspectivas de
trabalho. Após o fracasso dos lançamentos dos foguetes durante toda a década de 1990,
agravado pelo acidente que vitimou 21 cientistas em 2003, houve um abandono do proje-
to. Em 2011, uma nova perspectiva de ampliação do CLA em acordo internacional com a
Ucrânia não avançou, e agora, em 2023, há novas negociações para a utilização do espaço
aéreo que podem se configurar em novas oportunidades, o que dependerá das negociações
414 //
e das ações voltadas a melhorias na cidade da qualidade de vidas das comunidades afetadas .
Podemos, finalmente, avaliar que, ao longo desses anos, a cidade não avançou e continuou
com baixos indicadores – índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,573, segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) -, não houve absorção de mão de
obra local, nem a economia local foi dinamizada. O município de Alcântara possui 22 mil
habitantes, divididos entre a sede ou cidade histórica, com sete mil habitantes e 15 mil nas
comunidades rurais, quilombolas e pequenas vilas de pescadores. Resistiu e demonstrou
resiliência preservando sua cultura em manifestações cultivadas pela comunidade, como a
festa do Divino Espírito Santo em maio e a festa de São Benedito em agosto. A primeira
representa o simbolismo colonial da Corte portuguesa, e a segunda, o sincretismo religio-
so da Igreja Católica, com a festa de tambor de crioulas das comunidades quilombolas.
Trata-se dos momentos em que a cidade recebe visitantes, e as comunidades rurais intera-
gem com a sede e comemoram. Como perspectiva econômica para a cidade, os relatórios
realizados apontam o turismo com estratégia, mas os resultados não são satisfatórios. Há
dificuldades de acesso e infraestrutura: pequena rede hoteleira e travessia feita de barco e de
ferry boat ou longo acesso por estradas que prejudicam o processo. Há também, no estado
do Maranhão, uma mudança no interesse do turismo cultural para o turismo ambiental,
com o incremento das estradas de acesso aos lençóis maranhenses, área de grande atração
para o turismo nacional e internacional. Desta forma, Alcântara, que foi várias cidades em
diferentes temporalidade, permanece, em seu desafio local, nacional e global, resistindo
aos ciclos de apogeu e decadência, desde a grande aldeia tupinambá Tapuitapera, ponto de
passagem dos navegadores europeus, passando pela condição de vila religiosa portuguesa
e sede da aristocracia rural agroexportadora do algodão, até a cidade presídio e cidade es-
pacial, resistindo à sua morte exclusão e tentando reinventar sua inclusão como um novo
lugar turístico e cultural no cenário do estado do Maranhão.

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Referências bibliográficas

Brandi, C. Teoria do restauro. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.


Burnett, F. L.; Muniz, J. C. C. Relatório de diagnóstico local: plano de ação para cidades históri-
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Municipal de Alcântara, 2009.
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Fernandes, C. A. Deslocamento compulsório de trabalhadores rurais. Cadernos Práticas de Pesquisa,
vol. I N.º1, 100 págs., São Luís, 1998.
415 //
Gaioso, R. J. de S. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão. Rio de
Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1970. (Coleção São Luís, 1).
Lima, C. Vida, paixão e morte da cidade de Alcântara-Maranhão. São Luís: Secma, 1998.
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Pflueger, Grete . Redes e ruínas. Apogeu e declínio de uma cidade: O caso de Alcântara – MA. São
Luís, Eduema, 2018
Reis, N. G. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: Edusp, 2000.
Viveiros, J. de. História do comércio do Maranhão: 1612-1895. São Luís: Lithograf, 1992. 2 v.
Reedição fac-similar da Associação Comercial do Maranhão.
___, Alcântara no seu passado econômico, social e político. São Luís: Alumar, 1999.
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416 //
Patrimônio Urbano de Primavera – SP
um olhar para a preservação
e para o turismo

Renata Maria Ribeiro1


Vanessa Almeida Suzart dos Santos2

Introdução

O Brasil da década de 1960 experimentou um movimento de busca ao desenvolvimento


a partir do planejamento em infra estruturas baseadas na geração de energia elétrica tendo
como modelo de construção, as usinas hidrelétricas. Os estudos nessa perspectiva apontaram
determinados trechos de rios que, na visão estratégica, possuíam potencial para a construção
de Usinas Hidrelétricas. Assim, surgiu na região sudoeste do estado de São Paulo, no muni-
cípio de Rosana o início das obras no Rio Paraná, para a construção da Usina Hidrelétrica
Sergio Motta realizadas pela Companha Energética de São Paulo (CESP).
O município de Rosana está localizado na região sudoeste do Estado de São Paulo,
distante 748 quilômetros da Capital. Destaca-se por ser sede de duas usinas hidrelétricas
Usina Sergio Motta no Rio Paraná e Usina de Rosana no rio Paranapanema. Possui bioma
de Mata Atlântica, clima tropical e subtropical com temperatura média de 23º Celsius.
Possui fazendas de produção de gado, assentamentos rurais e um comércio que atende a
população local. Em 2010 tinha uma população de 19.691 habitantes (CENSO 2010). As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Atualmente sua população é de 17.440 habitantes (CENSO 2022). As belezas naturais


dos rios tanto para o turismo de sol e praia, quanto para o turismo de pesca e náutico,
trouxeram para a cidade a potencialidade a essa atividade econômica.
A Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, também chamada de Usina
Hidrelétrica Porto Primavera, está localizada no Rio Paraná, 28 km a montante da
confluência com o Rio Paranapanema. Sua barragem, a mais extensa do Brasil, tem
1
Professora Doutora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Engenharia e Ciências,
Rosana, SP – Brasil – Curso de Turismo. – renata.ribeiro@unesp.br
2
Bacharel em Turismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Engenharia e Ciências,
Rosana, SP – Brasil – Curso de Turismo. – vanessasuzart.22@gmail.com
417 //
10.186,20 m de comprimento e seu reservatório, 2250 km² (Prefeitura Municipal
de Rosana, 2015, in Santos, 2017 p. 46).

O intuito do plano de obras era de que o núcleo alojamento para os trabalhadores


deveria ser estruturado o mais próximo possível do canteiro de obras; desse modo, instau-
rou-se nas terras de uma fazenda, uma vila estruturada com casas, áreas de lazer, praças,
escolas, hotel, hospital, espaço para comércio entre outras infraestruturas necessárias a
trabalhadores da obra da usina e suas famílias.
Mas não bastava construir o núcleo urbano de Primavera, o projeto da Divisão de
Arquitetura e Urbanismo da CESP era construir em formato de navio, em referência ao
Rio Paraná e Rio Paranapanema, que margeiam o município de Rosana.
Pode-se observar na Figura 1, o leito do Rio Paraná, o Rio Paranapanema, o Distrito
de Primavera e a barragem da Usina Sergio Motta.
Foram planejados modelos diferentes de plantas residenciais para atender os diversos
níveis de trabalhadores, desde operários, pessoal administrativo, engenheiros e diretores
dos mais altos cargos da Usina. Ao todo, o núcleo abrigaria em torno de 5 mil pessoas nas
casas. Em uma parte mais distante da área central ainda foram construídos alojamentos
para trabalhadores que vinham sem suas famílias.
Na segunda metade da década de 1970, a CESP, planejou e iniciou as obras
das usinas hidrelétricas Rosana e Porto Primavera. Implantadas em uma das regiões
menos desenvolvidas do Estado, essas obras contribuíram para a ocupação efetiva da
área, propiciando ligações viárias com o noroeste paranaense e o Mato Grosso do Sul
meridional, além da formação de grandes lagos com excepcionais condições para a
navegação e o turismo. (CESP, 1994, p.119, in Santos, 2017 p.46).
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Fig. 1 – Distrito de Primavera. Fonte: GoogleEarth, 2023.


418 //
O princípio de sua construção foi considerar a área de moradia como vila industrial,
e que após a finalização das obras da usina, a vila seria desmontada e relocada em outra
localidade para abrigar trabalhadores em outras construções de grande porte, a exemplo
da usina Sergio Motta.
Importante salientar que o Brasil estava envolto por uma organização política e econô-
mica precursora de grandes obras e de cidades “monumento” a exemplo de Brasília (capital
Federal do Brasil) projetada por Oscar Niemayer e Lucio Costa, cujo plano piloto foi
desenhado em formato de aeronave, e que foi inaugurada em 1960. Tamanha importância
da contextualização histórica, política, arquitetônica e cultural envolvendo a construção de
Brasília que em 1987 a UNESCO – Organização das Nações a inscreve na Lista de bens
do Patrimônio Mundial.
Outras cidades como Palmanova (Itália) construída em 1593 que possui traçado único
como uma fortaleza em formato de estrela representada simetricamente com nove pontas
com uma praça central. Conquistou o título de Patrimônio da Humanidade pela Unesco
em 2017.
As similaridades entre Brasília, Palmanova e Primavera a respeito do que pode ser ob-
servado a partir do desenho urbano, é que as duas anteriores, por sua importância histórica
mantiveram seu traçado original, agora protegidos por uma norma internacional.
No caso de Primavera o formato de navio construído como uma vila por motivação
industrial – a construção da usina hidrelétrica Sérgio Motta, se mantém praticamente
inalterada até o presente (2023), devido principalmente ao êxodo de pessoas que acomete
a região, por escassez de opções de trabalho e renda, o que provocou, diminuição popula-
cional desde a finalização das obras da Usina.

O espaço urbano, a preservação e o turismo

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A personificação do espaço urbano de Primavera a partir de seu desenho e modelo de
instalação por uma motivação industrial (construção da Usina Sérgio Motta), carrega uma
história recente pouco estudada, sendo que documentos, fotografias, memórias e relatos,
estão fragmentados e aos poucos se perdendo no coletivo da população. Há várias histó-
rias, positivas e negativas.
Existem relatos entre os habitantes de que a cidade foi construída conforme a hie-
rarquia dos cargos e a posição do navio, sendo assim, na parte superior do desenho do
navio, estariam residindo as famílias dos engenheiros e arquitetos, mas abaixo na região
central, estariam as famílias de técnicos, e na parte inferior do navio, abaixo do centro,
419 //
estariam as famílias de funcionários não especializados. Contudo, não há um estudo
específico que afirme essa história entre a população (Santos, 2017, p.47).

Há também um estudo de Vianna (2006), que faz uma referência de que Primavera
possui características de cidade-jardim de Howard (1898) e cidade aberta, uma vez que à
época que as casas foram construídas, não havia muros, foram delineadas a partir do tra-
çado das ruas para compor o desenho, e entre as quadras pode-se observar espaços abertos,
com plantação de árvores, instalação de bancos e em algumas alguns equipamentos de
lazer para infantes. Esses espaços abertos entre as residências se assemelham a jardinetes,
com calçamento para pedestres entre o gramado, e permitem a circulação de ventilação
entre as casas com o objetivo de melhorar a sensação térmica, uma vez que a região tem
índices elevados de temperatura.
As situações positivas e negativas observadas e relatadas em alguns estudos são im-
portantes para o resgate histórico-cultural relativo ao patrimônio imaterial, fato é que as
mudanças da sociedade e até mesmo nos parâmetros ao desenvolvimento urbano, podem
acarretar situações adversas à valorização do desenho urbano.
O Plano Diretor Municipal de Rosana foi refeito aos moldes do Estatuto da Cidade
entre os anos de 2013. Nessa oportunidade, não houve nenhuma discussão em relação ao
traçado urbano de Primavera que se tornou Distrito de Rosana em 2016, e algumas altera-
ções já podem ser observadas relativas às construções e alterações dos jardinetes.
Diante desse desafio, a busca de trazer à tona a importância do espaço público e seu tra-
çado personificado a partir de um desenho urbano único se faz necessário como modo de
alertar a sociedade quanto às potencialidades que esse diferencial pode trazer à valorização
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Fig. 2 – Traçado urbano de Primavera. Fonte: Rosana, 2014 (modificado) In: Santos, 2017. Fonte: Google Maps, 2023.
420 //
da história material e imaterial, e mesmo na apresentação e uso desses elementos para o
lazer e o turismo.
Entende-se que há uma importância única do traçado urbano de Primavera e que sua
valorização deve passar pelo reconhecimento da população em seu valor histórico-cultural
para que posteriormente possa ser estruturada para a ativação do turismo e posteriormente
a proteção do traçado urbano.
A Figura 2 é um extrato do mapa do Plano Diretor Municipal de Rosana, em des-
taque à planta urbana do Distrito de Primavera. O zoneamento está dividido em:
Macrozona de Desenvolvimento Econômico (MDE); Macrozona de Interesse Turístico
e Ambiental (MZITA); Macrozona de Interesse Ambiental (MZIA); Zona Especial de
Interesse Ambiental, Turístico e de Lazer (ZEIATUL); Zona de Grandes Equipamentos
(ZGE); Zona de Adensamento Preferencial (ZAP); Zona Especial de Interesse Social e
Específico (ZEISE 1); Zona Especial de Interesse Social (ZEISE 2); Zona de Urbanização
e Adensamento Prioritário (ZUAP); Zona Especial do Aeródromo (ZEA); Zona Industrial
(ZI) (ROSANA, 2015).
Entre áreas de adensamento populacional, há áreas de interesse ao desenvolvimento
do turismo, em destaque as áreas circuladas na Figura 2, que são áreas de vegetação per-
manente, áreas de lazer já estabelecidas, e áreas de protegidas por legislação ambiental,
denominadas como ZEIATUL.
Outro exemplo arquitetônico que referencia um navio é a Matriz da Igreja Católica
de Primavera. Construída na década de 1980, ocupa a praça central de Primavera e possui
um formato de proa de navio.

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Fig. 2 – Traçado urbano de Primavera. Fonte: Google Maps, 2023.


421 //
Estando Primavera próxima à confluência dos Rios Paraná e Paranapanema, a cidade
tendo o formato de um barco e as avenidas sinuosas lembrando ondas, construída pela CESP,
a Igreja Matriz Nossa Senhora Aparecida possui o formato da proa de um barco, apontando
para a direção norte. É através da Igreja que se encontra o Caminho, Jesus Cristo.
Possui uma Via-Sacra e uma moldura estilizada fazendo referência bíblica à pesca mila-
grosa narrada por Jo 21, 1-14. Foram pintadas em alumínio pelos artistas plásticos Cesário
Ceperó, Pedro Perozzi e Lourival Betelli em 1995. Em baixo da Via-Sacra, também em
alumínio pintado, rio com peixes.
É uma Igreja contemporânea, uma das mais belas da região, diferenciada e arrojada,
afirmação de muitos que passam pelo local (Paróquia N.S. Aparecida, s/d)

Fig. 3 – Igreja Nossa Senhora Aparecida. Fonte: Aeroimagemrc, s/d.


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Entrevistas e análises

Diante das observações técnicas a respeito da importância da planta arquitetônica


de Primavera buscou-se, a partir de entrevistas realizadas com a população residente 25
pessoas), Engenheiro que trabalhou na CESP (01), e diretor da Divisão de Turismo de
Rosana, conhecer a opinião dessas pessoas sobre a potencialidade e importância do traçado
urbano de Primavera.
Apresentaremos inicialmente uma análise quantitativa dos dados das entrevistas reali-
zadas com o subgrupo 1 (moradores antigos do distrito, ao todo contando com 25 (vinte e
422 //
cinco) respondentes), visto que, somente duas questões do questionário tem informações
que podem ser analisadas qualitativamente. Foram realizadas ao total de oito questões, as
duas primeiras tratando sobre perfil do entrevistado, as três seguintes sobre sua história e
conhecimento, e por fim, as últimas questões tem a finalidade de abordar sobre suas opi-
niões a respeito do desenho urbano.
Observou-se diante dos dados que, a maioria dos entrevistados tinham entre quarenta
e cinco (45) e sessenta e três (63) anos, sendo o mais velho de setenta e nove (79) anos.
Diante disso, foi possível levantar dados de moradores que possuem maior experiência
e conhecimento sobre a construção de Primavera. Por serem moradores mais antigos, o
tempo de moradia maior foi entre vinte e cinco (25) anos e trinta e sete (37) anos, quando,
quarenta e sete (47) anos corresponde ao maior tempo dentre todos.
O Gráfico 1 demonstra que somadas as linhas de 40% mais 32% de pessoas que
vieram para trabalhar na Construção da barragem da Usina, ainda se observa nos demais
entrevistados 16% e 12% que as motivações foram devido a casamento realizados com tra-
balhadores da usina e outros que buscaram oportunidades em outros serviços para atender
a população.

Gráfico 1 – Principal motivo de mudança para Primavera

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Fonte: Santos, 2017.

Perguntou-se ainda aos entrevistados se acreditavam que o desenho urbano tem rele-
vância para a história (industrial/cultural) de Primavera e porquê? Observou-se a partir da
Figura 4 que:
Nove (9) dos entrevistados afirmaram ser irrelevante o desenho urbano para a
história da construção de Primavera. Cabe ressaltar algumas dessas respostas: “Não,
é só um desenho”; “Não, por não ter um significado”; “Não, não muda nada na história
da cidade”; “Não, por ser em formato de navio já que aqui não há mar, deveria ser em
formato de barco”.
423 //
Além disso, oito (8) moradores afirmaram que tem relevância o desenho urbano
por conta do encontro dos rios, consideram que pode haver alguma relação entre
o rio e o desenho. Alguns, afirmaram a relevância do desenho urbano por conta do
planejamento de Primavera, e outros, não souberam responder à questão.

Além de realizar o levantamento da relevância ao desenho urbano para a história de


Primavera, buscou-se saber a respeito da relevância para a história dos moradores. Sendo
assim, diante da pesquisa, quarenta por cento (40%) dos entrevistados afirmam que o
desenho urbano tem relevância para a sua história, no entanto, a maioria – sessenta por
cento (60%) – responderam que não há relevância.
A última questão aplicada, referiu-se a respeito da atratividade do desenho urbano
para os turistas, na opinião dos moradores.
Perguntou-se ainda se o desenho urbano de Primavera possui potencial para atrair
mais turistas? Por que?
Ao analisar o Gráfico 3, nota-se que, cinquenta e seis por cento (56%) acreditam que
o desenho urbano pode atrair mais turistas, sendo, trinta e seis por cento (36%) aqueles
que não acreditam.
Por conseguinte, desse questionamento, aqueles que responderam afirmando que acre-
ditam ter atratividade, justificaram que seu planejamento pode ser um fato para atrair mais
turistas, oito (8) pessoas confirmaram isso, e outras três afirmaram que o potencial se daria
por conta da relação com os rios.
Aqueles que responderam negativo a atratividade do desenho urbano para os turistas,
confirmaram que, os turistas são mais atraídos pelo encontro dos rios e, por turismo de
pesca. Além disso, outros afirmaram não ter relevância o desenho urbano para o turismo.
É importante salientar algumas dessas respostas, “Não, nem os moradores tem conhecimento

Gráfico 2 – Sobre o desenho urbano de Primavera


As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Santos, 2017.


424 //
do desenho”; “Não, as pessoas não prestam atenção nos detalhes, normalmente eles buscam
apenas os rios”. Nota-se nessas respostas que, esses moradores acreditam que o desenho não
é atrativo para o turismo por conta dos moradores, que não possuem o conhecimento, e,
por conta das pessoas que não reparam em detalhes como este.
A entrevista com o Engenheiro da CESP teve como objetivo, compreender o processo
de formação do distrito e sobre o Planejamento Urbano de Primavera.
A resposta foi de que na CESP havia uma divisão de projetos com uma equipe de
arquitetos e que
“Não há um padrão nas criações dos núcleos urbanos da CESP né, eles eram
livres em suas criações. Mas acredito que seja devido ao encontro dos rios. Por estar-
mos tão próximos de dois grandes rios, que é o Paraná e o Paranapanema. Mas não
tem nenhum documento na CESP que fale do por que ser um navio. Tem documen-
tos sobre a história da construção de Primavera e da usina (...)” (BATISTA, 2017).

Perguntou-se também a respeito da representação histórica do desenho urbano para a


CESP e para Primavera, e, sobre o traçado se tornar um atrativo turístico.
“Sim, para os dois. A CESP foi a responsável por ter criado Primavera né, então
acredito que os estejam ligados historicamente.”; “Sim, não só o desenho como um
todo. Primavera é uma cidade planejada. Além disso, possui os dois rios como atra-
tivo.” (BATISTA, 2017).

A entrevista com o diretor da Divisão de Turismo relativa à preservação e enaltecimento


do desenho urbano de Primavera, continham três questões, que, de forma geral, explanavam
a respeito de planos e ações para enaltecer e proteger o desenho urbano. Visto anteriormente
que, o desenho urbano possui potencialidade de desenvolvimento da atividade turística no

Gráfico 3 – sobre o potencial do desenho urbano para atrair turistas


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Fonte: Santos, 2017.


425 //
distrito, a entrevista foi relevante para considerar o planejamento que o órgão público oferece
para essa questão. A respeito da preservação do desenho, a resposta foi:
“O desenho vai se manter né, por que Primavera é uma cidade padrão, então
raramente você vai conseguir mexer nisso, se você ler o nosso plano diretor do mu-
nicípio não pode ter prédio em Primavera (...) então automaticamente dentro do
nosso plano o município não se transforma” (COQUEIRA, 2017).

O diretor ressalta o Plano de Diretor diversas vezes ao justificar a preservação do de-


senho, e garantiu que não há projetos que vá modificar o mesmo. E, além disso, cita que
Primavera é uma cidade padrão enaltecendo assim o seu planejamento urbano. Sobre
planos para exaltar o desenho,
“O que vai fazer é um paisagismo bem bonito nos canteiros centrais, acabar
com a cultura desse povo de ficar jogando lixo (...) o desenho em si não vai mudar
não, vamos começar a embelezar o município né, plano agora de paisagismo”
(COQUEIRA, 2017).

Diante do exposto, nota-se que, os planos e ações da Divisão de Turismo para o


Distrito de Primavera, aborda com maior relevância a questão do paisagismo. O diretor
não apresentou projetos que possam valorizar o planejamento urbano de Primavera e seu
contexto histórico.

Considerações finais

O turismo é uma atividade que está em constante expansão, além disso, é uma ativida-
de econômica que auxilia no crescimento e desenvolvimento de uma localidade. Na atua-
lidade, planos, ações e programas estão sendo criados para fomentar a atividade turística,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

e assim, criar novos produtos a partir disso.


O turismo urbano é um segmento que pode ser planejado em conjunto com outros
elementos do espaço urbano, que, se interligados, oferece ampla possibilidade de pro-
porcionar ao visitante experiências históricas, culturais e ambientais e principalmente de
integração com a sociedade receptiva.
O distrito de Primavera é um local em que, o turismo pode ser desenvolvido em seu
espaço urbano, isso por que, é uma cidade que tem paisagens urbanísticas e recursos cultu-
rais. Diante do apresentado, obteve-se o resultado de que, o distrito possui ferramentas para
desenvolver o turismo em seu espaço urbano, no entanto, não há ações futuras da parte da
Divisão de Turismo para tal. Além disso, a respeito do formato de navio e do porquê ser
426 //
construído dessa forma, não foi possível encontrar referências bibliográficas, documentais,
que estejam facilmente disponibilizadas para a composição de um acervo capaz de auxiliar na
justificativa quanto a importância de se instituir legalmente um patrimônio urbano.
Contudo, as entrevistas com os moradores auxiliaram a fundamentar a questão de o
desenho urbano ser considerado como atrativo aos visitantes. A maioria dos moradores
entrevistados possuem familiares que trabalharam nas obras da usina, ou até mesmo o
próprio entrevistado já teria tido alguma relação com as obras. Esse fato foi importante às
questões sobre o conhecimento da história da construção de Primavera e de seu formato,
percebeu-se uma divisão de opiniões, pois, alguns possuíam conhecimento sobre a história
de construção, no entanto, não sabiam do desenho de um navio, e assim vice-versa.
Enquanto representação histórica do desenho urbano de Primavera, a maioria não iden-
tifica como sendo parte da sua história, porém, identificam como representação da história
de formação do distrito, e esses apoiaram que essa representação ocorre por conta do encon-
tro dos rios. Mas, dentre os relatos, pode ser visto a respeito das lendas que se contam entre
os moradores, como cita um dos entrevistados: “Sim, pois as melhores casas ficam na “parte de
cima” do navio, consequentemente eram as casas dos engenheiros, encarregados. Já os funcionários
dos níveis menores, residiam na “parte debaixo” do barco”. Esse, acredita que, o desenho urbano
influência diretamente ao ordenamento espacial e segregação social, é comum encontrar mo-
radores que possuem essa ideologia a respeito da formação de Primavera. Acreditamos que
essas opiniões precisam ser estudadas, esclarecidas e principalmente superadas, uma vez que
outras pessoas chegaram ao município e a antiga estrutura relativa aos funcionários ativos da
CESP, já não atuam na empresa, e que várias casas já foram vendidas, reformadas por outras
pessoas, que possuem pouca ou nenhuma relação com essa dinâmica.
A respeito da atratividade do desenho urbano para o turismo local, as respostas foram
em sua maioria de positivas a essa questão. Porém, ainda houve aqueles que acreditam que
o desenho não possui relação alguma ao turismo, e que, a potencialidade de Primavera são
os rios, e não a simbologia de um navio projetado em sua planta arquitetônica. Dentre os
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entrevistados, ocorreu até mesmo sugestões de como planejar a atividade turística relacio-
nando o desenho urbano.
Sim. Eu acho que o desenho urbano constituição um verdadeiro patrimônio
cultural. E tem ainda relevância para a história industrial porque a representação
do barco pode ser utilizada por artesãos locais na fabricação de pequenos barcos
decorativos, ou ainda em estamparia de camisetas, bonés, chaveiros, porta-cerveja,
canecos e etc.

Essa visão de um dos moradores entrevistados, nos leva a considerar que, ainda que
haja pessoas que não relacionam o desenho urbano a uma representação histórica e a partir
427 //
disso, ser possível desenvolver a atividade do turismo local, existem aqueles que acreditam
na potencialidade desse formato único no Brasil. As ideias apresentadas por esse (a) entre-
vistado (a), são de produções básicas em que, os próprios moradores poderiam produzir
para divulgar o distrito e valorar seu formato de navio e sua representatividade histórica.
No entanto, não há planos que vão de acordo com essas ideias apresentadas, dentro do
setor público.
Contudo, no Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico, foi apontado a respeito das
ameaças, fortalezas, oportunidades e fraquezas do município de Rosana. Dentre esses, foi
perceptível a falta de sensibilização e mobilização da população para o turismo; Abandono
de prédios com valor histórico; Falta de preservação da cultura barrageira; Ausência de
materiais oficiais sobre a história e cultura local.
Um dos programas apresentados no Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico, tem
como principal objetivo de fomentar o turismo na comunidade local, de forma a apresen-
tar a eles o quanto essa atividade pode ser benéfica ao município. Essa ação auxilia o estudo
ao perceber que, poucos dos entrevistados acreditaram que o desenho urbano pode ser um
atrativo a ser desenvolvido.
Através de campanhas sistemáticas de conscientização dos benefícios diretos e
indiretos da atividade turística, vale salientar o quanto o turismo pode contribuir
no âmbito cultural, preservando o patrimônio histórico, resguardando a memória
e identidade local, sendo gerador de atividade socioeconômica com a ampliação de
empregos e a criação de novos postos de trabalho, e o intercâmbio de experiências
entre visitantes e visitados. (ROSANA, 2015, p.159)

Conforme citado, ao enfrentar a problemática de falta de preservação da cultura bar-


rageira e abandono de prédios com valor histórico, a prefeitura municipal de Rosana,
apontou ações dentro do plano para mudar essa situação principalmente em Primavera,
local que foi palco para a construção da UHE – Sérgio Motta.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Seria relevante tombar uma casa de cada tipo, já que algumas se encontram em
posse da prefeitura, para que nesses lugares seja criado uma espécie de vila barrageira
com um museu da história local, centro de recepção do turista, com venda de sou-
venir e sala de TV que mostre em vídeo como tudo começou, aspectos curiosos e
exposição de objetos, onde o visitante pudesse ir caminhando pela casa e entender
passo a passo a história local. Na frente da casa poderia ter a estátua de um “bar-
rageiro” sentado num banco para que as pessoas possam tirar fotos. Como existem
vários tipos de casa e elas se distanciam uma da outra, poderia na maior criar esse
complexo e em outras criar pequenas ações que também fossem abertas a visitação.
(ROSANA, 2015, p. 161)
428 //
Apesar desses programas estarem no plano diretor, ainda não houve ações para o de-
senvolvimento destes. Além disso, esses planos e ações, são pautados no enaltecimento da
história de Primavera e de sua construção, no entanto, não há um plano voltado somente
ao desenho urbano em formato de navio, e de que forma poderia ser desenvolvido.
Neste estudo, apontou-se três segmentos do turismo em que o desenho urbano ser-
viria de objeto principal de desenvolvimento da atividade turística. Considera-se que, o
desenho urbano pode ser de objeto a desenvolver o turismo industrial, pois, possui ca-
racterísticas industriais, devido a construção de Primavera ter tido a finalidade de servir
de abrigo a trabalhadores das obras da usina hidrelétrica. Ele tem potencial de ser consi-
derado como turismo urbano, por estar inserido no espaço urbano, e, além disso, através
de sua singularidade, como já citado por um dos entrevistados, pode ser criado lojas de
souvenires, e nelas, vender objetos que se remete a essa característica do formato de navio.
Enquanto turismo pedagógico, poderia ser de uma junção de ambos os segmentos, afim de
explanar para moradores e visitantes, sobre a história de construção de Primavera, de seus
moradores mais antigos, além de, salientar as influências da indústria no local. Além desses
possíveis planos, para uma observação espacial, poderia ser elaborado atividades de voo,
com a finalidade de visualizar o desenho urbano de forma ampla. No entanto, é preciso de
maiores estudos a respeito dessa prática.
Aliás, o presente estudo pôde concluir que o desenho urbano ainda não é visto como
um possível produto para o turismo, e, além disso, a maioria dos moradores não o perce-
bem como um atrativo ou representatividade histórica. Mas, o pesquisador em uma visão
futurista infere o desenho urbano com um grande potencial de se tornar um atrativo turís-
tico reconhecido pelo Brasil, além de, daqui a anos, ter a potencialidade de ser reconhecido
pela UNESCO. Contudo, é preciso pensar novas pesquisa de maior aprofundamento,
para saber como projetar e planejar a atividade turística em Primavera nesse eixo temático.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Referências bibliográficas

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Braga, D. C. Turismo Industrial: Conceitos, negócios e cases. In: Panosso, A. N.; Ansarah, M. G. dos
R. Segmentação do Mercado Turístico: estudos, produtos e perspectivas. Barueri: Manole, 2009.
pp. 281-298.
Castrogiovanni, A. C. Turismo e ordenação no espaço urbano. In: Filho, A. B.; Castrogiovanni, A.
C. Turismo Urbano. 2.º ed. São Paulo: Contexto, 2001. pp. 23-32.
CESP. Arquitetura na CESP. Coordenação de Nina Maria Jamra Tsukumo. São Paulo: CESP –
Companhia Energética de São Paulo, 1994.
429 //
Paróquia Nossa Senhora Aparecida. História da Paróquia. Disponível em: http:// www.iparoquia.
com/pnsaparecida/inc.php?Page=Historia. s/d.
Prefeitura de Rosana. Plano Diretor Participativo de Desenvolvimento Territorial do Município de
Rosana. Rosana, SP, 2015. Disponível em: https:// rosana.sp.gov.br/legislacao/?id=453. Acesso
em: 18 mai 2023.
___, Lei Complementar n.º 039/2014, de 24 de abr. de 2014. Dispõe sobre a criação do
Distrito de Primavera. Rosana, SP, abr. 2014. Disponível em https://rosana.sp.gov.br/
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___, Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico do Município de Rosana-SP. Rosana, 2022.
Disponível em: https:// www.rosana.sp.gov.br/turismo/plano-diretor-turistico/ Acesso: 20
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Santos, Vanessa Almeda Suzart dos Santos. Cidade planejada e o turismo urbano: Primavera/SP, um
navio a ser desvendado. Monografia de Graduação do Curso de Turismo. Universidade Estadual
Paulista, FEC. 2017.
Vianna, M. P. Núcleos Residenciais da CESP: o processo de desmonte. Dissertação (Doutorado em
Sociologia) – Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São
Carlos da Universidade de São Paulo. São Carlos, p. 356. 2015.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
430 //
Património mundial: conceitos, discursos,
práticas e dinâmicas

Joana Capela de Campos1

Introdução

Enquanto a globalização – se a entendermos como a maior interação entre os


países do mundo – não é um fenómeno novo, a intensidade, a extensão e o carácter
da sua atual forma é.2
Coling Long e Sophia Labadi, 2010

Entender e assumir que o património é um valor humano (Martins, 2011), acarreta


uma responsabilidade partilhada de transmissão para o futuro, de geração em geração,
tanto de um modo consciente ou não (Mohen, 1999, p. 15).
Património é um conceito amplo, no entanto carece de protocolos próprios para a sua
preservação e conservação. Ainda assim, pensar o património, como objeto de estudo, não
deve ser um exercício dissociado de pensar o seu contexto global, no seu processo evolutivo
temporal e em todas as suas multiplicidades e espacialidades.
Estas premissas introdutórias tornam-se pertinentes quando aplicadas ou pensadas no As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

âmbito do Património Mundial da UNESCO, sendo esta uma entidade transnacional e


global por excelência.
A Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural (CPM1972)
foi adotada em 16 de novembro de 1972, durante a Conferência Geral da Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), reunida em Paris, entre
17 de outubro a 21 de novembro de 1972.

1
Doutoramento em Arquitetura, UC; Doutoranda em Turismo, Património e Território, DepGeoTur,
FLUC; Investigadora integrada HTC-CFE NOVA FCSH / Laboratório Associado TERRA
2
Cf. (Labadi & Long, 2010, p. 2).
431 //
Comemorando 50 anos em 2022, esta Convenção tem vindo a revelar-se num dos prin-
cipais instrumentos políticos que a UNESCO desenvolveu e que, possivelmente, se tornou
num dos instrumentos políticos mais bem-sucedidos da história, sendo consubstanciada por
195 Estados-parte3. Verificando-se que, a Organização das Nações Unidas (ONU) conta
com 193 Estados-membros atualmente, pode ser constatado que a CPM1972 da UNESCO
é um dos instrumentos políticos mais abrangentes a nível global4.
Nesse sentido, este trabalho pretende observar de que modo o PM da UNESCO se
enquadra numa métrica de perceção da identidade cultural global, entendida como sendo
a nova chave de leitura para a compreensão dos fenómenos contemporâneos (Beck, 2000,
pp. 7-8). Assim, esta pesquisa edifica-se a partir de mais um exercício de mapeamento no
âmbito do PM, desenhado para abordar quatro tópicos exploratórios que pretendem veri-
ficar a amplitude global das ações da UNESCO através da implementação da CPM1972.
O tópico Conceitos estipula a multiplicidade de noções implementadas a nível
mundial, que foram desenhando o léxico teórico-conceptual da atuação da UNESCO,
enquanto ferramentas para a salvaguarda e proteção do património material e que, paula-
tinamente se foram enraizando nos discursos globais relacionados com o mesmo objetivo.
Em Discursos são abordados os instrumentos de suporte teórico e político que de-
terminam a ação da UNESCO e, em particular, Comité do Património Mundial. São
elencadas as Convenções Culturais da UNESCO e as várias categorias de património,
enquanto instrumentos políticos de educação e de dinamização dos princípios que esta-
belecem a cultura e o património como plataforma de entendimento entre os povos e as
comunidades.
Com as Práticas referenciam-se as ações que permitem implementar a CPM1972,
antevendo a complexidade dos procedimentos exigíveis para que um Estado-parte possa
candidatar um Bem ou Sítio à Lista do Património Mundial (LPM), designadamente atra-
vés da gestão da sua Lista Indicativa ao Património Mundial.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

3
A CPM1972 entrou em vigor em 17 de dezembro de 1975, ou seja, 3 meses após o depósito, junto do
Diretor-Geral da UNESCO, do vigésimo instrumento de ratificação ou de aceitação para Estados-parte da
UNESCO, ou de adesão para os Estados que, não sendo membros da UNESCO, tenham sido convidados a
fazê-lo. Para cada um dos Estados-parte, e após aquela data, a CPM1972 entra em vigor 3 meses após o depó-
sito da declaração de ratificação ou de aceitação, ou da declaração de adesão. Nos casos em que tenha havido
declaração de notificação de sucessão, a CPM1972 entra em vigor na data em que o Estado-parte assume a sua
responsabilidade internacional para o efeito. Atualmente, dos 195 Estados que são parte da CPM1972, 108
são por declaração de ratificação, 71 por declaração de aceitação, 3 por declaração de adesão e 13 por declara-
ção de notificação de sucessão. Cf. (UNESCO World Heritage Centre, 2021); UNESCO – World Heritage
Centre – Ratification Status, in https://whc.unesco.org/en/statesparties/, acedido em 26/07/2023.
4
“A UNESCO constitui-se na entidade transgovernamental mais abrangente de representação política, ao nível
mundial, com 207 Estados (195 Estados-membro, 11 Estados-associado e 1 Estado-observador); a Organização
das Nações Unidas constitui-se com 193 Estados-membro, assumindo o Estado da Palestina e o da Santa Sé como
Estados-não-membro (embora com estatuto de observadores permanentes)” (Capela de Campos, 2019, p. 58).
432 //
Por fim, em Dinâmicas, alude-se ao conjunto das forças que permitem desenvolver os
processos de candidatura para a inscrição de um Bem ou Sítio na LPM, enquanto opor-
tunidade para a gestão e para o desenvolvimento dos seus territórios. Neste tópico abor-
da-se a matriz de riscos e de ameaças que tendencialmente prejudicam o Valor Universal
Excecional, a autenticidade e a integridade, que foram reconhecidos a um Bem ou Sítio
PM, sendo uma ferramenta disponível para a gestão dos mesmos, ao nível da prevenção ou
mitigação desses mesmos riscos ou ameaças, cada vez mais estudados.
De forma concludente, considera-se que as formulações subjacentes às ações da
UNESCO através do Património Mundial se consubstanciam numa nova identidade
cultural global, sendo estabelecidos, pela própria, conceitos, princípios, protocolos e
símbolos que vão padronizando e regulamentando os discursos, as práticas e as dinâmicas
a nível global.
De um modo particular, este trabalho pretende também prestar uma homenagem a
todos os que idealizaram, trabalharam e executaram a candidatura da Universidade de
Coimbra – Alta e Sofia à LPM da UNESCO5, que alcançou o seu maior objetivo em 22
de junho de 2013, comemorando, assim, os dez anos de inscrição em 2023.

Conceitos

Os conceitos devem ser ferramentas vitais na procura desse nosso retrato.6


Mia Couto, 2003

O primeiro tópico pretende perspetivar sobre os conceitos – que são ferramentas fun-
damentais para definir a identificação, o âmbito e a abrangência do Património Mundial
ao longo do tempo.
Antevendo que, para a pesquisa objeto deste trabalho, são essenciais todos os conceitos
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plasmados na CPM1972, não deixa de ser importante lançar algumas pistas para o enqua-
dramento do próprio conceito património mundial, que dá nome à lista da UNESCO
onde estão inscritos, desde 1978, bens culturais, naturais e mistos, localizados pelas diver-
sas geografias do mundo.

Património Mundial

5
Cf. (Capela de Campos, 2019, 2020).
6
Em agosto de 2003, Mia Couto abordava “A fronteira da cultura”, em Palestra para a Associação
Moçambicana de Economistas, em Maputo. Cf. (Couto, 2017, p. 17).
433 //
A partir de 1922, Lionello Venturi, professor de História de Arte na Universidade de
Turim e mais tarde na Universidade de Roma, começa a introduzir nos discursos académi-
cos a conceção de um património global, defendendo que ao se falar de arte não se devia
restringir o discurso à cultura italiana, mas antes abraçar as diversas formas de expressão
artística, ocidentais e orientais, desde a pintura à arquitetura (Macco, 1996).
O conceito começa a conformar-se no texto da Carta de Atenas de 19317, atendendo
a que “les monuments historiques sont évoqués en termes de «patrimoine artistique et archéolo-
gique de l’humanité»” e que, por essa lógica, interessam à “communauté des États, gardieus de
la civilization” (Choay, 2002, pp. 8-9), afirmando uma crescente exigência e interesse nas
práticas de conservação dos centros antigos das cidades.
A destruição subjacente ao período das várias guerras mundiais, transnacionais e na-
cionais, que se verificou principalmente sobre o território europeu durante o século XX,
vai potenciar a afirmação dos discursos para a importância da conservação do património.
O número de bens inventariados cresceu abruptamente e o seu entendimento patrimonial
foi sofrendo alterações; já não eram só os monumentos históricos que deveriam ser pre-
servados, mas todas as formas de edificação, populares/eruditos, urbanos/rurais, públicos/
privados, utilitários/decorativos, todos aqueles passíveis de serem considerados de valor
patrimonial relevante, também esses deveriam ser preservados (Choay, 2008).
Não obstante, a noção de património comum a toda a humanidade foi sendo assimila-
da a nível global, sobretudo a partir do fim da Segunda Grande Guerra, com a fundação da
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)em 16 de no-
vembro de 1945 passando a integrar a Organização das Nações Unidas (ONU), e com a consti-
tuição do Conselho da Europa em 5 de maio de 1949. Em maio de 1954, a UNESCO promoveu
a Convenção de Haia, para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, e no
final do mesmo ano, o Conselho da Europa promoveu a Primeira Convenção Cultural Europeia.
Apesar dos esforços da UNESCO e do Conselho da Europa, o conceito Património
Mundial só se constituía formalmente reconhecido em 1972, na Declaração de Paris da
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UNESCO, intitulada como Convenção para a Proteção do Património Mundial Cultural


e Natural (CPM1972) (UNESCO World Heritage Centre, 2016).
A CPM1972 define o que é considerado Património Mundial, sob quatro variações:
património cultural, património natural, património misto (cultural e natural) e paisagens
culturais8 (World Heritage Committee, 2023).
Enquanto que o património cultural, avaliado sob os critérios de (i) a (vi)9, en-
globa monumentos, conjuntos e sítios com VUE; o património natural atribui-se aos
7
Para mais informações sobre a Carta de Atenas de 1931, cf. (Capela de Campos, 2019).
8
A categoria Paisagens Culturais foi adotada em 1992.
9
Cf. (UNESCO World Heritage Centre, 2023, pp. 79-80).
434 //
monumentos naturais, às formações geológicas e fisiográficas e aos sítios naturais com
VUE; o património misto deve verificar um VUE, nas definições de património cultural
e natural, em parte ou na sua totalidade; e as paisagens culturais abrangem uma grande
variação de inter-relações entre o homem e o ambiente natural, sendo definidas sob três
tipos, a intencionalmente concebida e criada pelo Homem, a evolutiva (paisagem relíquia
ou fóssil, ou paisagem viva) e a cultural associativa.
Se mais nenhum mérito for possível atribuir e verificar à CPM1972, pelo menos deve-
rá ser-lhe reconhecida a capacidade que teve, e continua a ter, em introduzir no léxico, no
debate e no discurso patrimonial internacional, novos conceitos e noções que têm vindo
a evoluir ao longo do tempo, quer em especificidade quer em densidade. Desde logo se
destacam 3 conceitos-chave que evidenciam esta premissa, tais que: a) Valor Universal
Excecional (VUE); b) Autenticidade; e c) Integridade.
Estes 3 conceitos-chave10 transformaram-se em ferramentas de desenho para delinear
a geometria da matriz teórico-conceptual de um discurso que, paulatinamente, se enraíza
por todo o mundo.
De um modo sintético, aclara-se que:

a) Valor Universal Excecional11: O conceito-chave da CPM1972. Este torna-se no epi-


centro de toda a matriz conceptual pela qual se rege toda a atuação da UNECO neste
âmbito da conservação e salvaguarda do património material.
A sua implementação por parte dos Estados-parte tem vindo a constituir-se como uma
oportunidade de democratização do património12, assumindo toda a sua diversidade como
uma qualidade e riqueza da história da humanidade. Os bens culturais, naturais ou mistos,
propostos pelos Estados-parte, têm vindo a ser inscritos na Lista do Património Mundial
(LPM) desde 1978, devido ao reconhecimento internacional dos seus VUEs, justificado
através de 10 critérios (critérios (i) ao (vi) para bens culturais, critérios (vii) ao (x) para
bens naturais). Atualmente, estão inscritos 1157 bens culturais, bens naturais e bens mistos,
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espalhados por 167 Estados-parte.

10
Para mais informações e considerações sobre estes conceitos-chave da CPM1972, cf. (Bandarin, 2010;
ICOMOS, 1965, 1994, 2013; Labadi, 2010; Stovel, 2000, 2008; UNESCO World Heritage Centre, 2016;
World Heritage Committee, 2023).
11
Nos termos da CPM1972, Valor Universal Excecional significa uma importância cultural e/ou natural tão
excecional que transcende as fronteiras nacionais e se reveste de uma importância comum para as gerações
atuais e futuras de toda a humanidade. Assim sendo, a proteção permanente deste património é da maior
importância para toda a comunidade internacional. O Comité define os critérios para a inscrição dos bens
na Lista do Património Mundial.
12
Sobre esta temática, cf. Património Mundial: democracia e diversidade (Capela de Campos, 2019, pp. 87-100).
435 //
b) Autenticidade: Entendido como um dos mais “escorregadios” conceitos associados
ao PM, para a conservação e proteção do património (Labadi & Long, 2010, p. 66), aten-
dendo a que a autenticidade apresenta a dificuldade de conjugação de uma definição, em
simultâneo, para todas as culturas.
Apesar do termo não existir em todas as línguas, o conceito foi discutido na Conferência
de Nara, em 1994, tendo sido reconhecido que a noção de autenticidade existia, sob uma
compreensão de ‘ser verdadeiro e/ou genuíno’. Não obstante, a noção de autenticidade é re-
lativa, podendo variar de cultura para cultura, ou até mesmo dentro da mesma, havendo um
reconhecimento da relação estrita entre o seu entendimento e a sua condição de aplicabilidade.
Deste modo, o Documento de Nara veio clarificar que o conceito depende do seu
contexto sociocultural, da partilha e da pertença a determinados valores, não podendo
ser analisado ou avaliado fora desse contexto. Por essa constatação, foi estabelecida uma
diversidade de atributos a considerar para uma análise do critério de forma mais objetiva.
Esses atributos entendem-se como: forma e conceção, materiais e substância, uso e função,
tradições, técnicas e sistemas de gestão, localização e enquadramento, língua, bem como,
outras formas de património imaterial, espírito e sentimentos ou outros fatores intrínsecos
e extrínsecos a cada cultura. Esta diversidade de atributos ficava à disposição de todos,
devendo ser utilizados para justificar a verificação e as condições da autenticidade do patri-
mónio com VUE (UNESCO World Heritage Centre, 2023, pp. 80-81).

c) Integridade: O conceito mais difícil de analisar e avaliar no âmbito do PM, aten-


dendo à sua complexidade relativa à totalidade do Bem ou Sítio e do seu contexto de
enquadramento espacial, assim como à sua dimensão evolutiva no espaço e no tempo, ou
seja, na sua condição de permanência. Com este critério pretende-se que, para cada Bem
ou Sítio com VUE, seja medida a sua capacidade de resistência e resiliência aos fatores
prejudiciais do desenvolvimento dos lugares e sítios ao longo do tempo, ou ainda àqueles
fatores decorrentes de negligência que possam ocorrer sobre os VUEs. Os factos e as evi-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

dências que testemunham o VUE devem estar devidamente conservados, havendo uma
diferenciação na avaliação deste critério mediante o tipo de Bem inscrito, sendo que todos
os Bens inscritos devem satisfazer as condições deste critério.
Para aqueles Bens ou Sítios inscritos sob os critérios justificativos do VUE de (i) a (vi),
o contexto de enquadramento físico da área classificada, isto é, a sua Zona de Proteção,
e as suas principais características, sobretudo aqueles que definem o caráter tipológico,
arquitetónico-urbano, funcional ou paisagístico, devem ser protegidos e mantidos, sendo
que os processos de controle sobre os fatores de impacte para a sua deterioração devem ser
controlados. Para aqueles Bens inscritos sob os critérios justificativos do VUE de (vii) a (x),
processos biofísicos e características morfológicas ou geológicas devem estar relativamente
436 //
intactos, não obstante a sua condição de dinâmica evolutiva, uma vez que muita da diver-
sidade biológica e cultural pode estar interdependente de atividade humana que se estabe-
lece em áreas naturais (UNESCO World Heritage Centre, 2023, pp. 81-82).
Com o rápido crescimento da LPM13, em 1994, o Comité do PM elencou a neces-
sidade de se estudar uma Estratégia Global para que a Lista pudesse ser representativa,
equilibrada e credível (UNESCO World Heritage Centre, 2023, p. 74).
Este processo de debate global, fica estabilizado durante a reunião realizada entre 24
e 29 de julho de 2002, em Budapeste, cujas decisões estão plasmadas na Declaração de
Budapeste de 2002 (World Heritage Committee, 2002). Com a natural discussão des-
tas decisões, e de modo a complementar o texto de 2002, em 200714, decide-se que a
CPM1972 passa a ter cinco objetivos estratégicos para a sua implementação, ficando conhe-
cidos como os 5 Cs: reforçar a Credibilidade da LPM; assegurar uma efetiva Conservação
dos bens inscritos; promover o desenvolvimento da Capacitação dos Estados-membros;
aumentar o compromisso dos poderes púbicos na Comunicação para o PM; e fortalecer o
papel das Comunidades na implementação da CPM1972.

Discursos

Since wars begin in the minds of men,


it is in the minds of men that
the defences of peace must be constructed.15
UNESCO, 16 de novembro de 1945

Este segundo tópico aborda os discursos – que são os instrumentos de suporte teórico
e político da ação, tendo em vista que sejam alcançados os objetivos a que a UNESCO se
propõe, através do Património Mundial.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Património é um conceito lato, onde tudo cabe16, se assim for compreendido e se
forem acionados os seus mecanismos próprios devidamente, como a categorização, cata-
logação, classificação e gestão. Ainda assim, pensar o património, como objeto de estudo,
não deve ser um exercício dissociado de pensar o contexto global de cada tempo e espaço
em que se define, nas suas multiplicidades. Ainda mais relevante se afigura este tópico, se

13
Sobre esta temática, cf. Património Mundial: democracia e diversidade (Capela de Campos, 2019, pp. 87-100).
14
Cf. (World Heritage Committee, 2007).
15
Cf. (UNESCO, 2018, p. 5).
16
Cf. entre outros (Babelon & Chastel, 2004; Harrison, 2013; Labadi & Long, 2010; Mohen, 1999).
437 //
o mesmo se perspetivar no âmbito do património considerado de VUE pela esfera inter-
nacional mundial e inscrito na LPM.
Na era da globalidade, qualquer acontecimento que ocorra em qualquer lugar do
mundo nunca será um evento isolado17, sendo ilusória a noção de fronteira enquanto
limite de um espaço fechado (Beck, 2000, p. 10). Se todas as invenções, vitórias ou catás-
trofes atingem o mundo inteiro com impacte expressivo, torna-se imperativo reorganizar
todo o sistema, as nossas vidas e as nossas ações, para uma dinâmica assente num eixo
“local-global”18.
Pese embora as dinâmicas urbanas tenham conhecido, a partir da Segunda Grande
Guerra, uma nova cadência da passagem do tempo, é possível perceber que até às décadas
finais do século XX, não são reconhecidas alterações profundas às paisagens urbanas em
geral. Deste modo, se apreende as poucas variações ao longo dos séculos, atendendo aos
registos e aos usos que eram vinculados aos territórios e que permitiram garantir a manu-
tenção das características morfológicas desses territórios (Conzen, 2004).
Não obstante, potenciada por um advento tecnológico no período pós-guerra, veri-
fica-se uma rápida transformação na vida diária das comunidades, resultando por con-
seguinte numa mudança acelerada dos seus territórios de permanência, sobretudo, das
cidades (Doxiadis, 1965). Com efeito, os fenómenos de diversas dimensões – económica,
sociocultural, demográfica, ambiental, política – assumem características globais e susten-
tam-se na rápida proliferação das ideias e mensagens, produzindo repetições dos mesmos
eventos, com os mesmos resultados (ou mais acentuados) noutras localizações.
Nessa lógica, estabelece-se a ideia de que a sociedade pós-industrial contemporânea está
a viver um senso entre a crise e a incerteza, que tem vindo a intensificar-se nas últimas dé-
cadas do século XX, potenciando e escalando a crise económica do final da primeira década
do século XXI (Harrison, 2013, p. 3). De resto, esta constância de crise e de incerteza tem
acompanhado a emergência de outras dimensões, tais como, as transformações sociais, am-
bientais e políticas, tendo por eixo comum entre elas a economia global (Harrison, 2013).
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Assim se enquadra a alteração da escala de perceção da unidade, passando de uma


identidade cultural particular, centrada na pessoa, no território ou no país, para uma nova
métrica onde a unidade se assume como sendo a humanidade no seu conjunto, o planeta
ou o estado global.
Esta nova métrica de perceção da identidade cultural global é adotada como a nova
chave de leitura para a compreensão dos fenómenos contemporâneos (Beck, 2000, pp.

17
Tradução livre de “Globality means that from now on nothing which happens on our planet is only a limited local
event” (Beck, 2000, p. 11).
18
Tradução livre de “all inventions, victories and catastrophes affect the whole world, and we must reorient and reor-
ganize our lives and actions, our organizations and institutions, along a “local-global” axis” (Beck, 2000, p. 11).
438 //
7-8), não deixando de observar constrangimentos e de impor novos desafios. Desde logo,
porque os processos de construção de identidade consistem, cada vez mais, na forma resul-
tante das possibilidades de combinação de fragmentos e elementos que se entendem fazer
parte de uma cultura global, sendo, ainda assim, possível, identificar as especificidades
próprias do lugar, com a sua singularidade funcional ou simbólica (Relph, 1976).
A UNESCO encontrou na cultura e no património, em particular, uma plataforma
de encontro entre a cultura e o desenvolvimento, através das suas convenções culturais.
Através dos textos das suas convenções, redigidos e estruturados de um modo geral e
abrangente, são estabelecidos sistemas de significados a partir dos quais as comunidades
podem compreender o mundo e conhecer novas ferramentas para a sua transformação
(Irina Bokova in World Heritage Centre, 2014). Estes textos assumem um carácter dinâ-
mico, na medida em que vão assimilando as articulações e as adaptações à evolução dos
processos de discussão conceptual e das boas práticas verificadas a nível mundial.
As três convenções mais representativas são a Convenção para Proteção do Património
Mundial de 1972, a Convenção do Património Cultural Imaterial de 2003 e a Convenção
sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005.
Outros textos, para além das convenções, também se tornaram pertinentes na reflexão
que a UNESCO tem promovido desde a sua génese, e que se encontra explamada no ato
constitutivo de 16 de novembro de 1945, atendendo que “a ignorância e a falta de conheci-
mento, entre as diferenças culturais e os modos de vida entre povos ou comunidades, foram motivo
suficiente e gerador de muitas das guerras travadas ao longo da história” (Capela de Campos,
2019; UNESCO, 2014, pp. 5-18). Para além do Comité do Património Mundial, a imple-
mentação da própria convenção conta com a ação de três consultores19, que estão determi-
nados no texto da mesma, tais que: o ICCROM (International Centre for the Study of the
Preservation and Restoration of Cultural Property), o ICOMOS (International Council on
Monuments and Sites) e a IUCN (International Union for Conservation of Nature).
Os trabalhos e estudos que estes 3 consultores têm vindo a desenvolver em ações de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
cooperação e de monitorização contribuem para a produção de discursos e textos oficiais,
como nos dá conta o próprio texto da convenção, podendo ser verificada a sua linha evolu-
tiva através do ajuste e constante adaptação face ao estado da arte discutida mundialmente.
Enquanto plataforma privilegiada para promover discursos de paz entre povos e co-
munidades, através da educação, da ciência e da cultura, a UNESCO tem diversificado

19
De um modo sucinto, o ICCROM está vocacionado para colaborar nos processos de intervenção física
sobre os Bens inscritos, ao nível de ajuda técnica e especializada; o ICOMOS está direcionado para coope-
rar com o Comité do PM ao nível teórico-conceptual, inclusivamente, promovendo ações de análise e de
avaliação das candidaturas de Bens à LPM; e a IUCN contribui em todas as questões do património natural
(UNESCO World Heritage Centre, 2023).
439 //
os seus sítios, patrimónios e dinâmicas, especificando-os e definindo-os sob várias cate-
gorias, como: Património Mundial, Património Cultural Imaterial, Património Cultural
Subaquático, Reservas da Biosfera, Memória do Mundo, Rede das Cidades Criativas,
Geoparques Mundiais, Atlas das Línguas do Mundo em Risco e Rede das Cidades do
Conhecimento.

Práticas

(…) a existência de um monumento histórico não deve fossilizar a sua envolvente


imediata; o dever de memória não deve paralisar o pensamento criativo.20
Roland Recht, 1998

As práticas ou as ações que permitem implementar a CPM1972, são um terceiro tópi-


co fundamental neste mapeamento, atendendo que a inscrição de um Sítio na LPM é, por
si só, o reconhecimento internacional que determinado património cultural, natural e/ou
misto tem um VUE que importa proteger para futuro e que deve ser assegurado para e por
toda a comunidade mundial. Assim, o balanço entre, por um lado, a memória do lugar e a
proteção e salvaguarda do património e, por outro lado, as ações de inovação e os possíveis
usos funcionais, socioculturais e turísticos, determinará objetivamente ações e decisões de
gestão (Du Cross & McKercher, 2015, p. 79).
Por conseguinte, a compreensão do fenómeno referenciado ao desenvolvimento de
um processo de candidatura ao PM, afigura-se cada vez mais numa necessidade e numa
oportunidade, tendo em conta, não só o número de Bens inscritos na LPM, mas também
o número daqueles que têm vindo a ser inscritos nas Listas Indicativas dos Estados-parte
ao Património Mundial, pré-requisito exigido para as candidaturas à LPM. Atualmente,
dos 195 Estados-parte da Convenção do PM, 186 deles inscreveram Bens nas suas Listas
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Indicativas. A título de exemplo, Portugal inscreveu 18 Bens21 na sua Lista Indicativa, até
à última revisão da mesma, em 6 de junho de 2017.

20
Tradução livre, cf. (Recht, 1998, p. 15).
21
A saber: em 06/06/2017, Dorsal Médio-Atlântica; e em 31/01/2017, Lisboa Histórica, Cidade Global; Mértola;
Montado, Paisagem Cultural; Rota de Magalhães. Primeira à volta ao mundo; Vila Viçosa, Vila ducal renascen-
tista; Ilhas Selvagens; Fortalezas Abaluartadas da Raia; Aqueduto das Águas Livres; Caminhos Portugueses de
Peregrinação a Santiago de Compostela; Complexo Industrial Romano de Salga e Conserva de Peixe em Troia;
Conjunto de Obras Arquitetónicas de Álvaro Siza em Portugal; Costa Sudoeste; Lisboa Pombalina; Deserto dos
Carmelitas Descalços e Conjunto Edificado do Palace-Hotel no Bussaco; Edifício-sede e Parque da Fundação
Calouste Gulbenkian em Lisboa; Levadas da Madeira; Lugares de Globalização. Cf. WHC-UNESCO –
Tentative Lists, Portugal, in https://whc.unesco.org/en/tentativelists/?action=listtentative&state=pt&order=states,
acedido em 19/12/2023; CNU – Património Mundial em Portugal, in https://unescoportugal.mne.gov.pt/pt/
440 //
Estes processos têm vindo a tornar-se muito exigentes do ponto de vista técnico e político,
face aos trâmites impostos para que seja alcançado o grande objetivo de uma candidatura de um
Bem à LPM. Se existe competição entre candidaturas dos vários Estados-parte que propõem
a inscrição de um Bem ao PM, não deixa de se verificar também uma competição interna nos
próprios Estados-parte, para que os Bens e Sítios possam ser inscritos na sua Lista Indicativa.
Em todo o caso, esta Lista Indicativa pode ser considerada como uma ferramenta ou
mesmo um instrumento de gestão interna aos Estados-parte, permitindo que cada um
possa estabelecer um equilíbrio territorial e de categorias patrimoniais que logrem vir a
ser considerados de VUE perante a comunidade global. Esta premissa permite pensar o
património associado ao PM como fator de desenvolvimento territorial, tendo em conta
os inúmeros estudos que reportam esta ideia, maiormente aqueles associados ao desenvol-
vimento baseado no turismo cultural (Du Cross & McKercher, 2015).
Adicionalmente, a gestão de um Bem ou Sítio PM, a conservação e a preservação
de património e, ainda, o uso do património aparecem como parcelas fundamentais na
articulação das práticas para alcançar os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável,
promovido pelas Nações Unidas, nos quatro indicadores estipulados para a Cultura na
Agenda 2030: Ambiente e resiliência; Prosperidade e meios de subsistência; Conhecimento
e capacidades; e Inclusão e participação.
Não obstante a Diretora Geral da UNESCO ter declarado que a cultura é um bem
público mundial22, sublinhando o papel central que a mesma tem na dignificação da vida
humana e na vida política global sendo também a coluna vertebral para se fazer sociedade,
verifica-se também que a própria sociedade e muitas das suas políticas tem evoluído “no
sentido de uma crescente e inevitável comercialização do património” (Santos, 2017, p. 53).
É inegável que os processos de turistificação de determinadas regiões se baseiam no(s)
seu(s) Sítio(s) PM, podendo até ter sido, o acesso ao status da LPM, uma das grandes
motivações para que o Estado-parte tivesse investido nessa candidatura à Lista (Askew,
2010). Sendo reconhecida a complexidade existente entre o desenvolvimento do território
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
e os valores e interesses económicos potenciados pelas atividades decorrentes do setor do
turismo, que (não poucas vezes) são discordantes ou se justapõem aos outros vetores de de-
senvolvimento do mesmo território, não deixa, o turismo, de configurar um dos principais
motivos das agendas políticas para se candidatar os bens à LPM, como assim evidenciam

temas/proteger-o-nosso-patrimonio-e-promover-a-criatividade/patrimonio-mundial-em-portugal, acedido em
22/12/2023.
22
Discurso proferido pela Diretora-Geral da UNESCO em 28 de setembro de 2022, na Cidade do México,
durante sessão de abertura da MONDIACULT 2022. Cf. https://mondiacult2022.cultura.gob.mx/evento/
ceremonia-de-apertura, acedido em 22/12/2023.
441 //
vários estudos23. Contudo, não é qualquer equação relativa ao turismo e/ou ao desenvolvi-
mento das suas atividades, a justificação para qualquer inscrição de Sítios ou Bens na Lista
da UNESCO, como já foi verificado no primeiro tópico deste trabalho.
Consequentemente, deverá ser assegurado um exercício de equilíbrio entre o património
e o turismo pela hierarquia dos atores que gerem o VUE dos Bens da LPM, podendo ser
consideradas “regras de convivência entre ambos, numa perspetiva de rentabilização económica e
de desenvolvimento social” (Santos, 2017, p. 52).

Dinâmicas

“Faça-se o que se fizer, reconstrói-se sempre o monumento à nossa maneira.


Mas já é muito empregar somente pedras autênticas”.24
Marguerite Yourcenar, 1951

Por último abordamos as dinâmicas – como sendo o conjunto das forças que permitem de-
senvolver estes processos, partindo do princípio que os processos de candidatura para a inscrição
de um Sítio na LPM podem (e devem) ser um ativo para a gestão e para o desenvolvimento dos
seus territórios. Nessa lógica, deverá ser equacionado como é que esse ativo se define, se planeia
e se implementa a partir do momento em que a candidatura atinge o seu objetivo.
Desde a transição do milénio, que uma maior consciência tem vindo a ser promovida
para a necessidade de uma efetiva qualificação da gestão, das práticas e das estratégias sobre
o património, sobretudo em relação ao património nas cidades, constituintes de paisagens
urbanas históricas e culturais. Desde 1978, a classificação “Património Mundial” cons-
titui-se também como uma marca ou um símbolo, que destaca o aumento do interesse
cultural sobre o Bem, o sítio e potencialmente sobre o seu território.
Não obstante, já não é suficiente decidir por um processo de candidatura à LPM só
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

para ser garantida essa chancela PM. Importa também considerar as agendas políticas que
estão na base de decisão do desenvolvimento e formalização destes processos de candida-
tura à LPM e, não menos importante, antecipar os compromissos para futuro que estão
subjacentes a estes procedimentos.
Como já foi verificado anteriormente25, sobretudo desde 2005, os processos de candida-
tura afiguram-se como operações de alocação de recursos, tanto financeiros como técnicos,
materiais e normativos; adicionalmente, aglutinam uma complexidade multidisciplinar que
23
Cf. (Bourdeau et al., 2017; Du Cross & McKercher, 2015; Salazar, 2010).
24
Cf. (Yourcenar, 2012, p. 283).
25
Cf. (Capela de Campos, 2019, 2023).
442 //
lhes é exigida, aumentando a competitividade entre os próprios Estados-parte, na análise,
avaliação e decisão final que têm lugar nas Assembleias Gerais anuais do Comité do PM.
Deste modo verifica-se que, sob pena de ser desperdiçado todo o trabalho inerente
ao desenvolvimento e à formalização de uma candidatura, há que lhe ser reconhecida a
oportunidade subjacente de poder ser um instrumento operativo de gestão urbana para o
futuro das cidades e dos seus territórios.
A justificação de um VUE, como já vimos no primeiro tópico aqui abordado, assenta
em pelo menos um dos dez critérios gerais do VUE, na sua declaração de autenticidade
e de integridade. Também se constata que, o plano de gestão26 deste VUE, para além de
documento obrigatório desde 2005, deverá ser um compromisso por um equilíbrio arti-
culado entre a preservação do bem material e o seu uso para o futuro.
Alguns mecanismos de monitorização do estado de preservação do VUE dos Bens
inscritos foram implementados pelo Comité do PM, atendendo aos riscos associados ao
rápido desenvolvimento dos territórios, sobretudo as cidades ou centros urbanos de gran-
de identidade cultural, a partir da transição do milénio. A diversidade dos riscos que atin-
gem os valores atribuídos a cada um dos Bens inscritos na LPM tem sido alvo de estudo
do Comité do PM, dos seus consultores e especialistas, tendo sido estabelecida, em 2008,
uma lista de fatores de risco que afetam o VUE e que prejudicam ou que colocam em causa
a autenticidade e a integridade dos Bens inscritos.
Foram identificadas 14 temáticas gerais de fatores de ameaça principais, sendo algu-
mas mais vocacionadas para aferir aquelas que afetam maioritariamente os bens culturais,
outras mais específicas para atender às questões que afloram os bens naturais, sendo que
a conjugação entre umas e outras são utilizadas para o caso dos bens mistos. Cada uma
destas temáticas subdivide-se, por sua vez, em fatores de riscos secundários, tendo já sido
identificado e estudado um vasto conjunto deles, sendo que alguns dos potenciais riscos de
prejuízo para o PM e o seu VUE apresentam-se transversais a várias temáticas.
Esta aposta do Comité do PM permite desenhar uma matriz global de riscos (ver
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Tabela 1), à qual os gestores dos Bens e Sítios deverão estar atentos.

26
Cf. (Capela de Campos, 2023).
443 //
Tabela 1: Matriz dos principais fatores de riscos/ameaças que afetam o Valor Universal
Excecional, dos Bens e Sítios inscritos na Lista do Património Mundial
Fatores de risco/ameaça principais Fatores de risco/ameaça secundários
Construção
Desenvolvimento comercial e de serviços
Construção e desenvolvimento urbano Áreas industriais
Majoração de acomodações para visitantes e infraestrutura associada
Instalações de interpretação e de visita
Infraestrutura de transportes terrestre
Infraestrutura de transportes aérea
Transportes e infraestruturas Infraestrutura de transportes marítima/fluvial
Efeitos emergentes do uso de infraestrutura de transportes
Infraestrutura de transportes subterrânea
Infraestruturas de água
Instalações / equipamentos de energia renovável
Serviços de infraestrutura Instalações / equipamentos de energia não renovável
Serviços localizados
Serviços lineares (utilidade pública)
Poluição de águas marítimas
Poluição de águas de solo
Poluição de águas de superfície
Poluição
Poluição do ar
Desperdícios sólidos
Consumo excessivo de energia
Pesca / recolha de recursos aquáticos
Aquacultura
Conversão dos terrenos
Pecuária / pastorícia
Usos dos recursos biológicos ou a sua Produção agrícola
modificação Recolha de plantas silvestres para fins comerciais
Recolha de plantas silvestres de subsistência
Caça comercial
Caça de subsistência
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Floresta / produção de madeira


Mineração
Extração (sólidos)
Extração física dos recursos
Óleo e gás
Extração de água
Vento
Humidade relativa
Temperatura
Condições locais que afetam o conjunto Radiação / Luz
construído Pó
Água (pluviais / potável)
Pesticidas
Micro-organismos
444 //
Fatores de risco/ameaça principais Fatores de risco/ameaça secundários
Usos rituais / espirituais / religiosos e de associativismo
Património valorizado pela sociedade
Caça, coleta e recolha indígenas
Usos culturais e/ou sociais do património
Mudanças nos tradicionais modos de vida e nos sistemas de aprendizagem
Identidade, coesão social e alterações nas populações locais e comunidades
Impactes do turismo / visitantes / recreação
Atividades ilegais
Destruição deliberada do património
Treino militar
Outras atividades humanas
Guerra
Terrorismo
Conflitos civis
Tempestades
Inundações
Seca
Alterações climáticas e eventos atmos-
Desertificação
féricos severos
Alterações nas águas oceânicas
Alterações de temperatura
Impactes de outras alterações climáticas
Erupção vulcânica
Sismo
Eventos ecológicos ou geológicos rá- Tsunami / maremoto
pidos Avalanche / deslizamento de terra
Erosão e assoreamento / deposição
Fogo
Espécies translocadas
Espécies terrestres invasivas
Espécies de água doce invasivas
Espécies invasoras ou hiperabundantes
Espécies ma
Espécies hiperabundantes
Material genético modificado
Sistema de gestão / Plano de gestão
Estrutura legal As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Pesquisa de impacte reduzido / atividades de monitorização


Governança
Fatores institucionais ou de gestão
Pesquisa de impacte elevado / atividades de monitorização
Atividades de gestão
Recursos financeiros
Recursos humanos
Outros Outros fatores mensuráveis e não mencionados e/ou ainda não identificados
Fonte: UNESCO-WHC, adaptado pela autora.

Esta ferramenta torna-se útil na monitorização periódica que é feita sobre as condições
de conservação e preservação do VUE do Bem, permitindo que sejam identificados fatores
445 //
de risco que possam estar a surgir ou que possam já estar implementados. O grande obje-
tivo desta matriz é tentar antever, prevenir ou mesmo eliminar o risco ou ameaça sobre o
VUE, ou então, pelo menos mitigar o seu impacte.

Considerações finais

Este trabalho pretende observar de que modo o PM da UNESCO se enquadra numa


métrica de perceção da identidade cultural global, como sendo a nova chave de leitura para a
compreensão dos fenómenos contemporâneos, a partir de um exercício de mapeamento no
âmbito do PM. Este mapeamento é desenhado para abordar quatro tópicos exploratórios que
pretendem verificar a amplitude global das ações da UNESCO através da implementação
da sua Convenção de Paris, a CPM1972. Para tal, os quatro tópicos exploratórios trabalham
sobre Conceitos, Discursos, Práticas e Dinâmicas que consubstanciam a atuação da UNESCO
no setor da Cultura, sobretudo, no âmbito do Património Mundial e da implementação da
sua Convenção, símbolo globalmente conhecido e almejado por todos os seus Estados-parte.
Com o tópico Conceitos, caracteriza-se, por um lado, o retrato da própria historiografia
sumária do conceito base do trabalho – Património Mundial –, e por outro lado, determina-
-se a multiplicidade de noções que foram desenhando o léxico teórico-conceptual da atua-
ção da UNESCO ao longo do tempo. Os conceitos-chave desta temática – Valor Universal
Excecional, Autenticidade e Integridade –, encontram-se enraizados nos discursos globais,
não só relacionados com a salvaguarda e a proteção do património material, mas também
em outras áreas disciplinares que lhes são transversais. Objetivamente, estes conceitos (ou as
suas noções) têm vindo a constituir-se como democráticos, porque podem ser assumidos por
todos, para justificar o VUE de todos os patrimónios – mesmo aqueles que não estão inscri-
tos na LPM -, tendo vindo a ser implementados na articulação de princípios relacionados
com os valores atribuídos ao património em geral, ou na criação de protocolos e de símbolos
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

relacionados com ações de salvaguarda e de conservação do património.


