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Revista
de estudos
ibericos
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Coordenação deste número
Rui Jacinto
Alexandra Isidro

Apoio à Coordenação
Ana Margarida Proença

Capa e conceção gráfica


Márcia Pires

Impressão
Marques & Pereira, Lda

Edição
Centro de Estudos Ibéricos
Rua Soeiro Viegas, 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

ISSN: 1646-2858

Depósito Legal:
231049/05

novembro 2023

Os conteúdos, forma e opiniões expressos nos textos


são da exclusiva responsabilidade dos autores.
in
di
ce
Nós como futuro: (re)ler aqui e agora, Eduardo Lourenço 9
Rui Jacinto

ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO: 19 > 157


ROTAS LITERÁRIAS, ITINERÁRIOS CULTURAIS
Geografias literárias e literaturas geográficas: 21
espaço, narrativa e Ser
Eduardo Marandola Jr.

Literatura e Ambiente: imagens do ambiente natural 35


e humano na ficção literária portuguesa
Ana Cristina Carvalho

Geografia literária da Beira: a Região segundo os seus escritores 41


Rui Jacinto

Gândara de Carlos de Oliveira – a singularidade de um território 63


Fernanda Delgado Cravidão

Miguel Torga e Coimbra 67


Cristina Robalo Cordeiro

Roteiro literário Vergílio Ferreira 71


Catarina Santos

Na Póvoa da Atalaia, em busca da geografia poética 73


de Eugénio de Andrade
Fernando Paulouro Neves

Roteiro Fernando Namora: 77


retalhos duma vida, meandros duma obra
Rui Jacinto

O turismo literário nas Terras do Demo, 105


uma viagem corográfica pela ficção de Aquilino Ribeiro
Aquilino Machado
Roteiro Eduardo Lourenço: 121
territorializar um pensamento desterritorializado
Rui Jacinto e António Pedro Pita

São Pedro do Rio Seco: Roteiro Eduardo Lourenço 125


Paula Sousa

Palmilhando a Guarda de Eduardo Lourenço 139


Thierry Proença dos Santos

Coimbra Literária. Um roteiro 151


Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra

LEITURAS DE EDUARDO LOURENÇO: NÓS COMO FUTURO 161 > 181

El futuro de los estudios ibéricos 163


Antonio Sáez Delgado
Uma luz intensa como o sol 167
Fernando Paulouro Neves
Eduardo Lourenço e José Saramago: Nós e o Transiberismo 171
Carlos Reis
Todo es futuro 179
Pilar del Rio

EDUARDO LOURENÇO: VIDA E OBRA DE UM HETERODOXO 185 > 197

Dialéctica y heterodoxia 187


Domingo Hernández
Reflexiones sobre un peregrinar heterodoxo 191
António Notario
Manual de um heterodoxo à la recherche de son identité 195
Filipa Soares

ALGUMAS LEITURAS DA EUROPA EM EDUARDO LOURENÇO 201 > 221

Eduardo Lourenço ― "Nós e a Europa" ou as metamorfoses 203


de um diálogo
Jorge Costa Lopes
Da Rússia, com a paixão europeia de Eduardo Lourenço ― ou de 211
como caem ainda as pedras do Muro
Dulce Martinho
EDUARDO LOURENÇO: UM TEMPO BRASILEIRO BREVE, 225 > 335
MAS DURADOURO
Introdução 227
Osvaldo Manuel Silvestre

Pensar en la Provincia. Con Eduardo Lourenço en su centenário 235


Pedro Serra
Eduardo Lourenço, a Casa Perdida e o Brasil: 245
uma outra semântica do tempo histórico
Roberto Vecchi
A rasura do trágico como operação infinita 253
Eduardo Sterzi
Oropa, França, Bahia: regionalismo e provincianismo 265
em Eduardo Lourenço
Luís Bueno
Luso, iluso, desilusão: o fio de Eduardo Lourenço no «Labirinto do 277
Ressentimento» luso-brasileiro
Talles Faria
O inumano em Clarice, segundo Eduardo Lourenço 287
Annita Costa Malufe
O barroco no purgatório da linguagem 299
Pedro Serra
O «fulgor bárbaro» de Deus e o Diabo na Terra do Sol: 319
Glauber Rocha segundo Eduardo Lourenço
Osvaldo Manuel Silvestre

EDUARDO LOURENÇO: PRÉMIO E CENTENÁRIO 339 > 377


Galeria 342
Prémio Eduardo Lourenço 2023 345
Prémio Eduardo Lourenço 2022 347
Sérgio Costa 349
Ricardo Rivero Ortega 254
Delfim Leão 357
Suzana Menezes 359
Manuel Salgado 361
Fernando Rubio de la Iglesia 363
Valentín Cabero 368
Centenário do Nascimento de Eduardo Lourenço 379 > 394
CEI. ATIVIDADES 2023 397 > 423

Ensino e Formação 399


Investigação 403
Eventos . Exposições . Notícias 405
Edições 421
NÓS COMO FUTURO: (RE)LER, AQUI E
AGORA, EDUARDO LOURENÇO

RUI JACINTO*

A leitura do presente número da Iberografias. Revista de Estudos Ibéricos


mostra como o Centro de Estudos Ibéricos não esqueceu a data de 23 de maio de
1923 nem, consequentemente, o agendamento do Centenário do Nascimento do
Professor Eduardo Lourenço. O empenho na programação das comemorações do
Centenário do Mentor, Patrono e Diretor Honorífico do CEI implicou a cooperação
com muitas instituições no quadro duma parceria efetiva, que foi fundamental
para assegurar um ciclo de eventos, iniciativas e celebrações, que aconteceram e
vão continuar a decorrer, em vários lugares do país e do estrangeiro.
Estamos perante uma edição especial, temática, cujos capítulos abordam,
duma maneira ou doutra, algumas facetas da obra e do pensamento de Eduardo
Lourenço. Através da revista depreendemos, ainda, que não foram preteridos os
demais projetos que o CEI tem vindo a patrocinar, sobretudo os que se enqua-
dram nos pilares que alicerçam a missão do Centro: Conhecimento (onde relevam
ações no âmbito do ensino, da formação e da investigação), Cultura (eventos,
exposições), Cooperação (itinerâncias, edições, etc.).
É devida uma referência particular às ações anuais que são realizadas em ter-
mos do ensino e formação cujo mérito acabou reconhecido com a creditação e
certificação pelas Universidades de Coimbra e de Salamanca ou pelo Con¬selho
Científico Pedagógico de Formação Contínua. Destacam-se neste particular:
(i) Novas fronteiras, outros diálogos: cooperação e desenvolvimento. O Curso
de Verão, que decorre sob este lema, realizou a sua XXIII edição em deam-
bulação por Coimbra, Guarda e Almeida, teve mais de uma centena de par-
ticipantes provenientes de Portugal, Espanha, Brasil, Itália e Moçambique, e
a apresentação de cerca de 60 comunicações em vários painéis temáticos.
A crescente participação de investigadores de Países de Língua Portugue-
sa sinaliza o reforço das parcerias e a integração em redes de investigação
que o CEI continua a capitalizar. No ano do Centenário, o trabalho de campo

*
Centro de Estudos Ibéricos e Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território.
10 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

coincidiu com o Roteiro Eduardo Lourenço, que percorreu Coimbra, Guarda,


Almeida e S. Pedro do Rio Seco, na expetativa de se divagar sobre o legado
e “territorializar um pensamento desterritorializado”. Melo e Póvoa da Atalaia,
locais que não foram esquecidos por motivos óbvios, proporcionou um diálo-
go elevado com Vergílio Ferreira e Eugénio de Andrade, cúmplices de conver-
sas que o tempo nunca apaga.
(ii) Aprender fora da sala de aula: à descoberta do meio. A 2ª edição deste
Curso de Formação, creditado, que teve lugar em setembro e outubro, resulta
duma parceria com o Instituto Politécnico da Guarda.
(iii) Oficina de História da Guarda. A OHG, que tem a direção da Professora Rita
Costa Gomes (Universidade de Towson, EUA), obedeceu nesta VII edição aos
propósitos de sempre: promover a pesquisa sobre o património e a história da
Guarda e da sua região.

A investigação e a cultura, dimensões com igual relevo na programação do


CEI, continuam a proporcionar concursos, exposições, eventos e edições que
emanam de projetos como:
(i) Investigação, Inovação e Território (Prémio CEI-IIT). Esta linha de ação visa
estimular uma investigação aberta à inovação, à divulgação de experiências
e de boas práticas orientadas para o reforço a coesão, da cooperação e da
competitividade. Alinhada com o compromisso do CEI com os espaços mais
débeis, sobretudo os transfronteiriços e de baixa densidade, não esquece o
papel que desempenha na cooperação e na difusão do conhecimento. O alvo
principal do Prémio CEI-IIT, que materializa esta ação, é o de aprofundar o
conhecimento sobre: dinâmicas territoriais e iniciativas de desenvolvimento
local; património, recursos do território e situações de riscos naturais; valo-
rização e uso eficiente dos recursos endógenos; tecnologias ao serviço da
qualidade de vida; coesão social, governança, capacitação e modernização
institucional; inovação territorial, económica e social. Os prémios atribuídos
em 2023 revelam duas facetas críticas que devem estar sempre presentes
em qualquer agenda de desenvolvimento do interior: o foco em temas de
investigação pertinentes (A Inclusão Social de NPT e o Desenvolvimento de
Territórios de Baixa Densidade; Empreendedorismo feminino no turismo em
territórios de baixa densidade); envolvimento das instituições de ensino supe-
rior e de unidades de investigação nos processos de desenvolvimento (Univer-
sidades, Politécnicos, etc.).
(ii) Transversalidades. Fotografia sem Fronteiras. A leitura e a interpretação
dos territórios, preocupação antiga do CEI, esteve na origem deste projeto
com o intuito de documentar a diversidade dos territórios, das socieda-
des e das culturas. A modéstia inicial foi superada pelo crescimento ex-
ponencial do número de participantes que são, atualmente, provenientes
NÓS COMO FUTURO: (RE)LER, AQUI E AGORA, EDUARDO LOURENÇO
11
Rui Jacinto

de todos os continentes. Em 2023 participaram mais de quatro centenas de


fotógrafos oriundos de quase setenta países, amplitude bem visível quando
se analisam os países de origem dos fotógrafos vencedores: Afeganistão, Ale-
manha, Argentina, Brasil, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, Indonésia,
Irão, Moçambique, Perú, Portugal, Turquia, Vietname. A importância do Trans-
versalidades, assim demonstrada, ganha outro significado se observarmos
as itinerâncias das exposições que o concurso proporciona, evidenciando o
seu potencial para projetar o CEI e a Guarda. A geografia dos lugares onde
aconteceram exposições derivadas do Transversalidades, em 2023, mostra o
contributo do projeto para: (i) reforçar o eixo científico/cultural Coimbra-Guar-
da-Salamanca: houve exposições na Universidade de Salamanca, no Museu
de Salamanca (fevereiro) e na Sala da Cidade do Museu Municipal de Coimbra
(abril e maio); (ii) afirmar o CEI junto dos seus parceiros institucionais: Instituto
Camões (Lisboa, agosto), Fundação José Saramago (Lisboa, junho); (iii) poten-
ciar o papel do CEI como ator cientifico e cultural a nível regional: marcou pre-
sença na Casa Municipal da Cultura de Seia (janeiro), na Biblioteca Municipal
da Covilhã (novembro), no Centro Cultural Elvino Pereira (Mação, setembro),
no Museu de Ovar (maio) e no Auditório Municipal de Vila do Conde (setembro
e outubro)
(iii) Encontro Imagem & Território. O 6º Encontro, fazendo jus ao seu emblema,
repartiu a programação por exposições, debates, lançamentos de publicações
e roteiros fotográficos. Sob o lema Memória, Coesão e Literacia Visual e com
o foco nos territórios de aquém e de além-fronteiras, das mais próximas às
mais longínquas, desenvolveram-se incursões temáticas de conceção mais
conceptual onde a imagem é assumida dum modo amplo e plural, tanto nas
formas e formatos como relativamente à multiplicidade de suportes que a vei-
culam. Não foi esquecida a informação que a imagem carrega, a importância
destes registos para memória futura nem o potencial que encerra para va-
lorizar a cidadania e promover a inclusão territorial e social. A fusão criati-
va destes ingredientes originou numa abordagem a duas escalas: a local e
a global, com enfase na dimensão lusófona. Em termos locais, partindo de
Guarda, F de Fotografia, valorizou-se a interação com a comunidade a partir
de três ângulos de envolvimento: (i) participação direta de instituições locais
na realização de exposições (alunos do Instituto Politécnico da Guarda, do
Fotoclube da Guarda e de Jovens da Aldeia SOS); (ii) interação com estrutu-
ras sociais locais, representativas de vários setores (saúde, educação, social,
etc.), para intervir em locais como a ULS da Guarda – Hospital Sousa Martins,
o Estabelecimento Prisional da Guarda e diversas Escolas (Ensiguarda; Escola
Secundária Afonso de Albuquerque e da Sé); (iii) abertura a novos públicos e
descentralização cultural exemplificada pela frutuosa cooperação com o Mu-
seu da Guarda, através do respetivo Serviço Educativo, que orientou visitas
12 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

guiadas a várias exposições. Outra coordenada de intervenção, mais ampla,


partiu do conceito Imagens sem fronteiras para os Diálogos lusófonos para
proporcionar debates, troca de ponto de vista e mostras. Imagens captadas
na Guarda foram vista lado a lado em exposições de fotógrafos do Brasil e de
Moçambique num interessante diálogo entre olvidados: as Topografias da pai-
sagem social (Luísa Ferreira) e Além das nossas fronteiras (Coletiva de Jovens
da Aldeia SOS) comunicaram, no tempo e no espaço, com Com Vivências (Co-
letivo Imagens do Povo, Brasil) e Cartografias (sub)urbanas: 5 olhares sobre
Moçambique, onde a curadoria de Amosse Mucavele concebeu um discurso
para as fotos de Adiodato Gomes, Albino Mahumana, Mário Macilau, Thandy
Pinto, Yassmin Forte.
(iv) Edições. O lançamento de cinco (5) publicações mostra como estamos num
ano fértil: Iberografias ― Revista de Estudos Ibéricos (Nº 19); Novas frontei-
ras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
(Coleção Iberografias, Nº 45); Transversalidades. Fotografia sem Fronteiras
(2023). Foram dadas à estampa duas edições no âmbito do Centenário: Vida
Partilhada. Todos nós Ibéricos (Nº 44) e Eduardo Lourenço: uma bibliografia
(1923-2020) (Nº 46).

***

A preparação do Centenário do Nascimento de Eduardo Lourenço foi longa e


envolveu um número apreciável de instituições: Câmaras Municipais de Guarda,
Almeida e Coimbra, Universidades de Coimbra e Salamanca, Instituto Politécnico
da Guarda, Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca Nacional, Instituto Camões,
Centro Nacional de Cultura, Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliote-
cas, Rede de Bibliotecas Escolares, Rede Intermunicipal de Bibliotecas das Beiras
e Serra da Estrela, Direção Regional da Cultura do Centro, Comissão de Coordena-
ção e Desenvolvimento Regional do Centro, Turismo Centro de Portugal, Turismo
de Portugal, Fundação José Saramago e Casa Fernando Pessoa.
A longa lista de iniciativas que constam do programa indicativo, não sendo
exaustiva porque outras instituições estão a realizar eventos não listados, enqua-
dram-se num dos quatro eixos estruturantes que a comissão coordenadora das
comemorações do Centenário definiu como:
“1. Aprofundar o conhecimento da obra. Apesar de ter suscitado enorme in-
teresse de investigadores de vários países, o conhecimento do itinerário e da
obra de Eduardo Lourenço não está esgotado. Compreende-se, pois, que o
ano de Centenário seja assinalado por várias iniciativas científicas, de dimen-
são e alcance variáveis, confluindo para esse aprofundamento.
2. Ampliar o universo de leitores. As obras de Eduardo Lourenço estão disponí-
veis. É necessário, no entanto, ampliar o universo dos seus leitores: os leitores
NÓS COMO FUTURO: (RE)LER, AQUI E AGORA, EDUARDO LOURENÇO
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Rui Jacinto

especialistas, os leitores interessados e os leitores do futuro. Os livros (com


realce para a Rede de Bibliotecas Escolares e a Rede de Leitura Pública), as ar-
tes plásticas, a música e o cinema serão meios privilegiados dessa atividade.
3. Expandir o legado. A par do prosseguimento da edição das obras, prevê-se
expandir o legado de Eduardo Lourenço através de edições, exposições, con-
certos e ciclos de cinema.
4. Territorializar um pensamento desterritorializado. Eduardo Lourenço man-
teve uma intensa circulação nacional e internacional, que constitui um sinal
de generosidade e, ao mesmo tempo, a importância genuína concedida a um
“outro”. Ancorar um pensamento desterritorializado em referências territoriais
visíveis delimita um território biográfico de especial incidência.”

As comemorações tiveram início em São Pedro do Rio Seco e na Guarda, a


23 de maio, com a inauguração de dois elementos escultóricos e a realização
do Congresso Leituras de Eduardo Lourenço que, em jeito de revisitação da
obra, organizou a reflexão a partir de três obras significativas do autor: O Es-
plendor do Caos; Sobre o Espírito da Heterodoxia e Tempo Português e Outros
Tempos.
A presente edição dá o devido destaque a três colóquios realizados na Bi-
blioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL): Leituras de Eduardo Lourenço: Nós
como futuro, organizado no momento de apresentação do programa das Come-
morações; Algumas leituras da Europa em Eduardo Lourenço, organização do Ins-
tituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Universidade do Porto), da Asso-
ciação Portuguesa de Estudos Franceses e do CEI; Eduardo Lourenço: um tempo
brasileiro breve, mas duradouro, organizado pelo Centro de Estudos Ibéricos em
colaboração com o Centro de Estudios Brasileños da Universidad de Salamanca e
o Colaboratório Europeu de Estudos Brasileiros.
É devida uma referência particular ao Prémio Eduardo Lourenço (PEL) que as-
sumiu, no ano do Centenário, uma dupla faceta:
(i) entrega a Valentín Cabero Diéguez do PEL 2022, distinguido pelo júri pelos
seus méritos académicos e científicos, mas, também, pelo seu compromisso
cívico com os territórios mais frágeis, a sua contribuição para a cooperação
ibérica, a sua dedicação aos lugares, pessoas, paisagens e aos valores patri-
moniais da fronteira luso-espanhola;
(ii) atribuição a Lídia Jorge do PEL 2023 (19ª Edição) pelo reconhecimento e
importante projeção da sua obra no espaço nacional, internacional e ibero-
-americano.

A nível editorial, como já foi referido, foram lançadas três publicações, com
a chancela do CEI-Âncora, duma série e preparação, que vão ficar associada às
comemorações do Centenário de Eduardo Lourenço:
14 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

(i) Vida Partilhada. Todos nós Ibéricos, a versão ampliada da edição Vida Parti-
lhada. Eduardo Lourenço, o CEI e a cooperação cultural (2013), que acrescenta
nove ensaios, posteriormente publicados por Eduardo Lourenço, aos 30 tex-
tos inicialmente dados à estampa;
(ii) Eduardo Lourenço: uma bibliografia (1923-2020), obra que compila todos
os textos publicados desde 1943 até à data da sua morte (2020). Sem pre-
tender ser uma lista definitiva, porquanto é bem possível que existam muitos
outros textos publicados, este repertório constitui uma ferramenta muito útil
para todos os pesquisadores que desejem começar a estudar a obra de Eduar-
do Lourenço.
(iii) Iberografias ― Revista de Estudos Ibéricos, dedica o Nº 19 (2013) a Eduardo
Lourenço, apresentada como uma edição especial, temática, sobre a obra e o
pensamento de Eduardo Lourenço.

***

Os primeiros textos da Iberografias são uma primeira aproximação ao Roteiro


Eduardo Lourenço onde se ensaia um diálogo dos lugares e das paisagens ma-
triciais com o percurso do homem e a diversidade duma obra densa e labiríntica.
Embora não aponte para um roteiro literário no sentido convencional nem para
um itinerário cultural que responda linearmente à procura emergente do segmen-
to específico do turismo literário, contem os ingredientes que são comuns tanto
às geografias literárias quanto às literaturas geográficas.
O Roteiro também concorre, nesta medida, para as “escrituras do mundo”
algo imaginário onde o “espaço é uma essência do geográfico e, enquanto tal,
também é uma essência da existência”. Neste sentido, “talvez possamos pensar
em um jogo topológico de aproximações e distanciamentos que permitam abeira-
mentos e indistinções, como forma de conceber, ontologicamente, geograficida-
des e literacidades para além da Geografia e da Literatura” (Eduardo Marandola).
Além da tentativa, quiçá impossível, de “territorializar um pensamento dester-
ritorializado”, o Roteiro Eduardo Lourenço persegue outro objetivo: ao cartografar
a geografia duma vida e esboçar o itinerário duma obra não esconde a pretensão
de corrigir o lapso de Eduardo Lourenço ter sido esquecido quando não foi incluí-
do na Rota de Escritores do século XX, delineada para a Região Centro e que foi
enquadrada na Capital Nacional da Cultura ― Coimbra 2003. Não sendo um escri-
tor no sentido canónico, se levarmos em consideração as passagens ficcionais da
sua obra, não podemos delimitar nem circunscrever Lourenço, exclusivamente,
ao plano ensaístico.
NÓS COMO FUTURO: (RE)LER, AQUI E AGORA, EDUARDO LOURENÇO
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Rui Jacinto

Não há razão para Eduardo Lourenço não dialogar com seus companheiros de
jornada e de vida, com os escritores mais representativos da sua geração cujos
romances prefaciou e respetivas obras estudou com profundidade, como mostra
O Canto do signo. Impõe-se, pois, retomar um diálogo nunca interrompido como
procuramos estabelecer neste número com Aquilino Ribeiro, Carlos Oliveira, Eu-
génio de Andrade, Fernando Namora, Miguel Torga e Vergílio Ferreira. Este frater-
no convívio não só continua a conversa com interlocutores prediletos como define
com mais precisão os nós estruturantes da geografia literária da Beira.
A leitura enriquecida das várias unidades espaciais onde centrarem algumas
das suas obras não proporciona apenas uma reinterpretação mais assertiva da
Beira como permite olhar para a região com olhos de futuro. E, nesta perspetiva,
o contributo de Eduardo Lourenço não pode ser dispensado. O Roteiro Eduardo
Lourenço, como é dito no texto respetivo, prossegue três objetivos fundamen-
tais:
― Territorializar um pensamento desterritorializado. Certos que a obra e o
pensamento de Eduardo Lourenço, apesar de ser eminentemente desterri-
torializado, não deixa de conter em muitos ensaios uma geograficidade que
importa descodificar e interpretar.
― Cartografar uma geografia vivida: lugares de memória, memória dos lu-
gares. O itinerário da vida de Eduardo Lourenço é pontuado por lugares,
cidades e universidades, onde nasceu (S. Pedro de Rio Seco/Almeida), por
onde passou e ensinou, onde existem Cátedras com o seu nome, universi-
dades que o distinguiram com Doutoramentos “honoris causa”, instituições
por onde dispersou o seu espólio, localizadas na Guarda, em Coimbra e em
Lisboa.
― Estruturar um Roteiro Eduardo Lourenço: do património cultural ao turismo
literário. O território Lourenciano é disperso, tem origens em S. Pedro de Rio
Seco (Almeida), passa por Guarda e Coimbra, lugares que definem um eixo
que atravessa a Região Centro segundo uma diagonal que vai da fronteira ao
litoral. Coimbra foi um cais de partida que levaria Eduardo Lourenço a percor-
rer Mundo, de Vence a Salvador da Bahia, de Hamburgo a Lisboa.
ROTEIRO
EDUARDO LOURENÇO:
ROTAS LITERÁRIAs,
ITINERÁRIOS CULTURAIS
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS
GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E
SER*

EDUARDO MARANDOLA JR**

INTRODUÇÃO
“A literatura e as artes não são meros instrumentos de apoio para o estudo e o
conhecimento geográfico, na verdade fundamentam o conhecimento do
ser-no-mundo, ou seja, do que trata em essência a geografia.”
Werther Holzer (2020: 144)

O campo de interações dinâmicas entre Geografia e Literatura tem sido fre-


quentado, com especial ênfase nas últimas duas décadas, por um crescente nú-
mero de geógrafos e críticos literários que têm se esforçado por buscar meios de
articulação entre seus campos de conhecimento disciplinares.
Tenho me dedicado a tais estudos há pelo menos 20 anos, com diferentes
intensidades, estratégias e contextos. Neste período, foi possível acompanhar
a formação de um campo propriamente, Geografia e Literatura, que, no caso
brasileiro, tem sido ocupado por profissionais de ambas as disciplinas, com uma
diversidade temática, teórico-metodológica e de trânsitos interdisciplinares bas-
tante rica e potente (Marandola Jr., Chaveiro, Gratão 2020, Feitosa 2020).
Dentre os debates frequentes, está o coração do próprio campo: qual o
estatuto desta relação, compreendida no seio da Ciência Moderna como im-
provável? Variadas respostas têm sido elaboradas, como a diferença entre
geocrítica, geopoética e abordagem geográfica (Collot 2013); complemento
à geografia regional, transcrição da experiência dos lugares ou crítica à reali-
dade e à ideologia (Brousseau 1996); diferença de enfoque entre geografici-
dades e espacialidades (Marandola Jr., Oliveira 2009), dentre outras formas
de compreensão. Algumas destas formulações estão estritamente focadas nos

*
Texto originalmente composto como base da Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade da Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão (Brasil), proferida no dia 16 de agosto
de 2010. A presente versão foi ampliada e revisada para esta publicação.).
**
Professor Associado da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
Limeira, São Paulo (Brasil). eduardo.marandola@fca.unicamp.br.
22 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

estudos geográficos, ou seja, na incorporação da literatura como tema ou objeto


pela ciência geográfica, considerando a relação a partir de perspectivas episte-
mológicas ou, ainda, das diferenças de enfoque que a incorporação da literatura
provoca nos estudos geográficos de determinado tema.
Esta perspectiva propriamente disciplinar é limitante para pensarmos a na-
tureza da relação entre Geografia e Literatura, pois assume como dada a pró-
pria circunscrição imposta pela constituição das ciências na Modernidade. Neste
sentido, me parece especialmente importante considerar a epígrafe de Werther
Holzer (2020), que sinaliza justamente este ponto de inflexão a partir de uma
perspectiva radical que inverte o olhar: em vez de partir do corpus disciplinar
(Literatura ou Geografia), para estabelecer um diálogo fronteiriço ou, em última
análise, uma importação temática para seu próprio território disciplinar, partir do
fenômeno, reconhecendo que ele está em um plano primevo, no qual as divisões
disciplinares não predominam. O ser-no-mundo, indicado pelo autor, seria tanto
geográfico, quanto literário.
Tal reversão é um gesto fenomenológico: compreender o fenômeno como
manifestação essencial no campo antepredicativo refere-se à operação de não
assumir as estruturas da experiência fáctica do mundo-da-vida como delineado-
ras do fenômeno, mas como parte de sua própria manifestação (Husserl 2012).
Trata-se de considerar a radicalidade de pensar os múltiplos atravessamentos
da Literatura e da Geografia, não considerando a relação como uma via de mão
única. Implica, portanto, considerar não apenas a epistemologia, mas repensar
ontologicamente o fenômeno, desviando-se de uma construção a partir da hie-
rarquia dos conhecimentos, mas mirando a própria manifestação dos fenômenos.
Poderíamos formular, provisoriamente, tal tentativa como encontro entre
Geografias Literárias e Literaturas Geográficas. Estas, compreendidas fenome-
nologicamente, estariam fundadas em geograficidadades e literacidades, como
essências de sua manifestação.
O argumento nos levará ao entendimento de que a geografia está no mun-
do/geografia é mundo, e que a literatura está no mundo – literatura é mundo.
Como forma de desdobrar esta formulação, consideremos Geografia e Literatura
primeiramente como cultura, depois como arte e, por fim, como mundo. Estes
são os correspondentes ou correlatos dos três termos colocados como subtítulo
deste artigo: espaço, narrativa e ser. Recompondo então, temos: espaço está
para cultura, assim como narrativa está para arte e ser está para mundo.
Este ensaio se reúne, portanto, aos esforços de pensar as relações Ciência,
Filosofia e Arte em uma perspectiva que ultrapassa os limites disciplinares, a
partir de uma compreensão fenomenológica do conhecimento e da existência
(Marandola Jr. 2020a). A expectativa é contribuir para potencializar as múltiplas
fecundações entre Geografia e Literatura, evitando imobilizar sua dinamicidade
por definições que limitam sua pregnância mútua inerente.
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
23
Eduardo Marandola Jr.

GEOGRAFICIDADE E LITERACIDADE
Se é necessário repensar a forma de relacionamento entre Geografia e Li-
teratura, precisamos começar situando-as nos termos próprios desta reflexão.
Vamos começar pela geografia. Não a ciência, com letra maiúscula, conheci-
mento moderno sistematizado e institucionalizado a partir do século XIX. Atual-
mente, quando se fala em conhecimentos geográficos, há os detentores e os não
detentores deste conhecimento. Há legislações que determinam quem pode e
quem não pode ser chamado de geógrafo e de geógrafa. Há cátedras e títulos
de doutorado.
Mas deixemos isso tudo de lado. Vamos pensar na geografia enquanto parte
do mundo, antes de Humboldt, Ritter, Ratzel ou La Blache nascerem. Que geo-
grafia seria essa?
Para alguns, a pergunta correta seria se havia geografia. No entanto, pode-
mos deixar de lado este ceticismo do mito fundador. Nenhuma Ciência surge
do vazio. Sua sistematização é sempre uma reação, retardada, ao mundo. Nem
vamos perder tempo tentando identificar quem foi o primeiro geógrafo. Se Heró-
doto e a ideia de diferenciação de áreas, ou Aristóteles e sua geografia física, ou
Ptolomeu e sua análise matemática do espaço terrestre, ou ainda Heráclito com
sua preocupação original sobre a influência do clima sobre os homens (isso se
mantivermos a perspectiva centrada no Ocidente).
Por que não vale perder tempo com tudo isso? Porque a geografia faz parte
do mundo. Ela não é meramente o que homens pensantes, utilizando a razão e O
método delinearam como um campo de conhecimento a ser produzido e repro-
duzido. A geografia é uma das dimensões da existência.
Esta compreensão, defendida de maneiras diferentes por autores distintos,
encontra em Éric Dardel (2011) talvez sua mais sensível formulação. Sua ideia de
geograficidade, essência do modo-de-ser geográfico, implica que o geográfico
não é apenas uma episteme, mas é o modo de ser-e-estar-no-mundo. Ser e mun-
do, portanto, seriam geográficos, tanto quanto são históricos, culturais, sociais, e
assim por diante. Não há como se furtar, pois somos sendo geográficos.
Isso significa que o conhecimento sistemático geográfico, a Ciência que sur-
ge do grande período de fragmentação dos saberes (séculos XIX e XX), é uma
Ciência que se refere a uma dimensão essencial do Ser. Não é por acaso isso.
Geograficidade, enquanto modo do ser-no-mundo, é a forma própria e inaliená-
vel da nossa experiência e existência. Se a Modernidade e a busca racional por
padrões aparentemente ofuscaram esta dimensão da existência, isto ocorreu
somente em determinados planos. Não há conhecimento geográfico que não se
refira, mesmo que marginalmente, à geograficidade.
Husserl (2012) havia sinalizado isso quando fez sua crítica à objetivação da
Ciência Moderna, mostrando que mesmo as Ciências da Natureza estão
24 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

pautadas, de forma indelével, no mundo-da-vida. Argumento semelhante havia


feito, em outras bases, Dilthey (2010), quando afirmou que as Ciências da Na-
tureza também tinham como base a vivência. No nosso caso, a radicalidade da
compreensão fenomenológica da geograficidade não cria uma clivagem com o
conhecimento científico, mas revela seus fundamentos, sua base que se refere,
nos termos de Dardel, ao elo de cumplicidade Homem-Terra.
E a literatura? Não precisamos entrar nos infinitos debates acerca de sua na-
tureza, seus gêneros e as tantas gavetas que tentam colocá-la. Ficção, produção
intelectual, pensamento, intuição, poética, realismo, representação... A literatu-
ra, tanto quanto a geografia, está no mundo. Estando no mundo, ela é mundo,
pois sua forma de estar no mundo não é à parte dele, como se surgisse de um
vazio, desencarnado, divinamente inspirado ou soberbamente flutuante. A lite-
ratura está no pó da terra, na tempestade e nos raios, na repetição do dia-a-dia,
no suor da subida de uma ladeira.
Conceber a literatura como elaboração do mundo e não como parte do pró-
prio mundo é o mesmo que considerar a separação natureza-cultura, mente-cor-
po, sujeito-objeto: trata-se de um a priori que remete à separação cartesiana do
res extentia e da res cogitans, que pressupõe um ser-no-mundo descorporifica-
do e desencarnado, se quisermos recorrer aos termos de Merleau-Ponty (1971).
Não se trata apenas da experiência compartilhada que é também base da
literatura. A relação literatura-mundo não é unilateral: do mundo para a litera-
tura. Mas também não é uma via de mão dupla: do mundo para a literatura, da
literatura para o mundo. Na verdade, o que estou tentando dizer é algo mais es-
sencial, algo anterior: literatura é mundo, porque é na imersão da cotidianidade
da experiência do próprio mundo que ela existe e se manifesta.
Dito de outra forma: se existe uma geograficidade, existe também uma litera-
cidade: o modo próprio de ser-e-estar-no-mundo, literariamente.
Estou me fiando não por aquilo que produz a especificidade de geografia e
literatura, ao contrário, o fio seria aquilo que as une, que as aproxima. Podemos
imaginar duas árvores muito frondosas, cheias de galhos e folhas e frutos e se-
mentes. Se tomarmos o ponto de vista das folhas e dos galhos mais finos, será
difícil estabelecermos relações com a outra árvore, ou mesmo com outras partes
da mesma árvore. Dependeríamos mais da abstração ou de saltos/projeções.
No entanto, se percorrermos as raízes, em suas múltiplas conexões, podemos
descobrir que há compartilhamento do mesmo terreno, mesmo que em profun-
didades distintas, com trocas e, possivelmente, ajudas mútuas.
Este mesmo solo é o mesmo mundo, cuja realidade geográfica e literária se
faz em um campo ontológico próprio, mais-que-representacional. É na experiên-
cia de mundo que ambas estão centradas enquanto essências do ser-no-mundo.
Se isso for verdade, não haveria literatura não-geográfica, pois todas emergem
e se referem ao mesmo mundo. Ambas são vigentes, vigoram e se presentificam
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
25
Eduardo Marandola Jr.

no mundo (Marandola Jr. 2010). Similarmente, não poderia haver geografia que
não seja literária. Ou não? Se ambas estão no mundo, sendo constituintes do
mundo e, portanto, da existência, elas têm que estar no mesmo patamar.
Então, por que é mais simples percebermos a geografia na literatura, e não
a literatura na geografia? Não deveria ser ponto pacífico a composição de geo-
grafias literárias tanto quanto de literaturas geográficas? Por que a Geografia
tem conseguido escapar da Literatura enquanto a Literatura não pode se furtar
ao geográfico?
Creio que seja a diferença entre a adoção de um discurso científico e de uma
orientação artística, voltada para a expressão/criação cultural. Até o momento
em que a geografia não se sistematizou como Ciência, mantinha uma literacida-
de latente. Todo relato de naturalista ou de viajante ocidental até o iluminismo
era ao mesmo tempo geográfico, histórico e literário. Não se podia identificar
tal divisão, pois ela simplesmente não existia. A Geografia, ao aspirar para si o
estatuto científico providenciou o expurgo dos traços literários que lhe eram pe-
culiares e inerentes. Aliás, alguns geógrafos já afirmaram, como Milton Santos,
que este foi o grande erro da Geografia: decidir ser Ciência em vez de Arte.
Já a Literatura permaneceu enquanto ficção, embora vários movimentos ar-
tísticos tenham defendido o realismo, ou a aderência lógica e racional ao plano
do mundo material. Mas é interessante notar que a teoria e a crítica literárias se
constituíram marcando-se como não-ficção: assumindo uma linguagem austera
e técnica, tentando não se “contaminar” com a literacidade, própria da literatura.
Compagnon (2014) revisita esta discussão no capítulo “O mundo”, de seu “O
demônio da teoria”. O autor repercorre a historicidade da discussão da mimesis,
buscando mostrar que entre os diferentes posicionamentos que a celebraram
como criação ou a condenaram como mera ilusão, um dos pontos fulcrais da
discussão se refere à referencialidade. Dito de outro modo: o quanto a literatura,
entre criação e materialidade, pertence ou não ao mundo.
A perspectiva representacional remete à literatura como um discurso que
“paira” sobre a realidade, observando o mundo de um ponto de vista distan-
ciado, cuidando de manter-se verossímil (referente), mas, ao mesmo tempo, in-
dependente, visando garantir sua objetividade racional. A perspectiva literária
assume que a literatura não fala de nada a não ser dela mesma, ou seja, não
possui uma continuidade (compromisso?) em relação ao próprio mundo.
Compagnon nos provoca a ultrapassar as duas perspectivas, assumindo a
impossibilidade de ambas. A literatura não apenas se refere ao mundo, mas está
nele fundada, emergindo como parte constituinte e a ele devedora, não com seu
reflexo ou como sua representação, mas como habitante do mundo. O autor nos
instiga a “sair da lógica binária, violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos
– ou a literatura fala do mundo, ou então a literatura fala da literatura –, e voltar
ao regime do mais ou menos, da ponderação, do aproximadamente; o fato de a
26 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

literatura falar da literatura não impede que ela fale também do mundo.” (Com-
pagnon 2014: 123).
O autor se esforça em identificar saídas para este impasse, esta interdição
que cisma em fragmentar aquilo que fenomenologicamente é indissociável. Ri-
coeur (2012) e sua narratologia são recuperados pelo esforço de articulação da
tripla mimesis, por exemplo, apontando para a associação do escritor, do mundo
e do leitor. Trata-se de uma fenomenologia que recupera o peso da referenciali-
dade (a materialidade histórico-cultural e simbólica), sem simplificar a experiên-
cia de escrita e de leitura ao psicologismo (a biografia do autor, as condições de
recepção).
Neste sentido, poderíamos pensar o elo entre geograficidade e literacidade:
como modos de ser-e-estar-no-mundo, articulando a referencialidade (em sua
multiplicidade) e suas formas de expressão.
Em vista disso, nas obras literárias é possível sempre perceber a geografi-
cidade inerente, como parte da própria obra. Basta que aprendamos a lê-la e a
senti-la. Mas as geografias literárias, por outro lado, ainda precisam ser compos-
tas. Envolve compreender as geografias literárias na colisão com as literaturas
geográficas.
Mas, de que se trata?
Em 1961, o crítico literário pernambucano Mauro Mota publicou Geografia
literária. Este pequeno livro instigante trazia algo que hoje parece singelo: uma
coletânea de ensaios entre Geografia e Literatura. Autor de vasta cultura, em
um tempo de conhecimentos menos fragmentários, ele defende a importância
da Geografia (humana, na época) intercalando com comentários sobre Gilberto
Freyre e outros autores nordestinos, além de um ensaio em particular intitulado
“Geografia na literatura”. Este é um compêndio de romances que contêm, na
visão do autor, Geografia, e por isso mereciam atenção do geógrafo naquilo que
traziam de conhecimento geográfico.
Segundo Collot (2012, 2014), o termo atravessou o século XX, presente nos
estudos literários, buscando evidenciar os vínculos dos autores com seus luga-
res. Mais recentemente, o geógrafo Tiago Vieira Cavalcante recupera o termo em
seu estudo de Rachel de Queiroz, buscando entrelaçar vida e obra da escritora
cearense por meio de suas geografias materiais e imateriais (Cavalcante 2019).
Esta perspectiva busca um limiar para além do embate “literatura fala do mundo”
ou “literatura fala de literatura”, identificando pela expressão a ultrapassagem
deste limite, compreendendo a ampliação que a geografia literária oferece “so-
bre o espaço geográfico, mas também o quanto esse espaço é ressignificado
por e para aqueles que acreditam na potência da palavra em transformar vidas”
(Cavalcante 2020: 193).
E as literaturas geográficas? Estas, me parece, ainda estão por serem res-
gatadas, ou redesenhadas, a partir do entendimento da literacidade (como a
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
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Eduardo Marandola Jr.

narratividade ricoeriana) como parte constituinte do mundo, e não como um es-


tilo ou estética. Conceber a literacidade como modo de ser-e-estar-no-mundo
redefiniria a relação do texto com a experiência. Nem representação, nem ilusão,
mas co-constituição. O texto, a escrita, a narrativa, no entrelaçamento da tríplice
mimesis, remete ao papel criador e constituinte do mundo, ao mesmo tempo em
que expressa o caráter literário da existência. Como mostra Maria Luiza Ramos
(2011), a obra literária manifesta diferentes temporalidades sendo, ao mesmo
tempo, parte constituinte delas. Esta hermenêutica da historicidade, compreen-
dida na perspectiva do ser-no-mundo heideggeriano (Heidegger 2012), nos pro-
voca a uma perspectiva radical da literatura e, por que não, da geografia.
A colisão geografias literárias-literaturas geográficas, portanto, seria mais
que a indicação de elementos da paisagem, do realismo e da conexão Geogra-
fia-Literatura pela verossimilhança avalizada pela verdade científica. Seria mais
do que o entrelaçamento dos fios da vivência dos autores e suas narrativas. Tra-
ta-se de um plexo essencial, algo que nos provoca à composição de literaturas
geográficas e geografias literárias. No âmbito dos movimentos interdisciplinares
e transdisciplinares contemporâneos, envolve a sugestão de mútuo-pertencer
entre elas, pautado não na diluição de suas especificidades, mas no reconheci-
mento de sua presença mundana.
O caminho para isso está no desdobramento do entendimento quase lacôni-
co de que geografia está no mundo – geografia é mundo; literatura está no
mundo – literatura é mundo: geografia-literatura-mundo.

ESPAÇO, NARRATIVA, SER


Como ensaio, a sequência do texto traz à baila os três termos que compõe
o subtítulo, a propósito de buscar a colisão geografias literárias-literaturas geo-
gráficas.
Espaço é uma essência do geográfico e, enquanto tal, também é uma essên-
cia da existência (Malpas 2008). Trata-se de uma das formas como a geografici-
dade se manifesta. As coisas se distribuem, se distanciam, se aproximam, se es-
tendem, se juntam, se fragmentam, se condensam, se reúnem. Todas são ações
espaciais que não se limitam ao plano material, mas também se expressam no
imaterial, no simbólico e na topologia do Ser, ou seja, na geografia intencional
das aproximações e das distâncias situadas (Dardel 2011). Em vista disso, o es-
paço mantém uma relação de cumplicidade muito especial com a cultura, o que
permite ao espaço vir à existência pela diversidade.
O resultado desta relação é uma diversidade espacial culturalmente cons-
truída e significada, a qual permite que haja, em última análise, a diferença
entre as formas de ser-e-estar-no-mundo. Sem esta diferenciação essencial,
28 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

espaços-cultura, não haveria como o eu não ser todos ao mesmo tempo em


que todos seriam apenas um. O caráter heteronômico do espaço e seu caráter
eventuamental forma a base desta maneira de imaginá-lo, como acontecimento
e ontologia (Romano 1999).
Este sentido é muito bem conversado por Italo Calvino em suas Cosmicômi-
cas (Calvino 1992). Neste livro, Calvino narra as peripécias de Qfwfq, um perso-
nagem cósmico-antropomórfico que existe desde antes do mundo. Calvino pre-
facia todos os contos com uma afirmação axiomática da Ciência e escreve, em
primeira pessoa, em tom memorialístico, a experiência de Qfwfq daquele fato.
No caso específico, lembro-me do conto “Tudo num ponto só”, na famigerada
densidade absoluta pré-Big Bang, quando toda matéria do universo estaria em
um único ponto, condensada. Qfwfq narra o cotidiano daquele tempo como um
tempo em que todos estavam juntos, sem espaço. Ou seja, o espaço não exis-
tia. Fala de parentes, de vizinhos, de coisas que faziam. Lembra com nostalgia
o tempo em que viviam apinhados, mas eram todos mais próximos. Quando a
grande explosão aconteceu, todos se separaram, cada um no seu próprio espa-
ço. Nasce o espaço da distância, delimitado por relações topológicas e pela ação
intencional. Este é um espaço de relações, do envolvimento e da proximidade.
Outra narrativa, “Um sinal no espaço”, revela adicionalmente a ligação que
quero expressar e a diversidade de espaços possíveis. Nele, Qfwfq afirma que
rodava e rodava fazendo translações pelo universo e não havia diferenciação.
Era como estar sempre no mesmo lugar, sem saber em que plano ou ponto se
estava. Até o dia que resolveu fazer um sinal. Algo que era apenas dele, que
demarcava sua passagem, sua própria individualidade, sua personalidade. Era
algo que ninguém mais havia feito, algo que só veio à existência por ele. A partir
daquele sinal, Qfwfq passou a contar a distância e o tempo da translação para
poder contemplar novamente o seu sinal, aquela singularidade, que expressava
sua forma se ser.
No entanto, após um ou dois ciclos, apareceram outros sinais, considerados
por Qfwfq como imitações de mal gosto de seu gesto original, fundador. Era
uma afronta, uma declaração de embate, de desafio. A imitação, no entanto,
feita à perfeição, tornou-se indiferenciada a ponto de Qfwfq não conseguir mais
distingui-los, apesar de seus continuados esforços. O espaço ora indiferenciado,
estava agora marcado, cheio de sinais. Não era mais uma indiferenciação, mas
era seu excesso, de tal modo marcado por formas de vida, por expressões e ela-
borações e reelaborações que assumiu uma densidade vertiginosa, labiríntica.
O espaço se mostra, portanto, como expressão cultural, como externalização de
um trabalho coletivo, uma ação intencional que não é a expressão meramente
de si, mas do conflituoso movimento de identidade, diferença e reconhecimento.
Estes são apenas alguns dos espaços, enquanto essências geográficas, que
podem ser revelados na literatura. Mas há muitos outros. Por outro lado, são as
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
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Eduardo Marandola Jr.

narrativas, enquanto arte e linguagem, que ampliam e diversificam as possibili-


dades de desdobramento e composição destas geografias.
A narratividade está associada diretamente ao texto literário, mas não se li-
mita a ele, ao menos se considerarmos o contexto da composição da intriga
(mythos) tal como compreendido por Ricoeur (2012). Por exemplo, os geógrafos
parecem ter se esquecido que também fazem narrativas. E não me refiro apenas
aos geógrafos que trabalham com abordagens qualitativas, com memória oral
ou entrevistas em profundidade. Como conhecimento comprometido com a dife-
renciação espaços-cultura, a Geografia compõe narrativas de lugares, de paisa-
gens e de grupos sociais. No entanto, estas não são compreendidas como vistas
narrativas, atribuindo-lhes o sentido de relato ou descrição rasa. O geógrafo faz
o mais difícil: exclui artificialmente da narrativa o narrador, ele mesmo, objetivan-
do seus personagens, submetendo a memória à história cronológica e factual.
Como resultado, ele retira toda a vida da narrativa e, com isso, dos lugares. Em
outras palavras, exclui toda a literacidade de sua escrita.
Sabemos que, como já mencionado, essa situação não é uma constante na
história da disciplina. Como não nos lembrarmos de narrativas vívidas de autores
como Alexander Von Humbolt, Orlando Ribeiro, Aziz Ab’Saber, Paul Vidal de La
Blache, dentre tantos outros que mesmo no contexto da Geografia Moderna, tra-
ziam uma perspectiva menos fragmentada das relações entre Ciência, Literatura
e História. Mas este tempo parece ter passado há muito pelo retrovisor.
Qual o caminho de volta, para uma literatura geográfica, narrativa? É, eviden-
temente, reaprender com a literatura. Esta compõe e compartilha experiências
de mundo. É por isso que, segundo Todorov (2009), a literatura continua a ser
fundamental no mundo contemporâneo: é desta capacidade de ampliar a expe-
riência do mundo que vem toda a força reveladora da literatura. A diferenciação
espaços-cultura se manifesta na diversidade de experiências possíveis e com-
partilhadas.
Retomar o caminho das geografias literárias, portanto, é reaprender a narrar,
reaprender a incorporar a experiência, pensando-a como conhecimento e como
potência, pensando também como literatura geográfica. Significa não esconder
o narrador, nem as personagens e suas ambiguidades. Significa, portanto, per-
mitir ao texto estruturas diversas, sombras, metáforas e, por que não, alguns
enigmas e becos sem saída.
Se ler é tomar contato com possibilidades e com formas próprias de exis-
tência, o texto do geógrafo tem que permitir, tanto quanto o texto literário, esta
experiência (Marandola Jr. 2016). Repensar a narrativa, enquanto arte e lingua-
gem, é um dos caminhos possíveis, repensando, no caminho, o ato científico
como gesto de escrita.
Isso nos leva ao terceiro e derradeiro termo a ser tratado: Ser. Na verdade,
ele esteve presente durante todo o texto, em geral com seu correspondente
30 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

mundo. A ligação que se pretende vem da ontologia heideggeriana do Dasein,


que envolve uma circunstancialidade e uma abertura. É ser-aí, ou, à soleira, cui-
dando.
Dasein na ontologia fundamental de Heidegger (2012) está mergulhado em
uma cotidianidade mundana. As experiências do mundo da vida estão ligadas
a um movimento de exteriorização, um movimento contínuo que se refere à
ex-sistência, ou seja, à excedência que não está voltada nem circunscrita à
consciência (Heidegger 2008). A ex-sistência se dá no horizonte da tempo-
ralidade, e por isso a topologia da existência se refere, como mostra Malpas
(2008), à dinamicidade ser-no-mundo nas emergências e coexistência de lu-
gares.
Esta perspectiva articula de forma direta historicidade (temporalidade) e geo-
graficidade (espacialidade), tal como as proposições de Dardel (1946, 2011) tão
bem expressam. O espacial, neste caso, especialmente no Heidegger pós-vira-
gem, aprofunda a topologia já presente em “Ser e tempo”, mas a radicaliza: as
distâncias e as proximidades são existenciais, e a situacionalidade própria da
existência não se movem por espacialidades, mas as constituem, a partir dos
próprios lugares (Marandola Jr. 2020b).
Ser-no-mundo, seria, portanto, expressão-modo das formas e dimensões da
existência, as quais são vividas em espaços-cultura diferenciados e compartilha-
das enquanto experiências por meio de narrativas (escritas ou não). A literacida-
de desprende-se também do texto escrito, embora encontre nele um meio de
composição, assim como a geograficidade não se limita aos meios consagrados
às ciências geográficas, podendo manifestar-se e expressar-se de diferentes for-
mas e por meio de distintas linguagens.
É importante lembrar que Heidegger tinha como inquietação retirar o Ser
de seu ocultamento que, em sua interpretação, era fruto da técnica e da lin-
guagem moderna, estendendo-se assim às ciências e às formas de lingua-
gem. Nossa literatura moderna não escapa deste ocultamento. Muito com-
prometida com os mesmos valores das ciências, a literatura também precisa
traçar um caminho em busca do desocultamento que, segundo Heidegger
(2001), permitiria ao ser humano ter uma existência autêntica, ligada ao mun-
do, em íntima relação com a Terra, o Céu, os mortais e os deuses (sua famosa
quadratura que expressa o sentido do habitar a terra). Não há dúvida de que
a literatura é uma das formas de conhecimento que tem grandes potenciali-
dades neste sentido.
Se queremos geografias literárias e literaturas geográficas que expressem as
experiências de mundo, estas precisam ter presente a questão do Ser enquanto
uma tarefa do pensamento: o desafio de pensar junto às dimensões próprias da
existência, ou seja, mais próximo da geograficidade e da literacidade do mundo
em sua cotidianidade.
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
31
Eduardo Marandola Jr.

ESCRITURAS DO MUNDO
Talvez este ensaio tenha se estendido desnecessariamente quando, na ver-
dade, ele possui uma mensagem bem mais simples: buscar a colisão geografias
literárias-literaturas geográficas implica, dentre muitas coisas, assumir que tanto
a Geografia quanto a Literatura são escrituras do mundo. Ser escritura do mundo
implica, no entanto, que tal ofício não seja restrito a praticantes profissionais,
mas que, como geograficidade e literacidade, tais escrituras aconteçam de ma-
neira cotidiana na existência mundana.
Retornamos, assim, ao cerne do argumento do texto, qual seja: o embate
entre perspectivas de conhecimento modernas, que se pautam pela objetivida-
de, a divisão estrutural do conhecimento e sua racionalidade, e uma perspectiva
que denuncia os limites de uma visão epistemológica do mundo e da existência,
fissurando tal edifício a partir da espacialidade, da narratividade e da ontologia.
Neste trajeto, é interessante retomar a ponderação de Rancière (1995) a
respeito da mudança operada entre os séculos XVIII e XIX da Literatura como
conjunto de estudos dedicados a um tema, como um saber (as belas-artes) para
um exercício da arte da escrita, tal como conhecemos hoje. Para o autor, houve
um deslizamento de sentido que foi interpretado comumente como uma comple-
mentaridade e como continuidade, mas que o autor salienta o caráter de ruptura
fundamental operado justamente na constituição das Ciências Modernas. Para
Rancière, o que se perdeu no deslizamento foi justamente a conexão com os
saberes tradicionais, constituindo-se no rompimento com uma longa tradição de
transmissão de saberes que poderiam ser remontados até a antiguidade clássi-
ca.
Segundo Rancière (1995: 29), a literatura moderna se constituiu justamente
como substituta, a partir das margens (o romance e a poesia lírica), operando
na supressão pela impossibilidade da continuidade da tradição (a eloquência e
a poesia épica e dramática, respectivamente), cedendo “lugar ao ato indiferen-
ciado e à arte sempre singular de escrever”. O autor busca refletir os esforços
de localização da literatura na Modernidade, chegando à dificuldade inerente de
encontrar um corpo para ela: “a literatura não aloja a si mesma”, é expressão de
tal situação incômoda de uma posicionalidade entre a ficcionalidade e o vácuo
deixado pelo deslizamento de sentido. Rancière (1995: 50) afirma:
Ela se aloja no espaço dessas aventuras da letra onde o ciumento que quer fazer com
que os corpos falem responde ao louco que quer dar corpo às palavras, nesse espa-
ço delimitado por duas fábulas-limite [...]. A literatura não existe nem como resultado
de uma convenção nem como efetuação de um poder específico da linguagem. Ela
existe na relação entre uma posição de enunciação indeterminada e certas fábulas
que põem em jogo a natureza do ser falante e a relação da partilha dos discursos
com a partilha dos corpos.
32 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Talvez a situação da Literatura e da Geografia sejam, novamente, mais próximas


do que aparentam. Poderíamos pensar algo semelhante para a ciência geográfica,
que ficou a meio caminho das Ciências da Natureza e das Ciências Humanas, an-
corada em um regime discursivo de verdade calcado igualmente na tradição das
Humanidades e no monismo metodológico oriundo da Ciência Moderna. A força
da Geografia, poderíamos parodiar Rancière, não está em um poder específico do
Método e de sua linguagem, mas em certas fábulas que colocam a natureza do ser
falante no contexto da partilha dos argumentos e a partilha dos corpos.
Em ambos os casos, no entanto, seria necessário considerar que o “espaço
dessas aventuras da letra” é geográfico, que a partilha e a natureza do ser fa-
lante se dá geograficamente, resultando em geografias literárias e literaturas
geográficas.
As escrituras de mundo seriam, portanto, compostas por diferentes regimes
de produção e linguagens, nos quais os limites entre Arte e Ciência estariam
permanentemente imprecisos e borrados. A preocupação com a delimitação da
natureza da relação Geografia-Literatura é pouco relevante neste plano, espe-
cialmente se considerarmos que alguns dos regimes de conhecimento e disposi-
tivos de validação contemporâneos têm como objetivo a exclusão da existência
e a circunscrição da Literatura e da Geografia a seus respectivos territórios dis-
ciplinares estaríamos, talvez, antevendo (ou provocando/desejando?) algum tipo
de deslizamento(s).
Poderíamos conceber uma Geografia como escrita do mundo, em sua litera-
cidade? Poderíamos conceber uma Literatura como escrita do mundo, em sua
geograficidade? Ainda parece, ao final do ensaio, que responder positivamente à
segunda pergunta é mais factível do que à primeira. Ou será apenas um ponto de
vista enviesado? Afinal, aquele momento mágico em que todos estavam juntos,
no mesmo ponto, apinhados na indiferenciação, não existe, mas sua projeção
como imaginação permite todas as escrituras de mundo possíveis. Talvez possa-
mos pensar em um jogo topológico de aproximações e distanciamentos que per-
mitam abeiramentos e indistinções, como forma de conceber, ontologicamente,
geograficidades e literacidades para além da Geografia e da Literatura.