Através do tópico Discursos, são abordados os instrumentos de suporte teórico e po-
lítico que determinam a ação da UNESCO na criação de discursos de Paz e entendimen-
to entre os povos, plasmados nos seus textos, como convenções, cartas, recomendações
ou declarações. Sublinha-se, dentro da ação da UNESCO, o papel das suas Convenções
Culturais e das várias categorias de património, enquanto instrumentos políticos de edu-
cação e de dinamização dos princípios que estabelecem a cultura e o património como
plataforma de interrelação entre os povos e as comunidades. Estes textos são construídos
de um modo abrangente, sendo dinâmicos o suficiente para englobar a generalidade da
diversidade dos patrimónios.
446 //
Adicionalmente, as Convenções Culturais da UNESCO são estruturadas para assimi-
lar as adaptações necessárias à evolução dos processos de discussão conceptual e das boas
práticas verificadas a nível mundial.
No tópico Práticas, elencam-se as ações que permitem implementar a CPM1972,
caracterizando alguma da complexidade dos procedimentos exigíveis para que um Estado-
parte possa candidatar um Sítio à LPM, designadamente através da gestão da sua Lista
Indicativa ao Património Mundial. Esta Lista Indicativa torna-se uma oportunidade de
gestão interna ao Estado-parte, uma vez que podem ser estabelecidas diretrizes de equilí-
brio territorial no âmbito da representatividade do PM, tanto ao nível espacial como ao
nível das categorias patrimoniais.
Pese embora seja conhecida a tendência de aumento da procura dos Sítios inscritos
na LPM, e como referenciam muitos estudos já mencionados, o turismo, sobretudo o
cultural com as suas atividades e as suas dinâmicas próprias, é um vetor que não deve ser
descurado pelo sistema de gestão dos Bens, desde o processo de formalização da candida-
tura. Não é, ou pelo menos não deveria ser, o turismo ou as suas dinâmicas associadas ao
património inscrito nas Listas da UNESCO o motivo decisor de um empreendimento que
um Estado-parte assume, para candidatar um Bem ao PM.
O desafio comum a todos os Bens e Sítios PM constitui-se em assegurar um equilíbrio
entre os valores do património e as atividades turísticas, permitindo que o setor do turismo
possa contribuir para o desenvolvimento do território, em todas as suas vertentes, com
maior relevância e atenção para a económica, urbana e sociocultural.
Por fim, com o tópico Dinâmicas, enquadra-se o conjunto de forças que permitem
desenvolver os processos de candidatura para a inscrição de um Bem ou Sítio na LPM, en-
quanto oportunidade para a gestão e para o desenvolvimento dos seus territórios. Um dos
desafios associados a estes processos deve perspetivar a dinâmica evolutiva dos processos de
desenvolvimento, sem prejuízo da salvaguarda e proteção do VUE, da autenticidade e da
integridade dos Sítios, assentes no rigor científico e técnico.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
O sistema de gestão estipulado para a salvaguarda e a proteção do VUE do Bem ou
Sítio inscrito na LPM deve privilegiar ações de monitorização periódicas, de modo a adap-
tar alguma medida que esteja desajustada à realidade ou exigência da ação de proteção,
prevenir (ou eliminar) algum risco ou ameaça que possa vir (ou que esteja) a prejudicar o
VUE ou, no limite, mitigar esse risco ou ameaça. Para tal, o Comité do PM estabeleceu
catorze temáticas relativas a riscos ou ameaças que tendencialmente prejudicam o VUE, a
autenticidade e a integridade de um Bem ou Sítio PM. Subdividindo-se em riscos secun-
dários, é estabelecida uma matriz global de riscos como uma ferramenta disponível para a
gestão dos Bens PM, sendo certo que, devido à sua amplitude e abrangência esta matriz é
transversal a todos os sítios do mundo.
447 //
Estas formulações subjacentes às ações da UNESCO, sobretudo aquelas que se desen-
volvem através do Património Mundial, têm contribuído para que seja encontrada uma
nova identidade cultural global, baseando-se na importância do valor do património para
identidade dos povos e das próprias comunidades. Não obstante, também a importância
das relações entre os povos e as comunidades se consubstancia como patrocinador desta
nova identidade cultural global, onde o património se constitui como uma plataforma de
reunião e de cooperação.
Deste modo, perspetivando que o dever da memória não deve paralisar o pensamento
criativo em articulação com a lógica que estimula a ação da UNESCO, na criação de dis-
cursos de Paz, através da educação, da ciência e da cultura, defendemos a profunda con-
vicção de que a educação no âmbito da cultura e do património é essencial para o futuro.
Através da educação patrimonial, da disseminação destes conceitos gerais e demo-
cráticos, é permitido criar pontes de diálogo para estreitar as divergências instaladas e o
desconhecimento do outro que tende a criar barreiras de comunicação. O estímulo pela
educação cultural e patrimonial, pilar fundamental da UNESCO, visa aumentar a tolerân-
cia pelo outro e pela diversidade que o mundo nos apresenta.
Existem apenas 10 critérios justificativos do VUE, para além da autenticidade e da
integridade do Bem ou Sítio entendido como património, sendo que os primeiros seis
critérios dizem respeito ao VUE dos patrimónios culturais e os últimos quatro critérios
relacionam-se com o VUE dos patrimónios naturais. Atualmente existem 1157 Bens ins-
critos na LPM e todos – todos, sem exceção – foram inscritos com a verificação de pelo
menos um dos dez critérios elencados. Com as devidas adaptações às categorias e às carac-
terísticas individuais justificativas do valor de cada Bem ou Sítio inscrito ou a inscrever na
LPM, os dez critérios são gerais e inclusivos o suficiente para englobarem a totalidade dos
patrimónios existentes no mundo, pese embora todas as exigências técnicas e formais de
um processo de candidatura ao PM e ainda os 5Cs, objetivos estratégicos para uma Lista
representativa.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Para finalizar de forma concludente, considera-se que as formulações subjacentes às


ações da UNESCO através do Património Mundial se consubstanciam numa nova identi-
dade cultural global, sendo estabelecidos, pela própria, conceitos, princípios, protocolos e
símbolos que vão padronizando e regulamentando os discursos, as práticas e as dinâmicas
a nível global.
Este exercício de mapeamento sobre a ação da UNESCO direcionada ao Património
Mundial, termina com a expectativa de ter contribuído para o conhecimento sobre o
tema e com a convicção de que conhecer estes tópicos pode ser um exercício pertinente
no sentido de lançar pistas para outras temáticas cujas amplitudes e dinâmicas possam ser
semelhantes.
448 //
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450 //
IV. SOCIEDADE E TERRITÓRIO
452 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Políticas da educação superior e o perfil
dos estudantes: o caso da UEMA

Fabiola de Jesus Soares Santana1


José Sampaio de Mattos Júnior2

Introdução

Este artigo apresenta uma análise das políticas da educação superior desenvolvidas
no Brasil, em especial da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), diante do perfil
socioeconômico dos estudantes a partir dos indicadores sociais e educacionais apontados
nos relatórios do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e os relatórios do questio-
nário socioeconômico da IES. Para alcançar os objetivos da pesquisa, a abordagem adotada
foi qualitativa e quantitativa com uso de análise documental.
A motivação para realização deste estudo originou-se da necessidade de identificar o
perfil socioeconômico dos estudantes da UEMA como estratégia para melhor conceber e
definir as políticas institucionais a partir das condições de vulnerabilidades socioeconômi-
cas e espaciais da comunidade acadêmica, com o fito de garantir a expansão da oferta de
vagas com qualidade, a permanência estudantil, a diminuição da evasão dos estudantes dos
cursos de graduação e a elevação da taxa de concluintes. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

No contexto pandêmico da Covid-19, agravaram-se e evidenciaram-se mais intensa-


mente as desigualdades sociais e as dificuldades quanto ao acesso à uma educação superior
com equidade de oportunidades e condições adequadas para sua oferta em uma perspectiva
inclusiva e que considere as diferentes estruturas sociais e econômica do país. A diversidade

1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Letras,
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, Campus São Luís/MA-Brasil Cidade Universitária Paulo VI
– fabiolasantana@professor.uema.br
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional e do Programa de
Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, Campus São Luís/MA-Brasil
Cidade Universitária Paulo VI – sampaio.uema@gmail.com
453 //
de situações de vulnerabilidade territorial no Maranhão está associada a estruturas econômi-
cas e sociais de um estado extremamente pobre, que contribui também para a elevação da
baixa taxa de escolaridade de sua população. Por isso, a universidade precisa lançar mão de
instrumentos que possam continuamente identificar e analisar o perfil socioeconômico de
sua comunidade estudantil para o desenvolvimento de políticas institucionais a partir de um
processo contínuo de avaliação e reflexão sobre como garantir o direito essencial à educação
e a elevação dos indicadores sociais e da qualidade da oferta dos cursos de graduação.
Nesse sentido, neste estudo, objetiva-se, com a análise dos dados, demonstrar a neces-
sidade do desenvolvimento e do contínuo acompanhamento das políticas institucionais
de permanência dos estudantes da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA a fim de
promover a diminuição das desigualdades socioespaciais e regionais e que considere suas
peculiaridades e vulnerabilidades territoriais, sociais e econômicas, bem como a melhoria
da qualidade do ensino de graduação.

Perfil socioeconômico dos estudantes da UEMA

De acordo com dados do IBGE (Censo Demográfico 2022), o Maranhão, com 217
municípios, possui 6.775.152 milhões de habitantes residentes em cinco mesorregiões.
Dentre os estados brasileiros e o Distrito Federal, o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) do estado, registrado em 2021 (IBGE), é de 0,676, o mais baixo de todos da
Unidade Federativa do Brasil. Quanto ao número de instituições de educação superior
(IES), conforme o último Censo da Educação Superior (INEP/2021), existem três uni-
versidades públicas, sendo duas estaduais e uma federal, e 29 privadas atuando no estado.
Dentre as universidades públicas no estado do Maranhão, a UEMA, ao longo dos seus
42 anos de existência, assumiu o papel de interiorização e expansão da oferta de vagas para
a educação superior de cursos de graduação presenciais e a distância, demonstrado pela
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

abrangência de sua atuação em todo território. São mais de 94 cursos de graduação. Com
estrutura multicampi, possui campus em vinte municípios, instalados nas cidades de:
Bacabal, Balsas, Barra do Corda, Caxias, Codó, Coelho Neto, Colinas, Coroatá, Grajaú,
Itapecuru-Mirim, Lago da Pedra, Pedreiras, Pinheiro, Presidente Dutra, Santa Inês, São
Luís, São João dos Patos, São Bento, Timon e Zé Doca e mais outros quarenta e nove muni-
cípios, em polos dos seguintes programas especiais: Programa de Formação de Professores
– Ensinar; Programa de Formação Profissional Tecnológica – PROFITEC; Programa de
Formação Docente para a Diversidade Étnica do Maranhão – PROETNOS, além dos
cursos a distância ofertados pelo Núcleo de Tecnologias para Educação – UEMAnet. No
Campus de São Luís, há quatro Centros de Ciências: Centro de Educação, Ciências Exatas
454 //
e Naturais (CECEN), Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA), Centro de Ciências
Tecnológicas (CCT) e Centro de Ciências Agrárias (CCA).
Conforme dados dos matriculados ativos, registrados no SIGUEMA Acadêmico –
Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas da UEMA, quanto à proveniência
dos mais de 20.000 estudantes de nossa universidade, relacionada aos municípios do Estado
do Maranhão, há estudantes provenientes de 172 municípios do total de 217 que integram o
território maranhense, representados na Figura 1 pelo mapa com a localização geográfica dos
municípios de origem dos estudantes.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig.1 – Mapa com a localização geográfica dos municípios de origem dos estudantes da UEMA

A seguir, na figura 2, registra-se a localização dos 20 campi da UEMA no estado do


Maranhão, que demonstra a posição estratégica de sua presença no território maranhense.
455 //
Fig. 2 – Mapa com a localização geográfica dos 20 campi da Uema no Maranhão

Para esta pesquisa, selecionou-se o questionário do Exame Nacional de Desempenho


dos Estudantes da Educação Superior – Enade, cujo objetivo é avaliar o rendimento dos
concluintes dos cursos de graduação em relação aos conteúdos programáticos previstos nas
diretrizes curriculares dos cursos, o desenvolvimento de competências e habilidades ne-
cessárias ao aprofundamento da formação geral e profissional, e o nível de atualização dos
estudantes com relação à realidade brasileira e mundial. Aplicado pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep desde 2004, o Enade integra
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Dentre os indicadores se-


lecionados para análise, nesta parte da pesquisa, optou-se por renda familiar, escolaridade
do pai e escolaridade da mãe dos estudantes dos cursos presenciais de graduação da Uema
(licenciaturas e bacharelados). Considerando o número expressivo de cursos de licenciatu-
ra e bacharelados existentes, realizou-se a média aritmética dos resultados das respostas às
perguntas selecionadas, a saber: Até que etapa de escolarização seu pai concluiu?; Até que
etapa de escolarização sua mãe concluiu? e Qual a renda total de sua família, incluindo
seus rendimentos (INEP – Questionários ENADE 2019 e 2021).
As licenciaturas são a modalidade com o maior número de cursos ofertados na UEMA,
total de 15 (quinze) cursos distintos replicados em quase todos os campi, exceto o Campus de
456 //
Grajaú, além de 42 (quarenta e dois) polos do Programa Ensinar – Programa de Formação de
Professores, política pública estadual assumida pela instituição desde 1993, com o fito de cum-
prir o estabelecido na Meta 15 do PNE: “Garantir, em regime de colaboração entre a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 (um) ano de vigência deste PNE,
política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III
do caput do art. 61 da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os pro-
fessores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, ob-
tida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.” (Lei n.º 13.005/2014).
Em 1993, surge o primeiro programa de formação de professores da UEMA chamado
PROCAD (Programa de Capacitação Docente)3, pela urgência de possibilitar a milhares de
professores, que atuavam nas redes públicas de ensino (estadual e municipal), a formação
inicial específica de nível superior. Segundo o Centro de Documentação e Informação da
Secretaria de Estado da Educação do Maranhão – CEDIN/SEEDUC/MA, 92,5% não ti-
nham a habilitação mínima para o exercício docente (Duarte, 2008: 15). A criação dos cursos
de licenciaturas na UEMA decorre dessa urgência para cumprimento da Meta 15 em todo o
estado do Maranhão como uma política de Estado quanto à formação inicial de professores.
De acordo com o Censo da Educação Básica 2021, no ensino fundamental, atuam
65.464 professores, sendo que 31.594 atuam nos anos iniciais e 39.644 atuam nos anos fi-
nais. Do total de docentes que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, 65,2% têm
nível superior completo (62,2% em grau acadêmico de licenciatura e 3,0%, de bacharela-
do) e 28,2% têm ensino médio normal/magistério. Foram identificados ainda 6,6% com
nível médio ou inferior. Em relação aos anos finais do ensino fundamental, 71,0% dos
docentes possuem nível superior completo (67,9% em grau acadêmico de licenciatura).
Quanto ao ensino médio, o Censo da Educação Básica 2021 registra que há um total
de 15.893 professores que atuaram no ensino médio em 2021. Desse total, 94,1% têm
nível superior completo (86,3% em grau acadêmico de licenciatura e 7,8%, de bachare-
lado). Ou seja, ainda existem, no Maranhão, professores sem a formação inicial de nível
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superior ou ainda a inadequação da formação à disciplina em que o professor leciona. Esse
indicador educacional também é importante para a definição das políticas públicas criadas
e executadas pela UEMA em prol da produção e da difusão do conhecimento, orientado
para cidadania e formação profissional, comprometido com o desenvolvimento sustentá-
vel previsto na sua missão institucional (PDI/UEMA 2021-2025).

3
A nomenclatura do programa foi alterada, no final do ano de 2003, Resolução n.º 0415/2003 –
CONSUN/UEMA, sendo denominado, a partir de então, Programa de Qualificação de Docentes (PQD).
A justificativa dada foi de que havia necessidade de adequar o nome e os objetivos à política educacional
de qualificação docente para a educação básica da IES. Atualmente a nova versão é chamada de Programa
Ensinar – Formação de Professores da UEMA.
457 //
No gráfico 1, que representa a média declarada da renda familiar dos estudantes con-
cluintes dos cursos de licenciatura, 50, 3% vivem com até 1,5 salário mínimo4. Ressalta-se
que, no questionário socioeconômico aplicado pela PROG/UEMA aos matriculados ativos
em 2023.1, 13.295 responderam que “Não trabalho e recebo ajuda financeira dos pais” e
5.284, “Trabalho e contribuo com a renda familiar.” O Centro de Educação, Ciências Exatas e
Naturais – CECEN do Campus São Luís, que possui todos os 15 cursos de licenciatura, com
2.295 estudantes, 1.761 declararam que “Não trabalho e recebo ajuda financeira dos pais”.

Gráfico 1 – Média renda familiar estudantes/licenciatura

Fonte: Elaboração própria – Relatórios do Cursos da UEMA (Licenciaturas)

No gráfico 2, apresenta-se o grau de escolaridade do pai e da mãe dos estudantes con-


cluintes dos cursos de licenciatura. O grau de escolaridade da mãe, ensino médio, é maior
do que do pai, 1.º a 5.º ano (anos iniciais) do ensino fundamental.

Gráfico 2 – Escolaridade pai e mãe estudantes/licenciados


As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Elaboração própria – Relatórios do Cursos da UEMA (Licenciaturas)

4
No Brasil, atualmente, o salário mínimo é de R$ 1.320,00, equivalente a € 248,59 na cotação do câmbio
do dia 29 de setembro de 2023 (€ 5,31)
458 //
Outro indicador do perfil socioeconômico dos estudantes escolhido nesta pesquisa é
a média declarada da renda familiar dos estudantes concluintes dos cursos de bacharelado
(Gráfico 3). A renda familiar dos estudantes dos cursos bacharelados é maior do que dos es-
tudantes das licenciaturas: 28, 3 % de 1,5 a 3 salários mínimos. Outro percentual representa-
tivo está na faixa de 3 a 4 salários mínimos ao totalizar 26,8 % dos concluintes desses cursos.

Gráfico 3 – Média renda familiar estudantes/bacharelados

Fonte: Elaboração própria – Relatórios do Cursos da UEMA (Bacharelados)

No gráfico 4, registra-se o grau de escolaridade do pai e da mãe dos estudantes con-


cluintes dos cursos de bacharelados da UEMA. Quanto a esse indicador, o grau de esco-
laridade de ambos é ensino médio. Em comparação com as licenciaturas, a escolaridade
dos pais dos estudantes dos bacharelados (ensino médio) é maior do que das licenciaturas
(ensino fundamental anos iniciais).

Gráfico 2 – Escolaridade pai e mãe estudantes/bacharelados

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: Elaboração própria – Relatórios do Cursos da UEMA (Bacharelados)


459 //
Quanto à renda familiar, os estudantes de licenciatura possuem renda menor do que
os do bacharelado. Por outro lado, os estudantes dos bacharelados apresentam renda em
todas as faixas, inclusive acima de 30 salários mínimos.
O baixo grau de escolaridade tanto do pai como da mãe (ensino fundamental anos
iniciais e ensino médio respectivamente) dos estudantes das licenciaturas também é um
indicador que sinaliza para o resultado da baixa renda familiar.
Um dado preocupante e que justifica o contínuo acompanhamento dos indicadores
socioeconômicos para o desenvolvimento de políticas públicas, que garantam o acesso e a
permanência dos estudantes aos cursos de graduação, é a redução do número de concluin-
tes em todos os campi da UEMA como expressado no período de 2019 a 2022 no gráfico
5. Em 2021, essa tendência nacional, registrada pelo Censo da Educação Superior, indicou
que o número de concluintes em cursos de graduação presencial teve queda de -4,1% em
relação a 2020. Registra ainda que os concluintes de bacharelado corresponderam a 57,4%
do total de concluintes, enquanto a licenciatura teve uma participação de 21,4%.
No caso da UEMA, a considerar que o maior número de cursos é de licenciaturas
nos campi, a diminuição de concluintes tem se acentuado a cada ano como se observa no
período de 2019 a 2022.

Gráfico 5 – Número de concluintes nos cursos de graduação


presencial por Campus no período de 2019 a 2022
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Fonte: Elaboração própria – Relatórios de concluintes/SigUEMA

No Maranhão, essa tendência do aumento do quantitativo de pessoas com curso su-


perior incompleto por grupo de idade, gênero, zona urbana e rural, se comparado àqueles
com superior completo, já é verificada desde 2010, conforme dados do Censo Demográfico
2010 expressos nas tabelas 1 e 2.
A faixa etária mais expressiva de pessoas que não completam o curso superior está exata-
mente entre 18 a 24 anos na qual o PNE 2014/2024 estabelece meta de elevação do acesso pelo
460 //
aumento da taxa bruta de matrícula na educação superior para esse período. A considerar que a
evasão, conforme pesquisas existentes sobre o tema, é geralmente maior nos anos iniciais do curso
(Almeida e Soares, 2002; Palma et alii, 2005; Veloso e Almeida, 2001), decorrente muitas vezes
de aspectos socioeconômicos, urge identificar as possíveis causas e definir e/ou ampliar políticas
de assistência estudantil. Na tabela 1, estão os números consolidados no Censo Demográfico
2010 acerca do quantitativo de pessoas por domicílio com curso superior incompleto.

Tabela 1 – Número de pessoas com curso superior incompleto por grupo de idade,
gênero e zona urbana e rural. Unidade da Federação – Maranhão, 2010
Total superior incompleto Urbana Rural
Grupo de Idade
Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres
18 e 19 anos 69232 27570 41661 56021 22329 33692 13211 5242 7969
20 a 24 anos 242414 106217 136197 195932 85508 110424 46482 20709 25773
25 a 29 anos 201553 88798 112754 165599 72681 92918 35953 16117 19836
30 a 34 anos 143754 62716 81038 120446 53036 67410 23308 9680 13628
35 a 39 anos 97310 41942 55368 82064 35830 46235 15245 6112 9134
40 a 44 anos 75166 31333 43833 65095 27426 37668 10072 3907 6165
45 a 49 anos 54088 23615 30474 47026 20746 26280 7063 2868 4194
50 a 54 anos 39121 17664 21458 34022 15525 18498 5099 2139 2960
55 a 59 anos 25947 11569 14377 23098 10376 12722 2849 1193 1656
Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2010

Já a tabela 2 traz o número de pessoas com curso superior completo por grupo de idade,
gênero e zona urbana e rural. A faixa etária com quantitativo menor está entre 18 a 19 anos.

Tabela 2 – Número de pessoas com curso superior completo por grupo de idade,
gênero e zona urbana e rural. Unidade da Federação – Maranhão, 2010
Total Superior Completo Urbana Rural
Grupo de Idade
Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres
18 e 19 anos 1015 431 584 798 360 438 217 71 146
20 a 24 anos 15066 5785 9281 12935 4989 7946 2131 796 1336

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


25 a 29 anos 34008 13492 20516 31300 12459 18840 2708 1033 1675
30 a 34 anos 32729 11688 21041 29659 10695 18964 3070 993 2077
35 a 39 anos 27874 9132 18742 25092 8277 16815 2782 856 1927
40 a 44 anos 22232 7364 14868 20148 6713 13436 2084 651 1432
45 a 49 anos 18616 6324 12292 16907 5944 10963 1709 380 1329
50 a 54 anos 14952 4872 10080 13751 4451 9300 1200 421 780
55 a 59 anos 10107 3545 6562 9431 3383 6048 676 162 514
Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2010

Apesar de todos os óbices enfrentados, a UEMA, ao assumir a expansão da oferta de


vagas da educação no interior do Maranhão, contribui para a melhoria da qualidade dos
indicadores do estado, inclusive ao oferecer um Programa de Formação Docente para
a Diversidade Étnica do Maranhão – PROETNOS, iniciado em 2017, para formar e
461 //
qualificar professores oriundos das comunidades e povos tradicionais do Maranhão para
assumirem o processo de escolarização em suas comunidades em todos os níveis da educa-
ção básica a partir de princípios formativos que respeitam a cultura desses povos, conforme
expressam as coordenadoras do programa, professoras Marivania Leonor Souza Furtado e
Tatiana Raquel Reis Silva, na apresentação do sítio institucional: do programa5. Isso reflete
a compreensão e a consideração da diversidade étnica do Estado e “decorre do compromis-
so social da UEMA em contribuir para a construção de novos relacionamentos entre os sa-
beres e historicidades dos povos e comunidades tradicionais com o conhecimento formal,
visando reverter um processo histórico assimétrico que exige compensações”, como afir-
mam as coordenadoras, por meio de políticas de ação afirmativa para essas comunidades.
Adiante serão destacadas as políticas da Uema em apoio e decorrentes do perfil socioe-
conômico de seus estudantes.

Políticas da educação superior: o caso da UEMA

No Brasil, a Política Nacional de Educação Superior no Brasil, em vigência, está estabelecida


pelo Plano Nacional de Educação PNE 2014-2024, por meio da Lei n.º 13.005/2014, de 25
de junho de 2014. Dentre as 20 (vinte) metas para o PNE, a Meta 12 prever a elevação da taxa
bruta de matrícula na educação superior para 50% (cinquenta por cento) e a taxa líquida
para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos,
assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% (quarenta por cento) das
novas matrículas, no segmento público. Para esse fim, foram desenvolvidas políticas públicas
para o alcance das metas do PNE, ao verificar-se a diversidade territorial e as desigualda-
des socioeconômicas existente no país. As principais políticas são: a) quanto à permanên-
cia: Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES); Programa de Bolsa Permanência
(PBP) e o Programa Bolsa Permanência Prouni (PBP Prouni); b) quanto ao acesso: Programa
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Universidade para Todos (ProUni) e Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).


Para viabilizar o acesso, a permanência e a conclusão da formação em nível da Educação
Superior no país com estruturas territoriais, econômicas e sociais tão diversas, é necessária
a criação de políticas públicas que considerem a extrema vulnerabilidade do território do
Estado do Maranhão e todas suas matrizes culturais.
Até 2015, na UEMA, havia apenas o auxílio financeiro para participação de estudantes da gradua-
ção e pós-graduação em eventos científicos, aprovado pela Resolução n.º 199/2015 – CAD/UEMA
e a Bolsa de Trabalho para discentes da UEMA, pela Resolução n.º 179/2015 – CAD/UEMA.

5
Disponível em https://proetnos.uema.br/o-programa/ na apresentação
462 //
Em 2017, a UEMA criou o Programa de Assistência Estudantil como uma política ins-
titucional para garantir as condições de permanência de estudantes na educação superior
em situação de vulnerabilidade econômica que está vinculado à Pró-Reitoria de Extensão e
Assuntos Estudantis – PROEXAE e ampliou o número dos auxílios. Ao final da gestão do
segundo reitorado do Prof. Gustavo Pereira da Costa (2015-2018/2019-2022), o total de
auxílios passou a sete. Em 2023, toda a política de assistência estudantil continua vigente
e contempla mais de 900 estudantes dos diversos campi da UEMA. Os sete programas
são: Bolsa Permanência; Auxílio Alimentação; Auxílio Creche; Auxílio Moradia; Bolsa de
Apoio aos Estudantes com Deficiências; Auxílio Emergencial de Apoio aos Estudantes do
Programa de Formação Docente para a Diversidade Étnica do Maranhão – PROETNOS
(estudantes quilombolas e indígenas) e Auxílio para apresentação de trabalho em eventos
acadêmico-científicos. Todos os auxílios têm como principal objetivo garantir a perma-
nência até a conclusão do curso, diminuir a evasão dos estudantes com comprovada situa-
ção de vulnerabilidade econômica, buscando reduzir as desigualdades socioeconômicas e
promovendo a justiça social no percurso formativo dos estudantes. Os candidatos devem
ser estudantes regularmente matriculados em cursos presenciais de graduação da UEMA.
As regras e condições são estabelecidas em Editais específicos, publicados anualmente.
Durante a pandemia da Covid-19, após aplicação de questionário pela Pró-Reitoria
de Graduação – PROG/UEMA para avaliação das condições tecnológicas dos estudantes
e implementação do ensino remoto emergencial, a partir das discussões no Comitê de
Monitoramento da Covid-19 da UEMA, foi estabelecida também uma política de inclu-
são digital dos estudantes em situação de vulnerabilidade econômica com a cessão de chips
SimCard. No contexto educacional, a pandemia acentuou ainda mais as vulnerabilidades
existentes em um país continental e com territórios diversos, ampliadas pelo distancia-
mento social como prevenção para o contágio do vírus e a ausência de uma política que
garantisse a conectividade e sua qualidade com internet de alta velocidade.
Quanto às políticas de ação afirmativa para o acesso à Educação Superior foi instituí-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
da, no Processo Seletivo de Acesso à Educação Superior da UEMA – PAES/UEMA, em
2004, a isenção do pagamento da taxa de inscrição para candidatos hipossuficientes pela
Lei Estadual n.º 8.199 de 7 de dezembro de 2004 e regulamentada pelo Decreto Estadual
n.º 21.030 de 16 de fevereiro de 2005.
Em 2011, foi criado o Sistema Especial de Reserva de Vagas, para os estudantes oriundos de
comunidades indígenas e estudantes negros em obediência à Lei Estadual n.º 9.295/2010, de
17 de novembro de 2010; em 2013, o Sistema de Reserva Especial de Vagas para pessoas com
deficiência pela Resolução n.º 820/2013-CAD/UEMA. Vale destacar quanto ao perfil socioeco-
nômico dos candidatos que concorreram no PAES/UEMA, conforme Miranda et al (2023: 9),
71,95% são oriundos de escola pública e 51,5% estão na faixa etária de 18 a 24 anos.
463 //
Em 2023, foi aprovada a Resolução n.º 1.658/2023-CEPE/UEMA que regulamenta o
sistema de preenchimento de vagas para todos os processos seletivos de acesso à graduação
da UEMA com as normas e critérios para a inclusão dos candidatos ao PAES no Sistema
de Reserva Especial de Vagas.

Conclusão

Este artigo evidenciou a relevância do contínuo acompanhamento acerca das variações


quantos aos indicadores estabelecidos para definição o perfil socioeconômico da comunidade es-
tudantil da UEMA, bem como sua estreita relação com o aperfeiçoamento, criação e observação
dos impactos das políticas institucionais para acesso, permanência e a consequente conclusão
dos cursos de graduação da UEMA, com o objetivo de garantir o direito à educação superior e a
elevação dos resultados nas avaliações interna e externas dos indicadores de qualidade.
Vale a pena sublinhar que como política pública do estado do Maranhão, a expansão
da oferta de vagas da educação superior, assumida pela UEMA, deve considerar as estru-
turas territoriais, econômicas e sociais diversas e a necessária a criação de políticas públicas
que considerem a extrema vulnerabilidade do território do Estado.
A análise sugere alguns aspectos em que as políticas educacionais para a oferta e expansão
na educação superior do estado do Maranhão, por meio da UEMA, devem pautar-se: dimi-
nuição das desigualdades socioespaciais e regionais do estado do Maranhão; a universalização
do ensino público; a diminuição dos índices de evasão e taxa de sucesso de uma comunidade
acadêmica de maioria de estudantes de extrema vulnerabilidade socioeconômica; a melhoria
dos indicadores sociais e educacionais com o desenvolvimento de políticas para o aumento
do número de ingressantes e concluintes, uma vez que o Maranhão detém a menor taxa de
escolarização líquida (que mede o percentual de jovens de 18 a 24 anos matriculados no
ensino superior em relação ao total da população da mesma faixa etária) do país (IBGE:
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

PNAD 2022). Além disso, o aperfeiçoamento das estruturas, das ferramentas e dos sistemas
de informação de dados institucionais sobre os estudantes de graduação da UEMA.
Um desses indicadores é o questionário socioeconômico que deve ser de conheci-
mento de toda a comunidade acadêmica, além de ser explorado como uma ferramenta de
conhecimento sobre os estudantes e as perspectivas geradas sobre a IES, e base de conhe-
cimento para melhorias de políticas institucionais da UEMA
Como resultado das análises, inferimos que as características socioeconômicas e edu-
cacionais dos estudantes identificadas por meio dos relatórios e seus indicadores, sinaliza
para a criação de políticas de ação afirmativa que possibilitem a equidade de oportunida-
des quanto ao acesso, à permanência e à diminuição da evasão, que resulta na redução de
464 //
número de concluintes. É importante o contínuo acompanhamento da ação das políticas
instituídas pela UEMA e de que forma elas poderão atenuar e contribuir para a melhoria
da qualidade dos cursos de graduação nos resultados dos processos de avaliação interna e
externa e também para o desenvolvimento sustentável do Estado do Maranhão.

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Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Disponível em: www.anped.org.
br/24/ tp1.htm Acesso em 15 maio. 2023.
466 //
Desequilibrios socioeconómicos
y repercusiones territoriales. Un análisis
comparativo entre Cerdeña y Canarias

Luis Manuel Jerez Darias1 Salvatore Lampreu2


Maria Veronica Camerada3 Silvia Carrus4

Introducción

Uno de los principales problemas que debe afrontar con determinación la Unión
Europea (UE) en los próximos años, tiene que ver con los desequilibrios socioeconómicos y
sus repercusiones territoriales. De esta relación se deriva una amplia gama de desigualdades
como puede ser, entre otras, la imposibilidad de acceso de algunos segmentos de la población
a determinados bienes, servicios y oportunidades de desarrollo con los que cuentan otros
colectivos (Garau et al., 2021). Es un fenómeno que trasciende al marco europeo para tomar
una dimensión global; de ahí que la Agenda 2030 de la ONU haga referencia en su objetivo
10, a la reducción de las desigualdades entre países y en el interior de los mismos.
Desde hace varias décadas, académicos del calibre de Cole (1993) vienen denunciando
cómo el desequilibrio entre regiones ricas y pobres se estaba convirtiendo gradualmente en
una de las principales emergencias de la era contemporánea. Se trata, ciertamente, de un
fenómeno complejo que no ha dejado de cuestionar a estudiosos de diferentes disciplinas
y que, desde el punto de vista de las ciencias regionales, toma en consideración algunos As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

elementos clave como la relación entre la distribución de la población, los recursos territo-
riales y las fuerzas productivas.
La voluntad de superar las diferencias entre regiones, reduciendo al mismo tiempo
el retraso de las más desfavorecidas, se retrotrae a los Tratados de Roma de 1957, por los
que se creaban la Comunidad Económica Europea (CEE) y la Comunidad Europea de la

1
Departamento de Geografía e Historia – Universidad de La Laguna. – ljerez@ull.edu.es
2
DUMAS – Universidad de Sassari. – slampreu@uniss.it
3
DUMAS – Universidad de Sassari. – vcamerada@uniss.it
4
DUMAS – Universidad de Sassari. – scarrus@uniss.it
467 //
Energía Atómica (Euratom). A distancia de casi setenta años de ese momento histórico,
los 27 Estados miembros de la UE aún se enfrentan a desafíos complejos relacionados con
el fortalecimiento de la competitividad sostenible e inclusiva del territorio europeo. En un
contexto cada vez más interconectado y cambiante los desequilibrios territoriales se vuelven
más apremiantes, y dentro de los países y regiones de la Unión se vuelve urgente encontrar
nuevas soluciones de desarrollo capaces de acercar áreas más competitivas con áreas margi-
nales y poco atractivas, a menudo afectadas por problemas demográficos (Lampreu, 2023).
A la luz de estas premisas, en este trabajo abordamos el análisis de dos espacios insula-
res europeos: el de la isla de Cerdeña en el mar Mediterráneo, y el de las islas Canarias en
el océano Atlántico; dos territorios periféricos en el contexto regional de la UE. A pesar de
la situación geográfica de ambos territorios (Cerdeña como primera periferia meridional
europea y Canarias como región ultraperiférica), en ellos podemos percibir problemas
geodemográficos comunes, a saber: despoblamiento y envejecimiento de las zonas rurales
interiores, y concentración económica y poblacional en determinadas zonas costeras. Todo
ello determinado, en gran medida, por el modelo económico que caracteriza a tales islas;
subordinado, aunque con las debidas diferencias, al turismo.
La investigación, tras un encuadramiento de la cuestión demográfica a nivel europeo
y de algunas políticas públicas y estrategias adoptadas contra la despoblación a escala na-
cional (apartado 2), sigue con la explicación de la metodología de análisis y de las fuentes
(apartado 3) y con la discusión de los resultados (apartado 4). Por último, en el apartado
5, se exponen algunas consideraciones finales.

Cuestiones demográficas en zonas periféricas y ultraperiféricas de la UE

En Europa, los desequilibrios socioterritoriales adquieren diversas dimensiones. Una


de ellas, es la geodemográfica, la cual, tiende a mostrarse de manera dialéctica. De una
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

parte, la despoblación de grandes extensiones de territorio, en particular, de las denomi-


nadas zonas marginales, periféricas y rurales. De otra, el crecimiento de las zonas urba-
nizadas, a menudo caracterizadas por una concentración desmedida de población que
difumina las fronteras físicas entre el espacio urbano y el rural al calor del crecimiento de
las periferias metropolitanas. Ambos fenómenos, la despoblación de las zonas rurales y el
crecimiento de las ciudades, dan lugar a problemas de diferente naturaleza, cuya resolu-
ción debe pasar por una sinergia más intensa entre ámbitos geográficos que deberían estar
más interconectados.
Un examen más profundo de las cuestiones críticas que afectan a los espacios en pro-
ceso de despoblación, revela que se trata de una problemática de compleja resolución,
468 //
dado que, es causa y efecto de otros fenómenos demográficos que se retroalimentan entre
sí, como son el proceso de envejecimiento y la escasa natalidad. Y a estos tres problemas
se unen otros (como la falta de servicios para la población residente, insuficientes oportu-
nidades de empleo y escasa capacidad empresarial) que amplían el cuadro de obstáculos a
resolver (REDR, 2018; Lampreu, 2022). Asimismo, en los espacios de concentración se
manifiestan otros problemas preocupantes como la pobreza generalizada, la exclusión so-
cial, el desempleo, la contaminación, etc. que también requieren de una atención urgente.
Categorías geográficas como las de las áreas internas y las periferias metropolitanas han
sido observadas durante mucho tiempo por los responsables políticos europeos encarga-
dos de encontrar soluciones a las criticidades mencionadas y por importantes instituciones
internacionales como, por ejemplo, Espon (Prezioso, 2018; Scanu et al., 2019). En este
propósito, numerosos estudios y documentos suelen denominar a estos espacios como zonas
deprimidas, afectadas por crisis estructurales y, en una palabra, como regiones en contracción
(ESPON, 2017; 2020). Según Eurostat, la población total de la UE aumentó en el periodo
2001-2020 de 429 millones a 447 millones en casi diez años. Sin embargo, este crecimien-
to no se produjo con la misma intensidad en todas partes: algunos estados registraron un
aumento de población, mientras que otros sufrieron un importante descenso demográfico.
Con la llegada de la pandemia, la tendencia al aumento de la población europea su-
frió un retroceso. Entre 2020 y 2022, la diferencia de población de los 27 países fue de
-749.940 habitantes. De entre ellos, Italia ha sido uno de los que ha presentado mayores
pérdidas, con un descenso de 611.355 habitantes. Al 1 de enero de 2023, se produce
una recuperación, con una población total de la UE de 448.387.872 habitantes. Sin em-
bargo, la distribución de la población en las diversas regiones de la Unión es irregular.
Atendiendo a las categorías territoriales identificadas por Eurostat para dividir el espacio
europeo (zonas rurales, intermedias y urbanas), se puede apreciar la relación inversa entre
superficie y población. Las zonas rurales son las que representan una superficie mayor,
pero, al mismo tiempo, son las que reúnen una población menos numerosa; situación que
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contrasta con la realidad de las zonas intermedias y las ciudades.
Es conveniente subrayar que, en el octavo informe sobre la cohesión económica, so-
cial y territorial (UE, 2022, p. 187), se especifica que la UE aún no se encuentra en una
fase de declive demográfico, aunque una de cada tres personas reside en una región que
ha registrado descensos demográficos en la última década. Debido a la disminución de la
tasa de fertilidad por debajo del umbral de renovación desde hace cuarenta años, se espera
una reducción más acentuada de la población europea en las próximas décadas. En con-
secuencia, la estructura de la población también estará sujeta a toda una serie de cambios
relacionados con el aumento de la esperanza de vida y el envejecimiento de los baby booms.
En los próximos años la población mayor de 65 años aumentará en todas las regiones y,
469 //
por otro lado, el número de personas jóvenes, aquellas en edad de trabajar, disminuirá aún
más. Estas dinámicas podrían causar problemas en los equilibrios de los sistemas socioe-
conómicos de varios países.
Nuevamente, el informe sobre la cohesión nos indica que, en el período 2010-2019,
la población europea creció un 1,9 por cada 1000 habitantes al año, lo que supuso un
ritmo inferior al registrado en la década anterior, el cual presentó una tasa de 2,9 por 1000.
Nuevamente, en los últimos diez años, la variación natural de la población ha sido negativa
(-0,3 por 1000 habitantes), pese a ser compensada por la inmigración neta (2,2 por 1000
habitantes). El principal aumento de población se registró en las regiones del noroeste de
Europa, mientras que los países del sur sufrieron la disminución más significativa (fig. 1).

Fig.1. Crecimiento total de la población, crecimiento natural y migración neta, 2010-2019. Fuente: UE, 2022, p. 190.

Como se sabe, los movimientos de población generan desequilibrios, especialmente


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en detrimento de determinadas zonas, como las rurales (Breschi, 2013; Brundu, 2017).
Observando el cambio demográfico global de la UE 27, queda claro que, frente a + 4,5 por
1000 habitantes en las zonas urbanas y + 1,2 por 1000 habitantes en las zonas intermedias,
hay situaciones de descenso, especialmente en las zonas rurales con – 1,6 por 1000 habi-
tantes. Estos valores son más acentuados en los países del sur de la UE, donde un aumento
de la variación de la población urbana igual a 2,6 corresponde a un ligero aumento de la
población en las zonas intermedias (+ 0,2) y una caída drástica de la población en las zonas
rurales (-3,7). Las únicas regiones en las que el cambio demográfico general es positivo son
las del noroeste de Europa (fig. 2).
470 //
Fig.2. Crecimiento vegetativo de la población, migración neta y crecimiento total de la población por tipología
regional urbana-rural y por tipo de región metropolitana durante los años 2010-2019. Fuente: UE, 2022, p. 191.

La cuestión de la despoblación y el descenso demográfico en las zonas rurales está


adquiriendo una importancia creciente dentro de las políticas públicas de varios países y
regiones europeas. Se trata de un fenómeno que trae consigo graves consecuencias, entre
ellas, la pérdida de capital identitario, de conocimientos y técnicas productivas, la expo-
sición del medio ambiente al peligro de incendios, al abandono de residuos y a la acción
especulativa del mercado.
Entre las políticas más recientes adoptadas en Italia (tras los países más afectados por
el fenómeno), cabe mencionar la Estrategia Nacional para las Áreas Internas (SNAI), pro-
movida por el Ministerio de Cohesión Territorial desde 20125. Esta estrategia, lanzada en
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
5
Las áreas internas de Italia están formadas por pequeños municipios que reflejan la complejidad de un territorio
muy diversificado, moldeado por influencias naturales y humanas que se han sucedido a lo largo del tiempo.
Estas zonas se encuentran significativamente alejadas de centros urbanos o de lugares donde se dispone de
servicios esenciales para garantizar los derechos de los ciudadanos, como la sanidad, la educación y el transporte.
Al mismo tiempo, protegen valiosos recursos ambientales y culturales. Es precisamente este conjunto de
recursos, que en conjunto constituyen un capital territorial rico y subutilizado, el que está en el centro de la
Estrategia Nacional de Áreas Internas (SNAI). El principal objetivo es promover procesos de regeneración en
estas zonas, creando oportunidades de empleo, contrarrestando el descenso demográfico y promoviendo nuevas
formas de desarrollo local con un enfoque local. La identificación de estas áreas se produce a través de un
conjunto de indicadores que tienen en cuenta variables cuantitativas y cualitativas. Estos indicadores permiten
dividir los municipios italianos en diferentes categorías en función de su distancia a los centros de servicios.
La distancia, medida en términos de tiempo de viaje, determina el grado de “internalidad”. Por ejemplo, se
consideran “cinturón” los municipios ubicados a menos de 20 minutos de los centros urbanos, mientras que
aquellos con tiempos de viaje entre 20 y 40 minutos se clasifican como “intermedios”. Los municipios que se
471 //
una fase experimental durante el ciclo de programación anterior, prevé la asignación de
importantes recursos financieros en favor de algunas zonas experimentales seleccionadas
en todas las regiones italianas para crear intervenciones capaces de invertir las tendencias
demográficas en descenso (Meloni, 2015; Cavuta, Ferrari, 2018).
Asimismo, en el caso de España, se aprobó en 2017 la Estrategia Nacional frente al
Reto Demográfico, en la que se recogió el Plan de Medidas ante el Reto Demográfico,
una iniciativa que contempla 130 actuaciones orientadas a luchar contra la despoblación
y garantizar la cohesión social y territorial del país.
Las estrategias mencionadas se encuadran en un marco más amplio de intervenciones pro-
movidas a nivel comunitario y apoyadas a través de las políticas de cohesión para fomentar el
crecimiento inteligente, sostenible, inclusivo y conectado de las regiones europeas, facilitando
así aquellas vías de desarrollo destinadas a fortalecer la competitividad general de toda la UE.

Metodología y fuentes

Este trabajo pretende realizar una comparación entre dos áreas que participan de pun-
tos comunes – entre ellos, la dimensión insular y el hecho de estar vinculadas a la econo-
mía turística – para poner de relieve cómo determinados procesos socioeconómicos han
conducido a generar desequilibrios geo demográficos. Por lo tanto, será interesante anali-
zar el fenómeno, teniendo en cuenta las acciones promovidas por las instituciones locales
con respecto a las especificidades geográficas de los territorios examinados.
Para realizar la investigación, partimos de un análisis de la literatura y, sobre todo, de
los documentos de carácter técnico-administrativo que regulan y describen la situación de-
mográfica a nivel europeo, poniendo el foco en el problema de la despoblación que afecta
a diversas regiones de la UE.
Una vez trazado el marco de referencia, el trabajo profundiza en los casos concretos de
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Cerdeña y Canarias, a través de encuestas, análisis y representaciones de datos territoriales


y socioeconómicos.
Los datos y la información obtenidos proceden, principalmente, de documentos técni-
cos y políticos, y de fuentes oficiales como Eurostat, Istat, Instituto Nacional de Estadística
(INE) e Instituto Canario de Estadística (ISTAC), Sardegna Statistiche, etc.
Las técnicas utilizadas son las propias de la geografía económica, tales como, el análisis
indicadores económicos y estadísticos, junto a las representaciones cartográficas.

encuentran entre 40 y 75 minutos de distancia se denominan “periféricos”, mientras que aquellos que requieren
más de 75 minutos de viaje se definen como “ultraperiféricos” (Mónaco, Tortorella, 2015).
472 //
Resultados

Cerdeña: una isla en declive demográfico

La región de Cerdeña, situada en el Mediterráneo centro-occidental, tiene una superficie


de poco más de 24.000 kilómetros cuadrados y una población total de casi 1.600.000 habi-
tantes. Su densidad es muy baja (66 habitantes por kilómetro cuadrado) y está compuesta por
5 provincias y 377 municipios. Los índices demográficos y estructurales para el año 2022,
como el de vejez (241,77), el de dependencia estructural (57,23), la tasa de natalidad (5,2) o
de mortalidad (11,7), expresan un grave estado de debilidad que requiere medidas urgentes.
La población de Cerdeña comenzó a crecer a un ritmo acelerado especialmente du-
rante el siglo XX junto con la mejora de las condiciones sanitarias (en particular gracias a
la erradicación de la malaria, una de las principales causas de muerte en la isla) y las con-
diciones económicas. El período del llamado boom económico que afectó a Italia después
de la Segunda Guerra Mundial, impulsado por la reconstrucción, favoreció también el
nacimiento de procesos de modernización en Cerdeña con el surgimiento de los primeros
asentamientos industriales, ubicados principalmente a lo largo de las costas. En este perío-
do también comenzó a desarrollarse el turismo, inicialmente como un fenómeno de élite
y luego de masas (Mazzette, 2002). El modelo predominante, ya entonces, era el de sol y
playa, gracias a la singularidad del mar de Cerdeña y a la gran variedad de playas.
Sin embargo, si la economía de la Isla hasta la década de 1950 siguió estando en gran me-
dida ligada a los sectores de la agricultura y la ganadería, la aparición de nuevas actividades eco-
nómicas, el fortalecimiento del sector terciario, el aumento de la escolarización y los cambios
en los estilos de vida, han llevado gradualmente a una menor frecuentación del medio rural.
Cabe subrayar que, durante mucho tiempo, las zonas rurales se consideraron poco
atractivas en comparación con las ciudades, que representaban, en cambio, los centros de
la modernidad y la emancipación, al menos hasta la crisis del modelo industrial fordista.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Según el censo nacional de 1971, el 52% de los sardos vivían en municipios no coste-
ros y, sin embargo, sólo 10 años después, se registró una inversión de tendencia provocada
por el progresivo desplazamiento de la población desde las zonas del interior hacia las
costas (Battino, Lampreu, 2017).
Estos movimientos de población, que continuaron en las décadas siguientes, se deben
principalmente a que la isla está formada en su mayoría por pequeños municipios (algunos
de unos pocos cientos de habitantes) y las ciudades están situadas casi todas en la costa;
además, un amplio segmento de la población encuentra empleo en el turismo y en las
actividades relacionadas, y, dado que el modelo de sol y playa es predominante, está claro
que la industria turística se ubica principalmente en las zonas costeras. En los últimos diez
473 //
años, sólo algunos municipios costeros han visto crecer su población (en la carta de la fig.
4 están pintados en verde), mientras que la mayor parte de los pueblos del interior han se-
guido sufriendo un descenso demográfico. Sin embargo, si antes eran las zonas internas las
que se estaban despoblando, podemos observar cómo incluso las grandes ciudades se están
desacelerando en los últimos tiempos. De todas maneras, en Cerdeña, el problema demo-
gráfico permanece alarmante. Hace unos años, un estudio de la Región señalaba el riesgo
de extinción de 31 municipios para 2080. Éstos se corresponden con municipios rurales
y del interior, a los que se suman otros 47 en grave estado de crisis demográfica (fig. 3).

Fig. 3. Evolución demográfica de los municipios de Cerdeña (2011-2020). Fuente: ISTAT, 2022; RAS, 2013.
Elaboración propia.
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En 2022, no se registraron nuevos nacimientos en 29 municipios sardos y en la mayo-


ría de los demás municipios de Cerdeña se confirma que la tasa de natalidad es significa-
tivamente baja.
A pesar de estos aspectos críticos, todo el territorio insular parece estar dotado de un
amplio y rico capital cultural y ambiental representado por museos, yacimientos arqueoló-
gicos, monumentos, parques naturales etc. Sin embargo, a pesar de esta gran cantidad de
recursos ampliamente diversificados, que podrían desembocar en nuevos productos turís-
ticos que respondan a nuevos segmentos de demanda (pensemos en todo el movimiento
del turismo lento o en los viajeros interesados ​​en el contacto con las comunidades y tra-
diciones locales), Cerdeña sigue atrayendo principalmente por el mar. Esto, ciertamente,
474 //
tiene repercusiones, no sólo en términos económicos, sino también en términos de presión
antrópica.
Debido a las condiciones climáticas de la región y al sistema vacacional que existe en el
mundo laboral en Italia, caracterizado por vacaciones concentradas en los meses de julio y
agosto también ligadas al cierre de las escuelas, el turismo en Cerdeña sufre una fuerte esta-
cionalidad. La curva de llegadas detectada en 2022, que refleja la situación pre-covid por la
vuelta a la normalidad, destaca cómo el pico turístico se registra de junio a septiembre (fig. 4).

Fig. 4. Llegadas de Turistas a Cerdeña (2022). Fuente: RAS, 2022. Elaboración propia.

Aunque el turismo representa un componente importante de la economía de Cerdeña,


es poco probable que pueda garantizar trayectorias sostenibles a largo plazo si no se cruza
con otras actividades productivas y vocaciones territoriales.
Esto, de hecho, permitiría dar valor e importancia a aquellos elementos identitarios
que a lo largo del tiempo han configurado el perfil histórico y geográfico de la región
y que, precisamente por el abandono y la despoblación, corren el riesgo de perderse
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inexorablemente.
Lejos de querer practicar una explotación incontrolada de los recursos territoriales –
que evidentemente no pueden concebirse sólo en términos de rendimiento económico
sino también de protección, precisamente por su naturaleza y sus funciones -, la perspec-
tiva de dar forma a nuevos productos turísticos capaces de interconectar las comunidades
locales, el medio ambiente y los bienes culturales tangibles e intangibles, podría ser una
opción válida para diversificar la economía, ofrecer oportunidades de empleo, involucrar a
las poblaciones en los procesos de desarrollo territorial, etc.
Siguiendo este enfoque, en los últimos años se han promovido en Cerdeña diversas
estrategias que tenían precisamente esta ambición: mejorar el tejido social y económico
475 //
de los territorios más internos, especialmente los rurales, crear redes y circuitos entre los
bienes culturales y ambientales y operadores de hostelería, etc.
Entre las principales políticas adoptadas, cabe mencionar tres: 1) Las estrategias de de-
sarrollo rural llevadas a cabo a través de los GAL; 2) la Programación territorial promovida
por la Región de Cerdeña; 3) la experimentación de la SNAI (fig. 5).

Fig. 5. Estrategias de promoción territorial del desarrollo en Cerdeña para las zonas internas y rurales. Fuente:
RAS y Agenzia per la coesione territoriale.

Las tres líneas de proyectos tienen como objetivo promover mejores y mayores condi-
ciones para un desarrollo sostenible y participativo, especialmente en aquellas áreas consi-
deradas débiles y marginales.
1. En cuanto a los planes de desarrollo local promovidos por los GAL con el enfo-
que participativo CLLD, en Cerdeña hay 17 en los que se prueba el método LEADER.
Financiados con 94 millones de euros, involucran a 282 municipios, el 69% de la super-
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ficie regional y una población de 550.000 habitantes. Si analizamos las áreas temáticas
perseguidas, observamos que el 48% de los recursos se destinan al turismo sostenible y a la
valorización del patrimonio cultural del patrimonio artístico.
2. La programación territorial es una herramienta de planificación mixta top down/
bottom up con la que la Región, a través de los fondos estructurales y de forma coherente
con los documentos políticos adoptados en el ciclo 2014-2020, apoya las propuestas de
desarrollo local sostenible impulsadas por las mancomunidades de forma individual o
asociada. Contamos con 37 mancomunidades involucradas, 26 propuestas de proyectos
presentadas, y 295 municipios implicados. Por los 26 proyectos aprobados hay una cober-
tura financiera de 400 millones de euros. Del análisis de las propuestas se desprende que la
476 //
mayoría de estos territorios muestran un fuerte interés en el desarrollo turístico integrado,
considerándolo un componente importante capaz de contrarrestar el abandono territorial
si se combina con producciones tradicionales y un patrimonio cultural difuso.
3. La SNAI se actúa en dos áreas geográficas elegidas durante el ciclo de programación
2014-2020 tras un profundo proceso de selección basado en indicadores cualitativos y
cuantitativos: se trata de dos uniones de municipios del interior, de pequeño tamaño y
limítrofes entre sí, que implementan una estrategia común. Para ello recurren a un sistema
de gobernanza multinivel que involucra a diferentes actores y se basa en algunos pilares
entre los que se encuentra el desarrollo del turismo acordes a las necesidades del territorio.
Los dos ámbitos territoriales recibieron, respectivamente, 15 y 9 millones de euros cada
uno para iniciar las intervenciones previstas y aún en curso; Mientras tanto, la SNAI ha
sido renovada y ampliada a nivel nacional también para el período 2021-2027, previendo
una ampliación de las zonas en las que llevar a cabo la experimentación, que también será
mayor en Cerdeña.

Canarias: crecimiento demográfico y proceso de litoralización

La principal característica geodemográfica de las islas Canarias es la desigual dis-


tribución de la población según islas. Nuestra región no es un espacio territorial uni-
ficado, sino que se compone de ocho islas que determinan un reparto diferencial de
la población. De una parte, las llamadas “islas turísticas” de Tenerife, Gran Canaria,
Fuerteventura y Lanzarote6, que concentran el 95% de la población regional; y, de otra
parte, las llamadas “islas verdes” de La Palma, La Gomera y El Hierro, donde reside el
restante 5%.
Desde hace ya bastantes décadas, la población de Canarias no ha parado de crecer y las
proyecciones demográficas posicionan al Archipiélago como una de las regiones de mayor
crecimiento previsto dentro de la UE para los próximos años. En la actualidad, derivado
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de ese crecimiento y escasa superficie, Canarias se posiciona como la tercera comunidad
autónoma con mayor densidad de población de España. Su comportamiento demográfico
es el propio de las regiones del mundo desarrollado, esto es: baja natalidad y mortalidad,
baja fecundidad y alta esperanza de vida. Por lo que el crecimiento natural o vegetativo del
Archipiélago es negativo, siguiendo la tendencia general de buena parte de las regiones de
la Unión Europea.
No obstante, el valor negativo de su crecimiento natural no lo es tanto por una elevada
mortalidad, sino por un descenso acusado de la natalidad. De este modo, presenta una
6
Vinculada administrativamente a Lanzarote, se encuentra la isla de La Graciosa, la cual conforma la octava
isla del Archipiélago.
477 //
Fig. 6. Tasa de crecimiento previsto por Nuts-3 en Europa (2020-2025). Fuente: Cartografía (GISCO). Cifras
de población (Eurostat). Elaboración propia.

baja fecundidad, (0,9 hijos por mujer) que no garantiza el reemplazo generacional, el cual,
debe ser superior a 2,2 hijos/as por mujer. Esto ha repercutido en el progresivo envejeci-
miento de la población de las islas, de tal modo, que el número de ancianos en Canarias se
ha incrementado un 100% en el periodo 1975-2022.

Tabla 1. Principales indicadores demográficos de Canarias


Índice sintético Tasa de natalidad Tasa de mortalidad Índice de vejez Índice de
Islas de fecundid (%0) (%0) (%) dependencia (%)
01/01/2019 01/03/2021 01/03/2021 01/01/2022 01/01/2022
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Lanzarote 1,1 7,00 5,20 13,27 37,46


Fuerteventura 1,1 7,40 4,60 11,8 35,43
Gran Canaria 0,9 5,70 8,50 17,43 40,93
Tenerife 0,9 5,70 7,90 17,57 42,46
LaGomera 0,9 5,30 9,40 22,64 47,93
La Palma 0,9 4,90 11,00 21,52 48,11
El Hierro 0,9 6,20 10,60 23,04 50,94
Canarias 0,9 5,90 7,90 120,7 41,39
Fuente: ISTAC. Elaboración propia.

Por tanto, en Canarias se desarrolla un proceso en el que se conjugan el crecimiento


y el envejecimiento demográficos, quedando al margen, en términos generales, de la afec-
ción del despoblamiento propio de muchas regiones periféricas españolas y europeas. En
478 //
todo caso, de lo que sí podemos hablar es de estancamiento demográfico de algunas zonas
de las islas, fundamentalmente, las conocidas como zonas de medianías7 e interiores in-
sulares, es decir, aquellas de mayor raigambre rural o menos favorecidas por el actual con-
texto socioeconómico. En estos espacios, la pérdida de habitantes es una causa y, al mismo
tiempo, consecuencia de su estancamiento socioeconómico y progresivo envejecimiento.
Frente a esto, la población de las islas ha tendido a concentrarse en la franja costera. Casi
el 90% de la población de Canarias reside entre los 0-500 metros de altitud, de los que el
75% lo hace entre los 0-300 metros.
En la actualidad, la línea de actuación que se pretende implementar desde las institu-
ciones públicas canarias para reducir los desequilibrios geodemográficos de las islas se in-
sertan dentro la Estrategia Nacional frente al Reto Demográfico aprobada por el gobierno
central en enero de 2017. Dicha estrategia recoge un Plan de Medidas con 130 actuaciones
orientadas a luchar contra la despoblación y garantizar la cohesión social y territorial de
las diferentes regiones del país. En el caso de Canarias aún se está en la fase de diagnóstico,
por lo que no podemos hacer balance de ninguna acción específica. Llevará algunos años
medir el grado de eficacia de las mismas. Pero, todo parece indicar que se seguirá, en lo
fundamental, la línea estratégica diseñada en el Plan Nacional con las evidentes adapta-
ciones a la realidad insular. En este sentido, tres ejes son los que van a dirigir las acciones
encaminadas a afrontar el reto demográfico del Archipiélago en los próximos años:

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Fig. 7. Concentración-dispersión poblacional en Canarias (2022). Fuente: ISTAC. Elaboración propia.

7
En Canarias la zona de medianías es la que se corresponde franja 500-900 metros de altitud, variando en
los límites según sea la vertiente de barlovento o sotavento. Históricamente se configuró como la zona de
desarrollo de una agricultura de policultivos de autoabastecimiento.
479 //
• A) El envejecimiento demográfico. En Canarias, los grupos de edad de 40-60 años
son los más numerosos en todas las islas, pero en las de El Hierro, La Gomera y La
Palma el proceso de envejecimiento es más notable, mostrando importantes con-
tingentes poblacionales en los grupos de mayor edad y menos en los infantiles. Esta
realidad también se manifiesta en la escala municipal y local.
• B) La problemática territorial. Ésta gira en torno a la relación concentración-es-
tancamiento-dispersión de la población en el espacio insular del que ya hablamos
anteriormente.
• C) La movilidad. Se trata de un apartado que abarca desde el estudio de los movi-
mientos migratorios (sean permanentes o temporales) hasta la movilidad diurna o
cotidiana, y que, para el caso de Canarias, se debe añadir el estudio de la movilidad
turística, una de las más importantes del mundo si tenemos en cuenta la relación
entre el número de visitantes que llegan anualmente a las islas con la superficie de
las mismas. En relación a la movilidad migratoria, indicar que Canarias es la quinta
región con mayor saldo migratorio de España, predominando la inmigración ex-
tranjera sobre la nacional. Esta población inmigrante tiende a concentrarse en torno
a las capitales y centros turísticos, lo que, unido a los intensos flujos de turistas que
reciben las islas cada año (13 millones en 2019), incrementa sobremanera el pro-
blema de la distribución territorial de la población. Y, aparejado a esto, se acrecienta
el fenómeno de la movilidad diaria pendular con sobresaturación de vehículos en
torno a los mismos espacios urbanos.

Partiendo de la síntesis descrita en los tres ejes de actuación anteriores, no es difícil


imaginar la complejidad del reto que debe afrontar Canarias para reducir los desequilibrios
geodemográficos que presenta, teniendo en cuenta que se trata de un espacio fragmentado
territorialmente y con singularidades geográficas, económicas y sociales diversas según las
islas. En el momento presente, dado que, ni siquiera se ha llegado a concluir un diagnós-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

tico que permita diseñar las líneas de acción, sólo podemos formular conjeturas de futuros
escenarios. Por tanto, en los próximos años se tendrán que abordar, de manera sincrónica,
investigaciones que evalúen las políticas y acciones que se establezcan para incidir sobre los
desequilibrios socioterritoriales del Archipiélago.

Conclusiones

Uno de los principales problemas que presenta la Unión Europea a nivel estructural
tiene que ver con los desequilibrios interregionales de distinta índole. Estos desequilibrios
480 //
Fig. 8. Edad media por cuadrícula de 250m (2020). Fuente: Mala estadística 250m (ISTAC). Elaboración
propia.

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Fig. 9. Concentración de la población extranjera por islas (2020). Fuente: Mala estadística 250m (ISTAC).
Elaboración propia.

pueden presentar dimensiones diversas, desde variables económicas a sociales y demográ-


ficas. Esta última, presenta, en la actualidad, una serie de retos que son afrontados desde
diferentes instancias de la Unión. Para ello, se desarrollan una serie de programas de acción
encaminados a reducir los desfases poblaciones entre aquellas regiones más deprimidas
-normalmente ruarles – y las de mayor dinamismo demográfico. En otras palabras, entre
unas regiones que pierden población y se ven afectadas por preocupantes procesos de en-
vejecimiento, y otras que concentran un gran número de habitantes y con una estructura
481 //
poblacional más joven, situación favorecida por los aportes de población inmigrante; rea-
lidad que contrasta con la existente en los espacios rurales. Estas dinámicas demográficas
identificadas a nivel de regiones europeas, también tienen su reflejo en el ámbito local. Por
tanto, se trata de un fenómeno perceptible a diferentes escalas. Los estudios de caso apor-
tados en este trabajo son una muestra de ello. Dos regiones insulares con características
geográficas diferentes: Cerdeña y Canarias, son coincidentes en determinados fenómenos
geodemográficos como el abandono de las zonas rurales del interior insular, el envejeci-
miento de la población y la concentración económica y demográfica en el litoral.

Agradecimientos

Este trabajo se realizó en el marco de los proyectos “InnTerr” (Innovazione, Inclusione


& studi interdisciplinari per lo sviluppo del Territorio) y “Destinazioni Smart e turismo
sostenibile: sistemi di monitoraggio e misurazione delle performance”, coordinados por la
Universidad de Sassari.

Atribuciones

El diseño del trabajo y la investigación bibliográfica son comunes para todos los au-
tores. Para fines de evaluación italiana: el apartado 1 se atribuye a Camerada M.V., el
apartado 2 a Carrus S., los apartados 3 y 4.1 a Lampreu S. y los apartados 4.2 y 5 a Jerez
Darias L.M.

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
484 //
Concepção dos coordenadores de cursos
de licenciatura sobre os indicadores de
qualidade do SINAES

Ana Lúcia Cunha Duarte1

Introdução

No contexto do XXX Seminário Nacional da Rede Universitas/Br, a partir da temática


“Políticas, Gestão e Direito à Educação Superior: novos modos de regulação e tendências
em construção”, focalizamos no interior do eixo 3, as práticas de avaliação, regulação e
gestão das instituições de educação superior. Para isso, recortamos uma etapa da pesquisa,
dados sobre como os gestores da Uema, Campus São Luís, observam o desempenho dos
estudantes, a partir dos últimos conceitos Enade obtidos.
A escolha dessa temática deu-se pela relevância de revisar e acompanhar os processos
avaliativos na Educação Superior, conforme Lei 10.861/2004 (BRASIL, 2004), para for-
talecer as iniciativas de acompanhamento e planejamento das avaliações. Foi utilizada me-
todologia qualitativa, com entrevistas semiestruturadas e roteiro previamente organizado,
bem como procedimento de transcrição e análise dos dados. As análises fundamentam-se
nas reflexões sobre Nova Gestão Pública (MOROSINI, 2021), levando em consideração
as alterações nas políticas de formação ao longo dos anos. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Participaram da pesquisa os(as) gestores(as), que ocupavam e/ou ocupam as coordena-


ções de quatro cursos: Ciências Biológicas Licenciatura, Matemática Licenciatura, Letras
Licenciatura em Língua Portuguesa, Língua Inglesa e literaturas e Pedagogia Licenciatura.
Quanto à organização do resumo expandido, está estruturado em três seções: Introdução;
Concepção dos gestores acerca das ações de gestão acadêmica para a melhoria do desempenho
dos estudantes desses cursos no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes)
2011, 2014 e 2017; Atuação do Núcleo Docente Estruturante (NDE) e do Colegiado de
Curso para a melhoria da qualidade dos indicadores e Considerações Finais sobre a temática.
1
UEMA – anaduarte@professor.uema.br
485 //
Destacamos que é prerrogativa dos NDE e Colegiados de Curso proporem ações
de melhorias, a partir dos resultados avaliativos internos e externos, devendo constar no
Projeto Pedagógico de Curso (PPC), bem como haver previsão de implementação com a
participação e envolvimento de todos os segmentos da comunidade acadêmica. Com efei-
to, o PPC é elaborado com a participação efetiva de todos os segmentos em uma situação
de autonomia, em que o particular e o específico são os representantes principais para a
territorialização do projeto pedagógico institucional, conforme postula Griboski, (2014).
Nesse sentido, é importante compreender o papel do NDE, do Colegiado de Curso,
bem como dos gestores dos cursos e dos docentes, quanto à implementação das ações pre-
vistas no PPC, a partir dos resultados das avaliações internas e externas, para a melhoria
dos indicadores de qualidade de desempenho dos estudantes.
Ao compreender que o êxito da avaliação institucional está associado à qualidade e
à responsabilidade de participação de cada segmento, demarcamos ser imprescindível o
senso de responsabilidade e de ética envolvendo diversos segmentos da comunidade uni-
versitária. (GRIBOSKI e SOUSA, 2018; DIAS SOBRINHO, 2010).
Com isso, é possível compreender a importância do NDE, do Colegiado de Curso
e dos gestores na implementação de ações previstas no PPC a partir dos resultados dos
processos avaliativos internos e externos para a melhoria do desempenho dos estudantes,
independentemente de ser ano do Enade ou não.
Os dados indicam a relevância do trabalho do Núcleo Docente Estruturante (NDE),
bem como fortalecem reflexões sobre o papel dos documentos orientadores para desenvolver
as políticas de ação afirmativas. Além disso, demonstram o impacto da pandemia no acompa-
nhamento e nas demandas de atendimento ao perfil de estudantes recebidos pelos cursos de
licenciaturas analisados. Também apontam que, mesmo com os desafios, é possível identificar
dados que expressam acompanhamento satisfatório e alcance de patamares consistentes na
carreira de egressos, como aprovação em concursos públicos ou ingresso na pós-graduação.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Concepção e práticas dos gestores acerca das ações de melhoria


do desempenho dos estudantes nos cursos de licenciatura:
Ciências Biológicas, Matemática, Letras/Língua Portuguesa, Língua
Inglesa e literaturas e Pedagogia

Nesta seção, serão descritas as práticas associadas ao perfil e ao desempenho dos estu-
dantes da Uema dos cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, Matemática, Letras e
Pedagogia. A seguir detalharemos as práticas de gestão, acadêmicas e de avaliação desen-
volvidas nos cursos investigados nesta pesquisa.
486 //
Sobre a concepção dos gestores acerca do desempenho dos estudantes concluintes, foi
possível identificar, na análise de dados, iniciativas para a melhoria da qualidade dos cursos
a fim de promover a consequente elevação do indicador de qualidade a partir dos resul-
tados do Enade. A partir das respostas analisadas, constatamos a existência de políticas
institucionais de orientação para gestores, professores e estudantes quanto à importância
do Enade como política de avaliação da educação superior e geradora dos indicadores de
qualidade que poderão impactar na concepção e institucionalização de novas políticas
educacionais, como por exemplo a de assistência estudantil, considerando o perfil de vul-
nerabilidade socioeconômica de grande parte dos estudantes da Uema.
Sabemos que, no trabalho da gestão, é complexa a forma de enfrentamento de pro-
blemas e, em especial, as condições socioeconômicas adversas dos estudantes, que exigem
uma intervenção institucional que leve em conta as condições objetivas para a permanên-
cia do estudante e a garantia da aprendizagem, sem as quais as propostas de mediação
pedagógica soçobram.
Considerou-se relevante verificar se essas condições estão relacionadas ao perfil so-
cioeconômico dos estudantes e/ou ao desempenho ao longo do tempo, haja vista que a
literatura tem indicado aspectos da diferença de perfil socioeconômico dos estudantes
universitários na relação não só com o tipo de instituição pública ou privada, mas tam-
bém com a distinção que é feita em relação a cursos de maior prestígio social e ao turno,
diurno ou noturno. (VALLE, 2022; BOURDIEU e PASSERON, 2003; NOGUEIRA e
CATANI, 1998; BOURDIEU e PASSERON, 1975).
Essa desigualdade se faz sentir desde o início da Educação Básica, quando os alunos
já chegam em condições desiguais em decorrência das oportunidades que tiveram ou não.
Quanto menor as oportunidades, menor capital cultural possui. Amplia-se a possibilidade
de acesso à escola básica de alunos de diferentes condições sociais, o que aparentemente
demonstra um esforço de propiciar oportunidades iguais a todos, mas que continua per-
petuando a desigualdade, pois o acesso ao que é considerado capital cultural é restrito aos
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
que possuem o código que possibilita a sua aquisição. (BOURDIEU e PASSERON, 2003;
BOURDIEU e PASSERON, 1975).
Perguntada sobre como percebe o desempenho dos estudantes, a partir dos últimos
conceitos Enade obtidos, a Diretora do Curso de Ciências Biológicas respondeu que con-
siderava satisfatório, tendo em vista o baixo índice de reprovações. Os estudantes realiza-
ram a integralização dos componentes curriculares obrigatórios do curso e defenderam
o Trabalho de Conclusão de Curso – TCC. A Diretora fez referência ao impacto sofri-
do pelos estudantes no período de 2019, 2020 e 2021 que teve como consequência a
desmotivação e o trancamento do curso por muitos estudantes. Acrescentou ainda que
o acompanhamento do egresso realizado pelo Núcleo Docente Estruturante (NDE) do
487 //
Curso revelou que muitos estudantes ingressaram na pós-graduação e foram aprovados em
concurso público.
Já o Diretor do Curso de Matemática considerou que o desempenho dos estudantes
se manteve, considerando a melhoria da qualidade da formação promovida pela atualiza-
ção do projeto pedagógico, ocorrida em 2017, a partir das exigências demandadas pela
Resolução CNE/CP n.º 2, de 1.º de julho de 2015, referente às Diretrizes Curriculares
Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de
formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a forma-
ção continuada, além do trabalho de acompanhamento que vinha sendo realizado pela
Coordenação Técnico-Pedagógica, vinculada à Pró-Reitoria de Graduação.
Quanto ao Curso de Letras Licenciatura em Língua Portuguesa, Língua Inglesa e
Literaturas, ressaltamos que realizou apenas a edição do Enade de 2011. Sobre a melhoria
do desempenho dos estudantes, a Diretora do Curso afirmou que houve crescimento que
interferiu no conceito. Entretanto, destacamos que não há como estabelecer parâmetros
de melhoria a que se refere a Diretora a partir dos indicadores do Enade, considerando
que, para esta pesquisa, estabelecemos como recorte temporal as três edições dos anos de
2011, 2014 e 2017.
Por sua vez, a Diretora do Curso de Pedagogia destacou que a análise dos conceitos
obtidos revelou que houve uma evolução progressiva e real no desempenho dos estudantes,
apesar da conjuntura pandêmica vivenciada pela comunidade educativa. Assim, nos três
últimos Enade, o Curso de Pedagogia da UEMA obteve conceito 2 nas edições do Enade
em 2011 e 2014. Ressaltamos que, nessas duas edições, os cursos de Pedagogia, tanto o da
modalidade presencial como a distância, foram avaliados conjuntamente. Em 2017, houve
o cadastro dos cursos presencial e a distância com códigos diferentes no e-MEC. Nessa
edição, o curso de Pedagogia presencial obteve conceito 4, conforme relato da Diretora
do Curso.
Consideramos relevante saber as percepções dos membros do NDE sobre o desem-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

penho dos estudantes. De acordo com a representante do NDE do Curso de Ciências


Biológicas, o desempenho dos estudantes foi positivo. Apesar da pandemia, houve poucas
reprovações e troca de curso. Enfatiza também que o bom resultado é fruto do acompa-
nhamento dos egressos. No caso dos egressos, pode-se afirmar que muitos estão atuan-
do em escolas da Educação Básica no Estado do Maranhão e que outros ingressaram na
Pós-Graduação.
Para a representante do NDE de Matemática, os membros atuaram objetivando
atender as demandas relacionadas ao perfil dos estudantes, em sua maioria oriundos da
rede pública, demandam, portanto, acompanhamento e suporte para permanecerem
na instituição. Para a professora, as ações implementadas pelos docentes da UEMA
488 //
impactaram positivamente no aumento do conceito obtido devido ao trabalho coletivo
construído no curso.
A representante da Pró-Reitoria de Graduação-PROG destacou as ações de gestão
desenvolvidas a partir de 2016 para a melhoria da qualidade dos indicadores relativos ao
desempenho dos estudantes dos cursos, tais como:
• a) implementação, no âmbito da Uema, da Avaliação dos Cursos de Graduação
(AVALGRAD);
• b) reestruturação e implementação dos NDE em todos os cursos;
• c) atualização da resolução interna que regulamenta os NDE no âmbito da Uema,
com melhor definição das atribuições, competências e composição do núcleo, com
o fulcro para o aperfeiçoamento das condições do ensino, da pesquisa e exten-
são nos cursos de graduação, a partir de uma análise contínua dos resultados da
AVALGRAD, do Enade e da avaliação in loco do Conselho Estadual de Educação
do Maranhão;
• d) criação e aprovação das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Licenciatura da
Universidade Estadual do Maranhão (Resolução n.° 1264/ /2017 – CEPE UEMA),
considerando as Resolução CNE/CP n.º 2, de 1.º de julho de 2015, referente às
Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos
de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda
licenciatura) e para a formação continuada; a Resolução n.º 109/2018 – CEE/MA
que estabelece normas para a Educação Superior no Sistema Estadual de Ensino do
Maranhão e as normas internas da Uema;
• e) elaboração e aprovação do novo regimento dos cursos de graduação;
• f ) atualização dos currículos dos cursos em consonância com a Resolução n.° 1,264/
/2017 – CEPE UEMA – Diretrizes Curriculares para os Cursos de Licenciatura da
Universidade Estadual do Maranhão;
• g) criação do Fórum dos Cursos de Graduação da Uema com o objetivo de for-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
mulação de diretrizes gerais para melhoria da qualidade dos cursos de graduação e
proposição de subsídios para o planejamento do PPI e PDI, sob a coordenação da
PROG, com a colaboração dos NDE, Colegiados de Cursos e Conselhos de Centro
ou de Campus.

Considerou-se relevante saber as diferenças observadas nas três edições do Enade, ob-
jetos desta pesquisa. Para a Diretora do Curso de Ciências Biológicas, foi evidenciado
um maior envolvimento da Pró-Reitoria de Graduação – PROG no planejamento das
ações tais como: encontros e palestras com os estudantes sobre a importância e o signi-
ficado do Enade como componente curricular obrigatório, além de orientações sobre o
489 //
preenchimento do questionário socioeconômico; criação de grupo WhatsApp pela Divisão
de Acompanhamento e Avaliação – DAAE/PROG como canal de comunicação para pres-
tação de informação e central de dúvidas dos diretores de curso e NDE; mobilização da
gestão dos cursos com os professores para observar o cumprimentos da abordagem dos
conteúdos estabelecidos nos programas de disciplinas dos cursos, de acordo com as DCN
e exigidos no Enade, além de seminários com os gestores dos cursos e NDE sobre o Enade.
Para a Diretoria do Curso de Letras, o Enade era abordado, mas não havia trabalho
sobre as questões. Além disso, segundo a professora, melhorou a conscientização da im-
portância do Enade como indicador de qualidade que determina também o resultado de
outros indicadores de qualidade dos cursos, como o Conceito Preliminar de Curso (CPC)
e o Índice Geral de Cursos (IGC) em toda UEMA, além da percepção sobre as condições
dos cursos e da própria Uema.
Para a representante do NDE de Ciências Biológicas, foi possível identificar maior
interesse dos estudantes no curso e maior interesse pela docência no campo da Biologia.
Por sua vez, a coordenação do Curso de Matemática considerou que houve melhoria no
conceito do curso e que este dado revela, sem dúvida, um crescimento. Destacou como
desafio conscientizar o estudante sobre o que significa ser professor e sobre o compromisso
com a melhoria da qualidade do curso.
Dando prosseguimento, a representante do NDE do Curso de Pedagogia destacou
que os docentes passaram a conversar mais sobre as ações que poderiam ser assumidas
pelo curso e pelos alunos na Universidade, a fim de garantir maior acompanhamento do
desempenho dos alunos e, assim, avaliar melhor os resultados obtidos pelos estudantes. De
acordo com a representante, as ações deverão ocorrer ao longo do ano letivo, independen-
temente de ser ano do Enade ou não.
Evidenciou-se, na pesquisa, que a maioria dos diretores de curso ainda precisam se
apropriar mais acerca do conhecimento sobre o Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior (Sinaes), a exemplo do Enade, em relação ao desempenho dos estudantes; das
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

IES, e das avaliações in loco dos cursos a partir dos indicadores de qualidade das dimen-
sões didático-pedagógica, corpo docente e infraestrutura, constantes no Instrumento de
Avaliação de cursos-Inep/MEC, bem como reconhecer a importância do uso dos resulta-
dos das avaliações para a criação e implementação de novas políticas institucionais.
Torna-se relevante destacar o caráter educativo da avaliação, o que significa que a
avaliação institucional não dever ser feita somente para atender a um objetivo de política
pública, mas sim deve efetivar-se como um mecanismo de contínua revisão de estratégias
e de procedimentos, nisso residindo o seu sentido ético.
A avaliação institucional, para ter êxito, depende da qualidade e da responsabilida-
de de participação de cada segmento envolvido – gestores, docentes, estudantes e corpo
490 //
administrativo e comunidade externa. Essa condição, aparentemente simples, reveste-se,
no entanto, da mais alta importância. É imprescindível o senso de responsabilidade e de
ética, o que pode, em parte, ser conseguido com uma etapa preparatória de sensibilização:
o sentido de pertencimento, de estar presente nos diversos segmentos da comunidade
universitária. (GRIBOSKI e SOUSA, 2018; CUNHA, 2013; DIAS SOBRINHO, 2010).
O PPC, como eixo norteador dos rumos de um curso, implica escolhas, expressa in-
tenções e valores, pressupõe coerências: forma/conteúdo, tempo/espaço, envolve riscos
e a avaliação em qualquer um de seus níveis, não deve transformar-se em obstáculo ao
processo de inovação desejado. (FERNANDES e GOMES, 2022).
A complexidade dos problemas a enfrentar exige uma intervenção profissional rigo-
rosa, consentida e corajosa. Uma intervenção que leve em conta as condições objetivas de
trabalho, sem as quais as propostas de mediação pedagógica soçobram. Entender a ava-
liação como um dos componentes do trabalho docente é passo decisivo para a mudança
na forma de enfrentar o desafio de consolidar um novo paradigma para a formação uni-
versitária. Considerou-se relevante verificar se essas diferenças estão relacionadas ao perfil
socioeconômico dos estudantes e/ou ao desempenho ao longo do tempo.
De acordo com o diretor do Curso de Ciências Biológicas, em algumas disciplinas, entre
elas, Matemática, Física e Produção Textual, há relatos dos professores sobre o baixo desem-
penho dos estudantes relativo ao domínio de conhecimentos básicos referentes a essas dis-
ciplinas. Também houve reclamações de estudantes sobre a qualidade das aulas em algumas
disciplinas. Quando esses casos ocorreram, a coordenação do curso procurou atuar junto aos
professores, solicitando adequações nas atividades a fim de evitar evasão e abandono.
Para o diretor do Curso de Matemática, não é possível atribuir diferenças, estudantes
oriundos de nível socioeconômico baixo podem ser bem-sucedidos no desempenho aca-
dêmico. Segundo a diretora do Curso de Letras, os estudantes do turno vespertino têm
procurado mais por oportunidades de bolsas de iniciação científica, de extensão. Pode-se
inferir que essa procura também se dá pelo fato de serem estudantes oriundos de camadas
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
populares. Já a maioria dos estudantes do noturno trabalham e não têm disponibilidade para
participar dos diferentes projetos. De acordo com os resultados do questionário socioeco-
nômico da Uema, os estudantes são de baixa renda e a maioria oriundos de escola pública.
Sobre essa questão, a diretora do Curso de Pedagogia afirmou que: “[...] não se trata de
diferenças no perfil do estudante, mas sobretudo de implementação de ações institucionais
advindas de uma prática avaliativa e de melhoria na infraestrutura e na organização peda-
gógica realizadas nesse período por esta IES”.
Com base nas contribuições de Bourdieu e Passeron (1975, 2003), nas possibilidades
de acesso à Educação Superior se lê o resultado de uma seleção que se exerce ao longo da
trajetória escolar com um rigor muito desigual segundo a origem dos indivíduos.
491 //
Estudos realizados indicam que a diferença de perfil socioeconômico dos estudantes
universitários tem relação não só com o tipo de instituição pública ou privada, mas tam-
bém com a distinção que é feita em relação a cursos de maior prestígio social e ao turno,
diurno ou noturno. (VALLE, 2022; BOURDIEU e PASSERON, 2003; NOGUEIRA e
CATANI, 1998; BOURDIEU e PASSERON, 1975).
Essa desigualdade se faz sentir desde o início da Educação Básica, quando os alunos
já chegam em condições desiguais em decorrência das oportunidades que tiveram ou não.
Quanto menores essas oportunidades, menor capital cultural possuem. Amplia-se a possi-
bilidade de acesso à escola básica de alunos de diferentes condições sociais, o que aparente-
mente demonstra um esforço de propiciar oportunidades iguais a todos, mas que continua
perpetuando a desigualdade, pois o acesso ao que é considerado capital cultural é restrito
aos que possuem o código que possibilita a sua aquisição. (BOURDIEU e PASSERON,
2003; BOURDIEU e PASSERON, 1975).
Verifica-se, desse modo, que o acesso e a permanência na Educação Superior de jovens
oriundos de classes com menor poder aquisitivo são muito difíceis, o que não difere das
dificuldades de acesso que os pobres têm em relação aos demais bens sociais e culturais.
Considerou-se relevante saber que políticas de ação afirmativas foram implementadas
para atendimento de estudantes negros, indígenas, de baixa renda, pessoas com deficiên-
cias, dentre outros. A partir dos relatos dos entrevistados, identificamos que, em 2011, a
Uema criou o Sistema Especial de Reserva de Vagas, caracterizado da seguinte forma:
• a) Especial 1 – reserva de 10% (dez por cento) das vagas dos cursos de graduação, ex-
cetuando os Cursos de Formação de Oficiais da UEMA – CFO (PMMA e CBMMA),
para candidatos negros (conforme nomenclatura do IBGE/2010) e oriundos de comu-
nidades indígenas, tendo cursado o ensino médio exclusivamente em escolas públicas;
• b) Especial 2 – reserva de 5% (cinco por cento) das vagas dos cursos de graduação
da UEMA para pessoas com deficiência, inclusive para os cursos de CFO PMMA
e CFO CBMMA;
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

• c) Especial 3 – vagas destinadas para candidatos negros, aos cursos de CFO PMMA
e CFO CBMMA.

Além disso, foi relatado que, a partir de 2015, considerando o perfil dos estudan-
tes, a UEMA criou um Programa de Assistência Estudantil como uma política institu-
cional para garantir as condições de permanência de estudantes na educação superior
em situação de vulnerabilidade econômica e está vinculado à Pró-Reitoria de Extensão
e Assuntos Estudantis (PROEXAE). O programa é constituído por 5 (cinco) auxílios,
concedidos aos estudantes, regularmente matriculados em cursos presenciais regulares
de graduação da UEMA, com regras e condições estabelecidas em Editais específicos,
492 //
publicados anualmente, a saber: Bolsa Permanência, Auxílio Creche, Auxílio Moradia,
Auxílio Alimentação e o Auxílio Refeição. Em 2022, foi criado o Auxílio Transporte, bem
como um auxílio para alunos das comunidades indígenas.
A diretora do Curso de Biologia destacou as políticas de assistência estudantil que
foram incorporadas pelo curso, bem como a gratuidade do restaurante universitário.
Outra importante política institucional apontada foi o Serviço de Orientação Psicológica
(SOPP) da UEMA.
O diretor do Curso de Matemática ressaltou a importância de divulgar para os estudan-
tes as oportunidades de bolsas oferecidas pela UEMA. Em seu depoimento, relatou que os
casos de estudantes gagos no curso que sofrem bullying e demandam apoio e intervenção e a
necessidade ainda de realizar ações em sintonia com o Diretório Acadêmico – DA.
A diretora do Curso de Letras, por sua vez, lembrou ainda que o trabalho do Núcleo
de Acessibilidade da UEMA – NAU que acompanha alunos com deficiência e com baixo
desempenho acadêmico.
Considerou-se relevante saber o grau de envolvimento dos docentes na realização do
Enade e na análise de seus resultados. Para a diretora do Curso de Ciências Biológicas, o
grau de envolvimento dos docentes é baixo, só se envolvem aqueles docentes com uma
dimensão cidadã mais acentuada.
Já o diretor de Matemática destacou que maior envolvimento foi observado nos do-
centes que se comprometeram com o NDE. Trata-se de uma proposta que foi divulgada
na reunião do colegiado, do departamento e na assembleia, objetivando trabalho conjunto
e ação de apoio voltada para os estudantes.
Sobre essa questão, a diretora do Curso de Letras destacou o trabalho realizado pelos
professores membros do NDE que atuaram aplicando avaliações, realizando palestras, a
fim de estimular o envolvimento dos estudantes. Destacou ainda que os resultados desse
trabalho foram divulgados nas reuniões de departamento e para os estudantes do curso.
Também a diretora do Curso de Pedagogia ressaltou que essa participação ocorreu por
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
meio de reuniões e oficinas.
Para a representante da Pró-Reitoria, a expectativa é que o diretor do curso se envolva
cada vez mais com o Enade, que valorize o trabalho coletivo, que ele seja versátil e dinâmi-
co, que seja capaz de articular ações de melhoria do desempenho do curso, envolvendo os
docentes do colegiado, do NDE e com os docentes do curso em geral.
Dando prosseguimento, considerou-se relevante obter dados sobre o engajamento do
NDE com o Enade e seus resultados, bem como com a sua utilização para formular/de-
senvolver propostas e práticas de gestão e práticas acadêmicas. Para a diretora do Curso
de Ciências Biológicas, em 2015, o NDE realizou um trabalho muito interessante que
envolveu seis docentes do curso de licenciatura e seis docentes do curso de bacharelado.
493 //
Já o diretor do Curso de Matemática revelou que o NDE pensou ações sobre o Enade
que foram discutidas em assembleia departamental. Uma das iniciativas foi o trabalho com
questões problematizadoras. Sobre essa questão, a diretora do Curso de Letras afirmou que
os professores se envolveram muito, dentre as ações destacou: aplicação de provas, realiza-
ção de palestras e apresentação dos resultados do Enade.
Para a representante da Pró-Reitoria de Graduação o resultado positivo obtido pela
UEMA, é fruto da vinculação das ações da Coordenação Técnico-Pedagógica (CTP); da
Divisão de Acompanhamento e Avaliação do Ensino (DAAE), da Comissão Própria de
Avaliação (CPA). Segundo a representante, trata-se de um trabalho institucional, educati-
vo e orientador que toma como referência a relevância da avaliação, da análise dos indica-
dores e do trabalho junto aos docentes.
No estudo sobre os resultados do Enade, Sousa e Sousa (2012) analisaram a forma
como o Enade foi tratado pelas instituições pesquisadas. De acordo com os autores “cons-
tatou-se uma preocupação, por parte de todas elas, com os resultados do exame, embora
nem sempre isso ocorra no sentido de sua percepção e uso na gestão curricular dos cursos,
em uma perspectiva formativa” (SOUSA e SOUSA, 2012, p. 250)
É dentro desse cenário que o coordenador e o colegiado de curso passam a não assumir
responsabilidades que historicamente lhes são atribuídas, como promover o funcionamen-
to acadêmico por meio da coordenação do processo de elaboração e desenvolvimento do
projeto pedagógico do curso, da integração docente/discente e da compatibilização da
ação docente com os planos de ensino com vistas à formação profissional, além da coorde-
nação do processo de avaliação do curso em termos de resultados obtidos, executando e/ou
encaminhando aos órgãos competentes as alterações que se fizerem necessárias. (GOMES,
et al. 2022).
Já o NDE constitui segmento da estrutura de gestão acadêmica em cada curso de
graduação com atribuições consultivas, propositivas e de assessoria sobre matéria de natu-
reza acadêmica, corresponsável pela elaboração, implementação e consolidação do projeto
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

pedagógico do curso, além de zelar pelo cumprimento das diretrizes curriculares nacionais
para os cursos de graduação.
Por outro lado, o NDE, ao assumir a avaliação dos aspectos pedagógicos e da infraes-
trutura do curso no qual se efetiva a prática docente, cumpre o papel de instaurar um
método, um processo de gerar dados para entender as causas que levam a determinados
resultados do curso, e com isso libera a coordenação para dar conta dos processos geren-
ciais voltados ao desempenho, à eficácia e eficiência do curso.
Torna-se relevante destacar que há por parte dos docentes e gestores a necessidade de
criar espaços de discussão sobre os resultados das avaliações externas, principalmente os
referentes ao projeto pedagógico dos cursos nos quais atuam, para compreender o que
494 //
dificulta seu melhor desempenho e consequente localização nos rankings da avaliação di-
vulgados pela imprensa, o que sinaliza uma responsabilização pelos resultados alcançados.
(FERNANDES e GOMES, 2022).
Finalmente, ainda no bloco 4, considerou-se relevante saber, a partir das políticas de
avaliação e regulação propostas pelo Estado, que medidas a gestão das IES tem tomado,
visando a melhoria do curso e se a IES tem dado suporte.
A diretora do Curso de Ciências Biológicas destacou a reunião realizada com a coor-
denação de avaliação, cujo objetivo foi destacar os pontos de fragilidade e de avanços,
lembrou ainda que a Pró-Reitoria de Graduação tem sistematizado ações que ajudam na
superação dos desafios.
Já o diretor do Curso de Matemática evidenciou as alterações realizadas no Projeto
Pedagógico do Curso (PPC) que contou, sem dívida, com o apoio da gestão da UEMA.
Para a diretora do Curso de Letras, a infraestrutura da instituição atende, mas é necessário
concretizar algumas reformas para garantir maior atendimento aos estudantes, professores
e técnicos. Há necessidade ainda demandas para contratação de novos docentes para o
quadro da UEMA, tendo em vista a aposentadoria de docentes.
Também a diretora do Curso de Pedagogia enfatizou em seu relato a oferta de cursos
e o acompanhamento sistemático do planejamento estratégico, bem como a criação da
Assessoria de Avaliação pela PROG. Com base nesses depoimentos, pode-se afirmar que
a EU \MA tem toda estrutura para garantir o acompanhamento dos cursos. Para alcan-
çar maior qualidade, a UEMA está trabalhando com esses instrumentos, considerando as
políticas de avaliação em pauta. É necessário que os docentes, a partir da especificidade
institucional, empreender esforços para identificar onde será necessário dispender maior
energia a partir das condições institucionais. (SOUSA, 2009)
Torna-se relevante ressaltar que a política de regulação implícita nos processos de ava-
liação da Educação Superior no Brasil, portanto, está associada a uma cultura de “perfor-
matividade” que, segundo Ball (2002, p.4), “é uma tecnologia, uma cultura e um modo de
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regulação que se serve de crítica, comparações e exposições como meio de controle, atrito
e mudanças”. O desempenho dos indivíduos e/ou das organizações serve como medida da
produtividade e exposição pública de qualidade. Conferir visibilidade ao conhecimento e
garantir sua medida permanece sendo a lógica que configura os processos de avaliação na
área da educação e, especificamente nesse caso, da Educação Superior. Sobre essa questão,
verificou-se ainda que,
A avaliação é, portanto, instrumento essencial para os processos regulatórios.
Nesse sentido, tem sido utilizada como mecanismo para o planejamento, viabilizan-
do o controle de recursos investidos e os resultados alcançados na gestão educacio-
nal, na perspectiva de responsabilização e prestação de contas pelas instituições de
495 //
Ensino Superior, voltada para aprimorar a formação dos indivíduos de acordo com
as demandas do mercado de trabalho e para obter uma relação custo/benefício mais
eficiente dos investimentos. (PEIXOTO, 2017, p. 73).

Diante do exposto, a decisão de avaliar os resultados do Enade é questão que não pode
ser subestimada pelos docentes em geral. Isso porque, avaliar a avaliação é assumir posição
clara de interrogação, de dúvida, de abertura, de crítica com vistas ao aperfeiçoamento da
proposta em seus distintos momentos (o antes, o durante e o após).
Entender a avaliação como um dos componentes do trabalho docente é passo decisivo para
a mudança na forma de enfrentar o desafio de consolidar um novo paradigma para a formação
universitária. Melhorar os processos de avaliação é condição necessária, porém não suficiente,
para dar conta do processo complexo de ensinar e aprender em tempos de incerteza.

Considerações finais

A decisão de analisar os resultados do Enade é um aspecto necessário para o traba-


lho docente na perspectiva de melhoria dos processos de ensino e de aprendizagem dos
conteúdos exigidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação que
permita o desenvolvimento e a autonomia do discente de forma contínua e efetiva para
uma formação profissional integral. Isso porque, avaliar a avaliação é assumir posição clara
de interrogação, de dúvida, de abertura, de crítica com vistas ao aperfeiçoamento do PPC
em seus distintos momentos (o antes, o durante e o após).
Entender a avaliação como um dos componentes do trabalho docente é um passo de-
cisivo para a mudança na forma de enfrentar o desafio de consolidar um novo paradigma
para a formação universitária. Melhorar os processos de avaliação é condição necessária,
porém não suficiente, para dar conta do processo complexo de ensinar e aprender em
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

tempos de incerteza.

Referências bibliográficas

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Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/200267. Acesso em: 5 fev. 2023.
497 //
Da fronteira do capital à fronteira abissal
na Amazônia: a construção do
“Amazonismo” e suas repercussões em
conflitos geoepistêmicos1

Rafael Zilio2
Joice de Almeida Lima3

Introdução

A Amazônia é historicamente abordada enquanto uma fronteira a ser desbravada e


explorada. Extrapolando a escala, a região é tida como uma “fronteira do mundo”, um
espaço a ser descoberto ou, numa perspectiva ambientalista superficial, uma reserva de
“natureza selvagem” a ser preservada. Desde os tempos coloniais até os atuais foi configu-
rada como espaço-estoque de recursos naturais a serviço de uma lógica de apropriação e
dominação exógena, alienígena a seus povos. Este texto propõe analisar a Amazônia a par-
tir de algumas chaves de interpretação, partindo do que entendemos por “Amazonismo”
(sob inspiração do Orientalismo de Edward Said) e atravessando a concepção de fronteira
abissal onde ocorre uma diversidade de conflitos territoriais, ambientais e geoepistêmicos.
Para isso, o caminho metodológico adotado foi: continuamos a desenvolver reflexões
presentes em nossos últimos escritos (ZILIO, 2021 e 2022); levantamos informações a
respeito das comunidades no entorno da rodovia PA-370 em órgãos como o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Instituto Brasileiro de Geografia As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

e Estatística (IBGE); realizamos trabalhos de campo em agosto de 2023 com a observa-


ção da paisagem e a tomada de fotografias aéreas com a utilização de drone em conjunto
com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP);

1
Artigo derivado do projeto “Diagnóstico-prognóstico das transformações paisagísticas na Calha Norte
do Rio Amazonas e no assentamento INCRA Corta Corda/PA”, financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2
Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Espaço, Política e Emancipação Social (NEPES), curso de
Geografia – UFOPA. Universidade Federal do Oeste do Pará, Brasil – rafael.zilio@yahoo.com.br
3
Integrante do Núcleo de Pesquisas sobre Espaço, Política e Emancipação Social (NEPES), curso de
Geografia – UFOPA. Universidade Federal do Oeste do Pará, Brasil – joice.belte@gmail.com
499 //
recuperamos materiais de trabalhos de campo anteriores realizados nos anos de 2021 e
2022; e, por fim, cruzamos os dados com o apoio do referencial bibliográfico para produ-
zir o presente artigo.
Na primeira seção resgatamos brevemente o conceito de Orientalismo e demonstra-
mos como ele pode ser adaptado e traduzido para o caso da Amazônia através de uma
produção discursiva com repercussões materiais que chamamos de “Amazonismo”. Após,
discutimos o problema do Estado moderno sobre a diversidade de organizações espaciais
existentes na “América” sob a égide do colonialismo formal e a permanência da colonia-
lidade do poder e do saber concretizando-se na Amazônia enquanto fronteira do capital
e fronteira abissal. Em seguida, tomamos como exemplo o caso dos arredores da rodovia
PA-370, no município de Santarém, estado do Pará, para evidenciar expressões espaciais
em escala local dessa fronteira abissal e seus conflitos decorrentes, também, da constituição
do “Amazonismo”. Por último, arrematamos os principais pontos do texto e finalizamos
considerando que os povos amazônidas carregam epistêmes e lógicas espaciais distintas e
antagônicas da moderno-colonialidade, o que pode ensejar caminhos para a superação da
lógica espacial do Estado colonial e dos grandes agentes do capital a ele associados.

O “Amazonismo”

Em 1978 o crítico literário palestino Edward Said publica sua famosa obra
“Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”. Grande influência nos chamados
“estudos culturais”, a Geografia receberá a obra a partir do conceito de geografia imagi-
nativa e da análise da geopolítica imperialista estadunidense sobre o “Oriente”. Não nos
ateremos às minúcias do complexo conteúdo do livro, mas alguns apontamentos são ne-
cessários para entendermos o paralelo com o caso da Amazônia. Para Said (2007, p. 79),
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Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a


lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, descreven-
do-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o Orientalismo como
um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente.

O Orientalismo é num primeiro momento uma construção discursiva baseada na ho-


mogeneização de um espaço diverso desde um ponto de vista exterior, alienígena, em que
o “Oriente” é uma espacialidade exótica, mítica, e com seres humanos devidamente racia-
lizados. O exterior, nesse caso, é a Europa – e, a partir de meados do século XX, os Estados
Unidos; já o espaço “orientalizado” é o que temos hoje aproximadamente como norte da
África e Oriente Médio e, em alguma medida, pode ser estendido ao que era chamado de
500 //
“extremo oriente” (Coreia, China, Japão etc.). Num segundo momento, o Orientalismo
repercute na materialidade pois na medida em que homogeneíza, exotiza e racializa, es-
tabelece uma desigualdade, uma classificação social para com uma parte da humanidade.
Como o autor destaca, o Oriente era uma invenção europeia desde a Antiguidade, um
lugar exótico com experiências fantásticas. Assim, o Orientalismo é “um modo de abordar
o Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Oriente na experiência ocidental
europeia” (SAID, 2007, p. 27). A lógica espacial do Orientalismo baseia-se então em um
lócus de enunciação discursiva (Europa-EUA) construindo um discurso e uma prática de
desigualdade e racialização sobre um lócus de referência discursiva (o Oriente), o que o
autor chamou de geografia imaginativa.
Inspirados na ideia de Orientalismo segundo Edward Said, propomos abordar a
Amazônia através do Amazonismo4, a geografia imaginativa criada por um enunciador
externo à região que a quer homogênea, exótica e “distante” desse lócus de enunciação.
Quem são os agentes de criação dessa geografia imaginativa? Quais são seus elementos
principais? E quais repercussões sócio-espaciais são identificáveis?
Desde ao menos fins do século XVIII, ainda sob o jugo do colonialismo português no
território chamado de Grão-Pará (capitania entre 1621 e 1821 e província entre 1821 e
1889), o espaço amazônico foi tomado como “muito distante” dos grandes centros, reduzido
a uma floresta com seres estranhos e, em caso de existência de humanos, estes extremamente
animalizados, próximos a um estado de “natureza selvagem”. Mesmo após a independência
brasileira da coroa portuguesa em 1822 e a Proclamação da República em 1889 via golpe
militar, a região continuou a ser vista como um espaço exótico. Ao longo do século XX tal
imaginário geográfico foi reproduzido e mesmo aprofundado pelos sucessivos regimes auto-
ritários: a Amazônia seria um “vazio demográfico”, depósito de recursos naturais inesgotáveis
e um espaço “atrasado”, primitivo, para o qual se deveria levar o “progresso” e o “desen-
volvimento”. Vemos nas ações do órgão estatal Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia (SUDAM), durante a época da ditadura empresarial-militar (1964-1985), grande
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propaganda baseada no Amazonismo, conforme notamos nas Figuras 1 e 2.
O projeto de organização espacial durante a referida ditadura empresarial-militar era
a de consolidar a Amazônia como fronteira de expansão do capital entendendo a floresta
como um entrave ao “progresso”. O “vazio demográfico” deveria ser ocupado majoritaria-
mente por trabalhadores oriundos da região nordeste do país, onde a expansão da lógica
capitalista de acumulação sobre o espaço agrário estava provocando uma série de desterri-
torializações, ao passo que parte do campesinato nordestino havia se organizado nas Ligas
Camponesas, a principal articulação de luta pela terra no Brasil pré-golpe de 1964. Sob

4
A partir daqui retiramos as aspas do termo para diminuir a “poluição” do texto.
501 //
Fig.1: propagandas da SUDAM incentivando a migração e o “progresso” para a Amazônia. Fonte: Acervo
Ricardo Cardim
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Fig. 2: a floresta é “vencida” pela estrada. À esquerda, propaganda da SUDAM. À direita, capa da revista
Manchete em comemoração aos 150 anos da independência do Brasil. Fonte: acervo Ricardo Cardim

os slogans “terra sem homens para homens sem terra” e “integrar para não entregar”, a
geografia imaginativa perpetuada pelo regime militar, notadamente durante a década de
1970, fez desse “inferno verde” a principal fronteira a ser desbravada.
502 //
Na toada do incentivo à migração para a região Norte do Brasil, e sob os auspícios
de ideólogos da geopolítica militar como Golbery do Couto e Silva (1967) e Carlos de
Meira Mattos (1980), fratura-se sociedade e natureza em dois sentidos: no primeiro, ao
considerar a “ausência” de gente na Amazônia ou as gentes amazônidas em um estágio
anterior / inferior de “desenvolvimento”, a ideologia militar tratou de um espaço-estoque
de recursos naturais infindáveis que, se devidamente apropriados, garantiriam a entrada
do Brasil no então chamado “Primeiro Mundo”; no segundo sentido, ao entender a
Amazônia como separada do restante do país e pronta para ser “inundada de civilização”.
As revistas Isto é Amazônia, publicada pela SUDAM, e Manchete, propriedade pri-
vada, serviram como esteira de transmissão das propagandas do Amazonismo militar.
O mito do “El Dorado” é evocado ao se tentar justificar a abertura da rodovia BR-230,
chamada de Transamazônica (Figura 2), que rasgou a floresta em sentido leste-oeste
numa macabra adaptação da “marcha para o Oeste” estadunidense. Estima-se que mi-
lhares de indígenas e camponeses tenham sido assassinados e outros tantos expulsos de
seus territórios ancestrais por conta da obra que conduziria o “progresso” à “mina de
ouro” no coração da floresta.
Após a “abertura lenta, segura e gradual” dos anos 1980 e a “redemocratização” do
Brasil, o Amazonismo permaneceu. A lógica de fratura sociedade-natureza é reproduzida
no processo de desindustrialização e reprimarização da economia brasileira promovida
pelos sucessivos governos civis que perpetuam o papel dependente e periférico do país
na economia capitalista global. Partindo das proposições de Quijano (2005) sobre a
colonialidade do poder, mesmo com o fim do colonialismo formal a colonialidade se
mantém no Brasil ao continuarmos num “eterno ciclo” de monoculturas de exportação,
desde os ciclos do pau-brasil, cana-de-açúcar e ouro do período colonial, até os ciclos
de café, borracha, soja, milho e carne bovina do período republicano. Nesse sentido, o
Amazonismo aparece em dois momentos. No primeiro há uma produção discursiva, a
construção de uma imagem mítica de lugar, uma floresta tropical a ser desbravada. No
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segundo momento há a repercussão material, ou seja, o desbravamento, a exploração, a
construção de objetos geográficos estranhos àquele espaço que atingem diretamente os
povos que o habitam.
A Amazônia enquanto fronteira agrícola ou de expansão do capital é há décadas
o espaço a ser explorado, mas não sem múltiplas resistências. A geografia imaginativa
colonial do Amazonismo ajuda a mascarar os processos de acumulação por espoliação
(HARVEY, 2003) ao passo que os povos das águas, das matas, dos campos e das peri-
ferias urbanas da Amazônia se organizam e lutam contra essa lógica de apropriação do
espaço.
503 //
O problema do Estado moderno, a fronteira abissal e os conflitos
geoepistêmicos

O Estado moderno, modelo surgido na Europa ao final da Idade Média, configura-se


como uma espécie de “monocultura” de organização espacial imposta à Abya Yala5 (trans-
mutada em “América”) por meio do colonialismo, considerando o processo histórico de
longa duração (BRAUDEL, 1965). Tal modelo alienígena à sociabilidade e às múltiplas
territorialidades preexistentes em nosso continente está na origem de muitos dos conflitos
de territorialidades que temos até os dias correntes (ZILIO, 2022). Na esteira do processo
de dominação moderno-colonial ainda em curso, a expansão geográfica do capital mate-
rializada na implantação dos chamados grandes projetos de des-envolvimento (MALHEIRO
e CRUZ, 2009) encontra resistência, questionamento e existência de corpos, gentes e epis-
temes inscritas no espaço – as geoepistemes –, que demonstram a Geografia enquanto verbo
e geo-grafam (PORTO-GONÇALVES, 2001), marcam o espaço de modo alternativo e
mesmo antagônico ao modelo civilizatório capitalista.
Para o caso da Amazônia, essa fronteira do capital pode ser compreendida pela chave
de interpretação por nós proposta de uma fronteira abissal onde se dão conflitos geoepistê-
micos (ZILIO, 2021). A fronteira abissal é inspirada no pensamento abissal (SANTOS,
2009), expressão fundamental da constituição do sistema-mundo que remete ao pensa-
mento moderno baseado no imaginário que separa brutalmente metrópoles de colônias.
O pensamento abissal cria e potencializa distinções e transforma simultaneidade em não-
-contemporaneidade. Nesse sentido, em espaços onde vemos a imposição de saberes e
racionalidades alienígenas pela expansão geográfica do capital sobre territorialidades de
povos de base territorial comunitária, a fronteira do capital, ou fronteira agrícola, é tam-
bém fronteira abissal, uma expressão espacial do pensamento (e da práxis) abissal que mar-
ginaliza e mesmo extermina diversas epistemes no âmbito dos processos de espoliação de
territórios. Considerando que são disputas por territórios e, ao mesmo tempo, envolvem
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diferentes formas de apropriação social da natureza e diferentes saberes inscritos no espaço,


a fronteira abissal na Amazônia apresenta conflitos de territorialidades, conflitos ambientais
e conflitos geoepistêmicos.
O problema original do Estado moderno em Abya Yala coloca uma dimensão espa-
cial fundamental em que a “monocultura” de organização política do espaço, fundada na
lógica euclidiana estatal, se sobrepõe aos saberes inscritos no espaço. Isto se evidencia ao
tratarmos de territórios ancestrais indígenas e quilombolas pois apresentam uma lógica de

5
Topônimo originário do povo Kuna, situado nos atuais Colômbia e Panamá, para designar a porção de
terras que conhecemos pela toponímia colonial “América”. Para mais a respeito da ideologia por trás das
toponímias coloniais sobre as originárias, consultar Porto-Gonçalves (2009).
504 //
organização espacial distinta e antagônica à da moderno-colonialidade (cujo Amazonismo
é uma expressão). A esta lógica espacial anticolonial propusemos chamar de geoepisteme
terra-território-memória-ancestralidade (ZILIO, 2022), e suas diferenças à lógica euclidiana
do Estado moderno demonstram-se no modelo da Figura 3.

Fig. 3: modelo demonstrando diferenças entre a simplificada lógica espacial euclidiana do Estado moderno e a
complexa geoepistême terra-território-memória-ancestralidade. Fonte: Zilio (2022).

A geografia imaginativa do Amazonismo reproduz e reforça a dupla fratura da moder-


nidade (FERDINAND, 2022). Para Malcom Ferdinand, a modernidade fratura a realida-
de ao dicotomizar colonialismo e ambientalismo, ou seja, mascara o extermínio de povos
indígenas, a escravização de Pretos africanos transformados em Negros na América, ao
mesmo tempo em que apaga o fato de a devastação ambiental moderna ser fruto desse co-
lonialismo. Tal fratura se dá sobre um habitar colonial fundado na plantation, uma forma
eurocêntrica de habitar a Terra que marginaliza a diversidade da experiência humana e suas
infindáveis formas de organização do espaço e de apropriação da natureza. Adotamos o
habitar colonial enquanto categoria geográfica para denominar o modelo de organização
espacial da moderno-colonialidade e, assim, entendemos que o Amazonismo é a geografia
imaginativa do habitar colonial na Amazônia.

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A fronteira abissal se materializa ao longo da Rodovia PA-370

Algumas repercussões da fronteira abissal e do Amazonismo podem ser observadas ao


longo de um trecho da rodovia PA-370, no interior do município de Santarém, oeste do
estado do Pará, na Amazônia brasileira. O Pará caracteriza-se por sua ampla integração
à dinâmica do capital transnacional em função das construções de rodovias durante os
governos Juscelino Kubitschek (1956-1961) e da ditadura empresarial-militar, onde tais
vias aceleraram o fluxo de mercadorias e facilitaram a reprodução do capital. A rodovia PA-
370, construída na década de 1970, visava primordialmente interligar Santarém à Usina
505 //
Hidrelétrica de Curuá-una. Esta incentivou a ocupação da área nas margens da rodovia e
com o tempo transformou-se em uma das principais vias de deslocamento de moradores
ribeirinhos até a cidade de Santarém, uma vez que possibilitou a abertura de novas estradas
de terra permitindo a mobilidade e diminuindo o tempo de viagem que anteriormente era
realizada exclusivamente por via fluvial. Com o aumento da movimentação, a rodovia é
ampliada até a cidade de Uruará, às margens da rodovia Transamazônica; após passar pela
Usina Hidrelétrica de Curuá-Una a via atravessa o rio Tutuí e três assentamentos rurais
promovidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na juris-
dição da gleba Pacoval, os Projetos de Assentamento (PA) Corta Corda e Nova União, e o
Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Santa Clara.
O primeiro eixo da PA-370, de Santarém até a Usina Hidrelétrica, é caracterizado
pela presença de comunidades rurais e, cada vez mais, pela construção de condomínios
residenciais de médio e alto padrão e postos de combustível. Em contrapartida, constata-se
a atuação de pequenos comerciantes que vivem em modestas moradias, os quais comercia-
lizam produtos perecíveis e não perecíveis tais como tapioca, pimenta, pimenta-do-reino,
frutas, verduras, feijão e arroz, dentre outros gêneros alimentícios. Notoriamente, veri-
fica-as ainda que as margens da rodovia vêm sendo preenchidas pela produção agrícola
empresarial e monocultora encurralando a população local, ou seja, demonstrando um
avanço de uma lógica espacial de apropriação da terra sobre outra (Figuras 4, 5 e 6).
A introdução das monoculturas de soja e milho foi feita em 1998 expandindo-se a partir
da implantação do porto da empresa Cargill na margem do Rio Tapajós em Santarém
(SILVA e CONCEIÇÃO, 2017). A incorporação e consequente alargamento da produ-
ção modificou a dinâmica da cidade, intensificou os conflitos territoriais e ambientais
envolvendo os povos originários, populações “tradicionais” e os produtores de commodities
agrícolas. O agronegócio se dá através da monopolização do território e impõe uma lógica
de habitar colonial, modificando relações sociais, territórios, paisagens e modos de apro-
priação social da natureza, demonstrando o avanço da fronteira abissal.
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Nesse eixo encontra-se também a Terra Indígena (TI) Munduruku Planalto, um terri-
tório não reconhecido pelo Estado brasileiro e que se encontra ameaçado e invadido pelos
produtores de soja. A TI possui quatro aldeias sendo que na mais próxima à rodovia, de
nome Açaizal, observa-se maior presença do uso da terra para fins de produção de commo-
dities por não-indígenas, conforme observa-se nas Figuras 7 e 8.
506 //
Fig. 4: Comunidades à
margem da rodovia PA 370
– eixo Santarém à Usina
Hidrelétrica de Curuá-una
Fonte: Trabalho de campo
em agosto de 2023.

Fig. 5: Contraste na paisa-


gem à margem da rodovia
PA 370 – plantação agrícola,
comunidades e vegetação
no eixo Santarém à Usina
Hidrelétrica de Curuá-una
Fonte: Trabalho de campo
em agosto de 2023.

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Fig. 6: Encurralamento da
produção camponesa de pi-
menta-do-reino cercada pela
produção agrícola na rodo-
via PA 370 – eixo Santarém
à Usina Hidrelétrica de
Curuá-una. Fonte: Trabalho
de campo em agosto de
507 //

2023
Fig. 7: Contraste entre a
plantação de soja e área
ainda preservada na aldeia
Açaizal, TI Munduruku
Planalto. Fonte: Trabalho de
campo em agosto de 2023.

Fig. 8: Lógica euclidiana de


apropriação do território
sendo aplicada na invasão
da TI Munduruku Planalto
pelo agronegócio da soja.
Fonte: Trabalho de campo
em agosto de 2023.
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Fig. 9: Plantação de milho


nas margens da rodovia
PA 370 – comunidade
Cicero Mendes, assenta-
mento Corta Corda. Fonte:
Trabalho de campo em
508 //

agosto de 2023.
Na figura 8 é mais nítida na paisagem a chegada da fronteira abissal no território an-
cestral uma vez que a monocultura exportadora elimina a diversidade biológica (e cultural)
preexistente para adequar-se às necessidades do mercado, deixando um rastro de simplifi-
cação euclidiana via desmatamento sobre uma geoepistême terra-território-memória-an-
cestralidade, esta última comumente responsável por manter a floresta “em pé”.
O segundo eixo da PA-370, da Usina Hidrelétrica à cidade de Uruará, é nomeado
de “Transuruará” e foi idealizado primeiramente pelo Estado sendo incentivado poste-
riormente por grupos madeireiros. Por esse trecho, que atualmente encontra-se em pavi-
mentação, o percurso entre a cidade de Santarém e a cidade de Uruará diminui 160km se
comparado a outro realizado via rodovia Transamazônica (370km), como demonstra estu-
do de Cazula (2021, p. 300). Com o aumento da indústria madeireira na região e a che-
gada do agronegócio, a rodovia passa a ser um meio de escoamento destas produções. Ao
longo de suas margens tem-se a presença da produção agrícola empresarial monocultora
(Figura 9) e de assentamentos. O território passa a ser um lócus de disputa entre campone-
ses e latifundiários devido a suas distintas maneiras de fazer uso da terra. Este progressivo
contraste modifica a dinâmica social da região contribuindo para o agravamento da ques-
tão fundiária onde a territorialidade da fração da classe dominante ligada ao agronegócio
se expande progressivamente com o auxílio de diversas instituições do Estado, a exemplo
das épocas do colonialismo formal e da ditadura empresarial-militar.
Conforme visto nos dois eixos abordados da rodovia PA-370, a materialização da
fronteira abissal na escala local se dá pela expansão da lógica de apropriação da terra da
monocultura exportadora sobre grupos de base territorial comunitária como pequenos
agricultores e indígenas, processo este que demonstra uma permanência do habitar colo-
nial produzido nos séculos de colonialismo formal e reproduzido pela estrutura de poder
do próprio Estado capitalista, que em Abya Yala apresenta uma natureza colonial. O
Amazonismo, nesse contexto, não se reduz a uma estratégia discursiva ou mera construção
de imagem de mundo, mas repercute na lógica de apropriação privado-estatal da terra na
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Amazônia em geral, e em Santarém em particular.

Considerações finais: anticolonialismo contra Amazonismo

A Amazônia enquanto fronteira apresenta uma perspectiva ideológica e política de


espaço-estoque de recursos a serem explorados por uma racionalidade alienígena à região.
A moderno-colonialidade, da qual a fronteira abissal é reflexo, fratura colonialismo e am-
bientalismo na esteira da separação sociedade e natureza, e produz um habitar colonial que
em parte é sustentado pelo Amazonismo. Nossa inspiração na ideia de Orientalismo de
509 //
Edward Said nada tem de transposição automática, mas sim é uma proposta para pensar-
mos o espaço amazônico com as devidas adaptações e traduções.
Do período colonialista formal, passando pela “independência” e pelo Brasil República,
notadamente o período da ditadura empresarial-militar (mas não só), a Amazônia foi tida
pelo Estado e pelos grandes agentes do capital majoritariamente como um espaço sepa-
rado do restante do país, dotada de “natureza selvagem”, com ausência de seres humanos
(“vazio demográfico”) ou com seres humanos em estágio de “animalização”. A reprodução
da geografia imaginativa do Amazonismo independe de conjuntura estatal mais ou menos
autoritária ou do governo de ocasião: a colonialidade do poder e do saber demonstra uma
continuidade dos ciclos econômicos do pau-brasil às atuais commodities em consonância
com a manutenção da condição dependente e periférica do Brasil no sistema-mundo. Falar
do Amazonismo é também falar de um empreendimento militar brasileiro baseado numa
doutrina de “segurança nacional”.
Outra maneira de conceber a Amazônia é sob o prisma dos conflitos geoepistê-
micos em uma fronteira abissal. Nossa proposição é analisar, em uma perspectiva antico-
lonial, a implantação de grandes projetos de desenvolvimento e o avanço do agronegócio
sobre o habitar de povos de base territorial comunitária a partir do verbo geografar, em que
as marcas espaciais (geo-grafias) denotam formas de apropriação do território, da natureza
e o reflexo de saberes-epistemes na organização espacial. Por conseguinte, a lógica colonial
imprime conflitos territoriais, ambientais e geoepistêmicos, e a exposição de fotografias
dos arredores da rodovia PA-370, no município de Santarém, estado do Pará, demonstrou
expressões espaciais em escala local da fronteira abissal.
A Amazônia é, para utilizar uma expressão de Castoriadis (1982), criação social-histórica.
Mesmo do ponto de vista biogeográfico, é produto de uma interação entre humanos e não
humanos. O que hoje chamamos de Amazônia é construção social-histórica baseada em uma
feição natural. Para combater o Amazonismo é preciso evidenciar o habitar colonial no espa-
ço amazônico e regionalizá-lo a partir da diversidade de conflitos geoepistêmicos na fronteira
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

abissal, considerando que os povos em luta das matas, das águas, das várzeas, dos campos e
das periferias urbanas articulam uma proposição de existência sustentada nas epistemes ama-
zônidas antagônicas ao Estado colonial e ao modelo civilizatório por ele perpetrado.

Agradecimentos

Agradecemos aos pesquisadores da UNESP Messias Modesto dos Passos e Diogo


Laércio Gonçalves pela parceria nos trabalhos de campo necessários para a concretização
deste artigo.
510 //
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511 //
A dinâmica do conceito fronteira.
Um estudo na perspectiva da fronteira
entre Moçambique e Tanzânia

Joel Antonio Lameco1

Introdução

Este texto tem em vista contextualizar a génese e a evolução do conceito fronteira, a sua
tipologia e o respectivo enquadramento na perspectiva da geopolítica por forma a encontrar
as bases que suportam a descrição das condições das fronteiras do território moçambicano.
A preocupação pelo estudo das fronteiras é impulsionada pelos questionamentos que
tem sido levantada a respeito da sua pertinência, na medida em que em regiões economica-
mente estáveis e sob ponto de vista securitário tende se a demonstrar a irrelevância das fron-
teiras. Entretanto, em regiões com um nível de desenvolvimento económico visivelmente
diferenciado com problemas securitários ou de ordem política, existe uma apreciação gene-
ralizada da necessidade de consolidação das fronteiras físicas. Neste estudo, constitui motivo
de reflexão a tipologia das fronteiras, a sua utilidade e o processo histórico que ditou a sua
definição. De um modo geral, nota-se que as fronteiras servem de barreiras contra os que ten-
cionam invadir um determinado território ou Estado. Porém, o seu papel tem sido colocado
em causa devido ao desenvolvimento tecnológico que tem imposto novos tipos de fronteiras, As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

caracterizadas pela difícil gestão e controlo. Este desafio é acrescido particularmente para os
países em vias de desenvolvimento por conta das fragilidades nas tecnologias informação e
comunicação. Neste contexto, das demais questões que tem sido levantada nos estudos ine-
rentes as fronteiras interessa associar o presente estudo com as seguintes: Quão significativas

1
Joel António Lameco, fez o Curso de Geografia, Bacharelato(2007), Licenciatura(2009) e Mestrado(2014) na
Universidade Pedagógica em Maputo – Moçambique. É actualmente estudante do Curso de Doutoramento
em Geografia na Especialidade de Geografia Humana na Universidade do Minho. De entre as suas áreas de
pesquisa destacam-se o estudo de fronteiras internacionais, movimentos migratórios e processos de ensino
e aprendizagem da disciplina de Geografia. É docente não efectivo da Universidade Joaquim Chissano e da
Academia de Ciências Policiais – joelameco@gmail.com
513 //
são as fronteiras num sistema fortemente globalizado? Qual é o papel da fronteira diante da
aparente irrelevância imposta pelo fenómeno da globalização? Através destas inquietações,
descreve-se neste capítulo elementos que poderão contribuir para a harmonização das impo-
sições da globalização e a salvaguarda da pertinência das fronteiras.

A evolução do conceito fronteira

O conceito fronteira esteve desde sempre associado a delimitação e separação de ter-


ritórios para satisfazer os interesses espaciais do homem na perspectiva de dominar. A
percepção deste conceito reflete a construção sócioespacial humana, sendo que ao longo
do processo histórico o seu significado foi evoluindo.
Conforme Ferrari, “a sua abrangência se tornou, ao longo de muitos anos, rígida, in-
flexível, cingindo-se a delimitar e a separar nações e soberanias, desconsiderando uma série
de processos dinâmicos” (Ferrari, 2014, p.11).
Mas nem sempre foi assim, segundo Machado2 (citado por Gomes, 2014, p.260)
“a fronteira não nasceu como um conceito, mas sim como um fenómeno da vida social,
indicando a margem do mundo habitado”. Na perspectiva dos autores referenciados, o
entendimento sobre o conceito fronteira remete a uma abordagem geográfica, pois, o seu
significado é suportado por factos e fenómenos geográficos. De igual maneira, pode no-
tar-se que apesar de relativa diferença na génese deste conceito, vários autores associam-no
com o território, limites e a soberania dos Estados.
Afirma-se igualmente que o surgimento da fronteira está associado ao reconhecimento
espacial da presença do outro, assim é entendido como um espaço que funciona como
uma ponte de separação de comunidades pertencente a ambas as partes. Por um lado,
Gomes (2014, p. 260) destaca que “é um espaço vago, impreciso, mais percebido do que
delimitado” (p. 260). Porém, Patrício remete para o conceito de fronteira no sentido lato,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ao descrever que “é uma linha imaginária que delimita o território (terrestre, fluvial, marí-
timo e aéreo) de um determinado Estado, separando-o de territórios adjacentes” (Patrício,
2014, p. 82). Convém salientar que esta a questão não se verifica em muitos territórios,
todos conhecem os casos em que a linha de fronteira mostra evidências físicas, notórias e
precisas (e.g. a fronteira dos EUA com o México, ou a de Israel com a Palestina).
Por sua vez, Steiman at all (2002, p. 5) refere que durante o período compreendido
entre os séculos XIII e XV, a palavra fronteira surgiu na maioria das línguas europeias,

2
Machado, Lia O. (1998). Limites, Fronteiras e Redes. In: Strohaecker et al (args) Fronteiras e Espaço Global.
Porto Alegre: AGB.
514 //
derivada do latim front, entretanto não designava originalmente uma linha, mas sim uma
região, de modo a cumprir um objetivo de separação. Neste sentido, destaca-se que a
principal característica na Europa Medieval residia na herança dos feudos por indivíduos
ligados por laços de vassalagem. Conforme pode notar-se, a delimitação das fronteiras
assentava num sistema de direitos hereditários e históricos. Entretanto, Rodrigues (2015)
entende que “o conceito fronteira pode ser visto como sinónimo de fronte, estar à frente,
como se ousasse representar o começo de tudo onde deveria representar o fim” (p.141).
Entretanto, o conceito fronteira tem estado a acompanhar a evolução da humani-
dade impulsionada pela dinâmica imposta pela globalização, conferindo-lhe, assim, vá-
rios significados e papeis bem como novos percursos. Neste contexto, Martins3 (citado
por Rodrigues, 2015, p.145) descreve o conceito fronteira como sendo simultaneamente,
“lugar da alteridade e expressão da contemporaneidade dos tempos históricos”. O autor
agrega ainda na abordagem sobre fronteira, a dimensão temporal e não exclusivamente a
espacial, pois, entende a fronteira como zona que separa realidades espaciais distintas, em
tempos desiguais. Diante deste entendimento, tornou-se pertinente à percepção e dis-
tinção dos conceitos fronteira e limite, por forma a aclarar o reconhecimento espacial do
outro e impulsionar o carácter político da fronteira com maior consistência e precisão.
Em relação à distinção entre limites e fronteiras, numa perspectiva de diferenciar a apli-
cabilidade dos dois conceitos, Cichoski (2020, p.145) chama atenção à necessidade de ob-
servar as relações entre os humanos. O autor defende que todas as relações decorrem dentro
de um limite estabelecido que serve para demarcar o território. Neste sentido, “o limite pode
ser ideológico, porque justifica a territorialidade e as formas de produção, expressando o
poder”(Cichoski, 2020, p.145). O autor continua referindo que fronteira é a forma mais ex-
pressiva de controle de um território, contudo, defende igualmente que tanto o limite assim
como a fronteira envolvem a reprodução social num determinado tempo e espaço.
Por sua vez Gomes (2014), distingue o limite da fronteira, referindo que “o limite é reco-
nhecido como linha, e não pode, portanto ser habitado, ao contrário da fronteira que, ocupan-
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do uma faixa constitui uma zona, muitas vezes bastante povoada” (p.261). O autor continua
salientando que o limite só foi traçado a partir do reconhecimento da fronteira, ao passo que a
fronteira é balizada pelo próprio traçado dos limites. A questão da criação de limites é vista como
pressuposto para a implementação do ordenamento político e jurídico, específico e autónomo,
diferente do que vigora ao se atravessar a fronteira para outro território. Entretanto, Rodrigues
(2015, p.140), entende que não se pode deixar de observar que esses conceitos mudaram, na
medida em que a fronteira não é mais considerada simplesmente como um limite físico ou

3
Martins, J. de S. (1996). O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de
expansão e da frente pioneira. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP. São Paulo.
515 //
político, desprovido de sujeitos e relações, da mesma forma que o território não é mais com-
preendido somente como uma demarcação espacial, dotado de características físicas e sociais.
Neste contexto, Mongiardim (2016, s/p), no seu discurso sobre a evolução do conceito
fronteira, afirma que este conceito envolve um enorme potencial de diversos elementos míti-
cos, religiosos, étnicos, sociológicos, históricos, culturais, políticos, económicos, geográficos
e estratégicos na medida em que concorre para a modificação das diferentes identidades das
demais comunidades para além de delinear em várias perspectivas o mapa do mundo.
Na realidade o conceito de fronteira tornou-se fundamental, como prática espacial na
edificação dos Estados, na perspetiva da estabilidade, segurança e soberania, como revelam
Steiman e Machado (2002). Na reflexão sobre o conceito fronteira no âmbito de exercício
do poder dos Estados e da soberania, Rodrigues (2015, p. 141) destaca igualmente o con-
ceito de território dado que o poder é exercido por sujeitos num certo espaço, definido por
fronteiras historicamente construídas.
Em relação às primeiras fronteiras africanas, vários autores convergem ao afirmar que
surgem no contexto dos entrepostos comerciais ao longo da costa, promovidos pelos na-
vegadores asiáticos (imigrantes de origem árabe) por volta do ano 900 d.c. Os aludidos
entrepostos comerciais eram essencialmente:
Lugares de troca, de fluxos e funcionaram como as primeiras fronteiras de
Moçambique. Obviamente não uma fronteira que ligasse dois territórios contíguos,
mas sim uma área de contato entre pessoas e de troca de mercadorias e que de certa
maneira fazia a transição entre duas culturas diferentes, por meio do comércio. Esse
comércio gerava alterações no território também no interior do continente. As al-
deias ao longo do tempo foram se tornando mais complexas devido ao crescimento
demográfico (...). Esse poder político foi se aumentando à medida que o comércio
com os asiáticos se desenvolvia até ao momento em que as elites locais começaram a
tomar conta das fontes de recursos minerais (Ouro e Ferro), Gomes (2014, p.265).
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Conforme pode perceber-se, a questão das fronteiras africanas teve a sua génese asso-
ciada ao entendimento da necessidade de uso e aproveitamento do espaço geográfico, antes
da chegada das potências colonizadoras. Neste contexto, autores como Da Rosa (2016),
Zeca (2018) e Mahavene (2020) defendem a ideia de que as fronteiras africanas foram
desenhadas arbitrariamente e de forma artificial pelas potências colonizadoras, dividindo
grupos étnicos entre dois ou mais Estados, daí que representam um conflito hibernado.
Nota-se que a problemática da delimitação de fronteiras se arrasta há vários anos, pois,
na Conferência de Berlim, conforme afirma Seda (2017) e Zeca (2018) não foi possível es-
tabelecer o princípio da “ocupação efetiva” nem decidir sobre todas as fronteiras africanas.
Na sua maioria foram definidas na base de tratados assinados posteriormente. Contudo,
516 //
a indefinição das fronteiras no espaço físico prevaleceu, tendo sido consolidado nas cartas
usadas nos tratados, propiciando deste modo à ocorrência de vários problemas de natureza
política, social, antropológica e económica.
Entretanto é sabido que a vedação das fronteiras inviabiliza a circulação de pessoas
e fauna, por outro, a porosidade das fronteiras remete para a circulação desregrada da
população. Assim sendo, na base dos demais impactos das vedações fronteiriças, Silva
(2018, s/p) refere que, num cenário de colapso fronteiriço, os fluxos ilegais internacionais
avolumam-se ao ponto de, comparativamente, aos fluxos legais (controlados pelo Estado)
serem considerados irrisórios.
O entendimento do colapso fronteiriço associa-se à questão da porosidade das fronteiras,
facto característico de muitas fronteiras dos países africanos nas quais se destacam as fron-
teiras moçambicanas. A este propósito Seda (2017) refere que “o entendimento ao nível de
alguns países da SADC4 assenta na ideia de que Moçambique é corredor de imigrantes clan-
destinos, de drogas e de armamento, dado o nível de porosidade das suas fronteiras” (p.09).
Por conta da percepção da porosidade das fronteiras Moçambicanas associado ao entendi-
mento de que o País é tido como corredor da imigração clandestina e de drogas impulsionou
a alteração no protocolo de livre circulação de pessoas e bens na SADC.

Tipos de fronteira

A tipologia das fronteiras pode ser descrita de várias maneiras dependendo da pers-
pectiva com que se classifica sendo que, para o presente estudo destaca-se a classificação
feita por Gonçalves (2018, p.572) relacionada com a necessidade de compreender os mo-
vimentos ou fluxos que ocorrem na zona fronteiriça. Nesse contexto, os autores abordam
a questão da fronteira em três dimensões distintas, contudo, complementares: fronteira
física, geográfica ou territorial; fronteira político-social; e fronteira cultural religiosa, sendo
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que descrevem cada uma das dimensões da seguinte forma:
Na primeira dimensão, geográfico-territorial, o migrante tropeça com a polícia
ou o exército, as exigências correspondentes, portos e aeroportos, dificuldades de
documentação. Encontra muros visíveis e invisíveis. Muitas vezes a família se divide
e muitos podem perder a vida nas areias do deserto, nas ondas do mar ou nas arma-
dilhas das florestas e montanhas. Na segunda dimensão, político social, o migrante
tropeça com as leis migratórias do país de destino, o que depende de decisões po-
líticas. Neste caso, a fronteira desloca-se para a capital do país para os gabinetes do

4
Sigla em inglês que em português significa Comunidade de Desenvolvimento dos países da África Austral.
517 //
governo. Na terceira dimensão, cultural-religiosa, o migrante tropeça com mentali-
dades, expressões e custumes diversos. “Aqui, até a Igreja e os Santos são diferentes”,
dizem com frequência, (Gonçalves, 2018, p.572).

Embora não reuna consensos, importa de seguida descrever a classificação das fronteiras
continentais em naturais e artificiais, pois, determinados autores assumem que todas as frontei-
ras são artificiais. Contudo as fronteiras naturais5 são aquelas que são representadas por sinais
naturais, tais como montanhas, rios (fronteiras fluviais), lagos (fronteiras lacustres), entre ou-
tros obstáculos naturais. De acordo com Dopcke (1999) este conceito é contestado porque “as
barreiras naturais não representam fronteiras no espaço cultural, político ou económico criado
pelas sociedades humanas mas, pelo contrário, muitas vezes, vias de comunicação e interligação”
(p.97). Entretanto, o mesmo autor refere que as fronteiras artificiais são aquelas que são demar-
cadas com sinais colocados pelo Homem habitualmente designados por marcos fronteiriços
com o intuito de sinalizar o limite fronteiriço. Neste sentido, Dopcke (1999, p. 97) refere que
“são artificiais porque elas foram delimitadas desrespeitando os espaços culturais, políticos e
económicos”. O autor defende a necessidade de se estabelecer a relação entre as especificidades
da fronteira com as dinâmicas do cotidiano do homem no espaço em referência. Portanto, as
fronteiras artificiais são igualmente designadas de fronteiras convencionais ou matemáticos dado
que, são constituidas por linhas definidas por uma série de pontos determinados por processos
de cálculos matemáticos. A distinção entre as fronteiras artificiais e naturais é igualmente enal-
tecida por Dias (2005), ao referir que “as fronteiras naturais tendem a ser as mais estáveis que as
fronteiras artificiais, na medida que estas, na sua maioria, separam etnias, ou grupos com mesmo
histórico em particular quando representam um obstáculo à passagem das pessoas” (p.227).
Entretanto, Rosière6 (2007), (citado por Carneiro, 2016, p.21) descreve a tipologia
das fronteiras onde identifica três tipos de fronteira:
• Morfológico, ligado à natureza do traçado ou a permiabilidade da fronteira;
• Genético, ligado ao mundo de formação da fronteira; e
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• Controverso, relacionado ao grau de contestação da fronteira.

Na mesma abordagem o autor chama atenção a um conjunto heterogêneo de tipos de


fronteira, onde estão incluídas: as organizações regionais; as fronteiras internas ou limites
administrativos; e as fronteiras sócio-culturais. Neste sentido, de acordo com Carneiro
(2016) a tipologia heterogênea das fronteiras é descrita nos seguintes termos:

5
Fronteiras Naturais “são uma metáfora, porque a escolha de um marco é sempre uma escolha política,
ainda que o marco físico continue sendo um rio ou uma montanha. Mas porque esse rio foi escolhido e não
“aquele” outro logo alí à frente”, (Cataia, 2001, p. 10).
6
Rosière, S. (2007). Géographie politique et Géopolitique: une grammaire de l’espacepolitique. Paris: Ellipes.
518 //
As fronteiras socioculturais são descontinuidades maiores de natureza econó-
mica ou étnica, às vezes visíveis no espaço (paisagem) e geralmente sensíveis de um
ponto de vista político. No entanto, os limites entre duas áreas sócio culturais dife-
rentes – de um ponto de vista linguístico, confessional ou sócio económico – nem
sempre é claro, sendo a evolução especial dos idiomas um caso especial. As fronteiras
linguísticas são objectos difíceis de entender, pois as linguas podem evoluir ou se
sobrepor, haja vista que elas não são objectos claros, cujos falantes ocupam um terri-
tório com a exclusão de qualquer outro, (Carneiro, 2016, p.21).

Na perspetiva desta pesquisa, recorreu se igualmente a tipologia descrita por Cataia


(2008, p.11) baseando se na classificação de Ratzel[1] (1987; 1988), onde divide as fron-
teiras em três tipos designadamente, fronteiras políticas, fronteiras naturais e fronteiras ar-
tificiais. Entretanto, o autor divide as fronteiras políticas em seis subtipos, a saber: simples,
dupla, fechada, descontínua, deficiente e elástica.
A classificação do Ratzel revela-se importante neste estudo porque abarca algumas
características da fronteira entre Moçambique e Tanzânia pois, sob ponto de vista polí-
tico ela é deficiente. Estas características advém da dificiência ou ausência de referências
exactas da linha de fronteira ao longo do Rio Rovuma, acrescido as constantes variações
do seu trajecto impulsionadas pela variação do seu caudal em concordância com as es-
tações do ano. Na perspectiva política, destaca-se a fronteira elástica pelas similaridades
na sua ceracterização com a fronteira em estudo, na presente pesquisa. A imprecisão da
linha de fronteira entre Moçambique e Tanzania é igualmente descrita por Cruz (2009,
s/p) ao afirmar que “fontes mais modernas e de larga difusão pela internet (Google
Earth), induzem nesta zona a situações que não correspondem à verdade e que albergam
alguma perigosidade, pela crença que muitos têm na sua exatidão”. O autor refere que
de acordo com os dados refletidos pela Google Earth, Moçambique seria prejudicado em
cerca de 100 quilómetros quadrados a favor da Tanzânia por má marcação dos limites
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
fronteiriços entre os dois países.
A discunção sobre a geografia das fronteiras, em particular a sua tipologia é igualmente
abordada por Ancel7 (1938), um dos autores que se dedicou na conceitualização e classifi-
cação das fronteiras e dos limites. Neste contexo, Cataia (2001, p.28), destaca algumas per-
missas propostas por Ancel na sua reflexão sobre a Geografia das fronteiras, designadamente:
• A inexistência de fronteira natural;
• O entendimento da fronteira como sendo uma isóbara política que fixa, durante
algum período, um equilíbrio entre duas pressões;

7
Ancel, J. (1938). Geographiedes Frontieres. Paris, Gallimard.
519 //
• As fronteiras são barreiras políticas instituidas pelos homens;
• A fronteira como sendo por si só, geradora de transformações sociais.

Na base das premissas descritas por Ancel (1938), Cataia (2001, p.28) tipificou as
fronteiras em quatro grupos a saber, fronteira plástica, fronteira moderna, fronteira física
e fronteira humana.
As premissas descritas por Ancel (1938) convergem para a classificação do Ratzel
(1988), na medida em que os dois autores baseiam-se na não existência de fronteiras natu-
rais ou na sua artificialidade, no entendimento de que as fronteiras são desenhadas na base
dos princípios e propósitos políticos.
Importa destacar a aprecição de Carneiro (2016, p.24) ao defender que os tipos de
fronteiras estão directamente relacionados com os processos de transfronteirização8, isto é:
• A fronteira que divide o espaço de vida de um povo;
• A fronteira que gera ao longo da sua extensão tecidos económicos e sociais; e
• A que redifine em função de conflitos geopolíticos ou interesses económicos na era
do globalismo.

Em relação às modalidades para a adpção de estratégias de sobrevivência associadas as


oportunidades específicas das zonas fronteiriças (processos tranfronteiriços) Carneiro (2016,
p.24) defende que estes podem configurar formas simples ou mais sofisticadas de acordo
com as particularidades de conhecimento de determinado actor, do tipo de actor, e das assi-
metrias de cada sistema nacional: cruzamentos frequentes (movimentos pendulares moradia
– trabalho); relações familiares; uso de serviços complementares; acesso a recursos; busca de
vantagens; redes empresariais; localização binacional; gestão territorial e ambiental comum.

A importância das fronteiras


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A importância das fronteiras esta acente no argumento segundo o qual “não existe
Estado sem território, assim como não existe território sem compartimentos políticos, ou
seja a História de um povo é inseparável da extensão do país que ele habita”, (Cataia, 2001,

8
Carneiro (2016, p.24) recorrendo a Ligrone (2006) define transfronteirização como um conjunto de pro-
cessos de aproveitamento e valorização de uma fronteira, limite territorial que separa dois sistemas políticos,
económicos e ou sócioculturais. No âmbito desses processos os habitantes de ambos os lados, transcendem a
fronteira (imposta ou herdada) e a incorporam em suas estratégias de vida através de múltiplas maneiras. A
transfronteização ocorre em um recorte territorial de geometria variável, dependendo do processo conside-
rado (familiar, econômico, profissional, legal ou ilegal, formal ou informal, etc.), pode acontecer em núcleos
urbanos, áreas rurais, parques naturais, enclaves produtivos e em territórios dispostos em redes.
520 //
pp.16-17). O autor recorrendo a Braudel9 (1990), continua realçando que a extensão de
um país é um reservatório onde dormem as energias que a natureza depositou a semente
mas seu emprego depende do homem. Por outro lado refere que grupos humanos e não-
-humanos (os não humanos são representados pela configuração territorial, como pontes,
tuneis, lagos, florestas, etc) se nutrem mutuamente, já que base material e existência são
inseparáveis. Por outro lado, as fronteiras revelam se importantes no uso dos territórios,
pois, a organização política é um mecanismo fundamental para dar resposta aos constran-
gimentos de índole territorial.
Pode notar se através das demais abordagens que as fronteiras evoluiram à medida em que
novas formas de produzir foram sendo desenvolvidas, sendo que a divisão territorial e social do
trabalho juntam-se a divisão política do território, na base da produção e de todo poder políti-
co. Contudo, prevalescem desafios no entendimento da importância das fronteiras devido aos
efeitos da evolução das tecnologias de informação e comunicação e da globalização.
Para satisfazer algumas das questões que problematizam a pertinência das fronteiras,
Raffestin(1993), (citado por Cataia, 2001, p.44) descreve cinco funções que as fronteiras
assumem, designadamente, legal, controle, fiscal, ideológico e militar, conforme o descrito
na tabela abaixo.

Funções das fronteiras

Nr. Função Descrição da função


Delimita um território político, ou seja, um Estado, um estado federado, um município,
01 Legal
ou outras denominações como província, distrito, etc.
02 Controle Diz respeito à inspenção do trânsito, de homens, bens e serviços.
03 Fiscal Representa um instrumento da política económica, como os proteccionismos.
04 Ideológico Marca territórios e esconde potenciais conflitos.

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05 Militar Seria hoje ambígua, porque armamentos sofisticados tornariam as fronteiras absoletas
Fonte: Elaborado pelo autor

As funções das fronteiras estão relacionadas a sua importância, daí que Carneiro (2016)
descrevendo a importância das fronteiras alicerçando-se nas suas funções refere que, “em
tempos de paz possuem três principais funções: legal, fiscal e de controle” Carneiro (2016,
p.22). Para o autor, a função legal significa que no interior de uma linha política, que de-
limita o território nacional, prevalece um conjunto de instituições jurídicas que regem a
existência de uma sociedade política. A função fiscal tem por objectivo defender o mercado

9
Braudel, F. (1990).L’Identitie de la France – Espace et Histoire. Paris, Flammarion.
521 //
interno do Estado-nação. Por fim, a função de controle tem por objectivo vigiar bens e
pessoas que cruzam a fronteira do território nacional.
Conforme pode notar se na descrição de Cataia(2001) e Carneiro(2016), a relevân-
cia das fronteiras é proporcional ao nível do equilíbrio no desenvolvimento regional, na
perspectiva económica, social e de segurança, dado que quanto maior for equilibrado o
desevolvimento entre os Estados de uma determinada região o papel das fronteiras tende a
ser reduzido e o inverso torna-as cada vez mais importante e com mais atributos.
Contudo, Carneiro (2016) ressalva que, “no actual cenário político internacional as
fronteiras aparecem como lugar central, seja no combate aos imigrantes ilegais, seja nas
rotas dos diversos tipos de tráfico (drogas, armas, biopirataria, pessoas, atc.)” (p.23). Os
fenómenos de carácter criminal associados as zonas fronteiriças induzem a violação da lei
que estabelece os limites dos Estados, devido ao facto de serem locais onde determinadas
leis terminam e iniciam as de outro Estado vizinho. Esta situação têm concorrido para a
prevalência dos crescentes focos de corrupção no grupo dos gestores dos postos de travessia
e de singulares que se aproveitam das oportunidades de câmbio da moeda e dos respectivos
lucros fora da lei estabelecida.
Entretanto Recalcati10 (2015) (citado por Filho et al 2018, p.141), na sua abordagem
sobre a importância das fronteiras defende que “a existência das fronteiras é necessária para
a vida de uma cidade ou nação, como também para a vida individual, pois os indivíduos
precisam de limites para existir, tratando-se de uma questão de identidade” (p.141). O autor
recorrendo a correntes da psicanálise, identifica na fronteira o ensinamento de que a vida
psíquica precisa ter seus próprios limites, não sendo em si mesma patológica nem delirante,
mas afirma que diz respeito a um pólo fundamental do processo de humanização da vida.