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Title
Literary geographies and geographical literatures: space, narrative and Being

Resumo
A propósito da pergunta pela relação Geografia e Literatura, o ensaio busca uma
perspectiva ontológica para compreender as geografias literárias e as literaturas
geográficas em colisão. Espaço, narrativa e Ser são dispositivos desta reflexão, des-
dobrando as consequências de uma perspectiva orientada para a geograficidade e
para a literacidade do ser-no-mundo. A escrita do mundo é apresentada como um
ponto de convergência, de aproximações topológicas como narratividade.
Palavras-chave: Geograficidade; Literacidade; Ser-no-mundo; Escrita.

Abstract
With the aim of reflect the question of the relationship between Geography and Lite-
rature, this essay seeks an ontological perspective to understand literary geographies
and geographical literatures in collision. Space, narrative and Being are the devices
of this reflection, unfolding the consequences of a perspective oriented towards the
geographicity and literacy of being-in-the-world. The writing of the world is presented
as a point of convergence, of topological approximations as narrativity.
Keywords: Geographicity; Literacy; Being-in-the-world; Writing.
LITERATURA E AMBIENTE:
imagens do ambiente natural e humano
na ficção literária portuguesa*

ANA CRISTINA CARVALHO*

1.
Que imagens do ambiente natural e da paisagem humanizada lavraram os
escritores da Literatura Portuguesa nas suas obras de ficção? Em que moldes
nos legaram um certo conhecimento da nossa geografia física, incluindo a na-
tureza climática, e da nossa ecologia humana, entendida esta como o vínculo
orgânico entre os habitantes e os recursos naturais de que dispõem? Há nos
romances, novelas e contos portugueses matéria relevante à luz das modernas
questões ecológicas, suscetível de conduzir a literatura até ao palco dessas
inquietações?
Estas são perguntas clássicas e centrais da Ecocrítica literária – que ex-
plora a Literatura e a Poesia com foco no seu teor ecológico, paisagístico e
da relação humana com a Natureza, na certeza de que muitos textos literários
guardam um potencial de consciencialização e sensibilização geográfica e am-
biental útil às sociedades do presente e do futuro.
Já este século, o meio académico português das Letras e das Ciências Am-
bientais foi timidamente aderindo a esse campo interdisciplinar, com artigos
e publicações de vários investigadores e encontros científicos no contexto de
diferentes instituições de ensino e ciência. Faltava, porém, um projeto editorial
de fundo que, numa lógica de diálogo entre as linguagens científica e artística,
olhasse a Literatura Portuguesa sob o signo das temáticas ecológicas e climá-
ticas que vêm progressivamente agitando o mundo.
Esta necessidade deu origem à coleção “Literatura e Ambiente”. Dirigida
a partir do Centro de Investigação Interdisciplinar da FCSH Nova, é coeditada
por oito investigadoras de seis universidades e politécnicos – Universidade
Nova de Lisboa, Instituto Politécnico de Beja, Universidade da Beira interior,
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Universidade de Coimbra e Uni-
versidade do Algarve –, publicada pelas Edições Colibri e cofinanciada pela
Fundação para a Ciência e Tecnologia.

*
Cics.Nova, FCSH Nova de Lisboa.
36 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Na sua primeira fase, consta de cinco volumes, seguindo uma organiza-


ção geográfica conforme às antigas províncias de 1936, as quais, apesar das
subsequentes reorganizações territoriais, permanecem como referências cul-
turais e identitárias dos portugueses. Inaugurada em Maio de 2021 com Alen-
tejo(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção, numa
parceria entre a FCSH Nova e o Instituto Politécnico de Beja, teve o segundo
volume – Beira(s) – … publicado já em 2023, em edição conjunta FCSH Nova
e Universidade da Beira Interior, e tem prevista para Dezembro próximo a pu-
blicação do 3.º – Minho. Douro e Trás-os-Montes, a que se seguirão Ribatejo
e Estremadura e Algarve, ambos atualmente em preparação. Numa segunda
fase, seguir-se-á o volume dedicado à Madeira e aos Açores, um sétimo focado
nas grandes áreas de Lisboa e Porto e, por último, um dedicado ao Litoral e ao
Mar português.

2.
Vencido o dilema metodológico de que partição territorial adotar na sequên-
cia dos volumes, o planeamento global da coleção e a organização de cada livro
seguiram uma metodologia centrada nos conteúdos (escritores e obras a estu-
dar) e no perfil de colaboradores (autores, revisores dos capítulos e entidades
coletivas envolvidas). Limitações temporais, assim como de espaço editorial e
financiamento ditaram que os autores de capítulo se obtivessem por convite di-
reto, tendo-se prescindido da habitual chamada para apresentação de artigos.
Esses convites obedeceram a critérios de autoria prévia de trabalhos acadé-
micos e/ou organização e moderação de encontros na área interdisciplinar da
Ecocrítica ou outros estudos na interface Ambiente e Literatura. Procurou-se
uma diversidade e um equilíbrio entre nomes oriundos dos campos da Teoria Li-
terária, Etnografia e da Geografia e Ciências Naturais. Outro critério foi a diver-
sidade de centros de investigação de origem, visando o máximo de cooperação
institucional, critério extensível aos revisores científicos, já que era imperativo o
escrutínio mediante revisão duplamente cega por pares.
Ao nível dos conteúdos, optou-se por uma coleção maioritariamente cen-
trada na literatura de ficção dos séculos XIX, XX e XXI, da mais interventiva à
mais contemplativa. O conjunto de obras analisadas em cada livro resultou
ora de propostas dos próprios autores ora de sugestões feitas pelas organi-
zadoras, em resultado de leituras exploratórias de obras sobre cada região
geográfica em apreço. No propósito de uma obra abrangente porém sem in-
tenção antológica, os escritores a abordar devem cumprir o critério de reco-
nhecimento histórico por parte do público, por forma a que o potencial de
consciencialização ambiental e geográfica das suas obras venha a alcançar o
maior número possível de leitores. Várias exceções foram aceites, sempre que
LITERATURA E AMBIENTE: IMAGENS DO AMBIENTE NATURAL E HUMANO NA FICÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA
37
Ana Cristina Carvalho

os autores de capítulo justificaram a sua opção. Mesmo assim, alguns vultos do


nosso panteão literários são incontornávei: não se pode lançar um livro sobre
a representação literária da paisagem alentejana sem nele incluir Manuel da
Fonseca, por exemplo; nem publicar o mesmo modelo relativo ao ambiente
beirão sem Aquilino Ribeiro, para citar o nome mais emblemático dessa geo-
grafia; ou fechar o volume do Norte de Portugal sem saber como é figurada a
região nas páginas de Camilo Castelo Branco; nem finalizar o número do Riba-
tejo sem ter contemplado o olhar de Alves Redol sobre os avieiros do Tejo; ou
ainda terminar o livro sobre o ambiente e a paisagem algarvios sem ouvir com
atenção as palavras de Manuel Teixeira Gomes ou Lídia Jorge.

3.
A premissa de que a Literatura Portuguesa se caracteriza por uma riqueza de
conteúdo capaz de subsidiar a literacia dos leitores quanto ao património am-
biental e paisagístico, quanto a conceitos da clássica Ecologia e quanto a algu-
mas problemáticas ambientais ficou profusamente ilustrada nos dois volumes já
publicados. Em alguns capítulos essa valência é mais evidente, mais acentuada
ou até mais pura do que noutros, mas em todos deixa forte presença. No n.º 1,
Alentejo(s) – …, e a título meramente exemplificativo, conhecemos a “geografia
1
afetiva” de Urbano Tavares Rodrigues, entre Moura e a fronteira com Espanha;
2
o “Sentir perdidamente a paisagem” do interior alentejano nos contos e poe-
mas de Florbela Espanca; a planície povoada de trabalhadores, “animizada e
3
animalizada, humanizada” , que José Saramago lavrou em Levantado do Chão
(1980); as descrições das estações e da luminosidade do sul nos três romances
que Manuel Ribeiro, “autor de referência do neorromantismo português, o mais
4
lido em Portugal na década de vinte do passado século” , consagrou ao Baixo
Alentejo. O neorrealismo de tema exclusivamente alentejano surge bem repre-
sentado através do romance de 1960 Suão, de Antunes da Silva, que transmite
“uma natureza entre o hostil e o aprazível, fortemente manifestada na compo-
nente clima”, fazendo a “denúncia do insustentável viver dos labutadores rurais
5
do Alentejo da época, agravado pelo fenómeno atmosférico” que lhe serve de
título:
Era verdade que a planície morria de sede nos anos de torrina. Desde o alvor da ma-
nhã à biquinha da noite, nem um susto de aragem, mesmo morna que fosse. Nada.
Só sol e poeira […]. Nem uma pinga de água por certos caminhos abandonados,

1
Expressão do título do Cap. 9, de Joana Portela (Univ. Évora).
2
Expressão do título do Cap. 12, de Teresa Mendes e Luís Miguel Cardoso (Inst. Polit. Portalegre).
3
Cap. 4 (p.86), de Carlos Nogueira (Univ. Vigo).
4
Cap. 1 (p.33), de Gabriel Rui Silva (apos. Univ. Évora).
5
Cap. 8 (p.163), de Ana Cristina Carvalho (Univ. Nova de Lisboa).
38 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

léguas e léguas sem um chafariz, um riacho vagabundo, uma fontainha salvadora.


Mas também era verdade que o deserto de pão estendia-se ao comprido pelo mundo
alentejano e amadurecia com os beijos brutais do astro-rei. Os homens já tinham
armado as raízes da alma às brasas do clima, pondo para trás das costas os primores
de um coito de verdura.

Estes e os restantes exemplos permitiram construir uma geografia literária,


de entre outras possíveis, das antigas províncias Alto e Baixo Alentejo, hoje
Região Alentejo, a partir da localização aproximada (ao nível do concelho) dos
cenários principais das 23 obras analisadas no livro [Fig. 1].

Fig. 1. Geografia Literária representada no livro n.º 1, Alentejo(s):


Fonte do mapa base: Comissão de Coordenação Regional do Alentejo
https://www.ccdr-a.gov.pt/index.php/10-regiao-alentejo/regiao-alentejo

No volume n.º 2, Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na litera-


tura de ficção, afluem igualmente os exemplos da presença da temática ambiental
e geográfica nos textos ficcionais dos nossos escritores. Nele avizinhamo-nos do
6
“Diálogo com a montanha” da Estrela e da “geografia romanesca” que Ver-
gílio Ferreira foi criando em boa parte da sua obra; viajamos até às “pátrias
7
namoreanas” polarizadas entre a Serra de Sicó, Coimbra e a campina interior de
Monsanto; lemos as expressões vivas da Serra do Caramulo em contos e novelas

6
Expressão do título do Cap. 1, de Jorge Costa Lopes (Univ. do Porto).
7
Expressão do título do Cap. 6, de Rui Jacinto (Univ. Coimbra e Centro de Estudos Ibéricos).
LITERATURA E AMBIENTE: IMAGENS DO AMBIENTE NATURAL E HUMANO NA FICÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA
39
Ana Cristina Carvalho

8 9
de Tomás e Branquinho da Fonseca ; percorremos as “paisagens fluviais” , as
águas e as galerias ribeirinhas da “terra nativa”, que Ferreira de Castro legou
no seu romance de estreia, Emigrantes (1928): “O azul do Caima ia-se tornando
negro, a água confundia-se já com a terra, sob o mesmo véu escuro, e os amiei-
ros, apagado o recorte da folhagem, ficavam ali como vultos de sonho, como
embuçados perscrutando o mistério da noite.”
Como em todos os volumes, também este se inicia com um texto “ilustrativo”
do vigor da Literatura Portuguesa na representação da identidade geográfica e
biofísica do território português: é o texto de 1916 A Beira (num relâmpago), de
Teixeira de Pascoaes:
São João de Areias também lá vai… E a sua ausência, que tem um aspeto iluminado
e harmonioso de fogueiras e descantes, começa a notar, com tristeza, o fim da Beira
Alta.
As árvores emagrecem, a terra põe-se amarela; as casas são dum barro frágil, como
os seus moradores; e o verde, num clássico gesto lutuoso, cobre-se de cinza, na pai-
sagem que, desolada, se precipita no Mondego. O rio é lágrima profunda, deslizando
pela face dum cadáver. Alguns pinheiros marginais lembram círios abrindo, ao alto,
em triste flama verde-negra; a sua luz de sobra extática escurece o ermo melancólico
dos montes.
Dir-se-á que a alma da Beira, descarnada, anda a penar, neste trecho solitário e do-
loroso do Mondego. Aqui, não é o Mondego das lágrimas de Inês, camoniano, que
banha os campos de Coimbra; é um Mondego cismático e obscuro: líquidos crepes
adormecidos.
A ponte de Tábua liga duas almas: a do Norte, verde, montanhosa, activa, de granito,
e a alma do Sul, lívida e plana, como caída numa síncope.

4.
Os três livros concluídos reuniram um painel de cerca de meia centena de
investigadore/as, que assinam os ensaios onde releem, sob a perspetiva eco-
crítica, a ficção de dezenas de escritore/as portugueses, onde se incluem os já
referidos e ainda Almeida Garrett e Júlio Dinis, José Luís Peixoto e Mário de Car-
valho, Vitorino Nemésio e Miguel Torga, Fialho de Almeida e Manuel Alegre, Eça
de Queiroz e José Rodrigues Miguéis, Agustina Bessa-Luís e Carlos de Oliveira,
João Araújo Correia e Manuel Ribeiro, etc.
O Quadro 1 sintetiza em termos numéricos, com base nos três primeiros vo-
lumes, a natureza abrangente que esteve na base do planeamento da coleção
“Literatura e Ambiente”: em termos quer de conteúdo – escritore/as e obras

8
Cap. 11, de Maria Mota Almeida (Escola superior de Turismo do Estoril) e Teresa Branquinho (Biblioteca
Municipal de Mortágua).
9
Expressão do Cap. 13, de Maria Ilheú (Univ. Évora).
40 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

ficcionais estudados – quer do envolvimento de investigadores e revisores


científicos e suas afiliações institucionais (Ensino Superior e Cultura, centros de
investigação, associações ambientalistas e cívicas, etc.). Entre estas entidades,
autores de capítulos, revisores científicos, ilustradores e fotógrafos, procurou-se
10
uma rede colaborativa que transpõe as fronteiras de Portugal .

Quadro 1. Magnitude numérica do universo literário português estudado e do envolvimento


institucional nos primeiros três volumes da coleção “Literatura e Ambiente”

É evidente que vários desafios se colocam a um trabalho desta extensão.


Desde logo, a referida duplicidade de áreas académicas e profissionais dos auto-
res, assim como a tónica interdisciplinar, mais fácil de projetar do que de concre-
tizar, que podem resultar em menor homogeneidade formal e metodológica do
conjunto de artigos. Mas assumem-se essas diferenças com os olhos postos no
objetivo de trilhar percursos novos que exaltem as vozes dos nossos escritores
na sua celebração da terra e do povo, partindo delas para delinear uma Geo-
grafia Literária enraizada no nosso território (necessariamente não exaustiva),
composta por muitas geografias vivenciais, afetivas e ideológicas vertidas para
a escrita ficcional.
A coleção “Literatura e Ambiente” encontra-se disponível online em acesso
aberto, mas tem edição cuidada também em papel, propondo-se ao meio acadé-
mico e simultaneamente a um público mais amplo, interessado, curioso quer da
arte literária quer das questões ambientais e da sustentabilidade da relação ser
humano – Natureza.

10
Note-se que apenas é possível saber o total exato do número de obras ficcionais já analisadas e do número
de universidades estrangeiras já envolvidas, pois os valores das restantes colunas podem incluir repetição,
em dois ou mais volumes, de escritores estudados, autores de capítulo e instituições.
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA:
A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS
ESCRITORES*

RUI JACINTO**

1. APRESENTAÇÃO
O título do presente ensaio sinaliza um tema, um espaço e sugere a revi-
sitação de obras de escritores que, por força do nascimento ou outra circuns-
tância, estabeleceram uma relação íntima e cúmplice com a velha Beira, atual-
mente designada por Região Centro de Portugal. Importa explorar a ficção que
retrata múltiplas facetas duma região diversa, retalhada por imprecisas fron-
teiras, limites de unidades relativamente homogéneas que são correlativas das
usadas habitualmente para interpretar dicotomicamente o país. Tais assime-
trias, embora estruturantes, não deixam de expressar uma visão maniqueísta,
portanto redutora, onde o litoral se opõe ao interior, o urbano ao seu entorno
rural e o Norte surge em contraponto ao Sul.
A Beira é, pois, um espaço de transição onde coexistem reminiscências
do Norte, mais húmido, de maior pendor atlântico, com uma topografia mais
movimentada, onde impera o minifúndio, e do Sul, mais seco, que antecipa
a peneplanície mais vazia, onde se instalou o latifúndio e os horizontes mais
fundos e luminosos preanunciam o Mediterrâneo. Retalhos de muitas obras
literárias descrevem as subtilezas desta Geografia e a sua sensibilidade su-
pera as descrições técnicas que se esgotam, quase sempre, em epidérmicas
interpretações setoriais e restritivas. É possível detetar em algumas páginas o
diálogo subtil, implícito e não assumido entre certos escritores e alguns geó-
grafos, sobretudo os da geração fundadora da moderna Geografia portuguesa,
onde pontificam Amorim Girão, Orlando Ribeiro ou Alfredo Fernandes Martins.
O conteúdo das respetivas descrições parece irmaná-los na ideia que Miguel
Torga preconizava, de se escrever um “capítulo do íncola da Beira numa coro-
grafia da Beira” (Diário II 1943: 147).

*
Texto publicado em: Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção.
**
CEGOT, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Ibéricos (CEI)
42 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

A Geografia literária da Beira é esboçada por muitos escritores que cen-


traram a sua obra na região, onde relevam os que começaram a publicar na
terceira década do século XX, coincidindo, aliás, com o arranque mais explícito
da investigação geográfica. Uns e outros receberam forte influência do Guia
de Portugal (1924-1966), obra lapidar que se afirmou como um verdadeiro atlas
literário e geográfico do país. Raul Proença, que concebeu este projeto de
envergadura, teve a arte e o engenho de envolver na sua concretização escri-
tores, geógrafos e outros especialistas, fazendo do Guia o modelo duma certa
Geografia literária.
Esta abordagem, focada na leitura e interpretação da Beira, é estruturada
a partir de duas coordenadas fundamentais: i) a importância do diálogo entre
Geografia e Literatura, a importância da viagem e do diálogo, formal ou in-
formal, entre o geógrafo e o escritor; e ii) os lugares de origem, a que muitos
escritores reportam a respetiva ficção, permitem uma leitura enriquecida do
território e, a partir desta perspetiva, assegurar uma reinterpretação mais as-
sertiva da Beira.

2. O MAPA E O LIVRO: GEOGRAFIA, LITERATURA E AS


LEITURAS DO TERRITÓRIO
2.1. Geógrafos e escritores: diálogos entre Geografia e literatura

A escrita com que os geógrafos descrevem as suas observações não dei-


xa de ter um paralelismo com a Geografia a que recorrem os escritores na
respetiva ficção. Esta permeabilidade denuncia as fronteiras artificiais que se
estabeleceram entre Geografia e Literatura como, em sentido mais amplo, as
supostas divisões entre Arte e Ciência. No seio da Geografia, a partir da dé-
cada de setenta do último século acabou por se desenvolver uma corrente de
pendor humanista, de reação crítica à perspetiva positivista, então dominante,
que se havia imposto desde o advento da moderna Geografia, em meados do
século XIX. Os que se enquadraram nesta corrente, onde encontramos autores
como A. Bailly, Y.-F. Tuan, D. C. Pocock e W. Holzer, advogavam ser impor-
tante dar mais atenção à vivência, à experiência e às virtualidades criativas do
comportamento humano, pugnando por um diálogo estreito entre Geografia e
Literatura para uma compreensão mais holística dos lugares, das paisagens e
do mundo vivido (Jacinto 2021).
Esta corrente emergiu num momento de crise intensa ocorrido a todas as
escalas, da global e nacional à regional e local, acompanhada de fortes mu-
danças que em alguns aspetos tem ingredientes não distantes dos presen-
temente verificados. Por este motivo, merecem atenção os geógrafos que
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
43
Rui Jacinto

consideravam que “num mundo à procura de si mesmo, a Geografia escapa


aos geógrafos”, sendo “preciso reaprender o espaço e reaprender a aprendê-
-lo”. A sua qualificação e interpretação obriga a estarmos “despertos para uma
arte do espaço [que] só é concebível na familiaridade dos poetas, romancistas,
pintores ou cineastas, que têm evocado, melhor do que as nossas descrições,
a região dos homens”. Perante estas observações deduz-se, com naturalidade:
“é uma nova Geografia que há que inventar, rompendo ainda divisórias entre
disciplinas, com geógrafos abertos à Literatura e às Artes e homens das letras
a par da Geografia” (Fremont 1976: 257-262).
É neste contexto que devemos situar a Geografia Literária, expressão con-
sagrada entre nós por José Osório de Oliveira, que a utilizou pela primeira
vez como título dum livro de ensaios sobre a literatura de Portugal e Colónias
(1931). A intuição dos geógrafos portugueses levou-os a reconhecer “que a
pura investigação geográfica se revela em muitos casos incapaz de fazer a
cabal interpretação da fisionomia terrestre, e como a ciência e a arte precisam
de aliar-se com o objetivo de nos darem o quadro completo das nossas paisa-
gens” (Girão 1952: 105-106). Sob o manto da Geografia literária acabaram por
se acolher, com o tempo, tanto experiências de viagem e vivências geográficas
como descrições de paisagens, naturais e humanas, que nos ajudaram a per-
cecionar com maior detalhe o espírito dos lugares e desvendar os sentimentos
mais profundos que se escondem na alma das pessoas que os habitam (Jacin-
to 2021). Não admira, pois, a conclusão de Amorim Girão, quando afirmou que
“pode dizer-se, pelo que respeita às terras fronteiriças de Riba-Côa”, como
relativamente a outras parcelas da Beira, mesmo entre os que “conhecemos
bem as paisagens severas e majestosas da Beira Transmontana, [que] foram
algumas páginas deste último escritor [Nuno de Montemor, Maria Mim, 1939],
cheias de colorido e emoção, que melhor nos fizeram compreender essas pai-
sagens, e penetrar ao mesmo tempo na especial maneira de ser das gentes
que lhes dão vida”. Também pensamos que não “precisarmos de ir buscar
exemplos às literaturas estrangeiras, alguma confirmação do que acabamos
de dizer”, já que é fácil encontrar-se entre os escritores da Beira inúmeras
páginas que não “deixa[m] de constituir um fiel documentário da paisagem e
da vida” (Girão 1952: 105-106).
Sem mais delongas nem outras deambulações teóricas recordemos, a este
propósito, o remate de Miguel Torga no rescaldo duma tertúlia com “um geó-
grafo m[s]eu amigo”, seguramente Alfredo Fernandes Martins, travado porven-
tura à mesa do Café Arcádia, em Coimbra. O escritor coloca este interessante
debate teórico-metodológico no ponto crítico:
Até aqui, para os herdeiros de Estrabão, o humano, em relação ao meio, ou é
vítima ou algoz. Explicam-se os sentimentos e as estaturas pelas nuvens e pelas
águas de regadio, ou então ensina-se à posteridade que foi um tiro de dinamite
44 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

que estragou o perfil de certa fraga. Ora eu sugeria o alargamento desse critério
estreito, e que se fizesse do homem um dos elementos fundamentais da Geogra-
fia. Que no processo científico de qualquer troço do mundo figurasse o habitante
do sítio, considerado já como factor natural, a par do relevo ou da vegetação. Ao
lado doutras formas de conhecimento, um capítulo do íncola da Beira numa coro-
grafia da Beira. Seria, em meu fraco entender, uma contribuição substancial para
melhor compreensão da sua íntima realidade. (Diário II, Coimbra, 21 de Março de
1943: 147-151).

Na senda das interpretações fenomenológicas, Miguel Torga toca cerne


deste debate epistemológico enquanto revela assumir posições contrárias ao
seu amigo geógrafo. A posição contrária que defende reside na pretensa ra-
cionalidade científica do “m[s]eu amigo geógrafo [que] argumenta com razões
de método, chama a isto uma ideia poética, e fala no sarilho científico que
seria semelhante Geografia psicológica. Diante de tais argumentos, calo-me,
vencido mas não convencido” (ob. cit.). O argumento evocado pelo seu amigo
representa o temor de qualquer geógrafo perante uma “poética do espaço”,
postura que os cânones só acolheriam posteriormente, quando passaram a
considerar ser adequada para apreender com mais sensibilidade a essência
do território e o “espírito do lugar”. O ponto de vista vigente e partilhado pela
generalidade da academia seria explicitado por Amorim Girão, mais tarde, ao
referir que “acusam-se muitas vezes os geógrafos de literatos, querendo signi-
ficar que eles desprezam todo o contacto com a realidade, vivendo no domínio
da pura fantasia. Fala-se de “literatura geográfica” quase sempre com intuitos
de maldizer; e, deturpando muito embora a expressão, também se terá falado
de “Geografia literária” mais ou menos no mesmo sentido” (Girão 1952: 105).
O tempo veio consensualizar o contributo inestimável prestado pela Litera-
tura à Geografia pela maneira como descreve a paisagem, expressa a relação
humana com o meio, perceciona vivências, como dá sentido e forma às repre-
sentações territoriais mais simbólicas. O modo como o escritor perscruta estes
sinais e dá um novo sentido a tais experiências despoja a Geografia, como a
Literatura, da excessiva carga conceptual que tanto as oprime. A Geografia
literária, por todas estas razões, acaba por exprimir os traços essenciais da
experiência geográfica do mundo, esse espaço de interação discreta entre o
geógrafo e o escritor.

2.2. Viagens na Beira: literatura geográfica, Geografia literária

A viagem foi sempre um meio privilegiado de observação direta para geó-


grafos e escritores, de recolha de informação para intermediar a leitura dos
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
45
Rui Jacinto

territórios. Excursões, passeios, visitas de estudo e trabalho de campo permi-


tem aceder a dimensões mais intangíveis e subtis, que se escondem nas cama-
das mais profundas e em labirínticos lugares. Independentemente das motiva-
ções que as originam, sejam razões profissionais, lazer ou simples devaneio,
tantas vezes desejada apenas para superar a própria solidão, a viagem abre
sempre infinitas possibilidades de vermos além das aparências, de captarmos
os traços mais íntimos e ocultos que os lugares escondem.
A Beira foi percorrida por inúmeros escritores e geógrafos em viagens reali-
zadas por obrigação, ou devoção, se o amor sentido aos lugares e às paisagens
se impunha. Nestes casos, a viagem só começa verdadeiramente quando “so-
nhamos sobre os mapas”, sejam reais ou mentais, isto é, quando “sonhamos
como geógrafo” (Bachelard 1957 [2004]: 208). Destacamos quatro viagens
feitas na Beira, com início em meados do século XIX, por serem elucidativas da
mudança de atitude quanto ao propósito da viagem e aos meios de transporte
utilizados. Importa ter presente que este período, além de corresponder a uma
profunda mudança relativamente à atitude e aos meios disponíveis para viajar,
correspondeu à institucionalização da Geografia, como bem ilustra a criação,
em 1875, da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Os relatos dizem respeito a viagens realizadas por motivos profissionais,
académicos ou de lazer, são descrições com recorte literário suportadas em vi-
vências pessoais e trabalho de campo. A geograficidade de que estão impreg-
nadas representa um valioso contributo para a Geografia literária da Beira.
Sem espaço para comentar com detalhe os respetivos conteúdos, são exempli-
ficativas dos modos de transporte disponíveis (cavalo, mala-posta, comboio e,
mais tarde, o automóvel) e dos motivos que lhes deram origem, onde surgem
razões de ordem científica:
• Apontamentos de viagem [Alexandre Herculano, 1853-1864]. A visita aos
tombos da Beira proporcionou apontamentos de “algumas observações e
notas feitas numa viagem de serviço público durante o Verão de 1853”. E
justifica, assim: “Parece-me que não pela forma, mas pela matéria, elas
deverão mover a curiosidade dos leitores d’O Panorama; porque o país da
Europa mais desconhecido entre nós é sem dúvida Portugal”.
• Uma Velha Descrição Geográfica do Centro de Portugal [Gerardo Augus-
to Perry 1860]. O autor, cartógrafo militar, esteve na origem do primeiro
mapa moderno do país que percorreu em boa parte, sobretudo a Beira e
o Alentejo. Foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa,
em 1875 e publicaria no mesmo ano uma Geographia e estatistica geral de
Portugal e colónias. As descrições das suas deambulações na Beira, que
permaneceram inéditas até Amorim Girão (1951: 2) as dar à estampa, co-
meçam assim: “Parti de Lisboa para Coimbra a 13 de Abril, na mala-posta;
nesta tão cantada terra, estive até ao fim deste mês. Descreverei Coimbra
46 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

e as suas belezas, noutra ocasião; agora começarei a apontar unicamente


o que vi depois que saí dali”.
• Expedição Científica à Serra da Estrela [1881; Emygdio Navarro 1884].
Sob o comando de Hermenegildo de Brito Capello (1841-1917), oficial da
Marinha com enorme prestígio enquanto explorador do continente africa-
no, partiram de comboio 47 expedicionários com destino à Serra da Estrela,
a 1 de Agosto de 1881. A viagem, de caracter científico, foi patrocinada pela
recém-criada Sociedade de Geografia de Lisboa e perpetuada em interes-
santes publicações (p. ex: Henriques 1883).
• A Beira num relâmpago [Teixeira de Pascoaes, 1916]. Este apontamen-
to é elucidativo do espírito que animou a viagem e do estilo do poeta de
Amarante: “No dia 15 de Agosto de 1915, às duas horas da madrugada, eu,
meu irmão Álvaro e o Dr. Pedro de Macedo partimos, do Largo do Arquinho,
num Fraschini guiado pelo Dr. José Vahia. […] Viajar em auto é correr mun-
do, a cavalo num relâmpago. Pessoas, paisagens, vilas, lugarejos passam
por nós numa tal velocidade, que as impressões recebidas continuam, em
nossa memória, a sua doida cavalgada, numa confusão turbilhonante. A
distância que as separa e lhes dá perspectiva é eliminada pelo movimento
que as anima; e as suas aparências quase se fundem num todo, caótico
e disparatado, que é a fonte caricatural da moderna pintura futurista. […]
Atravessamos agora as solidões da Beira. Jorra a luz do céu em cataratas!
Surpreende-me não a ver criar linfas, cascatas, lagoas de oiro. É uma luz
abrasadora, beijando, sem de leve as macular, as verdes tonalidades. Faz
rir as coisas, acende gargalhadas súbitas nas fontes, e baila, esplendorosa-
mente, à superfície das águas quietas das represas”.

Os relatos destas viagens servem de introito a um amplo movimento que


surgiu em Portugal, nos anos vinte do século passado, onde se identificam duas
linhas paralelas: do lado da Geografia assiste-se à sua implantação académica,
ao início da investigação geográfica regular e à edição dos primeiros trabalhos,
sobretudo de Geografia regional, incluindo alguns sobre a Beira; do ponto de
vista literário, entre as obras onde despontam referências espaciais, desponta
o Guia de Portugal (1924-1966), que envolveu vários escritores (Aquilino Ribeiro,
Afonso Lopes Ribeiro, Vitorino Nemésio, Jaime Cortesão, etc.) e a colaboração
de vários geógrafos (Silva Teles, Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Carlos Alberto
Marques), além de outros especialistas, no propósito de facultar uma visão mul-
tifacetada, abrangente e integrada de muitos lugares e das diferentes regiões
do país.
A investigação geográfica sobre diferentes parcelas da Beira elaborada em
trabalhos académicos, conforme ao paradigma então dominante, teve por men-
tores os geógrafos fundadores da moderna Geografia portuguesa: Amorim Girão,
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
47
Rui Jacinto

1
Orlando Ribeiro e A. Fernandes Martins . Após o trabalho pioneiro de G. A. Perry
e dos alicerces lançados em vários estudos de Geografia regional, surgiram dife-
rentes Geografias de Portugal abarcando o conjunto do país. É de realçar a que
foi dada à estampa por Girão (1941), por ser a primeira e pela ampla divulgação
que alcançou, acabando por ter influência designadamente entre os escritores.
Estas obras têm abundantes referências à Beira, dedicando-lhes alguns capítu-
los ou fornecendo informação que moldou o olhar e influenciou o modo de ler e
interpretar o país e a Região.
O Guia de Portugal, embora não possa ser considerado um verdadeiro con-
traponto geográfico ou literário, contem ingredientes e aflora matérias afins. No
Volume I (Lisboa e arredores, 1924), apesar da advertência do autor, não deixa de
almejar pretensões literárias: “A ordem rigorosamente itinerária que seguimos
nesta obra é talvez a menos conveniente aos efeitos literários, mas a mais útil
para o fim que tivemos em vista – que não foi encantar os Portugueses com a
nossa prosa, mas levá-los à descoberta de Portugal. Se há aqui literatura (e da
melhor), ela não constitui um fim em si mesma, mas um meio de sugestão, um co-
mentário vivo e inteligente das excursões a efectuar e a maneira de tornar mais
flagrante a expressão da realidade”. Após esta nota de abertura, Raul Proença
elucida-nos como é ténue a fronteira entre viagem, Literatura e Geografia ao
colocar no frontispício, além duma referência de Byron, duas citações lapidares
que constituem um verdadeiro um apelo à viagem: (i) “estas excursões não são
apenas um consolo, um descanso e um ensinamento; são antes de mais, e so-
bretudo, um dos melhores meios de cobrar amor e apego à pátria […] Em todo
o país deveriam preocupar-se os que o regem e conduzem que seus filhos o
conheçam de vista e de contacto” (Miguel de Unamuno); (ii) “Nada há no mundo
mais saborosamente aprazível para um coração lusitano do que viajar, simples,
modesta, obscuramente em Portugal” (Ramalho Ortigão).
Esclarece-se no prefácio que a obra pretende ser um “minucioso roteiro do
País”, “um repertório artístico” e “um testemunho dos estrangeiros sobre Por-
tugal”, além de conter “uma bibliografia escolhida do que se tem escrito sobre
Portugal”. Estamos perante “uma obra de sóbria literatura descritiva que, sem
as desfigurações e alucinações caras aos românticos, os incidentes das recor-
dações pessoais, os desenvolvimentos eruditos, as divagações retóricas e os
devaneios poéticos”. O Guia pretende ser “uma antologia da nossa literatura
pitoresca, que seja o escrínio de tanta jóia perdida reflectindo ainda hoje, com
limpidez por vezes maravilhosa, as impressões dos nossos maiores ante as
belezas desta terra pródiga” […], “onde se reúnam as páginas mais evocativas

1
Parcelas da Beira estudadas: Amorim Girão: A Bacia do Vouga (1922), Viseu (1925), Montemuro (1940),
Maciço da Gralheira (1942); Carlos Alberto Marques: A Bacia Hidrográfica do Côa (1935) e A Serra da Estrela
(1938); Alfredo Fernandes Martins: O esforço do homem na bacia do Mondego (1940) e O Maciço Calcário
Estremenho (1949); Orlando Ribeiro: Contribuições para o estudo do pastoreio na serra da Estrela (1941).
48 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

dos nossos escritores, desde que o sentimento da natureza fez irrupção na


literatura nacional, com Fr. Luís de Sousa, Rodrigues Lobo e Miguel Leitão de
Andrade, até à paisagem mais arejada, mais colorida e mais precisa da moder-
na escola pseudo-realista (Proença 1924: LIX-LX).
A informação abundante e os traços da perene identidade territorial latente
nas páginas desta obra influenciaram sucessivas gerações de geógrafos e de
escritores. Os primeiros passos da investigação geográfica em Portugal foram
dados “com os pés na terra”, baseada numa Geografia vivida que privilegiava
a viagem e o trabalho de campo. Alinhados com o espírito do Guia de Portugal,
os geógrafos portugueses aproveitaram o método e os princípios que o nor-
tearam para conceberem dois livros-guia das visitas à Beira pelos participantes
no Congrès International de Géographie, realizado em Lisboa, em 1949, pela
Union Géographique Internationale (UGI). Estas viagens ao Centro Litoral e ao
Portugal Central foram orientadas pelos autores dos referidos guias, respetiva-
mente, A. Fernandes Martins (Le Centre Littoral et le Massif Calcaire d’Estréma-
dure) e Orlando Ribeiro (Le Portugal Central).
O Guia de Portugal apenas antecipou o período fértil da produção da geo-
gráfica e literária onde são mais notórias as referências espaciais. Os escritores,
herdeiros do espírito da obra, utilizam a viagem para encetarem um frutuoso
diálogo com o território, onde encontram fonte de inspiração e cenários que
utilizam na sua ficção. Inscrevem-se nesta linha algumas descrições de viagem a
que se pode recorrer para alicerçar uma verdadeira Geografia literária da Beira:
• Portugal, a Terra e os Homens (Vitorino Nemésio 1948). Antologia de auto-
res e obras representativas das várias regiões do país. Retomada por David
Mourão-Ferreira, foi ampliada com a inclusão de novos textos e escritores em
sucessivos tomos posteriormente editados.
• Portugal (Miguel Torga 1950). O olhar singular que Torga lançou ao país
resultou numa Geografia simbólica que sugere uma leitura telúrica das suas
regiões e alguns lugares. Neste périplo, a Região Centro conta com dois
2
apontamentos específicos: Coimbra e A Beira .
• Portugal, a Terra e o Homem (Jaime Cortesão 1964; INCM, 1987). Cortesão

2
O profundo conhecimento do país foi adquirido através de incessantes viagens, como se verifica pelas deze-
nas de entradas nos quatro primeiros volumes do Diário, publicados até 1950, ano em que editou Portugal.
Destacamos um exemplo lapidar deste peregrinar de Torga: “Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerez
a Monchique e do Caldeirão a Bornes, não tenho sossego. E sem saber ao certo para quê! Não sou geógrafo,
tenho um patriotismo suspeito, sou fraco apreciador de petiscos, de modo que nem eu chego a saber por
que é tanta peregrinação. Mas continuo, e só não amiúdo os passos por não ter saúde, nem tempo, nem
meios. Talvez sem eu ter consciência disso cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo
das cousas, expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado
nenhum. Aqui encolhe-se, ali espalma-se, acolá afunda-se” (Fundão, Serra da Gardunha, 4 de Fevereiro;
Diário III, 1946 [3ª ed. 1973]: 88).
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
49
Rui Jacinto

recorre ao título já usado por Nemésio, representativo de uma problemática


cara aos geógrafos, para escrever a sua última obra, publicada postumamente.
Este colaborador do Guia de Portugal aproveita os derradeiros anos de vida,
após regressar do exílio, para viajar pelo país e escrever largo número de
crónicas sobre lugares e regiões que o tocaram. Dedicou à Região Centro um
capítulo ― A Beira e as Beiras ―, que representa uma discussão ainda atual,
para se perder em temas e lugares que povoavam o seu imaginário: Graças
à Beira Alta; O Realismo na Arte da Beira Alta, A Terra e a arte de Aquilino;
Beira Baixa, lar da grei; Monsanto, Alpedrinha e as varandas da Gardunha; O
milho e a arte nos campos do Mondego; Aveiro e a epopeia da Ria; A batalha
das dunas; Dois dias de Júlio Dinis; Cantanhede e o seu Epónimo; Homens
de Ançã; A elegia mística do Buçaco; Coimbra, a cheia de graça; Conímbriga,
Coimbra e Condeixa; A praia da Figueira.
• Viagem a Portugal (José Saramago, 1981). A tradição dos viajantes escri-
tores recuperada por Saramago, escritor duma geração posterior aos ante-
riormente referidos, levou-o a percorrer o país e a Beira. Ao deambular pela
Estrela, porque “mergulha uma vez mais nas nuvens”, “o viajante está quei-
xoso”, como acontece em tantas viagens, ensina-nos nesta tirada inspirada
como tirar proveito e superar condições adversas: “Eis a boa filosofia: tudo é
viagem. É viagem o que está à vista e o que se esconde, é viagem o que se
toca e o que se adivinha, é viagem o estrondo das águas caindo e esta subtil
dormência que envolve os montes” (p. 126).

Estes relatos e descrições, apesar de retratarem o conjunto do país, por de-


dicarem largo espaço à Beira, associados aos romances doutros escritores cuja
ação aí se desenrola, permitem compor uma Geografia literária da Região ou de
alguns dos seus retalhos. Entre estes é relevante o contributo dos sete escritores
incluídos na Rota de Escritores do século XX da Região Centro de Portugal por
motivos relacionados com a temporalidade das suas obras, a sua representativi-
dade no panorama literário nacional e o facto de cobrirem as principais unidades
subregionais que corporizam a Beira. São escritores oriundos do litoral os que
têm vínculos a Cantanhede, Coimbra, Condeixa e Leiria, como Carlos Oliveira,
Miguel Torga, Fernando Namora e Afonso Lopes Vieira; as paisagens do interior
estão representadas nas obras de Aquilino Ribeiro (Serra da Lapa, Vila Nova de
Paiva), Vergílio Ferreira (Serra da Estrela, Gouveia) e Eugénio de Andrade (char-
necas da Beira Baixa, Fundão). Contudo, uma Geografia literária que se pretende
mais ampla e plural, que cubra o diversificado mosaico físico e humano da Beira,
implica a conjugação doutros escritores, porventura menos óbvios e sonantes,
como Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, Alçada Baptista ou António Sal-
vado.
50 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

3. ESCRITORES DA BEIRA: O ESCRITOR, O LUGAR E A (RE)


INTERPRETAÇÃO DA REGIÃO
3.1. A Beira segundo os seus escritores
A seleção dum naipe de escritores representativos da Beira não é tarefa sim-
ples nem isenta de controvérsia, seja pelos nomes a incluir ou pelas fronteiras,
exteriores e interiores, que se usem para delimitar o espaço regional. As tentati-
vas ensaiadas em casos similares para se criarem listas de escritores represen-
tativos dalguns territórios da Beira revelaram-se tão subjetivas quão divergentes
relativamente aos resultados alcançados. Esta conclusão está patente nas cole-
tâneas sobre a Beira Baixa e o distrito de Castelo Branco, elaboradas por Arnaldo
Saraiva (1988) e António Salvado (1990; 2001), nas antologias sobre a Guarda, da
autoria de José M. T. Mota da Romana (2003) e A. J. Dias de Almeida (2004), ou
nas publicadas sobre Coimbra, tanto por Eugénio de Andrade (1971) como por
Adosinda P. Torgal e Madalena T. Ferreira (2003).
A dificuldade de se obter uma lista de escritores consensual e única para um
mesmo território é acompanhada por uma notória assimetria literária, quantita-
tiva e qualitativa, que decorre da disparidade de representatividade existente
ao nível da ficção entre lugares e territórios da Beira. Coimbra é, neste aspeto,
um caso singular, mesmo a nível nacional, por ter acolhido ao longo dos tempos
muitos escritores consagrados, que passaram pela Universidade de Coimbra.
Aleatoriamente e sem pretensões de ser exaustivo, desde meados do século
XIX que a cidade está mais ou menos presente na obra de escritores com perfis
tão distintos quanto Antero de Quental, Eça de Queiroz, Camilo Pessanha, Mário
de Sá-Carneiro, José Régio ou Afonso Duarte. Coimbra acolheu, posteriormente,
Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Miguel Torga, Eugénio de
Andrade, Eduardo Lourenço, sem esquecer uma nova geração que contempla
Herberto Helder, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Alberto Pimenta Teo-
linda Gersão, Manuel António Pina, José Manuel Mendes, Inês Pedrosa ou Mário
Cláudio.
A naturalidade, como se vê, não pode ser o único critério de seleção de escri-
tores representativos dum lugar ou região. Não se pode descurar o tempo nem
ignorar o reconhecimento alcançado pelo autor, variável que sendo subjetiva é
sempre influente como se nota, aliás, em opções e citações que temos vindo a
fazer. Importa considerar, por outro lado, que os limites da Beira, tanto os exter-
nos como os que definem o recorte administrativo interno do espaço regional,
conheceu significativas alterações. Trata-se, como sabemos, duma controvérsia
antiga, recorrente, que recrudesce quando a regionalização entra na agenda po-
lítica, como parece que irá acontecer, uma vez mais, muito em breve. É uma ma-
téria onde os geógrafos sempre foram ativos, com mais protagonismo quando
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
51
Rui Jacinto

têm envolvimento direto na elaboração de propostas de divisão regional, como


aconteceu com Amorim Girão (1933) e Jorge Gaspar (1976).
A Beira foi sempre um espaço crítico e de charneira no debate da divisão
regional do Continente. A velha Beira, após a sua consagração como uma magní-
fica trindade que a subdividiu em Beira Litoral, Beira Alta e Beira Baixa, conheceu
uma lenta mas profunda metamorfose, mais brusca em três momentos capitais
da nossa história recente: ainda no Estado Novo, com a revogação das provín-
cias (1959), que fez sucumbir a Beira triparcelada em que Amorim Girão tanto
se havia empenhado; no advento da democracia, quando foi aprovada a Cons-
tituição da Républica (1976) e se instituíram as regiões, processo que ainda não
logrou ser concretizado; com a adesão de Portugal à União Europeia (1986) e a
imposição de sucessivos (re)arranjos na Geografia da sua administração interna.
As diferentes formulações da Beira, indissociáveis de profundas mudanças políti-
cas, económicas, sociais e culturais vivenciadas coletivamente, percorreram um
caminho que conduziu à atual versão tecnocrática bem expressa na mudança de
apelido para Região Centro. Numa obra de referência sobre este tema, de 1933,
Amorim Girão assume que
as Beiras Litoral, Central, Trasmontana e Meridional, com os limites que lhes assinala
o autor das Cartas elementares de Portugal [Barros Gomes], representam na verdade
regiões distintas, tanto pela constituição geológica do seu solo, como pelo seu re-
levo e clima. O significado geográfico e o valor social dessa divisão mais são postos
em destaque pela circunstância de a cada uma daquelas secções corresponder uma
capital regional, que é como o núcleo diferenciador dos territórios que lhe ficam su-
bordinados. Coimbra e Aveiro, Viseu, Guarda e Pinhel, Castelo Branco e Covilhã são,
com efeito, cidades fundamentalmente diversas, reflexo evidente das regiões que
cada uma delas domina e caracteriza. Mas há que fazer algumas ligeiras alterações
nos limites propostos conforme passamos a verificar. (pp. 74-75)

Por isso, “a Beira, cuja divisão em duas secções pela serra de Estrela — Beira
Alta e Beira Baixa ― de há muito se tornou de uso corrente, melhor se poderá
dividir como fez Barros Gomes, em quatro regiões com caracteres próprios, to-
mando como base de separação os seus principais acidentes montanhosos ― Es-
trela. Gralheira, Caramulo e Montemuro” (p. 74). A divisão regional proposta por
este autor nas suas célebres «Cartas elementares de Portugal» para uso das es-
colas (1878) já havia inspirado o coordenador do Guia de Portugal, que a adotaria
logo no volume I, antes mesmo da adaptação introduzida por Girão e pelo Estado
Novo. Após a estabilização desse mapa, com a Beira dividida nas clássicas Beira
Litoral, Alta e Baixa, foi oficiosamente adotado e amplamente divulgado, sobretu-
do nas escolas. Sucessivas gerações de alunos foram obrigadas a decorar rios e
estações de caminhos de ferro nas aulas de Geografia. Tantas vezes chamados ao
mapa e a visioná-lo, a generalidade dos portugueses acabaria por interiorizá-lo e
52 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

transformá-lo num mapa mental cujos efeitos ainda perduram. Não é por acaso
que Miguel Torga e Jaime Cortesão, por exemplo, esboçaram as respetivas des-
crições do país com base na Geografia regional nele implícita. José Saramago,
décadas mais tarde e num outro contexto político, em obediência à sua filiação
e à divisão regional que o partido havia subscrito em 1976, rompe com aquele
modelo e adota uma nova Geografia para organizar a apresentação da sua Via-
3
gem a Portugal .
A Beira ganha matizes distintas consoante é descrita por geógrafos ou escri-
tores. Uns, como Jaime Cortesão, começam por se interrogar se existe uma ou
várias Beiras: “Haverá um complexo de caracteres, bem individuado, quer geo-
gráfico, quer humano, daquilo a que é costume chamar-se a Beira, abrangendo
as Beiras ― Alta, Litoral e Baixa, conforme a nomenclatura actual?” A resposta
que dá é clara: “Bem e vincadamente individuado, não. E muito menos quando
encarado no puro aspecto da Geografia. Entre a Beira minhota ― dos vales de
Cambra e de Lafões, a Beira Litoral, dos canais e polders da região de Aveiro, ou
a Beira alentejana, zona de transição do Sul da Beira Baixa para o Alto Alentejo, a
diferenciação geográfica é profunda e multiforme”. O que a Beira tem de diverso
e de comum já outros o haviam dito doutra forma: “A confluência numa extensa
região central de todas as paisagens do País, eis a Beira” (Raul Proença cit. p.
Cortesão 1987 [1964]); “a Beira representa uma súmula dos caracteres geográfi-
cos de todo o território nacional” (Silva Teles, cit. p. Cortesão: 104).
No volume I do Guia de Portugal (Lisboa e arredores, 1924), na introdução
etnográfica de Portugal feita por Aquilino Ribeiro, a região é lida segundo outro
ângulo: “A Beira, à excepção da orla litoral e do vértice sul, acusa até certo ponto
as características de Trás-os-Montes. Como já ali, existe uma diferença sensível
entre a população das serras e do vale. Esta é de maneiras brandas, mais hu-
milde por um lado, mais impulsiva por outro, todavia aventurosa e decidida ‘ao
que Deus quiser’; aquela resistente, dura, áspera, mais activa e mais inteligente,
posto que mais grosseira”. A faceta telúrica que bem conhece é recuperada ao
descrever
A aldeia serrana (da Beira) – escreve-se nas Terras do Demo – é assim mes-
mo: bulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos

3
A Regionalização tem sido um debate recorrente e inconclusivo (1976; 1982; 1998), a que juntou, durante o
período da troika, a implementação duma reforma administrativa, igualmente incompleta face ao anunciado.
As NUT III, criadas apenas para fins estatísticos, tiveram vários desenhos até às atuais, que foram a base das
seguintes Comunidades Intermunicipais na Região Centro: Baixo Mondego; Baixo Vouga; Beira Interior Sul;
COMURBEIRAS; Beira Interior Norte; Cova da Beira; Dão-Lafões; Médio Tejo; Oeste; Pinhal Interior Norte; Pinhal
Interior Sul; Pinhal Litoral; Serra da Estrela (Lei n.º 11/2003 de 13 de Maio). O significado destas alterações, que
têm vindo a ocorrer desde 1986, foi profundo, e transcende o âmbito estrito da Geografia, por se relacionar
com uma faceta fundamental da tão proclamada reforma da administração pública: os distritos teoricamente
desapareceram, sendo este vazio intermédio substituído pelas NUT III, unidades territoriais que se aproximam
das suas dimensões e desempenham papeis equivalentes. Concluindo, os limites exteriores da Beira, como
as suas fronteiras internas, a nível sub-regional e de freguesia, conheceram grandes mudanças.
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
53
Rui Jacinto

e instintos que constituíam o empedrado da comuna antiga. […] A população


da planície beiroa é, por via de regra, mais liberal, mais asseada e propensa à
emoção, mais sociável, embora menos castiça que a gente serrana. Em geral,
o beirão é empreendedor, vivo, laborioso, tão resistente como o transmontano,
mas dotado, por ventura, duma maior maleabilidade intelectual. […] Em suma, o
beirão é dos portugueses aquele em que melhor se equilibram as virtudes por-
tuguesas, labor mas não improbo, audácia quando necessária, parcimónia sem
mesquinhez, senso comum da vida com os requisitos indispensáveis da constân-
cia e da tenacidade. (pp. 63-65)
O significado plural que a Beira tem para os escritores transcende a sua es-
trita dimensão geográfica. A multiplicidade de perspetivas é equivalente à de
selecionar possíveis autores para sustentar uma Geografia literária da Beira. A
região, como o país, mudou, perdeu a sua ruralidade mais profunda ao ganhar
contornos económicos e sociais patentes em leituras geográficas que distam
seis décadas:
Luta em piores condições aqui, mas vence mais além; por vezes a paisagem
humanizada, se não é absorvida, pouco se destaca do quadro natural. Mas regiões
há onde se marca bem o cunho impresso pelo homem. As aldeias serranas confun-
dem-se, esbatendo-se nas encostas; porém, nas regiões baixas e, sobretudo, no
litoral, as paredes caiadas são manchas alacres no verde das culturas. A paisagem
oferece diferentes aspectos, telas bem diversas, por certo; mas de algum modo,
em qualquer recanto, se encontrará o sinal do homem. Por isso, não foram estra-
nhos à divisão regional que fizemos todos os factos de Geografia humana, que
atestam o esforço do homem na bacia do Mondego. (Martins 1940: 271).
A Região Centro, como o próprio nome indica, ocupa uma posição central no
contexto do espaço português. Esta centralidade decorre não só da sua localiza-
ção, entre o Norte e o Sul, mas também das suas características de espaço char-
neira e de articulação: física, económica, social e cultural. A emergência das duas
principais aglomerações urbanas do País, as áreas metropolitanas de Lisboa e
do Porto, longe de esvaziar e enfraquecer o espaço intermédio, acentua o papel
de ligação a um vasto território que se foi afirmando ao longo dos séculos a partir
de uma situação periférica, como sugere a designação tradicional: província das
Beiras. As Beiras cresceram da fronteira para o Litoral, alargando-se para Norte
e para Sul, ao encontro de espaços que ou já tinham ganho identidade (Entre
Douro e Minho), ou a foram adquirindo (Estremadura, Alentejo). A Região Centro
é, portanto, a herdeira das Beiras e, como resultado do seu processo genético,
caracteriza-se por uma diversidade feita da junção de unidades territoriais de di-
ferentes dimensões, que puderam cimentar a sua unidade ao longo do processo
histórico. (Gaspar 2002: 5)
A telúrica Beira, na sua intimidade, não perdeu a essência matricial que Mi-
guel Torga (1950 [1967]: 71, 73) lhe havia captado:
54 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Jungida assim à razão centrípeta da granítica matriz, a Beira ganha um sen-


tido geográfico que não anda nos mapas administrativos, mas se imprime na
retina. Do corpo esguio e diverso de Portugal destaca-se uma célula quase sem
protoplasma, só cromossomas, viva, a pulsar. E torna-se evidente que a própria
situação espacial desse como que embrionário coração da pátria a fará dobrar-
-se pelos tempos fora à sua vontade tiranizante.

3.2. Rotas dos Escritores da Beira: o lugar do escritor, a leitura


dos lugares

O vínculo afetivo com os territórios matriciais é revelado em inúmeras pági-


nas publicadas pela generalidade dos escritores da Beira. A umbilical ligação
que estabelecem com as pequenas pátrias, fruto duma Geografia vivida e sen-
timental, é recorrentemente testemunhada: “Por mais voltas que dê, é sempre
à minha mãe que vou ter quando me ponho a imaginar como é que a poesia se
me cravou tão fundo na carne. A minha mãe e àquele lugar onde os meus senti-
dos despertaram para uma luz atravessada por um chiar de carros de bois pelas
quelhas, a caminho das terras baixas dos lameiros. E sempre àquela fonte que
regresso” (Andrade 1995: 23). Essas memórias mais longínquas e a relação com
o lugar nem sempre pacífica foi bem expressa por Fernando Namora (Autobio-
grafia 1987: 10):
A infância, então. A adolescência melancólica, a juventude dramatizada. Mas os anos
longínquos quase se me esvaziaram. Talvez tivesse precisado de os esquecer. Às
vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança
ritual, os refogados impregnando quanta vizinhança havia, à hora da ceia — a ceia do
par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira. Tudo
cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os sinos
perdidos na charneca, os estalidos na madeira do tecto, o estrondo no castanheiro
do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma ave.
Tudo sons que davam mistério às coisas.