As fronteiras e a geopolítica
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A geopolítica é referenciada por várias vezes como sendo recurso na percepção do impacto
das estratégias adoptadas pelos Estados em relação às dinâmicas do espaço geográfico sob sua
jurisdição e na forma como os governos se posicionam perante as demais ameaças globais.
Neste sentido, Zeca (2012) referindo se a vários autores, diz que “a Geopolítica de um Estado
tem como objetivos principais a segurança territorial, sua expansão, a busca de capacidade para
influenciar os outros Estados e o alcance de prestígio” (p.06). Deste modo, o autor defende que
para a execução desses objetivos recorre-se ao uso da força militar, a diplomacia, a propaganda,
o desenvolvimento da indústria do armamento bélico, entre outros mecanismos.

10
Recalcati, M.(2015). Lo straniero interiore che preme alle frontiere. la Repubblica.
522 //
A relevância de associar a geopolítica às fronteiras é enaltecida por Dias (2005) ao
afirmar que “a Geopolítica dedica-se ao estudo das constantes e das variáveis do espaço
acessível ao homem e na construção de modelos de dinâmica do Poder, projetando o
conhecimento geográfico no desenvolvimento e na atividade da Ciência Política”(p.60).
O dilema dos Governos perante as demais ameaças globais devido às complexidades da
geopolítica das fronteiras deve-se ao facto de a descrição das fronteiras ter deixado de limi-
tar se somente em fronteiras físicas11 (mares, rios e montanhas), passando a abarcar as fron-
teiras estruturais (sociedade, civilização e cultura) e convencionais (políticas). Mongiardim
(2016) entende que nas fronteiras convencionais concentram-se vários traçados com sig-
nificados e funções diversificadas, a destacar as fronteiras políticas, económicas, de defesa,
de segurança, cooperação, digitais, conhecimento, ideológicas, demográficas entre outras.
O autor cita como exemplo a complexidade das fronteiras digitais dado que, sobrepõe-se
às fronteiras físicas, tal é o caso das fronteiras geradas pela internet.
O impacto da geopolítica das fronteiras é igualmente descrito por Neves12 (2000) (ci-
tado por Rodrigues 2015, p.142) ao descrever que “as fronteiras tradicionais estão sendo
rompidas na geopolítica atual”. Assim sendo, o autor descreve como exemplo a tentativa
de globalização “dos espaços económicos nacionais”, desencadeada por instituições como,
Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e
o Banco Mundial. Na mesma perspectiva são referenciadas as alianças, dos acordos e da
construção dos chamados blocos económicos.
As abordagens dos autores anteriormente referenciados demonstram que o entendi-
mento sobre a dimensão da fronteira tem estado a evoluir à medida que a humanidade vai
registando alguma dinâmica. Este fenómeno torna-se evidente com o crescente fenómeno
da globalização que remete a novas variáveis na sua descrição, dadas às novas funções, sig-
nificado e consequente cruzamento dos novos traçados. As fronteiras abstratas tal é o caso
das associadas ao ciberespaço, sobrepõem-se às fronteiras geopolíticas, como por exemplo,
as redes sociais dado que elas são reais nos seus efeitos políticos, sociais, culturais e econó-
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micos, na atividade humana e no dilema que se coloca aos Estados em virtude das opções
entre a liberdade ou a necessidade de proteção do espaço virtual. Esta realidade reforça a
ideia do Seda (2017, p.08) ao defender que o conceito de fronteira integra por um lado a
capacidade dos Estados assegurarem a defesa dos seus interesses nacionais dentro dos seus

11
Seda (2017:07) descreve a fronteira física na perspectiva de Westfaliana de soberania nacional que encara a
fronteiras estatais como linhas estratégicas caracterizadas pela presença do aparato militar visando defender
o Estado contra qualque ameaça externa.
12
Neves, G.R.(2000). Fronteiras em Mutação. “Deletando” a memória? In: Castro, I.E.de; Miranda, M;
Egler. C.A.G.(Orgs). Redescobrindo o Brasil: 500 anos depois. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
523 //
limites territoriais contra ameaças externas e por outro, exige a capacidade de equilibrar
interesses de atores do sistema internacional com os interesses nacionais.
Desta forma, considera-se pertinente a reflexão em torno da geopolítica das fronteiras,
particularmente para os territórios com abundância de recursos energéticos. Da mesma
maneira destacam-se os territórios situados em posição geoestratégica privilegiada compa-
rativamente a muitos países localizados no interland.

A porosidade da fronteira e suas implicações

A porosidade reflete uma condição entre a permeabilidade e a impermeabilidade abso-


luta ou seja, ainda que denote uma situação de fluidez transnacional da faixa de fronteira,
a porosidade transmite uma ideia de fluxos permitidos. Neste sentido, Dopcky (1999),
Cataia (2001) e Rodrigues (2015) defendemque os fluxos das migrações que decorrem
através das facilidades condicionadas pela porosidade superam as migrações controladas e
devidamente registadas. No mesmo contexto, Defarges, (1993) defende que “a permiabi-
lidade mostra ao Estado a sua fraqueza e ineficácia perante tudo aquilo que está interna-
cionalizado (movimento de dinheiros, homens, de bens...)” (p.132). Entretantanto, Filho
et al (2018, p.146) recorrendo ao psicanalista italiano Massimo Recalcati, afirma que “as
fronteiras são necessárias para gerar identidade e sentido de pertencimento”(p.146). Neste
sentido, afirma-se que as fronteiras sadias são as porosas, permeáveis, aquelas que permi-
tem o encontro com a alteridade, pois, o contrário acabam aprisionando ou representando
cárceres de medo. Portanto Filho at al (2018) na sua descrição positiva da porosidade
fronteiriça afirmam que:
(...) o limite serve para tornar a vida própria, sendo que esse limite, para não
sufocar, deve tornar-se “poroso”, permeável, um local de trânsito. Caso contrário, se
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a borda toma a forma de barreira, dos custumes inflexíveis, se se torna guarnição,


identifica-se um lugar impossivel de cruzar, não ampliando a vida. A necessidade de
fronteira deve, portanto, unir-se à necessidade de circulação e de trânsito através da
fronteira, Filho et al (2018: 146).

Os autores anteriormente referenciados, descrevem a porosidade fronteiriça de forma dis-


tinta, sendo que, a abordagem de Filho et al, enquadra-se em regiões com um nível de desen-
volvimento e estabilidade (abundância de recursos) relactivamente equilibrada, enquanto que
em regiões com desenvolvimento disproporcional, o reforço da segurança fronteiriça torna-se
indispensável(revela-se de grande importância). Nestes casos, em contexto de porosidade os
fluxos ilegais constituem um dos principais constrangimentos em particular nos países em vias
524 //
de desenvolvimento. Esta permeabilidade facilita os fluxos de capitais, de armas, droga, entre
outros produtos que o seu transporte necessita de uma autorização prévia pelas autoridades.
Assim sendo, em linhas gerais o nível de porosidade da fronteira, depende da condição
da força da fronteira, por outro lado pode se salientar que, a condição da porosidade das
fronteiras está diretamente ligada à intensificação do processo de globalização, daí que, o
Estado é chamado a actuar conjuntamente com outros Estados e também com os agentes
privados tal é o caso dos bancos comerciais.
Entretanto, as abordagens teóricas sobre a porosidade das fronteiras e as suas implica-
ções remetem ao entendimento de várias perspectivas da permiabilidade fronteiriça, sendo
de destacar:
• A porosidade associada a indefinição ou falta de clareza dos limites fronteiriços;
• A porosidade associada a actos de corrupção da polícia e outros agentes nos postos
fronteiriços e ao longo da linha de fronteira que facilitam a travessia clandestina de
pessoas e bens;
• A porosidade por conta das limitaçoes tecnológicas e pobreza, que os Estados em
vias de desenvolvimento enfrentam diante das organizações mundiais emergentes
com tecnologia de ponta e capital, impondo as suas políticas; e
• A porosidade motivada pelos acordos regionais tendo em vista a facilitação da mo-
bilidade de pessoas e bens.

Importa referir que no caso das fronteiras dos países africanos, a problemática da poro-
sidade das fronteiras terrestre regista-se desde a sua concepção, facto que tem condicionado
conflitos fronteiriços latentes em alguns países. Deste modo, a imigração ilegal e o contra-
bando de produtos (relacionados com os recursos florestais e minerais), o tráfego de pessoas
e órgãos humanos, trafego de drogas e de armamento bélico, tende a ser uma constante.

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Considerações finais

O conceito fronteira tem estado a registar uma evolução notável ao longo da história
da humanidade impulsionado pelas dinâmicas da sociedade e da globalização. Este fenó-
meno faz com que a sua tipologia e as respectivas funções sejam cada vez mais complexas,
impondo deste modo aos governos dos demais Estados um dinamismo tendo em vista a
defesa da soberania dos seus territórios. Nota-se que os desafios impostos pela globalização
na gestão das múltiplas funções das fronteiras são mais penalizadores para os países em vias
de desenvolvimento pois, estão associados ao desenvolvimento das tecnologias tidas como
uma das limitantes deste grupo de países. A permeabilidade das fronteiras é descrita como
525 //
benéfica em regiões estabilizadas e como fator de instabilidade em regiões com desenvolvi-
mento diferenciado tal é o caso das fronteiras africanas e as moçambicanas em particular.

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MO%C3%87AMBIQUE_An%C3%A1lise_Geopol%C3%ADtica_Geoestrat%C3%A9gica_e_
Geoecon%C3%B3mica_da_Import%C3%A2ncia_do_Lago_Niassa
527 //
Cooperación transfronteriza y despoblación:
instrumentos jurídico administrativos para
conseguir la integración territorial

Pilar Talavera Cordero1


José Luis Domínguez Álvarez2

Mas, afinal, o mar que a Beira e esta sua Cidade não receberam de companhia per-
manece, de outro modo, há oito séculos diante de nós – e nunca quisemos vê-lo. Já não se
vigia nem se conquista, já não carrega perigos recônditos e não se chama Castela! Chama-
se Ibéria! Esta é a Cidade que está mais vocacionada que nenhuma outra para ser o lugar
de um diálogo com aqueles que foram nossos adversários durante séculos.
Eduardo Lourenço3

1. Notas preliminares de las fronteras

En el último siglo debido a la globalización y la creación de la Unión Europea (en


adelante, UE) se ha cambiado la forma de entender las fronteras. Previamente las fronteras
eran concebidas como barreras entre países que impedían la permeabilidad entre estos. La
frontera era para el Estado un ámbito de dominio que se traducía en un monopolio sobre
la seguridad, la economía y la cultura, entre otras materias4. La frontera física iba más allá
de una mera barrera de defensa o protección frente a las amenazas externas de otros países,
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funcionando como una línea de división que dificultaba la creación de sinergias entre
Estados que se manifestaba a múltiples niveles: destacando el económico y el cultural.
1
Universidad de Salamanca – Pilartalavera5@usal.es
2
Universidad de Salamanca
3
Palabras pronunciadas por Eduardo Lourenço en el Octavo Centenario de la Carta de Guarda que se
celebró en 1999. Más tarde lanzaría el reto de crear un Instituto de la Civilización Ibérica en la Ciudad de
Guardia, con el propósito de ser un centro de dialogo y de creación de iniciativas innovadoras en materia
de cooperación transfronteriza. Acabó llamándose “Centro de Estudos Ibéricos” y apareció exactamente un
año después de que Lourenço lanzará este reto. Se trata de un centro de estudios que une a la Universidad
de Coimbra y la Universidad de Salamanca.
4
Taylor, P. (1994). The estate as container: territoriality in the modern word-system. Progress in Human
Geography, 18, 151-162.
529 //
La frontera física ha sido frontera económica actuando como muro de contención de
interacciones económicas entre Estados. Esto ocasionaba la imposibilidad de crear sinergias
entre zonas cercanas, que sumado a la lejanía de estas de los centros económicos provocaba
un menor desarrollo económico5. Esa caracterización pasada ha ocasionado en la actualidad
que los territorios transfronterizos se caractericen por tener menores oportunidades laborales
y un peor ambiente empresarial, que repercute en las dinámicas demográficas de estas áreas.
La cultura es uno de los principales configuradores que tenemos como nación pues
de ahí parte nuestro idioma, tradiciones, arte…, por ello en la frontera la cultura es una
barrera más, pues pese a la cercanía se creaban dos realidades paralelas que provocaban una
barrera cultural e identitaria6. Aunque si bien es cierto que se perciben muchas similitudes
en las tradiciones e incluso en el lenguaje en zonas próximas de los terrenos fronterizos.
Estas barreras físicas han desaparecido tras la inclusión en la UE y con ella una nueva
forma de entender las barreras. Sin embargo, la influencia de la visión hermética pasada sigue
presente en las dinámicas actuales, sobre todo desde la perspectiva económica y cultural.
En estas regiones encontramos un tejido económico desestructurado basado eminen-
temente en el sector primario en detrimento de un sistema industrial laxo y poco diversi-
ficado y unos servicios insuficientes7. Lo mismo ocurre con la cultura, pues pese a estar
cerca y tener una cultura similar, no existe una verdadera integración en la proyección de
la cultura de estas regiones.

1.1. El problema demográfico en la zona fronteriza de Castilla y León

Estas características originan el caldo de cultivo perfecto para originar territorios des-
poblados o con desafíos demográficos, que se extienden por todas las fronteras de los
Estados miembros. En el caso de la frontera hispano-lusa, en concreto, la que abarca la
comunidad de Castilla y León se ha pasado de un registro de 210.419 habitantes en el año
1950 a uno de 72.192 habitantes en 2015, lo que supone una pérdida del 65,41% de la
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población. Originando una densidad demográfica baja de en torno a 7 hab./km28.


Estos territorios tienen riesgo severo de despoblación por estar por debajo de los 8
habitantes por km2, datos que se replican en otros países de la UE. Otro inconveniente

5
Nevado Moreno, P. T. (1996). La iniciativa comunitaria INTERREG: su aplicación en la raya fronteriza
hispano-portuguesa. Análisis general e incidencia en la Comunidad Autónoma de Castilla y León. Revista
de Estudios Europeos, núm. 13, p. 24.
6
Mansvelt Beck, J. y Hortelano Mínguez, L. A. (2016). La apertura de la frontera: ¿Nuevas identidades
transfronterizas? Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles, 72, p. 273.
7
Hortelano Mínguez, L. A. y Mansvelt Beck, J. (2017). El desarrollo local y la cooperación transfronteriza
en la Raya de Castilla y León. Revista de Geografía, núm. 29, p. 39.
8
Vid. op. cit. Hortelano Mínguez, L. A. y Mansvelt Beck, J. (2017) El desarrollo local…, p. 39.
530 //
que se suma a la condición de frontera es la de situación periférica del territorio, el hecho
de que estén lejos de los centros de población les aleja también de los recursos, las oportu-
nidades y las infraestructuras de calidad. Se crea, así, una doble discriminación territorial
pues es borde del territorio nacional y periferia de los centros urbanos del Estado, es lo que
se denomina “periferia de la periferia”9.
A este desmantelamiento del tejido económico y productivo hay que sumarle un en-
vejecimiento de la población rayana, ya que los mayores de 65 años representan más del
35% de la población de la frontera entre Castilla y León y Portugal. A lo que se suma una
escasa población joven, pues se arrojan cifras de 5 ancianos por cada habitante inferior a 14
años. Estos dos factores tienen como resultado en el periodo de 2001-2019 un crecimiento
natural negativo de -2.05%10.
La frontera objeto de estudio es concretamente la de la Comunidad Autónoma de
Castilla y León, esta región no solo sufre procesos de despoblación en la zona fronteriza,
sino que es una de las Comunidades dentro de España con mayores problemáticas demo-
gráficas. Se trata de la comunidad autónoma española que más ha perdido población, ya
que en el periodo de 1971 a 2020 la población ha descendido en un 10,3% frente a un
aumento de la población nacional superior al 39%11.
Estas notas manifiestan la profunda problemática demográfica que sufre la zona raya-
na castellanoleonesa, resultado de esta doble discriminación periférica y fronteriza, con
unos indicadores sociales y económicos negativos que siguen presentes pese a la desapari-
ción de la frontera física12.

1.2. El nivel de calidad de vida en la zona fronteriza de Castilla y León

Otra de las manifestaciones de las zonas con desafíos demográficos son los menores ni-
veles servicios públicos que tienen un impacto directo en la calidad de vida de las personas.
Por la configuración administrativa los territorios fronterizos tienen mayores problemas
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para acceder a los servicios sanitarios de un lado y otro de la frontera. Un problema com-
partido al que de forma paradójica no se le busca una solución conjunta.

9
Cabero Diéguez, V. (2004). Bordes y márgenes del territorio de Castilla y León: integración y cooperación.
Economía y Finanzas de Castilla y León, 9, pp. 79-95.
10
Hortelano Mínguez, L. A. y Martín Jiménez, M. I. (2022). El «reto demográfico» del sector central de la raya
hispano-portuguesa: visibilidad del problema y transferencia de soluciones». In Martínez Cárdenas, R. et al,
Leyendo el territorio. Homenaje a Miguel Ángel Troitiño, Guadalajara: Universidad de Guadalajara, p. 526.
11
Díez Modino, J.M y Pardo Fanjul, A. (2020) Despoblación, envejecimiento y políticas sociales en Castilla
y León. Revista Galega de Economía, 29, 2, p. 4.
12
Jacinto, R. (Coord.), Espaços de Fronteira, Territorios de Esperanza. Das Vulnerabilidades às Dinámicas de
Desenvolvimento. En Iberografías, 27, Guarda: Centro de Estudios Ibéricos (CEI), pp. 255-274.
531 //
En el caso de Castilla y León los servicios sanitarios se proveen a través de Zonas
Básicas de Salud, en la franja fronteriza existen 180 municipios distribuidos en 22 Zonas
Básicas de Salud. De estos 180 municipios solo 14 tienen los correspondientes Centros
de Salud en localidades de la raya13. Esto indica que más del 77% de municipios deben
trasladarse a Centros de Salud ubicados fuera de la zona rayana. Lo cual es un ejemplo
más de las lógicas centralistas que imperan en la configuración estatal y autonómica actual.
No solo deben hacer desplazamientos hacia el interior de la provincia, sino que la
calidad de los servicios a los municipios de la frontera es cada vez peor. Ejemplo de ello
son las protestas desencadenadas tras el cierre nocturno de los Centros de Guardia de
Barruecopardo y de Villarino de los Aires que expresaban la precaria situación asistencial
teniendo una población muy envejecida que no disponía de medios para desplazarse, ade-
más de un distanciamiento excesivo de los centros de salud tras ese cierre14.
Existe una situación similar en lo concerniente a la educación, no obstante, por la
barrera idiomática y de distintos sistemas educativos la creación de sinergias en este aspec-
to es más complicado. La problemática de nuevo surge por la necesidad de desplazarse a
otros municipios para acceder a enseñanzas básicas, dificultad que se agrava si queremos
acceder a enseñanzas más especializadas o con una orientación profesional, pues no existen
institutos de formación profesional15.
Todas estas características configuran la frontera como un territorio “periferia de la
periferia” que sufre una doble brecha territorial. En esta contribución pretendemos aportar
unas luces a esta situación compleja. A través de la creación de acciones integradoras de
ambas problemáticas, pues parece lógico encaminar nuestras inversiones y políticas hacia
la dinamización de las áreas fronterizas utilizándolas a su vez para revertir procesos de des-
población en esta Comunidad Autónoma.

2. La cooperación transfronteriza como herramienta para eliminar las


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fronteras

La cooperación transfronteriza es el conjunto de acciones formales e informales que


tienen lugar entre dos espacios de frontera internacionales. Existen dos vías de acción
las institucionales y las no institucionales. Las segundas son las producidas de forma
13
Martín Jiménez, M. I. y Hortelano Mínguez, L. A. (2017) Cohesión y convergencia en la frontera de
Castilla y León con Portugal (1986-2016). Población, economía y territorio. Anales de Geografía de la
Universidad Complutense, 37, 1, pp. 183-216.
14
Ortiz, J. M. (2012). Carta a Antonio Sáez Aguado. Consejero de Sanidad de la Junta de Castilla y León.
Barruecopardo.
15
Vid. op. cit. Martín Jiménez, M. I. y Hortelano Mínguez, L. A. (2017) Cohesión y convergencia…, p. 199.
532 //
espontánea y, pese a las barreras físicas, han existido siempre fruto de las interacciones
sociales entre las poblaciones cercanas con una mayor o menor intensidad16. Las primeras
son acciones que provienen desde las instituciones públicas y privadas, estas acciones han
sido más numerosas y con mayor calado tras la integración europea.
La consolidación de la UE cambió la forma de entender las fronteras que separaban los
distintos Estados miembros, pues eran un obstáculo en la libre circulación de mercancías,
personas y servicios y por tanto para conseguir la tan ansiada integración primero econó-
mica y más tarde política. Difuminar las líneas divisorias entre Estados era y es un obje-
tivo fundamental, para lograr los objetivos de la UE17. Las fronteras pasaron a entenderse
como “bisagras” o espacios de cooperación territorial18. Este cambio de paradigma como
es evidente ha sido ocasionado por un conjunto de acciones institucionales en materia de
cooperación transfronteriza.
El impulso institucional se inició con la Reforma de los Fondos Estructurales de 1988
con la que se apostó por la articulación de políticas de cohesión territorial, de desarrollo
endógeno y medidas de cooperación transfronteriza19. Estos fondos derivaban de uno de
los objetivos promulgados en el Acta Única Europea aprobada en 1987. En ella se transfor-
mó la forma de entender la política regional comunitaria pues se marcaba como objetivo
reducir las diferencias interregionales. Esto fue el preludio de la introducción en los trata-
dos de la cohesión territorial.
Actualmente, la cohesión económica, social y territorial se encuentra recogida en el
Título XVIII del Tratado de Funcionamiento Europeo (en adelante, TFUE). El artículo
174 establece la necesidad de promover un desarrollo armonizado siendo necesaria para su
consecución una acción encaminada a reforzar su cohesión territorial. Además en este artí-
culo se establecen una serie de regiones20 en las que hay que prestar una especial atención,
mencionando entre ellas las regiones transfronterizas.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


16
Ferrao, J. (2005) Fronteira Portugal-Espanha: um novo patamar de debate para as areas fronteiriças? In
Mora Aliseda, J. (Coord.) Fronteras y vertebración espacial ibérica, Cáceres: Fundicotex, pp. 73-78.
17
Domínguez Álvarez, J. L. (2020) Comunidades discriminadas y territorios rurales abandonados. Políticas
públicas y derecho administrativo frente a la despoblación. Cizur Menor: Thomson Reuters Aranzadi, p. 252.
18
De la Fuente, R. (2009) Una aproximación al análisis del discurso de la resignificación de la frontera en la
Unión Europea». En Cairo, H.; Codinho, P. y Pereiro, X. (Coords.), Portugal e Espanha: Entre discursos de
centro e prácticas de frontera. Lisboa: Colibrí, 2009, pp. 115-130.
19
Martín Jiménez, M. I., Hortelano Mínguez, L. A. y Plaza Gutiérrez, J. I. (2007) Cooperación territorial y
gobierno del territorio en Castilla y León. En Estudios Geográficos, 68, 263, p. 566.
20
Artículo 174 TFUE: (…) Entre las regiones afectadas se prestará especial atención a las zonas rurales, a las
zonas afectadas por una transición industrial y a las regiones que padecen desventajas naturales o demográ-
ficas graves y permanentes como, por ejemplo, las regiones más septentrionales con una escasa densidad de
población y las regiones insulares, transfronterizas y de montaña.
533 //
Este objetivo se perseguirá a través de fondos estructurales, entre otros por el Fondo
Europeo de Desarrollo Regional (FEDER) el cual está destinado a contribuir en el desar-
rollo y en el ajusto estructural de las regiones menos desarrolladas y en la reconversión de
las regiones industriales en declive -artículo 176 TFUE-.
Estos fondos han financiado una serie de iniciativas encaminadas a que los Estados
miembros propusieran acciones de cooperación transfronteriza, la piedra angular de esa
cooperación regional europea es la iniciativa INTERREG y los Programas Operativos de
Cooperación Transfronteriza.

2.1. Interreg I, II y III

El primer Interreg se desarrolló entre 1990 y 1993, siendo la primera iniciativa de


gran calado de cooperación transfronteriza. Estas ayudas se caracterizaron por dirigir la
financiación a los Estados miembros individualmente considerados, en lugar de a una
zona fronteriza.
En este programa se incorporaron tres tipos de acciones: planificación y aplicación
conjunta de programas transfronterizos, aplicación de medidas que aumentaran el flujo de
información entre un lado y otro de las fronteras y creación de estructuras comunes ins-
titucionales y administrativas que consolidaran y fomentaran la cooperación. Se trataron
de inversiones dirigidas al ámbito económico, reflejo de los propios intereses de la UE de
aquella época, centrada en la integración económica.
La valoración tras la aplicación de los fondos derivados del Interreg I tuvo luces y som-
bras, pues hubo cierta mejora en las infraestructuras de los territorios nacionales, estaba
lejos de la idea de integración y cohesión que se buscaba. Una de las causas del fracaso de
estas inversiones fue precisamente la individualización de las inversiones por Estados, en
lugar de realizarlas por zonas fronterizas. A esto hay que sumar que las acciones eran cor-
toplacistas y con una ausencia casi total de escucha a los actores locales21.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

De esta primera experiencia se extrajeron diversos aprendizajes, entre los que destaca-
mos, la necesidad de dirigir las inversiones a zonas transnacionales con una visión integra-
da a largo plazo, la importancia de escuchar a los actores del territorio y la oportunidad de
incluir la perspectiva política y social, en lugar de solo la económica.
Con estas enseñanza se aprobó en 1994 Interreg II (1994-1999) ampliando el alcan-
ce de la iniciativa pasada, pues englobaba las funciones del Interreg I y del REGEN. Se
articulaba en torno a tres ejes básicos: la cooperación transfronteriza (Interreg A), las redes

21
Heredero de Pablos, I. y Olmedillas Blanco, B. (2009) Las fronteras españolas en Europa: de INTERREG
a la cooperación territorial europea. Investigaciones Regionales, 16, p. 194.
534 //
transnacionales de transporte y energía (Interreg B) y la acción conjunto para afrontar los
problemas causados por inundaciones y sequías y para desarrollar una ordenación territo-
rial adecuada (Interreg C)22.
Esta última iniciativa se incorpora por vez primera en este segundo periodo. Otra
novedad fue la reducción de las iniciativas comunitarias a cuatro en aras de mejorar la
eficiencia de estas. Se financiaron cada una de ellas teniendo en cuenta sus objetivos y su
continuidad, esto último incentivaba a crear iniciativas más largoplacistas a diferencia de
lo que ocurría en la primera etapa.
En concreto en el eje de cooperación entre España y Portugal los cuatro objetivos
principales fueron:
• Promover un desarrollo económico y social equilibrado a ambos lados de la frontera.
• Contribuir al asentamiento de la población y al crecimiento sostenido de los
municipios.
• Ordenación del territorio transfronterizo.
• Incentivos para crear herramientas innovadoras de Cooperación Transfronteriza.

En esta segunda etapa conviene destacar el último punto pues es relevante a efectos
de este trabajo ya que se propone una herramienta innovadora para la mejora de la coo-
peración transfronteriza. Ya en 1994 se incluyó como objetivo la creación de este tipo de
instrumentos.
Pese a haberse apuntado como una carencia tras la aplicación del Interreg I, las inver-
siones siguieron desarrollándose de forma unilateral y a corto plazo. Se trataba de acciones
aisladas sin continuismo, pese a que en la concepción de estas se premiaba la visión es-
tratégica. En esta segunda etapa uno de los principales problemas que se percibieron fue
provocado por las diferencias entre países con divergentes sistemas administrativos y de
gobernanza que impedían una colaboración efectiva entre ellos23.
El último programa Interreg III (2000-2006) se aprobó con el comienzo de siglo,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
destacando por la ampliación en su dotación económica (4.875 millones de euros). El
programa se dividió en tres ejes en este caso: cooperación transfronteriza (capítulo A),
transnacional (capítulo B), e interregional (capítulo C). Los dos primeros representan el
90% de los fondos disponibles, por lo que son los más importantes.
La crítica a programas anteriores sobre la falta de implicación de los actores territo-
riales se suaviza en cierta forma, pues se incorpora un enfoque ascendente, esto es una

22
Mora Aliseda, J., Pimienta Muñiz, M. y García Flores, S. (2005) La iniciativa comunitaria Interreg III en
España. Boletín de la AGE, 39, 2005, p. 268.
23
Domínguez, L., Vieira, E. y Ferreira, P. (2013) La gestión de la solidaridad europea: los programas INTERREG
en la región fronteriza Galicia-Norte de Portugal. Revista Universitaria Europea, 18, 2013, p. 87.
535 //
participación de interlocutores sociales y económicos en las primeras fases. Sin olvidar las
iniciativas institucionales24.
El balance de esta última fase de la iniciativa Interreg fue muy positiva, pues se avanzó hacia
una cooperación transfronteriza y transnacional integrada alejándose de las acciones aisladas de
los Estados presentes en las dos primeras fases. Esto se consiguió a través de la financiación de
proyectos con amplitud regional e interregional en los que trabajaron conjuntamente las insti-
tuciones participantes, dotando a las instituciones transfronterizas de un papel protagonista en
la gestión de los fondos. No obstante, quedaban por resolver las profundas diferencias políticas
y administrativas entre Estados que impedían una cooperación más efectiva25.

2.2. La llegada de los POCTEP

Tras tres generaciones de Interreg se consiguieron algunos resultados, pero la mayoría


de los proyectos fracasaban por diversos motivos: desinterés, dificultades estructurales,
asimetrías instituciones, competenciales, funcionales y presupuestarios. En parte esto se
ocasionaba por la falta de transformación de las estructuras estatales que seguían mante-
niendo la visión fronteriza hermética alejada de la integración europea26.
Ante esta situación con la entrada en vigor del Tratado de Lisboa se hizo una apuesta
decidida por entender la frontera como elemento indispensable para la cohesión territo-
rial. Así, la cohesión territorial se incorporó al ámbito de los objetivos políticos clave. Esto
hizo que en lugar de tratarse de una iniciativa comunitaria aislada se entendiese como un
instrumento para la concentración de la cohesión económica y social27.
Estos esfuerzos de cooperación van más allá de la necesidad de una integración econó-
mica efectiva en la UE, sino que deriva de la importancia de cooperar con territorios con
intereses, necesidades y desafíos comunes. Como una premisa para la consecución a un
lado y otro de la frontera de objetivos de importancia capital, como son el desarrollo rural,
la protección del medio ambiente, la prestación de servicios básicos28, etc.
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Este cambio de paradigma en la concepción de la cooperación transfronteriza hizo que


cobrase un papel más importante en la política europea a partir del año 2007. Con todo

24
Esparcia Pérez, J. y Álvarez Marcos, M. (2000) La cooperación no tiene fronteras: la Iniciativa Comunitaria
INTERREG III. Actualidad Leader: Revista de desarrollo rural, 9, 2000, pp. 19-21.
25
Vid. op. cit. Mora Aliseda, J., Pimienta Muñoz, M. y García Flores, S. (2005) La iniciativa comunitaria…, p. 281.
26
Rojo Salgado, A. (2010) La cooperación transfronteriza y sus consecuencias: hacia la reestructuración ter-
ritorial. Investigaciones Regionales, 18, p. 145.
27
Calderón Vázquez, J. (2015) Repasando la frontera hispano-portuguesa: conflicto, interacción y coopera-
ción transfronteriza. Estudios Fronterizos, nueva época, 16, 31, p. 80.
28
Arias Aparicio, F. (2020) Construyendo mecanismos para la cooperación territorial en la Unión europea: la
consulta transfronteriza. Revista General de Derecho Administrativo, 55, 2020, p. 4.
536 //
el bagaje adquirido en los años anteriores con la iniciativa Interreg, la nueva cooperación
transfronteriza se articula en Programas Operativos particulares para cada una de las re-
giones fronterizas.
En el caso de la frontera España-Portugal Comisión Europea aprobó el 25 de oc-
tubre de 2007 el Programa Operativo de Cooperación Transfronteriza Portugal-España
(POCTEP) 2007-2013, el cual abarcaba un territorio compuesto por 17 NUT III fron-
terizos, que cubrían una superficie de 136.640 km229 (23,5% del espacio ibérico) y una
población de 5.474.225 habitantes (10% de la población total de los dos Estados) 30.
Así el programa operativo (2007-2013) se elabora partiendo de los principios de con-
centración y selectividad limitando los ejes prioritarios de actuación, para así poder selec-
cionar de una forma más eficiente los proyectos que se presentasen. Además se exigía a
estos proyectos que tuvieran un impacto significativo en las economías y en las condicio-
nes de vida fronterizas garantizando su sostenibilidad y viabilidad económica y financiera
para su realización. De entre los proyectos aprobados, los más significativos fueron los de-
dicados a abordar la problemática del mercado laboral y la falta de relaciones e iniciativas
empresariales, representando un 40% del total31.
En 2014 se aprueba el programa operativo de cooperación transfronteriza para el pe-
riodo 2014-2020, con cinco grandes ámbitos:
• Potenciar la investigación, el desarrollo tecnológico y la innovación (27% de la
financiación), más concretamente:
• Mejorar la excelencia científica del Área de Cooperación Transfronteriza y
líneas de investigación con potencial de competitividad internacional.
• Mejorar la participación del tejido empresarial en los procesos de innovación
y actividades de I+D+i más cercanas al mercado (desarrollo tecnológico, en-
sayos, innovación) susceptibles de explotación comercial.
• Mejorar la competitividad de las pequeñas y medianas empresas (21% de la finan-
ciación), más concretamente:
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
• Mejorar las condiciones necesarias y favorables para el surgimiento de nuevas ini-
ciativas empresariales, garantizando su sostenibilidad e impulsando su crecimiento.
• Fomentar la competitividad en los sectores que presenten más ventajas com-
petitivas en el Área de Cooperación.

29
Siendo estas:
– España: Pontevedra, Ourense, Zamora, Salamanca, Cáceres, Badajoz y Huelva.
– Portugal: Minho-Lima, Cávado, Alto Trás-os-Montes, Douro, Beira Interior Norte, Beira Interior Sul,
Alto Alentejo, Alentejo Central, Baixo Alentejo y Algarve.
30
Vid. op. cit. Domínguez Álvarez, J. L. (2020) Comunidades discriminadas y…, p. 253.
31
Canto García, S. (2016) La cooperación transfronteriza en el Duero internacional. Universidad de León:
León, 2016.
537 //
• Promover la adaptación al cambio climático en todos los sectores, y también
promover una mayor resiliencia territorial ante los peligros naturales trans-
fronterizos (40% de la financiación).
• Proteger el medio ambiente y promover la eficiencia de los recursos, más específicamente:
• Proteger y valorizar el patrimonio cultural y natural, como soporte de la base
económica de la región transfronteriza.
• Mejorar la protección y gestión sostenible de los espacios naturales.
• Reforzar el desarrollo local sostenible en toda la línea fronteriza de España y Portugal.
• Incrementar los niveles de eficiencia en el uso de los recursos naturales para
contribuir al desarrollo de la economía verde en el espacio de cooperación.
• Mejorar la capacidad institucional y la eficiencia de la gestión pública, conso-
lidando nuevas estrategias de diálogo e interrelación, que permitan el avance
de nuevas iniciativas entre los distintos actores que operan en la frontera (8%
de la financiación)32.

En el programa operativo anterior el eje más importante era el de la vertebración


económica y laboral (40%), reduciéndose en este nuevo programa a un 21%. El eje con
mayor peso fue el ambiental que supuso un 40% del presupuesto. Este nuevo paradigma
en las prioridades de la cooperación transfronteriza es reflejo de la preocupación comuni-
taria por caminar hacia una transición verde y una Europa climáticamente neutra.
Por último, es importante analizar brevemente el nuevo POCTEP aprobado en agosto
de 202233. Este programa surge tras los debates y foros celebrados para conmemorar los
30 años del surgimiento de Interreg y como es evidente con una gran influencia de las
lecciones aprendidas tras la crisis sanitaria originada por la COVID.
En este nuevo programa se mantiene el ámbito territorial sin variaciones respecto al
anterior POCTEP, debido al éxito constatado. En cuanto a las prioridades sobre las que
se pivota son seis:
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• Prioridad 1. Aprovechar el potencial de la cooperación para consolidar el ecosistema


de innovación, científico y tecnológico, potenciar la creación de redes de cono-
cimiento y empresariales, fomentar la digitalización y mejorar la competitividad
empresarial, en especial de pymes y micropymes.
• Prioridad 2. Fomentar la cooperación para maximizar el aprovechamiento de los
recursos endógenos del territorio y el desarrollo de iniciativas y sectores clave, avan-
zando en la especialización inteligente.

32
Disponible en: https://bit.ly/451wgZr
33
Disponible en: https://bit.ly/42ZDMCN
538 //
• Prioridad 3. Avanzar en la transición ecológica y la adaptación al cambio climático
del espacio transfronterizo a través de la cooperación como herramienta para el
fomento de la economía verde y la economía azul.
• Prioridad 4. Proteger y conservar la biodiversidad en los espacios naturales y rurales
y valorizar los ecosistemas naturales y el medio ambiente urbano del espacio trans-
fronterizo a través de la cooperación.
• Prioridad 5. Potenciar la cooperación para afrontar el reto demográfico en el espacio
fronterizo, creando condiciones de vida atractivas basadas en el acceso al mercado
de trabajo, servicios públicos esenciales, accesibilidad y aplicando principios de in-
clusión social e igualdad de oportunidades y trato.
• Prioridad 6. Impulsar a través de la cooperación transfronteriza el desarrollo de
estrategias multisectoriales de desarrollo integrado y sostenible.
• Prioridad 7. Superar los obstáculos fronterizos mediante la aplicación de un enfo-
que transformador de gobernanza multinivel a la cooperación transfronteriza.

Respecto a las temáticas que se mantienen del programa anterior podemos destacar la
innovación, el impulso de la transición verde y la vertebración económica. Tal como ocur-
ría en el anterior programa el medio ambiente juega un papel fundamental aprovechando
estos fondos para avanzar hacia un desarrollo sostenible. Respecto a prioridades a destacar,
sobre todo en lo que a este trabajo se refiere, tenemos la prioridad 5, 6 y 7.
En el propio programa se establece como objetivo prioritario el Reto Demográfico
destacando la necesidad de mejorar la calidad de vida de las personas que habitan las zonas
fronterizas creando unas condiciones favorables para retener población. Se incide en me-
jorar las condiciones laborales, la dotación de servicios esenciales, la accesibilidad y la in-
clusión social. Se trata de una conquista respecto a otros programas, pues dirige una única
prioridad con los consiguientes objetivos, medidas y acciones dotadas de financiación para
revertir los procesos de despoblación.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Las prioridades 6 y 7 también son destacables pues hacen alusión a la necesidad de
desarrollar estrategias multisectoriales de desarrollo integrado y sostenible y la aplicación
de un enfoque transformador de gobernanza multinivel para avanzar hacia una mejor coo-
peración transfronteriza. Esta línea es la que sigue la herramienta propuesta en este trabajo
que pretende servir para hacer inversiones integradas aprovechando sinergias entre zonas
geográficas fronterizas para afrontar el Reto Demográfico (prioridad 5).
Este repaso histórico por las diferentes acciones en materia de cooperación transfron-
teriza demuestra el gran avance por remover barreras entre Estados miembros para avanzar
hacia una UE más cohesionada económica, social y políticamente. No obstante, aún las
fronteras son territorios con una acuciada despoblación y falta de servicios básicos. Fruto
539 //
también de las políticas centralistas que están vaciando y olvidando las periferias de los
Estados miembros. Esta situación no es exclusiva de España, pues nuestra España vaciada
se replica en los países vecinos; “Aree interne” en Italia, “Municípios do interior” en Portugal,
o “lugares solitarios” para el Centro conjunto de Investigación de la Comisión Europea.
Esto pone de manifiesto la necesidad de crear instrumentos políticos innovadores que
combinen la cooperación transfronteriza y el Reto Demográfico, pues ambas problemáti-
cas se convierten en una doble brecha de los territorios frontera de los Estados miembros
que han permanecido olvidados. Pese a que se han realizado esfuerzos por revertir la situa-
ción, los datos aún muestran una situación crítica que precisa de herramientas innovadoras
como la que presentamos a continuación.

3. Instrumentos posibles para una cooperación transfronteriza: el caso


de las inversiones territoriales integradas (Itis)

A lo largo de este trabajo hemos apuntalado las deficiencias constatadas a través de las
distintas iniciativas y programas destinados a la cooperación transfronteriza. Dos de ellas
son reiteradas en todas las acciones institucionales, la falta de integración en las inversiones
y los problemas derivados de las asimetrías jurídico-administrativas entre los Estados34. No
sólo esto, sino que las políticas de cooperación transfronteriza no han ido de la mano del
Reto Demográfico. De hecho, el Reto Demográfico no ha sido incluido como eje estraté-
gico hasta POCTEP del periodo de 2021-2027 de forma directa (prioridad cinco).
Esta falta de sinergia entre ambas problemáticas no es exclusiva de los POCTEP, sino
algo extensible a las políticas de cohesión en general. Como destaca un importante es-
tudio del Parlamento Europeo, presentado en septiembre de 2020, en el que se reclama
una “mayor coherencia y coordinación entre la política de cohesión y la política de desarrollo
rural de la Unión Europea”. Este estudio destaca que la política de cohesión “se ha centrado
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

especialmente en las zonas urbanas, a las que en el conjunto de la Unión Europea ha asignado
el triple de los fondos de la política de cohesión, 165.500 millones de euros, frente a 45.600
millones de euros de desarrollo rural”35.
El estudio recomienda “incrementar la orientación territorial de los fondos de cohe-
sión, más allá de la división de los fondos por tipos de regiones, diferenciando tipos de

34
Yeung, H. (1998) Capital, State and Space: Contesting the Borderless World. Transactions of the Institute
of British Geographers, 23, 3, pp. 291-309.
35
La política de cohesión de la Unión Europea en las zonas no urbanas. Disponible en https://bit.ly/35ohiQT
540 //
zonas dentro de ellas36. Lo que propone este trabajo es concebir las zonas transfronterizas
como forma de división a la que orientar las políticas de cohesión.
El Programa Plurirregional de España FEDER 2021-202737 (POPE) en su objetivo
específico RS O5.2. que tiene por título “Promover un desarrollo social, económico y
medioambiental integrado e inclusivo, la cultura y el patrimonio natural, el turismo sos-
tenible y la seguridad, en las zonas no urbanas”, se prevén algunos instrumentos entre los
que destacamos las denominadas estrategias territoriales integradas que pese a que no se
encuentran bien definidas se menciona que se dirigirán a “áreas funcionales” formadas por
municipios de menos de 10.000 habitantes, de carácter rural.
Este instrumento territorial es diseñado por los propios Estados miembros y cofi-
nanciados por el FEDER y el Fondo para la Cohesión y Transformación territorial de
la Administración General del Estado. No obstante, este tipo de figuras procedentes de
la UE deberían cambiar su enfoque para aprovechar sinergias en zonas rurales de áreas
fronterizas.
Este tipo de enfoque encajaría perfectamente pues el propio POCTEP en su prioridad
6 y 7 establece la necesidad de crear estrategias multisectoriales de desarrollo integrado y
sostenible y la aplicación de un enfoque transformador de gobernanza multinivel. El ar-
tículo 36 del RDC plantea un instrumento que podría encajar en estas exigencias son las
denominadas Inversiones Territoriales Integradas.
Junto con la exigencia de una estrategia territorial y la aplicación de diferentes fondos
una ITI requiere que el Estado designe uno o varios organismos intermedios (incluidos au-
toridades locales, organismos de desarrollo regional u organizaciones no gubernamentales)

36
Se hace eco del anterior estudio el propio CES español, Informe 02 2021: Un medio rural vivo y sosteni-
ble», p. 117. Recordando cómo la Dirección General de Política Regional y Urbana (DG REGIO) de la
Comisión Europea ha elaborado un informe interactivo que permite profundizar este análisis por fondo y
Estado miembro. No obstante, las cifras presentes se basan en cómo los distintos programas han asociado
a un tipo de zona específica (áreas urbanas con más de 50.000 habitantes, pequeñas áreas urbanas o áreas
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rurales escasamente pobladas) sus acciones. En el caso de España, el 72 por 100 de los fondos no están
asignados de forma específica a ninguna zona. Es por tanto necesario impulsar un ejercicio de evaluación
específico que analice en profundidad como la aplicación de la política de cohesión se ha aplicado o contri-
buir al desarrollo de las zonas rurales…”
37
De conformidad con la información pública de la página web del MTED: “en el periodo 2021-2027,
España va a recibir 23.539 millones de euros del FEDER que se distribuirán en 19 Programas Operativos
Regionales (1 por cada Comunidad y Ciudad Autónoma) y un Programa Operativo Plurirregional para
España, que servirá como principal instrumento de planificación de las actuaciones de la Administración
General del Estado a financiar con cargo a este Fondo”.
Los once objetivos temáticos utilizados en la política de cohesión 2014-2020 se han sustituido por cinco
objetivos políticos para el FEDER, el FSE +, el Fondo de Cohesión y el FEMP. Entre ellos, nos importa
ahora el Objetivo Político. 5, desarrollo sostenible e integrado de las zonas urbanas, rurales y costeras me-
diante iniciativas locales”.
El Fondo de Cohesión afecta para el periodo 2021-2027 a Bulgaria, Chequia, Estonia, Grecia, Croacia,
Chipre, Letonia, Lituania, Hungría, Malta, Polonia, Portugal, Rumanía, Eslovaquia y Eslovenia.
541 //
como responsable. La gobernanza de este instrumento termina siendo decisiva, ya que
resulta necesario una dirección, una unidad de gestión que, probablemente, esté llamada
a saltar por encima de las competencia ordinarias. Esto iría unido a la prioridad 7 del
POCTEP que requiere una gobernanza multinivel, pero también con la necesidad de in-
corporar los actores del territorio para así crear políticas más efectivas y realistas.
De los estudios disponibles sobre este instrumento en España38, centrados en opera-
ciones distintas a las de desarrollo urbano sostenible, resulta que se organizan como un
paquete integrado de acciones dirigidas a un territorio con especificidades muy marcadas,
con necesidades y retos no generalizables y que requieren un esfuerzo importante de coor-
dinación entre cuerpos gubernamentales y otras partes a diferentes niveles en torno a un
eje prioritario. Estas características encajan justamente con las deficiencias constatadas a lo
largo de los diversos ejes programáticos de cooperación transfronteriza.
Un ejemplo real de aplicación de este instrumento se ha llevado a cabo en Castilla La
Mancha. Esta inversión se articuló a través de 114 acciones explícitamente vinculadas a Fondos
Europeos. Supuso unos elevados costes de entrada (formulación de la estrategia), lo que dio
lugar a una norma expresa, concreta y singular para la misma, el Decreto 31/2017 Castilla-La
Mancha. Tratando de facilitar el punto más difícil: la gobernanza de los diferentes niveles de
administrativos y la coexistencia entre diferentes responsables de la gestión de fondos diversos39.
Frente a ellas, esta herramienta requiere compromisos políticos e institucionales muy
fuertes, del mayor nivel, continuados en el tiempo, junto con órganos administrativos al-
tamente implicados que permitan una fluida gobernanza, así como recursos especialmente
dedicados al esfuerzo “de abajo-arriba” que exigen, y esto es decisivo, una base de agentes
territoriales con visión de y para la ITI40.
Con esta formulación del instrumento parece que las ITIs son un modelo idóneo cuando
se requiera un especial liderazgo, dedicación, capacidades personales y especial concentración
de recursos. Por lo que pese a las dificultades que puedan plantearse en un primer momento
parece ser la herramienta necesaria, ya que tras casi 40 años de cooperación transfronteriza
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

los estudios nos indican la necesidad de crear fórmulas jurídico-administrativas que integren
las acciones a ambos lados de la frontera entendiendo el territorio de forma global.

38
Paton, J. (2019) Analysis of the ITIs effectiveness in Spain (2014-2020). Disponible en: https://n9.cl/op8e4
39
Por el contrario (vid. Paton, cit., p. 41), el instrumento parece “especialmente pensado para retos y necesi-
dades que no pueden abordarse de manera individualizada; en cuanto a la absorción de fondos, es un meca-
nismos que permite canalizar los recursos europeos de forma más eficiente y eficaz, quedando demostrado
que bajo unas condiciones adecuadas se cumple el objeto perseguido con la ITI”.
40
Una vez más, vid. Pato, J. en las Conclusiones del Informe citado.
542 //
Conclusiones

La concepción de las fronteras ha cambiado en el último siglo pues actualmente son


concebidas como un obstáculo a la integración europea necesarias de ser difuminadas y
removidas. Este objetivo originó por parte de la UE de un despliegue de acciones, entre las
que destacamos los Interreg y los POCTEP. Estos instrumentos se aplican en unos territo-
rios en los que se superponen dos problemáticas: el efecto frontera y la situación periférica,
creándose la llamada “periferia de la periferia”.
Estas medidas han contribuido en la mejora de las condiciones de estas regiones, pero
pese a ello la brecha demográfica no ha parado de crecer. Tras el análisis de las deficiencias
repetidas a lo largo de las distintas etapas podemos destacar dos causas de la ineficacia de
estas inversiones: la falta de integración de las inversiones y la divergencia entre los marcos
administrativos y legales de los diferentes países implicados.
En este sentido y siguiendo la prioridad 5, 6 y 7 del último POCTEP en el epígra-
fe tercero de este trabajo se propone un instrumento, el de las Inversiones Territoriales
Integradas (ITIs). Este instrumento exige de la creación de organismos de gobernanza
comunes que capten fondos europeos para revertir la despoblación en zonas concretas. Por
lo que erigimos esta herramienta como un recurso innovador con la pretensión de superar
las deficiencias que impiden una integración efectiva.

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544 //
Qual o Rei para o atual tabuleiro de xadrez?
Democracia e um paradoxo
para as contradições

Francisco José Araujo1

Este trabalho discute criticamente o contexto político atual a partir da polarização elei-
toral que culminou nos ataques de 08 de janeiro de 2023, que tiveram como alvo as sedes
dos Três Poderes do Estado Brasileiro, com o objetivo de promover um golpe de Estado e a
quebra da ordem institucional democrática. Além disso, este artigo também discorre sobre
os desafios que se impõem ao governo Lula em face a esse quadro político ideológico. Para
tanto, será analisado os atos políticos civis que antecederam esses ataques, uma vez que já
refletiam um desejo de ruptura com a normalidade democrática. Assim, o enfoque deste
trabalho será na composição desses eventos: a pauta e base, os principais agentes de po-
larização no campo partidário e a dinâmica das instituições políticas. Será adotado como
fonte de dados as matérias jornalísticas e os documentos oficiais disponibilizados pelos
poderes do Estado brasileiro.

A questão inicial...

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


A questão de partida pode soar incomum, mas tem o propósito de suscitar indagações
sobre o contexto político brasileiro para além do modo já cristalizado de vê-lo, tal como as
rotulações sob o estrito interesse das partes em polarização.
A metáfora dos reis sobre um tabuleiro de xadrez é para mostrar um deslocamento
de significados e o desalinhamento de uma ordem internacional, além dos movimentos e
transformações configurados no populismo, na antidemocracia e o avanço da extrema-
-direita, o que nos remete uma tensão entre aspectos emocionais, mistificações e exigências
políticas de um mínimo de racionalidade e pluralidade. Portanto, os reis do tarô sobre um

1
Professor Adjunto da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA – franciscoearujo@gmail.com
545 //
tabuleiro de xadrez é a representação desse processo em curso na atualidade, sendo esse
tabuleiro a política, mas com uma espécie de ordem datada, e os reis são os que podem
fazer o melhor diálogo da transição dos poderes institucionais na geopolítica.
Com o olhar para o Brasil tanto em uma perspectiva interna como externa é que se su-
gere as seguintes perguntas: qual o rei para o atual tabuleiro de xadrez com o crescimento
da extrema-direita, o fundamentalismo neopentecostal na política eleitoral partidária e as
correlações de forças estabelecidas durante o governo de Jair Bolsonaro? Que contexto se
exige após o governo de Bolsonaro em termos dos que assumiram o poder?
O Rei de Paus – forte, poderoso, personalidade forte, fé, otimismo e pronto para aven-
tura; Rei de Espadas – Estrategista, focado, inteligente, mais racional, prefere a diplomacia
e dá importância ao conhecimento; e o Rei de Copas – Sensível, amoroso, misericordioso
e com empatia.
Nesse contexto de polarização e tensão interinstitucionais, é que emerge a questão
sobre o perfil, ou qual combinação de perfis, para um chefe político diante dos atuais
reveses que surgiram no campo político brasileiro e os desafios para o Brasil no plano
internacional.

Há bolsonarismo?

O termo bolsonarismo é uma rotulação que surgiu na imprensa e é uma generalização,


acentuadamente superficial e que, consequentemente, pouco revela ou identifica os reais
sujeitos e os elementos que têm produzido alterações no sistema político e, em particular,
no campo da disputa pelo poder.
Bolsonaro, nas eleições de 2018, conseguiu ser posto como verdadeiro e fiel represen-
tante de inúmeros grupos e segmentos sociais, cujos sentimentos e desejos viviam confi-
nados em certos nichos. Aproveitando muito bem do contexto de múltiplas indignações e
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o desgaste do PT à frente do governo federal, ele teve a habilidade de fazer com que esses
segmentos identificassem nele uma real sintonia e compromisso com seus interesses. Ele
não só verbalizou essas pautas, mas naturalizou seus conteúdos e os defendeu de forma
intransigente e ao mesmo tempo produziu, ao caldo de elementos díspares, uma cara
de homogeneidade e pontos de convergência: o autoritarismo e a pauta de valores extre-
mistas. Mas até aí, o que temos são boas ações de marketing e publicidade eleitoral, com
um eficiente uso das redes sociais. Até chegar ao ponto fora da curva: a facada (até hoje
problematizada por ele e pelos seus opositores). Fato que indiscutivelmente produziu uma
atenuação no juízo do eleitorado sobre seus discursos e deu a sua campanha mote forte de
mobilização para campanha eleitoral.
546 //
Bolsonaro não era orgânico a nenhum desses segmentos mais fortes e de maior ca-
pacidade de mobilização que o apoiou incialmente em 2018. No exercício de governo,
Bolsonaro trabalhou integralmente para ser a liderança desses segmentos e os transformar
pela via populista em séquito singularmente seu. Fez isso promovendo, através da estrutura
administrativa pública, mobilizações para atos e eventos oficiais, cujo desdobramento era
questionar e levantar suspeitas contra as instituições políticas e as ciências, deferir ataques
à “ideologia de gênero”, ao comunismo e aos outros poderes, especialmente o poder judi-
ciário, na figura do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, o chamado bolsonarismo está diante de dilemas existenciais que envolvem
escândalos e crimes de diversos tipos penais e que já produziram a inelegibilidade do próprio
Jair Bolsonaro. Agora, fora do governo, o bolsonarismo precisa provar ter vida própria. Isto
porque, dentre outros fatos, o fisiologismo é um verdadeiro arquétipo na cultura política
brasileira e estar à frente do poder é quase sinônimo de adquirir, “ganhar” seguidores.
O governo Bolsonaro se revelou mais como sintoma do que uma resposta às exigências
do contexto. No decorrer do próprio mandato de Bolsonaro, houve uma debandada de
alguns apoiadores que se identificavam sob o rótulo de “nova política” contra a corrupção
e de teor crítico ao establishment, à direita tradicional cultivadora do spoils system e o mul-
tifacetado antipetismo.
Quanto ao antipetismo, não é um fato novo, porém tomou um novo impulso com a
crise do governo Dilma. Soma-se a lista dos descontentes, os ultraliberais econômicos que
sofreram a frustração de não verem a implantação de um amplo plano de privatizações das
empresas estatais e uma ultra desregulamentação do mercado.
Não menos tenso, foi a relação dos olavistas com o governo Bolsonaro. Olavo de Carvalho
era notoriamente favorável a uma via autoritária, contra uma ameaça comunista, justificada
pela existência do Foro de São Paulo (uma espécie de liga dos líderes políticos comunistas).
Olavo de Carvalho, antes de morrer, chegou a criticar Bolsonaro de tê-lo usado como “pos-
ter boy” para se eleger e que até seus amigos ele tirou do governo, dentre esses amigos está o
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ex-ministro da educação de Bolsonaro, Abraham Weintraub, que passou a ser um crítico do ex-
-presidente e de seus familiares, a quem já chamou de “cafetão” por pedido de doações pelo pix.

A diversidade e a pré-existência dos sujeitos em busca de domínios. Desde a eleição de Jair


Bolsonaro à Presidência da República, observa-se uma polarização facciosa, cuja compo-
sição vai além dos partidos e das atividades partidárias/eleitorais sedimentadas no âmbito
do próprio sistema político. Tal situação demanda aliança com setores e instituições que
não representam e não estão legitimadas, no âmbito da democracia representativa, para
exercerem diretamente a formulação de políticas públicas nos principais órgãos decisórios,
como os Três Poderes estabelecidos com base na separação dos poderes.
547 //
Nota-se que essas composições são heterodoxas em cada um dos polos e não uma
correspondência direta da base partidária e de apoio desses movimentos e organizações.
Desse modo, aponta para o fato de que grupos organizados se aproximam de determina-
dos partidos em conveniência com a adesão às suas pautas que, diferentemente do partido,
não buscam dar a sua visão particular um forte verniz de um conteúdo do interesse geral.
Como já dito, é uma polarização de base facciosa que nem sempre ver no processo elei-
toral, no desempenho partidário legislativo e nas regras legais os caminhos da efetivação
dos seus projetos. Sendo assim, há uma oscilação de postura e ações sistêmicas e antissis-
temas. Independentemente da roupagem ideológica tradicional que possam adotar, como
de esquerda e de direita, em ambos casos há em comum um esforço de dar visibilidade e
efetividade à alteridade entre eles.
Esse ativismo polarizado que desemboca hoje sobre o sistema partidário/eleitoral, sobre
o governo e sobre o regime político tem forte relação com uma crise de legitimidade e de
representação, que recai sobre a política partidária tradicional em geral. É certo que emergiu
uma indignação e uma postura antissistêmicas que encontraram nas redes sociais seu princi-
pal ponto de articulação. Um elemento fático sobre essa crise, foram as jornadas de junho de
2013, quando setores de diversas matizes ideológicas ganharam as ruas e apresentaram uma
pauta ampla de reivindicações, mas que, a grosso modo, podem ser reunidas em torno do
preço de passagem no transporte público, educação de qualidade, menos impostos, saúde,
combate à corrupção e contra os gastos com a Copa do mundo de futebol (FIFA).
As manifestações de junho de 2013 mostraram claramente que os principais canais de
participação institucionais estavam funcionando sem uma real interação com esses inte-
resses coletivos de primeira ordem. Notadamente, traziam um discurso antissistêmico ao
enfatizarem suas críticas em torno dos conceitos de velha política e nova política. Esses
sentimentos e temas já eram percebidos em outras partes do mundo e representaram o
primeiro impulso de ativismo a partir das redes sociais. No Brasil, é necessário destacar
que, ao contrário de outros lugares no mundo, o povo estava diante de três mandatos do
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Partido dos Trabalhadores, o que produziam pautas muito específicas por força de quem
ocupava o poder.

As exigências do contexto atual

Período pré-eleitoral e eleitoral. A eleição presidencial de 2022, no qual saiu eleito, em


segundo turno, Luiz Inácio da Silva, o Lula, é marcante para história política do Brasil.
Pois, é um fato marcado por aspectos incomuns em termos de polarização e das forças
548 //
envolvidas durante o período eleitoral, visto que as ações diretas de grupos não originaria-
mente partidários ganharam força e assumiram formas mais violentas como os assassinatos:
• Paraná: 01 homicídio praticado por apoiador de Bolsonaro contra petista (tesourei-
ro) com arma de fogo, na cidade de Foz do Iguaçu, em 9 de junho;
• Mato Grosso: 01 homicídio praticado por apoiador de Bolsonaro contra um apoiador
de Lula com armas brancas (faca e machado), na cidade de Confresa, em 7 de setembro;
• Santa Catarina: 01 homicídio praticado por apoiador de Lula contra apoiador de
Bolsonaro com arma branca (faca), na cidade de Rio do Sul, em 25 de setembro;
• Ceará: 01 homicídio praticado por apoiador de Bolsonaro contra apoiador de Lula
com arma branca, na cidade de Cascavel, em 25 setembro. (O GLOBO, Rio de
Janeiro, 02/10/2022).

Ataque do ex-deputado federal e principal líder do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),


Roberto Jefferson, contra Policiais federais. No dia 23 de outubro de 2022, em Comendador
Levy Gasparian, no estado do Rio de Janeiro, policiais federais foram cumprir mandado
de prisão determinado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal
(STF). O ministro tinha revogado a prisão domiciliar de Jefferson por descumprimento
das exigências e determinou sua prisão, devendo ele ser levado para um presídio.
Após receber voz de prisão, o ex-deputado atacou os policiais federais com tiros de
fuzil e granadas. Dois policiais foram feridos por estilhaços e durante 08 horas o deputado
resistiu à prisão. Nesse momento de tensão, entra em cena o padre Kelmon, outra figura
incomum desse período eleitoral, que tinha concorrido no primeiro turno das eleições
à Presidência da República, em substituição a Roberto Jefferson, que teve sua candida-
tura impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Padre Kelmon foi até a casa de
Jefferson e saiu de lá com uma arma nas mãos e a entregou, através do portão do condo-
mínio, aos policias federais.
Cabe destacar dois episódios dessas duas personagens: I) Roberto Jefferson foi aliado do
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governo Lula em 2005, ganhou destaque na mídia como delator do esquema de corrupção
conhecido como Mensalão, em que os deputados do PP e PL (da época que depois foi PR)
faziam uma venda de apoio ao governo do presidente Lula em troca de um pagamento men-
sal de R$ 30 mil. Jefferson, na época, chegou a inocentar o presidente Lula. Por conta da sua
participação no Mensalão, foi condenado a 7 anos de prisão; II) Padre Kelmon foi filiado ao
Partido dos Trabalhadores. No dia 15 de dezembro de 2022, padre Kelmon foi “desencardi-
nado do clero” da igreja Católica Apostólica Ortodoxa do Peru no Brasil – Tradição canônica
Sírio Ortodoxa Malankara Indiana pelo Mor Francisco Ángel Ernesto Morán Vidal, auto-
ridade máxima da religião. Kelmon após essa “desencardinação” solicitou “incardinação” na
Igreja Ortodoxa Grega da América e Exterior como bispo e teve seu pedido aceito.
549 //
Período pós-eleitoral. A diferença de voto foi pequena entre o primeiro e segundo
colocado 50,90% a 49,10%, respectivamente. Além disso, o vencedor só ganhou em x
unidades das 27 unidades da federação. Dessa forma, alimentou a já anunciada “fraude
eleitoral”, as “teorias” do “povo soberano” (noção similar ao “cidadão soberano” utilizado
pela extrema direita americana) e as “forças armadas como poder moderador” (que evo-
cavam o art. 142 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988).
Estabeleceu-se um clima de suspensão sobre a passagem da faixa presidencial por parte do
presidente não reeleito ao novo presidente eleito. E assim, a partir do dia 31 de outubro,
após confirmada a eleição de Lula, simpatizantes da candidatura de Bolsonaro iniciaram
manifestações em todo país.
Os acampamentos em frente ao Quartel General (QG) em Brasília e nos quartéis
de diversas unidades da federação, além do bloqueio de estradas pelos simpatizantes da
candidatura de Bolsonaro, após o resultado das eleições, intensificaram o clima de ruptura
institucional antidemocrática, como pedidos de intervenção e ações diretas dos militares,
os quais estes eram convocados a agirem, anulassem as eleições, prendessem os ministros
do Supremo e impedissem o presidente recém-eleito tomar posse. Esses acampamentos em
si merecem uma investigação a parte pela sua natureza e pelos atores envolvidos e, acima
de tudo, pela nebulosidade que paira sobre a relação das Forças Armadas e dos acampados.
É de suma importância destacar alguns atos diretamente ligados ao acampamento em
frente ao QG em Brasília:
• A irmã Ilda Santos tornou-se uma figura icônica nesse acampamento. Com 81 anos, no
dia 02 de novembro de 2022, passou a ir todos os dias, bem cedo, orar no acampamento
em frente ao Quartel-General em Brasília. Repetindo frases como: “Deus está no
controle do Brasil. Está chegando a hora.”, ela virou uma heroína entre esses ma-
nifestantes pró-Bolsonaro e pró-intervenção militar. Com uma bandeira do Brasil
nos ombros e segurando uma bíblia, tornou-se uma figura icônica nessa amálgama
de fundamentalismo religioso, extremismo de direita e pró– intervenção militar.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Sobre sua imagem, foram criados diversas fake news, informando que ela tinha sido
presa pela PF e que a idosa teria sido morta por Lula. A dona Ilda continua viva,
nunca foi presa e continua frequentando a Assembleia de Deus Ceilândia Norte
(Ceilândia – cidade satélite de Brasília).
• Entre os acampados em frente ao QG de Brasília, constavam esposas e parentes de
militares da ativa e da reserva. A esposa do ex-comandante do Exército, o general da reserva
Villas Boas, Maria Aparecida Villa Boas e mais um membro da família conhecido como
“primo do general” frequentavam o acampamento onde havia explicitamente manifes-
tações pedindo a “intervenção das Forças Armadas”. Isto é, um golpe de estado, quebra
da ordem constitucional democrática e atentado contra o Estado de Direito.
550 //
• Foi desse acampamento que saíram os indivíduos que atacaram e tentaram invadir
a sede da Polícia Federal (PF) em Brasília, no dia 12 de dezembro. O ataque à sede
da PF se desdobrou em vários ataques e depredações pelas ruas de Brasília, com
carros e ônibus incendiados e depredações de utensílios públicos. Foi registrado
confronto direto entre a Polícia Militar (PM) do Distrito Federal (DF) e ativistas.
(Fonte: cobertura ao vivo dos canais de televisão Globo News, CNN-Brasil, Band
dentre outros).
• A prisão do indígena José Acácio Tsererê Xavante. Foi considerado pela Polícia Federal
como participante/articulador de várias manifestações antidemocráticas em Brasília,
indo ao aeroporto, passando por shopping até em frente ao hotel onde estavam hospe-
dados Lula e Alckmin (na época, recém-eleitos presidente e vice-presidente, respecti-
vamente). A Procuradoria-Geral da República pediu sua prisão se fundamentando na
necessidade de garantia da ordem pública, frente aos indícios de práticas dos crimes de
ameaça, perseguição e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tipifica-
dos no Código Penal Brasileiro. A prisão foi determinada pelo ministro do Supremo
Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, uma prisão temporária com prazo inicial de
10 dias. As lideranças Xavantes, no entanto, descartaram que ele fosse cacique, que era
ligado aos latifundiários do agronegócio, sendo envolvido em arrendamento de terra
a esses produtores, a exemplo do fazendeiro Dide Pimenta, proprietário de terras em
Campinápolis (MT), que teria se juntado a amigos fazendeiros para financiar e enviar
oito ônibus com indígenas para Brasília e ajudado a manter Tsererê, é o que informa
apuração do coletivo Bereia. (BEREIA – 19/12/2022).

Constatou-se que Tsererê é pastor indígena na aldeia em que vive na Terra Indígena
Parabubure (Mato Grosso), liderando uma igreja intitulada “Re’ihoimanamono” ou “ot-
sinhoro” [sic.], fruto da missão da Aliança Missionária das Nações. Foi confirmada sua
formação de pastor pelo Instituto de Formação Cristã – Escola de Ministérios, pertencente
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
à Igreja Jesus Cristo é o Caminho, de Vinhedo, estado de São Paulo. O pastor Tsererê é
casado com uma missionária da Aliança Missionária das Nações.
Além de atuar na igreja pentecostal, Tsererê integra a ONG Associação Indígena Bruno
Ômore Dumhiwê, criada em 2000 e reativada em 2009 com ele presidindo a entidade, o
qual conta com 97 associados, sendo 45 deles crianças (15) e adolescentes (30), além de
contar com 6 associados não indígenas.
A investida do pastor Tsererê Xavante no campo político eleitoral não é recente, sendo
natural de Poxoréu (MT). Em 2004, foi candidato a vereador pelo Partido Popular Socialista
(PPS) na cidade de Nova Xavantina (MT). Ele obteve 63 votos e não foi eleito. Na época,
apresentava-se só como Tsererê Xavante. Já em 2020, Tsererê foi candidato novamente, dessa
551 //
vez a prefeito na cidade de Campinápolis (MT), recebendo 689 votos, também não eleito,
além de se apresentar como Pastor Tsererê Xavante e como filiado ao partido Patriota.
Como nasceu o pastor Tsererê? Assim como não era estreante na política partidária,
também não foi sua primeira vez na cadeia, segundo apurado pelo coletivo Bareia junto às
lideranças indígenas que compõem a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Ele
virou pastor depois de sua prisão em 2008, por tráfico drogas. Sua formação como pastor
ocorreu quando estava na prisão. Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) atendeu
o recurso impetrado pela sua defesa pedindo redução de pena sob a alegação que o réu era
indígena. (BAREIA, 19/12/2022).
Foi a prisão do Tsererê que motivou os ataques do dia 12 de dezembro contra a sede da
PF em Brasília. Ele ficou preso de 12 de dezembro de 2022 até 09 de setembro de 2023.

– Tentativa de ataque à bomba. No dia 24 de dezembro, véspera do Natal, próximo ao


aeroporto de Brasília, o motorista de uma caminhão-tanque, carregado de querosene de
aviação, encontrou, sobre o para-lamas traseiro do veículo, uma caixa com explosivos e
um mecanismo eletrônico de detonação ligada à carga explosiva. O motorista chamou a
polícia. (G1, 17/01/20230).
Os peritos da polícia confirmaram que a carga era explosiva e que o equipamento
eletrônico junto à carga era de detonação e que chegou a ser acionado, mas a carga não
explodiu por uma falha de instalação. Constataram, por simulação, que o potencial de
danos era alto.
Esse plano de ataque terrorista também foi feito no acampamento do QG. Os indivíduos
eram também participantes desse acampamento. Mesmo com a suspeita de mais envolvidos
nesse plano, os presos foram: George Washington de Oliveira Sousa, já condenado pela justiça
do DF a nove anos e quatro meses de prisão, a pena também incide sobre os crimes de porte
ilegal de arma de fogo e artefato explosivo ou incendiário; Alan Diego dos Santos Rodrigues,
também já condenado pela justiça do DF a cinco anos e quatro meses; e Wellington Macedo
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de Souza, este último foi o que colocou o artefato explosivo no caminhão-tanque, foi conde-
nado a seis anos de prisão. Na época da tentativa de explosão, Wellington usava tornozeleira
eletrônica, pois cumpria prisão domiciliar por atos antidemocráticos em 07 de setembro de
2021. Após a tentativa de explosão, ele retirou a tornozeleira e ficou foragido de janeiro até 14
de setembro de 2023, quando foi preso na Cidade do Leste, no Paraguai.
Diferentemente dos demais acusados, Wellington já era conhecido nas redes sociais
com conteúdo pró-Bolsonaro e chegou a ter cargo comissionado na Diretoria de Promoção
e Fortalecimento de Direitos da Criança e do Adolescente, no Ministério da Mulher, Família e
Direitos Humanos, no período de fevereiro a outubro de 2019. Chefiava esse Ministério a
senhora Damares Alves, atualmente senadora.
552 //
Os nomes e as características das peças em movimento

Conservadorismo olavista. Olavo além de ser favorável a uma formação de direita con-
servadora, também defendia a laicidade do Estado, o que pode ser constato nas suas aulas
sobre o Estado Laico, disponível no seu canal do YouTube. Nesse episódio, faz críticas ao
coronel que teria mandado retirar crucifixo da parede de um prédio público, alegando
laicidade, mas o ato era contra os símbolos católicos. Olavo condena essa ação e diz que
é voltar às guerras religiosas antes do surgimento do Estado moderno e que isso era um
retrocesso, afirmando que o Estado laico é não ter uma religião oficial, mas tem o dever de
assegurar a religiosidade da maioria da sociedade, porque a sociedade é religiosa. E nessa
linha de raciocínio, ele defende que o Estado deve então respeitar a moral da religiosidade
predominante e não deve agir a favor ao que contraria essa moral, a exemplo do casamento
homoafetivo. No geral, Olavo buscava um verniz de conservadorismo como o de Edmund
Burke (1729-1797) e Michael Oakeshott (1901-1990), no qual é possível ver uma busca
de diferenciação ao reacionário in natura e uma contraposição aos revolucionários.

Ativismo policial. O ativismo policial cresceu e permaneceu ao lado de Bolsonaro, mas


já existia antes da ascensão de Bolsonaro ao poder. Esse ativismo policial tem forte ligação
com vertentes religiosas cristãs. Os chamados “coletivos” ganharam vida a partir das greves
dos policiais militares e bombeiros nos anos de 1997, 2010 e 2011, que compreendem
uma série de greves que registrou invasões aos quartéis, greve de fome, quebra na cadeia de
comando e hierarquia em diversos estados da federação. Em 2011, o Congresso aprovou
e a presidenta Dilma sancionou a Lei n.º 12.505, de 11 de outubro de 2011, anistiando
todos os policiais punidos pelo envolvimento e por atos nesses movimentos grevistas. Após
a anistia, o ativismo policial só cresceu com a participação constante de policiais militares
em rede sociais, criando conteúdos com conotações morais, políticas e sobre políticas

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públicas. Alguns desses coletivos são massivamente compostos por esposas e parentes de
policiais militares e servem para reafirmar posições políticas e difundir conteúdos sobre
segurança pública, de elogio às ações policiais e notas de solidariedade. Nota-se uma pauta
a favor de armar a população, liberação de venda de armas, redução da idade penal, formas
violentas de combate à criminalidade etc.

Neoconservadorismo neopentecostal. O conservadorismo neopentecostal no Brasil apre-


senta algumas semelhanças com alguns elementos presentes no neoconservadorismo, que
surgiu entre os cristãos americanos de direita no período da guerra fria (1945-1989) como
uma reação ao avanço das mudanças políticas e sociais de caráter liberal, à difusão de ideias
socialistas e comunistas e aos direitos das minorias. Cabe destacar, para fins da análise
553 //
em curso, as seguintes características do neoconservadorismo americano: I) economia de
mercado com condição necessária para uma sociedade livre; II) valorização da família e
religião como pilares da sociedade; III) crença na prosperidade; IV) repúdio ao utopismo
político (DOLES, 2012). Ilustra-se assim a significativa semelhança entre essa corrente e
o conservadorismo pentecostal brasileiro.
O mais icônico dessa convergência entre essas correntes é verem na religião um ins-
trumento fundamental para estabelecer parâmetros do que é a verdade e o certo, a fim
de formar uma sintonia da ordem política com os valores que servem a coesão social.
Nesse sentido, admite o uso da coerção “benevolente” para a concretização da coesão da
comunidade.
Porém, os neoconservadores adotam para si as “raízes filosóficas”, isto é, a filosofia po-
lítica clássica. A partir disso, estabelecem a fórmula: “Admiramos Aristóteles, respeitamos
Locke e desconfiamos de Rousseau”. (Idem). Dessa forma, fica muito difícil, diante dos
fatos, filiar os neopentecostais aos neoconservadores.
O neopentecostalismo é uma criação brasileira e carrega inúmeras particularidades
que o impede de uma classificação integral como neoconservadores. Primeiro, os neopen-
tecostais brasileiros estão intimamente ligados à teologia do domínio e à teologia da pros-
peridade. Enquanto na teologia do domínio, o foco é na guerra do bem contra o mal, o
que torna os neopentecostais ativos, não só reativos (fazendo ações diretas, inclusive contra
outros grupos religiosos); a teologia da prosperidade relaciona a fé com o sucesso econômi-
co, além de uma mudança de vida e bem-estar, mesmo que numa perspectiva materialista.
O neopentecostalismo é uma “modernização” do pentecostalismo, abolindo as ves-
timentas e certas posturas estereotipadas muito comuns, como exemplo, das antigas
Assembleias de Deus ligadas à Convenção das Assembleias de Deus no Brasil. Hoje,
mesmo algumas igrejas neopentecostais que adotam o nome de Assembleia de Deus, não
estão ligadas à Convenção. Essa modernização se traduz em uma maior tolerância quan-
to as vestimentas, as indumentárias e a incorporação ou a apropriação de certas práticas
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religiosas de outras religiões – como a sessão de descarrego, exorcismo, celebração de ca-


samento, artefatos com poder de cura etc., presentes no contexto cultural que estão inse-
ridas. Logo, é bastante destacada a ênfase no louvor, nas curas, nos exorcismos, culto de
libertação e materialismo (o empreendedorismo individual é muito motivado).
Ressalta-se que é inegável o caráter motivacional e de acolhimento no interior dessas
igrejas, onde o “caído” vira um vencedor e é apresentado à comunidade por um discurso
de positividade, o testemunho.
É importante destacar mais um elemento diferenciador e sem o qual não seria inteligí-
vel, a utilização pelos neopentecostais de símbolos e expressões ligadas a Israel ou ao judaís-
mo e que já foram vistos inclusive nas ações diretas desse segmento, direcionadas ao sistema
554 //
político e à disputa partidária/eleitoral. Trata-se da presença da Teologia Dispensacionalista
no interior dessas igrejas.
O Dispensacionalismo enfatiza a periodização do tempo e manifestação da vontade de
Deus na história dos homens, em que a distinção entre Israel e a Igreja tem significativa
relevância. Para os dispensacionalistas, Israel é uma referência temporal, onde ocorrerá o
armagedon e a segunda vinda de Cristo, além de ver na população contemporânea do Estado
de Israel (Estado criado a partir do movimento sionista), como o povo eleito bíblico. Além
disso, adotam uma interpretação literal dos textos bíblicos, da forma mais simples e imediata.
Essa filiação ao dispensacionalismo produziu uma “judaização”. (MAYNARD, 2016).
Por outro lado, observa-se que o neopentecostalismo está em uma cruzada de “evan-
gelização” da política, não só por apresentar pautas de vieses religiosos, mas na busca de
condicionar todas as leis do Estado e suas ações condicionadas pela sua interpretação bí-
blica. Desse modo, age contra a laicidade do Estado e ao Estado Democrático de Direito
ao não reconhecer o direito à diferença e à pluralidade em um regramento da ordem civil
não condicionado estritamente pelo ethos religioso que defendem. Neste aspecto, eles as-
sumem um caráter fundamentalista. Outrossim, tem expressado uma simpatia pela ala de
ultradireita sionista.
A participação dos neopentecostais no campo político partidário tem início no perío-
do da Constituinte e nas décadas de 1990 (1986-1994) e mais fortemente nos anos 2000.
É de significativa importância a criação da Frente Parlamentar Evangélica em 2003. Essa
frente tem foco na pauta moral que envolve valores da família e dos costumes que envolve
ampliação da legalidade da prática do aborto e casamento de pessoas do mesmo sexo.
O que mais se acentuou nas últimas décadas, foi o avanço da extrema direita no Mundo
e no Brasil. Esse avanço do extremismo de direita na visão de Carter (2018), respaldan-
do-se em Klaus Von Beyme, trata-se da “Terceira Onda” (o novo extremismo de direita),
que tem início na década de 1980. Essa onda implica em um impacto na competição
política ou partidária e acesso aos cargos de radicais e extremistas. Mudde (1995) destaca
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para a necessidade de identificação do núcleo ideológico dos principais partidos autode-
nominados de extrema direita ou direita radical. Após pensar em Estado-forte – reforço
da função repressiva do Estado, foi definido com base na lei, na ordem e no militarismo,
todavia o traço do militarismo foi por ele abandonado dando ênfase ao autoritarismo. Para
Heinisch (2003), destaca-se como característica importante da nova extrema direita tratar
de uma concepção autoritária de Estado, em que a doutrina da lei e da ordem, além de se
dirigir para os perigos externos e os criminosos, é lançada contra os oponentes políticos.
Segundo Gopsey (2008), a extrema direita quer não só governos fortes ultranacionalistas,
mas reafirmar a lei e a ordem com valores tradicionais, autoridade, comunidade, trabalho
e família. Carte (2018), após analisar as formulações de diversos autores, sintetiza o núcleo
555 //
ideológico da nova extrema direita com as seguintes características: nacionalismo, racismo/
xenofobia, antidemocracia, populismo e anti-establishment, rhetoric e autoritarismo.
Consideramos que antidemocracia e anti-establishment são, antes de tudo, formas de
negação da Política. Assim como o populismo de qualquer viés ideológico é supressor da
institucionalidade política, do pluralismo e, por alimentar um certo misticismo e culto à
personalidade, é também uma expressão anti-laicidade, porque ataca a primazia da impar-
cialidade em favor de um séquito.
Essas expressões do novo extremismo de direita estão sendo cultivadas e ficaram visí-
veis em diversos atos antes, durante e após o mandato de Jair Bolsonaro, mas ainda não
existe um grupo explicitamente autodenominado de extrema-direita. Nesse contexto, pa-
rece que os extremistas estão abrigados e camuflados em diversas frentes, como religiosas,
corporativas, empresariais etc. em um trabalho de conversão a partir de dentro, no qual a
coesão e a força, para ação direta em defesa de vários elementos desse acervo ideológico de
extrema direita, apareceram nos grupos religiosos envolvidos na política.
Algo emblemático tem sido a defesa desses religiosos envolvidos na luta político par-
tidária/eleitoral de armar a população e de defender medidas violentas de enfrentamento
à criminalidade. Por outro lado, dentro desse segmento, surge uma nova versão, o “nar-
copentecostalismo”, tendo como exemplo o “Complexo de Israel” (RJ). Sobre este último
tópico, ver BBC news Brasil (12/05/2023). Pelo visto o rebanho e a doutrina estão em
metamorfose. Surgirá uma extrema-direita “narcopentecostal” no Brasil? A história dirá.

O dia 08 de janeiro de 2023

Os ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília não foram um ato sem anúncios e
nem espontâneo. Os antecedentes já indicavam para algo nesse patamar, basta lembrar do
ato em 19 de abril de 2020, em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, que
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pedia a intervenção militar, o fechamento do Congresso e do STF. Esse ato aconteceu


simultaneamente com outros da mesma natureza em todo o país. Isto é, manifestações
públicas pedindo um golpe de estado. Esse ato em Brasília contou com a participação de
Jair Bolsonaro que, no exercício da Presidência e diante da pandemia do Covid-19, foi
até os manifestantes, sem máscara, fazer um discurso. Destaca-se o seguinte trecho: “Nós
não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”. (BBC Brasil 20/04/2020).
No dia 30 de maio de 2020, os “300 do Brasil” saíram do acampamento que tinham
montado na Esplanada dos Ministérios, sob o comando de Sara Geromini (“Winter”), e
na Praça dos Três Poderes, fizeram um ato vestindo roupas pretas, máscaras e seguravam
tochas de fogo em frente ao STF. Em 13 de junho, a polícia de Brasília desmontou o
556 //
acampamento deles pela manhã. No período da noite, membros desse grupo lançaram
fogos de artifícios sobre o prédio do STF. Os participantes do ataque vocalizaram “vocês
entenderam”, “se preparem”. Ambos os atos foram amplamente registrados e difundidos
pelos meios de comunicação e mídias em geral.
Ressalta-se aqui a performance da senhora Sara Geromini que, entre outras coisas,
chegou a ser coordenadora-geral de Atenção Integral à Gestante e à Maternidade do Ministério
da Família, Mulheres e Direitos Humanos entre abril a outubro de 2019. Como já dito,
estava à frente desse Ministério a senhora Damares Alves. Outro detalhe, é que em 2018
ela foi candidata a deputada federal pelo Rio de Janeiro, no qual obteve um pouco mais de
17.246 mil votos, sob a legenda do DEM. Após as eleições, ela passou a residir em Brasília,
sendo sua cidade natal São Carlos (São Paulo). (BBC New Brasil, 15/06/2020).
Sara aproveitou cada espaço na mídia para criar seu currículo. Chegou a integrar o
Femen, mas foi desligada do movimento feminista. Alegava ter feito, nesse período, treina-
mento na Ucrânia de desobediência civil e ação não violenta (a imprensa diz que esse trei-
namento foi junto aos extremistas de direita ucranianos). Segundo ela, o objetivo de criar
os “300 do Brasil” foi porque não existia uma direita organizada no Brasil. Em entrevista à
Veja (dia 06/06/2023), disse que tinha ido recentemente ao Palácio da Alvorada avisar que
seu grupo estava sendo ameaçado, informou também que recebia apoio moral de deputa-
dos bolsonaristas e que eram visitados pelas deputadas Bia Kicis, Carolina de Toni e Carla
Zambelli e os deputados Daniel Silveira e Hélio Negão. Destaca-se nessa entrevista de Sara
a revelação de que: “Tivemos instrução sobre investigação, inteligência, estratégia. Tivemos
alguns professores, que preferem ter seus nomes resguardados, no campo da estratégia, da
inteligência e da geopolítica”. Esse tal treinamento dos “300 do Brasil” ocorreu exatamente
no Brasil. E assim como omitiu os tais professores, Sara, na época, negou qualquer apoio
financeiro de parlamentares, do governo, grandes empresários e até mesmo de Olavo de
Carvalho que, segundo ela, seria só uma inspiração.
A exposição feita acima serve para evidenciar o caráter não espontâneo dos ataques
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de 08 de janeiro aos Três Poderes da república, em Brasília. Não só foram antecedidos de
vários atos e avisos, mas também sobre quem seriam os alvos e a finalidade. Os ataques
foram transmitidos ao vivo por diversos canais de televisão e mais canais de internet, cada
brasileiro pode ver passo a passo o que foi ocorrendo em Brasília e as ações dos integrantes
desses ataques.
O objetivo golpista, visando a quebra da continuidade da ordem constitucional, é
inequívoca, assim como é inequívoco que todo o percurso desses acontecimentos contou
com a participação de militares da reserva, sejam das forças armadas, sejam das forças au-
xiliares. Como no governo de Bolsonaro houve um significativo preenchimento de cargos
e postos da administração pública, de natureza civil, por militares da ativa, tornou-se mais
557 //
que evidente a participação também desses nessa movimentação golpista. A Comissão de
Inquérito Parlamentar do 08 de janeiro, pelo seu desdobramento até o momento, tende a
apontar os possíveis militares da ativa envolvidos. Mas a própria natureza desse inquérito
parlamentar e o envolvimento dos militares carecem de uma investigação mais exaustiva
e minuciosa por outros órgãos mais especializados competentes. Não que falte evidência,
mas por se tratar de militares, é preciso provas robustas e uma acusação bem fundamentada
para ganhar apoio e legitimidade para a condenação dos envolvidos.
Os procedimentos coordenados de recrutamento, aglomeração, progressão no terror,
a visível leniência das forças de segurança, a tomada e a depredação das instalações da sede
do STF, do Congresso e do Alvorada põem como exigência inadiável a elucidação dessa
tentativa de golpe para, antes de tudo, prevenir e defender a continuidade da ordem po-
lítica e democrática. Ainda mais que, como visto já visto, esses grupos e segmentos ainda
estão ativos como oposição ao governo, porém mais do que isso, como uma força viva de
atuação no âmbito político e social.
Em resposta aos ataques às sedes dos Três Poderes foram presos em flagrante 2.151
pessoas, sendo que 745 pessoas foram logo liberadas após identificação pelo critério de
terem mais de 70 anos, por estarem na faixa etária entre 60 a 70 anos e portadores de
comorbidades e mais 50 mulheres que estavam com seus filhos, menores de 12 anos. Nos
dias imediatamente após os ataques, a pedido da Procuradoria Geral da República (PGR),
o ministro do STF, Alexandre de Moraes, incluiu Jair Bolsonaro no inquérito sobre a au-
toria intelectual dos ataques golpistas. Até o presente momento, já foram condenados 12
réus com penas que variam de 12 a 17 anos de prisão por crimes de: abolição do Estado
Democrático de Direito; dano qualificado; golpe de Estado; deterioração do patrimônio
tombado; e associação criminosa.
A média de idade dos condenados até agora está em 48 anos de idade. Mas como se viu
pelas imagens dos ataques e dos acampamentos, o número de idosos com mais de 65 anos
era mais significativa. Ressalta-se ainda que até agora nenhum grande empresário, militar
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de alta patente e seus familiares sofreram prisões ou condenações.


Resta saber se foi uma recusa, em cumprimento do dever constitucional, ou uma desis-
tência da alta cúpula das Forças Armadas em aderir ao golpe no dia 08 de janeiro de 2023.

Paradoxos para as contradições

Lula e o PT, ou o lulismo, são capazes de reunir de forma substantiva uma alian-
ça de forças democráticas e manter uma coesão nacional pró-Estado Democrático de
Direito? Lula realmente transmite uma qualidade de democrata inequívoca? A esquerda
558 //
da américa-latina sempre teve um viés autoritário e populista que remetem ao período da
Guerra Fria. No entanto, o espaço para uma postura democrática de mera contingência
foi diminuído. Primeiro, pelas forças de direita e extrema direita que passaram a ocupar as
ruas e passaram até uma posição ativa e não somente reativa. Segundo, por que o movi-
mento do novo extremismo de direita cresceu muito nos EUA e na Europa, aumentando
a tensão nas democracias antigas, dando mais complexidade a geopolítica e a corrida da
ordem Mundial e seus principais balizadores. Isso pode ser visto através de alguns acon-
tecimentos, por exemplo, a guerra na Ucrânia, que tem produzido uma pressão para que
haja alinhamento entre os países, orquestrado pelos EUA e seus aliados europeus. Outro
fato é o crescimento econômico da China, o que provocou uma reação por parte dos
Estados Unidos e seus aliados europeus, o que culmina num esforço de agrupamento e
alinhamento exigidos pelos países mais ricos da Europa e dos EUA.
Do ponto de vista das Relações Exteriores, até o momento, Lula não tem se esforçado
por visibilidade e protagonismo no plano internacional, o trabalho especializado da diplo-
macia. O Ministério das Relações Exteriores/Itamaraty tem cumprido uma ampla agenda de
diplomacia, comércio internacional, direitos humanos, desenvolvimento e meio ambiente.
Tem como foco a transição energética, ampliação de negócios e na reformulação dos organis-
mos internacionais como a ONU. Participou ativamente na ampliação do Brics.
Um dos grandes desafios para o governo Lula é construir pontes para além da sua
bolha, equacionar demandas que não convergem com as pautas de hoje ancoradas no
petismo e nas alas de esquerda que gravitam em torno do PT. Isso porque essas outras
demandas divergem do ideário petista e das demais esquerdas, mas gozam de amplo apoio
da sociedade, e que não são exatamente dos setores extremistas e antidemocráticos. Uma
pauta mal equacionada pela esquerda é da segurança pública e da corrupção no âmbito
dos poderes públicos.
Por que essa dificuldade? No momento em que surge a Nova Esquerda na Europa e nos
EUA, no pós-guerra (1945), mais precisamente nos anos 1950, a esquerda brasileira ainda
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seguia a cartilha do stalinismo em termos práticos e intelectuais, não olhando criticamente
para o seu economicismo que limitava a percepção sobre a esfera política, moral e cultural
por condicionar a interpretação às estruturas econômicas e de classe. O Golpe de 1964,
que estabeleceu governos autoritários até 1985, foi um fator importante de reforço para a
continuidade desse ideário stalinista na esquerda brasileira. Logo, a esquerda brasileira não
fez algumas críticas quanto ao próprio autoritarismo encravado nos partidos de esquerda e
ao próprio socialismo real. Consequentemente, não desenvolveu uma forma de percepção
democrática mais apurada da política e das questões sociais em termos do que indivíduos
concretamente vivem. A Nova Esquerda europeia viu, por exemplo, a necessidade de res-
ponder à criminalidade em termos práticos e imediatos, mas a esquerda brasileira até hoje
559 //
é vacilante, insipiente ou erraticamente propositiva, tendo muita dificuldade de lidar ao
mesmo tempo com direitos humanos, direito dos indivíduos e a criminalidade.
Em 1985, o fim do regime autoritário no Brasil é logo seguido pelo fim da Guerra Fria
e o início da eclosão da onda neoliberal. O PT entra em um malabarismo entre o stali-
nismo e a social-democracia. Após o primeiro governo civil em 1985 e a Constituição de
1988, o PT não soube ou não quis, mesmo exercendo já hegemonia no campo da esquerda
e junto aos movimentos socais/sindicais, fazer processo de redemocratização, continuar
seu curso com maior profundidade. Em uma certa medida, aceitou a interrupção do pro-
cesso democratização, deixando de lado o que havia de mais crucial para o fortalecimento
da democracia: uma reforma política. A prova disso foram os governos I e II de Lula e o
governo I de Dilma.
Ao passo que ia sendo governo, algumas bandeiras do PT foram perdidas (por falta de
medidas e por escândalos) como a do combate à corrupção, outras ficaram desgastadas,
apesar da relevância social como a reforma agrária. Por fim, o PT assumiu a posição de não
ter mais programa de governo elaborado, nem um projeto para o Brasil. É nesse momento
que o PT, sem responder de forma substantiva a alta concentração de renda, a violência
instrumentalizada pelo crime organizado (que tem feito uma refederalização do país) e a alta
carga tributária, toma como objetivo principal as pautas identitárias, de gênero e de valores.
As manifestações de 2011 produziram uma Nova Esquerda na Espanha e em alguns
países da Europa, fazendo surgir partidos críticos das instituições políticas e ligados às
mobilizações por redes sociais. As jornadas de junho de 2013 que ocorreram aqui não
geraram de imediato uma nova esquerda, porque o PT não só não soube dialogar com
a crítica que vinha das ruas, como também buscou reprimir, que pode até ter sido pela
manutenção da sua hegemonia no campo da esquerda e dos movimentos sociais, mas, ao
fazer isso, colocou equivocadamente como pautas da direita e da extrema direta, pautas
legítimas sobre políticas públicas e de interesse do povo em geral. Tratou-se da primeira
grande mobilização cívica após as Diretas Já e o Impeachment de Collor, foi espontânea e
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predominantemente de viés democrático e com ampla participação de segmentos políticos


de centro e de esquerda. Essas manifestações não tinham conotação antidemocráticas, nem
foram conduzidas pela extrema direita. Faixas com conotações antidemocráticas chegaram
a ser retiradas do meio desse ato. Essas jornadas foram extintas pela forte repressão policial
em decorrência de atos de vandalismo que começaram a surgir no meio das manifestações,
causados por grupos que se infiltraram para provocar a reação da polícia e consequente-
mente o esvaziamento das manifestações.
A incapacidade de dialogar com essa pluralidade democrática das jornadas de junho de
2013 produziu todo um movimento de marketing de renomear os partidos de direita da
tradicional política eleitoral brasileira e sinalizou para a extrema-direita que havia amplos
560 //
setores sociais descontentes com as pautas defendidas pelo PT e de pautas não contem-
pladas pelo partido. A extrema-direita cresceu muito durante o governo Bolsonaro e está
organizada e presente em diversos setores como já dito acima. O PT manteve sua hege-
monia, mas confinou o discurso da esquerda a já desgastada pauta identitária, de gênero
e de valores. Ao passo que, a própria Nova Esquerda europeia já entrou em um processo
desidratação, por aqui ela nunca teve uma voz significativa para a esquerda, tamanho o
monopólio do PT no chamado campo progressista e de esquerda.
Lula, o PT e seus aliados que ainda carregam um ideário de esquerda marcado por
uma adesão vacilante e uma visão dúbia sobre a democracia liberal, conseguirão ter legi-
timidade para agir como defensores da democracia e ao mesmo tempo não condenar os
regimes autocráticos de esquerda como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua? Diante de
um contexto geopolítico de alianças não simétricas, não homogêneas e do crescimento
da nova extrema-direita aqui e no Mundo, o desafio é claro: construir pontes com setores
conservadores, mas não antidemocráticos, com a direita democrática e não desconsiderar
ou ignorar valores defendidos pela maioria.
Um desafio grande é de ordem institucional e diz respeito ao desenho institucional
criado pela Constituição de 1988, no que tange a repartição das competências dos pode-
res, no qual o Presidencialismo foi dissecado, perdendo um elemento significativo da sua
essência: governar com minoria. Traumas dos governos ditatoriais (1964 -1985) produzi-
ram na constituinte uma preocupação que acabou dando ao Congresso competências que
inviabilizam qualquer presidente de agir sem o aval do Congresso, mesmo em atos que
poderiam ser entendidos como de mera rotina administrativa, enquanto chefe de governo.
Desde então, o Brasil vive um semiparlamentarismo não declarado, que existe na prática,
mas sem seu nome próprio. Tem-se no Brasil um semiparlamentarismo encapuzado.
Diante disso, há um desafio constante para qualquer presidente, mas agora principal-
mente para Lula diante da composição da atual legislatura que em sua grande maioria é
composta pela centro-direita, direita e a extrema-direita dissimulada. O que é preocupante
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não é o conservadorismo alojado na centro-direita, mas o ativismo autoritário presente na
direta e na extrema-direita, pois tendem a manter o campo político mais polarizado.
Lula tem buscado, como ele fez em governos anteriores e também outros presidentes,
estabelecer sua base de apoio nesse semiparlamentarismo, não só por conta desse viés insti-
tucional, mas também por força de um traço da cultura política brasileira: os chefes políticos
(da esquerda à direita) não sabem co-governar com a oposição, apresentam dificuldades em
dialogar e coexistir com ela. O arquétipo mandonista. No entanto, com o perfil da atual
legislatura, mesmo Lula já tendo distribuído 25 ministérios para 9 partidos diferentes da sua
‘base ideológica’, o que ainda não trouxe o resultado de segurança desejado por Lula, nota-se
que o Congresso, e particularmente os blocos mais fisiológicos, deslocaram as negociações
561 //
e os “acordos” do atacado (o mandato inteiro) para o varejo (por pauta e projeto), mas hora
e outra com o aditivo das liberações dos recursos das emendas parlamentares, o pedágio da
fidelidade. Em 2023, até setembro, R$ 24,2 bilhões foram penhorados, sendo que 47,5%
desse montante foram reservados em julho, momento das negociações para aprovação da
reforma tributária e do PL do Carf. Dentre os demais partidos, União Brasil com ministérios
e não pertencentes ao campo “ideológico” do PT, o montante foi de R$ 7,9 bi, assim distri-
buídos: PSD R$ 1,9 bi; PP R$ 1,8; União Brasil R$ 1,5 bi; MDB R$ 1,5 bi; Republicanos
R$ 1,3 bi. Mas, o partido que mais se beneficiou com os recursos das emendas foi o PL,
partido de oposição, no qual está filiado Jair Bolsonaro, que recebeu R$ 2,1 bilhões. Tem
uma questão de fundo para Lula, não abrir brecha para um impeachment.
Por fim, tem destaque outro desafio: o econômico, para destravar o PIB, atrair mais
investimentos e criar um ambiente de taxas de juros mais baixas e maior justiça na tribu-
tação, que possa aliviar a carga tributária sobre os mais pobres, que ainda são os que mais
pagam impostos no Brasil. A economia é um ponto fundamental não só para redução da
pobreza, mas para alavancar o país rumo a transição energética.

Considerações

A extrema-direita cresceu no Brasil, aliando-se e infiltrando-se em diversas organiza-


ções. Encontrou facilidade de atuar, em parte, no rastro do protagonismo político/eleitoral
de grupos religiosos conservadores e até mesmo fundamentalistas, através de canais corpo-
rativos e de partidos políticos. Porém, o segmento que tem demonstrado maior capacidade
de ação direta, de organização eleitoral e que tem pauta própria definida são os pentecos-
tais e os neopentecostais.
A inelegibilidade de Bolsonaro deve nos dar um novo capítulo e uma visão mais apu-
rada da existência ou não do Bolsonarismo, ou se prevalece a existência do ativismo de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

grupos não de esquerda heterogêneos, mas com pautas em comum e que transcendem a
figura de Bolsonaro. As eleições municipais em 2024 vão nos dar o real tamanho da força
eleitoral que tem essa composição de direita, extrema-direita, conservadora, fundamenta-
lista e Bolsonarista.
Parece-nos que a continuidade da democracia no Brasil está muito relacionada com a
capacidade de Lula de evitar erros, há desafios de primeira ordem como a pauta econômica
envolvendo aspectos cambial, tributário e de investimento; a pauta política no que tange
formar uma aliança plural pró-democracia, que garanta a normal institucional democráti-
ca; pauta de valores, que consiste na capacidade de negociar e saber reconhecer a plurali-
dade de valores existentes na sociedade para além do campo da esquerda.
562 //
As extremas-direitas estão organizadas e já se mostraram capazes de intervir contra o
funcionamento das instituições políticas e os procedimentos democráticos institucionali-
zados, e estão só esperando a ocasião para ficar à frente do poder. Para tanto, pelo que foi
testemunhado, ela não precisa apresentar uma agenda positiva e nem propositiva, para ela
ganhar vantagem basta um cenário de impopularidade de Lula e uma situação econômica
ruim. Isto é, só precisam do fracasso.

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ilegítimos.” Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/sara-winter-usamos-o-medo-
quando-uma-autoridade-comete-atos-ilegitimos.
563 //
V. ARTE, CULTURA
E LEITURAS DO TERRITÓRIO
As bandas filarmónicas enquanto espaços
de criação, recriação e cultura:
o caso particular da Filarmónica Gratidão
Riotortense

Helena Santana1
Rosário Santana2

Introdução

A atividade cultural e artística que se evidencia na vivência das gentes de um país


encontra-se fortemente ligada à formação e educação do seu povo, mas também, às con-
dições vivenciais que nele se gozam. Quando possuidor de condições de vida mais faci-
litadoras da atividade humana, condições normalmente ligadas ao progresso científico e
tecnológico verificadas, a atenção da população vira-se para outras áreas que não só as da
pura subsistência física. Da conquista de uma melhor condição de vida e do alcançar de
outras possibilidades, os povos permitem-se procurar uma melhor educação e formação
ao nível dos diferentes saberes, mas também das artes. Neste sentido, consequência de
uma melhoria substancial das condições de vida no final do século XIX e início do século
XX, Portugal vê evidenciar-se um crescente interesse pela arte e pela música em particular.
Em outro, sabemos que Portugal suportou ao longo de todo o século XX fortes avanços
a nível não só científico, como tecnológico, social, cultural e artístico, modificando de
forma indelével a sua paisagem. Estas transformações, decorrentes de uma evolução do As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

conhecimento gerado, começam a delinear-se em finais do século XIX, prolongando-se


por todo o século XX, atingindo de formas diferentes todas as regiões do país. Resultado
da evolução científica e tecnológica verificadas, os recursos materiais gerados por uma mais
eficiente rede de produção, transformação e distribuição dos bens conseguidos, capacitam
as populações em áreas do desenvolvimento pouco expandidas até então, como sejam as
áreas do comércio e indústria, nomeadamente aquela que depende de maquinaria mais
pesada e difícil de manejar requerendo para o seu desenvolvimento tecnologia eficiente e

1
DeCA, Universidade de Aveiro – hsantana@ua.pt
2
ESECD/IPG – rosariosantana@ipg.pt
567 //
adequada, alguma dela dependente de recursos ambientais que encontramos abundantes
na região da Serra da Estrela, como sejam, os hídricos3. Ao gerar melhores e mais eficazes
meios de produção de riqueza a partir dos recursos do seu território e, consequentemente,
melhores condições de vida para as populações, o país estabelece também infraestruturas
de suporte a atividade humana, garantindo a progressiva fixação das suas gentes em terras
fustigadas pela desertificação4.
A busca de uma sobrevivência agora emergente a nível cultural e artístico, desencadeia
uma necessidade de procura de produtos de origem cultural, social e artística que supri-
mam esta sua nova e inesperada necessidade. Quando os não tem, o homem procura as
condições e os recursos necessários à sua satisfação, desencadeando a criação de diversas
instituições e associações culturais um pouco por todo o país, de modo a que se consubs-
tancie uma real prática da cultura, da música e das artes.
Se em outros países da Europa esta necessidade já se encontrava suprida, em Portugal
tardavam as modificações desejadas. Mudar o rumo do panorama cultural, político e so-
cial existente em Portugal em final do século XIX e início do século XX, é despoletado
por esta necessidade de formar e educar, no mais amplo sentido do termo, iniciando um
caminho que tem por objetivo último o de alterar a situação vigente, renovando os espaços
de educação, cultura e arte. A criação e fundação de associações culturais e desportivas,
sociedades de beneficência e recreativas, com claros objetivos de criação e difusão cultural
e artística, onde se organizam formas de atuação em grupo como sejam o caso das bandas
de música, dos grupos de dança e de teatro, os ranchos folclóricos, etc., mostram-se, no
contexto verificado, mais aptas à conceção e desenvolvimento de ações culturais, nos es-
paços vivenciais das populações da região da raia, mas também das gentes um pouco por
todo o país. Para além da fundação de diversas associações e sociedades de cariz cultural e
artístico, verificamos a edificação de alguns dos modelos de organização a nível industrial
promotores deste associativismo e da prática da cultura e das artes5. A criação de associa-
568 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

3
Identificamos neste conjunto as indústrias dos lanifícios, mas também do leite e dos laticínios, a produção
de azeite, a ovinocultura ou a produção de caprinos, entre outras.
4
Capacitando as populações com meios facilitadores do desenvolvimento e prática de uma qualquer ativida-
de profissional, meios que conduzem obrigatoriamente a uma emancipação económica e social consequen-
te, o homem permite-se o olhar para outras áreas da vivência humana, como sejam as do conhecimento, seja
ele o científico ou o artístico, desenvolvendo o ensejo de realizar outras atividades que não aquelas que lhe
garantem a mera subsistência física. A sua consciência a nível ético, moral e cívico também se desenvolve,
originando seres mais exigentes a nível da prática de uma cidadania ativa.
5
Neste contexto encontramos também uma forte preocupação que emerge a nível social, quando nestes es-
paços descobrimos para além do associativismo promotores da prática do teatro e da música, o espaço da
escola e da creche dirigidos aos filhos dos trabalhadores, a existência de um Corpo de Bombeiros privativo,
de uma Banda de música, etc. Algumas vezes deparamo-nos ainda com a preocupação em alimentar e alojar
esses mesmos trabalhadores, desenvolvendo-se autênticas vilas ou aldeias industriais. Salientamos a criação
da Sociedade Recreativa e Musical de Moimenta da Serra, mais conhecida por “Filarmónica Moimentense”,
ções e coletividades várias, de modo a concretizar a produção de atividades no âmbito da
cultura, do desporto e das artes, torna-se assim uma realidade.
Se o desenvolvimento de meios de produção mais eficazes, permite a melhoria das
condições de trabalho e produção agrícola e industrial um pouco por todo o país, a cria-
ção e o desenvolvimento de meios e vias de transporte mais rápidos e eficazes, leva ao
mais lesto escoamento dos bens produzidos e ao desenvolvimento de polos tecnológicos
e industriais. Associados à descoberta da máquina a vapor, e à forte industrialização do
processo de produção consequente, percebemos na análise da tecnologia envolvente na
indústria neles fixada, aquela relativa à produção dos lanifícios e do têxtil, mas também
dos laticínios e da cutelaria. Estas indústrias usam um conjunto de recursos abundantes na
região da Serra da Estrela. O desenvolvimento da máquina a vapor, e de outros engenhos
que funcionam por movimento mecânico auxiliado pela água são, a par da eletricidade,
fatores de desenvolvimento para a região6. O desenvolvimento de meios de comunicação e
transporte, promovem, para além do desenvolvimento económico e social de um qualquer
país, a procura, por parte de muitos portugueses, de melhores condições de vida no estran-
geiro. Se numa primeira fase esta deslocação se faz para países fora do continente Europeu,
numa segunda fase, é para a Europa que se dirigem estes circuitos migratórios7. Neste
contexto, decorre uma primeira vaga de emigração dos portugueses da região das Beiras,
e da região de Rio Torto em particular, para terras de além-mar, como sejam alguns países
de África e da América do Sul. Os recursos económicos entretanto adquiridos por aqueles

a 8 de Dezembro de 1879, por António Augusto Lopes da Costa, empresário da Indústria Têxtil. Para além
das condições materiais construídas para a ocupação laboral dos seus trabalhadores, António Lopes da Costa
foi um visionário, tendo por objetivo primordial a melhoria das condições de vida dos seus trabalhadores,
bem como a ocupação dos seus tempos livres, de forma positiva, criativa e formativa, desenvolvendo as suas
valências de modo holístico e global. Encontramos outros exemplos um pouco por todo o território nacional
resultado do conjunto de valores sociais, morais e cívicos em desenvolvimento desde meados do século XIX.
6
A construção do comboio e do barco a vapor, permite a deslocação mais rápida e facilitada das populações
e dos recursos materiais e imateriais produzidos nas diferentes regiões do país e do mundo. Neste contexto
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
não podemos deixar de referir o aparecimento de uma nova vaga de emigração, assim como a realização de
inúmeros eventos, de cariz internacional, que emergem um pouco por todo o mundo, de modo a divulgar
os avanços feitos nas várias áreas do conhecimento, da cultura e das artes, dos quais as grandes exposições
universais são exemplo.
7
A região das Beiras, fortemente fustigada por condições geográficas e ambientais adversas, não consegue, em
finais do século XIX, as conjunturas necessárias e suficientes à fixação das suas gentes. Os contextos de tra-
balho e sobrevivência à época não eram fáceis, nem facilitadoras de uma retenção e fixação das populações.
Procurando melhores condições de vida, as gentes buscam, fora do seu país e região, os meios necessários
à sua sobrevivência, assim como da sua família. Sabendo, através dos relatos chegados por aqueles que os
precederam, da dimensão e fortaleza dos recursos materiais encontrados em outros países, nomeadamente
por terras de além-mar, nos continentes Africano e Sul-Americano, procuram em países como a Angola,
Moçambique ou Brasil, melhores condições de vida e trabalho, assim como os recursos financeiros e mate-
riais que não encontram ou conseguem no seu país, de modo a progredir de forma mais satisfatória, material
e imaterialmente. O facto é relevante pois leva o homem a sonhar e a procurar condições de vida mais dignas
para si, a sua família, o seu povo e a sua região.
569 //
que se viram obrigados a integrar estes movimentos migratórios, permitiram o esboçar de
melhores condições de vida e de trabalho nas regiões de proveniência. Apoiados por uma
vontade de investir, edificam os recursos que permitem aos seus conterrâneos melhores
condições de vida, de sobrevivência e permanência nas suas terras de origem, como são os
comércios e as fábricas, ou as estruturas agrícolas e indústrias que, necessitando de mão de
obra para laborar, se encontram disseminadas um pouco por toda a região8.
Na análise de documentação da época, final do século XIX início do século XX, mor-
mente notícias de jornais, percebemos que em alguns casos, os recursos materiais con-
quistados, serão empregues em benefício próprio, e que, em outros, estes recursos são
aplicados na edificação de infraestruturas industriais, de comércio e serviços, assim como
na reparação de equipamentos e infraestruturas dos seus lugares de origem. Destacamos o
arranjo das vias de comunicação e dos equipamentos públicos, assim como das edificações
e espaços públicos e religiosos. Apoiam ainda a recuperação e equipamento das associações
culturais e desportivas, beneficiando a todos, indiferenciadamente. A sua recuperação,
bem como a consequente restauração dos territórios a elas adstritos, conduz à progressiva
fixação das gentes nestes lugares e à criação de um sentimento de pertença. Maiores índi-
ces de fixação populacional, ajudam ao aproveitamento e desenvolvimento dos recursos
materiais, naturais ou produzidos, bem como dos espaços vivenciais, nas suas diferentes
valências, identidades, cultura e tradições9.

8
Neste contexto, salientamos um conjunto de edificações de natureza laboral e industrial, mas também
vivencial e residencial, como sejam os polos de indústria e manufatura, os negócios, as casas particulares ou
outros edificados erigidos, mais cedo ou mais tarde, aquando do seu regresso à sua terra natal, que encon-
tramos um pouco por todo o país e na região das Beiras em particular.
9
A criação ou recuperação de espaços destinados ao convívio dos povos promove, no final do século XIX,
o eclodir de diversas associações culturais e diversos agrupamentos musicais um pouco por toda a região
das Beiras, dos quais as Filarmónicas são exemplo. De acordo com a informação recolhida no site da
Confederação Musical Portuguesa existem 33 bandas filarmónicas no distrito da Guarda. Elencadas por
ordem alfabética, encontramos as: Academia de Santa Cecília (Banda de São Romão); Associação Cultural
570 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Recreativa Banda Filarmónica; Associação da Juventude Activa da Castanheira; Associação de Beneficência


do Sabugueiro; Associação Musical e Juvenil de Tourais; Associação Musical Malhadense; Associação
Recreativa e Banda Filarmónica de Chãs; Associação Recreativa e Cultural de Sabugal; Associação
Recreativa Filarmónica Popular Manteiguense (Música Nova) – Rua de Sto. António; Associação Social
Cultural Recreativa Desportiva de Pínzio; Banda Boa União Música Velha de Manteigas; Banda da Casa
do Povo de Fornos de Algodres; Banda de Música de Pinhel; Banda Música de Seia; Banda dos Bombeiros
Voluntários de Vila Nova de Foz Côa; Banda Música da Casa do Povo de Nespereira; Banda Música dos
B. V. de Celorico da Beira; Banda Filarmónica de Famalicão da Serra; Banda Filarmónica Fornense; Banda
Musical de Aveloso; Banda de Música de Freixo de Numão; Banda Torroselense Estrela D’Alva; Filarmónica
1.º de Janeiro de Carragosela; Filarmónica Amizade de Arcozelo; Filarmónica de São Vicente da Beira;
Filarmónica Gratidão Riotortense; Orquestra Juvenil da Serra da Estrela; Sociedade Instrução e Recreio de
Paços da Serra; Sociedade Filarmónica Bendadense; Sociedade Musical Estrela da Beira; Sociedade Musical
Gouveense Pedro Amaral Botto Machado; Sociedade Recreativa Musical Moimenta da Serra e a Sociedade
Recreativa e Musical Loriguense (CMP # Confederação Musical Portuguesa, Listagem Nacional de Bandas
de Música por Distrito, 2022).
Depois dos recursos materiais fortalecidos, surge a necessidade de reforçar outras ne-
cessidades e práticas. De cariz cultural e artístico, estas carências emergem num contexto
social e político inovador e revolucionário. Permitindo a evolução do ser humano de modo
global e holístico, a necessidade de concretização de uma educação a nível cultural e ar-
tístico emerge, consubstanciando-se num conjunto de práticas que se integram nas várias
áreas do conhecimento artístico, principalmente a música e o teatro. O facto leva à criação
de diversas associações culturais e recreativas um pouco por todo o país, e pela região de
Gouveia e de Rio Torto em particular, pois que parcos são os recursos desta natureza, neste
território, à época. De modo a suprir esta carência, para permitir ao homem usufruir de
uma prática cultural mais efetiva, apuramos que em finais do século XIX, decorria o ano de
1875, um grupo de residentes de Rio Torto se junta, formando um primeiro agrupamento
musical, uma Música, nesta povoação do concelho de Gouveia. De modo a que o esforço,
a vontade, a resiliência e o estímulo destes homens de coragem não esmorecesse face à falta
de condições para desenvolver a sua atividade musical e artística, procuram os meios ne-
cessários à sua concretização. Precisando de um espaço de ensaio e dos recursos financeiros
para a realização da sua atividade, buscam a ajuda financeira daqueles que na sua povoação,
Rio Torto, possuíam maiores recursos financeiros. Contactando um ilustre filho da terra,
o Senhor Joaquim Martins da Cunha (1851-1919), 1.º Visconde de Rio Torto, de modo
a que, na condição de mecenas, apoie a criação e fundação de uma Sociedade Beneficente
e Educativa, sede da primeira Música de Rio Torto, a Filarmónica Gratidão Riotortense,
recolhem a sua anuência e um substancial apoio, tanto a nível logístico, como financeiro.
Facilitando a sua fundação e criação, consubstanciando-se esta ação no seu apoio fi-
nanceiro assim como na cedência de um espaço próprio de modo a que pudesse funcionar
naquilo que são os espaços de ensaio e produção musical, permitiu ainda que os meios
e os recursos da terra fossem dinamizados ao ponto de se ver surgir, nesse equipamento
cultural, não só a atividade da banda de música propriamente dita, como a criação de um
grupo de teatro e de um grupo de Jazz. Nesta sua ação, Joaquim Martins da Cunha, 1.º
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Visconde de Rio Torto, dignifica uma atividade artística e cultural que, realizada a partir
da prática musical por parte das gentes de Rio Torto, lhe permite adquirir uma formação
mais capaz e que a eleva em muito a nível musical, cultural, social e cívico10. A atividade
10
A criação de uma Banda Filarmónica em tempos tão remotos exige esforço e dedicação. Decorrente de uma
necessidade, mas também da visão de um grupo de residentes apoiados por um homem da terra, a Filarmónica
viu a luz do dia produzindo efeitos imediatos em toda a população. Isto acontece porque todos estavam se-
dentos de cultura e arte, assim como de ajuda material para conseguirem levar a cabo a prossecução dos seus
intentos criativos, musicais e artísticos. Abastado proprietário, Joaquim Martins da Cunha fornece os meios
materiais necessários à sua fundação. A denominação da banda de música de Filarmónica Gratidão surge em
clara recordação da Fazenda que possuiu em Angola, a qual detinha a mesma designação. Herdada de seu tio
José Bernardo da Silva, nas proximidades de Luanda, Angola, esta fazenda foi, também ela, um dos maiores
feitos de Joaquim Martins da Cunha. A Fazenda Gratidão foi uma das mais evoluídas à época, desenvolvendo
571 //
cultural, social e cívica que se realiza nas instalações que cede à Filarmónica Gratidão, con-
duz ao desenvolvimento de toda a população de Rio Torto em outras áreas e valências que
não aquelas decorrentes da sua atividade laboral, dignificando desta forma o ser humano,
o povo e as gentes deste lugar11. Acresce a prática religiosa subjacente, e que nestes tempos
e lugares tinha, e continua a ter, uma enorme importância12.
Se os recursos materiais são vastos, não menos importantes são os recursos imateriais
presentes nesta região do país. No caso de uma Banda Filarmónica, ela destapa os elemen-
tos presentes no território onde se insere, podendo ser investigada de vários ângulos, seja
intentando a sua inserção do ponto de vista geográfico e territorial, seja percebendo as suas
características enquanto formação musical, a sua importância a nível cultural, social e ar-
tístico na comunidade e região onde se insere, entre muitos outros. Depois de delimitado
o nosso objeto de estudo, a nossa investigação identifica aspetos de ordem material, hon-
rando ainda o conjunto dos seus recursos imateriais. No seu conjunto englobamos ações
de divulgação e dinamização do território, bem como de atividades culturais de emanci-
pação, dinamização ou desenvolvimento de comunidades e de grupos13. Neste conjunto,
encontramos ainda as diversas festas, crenças e tradições, nomeadamente aquelas que aqui
pretendemos relevar, algumas vezes secundadas pela participação da Filarmónica Gratidão
Riotortense, atestando a forte relação da banda com a comunidade14.

uma forma de organização inovadora que lhe permitiu potenciar os recursos materiais e humanos da região,
mas também do seu país de origem, pois que muitos foram os que da região de Rio Torto se deslocaram para
esta Fazenda para trabalhar e progredir humana e financeiramente. Na posse de inúmeros recursos materiais
e financeiros, Joaquim Martins da Cunha não privou a sua terra do usufruto das suas conquistas. A sua per-
manência por terras de Africa nunca o fez esquecer as suas origens, tentando retribuir-lhe, de alguma forma, a
possibilidade do berço, das terras e dos recursos herdados, bem como dos meios nele conquistados.
11
A prática da música de conjunto em diversas formações e contextos, bem como do teatro, consente ainda o surgi-
mento de diferentes processos de integração e interação entre o homem, a comunidade e o meio, desenvolvendo
um sentimento de pertença e uma consciência cívica mais alargada, sentimentos que ainda hoje prevalecem.
12
Atualmente existem cinco edifícios religiosos em Rio Torto: A Igreja Paroquial e as Capelas de Nossa
572 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Senhora da Conceição, de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa Senhora dos Verdes, bem como aquela per-
tencente ao edificado da Casa da Capela. Acresce a presença de vestígios da permanência na região de outros
cultos religiosos ou da sua conversão à religião católica, como o são a presença de cruciformes nas umbreiras
de algumas portas de casas que identificamos como das mais antigas da povoação.
13
Neste contexto, percebemos que os núcleos culturais de uma determinada região, apoiados ou não pelo
setor público, assim como as associações dedicadas à preservação e divulgação do património, são agentes
importantíssimos para a organização e gestão de eventos culturais, mas também aqueles dinamizadores de
ações de formação dos públicos de um modo geral, buscando atrair a população aos seus territórios. O facto
poderá ser motor de desenvolvimento e de atratividade para os territórios. Em lugares onde a desertificação
se confirma, urge o estudo e divulgação dos recursos e patrimónios locais, das suas associações e coletivida-
des culturais e desportivas, visando a sua promoção e divulgação.
14
A prática da música de conjunto em diversas formações e contextos, bem como do teatro, consente ainda
o surgimento de diferentes processos de integração e interação entre o homem, a comunidade e o meio,
desenvolvendo um sentimento de pertença e uma consciência cívica mais alargada, sentimentos que ainda
hoje prevalecem.
O modo como a preservação e divulgação dos recursos imateriais se processa em terri-
tórios do interior do país, e no meio rural de Rio Torto em particular, diz daqueles que se
encontram à frente destas associações, instituições e coletividades, mas também daqueles
que se encontram nos órgãos de gestão autárquica e municipal. São eles que permitem a
promoção destes espaços de criação e divulgação musical, cultural e artística, contribuindo
para a sua preservação, assim como para a construção de uma identidade cultural local,
em regiões caracterizadas pela interioridade. É não só importante, como no nosso enten-
der essencial, a preservação destes espaços de formação. São eles que nos propomos rele-
var, mormente aquele que sustenta a atividade de uma Banda Filarmónica, em particular.
Situada numa região específica do interior do país, a Filarmónica Gratidão Riotortense,
Sociedade Beneficente e Educativa, quando fundada em 1875, mais tarde constituída
como Associação Recreativa e Cultural (1981), e cuja atividade se estende por quase 150
anos, emerge como um ativo cultural de valor numa região agastada pela interioridade, a
povoação de Rio Torto.

1. Património Histórico e Cultural da Região de Rio Torto

O património histórico e cultural de uma região é constituído por tudo aquilo que a
sociedade produz e alcança do ponto de vista material e imaterial. De uma importância
cultural e social de relevo para a sua região, os elementos que o compõem concorrem para
a sua valorização enquanto espaços de cariz geográfico, mas também social e cultural. De
acordo com as suas características, mas também genuinidade, torna-se, em função da ca-
pacidade local em o preservar e promover, importante não só para a comunidade de onde
emerge como, nalguns casos, para toda a humanidade. Identificamos neste conjunto dois
tipos de património histórico e cultural: o material e o imaterial. O património material
engloba o conjunto de bens físicos que compõem um determinado património. Trata-se
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
do conjunto de obras, estruturas, espaços e elementos de uma qualquer natureza, cujo
valor histórico, cultural e social faz da sua preservação e valorização, um fator de interesse
não só local, mas também nacional e global. Nesse conjunto, podemos englobar elemen-
tos, móveis ou imóveis, como sejam pinturas, livros, arquivos e documentos históricos,
acervos fotográficos, cinematográficos e outros acervos museológicos, núcleos urbanos,
cidades, vilas e aldeias, prédios e construções históricas, sítios arqueológicos e paisagís-
ticos, parques naturais e monumentos, entre outros. O património imaterial congrega o
conjunto de elementos que contribuem para a formação cultural de um país, mas que não
são físicos. Nessa categoria reúnem-se todos os elementos característicos e ritualísticos das
festas e festividades de cariz popular, os idiomas e dialetos de um país ou região, os festivais
573 //
e ritos de cariz religioso, bem como os elementos que podemos recolher relativos à sua
gastronomia e ao seu artesanato local (Unesco, 2003). Deste modo, e dado a caracterização
do espaço geográfico, histórico e cultural da região de Rio Torto, encontramos todo um
conjunto de elementos concernentes o seu património, seja ele, material ou imaterial, que
passamos a revelar.

1.1 Património Material

A Junta de Freguesia de Rio Torto e Lagarinhos, reconhecendo a importância do seu


património histórico e cultural, e o seu património edificado, tem desenvolvido, ao longo
dos anos, diversas ações para a sua preservação, recuperação e valorização. Apostando na
reabilitação urbana, a sua ação passa, para além da recuperação, manutenção e valorização
das suas infraestruturas base, pela recuperação, manutenção e valorização do seu patrimó-
nio material e imaterial. Analisando o exposto pelo Presidente da União de Freguesias de
Rio Torto e Lagarinhos, percebemos que o mesmo tem tido, como estratégia de desenvol-
vimento autárquico, não só a preservação e divulgação destes patrimónios, como o reforço
da coesão social, o melhoramento da mobilidade, apostando, ainda, na reabilitação urbana
(União de Freguesias de Rio Torto e Lagarinhos, 2014). No campo do reforço da coesão
social podemos atestar o apoio e incentivo constante que dirige às coletividades, sejam
elas predominantemente capacitadas para desenvolver uma ação a nível social, ou a nível
desportivo, cultural e cívico, como é o caso da Banda Filarmónica Gratidão Riotortense,
Associação Recreativa e Cultural.
No que concerne o seu edificado, Rio Torto possui um conjunto elevado de elementos
de interesse histórico e arquitetónico, dizendo não só da sua importância enquanto local
de residência no espaço geográfico de um dos sopés da Serra da Estrela, como das condi-
ções socioeconómicas dos seus habitantes. Do conjunto do seu património material, rele-
vamos a Pedra de Orca, um monumento funerário pré-histórico, um dólmen que, pelas
574 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

suas características, testemunha a presença humana na região em tempos muito recuados,


e a Ponte Medieval construída sobre as bases de uma Ponte Romana, denunciando, mais
uma vez, que a população há muito que se fixa por estas paragens. A existência de outros
elementos arquitetónicos que denunciam a presença de populações de origens e crenças
diferentes, atestam a capacidade de acolhimento por parte das suas gentes, de povos e
culturas diferentes, povos que em foram alvo de perseguição por parte da Inquisição e da
Igreja Católica Apostólica Romana, como sejam os Judeus. Entre o restante património
edificado não podemos deixar de mencionar as Fonte de Chafurdo na rua com o mesmo
nome, e na Rua Nova, o Coreto, a Casa Típica de Rio Torto, duas residências particulares,
a casa do 1º Visconde de Rio Torto e a Casa da Capela – Solar da família Moura Portugal,
bem como a Antiga Capela de Rio Torto, a Capela de Nossa Senhora do Carmo, a Capela
de Nossa Senhora da Conceição, a Capela de Nossa Senhora dos Verdes e a Nova Igreja
Paroquial de Rio Torto, uma Igreja construída em louvor do seu Patrono, S. Domingos.
Existem ainda, nas construções comuns ou nos balcões, interessantes detalhes de cantaria
e de ferro forjado que merecem a nossa atenção, para além de muitos outros elementos de
interesse patrimonial como sejam as fontes e fontanários, as alminhas ou aqueles incluídos
no seu Cemitério.

1.2 Património Imaterial

A Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, datada de 2003,


determina que o património cultural imaterial de uma região inclui as tradições ou expres-
sões vivas herdadas dos nossos antepassados e transmitidas aos nossos descendentes, tais
como tradições e expressões orais, abrangendo a língua como vetor do património cultural
imaterial; artes do espetáculo; práticas sociais, rituais e eventos festivos; conhecimentos e
práticas relacionados com a natureza e o universo; assim como todo um conjunto de ap-
tidões ligadas ao artesanato tradicional (Unesco, 2003). Entende-se neste contexto como
“salvaguardar”, a adoção de medidas destinadas a assegurar a viabilidade do património
cultural imaterial, incluindo a identificação, documentação, pesquisa, preservação, pro-
teção, promoção, valorização, transmissão, ações que se realizam essencialmente através
da educação formal e não formal, bem como da revitalização dos diferentes aspetos desse
mesmo património (Unesco, 2003)15. Portugal ratifica esta convenção no ano de 2008,
data depois da qual diversas ações de valorização e salvaguarda do nosso património decor-
rem de modo a que o mesmo não se extinga. Incluímos no conjunto do seu património
imaterial as bandas de música e todas as ações por, e com elas, perpetradas.

1.2.1 Bandas de Música do concelho de Gouveia


As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

As bandas de música, ou filarmónicas, para além de serem consideradas importantes


centros de aprendizagem musical nos locais onde se radicam, são muitas vezes instituições
seculares consideradas por muitos como escolas de vida, formando músicos e profissionais
de valor, tanto no campo da música, como em outras áreas. Se numa primeira fase estas
instituições, e as suas bandas, se formam por vontade própria, de forma livre, mas con-
sequente, diversos são os fatores que, alheios à sua vontade, podem contribuir para a sua
extinção. A sua vitalidade e resiliência, denunciadora da capacidade de resistir e do valor

15
É em ações de identificação e valorização desse património que se insere o trabalho ora realizado.
575 //
de todos os seus integrantes, da sua força, coragem e valentia, resultam na permanência
no ativo de muitas destas formações, por mais de um século. Se nos finais do século XIX,
inícios do século XX, a vontade de alguns era suficiente para fazer eclodir no seio de uma
população, ações e associações de cariz cultural um pouco por todo o lado, a partir da
década de 30, alguns fatores menos positivos, vão desgastando a continuidade destes agru-
pamentos. Ao longo da década de 1930, a criação e difusão de atividade musical produzida
em outros géneros e estilos, com especificidades e valências diferentes daquela produzida
por uma banda de música, com repertório considerado mais moderno e cativante pela
população, desmerece a atuação destes agrupamentos, um pouco por todo o território.
Fazemos referência aos grupos de jazz que se criavam um pouco por todo o país, muitos
deles até no seio das bandas de música, integrando alguns dos seus mais capacitados e va-
lorosos músicos e intérpretes16. A necessidade de abrilhantar as festas populares e os bailes
era um facto. Estes grupos chamavam mais público e, por conseguinte, era obtida maior
receita para aqueles que os organizavam. Além disso, estes agrupamentos, com efetivos
bem menos numerosos que uma banda, tornavam-se mais apelativos à contratação. O seu
repertório, diferenciado daquele realizado por uma banda de música, era também ele, e à
época, bem mais apelativo aos jovens.
Mais tarde, o início da década de 1950, coincide com o corporativismo das associações
culturais encetada pelo regime do Estado Novo e a aplicação dos Terceiros Estatutos da
Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT)17. Este facto coloca um fim ao
modelo de organização mais liberal que regulava o modo de funcionamento destas asso-
ciações, levando a que muitas se extinguissem, e outras tivessem que reformular os seus
estatutos de modo a sobreviver ao embate18. Acresce a todos estes factos, a crescente falta
de interesse por parte de muitos jovens pelas atividades promovidas no âmbito das bandas
e sociedades filarmónicas, bem como uma vigilância pouco discreta encetada pelo Estado
sobre as pessoas, coletividades e os seus agrupamentos, promovendo um afastamento das
pessoas de modo a não serem importunadas pelo regime e as formas de repressão por ele
576 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

encetadas. Outro dos fatores que contribuiu para a implementação de uma crise ao nível
das filarmónicas, foi a alteração do sistema de afinação de 452 Hz (afinação “brilhante”)
16
Num dos seus Livros de Contas encontramos registados serviços dessa natureza. Em 1978 em Pinhanços o
Grupo de Jazz da Filarmónica Gratidão é convidado a atuar de modo a abrilhantar uma festa local.
17
Tais estatutos obrigaram as associações culturais e associações de recreio a filiarem-se neste organismo, sob
pena de suspensão temporária da sua atividade ou mesmo da sua dissolução.
18
A partir deste momento as bandas de música passam a ser reguladas pelo modelo corporativista da FNAT.
Esta supremacia veio prejudicar o trabalho promovido pela Federação das Sociedades de Educação e Recreio,
instituição que desde o ano de 1924 regulamentava tais associações. Neste contexto, e porque não só esta
mudança estatutária, mas também as diversas crises económicas e socais que afetaram significativamente a
todos, torna o trabalho, a permanência e resiliência de todas estas bandas que encontramos um pouco por
todo o país, e no concelho de Gouveia em particular, ainda mais importante e meritório mencionar.
para 440 Hz (afinação “normal”) em 1953. Por último, os constrangimentos demográficos
da década de 1960, provenientes de uma emigração massiva para outros países da Europa,
e uma fuga ao iminente recrutamento e destacamento para integrar as fileiras do exército
português destacado para a Guerra Colonial, contribuiu negativamente para o desenvolvi-
mento e permanência da atividade musical em contexto de banda filarmónica.
No que ao conjunto de bandas filarmónicas do concelho de Gouveia diz respeito exis-
tem seis bandas de música desde finais do século XIX. São elas, por ordem de antiguidade,
a Banda Filarmónica de Vila Nova de Tazem (Vila Nova de Tazem; fundada em 1863), a
Filarmónica Gratidão Riotortense (Rio Torto; fundada em 1875), a Sociedade Recreativa
e Musical de Moimenta da Serra – Filarmónica Moimentense (Moimenta da Serra; fun-
dada em 1879), a Filarmónica Amizade de Arcozelo da Serra (Arcozelo da Serra; fundada
em 1880), a Sociedade Musical Gouveense “Pedro Amaral Botto Machado” (Gouveia;
fundada em 1911), e a Sociedade de Instrução e Recreio de Paços da Serra (Paços da Serra;
fundada em 1922).

2. A Filarmónica Gratidão e a Comunidade

A Filarmónica Gratidão Riotortense faz, sem dúvida, parte do património histórico


e cultural de Rio Torto. Quando falamos de património histórico e cultural, estamos a
reportar-nos, tal como refere, Aníbal Frias, “(...) a um acto de legitimação que confere um
valor artístico, histórico, cultural, ideal ou simbólico a uma construção, um objeto, uma
prática ou um espaço” (Frias, 2000, p. 10). Aquele que o objeto da nossa atenção realiza,
não só a nível musical, como nível social e recreativo, faz com que a Banda Filarmónica
Gratidão Riotortense, faça parte do património histórico e cultural da povoação de Rio
Torto, revelando-se um ativo de acrescido valor para a povoação, a comunidade e a região
onde se insere, o concelho de Gouveia. Fundamenta esta nossa afirmação o conjunto de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
ações que vai concretizando ao longo dos anos, o acervo que possui, denunciador de uma
intensa atividade cultural e artística, bem como as características sociais e humanas da
equipa que a sustenta, quer do ponto de vista administrativo – nas pessoas dos seus órgãos
diretivos –, quer do ponto de vista musical e artístico – nas pessoas do seu diretor artístico,
maestro e músicos. Acresce a contínua ação sobre a comunidade, aquando das inúmeras
ações que promove a nível social e que, de cariz religioso ou profano, se inserem no fazer
de uma instituição desta natureza.
Nesse contexto, referimos a importância das festas e romarias, manifestações culturais da
maior importância para o revelar dos elementos da identidade dum povo ou lugar. Momentos
privilegiados de descoberta para o ser humano, têm, não só uma dimensão e função religiosa,
577 //
como profana. Marcando o ritmo da vida, definindo labores nos tempos e ritmos que estru-
turam nos espaços geográficos onde se inserem, estas ações surgem apoiadas num tempo que
se define nas estações do ano, mas também diversos aspetos a nível social, religioso, cultural
ou tradicional. De modo a que se concretizem, organizam-se grupos de trabalho, muitas
vezes aqueles que desfrutam da presença dos seus mordomos, de modo a que os rituais e os
ritos, os espaços de festividade e de festa, se realizem. Nasce assim um sentimento de grupo
e de pertença, confirmando o valor das relações sociais e grupais que se identificam aquan-
do dessas concretizações. No contexto da região de Rio Torto e da Filarmónica Gratidão,
consideramos de todo pertinente refletir sobre a relação de reciprocidade que existe entre
a Banda e a comunidade. Recurso primordial, e privilegiado, no domínio da preservação e
valorização da cultura e tradição deste território, é na relação de permanente interação com
a comunidade, que a mesma sobrevive e se nutre naquilo que lhe permite sobreviver. Nas
considerações de Bessa (2009, p. 23), “o envolvimento de toda a comunidade na vida das
Filarmónicas foi e continua a ser importante, necessário e mesmo obrigatório, porque é este
comprometimento que as suporta”. Além de todas as formas de subsistência financeira que
recolhe do meio onde se insere, as relações que estabelece com a comunidade permitem-lhe
a “consolidação dos laços de camaradagem entre os seus membros e as populações” (Bessa,
2009, p. 23). É destes que surgem as correntes que os unem, permitindo a sua permanência
espacial e temporal ao longo dos anos.
Consideramos a participação nas festas e romarias da terra, como um dos espaços pri-
vilegiados para o desenvolvimento dos laços de camaradagem que unem a todos, mas tam-
bém para o desenvolver da vontade de ser e participar na formação de uma identidade de
âmbito local. A Filarmónica Gratidão desse facto não se alheia. A existência de uma banda
de música, possibilita, na riqueza de possibilidades que encerra, “a criação e conservação
da identidade local” (Pinto e Figueiras, 2018, p. 119)19. Para além da formação de uma
identidade local, relevamos a sua função beneficente e educativa, mas também cultural e
recreativa. Desde o seu início que estas intenções e vontade se encontram expressas nos
578 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Estatutos da Filarmónica Gratidão.No Capítulo II, Objetivos, artigos 3.º e 4.º dos seus
Estatutos, encontramos expresso que: “A Filarmónica Gratidão Riotortense terá por fim a
execução de música, instrução e recreio promovendo a formação moral e social dos seus as-
sociados. A Filarmónica Gratidão procurará: a) – Criar um fundo social através de amigos
da Filarmónica já em funcionamento destinado as actividades recreativas e culturais dos
seus associados; b) Manter uma escola de música da responsabilidade do regente da banda
para os menos, filhos ou não dos associados; c) – Apoiar com todos os meios ao seu alcance

19
Para Pinto e Figueiras (2018), será relevante salientar o seu contributo para a promoção de uma maior coesão
social, facilitando a formação musical e cultural das populações e a prática musical em contexto de grupo.
a luta contra o analfabetismo.”20. Naqueles definidos em 21 de maio de 1981, encontramos
expresso no seu artigo 3.º que são fins da associação “a execução de música e a promoção
cultural, recreativa e social dos seus associados”21.
Se a existência de várias associações culturais e desportivas denuncia uma necessidade
de se valorizar nestas áreas, a existência de numerosos edifícios de cariz religioso, denuncia
a forte religiosidade da população de Rio Torto. Sendo bastante crente, a organização de
festas e romarias em honra dos seus Santos de devoção, fazem, obrigatoriamente, parte dos
hábitos e costumes da população. As que ainda hoje, persistem são: a de São Domingos
(Rio Torto), a da Nossa Senhora da Conceição e da Senhora dos Verdes (Rio Torto),
a de Santo Amaro (Passarela) e a de Santa Eufémia (Paranhos da Beira)22. Nos espaços
multiculturais em que vivemos, a tradição pode ser a ferramenta útil à convivência entre
os povos, motor de relações sociais e interpessoais humanizadas, e fator de equilíbrio eco-
nómico e social de valor. As celebrações religiosas e profanas atingem o seu apogeu nos
territórios em que as festas em honra dos Santos Padroeiros se declaram lugar obrigatório
de romaria. Neste contexto, surge ainda um outro tipo de manifestações culturais que se
mantém graças à perseverança de grupos de homens e mulheres que não desistem, e que
são aquelas relativas às tradições ligadas às festividades do Carnaval, da Páscoa, dos Santos
Populares, entre outras.
No caso da povoação de Rio Torto prevemos, pela informação divulgada, que as cele-
brações realizadas no Carnaval e na Páscoa eram bastante abundantes em elementos etno-
gráficos. Sabemos, por informação recolhida decorria o ano de 1992 a José Lucas, e cedida
por Gonçalo Nascimento, que: “O Carnaval em Rio Torto era muito alegre. Os homens
e as mulheres mascaravam-se de várias coisas. Alguns homens mascaravam-se com uns ca-
potes velhos de palha, atavam uns chocalhos e corriam o povo. Outros faziam máscaras em
madeira e as mulheres vestiam roupas velhas, cantavam e dançavam. O Ti Manel Choco,
um homem lá da aldeia, tinha um carro de bois. Esse carro era enfeitado com bonecos.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


20
No conjunto das atividades que dissemina anualmente vemos, para além da participação em eventos mu-
sicais, a criação de formas e modos de unir a comunidade, de se nutrir financeiramente promovendo Rio
Torto um pouco por toda a região. Neste contexto, pode ser vista como uma “Banda Comunitária” e um
centro de socialização local.
21
Nos seus associados identificamos a população de Rio Torto.
22
Neste contexto, e de modo a abrilhantar as diversas festividades organizadas no seio da comunidade, percebe-
mos pelos registos que, desde início do século XX era tradição formarem-se grupos de jovens da povoação que
partiam de madrugada tocando realejo e cantando animadamente até ao local da romaria. Quando lá chega-
vam, os rapazes, por norma, davam uma esmola ao Santo ou à Santa e, em troca, era-lhes dado um cartão com
a imagem do Santo. Quase como um troféu, os rapazes colocavam a imagem na fita do chapéu como prova
do seu feito, mas também na intenção de a levar para casa, de modo a poder dar seguimento à sua devoção
afirmando a sua fé (Nascimento, 2023; Coelho, 2023). Estes modos de ser, genuínos, transcorriam até meados
do século XX, todo o território nacional, sendo que aos poucos se vão perdendo, aqui e ali, denunciando um
desapego dos povos por tudo aquilo que representa mais materialmente qualquer ato de fé.
579 //
Assim se passavam os carnavais nos anos de 1930 a 1950”. Mais recentemente, o ritual e
o rito de Carnaval aparecem mesclados por um modo de atuação onde se insere o cortejo
de carros alegóricos. A Filarmónica Gratidão tem participado nestes eventos construindo,
a cada ano, um carro temático que satiriza uma problemática social e/ou política de rele-
vo. No que concerne a Páscoa, José Lucas conta que: “Quando chegava a Quaresma, as
varandas e as janelas enchiam-se de velas e colchas, nas procissões. O Senhor dos Passos,
os sermões realizados por pregadores vindos de fora, a Via-Sacra realizada pelos jovens,
são exemplos que ilustram bem a religiosidade vivida. Na Semana Santa, especialmente na
Quinta-feira, só se trabalhava até ao meio-dia, e depois à noite havia a procissão. Na Sexta-
feira, só se trabalhava depois do meio-dia, ocorrendo à noite o Enterro do Senhor. No
próprio dia de Páscoa também as roupas eram objeto de relevo e cuidado. Sapatos, blusa,
lenço de seda, saia, tudo era novo e até os pobres se arranjavam com algo novo. O pão de ló
era enfeitado com bordados para o padre. Além das doçarias, também davam ovos, produ-
tos agrícolas, queijos e, em determinadas alturas, ofereciam o almoço. Tudo era realizado
com calma e a visita Pascal podia ser dois dias. Era uma grande festa. Cantava-se muito,
havia um grande ambiente de solidariedade, de união, de paz, de harmonia. A Péla era o
jogo preferido nesta altura. Em todas as ruas se jogava e havia grupos. Era uma festa que
marcava imenso o uso, os costumes, a vida rotineira e diária das pessoas. Em Luanda a festa
era realizada com os amigos, devido à ausência de padres para o serviço religioso. Através
das refeições, todos se uniam para um pouco de conversa e relembrar as suas origens”23.
Apesar das transformações que se verificam, fruto das necessidades e das vontades polí-
ticas e sociais das épocas que sucessivamente se atravessam, o simbolismo dos rituais e dos
ritos, dos tempos, dos espaços e das narrativas, bem como a confluência e influência das
diferentes gerações que concorrem para a efetivação da sua prática, constituem-se elemen-
tos de uma identidade cultural e territorial próprias. Esta identidade reflete-se na forma de
ser e estar da população, bem como na relação constante que se estabelece entre o homem
e o meio. Neste contexto, são revigorados os mitos e as lendas, as festas e as tradições, os
580 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

rituais e os ritos, as práticas e as ancestralidades, enquanto elementos de encontro e reen-


contro de, e com, as populações. Simultaneamente, a relação direta que estabelecem com
os tempos e lugares constitui uma razão da sua permanência, sem a qual a sua manutenção
perderia todo o significante e significado.
A atuação musical ao longo dos diferentes momentos da festa e da romaria, dá visibi-
lidade à Banda. Ao motivar e estimular as coletividades e os seus integrantes, a atuação da
Banda promove processos de desenvolvimento social e cultural para a região. Desde sempre

23
Informações recolhidas a partir de uma conversa de Gonçalo Nascimento e Diogo Chouzal Nascimento,
com o senhor José Lucas, natural de Rio Torto, emigrante em Luanda, e que na altura, decorria o ano de
1996, se encontrava com a bela idade de 104 anos. O nosso agradecimento pelo testemunho.
que a música acompanha as festividades da freguesia e do lugar. Organizando, coordenando
ou desenvolvendo atividades de animação de carácter cultural, educativo, social, lúdico e/ou
recreativo, revitalizando territórios, a Filarmónica Gratidão surge, numa sociedade em con-
tínuo desenvolvimento, e que, à época denunciava fortes alterações sociais. Neste contexto,
o desafio surge maior, pois não é fácil, atendendo aos escassos recursos que a instituição pos-
suía, desenvolver o seu trabalho, conciliando interesses locais, com interesses institucionais,
individuais ou mais globais. Há que harmonizar o choque de valores individuais e coletivos,
culturais e económicos, os interesses diversificados de uma sociedade em contínua evolução.
Ao pensar, ao dar voz e ao atuar do individuo e do grupo, são promovidas ações que determi-
nam, por si mesmas, o desenvolvimento sociocultural de grupos e comunidades. Partindo do
grupo e do meio envolvente, organizam-se e promovem-se atividades tendo em conta o meio
onde se inserem e as necessidades do grupo e dos indivíduos a quem estas mesmas atividades
se destinam. Sem isso a sobrevivência não será possível.
Atualmente, a Banda Filarmónica Gratidão Riotortense, como não podia deixar de o
fazer, participa regularmente em festas religiosas, um pouco por todo o concelho, ao longo de
todo o ano. Para além da Festa de São Domingos, o Patrono de Rio Torto (segundo domingo
de Agosto, sendo a festa principal), a banda participa nas festividades de Nossa Senhora da
Conceição (Rio Torto, primeiro domingo de Agosto), da Senhora dos Verdes (Rio Torto, no
sétimo domingo depois da Páscoa) e na de Santa Eufémia (Paranhos da Beira, segunda-feira
de Páscoa). Para além da presença nestas festas de caracter religioso, que constituem a prin-
cipal percentagem de atuações, a Filarmónica participa também em outras comemorações
quando solicitada, bem como em diversas atuações ao longo do calendário judaico-cristão
como são o Cantar das Janeiras, o Carnaval, a Páscoa, os Santos Populares, o Dia de Todos os
Santos ou o Natal. Noutro contexto, e quando solicitada, anima qualquer atividade em curso
na povoação ou arredores, seja uma festa, seja um peditório, um cortejo, etc. Um dos objeti-
vos de qualquer coletividade ou associação cultural passa pela divulgação da sua terra e região.
Nas diversas atuações que realiza ao longo do ano civil e religioso, a Filarmónica inicia
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
o ano a cantar as Janeiras, hábito cultural português que não quer deixar morrer. O ato de
cantar as Janeiras é uma forma de desejar a toda a comunidade Riotortense as Boas Festas
e um Feliz Ano Novo, bem como de angariar fundos junto da comunidade. Durante o mês
de Janeiro, percorre as ruas tocando e cantando, passando por todas as casas da freguesia.
Deslocando-se de porta em porta, intenta assim conseguir o apoio necessário à sua subsis-
tência, sobrevivência e função. A população de Rio Torto, chamada a contribuir, não com-
promete as intenções da Filarmónica, uma banda, que necessita do contributo de todos
para subsistir. No calendário judaico-cristão surge logo depois o Carnaval, festividade pagã
com forte presença ao longo do nosso território, e na qual a originalidade e identidade do
território se manifesta. Nas Festividades Pascais realiza alguns concertos em diversos locais
581 //
da freguesia. O mês de Agosto é um período especial para a Filarmónica Gratidão, pois é o
mês do seu Aniversário. O evento é comemorado com diversas atividades, culminando as
festividades com o hastear da Bandeira e a realização de um Concerto no Coreto da aldeia.
Numa outra vertente, a Filarmónica é presença assídua nos habituais Encontros
e Festivais de música promovidos pelo Instituto Nacional para o Aproveitamento dos
Tempos Livres (INATEL). A comemoração de cada aniversário é marcada, com a organi-
zação de um encontro de bandas no qual é a anfitriã. O Encontro de Bandas tem como
objetivo principal o convívio de todos os filarmónicos, sendo o evento constituído por um
momento muito especial de convívio onde destacamos não só o aspeto social e recreativo,
mas também a partilha de experiências entre as coletividades, agentes culturais, músicos,
órgãos dirigentes e associativos, e não só. Estes encontros são promovidos pelo Município
de Gouveia, contando com o apoio das diversas Juntas de Freguesia das localidades repre-
sentadas e das Filarmónicas presentes na iniciativa a cada ano e lugar24.