O escritor, como qualquer pessoa, acaba sempre por se moldar ao lugar, pois
"O homem e o meio são solidários na própria fisionomia. O habitante e o habi-
tado modelam-se mutuamente, a ponto de o observador não descortinar onde
começa o perfil de um e acaba o rosto do outro" (Torga 1950: 109). É um vínculo
que fica para a vida: “Era bom e eu não sabia que nunca mais se repetiria aquele
acordo com a casa, o campo, o rio, os cheiros, os sons e os ritmos do tempo
que devagar corria em Alma […]. Nesse Verão Ainda me banhei nas águas do
Alma […]. Senti um aperto na garganta ao passar a ponte. Olhei o rio, a nora,
os salgueiros, os campos. Alma, dizia eu. Como quando era pequeno e dizia
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
55
Rui Jacinto

mãe” (Manuel Alegre 1995: 217, 224, 225). A Geografia e o espírito do lugar
que envolve Águeda, no caso de Manuel Alegre, são comuns aos sentimentos
nutridos pelo torrão natal, como Cortesão (1987 [1964]): 133) também expressa
relativamente a Ançã: “Por detrás duma dobra do relevo coimbrão sumiam-se as
terras ásperas onde fui nado e as mais amenas dos campos do Mondego, onde
me criei. A meus pés desdobrava-se o teatro da minha adolescência; do fundo
vale via subir, como uma névoa, os meus primeiros sonhos”.
Esta identificação assumida com os lugares de infância é mais do que o
pagamento duma dívida de gratidão pois representa, para muitos, um modo de
estar na vida e no mundo e a opção por uma literatura comprometida. Carlos
de Oliveira em O Aprendiz de Feiticeiro (1995) adianta que “Não concebo uma
literatura intemporal nem fora de certo espaço geográfico, social, linguístico;
quer dizer, não a vejo inteiramente desligada das condições de tempo, de lu-
gar”. É comum o sentimento de fidelidade e enraizamento ao chão ao ponto de
se admitir que "este local faz parte de uma Lisboa que é a minha Geografia pri-
vada e ao mesmo tempo a minha Geografia literária. O curioso é que, à medida
que fui avançando na minha vida de escritor, isso foi-se tornando mais claro",
disse José Cardoso Pires, em entrevista de 1984 (Mauperin 1984). O mesmo
estado de espírito expressa J. C. Ary dos Santos de forma poética e irreve-
rente: “A terra donde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui/ […]
Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/
a força do lugar que for meu” (Soneto Presente in Resumo 1972). Noutras cir-
cunstâncias, como naquela “literatura em que o espaço passa despercebido”,
é reconhecido, como diz Alçada Baptista (1998: 170) a propósito da escrita de
Rubem Fonseca, que se "mantém uma certa coincidência entre os ritmos do
‘espaço’ e do ‘sistema’ ou, por outras palavras, entre a Geografia e a cultura.
As diferentes situações sociais coexistem no mesmo ‘espaço’ como elementos
integrantes e dinamizadores do mesmo ‘sistema’ subordinar às mesmas re-
gras. Nessa literatura, o exótico é necessariamente longínquo".
A importância das origens e a omnipresença da Beira são assíduas entre os
escritores mais comprometidos com a corrente que ficou conhecida por neorrea-
lismo, como nos dizem, nos seus estilos peculiares, dois pilares deste grupo: “Mas
tornam-se mais fundas / as raízes da casa, / mais densa / a terra sobre a infância”
(Carlos de Oliveira, Trabalho Poético. Turismo, Infância, s/d [1942]: 6); ou “Este
convívio de hoje tem por pretexto a jornada de um escritor e o facto de essa jorna-
da, a bem dizer, ter tido aqui, numa casinha do Largo Artur Barreto, o seu começo.
Com efeito, o escritor em causa nasceu nesta vila de solares, brasões e plebeus,
filho de gente imigrada de uma aldeia serrana. Foram muitos, na época, esses
imigrantes humildes, e Condeixa, a Condeixa senhoril, deve-lhes mais do que su-
põe, tanto pelo que criaram, num desafio que os excedia, como pelos horizontes
que abriram a seus filhos” (Fernando Namora, Sentados na relva, 1986: 193-194).
56 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

O modo de vida e o quotidiano dos lugares de origem forneceram informa-


ções determinantes para alimentar a ficção. Não deixa de ser interessante a ati-
tude distinta destes dois autores na hora da reconciliação afetiva, numa fase
mais tardia das suas vidas, quando ensaiam uma (re)visitação literária ao torrão
natal: Carlos Oliveira publicaria Finisterra: paisagem e povoamento (1978) e Fer-
nando Namora, após várias tentativas, nunca concretizaria o esperado romance
que pretendia centrar em Condeixa. Publicaria apenas um capítulo, na Revista
Vértice, do Rio de Mouros, título previsto do planeado romance sobre a vila; con-
tudo, a Beira Baixa, território de adoção, ocupou largo espaço na obra editada
(Minas de São Francisco, A Noite e a Madrugada e A Nave de Pedra, este foca-
do em Monsanto). Condeixa não deixaria de ser revisitada, episodicamente, em
passagens de alguns romances, onde ensaiava interrogatórios sobre o(s) seu(s)
destino(s), dele e do lugar onde nasceu:
na lírica Condeixa dos prados, das azenhas, dos arroios da minha infância, onde
homens como Joaquim Melâneo e António Moita me ensinaram a descobrir a beleza
nas coisas e a tentar fixá-la numa tela, e outros, como o meu vizinho Gabriel e João
Lóio, me revelaram o mundo daqueles livros onde se falava de gente verdadeira”
(Sentados na relva: 197); “Que acontecera na vila? Que acontecera nesses dez anos?
O tempo ultrapassara-o. A vila era já outra e afinal tão estranha, tão hostil, tão es-
quiva, como as terras estrangeiras que ele não consentira que o tivessem possuído”
(Cidade Solitária, 1978 [1959]: 197).

Estas considerações aconselham que a aproximação ao lugar do escritor se


faça a partir da respetiva obra. Esta é a melhor maneira de conhecer as paisa-
gens que moldaram o seu caracter e influenciaram, de algum modo, a respetiva
produção literária. Explorar a geograficidade da obra e observar no terreno os
sinais concretos que a complementam são contributos decisivos para interpretar
tanto a atmosfera que rodeou a criação como a Geografia concreta do lugar e
dos contextos regionais. É na confluência das paisagens literárias com as que os
nossos olhos realmente alcançam que se consegue uma leitura enriquecida para
além de aparências e superficialidades.
A viagem, inerente e fundamental a um processo que visa explorar a relação
entre a literatura e o território, tanto pode acontecer a montante como a jusante
da leitura da obra, potenciando e acrescentar valor à geograficidade nela laten-
te. Ler A Nave de Pedra antes de ir a Monsanto tanto antecipa a compreensão
do lugar que inspirou Namora como a sua leitura após à visita à aldeia aviva de-
talhes captados superficialmente no terreno. Esta técnica foi, aliás, amplamen-
te explorada por Torga para interpretar os territórios que calcorreava e, deste
modo, “ler toda a sua história e auscultar toda a sua vida”: "Ver Portugal de um
miradoiro destes, a Estrela além, escalvada e coberta de sanatórios, e a campa-
nha em baixo, latifundiária e vazia, é ler toda a sua história e auscultar toda a sua
vida" (Diário IV, 1949: 174).
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
57
Rui Jacinto

À luz dos pressupostos que se têm enunciado e dos lugares onde nasceram
os escritores, é possível adiantar um primeiro esboço duma Rota dos Escritores
da Beira. A região incorpora os seus roteiros como, no dizer de Namora (Casa da
Malta, 1945 [9º ed., 1975]: 19), cada escritor foi desenhando o seu: “Os meus li-
vros representam quase um itinerário de Geografia humana, por mim percorrido;
as andanças do homem explicam as do escritor”. Os múltiplos itinerários que se
podem traçar com base nas várias referências materiais e intangíveis sugerem
e são propícios a gerar viagens. Estes percursos, que podem seguir Geografias
variáveis, têm impulsionado o turismo literário, segmento emergente com poten-
cial para desenvolver um nicho de mercado. Estas rotas, apoiadas em elementos
físicos dispersos no território (bibliotecas, casas-museu, toponímia, arte pública,
etc.), podem incluir referências mais desmaterializadas, desde um romance a
paisagens, naturais e humanas, passíveis de serem contempladas localmente.
As coordenadas estruturantes concretas seguintes mostram como estas rotas
se podem definir a várias escalas, quer a nível regional quer no âmbito local ou
urbano.

Rota dos Escritores da Beira: do lugar à obra, da obra ao lugar


58 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

(i) Rota de Escritores do século XX da Região Centro de Portugal. Os sete


escritores selecionados, em 2013, para integrarem esta rota são represen-
tativos dum certo período concreto da histórica da Literatura Portuguesa e
da diversidade geográfica da região. Os lugares com que se identificam, dis-
persos na região, definem uma rede regional estruturante e relativamente
coerente, âncora da Geografia literária da Beira, suportada pelas suas obras:
1. Leiria (Afonso Lopes Vieira); 2. Vila Nova de Paiva (Aquilino Ribeiro, embora
nascido em Carregal de Tabosa, Soutosa, Sernancelhe); 3. Coimbra (Miguel
Torga, apesar de nascido em São Martinho de Anta, Sabrosa); 4. Gouveia
(Melo) (Vergílio Ferreira); 5. Condeixa-a-Nova (Fernando Namora, apesar de
Monsanto (Idanha) ser igualmente representativo); 6. Cantanhede (Febres)
(Carlos Oliveira, embora tenha nascido em Belém do Pará); 7. Fundão (Póvoa
de Atalaia) (Eugénio de Andrade).
(ii) Bibliotecas e Casas-Museu da Região Centro com nomes de escritores.
Alguns foram designados patronos e os seus nomes associados a Bibliote-
cas Municipais, equipamentos culturais estratégicos a nível local. Entre os
onze vultos incontornáveis do panorama nacional que dão o nome a Biblio-
tecas Municipais da Região Centro, foram incluídos na Rota de Escritores: 1.
A. Lopes Vieira (Leiria); 2. Vergílio Ferreira (Gouveia); 3. Eugénio de Andrade
(Fundão). Outras bibliotecas receberam o nome de: 4. Afonso Duarte (Mon-
temor-o-Velho); 5. J. Cardoso Pires (Vila de Rei); 6. Manuel Alegre (Águeda);
7. Eduardo Lourenço (Guarda); 8. A. Lobo Antunes (Nelas); 9. José Baptista
Martins (Vila Velha de Ródão); 10. P.e Manuel Antunes (Sertã); 11. António Ar-
naut (Penela). As Casas-Museu complementam esta rede: 1. A. Lopes Vieira
(S. Pedro de Moel); 2. F. Namora (Condeixa-a-Nova); 3. Casa da Poesia E. de
Andrade (Fundão); 4. Casa da Escrita (Casa João José Cochofel e berço do
“neorrealismo”, Coimbra); 5. Casa-Museu M. Torga (Coimbra); 6. Casa Mar-
melo e Silva (Paul, Covilhã); 7. Casa-Museu Egas Moniz (Avanca, Estarreja); 8.
Museu Júlio Dinis (Uma Casa Ovarense, Ovar).
(iii) Itinerários locais definidos com base em outras referências. Além dos
equipamentos e localidades mencionados existem dispersas na região outras
referências relacionadas com a escrita que complementam e densificam as
redes anteriores. Às bibliotecas e casas-museu é possível associar: (i) Topo-
nímia e placas evocativas. Existem ruas com nomes de escritores em muitas
localidades como placas colocadas em casas onde nasceram ou viveram; (ii)
Arte pública (estátuas, memoriais, etc.). M. Torga, F. Namora e E. Lourenço têm
memoriais em Coimbra, Condeixa, Guarda e São Pedro de Rio Seco (Almei-
da). Coimbra é uma vez mais um caso à parte na Região, por concentrar, por
exemplo, um número elevado de estátuas de escritores, dispersas na cidade
(Eça de Queiroz, Manuel Alegre, etc.), suscetíveis de esboçar um itinerário
temático que é uma verdadeira viagem pela história da Literatura Portuguesa.
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
59
Rui Jacinto

(iv) Prémios, festivais e eventos literários. Os nomes de alguns escritores vin-


culados à Beira estão associados a prémios literários: Namora (Lisboa), V.
Ferreira (Évora), Torga (Coimbra), Lourenço (Guarda). A nova relação entre os
escritores e o público e os novos consumos culturais estão a ditar uma nova
Geografia literária (cultural) regional, patente na proliferação de prémios, fes-
tivais literários e outras iniciativas, onde se incluem feiras do livro (com a
presença de escritores), residências literárias, cafés literários, etc..

Todas estas referências, materiais e intangíveis, passíveis de serem geogra-


ficamente referenciadas, apontam para a possibilidade de vários roteiros con-
cretizáveis na Beira. Há lugares mais privilegiados onde convergem mais do que
um escritor (Coimbra, por exemplo), outros onde é possível promover roteiros
temáticos ou baseados em apenas uma única obra. Nestes casos, num único lu-
gar um romance pode dar origem a um roteiro urbano: a Estrela Polar, o romance
de Vergílio Ferreira, permite fazer uma leitura da Geografia urbana da Guarda;
A Nave de Pedra é, hoje, graças a Fernando Namora, indissociável da Aldeia
Histórica de Monsanto da Beira. Certos romances acabaram por se plasmar com
o território donde emanam e, por isso, o espaço regional fica indelevelmente as-
sociado às obras: a Serra do Leomil aos romances de Aquilino Ribeiro (Terras do
Demo, O homem da Nave, Malhadinhas), a Serra da Estrela a Ferreira de Castro
(A Lã e a Neve).
A relação de cada escritor com os respetivos lugares e territórios acaba por
ser, sempre e em qualquer circunstância, pessoal, única e intransmissível. Por
esta razão as suas obras estão plenas de fragmentos e de especificidades que
nos remetem para uma Geografia particular, sensível e distinta de cada autor,
como bem elucida este trecho:
“A minha relação com as terras baixas e interiores da Beira é materna, quero eu dizer:
poética. A tão grande distância do tempo em que ali vivi os primeiros oito anos da mi-
nha vida, o rosto de minha mãe confunde-se com a cor doirada do restolho e daquela
terra obscura onde emergem uns penedinhos com giestas à roda, e alguns sobreiros
de passo largo a caminho do Alentejo. Mas também os olivais de muros baixos de
pedra solta me chegam nas suas falas, as dela e as de toda essa gente de Póvoa de
Atalaia, camponeses na sua quase totalidade; e quando o não eram, o seu ofício era
ainda o de uma relação privilegiada com as coisas da terra: pedreiros, carpinteiros,
ferreiros. Fora destes mesteres, o restante da população lavrava, semeava, sacha-
va, colhia. Ou pastava o gado, e fabricava queijo, azeite, vinho, pão. Lembro-me do
cheiro dos lagares, das queijeiras, do forno, das forjas eram cheiros que entravam
pelas narinas como tantos outros, mas só esses se infiltraram no sangue e aí ficaram,
depositados em sucessivas camadas, para sempre, como ficou o aroma das estevas
e do feno”. (Andrade 1992: 27)
60 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

O estilo e a maneira de cada autor nos guiar pelos respetivos territórios é bem
percetível na descrição “De Viseu rumo ao norte”, a entrada nas Terras do Demo
feita por Aquilino Ribeiro no início da sua Geografia sentimental: “silva romântica
de lugares, seres é coisas que, na Beira, onde tenho umas árvores para gozar a
sombra, ouvem os dobres do campanário local. Não é, contudo, trabalho regio-
nalista no sentido rigoroso, embora a mim próprio se afigure o desenvolvimento
parafrástico das Terras do Demo, ou, com vénia pela pedantaria, a sua paralipo-
mena. Poderia dizer para o definir melhor: a minha pena foi até onde chegam as
ondas sonoras do tal sino rachado. Por essa razão ainda chamei sentimental ao
roteiro, com mil perdões desta feita de nossa mãe Eva”. (Ribeiro 1951: 8).
A parcela da região de cada escritor acaba por emergir, em dado momen-
to e por qualquer razão, em algum fragmento da respetiva obra. Neste sentido
haverá uma descrição dos autores que temos vindo a citar representativa do
modo como viveram, leram, interpretaram e sonharam a Beira. As várias Rotas
de escritores que é possível desenhar a partir dos respetivos lugares e espaços
sub-regionais faculta-nos uma Geografia literária da Beira que é, antes de mais,
um contributo fundamental para, a partir do passado, ensaiar uma (re)leitura
propetiva da região.

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Nº 9, 19.10.1990) já havia feito um exercício sobre este mesmo tema.
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gia. Editora: Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas. Local de Edição: S.l.
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Teixeira de Pascoaes (1994 [1916]). A Beira (num relâmpago) ― Duplo Passeio. Lisboa:
Assírio & Alvim.
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Torga M. (1949 [3ª ed.1973]). Diário IV. Coimbra: ed. autor.
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Torgal A. P., Ferreira M. T. (Org., 2003). EnCantada Coimbra. Colectânea de Poesia
sobre Coimbra. Lisboa: Dom Quixote.
GÂNDARA DE CARLOS DE OLIVEIRA – A
SINGULARIDADE DE UM TERRITÓRIO

FERNANDA DELGADO CRAVIDÃO*

Na gândara há aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas


vivem homens semeando e colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno
não desaba em chuva e lama. Porque então são ramagens torcidas, barrancos, soli-
dão, naquelas terras pobres. (Casa na duna)

Domínio de extensos areais, de incultos, de matos e baldios, a Gândara (terra


areenta), manteve-se praticamente despovoada até ao final da Idade Média.
São quase sete da manhã quando a carrinha negra chega a dois quilómetros da vila
e enfia pela estrada aberta entre paredões de calcário, talhados a pique nos flancos
das colinas, painéis geológicos que mostram a formação lenta do terreno, estratos
sobrepostos, fósseis marítimos que os últimos sedimentos foram recobrindo: estre-
las do mar, sardinhas, búzios petrificados, grânulos de carvão no branco diferente de
cada camada, ora vivo ora fosco, que o sol e a chuva transformarão com o decorrer
dos anos em vários tons dourados. (Pequenos burgueses)

A “revolução do milho” introduz modificações nos ritmos demográficos, pro-


vocando um aumento generalizado da população portuguesa. A pressão demo-
gráfica promove uma intensa mobilidade de homens e mulheres, que do Norte
procuram no Sul novos horizontes de trabalho. Nesta caminhada, a Gândara tor-
na-se um lugar de paragem. Em cerca de duzentos anos passa de 7 para 100
habitantes por km2.
A propriedade (o seu ordenamento) obedece agora a regras imutáveis. No começo,
não. Há um século ou dois, oscilaram bastante. Direi mesmo: imitaram a natureza
(dunas feitas, desfeitas, pelo vento). A voz do executor fiscal, com dobradiças entre
as palavras. Excesso de saliva: escorre pelos cantos da boca, mas coalha tão de-
pressa que as dobradiças rangem desagradavelmente: O areeiro não tinha dono.
(Em teoria, claro, era o estado). Deu-se a ocupação selvagem do solo. As conces-
sões, os foros, os arrendamentos, só vieram depois: legalidade incerta, contestada.
Foi preciso tempo (e sangue, já se vê) para esclarecer a posse definitiva da terra.
(Finisterra. Paisagem e povoamento)

*
Universidade de Coimbra.
64 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Um deserto, quase todo baldio, foi, progressivamente, conquistado por pe-


quenos lugares, disseminados pelo espaço, e que durante muito tempo consti-
tuíram o essencial do povoamento da Gândara. “Gente numa grande solidão de
areia”. Vivendo em casa construídas com adobos “que duram sensivelmente o
que dura uma vida humana. Pinhais que os camponeses plantam na infância para
derrubar pouco antes de morrer.”
Os terrenos hoje agricultados, onde a família construiu a casa de adobos (que as
cantarias, os cunhais de pedra, têm aguentado), eram dantes extensões maninhas,
eriçadas de felga e gramata. Em tempos ainda mais recuados, uma flora gigantesca
cobriu a região: encontra-se enterrada ao nível do mar e abaixo dele. Árvores de
grande altura, entre dois lençóis de areia branca. Madeiras fibrosas, duras, de cor
geralmente vermelha. Veios de barro e argila: azuis, verdes, encarnados. A combus-
tão destas madeiras (descobertas em escavações de acaso) é lenta e sem chama
como a do carvão. Durmo sobre florestas de pedra e púrpura. (Finisterra. Paisagem
e povoamento)

Mas a Gândara é também um território marcado por ciclos. Da terra e dos


homens. O milho marcou-lhe o ritmo e, com o pinheiro, moldou-lhe a cor.
A chuva, em grossas bátegas, derreava o telhado. Firmino consertava os rombos por
onde o inverno entrava, mas a água e o vento tornavam a abri-los, ainda maiores.
A lagoa crescera um metro sobre o bunho e invadia, às golfadas, os casebres de
Corrocovo. Corrocovo era isto: tocas sem lume, devassadas pelo temporal; crianças
quase mortas de frio; os campos alagados; o céu tão baixo que parecia poisar na
rama dos pinheiros; chuva insistente, noite e dia. (Casa na duna)

Os Homens chegaram, fixaram-se, transformaram-na e partiram. Transpor-


tam-na, definitivamente para o Brasil, Estados Unidos ou Venezuela. Levam-na,
por uma ou duas gerações para França, Suíça ou Alemanha. Acompanha, os que
sazonalmente, vão para o Alentejo, ou para as terras do Sado ou valados do
Mondego. Percorre o país com os ourives e marca os que ficaram. Para estes, a
agricultura foi, durante muitos anos, a actividade principal e que teve, na mulher
gandaresa a cumplicidade que a não deixou morrer.
Foi então que a grande estrada que descia da vila começou a aproximar-se de Cor-
rocovo, a abrir-se por entre o mato, a deitar pinhais inteiros ao chão. Apareceu em
frente da aldeia o piso certo de saibro e pedra. E a multidão de britadores, homens
de picaretas, pás, enxadas, com a ajuda dos cilindros enormes, enfiou a estrada ao
meio do lugar. Negociantes, porqueiros, carros de milho, fruta, couve, gados e celei-
ros, passavam agora em Corrocovo, na estrada nova, para as feiras da vila. Gente
de léguas em redor subia e descia com a riqueza da gândara nas manhãs e anoite-
ceres de feira. E a gatunagem apareceu na embocadura das azinhagas, a assaltar e
a espancar negociantes, a tresmalhar o gado. (Casa na duna)
GÂNDARA DE CARLOS DE OLIVEIRA – A SINGULARIDADE DE UM TERRITÓRIO
65
Fernanda Delgado Cravidão

Nas feiras, a Gândara encontra-se, retrata-se e descobre-se. Ontem como


hoje.
É um dia quente de fim de agosto. A terra escalda e as poucas leiras de milho que
restam na planície têm a cor torrada das folhas secas. As eiras estão já cobertas de
espigas. As terras lavradas ficaram nuas. E os vinhedos esperam a vindima. Ranchos
de trabalhadores cortarão a uva até outubro. Quando as vinhas ficarem nuas como
as terras lavradas, o outono acaba. As primeiras chuvas cairão. E então, as folhas
mortas apodrecem para serem levadas na força das águas. O sol estala no tojo, no
lombo das cobras. Os pássaros sonolentos arriscam um voo breve e mergulham
outra vez na sombra. Frescura, só a dos ramos dos pinhais. (Casa na duna)

No início do século XXI tem outras dinâmicas e outros horizontes ― de vida e


de trabalho ―, mas a Gândara continua um território marcado pela singularidade,
geográfica e cultural, que a molda com uma identidade própria num mundo sem
fronteiras.
GÂNDARA // Gândara sem uma ruga de vento. / Sol e marasmo. / Silêncio feito de
troncos / e de pasmo. // Campos, pinheiros e campos / quietos. Tanto, / o sol parado /
encheu-me os olhos de espanto. (…) Sol e vento, / lábios de maresia / na lagoa a coa-
lhar, onda sobre onda, mar / e dia. (…) Vai na lagoa um cheiro de maré, / cheiro de
juncos, o que a tarde teve. / Mulheres da monda mondam na maré, / de joelhos nus,
ao sol dum dia breve. // Aquieta-se em modorra a planície, / os olhos das mulheres
gotejam sono. / É quase raiva a praga que se disse / à carne arrepiada do outono.
// Asas descem o dia, um olhar estreita / aves e campos. Sob os céus doirados, /
juncos colhidos a um sol de mágoa. // Corre a lagoa um frio de maleita. / E córas. Os
sapos abismados / espreitam teus seios pelo espelho da água. (Trabalho poético, Iº
Volume)
MIGUEL TORGA E COIMBRA

CRISTINA ROBALO CORDEIRO*

Gostaríamos de poder qualificar de ambivalente a relação de Miguel Torga


com Coimbra. Esta noção de ambivalência deixaria com efeito uma oportunidade
à atração para levar a melhor sobre a repulsa, à celebração sobre a denúncia.
Mas em vão! Por mais que o intérprete force os textos, não conseguirá obter do
grande escritor, cuja memória é piedosamente honrada pela cidade, nenhum
elogio que não descaia logo em sátira. Digamos então de imediato: Miguel Torga
não gosta de Coimbra, ou, se gosta dela, é com um amor desiludido, à maneira
de um profeta do Antigo Testamento ameaçando Jerusalém, esposa infiel, de ser
punida pela sua impureza. Eis-nos já transportados para uma outra dimensão: a
do mito e do símbolo, que não é a das comemorações locais e menos ainda a dos
guias turísticos, mas que é o meio espiritual onde se move o autor d’A Criação
do Mundo.
O doutor Adolfo Rocha escolheu sem dúvida vir viver e trabalhar em Coimbra,
vários anos depois de aí ter feito os seus estudos de medicina. Em Coimbra em
vez de Leiria onde, contudo, exerceu durante algum tempo a sua arte. Foi em
Coimbra, lugar favorável à troca de ideias, repleto (na época) de livrarias, de
casas de edição e de imprensas, que escolheu abrir o seu consultório de ORL, na
praça da portagem, e construir a sua casa, hoje transformada em casa-museu,
depois de ter desposado uma jovem universitária belga, Mlle Crabbé. Mas estas
circunstâncias biográficas não fazem de Coimbra uma cidade segundo o seu co-
ração, mesmo se encontramos, aqui e além, em páginas do Diário, belos poemas
evocando uma paisagem urbana que não pode ser senão a que tinha perante os
seus olhos quando subia de elétrico da Baixa para Santo António.
De onde vem então a animosidade que o leva a escrever, no final dos anos
1940, o tão caústico capítulo consagrado a Coimbra no seu percurso ao mesmo
tempo geográfico, histórico e psicológico pelo País? Como explicar uma tal impa-
ciência, uma tal intolerância no que diz respeito à sua cidade de adoção?
É a totalidade da sua obra que permite compreender este mal-estar de que
nunca se curará (e que, todavia, se revelou inspirador). A altura e a tensão do
génio torguiano não podiam senão tornar-lhe insuportável um clima espiritual
tão emoliente e corruptor como o que reinava nessa época, a fazermos fé no
que nos diz, na cidade. Como teria Miguel Torga podido não se sentir aqui um
*
Universidade de Coimbra.
68 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

exilado, ou pelo menos um inadaptado, como o Cavaleiro da triste figura que


teria habitado uma risonha estação balnear na costa andaluza?
Não há dúvida de que Coimbra, em 2023, já não se reconhece na feroz pintu-
ra – cinco pequenas páginas – que nos apresenta Portugal (1950). Excetuando o
cenário natural (e até o Mondego foi transfigurado pela barragem), acreditamos
que nada subsiste, ou quase nada, da antiga Capital do reino relegada à cate-
goria de capital de distrito, tal como se oferecia ao olhar penetrante do escritor.
Regressemos então à leitura deste breve capítulo – de que não citaremos senão
alguns fragmentos – como se estivéssemos perante um trabalho de anamnese,
a cidade voltando ao seu passado para nele descobrir a etiologia da neurose de
que soube enfim libertar-se. O que nos obriga a estarmos atentos, mais atentos
em todo o caso do que os leitores apressados que quiseram nele ver um elogio
de Coimbra em lugar de um implacável quadro clínico.
De resto, mais do que pedir emprestado o seu vocabulário à psicanálise (à
qual se mostrava bastante hostil), Miguel Torga fala como um cirurgião. Trata-se
de operar Coimbra do seu abcesso moral recorrendo, como antes dele o fizera
Eça de Queiroz, à retórica da ironia, instrumento de uso delicado, mas que não
deixa de ser salutar: “no caso da página conhecida de Acácio sobre a cidade dos
doutores, porém, o bisturi acertou em cheio e esventrou o fleimão”. É com efeito
pela citação tomada ao Primo Basílio que se inicia o capítulo:
... Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposen-
tos, está a sábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe de amor,
o saudoso Mondego.

A rêverie academicamente libertina do Conselheiro não faz senão concen-


trar os clichés inspirados ao longo dos anos (mas sobretudo no século 19) pela
pose sobranceira que a cidade alta assume, chamando a si, de todo o país, a
juventude sedenta de conhecimento e sobretudo de amor. A inflamação com
que é envenenada a psiché da cidade tem assim a sua origem no discurso
que sobre ela tecem as gerações de estudantes reproduzindo representações
convencionais.
A ridícula visão do Conselheiro exprime com fidelidade o deslumbramento da retina
de todos os bacharéis da nação. Graças a eles, na verdade, Coimbra atravessa o
país de lés a lés nas asas dum lirismo beócio.

O adjetivo “beócio” aplicado à Lusa Atenas merece um comentário. Colocado


no final de uma frase parodicamente oratória, esta maliciosa referência à pro-
víncia grega considerada pelos Atenienses como refratária às artes e às letras
faz ouvir uma nota burlesca, cujo sabor irónico pode aliás escapar a mais do
que um leitor duplamente enganado (pela estética de pacotilha denunciada pelo
MIGUEL TORGA E COIMBRA
69
Cristina Robalo Cordeiro

autor, por um lado, e pela alusão filológica à Grécia antiga, por outro). Podemos
estranhar que a palavra kitsch não tenha aparecido na pena do escritor pois
que é bem disso que se trata: Coimbra sofre do mau gosto dos estereótipos que
acabam por ocultar a sua incontestável beleza (“Coimbra é uma linda cidade”).
Esta contrafação vergonhosa, este erotismo de bazar roça – a palavra pode sur-
preender – a “pornografia”:
E será talvez necessário um terramoto, uma erupção, uma bomba atómica para
fazer o saneamento desta pornografia.

Estamos na ordem dos signos, mais do que na das coisas: é, pois, mais do
que a própria cidade, o discurso sobre a cidade (“Sim, Coimbra é uma linda ci-
dade”, repete o texto) que é preciso mudar, limpar da banalidade vulgar dos
seus lugares-comuns. Em suma, Coimbra é vítima da sua má literatura, onde
infelizmente se compraz o seu narcisismo de “houri de seios ao sol”. Haverá mais
grave censura por parte de um grande escritor?
A este primeiro pesar, o autor acrescenta dois outros, em relação não já ao
corpo, mas ao espírito da cidade. Sem se referir à história, Miguel Torga denuncia a
sabedoria sem sabor de que Coimbra parece orgulhar-se. Situada no centro, entre
Lisboa a marítima e o Porto a telúrica, ela “representa uma neutralidade vigilan-
te” fechada “a todas as aventuras do mundo”. Modelo de medida e de equilíbrio,
testemunha os “limites da nossa capacidade criadora, a solidão da nossa alma”,
exibindo “uma modesta mediania risonha, rasgada aqui, cosida além, de chita es-
tampada”. Podemos lamentar que o escritor não tenha pensado em procurar do
lado do epicurismo horaciano e da sua “aurea mediocritas” uma das principais
fontes do culto conimbricense da quietude contemplativa e do “locus amoenus”.

É naturalmente à Universidade que o escritor reservava as suas mais afiadas


farpas. Se, no próprio plano da estética, a secular instituição não é poupada (e
ainda bem que as linhas seguintes escaparam à atenção da UNESCO…):
Um conglomerado de estilos sem cunho próprio, o mau gosto ao lado do melhor
equilíbrio, a fachada brilhante a encobrir saguões

é pelo defeito de inteligência e de criatividade que os seus mestres mais se


distinguem:
Na índole do que ensina, existe, persistente, a marca das coisas cabeçudas e pro-
vincianas. O tratado reduz-se à sebenta, a tradição à praxe, o saber à erudição. Não
há um invento, uma ideia, uma teoria que tenha nascido ali. Mas nem os inventos,
nem as ideias, nem as teorias são necessárias a uma Universidade que se basta no
simples facto de o parecer aos olhos da ignorância colectiva. Por isso se defende
com unhas e dentes de toda a originalidade, de todo o pensamento subversivo,
recusando-se obstinadamente a pôr de lado a borla e o capelo da mistificação...
70 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Não podemos deixar de perguntar a que desastrosa experiência, a que má


recordação será devida uma vergastada de uma tal virulência, que mal se distin-
gue de um crime de lesa-majestade, pois é impossível pensar que Miguel Torga
se tenha deixado levar por um obscuro ressentimento perante a que foi, para ele
como para tantos outros, a sua alma mater. Mas não será precisamente a reve-
rência cega para com os detentores patenteados do saber que ele recusa? Ou
não será o seu génio da revolta que vem desafiar o conformismo e “o instinto de
conservação” sempre pronto a repor “sornamente o musgo secular nas cátedras
da sapiência”?
A verdade é que, a despeito desta inércia, a Universidade de Coimbra, segun-
do confessa o próprio autor, viu sair de si “Camões, Garrett, Antero, Eça, António
Nobre, Afonso Costa e outros” (sem mencionar o próprio Miguel Torga). De onde
vem esta espécie de paradoxo? A resposta está aqui: “não tendo capacidade
formativa, a Universidade desperta, por isso mesmo, uma premente necessidade
de reacção.”
A outra e última censura, a mais séria: Coimbra é responsável pela fraqueza
moral da nação, incapaz de distinguir o verdadeiro do falso:
Os rapazes que nas suas escolas não souberam aprender o sentido profundo das coi-
sas, confundiram um pedaço da natureza e da pátria com uma oleogravura de bordel.

Dito de outra forma, é de Coimbra que vem o mal português. Traindo a sua
vocação, a Universidade embalou os espíritos no encantamento da sua “luz se-
dativa” e do seu “ópio sentimentalista”. Podendo ser uma “colline inspirée” (títu-
lo de um romance de Maurice Barrès), ela mais não fez senão dormitar num “ba-
nho-maria nostálgico que, sendo uma realidade física local, é simultaneamente a
atmosfera mental do português.” Ao escrever estas duras palavras, não estaria o
escritor a convidar os seus compatriotas, vinte e cinco anos antes da revolução,
a sair da passividade conservadora tão propícia à conservação das ditaduras?
Ter-se-ia Miguel Torga sentido mais em casa em Salamanca ou em Oxford, em
Paris ou Nova Iorque? É pouco provável. Talvez lhe fosse preciso também a ele
um meio contra o qual se afirmar na sua diferença. O capítulo “Coimbra” do seu
livro Portugal está com certeza “fora de prazo”, mas vale ainda a pena lê-lo e me-
ditá-lo, lê-lo pelo seu mérito literário, meditá-lo pela sua virtude regeneradora.

30 de Outubro de 2023
ROTEIRO LITERÁRIO VERGÍLIO FERREIRA

CATARINA SANTOS*

A aldeia de Melo é indissociável do nome do escritor. O ciclo literário e bio-


gráfico de Vergílio Ferreira só se encerra, em definitivo, com o retorno à aldeia
eterna, como sucede no último título, Cartas a Sandra, editado postumamente,
mas concluído antes de falecer, e como o regresso do escritor, para sempre, à
terra das origens: “Não tenho projectos para depois da morte, excepto o de me
enterrarem onde é o meu lugar. É onde haverá sossego e o retorno às origens
para que o ciclo se feche”
O roteiro Literário Vergiliano recupera e reconstrói a memória das gentes
desta aldeia do Concelho de Gouveia, isto é, os seus costumes, histórias e senti-
mentos valorizando o património e a paisagem que o autor de Até ao Fim recriou
nas páginas dos seus livros. Como sabemos, Melo é o centro, na fase neo-rea-
lista do escritor agruras e combates sociais de um povo, convertendo-se, mais
tarde e aquando do regresso dos protagonistas ao “espírito da terra”, num lugar
de emoções, ou agora segundo o autor: “prende-me à aldeia, naturalmente, o
ser de lá a minha infância. Assim, com a transfiguração do ambiente em que vivi,
o mistério da montanha e as suas lendas, a rudeza melancólica das pessoas e
coisas que descobri em pequeno. Ora, se a arte visa emoção-síntese da vida, o
filtro da distância ajuda a mesma arte. Por isso me agrada utilizar as dominantes
desse ambiente remoto e as utilizo com frequência.”
O roteiro tem como referência o lugar da infância do autor, esse lugar que
descreveu com poucas alterações, nos seus quadros narrativos e no diário.
Deste modo, ao comtemplar os lugares, monumentos, casas e paisagens de
Melo, onde se movimentam muitos dos protagonistas e personagens de ficção
do autor de Manhã Submersa, o público que percorrer os caminhos da escrita
vergiliana terá oportunidade de respirar uma atmosfera idêntica à que o autor
captou para os seus romances e contos. Ora, quem lê os livros de Vergílio
Ferreira sente, quase sempre e como sabemos, uma predisposição natural e
emotiva para visitar a aldeia natal e descobrir muitos cenários dos seus ro-
mances, pelo que este Roteiro surpreender o leitor vergiliano, enquanto quem
nunca leu qualquer livro do autor de Aparição ficará a conhecer, ao seguir os
percursos do Roteiro, o principal espaço da sua ficção e um pouco da sua escrita,

*
Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira.
72 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

como um excelente incentivo para a leitura e o diálogo futuros com a obra


literária de Vergílio Ferreira.
Os painéis espalhados ao longo dos dois percursos que fazem parte do Ro-
teiro ― Urbano e Rural ― celebram, em simultâneo a palavra vergiliana e a sua
Aldeia Eterna. Por essa razão, termino com estas palavras de Vergílio Ferreira
sobre Melo, extraídas da revista literária espanhola Anthropos: “Melo é uma bela
aldeia, mesmo a olhos estranhos, que porventura a visitem. E a serra que a domi-
na e abriga, imprime-lhe um carácter em que facilmente fiquei a reconhecer-me
para a vida inteira. Neve, ventos, solidão. É o negrume das terras e modo de ser
das gentes. Sinais fáceis de uma identificação dessa minha terra e de mim”.

Villa Josephine (Casa de Vergílio Ferreira - Melo)

Praça Vergílio Ferreira (Melo)


NA PÓVOA DE ATALAIA, EM BUSCA
DA GEOGRAFIA POÉTICA DE EUGÉNIO
DE ANDRADE

FERNANDO PAULOURO NEVES*

Por uma manhã de Julho, cheia de matéria solar, rumámos à Póvoa de Ata-
laia e acolhemo-nos, num primeiro passo, ao peso da sombra da tília frondosa,
à beira da antiga escola primária, onde está aberta aos olhares de quem queira
uma exposição sobre a obra de Eugénio de Andrade. Íamos em busca de uma
particular geografia sentimental do poeta, a sua Terra Mãe, Matéria Matriz, para
utilizar a expressão de Arnaldo Saraiva no texto com que prefaciou Poesia: Terra
de Minha Mãe.
A jornada, promovida pelo Centro de Estudos Ibéricos, no âmbito do conhe-
cimento do Território dos seus Cursos de Verão, tinha um traço de união, uma
circunstância comum, a celebração dos centenários de Eugénio de Andrade e
Eduardo Lourenço: dois amigos que iluminaram, cada um à sua maneira, a cul-
tura e a poesia portuguesas – Eduardo expoente do ensaísmo e que tanto nos
ensinou a pensar Portugal e Eugénio aquele que Herberto Hélder, a propósito
de Poesia, considerou em 2000 não haver nenhum poeta que pudesse ombrear
com ele nesse meio século.
No adeus a Eugénio, o autor de O Labirinto da Saudade escreveu que “a
última morada devia ter a forma de um navio vogando silente entre as conste-
lações – os seus poemas – em busca do que nunca perdeu, o gosto da terra,
metáfora materna do seu inacabável nascimento”. Num outro texto, Lourenço
assinala certeiramente que “Eugénio de Andrade associa espontaneamente o
nascimento da sua poesia à música” lembrando: “Poesia ouvida no canto ime-
morial de mulher beirã, música iluminando de solidão o seu jovem corpo à escuta
de um harmónio na noite”.
(Obras Completas de Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia)

Cabia, talvez, nesta iniciativa do CEI, ir em busca dessa certidão de nas-


cimento da poesia de Eugénio de Andrade, onde bebeu ele a matéria solar
que alimentou os seus versos em todo o arco temporal da sua vida. E foi o

*
Jornalista e Escritor.
74 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

que fizemos. A amizade com o Poeta, permitiu-me acompanhá-lo muitas ve-


zes, nas suas vindas à Beira, e perceber os seus passos e emoções face ao
universo muito particular da sua geografia poética. Foi da experiência dessas
vivências que nasceu A Materna Casa da Poesia. Sobre Eugénio de Andrade,
que publiquei, primeiro em 2003, e depois reeditei em 2016. Para mim, mais
do que uma aventura ensaística marcante, foi o sortilégio de ouvir as longas
falas do Poeta sobre o seu universo criador e o seu mundo cultural, que da
poesia fazia pontes com a música, a “inalcançável estrela”, como disse num
dos seus versos.
No fundo, uma viagem à fidelidade à terra original e ao lugar primordial da
Beira Baixa, realidades que perpassam por toda a sua obra, em palavras e versos
muito belos. Sem qualquer receio, pode dizer-se que os territórios da infância e
o tempo do "falar materno" marcariam, de forma muito nítida, a sua produção
poética. Eugénio é muito claro na afirmação da certidão de nascimento da sua
poesia:
Numa aldeia da Beira Baixa, provavelmente em Julho ou Agosto, quando a força
da canícula entra até pelas frestas mais estreitas da noite e nos impede de dormir,
uma melodia sobe no coração da lua, e inesperadamente acaricia o corpo pequeno,
intranquilo e solitário que era então o meu. Acabo de falar no nascimento da poesia
e da música.
(Poesia, Terra de Minha Mãe)

Nunca o céu de camponeses deixou de aquecer o seu labor poético, como se


estivéssemos perante alguma coisa genesíaca, consubstanciadora de todos os
lumes, seiva identificadora de tudo aquilo que é vida e amor e terra. E, ao mesmo
tempo, fonte das oferendas corporais que simbolicamente a sua poesia respira,
como nenhuma outra. Ele próprio o disse numa das suas entrevistas: "Devo ao
céu camponês da minha infância esse princípio de paixão que me leva a procurar
nas palavras o rumor do mundo".
Talvez nenhum texto explique tão bem a sua biografia como aquele em que
Eugénio fala da sua origem e da identificação da sua poesia com as coisas sim-
ples da terra, com a essencialidade de um mundo cuja materialidade transparece
em toda a sua arte poética.
Percebe-se assim melhor o que Eugénio disse um dia, na entrevista, a que
Arnaldo Saraiva alude também no ensaio "Terra-Mãe, Matéria e Matriz Poética",
quando o jornalista questionou o poeta sobre o que tinha trazido de Póvoa de
Atalaia. ― "Quase tudo", respondeu o poeta. ― "Minha mãe, a terra, a água, o
sol, o vento. E também o espanto. E ainda a melancolia, que é a outra face do
fervor".
E noutro passo:
Foi importante ter nascido numa pequena povoação do sul, com grandes espaços
NA PÓVOA DE ATALAIA, EM BUSCA DA GEOGRAFIA POÉTICA DE EUGÉNIO DE ANDRADE
75
Fernando Paulouro Neves

abertos à poeira dos rebanhos; foi importante ter sentido o ardor do vento e o cheiro
da cal fresca; foi importante ter ouvido na noite a música do harmónio, o som do
malho na bigorna no pino do Verão, o chiar dos carros carregados de feno ao fim
do dia; foi importante colher as maçãs das árvores e mordê-las e deitá-las fora, ou
mergulhar os pés na água até ficarem de vidro.
(Poesia e Prosa).

Como se Eduardo Lourenço nos acompanhasse na viagem do Centro de Estu-


dos Ibéricos, fomos aos lugares do lume e das casas, procurando nas vertentes
do olhar, os sulcos da sede que acompanham a invenção da luz no coração dos
dias. Era mais um regresso à raiz telúrica de Eugénio, e, junto à casa da Eira,
lemos aquela identificação tão bela de pertença a uma terra:
Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa
que prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a
água. Nesse tempo que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e
sem fadiga de minha mãe, aprendi que poucas há absolutamente necessárias. São
essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e água, a luz e o vento
consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz.
As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elemental. Guardo
desse tempo o gosto por uma arquitetura extremamente clara e despida, que os
meus versos tanto se têm empenhado em refletir: o amor pela brancura da cal, a
que se mistura invariavelmente no meu espírito, o canto duro das cigarras, uma
preferência pela linguagem falada, quase reduzida a palavras nuas e limpas de um
cerimonial arcaico – o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da
alma. Dessa infância trouxe também o desprezo pelo lixo, que nas suas múltiplas
formas é sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergu-
lha inteiro nas suas águas, talvez porque então o mundo não estava dividido, a luz
cindida, o bem e o mal compartimentados; e, ainda, uma repugnância por todos os
dualismos, tão ao gosto da cultura ocidental, sobretudo por aqueles que conduzem
à mineralização do desejo no coração do homem. A pureza de que tanto se tem
falado a propósito da minha poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da
terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada”.
(Poesia e Prosa)

Um dos mais antigos e belos poemas de Eugénio de Andrade, intitulado "Can-


ção", é, do mesmo passo, uma homenagem ao veio lírico de tão velhas raízes na
poesia portuguesa, mas também uma evocação da Beira e dos seus balcões,
os balcões de Póvoa de Atalaia. Canção transporta-nos aos velhos trovadores e
sempre que ouvi o poeta dizê-la, com o rigor exato dos silêncios, o que tornava
ainda mais mágico o momento da poesia, pareceu-me sempre que o tempo fica-
va suspenso das palavras.
76 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Tinha um cravo no meu balcão;


veio um rapaz e pediu-mo.
― mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;


veio um rapaz e pediu-mo.
― mãe, dou-lhe ou não?

Dei um cravo e dei um lenço.


só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
― mãe, dou-lho ou não?

(Primeiros Poemas, in Poesia)

As palavras abrem-se "à mais pura madrugada" nessa viagem interminável a


um mundo em que o homem é a medida de todas as coisas.
O seu canto é sempre de índole superior, densamente humano ("Não canto
porque sonho. Canto porque és real"), triunfador sobre o silêncio e a dor, mesmo
quando esta, incicatrizável, impele a "ir com as aves". Poeta do amor, como ato
de plenitude, livre e libertador, a poesia do autor de Os Amantes Sem Dinheiro
liberta no próprio instante da sua apropriação pela leitura e, nesse ato de liber-
tação, gera mil cumplicidades numa poética em que o esplendor do corpo é o
impetuoso rio da vida, "corpo habitado" na plenitude do ser, como diria Ramos
Rosa. É um universo em que se configura esse compromisso de felicidade, atra-
vés do belo e do amor, essa visão de uma natureza em que nasce a plenitude
elemental metafórica da realidade telúrica, que é o mundo que abarca o seu
olhar num incessante louvor de vida, que se sobrepõe sempre às nuvens negras
dos dias. E tudo isso na síntese maior que o amor ocupa na sua arte poética. "Na
porosa fronteira do silêncio", os versos de Eugénio de Andrade são uma magní-
fica âncora de esperança, feita de palavras de cristal, essa “espécie de música”,
como Óscar Lopes definiu a sua poesia, que torna o mundo mais habitável e
puro.

30 de Setembro de 2023
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS
DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA

RUI JACINTO*

0. FERNANDO NAMORA E EDUARDO LOURENÇO: UM


DISCRETO DIÁLOGO
“Figura maior de uma geração literária conhecida pela sua ambição crítica e pelas
suas obras de denúncia apaixonada e lúcida da ordem existente, poderíamos ter a
tentação de reduzir Fernando Namora ao papel, mais que invejável, de romancista
«alistado». Mas quando se lé com atenção os seus livros, quase todos intensamente
autobiográficos, apercebemo-nos que a acuidade, por assim dizer «clinica», do seu
olhar sociológico, a sua maneira de tocar com o dedo as chagas seculares de uma
sociedade sem estrutura, ao mesmo tempo frágil e cheia de pretensões e sonhos
cosmopolitas, traduzem uma aventura bem mais patética e reveladora”. (Eduardo
Lourenço, Vence, 27 de Agosto de 1974)

As vidas de Fernando Namora (1919-1978) e de Eduardo Lourenço (1923-


2000) cruzaram-se tangencialmente em Coimbra, no início dos anos quarenta
do século XX, onde aportaram para frequentar a Universidade. Namora perma-
neceu na cidade entre 1935 e 1942 e Lourenço entre 1941 e 1944, prolongando
a estadia por mais cinco anos, após concluir o curso e ser integrado, em 1947,
como assistente na Universidade de Coimbra, e partir, em 1953, para França. O
provável contacto pessoal entre ambos, a ter ocorrido, foi fugaz e proporciona-
do, certamente, por Carlos de Oliveira cuja amizade com Fernando Namora não
resultou, apenas, da frequência da casa de José João Cochofel, hoje Casa da
Escrita, mas por via do irmão Fernando, colega de ano de Namora no Curso em
Medicina. O poema de Carlos de Oliveira escrito para o livro de curso de Namora
mostra o cimento desta amizade.
Carlos Oliveira, como se sabe, além de colega de Eduardo Lourenço foi par-
ceiro com quem compartilhou as inquietações de espíritos ávidos de conheci-
mento e dum futuro mais auspicioso, apostados em mudar o mundo e o curso da
história. Nesses Tempos de Coimbra assumiram as interrogações, individuais
e coletivas, e entre amores e desamores, tensões e conflitos, comungariam as

*
CEGOT, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Ibéricos (CEI)
78 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

perplexidades culturais, sociais, políticas e filosóficas duma geração que viveu


uma época de charneira. A ligeira diferença de idades entre Fernando Namora
e Eduardo Lourenço ditou que passagem por Coimbra, em simultâneo, fosse de
apenas um ano, tempo demasiado breve para amadurecer um conhecimento
mais aprofundado. Contudo, partilharam afinidades que não eram comuns à ge-
neralidade da elite estudantil que tinha o privilégio de chegar à Universidade;
este tipo de posições, ontem como hoje, continuam a fazer muita diferença entre
os que frequentam o meio académico.
Ambos manifestavam apetência pela cultura, sobretudo as artes e a litera-
tura, e, em surdina, pela política. O olhar crítico e as reserva que tinham às ve-
lhas tradições coimbrãs, outro ponto em comum, haviam de ser expressas mais
tarde. Namora diria a este propósito que, “verdadeiramente, eu nunca fui um
«coimbrão». Nem boémias, nem trupes, nem serenatas”. Lourenço, por seu lado,
reconheceu que “nunca fui muito folclorizante e na minha geração éramos muito
reticentes em relação ao culto da tradição”. Os valores em que acreditavam,
cada um no seu estilo e à sua maneira, assentaram em princípios e valores que
assumiram precocemente e haviam de nortear a conduta das suas vidas.
Apesar de todas estas reservas Coimbra foi marcante para toda esta gera-
1
ção. Este sentimento foi expresso por Eduardo Lourenço num Colóquio , que
procurou contornar pois o “assunto deste colóquio deixa-me perplexo”, con-
fessando que “a mim o que me apetecia era falar de uma coisa de que é raro
falar, sobretudo aqui na presença tão amiga e simpática de jovens colegas e
grandes universitários, que seria a “mitologia coimbrã”. A mitologia coimbrã
existe e eu naturalmente ignorava, quando cheguei aqui, em 1940, que ia en-
trar num mundo com outras regras e outros ritos, sobretudo naquela época
em que Coimbra ainda tinha essa espécie de monopólio muito simbólico, por-
que, na verdade, naquela altura só havia mais duas ou três universidades”. Diz
Eduardo Lourenço:
“A Universidade de Coimbra era uma universidade ainda muito familiar, e daí cheia
de ritos, de gente que tinha tradições académicas que passavam de pais para filhos.
Coimbra era realmente um núcleo um pouco à parte, mas quando me refiro à mi-
tologia coimbrã penso fundamentalmente que esta cidade, além de ser o Studium
Universalis foi também a cidade da juventude portuguesa que aqui estudava e onde
há uma espécie de continuidade não de tipo ficcional, mas de tipo poético. A poesia
em Portugal fazia-se na Universitária. Toda a gente andou em Coimbra até finais
do século xix e, portanto, esta era a cidade dessa ordem poética. (…) “Coimbra foi
para mim a descoberta de um outro mundo, um mundo novo de novas amizades e
sobretudo de entrar num percurso estranho, primeiro nas ciências, depois nas letras,

1
O Colóquio “Eduardo Lourenço: as paisagens matriciais e os tempos de Coimbra” (Coimbra, 26 de abril de
2012), organizado pelo CEI, teve uma intervenção de Eduardo Lourenço que intitulou Tempos de Coimbra.
Ver: Eduardo Lourenço (2013; 2023).
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
79
Rui Jacinto

e ficar para sempre no círculo encantado desta cidade universitária, na altura única.
É claro que a gente sabe que a mitologia coimbrã tem o seu ponto mais alto, sobre-
tudo pelo estatuto literário, no famoso texto de Eça de Queirós dedicado a memória
de Antero de Quental, onde toda a mitologia moderna do lugar cultural e também
de vocação ideológica da academia de Coimbra é invocada como qualquer coisa de
representativa de uma nova leitura do passado cultural deste país”.

Além de mitificada Coimbra foi determinante nas respetivas trajetórias pes-


soais, profissionais e literárias. Foi nesta cidade que tanto Fernando Namora
como Eduardo Lourenço cimentaram as respetivas formações, despertaram
para a vida, para as artes e, à medida que se confrontam com as contradições
políticas e sociais assumem empenhadamente, um compromisso cívico: “Esta
nova geração era uma geração que conhecia essa presença e que estava em
diálogo com ela mas também com atitudes críticas em relação à atitude con-
siderada ainda muito subjetivista e romântica, uma vez que a geração de que
eu estive próximo em certo momento estava muito implicada numa luta já de
um novo tipo, ideológico e político, que se reclamava das tradições europeias
e até universais.”
A formação cívica era adquirida, informalmente, em cafés e a tertúlias. A mais
celebre e restrita, que Lourenço, com pena, nunca chegou a frequentar, ocorreu
em casa de João José Cochofel, hoje Casa da Escrita. “E Coimbra era conhecida
nessa época pelas lutas que se faziam quando havia eleições; uma luta entre a
direita e a esquerda fundamentalmente, com forças mais ou menos iguais. O que
era novo naquela altura não era o discurso oficial dominante, mas uma nova ge-
ração que reclamava numa nova utopia na ordem ideológica, uma utopia cheia
de esperança em que a história e o futuro se identificavam com as suas próprias
ilusões políticas e sociais e que deixou uma marca na cultura coimbrã que ainda
persiste até hoje. A famosa geração neorrealista foi uma espécie de cultura do-
minante de Coimbra, com manifestações noutros pontos do país, traduzindo uma
geografia cultural cujo enraizamento histórico ou cultural se encontrava nesta
Coimbra”.
Não é por acaso que Eduardo Lourenço doou uma parte da sua Biblioteca
pessoal à Casa da Escrita e que ambos acabaram, duma maneira ou doutra, li-
gados à Revista Vértice, onde publicariam diversos textos. Namora havia de re-
conhecer que “Coimbra é um molde. Impossível reduzi-la a breves anotações”;
Eduardo Lourenço, nesta linha, foi mais longe, deixando uma frase que merece
atenção, reflexão e pesquisa:
“O meu período coimbrão foi, do ponto de vista cultural, decisivo e foi aqui nesta
cidade que aprendi alguma coisa”. Foi em Coimbra que conheceu “pessoas que
tiveram no meu percurso uma influência capital, entre as quais o meu amigo Carlos
de Oliveira, um dos grandes poetas que ainda hoje tem um estatuto de memória muito
80 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

vivo, como outros camaradas daquela época que partilhavam um certo ponto de
vista ideológico, bem como de outros que representavam uma outra tradição nossa”.