Conclusão

Pertencer a uma Banda Filarmónica ou a um qualquer grupo cultural ou desporti-


vo, associação ou coletividade, mais do que uma ocupação do tempo por aqueles que
as integram, surge como meio de desenvolvimento cultural e formativo, promovendo a
divulgação e afirmação de uma cultura e região. A frequência de uma Banda Filarmónica
permite, para além do convívio social consequente, a aprendizagem da música, de um
instrumento musical e o desenvolvimento de competências relacionais e cívicas várias.
Simultaneamente, desenvolve o espírito de grupo, o sentido comunitário, permitindo-
-nos afirmar que uma Banda Filarmónica será, para além de uma escola de música, uma
escola de vida, de fraternidade e solidariedade, de relevo para qualquer localidade e região.
Ao longo deste percurso, e nas experiências que o mesmo nos proporcionou, Rio Torto
582 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

revela-se num inexprimível combinado de emoções quando somos levados a percorrer as


suas ruas, indagando o seu património e as suas gentes. Rica de inúmeros recursos ma-
teriais e imateriais, a povoação revela-nos um património histórico e cultural de inegável
valor. Deste sobressai um interesse maior pelas práticas da religião, da cultura e das artes,
interesse que sobressai ao longo do edificado erigido ao longo do seu espaço urbano. De
modo a que este património seja salvaguardado, numerosos esforços de valorização e pre-
servação têm sido feitos ao longo dos séculos por parte de todos os residentes na povoação

24
Gouveia é um concelho com uma grande riqueza cultural. São seis as filarmónicas que no concelho têm
desenvolvido uma atividade cultural relevante, levando o nome do concelho bem longe.
e, sobretudo, por parte daqueles que à frente dos poderes públicos se mantém. Se o seu pa-
trimónio material é importante e revelador da antiguidade e importância deste edificado,
não o é de menor significado o seu património imaterial, que se consubstancia nas práticas
culturais e artísticas, nas suas crenças e tradições.
Ao nível da sua promoção e preservação, percebemos que a ação da União de Freguesias
de Rio Torto e Lagarinhos na pessoa do seu Presidente Gonçalo Luís Chouzal do Nascimento,
conjuntamente com as diferentes associações culturais e recreativas sediadas na freguesia, dais
quais a Filarmónica Gratidão faz parte, têm desenvolvido um trabalho de relevo ao longo dos
últimos anos. No que concerne o enfoque deste nosso trabalho, a Filarmónica Gratidão, fa-
cilmente percebemos que desde a sua fundação que possui um papel maior na formação cívi-
ca, social e cultural das gentes de Rio Torto, sendo que a sua sede se revela não só um local de
formação a nível musical, mas também a nível social, cívico e cultural. As ações perpetradas
por todos aqueles que a esta associação pertencem o demonstraram, e demostram, ao longo
de todos estes anos, sendo que, em momentos chave da sua existência a Gratidão têm conta-
do com a capacidade, a inteligência e a resiliência de alguns que, nos momentos mais graves,
assumiram a sua direção, diligenciando para que a Gratidão não sucumbisse face às muitas
dificuldades que, em alguns anos, atravessou. A caminho dos 150 anos, esta nobre associa-
ção recreativa e cultural tem, também ela, vindo a concretizar uma importante viagem. Do
sonho de todos aqueles que desde a primeira hora a desejaram, resulta uma formação que se
vai recriando e redizendo nas possibilidades de alguns e na vontade de muitos. Parafraseando
Roberto Shinyashiki, afirmamos também nós que, tudo o que um sonho precisa para ser
concretizado é que alguém acredite, para que não deixe de ser executado. Desencadeado no
longínquo ano de 1875, o sonho de alguns em fundar uma filarmónica encontra na força
de muitos riotortenses os recursos necessários para se concretizar, mas também progredir e
suster ao longo das várias décadas que preenchem toda a sua já longa existência. Que o sonho
nunca esmoreça, para que o homem, e a Gratidão, não faleçam.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Referências Bibliográficas

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584 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
A toponímia indígena da Paraíba:
significado, persistência e mudança dos
nomes das sedes de município

Inocencio de Oliveira Borges Neto1 Dirce Maria Antunes Suertegaray2


Rui Jacinto3 Amanda Borges Pereira4

1. Toponímia, geografia cultural e o seu estudo na Paraíba

A toponímia, que significa etimologicamente nome de lugar, tem vindo a ser progres-
sivamente investigada no âmbito da Geografia Cultural apesar do reconhecimento que
o seu estudo implica colaborações mais amplas de múltiplas áreas disciplinares. Importa
lembrar que, apesar da decifração dos topónimos ter tido a sua origem na linguística, a sua
análise aprofundada reclama contributos de áreas cientificas cada vez mais abrangentes e
complexas. A este propósito consideram alguns autores que
Atrás dos nomes de lugares escondem-se pessoas ou grupos que os inventam,
decretam, aceitam, rejeitam ou mudam. Tanto os acidentes geográficos quanto
os topónimos constroem territórios, territorialidades e identidades, e a tarefa da
Geografia Cultural será investigar, comparar e interpretar o significado dos nomes
dos lugares e as diferentes versões e visões da sua topogênese sejam do ponto de vista
oficial (por exemplo, decretos e leis), sejam a partir da cultura de um povoado com
as suas crenças populares, lendas e “mitos fundadores”, que mesclam a reconstrução As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

do passado com a (re)invenção de tradições (SEEMANN, 2005, p.220).

Compreender o significado dos lugares e seus vínculos, além dos aspetos estritamen-
te culturais, obriga a conhecer outras dimensões associadas às características naturais, à

1
Universidade Federal do Paraná (UFPR-BR). iobngpb@gmail.com
2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal da Paraíba (UFRGS/UFPB-BR). dirce-
suerte@gmail.com
3
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território e Centro de Estudos Ibéricos (CEGOT/CEI-PT).
rjacintomm@gmail.com
4
Universidade Federal do Piauí (UFPI-BR). amanda29pereira98@gmail.com
585 //
relação da comunidade com seu espaço de vivência e de trabalho, bem como a apropriação
política e econômica do espaço geográfico. A denominação de cada lugar e o significado
do respetivo termo acaba por traduzir, pois, o contexto geográfico, histórico, económico,
social, cultural e, mesmo, político. A toponímia é entendida por outros autores como “um
imenso complexo línguo-cultural, em que os dados das demais ciências se interseccionam ne-
cessariamente e, não, exclusivamente” (DICK, 1990, p. 16). Neste sentido, não obstante os
estudos relativos à toponímia já tenham um longo percurso, é inequívoca a possibilidade
de análise interdisciplinar duma temática que foi assumida pela Geografia com a emergên-
cia das abordagens culturais:
Muito embora a ação de nomear seja uma prática de existência remota, a preocu-
pação com o estudo dessa categoria de nomes data de poucos séculos. A Toponímia
– estudo lingüístico e histórico da origem dos nomes – como corpo disciplinar siste-
matizado surgiu na Europa (França) com os estudos pioneiros de Auguste Longnon,
por volta de 1878. (ISQUERDO, 1997, p. 28).

Nominar lugares e coisas remete, mais remotamente, para a origem do homem e da


linguagem, ensinando a história que muitos destes nomes chegaram até nós através da
oralidade. Esses nomes primordiais, como o nominados pelos indígenas, permaneceram
na toponímia através de registros, mapas e outros documentos históricos, elaborados pelos
colonizadores, podendo ser considerados, hoje, em certa medida e por estas razões, patri-
mônio histórico e lingüístico do Brasil.
A tese (1980) de Dick na área de Onomástica é, no Brasil, um marco temporal que
demarca e resgata os estudos sobre a toponímia. Esta pesquisadora constrói com aquele
trabalho e os estudos posteriores uma proposta de análise relativamente à toponímia que
permite “a aferição objetiva de causas motivadoras dos designativos geográficos, procurando su-
prir as demandas da pesquisa” (DICK, 1990, p. 25). A sua proposta, como referem Ananias
e Tavares (2022), baseia-se numa classificação em dois grupos que inclui categorias (17):
586 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

num inclui os nomes inspirados/motivados pela natureza física como os fitotopónimos, os li-
totopónimos e os hidrotopónimos; noutro, os nomes motivados por questões antropoculturais,
como os antropotopónimos, os etnotopónimos e os sociotopónimos. Propôs ainda o estudo dos
topónimos do ponto de vista de sua estrutura (simples, composta ou híbrida) e de sua etimologia
(ANANIAS; TAVARES, 2022). A análise das produções mais recentes feitas por estes au-
tores tendo por base as teses e dissertações inscritas na Plataforma Lattes, no período entre
1980 e 2020, “indicam um total de 142 trabalhos concluídos no período investigado, conforme
mencionado. Desses, a maioria, 103, corresponde a dissertações de mestrado, e 39 a teses de
doutorado, vinculadas a 26 universidades públicas brasileiras”. (...) “Verifica-se que as univer-
sidades que se destacam quanto à quantidade de trabalhos produzidos são a Universidade de
São Paulo – USP, a Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e a Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (ANANIAS; TAVARES, 2022, p. 3).
Indicaríamos que, se de um lado esses dados revelam um aumento de pesquisas nessa
temática, de outro não são reveladores duma investigação de forma mais abrangente, pois
muitos trabalhos, nesta temática são divulgados em revistas especializadas. Esta evolução
quantitativa de estudos sobre os topónimos evidencia um interesse crescente, seja a nível
internacional como nacional. Embora esta abordagem na Geografia se enquadre, normal-
mente, no âmbito da sua dimensão cultural, textos recentes referiam uma ascendência
deste tipo de temática em campos variados (SUERTEGARAY et al., 2023). Referem a este
propósito que:
A toponímia assume várias facetas e múltiplos prismas de análise, cada vez mais
estudados, como ficou demonstrado recentemente com a realização, em 2021, dum
evento internacional, Simpósio Internacional Pan-americano de Toponímia, promo-
vido pelo IBGE e a UFRJ. Nos anais deste evento temos uma ampla amostragem
de trabalhos possíveis e proposições variadas sobre o tema, trazidos de diferentes
países de todos os continentes. As múltiplas abordagens apresentadas vão desde as
leituras classificatórias de lugares à influência dos processos históricos na constitui-
ção dos seus nomes, das análises de topónimos em cartas náuticas à toponímia ur-
bana, sem esquecer, entre outros temas, os topónimos vinculados as origens étnicas
(SUERTEGARAY et al., 2023, p.447).

Os nomes dos lugares não são estáticos e tal evolução revela uma geografia própria
e dinâmica que muda com o tempo (histórico) e com o espaço, por motivos sociais ou
propósitos de ordem política. Tais processos de mudança no nome dos lugares acabam por
denunciar o sentido tomado pelos acontecimentos e, em certa medida, certas formas de
dominação. O caso mais emblemático destas mudanças associadas a intervenções políticas
aconteceu no Brasil no tempo de Getúlio Vargas (1930-1945) quando estabeleceu, através
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
de Decreto-Lei nº 311, de 02.03.1938, no seu Artigo16, que somente por leis gerais, na
forma deste artigo, pode ser modificado o quadro territorial, tanto na delimitação e categoria
dos seus elementos, quanto na respectiva toponímia5. Tal já havia acontecido, aliás, com o
Marquês de Pombal6 quando promoveu legislação que procedeu a substituição de nomes

5
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-311-2-marco-1938-351501-
publicacaooriginal-1-pe.html.
6
As mudanças implementadas pelo governo do Marquês de Pombal, ministro de d. José I, em relação às
populações indígenas no Brasil foi concretizada no documento intitulado “Diretório que se deve observar
nas povoações de índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”, de 1757,
mais conhecido como Diretório dos Índios. As transformações descritas pelo Diretório davam continuidade
a outras duas leis de 1755: a primeira restituía a liberdade aos índios e a segunda retirava dos missionários
587 //
locais por nomes de origem portuguesa para os normalizar e vincar o poder sobre o terri-
tório, como ocorreu sobretudo nos estados do Norte e Nordeste brasileiro. Ao incentivar
estas mudanças, as intervenções legislativas tinham por objetivo promover a permanência
do nome de certos lugares ou o apagamento de nomes originários. No caso brasileiro
existem inúmeros exemplos da substituição das novas denominações que algumas vezes
voltam a retomar, posteriormente, os nomes ancestrais dos lugares que haviam sido atri-
buídos pelos povos indígenas. São leis que denunciam tanto um certo nacionalismo ou
um exercício arbitrário de poder, embora exista em tempos mais recentes a tendência para
a padronização da toponímia em território nacional, sendo uma delas “a preferência pela
adoção de nomes indígenas ou relacionados a fatos históricos da região, no caso de substituição
de topónimos” (SEEMANN, 2005).
O presente ensaio dá continuidade a estudos anteriores sobre a toponímia dos estados
brasileiros do Rio Grande do Sul e da Paraíba (SUERTEGARAY et al., 2021 e 2023;
BORGES NETO et al., 2022; JACINTO et al., 2022) com o principal objetivo de inter-
pretar o significado e a persistência dos nomes indígenas nas cidades do estado da Paraíba
-BR. Esta análise leva em consideração os elementos fundamentais da paisagem origi-
nal, os diferentes povos originários, onde se destacam, neste estado, os Tupis (Tabajaras e
Potiguaras) no litoral e os Tapuias (Cariris e Tarairiús) no interior. Tendo como pano de
fundo o processo de colonização, a configuração política e a organização territorial a base
de trabalho valorizou o mapeamento do relevo (geomorfologia), a cobertura vegetal origi-
nal, a hidrografia e a divisão regional do estado.
A par desta identificação e do respectivo enquadramento em diferentes tipologias to-
ponímicas serão discutidas as razões que levaram à permanência dos nomes indígenas,
questionando-se por que resistiram, porque foram subsistidos enquanto outros lugares
mudaram de nome no decurso do processo histórico. A investigação pretende em termos
mais específicos interpretar o significado, a distribuição espacial, a persistência e os apaga-
mentos dos nomes indígenas das cidades da Paraíba. O procedimento analítico adotado
588 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

para esta construção parte duma classificação taxonômica das cidades com denominação
indígenas, adaptada das já ensaiadas em outros estudos, considerando o quadro natural,
regional e político-administrativo.

o poder temporal sobre as aldeias. Essas leis já conferiam o tom que teria o Diretório, diminuindo o poder
dos religiosos sobre os índios, principalmente os jesuítas, que seriam expulsos em 1759, e promovendo
mudanças nas relações entre índios e não índios. De acordo com a política pombalina, as aldeias deveriam
ser transformadas em vilas e lugares com nomes portugueses administrados por um governo civil. As ações
descritas pelos artigos do Diretório deixam claro o objetivo assimilacionista ao incentivar à presença de
não índios nas aldeias, os casamentos interétnicos e a extirpação dos costumes indígenas, de maneira a
transformar esses grupos em vassalos do rei de Portugal sem distinção em relação aos demais. Em 1758, o
Diretório dos Índios foi estendido ao resto do Brasil. http://www.pensario.uff.br/node/122.
Foram identificados 57 lugares entre as 223 sedes de municípios da Paraíba que
mantêm nomes de origem indígena. Com base na metodologia adoptada conclui-se
que os respectivos significados remetem para as seguintes tipologias: nome de plantas
(24), de animais (15), relacionados com a morfologia do terreno (2), relacionados com
a geologia (4) e a hidrotoponímia (3); foram ainda consideradas as que remetem para
elementos fundamentais do povoamento primordial (4), o paraíso na terra/sentimento
do lugar (2) ou o nome de pessoas (3). Um dos pressupostos desta análise é que os
elementos fundamentais da paisagem original e os sinais que particularizam a maneira
de viver de cada grupo originário fornecem informação preciosa para:(i) compreender
a relação entre toponímia e território dado que o nome dos lugares espelha a ocupação
do espaço e o processo de colonização; (ii) interpretar a interação dos elementos funda-
mentais da paisagem original com os diferentes povos originários e a influência destes na
humanização da paisagem; (iii) analisar como, apesar das mudanças ocorridas, persistem
nomes indígenas e os contextos em que ocorreram eventuais reposições posteriores de
nomes ancestrais de lugares.

2. O Estado da Paraíba: enquadramento, ocupação e relação com os


indígenas

2.1. Enquadramento da Paraíba no Nordeste do Brasil

O estado da Paraíba, localizado no Nordeste brasileiro, está subdividido administra-


tivamente em 223 municípios, tendo sido selecionados, em função do objetivo deste tra-
balho, os municípios cuja sede preservou o nome indígena (Figura1). O conjunto de 4
mapas da Figura 2 são representativos das características morfológicas, da cobertura vege-
tal original, da rede hidrográfica e da configuração regional do estado.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
A geomorfologia da Paraíba permite individualizar seis unidades que se indicam
numericamente no sentido Leste-Oeste, Planície Costeira (1), o Baixo Planalto Costeiro
(2), a Depressão Sublitorânea (3), o Planalto da Borborema (4), a Depressão Sertaneja (5)
e a Bacia Sedimentar do Rio do Peixe (6). Cada um desses compartimentos revela um
tipo de cobertura vegetal original predominante, onde temos a Vegetação Litorânea e a
Mata Atlântica, como coberturas originais das unidades planície Costeiras e Baixo Planalto
Costeiro, respectivamente. A presença do Cerrado na Depressão Sublitorânea e a Caatinga
(Mata Branca), com maior presença espacial nas regiões interiorizadas do estado, parte da
Depressão Sublitorânea e, sobretudo, no Planalto da Borborema e na Depressão Sertaneja.
Cabe observar que a Mata Serrana, se faz presente ao longo dos contrafortes ou áreas de
589 //
maior altitude das escarpas do Planalto da Borborema e Depressão Sublitorânea. Enclaves de
Mata Atlântica estão presentes em áreas Serranas e de Brejos mais interiorizados.
Em relação à hidrografia o estado da Paraíba é drenado por cinco bacias hidrográficas
onde se destacam o Rio Paraíba e o Rio Piancó, que foram fundamentais no processo de
ocupação do estado. O Rio Parnaíba constituiu, ainda que com características de intermi-
tência, uma vez que percorre áreas semiáridas, importante via de penetração no sentido
Litoral-Sertão, desde tempos remotos, papel que se intensificou com o processo de colo-
nização. O Rio Piancó drenando o estado no sentido Sul-Norte, foi o principal eixo de
penetração de bandeirantes vindos dos estados da Bahia e/ ou de São Paulo, através do rio
São Francisco e, em outro sentido, colonizadores vindos do Piauí e/ou do Ceará.
As condições naturais constituem a base da divisão regional fitogeográfica, escolhida
como uma das bases para os estudos da toponímia neste estado que compreende sete (7)
regiões. A Mata Paraibana, associada à Planície Costeira e ao Baixo Planalto Costeiro, re-
coberta, originalmente, pela Mata Atlântica, progressivamente devastada, pelo extrativismo
vegetal (Pau Brasil) e da cultura do açúcar no período colonial. O Agreste, que significa “rús-
tico ou rude”, corresponde à porção mais interiorizada, dominada pela vegetação original de
Cerrado, situado na transição entre a Mata Atlântica e a Caatinga (Mata Branca). A presença
590 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 1. Localização e enquadramento municipal do estado da Paraíba, Nordeste do Brasil


de Brejos, denominação que expressa áreas úmidas, são observáveis em zonas serranas, em
enclaves de Mata Atlântica interiorizada e da Mata Serrana. O brejo devido às melhores
condições de umidade e de solos constitui área de potencial agrícola, tendo sido no passa-
do, espaços de pousada, produção de alimentos e instalação de vilas e povoados. O Sertão,
região recoberta, originalmente, pela Caatinga, é mais distante do litoral e pouco povoada.
Sob clima Semiárido, tem na criação do gado a sua história desde a ocupação portuguesa no
período colonial. Atribui-se diferentes significados à palavra sertão, por exemplo: “espaços
distantes do mar”, “terras continentais”, terras distantes “das povoações” ou de “terras cultiva-
das”. Expressa os espaços mais interiorizados associados às secas periódicas e ao processo mi-
gratório, historicamente relacionado com as condições de semiaridez desta região do estado.
Alguns exemplos de topónimos indígenas presentes no espaço paraibano remetem
para este imaginário: Curimataú, cujo nome deriva da palavra Tupi que significa “rio dos
curumatás” (peixe tenro), é uma região dominada pela vegetação de Caatinga, compreen-
dida pela porção noroeste do Planalto da Borborema, considerada propícia a criação de
gado nos primórdios da colonização; Seridó, palavra proveniente da língua Cariri que
expressa “árvores sem folha” ou de “pouca sombra”, corresponde a uma região dominada
pela caatinga sendo a sua atividade dominante vinculada à pecuária e a criação de caprinos;

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 2. Condições naturais e divisão regional do estado da Paraíba


591 //
Cariri, indicado pelo significado indígena “lugar silencioso” é, também, a designação da
principal família de línguas indígenas do sertão do Nordeste do Brasil. Esta região, a mais
interiorizada da Paraíba, ocupa uma parcela (sul) do Planalto da Borborema onde predo-
minava, originalmente, a vegetação de Caatinga com as suas terras utilizadas pela pecuária,
a criação de caprinos e o algodão.

2.2. Conquista e ocupação territorial da Paraíba

A historiografia brasileira relegou por longo tempo os povos indígenas a um papel


de coadjuvante e de não sujeitos de sua própria história, considerados como meros seres
com quem se negociavam bugigangas, o “escambo”, ou selvagens com os quais não era
possível realizar nenhum tipo de aproximação. Os portugueses tardaram em iniciar uma
efetiva colonização do território paraibano por terem outras formas de comércio mais lu-
crativas e vantajosas, orientando a sua atenção para o Oriente onde as especiarias geravam
um comércio mais rentável. O interesse desse comércio e do ouro de outras colônias não
estimulou o empreendimento na nova colônia. Sem uma efetiva ocupação desta colónia o
litoral ficou à mercê do domino de corsários e piratas que extraiam o pau-brasil, presente
na Mata Atlântica, utilizando o seu pigmento no tingimento de tecidos na Europa. Os
franceses foram particularmente ativos tendo conseguido estabelecer relações amigáveis
com os indígenas que utilizaram na prática do “escambo”.
Os portugueses tentaram incrementar a ocupação e impedir essas invasões por meio da
doação de terras. Diante da dificuldade de não “ter nada” além do pau-brasil para comercia-
lizar a Coroa optou pela colonização e pelo povoamento sob a forma de apossamento que
garantia o domínio imediato duma vasta extensão de terra. A empreitada colonizadora con-
frontava-se com a contradição de depender de investimentos que a Coroa não fazia por ter
interesses em produções imediatas que alimentassem o mercantilismo. A união dos portugue-
ses com os indígenas, quando alcançada, levará à expulsão dos franceses, concomitante com
592 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

a divisão das terras da nova colônia em capitanias hereditárias com que se inicia o processo
de consolidação e conquista do que hoje é a Paraíba. A recém desmembrada da capitania de
Itamaracá, que ocorreu depois de cinco expedições motivadas pelo massacre de Tracunhaém7,
em 1574, originou a Capitania Real da Paraíba, instalada em 1585, com a união de Martim
Leitão e Piragibe, dado o interesse da Coroa portuguesa em continuar a colonizar para Norte.

7
Em 1574 aconteceu um incidente conhecido como “Tragédia de Tracunhaém”, no qual índios mataram
todos os moradores de um engenho chamado Tracunhaém, em Pernambuco. Esse episódio ocorreu devido
ao rapto e posterior desaparecimento de uma índia, filha do cacique potiguar nesse engenho. Após esta
tragédia, D. João III, rei de Portugal, desmembrou Itamaracá, dando formação à capitania do Rio Paraíba.
Fonte: https://www.paraibatotal.com.br/a-paraiba/historia/
Os franceses, que estavam há mais tempo a comercializar com os indígenas, pelo menos
desde 1570, ameaçavam as novas capitanias de Itamaracá e de Olinda. Na sequência do mas-
sacre de Tracunhaém, persistia o medo de ataques indígenas registrando as cartas de Duarte
Coelho incursões dos potiguaras, particularmente na capitania de Itamaracá que não possuía
liderança do seu donatário. Abandonada durante muito tempo era considerada uma simples
atalaia, mera vigia ou sentinela. Não podemos esquecer que, nesse período, Portugal passava
por graves problemas econômicos e políticos que ditaram a desatenção para com a colônia.
A atenção da Coroa Portuguesa é retomada quando se intensifica o receio de a perder
para os franceses aliados, então, aos potiguaras, circunstância que levou o rei D. Sebastião
a autorizar Luis de Brito e Almeida a governar e a ocupar a atual Paraíba, terra desmem-
brada da Capitania de Itamaracá, habitada pelos potiguaras. Como Luiz de Brito não pode
assumir nomeou Fernão da Silva logo expulso pelos potiguaras. OS ataques sucedem-se e
as tentativas colonizadoras prosseguem sem sucesso (p. ex. Frutuoso Barbosa8). Em 1585,
vindos do São Francisco, chegam os tabajaras ao que hoje é a Paraíba, dentre eles Piragibe
“o braço de peixe”. Tabajaras e Potiguaras entram em acordo, embora por pouco tempo
porque se desentendem nas margens do rio Paraíba. Então, Martim Leitão oferece apoio
aos Tabajaras contra os Potiguaras até que, à sexta tentativa com João Tavares, é firmado
um acordo de paz próximo do rio Sanhauá, em 5 de agosto. Em outubro começa a funda-
ção da vila e em novembro é oficialmente reconhecida a fundação da cidade.
Após a conquista da Capitania da Paraíba, com sede em Filipeia de Nossa Senhora das
Neves, e com os Potiguaras sempre perto, constrói-se a fortaleza do Cabedelo e são toma-
das algumas medidas contra a nação potiguar, realizam-se expedições para os oprimir com
soldados, mercenários e índios flecheiros. Estas ofensivas intensificaram-se com a constru-
ção dos fortes de Santa Catarina e de Inhobin, altura em que a colonização se consolida
com a chegada de membros de ordens religiosas para catequizar os indígenas e ensinar os
filhos dos colonos. Após a paz selada com os potiguaras, em 1599, foi possível fundar a
capitania do Rio Grande do Norte. A relação com os indígenas foi pautada no interesse
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
dos portugueses com a colonização, a ocupação efetiva e o progressivo povoamento. A co-
lonização através do comercio de especiarias locais não era frutífera, pois os indígenas não
produzirem artigos para venda, pois produziam o que necessitavam para pura subsistência,
ao contrário dos ameríndios colonizados pelos espanhóis que possuíam ouro. A única
forma de se obter riquezas na colônia era, pois, por meio da permanecia de colonos nas

8
Frutuoso Barbosa ou Fructuoso Barbosa (Villa Vianna, n. séc. XVI – m. séc. XVII), foi um fidalgo da Casa
Real e um rico comerciante de pau-brasil, em Olinda, na capitania de Pernambuco (Nova Lusitania), do
donatário Duarte Coelho. Foi nomeado “Capitão de Mar e Terra da gente que haveria de levar à conquista
da Paraíba e Capitão da fortaleza que deveria ser construída na Paraíba, no sítio denominado Cabedelo”, por
chancelaria de D. Henrique I, o cardeal-rei, em 1579. Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Frutuoso_Barbosa
593 //
novas terras da Coroa portuguesa. A consolidação colonial do espaço que hoje constitui o
estado da Paraíba fez-se através de lutas intensas de indígenas com franceses e portugueses.
A influência indígena, objeto desta pesquisa, percebe-se através da permanência no tempo,
ainda patente nas denominações dos municípios do Estado da Paraíba, nos topónimos
com nomes em tupi ou de outras etnias que se referem a localidades e histórias especificas.

2.3. Distribuição das tribos indígenas da Paraíba

A Paraíba, como a generalidade do território brasileiro, era habitada desde o período


anterior a chegada dos portugueses (1500), por um conjunto expressivo de povos indíge-
nas, com diferentes línguas, conforme mostra o mapa da Figura 3.
O mapa seguinte (Figura 4) representa de forma aproximada os espaços do estado da
Paraíba, nos séculos XVII e XVIII, ocupados pelos vários povos indígenas (Borges, 1964).
Observa-se que é ocupado por um número significativo de povos vivendo em ambien-
tes diferenciados ao longo do território paraibano, expressando estas diferenças a relação
peculiar que terão desenvolvido face às condições oferecidas pela natureza. Refira-se, a
título de exemplo, os Potiguaras, habitantes do litoral paraibano, originalmente falantes
do tupi, o povo mais numeroso da região Nordeste. Estão presentes na região da baia da
Traição desde 1501. Foram mão de obra no corte do pau-brasil e nas plantações de cana.
Envolveram-se em disputas entre portugueses, franceses e holandeses, enfim por terem
lutado ao lado dos portugueses receberam 4 léguas de terras no litoral da Paraíba. Os
aldeamentos missionários (XVII) surgidos desde então constituem os principais pontos
de referência desse povo até os dias atuais9. Localizados originalmente nas proximidades
do litoral e nos mangues, os Potiguaras viviam da pesca marítima, do extrativismo vegetal
(mangaba, dendê, caju e batiputá), da agricultura de subsistência (milho, feijão, mandio-
ca, inhame e frutas) e da criação de pequenos animais10.
Os Cariris ocupavam, parcelas a sudeste e a oeste do atual estado da Paraíba de acordo
594 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

com José Elias Borges Barbosa que explica assim essa diferença de localização:
Havia os cariris do oeste da Paraíba porque eles tinham vindo da região do São
Francisco. O centro e o núcleo dos cariris é a Bahia e principalmente aquela parte de
Pernambuco que é exatamente a região de Cabrobó, da Cachoeira de Paulo Afonso
mais abaixo e a cidade de Petrolina. Os índios cariris tinham a sua capital ali, chamada
Aracapá, palavra tupi, que quer dizer “escudo redondo” ou rodela. De modo que aquela

9
https://osprimeirosbrasileiros.mn.ufrj.br/pt/mundo-contemporaneo/potiguara/#:~:text=Os%20
Potiguara%20vivem%20no%20litoral,costeiro%20de%20P
10
https://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Potiguara#:~:text=Os%20Potiguaras%20possuem%20
principalmente%20os,inhame%2C%20frutas%20e%20etc
Fig. 3. Mapa Etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes Fonte:http://portal.iphan.gov.br/indl/notícias/
detalhes/4350/mapa-etnografico-reune-linguas-indigenas-do-brasil.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 4. As Tribos Indígenas do estado da Paraíba durante os séculos XVII e XVIII: distribuição aproximada
segundo José Elias Borges (1964)
595 //
parte do sertão de Pernambuco é conhecida por sertão de rodela. Isto tudo está relatado
no livro que vocês conhecem de Martim de Nantes, já traduzido para o português. A
vinda dos cariris é muito recente. Os cariris de Sergipe ficaram em João Pessoa e depois
os cariris do São Francisco foram para a região do interior. Eles vieram pelo rio Pajeú,
cruzaram a serra do Jabitacá, pegaram as nascentes do Paraíba e chegaram até aqui em
João Pessoa. Ficaram mais na região de Campina Grande, em Fagundes. (IGHF, 2000).

Esse mesmo autor explicita deste modo as fronteiras desses povos no estado.
Vejamos as fronteiras desses índios. Essas fronteiras são muito variáveis. As mi-
grações eram constantes, havendo um remanejamento muito grande. Na parte do
litoral, estavam os tupis: ao norte do rio Paraíba os potiguaras, e ao sul do rio Paraíba
os tabajaras. Os caetés, que foram os primeiros, já tinham sido exterminados. Os
caetés deviam ter chegado na parte de Itamaracá, tendo sido exterminados desde
a morte do padre Fernando Sardinha. A parte do interior era toda ocupada pelos
tarairiús. A parte sul ao longo do rio Paraíba era ocupada por poucas tribos cariris.
Eram cariris os bultrins de Alagoa Nova, os bultrins de Pilar, os fagundes, perto de
Campina Grande, os carnoiós da região próxima a Campina Grande. Esses bultrins
chegaram até Pilar, centro principal dos cariris e já tinham sido catequizados no São
Francisco, donde vieram, e ficaram ao lado dos portugueses (IGHF, 2000).

Os Cariris desenvolviam práticas rudimentares de agricultura, habitavam as proximida-


des dos rios onde plantavam as terras férteis das várzeas. Além de extrativistas praticavam a
colheita do caju e, eram ceramistas como provam as pesquisas arqueológicas.11

3. Os municípios da Paraíba com denominação indígena


596 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

3.1. Categorias e significados da toponímia indígena

A análise toponímica relativa aos nomes de cidades que são sedes de município da Paraíba
foi precedida duma classificação em duas grandes categorias e nos respectivos desdobramentos
(Tabela 1). A partir dessa categorização foram classificadas as 57 cidades com denominações
indígenas, permitindo a observação qualitativa do respetivo quadro evidenciar a concentração
de topónimos associados às condições naturais, sobretudo plantas e animais. Essas denomi-
nações que se preservaram em nomes de municípios ajudam a reconhecer o modo de viver
11
https://www.infoescola.com/historia-do-brasil/confederacao-dos-cariris/#:~:text=Eles%20tinham%20
h%C3%A1bitos%20de%20vida,dos%20produtos%20ou%20objet
destes povos, mostrando o vínculo forte que mantinham com a natureza, pois daí dependia a
sua sobrevivência e a própria existência. Além de representarem um legado e um riquíssimo
patrimônio cultural essas denominações abrem a possibilidade de variadíssimos estudos re-
lativos às características naturais pretéritas, tendo alguns destes termos sido incorporados no
português falado no Brasil, de que são exemplo: Coxixola (casa pequena), Tapera, enquanto
derivação de taperoá (morador de aldeia ou casa abandonada), Pedregal (lugar de muitas pe-
dras), Sapé (capim de baixo tamanho, utilizado para construção de telhados).

Tabela 1 – Municípios paraibanos com denominações indígenas:


categorias e respetivos significados
Categorias Nomes de municípios e respectivos significados
Caiçara: Armadilha e/ou cercas de galhos; Coxixola: Casa pequena; Ibiara: Terra que
Elementos fundamentais do tem dono;
povoamento primordial
Taperoá: morador de taperas, aldeia abandonada ou andorinha
O paraíso na terra/Sentimento Piancó: Pavor e/ou terror;
(espírito) do lugar Sumé: personagem misterioso que pratica o bem e ensina a cultivar a terra
Camalaú: Chefe de aldeia e/ou nome da área em que residia os primitivos; Caturité:
Nome de pessoas Índio que se destacou na luta contra os invasores portugueses; Manaíra: Mel cheiroso
e/ou abelha cheirosa nome que foi atribuído a uma indígena.
Condições naturais locais
Arara: Ave de muitas cores; Araruna: Arara preta; Coremas: Espécie de peixe; Guarabira:
Pássaro azul e/ou morada das garças; Gurinhém: O canto dos pássaros ou o rumor dos
bagres; Jacaraú: Onde comem e vive os jacarés; Juripiranga: Ave que canta; Juru: Aves
multicores; Mataraca: Monte de formiga ou lugar onde foi a floresta; Mogeiro: Espécie de
Nomes de animais
águia que pesca mugens ou mel pegajoso; Parari: Aves da família Columbidae (pombas,
picaús, rolas e rolinhas); Picuí: A pomba pequena; Tacima: Profusão de formigas e/ou
local de muitas formigas; Uiraúna: Pássaro preto; Zabelê: Pássaro de canto forte
Araçagi: Água de araçá, em alusão a grande quantidade dessa planta frutífera; Areia de
Baraúnas e Baraúna: Madeira escura; Aroeiras: Árvore da arara; Caaporã: Mato bonito;
Cajazeiras e Cajazeirinhas: Fruto de caroço grande; Caraúbas: Fruto de casca negra;
Catingueira: Árvore comum da Caatinga (Caesalpinia pyramidalis);Catolé do Rocha:
Planta da família das Arecáceas (palmeiras); Cubati: Planta d’água; Cuité: Vasilha
grande, real e/ou ilustre oriunda do fruto dessa planta; Cuité de Mamanguape: Junção
dos significados de Cuité e Mamanguape; Cuitegi: Rio dos Cuités (planta encontrada
Nomes de plantas
próxima aos rios); Ingá: Cheio d’água (em referência ao fruto dessa planta); Juazeiri-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
nho: Fruta de espinho; Mari: Água do marizeiro (árvore espinhosa que cresce em áreas
alagadas); Massaranduba: Árvore do caule escorregadio; Mulungu: Pandeiro (oriundo
do som emitido pela batida em seu tronco oco); Pirpirituba: Juncal, junco abundante
ou onde nasce o junco; Puxinanã: Fruto pequeno similar ao abacaxi, não comestível;
Quixaba: Lugar de dormir/pousar; Sapé: Capim de baixa estatura que alumia o cami-
nho, o que dá claridade; Umbuzeiro: Árvore que dá de beber
Hidrotoponímia: rios, lagoas,... Igaracy: Canoa grande; Natuba: Rio que nunca seca; Pitimbu: Olho d’água do fumo
Nomes relacionados com a mor- Borborema: Lugar ermo, despovoado, terra sem ninguém; Mamanguape: Onde se
fologia do terreno reúne para beber (bebedouro);
Nomes relacionados com a Itabaiana: Pedra que dança; Itaporanga: Pedra bela; Itapororoca: Encontro das águas
geologia com as pedras; Itatuba: Pedregal (lugar de muitas pedras)

A análise quantitativa desta classificação toponímica (Tabela 2), mostra, conforme foi
referido anteriormente, que ocorrem 57 nomes indígenas entre a totalidade dos municípios
597 //
(223), o que representa 25,6 % das cidades paraibanas. A maioria destes topónimos en-
quadra-se na categoria de Condições naturais, sobretudo Biogeografia, particularmente
Plantas (42,1%) e Animais (26,3 %), seguidos dos relacionados com a Geologia (areia,
rocha, mineral, metal, que representam 7,0%) e a Hidrotoponímia (rio, lagoa, poço, etc.,
e atingem 5,3%). Na segunda grande categoria, Rotas de povoamento primordial (7%), as
denominações indígenas são representadas por topónimos como Caiçara (armadilha e/ou
cercas de galhos), Coxixola (casa pequena), Ibiara (terra que tem dono), Taperoá (morador
de taperas, aldeia abandonada ou andorinha). Tais topónimos indicam-nos a importância
que tinha, numa fase primordial, a posse da terra, a defesa e a moradia.
A ideia de Paraíso na terra, que exprime sentimento, apego ou o espírito do lugar, que
ocorre em 3,5% dos casos, está expressa em nominações como Piancó (pavor e/ou terror),
Sumé (personagem misterioso que pratica o bem e ensina a cultivar a terra). O medo ou a
presença de personagem imaginária capaz de fazer o bem que se associam a esses topóni-
mos podemos compreendê-los a um certo sentimento que rodeia o lugar. Os topónimos
associados ao Nome de pessoas são relativamente reduzidos (5,3%) estando representados
por Camalaú (chefe de aldeia e/ou nome da área em que residia os primitivos), Caturité
(índio que se destacou na luta contra os invasores portugueses), Manaíra (mel cheiroso
e/ou abelha cheirosa). Este nome foi escolhido como topónimo para um município no
interior da Paraíba (BR) em homenagem a uma índia chamada Manaíra12. As baixas pre-
senças de nomes nessa categoria permitem pensar que os elementos primordiais seriam para
os povos originários, a própria natureza, algum lugar mais aprazível, qual paraíso na terra,
ou provedor de medo, além de nomes de pessoas associados aos seus líderes comunitários,
guerreiros ou nomes próprios.
A análise da Tabela 2 permite estabelecer uma relação entre tipologias, o número de
nomes com origem indígenas e a totalidade das cidades (223), fazendo ressalta que a
distribuição nem sempre é equitativa entre as diferentes categorias. O conjunto das cida-
des paraibanas, as que têm nomes indígenas (57, isto é, 25,6% do total dos municípios)
598 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

é seguido pelas que têm nomes de santos (44, o que corresponde a 19,7% do total).
O significado destes valores percentuais parece indicar, por um lado, a permanência e,
mesmo, a prevalência dos nomes indígenas (1/4 das cidades) e, por outro, a denominação/
dominação da influência portuguesa, com a atribuição de nomes dum padroeiro (santo
católico) que imprime ao referido lugar uma marca simultaneamente religiosa e fruto da
colonização.

12
http://portrasdonome.blogspot.com/2016/07/manaira.html.
Tabela 2. Toponímia da Paraíba: número total
de lugares e de origem indígena segundo a tipologia
Tipologias de nomes de lugares Total Indígenas
Nº % Nº %
1. Toponímia e matriz identitária
1. Nome Indígena 57 25,6
2. Rotas do povoamento primordial
2.1. Nomes de lugares portugueses e de outras nacionalidades 6 2,7
2.2. Elementos fundamentais do povoamento primordial 14 6,3 4 7,0
2.3. O paraíso na terra/sentimento (espírito) do lugar 9 4,0 2 3,5
2.4. Nomes de pessoas (Antroponímia) 20 9,0 3 5,3
2.5. Nomes de santos 44 19,7
3. Condições naturais locais
3.1. Biogeografia: animais 3 1,3 15 26,3
3.2. Biogeografia: plantas 16 7,2 24 42,1
3.3. Hidrotoponímia: rio, lagoa, poço,… 26 11,7 3 5,3
3.4. Hidrotoponímia: barra 5 2,2
3.5. Acidentes (geo)morfológicos: monte, vale, serra, ... 14 6,3 2 3,5
3.6. Geologia: areia, rocha, mineral, metal, ... 9 4,0 4 7,0

Total de municípios 223 100 57 100

Entre os topónimos que indicam condições naturais releva-se o facto do maior per-
centual do conjunto das cidades com denominações de diferentes línguas indígenas, recair
nos Hidrotoponimos (11,7%, os rios, lagoas, poços), nomes que revelam a importância da
água nos lugares onde aparece, particularmente valorizada em regiões onde é mais escassa.
Em segundo lugar temos a Biogeografia, que enquadra nomes relacionados com plantas
(7,2%), valor que aumenta para 42,1% nos casos onde os lugares apresentam nomes ex-
clusivamente indígenas. Este dado reforça a ideia da forte ligação indígena com a terra, em
particular com a vegetação característica da região. Essa presença lembra, quiçá, o sentido
dado à cobertura vegetal, como proteção (ao sol), alimento, produto medicinal ou abrigo, As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

funções fundamentais para a sobrevivência dos habitantes locais.

3.2. Distribuição da toponímia indígena segundo a divisão regional

A tabela 3 apesenta o quantitativo da classificação taxonômica distribuído por meso e


microrregiões do estado da Paraíba. No conjunto destaca-se a região do Agreste represen-
tada por um total de 21 cidades com denominação indígenas, sendo que as microrregiões
de Guarabira e Itabaiana são as que tem mais municípios com denominações indígenas
nessa região. Mata Paraibana, Borborema e Sertão, indicam menor presença sendo que no
599 //
Sertão dos 69 municípios apenas 14 preservam nomes indígenas. Merecendo estes indica-
tivos um estudo de maior detalhe para avaliar as possíveis mudanças de nome ao longo da
história ou criação de cidades constituídas de outras tipologias.

Tabela 3. Toponímia da Paraíba: espaços onde ocorrem as diferentes tipologias nos


diferentes contextos regionais e evolução do povoamento: indígena e os demais
Indígenas Demais municípios
Nomes de lugares portugueses e de outras nacionalidades

Nomes de lugares portugueses e de outras nacionalidades


Acidentes (geo) morfológicos: monte, vale, serra,...

Acidentes (geo) morfológicos: monte, vale, serra,...


Elementos fundamentais do povoamento primordial

Elementos fundamentais do povoamento primordial


O paraíso na terra/sentimento (espírito) do lugar

O paraíso na terra/sentimento (espírito) do lugar


Geologia: areia, rocha, mineral, metal

Geologia: areia, rocha, mineral, metal


Hidrotoponímia: rio, lagoa, poço,…

Hidrotoponímia: rio, lagoa, poço,…


Nome de pessoas (Antroponímia)

Nome de pessoas (Antroponímia)


Meso
e Microrregiões Hidrotoponímia: barra

Hidrotoponímia: barra
Biogeografia: animais

Biogeografia: animais
Biogeografia: plantas

Biogeografia: plantas
Nome de santos

Nome de santos
Total

Total

Total
Total 4 2 3 15 24 3 2 4 57 6 14 9 20 44 3 16 26 5 14 9 166 223
1. Mata Paraibana 3 4 1 1 1 10 2 4 3 4 1 2 2 1 1 20 30
1. João Pessoa 1 2 1 1 5 5
2. Litoral Sul 1 1 2 1 1 1 3 3
3. Sapé 1 2 3 1 3 1 1 6 6
4. Litoral Norte 2 1 1 1 5 2 1 1 1 1 6 6
2. Agreste Paraibano 1 5 11 1 1 2 21 1 3 5 4 3 1 9 11 1 5 2 45 66
5. Campina Grande 2 2 1 1 2 1 1 6 6
6. Guarabira 1 1 4 6 1 2 1 2 2 8 8
7. Itabaiana 2 1 2 5 1 3 4 4
8. Umbuzeiro 2 1 3 1 1 2 2
9. Esperança 1 1 1 1 4 4
10. Brejo Paraibano 1 1 2 2 2 1 7 7
11. Curimataú 1 1 2 2 1 1 3 1 1 9 9
Ocidental
600 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

12. Curimataú 2 2 1 2 2 5 5
Oriental
3. Borborema 2 1 2 3 4 12 1 4 13 3 1 2 4 4 32 44
13. Cariri Ocidental 2 1 1 2 6 1 2 5 1 2 11 11
14. Cariri Oriental 1 1 2 1 3 1 1 2 2 10 10
15. Seridó Ocidental 3 1 1 1 6 6
Paraibano
16. Seridó Oriental 1 3 4 1 2 1 1 5 5
Paraibano
4. Sertão Paraibano 1 1 1 3 6 1 1 14 3 7 3 9 24 2 3 12 4 2 69 83
17. Patos 2 2 1 3 1 2 7 7
18. Piancó 1 1 1 1 4 1 1 1 1 1 5 5
19. Itaporanga 1 1 2 1 1 1 3 1 2 9 9
20. Serra do Teixeira 1 1 2 1 2 3 1 2 9 9
21. Catolé do Rocha 1 1 2 1 1 2 1 4 1 12 12
22. Cajazeiras 1 1 2 1 2 5 1 3 1 13 13
23. Sousa 1 1 1 2 3 7 1 14 14
A distribuição espacial da toponímia indígena no estado da Paraíba (Figura 5) destaca
uma concentração mais elevada de cidades com topónimos indígenas na porção oriental
do território, que se correlaciona com a geomorfologia dos baixos Planaltos Costeiros,
originalmente recobertos de vegetação de Cerrado, localizados ao longo do curso dos rios.
Trata-se da parcela do território que corresponde à Região do Agreste paraibano.
O número de cidades com nominações indígenas diminui de intensidade para o inte-
rior do estado, coincidindo com as áreas de domínio do Planalto da Borborema, da depres-
são Sertaneja e da Bacia do Rio do Peixe, espaços originalmente recobertos pela vegetação
de Caatinga. Permanece como característica dessa distribuição a localização próxima aos
cursos d’água, fator fundamental para o surgimento de aldeias e povoados. Em termos
regionais essa parcela do estado compreende as regiões do Seridó, do Sertão e do Cariri.
Este menor número de denominações indígenas, além de configurar a itinerância dos
grupos indígenas locais nessa extensa parcela do estado, também poderá estar associado
às políticas do Marques de Pombal, conforme adianta Borges Neto et al., (2022, p.149):
No século XVIII, foram criadas as vilas de Pombal (antiga aldeia dos Pegas),
Vila Nova da Rainha (atual Campina Grande) e Vila Nova de Sousa (atual Sousa).
A segunda década deste século é conhecida como o Período Pombalino (1750-1777),

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 5. Distribuição dos municípios paraibanos com topónimos de origem indígena segundo as principais
divisões naturais e regionais do estado paraibano
601 //
reconhecido por impulsionar a formação do que se pode denominar da origem de
uma rede urbana no território paraibano. Na segunda metade do século XVIII, a
primeira povoação a ser elevada à condição de vila foi a de Nossa Senhora do Bom
Sucesso, com o nome de Vila de Pombal. A autora complementa: Anos após a fun-
dação da Vila de Pombal, mais especificamente em 1788, serão elevadas para vilas,
na Capitania da Paraíba, a Povoação de Campina Grande, com o nome de Vila Nova
Rainha, e, no Rio Grande, as Povoações de Santa Ana do Seridó e do Açu, com
os nomes, respectivamente, de Vila Nova do Príncipe e de Vila Nova da Princesa
(MORAES, 2012 apud BORGES NETO et al., 149).

Conforme se observa na referência anterior as novas vilas receberam denominações


portuguesas, sobretudo nomes de santos ou de pessoas, enquanto eram substituídos nomes
anteriores, alguns deles compostos, de que são exemplo o de Santa Ana do Seridó e Açu
rebatizados como Vila Nova do Príncipe e Vila Nova da Princesa.
A distribuição regional dos nomes indígenas das cidades, no estado da Paraíba, re-
vela que a presença desses topónimos tem maior expressão, como referido, numeri-
camente na Mata Paraibana e no Agreste Paraibano. A Mata, região mais oriental e
conectada com o litoral, originariamente território de Potiguaras, Tupis e Tabajaras,
concentra na microrregião Litoral Norte e Sul um número de topónimos indígenas
602 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 6. Toponímia da Paraíba: os lugares sede de município segundo a divisão regional


próximo das demais categorias. Na região do Agreste verifica-se que essa concentração
predomina na microrregião de Guarabira. Na Borborema, predominantemente ocupada
pelos Tarairiús com a presença dos Cariris a L/SE, as denominações indígenas ocorrem
sobretudo nas microrregiões do Cariri Ocidental e do Seridó Oriental. As cidades com
denominação indígenas, no Sertão, ocorrem fundamentalmente na microrregião do
Piancó, embora a distribuição seja relativamente uniforme entre as microrregiões que a
compõe (Figura 6).
A criação dos municípios como designação indígena (Tabela 7) mostra que até 1619 o
registro é pequeno (6), ocorrendo um acréscimo significativo (14), no período que decorre
entre 1750-1799, seguindo-se um decréscimo (9) entre 1800-1849, tendência que se irá
prolongar até 2000. A Mata (10), região que regista neste lapso temporal um acréscimo de
cidades com nome indígenas, tal como o Agreste (21), desde 1869, enquanto a microrregião
de Itabaiana registra um decréscimo (-7). A região de Borborema (12) observa acréscimos de
cidades que adotaram nomes indígenas, com exceção da Microrregião de Seridó Ocidental.
Enquanto o Seridó Paraibano Ocidental não registra cidades com nome indígena, a região
do Sertão, no referido período histórico, registra uma tendência positiva com acréscimos no
período de 1750-1799. As microrregiões do Sertão de Souza (1) Catolé do Rocha (1) são
aquelas onde ocorre menor número de municípios com nomes indígenas.
O período entre 1750-1799 foi o que, em termos gerais, regista maior presença de
nomes indígenas em cidades, época em que o Marquês de Pombal se tornou secretário de
Estado (1756-1777), durante o reinado de Dom José I. As políticas de Pombal, fortemen-
te centralizadoras, ditaram um conjunto de normas relativas ao tratamento a ser dado à
população originária visando fortalecer a dominação portuguesa em território brasileiro.
Para o objetivo desta investigação importa destacar a que determinou a mudança de nomes
de aldeias indígenas para nomes portugueses. Os dados relativos à Paraíba indicam que o
período entre 1800-1849 registrou um crescimento mais lento do nome de cidade com to-
pónimo indígena quando comparado com as colunas que indicam os demais municípios.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Foi um período de interiorização (1800 a 1849) com a fundação de novas vilas e cidades
que foram nominadas, sobretudo, com nomes de santos católicos e ou nomes próprios.
Contudo, os demais 166 municípios cujos nomes não têm ligação a topónimos indígenas,
cuja origem remonta a 1699, são indicativos doutras opções ou, mesmo, da substituição
de anteriores nomes indígenas.
A Figura 7 põe em comparação, ao longo da história, as cidades com denomina-
ções indígenas relativamente às doutras denominações. Em alguns períodos a presença de
nomes indígenas, sempre em número mais reduzido, é, proporcionalmente, mais equili-
brado entre 1750 e 1950, tendo menor expressividade nos períodos mais distantes (até
1749) e o mais recente, posterior a 1950.
603 //
Tabela 7. Data da criação dos municípios com nomes de origem indígena
Indígenas Demais municípios

1850– 1899
1900– 1949
1950– 2000

1700– 1749
1750– 1799
1800– 1849
1850– 1899
1900– 1949
1950– 2000
1700-1749
1750-1799
1800-1849
Até 1699

Até 1699
Meso e Microrregiões

Total

Total

Total
Total 6 5 14 9 12 8 2 57 24 14 23 21 39 24 7 166 223
1. Mata Paraibana 1 3 2 3 1 10 12 1 3 3 1 20 30
1. João Pessoa 5 5 5
2. Litoral Sul 1 1 2 2 1 3 5
3. Sapé 1 2 3 2 1 2 1 6 9
4. Litoral Norte 1 1 1 1 1 5 3 1 1 1 6 11
2. Agreste Paraibano 2 1 3 4 7 2 2 21 4 10 8 3 13 6 1 45 66
5. Campina Grande 1 1 2 2 1 1 1 1 6 8
6. Guarabira 1 1 3 1 6 2 3 3 8 14
7. Itabaiana 1 2 1 1 5 2 2 4 9
8. Umbuzeiro 1 2 3 1 1 2 5
9. Esperança 2 2 4 4
10. Brejo Paraibano 1 1 1 3 1 2 7 8
11. Curimataú Ocidental 1 1 2 2 2 1 4 9 11
12. Curimataú Oriental 1 1 2 1 1 2 1 5 7
3. Borborema 1 4 3 2 1 1 12 5 2 4 4 8 6 3 32 44
13. Cariri Ocidental 3 1 1 1 6 1 4 3 2 1 11 17
14. Cariri Oriental 1 1 2 4 1 1 2 1 1 10 12
15. Seridó Ocidental Paraibano 1 1 1 1 2 6 6
16. Seridó Oriental Paraibano 1 1 1 1 4 1 2 1 1 5 9
4. Sertão Paraibano 2 0 5 1 1 4 14 3 2 10 11 15 11 3 69 83
17. Patos 2 2 1 3 3 7 9
18. Piancó 1 1 1 1 4 3 2 5 9
19. Itaporanga 1 1 2 1 3 1 2 2 9 11
20. Serra do Teixeira 1 1 2 2 2 3 2 9 11
21. Catolé do Rocha 1 1 1 1 2 6 1 1 12 13
22. Cajazeiras 1 1 2 1 3 2 2 5 13 15
23. Sousa 1 1 2 3 3 1 3 2 14 15
604 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 7. Evolução do povoamento da Paraíba: implantação dos lugares sede de município


A distribuição espacial (Figura 8) evidencia uma permanência de nomes indígenas na
porção oriental do estado, especialmente nas regiões da Depressão Sublitorânea e do Agreste.
Um olhar para a região central (Cariri e Seridó) destaca que os maiores números de municí-
pios com nomes indígenas foram implantados entre 1700 e 1799, expressando a permanên-
cia desses nomes locais e a sua sobrevivência até ao presente. É uma situação que também
acontece na região da Depressão Sertaneja. Nomes indígenas que tenham estado na origem
do nome de cidades no estado, depois de 1900, são pouco expressivos e, quando ocorrem,
localizam-se predominantemente na região oriental. Não é por acaso que esta região é a que,
atualmente, tem a maior presença de indígenas vivendo em terras demarcadas. Segundo
Cavalcanti (2021) na Paraíba é reconhecido e possuem terras demarcadas dois povos indíge-
nas: os Potiguaras, que vivem entre os municípios de Marcação, Baía da Traição e Rio Tinto;
os Tabajaras, presentes no Litoral Sul, no Conde. Os municípios de Marcação e Rio Tinto
perfazem as demais povoações como Caieira, Lagoa Grande, Camurupim, Tramatáia, Estiva
Velha, Aldeia Monte-Mor e Jacaré de São Domingos, onde habitam 1979 índios.
O facto de ocorrer entre 1850 e 1899 maior número de topónimos indígenas, impede
de identificar a substituição de nomes indígenas ocorrida por portugueses, quando da ele-
vação administrativa de vila à cidade. Entretanto, a historiografia das políticas Pombalinas
do século XVIII mostra, conforme já referido anteriormente que na Paraíba essas políticas

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 8. Período de criação dos municípios com topónimos indígenas no estado da Paraíba
605 //
implicaram mudanças de nome a exemplo de povoações Campina Grande (elevada a Vila
com o nome de Vila Nova Rainha) e de Santana do Seridó e do Açu como Vila Nova do
Príncipe e de Vila Nova da Princesa. A política Pombalina, para Cunha 2014, forçou:
A transformação dos aldeamentos em vilas e a submissão dos nativos ao novo mo-
delo social permitiram que o processo de invisibilidade do índio fosse posto em prática.
Vivendo nas vilas, o indígena estava destinado a se integrar à sociedade na categoria
de colono, ganharia nome português e não mais poderia viver de acordo com seus
costumes. Com a redução dos grupos a espaços definidos, a política pombalina tam-
bém permitiu a liberação das terras das aldeias e terras onde indígenas não aldeados
ocupavam, para ocupação pelo gado em um período que a atividade pecuária estava em
plena expansão; bem como para a implantação de novas fazendas e currais. Com a po-
lítica de criação de vilas, a legislação pombalina contribuiu ainda para ampliar/alargar o
Território da Coroa portuguesa, antes restringido ao litoral. Com as novas medidas, o
Sertão antes considerado selvagem foi dominado por súditos da Coroa que passaram a
domesticar o espaço e os indígenas que passaram a ser vassalos de El Rei, desta forma,
três objetivos seriam alcançados: o da pacificação; o da expansão do Território e o da
inserção dos índios na sociedade colonial (CUNHA, 2014, p. 111-112).

3.3. Toponímia indígena e condições naturais locais

A distribuição dos municípios da Paraíba cujos nomes estão relacionados com a ca-
tegoria Condições Naturais Locais está implantada nos mapas da Figura 9. Os topónimos
indígenas incluídos na tipologia Nome de Plantas, conforme já referido, tem uma concen-
tração de cidades que predominam na região oriental do estado coincidindo como Baixo
Planalto Costeiro, onde a cobertura vegetal é, fundamentalmente, do tipo Cerrado, locali-
zando-se as cidades nas proximidades dos rios. Esta é a região, denominada Agreste, espaço
de transição entre o litoral e o sertão. Nos demais compartimentos de relevo a presença de
606 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

nomes indígenas integrados nesta tipologia ocorre em menor número. Os municípios com
Nomes de Animais aparecem distribuídos de forma esparsa nos diferentes compartimentos
de relevo e de vegetação. A distribuição das demais tipologias, em menor número, segue
este mesmo padrão.
A região do Agreste, onde se observa maior número de cidades com nomes indígenas
(Quadro 3), registra a prevalência de lugares relacionados com Biogeografia (11), sobretu-
do plantas (tipologia 3.2). A diferença numérica desta subcategoria é inexpressiva quando
comparada com as denominações afins da Hidrotoponímia (rio, lagoa, poços; tipologia3.3)
Fig. 9. Toponímia indígena dos municípios paraibanos: condições naturais locais

3.4. Toponímia indígena e povoamento primordial

A categoria Rota de Povoamento Primordial tem pouca representação entre as cida-


des com nomes indígenas (Figura 10). Os topónimos enquadrados nesta tipologia estão
associados a moradias abandonadas, a trincheira de defesa de território ou posse,de que
são exemplos: Caiçara: armadilha e/ou cercas de galhos, localizada na região imediata
de Guarabira em área de domínio, Potiguara,Tupis e Tapajós; Coxixola: casa pequena,
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
cidade localizada na região imediata de Sumé,Cariri Oriental, região de maior aridez do
estado;Ibiara: terra que tem dono, expressando sentimento de posse, localizada na região
de Piancó a sudoeste do estado;Taperoá: morador de taperas, aldeia abandonada ou ando-
rinha, cidade localizada na Borborema, região central da Paraíba.
Outros nomes podem relacionar-se a um dado Sentimento dum lugar, pavor e/ou ter-
ror (Piancó, localizada a sudoeste, área mais interiorizada do estado) ou um personagem
misterioso que pratica o bem e ensina a cultivar a terra (Sumé, município que compreende
a região do Cariri). O número de municípios com Nomes de pessoas é bastante reduzido:
Camalaú: Chefe de aldeia e/ou nome da área em que residiam. É o nome de município
localizado no Cariri, território destes povos originários; Caturité: índio que se destacou na
607 //
Fig. 10 Toponímia indígena dos municípios paraibanos: rotas do povoamento primordial

luta contra os invasores portugueses durante a conquista do interior, a cidade se localiza na


região de Campina Grande (boca do Sertão); Manaíra: mel cheiroso e/ou abelha cheirosa
nome que foi atribuído a uma indígena. A cidade está localizada no extremo Sudoeste do
estado domínio dos Icós.

Remate
608 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Ao concluir esta fase de pesquisa e resgatando as indicações que nortearam esta inves-
tigação fica evidenciada a relação entre toponímia e território, na medida em que o nome
de lugares não é, apenas, um vocábulo com determinado significado, mas, uma expressão
que denuncia um longo processo histórico de ocupação. No caso em estudo, a Paraíba,
como acontece com a generalidade do território brasileiro, o nome dos lugares espelha a
ocupação do espaço e onde o processo de colonização está evidenciado e tem na toponí-
mia a marca de sua formação. Tal demarcação preserva, em muitos casos, nomes indíge-
nas a conviverem com nomes portugueses atribuídos a cidades, onde os nomes de santos
não deixam de revelar outro propósito colonizador. Essas indicações, além de permitirem
reconhecer a população original e o domínio do território, revelam a associação entre o
catolicismo e o colonizador.
A classificação elaborada identificou 57 lugares entre as 223 sedes de municípios da
Paraíba que ainda mantêm nomes de origem indígena. Os respectivos significados reme-
tem para as seguintes tipologias: nome de plantas (15), nome de animais (24), relaciona-
dos com a geologia (4), com a morfologia do terreno (2), a hidrotoponímia (3), elementos
fundamentais do povoamento primordial (4), o paraíso na terra/sentimento do lugar (2)
e o nome de pessoas (3).
As cidades cujos nomes indígenas estão relacionados com aspectos naturais têm maior
concentração na Zona de Mata e no Cerrado, nas proximidades do Litoral, mostrando
grande correlação com a Zona da Mata e do Agreste se tivermos em consideração a classi-
ficação regional do estado. Uma menor densidade de cidades com topónimos indígenas é
observada no Sertão e na região Cariri, regiões semiáridas. Nestas regiões as cidades com
topónimos indígenas estão localizadas próximo aos cursos de água, localização semelhante
à doutras regiões do estado, indicando a importância do acesso a esse recurso, que é ainda
mais importante em ambiente seco.
São poucas as cidades cujos nomes indígenas remetem para as rotas de povoamento
primordial, facto que reforça a ideia de as nominações locais estarem mais associadas a
nomes vinculados as condições naturais relevo, vegetação, presença de água e animais e
plantas. As poucas cidades nominadas naquela categoria (povoamento primordial), com
significado indígena, refletem sentimentos e ou defesa.
Os elementos fundamentais da paisagem original acabam por dominarem e darem
expressão aos nomes dos municípios que mantêm as nominações indígenas. Nesse sentido
a presença histórica das populações originárias demarca as paisagens humanizadas. Tais
indicações permitem olhar a paisagem sob presença e ausência de populações originárias,
na medida em que, cada nome constitui a expressão de um povo ausente na grande maio-
ria dos lugares; presente em alguns territórios específicos, a exemplo das terras indígenas
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
demarcadas; ou como memória nas nominações das cidades.
A análise da persistência dos nomes indígenas, as mudanças ocorridas e, os contextos
em que ocorreram eventuais reposições foram inferidos de forma geral, uma vez que há ne-
cessidade de aprofundamento das investigações nesse sentido. Com base na periodização
elaborada a partir da formalização das cidades administrativamente o que está indicado são
a permanência de cidades com nomes indígenas desde os anos de 1699. Pouco expressivo
aumento de cidades com nomes indígenas desde 1699 aos anos 2000 e um acréscimo
significativo de cidades com denominações não indígenas nos anos 1850 a 1899. O que
indica um registro diferente daquele vinculado as políticas Pombalinas (XVIII), mas, que
conforme os registros históricos estão a elas associados, uma vez que a expansão Imperial
609 //
com a política de criação de vilas com substituição e ou denominação portuguesa contri-
buiu para o alargamento territorial.
Para o conjunto das cidades paraibanas o registro de 57 cidades com denominações
indígenas é pouco expressivo. Presenças e ausências, silenciamentos, confinamentos, re-
presentam, pelo estudo toponímico aqui sintetizado, marcas de processos que forjam
territórios.

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As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


611 //
D. Joana de Áustria, La Princesa:
as influências culturais entre as Cortes Ibéricas
e a evolução da forma de representação
régia feminina durante o século XVI

Fernando Baptista Pereira1


Pedro Manuel Pereira da Silva Tavares2

D. Joana de Áustria (1535-1573), filha do Imperador Carlos V (1500-1558) e da


mais bela e exemplar Imperatriz do Sacro Império, D. Isabel de Portugal (1503-1539),
descende de mulheres extraordinárias, que participaram do desenho das grandes potências
europeias.
La Princesa teve a infelicidade de reger Espanha na altura mais trágica da sua existência,
sendo mãe e viúva pós-adolescente, forçada a abandonar o filho com apenas três meses de
idade em Lisboa. Para tal empresa precisou de se tornar na imagem imaculada de governa-
ção e, acima de tudo, fazer-se representar segundo o seu estatuto, infanta de Espanha, filha
do Imperador, irmã do Rei de Espanha Filipe II (1527-1598), Jesuíta e, sobretudo, mãe
do futuro Rei de Portugal, D. Sebastião (1554-1578), O Desejado.
D. Joana desde a infância recebeu uma educação ímpar, sem descurar a música e lite-
ratura erudita, criando um acervo religioso e artístico à imagem da mãe e das tias, Maria
da Hungria (1505-1558) e Catarina de Áustria (1507-1578). De facto o seu Kunstkammer
incluiu igualmente medalhas, camafeus, tapeçarias, jóias, relicários, porcelanas e objetos
do extremo oriente. No entanto, distingue-se na quantidade de imagens religiosas e sobre- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

tudo de retratos da família, confirmando uma estratégia político-religiosa.


A forma de representação de D. Joana foi desenvolvida nos Reinos Peninsulares; de
infanta em Arévalo, a jovem princesa a residir na exótica cidade de Lisboa. Obras dos
mais significantes retratistas do Império, como António Moro (1516-1576), Cristobál
de Morales (ativo em Portugal entre 1551-1571), Alonso Sánchez Coello (1531-1558) e
Sofonisba Anguíssola (1532-1625), definiram a sua iconografia que influenciou a forma
de representação das Mulheres Habsburgo.

1
CIEBA
2
CHAIA
613 //
De uma forma sucinta apresentamos, a partir dos vestígios da cultura material, a origem
da reconhecida imagem de virilidade da Princesa regente na corte espanhola, tornando-se
exemplo para as descendentes. La Princesa foi fundamental na disseminação da arte penin-
sular de influência ultramarina, tornando Madrid a capital da moda (antecedida por Dijon,
onde a Casa de Avis também participou na regência), mais tarde destronada por Paris.

A coleção da Infanta D. Joana e a representação nupcial

Os primeiros bens da infanta foram artefactos ritualísticos, refletindo a elevada mor-


talidade infantil e a ausência de cuidados de saúde eficazes. Fazem parte do seu inventário
objetos apotropaicos, tais como um conjunto de raízes de peónia em prata, que geralmente
penduravam nas roupas das crianças para proteger de males (Fig. 1) (Gabaldón 2017, 10).
A primeira herança recebeu-a aos quatro anos, logo após a morte da mãe. Além de joias
e objetos curiosos, tais como uma figura de ourivesaria de um macaco a montar um cavalo,
herdou um traje de aparato completo, em tecido dourado e veludo carmim, que incluía
fechos de ouro e dez botões octogonais de ouro e esmalte branco, com um medronheiro no
meio de cada, executados pelo ourives da imperatriz Lope Pérez (Gabaldón 2017, 10-11).

Fig. 1 – La Infanta Ana Mauricia de Austria,


Pantoja de la Cruz (1602). Convento das
Descalças Reais, Madrid.