Não sem conflito interior nem litígio com os seus amigos mais diletos foi à
sombra da Universidade de Coimbra que Lourenço concebeu a sua “Heterodo-
xia” estruturando um modo de pensar e de ler o mundo que deixará plasmado
na sua longa e multifacetada obra. O significado do imaginário coimbrão e a
perenidade desta influência deixou assim expresso: “cada tempo recomeça a
totalidade do passado que está atrás dele e de outra maneira. O inevitável
Pessoa disse esta coisa maravilhosa ´cada época lega a outra aquilo que ela
não foi´”.
O facto de ter sido na cidade que definiu o seu modo de pensar obriga-nos
a reter que estamos perante a lacuna de ainda não existir um trabalho que
analise a influência do período coimbrão no pensamento e na obra de Eduar-
do Lourenço: “Portanto o tempo, esse tempo mítico de Coimbra em que nós
vivemos está encerrado numa espécie de cápsula temporal em que as oposi-
ções e as contradições faziam sistema. O passado tem que se compreender
em função de uma coisa irrepetível e única que cada presente significa. (…)
Naquele tempo era o tempo da revelação e cada época que vem é aquele
tempo, que é o emblema de um dos livros mais populares da mitologia coim-
brã, “In ilo tempore”. É o tempo de uma geração. O resto ou é morto, ou puro
sonho”.
Eduardo Lourenço esteve atento desde cedo à produção literária de Namo-
ra como atesta a recensão publicada na Vértice, em 1946, suscitada pela Casa
da Malta, obra publicada por Namora meses antes (1945), escrita de supetão
quando deixou Coimbra e abandonou definitivamente Condeixa para exercer
medicina na Beira Baixa (Tinalhas, depois Monsanto). Casa da Malta inicia uma
sequência de romances que marcarão o ciclo rural que representam uma par-
cela importante do legado de Namora (Lourenço, 1946). Ainda mais elucidativo
desta atenção de Lourenço é o importante ensaio que escreveu em 1969 a
propósito dum outro livro de Namora, Diálogo em Setembro (1966), obra de
charneira no percurso do romancista, publicado originalmente por Eduardo
Lourenço em O Comércio do Porto (9 e 23 de Abril de 1969), a que deu o título
de Psicanálise de Portugal (À Margem de Diálogo em Setembro). Esta longa
crónica de Fernando Namora, o livro mais longo que escreveu, serviu de ca-
talisador, estamos em crer, da reflexão que Lourenço andava a amadurecer:
o emblemático O Labirinto da Saudade (1978) que receber como subtítulo,
precisamente, Psicanálise mítica do destino português.
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
81
Rui Jacinto

Algumas dedicatórias de Fernando Namora escolhidas entre os livros doados por Eduardo
Lourenço à Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL, Fundo Eduardo Lourenço)

Lourenço reconhece que Diálogo em Setembro é “uma obra imprescindível


no processo acelerado na nossa autognose nacional”. Não nos podemos admi-
rar, portanto, que o ensaio Psicanálise de Portugal corresponda ao capítulo que
fecha O Labirinto, livro que é rematado com um parágrafo lapidar: “Diálogo em
Setembro pode ser lido, simultaneamente, como o monumento acabado da nos-
sa fascinação secular de provinciais em face da Europa e da sua superação em
termos de convívio aberto e adulto. Mas a essas duas leituras uma terceira se
sobrepõe e é aquela que faz de Diálogo em Setembro uma memorável viagem,
não na asséptica e ultracivilizada Suíça, carrefour de banqueiros e intelectuais,
mas em Portugal, num Portugal-outro, mas bem conhecido, aquele que cada
82 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

português transporta com uma obsessão e um temor sagrados nos seus con-
frontos com espelhos alheios. O encontro com os outros é o verdadeiro encontro
connosco. Fernando Namora no seu encontro com a Suíça, como romancista
avisado que é, descobrirá nela uma Suíça invisível para suíços, mas acima de
tudo descobrirá nela e por causa dela um Portugal invisível dentro de muros
caseiros. É uma autêntica aventura terapêutica, uma psicanálise de Portugal e
do comportamento português que confere a Diálogo em Setembro um inegável e
raro interesse. Não é de estranhar o sucesso que parece ter suscitado, nem será
de mais a atenção séria que se lhe dedicar. Fernando Namora oferece-nos um
espelho incomum para nos vermos. Debrucemo-nos nele.”
A admiração mútua não parou de crescer desde Coimbra se observarmos
as dedicatórias de Namora aos livros que ofereceu a Lourenço, ao número de
2
ensaios dedicados às suas obras ou os prefácios a alguns romances . Atentemos
em algumas frases dispersas nestes prefácios que reforçam esta ideia:
“Adolescente, cheio de energia e de sonhos de compensação social, Fernando Na-
mora escolhera-se já como «homem de escrita» para poder trazer à superfície a sua
realidade invisível, ou negada pelos outros, a fim de obter deles o reconhecimento”;
“Muito jovem, Fernando Namora foi sensível à teatralidade inerente as relações hu-
manas na sociedade provincial da pequena burguesia ávida e poupada a que ele
mesmo pertence. Era um pequeno mundo, apavorado com a ideia de cair no «inferno
do povo de que acabava apenas de se extrair, um pequeno mundo deslumbrado
pelas luzes apenas entrevistas da «gente de cima»”; “A harmonia consigo mesmo e
a paisagem de que mal se distingue, conferem ao homem do campo português uma
solidez que impressiona a criança. Namora, deixando nele uma memória durável e
uma necessidade de identificação aos seus valores, efectivos ou sonhados, sempre
presente na sua obra. Não podendo ser um desses camponeses, embora próximo
deles pelos laços de sangue e enraizamento aldeão, Fernando Namora inventa-se ou
escolhe-se camponês, ou antes, terrantes, homem da terra. Não foi decerto por um
snobismo às avessas que, ainda estudante, entrou no movimento literário ao qual o
seu nome ficará ligado, com uma recolha de poemas intitulada Terra”; “Desta procu-
ra de si mesmo, o ofício de médico foi durante muito tempo a condição exterior e o
universo do sofrimento humano a matéria inesgotável. (…) Através do espelho falsa-
mente imóvel que a escrita de Fernando Namora nos oferece, vemos acaso melhor,
numa transparência de sonho, as pulsações de um coração de um homem vibrando
em uníssono com as dores do mundo”.

Namora era para Lourenço “um autor exemplar da fusão, sempre almejada,
da literatura e da vida”. Em outro momento e noutras passagens, fosse na hora

2
Prefácios de Eduardo Lourenço a obras de Namora: (i) Leitura de uma época e sinal precursor (Feu dans la
Nuit, 1971); (ii) O Trigo e o Joio ou a outra face do sonho (1974); (iii) Ecriture et maladie chez Fernando Namora
(Les journées d’un Médecin, 1974); (iv) Les Clandestins (1975).
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
83
Rui Jacinto

da morte (A Morte de Fernando Namora – Entre a Esperança e a Noite, 1989) ou


no ensaio Da literatura como interpretação de Portugal (1975), integrado em O
Labirinto e posteriormente incorporado em O canto do signo. Existência e litera-
tura (1994), referiria Fernando Namora nestes termos:
“No eco público e atento que têm prestado ao movimento em curso, Fernando Na-
mora — é verdade que, há muito, já pouco conforme ao estereótipo do neo-realismo
deixa transparecer uma preocupação profunda em relação ao momento presente.
Não é difícil descobrir nele o eco de uma perplexidade, à primeira vista bem estranha.
Ninguém pode duvidar que Fernando Namora, como outros dos seus companheiros
de geração, tenha percebido a viragem histórica como a passagem à realidade de
alguns dos seus sonhos mais plausíveis e justos. Mas é, em parte, esta tradução
histórica do seu combate literário que lhes cria (acaso só momentaneamente) uma
situação de autores subitamente desarmados” (1994: 270).

1. ROTEIRO FERNANDO NAMORA: ITINERÁRIO DO HOMEM,


REVISITAÇÃO DA OBRA
Roteiro: (…) ninguém entendeu, e nem tu, estrangeiro, / que entre nós não existem
cordilheiras / (…) para ultrapassar as fronteiras, / os fossos, / as ironias, / bastaria
um só olhar! ... (…) vamos misturar o sangue dos rios, / o abismo dos mapas (Mar de
Sargaços; As frias madrugadas)

O percurso multiterritorial contaminou a obra de Fernando Namora onde dei-


xou marcas indeléveis nos diferentes ciclos criativos que o escritor demarcou,
esquematicamente: “a fase de uma juventude em ambiente universitário provin-
ciano, a fase rural, depois a fase citadina, finalmente a confrontação do homem
português com o homem de outros horizontes geográficos e culturais” (Encon-
tros: 210). Esta geografia vivida disseminou por inúmeras páginas verdadeiros
mapas dum atlas literário onde ficou inscrito o espírito dos lugares e a alma das
gentes. Revisitar o itinerário do escritor é situar a obra no tempo e no espaço,
definir a relação que entre literatura e território assim enunciada por Namora:
“por muito diferenciada que seja a obra de um escritor, em climas humanos,
personagens, temáticas, em todos os seus livros se deteta o mesmo modo de
estar no mundo e de o interrogar, o mesmo perseguir de metas. Cada livro seria
uma etapa, ou uma incidência, do mesmo itinerário”.
Sem nos determos em debates e discussões teóricas que tais considerações
suscitam, já feitos, noutras sedes, tentaremos por métodos e caminhos próprios
investigar, compreender e apresentar a experiência humana sobre a Terra (Jacin-
to 1998, 2019 a), 2019 b), 2020, 2021 a), 2021 b)). As Paisagens Literárias Namo-
rianas vão ser colocadas, lado a lado, com as Paisagens Pictóricas para mostrar
84 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

como, além do diálogo convergente, íntimo e cúmplice, dão a conhecer esta arte
3
menos conhecida cultivada pelo escritor . Enquanto se explora a fronteira, frágil
e instável, entre realidade e ficção na tentativa de se encontrar uma poética do
espaço através da geografia poética contida na obra de Fernando Namora rein-
ventamos uma nova e frágil poética da geografia.
O Roteiro de Fernando Namora visa resgatar a memória do homem de cultura
e do cidadão empenhado, tentar subtrair do esquecimento um dos escritores
que marcou a literatura portuguesa do seculo XX, autor que em dado momento
mais longe projetou as letras portuguesas. Pretende-se, assim, situar o homem
no espaço e no tempo, contextualizar uma obra, vasta e multifacetada, tecida
com tenaz labor ao longo dum largo período que coincidiu, em boa parte, com
uma fase negra da história do país.
Roteiro de Fernando Namora: uma peregrinação pelas paisagens literárias

Os laivos de atualidade que persistem na obra de Fernando Namora confe-


rem ao seu legado uma dimensão intemporal cuja leitura é recomendada aos

3
A recolha da pintura de Fernando Namora foi feita por Miguel Pessoa que a deu a conhecer em Fernando
Namora: nome para uma vida (Rui Jacinto, et al 1998), reutilizada para ilustrar o livro O itinerário de Fernando
Namora e a Geografia da sua obra (Rui Jacinto, coord. 2019). Jacinto Rui (2019; Coord.). Fernando Namora:
Itinerário de uma Vida, Geografia de uma Obra. Câmara Municipal de Condeixa.
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
85
Rui Jacinto

que pretendam compreender melhor o contexto sociopolítico em que foi cons-


truída. Num tempo em que se tenta apagar a história e o pensamento dominante
se foca obsessivamente no urbano a obra de Namora é um contraponto por con-
jugar opostos e uma salutar tensão entre contrários, seja entre nós e o outro, a
noite e a madrugada, o rural e o urbano.

Revisitar as Paisagens Namorianas Literárias e Pictóricas:


em demanda do espírito dos lugares e da alma das suas gentes

Paisagem. Monsanto. Óleo, 1945. Casa Museu Fernando Namora.

“Quem vem de longe, das terras frescas do litoral, onde o verde salpica os olhos e se
debruça nas estradas, e após a transição das ravinas do Zêzere, encontra uma paisa-
gem que passo a passo se atormenta: a Beira Baixa. Aí, transposta que é a charneca
com a sua cabeleira rala, nos cômoros a ferida aberta das ribeiras que descem ao
Tejo por entre sobressaltos de xisto, ou ainda o dourado da campanha da Idanha, a
querer-se alentejana sem o ser ― aí, senhores, já a tristeza começa a espessar-se,
a montanha crepita tendo por detrás relances de horizontes fundos, e as coisas se
tornam graves. Ei-lo, um mundo de soledade, sobre que pesam crimes, mesmo se as
frondes e as ramadas lhe escondem as dores do exílio” (A Nave de Pedra).

O itinerário de Fernando Namora sugere uma viagem que se pode traduzir a


partir duma trilogia elementar: origem, peregrinação (interior e exterior, dentro
86 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

do país e além-fronteiras) e regresso (sempre desejado, nunca consumado). Este


percurso, transversal ao tempo, percorre espaços que apontam para uma rota
esboçada na confluência da cronologia com a geografia: a linha de tempo corre
em paralelo à definida pelos lugares, parte de Condeixa, em 1919, até declinar,
em Lisboa, no início de 1989. A partida rumo ao desconhecido no dealbar deste
ano também precipita um inconclusivo regresso às origens, insistentemente per-
seguido, sempre adiado, nunca alcançado.
As várias etapas deste périplo foram concebidas na convicção que “na inter-
pretação duma obra nunca se perde em pesquisar o que a vida fez do homem
que a realizou” (Encontros: 30). A partir daqui, a abordagem concebida seguiu
um guião que tem implícitas várias camadas de leituras, sobrepostas e comple-
mentares, que estruturam outras tantas coordenadas interpretativas: (i) Retalhos
de uma biografia: a vida e a obra, o artista e as suas artes; (ii) Roteiro Namoreano:
a obra, o espírito dos lugares e a revisitação das paisagens; (iii) Viagem a um
legado de futuro: convite à releitura da obra de Fernando Namora.
A geograficidade latente na obra de Fernando Namwwwwora permite-nos
recuar no tempo, percorrer lugares recônditos, visitar interior mais remoto e pro-
fundo, viajar ao acaso como na suposta Peregrinação que nos propõe: “Venho de
um ermo que não existe / nas tuas rigorosas geografias / venho não sei de onde
/ e nem lá regressar poderei / porque nunca afinal lhe fixei a exacta / fórmula das
suas nutrientes matrizes” (Nome para uma casa: 85). Estamos perante uma geo-
grafia literária multi-escalar, que se movimenta entre lugares (Monsanto, Pavia,
Coimbra, etc) e espaços regionais (Beira Baixa, Alentejo, a cidade), entre o país,
a Europa e o Mundo (Diálogo em Setembro, p. ex.). O Roteiro Namoreano que se
esboça a partir da obra, da geografia vivida e do que acabou por ficar consagra-
do na toponímia mostra diferentes percursos locais e regionais, possibilitando
outras tantas viagens cujas etapas coincidem com os capítulos deste livro.
As informações que os textos e as imagens facultam são retalhos duma
vida, fragmentos dum percurso que situam o homem e as circunstâncias em
que a obra foi produzida. Os instantes que se revelam marcaram o autor, são
momentos pessoais que tiveram como protagonistas pessoas, lugares ou cer-
tos eventos. Namora navegou entre a literatura e a pintura, cultivou diferentes
modos de expressão onde transmitiu a sua leitura do território e o entendi-
mento da relação entre o homem e o meio, como interpretou a interação entre
o político, o económico e a sociedade. As etapas da biografia de Fernando
Namora foram sendo tatuadas por acontecimentos e pontuadas por lugares
que determinaram o ritmo da obra e um processo criativo onde a influência da
geografia é equivalente ao potencial que a obra encerra para interpretar certos
contextos locais e regionais.
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
87
Rui Jacinto

O seu olhar humanista sobre a vida e o mundo tanto se revelou através da


escrita como da obra pictórica; as imagens que desenhou e as descrições das
pessoas, dos lugares e das relações sociais que foi fazendo ao longo da vida
deixou-as expressas neste seu Roteiro aonde aportamos novamente “ninguém
entendeu, e nem tu, estrangeiro, / que entre nós não existem cordilheiras / (…)
para ultrapassar as fronteiras, / os fossos, / as ironias, / bastaria um só olhar! ... /
(…) vamos misturar o sangue dos rios, / o abismo dos mapas.

Auto-retrato. Óleo. Anos 40. Col. Margarida Namora


88 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

2. AS FRIAS MADRUGADAS: RELEVOS, MAR, TERRA. VALE


FLORIDO (SICÓ): TERRA-MÃE
“Por mim, sou o que sou, talhado à minha escassa medida, porque esse casal de
imigrados serranos, de sacrifício em sacrifício, me investiu no árduo papel de ins-
trumento da sua aposta no incerto futuro. A placa que foi posta numa rua, com o
meu nome inscrito, encontraria mais adequada justificação, como símbolo de tantas
famílias idênticas, se colocada na casa onde eu nasci (já que o vosso benigno critério
insistira nessa opção), mas com outros nomes gravados: os daqueles que, repito,
se defrontaram com a vida para que eu pudesse abeirar-me daquilo que a eles foi
negado” (Sentados na relva: 193-194).

Paisagem. Vale Florido. Aguarela. 1935. Paisagem. Vale Florido. Aguarela.


Col. Arminda Namora 1935. Col. Arminda Namora

“Os homens, da dureza do rio e da serra e da atitude lírica do vale, temperaram a sua
personalidade de contrastes: sensíveis, contemplativos; ásperos e independentes. O
rio bravo serviria para fosso e as suas margens para alicerces de muralhas. E, assim
protegida, ergueu-se uma cidade de colunas, lagos, jardins. Quando? Os historia-
dores discutem datas, muitos anos antes de Cristo. Mas o que importa é saber que
bárbaros a destruíram; o tempo, depois, esboroou pedra e tijolo, sedimentou frescos
e palácios. E da remota Conimbriga restam hoje, apenas, relíquias desmanteladas,
que o homem, de novo, carinhosamente, liberta das camadas de rocha e terra” (Rio
de Mouros, in Vértice).
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
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Rui Jacinto

Paisagem. Vale Florido. Aguarela. 1935. Paisagem. Vale Florido. Aguarela. 1935.
Col. Arminda Namora Col. Arminda Namora

“Do alto das furnas, via-se o burgo dormindo; uma névoa de primavera, fria, enge-
lhava as casas e o arvoredo. Era dia santo, com feira no Salgueiral. Tinha de se partir
cedo, dando tempo à mula para arrastar a velhice e vencer os solavancos do cami-
nho, a subida da serra escalvada, onde a urze e os corvos vigiam a solidão. (…) Na
sua terra, se o pão faltava, os homens tinham o Alentejo, a Bairrada, ou as vendas da
vila, ou o Brasil. (…) Partiram num crepúsculo de Outono, à hora em que as galinhas
e os rebanhos descem o baldio e os sinos condensam a melancolia das charnecas.
Ela ainda olhou para trás, para esse cinzento da hora triste, derramado por casas e
arvoredos. Havia de voltar e rica. (…) Foram-se chegando à Ribeira Pouca. A serra do
Zambujo era uma negrura soturna e indefinida” (Casa da Malta).
“Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara ma-
tança ritual, os refogados impregnando quanta vizinhança havia, à hora da ceia — a
ceia do par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira.
Tudo cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os
sinos perdidos na charneca, os estalidos na madeira do tecto, o estrondo no casta-
nheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma
ave. Tudo sons que davam mistério às coisas” (Autobiografia, 1987: 10).
90 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

3. NOME PARA UMA CASA. CONDEIXA (1919-1934): A


PEQUENA PÁTRIA
“Burgo: Meu velho burgo dormindo / meu berço de heras / poeira húmida
/ e secos orvalhos / minha lembrança / de presságios não cumpridos / meu
regaço de penas / minha brisa alada / burgo meu cais / donde não parto nem
volto / aceno de asa / sem mastros de largada / minha água / de sede cres-
tada / burgo meu destino / de fugir e restar / sem haver partido” (Nome para
uma Casa, 1984: 27).

Paisagem. Zambujal e Rabaçal. Aguarela. 1938. Moinhos. Rabaçal. Óleo. c. 1935.


Col. Arminda Namora. Col. Arminda Namora

“E na minha terra natal, Condeixa ― estais lembrados, patrícios? A entrada da vila


era um esplendoroso renque de carvalhos e faias, uma data de vezes centenários,
o farfalhar denso da ramaria em cúpula, formando um túnel que nunca se descer-
rava. Poucas as vilas com essa monumentalidade arbórea a servir-lhe de átrio. O
progresso estreitou a estrada, exigiu opções? De acordo. Mas a solução imediata foi
derrubar festiva mente a alameda, em vez de passar ao largo. A história, porém, teve
um desfecho que a faz ainda mais macabra. Decorridos anos, a estrada não parou
de dilatar-se e, para isso, decidiu, só então, rodear a vila, dizer-lhe adeus de longe,
deixando-a sem árvores e sem vida” (A nave de pedra: 240).

“A vila fica numa cova. Uma cova onde o Inverno descansa e se espreguiça, deixan
do rugas de lodo, humidade, velhice. As águas vão alastrando até Abril, os campos
melancólicos e o céu pardo olham-se, soturnos, antes que a Primavera desfaça o pe-
sadelo, renovando a vida, como rapariga sacudindo cabelos ensopados. Das lamas,
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
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Rui Jacinto

germinam flores amarelas e lilases ― que Leónidas aproveita para os seus quadros”
(Cidade Solitária, 1959: 281).

Retrato do Alfaiate Gabriel. Óleo.1936. Retrato de Artur Varela. Óleo. Anos 40.
Col. Arminda Namora Col. Família Varela

“Foram muitos, na época, esses imigrantes humildes, e Condeixa, a Condeixa se-


nhoril, deve-lhes mais do que supõe, tanto pelo que criaram, num desafio que os
excedia, como pelos horizontes que abriram a seus filhos. Neles houve a conjugação
do sonho, da pertinácia e da indocilidade às circunstâncias adversas. Gente corajosa,
que talvez sempre se tivesse sentido estranha na vila, ou estranha a fizeram sentir,
gente que centrou o resgate da sua odisseia mal compreendida na crença nos que
a haviam de continuar. Os solares e os brasões são hoje pedras mortas; mas os ple-
beus, esses, estão vivos e é deles que se fala quando Condeixa tenta definir-se em
termos de identidade” (Sentados na relva: 193-194).

“Acácias jovens na praça, armazéns, a avenida soalhada de vivendas, no sítio onde


o milho, dantes, recebia a seiva do rio. Mais gordo, mais homem. Outro, afinal. A vila
não tinha lugar para recordações. Toda ela entregue à fúria do tempo, renovando-se
em cada instante. Só aqueles que haviam caminhado a seu lado, que a haviam em-
purrado para o futuro, a sentiriam como sua e a mereciam. Não valia a pena iludir-se
e humilhar-se. De raízes cortadas, soltas, era um estrangeiro em toda a parte. Nada
tinha que fazer ali” (Cidade solitária: 199).
92 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

4. FOGO NA NOITE ESCURA. COIMBRA (1935-1942): CAIS


DE TODAS AS PARTIDAS
“Nunca faltaram poetas em Coimbra, Justine. Nem as noites enluaradas que se per-
correm até ao amanhecer. Em grupo, trepávamos a viela de prata que nos levaria à
Sé Velha. Falávamos da poesia, falávamos da vida. A poesia era a nossa respiração.”
(Diálogo em Setembro).

Arco do Aqueduto e Jardim Botânico. Vista do Convento dos Freires de Tomar.


Coimbra. Óleo. c. 1935. Coimbra. Aguarela. 1935
Col. Arminda Namora. Col. Arminda Namora.

“Mas tinham desembocado no coração da Baixa, e as ondas de empregados e costu-


reiras, aos cotovelões, que surgiam de todos os lados, impediam-lhe uma conversa
direita. Ao chegarem junto da cadeia, onde o caminho torcia para Montes Claros, o
Sr. Mendoça, já livre de interrupções, abrandou o passo. Era a altura (…) Lá em baixo
e do outro lado, a Avenida, a Universidade, os bairros novos. A Avenida com palmei-
ras e repuxos, carros eléctricos, gente com a dimensão de formigas. Formigas... Dali,
do terraço, ele era um gigante, um dominador. A paisagem pertencia-lhe” (Fogo na
noite escura).

“Entretanto, no bairro académico, estudantes de várias Faculdades tinham-se agru-


pado na Porta Férrea. Sentados nos muros e nas escadas, conversando, aparenta-
vam a despreocupação dos dias normais. Um pouco antes da hora das aulas o grupo
avolumou-se. Estavam ali para impedir a anunciada intervenção dos que sabotavam
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
93
Rui Jacinto

a greve. Havia moleza nos gestos, no tempo, na atmosfera estagnada. Mas por detrás
da calmaria, demasiado ostensiva para ser verdadeira, adivinhava-se uma tormenta
obscura, prenhe de rugidos que teriam de explodir” (Fogo na Noite Escura: 81; 442).

Caricatura de colega de curso originário Caricatura de João José Cochofel. 1937.


de Avis, sugerindo remeter para o esforçado Col. Biblioteca Municipal de Coimbra
trabalho de reprodução de sebentas

“A vigilância da polícia era um pretexto para essa vagabundagem turbulenta, até


que os códigos da praxe académica, bem mais severos, os obrigavam a recolher a
casa (…) Sempre considerara a Associação Académica um antro interdito aos novatos
como ele; um lugar onde os mais velhos, pomposos e ciumentos das suas prerrogati-
vas, não admitiam misturas. No entanto, ninguém o tomara como um intruso. E, com
os Pedros, bebeu café. E comeu bolos. E até jogou uma partida de damas. Tinha sido
um dia significativo. Afinal era um homem. Naquelas mesas de mármore de um café,
de um café a valer, com criados fardados, bilhares, gente graúda, a sua presença não
destoara. Ninguém o mandava embora. Já podia dizer para um criado: «Traga isto,
traga aquilo» ― e logo lhe obedeciam” (As sete partidas do mundo).
94 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

5. NAVE DE PEDRA. MONSANTO (1943-1943): PESADELO


E FASCÍNIO
“Com vinte e quatro anos medrosos e um diploma de médico, tinha começado a
minha vida em Monsanto. Alí, a província bravia despede-se da campina, ergue-se
nos degraus das fragas para olhar com altivez as serras de Espanha, enquanto o friso
de planaltos que corre as linhas da fronteira espreita as surtidas do contrabando e a
fuga dos rios” (Retalhos da vida de um médico).

«Os contrabandistas estavam na serra havia dois dias. A guarda afastava-se por lon-
gas horas, fazia negaças, para voltar de improviso, empurrando-os para um círculo
estreito logo que os homens se movimentavam. Os guardas revolviam todos os covis
das ravinas e dos matagais, e aquela insistência apenas se compreendia pela cer-
teza que teriam de encontrar contrabando em qualquer parte. (…) Raia de Espanha.
Serranias azuis e violetas que amaciam subitamente em olivais, campinas de trigo,
planaltos de terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo sai dos
barrancos e dos muros ou caminhos melancolicamente guarnecidos de plátanos
abrindo clareiras na mata de pinheiros mansos, de um verde calmo e opulento. […]
Mas antes de os ganhões desempregados e os contrabandistas de profissão che-
garem a essas terras têm de atravessar os baldios do seu país. Para cá das faldas
desabrigadas, com o rio Erges esmagado entre muralhas de granito, o casario nasce
dos moinhos afogados nas enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras,
agacha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas mesquinhas” (A
Noite e a Madrugada, 1950).

Vista de Monsanto. Contrabandista.


Óleo. c. 1956. Col. Casa Museu Fernando Namora. Óleo. Anos 50. Col. Museu Tavares
Proença Júnior
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
95
Rui Jacinto

“A solidão é uma noite fechada: o ramal que vem da cidade, liso e negro, adivinha-
-se pelo halo de poeira acumulada nas margens; os outeiros apagam-se nas som-
bras, os contornos dissolvem-se nos longes espessos. O homem, porém, conhece
esses sítios, mesmo que a noite os desfigure: de olhos vendados diria o limite de
cada estrema, o seu dono, a espécie de semente grelada à flor do solo; conhece-os
através do fogo dos Estios ou dos embaciados lodaçais do Inverno. A sua carne foi
curtida tanto nas invernias, pelo tempo da azeitona, como nas ceifas esbraseadas
pela soalheira; os seus pés decoraram ainda essa terra nos caminhos da aventura ou
quando da migração dos gados, em que se correm léguas para encontrar um casebre
ou um campo de feno. (Minas de San Francisco: 12).

Velho de Monsanto. Pastor de Monsanto.


Óleo. 1945. Col. José Braga de Oliveira Óleo. Anos 40. Col. Margarida Namora

“A minha nave, aproada sobre os horizontes e, como todos os povoados fronteiriços,


desavinda com Castela. Mas vejam-na também dos cimos, como se observa uma saia
rodada que em todos os seus folhos tem vista, quer da Torre de Lucano, uma vigia
sobre o abismo, quer das Torres de Menagem, dos Penedos Juntos, dois colossos de
frontes ensarilhadas, ou das ameias que dominam mais léguas, lusas ou castelhanas,
que os olhos podem abranger: Penamacor, as Idanhas, Monfortinho, S. Salvador, Pe-
nha Garcia, Salvaterra e os cerros de Bejar. Todas as suas lombas são uma floresta
de alcantis, que se vai amainando no encontro com a planura e nela se esbate ainda
em surtos de fúria ou já em oásis de macieza, onde os povoléus deixam, aos poucos,
de anichar-se nas lapas” (A nave de pedra).
96 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

6. O TRIGO E O JOIO. ALENTEJO (1947-1950): SOLITÁRIO


ENTRE MALTESES
“Novo episódio imprevisto – e eis o Alentejo, Pavia. Ao universo para mim estranho
da Beira Baixa, ia seguir-se outro ainda mais estranho: cálido, moroso, recôndito.
Uma fascinação de cal e silêncios exta siados. A largueza espraiada, que se ador-
menta em cada rumor de gesto” (Autobiografia).

“A vila é uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe
interromper o sono, atra vessa uma encruzilhada de estradas por onde corre o aceno
de Espanha ou do mar e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa ao planalto ao
encontro de uma igreja que foi coito de moiros e abades, e ali se fica, arrogante, a
desafiar o pasmo da campina. À volta da igreja, as casinhas brancas, com altas cha-
minés que lhes furam o dorso atarracado, fecham-se num reduto que a voracidade
calma do trigo não consegue romper. As mulheres vêm ansiosas ás portas saber
quem chegou, caçar uma novidade em primeira mão ou inventá-la, se for preciso; os
homens vestem samarrões de pele de ovelha e falam e caminham lentos, austeros;
os garotos correm aos sítios em que a bolota cai das árvores no regaço do mato, pela
graça de Deus. Ao longo da rua há tabernas, onde o rumor brando da vida se encres-
pa, às vezes, em redemoinhos. Muitas tabernas. (O trigo e o joio).

Paisagem. Mora. Óleo. Anos 50. Vista de Pavia. Óleo. Anos 50.
Col. Câmara Municipal de Moura. Col. Casa Museu Fernando Namora.

Os camponeses, depois do trabalho, sentam-se junto do balcão, apoiam os cotove-


los no mármore da mesa, e ouvem. As palavras fatigam. E, por isso, um homem que
saiba atirar com uma frase bem recheada e oportuna preenche uma hora de cogita-
ções. Às vezes, à vila, chega gente vária. São pedras atiradas a um lago adormecido.
Chegam ratinhos, mercenários das ceifas, que entram e saem das vendas com uma
pressa amedrontada, apenas para mercar toucinho e uma onça de tabaco, e os olhos
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
97
Rui Jacinto

alentejanos seguem com ressentimento essa frágil e tenaz vaga de gente, que atra-
vessa províncias para encontrar quem lhe compre o esforço; chegam maiorais que
guiam rebanhos e trazem canções dolentes do Baixo Alentejo; chegam ambulantes
e gente de acaso. São eles que animam as tabernas. Falam, repetem loas, façanhas
e desgraças” (O trigo e o joio).

Paisagem. Óleo. Anos 60? Paisagem.


Col. Antero Simões Bernardes Cedido por Elisa Salema. Óleo. 1969.
Col. Arminda Namora

“Os ranchos demoravam-se no pátio, a modos que a prolongar os dias em que toda
a família tivera trabalho e comida assegurados. Os ranchos do Norte, esses, rece-
biam o salário e partiam logo, como se receassem um assalto. Sentiam-se inseguros,
deslocados, entre tais companheiros solitários e taciturnos. Partiam para lutar noutro
lugar qualquer, até que o Verão os chamasse de novo para a charneca, cumprindo
um ciclo migratório de aves laboriosas. Os do Sul viviam toda a vida na profundeza da
planície. Viviam como uma árvore, uma pedra, que, de tão integradas na paisagem,
não pudessem deslocar a sua raiz” (O trigo e o joio).

“Quem disse que a charneca é árida e a azinheira triste? Quem associa a planura de
trigos e montados à melancolia dos olhos que pedem viço, euforia, garridice, e não
os encontram? A esses, escapa-lhes o fascínio alentejano, a solitude que se fez ca-
rácter, o torpor que é solenidade, o orgulho que não admite a posse sem uma dádiva
mútua” (Sentados na Relva).

“Gostaria de vos contar coisas dessa gente. Coisas da vila, do Alentejo cálido e bár-
baro e dos heróis que lhe dão nervos ou moleza, risos ou tragédia. Apetece-me abrir
ao acaso páginas do passado e recolher, entre outros, o Loas adivinho do futuro;
o Vieirinha, que rasgou o Amazonas e é homem para enjoar se, na sua frente, um
parceiro sobejo mergulhar os dedos numa panela de molhangada” (O trigo e o joio).
98 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

7. CIDADE SOLITÁRIA. LISBOA (1951-1966): VIVÊNCIAS E


EXÍLIOS.
“As desilusões da cidade tiveram um reverso: o privilégio imperecível do convívio com
algumas das últimas figuras maiores da nossa intelligentzia (…). Livros sucederam-se a
outros livros, correndo idiomas e geografias (meu pecado mortal), muitos deles ainda
memória dos tempos de aldeão (…). E na cidade estou, repito. Dela parti à procura de
um mundo maior e mítico, que afinal não era tão grande nem merecia o mito. Na cidade
deixei de ser médico para que o escritor pudesse persistir” (Autobiografia).

“Lisboa, pois, era uma pasmaceira enclausurada, de aldeões bem comportados, que
iam ao cinema aos sábados, com as famílias, e aos domingos atravessavam o rio para
comer mariscos nos restaurantes da Outra Banda. E os rapazes, rebentos tristes desses
campónios vestidos de burgueses, eram uns fedelhos que se julgavam tesos e livres
só porque começavam a desleixar os vincos das calças, bebiam uns copos e tinham
uma chave da porta da rua. Tinham a chave, é certo, mas ao chegarem à rua pareciam
galinhas a escapar-se, estonteadas, da buzina de um automóvel” (Cidade Solitária).

Paisagem. Óleo. 1977. Col. Arminda Namora Guindaste no Porto de Lisboa. Óleo.
1967. Col. Casa Museu Fernando Namora.

“O encontro foi marcado para um local da Baixa, à esquina de uma camisaria muito
afamada, precisa mente onde sempre fantasiei que um dia esperaria a amante que
nunca tive. // «No Rossio», disse ela./ «Pode ser.» / «Por volta das cinco, junto da
Camisaria Saraiva.» / «De acordo. Estarei um pouco antes.» // No Rossio, boa ideia.
É que, apesar de passar ali meio mundo e, por isso mesmo, ninguém ser visto por
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
99
Rui Jacinto

ninguém, a praça é habitada por um halo romântico. No centro, junto da estátua, ou


deixando-se borrifar pelos repuxos dos Neptunos, há sempre pares de jovens enla-
çados” (Resposta a Matilde).

Paisagem. Óleo. Anos 70. Casario. Monsanto. Óleo. Anos 70.


Col. Margarida Namora Col. Margarida Namora

“Nada de atravessarem, porém, o desfiladeiro da avenida ou de irem longe na aven-


tura de sondar os céus. Desconfiavam da cidade e temiam as alturas. O seu espaço
era uma espécie de recreio murado. Porque a cidade, no seu afã de crescer de-
pressa, ao assalto das quintas, deixara atrás de si ilhotas de resistentes, que ela
ia poluindo e debilitando metodicamente: pombas, casebres, árvores que tinham
nascido antes de as avenidas as domesticarem, e alguns homens que ela rejeitava
da sua comunidade de gente hipotecada, correndo, aflita, sem cuidar do que a fazia
correr. Assim acontecia nas traseiras do prédio fronteiro ao de Bárbara, onde, num
terreno baldio, persistia uma dessas ilhotas. Enquanto os empreiteiros, artífices da
colmeia urbana, não chegassem ali armados com as suas escavadoras, triturando,
removendo, abocanhando, até que as tenazes poderosas esmagassem os estigmas
do passado ― hortejos, pardieiros, árvores indóceis ―, certos homens, chamassem-
-lhes então marginais, os mesmos que, vestidos com os frangalhos de palhaços de
circo, tinham um dia impressionado Jacinta, que neles reconhecera os famélicos
numa seara interdita, certos homens iriam construindo e reconstruindo novas gaiolas
que o próximo Inverno ou as trepidantes escavadoras acabariam, mais tarde ou mais
cedo, por tragar. Gaiolas para homens e pombas. Jaulas sem grades. Por isso, as
pombas esvoaçavam, num voo travesso e alegre, sem temor dos aviões que eram os
pássaros da cidade.
Por detrás do prédio fronteiro ao de Bárbara escondera-se um desses ilhéus esca-
moteados a olhos pudibundos: um monturo de ferro-velho, pilhas de madeira que
a humidade enegrecera, detritos, casebres que estremeciam com o vento, roupas
desfraldadas – e os tais homens e as suas pombas” (Os clandestinos).
100 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

8. AS SETE PARTIDAS DO MUNDO. AQUÉM E ALÉM-FRON-


TEIRAS (1967-1989): VIAGENS E DESCOBERTAS
“As desilusões da cidade tiveram um reverso: o privilégio imperecível do convívio
com algumas das últimas figuras maiores da nossa intelligentzia (…). Livros sucede-
ram-se a outros livros, correndo idiomas e geografias (meu pecado mortal), muitos
deles ainda memória dos tempos de aldeão (…). E na cidade estou, repito. Dela parti
à procura de um mundo maior e mítico, que afinal não era tão grande nem merecia
o mito. Na cidade deixei de ser médico para que o escritor pudesse persistir” (Auto-
biografia).

“Nunca se regressa a parte alguma. A certeza disso, todavia, não impede o crescente
fascínio do regresso. Mas regressar a quê, regressar aonde? A um lugar que, afinal,
nunca existiu. A uma vivência que, afinal, nunca foi vida. Porém, nem existindo nem
tendo sido vida, essa abstração não deixa de ser um abrigo, um conforto, uma refe-
rência” (Jornal sem Data).

Málaga. Desenho de Fernando Namora


(coleção de José Manuel Mendes)

“A literatura de viagens é, na verdade, uma constante das nossas letras, documen-


tando uma bossa de caminheiros e não apenas em terras alheias. Pertencem ao
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
101
Rui Jacinto

género, como é sabido, algumas das obras-primas da nossa história literária. (…)
Tudo isso, em suma, é o nosso cerne e, ao mesmo tempo, o estigma de uma quase
singularidade relativamente à noção de «território», hoje muito estudada através do
comportamento dos homens e dos bichos, tanto no seu quotidiano repetitivo como
nos lanches extraordinários. De facto, e para além do ingrediente ibérico da errân-
cia, a história apresenta o homem português atraído pela ultrapassagem dos limites
físicos e psicológicos do seu «território», realizando longe o que não se tenta por
realizar perto. Nesse «longe» ele mostra até potencialidades ignoradas e mostra-as,
frequentemente, tanto mais quanto o «território» lhe é adverso” (Encontros).

Ajaccio. Desenho de Fernando Namora


(coleção de José Manuel Mendes).

“Todo o homem traz consigo um destino de cigano. Por mais que os vínculos o pren-
dam ao seu agro, como raízes que precisam de chão familiar para dar corpo à árvore,
o certo é que a inquietude, ou seja lá o que for de nome mais inspirado, tal os braços
da mesma árvore, procura o espaço sem estremas, ao alto e ao largo, até onde puder
chegar. (…) Pertence à condição humana essa fome do ir além, que ora se exprime
em odisseia ou em aventura, e quanto mais o viver se consciencializa, menos ela se
satisfaz ou se conforma” (A nave de pedra).

“O passado é a âncora, o futuro o leme. Sem eles o presente não tem margens”
(Jornal sem Data).
102 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

REFERÊNCIAS
Obras de Fernando Namora:
Relevos (Coimbra, 1938), Poesia
Terra (Coimbra, 1940), Poesia
Mar de Sargaços (Coimbra, 1940), Poesia
As Frias Madrugadas (Lisboa, 1959), Poesia
Nome para uma casa (1984). Poesia
Marketing (Lisboa, 1969). Poesia
As Sete Partidas do Mundo (Coimbra, 1938), Romance
Fogo na Noite Escura (Coimbra, 1943), Romance
Casa da Malta (Coimbra, 1945), Novela
Minas de San Francisco (Coimbra, 1946), Romance
A noite e a madrugada (Lisboa, 1950), Romance
O Trigo e o Joio (Lisboa, 1954), Romance
Retalhos da Vida de um Médico (1ª série em Lisboa, 1949) Narrativas
Deuses e demónios da Medicina (1952) Biografias romanceadas
Retalhos da Vida de um Médico (2ª série em Lisboa, 1963), Narrativas
Deuses e demónios da Medicina (segunda versão, 2 volumes; Lisboa, 1963) Biografias
romanceadas
O Homem Disfarçado (Lisboa, 1957), Romance
Cidade Solitária (Lisboa, 1959), Romance
Domingo à Tarde (Lisboa, 1961), Romance
Diálogo em Setembro (Lisboa, 1966), Crónica romanceada
Um Sino na Montanha (Lisboa, 1968), Cadernos de um escritor
A Nave de Pedra (Lisboa, 1975), Cadernos de um escritor
Sentados na Relva (Lisboa, 1986). Cadernos de um escritor
Jornal sem data (1988). Cadernos de um escritor
Os Adoradores do Sol (Lisboa, 1971), Cadernos de um escritor
Cavalgada Cinzenta (Lisboa, 1977), Narrativa
URSS Mal Amada, Bem Amada (1986). Crónica
Os Clandestinos (Lisboa, 1972), Romance
Resposta a Matilde (Lisboa, 1980), Divertimento
O Rio Triste (Lisboa, 1982), Romance
Estamos no Vento (Lisboa, 1974), Narrativa literário-sociologica
Encontros (Porto, 1979). Entrevistas
Dispersos (2 volumes; Lisboa, 1999)
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
103
Rui Jacinto

Lourenço E. (1946). Casa da Malta de Fernando Namora. Vértice. Revista de Cultu-


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Lourenço E. (2013; 2023). Vida partilhada. Todos nós ibéricos. Guarda: CEI-Âncora
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Jacinto R. (2021). Fernando Namora: Geografia, Literatura e a leitura do País. In
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O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO
DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA
FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO

AQUILINO MACHADO*

PRIMEIRO ANDAMENTO: O MOSAICO QUE IREMOS


PERCORRER
Nos sessenta anos da morte de Aquilino Ribeiro propomos um itinerário
pelas topografias das Terra do Demo, espaço fulcral da sua geografia sen-
timental beirã. Matizamos este percurso avaliando algumas modalidades
de turismo cultural, nomeadamente as que assentam na valorização das
paisagens literárias daquele escritor beirão, e que têm o condão de pro-
jetar algumas estratégias de numa paisagem que sofreu um “processo de
mutação sócio económica e territorial resultante da perda de importância
da actividade agrícola (agro-florestal e criação de gado) e das culturas e
modos de vida rurais das sociedades camponesas” (Domingues 2011: 69).
Este artigo apresenta uma estrutura de organização que entendemos
concisa e eficiente. Na primeira parte aparece aquilo que podemos de de-
signar por uma breve revisitação de algumas leituras exploratórias feitas
para robustecer o modelo empírico estudado. Já o andamento seguinte
valoriza as topografias geográficas e literárias que a envolvem. Por fim,
disseminamos um conjunto de rotas de cariz eco-temático pelos concelhos
mais fortemente bafejados pela paisagem da escrita de Aquilino: Sernance-
lhe, Moimenta da Beira e Vila Nova de Paiva.
Obedecendo a um princípio de coerência, é possível alinhar, de antemão,
algumas ideias que parecem registar de que alguns territórios literários se
prestam para que a partir deles se construam algumas estratégias culturais
inovadoras. Será este o mote e o objectivo do ensaio: compreender como
se representa uma geografia literária, que atenha a sua estratégia turística
sustentada por um conjunto de actividades que gravitam em torno das suas
narrativas. O confronto entre o imaginário e a realidade física, sobretudo

*
TERRITUR, CEG, UL - IGOT.
106 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

enquanto processo “reconstrutivo” e descritivo (Reis 2012), é o principal


propósito que pretendemos aqui desenvolver.
Em termos metodológicos, anota-se a preocupação em procedermos a
uma releitura da obra de Aquilino Ribeiro usando distintas fontes biblio-
gráficas: alguns romances e livros que colecionam crónicas de sua lavra, e
onde o autor mescla o belo sabor das linhagens etnográfica, antropológica
e geográfica. Mas também o pisoteio biográfico entre o escritor e a obra,
que é tão relevante em Aquilino. Assim, através deste conjunto de criações
literárias comparamos o jogo ficcional e a vivência real que a escrita do
soube reter.

SEGUNDO ANDAMENTO: DAS PAISAGENS LITERÁRIAS


AO TURISMO LITERÁRIO
As paisagens literárias assumem-se como um dos traços mais perdu-
ráveis no desenho das nossas vidas. Fidelizam os territórios com as suas
memórias e semeiam os contornos de uma ideia plena e sustentável para
a sua salvaguarda.
Nalguns aspectos que vale a pena realçar, algumas destas narrativas
sobrepõem-se a determinados territórios sentimentais que servem de base
à criação simbólica de cenários literários. Essa identificação biografista en-
tre o escritor e a sua obra permite desempenhar um papel resolutivo na
definição e na descoberta de novos roteiros de turismo alternativo a partir
das memórias guardadas pelos leitores.
D. T. Herbert (1996) relevou justamente a importância que as obras lite-
rárias e artísticas exercem na consolidação de uma estratégia de turismo
cultural. A procura dos lugares mágicos, dos sítios imaginários, e a sua as-
sociação com personagens fictícias é então enfatizada por este autor quan-
do nos fala nas paisagens literárias de escritores ingleses e irlandeses:
In these places, a visitor can still today walk out of a house and into landscapes
witch have a barely changed the writer drew breath from and breathed literature
into them we walk in our write’s footsteps and see through their when we enter
these spaces (D. Herbert 1996: 76)

Ora, uma das formas mais interessantes de conciliar uma estratégia de-
senvolvimento territorial alicerçada na exploração de paisagens literárias,
é aquela que decorre do aproveitamento das casas-museus de escritores.
Correlativamente ao que é desenvolvido para a generalidade dos paí-
ses europeus, elas enunciam-se através de um tratamento turístico que
conseguindo aproveitar um conjunto de ações culturalmente polivalentes
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
107
Aquilino Machado

alcançam a partir delas novas estratégias de preservação patrimonial. Tais


assentamentos revelam contornos de maior importância quando dispostos
em áreas iminentemente rurais, porque como afirma o geógrafo Álvaro Do-
mingues o “recuo demográfico, o despovoamento e o abandono do solo
agrícola” a par da perda de velhas tradições, costumes, ofícios e outras
manifestações da cultura imaterial” (2011: 69) ameaçam pôr em causa o
equilíbrio dos valores paisagísticos.
Para a sua reabilitação e restauro da necessária estabilidade ecológica,
os projetos de dinamização cultural e turística devem assegurar que entre
as paisagens literárias e as paisagens reais se afirme uma relação consis-
tente e propiciadora do pleno aproveitamento do potencial endógeno que
exista nos territórios abrangidos.
Para que tal suceda é necessário apelar à criação de uma apertada rede
de cooperações, envolvendo os diversos agentes com intervenção territo-
rial, de molde a que, sobretudo, a partir deles se construa uma reinvenção
da identidade paisagística, no estribo de uma estratégia responsável e hu-
manista.
Contudo, há quem questione o timbre de autenticidade encenado em
alguns destes lugares literários, já que, tantas vezes, se enleiam em si-
mulações e em “recorrentes jogos de artifícios da indústria do turismo”,
conforme nos referem Quinteiro e Baleiro (2017), citando Mike Crang. No
final de contas, estes processos reconstrutivos poderão levar a certas ex-
planações falaciosas que tendem a ignorar “o uso individual e eclético que
cada turista faz do arquivo colectivo da literatura”, como afirma Mário Lima
Matos (2010).
E assim, mais do que se procurar fórmulas ocas, que parecem acompa-
nhar algumas estratégias “pantomineiras de agora sobre a reinvenção de
um mundo rural para fins de semana distraídos, espaço verde, desportos
radicais, gastronomia de autor, turismo rural e aldeias típicas em formato
de parque temático” (Domingues 2017, 9), valerá a pena seguir o solfejo
literário que se espraia na poética das cartografias imaginárias porque ele
será o nosso melhor guia na errância andarilha.
É sobre os alicerces de uma destas paisagens e a sua importância como
lugar de criação da escrita que em seguida nos dedicaremos.

TERCEIRO ANDAMENTO: A TOPOGRAFIA DAS TERRAS


DO DEMO: UMA GEOGRAFIA LITERÁRIA E SENTIMENTAL
Terra e céu, aspirações e apetites, espírito e matéria, anjos e demónios (AR, “Aldeia:
Terra, Gente e Bichos”, 1946)
108 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

As Terras do Demo representam um espaço geográfico matizado pela


ficção de Aquilino Ribeiro, quando no ano de 1919 escreveu um roman-
ce “que baptizou essa região com o nome agora indelével” (Óscar Lopes,
1999). A destrinça geográfica deste território encontra-se refletida logo na
introdução, numa carta dedicada a Carlos Malheiro Dias:
Circunscrito, adivinha-se, a indivíduos rudes, teve em mira este trabalho pintar
dessas aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira, olham a Estrela, o
Caramulo, a cernelha do Douro, e, a norte, lhes parece gamela emborcada, o mon-
te Marão. O vale, que as explora, trata-as despicientemente por Terras do Demo
(AR, Terras do Demo, 1919).

Fig. 1. Capa da Primeira Edição do romance Terras do Demo, Livraria Bertrand.


Ilustração de Abel Manta

Num outro tipo de tratamento, o geógrafo Carlos Alberto Malheiros de-


dica a esta paisagem um estudo valioso onde delimita os contornos geo-
gráficos catonianos integrando-a “na área planáltica da Beira que fica um
pouco a norte da Cordilheira Central e tem a sudoeste a Serra do Caramulo;
outros relevos, situados para norte desta, designadamente os que alguns
geógrafos chamam Maciço da Gralheira (em sentido lato), separam-na da
faixa litoral do país” (1985: 371). Este balanceamento geográfico da área
levou o autor a rastrear uma base administrativa composta por oito conce-
lhos, uns totalmente integrados, outros mais marginais, em maior ou menor
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
109
Aquilino Machado

grau: Vila Nova de Paiva, Aguiar da Beira, Satão, Moimenta da Beira, Pene-
dono, Sernancelhe, Meda e Trancoso.
O que é certo é que esta expressão geográfica se colou à mundividência
aquiliniana, ao lograr-se no centro vital da sua visão do cosmos, usando
uma bela expressão de Alfredo Margarido (1985). O ethos é naturalmen-
te a aldeia montesina, que Eduardo Lourenço assinala como um mundo
bárbaro e agreste, numa paisagem de imobilismo que só dialogava com o
longínquo através dos almocreves como mensageiros “ou os aedos incons-
cientes” (1985: 18). Um isolamento que se ceifava primordialmente pela
desfaçatez dos caminhos. Isto mesmo se pode verificar a dado passo em
“Aldeia: Terra, Gente e Bichos”:
A aldeia estava sequestrada do mundo por montes e fraguedos intransitáveis,
quando não bosques compactos. O único meio de relacionação consistia nas ve-
redas tenebrosas, tortas e estreitas como barbantes, onde depois do Sol posto se
passava com o credo nos lábios. Quando o vento e os lobos rompiam a ulular pe-
los oiteirinhos, jornadear acarretava sério risco. Barrancos, atoleiros, charcos de
água eram acidades ordinários, superáveis no normal. (AR, “Aldeia: Terra, Gente
e Bichos”, 1946)

Fig. 2. Procissão do Orago, descrita nas Terras do Demo


[Arquivo Aquilino Ribeiro]

Será com o macadame que a aldeia montesinha transforma gradual-


mente a sua paisagem humana e física. Lentamente, a insularidade “geo-
gráfica da continentalidade aquiliniana” (Mourão-Ferreira 1985, 80) sofre
alguns desvios, levando o apelo das suas narrativas a transmigarem para
outras paragens, como os romances de localização citadina.
110 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Mas o ponto de retorno às Terras do Demo revela-se permanente ao


longo da sua vida e obra. Na verdade, o regresso à geografia da aldeia
beirã será o que lhe serve de matéria-prima para construir boa parte do
seu mundo romanesco. É ainda na aldeia da Soutosa, em Moimenta da
Beira, que passa longas estadias anuais, de pelo menos três meses, quan-
do recupera uma pequena propriedade que herdara de seu pai Joaquim.
Ai faz o seu Parque Kruger, como apelida em “O Homem da Nave” (1954),
e onde nos fala das suas tílias, árvores frondosas que ainda ensombram o
sítio onde se situa a actual Fundação Aquilino Ribeiro (FAR), e que por ele
foram plantadas, e que se tornaram num santuário privilegiado de pardais,
melros, papas-figos e toda a raça miúda de bicheza alada.
Seguramente que estas temporadas na Beira Alta deram azo a uma re-
memoração afectiva da infância. Assim, esta “sua vida vivida deu matéria
que chega” para um encadeado de três romances autobiográficos que nos
falam da sua meninice e adolescência nas faldas das serras da Nave e da
Lapa: “Cinco Réis de Gente” (1948), “Uma Luz ao Longe” (1948) e a “Via
Sinuosa” (1918). Mas que também que se refletem em várias pedaços de
outros romances, “e vários contos (...), para não falar do livro de memórias
“Um Escritor Confessa-se” (Lopes 1999).
E é assim que ornamentamos uma trama ardentemente vitalista que pa-
rece transcorrer a sua escrita beirã. Uma vez mais, em “Aldeia, Terra, Gen-
te e Bichos”, sentimos uma poeirada redemoinha do caleidoscópio rústico
que tantas vezes se encontra emanada pelo tique-taque do tempo e do
clima. Aquilino Ribeiro representa neste livro o tal quadro impressivo de
isolamento. Tal insularidade parece ampliar o sabor ritmado das estações
do ano, ora, amargos quando se compadeciam os “itinerários de inverno
pela serra fora” (pp. 14), ora, compassivos na aclamação dos dias grandes.