O património da Infanta em cres-


ce em 1545, após a morte da princesa
D. Maria Manuela de Portugal (1527-
1545). O Príncipe Filipe, que regular-
mente enviava prendas para as irmãs
614 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

em Arévalo, mandou algumas jóias e


conjuntos de transporte da falecida
esposa, como uma padiola em veludo
carmesim e equipamento equestre em
prata. D. Joana recebeu jóias, um re-
licário, dois relógios3, almofadas para

3
Estes relógios possivelmente supervisionados por Juanelo Turriano (1501-1585). Juanelo tinha sido investi-
do com o título de Príncipe dos Arquitectos de Relojoaria, por Carlos V, conferindo-lhe uma pensão e uma
posição social elevada na corte. O carácter hereditário desta pensão pertencia a um sistema que tinha como
fonte o Imperador, sendo perpetuada por Filipe II. Juanelo certamente privou com a princesa D. Joana,
Fig. 2 – Chopines italianas (c. 1550-1650). Brooklyn Museum Fig. 3 – Pomme de senteur, séc. XVI .
Costume Collection at The Metropolitan Museum of Art, Gift of the Musée international de la parfumerie
Brooklyn Museum, 2009; oferta de Herman Delman, 1955. de Grasse.

andar a cavalo “a la gineta” e uma arca dourada de Augsburgo. Era também frequente
receberem acessórios, como chopines (Fig.2) e boinas (Gabaldón 2017, 11).
A princesa também recebia prendas exóticas de Lisboa enviadas pela tia, a Rainha
Catarina de Portugal, como pulseiras de ouro, cravejadas com rubis e safiras do Ceilão, ou
um colar de duzentas e quarenta contas de ouro em filigrana, com uma ‘maçã de âmbar’
(pomander) (Fig. 3) (Gabaldón 2017, 13-14). Prendas de Lisboa com sabores e odores
exóticos eram regulares, sendo que o jardim do paço e a menagerie eram reconhecidamente
um investimento, onde a criação de civetas e a extracção de almíscar eram particularmente
lucrativas (Jordan-Gschwend 2010, 11).
De facto D. Catarina enviava regularmente, para a Casa das Infantas, criadas com
mulas carregadas de doces, acessórios, objetos e animais exóticos, tanto para as sobrinhas
como para o neto D. Carlos4 (1545-1568) (Gabaldón 2017, 13-14). É o caso de um
despacho em 1542, do qual D. Joana recebeu uma grande quantidade de objetos asiáticos, As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

tais como um cofre com fechadura e puxadores em prata dourada e uma tigela e três ban-
dejas de tartaruga, descritas como porcelana (Jordan et al. 2013, 113).
A 11 de Janeiro de 1552, a infanta casou-se por procuração em Toro com o herdeiro
do trono lusitano, o seu primo o príncipe D. João (1537-1554). Nos meses anteriores à
partida de Castela, a reciprocidade de correspondências e presentes entre Lisboa e Toro era
fluida, sendo dado grande destaque aos retratos. A nove de Março o Embaixador Pires de

mais tarde, durante a regência em Valladolid (Jacinto e Marques 2019,147-148).


4
O príncipe D. Carlos de Espanha, neto favorito de Catarina da Áustria, era o único filho sobrevivente da filha
Maria Manuela de Portugal. A avó mimou-o com animais raros e exóticos, como uma zebra africana, um falção-
-gerifalte e aves exóticas das Américas. O mais caro e famoso foi um elefante (Jordan-Gschwend 2010, 15, 35).
615 //
Távora notificou que enviava um retrato da Infanta, assegurando que: “embora mais bela
do que a pintura mostrasse, esperava que a pintura satisfizesse o príncipe e que contem-
plando pudesse imaginar o que tanto almejava” 5(Universidade do Porto 1999, 125-126).
O embaixador escreveu à Rainha de Portugal, transmitindo o desejo da infanta ter
um retrato do príncipe, recebendo-o no início de Abril. Através de cartas que enviou co-
nhecemos a sua reacção; ficou muito feliz em vê-lo e colocou-o no quarto onde dormia,
passando a maior parte do tempo olhando e conversando com ele. O neto de Catarina,
o jovem D. Carlos, também mostrou alegria com a sua chegada. Ia muitas vezes aos apo-
sentos de D. Joana, chamando-o de tio, convidando-o para comer (Universidade do Porto
1999, 125-126).
Um estudo de Annemarie Jordan, sobre o retrato da corte de Portugal do século XVI6,
identificou os trocados, em 1552, como sendo de propriedade da Rainha Vitória, atual-
mente expostos em Hampton Court. O retrato de D. João (Fig. 4) é uma obra conjunta
de António Moro (Anthonis Mor)7 e Sánchez Coello8, o de D. Joana (Fig. 5) é atribuído
a Cristobál de Morales9. Embora haja uma evidente diferença de qualidade (o de D. João
bastante superior), ambos os retratos correspondem a representações oficiais. São imagens
codificadas, onde todos os elementos transmitem a ideia de majestade e nada foi deixado
ao acaso. As poses e gestos, as roupas magníficas, ou os vários elementos envolventes, como
a cadeira onde a princesa apoia a mão esquerda que segura um par de luvas (Fig. 5) ou a
coluna atrás do príncipe (Fig. 4), transmitem (a partir de uma linguagem iconográfica) a
descendência régia (Universidade do Porto 1999, 127-128).Ambos seguem as orientações
de Francisco de Holanda, no ensaio Do tirar polo natural (1549), sobretudo a importância
dos retratos de pessoas de qualidade transmitirem a natureza aristocrática. O do príncipe
João é um exemplo perfeito, a imagem deliberadamente não apresenta sinais de saúde
frágil, em contrapartida revela atributos régios que os Habsburgo facilmente identificavam
(Universidade do Porto 1999, 128-129).
616 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

5
Tradução livre: Pedro Tavares.
6
(Jordan-Gschwend 1994).
7
Anthonis Mor foi enviado pela Rainha Maria da Hungria, à Península Ibérica, para produzir bons retratos
das princesas casadoiras, Joana da Áustria e a Infanta Maria de Portugal (1521-1577). Passou nove meses na
corte portuguesa produzindo vários retratos para a galeria de D. Catarina, exemplo seguido por Filipe II e
D. Joana da Áustria (Lozano 2011, 72).
8
Alonso Sánchez Coello, antes de trabalhar para Filipe II, foi súbdito de D. Joana. Primeiro na corte de
Lisboa (entre 1552 e 1554) e posteriormente em Valladolid, a partir de 1557. Denominava-se “o pintor da
Serenissima Princesa” (Lozano 2011, 82).
9
“A pintura faz parte de um grupo de retratos existentes da jovem Joana da Áustria, onde as cabeças são
muito semelhantes, mas as poses e os trajes são variados. O retrato é semelhante aos retratos de Anthonis
Mor e provavelmente é baseado em uma imagem original de Mor.” (https://www.rct.uk/collection/407223/
joanna-of-austria-1535-73).
Fig. 4 – João, Principe de Portugal (1537-54). Oficina de Fig. 5 – Joana de Áustria, (1535-73). Cristobál de
Anthonis Mor, c.1552-4. Royal Collection Trust (RCIN Morales, seguidor de Anthonis Mor, c.1552-3.
403953). Royal Collection Trust (RCIN 407223).

No retrato de Cristovão de Morais, a Infanta usa um vestido formal em veludo preto,


decotado, com o corpete possivelmente laçado lateralmente, bordado a ouro com letras
maiúsculas ‘I’ entrelaçadas, alusivas ao seu nome dos noivos em latim (Ioan – Ioannae)
10
(Fig. 6). As jóias, o colar e sobretudo o cinto, com conjuntos de duas colunas (Fig. 6),
foram herdados da mãe e são evocativos ao lema de Carlos V, Plus Ultra. Celebram a con-
quista de Túnis e as virtudes míticas hercúleas que o Imperador assumia.
Tecidos pretos, particularmente caros de pro-
duzir e difícil de manter, eram muito apreciados
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
na corte dos Habsburgo, sobretudo em cerimó-
nias oficiais. O corpete de veludo preto acentua
o partlett (a blusa de linho fino), com gola alta e
mangas compridas e largas, rematadas por delica-
das rendas. Durante a segunda metade do século
XVI os corpetes decotados tornaram-se cada vez
mais raros na Península Ibérica, embora tenham Fig. 6 – Pormenor de Joana de Áustria, (1535-
73). Cristobál de Morales , c.1552-3. Royal
Collection Trust (RCIN 407223).

10
(https://www.rct.uk/collection/407223/joanna-of-austria-1535-73).
617 //
Fig. 7– Traje de Eleonora di Toledo e pormenor do Fig. 8 – Joana de Áustria (pormenor da cofia de papos),
laçado, ca.1550. Pisa. Museo Nazionale di Palazzo (1535-73). Cristobál de Morales, c.1552-3. Royal
Reale. Collection Trust (RCIN 407223).

continuado a ser usados em Inglaterra e França11. Existe um raro exemplo, com materiais
semelhantes, exposto no Museu Nacional do Palácio Real de Pisa, o vestido de corte de
Leonor de Toledo (1522-1562) (Fig. 7), responsável por introduzir a moda das infantas
Habsburgo, na Corte dos Médicis.
Apesar da evidente influência alemã, como a boina de veludo decorada com pérolas,
D. Joana foi penteada num estilo conhecido como cofia de papos, uma novidade entre as
618 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

mulheres Habsburgo peninsulares da década de 50, que consistia nos cabelos presos numa
rede de ouro enfeitada com pedrarias, deixando as orelhas à mostra (Fig. 8).
Este é o mais exemplar retrato de uma noiva Habsburgo peninsular e foi possivelmente
o traje de eleição na Entrada Real em Lisboa.

11
(https://www.rct.uk/collection/407223/joanna-of-austria-1535-73).
Prelúdio da Princesa na exótica Corte de Lisboa

La Princesa nasceu durante a Conquista de Túnis (Junho de 1535), o que se reflectiu


não só no traje como em todo o programa iconográfico da Entrada Real em Lisboa, no
ano de 1552. Os quadros vivos, as decorações, as carruagens e os arcos triunfais, realçavam
a propaganda hercúlea do Imperador, sobretudo a carruagem triunfal herdada da mãe, de-
corada com cenas dos Trabalhos de Hércules, que tinha sido propositadamente restaurada
para a viagem (Jordan et al. 2013, 149).
Os monarcas portugueses encomendaram retratos dos noivos e medalhas alegóricas
representando D. Joana, o que confirma que a imagem da princesa foi cuidadosamente
controlada por D. Catarina (Jordan et al. 2013, 144). A fundição foi inicialmente atri-
buída a Jacopo da Trezzo, depois a Francisco de Holanda, e posteriormente a um artista
desconhecido. São o único material pictórico remanescente da Entrada Real (Fig. 9). No
reverso da medalha está inscrito “O fruto do casamento” e mostra uma imagem alegórica
de Ceres, a deusa romana da fertilidade, segurando espigas de trigo na mão direita. Uma
pequena estátua do deus protector das Fronteiras atrás da cadeira, Terminus, e uma lebre,
representando Hispânia a seus pés, são alusivos à União Ibérica. O reconhecimento pú-
blico da fertilidade da Princesa, na altura em que foram executadas, sugere que já estaria
grávida (Jordan et al. 2013, 159).
Desde a Entrada Real foi presenteada pelos sogros, sobretudo com jóias. Em Outubro
de 1553 a rainha partilhou com a nora bens da Índia: perfumes, têxteis, “porcelanas y otros
bríncos”. D. Joana adquiriu anéis; brincos indianos; pregadeiras; uma cruz de ouro com
diamantes e pérolas; cordões e colares de ouro; fivelas esmaltadas em forma de espirais e

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fig. 9 – Joanna of Austria, Daughter of Charles V (1535-1573) Jacopo Nizolla da Trezzo (Italian, Milan
1515/19-1589 Madrid), 1554, nº25.142.36.The Metropolitan Museum of Art., NY.
619 //
borboletas; duas estatuetas, um elefante de cristal (Fig. 10)12 e um macaco de ouro; alfi-
netes de pérola e rubi; rosário de ágata, com cenas religiosas esmaltadas, e um medalhão de
Cristo e Maria; um cinto indiano de ouro com esmeraldas e rubis; cestos flamengos de prata;
e porcelana chinesa, com bases em prata (Gabaldón 2017,14).
Anos mais tarde, em Castela a princesa exibiu com orgulho algumas destas jóias, desta-
cando a pérola que recebeu do sogro, branquíssima, do tamanho de um ovo de pomba (3
cm). Devido às características excepcionais, foi apelidada de huérfana (Gabaldón 2017, 14).
Durante a breve passagem pela Corte portuguesa, D. Joana possivelmente apresenta-
va-se em sessões, com dignitários, embaixadores e emissários da Igreja, ostentando estas
jóias, que faziam parte da regalia do Império Ultramarino Português.
O Paço Real de Lisboa, onde a Princesa passou a residir, era uma longa galeria que
enquadrava o Terreiro do Paço, com vista directa para os admiráveis ​​edifícios da Casa da
Mina, Casa da Índia e Casa da Moeda. Dentro do palácio funcionavam os Conselhos de
Estado e do Tesouro, o Tribunal da Relação do Paço (órgão central judicial e administrati-
vo, tutelado pelo rei) e o Gabinete de Consciência e Ordens (dedicado às Ordens Militares
e Religiosas) (Jordan et al. 2013, 70). Enquanto zona administrativa e comercial, o Paço da
Ribeira era ponto de encontro de mercadores, vendedores, fidalgos, eclesiásticos e escravos,
de diversas proveniências e culturas. O estilo de vida global e o exotismo quotidiano da
cidade (Fig. 11), espelhavam-se na arquitetura militar portuguesa do palácio, reforçada pela
proximidade do Armazém da Guiné, do Armazém
da Índia, dos jardins, da menagerie e, o mais im-
pressionante, a magnífica vista Atlântica.
Apesar da animação no Paço da Ribeira, o
Embaixador espanhol em Lisboa descreve a Princesa,
numa carta ao Imperador, como “um anjo, embo-
ra de caráter um tanto seco”13 (Danvila y Burguero
1900, 43). A natureza introspectiva e taciturna pare-
620 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ce ter criado fricções com a sogra, por isso advertia:


“é aconselhável (que a princesa) não seja assim (seca)
com a Rainha que é sábia e entende a questão de
Portugal e conduz o Reino melhor do que nunca e,
Fig. 10 – Elefante com saleiro, Cristal, 1550 assim é, que nada mais se faz do que a sua vontade” 14
(Kunstkammer, Inv. 2320) . Kunsthistorisches (Danvila y Burguero 1900, 43).
Museum, Viena.
12
Esta peça de cristal-rocha (onde foi acrescentado um saleiro tardo-medieval) obtida pela Rainha Catarina, na
Índia ou no Ceilão em 1550 (Jordan et al. 2013, img.16), possivelmente é semelhante à que ofereceu a D. Joana.
13
Tradução livre: Pedro Tavares.
14
Tradução livre: Pedro Tavares.
Fig. 11 – Chafariz Del Rei, artista holandês desconhecido (1570-1580). Coleção privada de Joe Berardo.

O estado de espírito da Princesa, deve-se às diferenças significativas entre a Casa das


Infantas e a corte portuguesa. Apesar da presença portuguesa na Casa das Infantas e das pren-
das do Império Ultramarino Português, D. Joana não estava de todo preparada para o pro-
tocolo da corte lusitana (como por exemplo sentar-se em grandes almofadas dispostas pelo
piso). D. Catarina manteve-se informada, tentando controlar as damas que cercavam a futu-
ra nora, os esforços que empreendeu foram infrutíferos. D. Joana cresceu frugalmente, por
vezes em casas-apalaçadas emprestadas, nas cidades de Alcalá, Madrid, Guadalajara, Toro,
Aranda, Tordesilhas e Ocaña, sem a presença dos cortesãos mais influentes, pois tinham
acompanhado o irmão para Inglaterra. Nenhum destes locais tinha o centralismo político- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

-religioso e a capacidade protocolar conducente do Palácio do Paço da Ribeira. Só durante


o reinado do irmão é edificado o primeiro Palácio da Fé que supera o de Lisboa, El Escorial.
O único retrato de D. Joana pintado na exótica corte lisboeta é o de Cristovão de Morais,
exposto nos Museus Reais de Belas Artes da Bélgica (Fig. 12). É o primeiro retrato da realeza
com uma criança de origem africana. Esta escrava foi oferecida pelo marido, como era costu-
me na família real portuguesa15. A mão, pousada na cabeça da criança, simboliza o estado de
15
A Rainha Catarina era uma gastadora compulsiva, não só pela quantidade de escravos, mas também na
forma como os “aperfeiçoava”. Ela não só tinha um grande número, de diversas origens, como os mandava
educar em diversos lavoures, incluindo-os nos dotes da filha e oferecendo-os a familiares, como o neto
D. Carlos (Caldeira 2017,168-1670). (Caldeira 2017,168-1670).
621 //
gravidez. A coluna ao fundo alude às co-
lunas de Hércules, indicando a descen-
dência paterna. É um retrato que celebra
a majestade imperial da futura rainha de
Portugal.
Os acessórios, um leque japonês e
um par de finas luvas de pelica, estavam
em voga na corte portuguesa. O gibão,
com gola alta e fechamento frontal a si-
mular a jaqueta masculina, é em cetim
preto, com as costuras destacadas com
tiras de veludo preto e alfinetes de rubi.
As mangas são destacáveis e com costu-
ras mais elaboradas
Os trajes femininos com inspiração
em peças masculinas e orientais eram co-
Fig. 12 -Retrato de Joana de Áustria, Cristóvão de muns na corte portuguesa. D. Catarina
Morais,1553. Royal Museum of Fine Arts, Bélgica. e a Princesa Maria de Portugal foram re-
tratadas, anos antes, por Anthonis Mor,
com robes negros (possivelmente veludo) de gola alta e fechos realçados por bordados a
ouro. Os trajes da Princesa na corte portuguesa parecem menos restritivos que os da corte
espanhola e mais adequados à actividade de regência, sobretudo a leveza (sedas) e facilida-
de de mudança de peças, conducentes à agenda protocolar.
A saia, armada pelo farthingale espanhol, com os mesmos materiais que o gibão, pro-
longa a costura do meio, realçada também com alfinetes de rubi. Um cinto de ouro com
esmeraldas e rubis, realça a figura elegante da Princesa. Todas as jóias que enverga corres-
pondem à descrição do conjunto de peças indianas presenteadas pelos sogros em 1553, no
622 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

entanto são as do penteado que denunciam a origem ultramarina portuguesa.


O penteado, estilo francês, é apartado a meio com as secções frontais enroladas e grandes
chignons laterais cobertos pela cofia de papos. A rede de ouro (cofia) é rematada por uma faixa de
pérolas e diamantes entrelaçados, com uma pluma no topo e um broche de rubi e esmeralda
com uma grande pérola, suspensos a meio. A cruz de ouro com diamantes e pérolas, que cobre
quase por completo o chignon, é a pièce de résistance de todo o conjunto (Fig. 13). Uma rápida
comparação com o retrato da irmã (Fig. 14), pintado dois anos antes em Espanha, verifica-se
que as jóias da Princesa de Portugal são colossais. A importância destas Jóias é evidente, sobre-
tudo em cópias, tais como de um artista flamengo desconhecido onde são muito detalhadas,
em oposição à fisionomia (Fig. 15). As jóias claramente identificam La Princesa.
Fig. 13 – Pormenor, Retrato de Fig. 14 – Pormenor, Imperatriz Fig. 15 – Pormenor de Principessa
Joana de Áustria de Cristóvão de Maria da Áustria, Anthonis Mor, Giovanna d’Austria (c.1586),
Morais, 1553. 1551. Museu do Prado. Galleria Nazionale di Parma.

O objetivo inicial dos monarcas era publicar uma crónica sobre a Entrada Real, in-
cluindo gravuras. Contudo a morte inesperada do Príncipe D. João, dois meses antes
do nascimento do herdeiro, frustrou todas as memórias póstumas de D. Joana enquanto
futura rainha (Jordan et al. 2013, 143-144). Com a morte do marido o filho tornou-se o
único herdeiro e, sendo a princesa considerada instável, o seu papel terminou na corte de
Lisboa, tornando-se regente de Espanha.
Apesar de permanecer apenas dois anos na corte portuguesa, estes foram decisivos para
que, como regente, controlasse a imagem oficial. Foi uma clara rotura com os exageros da
corte portuguesa, mantendo porém o luxo do Império Ultramarino Português.

La Princesa e a criação da expressão política e devocional na moda


cortesã

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Após a inesperada nomeação, a jovem princesa escreveu a São Francisco de Borja
(1510-1572) marcando um encontro em Tordesilhas. Foi nessa reunião que ela pediu
orientação espiritual e ingressou na Companhia de Jesus, sendo até aos dias de hoje a única
mulher que recebeu votos secretos próprios dos estudiosos perpétuos, apesar de dispensá-
veis ​​caso contraísse um casamento estatal (Millán 2000).
Sob a influência de São Francisco de Borja, a corte de Valladolid era de uma simplicida-
de austera conventual, orientada por confessores jesuítas. Como regente e jesuíta secreta, a
princesa fundiu a religião à vida cortesã e patrocinando obras de Frei Luís de Granada (1504-
1588), Francisco de Borja e Jorge de Montemayor (c.1520-c.1561), que foram a base de uma
reforma religiosa iniciada em Portugal. Apesar destas obras terem marcado o século literário
623 //
e espiritual espanhol e, com o tempo, se tenham
tornado norma, no final da regência fizeram parte
dos livros proibidos pela Inquisição e seus autores
foram perseguidos (Tavares 2023, 62).
Com a morte de D. João III, a princesa tor-
na-se mãe do rei do mais importante Império
Ultramarino e, como consequência, um impor-
tante aliado político entre Portugal e o Império
Habsburgo. Após a chegada do irmão e o fim
caótico da regência, o seu singular estatuto
permitiu-lhe manter a liberdade do estado de
viuvez piedoso, apesar dos repetidos rumores
de alianças matrimoniais. Filipe II manteve-a
sempre ao seu lado e encarregou-a de supervi-
sionar a educação das esposas adolescentes e dos
filhos (Tavares 2023,65) . Os seus ideais devo-
cionais influenciaram diretamente as esposas
de Filipe II, Isabel de Valois e Ana da Áustria,
Fig. 16 – Dona Juana, Princesa de Portugal,
retrato de corpo inteiro aos 22 anos com um bem como as sobrinhas Isabela Clara Eugenia
galgo. Alonso Sánchez Coello . Kunsthistorisches (1566-1633) e Catarina Micaela (1567-1597)
Museum, Viena.
e respectivas descendentes, como Margarida
(1589-1655), Duquesa de Mântua e Vice Rainha de Portugal.
A sua vida na corte espanhola, coincide com a génese e desenvolvimento do retrato de
corte na Europa. Os melhores retratistas pintaram-na, criando as obras de arte mais signi-
ficativas da década, moldando as convenções dos retratos oficiais das mulheres Habsburgo.
A natureza reservada da princesa não impediu a sucessão de reproduções, com pequenas
variações. Segundo relatos contemporâneos, era bela e distinta, com maneiras altivas es-
624 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

panholas. A força de vontade, o distanciamento e a reserva, fez com que muitos a descre-
vessem como viril. D. Joana tornou-se um exemplo de austeridade e devoção imperial.
Biógrafos observaram que usava sempre preto, a princípio como sinal de luto, mas depois
tornou-se marca registada de seu status político e religioso singular (Jesuíta). Testemunhas
oculares, como embaixadores de Catarina de Médicis (1519-1589) e cronistas da corte de
Filipe II, enfatizaram o seu código austero de vestimenta em importantes eventos públicos,
como a coroação do príncipe Carlos, onde ela “vestiu-se de preto, com alguns adornos,
pedras preciosas e pérolas no toucado e mãos” 16, ou em audiências onde aparecia velada,
com o rosto escondido (Córdoba e Millán 1998, 212).
16
Tradução livre: Pedro Tavares.
Fig. 17 – Joanna de Portugal, Sofonisba Fig. 18 – Dona Juana, Princesa de Portugal,
Anguissola, pormenor da princesa a segurar a pormenor do galgo. Alonso Sánchez Coello .
medalha do pai, c.1560, coleção particular. Kunsthistorisches Museum, Viena.

O retrato do museu de Innsbruck (Fig. 16) é particularmente significativo pois foi


comissionado como celebração dos votos secretos como jesuíta. O traje é do mesmo estilo
que em Portugal, uma jaqueta com mangas destacáveis e saia, possivelmente em seda,
muitas vezes bordadas ou tecidas, criando relevos da mesma cor.
Todo o conjunto, incluindo os fechos, os alfinetes e as pérolas, são em negro, o que
não se enquadrava nas expectativas dos cortesões. Negro não era uma cor exclusiva a viúvas
porém, não era comum em seda oriental. Apesar do evidente luxo, um visual tão austero
numa bela e jovem princesa era estranho, era mais adequado para uma religiosa.
A toca de cabos, que cobre praticamente todo o penteado, com os cabos seguros ao peito
pelo Joyel, era muito usada por viúvas, Este guarda-roupa, onde less is more, permite salientar
as jóias que enunciavam a descendência. Temos exemplos, em retratos posteriores, onde a
princesa substituiu o Joyel por medalhas do Imperador Carlos V (Fig. 17) e de Filipe II.
Por fim não podemos deixar de referir o galgo com a coleira com as armas de Castela e

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


Portugal (Fig. 18), uma alusão à aliança dinástica e à desejada União Ibérica.

Referências bibliográficas

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de Castilla y León.
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(1538-1613) / por Alfonso Danvila y Burguero». https://bibliotecafloridablanca.um.es/
bibliotecafloridablanca/handle/11169/6071.
625 //
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En La Cultura Hispana de Los Siglos XVI y XVII. https://www.academia.edu/4518630/
Francisco_de_Borja_de_criado_a_maestro_espiritual_de_las_mujeres_Habsburgo.
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de Felipe II y Carlos V. https://dialnet.unirioja.es/servlet/libro?codigo=4519#volumen7778.
Tavares, Pedro Manuel Pereira da Silva. 2023. «O Claustro do Mosteiro de Santa Clara-A-Nova de
Coimbra e o seu contexto histórico, simbólico e arquitetónico. A restauração e a influência da
cultura político-religiosa feminina da Casa de Habsburgo na arquitetura original do Mosteiro».
DoctoralThesis, Universidade de Évora. http://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/34988.
Universidade do Porto, ed. 1999. D. Maria de Portugal Princesa de Parma (1565-1577) e o seu
tempo: as relações culturais entre Portugal e Itália na segunda metade de Quinhentos. Revista da
Faculdade de Letras. Série «linguas e literaturas». Porto: Faculdade de Letras do Porto, Centro
Interuniversitário de História da Espiritualidade, Instituto de Cultura Portuguesa.
626 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
Turismo, interdisciplinaridade
e experiência: uma viagem, muitas lições

Renata Maria Ribeiro1

Introdução

O turismo tem sido uma atividade em constante expansão e transformação. Após a


pandemia do COVID-19 o setor busca recuperar as atividades na diversificação de oferta,
baseada principalmente nos novos hábitos adquiridos pelas pessoas em suas viagens duran-
te o período de flexibilização do isolamento.
As viagens organizadas por pessoas utilizando automóvel particular, motorhomes entre
outros e a busca a destinos alternativos e pouco massificados em busca de acomodações
diferenciadas teve destaque pós pandemia.
A visão do turista para realização de suas viagens se modificou, seja com as facilidades
em encontrar informações sobre destinos pela internet, seja a partir de pagamentos pelos
diversos canais diretos com transportadoras, informações mais detalhadas a atrativos turís-
ticos e meios de hospedagem, mas principalmente pela disseminação de blogs de viajantes
solitários, caracterizados principalmente sob a terminologia de turismo de experiência.
É notório a mudança de comportamento do turista, acelerada pelo momento da pan- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

demia, e também um olhar a destinos diferenciados.


O cenário impõe desafios à aprendizagem do discente do Curso de Turismo em um
momento que se percebe a necessidade de flexibilidade, envolvimento, entendimento e
percepção das potencialidades e interesses da demanda turística em evolução.
O jovem universitário é o profissional que desenvolverá produtos para uma geração de
viajantes cada vez mais focados em suas próprias intenções, sem se preocupar com situa-
ções e destinos moldados para o consumo tradicional de destinos turísticos.

1
Professora Doutora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Engenharia e Ciências,
Rosana, SP, Brasil – Curso de Turismo. renata.ribeiro@unesp.br
627 //
Em um enfoque paradigmático diferenciado, é hora de voltarmos o olhar aos países
fronteiriços ao Brasil, observando oportunidades de estudos e atividades que nos permi-
ta perceber situações econômicas, políticas, diversidade cultural, paisagens diferenciadas,
entre outros fatores favoráveis ao deslocamento turístico partindo do Brasil.
Partindo dessa premissa, o presente estudo apresenta o relato de uma disciplina organi-
zada para fins de aprendizagem aos alunos de Graduação do Curso de Turismo da UNESP.
Como denominação, a principal dinâmica é praticar as diversas atividades inerentes em
uma viagem ao profissional de Turismo a partir de uma visão ampla das variantes, necessá-
rias para a realização da atividade turística adequada a um público potencial para viagens.
Partindo de um curso com quatro anos de duração, subdividido em 8 semestres, pos-
sui disciplinas de formação a partir de “conteúdos básicos, conteúdos específicos e conteú-
dos teórico-práticos”, sob as diretrizes curriculares nacionais do Curso de Graduação em
Turismo, Resolução 13 de 24/11/2006 do Conselho Nacional de Educação do Ministério
da Educação – Brasil. (Brasil, 2006).
Tendo como princípio a relação entre o ensino, pesquisa e extensão, O Curso de Turismo
que completou 20 anos em 2023, e instituiu em seu Projeto Político Pedagógico a partir de
2012, 5 (cinco) Eixos Formadores – Eixo 1 – Turismo, desenvolvimento humano e social; Eixo
2 – Turismo e Patrimônio Natural e Cultural; Eixo 3 – Empreendimentos e Serviços Turísticos;
Eixo 4 – Desenvolvimento Turístico e, Eixo 5 – Pesquisa em Prática em Turismo. Esse último
sendo o eixo articulador “Este eixo busca articular os conteúdos e conhecimentos teórico-metodo-
lógicos referente à construção do saber-fazer e do fazer-saber do turismo” (UNESP, 2012, p.26).
O Eixo articulador permite aos docentes, empregar práticas de aprendizagem baseadas
nas realidades da sociedade em geral, e da comunidade estudantil, observando as inova-
ções, as tendências e as necessidades em oferecer exercícios atualizados às mudanças a que
o turismo está sujeito.
As diversas possibilidades são amplificadas em uma leitura teórica pela palavra “arti-
culação”, aliada ao desafio de uma nova forma de fixar conteúdo para a geração de habili-
628 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

dades e competências.
Pensando em desafios que possam quebrar a estrutura de disciplinas obrigatórias, tem-
-se na oferta de disciplinas optativas um repertório de potencialidades para inovação e
estímulo à criação de novas disciplinas.
Nesse cenário, surge a proposta da disciplina optativa de Turismo, Interdisciplinaridade
e Experiência – TIEX, que foi delineada com o objetivo geral de compreender a comple-
xidade do turismo por meio de uma inter-relação entre aprendizagem teórico-prática em
um contexto de realidades e experiências reais analisadas tecnicamente por meio da vivên-
cia em conhecer destinos sob o olhar do aprendiz de turismo, delineados pelos seguintes
objetivos específicos: Observar os conceitos da interdisciplinaridade em turismo; Exercitar
a visão técnica aliada a aprendizagem teórica; Identificar conceitos teóricos na realidade
vivenciada; Proporcionar aprendizagem e aquisição de competência na observação e reso-
lução dos problemas nos destinos visitados.(UNESP¹,2022).
O plano de ensino foi confeccionado, a partir da estrutura metodológica dos planos
de ensino da UNESP, com: objetivos, carga horária, conteúdo programático, metodolo-
gia, critérios de avaliação, e bibliografia, e após ser aprovado nas instâncias colegiadas, foi
ofertado com disciplina optativa.
A construção do eixo norteador da disciplina foi baseada em diversas literaturas que
abordam temas sobre educação, turismo, entre outras leituras.

A construção de um pensamento para a aprendizagem inovadora

A educação formal tem sido um desafio constante a todos os envolvidos no processo


de aprendizagem, desde as fases iniciais, até a fase adulta. Os modelos tradicionais de
estudo são constantemente questionados pela ótica da modernidade, da internet, da inte-
ligência artificial. Atualmente, incitar um jovem à leitura técnica, à concentração para uma
escrita formal pelos meios tradicionais das aulas teóricas, estão se tornando um problema
quando aplicadas determinadas estruturas de aprendizagem.
Isso, em determinados casos traz ao professor, insatisfação, muitas indagações e mesmo
desânimo, uma vez que prender a atenção dos alunos está cada vez mais difícil. Em uma
outra forma de ver o “problema”, cabe muitas vezes ao mesmo professor, uma auto pro-
vocação, desafiar-se, para uma nova aprendizagem em busca de outros parâmetros, na
possibilidade de desenvolver novas formas de ensinar.
Nesse cenário, a busca por uma disciplina integradora fez com que algumas palavras-chave
pudessem nortear uma reflexão e uma primeira condução à construção da disciplina TIEX.
Eis que o peso da palavra disciplina, fez com que outras indagações aparecessem como:
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
complexidade, interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, e como inovar para ensinar.
629 //
Em busca de conceitos teóricos para a compreensão da complexidade do turismo e
quais as novas possibilidades de ensinar... concorda-se com o conceito de Morin
O que é complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido
(complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente
associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento,
a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, re-
troações, determinações, ocasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas
então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do
inextrincável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza... por isso o conhecimento
necessita ordenar fenômenos rechaçando a desordem. (Morin, 2005 p.13)

A complexidade no turismo é realmente uma constatação ao compararmos a atividade


ao conceito de Morin, uma vez que há no fenômeno variáveis de diversas áreas do conheci-
mento teórico que explicam ou tentam explicar esse movimento que afeta psicologicamente
pessoas, tanto pela experiência a que passam os viajantes, quanto pelos componentes que en-
volvem as destinações turísticas, observando-se que subsídios da ordem ambiental, cultural,
política e social estão interconectados e influenciam a atividade de modo direto.
Seguindo o entendimento, é hora de abordar a palavra disciplina. Termo comum junto
aos projetos pedagógicos e no cotidiano da sala de aula. Uma palavra que infere muitas
vezes o rigor, o autoritário, a ordem (sintomas da antiga educação formal) que interfere
sobremaneira na relação atual entre professores e alunos, quando está atrelada à sistema-
tização de transferência de conhecimento sob a passividade do ouvir do aluno, diante da
autoridade do professor, estendida à diferentes disciplinas (do saber) que não se conectam.
Portanto, reflete-se na proposta o seguinte pensamento:
Enfim, disciplina para Freire, é indispensável enquanto suporte à ideia de constru-
ção e manutenção da democracia: disciplina na leitura, no ato de ensinar e aprender,
no cotidiano, da escola, no respeito e no trato da coisa pública, na própria denúncia
630 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

da desumanidade instalada no humano e no engajamento em ações coletivas (p.161)

E ainda,
disciplina, para a educação tradicional, serve para impor aos discentes o respei-
to à ordem estabelecida pela sociedade, com o objetivo de naturalizar as imposições
e fixar uma conformidade para que os estudantes obedeçam ao poder instituído.
Diferentemente, para Freire, a disciplina está associada à autonomia dos sujeitos, a uma
disciplina na leitura, no ato de ensinar e aprender, no cotidiano da escola, no respeito e
no trato da coisa pública, na própria denúncia da desumanidade instalada no humano
e no engajamento em ações coletivas (GHIGGI, 2018 In: RUCKSTADLER, 2021).
Logo a seguir traçou-se os conceitos de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade
Multidisciplinaridade: conjunto de disciplinas que simultaneamente tratam de
uma dada questão, problema ou assunto (digamos, uma temática t), sem que os profis-
sionais implicados estabeleçam entre si efetivas relações no campo técnico ou científico.
É um sistema que funciona através da justaposição de disciplinas em um único nível,
estando ausente uma cooperação sistemática entre os diversos campos disciplinares.

Em busca de mais entendimento, encontrou-se na interdisciplinaridade uma aproxima-


ção de pensamento esclarecedor para o planejamento da disciplina que estava sendo construí-
da. Tem-se então no conceito de Pires, uma leitura que auxiliou na condução do raciocínio.
A interdisciplinaridade pode ser tomada como uma possibilidade de quebrar a
rigidez dos compartimentos em que se encontram isoladas as disciplinas dos currícu-
los escolares. No entanto, ela não deve ser vista como uma superação das disciplinas,
mas, como propõe Follari (1995b), uma etapa superior das disciplinas, disciplinas
essas que se constituem como um recorte mais amplo do conhecimento em uma de-
terminada área. Este recorte tem o objetivo de possibilitar o aprofundamento de seu
estudo, é uma necessidade metodológica legítima e necessária, porém insuficiente
para garantir a formação integral dos indivíduos (Pires, 1998).

Esclarecidos os devidos termos para a construção da ementa da disciplina Turismo,


Interdisciplinaridade e Experiência instiga
a construção do saber fazer turístico, quebrando barreiras de disciplinas tradi-
cionais em que o domínio técnico estará embasado na busca do conhecimento para
a resolução de problemas sobre uma viagem turística. Na busca do conceito de que
educação técnica se desenvolve para a compreensão humana, para a realidade e o en-
tendimento do ser social; e no desenvolvimento da compreensão intelectual objetiva

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024


e da compreensão humana intersubjetiva em prol do turismo dinâmico e sensível às
realidades e anseios dos turistas (Plano de Ensino TIEX, 2023).

Estruturado o raciocínio, embasado nas palavras norteadoras, a interdisciplinaridade


está alicerçada para a disciplina de TIEX baseada no preceito de que a mesma pode ser
tomada como uma possibilidade de quebrar a rigidez dos compartimentos em que se en-
contram isoladas as disciplinas dos currículos escolares. E, transmutando a construção do
saber em que a disciplina se constrói pelo homem em conjunto ao ideal objetivado, tem-se
a metodologia e os conteúdos que nortearam as aulas teóricas e a viagem técnica.
631 //
O planejamento dos conteúdos

Tendo em vista o ponto de condução teórico metodológica, os conteúdos planeja-


dos para a realização da disciplina, foram organizados em conceitos teóricos e técnicos à
prática de uma viagem técnica com temas abertos, mas direcionados ao objetivo final da
execução da viagem a Santa Cruz de la Sierra – Bolívia.
Foram inseridos no estudo o tema da interdisciplinaridade, a estrutura de transportes
Brasil-América do Sul – rotas rodoviárias viáveis para turismo alternativo; • O tempo de
viagem e o tempo de lazer: programando destinos; • As alternativas de descanso em uma
viagem: hospitalidade, preços e viabilidades; • Saúde e Segurança no turismo: como preve-
nir problemas; • A cultura do lugar: a decisão em planejar sua visita; um olhar para o perfil
do ser turista; • Como resolver os problemas de uma viagem: um estudo P3BL; • O espaço
turístico, uma análise do planejamento dos destinos visitados; • A viagem internacional
como experiência profissional; • O turismo na perspectiva do ODS em uma visão real,
técnica e comprobatória junto as sociedades visitadas.
A prática proposta nessa viagem técnica foi um desafio à orientação de um rol de pos-
sibilidades de inter-relação em que a aplicação de conceitos teóricos e metodologias deve
provocar no aluno participante a “sinapse”, o desafio de colocar em prática o que está ou
deveria estar armazenado em sua memória.
No planejamento da viagem técnica os envolvidos foram a todo momento desafiados
a recordar temas e aprendizagens de outras disciplinas, de experiências próprias, abordadas
coletivamente, das dúvidas técnicas e individuais, e principalmente da mudança de para-
digma de aulas em que a construção do conhecimento parte do professor e os alunos se
mantém passivos.
Desse exercício mental sempre disposto a partir das técnicas de Aprendizagem baseada
em Problemas, Projetos e Práticas – P3BL, todos (professor e alunos) foram desafiados,
pois disso, dependia a tomada de decisões para a realização adequada e segura da progra-
632 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

mação planejada. Sendo que o Problema – motivo e como organizar a viagem, o Projeto – o
planejamento da viagem, e Práticas – a execução da viagem sempre relacionada às aprendi-
zagens teórico-técnicas necessárias ao profissional do turismo.
O desafio foi relacionar as disciplinas do Curso de Turismo às aulas, tendo como base
informações teóricas, técnicas e práticas já aprendidas pelos alunos e outras que ou os alunos
ainda não haviam estudado, ou não constavam nos conteúdos do projeto político pedagógico.
Fonte: Elaboração própria, 2022.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Fonte: UNESP, 2012.

Discussão e análise

A disciplina TIEX foi ofertada no 1.º semestre de 2023 como disciplina optativa. O
limite de inscrições foi de 15 alunos, sendo que 9 alunos se matricularam. É importante
salientar que parte da viagem foi custeada pelos alunos, e parte subsidiada pela UNESP.
O planejamento financeiro foi uma das partes mais estratégicas e que exigiu de todos,
633 //
empenho, conhecimento técnico, práticas de negociação e fechamento de contratos e
poder de decisão. Iniciada a disciplina, o primeiro desafio foi trazer os alunos para um
novo paradigma de aprendizagem, em que todos tinham sua parcela de exposição de co-
nhecimento, dúvida, exposição e decisão.
Destino escolhido, iniciou-se o planejamento da viagem. Em todos os momentos o
moderador (professor) indagava o problema, relacionava-o com algumas disciplinas e lan-
çava o desafio da resolução. A exemplo: qual a documentação para visitação em outro país
da América Latina?; Quais os procedimentos referentes à Covid e outros relacionados à
saúde e segurança?; Como escolher acomodações e quais os valores?; Quais os tipos de
alimentos típicos (questões culturais) a serem observadas?; Quais os tipos de transportes e
horários para a programação da viagem?; Quais as atividades serão realizadas?; Entre mui-
tas outras indagações provocativas e instigantes com o propósito de despertar aos alunos
as correlações entre as disciplinas do curso, as realidades observadas, e as soluções a serem
ordenadas para a realização prática da atividade.
A viagem ocorreu entre os dias 20 a 27 de maio de 2023, conforme o planejamento do
projeto. Os alunos aprenderam a fazer o visto na fronteira entre Brasil e Bolívia. Observaram
e utilizaram os diversos tipos de transporte durante a viagem, observando questões da cultura
e como funcionam o trânsito e as diferenças entre a cultura brasileira e boliviana.
Exercitaram questões sobre finanças relativas principalmente com o câmbio e os pre-
ços dos produtos de alimentação, transporte e hospedagem. Conheceram praças e museus,
a exemplo da Foto 1 – na Praça 24 de setembro (marco inicial da cidade).
634 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Foto 1 – Alunos observando a Praça 24 de setembro. Fonte: TIEX, 2023.


Observaram diferenças entre o artesanato oferecido ao turista

Ao visitar a Universidade de NUR puderam verificar semelhanças entre as disciplinas


cursadas nos dois cursos, interagir com os alunos e trocar conhecimentos técnicos a respei-
to das diferenças entre o turismo no Brasil e na Bolívia.
A visita a Samaipata (sítio arqueológico) foi importante para percepção quanto ao res-
peito que a sociedade atual possui em relação a cultura dos povos antigos, principalmente
por tratar-se de um Patrimônio Cultural da Humanidade (UNESCO) em 1988.
Fomos atendidos pelo Secretário de Turismo de Samaipata que explicou desde as ques-
tões sobre o turismo, até as exigências da UNESCO para proteção do Forte de Samaipata.
Mostrou também como são realizados os estudos, pesquisas, e o quanto ainda precisa
ser estudado e descoberto sobre o Forte de Samaipata.
Em Santa Crua de La Sierra, fomos recebidos também pelo secretário de turismo da cidade.
No consulado do Brasil, fomos recebidos pelo Consul do Brasil na Bolívia, que deu
uma palestra muito interessante sobre as atividades do consulado e as políticas internacio-
nais entre os dois países.
As atividades foram registradas em fotos e vídeos e estão disponibilizadas no Instagram
@tiex.unesprosana.
Ao final da viagem, o retorno também foi realizado como planejado, em que os alu-
nos observaram o quanto o modelo de turismo praticado na Bolívia, sua complexidade
e desafios para o desenvolvimento de produtos e atrativos turísticos para atendimento a
demanda crescente de visitantes naquele país.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Foto 2 – Alunos da UNESP e NUR. Fonte: TIEX, 2023.


635 //
Considerações finais

Os resultados esperados para essa 1.ª viagem internacional de alunos do Curso de


Turismo da UNESP foram:
Gerar responsabilidade e habilidade aos participantes na organização de uma viagem
internacional; Coletar informações a respeito de temas inovadores que possam ser traba-
lhados nas diversas disciplinas do curso;Observar integração entre teoria e prática para
propor novas metodologias de ensino e disciplinas com temas que possam surgir da via-
gem; Desenvolver um estudo a partir da disciplina para análise detalhada sobre a interdis-
ciplinaridade, turismo e experiência a partir de uma viagem técnica.
Algumas perguntas foram parte da avaliação da disciplina como:
• O conhecimento que possuo das disciplinas (citar nome da disciplina) auxiliou e
acrescentou em quais resoluções do planejamento da atividade?
• Respostas de disciplinas de cunho cultural: como antropologia, patrimônio e espanhol.
• Respostas das disciplinas técnicas como gestão de empresas em turismo, Tecnologia
da Informação, Comunicação aplicada ao turismo, Gestão do Uso público em
Unidades de Conservação, Processos Diagnósticos para o planejamento do turis-
mo, Cartografia aplicada ao turismo, recreação e entretenimento, planejamento de
roteiro, agenciamento de viagens, hotelaria, planejamento estratégico.

1. Quais os conceitos ou conteúdos aprendi em TIEX que afirmaram a


aprendizagem para minha carreira profissional de Bacharel em Turismo?

• Conteúdos de organização e planejamento me possibilitaram aprendizagem para


minha carreira, desta vez na prática;
• Visão muito mais ampla sobre seguro de viagens, planejamento e também sobre como
a organização de uma viagem internacional é bem mais complexa do que se imagina;
636 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

• No geral, esses conceitos, conteúdos e abordagens interdisciplinares são fundamen-


tais para preparar o Bacharel em Turismo para sua carreira profissional, fornecendo
conhecimentos teóricos e práticos necessários para compreender a indústria do tu-
rismo de forma abrangente e enfrentar os desafios do setor com soluções inovadoras;
• TIEX foi mais que uma viagem, por planejarmos do início ao fim tivemos a experiên-
cia de ser o turista e o agente. Ouvimos termos voltados ao Consulado e também a se-
guro de viagem, assuntos que eu não havia destrinchado em nenhuma outra matéria;
• Planejamento, roteiro e pesquisa foram muito importantes para nossa viagem, algo
que será levado nos meus futuros trabalhos como bacharel;
• Acredito que muita coisa que estudamos em teoria nas aulas durante o curso, foi
possível colocar em prática nessa viagem;
• A matéria trouxe o meu autoconhecimento em saber criar experiências, ativou a
chavinha de poder e saber que consigo fazer, por experiência uma viagem só com
uma mochila e coisas do tipo “caso eu quisesse abrir minha própria agência já teria
digamos um gostinho da experiência de uma viagem para grupo, o que é bem dife-
rente de uma viagem para uma só pessoa;
• Então tudo que é aplicado em sala de aula pelas matérias, conseguimos aplicar den-
tro desse roteiro, pois sem esse conhecimento não seria possível realizar a viagem;

2. Quais as atividades planejadas durante a disciplina de TIEX que


podem ser incorporadas na disciplina de...

Nessa questão foram dadas 18 sugestões de atividades em 18 disciplinas mencionadas


nas respostas, sendo importante considerar todas, citando a relevância das atividades das
atividades práticas a serem incorporadas nas disciplinas relacionando-as entre si.

3. O que aprendi em TIEX de atualidades que caracterizam a interdis-


ciplinaridade?
• Todas as disciplinas se interligam de certa forma;
• A interdisciplinaridade permite uma abordagem mais abrangente para criar expe-
riências turísticas sob medida, levando em consideração as motivações individuais
dos turistas e criando momentos únicos;
• Todos os planejamentos do passeio estavam interligados de alguma forma, isso me
fez perceber o planejamento de forma mais abrangente, como um todo;
• As técnicas usadas na divulgação em redes sociais, mostrando as experiências práti-
cas e acompanhamos a atualidade durante a viagem;
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
• Como a disciplina conseguiu englobar tantas matérias e fazer com que tivéssemos
atividades práticas em diversos setores como turismólogos;
• Ativar a visão do turista e turismólogo, ética em questão de organização e compro-
metimento com as empresas que fizemos as compras de diárias e passeios;
• Aprendi como organizar uma viagem para um grupo já que também fui responsável
por parte do processo;
• Bom eu basicamente aprendi tudo que eu vejo em aula mas na prática, basicamente
saber como uma agencia realmente funciona e com devemos nos comportar fora do
pais, nos incluindo na cultura local e até mesmo falando a língua nativa definitiva-
mente é uma experiência imersiva;
637 //
4. O que você gostaria de acrescentar sobre essa experiência?

• A viagem foi extremamente interessante e intercultural. Tivemos um longo cami-


nho de trajeto em transportes, passamos por a experiência de apresentar sobre o
curso para estudantes de turismo da Bolívia. Além de uma interação incrível onde
tivemos uma ótima recepção durante a viagem.
• Não passamos dificuldades com segurança e visitamos locais de paisagens indescritíveis
• Foi uma experiência inesquecível, que definitivamente agregou a minha formação
acadêmica e profissional.
• A realização de uma primeira viagem técnica para a Bolívia no curso de Turismo trouxe
uma série de benefícios. Essa experiência ofereceu uma oportunidade única de aplicar os
conhecimentos teóricos adquiridos em sala de aula em um ambiente real e enriquecedor.
• A viagem técnica permitiu aos discentes vivenciar de forma prática os conceitos estuda-
dos no decorrer do curso. A viagem técnica para a Bolívia também proporcionou uma
experiência de crescimento pessoal. Particularmente pude ampliar meus horizontes, sair
da zona de conforto e expandir a visão de mundo. A imersão em uma cultura diferente
e a vivência de experiências turísticas únicas contribuíram para o desenvolvimento da
empatia, do respeito pela diversidade cultural e da consciência global.
• Foi uma experiência única do início ao fim, quando penso na viagem agora que já se
passou quase um mês apenas tenho memórias boas, pois elas ultrapassam qualquer
“perrengue” que passamos, desde a minha mochila pesada nas costas até os apertos
no microbus. O contato com outras pessoas, estudantes trabalhadores locais e turis-
tas me fizeram ver com meus próprios olhos como o turismo é uma rede complexa,
que se interconecta em seu todo. TIEX me fez perceber que sou capaz de realizar na
prática aquilo que estudo há 3 anos na teoria dentro da UNESP.
• Foi uma experiência magnífica, nunca vou esquecer, acho que todos os estudantes deveriam
ter essa oportunidade de criar uma viagem do zero e ver na prática ela sendo executada.
638 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

• Tive momentos internos maravilhosos, foi incrível e eu jamais me esquecerei dessa


viagem. Foi a melhor viagem da minha vida, estar em contato com outra cultura
foi maravilhoso, e serei eternamente grata a universidade pública, a UNESP, por
me proporcionar essa oportunidade de aprendizado e também entretenimento, pq
tivemos momentos livres para lazer também!
• Foi uma experiência incrível, que me preparou para qualquer viagem, porque foi
planejada e executada por todos da matéria e além disso a divisão não sobrecarrega
ninguém e consegue um rendimento maior nas comissões.
• Foi uma experiência muito agradável, e estou realizada por ter participado e fazer parte
do primeiro grupo da universidade a participar de uma viagem técnica ao exterior.
• Que eu estou extremamente grata por ter feito parte dessa primeira experiência de
viagem internacional.

Considerações Finais

A interdisciplinaridade no turismo e na experiência tem sido caracterizada por uma


série de atualidades que refletem as demandas e tendências atuais do setor. Essas atualida-
des envolvem a busca por abordagens holísticas e integradas, que transcendam os limites
de uma única disciplina a fim de promover uma compreensão mais ampla, mais completa
e contextualizada do turismo e da experiência do turista. Uma das atualidades mais rele-
vantes é a crescente conscientização sobre a importância da sustentabilidade no turismo.
A interdisciplinaridade se torna essencial ao abordar questões socioambientais complexas,
como preservação de recursos naturais, mitigação dos impactos negativos do turismo, pro-
moção da equidade social e envolvimento das comunidades locais.
A colaboração entre diferentes disciplinas, como gestão ambiental, sociologia, econo-
mia, idiomas e planejamento urbano, marketing, agenciamento hotelaria, entre outras, é
fundamental para desenvolver práticas sustentáveis ​​no turismo.
Nessa viagem técnica que teve duração de 7 (sete dias) foi imprescindível algumas
palavras que trazem conceitos que vão além de aprender uma profissão, às quais citamos,
parceria, responsabilidade, gentileza, amizade, cordialidade, trabalho em equipe. Essas
foram as aprendizagens subjetivas que nas entrelinhas e nas conversas informais ficarão na
memória dos participantes.
Certamente a escolha do destino foi crucial para esse despertar, uma vez que o desafio
de uma viagem internacional é maior devido principalmente às diferenças culturais.
As respostas dos alunos referente às suas impressões sobre as atividades ainda serão
escopo de novas possibilidades para discutir novas abordagens pedagógicas teórico-práticas
ao curso de turismo da UNESP e a contribuição certamente cumpriu às hipóteses de que a
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
viagem técnica possui atributos incontestáveis para a aprendizagem dos alunos, no caso do
curso de turismo, mas que certamente pode cumprir o papel de sinapses de inter-relações
e conexões em outros cursos com públicos de estudantes de todas as faixas etárias.
O avanço nessa proposta é gerar seriedade às atividades práticas de aprendizagem in
loco, uma vez que é notório por parte de vários segmentos, um certo estranhamento e
desconhecimento de quais as aprendizagens realmente são fixadas, causando por diversas
vezes a impressão de que as mesmas são somente momentos de passeio.
Por fim, é imprescindível agradecer a UNESP que nos confiou a responsabilidade de exe-
cutar essa primeira viagem técnica internacional, a Universidade de NUR (Bolívia), seus pro-
fessores e alunos que nos receberam aos moldes dos melhores exemplos de hospitalidade, ao
639 //
Consulado do Brasil na Bolívia, que proporcionou conhecimentos que em sala de aula não
teríamos a oportunidade de obter, aos empreendimentos turísticos que proporcionaram a rea-
lização da atividade a partir de valores negociáveis para viabilizar a viagem financeiramente.

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Documento interno.
Veloso, Marcelo Pereira. Visita técnica: Uma investigação acadêmica. Goiânia: Editora Kelps, 2000.
Devoção franciscana no Ceará
e sua inserção como patrimônio imaterial
brasileiro

Eustógio Wanderley Correia Dantas1


Odilon Monteiro da Silva Neto2

Introdução

As discussões sobre patrimônio imaterial no Brasil remontam ao início do século XX.


Quando da criação do SPHAN, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
que depois se tornaria IPHAN, Instituto do Patrimõnio, Histórico e Artístico Nacional..
Já havia a perspectiva de valorização dos elementos que caracterizariam os bens patrimo-
niais de caráter imaterial do país.
As experiências da vida política ao qual passou a sociedade brasileira, projetou para
que muito do que se havia pensando anteriormente fosse postergado. Foi no quadro da
chamada “redemocratização brasileira”, que foram retomadas as discussões em torno dos
elementos a serem elegidos como bens da chamada cultura imaterial. No arcabouço legal
foram considerados quatro tipologias: Saberes, celebrações, lugares e formas de expressão.
Nesse novo quadro, passamos a considerar inúmeras manifestações seculares, tidas como
tradicionais, mas que não contavam com o reconhecimento o que implica na dificuldade de
suas promoções. Em Canindé, cidade próxima da capital Fortaleza (120 km de distância), As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Estado do Ceará, localizada no nordeste brasileiro, a devoção a São Francisco, ocorre há mais
de dois séculos. A módica capela, configurada em Santuário e depois elevada a Basílica, tor-
nou o Ceará um espaço referencial de devoção franciscana, sendo comparada a experiência
de Assis, a principal delas. Tida como a segunda maior do mundo, Canindé, reúne elementos
potenciais da devoção ao seráfico, que a podem conferir, no rol das formas de expressão, assim
como temas a experiência de Santo Antônio em Barbalha, no Cariri cearense, como na pers-
pectiva dos lugares, dado a relevância do Santuário de São Francisco, suscitado em Canindé.

1
Departamento de Geografia UFC. – ewcdantas@gmail.com
2
IFCE. – odilonnetosilva@gmail.com
641 //
Um santuário franciscano no sertão do Ceará

Importante considerar que a perspectiva de santuário é um elemento que pertence a


diferentes denominações religiosas. Na chamada tradição desenvolvida pela Igreja Católica
Romana, os elementos norteadores do conceito de santuário, estão enunciados no Código
de Direito Canônico. O capítulo 03 do código, é denominado: Dos Santuários, abrangen-
do do cânone 1230 ao 1234.
No conjunto dos cânones citados, dois deles devem ser destacados, visto que são pres-
supostos que efetivam a denominação de um determinado espaço religioso, como detentor
da condição de Santuário, são eles:
Cân. 1230 – Pelo nome de santuário entende-se a igreja ou outro lugar sagrado
aonde os fiéis, por motivo de piedade, em grande número acorrem em peregrinação,
com a aprovação do Ordinário do lugar.
Cân. 1234 – Nos santuários ponham-se à disposição dos fiéis meios de salvação
mais abundantes, com o anúncio cuidadoso da palavra de Deus, o fomento da vida
litúrgica, principalmente por meio da celebração da Eucaristia e da penitência, e
ainda com o cultivo de formas aprovadas de piedade popular.
§ 2. Nos santuários ou em lugares adjacentes conservem-se e guardem-se com se-
gurança para serem vistos os ex-votos de arte popular e outros testemunhos de piedade.

A ação do homem no meio, opera em sentido direto na transformação da paisagem.


Talvez para alguns, a presença da instituição religiosa está colocada diretamente na cons-
trução de patrimônios materiais. Pensando a realidade da ocupação e o povoamento do
território cearense, observamos que é presença da pecuária, que se apresenta como elemen-
to catalisador da formação de núcleos de povoamento.
Dentro dessa dinâmica que se verifica no sertão, a presença da igreja que naquele mo-
mento se coloca como o próprio Estado. Muito além da ideia de levar conforto espiritual as
642 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

pessoas, há o sentido em que os sacramentos, a exemplo do batismo, é o responsável para


atestar a existência dos indivíduos. A inexistência de templos religiosos, ou de aparatos buro-
cráticos da igreja, não implicava em ausência dos religiosos e da disseminação destes valores.
Desses elementos que marcam a história do Ceará, temos a seguinte enunciação sobre
a presença franciscana:
“Se no Ceará predomina o culto de São Francisco sobre o antoniano, explica-se
em parte pela falta de conventos franciscanos em toda aquela região, durante os qua-
tro primeiros séculos, afora duas residências da Ordem que temporariamente havia em
Fortaleza, desde a fundação realizada em 1624 por Frei Cristovão Severim de Lisboa, e em
Quixeramobim, durante a segunda metade do século XVIII, como também pela atuação
conjunta de várias entidades seráficas. É que na primeira metade do século XVIII, já ha-
viam terciários seculares de São Francisco, residentes no Ceará e afiliados a fraternidade
do Recife, cujo padroeiro, desde a fundação, vem a ser o santo estigmatizado.
[...]
Afirmamos, pois sem receio de errar, que franciscanos, capuchinhos e terciários se-
culares contribuíram para a propaganda do culto de São Francisco no Ceará e de modo
especial em Canindé, surtindo tanto mais resultado porque, interrompida a catequese
jesuítica com a expulsão da companhia em 1759, prosseguiu-se e intensificou-se a ati-
vidade franciscana conjunta, prevalecendo também entre as devoções aos vários Santos
chamados Francisco, o culto ao estigmatizado”.(WILLEKE, 1959, p. 177).

Conforme destacado por diferentes autores, o Ceará contou ao longo de sua história
com a presença dos religiosos franciscanos. Anterior a construção do templo hoje transfor-
mado em Basílica Santuário, a atuação dos religiosos se dava em caráter itinerante, tendo
sido adotado o instrumento do altar portátil para a oficialização dos atos religiosos.
Num dado momento dessa experiência, foi edificada uma capela em devoção a São
Francisco, as margens do rio Canindé, topônimo que depois nomearia a cidade. Conforme
apresentamos em termos dos registros históricos, havia a presença de franciscanos no ter-
ritório cearense, embora que a ordem não tivesse produzido um ordenamento material,
como havia em outras províncias.
A idealização da capela é atribuída ao português, Francisco Xavier de Medeiros, que inte-
grava a ordem dos terciários franciscanos. Com a movimentação dos trabalhos para a constru-
ção do templo, observa-se um primeiro rol de eventos, ligados a questão da terra, nos moldes
da colonização portuguesa. A área que fora escolhida para a construção da igreja, foi reivindi-
cada por um grupo de irmãos da região do Jaguaribe, que advogavam ser os “donos” da terra.
Esse evento descrito em termos da produção historiográfica, relativa ao Ceará, como
dos memorialistas da cidade, indicando que desde a gênese do templo, uma atmosfera
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
mágica, pairou sobre o lugar.
Contam os antigos que a fazenda Renguengue, sita às margens do rio Canindé e
escolhida por Francisco Xavier de Medeiros para a construção da igreja, pertencia a
três moços do Jaguaribe certo. Ignorando, porém os donos e o paradeiro certo deles,
Medeiros teria principiado as obras, pronto para comprar o terreno necessário, ou
adquiri-lo, por doação, logo que aparecesse um dos proprietários ou um seu repre-
sentante. Quem se apresentou foram dois ofícios de justiça, embargando o traba-
lho já encerrado. Medeiros escreveu aos donos de Renguengue, comunicando-lhes
a intenção de adquirir um patrimônio para São Francisco ao que eles responderam
negativamente. Adoecendo o primeiro, morreu em breve, o mesmo acontecendo,
643 //
ao segundo, ao que o terceiro, já sentido os sintomas da moléstia mortal, prometeu
a São Francisco doar o patrimônio, contando que ficasse restabelecido pelo Santo.
Valido na sua extrema aflição mandou prevenir a Medeiros que nada mais obsta-
va à construção da igreja, pois, o patrimônio seria doado em agradecimento a São
Francisco das Chagas. (WILLEKE, 1972, p. 24)

Revisitamos a obra História de Canindé, de Frei Venâncio Willeke, historiador fran-


ciscano, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Frei Venâncio,
como ficou conhecido, demonstrou grande interesse pelos estudos do franciscanismo no
Brasil. Durante sua atuação religiosa em Canindé, produziu a referida obra.
Destacamos anteriormente seu estudo sobre a presença dos franciscanos no Ceará e
ele reitera o compromisso com a investigação cientifica, dado a atmosfera do pensamento
mágico, que se orienta por perspectiva tidas como não racionais ou científicas. O exposto
nos coloca dois elementos que caracterizam nossa formação social.
O primeiro deles resulta sob a perspectiva do acesso e do uso da terra. Numa sociedade
marcada pela lógica da escravidão, em que existem homens livres e escravos, a posse da
terra se dava por solicitação direta ao rei, eram tidas como terras do rei. Assim os homens
livres, podiam requerer terras e sentir-se donos. Conforme nos apresenta José de Souza
Martins (2010), quando o trabalho é escravo, a terra se coloca livre.
Ao passo em que há um processo de litigio para acessar a terra, temos a ocorrência de
fenômenos estranhos, em que os “proprietários”, adoecem e de repente dois morrem e o
terceiro, recorre a interseção do santo, prometendo doar-lhe a terra, caso consiga reestabe-
lecer a saúde. Dialogando novamente com os estudos de Hoornaert (2002), sobre a igreja
no Ceará, ele ressalta que entre nós, foi produzido o “catolicismo como uma religião de
proibições e pecados” (p.270).
Construída a igreja que na fase anterior e na própria construção envolve a ocorrência
de fenômenos estranhos, é possível observar que aquela porção do sertão, não seria mais
644 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

a mesma. Encerrada a construção em 1796, pouco tempo depois, é tentando a criação de


um convento franciscano naquele lugar. Segundo determinação oficial do governo colo-
nial, a instalação de conventos foi proibida desde o início do século XVIII.
Mas em 1801, começam as primeiras manifestações para a criação da paróquia, que se
oficializa me 1817. Num breve espaço temporal, temos a construção do templo, que catalisa
a criação da paróquia e em seguida a elevação à vila (1818) e a emancipação política (1846).
Observamos a edificação num estilo que nos remete ao passado colonial, caracterizado
em termos das expressões do Barroco. Assim na dada espacialidade que não possuía marcas
relevantes da presença humana, apresenta a partir desse evento, um marco no processo que
orienta a formação da cidade.
Registro da construção original

Ao passo que em que se ampliam os devotos que se dirigem a Canindé, observamos


um conjunto de transformações na estrutura que caracterizam o que hoje conhecemos
como Santuário de São Francisco, neste sentido ao pensarmos sobre uma geografia da
religião, destacamos:
Os geógrafos da religião propunham o estudo do espaço através da análise do sa-
grado, desvendando sua ligação com a paisagem e com a linguagem codificada pelo
homem religioso em sua vivência no espaço. A existência de um sistema de relações
entre o homem e a divindade, a fé neste sistema e o conjunto de rituais praticados no
espaço são os meios que asseguram e perpetuam a prática do sagrado. Neste contexto
os geógrafos vêm desvendando quais os grupos sociais que detonaram o fenômeno
religioso e quais foram os elementos fundamentais responsáveis pelas transformações
do espaço sagrado. (ROSENDAHL, 1998, p.134)
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Em pouco tempo a capela se colocou modesta diante da quantidade de visitantes,


desta forma em 1888, recebeu a primeira reforma. Salientamos que o processo aqui defi-
nido como reforma, se apresenta no sentido de redimensionamento, físico e conceitual.
Concluída a reforma em 1890, o novo espaço, passa a ser definido como santuário.
Observada a concepção de um santuário, novas mudanças são acrescidas ao lugar.
Passado um século que a igreja havia sido inaugurada, como elemento que caracteriza a
materialidade da fé no santo protetor, está a marca dos ex-votos trazidos pelos romeiros
que visitavam o santuário. Diante dessa realidade, é iniciada a construção de um novo
espaço, dedicado ao recolhimento dos “ex-votos”, que passaram a ficar expostos.
645 //
Primeiro prédio da casa dos milagres

Jacques Le Goff (1990), na obra História e memória, chama a atenção para a prática
do ex-voto. Afirma que “a devoção cristaliza-se em torno do milagre” e a materialidade
desse objetos conservam “a memória dos milagres” (p, 449). O grande número de peças
trazidas anualmente pelos devotos deve ser percebido não como simples elementos nu-
méricos, mas como portadores de um depoimento individual, que está inserido numa
experiência coletiva, que está inscrita num elemento da tradição.
Conforme anunciado no começa desta seção, a modesta capela dedicada a São
Francisco, passa por um conjunto de transformações. Sob o ponto de vista da direção
da igreja, em 1817, é elevada à condição de paróquia, que agora passa a ter a presença de
um religioso em caráter permanente. Em termos de administração paroquial, passado um
646 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

século desse processo a cidade de Canindé contava com 14 capelas.


Conforme está definido no cânone 1234, do referido código é obrigatório que os
santuários mantenham um lugar para a guarda dos ex-votos. Anterior a construção do
espaço, no ano de 1888, num dado momento o religioso Frei Cassiano fez a contagem das
peças e no interior da igreja continha mais de 4000 mil peças. Ressaltando que nem todos
que estão a pagar promessa, levam a figura do ex-voto. Segundo informações do site do
Santuário de Canindé, a cada Festa, são arrecadados mais de uma tonelada de vestes fran-
ciscanas sendo doadas, as comunidades carentes, os que se encontram em boas condições.
No trabalho de Rosendahl (1998), sobre o santuário de Porto das Caixas (RJ), ela
observa que ao analisar cerca de 3000 pedidos dos devotos, apenas 10% indicavam
necessidades do mundo espiritual, a totalidade estava relacionada a carências materiais.
Em atividades anteriores, ao examinarmos as missivas, que eram enviadas ao Santuário, há
uma diversidade de elementos em questão. Durante a festa a última festa de São Francisco,
ao observarmos o conjunto dos ex-votos, observamos que havia muitas manifestações de
pessoas que haviam sido curadas da Covid-19.
Dentre as pessoas que estavam no lugar, tivemos a oportunidade de conversar com
um pesquisador que atua com saúde mental e sua investigação se dirigia no sentido de
perceber como tais problemas estavam dimensionados entre os pedidos de graça diri-
gidos a São Francisco. Num exame anterior que tive acesso as missivas, alguns são bem
peculiares, como os que pedem a intervenção do santo para arranjar um marido ou uma
mulher.
Ao estudar as relações entre o espaço e o sagrado, Zeny Rosendahl (1996), apresenta
uma tipologia das cidades santuários, indicando cinco tipos locacionais: núcleos rurais;
pequenas cidades em área rural; cidades-santuários entre centros metropolitanos; cidades-
-santuários nos centros metropolitanos; cidades-santuários na periferia metropolitanas.
Dado todo esse esforço por parte da autora para elaborar elementos de classificação, a
experiência de Canindé é apontada como núcleo rural pouco povoada e de difícil acesso.
COSTA (2011), destaca os elementos dessa classificação que tem como referente o concei-
to de hieropólis, concorda com a classificação atribuída a ideia de núcleo rural e discorda
no que tange ao difícil acesso.
No que concerne aos elementos da dinâmica populacional a afirmação é verdadeira, a
caracterização de cidade com difícil acesso, se apresenta como algo incongruente. Canindé
está à margem da BR 020, como também possui ligação com a região norte do estado,
por meio da CE 257, estrada que foi criada no intuito de facilitar o acesso dos romeiros
advindos do Maranhão e do Piauí.
Concluído em 1896, o agora santuário conta em sua estrutura, não apenas com o
templo religioso, mas com um novo equipamento, que reatualiza o sentido da experiência
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
do franciscanismo, dado sua condição de operador de milagres. Conforme anunciamos as
mudanças conceituais, em 1898, o já Santuário de Canindé, passa a ser administrado pela
ordem dos capuchinhos, grupo herdeiro direto da tradição franciscana.
Estes dirigiram o santuário até 1923, quando foram substituídos pelos franciscanos,
que seguem na direção até hoje. Retomando a perspectiva trazida por Hoornaert (1991),
que reforça o caráter social da ação da igreja, promovidas pelas missões, a exemplo de
figuras como Ibiapina, o direcionamento do santuário sob a perspectiva dos franciscanos,
trouxe uma nova dinâmica para a vida da cidade.
Na dinâmica do século XX, após a consolidação da presença das ordens franciscanas
no Ceará, tivemos o surgimento de novos santuários dedicados a São Francisco. Em 1950
647 //
Imagem do Santuário de São Francisco em Juazeiro do Norte

a cidade de Juazeiro do Norte, no cariri cearense, dá início as construções de um novo


santuário, que é abençoado em 06 de janeiro de 1956, que é sede da paroquia de mesmo
nome, sendo administrado pelos frades capuchinhos.
Em Sobral o santuário, foi idealizado por um morador português, de nome Francisco
Rodrigues dos Santos. A construção da capela teve início em 1870, passando um período
de 28 anos para a conclusão dos trabalhos. Em 1945, o antigo templo fora demolido,
sendo o atual inaugurado 11 anos depois durante a realização do Congresso Diocesanos
das vocações do Jubileu Sacerdotal de D. José Tupinambá da Frota, primeiro bispo de
648 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Sobral, personagem icônico da vida daquela cidade. Assim como em Juazeiro, a adminis-
tração está a cargo dos capuchinos.

Canindé, sob uma perspectiva do patrimônio imaterial

Embora não sendo novas as discussões sobre o patrimônio no Brasil, o projeto que deu
origem ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Brasileiro (IPHAN), só se materia-
lizou na Era Vargas, durante o chamado Estado Novo (1937-1945). Embora as inteligências
que construíram as bases para se pensar o sentido da construção da cultura nacional em
Santuário Franciscano de Sobral

termos patrimoniais, assinalassem os bens de natureza intangíveis, mas a dinâmica foi deno-
minada pela tônica do patrimônio material edificado, dito o patrimônio de cal e pedra, sendo
a herança dos templos dos Barroco brasileiro, os grandes tributários de referida atenção.
Passamos décadas, e somente numa configuração dita como democrática é que no-
vamente a discussão sobre os bens ditos imateriais retorna com a constituição de 1988.
Tempos depois é efetivado o novo ordenamento dos bens imateriais, cujo agrupamento se
apresenta de modo amplo e diverso: saberes, ofícios, modos de fazer; celebrações, formas
de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas e nos lugares (mercados, feiras e santuá-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
rios que abrigam práticas culturais coletivas.
Como indicamos há um espectro amplo de manifestações que permeiam o conjunto
da sociedade brasileira, que é conhecida por seu caráter diverso, visto o sentido de nossa
formação nacional, como vislumbrou Darcy Ribeiro (1995), ao se utilizar do conceito de
matrizes étnicas para compreender uma ideia de Brasil.
A preocupação de entender o que é o Brasil, não é nova e já fora travada por diver-
sos nomes do pensamento brasileiro, tendo diferentes abordagens. No entanto partindo
dessa pluralidade e percebendo que as dinâmicas de patrimonialização, se apresentam no
mundo contemporâneo como um importante componente de salvaguarda dessa teia com-
plexa que conhecemos sobre manifestações culturais.
649 //
Embora apresentamos de modo destacado o aspecto da experiência religiosa, tido
na perspectiva de um lugar da memória devocional franciscana, como assim é percebida
Canindé, e comparada a Assis, terra do Seráfico, personagem oriundo do medievo, que
segue sendo reatualizado no contemporâneo e que tem no interior do nordeste brasileiro,
um santuário quer sejam em seus aspectos espaciais, como também no referente fluxo de
romeiros, devotos e visitantes ao longo do ano, o que o torna grandioso.
Se por um lado a ideia do santuário, que fica visível pelo mesmo está identificado com
imponentes construções em meio ao sertão cearense, nesse espaço se realiza uma grande
festa em honra ao santo de devoção, que dentre os elementos que marcam esse momento
de fé e religiosidade, está assentada as romarias, que se elaboram de diferentes formas,
dando vida a diferentes atores sociais: caminhantes, ciclistas, motociclistas, e as caravanas,
que por muitos anos chegavam de paus-de-arara, e que atualmente com o processo de
modernização do código de trânsito brasileiro, passaram a realizar o percurso, através de
ônibus, sendo a mais antiga delas, a quem vem da cidade do Codó, estado do Maranhão.
Compreendemos que a experiência religiosa de Canindé, se inscreve como tantas outras
que ocorrem na vastidão do território brasileiro. Sua potência se amplia no sentido em que
em nosso caráter de formação nacional, passamos a manifestar a relação como os santos de
devoção, numa perspectiva de intimidade e aproximação. Assim, a crença em Francisco, o
pobre de Assis, que vivia de modo mendicante, em prol da ajuda do outro, fora assimilado
dentro desse imaginário do sertão, que reelaborou Francisco, como alguém natural dessa
terra, sendo conjugado a toponímia, se tornando, São Francisco das Chagas de Canindé.