Fig. 3. Aquilino Ribeiro, mulher e filho mais novo, na biblioteca de Soutosa (1944).
[Arquivo de Aquilino Ribeiro]
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
111
Aquilino Machado

Este ambiente da Beira Alta encontra-se reunido naquilo a que o autor


chamou os seus “paralipómena” (Lopes 1992: 13), ou seja, um conjunto de
prosas que inerentes às Terras do Demo, e que se encontram apensas em:
“Aldeia” (1946); Geografia Sentimental (1951), uma parte das “Arcas Encoi-
radas” (1953) e ainda em “O Homem da Nave” (1954). Esta e outras obras
ficcionais focam a representação da Natureza como um traço central da
criação aquiliniana. É a ela que daremos especial atenção no próximo an-
damento.

QUARTO ANDAMENTO: AS COORDENADAS TOPOGRÁ-


FICAS DE UMA ESTRATÉGIA DE TURISMO LITERÁRIO NAS
TERRAS DO DEMO
Opta-se intencionalmente pela escolha dos três municípios mais ba-
fejados pela escrita de Aquilino, e que meandram uma imensidão de
afluentes ficcionais circunscritos aos territórios ocupados pelos conce-
lhos de Sernancelhe, Moimenta da Beira e Vila Nova de Paiva (Machado
2019).
É por este caminho que encetamos a nossa rota através da Fundação
Aquilino Ribeiro (FAR), elo simbólico primígeno desta geografia sentimen-
tal. Uma importância que, reconheça-se, é medida pela centralidade pri-
vilegiada que assume nesta geografia literária, por força da riqueza dos
recursos patrimoniais e da sua atmosfera emocional. Este lugar mantém
o ambiente vivido nas suas longas temporadas de vilegiatura campestre,
e apensa uma extensa biblioteca arquitectada internamente pelo escritor
ao longo de uma vida de bibliófilo. Mas, malogradamente, parece recair
igualmente uma atmosfera pouco condizente com a riqueza sentimental
nela retida. Apesar dos esforços dos três municípios que, por definição
estatutária, são os seus proprietários, agravam-se as suas dificuldades
materiais, o que tem impedido de “proceder às exigidas obras de manu-
tenção, conservação, restauro urgentes” (Neto 2022).
Isto significa que o investimento neste Lugar de Nome Aquilino, usan-
do uma bela expressão cunhada por Óscar Lopes, lograva um alcance
mais dilatado visando a revalorização do património material e imaterial
existente. E por este caminho, ao aumentar o capital relacional do sítio
e valorizava-se o princípio de inter-conectividade territorial, com que
se procura romper a interioridade do lugar através da cooperação de
ideias.
Fixemos, então, o conjunto de rotas eco-temáticas que partindo da FAR
filiam as Terras do Demo.
112 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

A ROTA ECO-TEMÁTICA DE SERNANCELHE:

A primeira tende a aproveitar o pendor da paisagem literária que se


espraia pelo município de Sernancelhe, e que alcança um sentido imanente
com os romances autobiográficos: “Cinco Réis de Gente” e “Uma Luz ao
Longe”.
Chegados ao Carregal, deparamo-nos com o Pátio dos Sanhudos, cená-
rio privilegiado de “Cinco Réis de Gente”. Lemos nas suas primeiras linhas:
Retrocedendo nos limbos do passado até onde a minha memória é como a lan-
terna dum mineiro perdido no fundo duma galeria, que vejo? Vejo no grande e
desmantelado pátio fidalgo a nossa casa, de lojas para animais e habitação, com
a sua obsequiosa escada de pedra e um esgrouviado sabugueiro a bater atónito
nas vidraças, que deitavam para o povo, sempre o que soão soprasse o vento (AR,
“Cinco Réis de Gente”)

Não por acaso, o incipit parece insinuar o assombroso caldeamento do


mundo natural, que se encontra abrigado nesta sua viagem ao passado de
rapazinho. E ainda por lá se encontram os ciprestes “piramidais e exclama-
tivos”, que “faziam imponente plantão aos mortos”, mas também a aura da
descrição da noite de S. João com o halo das fogueiras a enrubescer aqui
e além o sobrecéu cor de pérola da aldeia, ou a descrição do “Codessal”
quando narra que largava de casa com o seu pai, conduzindo pela rédea a
Inácia. Ai confessa a sua enorme estima pelos castanheiros, Diz então, que
“admirava os castanheiros, é certo que de admiração subconsciente, como
aos paquidermes nos panoramas zoológicos”, e que “no Codessal havia
tais colossos patriarcas seguramente do reino vegetal naquelas redonde-
zas” (AR, Cinco Reis de Gente, 1948).
Nesta geografia sernancelhense, a paisagem dos soutos reproduz o ca-
lendário dos trabalhos agrícolas (Queiroz 2009), numa espécie de glorifi-
cação cíclica da natureza que Aquilino tanto amou e também a soube retra-
tar. Afirma que a “ciclicidade das estações, reflectindo-se particularmente
no reino vegetal, deu lugar a um tal luxo de perspectivas que nos faltam
olhos para distinguir os matizes novos que se vão entretecendo nos demais
planos da natureza” (AR, Arcas Encoiradas, 1953) e isso afigura-se particu-
larmente intenso na paisagem outonal desabrida, rezinga, coberta “com
a capa de asperges de frias e rijas águas”: “Em meados de Outubro” (...)
era possível verem-se já, pelos soutos mulheres a apanharem castanhas
debaixo da molinha tiritando, engoiadas na capucha de burel” (AR, Homem
da Nave, 1954). Como nos confessa também este beirão: “semear, ceifar,
malhar são as três fases essenciais da vida rural, no fundo correspondentes
aos três tempos de tudo o que vive e evoluciona à superfície da terra”.
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
113
Aquilino Machado

E quando partimos em direção ao Santuário da Lapa, levando na mão


o romance “Uma Luz ao Longe”, sabemos que o tempo de representação
da paisagem literária se encontra retido perduravelmente. Na verdade, ao
folhearmos este romance de formação detemo-nos na evocação da sua
vivência de cinco anos no colégio (entre 1895 e 1900), numa assunção que
parece revelar a importância que reteve do religioso e da força da Nature-
za:
O lugarejo da Lapa, terra de padeiras, era nada mais nada menos que o produto
do camartelo eclesiástico. O civil, se alguma vez ali existiu para outras funções
que não fossem as de seventuário do clero, estiolou a curto prazo e feneceu. Logo
à mão casa de cornija e patim alpendrado tanto podia ser a domus municipalis
como o esprital dos romeiros.
Até o santuário com a fachada jesuítica de tope, ligado por um arco de passadiço
à bisarma de pedra lavrada que era a residência da Companhia, havia duas curio-
sas albergarias para peregrinos e visitadores e quartéis em profusão, espécie de
celas a alugar aos rústicos que vinham dealbar a alma nas semanas místicas do S.
Barnabé e Espírito Santo (AR, “Uma Luz ao Longe”, 1948).

E o mesmo sobrevém no lugar da Tabosa, para onde agora nos des-


locamos, e onde se situa um Convento cisterciense, de configuração
bastante arruinada, mas mantendo a igreja bastante bem conservada.
No entanto, a representação imaculada desta nossa paisagem revela-se
a salvo na novela “Valeroso Milagre”, inserta na “Estrada de Santiago”
(1922), mas tendo tido as suas primícias editorais em 1921, no suple-
mento literário nº 68 do ABC. Se é verdade que esta novela, como nos
menciona Paulo Neto, se apresente agora “revista, remanejada, apura-
da, depurada”, não é menos certo que toda a sua configuração literária
continua a revelar um espantoso cortejo cenográfico situado no Conven-
to da Tabosa do Carregal, durante as invasões francesas, e que parece
tirado de uma dramaturgia de sabor incessante. A certo passo, Aquilino
dá voz a Frei José, capelão e confessor das Bernardas Descalças, que na
sua inclemente defesa do Convento perante a horda de soldados france-
ses encontra um astucioso estratagema convocando uma tropa celeste
que alumiada dava impressão profundamente marcial e a postos para
o combate: ― Pousai os santos às janelas, nos peitoris, as lanternas à
banda dos santos e acendei-as. Acendei tudo!”. Deste “Valeroso Mila-
gre” emana um espírito, uma intensidade tão forte que a presença física
do sítio se revê nas evocações do texto e na memória dos feitos que ali
terão ocorrido, servindo de base à criação simbólica de uma diuturna
paisagem literária.
114 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 4. O “Valeroso Milagre”, edição da revista ABC, de 1921

A ROTA ECO-TEMÁTICA DE MOIMENTA DA BEIRA:

A segunda rota escortina a paisagem de Moimenta da Beira. É uma paisa-


gem marcada pelo romance de 1918, “A Via Sinuosa”, encenado nas faldas da
serra Lapa, no Convento de São Francisco da Caria. onde tão bonita é a entre
o mestre (padre Ambrósio) e o discípulo (Libório Barradas), como notável e
autobiográfica é a descoberta de um chamamento ainda longínquo e informe
para a vida urbana que parece acometer o personagem principal. No fundo
aquilo que Serafina Martins nos diz quando escreve que a fuga de Libório do
seu mundo da serra da Nave se deve a “algo tão inevitável como imperativo
– o destino”. Mas mesmo quando se entrega à vida urbana de Lisboa, aqui
confirmada em Lápides Partidas (1945), sobrevive o lastro das serras e do
padre Ambrósio.
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
115
Aquilino Machado

Fig. 5. O Convento de São Francisco da Caria, onde decorre parte da narrativa de


“Via Sinuosa” [Arquivo de Aquilino Ribeiro]

Mas esta topografia é igualmente golpeada pela força da natureza incle-


mente da serra da Nave, tão perto da geografia de penedios sáfaros, tan-
tas vezes antropomorfizados, “assinalados por orcas, cenotáfios, campas,
e mais campas inscritas nas rochas vivas”; e matizada pelo cheiro silvestre
das “belas plantas da mata” que “tocam já ao eterno”: “mato galego, em
que entra toda a casta de arbustos, sargaço, fieito, carpanta, bela luz, ros-
maninho, esteva”.
Percorremos, então, o quadro natural e humano, de um extenso e alto
planalto de 700 a 1100 metro de altitude, em que o escritor beirão cresceu
e se fez gente, e onde apurou a sensibilidade para a subtil relação que se
estabelece entre o homem e as coisas e a importância que estas podem
ter no seu destino. Não por acaso, somos atraídos novamente pelo rasgo
impiedoso do calendário anual, aquele rigoroso e invariável tique-taque
das estações que levava a que a "certa altura do ano, aí por fins de Agosto,
a Natureza" mostrar-se "pálida de tons, cansada exausta à força de produ-
zir, como uma boa matrona que deu uma dúzia de filhos à pátria". E então,
"tudo na terra e nos céus prenuncia o Outono".
116 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 6. A Serra da Nave: penedios sáfaros, tantas vezes antropomorfizados


[Arquivo de Aquilino Ribeiro]

A ROTA DE ECO-TEMÁTICA DE VILA NOVA DE PAIVA

Partamos agora em direção a Vila Nova de Paiva, a antiga barrelas do


Malhadinhas. Neste itinerário sentimental que nos faz passar pelos povoa-
dos de Peva e Alhais, folheamos saborosas páginas de “Geografia Sen-
timental”, que nos transportam para uma larga carreira, já desaparecida,
“sombreada das mais lindas carvalhas que jamais houve em Portugal. Tão
gigantescas eram que tinham cada uma delas vários donos como os logra-
doiros nas malhadas”. Nos Alhais, terra dos Manos Monteiro, republicanos
e amigos fraternos de Aquilino, “com raízes entre os girondinos”, depara-
mo-nos com a Igreja Matriz onde o escritor foi levado ao baptistério. Final-
mente, Vila Nova de Paiva, a “Barrelas, crismada, no dizer do Malhadinhas”
(AR, Geografia Sentimental, 1951). Nela se insinua a Feira de Barrelas, de
periocidade quinzenal, lugar de desvelo e veneração do nosso ficcionista.
Uma feira da Rua, admirável e sonora. Tonitruante e vitalista, como a escrita
de Aquilino.
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
117
Aquilino Machado

A Fundação Aquilino e Topografias Topografias Emocionais Recursos Naturais


as Rotas eco-temáticas Literárias e Patrimoniais
Fundação Aquilino “O Homem Lugar de vilegiatura campestre A Casa-Museu
Ribeiro (FAR) da Nave" de Aquilino Ribeiro e Biblioteca
Rota eco-temática “Cinco Réis O carregal, o pátio onde terá O Pátio dos Sanhu-
de Sernancelhe de Gente” e nascido Aquilino Ribeiro e onde dos, no Carregal
vive até aos 10 anos;
O Convento do
Freixinho
---------- ---------- ----------
“Uma Luz ao O colégio da Lapa, frequentado O Santuário da
Longe” por Aquilino, entre 1895 e 1900. Lapa
---------- ---------- ----------
“O Valeroso A contiguidade geográfica da O Mosteiro de
Milagre” Tabosa com o Carregal Nossa Senhora
da Assunção de
Tabosa
---------- ----------- ----------
“Arcas Encoira- A Paisagem dos
das” e “Homem Soutos
da Nave”

Rota de Vila Nova O Malhadinhas Os Alhais, lugar de baptismo de Igreja Matriz dos
de Paiva Aquilino Ribeiro Alhais
A Feira de Barrelas, lugar de O Convento de
peregrinação quinzenal de São Francisco da
Aquilino Caria

Rota de Moimenta “A Via Sinuosa” A geografia da Serra da Nave A Serra da Nave


da Beira “A Geografia “Aldeia”
Sentimental”
“O Homem da
Nave”
“Aldeia”

Quadro I. Síntese da Paisagem Literária das Terras do Demo

QUINTO ANDAMENTO: UM SOPRO PARA NADA CONCLUIR

Por fim: um sopro para nada concluir, e tudo deixar em aberto, no que
respeita a uma estratégia integrada de Turismo Literário nas Terras do
Demo. A primeira nota que importa reter prende-se com a dimensão lite-
rária das Terras do Demo, e o modo como facilmente conseguimos captar
a narrativa secreta e mágica que continua subjacente na atmosfera deste
Lugar de criação da escrita.
118 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

“A História falará de nós nas obras que deixarmos”, afirma Agustina Bes-
sa Luís. É essa atmosfera que permanece bem viva para todos aqueles que
visitam esta paisagem de Aquilino.
No fundo, ao pormos todo o realce no património material e imaterial,
estamos a concorrer para uma reinvenção da identidade paisagística das
Terras do Demo. E a preservar uma paisagem literária que, como “dizia um
velho clássico grego, constitui uma riqueza arrecadada para todo o nosso
sempre” (Lopes 1999).

REFERÊNCIAS
Correia A. (2003). Viajar com Aquilino Ribeiro. Vila Nova de Gaia: Delegação Re-
gional da Cultura do Norte.
Domingues Á. (2017). O Rebelde Crónico. Prefácio da edição “O Homem da Nave”.
Lisboa: Bertrand Editora.
Domingues Á. (2011). Vida no Campo. Porto: Dafne Editora.
Ferreira D-M. (1985). “Notas sobre a “continentalidade” de Aquilino”, Revista Co-
lóquio Letras, Número 85, Maio de 1985, pp. 73-80. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
Herbert D. (1996). “Artistic and Literary Places in France as Tourist Attractions”, in
Tourism Management, Vol. 17, nº 2, pp. 77-85.
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crita”. Prefácio inserido em Aquilino Ribeiro e as Terras do Demo, de Paulo
Pereira Pinto, Viseu: Edições Esgotadas.
Margarido A. (1985). “A aldeia, centro vital da visão do mundo de Aquilino Ri-
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Fundação Calouste Gulbenkian.
Medeiros C. A. (1985). “Terras do Demo. Aspectos Geográficos”. Beira Alta. Volume
XLIV. Fascículo 3, pp. 369-388. Viseu: Assembleia Distrital de Viseu.
Neto P. (2022). “Andando, Andando Estrada de Santiago fora”, Introdução à Edição
Estrada de Santiago, pp. 7-20. Lisboa: Bertrand Editora.
Lopes Ó. (1999). “Um lugar de nome Aquilino”. in 5 motivos de Meditação. Campo
das Letras.
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
119
Aquilino Machado

Lourenço E. (1985). “Aquilino ou as duas aldeias”. Revista Colóquio Letras, Núme-


ro 85, Maio de 1985, pp. 15-21. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Queiroz A. I. (2009). A Paisagem de Terras do Demo. Lisboa: Esfera do Caos.
Quinteiro S. & Baleiro R. (2017). Estudos em literatura e Turismo. Conceitos fun-
damentais.
Reis C. (2012). Lisboa como paisagem. A cidade Segundo Fradique Mendes. Coló-
quio Letras, Número 179, Janeiro/Abril 2012, pp. 19-31. Lisboa: Fundação Ca-
louste Gulbenkian.

Obras de Aquilino Ribeiro, edição citada


Estrada de Santiago (2022). Lisboa: Bertrand Editora
O Homem da Nave (2017). Lisboa: Bertrand Editora
Arcas Encoiradas (1953). Lisboa: Livraria Bertrand
Geografia Sentimental (1951). Lisboa: Livraria Bertrand
Uma Luz ao Longe (1948). Lisboa: Livraria Bertrand
Cinco Réis de Gente (1948). Lisboa: Livraria Bertrand
Aldeia, Gente e Bichos (1946). Livraria Bertrand
A Via Sinuosa (1918).1a Edição. Lisboa: Livraria Bertrand
As Terras do Demo (1919). 1ª Edição: Lisboa: Livraria Bertrand
ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO:
TERRITORIALIZAR UM PENSAMENTO
DESTERRITORIALIZADO

RUI JACINTO E ANTÓNIO PEDRO PITA*

O projeto Roteiro Eduardo Lourenço foi apresentado como um dos pilares da


programação do Centenário do Nascimento de Eduardo Lourenço ― Territoriali-
zar um pensamento desterritorializado ―, a decorrer entre os dias 23 de Maio
de 2023 e de 2024. A programação do Centenário, trabalhada pelo Centro de
Estudos Ibéricos com várias instituições, de Portugal e do estrangeiro, inclui um
conjunto diversificado de iniciativas que dignificam a memória dos seu Patrono,
Mentor e Diretor Honorífico.
A programação tem vindo a ser articulada entre o Centro de Estudos Ibéricos
e uma rede colaborativa de parceiros que integra, para além das entidades que
celebraram a parceria que criou o CEI (Câmara Municipal da Guarda, Universida-
de de Coimbra, Universidade de Salamanca e IPG), as seguintes entidades: Câ-
mara Municipal de Almeida, Câmara Municipal de Coimbra, Fundação Calouste
Gulbenkian, Biblioteca Nacional, Instituto Camões e Centro Nacional de Cultura.
A Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, a Rede de Bibliotecas
Escolares, a Direção Regional da Cultura do Centro, a Comissão de Coordenação
e Desenvolvimento Regional do Centro, o Turismo de Portugal e o Turismo Centro
de Portugal são outras instituições integradas na programação da efeméride, a
que se juntarão em breve outras tantas, do meio universitário e cultural.
O Roteiro Eduardo Lourenço visa cumprir três objetivos fundamentais:
― Territorializar um pensamento desterritorializado. Certos que a obra e o
pensamento de Eduardo Lourenço, apesar de ser eminentemente desterri-
torializado, não deixa de conter em muitos ensaios uma geograficidade que
importa descodificar e interpretar.
― Cartografar uma geografia vivida: lugares de memória, memória dos luga-
res. O itinerário da vida de Eduardo Lourenço é pontuado por lugares, cidades
e universidades, onde nasceu (S. Pedro de Rio Seco/Almeida), por onde pas-
sou e ensinou, onde existem Cátedras com o seu nome, universidades que o
distinguiram com Doutoramentos “honoris causa”, instituições por onde dis-
persou o seu espólio, localizadas na Guarda, em Coimbra e em Lisboa.

*
Centro de Estudos Ibéricos. Universidade de Coimbra.
122 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

― Estruturar um Roteiro Eduardo Lourenço: do património cultural ao turismo


literário. O território Lourenciano é disperso, tem origens em S. Pedro de Rio
Seco (Almeida), passa por Guarda e Coimbra, lugares que definem um eixo
que atravessa a Região Centro segundo uma diagonal que vai da fronteira ao
litoral. Coimbra foi um cais de partida que levaria Eduardo Lourenço a percor-
rer Mundo, de Vence a Salvador da Bahia, de Hamburgo a Lisboa.

Identificar, relacionar e dinamizar os lugares centrais do Roteiro Eduardo Lou-


renço passa pela produção de conteúdos que proporcionem a elaboração dum
Roteiro regional e, em colaboração com os respetivos municípios, vários Roteiros
locais, designadamente: 1. S. Pedro/ Almeida; 2. Guarda; 3. Coimbra; 4. Lisboa.
O Roteiro Eduardo Lourenço, que ficará a perenizar a Geografia duma vida e
o Itinerário duma obra, será balizado pelas seguintes coordenadas espaço-tem-
porais:
– Origem: (1) S. Pedro do Rio Seco [1923-1934]
– Digressão (Interior): (2) Guarda [1934-1936; 194..]; Lisboa [1935-1940; 1946];
(3) Coimbra [1941-1944; 1947-1953]
– Digressão (Exterior): (4) Hamburgo e Heidelberg [1953-54]. Montpellier
[1955-58; 1959-1974]; Vence [1974-2010]; Roma [1989-1991]; (5) Salvador,
Bahia [1958-1959]
– Regresso: Vence – Lisboa – S. Pedro de Rio Seco [2013-2020]. (6) Lisboa:
É nomeado Administrador (não executivo) da Fundação Calouste Gulbenkian
[2002- 2020]; Conselheiro de Estado [2015 – 2020]

Estes apartados desdobram-se em três itens principais: 1. O tempo. Breve


apontamento biobibliográfico para situar o homem e a obra no seu tempo. 2.
EL e o espírito dos lugares: os lugares revisitados. Roteiros locais esboçados a
partir de fotografias, mapas e citação do autor. 3. Regresso sem fim: o autor e a
obra revisitados.
Integrado no XXIII Curso de Verão (Novas fronteiras, outros diálogos: coope-
ração e desenvolvimento), que decorreu entre 27 de junho a 01 de julho de 2023,
ensaiou-se o primeiro Roteiro Eduardo Lourenço: Territorializar um pensamento
desterritorializado com a seguinte programação

0. Roteiro Eduardo Lourenço: Geografia, literatura e leituras do território –


Rui Jacinto
1. Pedro de Rio Seco e Almeida – Eduardo Lourenço e as paisagens matriciais
– Conferencia 3. Eduardo Lourenço: uma evocação – João Tiago Lima
– Pedro de Rio Seco: falas de Rui Jacinto e João Tiago + Leituras
– Almeida: percurso pelos lugares Lourencianos e pelo património histórico
– Vilar Formoso Fronteira da Paz – Memorial aos Refugiados e ao Cônsul
ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO: TERRITORIALIZAR UM PENSAMENTO DESTERRITORIALIZADO
123
Rui Jacinto e António Pedro Pita

Aristides de Sousa Mendes. Conversa com Pezarat Correia


2. Guarda: a cidade, o CEI e a Biblioteca Eduardo Lourenço
– O Roteiro – Visita – Thiery Santos
– O CEI (memorial) e a Biblioteca Eduardo Lourenço (Livros, imagens; expo-
sição na BMEL)
3. Coimbra
– Universidade e a. Alta de Coimbra – Branca Gonçalves e Paula Simão
– Casa da Escrita – Sentido e forma do neorealismo – António Pedro Pita
– Da Alta à Baixa. Portagem: Miguel Torga, o Mondego, o Parque e a frente
ribeirinha
4. Gouveia – Melo
– Biblioteca Virgílio Ferreira. Eduardo Lourenço e Virgílio Ferreira – Catarina
Santos
– Melo: Topografias duma obra
5. Póvoa da Atalaia.
– Eugénio de Andrade: Itinerário Literário. Homenagem a Eugénio de An-
drade no Centenário do seu Nascimento: Eduardo Lourenço e Eugénio de
Andrade – Rui Jacinto, Pedro Salvado, Fernando Paulouro

ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO:


GEOGRAFIA DUMA VIDA, ITINERÁRIO DUMA OBRA
O mapa e a legenda

Fonte: Rui Jacinto, 2020.


124 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Legenda

1. Lugares onde viveu


Origem: S. Pedro do Rio Seco [1923-1934]
Digressão (Interior): Guarda [1934-1936; 194..]; Lisboa [1935-1940; 1946]; Coimbra
[1941-1944; 1947-1953]
Digressão (Exterior): Hamburgo e Heidelberg [1953-54]. Montpellier [1955-58; 1959-
1974]; Salvador, Bahia [1958-1959]; Vence [1974-2010]; Roma [1989 -1991]
Regresso: Vence – Lisboa – S. Pedro de Rio Seco [2013-2020]
Roma [1989-1991] – Conselheiro Cultural junto da Embaixada de Portugal em Roma
Lisboa: É nomeado Administrador (não executivo) da Fundação Calouste Gulbenkian
[2002- …]; Conselheiro de Estado [2015-2020]:

2. Universidades onde ensinou


Coimbra [1947-1953]
Hamburgo e Heidelberg [1953-54]. Leitor na Universidade de Hamburgo e Heidelberg
Montpellier [1955-58]. Leitor na Faculdade de Letras da Universidade de Montpellier
Brasil, Salvador [1958-1959]. Professor de Filosofia na Universidade da Baía
Grenoble [1960-65]. Leitor na Faculdade de Letras da Universidade de Grenoble
Nice [1965-1989] – Professor e “Maître de conférences”; 1989 Jubila-se da Faculdade
de Letras de Nice

3. Doutoramento Honoris Causa pela


1995 – Universidade do Rio de Janeiro
1996 – Universidade de Coimbra
1998 – Universidade Nova de Lisboa
2007 – Universidade de Bolonha

4. Cátedras Eduardo Lourenço


2007 – Universidade de Bolonha
2018 – Universidade de Aix-Marselha

5. Legado e Memórias de Eduardo Lourenço


– Legado: A Biblioteca (livros doados) e o Espólio de Eduardo Lourenço
– Guarda: Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço [2008]
– Guarda: CEI [2019]
– Coimbra: filosofia (Faculdade de Letras); literatura (Casa da Escrita); Fernando Pes-
soa (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra)
– Lisboa: manuscritos (Biblioteca Nacional)
– Memoriais: Rio Seco; Guarda (CEI e Jardim José de Lemos), Lisboa.
SÃO PEDRO DO RIO SECO:
ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO

PAULA SOUSA*

CELEBRAR EDUARDO LOURENÇO EM S. PEDRO DO RIO


SECO
O Município de Almeida celebrou e homenageou Eduardo Lourenço, no cen-
tenário do seu nascimento. A convite do Centro de Estudos Ibéricos e do Mu-
nicípio de Guarda, em boa hora e mais uma vez, juntámos sinergias em prol
de um autor maior que tanto nos orgulha. Se é certo que homenagear Eduardo
Lourenço é sempre um desafio interessante, não deixa de ser verdade que o é
simultaneamente assustador, quer pela elevada responsabilidade que o facto
acarreta, quer pela certeza de que muito nos falta para que estivéssemos e es-
tarmos à altura das circunstâncias.
Eduardo Lourenço é uma das figuras maiores
e mais profundas da literatura e do pensa-
mento português, por isso para a nossa “pe-
quena Biblioteca” foi e continua a ser subida
honra e uma grande responsabilidade olhar
e falar do S. Pedro de Eduardo Lourenço. Em
primeiro lugar e com toda a justiça temos de
agradecer ao CEI porque sempre nos envol-
veu nestas iniciativas rememorativas, porque
nos despertou para um percurso inspirador
sobre sentir Eduardo Lourenço e porque com
esta colaboração passamos a fazer parte e a
pertencer a um circuito que nos envolve, nos
engrandece e nos catapulta.
As linhas que nos vão ocupar a seguir
são, portanto, um relato daquilo que foi
a nossa experiência, quer para conhecer

*
Chefe de Divisão do Património Histórico, Cultural e Documental da Câmara Municipal de Almeida.
126 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Eduardo Lourenço em S. Pedro do Rio Seco, quer para o dar a conhecer a uma
geração de jovens estudantes do território do concelho de Almeida.
Propusemo-nos por isso, conhecer o lugar para podermos ampliar o leque
de ofertas do território. Era necessário captar o espírito do sítio, aquele que terá
encantado o Pensador, ultrapassando a dimensão dos seus múltiplos Tempos.

Abertura das Comemorações do Centenário do Nascimento de Eduardo Lourenço.


S. Pedro de Rio Seco, 23 de maio de 2023.

PERPETUAR O S. PEDRO DE RIO SECO DE EDUARDO


LOURENÇO
Mediar os patrimónios com o público, tendo como objetivo primordial a sua
salvaguarda, está na génese dos trabalhos desenvolvidos pelos equipamentos
culturais do Município, entre os quais se inclui a Biblioteca, essa tem sido sempre
prioridade encontrar instrumentos qualificados que possam constituir inovado-
res campos de ação, de forma a proporcionar modelos de articulação entre os
temas, o público, o património e a sua salvaguarda.
“Esta dimensão cultural será a razão de ser e da salvaguarda do Património
dos lugares, porque falamos daquilo que motivou a sua existência, importam as
dimensões intangíveis, tanto como a de um percurso, inscrevendo o Espaço no
Tempo vivido” (Campos: 2002, 12).
Acrescentamos ainda que a construção de determinados significados depen-
de da forma como relacionamos os tempos do passado com o presente, como
escolhemos, de acordo com a nossa cultura, aquilo que entendemos legar a ou-
tras gerações. A transmissão dessa narrativa só é eficaz se for envolvente, se
tiver fundamento científico, e isso exige criatividade.
O percurso literário assumiu aqui uma importância primordial para o objetivo
que se pretendeu alcançar, construir um diálogo entre o autor e o seu lugar, o iní-
cio e o fim, o que ficou do autor no lugar. Pareceu-nos então que a ideia de pro-
porcionar um passeio, um olhar pela autenticidade inspiradora quase intemporal
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
127
Paula Sousa

de S. Pedro, poder-se-ia transformar num poderoso instrumento de visitação


entre o autor e o lugar, a forma de o dar a conhecer aos outros, estabelecendo
subtilmente compromissos entre a memória e a identidade da aldeia do autor, a
salvaguarda das suas memórias e dos “seus” lugares.
Assim, esta proposta de percurso seria o instrumento que incutiria nos jovens
leitores, primeiramente, e no público, depois, a sedução necessária, através da
emoção e mistério específicos, o significado, capaz de salvaguardar e perenizar,
quer Eduardo Lourenço, quer os lugares-monumento que ele evoca através das
histórias que nos deixou e das quais seremos legítimos herdeiros e guardiões,
com a responsabilidade de deixar este legado aos que nos seguirão.

Monumento a Eduardo Lourenço de autoria do escultor Leonel Moura, inaugurado a 6 de Agosto de 2011 em
cerimónia promovida pela Associação rio Vivo e pelo CEI; Vista aerea de S. Pedro do Rio Seco.

ONZE JOVENS LEITORES, UM PROFESSOR DE FILOSO-


FIA, UM ATOR E UM MÚSICO CRIADOR
Ao todo, os jovens leitores que
aceitaram o nosso desafio foram
1alunos, das turmas de 10.º e 11.º
anos, do Agrupamento de Es-
colas de Almeida, dos cursos de
Humanísticos e Científicos. Claro
que, o caminho foi-nos facilitado
pelo facto de termos tido o me-
lhor dos mediadores, o professor
de Filosofia José Gonçalves, pro-
fundamente apaixonado pela vida, obra e pensamento de Eduardo Lourenço.
Como sabemos, é no âmago deste intrincado enamoramento que se cativa a
compreensão, e nesta teia de causalidades, a curiosidade contagiou com toda a
certeza os alunos, que facilmente se encantaram ao ouvi-lo, aceitando assim o
desafio de “ler” Eduardo Lourenço.
128 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Para embalar as palavras tão habilmente desenhadas e profundas de Eduar-


do Lourenço sobre a sua terra natal, verdadeira poesia de sonhos, vontades e
sentimentos descontínuos amiúde, mas conexos num todo maior que nos obriga
sempre a refletir sem disso darmos conta, tivemos o César Prata, um criador/
músico tão especial que soube, com elevada mestria, como sempre, captar a
áurea das palavras de Eduardo Lourenço sobre aqueles lugares-monumento que
quisemos perpetuar. As palavras bailavam assim, ao som da música, sem artifí-
cios e, harmoniosamente, compilavam-se devagar e serenamente.
O Rui, com aquela voz cheia, profunda e larga, proporcionou-nos um con-
junto de sensações difíceis de descrever, as palavras cheias de vida ganhavam
corpo e ecoavam em nós num misto de alegria, saudade e consciência.
Os alunos “ensaiaram” primeiro para lerem depois para os outros. A primeira
aproximação aos textos selecionados foi apressada, quase sem emoção, fixan-
do-se num outro pormenor que, porventura, lhes dissesse algo mais ou porque
desconheciam o significado daquela palavra. Depois, e ao fim de algumas lei-
turas, foi possível criar entre eles, o Rui Spranger e a equipa da Biblioteca um
certo ambiente intimista, propício à leitura de pensamentos belos, de palavras
e considerações tão cheias de significado que, aos poucos, foram se deixando
conquistar pela emoção que se pretendia.

TESTEMUNHOS NA 1.ª PESSOA


CÉSAR PRATA, O MÚSICO
“Saber fazer desabrochar o Portugal enrolado sobra si, em posição fetal, não foi arte
fácil. Partir e estender a eira da aldeia no centro de Paris, também não. Longe do
mar, mas perto do coração. Voltar ao ninho é uma viagem feita com o coração, uma
viagem que assegura os sons certos dos pássaros, dos chocalhos das ovelhas, da
água do chafariz. Afinal, cada frase tem como alma gémea uma música, um conjunto
de sons que, para quebrar o silêncio, têm mesmo de ser melhores do que o ouro. E
depois do burburinho a paz, a brisa suave e o canto das cigarras”.

RUI SPRANGER, O ATOR


“Tive a oportunidade de dirigir uma pequena oficina na Escola de Almeida para umas
leituras de textos de Eduardo Lourenço. Os alunos demonstraram empenho e alegria
ante as indicações que lhes fui dando demonstrando um grande sentido de compro-
misso. O tempo que passámos foi curto, mas bastante produtivo graças a este brio
que os alunos demonstraram”.
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
129
Paula Sousa

JOSÉ GONÇALVES, O PROFESSOR DE FILOSOFIA


“Creio que o trabalho dos docentes mais envolvidos poderá merecer alguma referencia
mas tão só isso. De salientar sim a adesão dos alunos, numa resposta ao desafio que
lhe foi proposto, numa fase inicial ainda sem contornos muito definidos e progressi-
vamente mais claros. Deles foi o mérito, a nós tocou-nos o mais fácil”.

RODRIGO, ANA, LILIANA, ÍRIS, LARA, SOLANGE, SIMÃO, AFONSO, EVA, BEA-
TRIZ, IARA, OS ALUNOS LEITORES
“É muito bonita a perspetiva de conhecermos uma aldeia pelos olhos de um escritor.”
“Gostei da experiência, foi mais do que uma leitura.” “Uma oportunidade de conhe-
cer um pouco sobre Eduardo Lourenço e sobre a aldeia de S. Pedro do Rio Seco.”
“Uma atividade interessante com textos profundos, nada fáceis, mas que no fim se
compreendem.”

S. PEDRO DO RIO SECO, UM OLHAR DE FORA:


Procuramos conhecer S. Pedro nas suas diversas dimensões materiais e in-
tangíveis, consultamos o SIPA, algumas monografias, revisitamos a toponímia,
abrimos as memórias paroquiais, procuramos perceber os tempos de Eduardo
no seu S. Pedro, procuramos conhecer a sua “aldeia anterior à nacionalidade”,
não só na sua antiguidade aparente, mas também em todas os outros aspetos
que contribuem para uma identidade profunda de significado, presente no mo-
dus pensandi de Eduardo Lourenço.
Retivemos que aquele lugar de Riba Côa, dos “últimos do Reino de Portugal
para a parte oriente” aplanado “varrido pelo vento” era já descrito em 1758 como
“fresco e lavado de ares”, a cuja causa “se atribui o ser saudável”.
Registamos com evidências a sua religiosidade secular materializada em
Igrejas, capelas, ermidas e alminhas, sendo “muito veneradas pelos moradores
desta terra”. A religiosidade e o culto das almas espreitam em vários cantos e
vão-nos lembrando um fim anunciado.
Retivemos que o mesmo rio, ciclicamente seco, já o era ao tempo do século
XVII e XVIII, cuja corrente continuava “sossegada”, não “perene” porque seca no
“verão”.
Do pequeno núcleo urbano sobressaem, sem extravagâncias, alguns edifí-
cios, embora poucos, cingindo-se principalmente os de carácter religioso, fica-
mos assim com uma espécie de paisagem cultural para calcorrear a par com o
autor, desvendando a relação dele com o sítio.
130 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Ler Eduardo Lourenço na Rua do Ribeiro e Igreja Matriz de S. Pedro.

PROPOSTA PARA UM PASSEIO LITERÁRIO COM EDUAR-


DO LOURENÇO NO CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
Iniciamos o percurso no chafariz (I), no largo da capela, elemento que nos
parece remeter para a infância do autor e, simultaneamente, para as coisas sim-
ples e circunscritas, tal qual a água no tanque. “Quando se nasce numa aldeia
naquele tempo, Portugal não está à vista. Ser português então é falar português,
ter uns certos hábitos que vêm do fundo dos tempos. É estar confinado num sítio
incógnito, pouco visto, pouco sabido dos olhos do mundo, é estar isolado e ser
feliz. (Público: 2017). De S. Pedro “não se via o mar”, os horizontes eram menos
largos e longínquos, “um tanque era uma espécie de silêncio em vez de ser um
volume de água”.
Seguimos pela Rua da Capela. Notamos que o tempo foi burilando e apa-
gando alguns marcos do percurso que nos interessavam, mas as memórias
perpetuaram o essencial, ajudam os “pássaros que continuam a encher a aldeia”,
o ar conserva-se transparente e as nuvens, protagonistas de qualquer filme imagi-
nário que nos transporta.

Ler Eduardo Loureço no largo da capela, junto ao Chafariz e na antiga escola (atual Junta de Freguesia)
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
131
Paula Sousa

Paramos na segunda estação e já não vemos a casa Grande da família Afonso


(II), dando lugar a um equipamento assistencial, todavia vem-nos à memória algo
que o autor considerou decisivo para ele, a par da literatura: o cinema.
Fora naquela casa que já não existe, que Eduardo Lourenço, ainda criança viu
o primeiro filme. A religiosidade da aldeia plasmava-se à volta do lençol já velho
e riscado a ver o filme sobre a vida de Cristo, aquele que para além de todos os
tormentos, tinha passado a sua vida toda, debaixo de chuva.
Um pouco mais adiante, na Rua da Capela, fica a casa do Pensador (III), e é
nostalgia que respiramos ou olharmos a sua fachada chã. Os textos que aqui le-
mos falam-nos de uma infância dicotómica, feliz, no seu pequeno mundo simples
de criança, e desoladora numa espécie de distanciamento consentido e regular
que ele sentia entre os habitantes da casa. Cremos, porém, que este modo de
vida foi por ele bem compreendido, não sei se perdoado, e se se mantiveram
para sempre “estendidos braços inúteis para o silêncio deles”.
Não muito longe da casa, no Largo hoje chamado Eduardo Lourenço, fica a
escola (IV). Escolhemos dois elementos para complementar as leituras: um livro
dentro de uma mala, cativados pelas palavras do autor sobre o seu tesouro dos
tesouros, que ele guardava na mala do pai. Os textos que lemos nesta estação
retratam S. Pedro como o lugar – mestre capaz de lhe ter ensinado a mais im-
portante das lições – “a vida anterior às letras” –, mas por outro lado foi aqui
que se iniciou o seu percurso nas letras, aquele que o transformou no maior dos
“leitores de tudo”.

Ler Eduardo Lourenço junto à antiga escola e no átrio da Igreja Matriz

Pela Rua da Igreja, chegamos à Igreja de S. Pedro (VI). O mais singular dos
edifícios do núcleo urbano, estaria, para o autor, vazio (a partir da Páscoa no ano
em que teria 16 anos). O senhor de todos os tempos teria, provavelmente, fugido
de automóvel, e ainda que fosse muita a vontade dele na obtenção de uma Gra-
ça que tornasse crível a existência de Deus e fizesse feliz a sua mãe, ela não veio
e os anjos desistiram dele, abandonando-o.
132 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Seguimos em direção ao Enchido Pequeno e chegados ao Calvário, as três


cruzes (VII) remetem-nos para a inevitabilidade do que nos espera. “A tragédia já
é, em si, nós não podermos escapar aquilo que nos espera, seria uma injustiça
para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já morreram, que nós
não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram quando chegou
o fim deles. E ir para a morte como se todos aqueles que nos conheceram e nós
amámos estivessem connosco”.

Ler Eduardo Lourenço junto ao calvário e a um muro de um logradouro, na Rua do Ribeiro

Descemos para a Rua do Ribeiro, paramos num muro (VIII) de ancestral apa-
relho construtivo ainda modelado com a mestria de outros tempos, no meio há
uma picota parada e perante este “quadro”, ainda tão vulgar nos “centros me-
nores raianos” somos remetidos para a leitura sobre tempo sem tempo, onde o
seu avô lavrava e rezava como se ambas as tarefas fossem uma única coisa, que
uma vez aprendida, assim seria para sempre.

Deposição de Coroa de Flores a Eduardo Lourenço, pelo Presidente da Câmara de Almeida


e pela irmã MariaAlice de Faria.
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
133
Paula Sousa

Caminhamos para a última estação do nosso passeio literário, o cemitério


(IX), não porque ali seja o fim de todas as coisas, mas porque foi em S. Pedro
que Eduardo Lourenço preferiu ficar: "Para mim é demasiado evidente que nós
caminhamos desde o começo em direção ao começo",

ALMEIDA
Como escreveu António Machado, Presidente da Câmara Municipal de Al-
meida, por ocasião da inauguração do Memorial a Eduardo Loureço, em 2021
em Almeida, “Eduardo voltou à sua origem, prendendo-se à terra de onde partiu
para mais tarde voltar, cumprindo-se o desígnio português de sermos habitantes
do mundo”.
Terminamos este apontamento com a formulação de um desejo: eternizar
Eduardo Lourenço, no seu S. Pedro do Rio Seco através da estruturação de um
passeio literário, tornando assim possível salvaguardar os lugares-monumento
de que ele nos falou e sobre os quais pensou enquanto importantes símbolos de
identidade e memória. Para isso contamos com os parceiros do costume, porque
só assim será possível continuarmos a fazer o caminho.
Este passeio literário pode ser complementado com outros lugares. Formula-
mos o convite para visitar a Praça-Forte de Almeida, deixar-se seduzir pelo sin-
gular monumento da fortaleza e admirar mais um Memorial a Eduardo Lourenço,
cuja sobriedade e simplicidade se conjuga harmoniosamente com a retilinearida-
de do desenho urbanístico da Praça. Esta peça, com desenho e pintura azulejar
de Graça Morais remete-nos para as várias dimensões e fases do Pensador e
pode ser contemplada no Largo ao qual se deu o seu nome.

Memorial de Homenagem a Eduardo Lourenço da Pintora Graça Morais, inaugurado a 23 de Maio de 2022
134 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO


LEITURAS DUMA GEOGRAFIA VIVIDA

1. Chafariz; 2. Casa grande; 3. Casa onde nasceu Eduardo Lourenço; 4. Escola; 5. Muro; 6. Igreja;
7. Calvário; 8. Cemitério

(I) Chafariz “O que eu aprendi aqui foi a vida anterior às letras. A vida, o que se vê o
que se sente, os únicos momentos em que uma pessoa tem um sentimento de que
existe verdadeiramente e não por procuração, e não ao segundo ou terceiro grau
em que eu sou verdadeiramente especialista. Não, eram coisas simples. Um tanque
que era uma espécie de silêncio em vez de ser um volume de água. Os pássaros que
enchiam a Aldeia. Os estorninhos que nos eclipsam os crepúsculos violentos, quase
tropicais de certos dias. O cuco que pontuava como um relógio. Este ar transparente
que nos cerca. As nuvens, as nuvens sobretudo, que eram de cinema divino, um cine-
ma sem autor onde nós podíamos escrever, todas as revelações, todos os fantasmas
que se podem ter numa vida de criança.” (EL: Iberografias 2018, nº 34, p. 138)

(II) Casa Grande “(...) Na verdade, além desse encontro com a literatura na minha
infância, que foi realmente decisivo para mim, foi também decisivo ter visto aqui o
primeiro filme, que ainda era de cinema sonoro, na adega desta casa que está aqui,
que era a casa nobre cá do sítio, a casa da família Afonso. Havia uma adega por fora,
parecia um daqueles ambulantes que tinham os pequenos filmes, que passavam ain-
da no tempo do sonoro. Lembro-me desse primeiro filme, como se fosse hoje. Trata-
va-se da vida de Cristo, eu penso que devia ser de um do Cecil B. De Mille, qualquer
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
135
Paula Sousa

coisa desse género. Eu sei que o filme era projectado num lençol que já estava muito
riscado. Eu pensei que tinha chovido durante toda a vida de Cristo e tinha muita
compaixão, além da paixão, além da comiseração pelas dores, e por aquela tragédia
divina, tinha uma compaixão particular porque era tanta chuva sobre Nosso Senhor
Jesus Cristo, que era a pessoa mais importante da minha terra e mesmo do mundo.”
(EL: Iberografias 2018, nº34, p. 138)

(III) Casa de Eduardo Lourenço “… S. Pedro – julho, 1946. Em minha casa cada qual
arrasta a sua ternura familiar numa solidão perfeita. E começo a dar-me conta que
ninguém virá em nosso socorro. Um pudor total consome-nos os gestos antes de nas-
cerem. Por isso demonstramos um estilo irónico, uma maneira de fazer de conta que a
ternura não existe, que vai até à agressividade. Por maior que seja a minha aplicação,
meu pai nunca me deu a entender que está satisfeito comigo. Emprega circunlóquios
divertidos de uma brevidade cortante para significar no máximo que não está descon-
tente. E pelo meu lado um gesto tão natural como de beijar o meu pai ou a minha mãe,
não vai nunca sem uma tentativa premeditada de o passar em claro. Não sei como isto
começou. Creio que meus pais não puderam nunca vencer a reserva camponesa do
mundo da sua infância. Ou então que não chegaram a ter tempo, tão dura a vida se
lhes tornou pelo número de filhos. Mas a verdade é que passei o tempo a estender
braços inúteis para o silêncio deles. “(um (e)terno olhar: 2008, p. 72)
“Na família em que nasci, na casa que foi minha, a nossa, não havia outro Senhor,
literalmente falando, que Jesus Cristo. Tudo esteve ordenado em sua honra, o temor,
e o louvor, os gestos e a horas. Mais tarde compreendi ― com a cabeça nunca com
o coração ― que vivi nessa casa sem horas datadas de há muito séculos. Noutras
terras outros relógios das torres marcavam outro tempo. O nosso era um tempo sem
tempo, alegoria de uma eternidade onde tudo quanto importava já tinha acontecido”.
(Publico Magazine, 21 abril 1996)

(IV) Escola “Todos temos a nossa mala, não é só Pessoa, eu também tenho a minha
malita, ou antes a malinha do meu pai. E nessa malinha havia o tesouro dos tesouros,
de toda a infância: um livro. Apesar de tudo, apesar desse encontro, apesar dessa
paixão pela leitura eu nunca serei nunca fui outra coisa na minha vida que um leitor,
um leitor de tudo (...). Mas, talvez por ser realmente esse leitor eu não fui outra coisa,
que provavelmente tinha gostado de ser. Ser alguém que deu a esta terra alguma
coisa que ela não tinha, um suplemento do imaginário, como só os poetas ou os ro-
mancistas são capazes de dar.EL, Regresso sem fim (Iberografias 2018, nº 34, p. 137)
“Mas na verdade, o que eu aprendi aqui, fora das letras, foi muito mais importante
que tudo o que eu podia aprender nas letras. O que eu aprendi aqui foi a vida anterior
às letras.” (EL: Iberografias 2018, nº34, p. 138)

(V) Muro “Um dia um automóvel, um simples automóvel atravessou a minha aldeia.
Era a primeira vez. Ninguém deu conta, mas alguma coisa de novo acontecera. Al-
guma coisa de terrível. Cristo fugira de automóvel. Quando o carro atravessou a pe-
quena aldeia ele dividira o tempo em dois. Os homens clarividentes deviam ter visto
que era pelo meio dum quadrante eterno que ele passava. O tempo sagrado estava
136 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

morto. Pelo menos não era já o tempo único. Tinha de dividir as atenções dos ho-
mens com o tempo profano, o tempo do simples automóvel. É verdade que durante
centenas de anos o tempo sagrado teve de sofrer menos transigências. Os cuidados
do pão e da vinha, a música e a dança eram subtis degradações da viagem perfeita
neste mundo. Mas tudo voltava à ordem logo que um filho estava para nascer, ou
mesmo uma simples vitela, e para ninguém se podia apelar senão para o Senhor que
por distração os abandonara. E a doença e a seca e a chuva interminável eram avisos
precisos do Senhor. E finalmente essa certa morte que como uma foice monótona
juntava periodicamente a aldeia inteira à volta de um parente de todos, de um irmão.
Mas agora era diferente. A história de Cristo não falava e automóvel. Havia alguma
coisa que não pertencia a essa sabedoria secular. (...) Sem eles saberem uma grande
luta se renovava no meio deles e muitos não podiam pensar ao mesmo tempo em
Nosso Senhor e no automóvel sem experimentar uma impressão esquisita. Seriam
inimigos?” (O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL/ed. e entrevista Maria Manual
Baptista 2005, pp. 92 e 94)
“Meu avô – depois fiquei sabendo que era um personagem algo singular – não era
diferente de um monge do século XIII. Ele lavrava a terra como quem reza – eu
vi – e rezava como quem lavra a terra. De uma e outra coisa fui testemunha e nem
sequer testemunha admirada. A sua real “imitação de Cristo” – tão humilde que
nem lhe passava pela ideia que o fosse – tem pouco a ver com qualquer imitação
do Mestre (...) Havia simplesmente um exemplo herdado um estilo de viver e de
morrer que vinha da fundura compacta dos tempos.” (Publico Magazine, 21 abril
1996)

(VI) Igreja “Aos dezasseis anos era uma afirmação pretensiosa a de ter perdido fé.
Chego a achar isto tão ridículo que não tive ainda a coragem de o confessar a nin-
guém. Mas é um facto. A corrente centenária de uma vocação familiar partiu-se mis-
teriosamente nesta miséria que leva o meu nome. Na última Páscoa levei a cabo toda
uma comédia para falhar pela primeira vez um ato que cumprido como desejaria
minha mãe seria o sacrilégio mais raro. Foi o último ato duma existência hipócrita,
envenenado por um amor monstruoso incapaz de ferir o rosto. Meu pai está longe e
como todos os homens acarreta uma solidão uma solidão pessoal que lhe vela a dos
outros. Mas minha mãe que me observa e me conhece como ninguém mais, suspeita
sem poder acreditar a minha frieza religiosa. Infelizmente considera-a sem nenhuma
espécie de simpatia. O seu amor por mim é tão cego que não pode crer a sério que o
seu filho não creia em Deus. O que é espantoso é que ao mesmo tempo que endure-
ce uma tal fé em mim, torna-se funda ainda na consciência da minha amargura e por
amor dela não só desejo que uma graça volte de novo como chego a crer que não me
tenha abandonado de todo.” (um (e)terno olhar: 2008, pp. 72, 74)
“Realmente vivo, tão maravilhoso que nem mesmo nos parecia maravilhoso, era so-
mente o Cristo, modelo dos nossos jogos porque era da nossa idade, senhor das
searas e das vinhas, porque ele mesmo era pão e vinho, e também da vida e sobretu-
do da morte, porque era da idade de toda a gente e incomparavelmente mais velho
que toda a gente. Ele era mesmo o criador do Céu e da Terra e a primeira manhã
do mundo já o encontrara e Ele a pé. Pouco sabíamos uns dos outros ou jamais se
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
137
Paula Sousa

falava disso – que a história não existia ainda – mas cada qual sabia a história inteira
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era a única história da família. Era a única história da
história pois todos os acontecimentos eram ainda história sagrada. Como as espigas
e os frutos voltavam cada ano e eram sempre espigas e frutos, ninguém achava mis-
tério algum na história espantosa. Ele era o menino que nascia todos os anos quando
a neve e o vento de Espanha punham nos campos uma branca desolação dispersa
e todos os anos ia crescendo até que os homens o crucificavam e crucificado o le-
vavam pelas ruas onde um suave vento de primavera espalhava as flores amarelas
mimosas. E ao terceiro dia ressurgia de entre os mortos e era pela aldeia toda uma
alegria como não há outra, pelo grande Senhor tão conhecido de todos que sozinho
voltara da morada da morte.” (O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL/ed. e entre-
vista Maria Manual Baptista 2005, p. 95).
(VII) Calvário "Cristo não disse que vinha salvar a humanidade como um mágico, mas
veio convencido de que a humanidade se salvaria através do amor que ele portava
em si mesmo. Tenho na referência crística a referência fundamental da minha educa-
ção e da minha maneira de ser." (Diário de Notícias 2003).
A tragédia já é, em si, nós não podermos escapar aquilo que nos espera, seria uma
injustiça para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já morreram, que
nós não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram quando chegou
o fim deles. E ir para a morte como se todos aqueles que nos conheceram e nós
amámos estivessem connosco.

(VIII) Cemitério “Não enterramos os mortos. Sejamos mais humildes, são os outros
que se enterram em nós. Uma certa noite, o sentimento nauseante de desamparo em
que chegaríamos a procurar um certo conforto porque ele nos fazia único e era um
argumento implacável contra esse pedido de contos que alguém parece apostar em
exigir, abandona-nos como uma sombra e na manhã seguinte regressamos à velha
pele do Adão sem mortos, à superficialidade incolor das horas quotidianas.” (um (e)
terno olhar: 2008, pp. 74, 75).
Tu habitaste um planeta desaparecido. Não podias adivinhar que o que te cercava
era mais estranho que a face escondida da lua. Se tivesses sabido que o granito tris-
te, as mãos terrosas, as camisas encardidas da tua gente, seus gestos, suas palavras
já haviam morrida há séculos e te batiam no rosto como a luz das estrelas há muito
extintas, terias sido mais atento. Assim tudo te passou como água entre os dedos.
Mais tarde podias ter registado essas vozes, o diálogo entre fantasmas que elas não
sabiam ser, mas ninguém te preparava para Óscar Lewis da tua própria gente. Tu
habitaste entre gente medieva, medievo tu mesmo. E foi o melhor que te aconteceu.
(J.L., 8 de maio de 1996, p. 47)
Foi quase anteontem que fui eterno. Sei que ninguém pode acreditar nisso. Nem eu.
A verdade é que nesse tempo ignorava a morte e a morte me ignorava. Os mortos
desse tempo não eram a morte (...) tudo era natural como as estações. Não podia
imaginar que nesse planalto varrido de vento tinha um limite, que era um exíguo
jardim onde um dia eu mesmo cairia como uma maçã apodrecida. Sempre me re-
cordara do céu atormentado e sem fim. Sempre conhecera o seu rio de pouca água
onde nunca nadei. Sempre viajara nesse vento onde ainda não distinguia o rumor
138 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

invisível das falas de ninguém. Sempre pudera caminhar para onde queria nesta ter-
ra escura e triste e nunca vira ninguém a achá-la particularmente triste. As manhãs
tinham o rosto ocre das amoras verdes e à noitinha o horizonte debruado de violeta
e sombra não fazia lembrar senão outros crepúsculos. Tudo era sempre nas coisas e
nas almas.” (O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL/ed. e entrevista Maria Manual
Baptista 2005, p. 95).

REFERÊNCIAS
Batista M. M. (2005). O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL. Ed. e entrevista Maria
Manuel Baptista, 1.ª Ed. Publicação; Porto: Campo das Letras, pp. 91,92,94 e 95.
Batista M. M., Cruzeiro M. M., Castro F., (2023). Tempos de Eduardo Lourenço –
Fotobiografia; Maia; Contraponto Editores. pp. 32-47.
Isidro A., Almeida A. J. D. de, Ferreira J. C., Romana, J. M. M. da; Jacinto R., Bento
V. (2008). Um (e)terno olhar – Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira e a Guarda,
Edição Centros de Estudos Ibéricos, pp. 72,74, 75 e 284.
Jacinto R., Cabero V. (2018). Andanças e Reflexões Transfronteiriças: Roteiro Miguel
de Unamuno – Eduardo Lourenço, 1.ª Ed. – Guarda: Centro de Estudos Ibéricos;
Lisboa Ancora 2018, Iberografias; 34, pp. 137 e 138.
Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016.
J.L. – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8 de maio de 1996 (1995/9/10)

WEBGRAFIA
Jornal de Notícias, in www.jn.pt/artes/eduardo-lourenco-em-40-frases-13095805.
html
https://www.publico.pt/2023/03/04/fugas/reportagem/piccolo-mondo-antico-sao-
-pedro-rio-seco-aldeiamundo-eduardo-lourenco-2041036
https://www.jornalaguarda.com/index.php/atualidade/o-homem-e-por-essencia-al-
guem-que-vive-dos-sonhos-maiores-do-que-ele
https://www.publico.pt/2017/07/31/culturaipsilon/noticia/eduardo-lourenco-a-terra-
-nao-merece-este-genero-de-sonhos-mal-sonhados-1780705
https://www.pensador.com/frase/MjkyNTkxMQ/
https://www.paroquiaqueijas.net/portal/igreja-e-noticia/opiniao/864-eduardo-lou-
renco-em-40-frases
PALMILHANDO A GUARDA DE
EDUARDO LOURENÇO

THIERRY PROENÇA DOS SANTOS*

PREÂMBULO
No ano das comemorações do centenário do nascimento de Eduardo Louren-
ço de Faria (1923-2020), impunha-se rever o lugar que o reputado ensaísta ocu-
pa na mais alta cidade lusa que conheceu na infância e na adolescência e da qual
1
lhe ficaram gratas memórias, apesar do «frio quase mítico» que aí experimentou
e de se ter apercebido, anos mais tarde, que, naquele tempo, «quem dominava a
2
cidade, quer a nível simbólico, quer a nível político, eram os padres» .
Nela viveu em curtos intervalos de tempo. O seu percurso escolar e formativo
teve início em São Pedro do Rio Seco, a aldeia natal, passou por Lisboa, onde
estudou em regime de internato no Colégio Militar, e concluiu-se na Universida-
de de Coimbra, onde se afirmou como intelectual «heterodoxo», para depois se
tornar num cidadão do mundo. Nesse processo de formação e aprendizagens
da vida, a Guarda foi o cenário da sua primeira experiência de paisagem urbana,
3
com a descoberta da luz elétrica nas casas , do primeiro ano do Liceu, das visi-
tas à família nas férias grandes e no Natal, tendo sido no quartel dessa capital
de distrito que cumpriu o serviço militar, ou seja, foi a sua «cidadezinha» onde
viveu intermitentemente até à idade adulta. Habitar (n)a Guarda não deixou de
ser uma espécie de avant-goût dos anos que passou em Coimbra, sendo esta
4
a «pátria da [sua] iniciação cultural» . Depois de se mudar para o estrangeiro, a
Guarda tornou-se para Eduardo Lourenço um mero local de passagem quando
5
se deslocava entre França e Portugal. A «cidade de alturas» passou a fazer parte
*
Técnico superior do Município da Guarda | Museu da Guarda.
1
Eduardo Lourenço, «Ares da Guarda», In RODRIGUES, Américo (coord.). ar livro. Guarda: Núcleo de Animação
Cultural / Câmara Municipal da Guarda, 2004. (2 pp.)
2
Entrevista a Eduardo Lourenço de José Manuel Mota da Romana, «Esta cidade era a mais clerical do país»,
Terras da Beira, 2-5-1996, Guarda, p. 5.
3
Entrevista a Eduardo Lourenço de Luís Baptista-Martins e Nuno Amaral Jerónimo, publicada em O Interior
em agosto de 2011 e republicada no mesmo jornal, na sua edição de 26 de maio de 2023. Disponível em:
«Estamos na Europa e é nela que temos que encontrar a solução para a crise» - Jornal o Interior.
4
Eduardo Lourenço, «Lembrança espectral da Guarda». In RODRIGUES, Américo (coord.) Praça Velha – revista
de Cultura da Cidade da Guarda. 1. Guarda: Câmara Municipal da Guarda (pp. 91-97), 1997, p. 95.
5
Eduardo Lourenço, «Oito séculos de altiva solidão», In JACINTO, Rui & CABERO, Valentín (coord.). Iberografias.
34. Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI - Âncora
Editora (pp. 99-103), 2018, p. 102.
140 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

dos seus espaços míticos, tal como a aldeia natal, a zona raiana, a Beira, onde o
seu imaginário podia captar de quando em vez energia interior para sustentar a
sua dinâmica mental.
Mal sabendo um do outro durante décadas, a Guarda reata ligação com
Eduardo Lourenço a partir de meados dos anos 90 e desde aí estreitaram rela-
ções, criando uma cumplicidade benéfica para ambas as partes, sobretudo para
a Guarda. A perceção, memória e visão que o Professor tem da cidade vai evoluir
6
nesse processo de reaproximação . Se, em 1977, Eduardo Lourenço se referia,
7
numa carta endereçada a Jorge de Sena , à Guarda como «essa capital de neve
e de reaccionarismo pátrio, onde rapei um frio que ainda hoje sinto e que é para
mim apenas uma cidade de fantasmas. (…). Ou com mais verdade e modéstia,
eu o fantasma dela» (Sena 1991: 110), em 2008, opera-se uma mudança na visão
que tinha do lugar e o seu discurso adota outro tom. À ideia da estranheza e do
frio sucede a da familiaridade e do calor humano: «nesta cidade (…) a quem me
ligam tantos laços afectivos» (Lourenço 2008: 5). Enquanto a cidade cresce e
se renova, requalificando várias áreas do seu tecido urbano e construindo no-
vas infraestruturas, com novos polos culturais, o ensaísta passa a colaborar com
8
algumas iniciativas editoriais locais . Em 1999, na conferência que proferiu na
sessão solene das Comemorações dois Oitocentos Anos da Guarda, lança a ideia
da criação de uma instituição que refletisse, culturalmente falando, sobre os dois
lados da fronteira e em 2000 é criado formalmente o Centro de Estudos Ibéricos
(CEI), cuja instalação, arranque e programação de atividades passa a acompa-
nhar com especial atenção. Em 2004 institui-se o Prémio Eduardo Lourenço para
distinguir personalidades e instituições de relevo de Portugal e Espanha. A partir
daí, vem todos os anos à Guarda até 2018 presidir à entrega do galardão. Em
2005, é inaugurado a sede do CEI, na Quinta do Alarcão (hoje Campus Interna-
cional de Escultura Contemporânea). Em 2008, o Município distingue Eduardo
Lourenço, atribuindo à nova biblioteca municipal o seu nome. O homenageado
doa à recém-criada instituição cerca de 3000 volumes da sua biblioteca particu-
lar. No domínio que toca à arte pública, duas obras perenizam-no na cidade: o
memorial a Eduardo Lourenço, executado por Florencio Maíllo, erguido, em 2017,
no Campus Internacional de Escultura Contemporânea, e, em 2023, no âmbito
das comemorações do centenário do seu nascimento, é instalado no Jardim José

6
Sobre essa reaproximação, reconheceu Eduardo Lourenço, em 2011, que a ela se deve em boa parte àquele
convite recebido do Município da Guarda para proferir a oração de sapiência, em 1999, na sessão solene dos
Oitocentos Anos do Foral que D. Sancho I atribuiu à Guarda, em «Quem vê o seu povo vê o mundo todo»»,
In JACINTO, Rui & CABERO, Valentín (coord.). Iberografias. 34. Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro
Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI - Âncora Editora (pp. 131-139), 2018, p. 133: «Provavelmente
sem aquela cerimónia da Guarda, nada disto, nada desta espécie de coisas teria, realmente, acontecido».
7
A carta é datada de 23 de maio de 1977.
8
Foi, por exemplo, entre outras colaborações, cronista regular do jornal O Interior, da Guarda, entre 2000 e
2006.
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
141
Thierry Proença dos Santos

de Lemos um busto em sua memória, da autoria do escultor guardense Pedro


Figueiredo. Nestes últimos anos, foram-lhe dedicadas várias iniciativas culturais
e literárias.
Neste quadro, dar a conhecer à comunidade da Guarda e àqueles que a visi-
tam os locais que recordam o crítico e ensaísta literário e os lugares guardenses
de que Eduardo Lourenço tem memórias é missão a que o Município e o CEI não
podiam deixar de abraçar.
Sabedor de que o Museu da Guarda tinha dado início à criação de uma cole-
ção de percursos temáticos, inspirados em personalidades do pensamento e da
literatura que visitaram ou viveram na Guarda, o CEI lançou o desafio à equipa
que elaborou esses desdobráveis de dedicar um itinerário guardense baseado
9
na biografia e nas memórias de Eduardo Lourenço . Assim se ampliou a coleção
de circuitos literários que ligam lugares da Guarda à escrita e/ou a vivências de
personalidades culturalmente relevantes. As vivências que esses vultos tiveram
na urbe deram azo ora ao silêncio, ora ao registo de memórias e comentários
referentes a esses lugares, ora inspiraram versos ou cenas em prosa de ficção.
Personalidades como Vergílio Ferreira (1916-1996), Miguel de Unamuno (1864-
1936), Augusto Gil (1870-1929), Nuno de Montemor (1881-1964) e agora Eduardo
Lourenço justificam plenamente tal iniciativa. Nenhum nasceu na Guarda, em-
bora sejam naturais do distrito, com exceção de Unamuno. Em comum, todos
eles estanciaram na Guarda e deixaram um legado cultural e literário assinalável,
quer a nível nacional, a exemplo do republicano Augusto Gil e do eclesiástico
Nuno de Montemor, quer a nível internacional, como Miguel de Unamuno, Ver-
gílio Ferreira e Eduardo Lourenço. O primeiro percurso literário, o virgiliano, foi
construído a partir dos cenários guardenses evocados nas respetivas obras de
10
ficção , os restantes propõem circuitos biográficos, visando a dar a conhecer
aspetos da relação do autor em causa com lugares da cidade que habitou, per-
correu, comentou e/ou evocou num volume seu.
Note-se que, nesta galeria de individualidades, a maioria é composta por vul-
tos que se situam, cronologicamente, na viragem do séc. XIX para o séc. XX ou
nas primeiras décadas do séc. XX. Apenas Eduardo Lourenço se inscreve já no
séc. XXI. Ainda que o visionário Lourenço tenha projetado a Guarda no futuro,
a Guarda evocada nos textos destes escritores abrange um período que vai de
finais do século XIX a meados do século XX. Amigo de longa data de Vergílio Fer-
11
reira , tendo-se cruzado nas imediações do «Lactário» dessa cidade com Nuno

9
Ver o desdobrável «Roteiro Lourenciano – Uma volta pela Guarda com Eduardo Lourenço». Câmara Municipal
da Guarda / Museu da Guarda, 2023. (Col. «Percursos Temáticos, 5»)
10
Ver Anabela Matias, «A Guarda de Vergílio Ferreira e Tomás Ribeiro, Contributos para um Roteiro Literário».
In SANTOS, Thierry & PEREIRA, Vitor (coord.). Praça Velha – Revista Cultural da cidade da Guarda. 44. Guarda:
Câmara Municipal da Guarda, 2023, pp. 127-147.
11
Entrevista a Eduardo Lourenço de Dina Gusmão, «Recordar Vergílio Ferreira», publicada no Correio da Manhã,
Lisboa, na sua edição de 9 março de 2004: «Tinha com Vergílio Ferreira uma relação de longa amizade,
142 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

12
de Montemor , leitor informado de Miguel de Unamuno, conhecedor de alguns
poemas de Augusto Gil, é provável que Eduardo Lourenço não viesse a estranhar
tal convívio ditado mais pela geografia do que por afinidades eletivas.
Na verdade, é com Miguel de Unamuno e Vergílio Ferreira que teve maior
proximidade, visto terem em comum determinados interesses literários e filo-
sóficos. Em relação ao primeiro, refira-se que, na sua carreira de professor uni-
versitário em Nice, Eduardo Lourenço deu «cursos sobre Unamuno» e, bem mais
tarde, chegou mesmo a dar uma conferência sobre o seu pensamento e obra, na
Universidade de Salamanca, onde Unamuno lecionou e foi nomeado por duas
13
vezes Reitor . Quanto à voz literária virgiliana, além de a ter analisada em várias
ocasiões, como não evocar, na sua conferência intitulada «Lembrança espectral
da Guarda» proferida nessa mesma urbe em 1995, as sombras de Estrela Polar,
designadamente através do termo «espectral» que o título da mesma retoma,
sendo esse um termo recorrente no referido romance? Além da menção direta a
Estrela Polar enunciada no seu discurso, Lourenço parece revisitar nessa confe-
rência as suas memórias da Guarda ainda impregnado pela atmosfera «sideral»
e algo lúgubre, como num filme «noir», dessa paisagem urbana (embora aí desig-
14
nada como Penalva) recriada pela voz narrativa de Adalberto Nogueira .

«-âmbulo»
A modalidade do circuito literário temático pressupõe um périplo numa deter-
minada área geográfica com base numa obra literária que a evoca, descrevendo-
-a, ou então, num ilustre escritor que a vivenciou ou que nela residiu.
Na prática, do ponto de vista de quem delineia e dinamiza o percurso literá-
rio, a sua elaboração apresenta-se como um exercício que obriga a interrogar

iniciada nos anos 50 e que durou até à sua morte. Do homem, retenho a seriedade com que encarava o
mundo e a exigência para com tudo o que o cercava, até para com os amigos a quem ouvia tanto quanto
julgava. Não era um homem fácil e muito menos tranquilo». Em 1949, Eduardo Lourenço escreve o prefácio
do romance Mudança. Ao longo da sua vida, trouxe a lume alguns estudos sobre a obra de Vergílio Ferreira.
12
Eduardo Lourenço, «Lembrança espectral da Guarda». In RODRIGUES, Américo (coord.) Praça Velha – revista
de Cultura da Cidade da Guarda. 1. Guarda: Câmara Municipal da Guarda (pp. 91-97), p. 95: «Menos conhecia
os seus poetas, com exceção do autor de Luar de Janeiro, Augusto Gil, um António Nobre sem pose, mas
também sem o seu génio, que andava, a justo título, nas seletas com a celebérrima «Balada da neve», que
parece ter deixado traços num famoso poema de Pessoa. Dos vivos, vi passar na rua, envolto em soturnidade,
Nuno de Montemor, a caminho do lactário desta cidade, um autor da nossa província profunda que evocava
para um largo público católico do país, dramas e paixões do mundo eclesiástico».
13
Entrevista a Eduardo Lourenço de Luís Miguel Queirós, «Retrato de um pensador errante», publicada no
Público (Caderno de domingo - Pública), na sua edição de 13 de maio de 2007.
14
A esse respeito, escreveu Cristina Robalo Cordeiro, em «De Guarda à Literatura – com Vergílio Ferreira e
Eduardo Lourenço». In ISIDRO, A.; ALMEIDA, A J. D. de; FERREIRA, J. C.; ROMANA, J. M. M. da; JACINTO, R. & BENTO,
V. (coord.). Um (e)terno olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda. Guarda: CEI (pp. 25-28), 2008,
p. 25: «é curioso constatar que Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço, sem se terem conhecido na época,
partilham uma mesma experiência de juventude na Guarda. Se seis anos apenas separam as suas datas de
nascimento (e uma tal distância, nessa idade, equivale à diferença de geração), uma visão comum da cidade
reúne as memórias de ambos a ponto de tornar as suas notações quase intermutáveis, acontecendo mesmo
que Eduardo Lourenço recorra às evocações de Vergílio (…) para confirmar as suas próprias impressões».
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
143
Thierry Proença dos Santos

a pertinência dos lugares na sua mediação com um Autor, os seus escritos e os


sítios que o evocam, o que constitui uma forma de territorialização do patrimó-
nio literário, seja ele material (a casa onde viveu, memorial, livros, centro de
estudo…), seja ele imaterial (o imaginário dos lugares desenvolvidos nas suas
obras, os rastos do autor, um percurso relacionado com a obra…). O trajeto deve
responder não só à necessidade de se definir um circuito exequível para um pú-
blico alargado, mas também deve ser construído de modo a estimular o desejo
de visita e de contribuir para a concretização de uma experiência positiva, do-
seando o tempo de duração do passeio e do esforço físico com uma abordagem
suficientemente sugestiva e contemplativa.
Na ótica do itinerante literário, ir ao encontro dos lugares que um Escritor
frequentou ou que transpôs para a sua obra implica saber se quer estar ou não
acompanhado, e por quem, e escolher uma das três modalidades.
i) O formato de visita de estudo, em grupo, quando se é motivado por inten-
ções pedagógicas e educativas;
ii) O tipo de peregrinação que se constitui num percurso que se faz pelo pró-
prio percurso, se for a sós ou em círculo íntimo, quando se tem a vontade de
sentir e experimentar o «espírito do lugar», suscitada por um livro inspirador
ou pela veneração a um Autor.
iii) Não querendo ser orientado, o itinerante interessado pode entregar-se à
flânerie por uma determinada área e deixar-se surpreender pela descoberta
de marcos alusivos ao(s) Autor(es) a ela associado(s).

Se tais percursos continuam a sustentar os mundos da História, da Memória


e da Cultura, interessam cada vez mais, hoje em dia, às coletividades locais que
os consideram como um meio para reforçar a atratividade do seu território. Mui-
tos desses circuitos literários apresentam-se já como oferta de uma experiência
única, alargando o leque das práticas turísticas diversificadas que se encontram
em plena expansão por esse mundo fora e, particularmente, nestes últimos anos,
em Portugal.
Tais circuitos, que podemos também designar de roteiros, interrogam-nos de
vários modos: como se relaciona uma obra ou um autor com o espaço descrito
ou comentado? Que especificidades do lugar são destacadas ou reveladas na
obra literária? Com que fios se tecem os imaginários associados a esse lugar?
Em todo o caso, entre o local anódino, os sítios frequentados por uma perso-
nalidade literária e o lugar transfigurado pela literatura, a criação de um circuito/
roteiro atesta sempre da vontade de construir um lugar simbólico para valorizar
o património cultural aí existente.
Por certo, todo o território carimbado com o selo da cultura literária apresen-
ta-se como o cenário propício para reverberações criadoras de lugares e imaginá-
rios (Bonniot-Mirloup & Blasquiet 2016: 1). Tais discursos cruzados participam do
144 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

processo de renovação da imagem de um dado lugar, valorizando-lhe um aspeto


patrimonial. Podem até despertar no leitor visitante o sentimento do lugar. Como
observam Carvalho & Baptista (2015: 57):
A vivência do espaço real onde a obra se enquadra permite ao leitor aumentar a
polissemia da obra. Por outro lado, após conhecer a obra literária, o leitor encontra
novos sentidos para a paisagem, apurando e extravasando o que os sentidos lhe
dão, através do seu imaginário estimulado pela literatura. O turista deixa de ser um
mero recetáculo: ele passa a corredigir a paisagem e a obra.

Quer isto dizer que a literatura mantém com lugares reais uma relação dialéti-
ca: há lugares que inspiram uma obra literária e há obras literárias que conferem
valor a um determinado lugar.
Para além disso, é particularmente vantajoso para um território municipal do
Interior, que tende a sofrer de uma fraca atratividade turística, identificar, valo-
rizar e explorar a memória de personalidades literárias que nele praticaram ou
imaginaram uma espécie de geografia sentimental, assim como registar outros
sítios literários com potencial para se tornarem um bem cultural (suscitando a
motivação educativa) ou até uma atração turística (suscitando a motivação de
entretenimento). Entendemos por «sítio literário», com Anabela Sardo (2008:
85), locais como a casa de escritor, paisagens, o café-tertúlia, um teatro, uma
biblioteca, um centro de documentação ou um museu dedicado a uma ou várias
personalidades literárias, um espaço ficcionado por um autor num cenário real e,
ainda, um lugar onde um vulto das letras viveu temporariamente e do qual houve
ressonâncias na sua obra.
Neste sentido, o roteiro pode ser considerado como um recurso para o de-
senvolvimento cultural, social e turístico do território, pois tal contributo ajuda a
qualificá-lo. Como refere Bouvet (2019: 113), o passeio literário pode visar vários
propósitos, a saber, o de natureza económica (atrair turistas), o de cariz político
(afirmar uma identidade local e/ou regional) e o de carácter cultural (divulgar
conhecimento sobre o património local).
Assim sucede com uma cidade como a Guarda. Os lugares de memória literá-
ria espalhados pela urbe contribuem para a reputação cultural da mesma, para
que esta conquiste notoriedade e reconhecimento e promova o orgulho que os
seus cidadãos devem ter nela.
Tendo em conta o prestígio do ensaísta e conferencista, como não valorizar a
relação de Eduardo Lourenço com a Guarda? Como não aproveitar o pensamen-
to e a visão que elaborou para essa cidade? Como não reconhecer as vantagens,
quer no campo do simbólico, quer no campo da produção de conhecimento, que
o exemplo deste Professor e da sua obra trouxe para a vida cultural guardense?
A elaboração do «roteiro lourenciano» assentou nas seguintes fontes: textos
de Eduardo Lourenço que versam sobre a Guarda, entrevistas que cedeu ao
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
145
Thierry Proença dos Santos

longo da vida, os trabalhos de Rui Jacinto publicados na coleção Iberografias e


o volume Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia de Maria Manuela Cru-
zeiro e Maria Manuel Baptista. Rui Jacinto e Valentín Cabero lançaram, aliás, as
bases desse percurso em «Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel
15
de Unamuno – Eduardo Lourenço» , com vista à construção de um itinerário
bem mais ambicioso, visto abranger Salamanca, São Pedro do Rio Seco, Guarda
e Coimbra. Decerto, o presente passeio pela Guarda com Eduardo Lourenço é
um contributo modesto que permitirá abrir caminho à recolha de novos dados
sobre a passagem do ensaísta pelos lugares onde permaneceu na cidade. Na
verdade, o roteiro ganharia maior interesse se tivesse sido possível consultar fa-
miliares (designadamente os irmãos) e contemporâneos da sua juventude (no li-
ceu e no quartel). Ter-se-ia talvez conseguido saber o número da porta das casas
onde a família residiu na Guarda ou qual a escola primária onde o jovem Eduardo
frequentou o terceiro ano. Saber-se-ia algo mais sobre a sua experiência de ser-
viço militar no aquartelamento da Guarda e sobre a qual, ao que parece, nunca
se pronunciou publicamente.
O passeio proposto é organizado em torno das vivências de Eduardo Lou-
renço na Guarda, da sua relação com a cidade, do modo como o ensaísta a via
e dos lugares guardenses que o evocam. O itinerário tem o propósito de levar o
participante numa deambulação física à descoberta de um património geográfi-
co e cultural: memórias de uma cidade que já não é, lugares de uma visão e de
um pensamento inspiradores para essa mesma cidade. O percurso inclui a visita
a memoriais de arte pública que, quais media celebrizando o seu exemplo de
homem de cultura e cidadão notável, lhe rendam homenagem. O desdobrável
propõe um mapa de itinerário e apresenta um dispositivo que associa citações,
apanhados, imagens e ilustrações aos lugares selecionados do percurso geral.
Fornece ainda uma nota biográfica e uma breve síntese das representações da
Guarda que Eduardo Lourenço cultivou. Para realizar esse circuito de Autor, o
visitante tem que se pôr a caminho e caminhar, combinando assim a (re)desco-
berta de parte da cidade, uma experiência cultural e a mobilidade física.
De acordo com o modelo adotado pela referida coleção de percursos temáticos
editados pelo Museu da Guarda, o passeio literário visa os seguintes objetivos:
– Dar a conhecer aspetos da cidade, divulgando alguns dos seus valores
culturais e patrimoniais.
– Divulgar as experiências de vida que Eduardo Lourenço teve na Guarda
através das memórias que registou por escrito e partilhar as suas reflexões
sobre a mesma.
– Enriquecer a cultura local, porque este tipo de iniciativa pode ocasionar
inesperadas colheitas de informação.

15
Ver JACINTO, Rui & CABERO, Valentín (coord) (2018). Iberografias. 34. Guarda: CEI-Âncora Editora.
146 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

– Difundir a História, Cultura e Literatura da Guarda, com o rigor possível, à


semelhança dos roteiros dedicados a Vergílio Ferreira, Miguel de Unamuno,
Augusto Gil e Nuno de Montemor.
– Ir ao encontro da curiosidade da comunidade escolar, de modo a apro-
fundar e estimular o interesse dos alunos e dos professores pela estatura
intelectual do Ensaísta.
– Estimular as pessoas a lerem mais obras de autores ligados à Guarda, no
caso vertente livros de Eduardo Lourenço, fazendo com que as suas publica-
ções continuem a inspirar e fazer refletir.
– Explorar a relação Cultura, Turismo literário e Saúde física e mental.
– Sensibilizar os participantes para os efeitos positivos de «caminhar» en-
quanto se adquire novos saberes.

Partindo do princípio de que cada lugar possui características que o definem


como único, tais particularidades associadas à memória de uma personalidade
literária são perspetivadas para revelarem ao itinerante, orientado pelo desdob-
rável, a cidade mal conhecida ou desconhecida no decorrer do circuito recomen-
dado. O itinerante vai à descoberta dos espaços que o escritor em causa conhe-
ceu, ainda que transformados com o evoluir do tempo, ou então à descoberta
desses lugares que descreveu na sua obra, com o propósito de ligar os cenários
evocados a dimensões do sensível e do inteligível.
Definiu-se o circuito a partir dos seguintes pontos de interesse, baseados
em dados biográficos de Eduardo Lourenço, nas suas memórias pessoais e no
imaginário da cidade sobre o qual discorreu:
1. Sé da Guarda (uma metáfora visual)
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
147
Thierry Proença dos Santos

2. Liceu Nacional, antigo Liceu Afonso de Albuquerque e atual Escola de San-


ta Clara (anos 1933-34)
3. Rua do Encontro (onde viveu a família de Eduardo Lourenço)
4. Farmácia da Misericórdia (uma memória pessoal)
5. Coliseu da Beira, a sala de espetáculos (1911-1944) na rua Vasco da Gama
(uma memória pessoal)
6. Câmara Municipal da Guarda (um palco histórico)
7. Hotel de Turismo (um testemunho de quem conviveu com Eduardo Lourenço)
8. Bairro do Bonfim (onde viveu a família de Eduardo Lourenço)
9. Jardim José de Lemos: a colocação do busto do filósofo da cultura em
2023
10. Antigo Convento de São Francisco / Quartel do Batalhão de Caçadores
7 (onde Eduardo Lourenço prestou serviço militar como Aspirante a Oficial
Miliciano: 1946-1947)
11. Rua Batalha Reis (onde viveu a família de Eduardo Lourenço)
12. Sanatório (uma memória pessoal)
13. Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL), 2008 (um sítio literário)
14. Centro de Estudos Ibéricos (CEI), 2005 (um sítio literário)
15. Rotunda do G (Homenagem a Eduardo Lourenço, entre outros, num mural
de arte urbana)

Este passeio entre lugares e textos oferece ao itinerante um modo inédito


de percorrer espaços da Guarda e de visitar memórias e visões que Eduardo
Lourenço teve dessa cidade, promovendo uma forma de turismo, entre possíveis
visitantes e habitantes locais curiosos do património envolvente, que combina
conhecimento, imaginário e experiência dos lugares.

PÓS-ÂMBULO
Ao palmilhar um itinerário balizado por topoï associados a uma personalida-
de ilustre das letras, é como se os passos do itinerante literário convergissem
para lugares que valem a pena ser conhecidos, quiçá recordados tal como os
terá vivido o Autor que serve de fio condutor. Tal percurso pode fascinar o iti-
nerante pela sua dimensão espiritual, no sentido em que lhe será possível por
momentos relacionar a sua experiência do lugar com o imaginário geográfico
que o Escritor transpôs para a sua escrita. Entre emoções e sensações físicas, na
sua busca do espírito dos lugares, o itinerante poderá fruir o passeio como uma
viagem interior, à medida que a área percorrida se lhe revela.
O «roteiro lourenciano» em papel (para já apenas em português) é uma ini-
ciativa do Município da Guarda, através do seu Museu, imbuída com o propósito
148 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

de dinamizar a cultura local, valorizar lugares da cidade e incentivar atividades


ao ar livre como a caminhada. Este desdobrável com notas, citações, imagens e
mapa com alcance informativo pode dar azo a três tipos de visita, já testadas: a
visita livre, ao sabor da vontade do itinerante e da sua autonomia, a visita guiada
por um cicerone conhecedor do tema e a visita encenada por atores inspirados
nos conteúdos que o desdobrável veicula para captar com estratégias de tea-
tralização, diálogos e leituras a atenção dos participantes ao longo do percurso,
assumindo, nesta abordagem, uma prática lúdica e convivial.
Este roteiro, tal como os anteriores dedicados a escritores ligados à Guar-
da, poderá servir como ensaio para a criação de um itinerário que dinamize o
turismo cultural, já que, para valorizar uma cidade, importa ter turistas. Para tal,
seria preciso traduzir o desdobrável noutras línguas, como o espanhol, o francês
e o inglês, formar guias que falem línguas estrangeiras, de modo a minimizar a
barreira cultural, explicar previamente aos turistas a importância daquelas per-
sonalidades na vida cultural nacional, regional e/ou local, e, finalmente, investir
na mediação sustentada em novas tecnologias de comunicação e informação.
Tratando-se de uma experiência imersiva no espaço que relaciona intima-
mente um autor, a sua obra e um conjunto de lugares, o itinerário proposto a pé,
dado como atividade cultural e turística, favorece não só a descoberta do centro
da cidade pelo prisma da literatura como a descoberta de um património literário
pelo viés da geografia.

REFERÊNCIAS
Ensaios, entrevistas e correspondência:
Lourenço E. (1997). Lembrança espectral da Guarda. In Rodrigues A. (coord.) Praça
Velha – revista de Cultura da Cidade da Guarda. 1. Guarda: Câmara Municipal da
Guarda, pp. 91-97.
Lourenço E. (2018). Oito séculos de altiva solidão. In Jacinto, Rui & Cabero, Valentín
(coord.). Iberografias. 34. Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel
de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI - Âncora Editora, pp. 99-103.
Lourenço E. (2004). Ares da Guarda. In Rodrigues A. (coord.). ar livro. Guarda: Nú-
cleo de Animação Cultural / Câmara Municipal da Guarda. (2 pp.)
Lourenço E. (2008). Um dom com memória futura. In Bento V. (org.). Leituras de
Eduardo Lourenço, um labirinto de saudades, um legado com futuro. Guarda:
CEI/ Câmara Municipal da Guarda.
Lourenço E. (entrevista de José Manuel Mota da Romana) (1996). Esta cidade era a
mais clerical do país. Terras da Beira. Guarda. 2-5-1996.
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
149
Thierry Proença dos Santos

Lourenço E. (entrevista de Dina Gusmão) (2004). Recordar Vergílio Ferreira. Correio


da Manhã. Lisboa. 9-3-2004.
Lourenço E. (entrevista de Luís Miguel Queirós) (2007). Retrato de um pensador
errante. Público (Caderno de domingo - Pública). 13-5-2007, pp. 40-51.
Lourenço E. (entrevista de Luís Baptista-Martins e Nuno Amaral Jerónimo) (2011).
Estamos na Europa e é nela que temos que encontrar a solução para a crise.
O Interior, agosto, republicada no mesmo jornal em 26-5-2023. Disponível em:
«Estamos na Europa e é nela que temos que encontrar a solução para a crise»
Jornal O Interior.
Sena M. de (organização e notas) (1991). Correspondência Eduardo Lourenço / Jorge
de Sena. Lisboa: IN-CM. (Coleção «Biblioteca de Autores Portugueses»)

Bibliografia crítica:
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vain pour passerelle (France). Territoire en mouvement. Revue de Géographie et
d’Aménagement. Géographie, Littérature, Territoires. 31, pp. 1-19.
Bouvet R. (2019). La promenade littéraire, un dispositif pour des lecteurs en mou-
vement. Enjeux et société. 6 (2), pp. 109-140. https://doi.org/10.7202/1066695ar.
Carvalho I. & Baptista M. M. (2015). Perspetivas sobre Turismo Literário em Portugal.
Revista Turismo & Desenvolvimento. 24, pp. 55-68.
Cordeiro C. R.(2008). De Guarda à Literatura – com Vergílio Ferreira e Eduardo Lou-
renço. In Isidro A.; Almeida A. J. D. de; Ferreira J. C.; Romana J. M. M. da; Jacin-
ta R. & Bento V. (coord.). Um (e)terno olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira
e a Guarda. Guarda: CEI, pp. 25-28.
Cruzeiro M. M. & Baptista M. M. (org.) (2003). Tempos de Eduardo Lourenço – Foto-
biografia. Porto: Campo das Letras.
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fronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI, Âncora Edi-
tora.
Jacinto R. (2020). Eduardo Lourenço e a sua heterodoxa (des)Geo(a)grafia. Cader-
nos de Geografia. 42. Coimbra: FLUC, pp. 127-137.
Jacinto R. (2020). Tributo a Eduardo Lourenço nos vinte anos do Centro de Estudos
Ibéricos. In Jacinto R. & Isidro A. (coord.). Iberografias. 16. Guarda: CEI, pp. 9-14.
Jacinto R. (2021). Esboço de ensaio sobre o ensaísta: Eduardo Lourenço, a Guarda e
o seu labor na construção do centro de Estudos Ibéricos, na secção Homenagem
a Eduardo Lourenço. In Jacinto R. & Isidro A. (coord.). Iberografias. 17. Guarda:
CEI, pp. 321-342.
Sardo A. N. (2008). Turismo Literário: uma forma de valorização do património e da
cultura locais. Egitania Sciencia. pp. 75-96.
COIMBRA LITERÁRIA. UM ROTEIRO

DIVISÃO DE TURISMO CÂMARA MUNICIPAL DE COIMBRA

A cidade de Coimbra, detentora quase em exclusividade dos estudos univer-


sitários em Portugal ao longo de 7 séculos, é por demais evidente que a grande
elite política, cultural e intelectual do país, tenha sido formada, nesta instituição
através da transmissão de conhecimentos legítimos certificados pelos vários tí-
tulos académicos. Mas é também em torno da Universidade e da Cidade que
várias gerações partilharam preocupações, angustias e sentimentos de mudança
da ordem estabelecida nos mais diversos campos do saber, originando novos
movimentos e debates coletivos.
Descobrir os caminhos, os locais, as trajetórias de vários dos nossos no-
mes da crítica e da produção literária é um desafio enriquecedor, que nos
leva a imaginar e vivenciar a cidade de hoje à luz da cidade dos nossos
autores.
Em ano de comemorações do Centenário do Nascimento de Eduardo Louren-
ço, a Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, foi também convidada
a participar, através da criação de um (dos muitos possíveis) roteiro turístico-lite-
rário da cidade.
Neste roteiro, apresentado à cidade, no dia 27 de junho de 2023, percorre-
mos vários períodos e correntes literárias geradas numa Coimbra de outrora e de
hoje, bem como autores que se não viveram na cidade, nela se inspiraram para
criar as suas obras.
O início do trajeto teve lugar junto ao atual edifício da Faculdade de Le-
tras, desde 2013 classificado como Património da Humanidade, e em cujas
portas, pequenas chapas em bronze nos remetem logo para os grandes nomes
e obras da literatura clássica e da literatura portuguesa, como por exemplo Gil
Vicente, que, no edifício ao vizinho, à época ainda Paço Real, apresenta, a D.
João III (monarca que instala definitivamente os Estudos Gerais em Coimbra),
a sua Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra, «[…] na qual Comédia
se trata o que deve significar aquela Princesa, Leão, e Serpente, e Cáliz, ou
Fonte, que tem por divisa: e assi este nome de Coimbra donde procede, e assi
152 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

o nome do rio, e outras antiguidades a que não é sabido verdadeiramente sua


1
origem. Tudo composto em louvor e honra da sobredita cidade.»
E, tendo em conta ainda o edifício onde, a partir de 1537, começam a funcio-
nar os Estudos Gerais, não poderíamos deixar também de fazer referência aos
Cronistas, nomeadamente a Fernão Lopes e a sua Crónica de D. João I, onde
para além de descrever a triunfante entrada de D. João, Mestre de Avis na cidade
de Coimbra, faz também a narração de todo o decorrer das Cortes na cidade,
em 1385, no Paço Real, e nas quais o Mestre é aclamado Rei, dando início à 2.ª
dinastia e reafirmando a independência do Reino de Portugal.
E aludir aos Estudos Gerais é também obrigatório referir o seu fundador, El
Rei D. Dinis, cuja homenagem, lavrada por Francisco Franco, em 1943, que se
encontra no centro da Praça, com o seu nome.
Rei Lavrador, Rei Trovador, grande impulsionador da cultura e da língua por-
tuguesa determinou o uso exclusivo da língua galaico-portuguesa na documen-
tação oficial. Acredita-se que foi o primeiro monarca verdadeiramente alfabeti-
zado, tendo assinado sempre com o nome completo.
Da vasta obra que terá produzido, chegaram aos nossos dias 137 cantigas (de
amor, de amigo e de escárnio e mal-dizer), bem como a música de 7 cantigas de
amor, descobertas casualmente, em 1990, pelo Prof. Harvey Sharrer, no Arquivo
da Torre do Tombo, num pergaminho que servia de capa a um livro do século XVI
– o famoso Pergaminho Sharrer.
Avançando na história da literatura e no percurso literário de Coimbra, en-
trámos na Rua dos Estudos, de onde se entrevê parte da fachada do edifício
do Antigo Real Colégio das Artes, colégio inicialmente fundado próximo do
Mosteiro de Santa Cruz, dado que D. João III cede as antigas instalações do
colégio ao Tribunal do Santo Ofício. É neste edifício que séculos mais tarde,
mais precisamente em agosto de 1861 que Eça de Queiroz, com 16 anos incom-
pletos, presta provas de admissão aos estudos universitários: «[…] comecei a
subir o duro calvário dos Preparatórios: e desde logo, a coisa importante para
o Estado foi que eu soubesse bem francês. Decerto, o Estado ensinava-me
outras disciplinas, entre as quais duas, horrendas e grotescas, que se cha-
mavam, se bem recordo, a Lógica e a Retórica. Uma era destinada a que eu
soubesse bem pensar, e a outra, correlativamente, a que eu soubesse bem
escrever. Eu tinha então doze anos. […] Mas depressa compreendi que esta
Lógica, com a divertida faceta, incomparável da Retórica, que tive de decorar
durante um ano, eram decerto disciplinas em que o Estado não tinha interes-
se que eu fosse perfeito. O seu desejo estava todo em que eu soubesse bem
francês.

1
VICENTE G., Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente, Introdução e normalização do texto de Maria Leonor
Carvalhão Buescu, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, [Inova / Artes Gráficas. Porto. 1984]. 2 vols.
COIMBRA LITERÁRIA: UM ROTEIRO
153
Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra

Quando cheguei na diligência a Coimbra, para fazer o exame de Lógica,


Retórica e Francês, o presidente da mesa, professor do Liceu, velho amável e
miudinho, de batina muito asseada, perguntou logo às pessoas carinhosas que
se interessavam por mim:
― Sabe ele o seu francês?
E quando lhe foi garantido que eu recitava Racine tão bem como o velho
Talma, o excelente velho atirou as mãos ao ar, num imenso alívio.
― Então está tudo ótimo! Temos homem!
E foi tudo ótimo, recitei o meu Racine tão nobremente como se Luis XIV fosse
lente, apanhei o meu nemine, e à tarde, uma tarde quente de agosto, comi com
2
delícia a minha travessa de arroz doce na estalagem do Paço do Conde.»

E é com as palavras de Eça de Queiroz que avançamos no percurso até ao


Largo da Feira dos Estudantes, local dominado pela fachada da Sé Nova, antiga
igreja do Colégio de Jesus, o primeiro colégio da Ordem e o maior que existiu
na cidade de Coimbra a partir de meados do século XVI. Com a expulsão da
Companhia de Jesus, de Portugal, em 1759, os bens do colégio foram anexados
à Fazenda da Universidade e a igreja entregue ao Cabido que a transformou em
Catedral, em 1772. A área colegial dos edifícios foi alvo de grandes reformas, en-
tre 1773 e 1775 que a adaptou a novas funções universitárias: Museu de História
Natural e Laboratório Chímico.
Mas foi na escadaria desta nova Catedral que Eça de Queiroz encontra pela
primeira vez aquele que viria a ser o seu Mestre. Na obra de homenagem pós-
tuma a Antero de Quental, Anthero de Quental. In Memoriam que reúne vários
textos e depoimentos de quem com ele conviveu, Eça de Queiroz escreve o texto
intitulado Um Génio que Era um Santo:
«Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessando lenta-
mente com as minhas Sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as
escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos
ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loira com lampejos fulvos, a barba dum ruivo
mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço
inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa
por uma ponta, rojava por traz, largamente, negra nas lages brancas, em pre-
gas de imagem. E, sentados nos degraus de Igreja, outros homens, embuçados,
sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo,
como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picares-
co ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII – mas um Bardo, um

2
QUEIROZ E., O Francesismo, Editorial Nova Ática, Lisboa, 42007.
154 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem


com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de huma-
nidades, a luz suprema habitada pela ideia pura, e …
“… os transcendentes recantos
Aonde o bom Deus se mete,
Sem fazer caso dos Santos,
A conversar com Garrett!”
Deslumbrado, toquei o cotovelo dum camarada, que murmurou, por entre os
lábios abertos de gosto e pasmo:
– É o Antero! […]
[…] Então, […] destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos
pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E
3
para sempre assim me conservei na vida.»

Antero foi, sem dúvida, o grande mestre de toda uma nova geração, que no
meio literário, ficou conhecida como a Geração de 70. Geração irreverente, com
novas ideias e ideais e muito vontade de mudar o estabelecido. É esta geração
que acaba, na pessoa de Antero de Quental, protagoniza a polémica literária
conhecida por Questão Coimbrã, na da troca de epístolas entre Feliciano de
Castilho e Antero Quental ficou célebre o panfleto Bom Senso e Bom Gosto.
Carta ao Excelentíssimo Senhor António Feliciano de Castilho. Antero defende
que a literatura portuguesa que deve acompanhar «o pensamento moderno […],
as tendências da ciência […] a nova escola histórica […] e a renovação filosófica
4
[…]» .
E é esta rebeldia característica das novas gerações que irá também pautar as
gerações vindouras século após século, como por exemplo no século XX, com
novas “revoluções” literárias, com nomes como Vitorino Nemésio, Miguel Torga,
Branquinho da Fonseca, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Afonso Duarte,
José Régio, entre muitos outros que habitaram a Alta da cidade de Coimbra. To-
me-se como exemplo, e deixando o Largo da Feira dos Estudantes e avançando
para a Couraça dos Apóstolos e Rua das Flores, onde encontramos a casa onde
morou Carlos de Oliveira, grande amigo e companheiro de Eduardo Lourenço,
apesar de algumas grandes divergências; ou, já na rua das Flores, n.º 37, local da
primeira redação da Revista Presença e onde morava José Régio:
«Coimbra, 19 de outubro de 1924

3
Anthero de Quental. In Memorium, Mathieu Lugan Editor, Porto, 1896
4
QUENTAL A., Bom Senso e Bom Gosto. Carta ao Excelentíssimo Senhor António Feliciano de Castilho, Imprensa
da Universidade, Coimbra, 1865
COIMBRA LITERÁRIA: UM ROTEIRO
155
Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra

– Estou só no meu quarto. O meu companheiro foi-se embora para a Rua


dos Grilos. E eu, agora, estou só! só para me expandir, para me possuir, para me
5
refugiar! É, indiscutivelmente, o céu infernal dum neurasténico» .

A Rua das Flores dá acesso, pelo Largo da Matemática, à Rua do Loureiro,


onde, no número 12, morou, durante dois anos, Eça de Queiroz, num quarto
arrendado ao Lente José Dória.
Mas é também na Rua do Loureiro que vamos encontrar a Casa da Escrita,
antiga residência do escritor João José Cochofel e local de encontro do grupo
neorrealista, onde atualmente se encontra, não só o espólio de João José Co-
chofel, mas também a doação que Eduardo Lourenço fez ao Município de Coim-
bra.
O caminho continua em direção à Rua de Sub-Ripas, onde vamos encontrar
uma antiga torre pertencente ao sistema defensivo da cidade medieval, atual-
mente conhecida por Torre de Anto. Esta torre, adaptada a residência, no século
XVI, e hoje local que acolhe o Núcleo da Guitarra e do Fado de Coimbra, teve
vários proprietários e moradores; de entres os ilustres destaca-se aquele que
acabou por dar o nome à torre: António Nobre, que aqui morou nos finais de
século XIX, durante o período em que foi estudante de Coimbra, e aqui terá feito
alguns versos do seu único livro de poemas publicado em vida – Só.
«[…] António é vosso. Tomai lá a vossa obra!
«Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra!
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever …

Lede-o e vereis surgir do poente as idas mágoas,


Como quem vê o sol sumir-se, pelas águas,
6
E sobe aos alcantis para o tornar a ver!»

Dando continuidade ao itinerário o percurso continua em direção à Rua do


Quebra Costas, onde, numa casa, cujo rés-do-chão é um bar de Jazz, morou Ar-
tur Paredes, pai de Carlos Paredes, e na parede da qual se encontra um pequeno
trecho de um poema que José Régio dedica à Canção de Coimbra: “Balada de
Coimbra“:
«[…] Ai choro com que o Paredes,
Vibrando os dedos em garra,
Despedaçava a guitarra,
Punha os bordões a estalar,
Gritos de cristal e de oiro

5
RÉGIO J., Páginas do Diário Íntimo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994
6
NOBRE A., Só, Introdução por Maria Ema Tarracha Ferreira, Editora Ulisseia [Tilgráfica – Sociedade Gráfica
Lda. Braga. 1998]
156 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Que o Bettencourt alto erguia,


Que é da roda que algum dia
7
Vos sabia acompanhar…?»

E é este poema, parte integrante do livro Fado – Versos, editado em Coimbra,


em 1941 que nos faz avançar no percurso até alcançarmos a Rua Ferreira Borges,
logo após passarmos o Arco de Almedina e o Arco da Barbacã, antigas portas
da cidade muralhada. É exatamente junto a este último arco que se encontra o
edifício que foi outrora o local de várias editoras da cidade de Coimbra: Arménio
Amado, França Amado e Coimbra Editora.
Mas não só de editores e de livreiros vivia outrora esta artéria da cidade de
Coimbra. Ao longo da sua história ela foi, efetivamente a artéria de maior pendor
económico, dada a sua proximidade com os locais de chegada de pessoas à
cidade; ela era o eixo de comunicação entre dois polos de maior representativi-
dade na cidade: o largo da Portagem e a Praça do Comércio; posteriormente, no
século XIX, entre aquele largo e a Praça 8 de Maio; era este o trajeto principal
da antiga estrada nacional, até ao arranjo, no início dos século XX, das Avenidas
Emidio Navarro e Fernão de Magalhães.
Era nesta rua que no início do século XX, nos cafés de então [Arcádia, Brasi-
leira, Central] se reuniam os intelectuais da nossa cidade em grandes e profícuas
tertúlias, ou apenas conversas:
«Coimbra, 21 de março de 1923
Fui ontem à Brasileira tomar chá com o S. R. e o C. Reis. Falámos de Arte, de
Literatura, etc., e recordou-se a geração dos Vencidos da Vida. A certa altura,
amigo S.R. começa a maldizer a geração actual. Queria conhecer o Eça, o Fia-
lho, viver nesse tempo, invade-o a nostalgia do que nunca conheceu. Maldiz dos
consagrados de hoje, dos consagrados de amanhã. Eu defendo os novos, cito
nomes. Conversamos animadamente… mas eu compreendo que estou a falar
8
só. S.R. sente-se invadido de desânimo súbito. Saímos. Subimos pela Avenida.»

Num prédio antes do café A Brasileira, nascia, em 1869, o Poeta Eugénio de


Castro.
E a nossa viagem pelas figuras ilustres da nossa literatura que nasceram,
estudaram ou por Coimbra passaram termina no Largo da Portagem, onde, du-
rante mais de 50 anos o Poeta, que gostaria de o ter sido ainda mais se pudesse
9
voltar a nascer , teve o seu consultório médico: Miguel Torga. Em 2017, anos de
comemorações do centenário do seu nascimento, foi também inaugurado, junto

7
RÉGIO, J., Fado – Versos, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1941.
8
RÉGIO J., Páginas do Diário Íntimo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.
9
Notas biográficas em documento dactiloscrito acrescentado à mão, publicado em ROCHA C., Miguel Torga
– Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Porto, 2000.
COIMBRA LITERÁRIA: UM ROTEIRO
157
Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra

ao rio, um Memorial em sua honra, no qual podemos encontrar um dos meus


últimos poemas, publicado no Diário XIV:

«Coimbra, 1 de Novembro de 1983


Memória

De todos os cilícios, um, apenas


Me foi grato sofrer:
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr,
Serenas,
10
As águas do Mondego.»

10
TORGA, M., Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Porto, 2000.
leituras
de eduardo lourenço:
nos como futuro

Comunicações proferidas no âmbito do Colóquio


“Leituras de Eduardo Lourenço: Nós como futuro” (CEI - Guarda, 03/03/2023)
EL FUTURO DE LOS ESTUDIOS IBÉRICOS

ANTONIO SÁEZ DELGADO*

Observar con atención la nómina del conjunto de autores galardonados con


el Premio Eduardo Lourenço desde 2004 hasta la actualidad significa asomarnos
a un notable grupo de mujeres y hombres, algunos de los cuales están hoy aquí,
protagonistas de la escena cultural ibérica de las dos últimas décadas. Pero su-
pone también, al mismo tiempo, aproximarnos a un plural conjunto de materias,
las abordadas por los premiados en sus trayectorias, que configuran algo así
como un territorio para muchos sagrado, el que construye el imaginario ibérico
apoyándose en las matrices del común legado clásico y atravesando áreas como
el pensamiento, el periodismo, la música, el derecho, la teología, la traducción, la
geografía o la literatura, siempre la literatura. Sobre varias de esas áreas edificó
Eduardo Lourenço su obra, alzó la arquitectura deslumbrante e imprevisible de
su pensamiento, que nos ayuda a reflexionar sobre nuestro pasado como pue-
blos y a entender la relación de los habitantes del espacio ibérico con Europa.
Pero también reflexionó Eduardo Lourenço sobre el futuro, en ese texto provi-
dencial titulado “Nós como Futuro”, en el que asegura que el futuro es el tiempo
hecho únicamente de esperanza, sueño y utopía, una definición tan quijotesca
como alcanzamos a imaginar, que el Profesor acentúa aún más al llegar a definir
que “el verdadero tiempo de los hombres es un eterno presente”, el mismo pre-
sente en el que vive Don Quijote y al que jamás renuncia a pesar de sus múltiples
desventuras, un presente sin duda atravesado para nosotros, personas de letras,
por la luz de esa “palabra esencial en el tiempo”, como definió Antonio Machado
la poesía.
Hoy estamos aquí para homenajear al autor de ese texto prodigioso y para,
humildemente, reflexionar, cada uno de nosotros, sobre ese futuro que es tam-
bién eterno presente, cervantino y machadiano, en el trabajo que desarrollamos.
Por eso, quiero compartir con ustedes algunos pensamientos relacionados con
el área en el que realizo mi actividad, la docencia y la investigación alrededor
de las relaciones culturales peninsulares, tomando como punto central de estas
notas el presente y el futuro del estudio de esas relaciones (a las que Lourenço
dotó de textos luminosos) en medio del tiempo que nos toca vivir y con la sombra
de un incierto futuro flotando sobre nuestras cabezas.