Referências bibliográficas

Código de Direito Canônico. Versão portuguesa. Braga: Editorial Apostolado da Oração, 1995.
Costa, Otávio J. L. Canindé e Quixadá: construção e representação de dois lugares no sertão cea-
650 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

rense. (Tese de Doutorado em Geografia, Instituto de Geociências da Universidade Federal do


Rio de Janeiro).Rio de Janeiro: 2011.
Hoonaert, E. Aldeamento e catequese. In: Ceará de corpo e alma. Um olhar contemporâneo de 53
autores sobre a Terra da Luz. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2002.
Le Goff, Jacques. História e memória. São Paulo: Unicamp, 1990.
Martins, José de. Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2010.
Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo; Companhia das Letras, 1995.
Rosendahl, Zeny. Espaço e Religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: Eduerj/NEPEC, 1996.
___, Percepção, vivência e simbolismo do sagrado no espaço: Peregrinos e turistas religiosos. In: LIMA, Luiz
C. (org.). Da cidade ao campo: a diversidade do saber-fazer turístico. Vol. 02. Fortaleza: Funece, 1998.
Willeke, Venâncio. Origem da devoção a São Francisco das Chagas de Canindé. Fortaleza: IHGACE, 1959.
___, São Francisco das Chagas de Canindé. Resumo histórico. Canindé: Arquivo paroquial, 1972.
Literatura, cinema e street art
como poéticas da cidade:
paisagens, imagens e vivências urbanas1

Valéria Cristina Pereira da Silva 2 Rui Jacinto 3


Mozart de Sá Tavares Júnior 4

1. Literatura, cinema e street art: proposta de diálogo entre Goiânia,


São Luís do Maranhão e Coimbra

A metrópole contemporânea é o lugar onde convergem as mais diversas manifesta-


ções e produtos artístico-culturais, onde a cultura e a arte expressam, em plenitude, a sua
diversidade e primeiro se apreendem as tendências atuais e emergentes. A convivência na
cidade duma multiplicidade de artes não só favorece como impacta e projeta o modo de
vida urbano. A tradução imagética que daqui resulta, que é indissociável da urbe por inte-
grar a sua vivência e o seu imaginário, acaba por contribuir, por tudo isto, para desenvolver
uma economia cultural mais ampla e abrangente e, consequentemente, uma nova forma
de estar e perspetivar a política.
A literatura, o cinema e as várias facetas da street art, apenas para exemplificar algumas
das manifestações, que não só transformam lugares e reconfiguram paisagens como se reve-
lam importantes para compreender a imagem da cidade e o vivido urbano. Estamos perante
manifestações artísticas que alteram lugares e modos de ser, dão outro sentido aos espaços e As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ampliam a maneira de os usar e viver. O romance, como sabemos, sempre impactou a cidade
e as pessoas que nela vivem ao ponto destas, em certa medida, também se projetarem nos

1
Texto advindo da pesquisa de pós-doutorado na Sorbonne Université (Centre de Recherches Interdisciplinaire
Sur Les Mondes Ibéro-Américains Contemporains – CRIMIC) a partir do projeto de internacionalização
sob o título: A cidade de todas as artes: a metrópole como local de cultura, com o apoio do CNPq.
2
Universidade Federal de Goiás (UFG), vinculada ao Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) e ao
Laboratório de Geografia, Imaginário, Criatividade e Arte (LAGICRIARTE). Coordenadora do Grupo de
Estudos de Imaginário, Paisagem e Transculturalidade (GEIPaT). Chercheur Invitée à la Sorbonne Université.
3
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) e Centro de Estudos Ibéricos (CEI).
4
Doutorando em Geografia na Universidade Federal de Goiás (UFG), vinculado ao IESA e ao LAGICRIARTE.;
membro do GEIPaT.
651 //
romances. Deste modo, quer o urbano como a cidade passam a ser ontologicamente imagi-
nários, faceta que o cinema acabaria, posteriormente, por explorar e potenciar.
As imagens da cidade, quando passaram a figurar no cinema, acabaram por projetar
esteticamente um certo modo de vida, modelar gostos e desejos e o próprio mundo urbano
também se fez cinema. As salas de projeção, que se foram disseminando das grandes até às
cidades mais pequenas e recônditas, tiveram grandes avalanches de pessoas, fenómeno que
se foi esbatendo à medida que a própria linguagem cinematográfica foi evoluindo, se de-
mocratizou e passou para outros suportes, da TV a outras mídias, do vídeo à atual internet.
A multiplicidade de imagens assim geradas e vividas acabam por influenciar e acionar os
sujeitos na dimensão da urbe. A linguagem do cinema, ao criar um outro modo ontológico
e uma nova conexão com a literatura, proporcionou mundos narrativos que nas grandes
cidades se traduzem sob várias formas e manifestações. É um continente de imagens e
narrativas da metrópole que interferem no mundo vivido e impactam os modos de pensar
e agir, os sonhos e os desejos de consumo ao ponto de projetarem, também, idealizações
das maneiras de ser, modos estar e de olhar o mundo.
A street art, por sua vez, redesenha e potencializa o sentido do urbano, porque, como as
demais artes, especialmente a literatura e o cinema, são inerentes à condição urbana e fruto
do seu desenvolvimento. Não é por acaso que foi a street art a receber o epiteto de arte urbana,
pois, ao ser assim concebida, dá expressão e passar a ser parte integrante da própria paisagem
urbana, revela que o seu sentido se confunde com a própria cidade, projetando, consequente-
mente, uma imagem peculiar de cada lugar. Este é, pois, um dos pontos ponto de convergên-
cia destas artes e o papel decisivo que têm para (re)definir a imagem urbana e, a partir daqui,
ajuda a criar o seu próprio imaginário. As narrativas construídas através de imagens visuais, ou
literárias, contém sentidos fenomenológicos inerentes a tais artes, com profundo significado
sociocultural, em permanente atualização, desde a recepção à influência decisiva no campo da
experimentação e descoberta colando-se, indissociávelmente, ao imaginário da cidade.
As obras culturais não podem ser entendidas, apenas, como mero entretenimento
652 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

por incorporarem formas de pensar, sonhar e projetar aspirações que influenciam ações e
políticas culturais. Tomemos o exemplo de Paris, uma capital que concentra tantas artes e
que foi amplamente divulgada pelo cinema, sendo posteriormente procurada por públicos
específicos para viver o cenário de um certo filme, caminhar por imagens urbanas que
permitem o reencontro com tantos lugares célebres. São cenários que nos esperam nas
calçadas, nas praças, nas fachadas dos edifícios onde as artes acabam por legendar tais es-
paços, onde deparamos com obras que remetem para imagens icónicas que dão sentidos à
cidade, despertam sentimentos, relembram saberes. Ao percorrermos tais espaços viajamos
por lugares que as pessoas desejam, com os quais sonham e aos quais vão incorporando,
paulatinamente, um espectro alargado de valores e projeções.
A arte tem esta capacidade única de transformar e tornar atrativas as cidades, de as
impulsionar em termos políticos e conferir dimensões que lhes dão movimento, ritmo e
cosmopolitismo. Estamos perante um tema que ainda não foi suficientemente explorado.
Neste particular podemos olhar a cidade, hoje, como um livro, um quadro, um filme, uma
imagem ou um amplo documento que nos fornece um modo, interessante e único, de se
alcançar o vivido de forma singular.
Contudo, não é despiciendo o sítio, a posição nem as circunstâncias ditadas pelo tempo
enquanto grandes escultores da imagem duma cidade como doutras construções sociais. A ima-
gem que projetam é captada de maneira distinta por quem a habita quotidianamente ou por
quem a perceciona do exterior, à distância, sem uma vivência direta e permanente. As geografias
vividas ditadas pela presença ou pela ausência proporcionam imagens que não são coincidentes:
a do autóctone difere de quem reside no exterior, os que frequentam a cidade com regularidade,
por razões profissionais ou de estudo, interiorizam uma imagem distinta do turista que deman-
da o lugar de passagem, fugazmente, para gâudio dos sentidos durante breves instantes de lazer.
As vivências, os afetos e demais subjetividades têm um papel crítico neste processo. Os
assuntos do coração não são exclusivas nem ficam imunes às interferências da razão no de-
sencadear de percepções e de laços topofílicos que se estabelecem com lugares e territórios.
A tensão entre a realidade física, material e rugosa, e os ingredientes mais intangíveis tanto
modelam a percepção da imagem, tantas vezes romantizada, como condicionam a cumplici-
dade que estabelecemos com os lugares. O esforço de Kevin Lynch para racionalizar a analise
da configuração imagética já nos havia ensinado que a realidade deve ser sempre ponderada
com a ficção (A imagem da cidade, 1959 [1999]). A emergência duma geografia de pendor
humanista, a partir dos anos sessenta do século XX, suscitou trabalhos orientados para desco-
dificar os meandros com que se constroem os mapas mentais das cidades (p. ex Peter Gold,)
e os espaços vividos (Fremont, 1976). Os discursos mais recentes enfatizam outros tipos de
interferências, das artes e das emoções, na definição das paisagens urbanas, objeto dos mapas
poéticos e das cartografias literárias.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
As imagens, mais ou menos idealizadas, resultam tanto da vivência física como dou-
tros fatores mais intangíveis, abstratos e subtis, mesmo os induzidos por diferentes formas
de expressão artística. Neste particular, a fição que emana da literatura não deixa de deter-
minar a poética que se apreende da poesia e das percepções impressas pelas artes visuais, onde
relevam as motivadas pela fotografia e o cinema, pela pintura e, mais recentemente, a street
art. Retocados pelo tempo e pelos contextos onde ocorrem induzem a sedimentação de
todos estes sinais deixa marcas indeléveis na imagem urbana, ora superficiais e tantas vezes
transitória ora mais vincados e estruturantes.
A proposta que se avança neste ensaio é a de pensar o contributo da literatura, do ci-
nema e da street art para gerar a nova imagem, reformular o imaginário e fornecer formas
653 //
de imaginação que modulam o vivido no universo urbano. A abordagem que se vai
desenvolver é suportada do ponto de vista teórico pelo recurso à fenomenologia, à se-
miótica e à hermenêutica que facultam um acervo de quadros conceptuais convergentes
que são potenciados pelas afinidades múltiplas da presente equipe. Do ponto de vista
procedimental, apresentaremos uma perspetiva a partir de obras selecionadas, literárias,
filmográficas e da street art, para pensar a cidade a partir de instrumentos qualitati-
vos. Apresentaremos, para tal, estudos de casos em Goiânia, São Luís do Maranhão e
Coimbra na tentativa de encontrar convergências, embora, não seja propósito a com-
paração absoluta entre esses espaços, mas a compreensão da dinamica das artes e como
intervêm no vivido dessas cidades. Procura-se, assim, a partir do diálogos entre Goiânia,
São Luís do Maranhão e Coimbra encontrar o contributo das artes para ler e interpretar
poéticamente as diferentes cidades.

2. Goiânia: literatura, cinema e street art

Goiânia literária e cinematográfica

Goiânia, fundada em 1933, é uma cidade literária. Desde cedo ela herdou a cultura lite-
rária da antiga capital, a Cidade de Goiás, assim, em 1939 contava com a Academia Goiana
de Letras enquanto entidade literária goianiense. Goiânia hoje é metrópole com cerca de um
milhão e meio de habitantes e possui mais de uma centena de autores dos mais diferentes
e gêneros e estilos, tendo tido o estado de Goiás alguns nomes consagrados no quadro de
escritores nacionais como Bernardo Élis e Carmo Bernardes. Muitos autores goianienses
na atualidade também são destaque pela densidade de suas obras tais como Miguel Jorge,
Maria Luísa Ribeiro, Gilberto de Mendonça Teles, Augusta Faro, autores premiados como
Cristiano Deveras pela bolsa Hugo de Carvalho Ramos só para citar alguns nomes de autores
654 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

que participam atualmente das várias entidades literárias e envolvem-se também em ações
culturais. E se formos falar dos autores que já partiram e deixaram suas obras, uma longa lista
se desenrola, muitos retratos preenchem as paredes da Academia Goiana de Letras. Muitos
desses autores desenvolveram-se com a própria cidade, pois Goiânia foi planejada e construí-
da para ser capital do estado de Goiás tendo completado 90 anos, uma cidade que ainda não
tem seu centenário e há pouco formara sua primeira geração de memorialistas, de escritores,
de cineastas, de artistas. Partimos do pressuposto que a arte é uma função metropolitana e,
sobretudo, no espaço metropolitano vamos encontrar a maior variedade de manifestações ar-
tísticas possíveis: música, dança, teatro, cinema, literatura, pintura, escultura, street art entre
outras. Goiânia, nesse contexto, apresenta todas essas manifestações com destaque de artistas
locais em todas as modalidades que nos coubesse estudar a fundo e demonstrar a densa cul-
tura artística dessa jovem metrópole. Popularmente, a cidade tem sua vocação artística vin-
culada à música sertaneja que se propagou pelo país como um traço desta região e cuja marca
consiste numa ideia de sertão que atravessa a Goiânia metropolitana. Uma cidade sertaneja
todos dizem! Mas todas as outras artes ora contrariam ora reafirmam essa marca dada pela
música produzida localmente. Goiânia é também uma cidade de cinema, no sentido de que
é um espaço que produz cinema. Muitos filmes rodados em Goiânia são de seus cineastas que
criam, produzem e usam o seu espaço como cenário. Contudo, essa produção ainda é invisí-
vel localmente. E até mesmo em âmbito nacional é pouco conhecida, mas é um cinema que
participa de mostras no exterior e tem alguma visibilidade fora. Podemos dar como exemplo
o cineasta Daniel Nolasco cuja produção vincula-se a cena Leder, a cena Queer e traz ao
mesmo tempo subversão e suavidade ao tema. Suas imagens são demasiadamente realistas. É
o mundo urbano que se sobressai na sua cinematografia pelas questões que traz, pelas ban-
deiras que levanta. Contudo, não raramente, há um privilégio de paisagens do campo como
cenário, como nos filmes Vento Seco e Paulistas. Goiânia é assim uma metrópole atravessada
pelo imaginário do Sertão e a arte rememora este vínculo, a literatura e o cinema rememoram
essas imagens. As artes vão se ligando ao imaginário do lugar, sua tessitura toma a coloração
dessas imagens e sentidos. Podemos associar a filmografia de Daniel Nolasco ao filme cujo
título é Vermelha de Getúlio Ribeiro que mistura o rural e o urbano, mas vermelha é a terra,
a terra vermelha ou o Chão Vermelho que intitula o romance do escritor Eli Brasiliense cuja
narrativa tem Goiânia como protagonista e nesta obra e busca ver e demonstrar o que é a
cidade desde o seu ano zero. A ideia da cor vermelha como evocativo de uma identidade,
de chão e de uma goianidade está presente nos cruzamentos entre o cinema e a literatura e
neste sentido também a street art conversa com essa identidade goianiense dividia entre as
raízes sertanejas e o cosmopolitismo da metrópole. Pois Goiânia tem os muros tomados por
diversos tipos de street art do grafite ao lambe-lambe, mas não é raro encontrar nos grafites,
por exemplo, imagens que trazem a figura de uma roça de milho, um lavrador ou outra
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
figuração nesta temática. Desse dualismo, o que prevalece no imaginário? Só a arte poderá
nos dizer!

Street art – a mensagem das ruas

Quando olhamos a street art em Goiânia, percebemos que a ideia de urbano, de


urbanidade, de metrópole eclode. Assim, como o cosmopolitismo vai tornando-se emer-
gente. Goiânia valoriza significativamente a sua arte urbana e podemos dizer que ela
se converte numa galeria de arte urbana ora a céu aberto, ora privilegiando exposições
do tema, como se pôde observar na intervenção da dupla “Bicicleta Sem Freio” no
655 //
Centro Cultural Oscar Niemeyer5 ou na exposição “LambisGoia” na Vila Cultural Cora
Coralina, em 2022. Encontramos no centro de Goiânia edifícios de fachada inteira gra-
fitados e mesmo uma galeria permanente de arte urbana num espaço público chamado
Beco da Codorna. Lambe-lambes, estêncil e outros fazem parte da mensagem da cidade.

Figura 1 – Lambe-Lambes na avenida Tocantins (Goiânia, 2018)

Nada mais intimamente urbano do que encontrar um muro com esse emaranhado de
mensagens em que as colagens de propagandas se misturam aos Lambe-Lambes, um tipo de
street art muito comum em Goiânia, apreciada, em geral, pela surpresa, pela força ou comi-
cidade de suas mensagens. Como na borda superior da fotografia (Figura 1) a persistência
da mensagem “Eu Existo” convoca para as ruas um tópico filosófico cujo o Lambe-Lambe
torna-se um espelho existencial, pois se sou capaz de ver essa mensagem repetidas vezes é
fato de que eu existo. Ou ainda o gracioso gato preto no centro da figura dá um conselho
656 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ao passante. Podemos dizer que a street art é a forma artística mais próxima, mais acessível
ao citadino. Ela está lá, no nosso trajeto, como afirma Danysz (2022) ela nos convida a uma
pausa, nos convida a apreciar porque a arte urbana é uma linguagem viva. Ela surge para
que a contemplemos, está sujeita à efemeridade. Nós interagimos com ela, mas ela também
interage conosco, pois sua imagem nos chama a atenção, sua mensagem nos fisga. Detentora
de uma consciência ela nos doa essa consciência e podemos levar sua mensagem conosco.

5
Em 2015, o duo foi contratado, para desenvolver uma pintura mural em uma das laterais do prédio
principal do Centro Cultural Oscar Niemeyer, do governo de Goiás, pelo produtor de um evento musical.
Ao fim do evento, o governo cogitou a manutenção da pintura mural, o que suscitou intensa discussão na
imprensa goianiense. Cf. TEÓFILO, 2015; CRUVINEL, 2015; POR QUE O PAINEL…, 2015
Figura 2 – Estêncil de El Mendez aplicado sobre muros (Goiânia, 2018)

Por vezes, uma obra confere delicadeza, sentimentalidade e recordação. E o caso do


Estêncil de El Mendez que reproduziu em vários muros de Goiânia uma cena romântica
do célebre filme Les parapluies de Cherbourg do diretor Jacques Demy, um melodrama de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
1964. Uma imagem que nos captura na rua trazendo a recordação do filme para quem as-
sistiu. Em tamanho natural em muros e paredes figurou como uma presença. Geralmente
é o cinema que traz paisagens urbanas repletas de imagens street art, cenas feitas para
destacar um lugar e marcar o sentido de urbano na película. Mas o contrário é mais raro,
quando as ruas da cidade marcam um filme, mostrando que as linguagens da arte podem
referenciar o espaço. Os muros de Goiânia assim, citaram o cinema através desta obra. A
delicadeza poética da cena, o recorte do casal sob o guarda-chuva fez, sua multiplicação
pelo espaço fez da paisagem também uma mise-en-scène movimentada a nossa velocidade,
a nossa marcha, a passagem do nosso olhar mostrado o quanto a cidade é cosmopolita e o
quanto ela tem a evocar, a nos mostrar e ensinar.
657 //
Figura 3 – Aspectos do Beco da Codorna (Goiânia, 2018)
Esquerda: Acesso junto a avenida Anhanguera; Centro: beco em si; Direita: Praça formada pelos fundos dos
lotes da avenida Anhanguera e Tocantins e das ruas 9 e 3

O Beco da Codorna é um espaço público destinado aos artistas de street-art e ao pú-


blico em geral. É um espaço razoável em termos de tamanho destinado especificamente
à arte urbana. A partir de suas dimensões físicas poderíamos dizer que é um grande beco.
Trata-se de um lugar que chama atenção em Goiânia, tanto dos moradores como de turis-
tas. É um local que ainda precisa ser mais cuidado pelo poder público e pela comunidade
principalmente no que se refere a limpeza e a salubridade do lugar, mas certamente já se
tornou uma referência coletiva e um espaço que diz muito sobre a visão de cidade, de arte
urbana e de paisagem metropolitana de Goiânia.
Na figura 4 temos instalados diretamente na calçada junto aos cartazes e Lambe-lambes
uma “Gelateratura”, ou seja, um antigo gabinete de refrigerador para depósito de livros com-
preendendo doações e retiradas gratuitas de livros pelos passantes. Essa forma de ação cultural
também se multiplica pela cidade alternan-
do modos e performances revelando uma
vez mais que a metrópole é o local da cul-
tura no que corresponde as artes, tanto do
ponto de vista da produção como da recep-
658 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

ção e das mais variadas ações, que mesmo


pontuais, como neste exemplo apresenta-se
como um prática convergente em outros
espaços metropolitanos. A “Gelateratura” é
performática e no seu entorno multiplicam
cartazes, gravuras e lambe-lambes porque a
cidade é um espaço comunicacional, onde
as artes se juntam para abrir horizontes,
promover intervenções, criar oportunida-
Figura 4 – Frente de Comércio Cultural (Loja de livros
usados) (Avenida Araguaia, Goiânia, 2023) des e mesmo educar através do espaço.
3. São Luís do Maranhão: poesia, cultura e arte

Em São Luís, capital do Maranhão, uma cidade em que por muitos anos ficou conhe-
cida pelo epíteto de “Atenas Brasileira”, devido a tantos intelectuais, poetas e romancistas
que escreveram, viveram e colocaram em prosa e poesia a cidade, a arte é vista e reconhecida
em diversos cantos de São Luís. São Luís que é patrimônio histórico e cultural sob o selo da
UNESCO teve entre seus inúmeros filhos poetas alguns nomes de reconhecimento tanto
nacional como internacional, dentre eles Gonçalves Dias – o poeta da primeira geração do
romantismo –, Sousândrade – este já vinculado a terceira geração do romantismo e Ferreira
Gullar – poeta em que não se limita ou se encaixa em correntes devido a sua liberdade
poética, mas que foi um dos fundadores no Brasil do neoconcretismo na década de 1950.
Um dos traços fundamentais da poesia do maranhense Gullar é sempre retornar à
sua terra, a São Luís de sua infância e adolescência. Uma característica singular da ideia
de identificação com o espaço é justamente trazê-lo consigo, carregá-lo por onde for, ou
seja, o espaço não sai do seu corpo, da sua memória, da sua vida. O poeta, em exílio na
Argentina entre os anos de 1974 e 1977, concebe uma das grandes maravilhas da poesia
brasileira: Poema sujo. Trata-se de um longo poema, no qual o poeta rememora a São Luís
dos anos de 1940 que ainda resiste em permanecer na sua memória. A cidade no poema é
representada como um amálgama de tudo que a melhor define: o cotidiano, o povo, ruas,
avenidas, casas, a política, a miséria, a desordem, odores e sabores, e sem dúvidas, a parti-
cularidade das belezas e encantos da cidade de São Luís, então são memórias, (re)criações
e imaginações vinculadas ao que ele experienciou na cidade.
Este é um ponto importante porque a experiência do homem na cidade é levada ao ci-
nema, às ruas com a street art e também aos livros de poesia, como forma de buscar as coisas
em si mesma, possibilitando uma convergência entre arte e cidade, como mais uma forma
de ser e estar em geograficidade direta com a terra. São Luís, é uma cidade onde a geografia

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se entrelaça com a poesia, e a cidade em si se torna uma musa inspiradora para os artistas
que a chamam de lar. A “Atenas Brasileira” teve uma notável presença de intelectuais, poetas
e romancistas que não apenas habitaram essa cidade como a transformaram em palavras,
prosa e poesia. Entre esses ilustres filhos da cidade, destaca-se o poeta Ferreira Gullar.
Gullar é uma figura singular na cena literária brasileira. Sua poesia é um reflexo do
profundo laço que ele mantém com São Luís, especialmente com as memórias de sua in-
fância e adolescência na cidade. Para Gullar, São Luís é mais do que um local geográfico; é
uma fonte inesgotável de inspiração, uma presença constante em sua vida e obra. A cidade,
com suas ruas históricas de paralelepípedos, casarões coloniais e o encanto peculiar do
Centro Histórico, encontrou um eco duradouro nas palavras de Gullar. Suas composições
poéticas frequentemente mergulham nas profundezas do passado da cidade, evocando
659 //
imagens vívidas de suas paisagens urbanas e das pessoas que a habitam. Gullar traz São
Luís consigo, imortalizando-a em cada verso, em cada estrofe.
A obra de Ferreira Gullar transcende rótulos e correntes literárias, pois ele ousou abra-
çar a liberdade poética. No entanto, mesmo em sua liberdade, ele nunca deixou de retor-
nar às raízes de São Luís, reafirmando a importância da cidade em sua identidade artística e
pessoal. Seu impacto na literatura não se limita apenas a São Luís, mas reverbera em todo o
Brasil e além. Podemos afirmar São Luís é uma cidade que respira poesia e arte, e Ferreira
Gullar é o seu fiel arauto. Sua poesia é uma celebração da cidade, uma ode à sua beleza e
complexidade. Ele é o exemplo perfeito de como um poeta pode carregar sua cidade natal
consigo, transformando-a em palavras que ecoam através do tempo e do espaço, inspiran-
do gerações futuras a descobrirem a magia de São Luís através de sua poesia.
A manifestação da cultura no espaço da cidade é um fenômeno intrigante e inescapá-
vel em São Luís, um lugar onde as raízes culturais se entrelaçam com a paisagem urbana de
maneira única. Para Ferreira Gullar, essa interseção entre cultura e cidade era mais do que
um tema literário; era um chamado para explorar as profundezas da identidade cultural
e as complexidades da vida urbana. São Luís, com sua rica herança cultural que mistura
influências indígenas, africanas e europeias é um caldeirão de tradições e expressões artísti-
cas. Essa mistura de culturas encontra sua voz nas palavras de Gullar, que abraçou essa di-
versidade como uma fonte inesgotável de inspiração. Seus versos celebram a sinergia entre
os ritmos da cidade e a cadência poética, como se a música das ruas fosse parte integrante
de suas composições. Ao caminhar pelas ruas de São Luís, é impossível não sentir a pre-
sença das manifestações culturais que moldaram a cidade. O Bumba Meu Boi, o Tambor
de Crioula e o Reggae maranhense são apenas algumas das expressões que ecoam nas vielas
e praças, tornando-se uma parte essencial da vida diária dos moradores. Para Gullar, essas
manifestações não eram apenas performances culturais; eram a própria essência da cidade,
a força pulsante que animava suas palavras.
Ferreira Gullar também compreendia que a cidade não era apenas um cenário estático
660 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

para a cultura, mas um espaço dinâmico onde as tradições se renovam e evoluem. A cidade
é um palco onde o passado dialoga com o presente, e onde a arte se reinventa a cada esqui-
na. Nesse contexto, Ferreira Gullar não apenas imortalizou São Luís em sua poesia, mas
também se tornou um embaixador cultural da cidade. Sua obra ressoa como um convite
para explorar não apenas as palavras, mas também os sons, cores e ritmos que habitam as
ruas de São Luís. Em suas palavras, a cidade se torna uma metáfora da riqueza da cultura
brasileira, um lugar onde as tradições se entrelaçam, onde a arte floresce e onde a cidade
se revela como um tesouro cultural a ser apreciado e compartilhado com o mundo. A ci-
dade é o próprio palco onde a cultura se manifesta em toda a sua glória, e Gullar é o poeta
que capturou essa efervescência cultural em suas palavras. Eles juntos nos lembram que
a cidade não é apenas um espaço físico, mas um repositório vivo de histórias, tradições
e expressões artísticas que enriquecem nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.
No contexto do Poema Sujo, a obra magistral de Ferreira Gullar, essa relação com
São Luís e a percepção íntima da cidade se tornam ainda mais marcantes e profundas. O
Poema Sujo é um testemunho lírico da jornada de Gullar em busca de sua identidade, um
mergulho nas águas turvas de sua memória e experiência, e, ao mesmo tempo, uma cele-
bração da riqueza da relação do homem com o seu lugar. No poema, Gullar traz à tona sua
São Luís natal de maneira visceral e emocional. Ele não descreve simplesmente a cidade;
ele a vive e a revive em cada verso. A geografia íntima de São Luís, com suas ruas, becos,
praças e belezas ocultas, se desenrola como um mapa poético em suas palavras. A cidade se
torna um protagonista silencioso, mas poderoso, que permeia cada linha do poema.
Nesse contexto, Ferreira Gullar não apenas imortaliza São Luís em sua poesia, como tam-
bém a apresenta como um microcosmo da riqueza cultural brasileira. Ele mergulha nas raízes
culturais da cidade, incorporando suas tradições, cores e ritmos à narrativa do poema. Quando
lemos o Poema Sujo, não estamos apenas lendo palavras; estamos explorando a cidade de São
Luís em sua complexidade, uma cidade onde as tradições se entrelaçam e a arte floresce.
Assim como São Luís se revela como um tesouro cultural a ser apreciado e compartilhado
com o mundo em sua poesia, o Poema Sujo também se torna um convite para os leitores ex-
plorarem não apenas as palavras, mas também a cidade que o inspirou. Gullar nos lembra que a
cidade é mais do que uma paisagem física; é um repositório de histórias e experiências que enri-
quecem nossa compreensão da cultura brasileira e, de certa forma, da própria condição humana.
Ferreira Gullar, por meio de sua obra, estabeleceu uma conexão profunda e íntima
com a cidade de São Luís. No contexto do “Poema Sujo”, sua cidade natal se tornou um
elemento central, uma geografia íntima que se desdobrou nas palavras do poema. A cidade
não foi apenas o cenário, mas uma presença viva, uma fonte inesgotável de inspiração.
Nesse contexto, a cidade de São Luís se torna uma metáfora da própria cultura brasileira,
um lugar onde as tradições se entrelaçam, onde a arte floresce e onde a identidade se forja
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
na intersecção de culturas diversas. O Poema Sujo é um convite para uma jornada através
dessa geografia íntima da cidade, uma jornada que nos leva a compreender não apenas São
Luís, mas também a complexidade cultural do Brasil.
Ferreira Gullar e São Luís compartilham, portanto, um entrelaçamento único. A ci-
dade é mais do que uma musa para o poeta; é um espelho da riqueza cultural do país. A
poesia de Gullar nos lembra que as cidades não são meros espaços físicos, mas repositórios
de histórias, geografias e experiências que enriquecem nossa compreensão do mundo. São
Luís, como capturada no Poema Sujo, é um testemunho do poder da arte para revelar a
essência de um lugar e sua cultura, e Gullar e o seu Poema sujo permanecem como uma
fonte inesgotável para explora-la.
661 //
4. Coimbra: cartografia literária e imagética

Coimbra Património da Humanidade: cidade, imagem e identidade urbana

A imagem de Coimbra, que se tornou icónica e se vulgarizou com o tempo, pode ser inter-
pretar à luz dos pressupostos inicialmente expostos. Tal resultado é um produto da geografia e da
história, da conjugação de elementos materiais com intangíveis, da configuração do sítio onde se
implantou a cidade com o legado de tradições acumuladas ao longo dos séculos. O sítio, que faz
lembrar as acrópoles localizadas noutras geografias mediterrânicas, originou um labiríntico Centro
Histórico a que acede através da Porta de Almedina, topónimo cuja origem testemunha a passa-
gem doutros povos e a influência doutras culturas. Outros locais definem e pontuam um imagéti-
ca reproduzida à exaustão em postais ilustrados que as agências vendem aos turistas. A observação
da cidade mais à distância, dum qualquer miradouro fronteiro à acrópole, destaca uma silhueta
que se imprime na retina e que a “imagem de marca” que resite à passagem dos séculos (Figura 6).6
662 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Figura 6. Coimbra: a intemporalidade das imagens icónicas da cidade26

6
Fonte: CMC / AHMC, 1995.
1. Litografia atribuida a Legrand, Litografia do Largo do Quintela, n.º1, publicada no Universo Pitoresco, 1839.
2. CONIMBRICAE, LUSITANEA URBS AD MUNDAM AQUAEDUCTU SEBASTIANIS REGIS CELEBRIS.
Uma variante da gravura anterior, elaborada no Século XVIII, publicada em Teegenwordigen Staat Van
Spanien en Portugal, de Nicolas Ten Horne, Amesterdão, 1718.
A organização física e funcional do sítio onde se implantou a cidade e o papel da
Universidade na difusão do conhecimento e das artes conferiu uma forte carga telúrica
a Coimbra que se projeta tanto no seu centro histórico como no modo como é olhada
no país e além fronteiras, imagem única e singular que grangeou no concerto das demais
cidades portuguesas. A passagem ao longo do tempo de sucessivas gerações de escritores
envolveu-a duma dimensão onírica que contribuiu para moldar uma imagem singular e
conferir a Coimbra um estatuto impar. O espírito do lugar é, pois, fecundado por indelé-
veis singularidades que toca quem a habita, nela estudou ou a viveu ocasionalmente num
momento particular das suas vidas.
Esta mitificação alargou-se nos tempos mais recentes aos estudantes do Programa
Erasmus, que a apoia a mobilidade de jovens estudantes a nível europeu, que procuram
Coimbra para estudar durante um semestre. Uma imagem assim construída é suficiente
forte para afirmar a cidade aos olhos do turista, que decide este destino atrás duma ideia,
porventura inatingível, pois durante visitas efémeras apenas consegue captar um retrato
epidérmico, necessariamente incompleto e fugaz.
As várias facetas que comporta a imagem de Coimbra tem suscitado diferentes abor-
dagens que sucintamente se exemplificam:
– Geógrafos em demanda duma poética urbana, procurando novos discursos visuais a
partir “das (novas) paisagens urbanas de Coimbra” que emanam das paredes grafitadas
(Lima; Jacinto, 2022), ou a apreensão da paisagem, a partir da observação participan-
te, como fez com eloquência Alfredo Fernandes Martins, bem patente nesta breve
transcrição: “Se de qualquer miradouro além-rio – do Vale do Inferno ou do balcão fron-
teiro ao convento de Santa Clara-a-Nova – quedarmos, por uma tarde doirada, olhando a
cidade e a paisagem envolvente, não será fácil que nos furtemos à fascinação que mana da
harmonia plástica definida pelas linhas essenciais do quadro geográfico. Mas não haverá
nessa fascinação nem assombro, nem vertigem, antes um tranquilo encantamento, justo
reflexo emocional da traça calma do cenário, do subtil ritmo de uma paisagem de transições
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suaves nos planos e delicado esbatido na sinfonia cromática. // Amo as gentes e as terras à
minha maneira: de coração aberto, olhos nos olhos, retinas presas na paisagem, e bem aten-
to o juízo valorativo, não vá a correcta atitude psicológica descair em sentimentalismos pie-
gas ou descambar em ridículos surtos românticos – que uns e outros são agentes corrosivos do
prestígio emocional dos seres ou do torrão amado. Deste jeito – e se amar é conhecer –, amo
a esta Coimbra, berço meu, de um amor reflectido e sereno, amor que me vem da meditada
interpretação plástico-geográfica da paisagem, do que sei do evoluir do aglomerado urbano
no curso das idades, da admiração pela actividade fecunda dos seus filhos, da inteligência
do que tem sido o contributo da cidade para a vida colectiva da Grei”.
663 //
– Historiadores e Arquitetos apostados em compreender a génese e a evolução da ocupação do
sitio e de como esta recomposição interfere na (re)configuração da imagem da cidade. Jorge de
Alarcão em A Montagem do Cenário Urbano (2008) descreve e reconstitui o lugar á medi-
da que analisa como evoluiu o espaço urbano desde o tempo dos Romanos. A Almedina,
cidade em árabe, correspondia ao espaço intramuros, presidido pelo fórum em época
romana e pela alcáçova e a Sé no período medieval. O arrabalde, que surgiu fora das
muralhas a partir de núcleos de povoamento em torno das igrejas de S. Bartolomeu, S.
Tiago e Santa Justa foram alastrando “numa urbanização mais planeada entre o Arnado
e Santa Cruz”. O ano 1537 é enfatizado por ser quando o “Rei D. João III transfere a
Universidade de Lisboa para Coimbra” e a cidade “teve um antes e um depois dessa data:
a instalação da Universidade trouxe um ressurgimento da cidade, com transformações
urbanísticas, demográficas, sociais, económicas e culturais relevantes”. Este ressurgimen-
to leva à abertura da rua da Sofia onde se começam a construir “honradas casas, do lado
ocidental, em 1538; e, do lado oriental, edificaram-se vários colégios universitários a
partir da década de 1540. Na Alta, as obras do Colégio de Jesus tiveram início em 1547;
as do Colégio de S. Jerónimo, em 1565 e as do Colégio das Artes, em 1568”. O período
do Estado Novo, quando se opera uma outra alteração profunda do tecido urbano com
a expansão da cidade universitária e o consequente demolição da velha Alta de Coimbra
foi estudado no trabalho O poder da imagem no processo de projeto da Cidade Universitária
de Coimbra (Joana Capela de Campos e Vítor Murtinho, 2017).
– Sociologos e outros cientistas sociais também vão analisar a evolução da imagem de Coimbra
preocupados em avaliar os seus efeitos ao nível do património e do turismo: Carina Gomes
estudou as Imagens e narrativas da Coimbra turística: Entre a cidade real e a cidade (re)
imaginada (2008) e, posteriormente, as Novas imagens para velhas cidades? Coimbra,
Salamanca e o turismo nas cidades (2012), equacionando a relação entre “Turismo,
cidade e Universidade” (com Carlos Fortuna, 2013). Outros estudos, sobretudo de
mestrado, tiveram como foco A construção da imagem de Coimbra no contexto das hie-
664 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

rarquias urbanas das cidades portuguesas (Ricardo André Mendonça da Silva de Martins
Marques, 2009), A imagem da cidade de Coimbra e as suas potencialidades no segmento
do turismo de negócios (Joana Maria Santos Nunes, 2016) ou Imaginários culturais e
patrimoniais (Catarina Mendes Pratas, 2020).
A lenta sedimentação de espaços, tempos e memórias forjou a imagem de Coimbra
cuja identificação, plena e genuína, funde harmoniosamente o corpo e o espírito. O reco-
nhecimento que o lugar concentra património material e intangível com autenticidade e
grande significado levou a UNESCO, em 2013, a reconhecer a cidade como Património
Imaterial da Humanidade. Esta distinção foi atribuída porque a parte que foi tombada
(Universidade de Coimbra – Alta e Sofia) cumpria três dos critérios exigidos:
– “Ao longo dos seus sete séculos de história, desempenhando um papel absolutamente
indiscutível de centro de produção e transmissão do saber numa área geográfica que
abrange quatro continentes – a do antigo Império português protagonizou, durante este
tempo longo mas sobretudo a partir da sua definitiva instalação na cidade de Coimbra,
as influências culturais, artísticas e ideológicas de todo este mundo criado pelo pioneiris-
mo dos descobrimentos portugueses, recebendo e difundindo conhecimento nas áreas
das artes, das ciências, do direito, da arquitetura, do urbanismo e da paisagem”.
– “ é um conjunto arquitetónico notável, simultaneamente ilustrativo das diversas funções
da instituição universitária, que tem as suas origens na Idade Média, e dos vários perío-
dos significativos da história da arquitetura e da arte portuguesa e do espaço geográfico
e cultural português – o do antigo Império português. A sua história está intimamen-
te relacionada com as reformas nos campos ideológicos, pedagógicos e culturais, com
correspondências diretas ao nível material. Através do seu conjunto, a Universidade de
Coimbra representa e é resultado da agregação de uma longa génese cultural, sempre
presente e ativa, arquitetónica e esteticamente verificada nos vários edifícios que a com-
põem, compreendidos nas áreas classificadas de Património Mundial, a Alta e a Sofia.
– “desempenhou um papel único na constituição e unidade da língua portuguesa, expandindo
a norma culta da língua e consagrando-se como importante oficina literária e centro difusor
de novas ideias, tendo passado por esta instituição vários escritores e divulgadores da língua
e da cultura. Sendo a única Universidade em todo o espaço geográfico de administração por-
tuguesa, a sua ação estendeu-se na formação dos profissionais que seguiam para o espaço ge-
ográfico de administração portuguesa, quer continental e insular, quer nos antigos territórios
ultramarinos até às suas respetivas independências, formando as elites e os movimentos de
resistência e contestação ao poder. A universalidade desta Universidade está ainda bem viva
nos vários cantos do mundo, já que são muitos os atuais estudantes universitários de vários
países, sobretudo os lusófonos, que retomam aquela história, influenciando e deixando-se
influenciar culturalmente, mantendo viva a troca de ideias e de conhecimentos 7.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Literatura e poética urbana: cartografia literária, rotas de escritores

A imagem que mais se difundiu de Coimbra e que ainda perdura em alguns meios
remete para um passado em que era mais inequívoco a importância, demográfica, eco-
nómica, social e politica, bem como o prestigio da sua Universidade e mais dinâmica a
produção cultural que florescia à sua volta. É certo aquela aureola remete para um tempo,
que terminou em 1911, quando a Universidade de Coimbra tinha o monopólio do ensino

7
https://worldheritage.uc.pt/pt/criterios/
665 //
superior nos países lusófonos, era o lugar onde se formavam as respetivas elites e um alfo-
bre de escritores e de movimentos literários, onde despontavam para as letras a generalida-
de dos autores portugueses. A cidade acolheu durante séculos as elites politicas e culturais
de Portugal e dos países que têm o português como Língua Oficial motivo suficiente para
fazer de Coimbra um caso singular no panorama nacional e da lusofonia. A imagem de
Coimbra que ainda se retem em certos meios remete para aquele passado, situação que
mudou profundamente particularmente no decurso da segunda metade do século XX.
Um número significativo de escritores mais destacados no panorama literário português,
sobretudo até meados dos anos 50 do século XX, tiveram o seu berço ou uma qualquer liga-
ção a Coimbra. É também significativo a emergência na cidade dalguns movimentos literá-
rios, onde releva o neorrealismo, pelo impacto que teve a nível nacional. O número elevado
de referência ligadas à literatura são suficientes para se desenhar na cidade uma cartografia
literária bastante densa que nos permite conhecer o ambiente criativo de sucessivas gerações
de escritores, sendo possível reconhecer o ambiente de muitas das suas obras em muitas ruas
da cidade. A geograficidade latente na produção literária que tem Coimbra em pano de
fundo tanto nos ajuda a ler a evolução do espaço como a paisagem social e a poética urbana.
O viés territorial deste olhar sobre a literatura não só está na origem dum eixo de investigação
como tem sido aproveitado para a ação. O crescimento do numero de trabalhos de geografia
literária é correlativo do desenvolvimento dum novo nicho de turismo alinhado com seg-
mento do mercado do turismo literário, demanda que nem sempre tem tido a resposta mais
adequada por parte dos operadores e das instituições publicas.
A Geografia Literária que se desenha a partir deste pano de fundo configura diferen-
tes roteiros de escritores em Coimbra que, sem pretensões de ser exaustivo, inclui nomes
cimeiros da literatura de todos os tempos tais como. Destacam-se Dom Dinis, Luís de
Camões ou Sá de Miranda e, a partir do final do século XIX, uma geração de escritores
que passaram pela Universidade de Coimbra que inclui nomes como Eça de Queirós,
Antero de Quental, Almeida Garrett, Trindade Coelho, Camilo Pessanha, António Nobre,
666 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Figura 7. Universidade e Casa da Escrita: lugares emblemáticos do roteiro cientifico, cultural e literário
Eugénio de Castro, Manuel da Silva Gaio, Afonso Duarte;. A geração posterior ligada
à Presença e ao neorrealismo inclui vultos como Miguel Torga, Edmundo Bettencourt,
José Régio, Mário de Sá Carneiro, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade, Eduardo
Lourenço, Vergílio Ferreira, Carlos Oliveira, Fernando Namora, João José Cochofel. A
geração de escritores posteriores inclui Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, Mário
Claudio, Nuno Camarneiro.
Este universo literário deixou dispersos no território urbano sinais materiais e marcas
intangíveis que nos permitem esboçar diferentes roteiros pontuados por lugares, pela to-
ponímia ou pela arte pública. Muitos autores e algumas das suas obras de fição que se de-
senrolam na cidade (p. ex: Fogo na noite escura (1943) de Fernando Namora ou Trabalhos
e Paixões de Benito Prada (1993) de Fernado Assis Pacheco) descrevem lugares e vivências,
retratam pessoas ou relatam acontecimentos que impregnaram o espaço urbano quer de
memórias quanto duma elevada carga poética. Adiantamos três dimensões que se podem
considerar coordenadas estruturantes da legenda do mapa literário de Coimbra:
(i) Lugares. Casas onde viveram (de João José Cochofel, hoje Casa da Escrita, p. ex.) e ruas
que assinalam a passagem de escritores por Coimbra. Foram importantes os cafés, locais
de tertúlia, a maioria já desaparecidos porque mudou a função dos espaços que ocupa-
vam, ou os locais onde ocorreram acontecimentos relevantes, como é o caso das escadas
da Sé Nova onde Eça ouviu, extasiado, Antero a declamar. A Rua do Loureiro, como as
adjacente, particularmente a Rua das Flores, definem um território especial do ponto de
vista literário, pelos nomes que aí residiram, representativos dum capítulo importante
da história da literatura portuguesa (José Régio, Eça de Queiroz, Virgilio Ferreira, João
José Cochofel, Carlos Oliveira).
(ii) Toponímia. Há um número significativo de ruas com nomes de escritores (Padre
António Vieira, Miguel Toga, Fernando Namora, etc.) e de memoriais (placas, incri-
ções, etc.) que testemunham os locais onde residiram ou nasceram escritores (Eugénio
de Castro, Ruben A., Carlos Oliveira, Edmundo Bettencourt, etc.). A rua que recebeu
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Figura 8. Lugares: ruas e casas onde viveram escritores


667 //
Figura 9. Toponimia: alguns memoriais de escritores dispersos na paisagem urbana

o nome do escritor Fernando Namora, localizada numa área de crescimento recente da


cidade, vai ganhar mais visibilidade e maior centralidade no mapa mental de Coimbra
porque passará a assumir o nome duma estação do metro de superfície que se vai im-
plantar na cidade.
(iii) Arte pública. Em alguns pontos da cidade foram colocado bustos ou pequenos monu-
mentos erguidos para homenagear certos escritores localizados, maioritariamente, nos
principais jardins da cidade: no Penedo da Saudade (João de Deus, Eça de Queiroz e
António Nobre) e da Meditação (um poema líricos de António Nobre), no Jardim da
Sereia (Camilo Pessanha) e no Parque da cidade (Antero de Quental, Manuel Alegre).
O imaginário coimbrão, embora continue a viver à sombra da sua Universidade, é
alimentada por um conjunto de outros icones: escritores, lendas, como a dos amores de
Pedro e Inês, e sítios continuam a alimentar uma certa ideia de cidade (Fonte dos Amores,
Quinta das Lágrimas, etc.). A autores, livros e histórias continuam fornecer uma visão
668 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

onírica e um ambiente social, cultural e político, porventura já inexistente, mas que ainda
reproduz e projeta uma certa memória que permanece de Coimbra.

Paisagens sonoras e cinematográficas

O imaginário de Coimbra fica incompleto se não se levarem em consideração as imagens


resultantes das paisagens sonora e cinematográfica produzidas ao longo do tempo. O fado
de Coimbra, elemento indissociável da imagem da cidade, diferente no estilo, forma e con-
teúdo do fado de Lisboa que a Unesco considerou em 2011 Património Cultural Imaterial
da Humanidade. A música é uma dimensão importante deste imaginário porque o fado tem
Figura 10. Arte pública: os poetas nos jardins de Coimbra

relação intima com a cidade, incorpora uma poética própria e o lado boémio do ambiente
académico. O cinema acabou por fortalecer o vínculo musical, sobretudo quando a canção
“Coimbra”, também conhecida, sobretudo no estrangeiro, como Avril au Portugal, foi inter-
pretada por Amália Rodrigues, que se tornaria um hino (à) da cidade, foi lançada na película
Capas Negras, rodada em Coimbra, em 1947, realizada por Armando de Miranda8.
A partir deste filme a importância angular da música é reforçada no imaginário coim-
brão, conhecendo o fado de Coimbra a partir daqui uma deriva, que se acentua no ini-
cio dos anos sessenta do seculo XX, quando emerge uma nova geração de cantores onde
pontificam nomes como Edmundo Bettencourt, Adriano Correia de Oliveira, Luís Góis e
José Afonso. José Afonso, bem enraizado no ambiente das Repúblicas e no espirito coim-
brão, faria a transição para outras sonoridades, da balada à música de protesto, estilo que
funcionou como um bastião de resistência à ditadura. Este cantautor, que alcançou maior
projeção, produziu uma obra musical e poética que, pela significado e qualidade intrínse-
ca, seria classificada de interesse nacional (2020). As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

A relação da cidade com o cinema é, contudo, igualmente antiga9: em Coimbra surgi-


ram publicações dedicadas exclusivamente ao cinema (Portugal Cine, em 1930, Projecção,
em 1931, e o semanário A Legenda, no mesmo ano) e chegou a laborar a produtora

8
“Coimbra é uma lição/ De sonho e tradição/ O lente é uma canção/ E a lua a faculdade/ O livro é uma
mulher/ Só passa quem souber/ E aprende-se a dizer saudade// Coimbra do choupal/ Ainda és capital/ Do
amor em Portugal, ainda/ Coimbra onde uma vez/ Com lágrimas se fez/ A história dessa Inês tão linda//
Coimbra das canções/ Tão meiga que nos pões/ Os nossos corações a nu/ Coimbra dos doutores/ Pra nós
os teus cantores/ A fonte dos amores és tu” (Composição: José Galhardo / Raul Ferrão / José Dos Santos).
9
A informação que se segue resume o trabalho de Rafael Vieira (2022): Fomos à procura de Coimbra no baú
do cinema e a cidade olhou-nos de volta (coimbracoolectiva.pt; 10/08/22).
669 //
Coimbra Filmes de 1929 a 1938; o movimento cinéfilo foi sempre ativo e, mais recente-
mente, surgiram coletivos apostados no estudo e na divulgação da arte cinefila, reunidos
em torno da Casa do Cinema de Coimbra, que congrega vontades de três entidades ligadas
ao cinema: Caminhos do Cinema Português – Associação de Artes Cinematográficas de
Coimbra (CCP/AACC), Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica
de Coimbra (CEC/AAC) e Fila K Cineclube.
Até à captura pelas grandes superfícies (Shopings) do comercio tradicional e das salas
onde se projetava e via cinema, estes lugares tiveram grande importância social e na orga-
nização do espaço urbano. Os velhos cinemas de Coimbra deixaram marcas impressivas na
cidade, físicas e intangíveis, que perduram sobretudo na memória dos mais idosos. O seu
desaparecimento, com a sua refuncionalização para outras atividades ou, simplesmente,
votados ao abandono deixando estes espaços vazios na paisagem urbana. Esta geografia
passa pelos primeiros cinemas da cidade, o animatógrafo do Salão da Trindade, no Colégio
da Trindade, o Teatro-Circo do Príncipe Real D. Luiz Filipe, precursor do Avenida, ambos
a funcionar desde 1908, até aos Cinema Tivoli e Sousa Bastos, e, depois de inaugurado,
em 1961, o Teatro Académico Gil Vicente, o único que permanece ativo. A Casa do
Cinema, que ocupa a sala dum centro comercial onde foi outrora o Cinema Avenida, es-
peço recém-adquirido para tal finalidade pela Câmara Municipal de Coimbra.
O mapeamento da cinematografia conimbricense mostra que a cidade foi sendo filma-
da ao longo do tempo por vários realizadores que fixaram na tela a evolução da paisagem
urbana, deixando imagens que ainda povoam o imaginário da cidade. Uma breve retros-
petiva dos filmes realizados em Coimbra ou que tiveram a cidade como cenário para ro-
dagem dalgumas passagens leva-nos ao pioneiro caçador de imagens, Aurélio Paz dos Reis,
que filmou uma pequena sequência em Coimbra, em 1896, que é considerado o primeiro
registo feito na cidade. Seguiram-se vários registos documentais do escritor conimbricense
Costa Lobo (El-Rei em Coimbra, 1908; Eclipse do Sol em Coimbra, 1912) e, nas décadas se-
guintes, aumentam os registos: Aspectos da Viagem Presidencial a Coimbra (1919); Aspectos
670 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

de Coimbra Pitoresca (1925); Panorama de Coimbra (1926); ou um interessante Desafio de


Foot-Ball Coimbra-Aveiro, de 1926 (talvez o primeiro registo fílmico da Briosa); Coimbra
(Aspectos) – Uma Reunião de Curso (1929), Belezas de Portugal (1931), onde se vêem ima-
gens da Alta desaparecida ou as encostas de Montarroio por urbanizar.
O primeiro filme de ficção feito em Coimbra foi o Amor de Perdição (1921), realizado
a partir da obra de Camilo Castelo Branco, pelo francês Georges Pallu, um dos nomes
da Invicta Film. Seguiram-se: A Fonte dos Amores (Roger Lion, 1925), As Capas Negras
(Gennaro Dini, 1928), produzido pela Invicta Film e pela Coimbra Filmes, O Milagre
da Rainha (António Leitão, 1931) e Coimbra (Amélia Borges Rodrigues, 1936) e Fado
Hilário, António Lopes Ribeiro (1949), filmado em Coimbra, com música do famoso
fadista viseense. Foram rodadas cenas em Coimbra de filmes como As Pupilas do Senhor
Reitor, a partir da obra de Júlio Dinis (Leitão de Barros, 1935), Fátima, Terra de Fé (Jorge
Brum do Canto, 1943), Amor de Perdição (nova versão, rodada por António Lopes Ribeiro,
1943); Não Há Rapazes Maus (António Lopes Ribeiro, 1947) sobre o percurso do Padre
Américo, que se perdeu. Capas Negras foi rodado em Coimbra por Armando de Miranda
(1947) e, mais recentemente, Manoel de Oliveira filma alguns exteriores em Coimbra
para a terceira versão de Amor de Perdição: Memórias de uma Família, (1979). Inicia-se
aqui uma nova época para o cinema na cidade: Raquel Freire filma o Rasganço (2001) e
António Ferreira, realizador de Coimbra, celebra a cidade em muita da sua filmografia
como Respirar (Debaixo D’Água) (2000), Embargo (2010) e Pedro e Inês (2018). Há uma
nova geração de realizadores com ligação a Coimbra, como Francisco Carvalho, Nuno
Portugal, Paulo César Fajardo, Pedro Marnoto, Teresa Prata e Tiago Cravidão.
A cidade foi cenário da história trágica do amor de Inês de Castro e D. Pedro I, per-
sonagens incontornávelmente associados a Coimbra. Sendo este um tema recorrente para
muitos filmes a cidade acaba por aparecer em obras como Inês de Portugal (1997, de José
Carlos de Oliveira), La Reine Morte (2009, telefilme francês de Pierre Boutron), ou Pedro
& Inês (2005, uma série de 13 episódios). A Castro (1992), de Artur Ramos, adaptado por
David Mourão-Ferreira a partir da obra do escritor António Ferreira, teve partes igual-
mente rodadas em Coimbra, como os de outros títulos: Uma volta, pelo Parque (Pedro dos
Santos, 2016), Bruno Aleixo e Alva (Luís Albuquerque, 2019), foi filmado no Palácio de
São Marcos e na Rua Vale de Linhares, no limite Nordeste de Coimbra. A partir da obra de
Saramago sobre o heterónimo de Pessoa, João Botelho, que também estudou em Coimbra,
rodou O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020), a preto e branco, no Hotel Astória, a fazer
a vez do Hotel Bragança, do livro. Outros filmes vão surgindo ano após ano a partir do
Cinemalogia, curso do Festival Caminhos do Cinema Português.
Há ainda relizadores estrangeiros que filmaram em Coimbra: Hors Saison (1992), o
filme suíço-alemão rodado no Hotel Astória; O Memórias Póstumas de Brás Cubas (2001),
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
filme brasileiro, a partir da obra de Machado de Assis, cuja personagem principal foi es-
tudante em Coimbra, teve uma cena de praxe no Pátio das Escolas, imagens da Biblioteca
Joanina, do Criptopórtico e uma serenata no Palácio de Sub-Ripas; The Other Half (2005),
comédia britânica filmada nos estádios onde jogou a equipa inglesa durante o Europeu
de 2004; 45 dias Sem Você (2018), filme brasileiro de Rafael Gomes, que foi filmado na
Rua Ferreira Borges, Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, Baixa e Estação Nova, Cave das
Químicas e em muitos outros locais; War (2019), filme de muita acção made in Bollywood,
e que não é um clássico Bollywood, teve um pequeno trecho filmado na Rua Ferreira
Borges; Fátima (2020), filme americano com elenco português, tem algumas sequências
filmadas em Coimbra; Yudhra (2021), filme indiano filmado em Coimbra.
671 //
A conhecida relação entre literatura e cinema assume, no caso de Coimbra, um sig-
nificado especial pelo número de escritores que passaram na cidade e a importância que
tem a literatura no imaginário da urbe. Não admira que a cidade tenha sido palco para a
rodagem de séries e documentários a partir de escritores ou de obras literárias representa-
tivas, donde se destacam:
– Retalhos da Vida de um Médico (1980), minissérie de 12 episódios realizada por Artur
Ramos, adaptada da obra com laivos autobiográfica de Fernando Namora, que estudou
em Coimbra, com guião de nomes ilustres como Bernardo Santareno, Urbano Tavares
Rodrigues, Dinis Machado. Entre as várias cenas filmadas em Coimbra, destaca-se a se-
quência em que se vê o Hospital ainda instalado no Colégio de São Jerónimo, um exame
oral e um rasganço no mesmo Colégio, um cortejo fúnebre nos Arcos do Jardim e uma
noite de farra numa tasca não identificada”.
– João de Deus (1980), que viveu e estudou em Coimbra, é um documentário de João
Ponces de Carvalho (bisneto do pedagogo). Também realizou um telefilme sobre o seu
avô, João de Deus Ramos, de 1994, fundador da rede de Jardins-Escolas João de Deus,
a primeira das quais abriu em Coimbra, ao lado do Botânico.
– Aquela Cativa Que Me Tem Cativo (1995), minissérie ficcionada a partir da obra de
Camões, sendo a juventude do poeta filmada na cidade.
– Almeida Garrett (2000), realizada por Francisco Manso, com argumento de António
Torrado, é uma minissérie homónima de 4 episódios sobre o escritor e político que
estudou em Coimbra.
– Os Maias, de Eça de Queirós, que também estudou em Coimbra, teve sucessivas adapta-
ções, a partir do final dos anos 70, conheceu uma minissérie luso-brasileira (2001) que
mostra sequências do percurso académico de Carlos da Maia filmadas na Universidade,
no Jardim Botânico e no Largo da Sé Velha.
– Anthero – O Palácio da Ventura (2009), de José Medeiros, registo ficcional que acompa-
nha a realização de uma obra sobre Antero de Quental, que viveu em Coimbra (Fonte:
672 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Rafael Vieira, 2022) 10.


O périplo cinematográfico sobre Coimbra seria inconclusivo se não se destacassem
dois filme tão emblemáticos quanto antagónicos, Capas Negras (1947), de Armando de
Miranda, e Rasganço (2001), de Raquel Freire, que fornecem duas visões bem distintas
do modo de estar e viver a cidade. Capas Negras, apesar do enorme sucesso que teve à
época, foi mal visto pelos habitantes de Coimbra que consideravam subverter tanto a
Canção de Coimbra como a “verdadeira” praxe académica. Rasganço, por seu lado, que

10
O autor assinala “Nesta cartografia haverá muitas obras mais a nomear, outras tantas por identificar, há ainda
uma sucessão de documentários e de curtas, tantas e tão diversas que rapidamente transformariam este artigo
num extenso ensaio. Alguns filmes mais se encontrarão, noutros exercícios arqueológicos mais profundos”.
Figura 11. Capas Negras (1947), filme de Armando de Miranda. Amália Rodrigues, como protagonista interpreta
Coimbra, canção que eternizou a cantora e a cidade

Figura 12. Rasganço, filme de Raquel Freire (2001)

discorre sobre uma certa forma de violência entre a comunidade estudantil, acabou por
ser gravado na República do Bota-Abaixo como o Capas Negras foi na Real República
do Rás-Teparta. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Esta breve apresentação sugere um conjunto de reflexões que importa aprofundar.


Permite concluir, desde já, que o cinema, enquanto modo de expressão artística, apesar
da força das imagens, não teve o mesmo impacto que a literatura na projeção da cidade.
O progressivo declínio dum certo ascendente de Coimbra relativamente a outros centros
urbanos do país coincide com o adento da massificação do cinema. Por outro lado, um ba-
lanço preliminar permite reter que a imagem da cidade revelada pelo cinema expõe a faceta
mais tradicional da mitologia coimbrã, os seus símbolos mais tradicionais e estereotipados.
Atentemos aos nomes de algumas fitas, às cenas que incorporam e aos locais escolhidos
como cenário para vermos como o cinema acentua um imaginário imutável, em torno do
673 //
mundo académico 11, religioso 12 e dos amores de Pedro e Inês 13. Mesmo Rasganço (2001),
o filme que tenta romper convenções e rasgar certos tabus, não assumidos ou não verbali-
zados, foi buscar o título ao primeiro destes universos.
Os lugares invariavelmente escolhidos para servirem de cenários definem um outro
roteiro que percorre o imaginário conimbricense, desenhado à sombra da Universidade ou
do périplo clássico que organiza a cidade “do Choupal até à Lapa”, um do verso clássico
dum dos fado tradicionais de Coimbra. Elencando os sítios mais representados nos diversos
filmes temos: Universidade, Pátio das Escolas, Biblioteca Joanina, Laboratório Chimico,
Colégio de São Jerónimo, Hospital (quando ainda instalado no Colégio de São Jerónimo),
Cave das Químicas, Jardim Botânico. Complementam este imaginário outros lugares
(Arcos do Jardim, Jardim da Sereia, Penedo da Saudade) e certos monumentos (Largo da
Sé Velha, Criptopórtico, Sé Nova, Palácio de Sub-Ripas, Mosteiro de Santa Clara-a-Nova,
Palácio de São Marcos). Fora da Universidade e do Centro Histórico os lugares captados
são: Baixa e Estação Nova, Rua Ferreira Borges, Hotel Astória, Portugal dos Pequenitos,
incluído num filme quando ainda era uma novidade por ter sido recém-inaugurado.
Os títulos doutros filmes rodados na cidade, além de reforçar a ideia já expres-
sa da relação forte do cinema com a literatura, salienta a importância que esta sempre
teve em Coimbra. A cidade serviu de cenário para a rodagem de algumas cenas de As
Pupilas do Senhor Reitor, a partir do romance de Júlio Dinis (1935), A Castro de António
Ferreira(1992), da série Retalhos da Vida de um Médico de Fernando Namora (1980), Os
Maias de Eça de Queiroz (2001), O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago (2020),
bem como alguns documentários sobre escritores como João de Deus (1980) e seu filho
João de Deus Ramos (1994), Almeida Garrett (2000) ou Anthero de Quental (2009).
A generalidade da filmografia oferece-nos uma cidade fechada sobre a Universidade, cir-
cunscrita ao mundo académico e limitada a uma geografia urbana que parece imutável. Após
Rasganço (2001), que em certa medida faz implicitamente o contraponto ao Capas Negras
(1947), surgem autores e emerge uma nova filmografia apostada em dar uma visão mais con-
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temporânea e cosmopolita tanto em termos de temas desenvolvidos como de lugares filma-


dos. A tentativa de fugir ao ambiente tradicional, sem amarras a uma visão localista, nota-se,
desde logo, nos títulos dos filmes: Respirar (Debaixo D’Água) (2000), Embargo (2010) e Pedro
e Inês (2018) de António Ferreira, realizador de Coimbra, Uma volta, pelo Parque (2016) de

11
A praxe e os hábitos académicos deram origem a títulos de filmes como Capas Negras (1947) e Rasganço (2001),
sem esquecer Uma Reunião de Curso (1929) e Fado Hilário (1949). Os principais eventos estudantis são quase
sempre integrados nos filmes: Cortejo da Queima da Fitas, serenata, noite de farra, exame oral e as habitações
tradicionais dos estudantes, Real República do Rás-Teparta, República do Bota-Abaixo, servem de cenário.
12
Neste registo O Milagre da Rainha (1931), Fátima, Terra de Fé (2020).
13
A Fonte dos Amores (1925), Inês de Portugal (1997), La Reine Morte (2009), Pedro & Inês (2005). Como
Amor de Perdição (1924, 1943 e 1979).
Pedro dos Santos e Bruno Aleixo e Alva (2019) de Luís Albuquerque. Os filmes mais recentes
procuram, pois, abrir-se a outros espaços, temáticos e geográficos, mostrar um outra lado da
cidade, mais moderna e vibrante, que vive paredes meia com a parte decrépita e decadente
que invadiu os locais clássicos sempre visitados pelas câmaras.

Street art: sentir, viver e ler a cidade14

O graffiti em geral e a street art em particular são expressões artísticas com um incre-
mento rápido nas ultimas décadas, assumidas por uma juventude sedenta de se afirmar
no campo das artes sem abdicar dum modo próprio de estar, viver e participar na (re)
definição da cidade. O graffiti é, antes de mais, um movimento de arte “que surgiu como
uma expressão do indivíduo, uma forma de validar sua existência na opressiva metrópole
que se tornou mais proeminente na periferia das grandes metrópoles, como Nova York,
durante a década de 60 e início de 70”. O seu desenvolvimento foi paralelo ao movimento
hip-hop que representa, hoje em dia, um grande movimento cultural que emergiu com a
pretensão de afirmar e valorizar a cultura da periferia das grandes metrópoles através de
diversos segmentos da arte (Break Dance, Rap e Graffiti).
A afirmação que “incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas
imagens” (Bachelard, 2005: 19) remete-nos para uma fenomenologia da imagem e para
a “importância do jogo estabelecido entre o sujeito que produz, cria, imagina e o que
consome, interpreta, desfruta imagens. A poética do espaço habilita a transubjetividade da
própria imagem, estabelecendo-se, então, a imagem poética. E a arte do grafite é transbor-
dante em imagens que alimentam o fluxo poético da paisagem urbana. Há, portanto, um
entrecruzamento de consciências – criadoras, sonhadoras, decifradoras – na dinâmica da
paisagem visual urbana e o acervo variável de imagens poéticas dispostas em sua configu-
ração” (Lima, Jacinto, 2022).
O grafite, enquanto imagem e registo visual, carrega uma mensagem e transporta uma
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024
estratégia de comunicação que subverte uma certa ordem social e linguística ao expor o
que é proibido. O grafite, para alguns autores, é o tipo de escrita perversa que diz o que não
se pode (ou deve) dizer, sendo tantas vezes, a afirmação e uma resposta cidadã que, “nesse
jogo”, ao dizer o que não é permitido irrompe como ruptura estética. O objetivo do graffiti
é, antes de mais, deixar a marca na cidade através da inscrição dum “Tag” (nome) da pessoa
que a escreve, sendo esta assinatura do “Writer” (escritor) a sua variação mais simples que
pode evoluir e atingir outras variações mais complexas (Throw-up/bomb e Piece/WildStyle).

14
Este tópico reproduz parcialmente o texto As paredes grafitadas, muros que nos (re)unem: discursos vi-
suais das (novas) paisagens urbanas de Coimbra e do Rio de Janeiro (Lima, Jacinto, 2022).
675 //
Figura 13. Graffiti selvagem em Coimbra: apontamentos de tagging, bomb, piece e pós-graffitti (stencil)

Outras vezes, recorre a personagens ou imagens figurativas mais elaboradas sem nunca
sobrepor o nome, mas, quando muito, apenas acompanhá-lo.
Considerou-se nesta abordagem, para efeitos metodológicos, a distinção entre três mo-
dalidades fundamentais de grafite que se encontram na paisagem visual urbana: (i) o grafite
selvagem que corresponde às criações artísticas espontâneas que traduzem a manifestação
da ideologia própria de cada grafiteiro – sinalizando um certo “artivismo” transgressor
676 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Figura 15. Entre o graffiti selvagem e o domesticado: intervenções relativamente toleradas em diferentes locais
de Coimbra
– e que se inscrevem em superfícies marginalizadas dos “espaços opacos” contrapostos à
centralidade de muros e empenas dos “espaços luminosos”; (ii) o grafite domesticado en-
quadrado naquele cujas criações foram capturadas pelo mercado formal de arte (galerias
e museus) ou, mais genericamente, pelos interesses mercantis privados; (iii) o grafite ins-
titucionalizado quando nos referimos às criações artísticas de grafiteiros contratados pelo
poder público, como podem ser os exemplos de grandes painéis com conotação de arte
muralista, para alguns “pseudografites”.
A partir da década de 1970 a geografia abriu a investigação a dimensões mais subjeti-
vas da espacialidade humana recorrendo a novas abordagens teóricas e metodológicas que
usam a imagem e a arte para ler e interpretar a dinâmica da produção do espaço urbano.
A cultura visual do grafite, hoje indissociável do ininterrupto processo de requalificação e
da vida urbana, deu origem a novas paisagens visuais que importa apelar como mediadoras
para compreender e promover uma vivência cidade mais humana em virtude do seu papel
mais e(a)fetivo na promoção da coesão urbana. O discurso visual do graffiti permite, por
estes motivos, perceber os diferentes contextos que os condicionam bem como aceder e
desocultar as paisagens menos visíveis. Tais discursos são promovidos através das distintas
modulações assumidas pelo grafite, desde o mais selvagem, ao domesticado e ao institu-
cionalizado cuja leitura e interpretação pressupõe “uma hermenêutica da paisagem mobi-
lizadora de competências estéticas e de pequenas perceções”.
Os grafites que povoam a cidade, realizados através de várias técnicas, estão inscritos
em múltiplos suportes e obedecem a distintas expressões artísticas que foram utilizadas

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Figura 14. Street Art institucionalizada: obras encomendadas por entidades públicas em lugares nobres da cidade
677 //
para veicular variados tipos de mensagem. As inscrições nas paredes e os grafitados que se
dispersam por vários setores da cidade configuram múltiplos “distritos artísticos ocultos”,
quais galerias de arte a céu aberto, que concorrem para reinventar o tecido urbano. A aná-
lise dos discursos das paisagens grafitadas além de nos ajudar a formular uma outra leitura
destas urbes cria uma nova imagem que não deixará de ser um contributo a ter em conta
pelo planeamento urbano.
A geografia do grafite de Coimbra mostra uma organização espacial definida por
vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos como nos ensinou Lynch. A territorialida-
de desta expressão artística é vincada tanto pelos lugares privilegiados pelas intervenções
como pelos contextos onde ocorrem, não sendo indiferente os sítios nem a posição que
ocupam na cidade. O graffiti em Coimbra expressa, pois, territorialidades e discursos a
começar pelas intervenções formais, promovidas por entidades publicas, que correspon-
dem ao grafite institucionalizado ou domesticado, patentes, por exemplo, junto a alguns
dos espaços mais nobres (Escadas de São Bartolomeu, Estação Velha, Mercado, perto da
Universidade). As intervenções informais, mais espontâneas e efémeras, embora dispersas
por toda a cidade, tem maior densidade nas áreas mais degradadas do centro histórico, nas
mais invisíveis da semiperiferia ou nos vazios urbanos, espaços mais abandonados, quer
em lugares relativamente centrais (canal ferroviário entre as estações de caminho de ferro,
p. ex.) ou mais periféricos.
678 // As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa | 2024

Figura 16. As paredes da cidade, uma galeria de arte a céu aberto: intervenções efémeras do jovem artista Gaiola
As suas localizações enunciam uma hierarquia pautada por: (i) Polos principais: Centro
histórico (ruas da Alta e da Baixa), Ponte Rainha Santa, Fábrica da Sociedade de Porcelanas,
escadaria da nova urbanização da Quinta da Maia, Parque urbano da Quinta das Flores.
(ii) Núcleos secundários, definidos por praças, jardins, parques e alguns eixos: praças (en-
volvente do Estádio Municipal, p. ex.), parques (Parque Verde, Choupal, …) e eixos for-
mados por muros de algumas ruas principais (Rua dos Combatentes; escadas entre a Rua
Carlos Seixas e a feira do Bairro, Casa Branca, etc.), muros do Liceu José Falcão, mural
adjacente à escola do Vale das Flores, etc.. (iii) Arquipélago urbano: um sem número de
intervenções pontuais, com localização difusa, encontram-se dispersas aleatoriamente no
tecido urbano.
Estamos perante locais que sinalizam as margens duma certa cidade, o avesso da ci-
dade, mesmo quando nos encontramos nos seus espaços mais centrais. São pontos de
encontro e, simultaneamente, pontos de rutura, onde uma cidade acaba e a mesma cidade
começa. São lugares eleitos para estar, sociabilizar, onde uma comunidade, irmanada no
seu próprio dialeto, divaga no seu mundo. Mas são, ainda, lugares de passagem, de transi-
to, que organizam rotas pessoais, interiores, que coincidem, algumas vezes, com corredores
que definem os grandes eixos de circulação urbana.

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