*
Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora.
164 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

El estudio de las relaciones literarias entre Portugal y España, dentro del


área que denominamos Literatura Comparada, ha sido una constante con altos
y bajos desde los tiempos de Fidelino de Figueiredo. Gracias al trabajo de los
especialistas de esta área hemos conseguido, no obstante, desarrollar con un
alto grado de detalle el universo de contactos establecidos entre los escritores
portugueses y españoles, hasta el punto de poder hoy delimitar con claridad
los periodos, movimientos y autores que más y mejor se acercaron al ideal del
conocimiento del hermano ibérico. En las tres o cuatro últimas décadas el pano-
rama, en este sentido, ha cambiado radical y positivamente. A pesar de todas
las dificultades que ha entrañado en ese tiempo la frágil existencia del Hispanis-
mo en Portugal y del Lusitanismo en España, diríamos que casi perpetuamente
condenados a una escala y dimensión secundarizada en nuestras universidades
en comparación con otros ámbitos de estudio (los estudios ingleses, franceses,
o incluso alemanes e italianos), a pesar de ello, creo que podemos afirmar sin
sonrojo que el objetivo general, en términos de producción de conocimiento, se
ha conseguido con éxito. La reconstrucción de este universo de relaciones en-
tre los ámbitos culturales español y portugués ha alcanzado una dimensión que
nos permite conocer los grandes momentos de encuentro entre las literaturas
portuguesa y española desde su génesis hasta a la actualidad, cuando las diná-
micas de aproximación están contextualizadas en un mundo globalizado que ha
normalizado las relaciones y ha ayudado a perspectivar los grandes movimientos
estéticos y de pensamiento.
Sin embargo, en términos de presente y de futuro, pienso que un enorme
desafío se abre ante nuestros ojos, algo así como la necesidad de afianzar y
consolidar un nuevo paradigma de las relaciones peninsulares, un paradigma
iniciado no hace demasiado tiempo, y que ofrece nuevas posibilidades de inter-
pretación de la realidad ibérica. El propio Eduardo Lourenço, de alguna forma,
nos avisaba ya de esta necesidad en “Nós como futuro”, cuando, al enumerar las
naciones de Europa con un pasado tan amplio y profundo como el portugués,
llegaba a España, de la que afirmaba sin rodeos que “es múltiples Españas”. Esa
pluralidad, esa heterogeneidad del Estado español es la clave, la llave que debe
abrir la puerta de una nueva forma de introducirnos en la problemática ibérica,
en un sentido dinámico y no lineal del término.
Parece imposible referirnos a este asunto sin mencionar a otro autor querido
por Eduardo Lourenço, José Ortega y Gasset, que en su libro más citado, España
invertebrada, del que se cumple ahora un siglo, propuso algo ya latente en su
discurso Vieja y nueva política, de 1914. Ortega, ante la palpable decadencia
española posterior al desastre del 98 y al peligro inherente de la caída en los
particularismos de cada territorio, propuso algo así como la creación de una nue-
va España, vital, liberal y europeísta, truncada no mucho tiempo después por la
radicalización política del país y el estallido de la guerra civil.
EL FUTURO DE LOS ESTUDIOS IBÉRICOS
165
Antonio Sáez Delgado

Pues bien, creo que si pretendemos analizar con rigor nuestro papel en el
futuro, en el área de los Estudios Ibéricos, deberemos estar atentos a una nueva
realidad coyuntural que nos haga abrir bien los ojos ante la necesidad palpable
de soñar con una relación cultural ibérica cada vez más abierta, plural y rizomá-
tica, que admita la posibilidad de un trazado geocultural en el que la diversidad
lingüística sea un valor añadido y en nada despreciable. De la posibilidad de
entender el diálogo Portugal-España apenas como un diálogo Lisboa-Madrid, de
centros de poder, debemos tender paulatinamente al entendimiento de la Penín-
sula como un espacio poliforme, como una auténtica constelación de elementos
culturales con colores diversos pero con raíces comunes. Una vez trazadas las
claves fundamentales de las relaciones entre los centros hegemónicos de poder
cultural, con sus evidentes consecuencias en las diversas formas del canon, se
hace necesario abrir el diálogo a las hasta hace poco consideradas culturas peri-
féricas, que dotan a la tierra ibérica de una situación privilegiada desde el punto
de vista cultural. La cultura, sin duda, debe ayudarnos a aprender a conjugar la
pluralidad con la singularidad, compatibilizando el marco común de cada Estado
con el proyecto compartido de convivencia democrática. Los Estudios Ibéricos,
como disciplina académica, creo que tienen la responsabilidad y el deber ético
de adentrarse por esos caminos, de analizar y dar a conocer la verdadera di-
mensión de la pluralidad de la Península, y de hacerlo sin considerar culturas
grandes y pequeñas, sino, en todo caso, autores y obras grandes y pequeños
independientemente de la lengua en que se expresen.
En tiempos como los que vivimos, de exasperación de los nacionalismos, los
Estudios Ibéricos se constituyen en un campo firme para el desarrollo académico
de un conocimiento basado en el respeto al otro, a sus principios y convicciones.
Solo el conocimiento pleno y profundo de esas diferentes formas de ser nos
proporcionará el retrato fiel y completo de quiénes somos, hijos de una Iberia
que Fernando Pessoa soñó como la potencia futura de una nueva forma de impe-
rialismo, pero de un imperialismo no económico ni político, sino cultural, basado
en la energía proyectada por la convivencia activa de las tres culturas que se
asentaron históricamente en la Península. Una fórmula que también Teixeira de
Pascoaes soñó como una mezcla maravillosa y algo fantasmagórica de Quijotis-
mo y Saudade, pero a la que era también necesario añadir los ecos del catalán
Joan Maragall y de la gallega Rosalía de Castro, para completar el coro armónico
de voces ibéricas.
Por todo ello, me parece imprescindible trabajar en el asentamiento de esta
área de estudios en el contexto ibérico, haciéndonos eco de la importante pre-
sencia que va adquiriendo en otros contextos, como el anglosajón. Es importante
trabajar para construir un imaginario cultural ibérico entrelazado, con dinámicas
propias e historias tantas veces comunes. Y creo, también, que este desafío que
se nos impone como materia de futuro debe responder a otros dos principios
166 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

metodológicos: el primero, vincular sus designios a lo que sucede en los demás


países de lengua portuguesa y española, en América y en África. Si es fundamen-
tal conceder a los ámbitos catalán, gallego y vasco su espacio legítimo en las
dinámicas internas peninsulares, sin duda es obligatorio situar correctamente la
realidad española y portuguesa en el contexto de los países que hablan esas len-
guas, concediendo un lugar de privilegio a las relaciones atlánticas con aquellos
espacios culturales. Se trataría, en definitiva, de no olvidar aquello que Saramago
propuso y bautizó con el nombre de Transiberismo, es decir, un nuevo iberismo
que mirase a los otros peninsulares pero, también, a los otros atlánticos, con la
seguridad de que ese diálogo, en un nuevo contexto internacional, propiciará un
escenario cultural de una dimensión y riqueza realmente extraordinaria.
El segundo de los principios metodológicos que enunciaba como imprescin-
dibles para mirar hacia el futuro desde la perspectiva de los Estudios Ibéricos,
en plena articulación con esta visión pluricéntrica que acabo de presentar, es la
necesidad absoluta de trabajar en red, construyendo tejidos de intereses com-
partidos que atraviesen y, al mismo tiempo, vertebren los diferentes espacios na-
cionales bajo una misma perspectiva geocultural. Tenemos que aprender, desde
nuestra propia pequeñez, a aprovechar los recursos de aquellos que comparten
nuestros mismos objetivos, y crear cadenas de relaciones que nos ayuden a salir
de nuestras propias limitaciones mentales o metodológicas. Termino. Ese ejerci-
cio, el de abandonar algunas de nuestras convicciones para adentrarnos en un
territorio a veces desconocido, puede sin duda ayudarnos a configurar una red
de complicidades que sirva de motor en la construcción de un espacio acadé-
mico que es, también, un espacio intelectual y cultural con indudables connota-
ciones ideológicas, en el sentido más noble de este desgastado término. En ese
camino, el de construir puentes entre los espacios ibéricos e iberoamericanos,
pueden estar seguros, nos encontraremos en el futuro, si el futuro nos brinda
con esa dicha.
UMA LUZ INTENSA COMO O SOL

FERNANDO PAULOURO NEVES*

Já outras vezes escrevi que Eduardo Lourenço foi uma espécie de sol que
irradiou luz, uma luz fecunda, iluminadora do nosso pensamento e da nossa vida
coletiva. É a essa luz solar que a sua obra se abre em cada página, convocando-
-nos sempre à leitura do prazer da descoberta, à inovadora análise da realidade,
ao labirinto das ideias que fazem o caminho da nossa relação com o mundo.
Sábio que foi, sem nunca se mostrar como tal, menos oráculo e mais homem co-
mum, ele decifrava pacientemente, à conversa ou à escrita, o labiríntico universo
da cultura, mostrando que o chão nosso do mundo é um processo de persistente
aprendizagem, que todos os dias recomeça nos desafios que a sociedade coloca
no meio do caminho, como a pedra do poema de Drummond.
O universo de Eduardo Lourenço é feito de matéria de sonho, construído pela
força criadora da sua palavra, numa incessante afirmação de que, como queria
Malraux, «a cultura fosse a herança da qualidade do mundo».
Eu gosto de olhar e frequentar os milhares de páginas das suas Obras Com-
pletas, ainda em publicação, e tenho sempre a impressão de que estou a con-
templar uma pátria de palavras a respirar futuro. Esse chão verbal, que é a bio-
grafia de Eduardo, foi a forma que ele encontrou, com «empenho do coração»,
de ficar e falar connosco, como memória viva e fecunda do tempo. Mestre do
pensamento e da pedagogia da esperança, cidadão do imaginário, é assim que
eu continuo a vê-lo, de cada vez que a voz das suas palavras questiona velhos
arcaísmos ideológicos da sociedade portuguesa, define os mitos que povoam as
fronteiras «entre o Portugal real e o Portugal sonhado», ou convoca a consciência
crítica à invenção de uma nova humanidade. Num país virado para o efémero,
o pensamento de Eduardo Lourenço foi sempre de horizonte temporal de longa
duração, o que lhe permitiu tratar tão profunda e insistentemente a problemati-
zação da nossa identidade cultural.
Das coisas boas que me aconteceram na vida foi conhecer Eduardo Lourenço
e ser seu amigo. Pude partilhar momentos singulares à sua roda. Às vezes, era o
nó de terra originário, S. Pedro de Rio Seco (o seu “Paris-Texas”, como escreveu
um dia nas páginas de um diário desaparecido), outras a memória da Guarda
“sideral” e “crepuscular” na metáfora de um “navio de pedra ao alto de uma

*
Jornalista e Escritor.
168 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

montanha”, ou a Beira do altar e do arado, “terras de funda memória”, no seu


sono arcaico e profundo, dizia ele. A mesa era sempre boa para os pensamentos
e o Eduardo, de facto, mostrava em pequenas histórias, de onde escorria muitas
vezes uma fina ironia, ou uma erudição sempre amável, na convergência de uma
ideia central: “quem vê o seu povo, vê o mundo todo”. A sua prática era de co-
mum humanidade. Essa era a imagem do seu rosto, que a memória gravou para
nos mitigar a saudade. Não gostava de torres de marfim, tão ao gosto de algu-
mas academias, e, quando as havia, descia delas para uma cidadania do saber
sobre a emergência dos quotidianos. Falava de tudo: dos fenómenos sociais, da
sociedade do espetáculo, do futebol e da política à escala nacional ou planetária,
do fenómeno das literaturas e de como nós somos parte delas como leitores. En-
carou sempre a cultura como questão primordial e não poucas vezes, como um
dia confessou, falando do mundo dos grandes autores, estava a falar de si, como
se o memorialismo pessoal e imediato lhe estivesse vedado.
Foi polémico e desmistificou questões de “vacas sagradas”, desfazendo mi-
tos, sempre com a elevação da força dos argumentos em detrimento das ideias
em estado de sítio e do ajuste de contas pessoal. A sua formação filosófica e um
pensamento aberto ao mundo faziam-lhe ter razão antes do tempo, como acon-
teceu logo com as primeiras obras, Heterodoxia I e II, a sua introspeção sobre
Pessoa, e pela forma como articulou a relação com a Europa (Nós e a Europa) ou
pensou a contingência histórica portuguesa, com as suas quimeras ou os despe-
daçados sonhos imperiais, na configuração lusófona.
O que aprendemos com Eduardo Lourenço! O seu contributo para nos pen-
sarmos a nós próprios como pátria, pondo a nu as angústias e fantasmas da
nossa complexa matriz identitária, na psicanálise mítica ao destino português em
O Labirinto da Saudade.
Terei sempre comigo a honra de ter recebido o Prémio Eduardo Lourenço, em
2017, responsabilidade ética, cultural e cívica que carregarei sempre até ao fim. E
sou tributário de gratidão, que só pagarei com o coração, pela sua amizade, pela
atenção que dedicou aquilo que eu, escrevendo. Todos lhe devemos muito, a ele
o autor da ideia, o criador do Centro de Estudos Ibéricos. Sonhador de uma nova
Civilização Ibérica lembrando-se da utopia de Oliveira Martins? Talvez.
Estou a ver Eduardo Lourenço em S. Pedro de Rio Seco, com o seu sorriso
aberto, com a sua solidária relação com toda a aldeia do planalto beirão. Com o
seu passo miudinho, evocava os lugares e os tempos dentro do tempo. Afabilida-
de do comum dos homens, que era sábio. E que me dizia a sorrir: “Chamam-me
filósofo, mas o que sou é ensaísta. Ser discípulo de Montaigne, já não é nada
mau!”
Esta questão do filósofo faz-me trazer aqui um acontecimento. em 1995, por
altura dos 50 anos de vida literária, organizei e dirigi, no "Jornal do Fundão", em
que publiquei colaboração de Arnaldo Saraiva, Eduardo Prado Coelho, Eugénio
UMA LUZ INTENSA COMO O SOL
169
Fernando Paulouro Neves

de Andrade, José Augusto Seabra, Baptista-Bastos, António Salvado. António


José Dias de Almeida, Antonieta Garcia e António Lourenço Marques. Eduardo
Coelho escreveu, sobre Eduardo, um notável texto intitulado "Aquele que Agita
o Mar", cujos primeiros parágrafos dizem: "Um pensador árabe, Abdelmajid Ben-
jelloun, escreveu que "o filósofo é aquele que agita o mar, quando não tem mais
nada que fazer". Penso que nem todos os filósofos se reconheceriam com prazer
nesta definição. Mas Eduardo Lourenço, sim, estou certo. Porque a expressão se
lhe ajusta ― como uma luva, diz-se. Mas poderíamos dizer de outro modo: como
um poema. Isto é, com aquela espécie de evidência, de simplicidade matinal,
que a poesia tem ― e que Eduardo Lourenço sempre perseguiu como luminosa
quimera que lhe fosse interdita (toda a sua obra, admiravelmente literária, vive
de uma insistente nostalgia de "verdadeira literatura", ser a dos outros). O mar,
evidentemente. Porque poucos pensadores portugueses foram tão longe no de-
sejo de "pensar tudo", e, nesse "tudo", pensar o que escapa ao #totalizável" da
filosofia (...)#

A imensidão do mar é uma boa metáfora para o pensamento de Eduardo Lourenço.


Ele, que sorria ao facto do topónimo natal ser um rio seco, agitava o mar, com a inquie-
tação fecunda das ideias.
EDUARDO LOURENÇO E JOSÉ SARAMAGO:
NÓS E O TRANSIBERISMO

CARLOS REIS*

1. A presente reflexão procura estabelecer uma relação de continuidade (mas


não de direta influência) entre um tema específico, bem presente no pensamen-
to de Eduardo Lourenço, e os ecos desse tema, com as devidas transformações
interpretativas, em José Saramago. Refiro-me à questão do iberismo e, depois,
ao transiberismo, como seu desenvolvimento histórico e ideológico, sobretudo
depois de 1986. Foi esse o ano de publicação d’A Jangada de Pedra e de rea-
justamento (termo talvez precário) da condição europeia de Portugal, nos planos
geopolítico e do nosso imaginário coletivo.
Procuro, em Eduardo Lourenço, vários marcos de referência para o que ago-
ra está em causa e encontro-os em três títulos bem conhecidos: O Labirinto da
Saudade, de 1978, Nós e a Europa ou as duas razões, de 1988, e Nós como futu-
ro, de 1997, este com fotografias de Jorge Molder. Curiosamente, os três títulos
revelam uma regularidade significativa, no que toca ao interesse que Lourenço
manifestou, cada 10 anos (ou um pouco menos), pelas questões que aqui estão
em equação: Espanha, o iberismo, as suas origens e as suas sequelas. Além dis-
so, dois daqueles títulos representam, nos respetivos títulos, aquilo a que chamo
a síndrome do coletivo; lá está o nós a expressar isso mesmo. E não só. Naqueles
títulos e em vários textos que os integram (os dois primeiros são recolhas), leio
reações circunstanciais a episódios da nossa história recente: a revolução de 25
de abril de 1974 (neste momento já não muito recente…), a integração formal de
Portugal na então Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Expo 98, sendo
o ensaio Nós como futuro uma edição do Pavilhão de Portugal, com a Assírio e
Alvim.
Em todas aquelas análises (e noutras mais, é claro) há um traço comum: a
tematização de Portugal como problema em desenvolvimento. Diretamente de-
rivadas dela, encontram-se várias questões associadas, tais como a memória,
a imagem e a autoimagem da nação portuguesa, a síndrome de marginalidade
que muitas vezes a tem atingido e a relação com Espanha e com a Europa.
Uma vez que não posso alongar-me, tomo como ensaio de referência aque-
le em que se encontram glosadas várias das questões mencionadas (ou todas

*
Centro de Literatura Portuguesa/Univ. de Coimbra.
172 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

elas), ou seja, “A Espanha e nós”, de 1988, inserto em Nós e a Europa ou as duas


razões. Realço nele um passo em que Lourenço observa duas atitudes condu-
centes a uma proposta, por assim dizer, reparadora. Primeira: Portugal “pensa-
-se ou vive-se por dentro, como fazendo mais parte dessa ‘outra’ Europa do que
do todo peninsular, marginalmente europeu, que a Península tem sido”; e logo
depois: “Seria excessivo dizer que somos ‘Europa outra’ mas na nossa relação
com Espanha algo disso aflora” (Lourenço 1988: 81). Segunda atitude: traduzin-
do um procedimento de rejeição ou, no mínimo, de cautelar alheamento para
com Espanha, aquela atitude alimenta um antiespanholismo caracterizado como
“a doença infantil do nosso nacionalismo que está já longe de ser o radical amor
sem complexos de nós mesmos” (Lourenço 1988: 82). Destes dois comporta-
mentos deduz-se a tal proposta reparadora, que não é mais do que um singelo
convite ao diálogo intra-peninsular:
A única resposta sensata e criativa ao desafio que o dinamismo cultural espanhol (no
sentido mais lato) pode representar para nós é a de o tomar como ocasião para um
diálogo mais sério e mais profundo com a cultura vizinha, como foi o caso outrora
(Lourenço 1988: 83).

2. A caracterização, as variantes, as mutações os contextos do iberismo são


bem conhecidos e têm recebido, em especial do século XIX em diante, contribu-
tos qualificados de intelectuais com a estatura de Juan Valera, Antero de Quen-
tal, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Joan Maragall, Miguel de Unamuno, Fernando
Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, Natália Correia e José Saramago,
entre outros. Melhor do que eu poderia fazê-lo, Antonio Sáez Delgado e Santia-
go Pérez Isasi levaram a cabo, há não muito tempo, a atualização do debate, às
vezes agreste, em torno do destino e dos avatares do iberismo (cf. Delgado S.
e Isasi P. 2018).
Pelo que me interessa, detenho-me numa espécie de derivação do iberismo,
nalguns aspetos já contemplada por Sáez Delgado, quando chamou a José Sa-
ramago “o último iberista” (Delgado S. 2020: 48). E, mais adiante, acrescentou:
O pensamento iberista de José Saramago (…) tem sido situado pacificamente pela
crítica dentro do denominado “iberismo cultural”, aquele que (…) propõe a aproxi-
mação dos dois Estados, ou das diferentes nacionalidades da península, através do
conhecimento e da cultura, sem nenhuma fórmula de unificação política (Delgado S.
2020: 50).

Aquela derivação é a que conduz ao conceito de transiberismo e permite


estabelecer a mencionada continuidade entre o pensamento de Lourenço sobre
Espanha e sobre o iberismo (coisas diferentes, apesar de tudo) e a abordagem
saramaguiana dessa matéria e das que lhe são correlatas. Passa-se isto, origina-
riamente, num tempo praticamente comum, uma vez que A Jangada de Pedra,
EDUARDO LOURENÇO E JOSÉ SARAMAGO: NÓS E O TRANSIBERISMO
173
Carlos Reis

de 1986, está inscrita no arco temporal que vai de 1984 a 1988, em que se situam
os ensaios de Lourenço, coligidos em Nós e a Europa ou as duas razões.
Depois de 1986, ano da integração dos países ibéricos na CEE, a temática do
iberismo, mais as suas perceções e imagens, mudaram consideravelmente – e
nem de outra forma poderia ter acontecido, naquele novo contexto geopolítico.
Dois aspetos dessa mudança: emerge, pelo menos em Portugal, uma consciên-
cia de pertença europeia que, amenizando complexos de marginalidade muito
antigos, está harmonizada com mutações históricas decisivas, como a normali-
zação da vida democrática e o desaparecimento do império colonial. Por outro
lado, o aprofundamento do chamado projeto europeu favoreceu a eliminação
de fronteiras entre os países europeus que aderiram à chamada Convenção de
Schengen. E também, evidentemente, entre os dois vizinhos, que assinaram
aquela convenção em 1991.
Estas não foram mudanças pacíficas nem inconsequentes. Cito um testemu-
nho de desconforto, por Miguel Torga. Sendo insuspeito de saudosismo em rela-
ção ao passado anterior a 1974, Torga, sintonizado com o iberismo idealista dos
Poemas Ibéricos (de 1965), entra em choque com uma realidade que quase o
ofende. Uma página do diário de 1988:
Verín, 13 de setembro de 1988 – A Espanha sempres amada e sempre temida. Aqui
ando, mais uma vez, maravilhado e aterrado, a vê-la progredir, progredir, e aproxi-
mar-se ameaçadora da fronteira. O meu iberismo é um sonho platónico de harmonia
peninsular de nações. Todas irmãs e todas independentes. Mas é também uma pai-
xão escabreada, que arrefece mal se desenha no horizonte qualquer sinal de hege-
monia política, económica ou cultural. Que exige reciprocidade na sua boa fé e nos
seus arroubos. Que quer apenas comungar fraternamente num mais largo espaço de
espiritualidade (Torga 1990: 133).

Estas palavras são do ano de 1988, o tempo de Nós e a Europa e as duas


razões e d’A Jangada de Pedra, mas já não, de certa forma, o de Torga. Em
ambos aqueles títulos, lemos hipóteses de futuro (digamos assim) que vão além
do iberismo torguiano, de certa forma prejudicado também pela penumbra em
que, a meu ver, a sua poesia mergulhou, nas últimas décadas. Mas não só isso.
Até por razões temperamentais, o autor dos Poemas Ibéricos não ia a tempo de
aceitar o que me parece pacífico: que as circunstâncias que, no fim do século
XX, iam envolvendo a existência cultural, política e social dos países ibéricos
desvaneciam imagens de ameaça que ressurgiam no seu espírito atormentado.

3. O tempo em que José Saramago chega ao debate iberista, sobretudo a


partir d’A Jangada de Pedra, é, então, outro e progressivamente diferenciado.
Inclui-se nessa diferenciação um conhecimento mais profundo e consequente
da diversidade das nações e das culturas peninsulares, já notada, curiosamente,
174 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

nos Poemas Ibéricos. Isto não impede que se fale de uma receção produtiva de
Miguel Torga por parte de Saramago, o que justifica esta afirmação: “A Ibéria
proposta por Saramago nasce do ideário torguiano” (Grossegesse 2009: 111).
É verdade que são muito reduzidas as referências de Saramago ao autor dos
Poemas Ibéricos (veja-se uma página do terceiro volume dos Cadernos de Lan-
zarote, quando da morte de Torga, a 17 de janeiro de 1995). Mas também parece
aceitável “interpretar o silêncio de Saramago acerca de Torga como indício de
uma autoafirmação que prescinde da mão de um autor português contemporâ-
neo, bem conhecido na vida literária portuguesa pelo seu Iberismo” (Grosse-
gesse 2009: 115). Saramago desejaria “beber diretamente nas fontes da cultura
e literatura hispânicas e chegar a um conceito ibérico original” (Grossegesse
2009: 115).
Em todo o caso, Saramago vai além do plano mítico-simbólico que domina a
coletânea torguiana, bem como da caracterização psicoantropológica daquela
diversidade, tal como ela se manifestara em Oliveira Martins, de forma mais in-
1
tuitiva do que objetivamente científica.

4. A referência, neste contexto, ao primeiro dos dois romances de Saramago


em que a viagem é motivo estruturante (o segundo é A Viagem do Elefante)
obriga a lembrar duas coisas. Primeira: pouco depois d’A Jangada de Pedra, Sa-
ramago publicou, num jornal de Madrid (o Diario 16, de 6 de outubro de 1988), o
texto “Acerca do (meu) iberismo”, depois inserto como prefácio do livro de César
Antonio Molina, Sobre el iberismo y otros escritos de literatura portuguesa (cf.
Saramago 1990: 5-9). Naquele texto, estão em causa algumas das preocupações
saramaguianas acerca da Europa e das práticas políticas que as suas democra-
cias desenvolvem; de certa forma, são essas preocupações o motor da viagem
ficcional consubstanciada neste romance. Segunda observação: a entrada de
Portugal e da Espanha na CEE potenciou o posicionamento crítico de Saramago
para com aquilo que, na época e em Portugal, foi em geral vivido de forma quase
eufórica – mas não por Saramago.
O romance A Jangada de Pedra confirma a propensão saramaguiana para
o culto do insólito, presente noutros títulos (por exemplo, no Ensaio sobre a Ce-
gueira ou n’As Intermitências da Morte), e relata o que se sabe: de forma abso-
lutamente inesperada, ocorre um incidente geológico que separa a Península
1
Vale a pena recordar as imagens de diversidade idiossincrática fixadas por Martins em estereótipos que falam
do "castelhano grave e indolente", do "andaluz fanfarrão e volúvel", do "catalão industrioso", do "valenciano
cabisbaixo e sedentário", do "galego paciente e laborioso", do "aragonês nobre e altivo nos seus farrapos",
etc. E, ao lado destas diferenças, observa as dos portugueses entre si, estabelecendo semelhanças com
os povos de Espanha: os do Minho laboriosos e quase galegos, os do sul "bizarros como castelhanos", os
do "extremo Algarve verdadeiros andaluzes" (Martins 1885: XX e XXI).
Reencontramos essas preocupações em intervenções dos anos seguintes, designadamente em “Descubramo-
nos uns aos outros”, de 1998 (cf. Saramago 2018a: 254-267) e, de forma mais sucinta, em “Claro como água”
e em “Voltando à vaca-fria”, ambos de 2008 (cf. Saramago 2018b: 44-46 e 58-59).
EDUARDO LOURENÇO E JOSÉ SARAMAGO: NÓS E O TRANSIBERISMO
175
Carlos Reis

Ibérica da Europa. Começa então uma viagem aparentemente sem rota defini-
da, cujos grandes significados assumem a feição da alegoria, um dispositivo de
representação que ressurge em obras subsequentes de José Saramago (duas
delas: Todos os Nomes e O Homem Duplicado). No caso d’A Jangada de Pedra,
a viagem é protagonizada por cinco personagens-viajantes que, provindas de
vários lugares da Ibéria, se juntam na aventura comum da navegação. Recordo
os seus nomes: Joana Carda, de Ereira, perto de Coimbra, Joaquim Sassa, de
uma praia do norte de Portugal, Pedro Orce, habitante de uma aldeia homónima
do seu apelido, na província de Granada, José Anaíço, que vive perto do rio Tejo,
e Maria Guavaira, uma viúva natural da Galiza. Mas não só. A estas personagens
junta-se um cão, animal muito da preferência do autor, com o nome de Constan-
te, e os dois cavalos (Pig e Al) que puxam a carroça que serve o grupo.
Com a jangada à deriva pelo oceano, sobrevém uma interrogação inevitável
que vem dar uma nova orientação à causa iberista: onde terminará a viagem?
A imagem da deriva que usei não é fortuita; ela sugere uma deambulação ou,
talvez melhor, uma deslocação sem porto de chegada previsto, como que em
busca de um destino ainda por definir. Com uma única certeza: a Europa fica
cada vez mais longe.
Introduz-se aqui um outro sentido: o sentido do afastamento, mais aquilo que
ele implica. Cito A Jangada de Pedra:
Este foi o dia assinalado em que a já distante Europa, segundo as últimas medições
conhecidas ia em cerca de duzentos quilómetros o afastamento, se viu sacudida, dos
alicerces ao telhado, por uma convulsão de natureza psicológica e social que drama-
ticamente pôs em mortal perigo a sua identidade, negada, nesse decisivo momento,
em seus fundamentos particulares e intrínsecos, as nacionalidades, tão laboriosa-
mente formadas ao longo de séculos e séculos (Saramago 1986: 160).

Há, então, uma identidade em perigo, tendo nos seus alicerces as naciona-
lidades e o seu longo trajeto histórico. Mais adiante, fala-se disso, ou seja, “da
séria crise de identidade com que se debateram [os países da Europa] quando
milhões de europeus resolveram declarar-se ibéricos” (Saramago 1986: 213).
Assim mesmo: “declarar-se ibéricos”, como se antes da insólita separação esti-
vesse cancelada a solidariedade dos europeus para com uma condição ibérica
agora descoberta como motivo e bússola para a viagem.
Neste que é um dos romances de José Saramago com mais evidente propó-
sito político, fica clara uma ideia: a denúncia de uma distância aparentemente
inultrapassável entre a Península Ibérica, como espaço periférico e até marginal,
e o poder da Europa central e centralizadora. E também uma segunda ideia,
que em José Saramago transcende o mundo narrativo d’A Jangada de Pedra:
o conhecimento de Espanha por quem repensa o iberismo exige o respeito pe-
las nacionalidades ibéricas e pelas suas diversidades, interditando uma visão
176 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

homogeneizadora do país vizinho; para mais, esse vizinho foi olhado, do lado
português e ao longo de séculos, como inimigo. Em vez disso (terceira ideia) pa-
rece conveniente que Portugal e Espanha cultivem um processo de descoberta
mútua e repensem a sua posição geoestratégica, relativamente à América Latina
e também à África.
A crítica ao chamamento europeísta passa por aí e abre uma via própria de
reflexão acerca do iberismo. Fica claro que uma parte importante daquela des-
coberta recíproca implica a desmistificação de imposições culturais provindas de
um “comportamento aberrante que consiste numa Europa eurocêntrica em rela-
ção a si própria” (Saramago 2018a: 258). É isto que Saramago afirma, numa con-
ferência de 1998, com o título “Descubramo-nos uns aos outros”. De certa forma,
a ofensa eurocêntrica, reforçada pelo contexto político dos anos 80, explica A
Jangada de Pedra, romance que, no conjunto da produção saramaguiana, não
é dos mais valorizados pela crítica. Uma das lacunas (ou talvez, a lacuna…) que
nele se aponta é a indefinição de um porto de chegada, como se a navegação da
jangada não tivesse um rumo determinado.

5. Alguns anos depois, na posteridade do seu romance, José Saramago pro-


pôs, naquela conferência, um destino para a viagem, mesmo sendo ela alegórica.
Assim, o movimento da navegação para sul implica “uma nova descoberta, um
encontro com os povos ibero-americanos e ibero-africanos digno desse nome”
(Saramago 2018a: 267). Deste modo, no contexto de um novo iberismo, como
reação à realidade política e social europeia do fim do século XX, poderemos
“descobrir em nós, ibéricos, capacidades e energias com sinal contrário aos que
fizeram do nosso passado de colonizadores um terrível fardo na consciência”
(Saramago 2018a: 267).
O alívio daquele fardo implica uma afirmação conjunta – e ibérica –, de natu-
reza identitária e cultural, que é estimulada como reação à integração económi-
ca na Europa. Palavras de Saramago, numa entrevista de 1986, pouco depois da
publicação d’A Jangada de Pedra:
No fundo, o que pretendo dizer em A Jangada de Pedra é que a Península Ibérica
tem uma identidade cultural muito profunda, muito caracterizada, que corre graves
riscos no processo de integração na CEE. Esta situação é tanto mais perigosa por
a Europa não saber exatamente quem é (…). A minha atitude não é isolacionista.
Nos nossos dias não se pode falar de isolamento. Também não sou antieuropeu. Só
quero sublinhar que nós, os povos da Península Ibérica [,] deveríamos comportar-
-nos de acordo com as nossas ligações. É evidente que temos umas primeiras raízes
europeias, mas não nos podemos esquecer das nossas segundas raízes históricas,
que nos vinculam à área linguística e cultural hispano-portuguesa da América Latina.
(apud Gómez Aguilera 2010: 442).
EDUARDO LOURENÇO E JOSÉ SARAMAGO: NÓS E O TRANSIBERISMO
177
Carlos Reis

A partir daqui, Saramago esboça um transiberismo que se associa àquilo a


que ele chama uma longamente reprimida “vocação do Sul”. A viagem da janga-
da ibérica aparenta não ter um norte, porque, verdadeiramente, é o sul e o seu
chamamento que a orientam (com licença pelo jogo de palavras). O transiberis-
mo de José Saramago é, então, um projeto para o futuro, mas não, ao contrário
do que já foi dito, uma utopia (cf. Baltrusch 2014), até porque o ideário sarama-
guiano não se compagina com qualquer pulsão utópica.
Ilustrado por uma viagem alegórica, o projeto transiberista almeja uma
realidade geoestratégica a vir, inspirada na tal “vocação do Sul” muitas vezes
reprimida, “em consequência de um remordimento histórico (…) que só ações
positivas poderão tornar suportável algum dia”, diz Saramago. E conclui: “O tem-
po dos descobrimentos acabou. Continuemos, pois, descobrindo-nos uns aos
outros, continuemos descobrindo-nos a nós próprios” (Saramago 2018a: 267).
Como quem diz: a viagem não terminou, conforme fica claro em palavras de José
Saramago, numa entrevista de 1994:
O transiberismo seria um conceito superador do iberismo tradicional, que engloba-
ria os países de tradição ibérica na América e em África. E, caso conseguisse a sua
instauração entre os pensadores e políticos, chegaria a ser a grande criação de uma
época; mas para isso teríamos de ter uma visão histórica especial e decisiva (apud
Gómez Aguilera 2010: 416).

REFERÊNCIAS
Baltrusch B. (2014). “A nova Mensagem do trans-iberismo – sobre alguns aspetos
utópicos e metanarrativos do discurso saramaguiano”, en Burghard Baltrusch
(ed.), O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia. Estudos sobre
utopia e ficção em José Saramago. Berlin: Frank & Timme, pp. 53-72.
Gómez Aguilera F. (ed.) (2010). José Saramago nas suas palavras. Madrid: Alfagua-
ra.
Grossegesse O. (2009). “Torga em Saramago. Dos Poemas Ibéricos à Jangada de
Pedra”, in Veredas, 11, pp. 109-130.
Lourenço E. (1988). Nós e a Europa ou as duas razões. 2ª ed. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
Martins J. P. O. (1885). História da Civilização Ibérica. 3ª ed. Lisboa: Liv. Bertrand.
Sáez Delgado A. e Pérez Isasi S. (2018). De Espaldas Abiertas. Relaciones literarias
y culturales ibéricas. Albolote: Editorial Colmares.
Sáez Delgado A. (2020). “José Saramago, transiberiste”, in C. Reis (org.), José Sara-
mago. Nascido para isto. Lisboa: Fundação José Saramago, pp. 47-61.
Saramago J. (1986). A Jangada de Pedra. Lisboa: Caminho.
178 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Saramago J. (1990). “Mi iberismo”. Prólogo a César António Molina, Sobre el ibe-
rismo y otros escritos de literatura portuguesa. Madrid: Ediciones Akal, pp. 5-9.
Saramago J. (2018a). Último Caderno de Lanzarote. Porto: Porto Editora.
Saramago J. (2018b). O Caderno. Porto: Porto Editora.
TODO ES FUTURO

PILAR DEL RÍO*

Con Eduardo Lourenço todo era futuro y esta no es una frase de efecto, quie-
nes le conocían, tantas personas aquí, sabían que nuestro patrono, el hombre
al que nos acogemos en este Premio y en este lugar, era así, un ser humano de
futuros que iba desvelando paso a paso, usando su portentosa imaginación y la
cultura viva que le mantuvo y nos mantuvo. Aclaro la frase inicial: era un hombre
de futuro porque era, y de qué manera, un hombre de papeles perdidos: jamás
encontraba el texto que acababa de escribir, el diario en el que había anotado
ideas necesarias, el libro que iba comentar. Lo pasado y tangible desaparecía
de sus manos, era como si lo concreto le fuera esquivo, por tanto necesitaba de
tiempo por delante para reconstruir pensamiento e historias, necesitaba tardes y
noches sin límites para recuperar los pasos dados, ahora lo haría, cada vez más,
con otra seguridad, con mayor dominio del andar, con una humanidad todavía
más desbordada. Eduardo Lorenzo no vivía para recordar, usaba el tiempo para
seguir diciéndose y diciéndonos quienes somos y cual es nuestro poder. El de los
hombres y mujeres que somos, personas levantadas, nunca rendidas, construc-
toras de tiempo y de nuevas historias. Siempre con curiosidad, alertas al prodigio
que puede producirse dentro o fuera de nosotros y a veces se produce, si se ha
sabido mantener la esperanza.
Queremos a Eduardo Lorenço. En Elegía a Ramón Sijé el poeta español Mi-
guel Hernández le dice al amigo muerto “compañero del alma, tan temprano”.
Pues eso, casi un siglo después de su nacimiento, poco después de su partida,
apetece decir aquí, en Guarda, que el apetito que de él teníamos no se colma,
que era temprano de más, que su humana sabiduría sigue siendo necesaria. Se
fue pronto, sin encontrar las agendas o los diarios perdidos, sin haber viajado
a Belem de Pará para visitar a la hermana y sin asistir a la temporada completa
de la Gulbenkian, esos conciertos donde él dirigía la orquesta con suavidad, sin
que nadie diera por eso, solo la música acudía a su cabeza y se instalaba como
la base sobre la que el maestro Lourenço seguiría edificando nuestro tiempo.
Y luego la cena, Lulas a Matos muy tiernas, masticas con observaciones de las
múltiples lecturas que estaba haciendo y con la mala conciencia por el prólogo
que ya debería de haber entregado y no había escrito. O la presentación de

*
Presidenta de la Fundación José Saramago.
180 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

mañana “no sé donde” a que se comprometió, porque se comprometía con el


millón de amigos que tenía, o tal vez fueran más, quién podría contar las rela-
ciones de Eduardo Lourenço, que hoy nos convoca porque en su inteligencia y
sentimientos cabían varias generaciones, las culturas de países y continentes
distintos, todas las ideas que nos sostienen y que él organizaba con una frase,
ante el asombro de quienes no entienden el comportamiento de los manantiales.
Fui observadora privilegiada de las relaciones de dos amigos que nacieron
con poca diferencia de meses y que tenían una conversación sin fin. Eduardo Lo-
renço y José Saramago no dejaron un asunto por repasar ni un sentimiento en el
que crecer: eran así, se lo podían permitir y se lo permitieron. Ambos recorrieron
el siglo XX y parte del XXI con lozanía y humor. La primera vez que se encontra-
ron fue cuando José Saramago trabajaba en Estudior Cor y Eduardo Lourenço le
llevó un original que Saramago, sin apenas mirar, colocó en el estante de detrás
de su mesa de trabajo, ante la frustrada expectación del autor del manuscrito.
Años después Eduardo Lourenço comentaría que aquella aparente desconfianza
tanto podría deberse “a José no me conocía o a que me conocía demasiado
bien…”. José Saramago nunca se lo aclaró, pero aquel día nació una relación
que el paso del tiempo fue sellando en fraternidad, con conversaciones, cartas,
postales, confidencias y una complicidad que no tenía que basarse en el acuer-
do, al contrario, se enriquecía en las divergencias, que eran muchas, tantas que
siempre fueron amigos. Juntos asistieron a congresos académicos o culturales
en varios continentes: recuerdo en Madrid una mesa compartida con Luciana
Stagagno Picchio, tan añorada, sobre la escritura saramaguiana que respondía
al extraño título “Los modos y los fines”. Luciana se apropió con picardía de los
modos, decía que ella era científica, que los fines se quedaran para el metafísico
Eduardo, “angelical criatura a la que solo le falta levitar”. Naturalmente ni Eduar-
do Lourenço ni Annie Salomóm compartían el retrato perverso de la italiana, pero
gozaban del banquete de ingenio que tanto podía tener lugar en plaza pública
como en la intimidad de un mesón en el Madrid de los Austrias. Portugal y España
fueron lugares revisitados física y literariamente por los dos amigo, también en
Brasil, Francia, Italia, Alemania o Bélgica pronunciaron conferencias o asistieron
a espectáculos maravillosos, como la ópera Blimunda, en La Scala de Milán, por
citar un momento mágico. Juntos vieron obras de Dario Fo, oyeron a Maria Joao
Pires o se adentraron en museos ignotos para ver el detalle de una obra que un
día amaron, el ángulo distinto de otra, o sencillamente para proteger el patrimo-
nio que luego, por la noche, a todos nos cuidaría, según escribió José Saramago
en Manual de pintura y caligrafía y Eduardo Lourenço citaba: “Mientras duermo,
este pueblo silencioso de estatuas y pinturas, esta humanidad remanente, pa-
ralela, continúa con los ojos abiertos velando por el mundo al que, durmiendo,
renuncié”. Solo durmiendo podrían renunciar a algo estos dos amigos que un
TODO ES FUTURO
181
Pilar del Río

día hicieron un viaje decisivo a Estocolmo, cuando uno de ellos iba a recibir el
Premio Nobel y el otro, decía, iba de “fiel escudero” y su presencia era un premio
mayor para el galardonado.
Estocolmo 1998, Gran Hotel. Eduardo y Annie formaban parte del grupo de
portugueses que invadieron la ciudad y, de alguna manera, la conquistaron.
Ocurre que cada premiado tiene derecho a invitar a diez personas a la ceremonia
del Premio y José Saramago decidió que sus lugares serían ocupados por per-
sonas que trabajaban la cultura portuguesa y la engrandecían. Con Eduardo for-
maban parte del grupo Carlos Reis, Maria Alcira Seixo, Baptista-Bastos, Luis Pinto
Coelho, Eduardo Prado Coelho, el presidente del Camoes y sus editores, a los
que se sumaron otros amigos y familiares que viajaron a Suecia para acompañar
y celebrar, pudieran entrar o no en las ceremonias. Eduardo Lourenço llevaba,
como casi todos, un frac alquilado que, como a casi todos, le sentaba regular,
pero él se veía principesco, hasta el punto de desfilar una y otra vez como si su
misión en la vida fuera la pasarela, de aquí a allí por los salones portando humor
y comentarios jocosos: “Nunca pensé estar aquí, que nací de Sao Pedro de Rio
Seco”, coqueteaba cercado de oropeles. En aquellos días de Estocolmo, que lue-
go decía recordar envueltos en bruma, recorrió la ciudad nevada, visitó museos,
se acercó a ver El Vasa, el navío de guerra que naufragó en su viaje inaugural,
y con Annie, que era hispanista y sabía, por razones familiares, lo que era el
internacionalismo, fue a ver la estatua de las manos unidas en homenaje a los
brigadistas suecos que acudieron como voluntarios la guerra civil de España en
apoyo de la legalidad republicana. Eduardo Lourenço departió con emigrantes
portugueses en aquellos días en que también ellos, expatriados, eran el centro
del mundo, hubo encuentros con los embajadores, tan amigos, visitas a librerías
y todo era un cuento de hadas para el filosofo, que lo vivía sin contradicción al-
guna, como incorporaba a su experiencia la terquedad de la larga noche sueca o
las luces de colores de las calles que pretendían combatir la soledad.
Las mesas del banquete del Nobel, en el fastuoso espacio de la cámara, es-
taban adornadas con chocolatinas que semejaban la medalla que los galardona-
dos acababan de recibir. A la mañana siguiente le pregunté, goloso como era,
si se había quedado con alguna. “¿Alguna? Fui recogiendo las que quedaron en
todas las mesas”, me dijo con la alegría del héroe.

El héroe que es, que hoy nos tiene aquí, sentados en Guarda, su Guarda,
sin saudades y con mucha alegría porque él nos sigue reuniendo y es capaz de
extraer de nosotros lo mejor que somos y tenemos. Empieza su Centenerio, su
otro futuro: Estaremos con él quienes con él “tanto quisimos,” por citar otra vez al
poeta español Miguel Hernández. Seguiremos leyendo a Eduardo Lourenço para
tratar de entender quienes somos. Ahora que, definitivamente, todo es futuro.
EDUARDO LOURENÇO:
VIDA E OBRA DE UM
heterodoxO

Comunicações proferidas no âmbito do Seminário


Eduardo Lourenço: Vida y obra de un heterodoxo
(Universidade de Salamanca - 29/09/2023)
DIALÉCTICA Y HETERODOXIA
1
DOMINGO HERNÁNDEZ SÁNCHEZ

Quisiera, en primer lugar, dar las gracias al Centro de Estudios Ibéricos y a las
instituciones y personas que lo hacen posible, así como a los organizadores de
estas Conversaciones sobre Heterodoxias que forman parte de los actos de con-
memoración en el Centenario de Eduardo Lourenço. Para mí es un honor estar
aquí, por lo que que, de nuevo, muchísimas gracias, también a los compañeros
de la mesa y a todos ustedes, con los que será realmente un placer compartir el
diálogo. Que no nos falte ese diálogo: de hecho, si nos faltara, no tendría mucho
sentido hablar, ahora, aquí, de Eduardo Lourenço. Las alusiones, ya, al inicio,
son obvias: «El diálogo que nos falta», sí, pero también la completa «voluntad de
2
diálogo» (102) que tanto seguimos necesitando. Gracias por permitirme formar
parte de ello y participar en la conmemoración del centenario.
De hecho, este año de 2023 está repleto de centenarios. Por ejemplo, para
los que nos dedicamos en parte al ámbito de los estudios sobre José Ortega
y Gasset y su época, es un año importante, porque también se cumplen cien
años de un libro fundamental, El tema de nuestro tiempo, y de una de las más
importantes empresas orteguianas, la Revista de Occidente. En un autor como
Lourenço, donde es más que palpable la presencia de temas que también fueron
fundamentales para el filósofo madrileño — la idea de Europa, la frontera y el
límite, los problemas patrios, la superación de restos del siglo XIX, el tema del
tiempo, la idea de cultura, etc.—, no oculto que he estado tentado de preparar
mi intervención analizando ese vínculo, el de Lourenço y Ortega. Pero no sería
justo, y no lo sería sobre todo por dos razones: una, porque la conexión, pienso,
es sobre todo epocal; y otra, más importante, porque sería ya algo, de inicio, que
restaría protagonismo a Eduardo Lourenço y, obviamente, no es el momento, ni
tampoco el caso. Aquí el tema principal es Heterodoxia, el primer libro de Lou-
renço, y, aunque no sé si podremos evitarlo, más que nada porque es difícil no
extender hacia la actualidad algunas de las tesis que ahí se defienden, conven-
dría mantenernos en él. Yo, de hecho, querría mantenerme en él, así que dejaré

Universidad de Salamanca.
1
Este artículo forma parte de los resultados del Grupo de Investigación Reconocido de Estética y Teoría de
las Artes (GEsTA), adscrito al Instituto de Iberoamérica de la Universidad de Salamanca.
2
Introduciré constantes citas de Heterodoxia, señaladas únicamente con el número de página en el cuerpo del
texto, a partir de la edición: Eduardo Lourenço, Heterodoxia, I e II. Lisboa, Assirio & Alvim, 1987. La traducción
es mía.
188 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

la actualidad de Lourenço, y es mucha, para mis compañeros de mesa o para el


debate posterior.
Mi referencia a José Ortega y Gasset, de todos modos, no se dirigía tanto a
esa posible vinculación sino a algo más personal, que, además, me permite iniciar
mi breve intervención. Me refiero a la primera vez que leí a Eduardo Lourenço. Es-
taba realizando mi Tesis Doctoral, dedicada a la recepción de Hegel por Ortega y
Gasset, bajo la dirección de José Luis Molinuevo, y la investigación me llevó a leer
«El secreto de Hegel o el equívoco de la dialéctica», el artículo más extenso de
Heterodoxia I. Me gustó mucho y me interesó mucho, más aún cuando, leyendo
rápidamente otros textos del autor — ya se sabe, cuando se hace una Tesis, uno
lee demasiado rápido algunas cosas... — vi que el tema de la frontera y el límite
— que era el tema concreto de mi Tesis — era fundamental en Lourenço y que,
incluso, tanto Ortega como Lourenço, en relación con sus dos primeros libros,
respectivamente Heterodoxia y Meditaciones del Quijote, se definían de modo si-
milar: «aprendiz de filósofo» (XIV) el portugués y «profesor de Filosofía in partibus
infidelium» el español. Pero ahí lo dejé: la Tesis me llevó por una vía más intraorte-
guiana y no supe aprovechar bien una relación que sin duda me habría ayudado.
Sólo mucho más tarde me di cuenta de eso, y sólo mucho más tarde volví a leer
a Lourenço. Sea como sea, lo cierto es que mi primer contacto con nuestro autor
fue el del artículo sobre la dialéctica del libro que nos ocupa: Heterodoxia I. No es
precisamente el texto más ameno del volumen, eso está claro.
Pero no, no se preocupen: no voy a hacer mi intervención hablando de Hegel,
aunque sea el Hegel de Lourenço. No lo haré, pero su figura sí que guiará leve-
mente lo que quiero decir. Y lo hará por dos razones: porque, no lo olvidemos,
aunque fuera por provocación y rechazo, como el mismo Lourenço indica, «la
ambición de este ensayo [Heterodoxia] es de orden decididamente metafísica»
(XIII) y, en segundo lugar, porque lo que realmente le interesaba ahí a Lourenço,
en el artículo mencionado, no era Hegel, sino la dialéctica. Sí, metafísica y dialéc-
tica: sé que asustan un poco para tratarlas así, en unos minutos, como quien no
quiere la cosa. Casi tanto como Hegel. Sin embargo, no nos angustiemos, y no
lo hagamos aunque tampoco olvidemos el tono existencial del libro. Porque de
esa cita sobre la ambición metafísica no debe pasarse por alto de quién es la
ambición: es la ambición de un ensayo. Es decir, de una escritura que se quiere
ensayística por decisiones muy concretas. Y, sí, de acuerdo, todos recordamos el
inicio de «Escritura y muerte», eso de que «no hay ensayismo feliz» y que «en su
esencia [el ensayo] es una escritura del desastre, personal y transpersonal» (XII).
Dejaremos eso ahí, como de fondo, porque, de manera especial, no olvidamos
que la perspectiva ensayística, también y sobre todo, sitúa a la historia «en los
límites de lo humanamente aceptable» (XII). No pensemos en alturas trascenden-
tales, entonces, que son las que siempre nos angustian.
Sea como sea y de un modo u otro, la metafísica de la que hablamos es en-
sayística, en concreto «ensayismo filosófico», como escribirá Lourenço en uno de
DIALÉCTICA Y HETERODOXIA
189
Domingo Hernández Sánchez

los prólogos posteriores (91), es decir, que ya desde la forma, esa metafísica asu-
me una esencia puramente fronteriza, limítrofe, como la de todo ensayo, y, por
ello, dialéctica. Ahora bien, ¿qué dialéctica es ésa? No hay que ir muy lejos: es
la del primer párrafo del libro, sin duda, la de las primeras líneas del prólogo de
1949, la que acompaña a la imagen de la serpiente que muerde su propia cola,
ese Ouroboros que Lourenço percibe desde la mitología nórdica, Midgard. En tal
imagen ya se encuentran el tiempo, la vida y la muerte y, cito, también destaca
«la dialéctica viva suscitadora simultáneamente de bien y mal, de señor y siervo,
uno y otro unidos como el cuerpo a su sombra» (3). Dialéctica, sí, pero viva. Por
ello, el significado de este mito, si lo entendemos desde esa dialéctica viva y lo
percibimos como esencia de la realidad, «llámase heterodoxia», el «completo
movimiento de morder y ser mordido, la pasión circular de la vida por sí misma»
(3). Un círculo de pasión y vida, de eso se trataba.
Dialéctica viva, ensayo, movimiento, respeto por esa realidad dividida que
llamamos ser humano (6), pura libertad... en fin, heterodoxia. A estas alturas, ni
Hegel ni la metafísica nos asustan ya. Más cuando sabemos que hablamos de
un libro terriblemente personal y maravillosamente circunstancial. Una época,
un país, un jovencísimo aprendiz de filósofo... Cómo se transforma el libro cuan-
do se leen los distintos prólogos y Lourenço nos permite el acceso a su mirada
autobiográfica sobre él, el acceso a cuáles eran realmente las ortodoxias a las
que se enfrentaba, el acceso a los procesos de autocrítica y a la metamorfosis
de las continuaciones, incluso a la sensación de derrota. El libro como «opción
existencial», vaya (XIV). La metafísica, entonces, se percibe ya desde una vida
en sentido explícito. Pura dialéctica viva, en efecto. Pero pienso que, sin leer
tales prólogos, sin acudir a tales presencias externas del autor, incluso sin aludir
demasiado a las circunstancias personales y epocales que permiten entender
el libro, también es posible acceder a todo eso que luego reclamará Eduardo
Lourenço de un modo mucho más concreto.
Aunque sea muy brevemente, es a ello a lo que querría aludir para terminar:
a eso que ya se ve, aunque luego sea re-examinado en parte por el propio autor,
en el libro de 1949. Por eso permaneceré en Heterodoxia I, por eso la alusión
a Hegel y la metafísica, por eso la referencia a la dialéctica. Si el espíritu de la
ortodoxia, para Lourenço, es la expresión de «una espiritualidad penetrada de
voluntad de dominio temporal» (101), veamos, entonces, algunas rupturas ini-
ciales de tal dominio, las configuradas en torno a esa «humildad de espíritu» (6)
que es la heterodoxia.
Así, de un modo muy rápido y casi sin comentario, únicamente me limitaré
a recordar que la cultura que faltaba en «Europa o el diálogo que nos falta» era
aquella que «implica la continuidad de un esfuerzo espiritual que se supera pro-
fundizándose» (8) y, de este modo, asumía que «la vida auténtica del espíritu es
lucha, esfuerzo permanente para resolver dificultades». Por ello, la necesidad del
nietzscheano deseo de «no ceder a lo aparentemente definitivo e irremediable»
190 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

(10); por ello la clave de aquella cultura europea que buscaba Lourenço era la
de los conflictos y contradicciones para entrar en diálogo con ellos. Las formas
de actuación, en consecuencia, son muy claras, con unos efectos inmediatos:
inquietud universal, renuncia a lo estático, desprecio a la «perfección en la muer-
te» (11). Las cartas estaban echadas. De ahí se desprendía la necesidad de exi-
gir la renuncia expresa de toda ideología, que, asimismo, implicaba un requisito
previo, el más fundamental: el de libertad para rechazar o discutir. En fin, puro
humanismo, ése que percibe a Europa como diálogo. Tal lectura de base explica
también que a Hegel se vaya desde Croce, es decir, desde alguien que situaba
la Aufhebung, la asunción hegeliana, en un proceso de inclusión (24) que implica
la «pluralidad innumerable de conciencias» (25) y donde nada se supera y olvida,
es decir, donde la «continua permanencia» es fundamental si realmente quere-
mos vivir en un tiempo humano.
Entendido esto así, no ha de extrañar, entonces, que en el artículo sobre la
dialéctica interese el significado existencial del asunto y que Lourenço insista en
que tanto el idealismo como el materialismo dialéctico, es decir, Hegel y Marx,
los dos, sean la doble cara de una misma y peligrosísima tentación: «la tenta-
ción de lo absoluto» (37). La existencia humana «está entre» la inmediatez y la
trascendencia, leemos ahí, por lo que todo ideal «se anula al convertirse en exis-
tente» (40). Estar entre: asumir límites, limitaciones y fronteras, asumir el «estar
de paso». A Eugenio Trías también le hubiese gustado esto. En la breve historia
de la dialéctica que narra Lourenço lo principal, así, es la idealidad de lo finito,
la negación del aislamiento para las determinaciones, el carácter ilusorio de la
dialéctica cuando se la toma como «imagen de lo absoluto» (82). Frente a ello, la
«inagotabilidad de lo concreto» (82): ésa es la clave, eso es lo que salvamos de
la dialéctica y que no satisface del todo, dice Lourenço, en el sistema hegeliano.
No, no satisface del todo. Lo impide la mencionada tentación de absoluto.
Pero, si lo pensamos bien, sólo de estos extractos que acabo de recordar, tan
rápidamente y a vuelapluma, puede desprenderse el sentido de las alusiones
a Hegel, aunque no satisfaga y, en general, la presencia de la dialéctica en el
sentido de lo publicado en 1949. Y es que, de lo que hemos hablado es de 1) es-
fuerzo para resolver dificultades, 2) renuncia a lo detenido y estático, 3) continua
permanencia, 4) idealidad de lo finito y 5) trabajo en y con las fronteras, los lími-
tes y las mediaciones. Es un hegelianismo sin final, es una especie de dialéctica
negativa sin el poso marxista ni el exceso de tradición hegeliana: es, aunque sea
sólo en ciernes, una filosofía de frontera. En este sentido, ya ahí, podría decirse,
se colocaban las primeras piedras, y pienso que muy sólidas, de esa «filosofía
de la modestia» (220), la de la verdad como presencia eternamente ausente,
que algunos años después solicitaría el mismo Lourenço en lugar de los que él
consideraba ímpetus juveniles.
Muchas gracias.
REFLEXIONES SOBRE UN PEREGRINAR
HETERODOXO
1
ANTONIO NOTARIO RUIZ

Quiero comenzar con los agradecimientos por haber contado conmigo para
este Seminario: agradecimiento al Centro de Estudios Ibéricos, así como a las
instituciones que lo respaldan. Pero agradecimiento muy especial a las personas
que tanto esfuerzo y empeño han dedicado y dedican al cuidado y mantenimien-
to del legado de Eduardo Lourenço en general y a los del CEI en particular. Des-
pués de haber compartido dos días en el mes de Mayo pasado, en Guarda, en el
Congreso Leituras de Eduardo Lourenço, y de haber asistido a la inauguración
de la exposición del Servicio de Actividades de la Universidad de Salamanca en
la Hospedería Fonseca hace una hora, me siento todavía más honrado por la
invitación que me hicieron llegar para participar en este Seminario. Además, tan-
to el reencuentro con algunos de ustedes, como la oportunidad de encuentros
nuevos abren siempre otras posibilidades académicas y personales de diálogo y
de construcción de conocimiento.
Para iniciar mi presentación, que les advierto que será breve, quiero comen-
zar con tres confesiones. En primer lugar, no puedo dejar de informarles de que
no soy un especialista en la obra de Eduardo Lourenço. Y no crean que es una
declaración de falsa modestia o una forma de capatatio benevolentiae. No: no
soy más que un lector apasionado de Lourenço. He leído todo lo que he podi-
do escrito por él y sigo leyendo. He escuchado muchas de sus entrevistas que
se pueden encontrar en Internet. Pero no alcanzo ningún nivel de especializa-
ción. Les confieso también que he llegado a la cultura portuguesa en general y
a Lourenço en particular de la mano de Ángel Crespo. Efectivamente, el poeta y
traductor manchego fue un excelente embajador de la cultura portuguesa y ver
ahora en la exposición salmantina uno de sus libros dedicados a Eduardo Lou-
renço, – Poesía, invención y metafísica (1970) – me ha devuelto a mis primeras
lecturas de Pessoa. Por último, les confieso también que lo que conozco ya de
Lourenço me desborda y creo que es difícilmente abarcable por una sola per-
sona. Su erudición, su conocimiento profundo de la tradición literaria y poética
portuguesa, pero también de la española y de tantos y tantos autores de filosofía

Universidad de Salamanca.
1
Este artículo forma parte de los resultados del Grupo de Investigación Reconocido de Estética y Teoría de
las Artes (GEsTA), adscrito al Instituto de Iberoamérica de la Universidad de Salamanca.
192 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

o de política van más allá de las rigideces de la compartimentación académica


del saber.
Hay, además, una clave musical, ya que tanto disfrutaba Lourenço del arte
de los sonidos. Y lo menciono evocando una obra del compositor Franz Liszt:
Années de pelerinage (1855). Sí. Peregrinación como clave de su biografía y de
su obra. Peregrinación a través de afectos, autores, conceptos y tiempos. La vida
de Lourenço es una permanente peregrinación. Una exigente peregrinación que
le lleva a perseguir una Ítaca inalcanzable. Lourenço, como Liszt, exiliado del
país de su infancia y exiliado perpetuo de un tiempo que no debía volver. La geo-
grafía europea como escenario del músico que solo en los sonidos encontró una
verdadera patria. Geografías diversas las que sirvieron a Lourenço como punto
de fuga y mirador, a la vez, desde donde contemplar a Portugal y, en ese mismo
momento, encontrarse reflejado a sí mismo como en un espejo.
De todo ese ingente material escrito por él destacan estas Heterodoxias que
nos congregan y que me han llevado a proponerles algunas sencillas reflexiones
pero que pueden servir para un acceso a su obra o para repensarla en caso de
conocerla ya. Lourenço afirmó en 1999 que uno de sus objetivos era “apren-
der quienes somos y dónde estamos”. Es decir, propone su actividad intelectual
como un ejercicio de orientación. Y es en ese ejercicio donde se incardina la
heterodoxia. Lo hace, según entiendo yo su propuesta, en tres niveles.
Un primer nivel es el estrictamente personal, como un ejercicio de difícil
orientación en un espacio y un tiempo que se van convirtiendo en hostiles a me-
dida que crece la conciencia intelectual y política de Lourenço. ¿Quién es y dón-
de está Eduardo Lourenço? Lo expresa mu claramente en Escrita e Morte, donde
afirma que Heterodoxia no existiría sin la muerte de su padre, una muerte que no
fue sólo individual, sino que implicaba la muerte de una generación que “sentía,
2
vivía, pensaba en el interior de una visión de la vida que dejaba de ser la mía” .
El siguiente nivel tiene que ver con el ejercicio de orientación colectiva, con
Portugal en el corazón, en el alma y en la mente, algunas veces en el recuerdo,
3
en la memoria . Pero, no se olvide, también como una inquietud por el futuro.
Desde esa posición afectiva e intelectual la pregunta sería: ¿Quién y qué es Por-
tugal? ¿Dónde está? ¿Dónde estará? ¿Dónde debería estar? En ese sentido la
heterodoxia será situarse frente a los mitos portugueses, frente a las imágenes
que unos y otros habían fraguado a lo largo de siglos y contrastarlas con el pre-
sente y con el futuro. Un proceso de orientación desde la heterodoxia, es decir,
una revisión crítica de un legado histórico y de lo que posibilitaba tanto como de
lo que dificultaba.
El tercer nivel, a diferencia de los dos anteriores es un ejercicio casi imposible
de orientación porque desborda los marcos geopolíticos heredados: es el nivel

2
«Escrita e norte», en Eduardo Lourenço, Heterodoxia, I e II. Lisboa, Assirio & Alvim, 1987, p. XIV.
3
Eduardo Lourenço, Portugal como destino. Lisboa, Gradiva, 1999.
REFLEXIONES SOBRE UN PEREGRINAR HETERODOXO
193
Antonio Notario Ruiz

de una orientación ibérica, aunque sin caer en los tópicos del iberismo. Eleván-
dose por la historia, la literatura y el pensamiento de ambos lados de la frontera,
Lourenço ejerce en muchas ocasiones como un intelectual ibérico. Por eso no
es extraño leerle citando a Calderón, Cervantes, Ortega o Unamuno de forma
tan atinada en un discurso que no se puede leer ni como portugués ni como
español sino ciertamente ibérico. Nivel casi imposible éste porque no parece ser
escuchado ni por unos ni por otros.
¿Quiénes somos? ¿Dónde estamos? ¿A dónde nos dirigimos? ¿No son esas las
preguntas que motivan esas heterodoxias, esas imposibilidades de conformarse
con unos u otros prejuicios? ¿No hay una insatisfacción inicial, una profunda insa-
tisfacción que empuja a Eduardo Lourenço a peregrinar en busca de un territorio,
de un marco de ideas y sentimientos, de un tesoro de palabras y conceptos que
ya no será de unos o de otros? ¿No es Iberia un bello sueño, una Ítaca peculiar
para algunos de un lado y otro de la frontera?
Tal vez echen de menos un cuarto nivel: el de ese otro bello sueño que ha sido
Europa. Europa como un destino que era obligado para portugueses y españoles
en los oscuros años de las dictaduras y que parecía poder conjugar las ansias
de libertad, de universalidad, de todo lo que no se podía vivir más acá de los
Pirineos. Pero Lourenço vivió con profundo pesar el despertar de ese sueño, el
desgarro de ese aterrizaje forzoso en otra realidad política después de la guerra
de Yugoslavia, despertar abrupto que ha devuelto a la ciudadanía portuguesa – y
también a la española – a la periferia, a la excentricidad y a una desnaturalizada
apariencia exótica y folclórica que nada tiene que ver con lo que parecía poder
4
llegar a ser . No somos lo que fuimos – si me permiten hablar en primera persona
del plural –. No somos lo que pudimos llegar a ser, lo que pareció posible ser
durante unos cuantos – pocos – años, entre los primeros setenta y los primeros
noventa del siglo pasado.
Por eso hoy, tanto o más que en sus primeros textos, nos queda solo el ca-
mino de las heterodoxias frente a unos y otros, los que, de la mano del capi-
tal, de la(s) ideología(s) y de la nueva inquisición obstaculizan el pensamiento
libre, el diálogo sereno y la concordia de los opuestos. Heterodoxias frente a
autoritarismos, cancelaciones, totalitarismos y toda la no pequeña colección de
enemigos acérrimos de la racionalidad y de la mejor sentimentalidad. Pensemos
en compañía de Lourenço, peregrinemos con él, aunque el peregrinar mismo se
convierta en un fin y no en un medio.
Muchas gracias.

4
Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou as Duas Razões. Lisboa, INCM, 1994.
MANUAL DE UM HETERODOXO À LA
RECHERCHE DE SON IDENTITÉ
1
FILIPA SOARES

Eduardo Lourenço foi, é e será, sempre, uma das figuras incontornáveis da


cultura portuguesa contemporânea.
Pensar Eduardo Lourenço significa adentrarmo-nos, inevitavelmente, num
processo de reflexão contínuo, por vezes, centrífugo, para, a partir de outra mar-
gem, construirmos ou, pelo menos, cimentarmos o nosso sentimento de perten-
ça a um espaço singular, marcado por um sentimento de unicidade territorial,
em diálogo permanente com outros territórios, por forma a sermos capazes de
nos afirmarmos num contexto global, despojado de preconceitos e ausente de
orfandade.
Quando debruçamos o nosso olhar sobre a vasta e complexa obra do grande
pensador português apercebemo-nos que o pensamento lourenciano é o resul-
tado profundo de uma reflexão pausada, meditada e, constantemente, (re)visita-
da sobre temas que o preocupam, que o inquietam e cujo estilo de pensamento
assenta nessa estranha forma de vida marcada pela condição periférica da sua
portugalidade e na necessidade de construir um diálogo permanente com a cul-
tura portuguesa.
A sua obra, preconizando uma reflexão interrogante como modo de decifra-
mento do processo de (auto)descoberta, assume a condição de manual, orien-
tando o leitor e obrigando-o a assumir um diálogo permanente sobre o paradig-
ma cultural e civilizacional de Portugal consigo e com a Europa.
O processo diegético do pensador português foi sendo construído, ao longo
dos anos, em permanente diálogo com outros autores, alguns seus contempo-
râneos, outros deslocalizados no espaço e no tempo; nacionais e estrangeiros.
Este método de questionamento da realidade, posicionou-o, sem lugar de prefe-
rência, ora como pensador, ora como leitor privilegiado da cultura portuguesa e,
de igual modo, da sociedade sua contemporânea.
A dualidade de posicionamento do autor promove a inquietude dialética, ca-
paz de nos retirar do marasmo alojado na condição humana, capaz de ofuscar a
lucidez e coartar a necessidade imperativa de “ascender através da meditação e
aprofundamento até às raízes mesmas da cultura do ocidente e travar com eles
o diálogo necessário à progressão do espírito.
1
Universidade Autónoma de Madrid. Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões em Madrid.
196 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Sem equívoco possível e com dura tristeza, perguntamos àqueles de entre


nós que têm a lucidez amarga de se conhecer é este o caso português?” (Lou-
renço 2021: 41).
Querer ser e estar no mundo, acarreta ter a capacidade de assumir que o
processo de educação do Homem passa por ter a capacidade de querer fazer,
compreendendo que este passo só é possível se se assumir que para construir é
preciso saber, reconhecendo que a descoberta e assunção da identidade coleti-
va e cultural requer um esforço teórico-reflexivo, despojado de um contorno de
fatalidades, originado por um conjunto de contingências históricas e, por vezes,
circunstanciais.
Partindo da premissa do autor e pensador português de “muda-se pouco,
mas a vida muda por nós”, rapidamente chegamos à conclusão, ou, somos in-
duzidos a pensar, como afirma o professor João Tiago Pedroso de Lima, que “o
percurso ensaístico [do nosso autor] se afigura quase sempre problemático ou,
pelo menos, inconclusivo”. (Lourenço 2021: 17).
A condição periférica de Portugal, historicamente isolado pelo vasto e inten-
so azul do oceano Atlântico a um lado e por esse árido e avassalador território do
outro lado da fronteira, contribuiu para “numa estranha conjunção disjuntiva so-
bre a consciência do ser português e da sua relação com a identidade europeia,
[para encontrar] a melhor forma de se afirmar como europeu” (Soares 2021: 53).
O conceito de “marginalidade periférica” (Soares 2021: 53) assume em
Eduardo Lourenço a condição necessária para Portugal se declarar parte ativa
da identidade europeia e, concomitantemente, asseverar que a condição do ser
português passa pela necessidade de trespassar fronteiras.
Ser português é assumir a necessidade categórica de se projetar fora do es-
paço geográfico, delimitado pelas linhas da fronteira. É nascer em Portugal para
morrer no mundo ao estilo da oratória do Padre António Vieira.
Fazer Europa desde a periferia, passa por assumir a dimensão geográfica
do país, de Portugal no seu todo. “Pensar o nosso destino e estabelecer um
processo dialógico entre o passado e o presente de forma a construir o futuro. É
interrogar-se para tomar consciência de qualquer coisa que ao mesmo tempo vai
de si, para si e contra si”. (Soares 2021: 54).
A vivência assente na “pulsão filosófica da pessoa, interrogar-se,” (Piedade
2015: 20), apresenta-se como a única via de vertebrar o sentimento de pertença
identitária a um espaço histórico, territorialmente definido, culturalmente sem
fissuras, capaz de nos reconciliar enquanto espaço identitário com o sentimento
de portugalidade e, assim, estabelecer um diálogo, não de oposição, face ao
outro, mas sim em comunhão, numa perspetiva interpessoal.
Abandonada a “subalternidade pensante” (Lourenço 2011: 392), Eduardo
Lourenço reivindica um papel ativo de Portugal como ator propulsor e referente
de um espaço cultural comum. Não nos falta Europa. Cumpre assumir a nossa
identidade, marcada e orgulhosamente portuguesa, no espaço europeu.
MANUAL DE UM HETERODOXO À LA RECHERCHE DE SON IDENTITÉ
197
Filipa Soares

Quisemos ser europeus, esquecendo, muitas vezes, que somos parte da es-
trutura vertebral da Europa. Assumimos que a europeização portuguesa só era
possível, despojando-nos de todos aqueles elementos que nos definem enquan-
to portugueses.
Habitámos com anterioridade a «teia imprevista do destino» (Lourenço 2013:
9) da Europa e perdemos ou, quiçá, ocultámos, num registo permanente de au
tocomplacência constrangida, as referências fundacionais da nossa identidade,
olvidámos “que esse modo intrinsecamente nosso de entender a vida é […] só
uma [mais] maneira cultural de ser europeus” (Soares 2021: 55).
À semelhança de Garrett, Alexandre Herculano ou da própria Geração de 70,
Eduardo Lourenço situou Portugal no cerne da cultura europeia, instituindo um
diálogo paritário e em igualdade de condições, ausente da subalternidade, por
nós e por terceiros, instaurada.
Hoje, numa Europa em crise, refém de si própria, despojada dos seus refe-
rentes fundacionais, urge reivindicar o pensamento de Eduardo Lourenço.
Assumir a diversidade cultural e civilizacional europeia é a única forma de
combater o sentimento de resignação e de espaço à deriva num mundo global.
A Europa é, hoje, uma "nostalgia de si mesma, e museu para sonhos exóticos
do mundo inteiro que há muito deixou de sonhar como fabricadora de um futuro
virtualmente universal" (Lourenço 2013: 10).
Compreender que a essência identitária europeia passa por se assumir, sem
preconceitos, nem complexos, na existência de duas (ou mais) realidades euro-
peias diferenciadas, é a única via provável para sairmos do impasse em que nos
encontramos.

REFERÊNCIAS
Lourenço E. (2001a). Europa y Nosotros. 1a ed.; Madrid: Huerga y Fierro editores.
Lourenço E. (2001b). A Europa Desencantada. 4a ed, Lisboa: Gradiva.
Lourenço E. (2011). Heterodoxias, Obras Completas, vol. I. Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian.
Lourenço E. (2013). "A Europa em Risco de Morte", Finisterra — Revista de Reflexão
e Crítica, pp. 78-79: 9-10
Martins Guilherme d’Oliveira (s.d.). "A Europa ou a Caixa de Pandora", Finisterra —
Revista de Reflexão Crítica, pp. 78-79: 11-18.
Piedade A. N. (2015). Em diálogo com Eduardo Lourenço. 2ªed., Lisboa: Gradiva.
Soares F. (2021). “Ao redor de Nós e a Europa ou as Duas Razões – Reflexões sobre
a construção de um imaginário identitário”. A raia na água. Eduardo Lourenço
e o mundo hispânico (Coord. Antonio Sáez Delgado e João Tiago Lima). Editora
Documenta; pp. 53-57.
RURAL MOVE ― ATRAIR PESSOAS, DINAMIZAR COMUNIDADES
199
João Almeida
ALGUMAS LEITURAS
DA EUROPA EM
eduardo lourenço

Comunicações proferidas no âmbito da Mesa-Redonda


“Algumas leituras da Europa em Eduardo Lourenço” (CEI - Guarda, 19/06/2023)
EDUARDO LOURENÇO – “NÓS E A
EUROPA” OU AS METAMORFOSES DE
UM DIÁLOGO

JORGE COSTA LOPES*

Dir-se-á que Portugal é um país ‘pequeno’, um país que cientemente se esconde


na sua própria pequenez, quer acrescentando tocantes torres (a da Serra da Estrela)
às suas caseiras e fracas alturas, quer hipertrofiando em projecções épico-hiperbóli-
cas as suas forças e aventuras, sempre excessivas para o seu poder real.
(Eduardo Lourenço 2023: 382)

I.
Iremos elaborar uma breve leitura de alguns ensaios de Eduardo Lourenço
sobre “nós e a Europa”, com especial incidência em dois que consideramos
marcantes na sua bibliografia e pensamento sobre o diálogo ou não-diálogo de
Portugal e, em parte, da Espanha, com a outra Europa ou Europa além-Pirenéus.
Estes ensaios são: “Europa ou o diálogo que nos falta”, inserto no seu livro de
estreia Heterodoxia I (1949), e “Nós e a Europa ou as duas razões”, incluído no
livro com o título homónimo (1988). De facto, apesar de o segundo rematar, de
certo modo, as “expressas reservas metodológicas” (1987: 215) ao primeiro que
o autor já havia apresentado, como veremos, noutros textos, a verdade é que na-
quele ensaio inaugural era, porém, como salientou, incontornável o “sentimento
de uma inegável fraqueza cultural” (ib.) das “nossas coisas” (José Régio) e de
um “‘colonialismo cultural’” (1987: 215) perante o que se criava e importava da
Europa não-Ibérica, nomeadamente da França, metamorfoseada em obsessivo
modelo da nossa cultura.
Por isso, sem surpresa, Eduardo Lourenço assinala, num texto publicado em
1991, “Portugal e a Europa: a nova mitologia cultural”:
Há cem anos, talvez mesmo há vinte, a Europa era para a consciência cultural por-
tuguesa uma referência modelo não apenas pelo seu nível de vida, o seu bem-estar,
a sua maior organização, o funcionamento das suas instituições, mas também pela

*
ILCML . Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa.
204 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

sua cultura: a superioridade das suas escolas, as performances das suas invenções,
os sucessos da sua tecnologia – refiro-me naturalmente à Europa-Europa, à Europa
tecnológica mais avançada e socialmente mais organizada – não oferecia dúvidas. O
domínio das criações artísticas ou literárias, sendo de ordem mais subjectiva, podia
suscitar controvérsia mas o dinamismo das culturas francesa, inglesa, alemã, italiana
as suas grandes tradições, a influência dos seus autores junto de outras áreas, a
irradiação das suas revistas, dos seus programas televisivos, também tornavam essa
Europa num lugar de privilégio e de fascínio. (1991: 12)

Ora, entre o período temporal, aqui mencionado por Eduardo Lourenço, em


que a outra Europa se mantém como padrão para a cultura portuguesa, gosta-
ríamos de sublinhar o ano de 1949, ou seja, aquele em que publica o referido
“Europa ou o diálogo que nos falta”, ensaio em que diagnostica o nosso dis-
tanciamento do “espírito da Europa” (1987: 7). De qualquer modo, para o jovem
ensaísta não eram as manifestações exteriores de desenvolvimento civilizacional
e tecnológico – como as que o último Eça ensaia na Paris de As Cidades e as
Serras e o próprio Lourenço sinalizará, no atrás citado ensaio de 1991 – que nos
distanciavam realmente da Europa, mas sim o que “se designa como ‘manifesta-
ções superiores’ da cultura” (ib.).
“Europa ou o diálogo que nos falta” dá, aliás, plena continuidade e reforça
o espírito da heterodoxia apresentado no prólogo do livro de estreia louren-
ciano. Naquele que será o seu primeiro ensaio em que pensa o relacionamen-
to de Portugal com a outra Europa, facilmente detetamos, como referiu, mais
tarde, ecos de Verney, Antero e António Sérgio. E, como afirmou no “segundo
prólogo sobre o espírito de heterodoxia” de 1967, o ensaísmo filosófico de He-
terodoxia I traduzia uma “palavra militante, um acto, e os actos, implicam-nos
e manietam-nos de uma forma bem diversa do que um simples ‘livro’ entre
milhões de outros” (1987: 89). Apesar das referidas reservas metodológicas,
expressas posteriormente e corroboradas por alguns dos seus principais estu-
diosos, apesar da pátina do tempo que cobre já uma parte das suas páginas,
continuamos, porém, a admirar a escrita desenvolta e o controverso tom de
manifesto que, no nosso entender, dificilmente iremos voltar a encontrar, com
esta intensidade, no ensaísmo lourenciano. A irreverência e ousadia do jovem
autor marcam, desde logo, os dois parágrafos que abrem “Europa ou o diálo-
go que nos falta”:
O mundo da cultura portuguesa arrasta há quatro séculos uma existência crepuscular.
Passando à margem dos três decisivos acontecimentos espirituais da idade moderna
– a cisão religiosa das reformas, a criação da físico-matemática e a filosofia cartesia-
na – a nossa cultura dos séculos XV e XVI perdeu o que tinha de vivo e prometedor,
para conservar apenas o comentarismo ruminante e estéril, do qual aliás jamais se
libertara completamente, mesmo nas suas horas mais felizes. (1987: 7)
EDUARDO LOURENÇO – “NÓS E A EUROPA” OU AS METAMORFOSES DE UM DIÁLOGO
205
Jorge Costa Lopes

Abertura que ecoa, afinal, o incipit de Causas da Decadência dos Povos Pe-
ninsulares nos Últimos Três Séculos de Antero de Quental:
A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais
incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa deca-
dência, seguindo-se quase sem transição um período de força gloriosa e de rica
originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história
aparece aos olhos do historiador filósofo. (Quental 2008: 35)

Note-se que, para Eduardo Lourenço não são, como para Antero de Quental,
os “povos peninsulares” que vêm arrastando uma “existência crepuscular” nos
últimos séculos, mas sim a ilha ou a nave-nação em que se transmuda Portugal.
Na realidade, exclui a cultura espanhola desse crepúsculo, citando, para o efeito,
Unamuno que, em oposição a Ortega y Gasset, não imiscui ou coloca em diálogo
a hispanidade com a outra Europa. Segundo o autor de Heterodoxia I, o país
vizinho possui, nesses séculos da decadência portuguesa, uma galeria universal
de grandes criadores, pelo que qualquer adolescente espanhol pode “ascender
através da sua meditação e aprofundamento até às raízes mesmas da cultura
do ocidente e travar com eles o diálogo necessário à progressão do espírito”
(1987: 10). Eduardo Lourenço contrariava, assim, a visão de Ortega y Gasset, em
España Invertebrada – Bosquejo de Algunos Pensamientos Históricos (1921), que
considerava a história espanhola, de 1580 até 1900, como uma história de deca-
dência e desintegração, relevando as várias fases da desintegração do império
espanhol, sendo o referido ano de 1900 aquele em que “el cuerpo español ha
vuelto a su nativa desnudez peninsular” (Gasset 1966: 67).
Em “Europa ou o diálogo que nos falta”, o jovem ensaísta propugna, igual-
mente com laivos polémicos, por uma cultura de raiz aristocrática, logo sem ce-
dências ao gosto popular. Daqui parte para a crítica desassombrada aos intelec-
tuais que adulavam as massas e, em concreto, à geração neorrealista dos seus
companheiros de Coimbra que, contrariamente aos esforços levados a cabo
pela Seara Nova e pela Presença, renunciava ao diálogo com o espírito euro-
peu, direcionando-o antes para o realismo social norte-americano e brasileiro.
Ora, apesar de cultivar essencialmente o romance, onde melhor se realizou a
geração neorrealista foi, porém, para Eduardo Lourenço, na poesia, porque mais
comprometida com a “violência individualista interior” (1987: 17) e menos com
as questões sociais. O estudo que publica em 1968, Sentido e Forma da Poesia
Neo-realista, disso nos dará, na nossa opinião, melhor testemunho.
Uma parte das reflexões de “Prólogo sobre o espírito da heterodoxia” e
“Europa ou o diálogo que nos falta” serão, como salientámos, reformuladas
ou mesmo contestadas pelo autor em ensaios posteriores, não ao jeito da pa-
linódia, mas interrogando-se e buscando novos caminhos para o seu ensaísmo
e para as suas reflexões sobre “nós e a Europa”. Para Maria Manuel Baptista,
206 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

as principais conceções de “Europa ou o diálogo que nos falta” que “irão ser
objecto de análise e elaboração, no seu todo ou em parte, pelo próprio Eduar-
do Lourenço” (Baptista 2003: 36), são o “humanismo ocidental” (ib.), “um certo
etnocentrismo” (ib.), “bem como a concepção elitista e neoplatónica da cultura”
(id.: 37). Sobre este ensaio inicial, o autor considerará, pelo seu lado, que nele
fez repercutir alguns “tópicos sergistas” (2004: 147) que contrariavam o discurso
nacionalista dos ideólogos e historiógrafos do Estado Novo. Facto que, acres-
centamos nós, associado à contestação das ortodoxias marxista e católica e ao
apelo à liberdade para que se concretizasse o nosso diálogo com o espírito eu-
ropeu, transformavam Heterodoxia I num sério candidato ao grande silêncio das
atapetadas censuras ortodoxas, o que virá a suceder durante anos. Na verdade,
excetuando Vitorino Nemésio, supomos que mais ninguém debateu criticamente
Heterodoxia I, no período que se seguiu à sua publicação. Nem sequer o lápis
azul se terá dado, por certo, ao trabalho de ler este livro com um título esdrúxulo,
mas que ousadamente não transigia na defesa da liberdade para que se ultrapas-
sasse a barreira da ausência de diálogo com a Europa mais desenvolvida e livre.

II.
Editado na revista Unicórnio de maio de 1951, “Ideia de uma historiografia
existencial do pensamento português” será o primeiro dos ensaios em que Eduar-
do Lourenço reformula, então, algumas das reflexões enunciadas em “Europa ou
o diálogo que nos falta”. Para o efeito, traça o diagnóstico da “descontinuidade
da nossa evolução espiritual” (2011: 147), a qual, inversamente ao “pensamento
francês, alemão ou inglês” (ib.), remete para o facto de os nossos pensadores
descontínuos não terem verdadeiros precursores nacionais. Ora, para a cultura
nacional tornava-se premente encontrar uma unidade que a fundamentasse e
que não estivesse intrinsecamente relacionada com um valor, mas com o ser des-
sa cultura, afastando, assim, de igual modo, a ideia de universalidade como “fun-
damento dos juízos sobre a cultura europeia em geral e sobre a nossa em particu-
lar” (id.: 152). E encerrava este ensaio destrinçando o tempo histórico português
do europeu, esse tempo em que viveram os nossos pensadores descontínuos
imiscuídos na “historiografia existencial” do título deste trabalho, historiografia
que pressupõe igualmente uma “psicanálise existencial” (id.: 154), onde a “cada
momento somos tão reais no que afirmamos como no que deixamos no silêncio”
(id.: 155). Mais tarde, observará que fomos, afinal, um povo feliz durante os sécu-
los XVII e XVIII, porque alheio às convulsões e inquietações do conhecimento e da
ciência que se desenrolavam na Europa transpirenaica desse período.
Num texto de 1957, “Cultura e realidade nacional ou uma querela sem sen-
tido”, Eduardo Lourenço volta, de algum modo, a reformular o exposto no seu
ensaio inaugural sobre a Europa, nomeadamente ao expor a ideia de valorização
EDUARDO LOURENÇO – “NÓS E A EUROPA” OU AS METAMORFOSES DE UM DIÁLOGO
207
Jorge Costa Lopes

e excelência de uma realidade cultural europeia perante a descontinuidade do


nosso pensamento e cultura. Refutando, uma vez mais, a suposta universalida-
de da cultura europeia transpirenaica e a consequente não universalidade ou
particularidade provincial das “nossas coisas”, entende que não podemos cair
num extremismo inverso, ou seja, numa hiperbólica apologia e beatificação de
um “’portuguesismo’ ou ‘aportuguesamento’ da realidade e da cultura nacio-
nal” (1984: 22) como pretendiam os nossos pensadores nacionalistas. Estamos,
afinal, na Europa e somos Europa, sendo a língua a essência e o ser da nossa
autonomia ou, em termos heideggerianos, a casa do Ser da nossa cultura:
[Na língua] estão inscritas todas as aventuras espirituais e concretas, corpo da nossa
histórica realidade. Ela é mediadora original entre a realidade nacional e os indiví-
duos. Corpo de um viver terrestre particular, forma de uma viagem humana singular
ela é em si mesma autenticidade e não aproximação ou reflexo de uma fantástica e
abstracta autenticidade universal, imaginada sob o mito da Cultura. Nela vivemos e
moramos. (1984: 23)

Daí o sem sentido da querela do título deste ensaio, protagonizada entre os


que, como o jovem Eduardo Lourenço de Heterodoxia I, testemunhavam, em
moldes controversos, a nossa decadência e subsequente ausência de diálogo
com a Europa e aqueles que reivindicavam a nossa “excelência nacional em ma-
téria de cultura” (1957:19), ou seja, se nós não podemos estar fora da mítica
Europa de Verney, Antero e António Sérgio, também não podemos criar, ainda
segundo o autor de Ocasionais I, um “mítico ‘ser português’” (id.: 22) que nos
coloque fora de nós mesmos como, de certa forma, pretendiam, entre outros,
José Régio, José Marinho e António Quadros.

III.
Em “Nós e a Europa ou as duas razões”, ensaio de 1988 inserto no livro de
título homónimo, editado nesse mesmo ano, Eduardo Lourenço regressa às suas
reflexões sobre o diálogo ou não-diálogo de Portugal e da Espanha com a Europa
não-ibérica. Espécie de remate do texto publicado em 1949, diremos, contudo,
que estas duas Europas estão, neste final de século, num tempo outro que inver-
teu praticamente o relacionamento entre a Europa Ibérica, outrora marginal, e a
não-Ibérica, outrora centro do mundo desenvolvido. De qualquer modo:
esta nova figura da cultura ibérica, nas suas manifestações mais gritantes – em parti-
cular as que ocupam o espaço televisivo – não depende tanto de qualquer alteração
substancial da nossa maneira de ‘ser europeus’, ou das formas de não-diálogo que
tem caracterizado a nossa relação com a Europa do que do contacto ou da imersão
num mais vasto oceano cujo epicentro já não é a Europa, mas o que pode chamar-se
a cultura ‘americano-ocidental’. (1994: 54)
208 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Ironia do destino, a relação de fascínio e ressentimento que a Península Ibé-


rica manteve, durante os últimos séculos, com a outra Europa atenua-se, assim,
substancialmente, com a perda do lugar central da própria cultura europeia des-
de, pelo menos, o pós-II Guerra Mundial.
De qualquer modo – e aqui é que reside, em nosso entender, o núcleo deste
ensaio –, o século XVII, assinalado pelo ensaísta, em 1949, como o do início da
decadência de Portugal e, por Antero de Quental, dos povos peninsulares, é um
período em que a Espanha dialogou, sem complexos, nem reservas, com a Europa
transpirenaica. Por isso, em “Revisitação da mitologia anteriana”, prefácio a Cau-
sas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, Eduardo
Lourenço sublinhará que o lado mais frágil da conferência de Antero – e, acres-
centamos nós, do seu ensaio “Europa ou o diálogo que nos falta” – será o de ter
colocado o esplendor barroco do século XVII peninsular na sombra da decadência:
“Para o século de Velásquez ou de Calderon (ou de Vieira) (…) e de uma maneira
geral para toda a época barroca o labéu de decadente parecerá ignorância ou fa-
natismo indesculpáveis. Já não os apreciar não é obrigatório nem norma” (2008:
18). Outra fragilidade de Antero no seu ensaio foi o ter confundido o desempenho
científico e industrial da Europa não-ibérica e transferir esse desempenho para o
plano cultural. Afinal, só do século XVIII em diante é que os povos peninsulares
começam verdadeiramente a ser observados como outros e à margem da Europa
da alta cultura, resultado do complexo de inferioridade provocado pela visão da
imagem da Península Ibérica ao espelho da Europa transpirenaica. Ora, para a
Espanha de Gracián, falar em decadência tornava-se, tão-somente, num processo
de consciencialização dessa mesma decadência apreendida como desengaño da
vida. Quanto às “duas razões”, dizem respeito precisamente ao confronto entre
a “razão” cartesiana e a “razão” barroca de Gracián. Assim, do século XVIII em
diante, um fascínio ressentido toma conta dos povos peninsulares, dando lugar
ao “contencioso cultural” (1994: 53) mantido até há pouco tempo, contencioso
que teve sempre a França como nação-farol, cujo potente feixe de luz iluminou
a maioria das criações dos nossos principais escritores e pensadores. Mas, no
momento em que este “europeísta convicto” escreve o citado ensaio, “tudo se
passa como se o secular e tenaz contencioso histórico-cultural entre a Península
e uma certa Europa tenha encontrado já uma solução” (ib.).
“Nós e a Europa ou as duas razões”, em particular, e o livro com o mesmo
título, em geral, dizem-nos que Portugal recuperou, ao fim destes séculos, o seu
estatuto europeu. Deste modo, a partir do 25 de Abril e, sobretudo, da entrada
de Portugal na então Comunidade Económica Europeia, a realidade é bem outra,
pelo que começa visivelmente a cicatrizar a “chaga do lado” e a dissipar-se o
contencioso cultural do nosso país – aqui se incluindo a vizinha Espanha – com
a Europa transpirenaica, enquanto paradigma de universalidade face à nossa
particular inferioridade. O mesmo sucede com a razão cartesiana e a barroca:
EDUARDO LOURENÇO – “NÓS E A EUROPA” OU AS METAMORFOSES DE UM DIÁLOGO
209
Jorge Costa Lopes

Qualquer que tenha sido o lugar privilegiado da sua eclosão ou predomínio, as ‘duas
razões’ disseminaram-se no vasto espaço europeu – e fora dele –, conheceram
metamorfoses imprevisíveis a ponto de fazer esquecer aquela quase metafísica,
o seu papel, na sua autodefinição da própria Europa como realidade cultural dife-
rente da do resto do mundo. Mas é bom que nós, Portugueses e Espanhóis, que
estivemos séculos dentro e fora do espaço onde se jogava ou se cria jogar a própria
ideia de universalidade, como se a ela se devesse sacrificar a da particularidade,
nos lembremos do que foi vivido pelos espíritos mais brilhantes das nossas culturas
como uma espécie de travessia do deserto. A nossa ‘nova identidade’ dentro da
Europa não pode prescindir dessa experiência. Faz parte da nossa memória e nós
dela. (1994: 65)

O mesmo é afirmar, em conclusão, que não podemos apagar os míticos e dra-


máticos depoimentos, sobre a decadência e o crepúsculo culturais de Portugal,
de Verney, Antero, António Sérgio e do próprio Eduardo Lourenço de “Europa ou
o diálogo que nos falta”.

REFERÊNCIAS
Baptista M. M. (2003). A Paixão de Compreender. Porto: Edições Asa.
Gasset O. y (1967). Obras Completas – Tomo III (1917-1928), 6.ª ed. Madrid: Revista
do Ocidente.
Lourenço E. (1984). Ocasionais I. Lisboa: A Regra do Jogo.
Lourenço E. (1987). Heterodoxia I & II. Lisboa: Assírio & Alvim.
Lourenço E. (1991). “Portugal e a Europa: a nova mitologia cultural”, in Jornal de
Letras, Artes e Ideias, n.º 479, 10.09.1991: 12-13.
Lourenço E. (1994). Nós e a Europa ou as Duas Razões, 4.ªed. aumentada, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
Lourenço E. (2004). Destroços – O Gibão de Mestre Gil e Outros Destroços. Lisboa:
Gradiva.
Lourenço E. (2011). Heterodoxias, Obras Completas de Eduardo Lourenço I. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Lourenço E. (2008). “Revisitação da mitologia anteriana”, in Quental A. de, Causas
da Decadência dos Povos Peninsulares nos Três Últimos Séculos, Lisboa, Tinta
da China: 9-29.
Lourenço E. (2023). O Labirinto da Saudade e Outros Ensaios sobre a Cultura Portu-
guesa – Obras Completas de Eduardo Lourenço XIII. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
Quental A. de (2008). Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Três Últi-
mos Séculos. Lisboa: Tinta da China.
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA
DE EDUARDO LOURENÇO
― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO

DULCE MARTINHO*

Ainda antes de vos lermos a(s) epígrafe(s) escolhida(s) para encimar o texto desta
nossa comunicação, gostaríamos de iniciar a mesma (re)contando a pequena his-
tória real, com a devida vénia ao Professor Onésimo Teotónio de Almeida, através
de quem a conhecemos originalmente, de acordo com a qual, certa vez, convidado
para uma festa de Halloween de uma universidade americana, onde é tradição
ir-se fantasiado, Eduardo Lourenço se apresentou quotidianamente vestido e,
quando inquirido sobre a falta de indumentária adequada à ocasião, contestou
1
declarando-se mascarado de... “europeu” .

«(...) de algum modo, a Europa me dói. (...) a Europa é um objecto de reflexão


preocupada porque o que foi Europa, o que é Europa, o que pode ser a Europa traz
essa marca interna de uma interpelação constante, aquilo que nós somos como seres
humanos, aquilo que nós somos como projecto, aquilo que nós somos como destino.»
Eduardo Lourenço 1989

«Todos os povos e culturas são multiplicidade de “tempos”,


sendo estes que condicionam a relação com o futuro.»
Eduardo Lourenço 1997

Admitamos, antes de mais, que não conhecemos com suficiente profun-


didade a maior parte da obra pluriversa de Eduardo Lourenço que, como sa-
bemos, se espraia criativamente pelos diversos domínios da Vida, por tudo o
que, como nos lembrava amiúde, por ser da essência da condição humana, nos
inscreve na temporalidade, no Tempo (maiúsculado), a sua sempiterna grande
temática. Por isso, disperso na forma, é certo, mas não parcelar no fundo do
seu pensamento vigilante, a verdade é que, vindo, desde Coimbra, da filosofia

*
dulcemartinho@sapo.pt.
1
Cf. Onésimo Teotónio de Almeida, “A magia de uma personalidade”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias,
14 de maio de 2003, p.22.
212 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

e da história ― mas, nas suas próprias palavras, mudado «sem armas e sem ba-
2
gagens para a literatura » e José Gil apresenta-no-lo como «um filósofo animado
3
pela literatura» ―, (quase) nada do que é da montainiana “humana condição”
escapava à sua reflexão política, literária e estética, ou não fora ele o «filósofo
da cultura» tomado pela «paixão de compreender» como lapidarmente concluiu
Maria Manuel Batista (2003).
Assim, assumindo a valia do aforismo de Wittgenstein segundo o qual nos
devemos calar sobre aquilo de que não podemos falar, limitaremos a nosssa
intervenção à muito restrita temática da reflexão europeia de Eduardo Lourenço
que tem sido o objeto da nossa particular atenção. Em outros contextos, dedicá-
mo-nos a estudar a sua afetuosamente crítica leitura da centralidade da França
nos avanços e recuos de uma Europa que teima em não se fazer, pelo menos nos
termos utópicos em que o Professor a sonhava e a que se referia, por exemplo,
como «a utopia mesma do paradoxal objeto histórico-cultural que vivemos e a
4
que chamamos Europa», essa que, várias vezes à beira do abismo, por longos
perídos, meio adormecida, «tem um passado que é como as asas longas do al-
5
batroz de Baudelaire: impede-a de marchar».
Hoje, mantendo como ponto de mira palavras de Eduardo Lourenço, desloca-
mos o nosso olhar para outros lugares da/na geopolítica europeia.

Todos sabemos da longa vida do Professor Eduardo Lourenço e do seu per-


curso de décadas da Guarda a Vence, dentro e fora do país que amou e tanto
quis compreeender, numa errância geográfica também agora plasmada nos dife-
rentes momentos e lugares das comemorações deste centenário.
Ora Eduardo Lourenço faleceu em 1 de dezembro de 2020, assim regres-
sando a São Pedro de Rio Seco, o seu Paris-Texas. Já em 24 de fevereiro de
2022 ― data que agora todos malfadamente também conhecemos de cor ― as
tropas russas invadiram território ucraniano. Nada a unir estes dois aconteci-
mentos tristes, não fora uma pergunta que nos ficou irremediavelmente sem
6
resposta: o que diria/escreveria o eterno europeísta ― até ao desencanto! ―

2
Eduardo Lourenço, “As confissões de um místico sem fé”, in Prelo – Revista da Imprensa Nacional Casa da
Moeda, Lisboa , número especial, maio de 1984 (entrevista de Diogo Pires Aurélio), p.10. Trinta anos depois,
Eduardo Lourenço corrigirá tais palavras – que classifica como uma blague – afirmando: «Eu passei para a
literatura, não, eu passei para a fruição da literatura, que é diferente.(...) Ou para a tentativa de compreender
a literatura, de me interessar pelo mundo literário». Eduardo Lourenço, in Ana Nascimento Piedade, Em
Diálogo com Eduardo Lourenço, Lisboa, Gradiva, 2015, p.227.
3
José Gil, “O ensaísmo trágico”, in José Gil e Fernando Catroga, O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço,
Lisboa, Relógio D’Água, 1996, p.21.
4
Eduardo Lourenço (2000) “Da identidade europeia como labirinto”, in Eduardo Lourenço, A Europa
Desencantada: Para uma mitologia europeia, 2001, Lisboa: Gradiva, p.234.
5
Eduardo Lourenço, “A cultura não é a resposta, é a questão”, in Expresso - Primeiro caderno, 9 de janeiro
de 2016, p.3.
6
Uma prova de que Eduardo Lourenço é uma referência no/sobre o pensamento europeu será com certeza o
facto de o seu nome estar entre o das oitenta e cinco figuras escolhidas para formar o Dicionário das Grandes
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
213
Dulce Martinho

que aqui lembramos sobre o que se passa há mais de um ano no leste da


Europa?
Na verdade, acreditamos que, tal como pensou e escreveu durante quase
7
setenta anos , sobre o perfil e a intervenção de protagonistas da política do Oci-
dente – Clinton, Bush, Margaret Thatcher, De Gaulle, Chirac, Mitterrand (com
8
destaque) , Jospin, Ségolène Royal (e não espanta a predominância de políticos/
líderes franceses ), Gorbatchev ... –, Eduardo Lourenço não deixaria, por certo,
de se pronunciar agora sobre a ação das extraordinárias (no sentido etimológico
do termo) figuras de Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, este último, antes da
guerra, absoluto desconhecido fora do seu país e, agora, inesperado resistente
escolhido como personalidade do ano 2022 pela revista Time.
E se este «europeu à moda antiga», como se assumia Eduardo Lourenço, não
9
ignorou nunca os fundamentais lances da vida europeia/ocidental e, por isso,
sobre os diversos “dramas” europeus se pronunciou criticamente em conferên-
cias, artigos de jornal e entrevistas, crónicas e ensaios – muitos deles depois
coligidos nas antologias A Europa Desencantada: Para uma Mitologia Europeia
(1994) e Crónicas quase marcianas (1993-2007) de 2016, também, à sua análi-
se política de comentador e pensador crítico das grandes mutações do mundo,
não escaparam, por exemplo, a violência dos confrontos de 1999 no contexto da
ocupação indonésia de Timor-Leste; as duas intervenções militares americanas
no Iraque (1990/1991 e 2003); os dez anos da tragédia fratricida da ex-Jugoslávia
(1991-2001), o ataque terrorista às torres gémeas de Nova Iorque e a subsequen-
te invasão americana do Afeganistão (2001) e, recorrentemente, tanto a queda
do Muro de Berlim (1989) – que, sem a euforia de muitos de nós, (pre)viu «cair
para os dois lados» – como o que considerava em outubro de 2001 «a implosão,
10
ainda hoje misteriosa, da União Soviética» .

Figuras Europeias (2019), pontificando ao lado, por exemplo, de vultos dos séculos XIX e XX dedicados à
“ideia de Europa” como os “pais fundadores” da atual União Europeia ou “grandes Europeus“ da valia de
Kant, Victor Hugo, Nietzsche, Churchill, de Gaulle, Habermas, Jacques Delors, Simone Veil e os portugueses
Maria de Lourdes Pintasilgo e Mário Soares, só para citar alguns nomes maiores que todos conhecemos.
7
Basta lembrar como em 1949 Eduardo Lourenço reconhecia já na sua primeira obra ensaística Heterodoxia
I «o diálogo que nos falta(va)», a nós, Portugueses, com a Europa.
8
Vejam-se, por exemplo, as crónicas “Mitterrand ou as Duas Franças”, Visão, 11 de janeiro de 1996, p. 53 e
“Mitterrand: a palha e o grão da história”, Público, 9 de janeiro de 1996, p.6, ambas escritas aquando do
falecimento de F. Mitterrand ― «excecional jogador político», nas palavras de Eduardo Lourenço, e reconhecido
defensor de uma Europa federal ― sob o mote do «unanimismo emocional» que a morte do seu “tonton”
provocou entre os Franceses.
9
De que apenas serão exemplos acontecimentos como os Tratados de Maastrich (1992) e de Nice (2000-2003);
a chegada da “moeda única” (2002 ); o Tratado de Roma (2004) e a tentativa fracassada de uma Constituição
Europeia (2005) com o “não” da França e da Holanda; diferentes eleições para o Parlamento Europeu e,
naturalmente, bem antes, a adesão de Portugal à, então, Comunidade Económica Europeia (1985).
10
Eduardo Lourenço (2001), “PREFÁCIO: O Ocidente e a sua deriva final”, in Eduardo Lourenço, A morte de
Colombo: Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito, 2005, Lisboa: Gradiva, p.11.
214 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

De facto, na releitura que fizémos agora de textos (e são dezenas, sobretudo


entrevistas) em que o Professor nos dá conta do seu pensamento sobre a Rús-
sia e o seu lugar na Europa e no mundo, foi curioso verificar a frequência com
este assume a sua surpresa com o desmoronar do Bloco de Leste e como «pela
simples queda de um muro – é verdade que de uma natureza particular – todo
o contexto que durante quase meio século enquadrava a invenção de uma nova
11
forma de ser Europa se desestruturou, fragilizando o projeto europeu comunitá-
rio e reativando históricos reflexos nacionais e nacionalistas que pareciam arcai-
cos e mobilizando o nosso imaginário como a utopia europeia não foi capaz de
fazer. Em poucos meses, ao “mais Europa”, no plano real, substitui-se o “menos
12
Europa”, no plano simbólico» .
E, bem ao contrário de outros factos e momentos mais ou menos imprevistos
/imprevisíveis da “vida europeia” com ressonância mundial – veja-se o Brexit,
13
por exemplo –, Eduardo Lourenço admite mesmo que não imaginava sequer
possível a derrocada do Bloco Soviético. Tal fica claro já num texto publicado
num número da Revista Relâmpago - Revista de Poesia (2001) dedicado a Sophia
de Mello Breyner, onde o nosso ensaísta dá conta de uma sua visita à «pátria de
Tolstoi. Mas naquele tempo, hoje como que apagado do calendário ocidental,
14
sobretudo pátria da Revolução». Salientando que « (...) visitar a União Soviética,
naquela época, não era um ato neutro» – estávamos em 1978 – Eduardo Lou-
renço, um dos três escritores convidados pela União dos Escritores soviéticos,
acrescenta: « (...) hoje, depois de tudo o que se passou, relembro essa visita não
apenas com nostalgia mas como um momento precioso». E, perguntando-se:
«Quem podia imaginar então que aquele império que parecia tão sólido, se es-
boroaria, como um castelo de cartas, apenas onze anos mais tarde?», acaba a
confessar: «Eu não o pressenti, bem pelo contrário. (...) a sensação que nos dava
era que estávamos na moderna Roma, no centro do império do futuro. Nunca me
15
enganei tão estrondosamente».
Ainda no mesmo ano, numa curta entrevista que destacava em título o lamen-
to melancólico de Eduardo Lourenço de que «ninguém morre por esta Europa»
que não se consegue unir politicamente em torno do que deveriam ser as suas

11
Em itálico no original.
12
Eduardo Lourenço (1992), “A Europa no imaginário português”, in A Europa Desencantada: Para uma
mitologia europeia, 2001, pp. 114-115.
13
Eduardo Lourenço, que se refere com frequência à Inglaterra como, desde Churchill, uma espécie de cavalo
de Tróia dos Americanos na Europa, nunca a sentiu verdadeiramente na/com a Europa: «Se a Inglaterra tivesse
jogado o jogo europeu... Mas nunca jogou, nem o fará agora. Inventou um modo de dividir para reinar e
manteve-se ao largo. (...) E neste momento estamos já numa Europa sem Inglaterra.» Eduardo Lourenço, “A
Europa está a desaparecer do mapa”, in Visão, 22 de dezembro de 2011, pp.14-15.
14
A negrito no original.
15
Eduardo Lourenço (2001), in Maria Manuela Cruzeiro, Maria Manuel Baptista, Tempos de Eduardo Lourenço
– Fotobiografia, 2003, Lisboa, Campo das Letras, p.155.
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
215
Dulce Martinho

grandes causas, o nosso ensaísta confirmava a sua visão disfórica das conse-
quências destes acontecimentos surpreendentes:
«Quando o Muro de Berlim caiu – para mim o maior dos mistérios da história contem-
porânea –, pressenti que esse muro não caía só para um lado. O espaço soviético
modificava-se, mas a Europa ia sofrer efeitos que, nessa altura, ainda não sabia quais
eram. O mais visível é que a pulsão nacional das nações constituídas e consolidadas
não diminuiu e, facto novo, emergem fenómenos de regionalismo e de separatismo
16
que julgávamos arcaicos».

Certo é, porém, que o Muro caiu em novembro de 1989 e a União Sovéti-


ca desfez-se com estrondo em 1991. Ficou-nos o “gigante russo” que, para um
Eduardo Lourenço afirmativo, «(…) faz parte da Europa. Enquanto isso não for
reconhecido, é uma espécie de amputação, um vazio que ali está, mas que é
eficaz» e, depois de se ter referido à emergência da China, – palavras premoni-
tórias em 2011:
«Um dia, a Rússia também vai acordar, se não está já acordando. E o que vai fazer
de si mesma? A Europa ainda não sabe. Mas precisa dela para voltar a ter peso
(…) A Rússia hoje só se manifesta para se opor a gestos hegemónicos dos EUA.
Não deixa que a Síria seja absorvida ou que o Irão leve com uma bomba atómica.
Portanto, a nova Rússia existe e não reconhecer isso é uma espécie de sonolência
17
da Europa».

Alguns anos antes (2003), já perante a perspetiva de uma UE a 25 e ainda a


propósito do desmoronamento súbito da União Soviética e de como este fatal-
mente implicava uma reconfiguração de uma Europa capitalista e democrática
que agora estava sem adversário, continuando a achar com otimismo que « (...)
a Europa vai-se fazer, integrando, na medida do possível, as suas diversas tra-
dições; em parte, está feita», Eduardo Lourenço previa a inevitável e paulatina
afirmação da voz ativa da Rússia que, como «um dos maiores países do mundo
[,] vai querer restabelecer-se em função da sua história, da sua memória. Seria
estranhíssimo que não acontecesse assim». E ia mais longe sutentando que « (...)
parece insólito que a Europa se alargue aos antigos países do Leste de tutela
soviética como se a Rússia não existisse. A Rússia é Europa e essa Europa, a meu
ver, tem de ir até ao fim. Como é possível pensar-se que a Turquia entre primeiro
na União Europeia do que a própria Rússia, como é possível que a pátria de Tols-
18
tói e Dostoiévski fique fora da definição da Europa?».

16
Eduardo Lourenço, “Ninguém morre por esta Europa”, in Diário de Notícias, 17 de maio de 2001 (entrevista
de António Rodrigues), p.12. Na mesma entrevista Eduardo Lourenço autointitula-se «um europeu velhinho
e tão europeísta como eu...».
17
Eduardo Lourenço (2011), “A Europa está a desaparecer do mapa”, in Visão, 22 de dezembro de 2011, p.15.
18
Eduardo Lourenço, “Portugal ainda espera muito que as soluções caiam do céu”, in Diário de Notícias,
Lisboa, 29 de dezembro de 2003 (entrevista de Maria Augusta Silva), p.3. Nesta mesma entrevista, Eduardo
216 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Aqui chegados, duas notas de reflexão para, primeiro, dar conta de que, ao
explanar o seu pensamento sobre esta questão da Rússia e da sua “falta” na
Europa – tal como a sente – e até na União Europeia, Eduardo Lourenço quase
sempre o faz por comparação com a possibilidade de a Turquia vir a integrar a
19
UE , polémico processo de adesão (sobretudo em França) que, como sabemos,
está há décadas “em processo” (datando de 1959! o seu início, uma candidatura
oficial foi apresentada em 1987 à, então, Comunidade Económica Europeia). E
neste paralelo comparativo fica claro o posicionamento de Eduardo Lourenço
que defende sem rodeios:
«(...) É lamentável e dramático que a Europa pense que está completa sem a Rússia.
Discute-se o problema de saber se a Turquia, que foi o inimigo tradicional desta Eu-
ropa, deve entrar na nossa União – e até há razões pelas quais se possa admitir que
o deva fazer –, e ignora-se a Rússia, que faz parte da Europa desde que nasceu, ou
desde que se converteu à fé ortodoxa. (...) A Rússia é o maior parceiro que a Europa
tem, mas andamos a pedir batatinhas, para o gás, para isto e para aquilo. É espanto-
20
so haver esta cegueira».

Outro exemplo, este recolhido numa entrevista de 2004 em que Eduardo


Lourenço lamentava:
«Isso é que me custa. Que a Turquia entre, tudo bem. Mas que o faça antes da Rússia,
que é profundamente europeia, dói-me. (...) Como é que é possível entrar a Turquia
e não entrar a pátria de Tolstói, de Dostoiévski, de Tchekov. Isso custa muito, cus-
tar-nos-á muito... Além de que a Rússia é um dos três grandes espaços religiosos
da Europa – a ortodoxia. A todos os títulos, a Rússia devia fazer parte da Europa, e
quanto mais depressa melhor. Se a Turquia entrar antes da Rússia, como tudo indica,
será um absurdo, um erro que se vai pagar caro. Sem a Rússia, a Europa ficará muito
desequilibrada. E, se pensarmos no confronto global, a Europa face aos Estados Uni-
dos, então é absolutamente vital que a Rússia tenha a sua palavra a dizer neste novo
21
mapa que se está a criar depois do 11 de setembro».

Lourenço refere-se a Vladimir Putin nestes termos: «Putin é isso, uma navegação entre a tradição autocrá-
tica e autoritária e a inscrição no horizonte da democracia que passou a ser paradigma mínimo na vivência
política das sociedades modernas».
19
Que, depois de uma recusa liminar inicial, o Professsor foi progressivamente aceitando, com reservas,
por comparação com a Rússia: «Esta Europa que agora não vai para lado nenhum mas se derrama. Até à
Turquia?» Eduardo Lourenço, «Tempo de Luto», Visão, 9 de janeiro de 2003, p. 114. Sobre o asunto, poderá
ver-se ainda, por exemplo, “Eduardo Lourenço, ensaísta, a `O Diabo`, O Diabo, 11 de setembro de 2007, p.13,
onde se lê: «Se admitirmos que até será bom a entrada Turquia na Europa, a Rússia, que é europeia, fica às
portas da Europa? A Rússia, a pátria de Dostoievsky, a pátria de Tolstoi, a pátria da revolução soviética – uma
revolução do tipo europeu, que é Marx, é o Iluminismo, é a revolução francesa (...) – como é que esta Rússia
europeia, (...) nos limites da definição mais tradicional da Europa que vai até aos Urais, fica à porta?».
20
Eduardo Lourenço, “Retrato de um pensador errante”, in Público (Caderno de domingo - Pública), 13 de
maio de 2007 (entrevista de Luís Miguel Queirós), p.46.
21
Eduardo Lourenço, “Professor Eduardo Lourenço – Um Europeu contra as ‘duas’ Europas”, in HOMEM
Magazine, nº 182, XVI, maio de 2004 (entrevista de Fernando Correia de Oliveira), p.21. Na circunstância,
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
217
Dulce Martinho

22
Opinião que manteve e até reforçou, pois numa entrevista bem mais recen-
te (em 2015 e, portanto, já depois da invasão e anexação da Crimeia pela Rússia)
continuou a defender que a Europa não o é sem a Rússia, sustentando:
«E assistimos à crise da Ucrânia sem saber o que fazer. A Europa tem um problema,
desde que existe: não sabe lidar com o Outro, o não-europeu. Aconteceu no tempo
de Alexandre, e sobretudo quando surgiu outro fenómeno, que conquistou uma di-
mensão planetária: o islão. Vivemos séculos lado a lado, sem que os víssemos, ou
eles nos vissem a nós. O Império Turco foi, para a Europa, uma espécie de União So-
viética desde 1453. Agora toda essa massa emerge, fruto da descolonização, numa
espécie de sonambulismo histórico. Mas a Turquia europeizou-se e partes da Europa
islamizaram-se, ao ponto de ter surgido esta ideia de que a Turquia pode fazer parte
da coisa europeia. E como podemos imaginar a integração do islão, que representou
durante séculos a não-Europa, e não sabemos o que fazer com a Rússia? Como pode
a Turquia entrar na União Europeia e a pátria de Tolstói e Dostoiévski ficar de fora? A
23
Europa não é o nome, a Europa é a sua própria História».

Segunda nota de síntese para salientar que, destas recorrentes declarações


de Eduardo Lourenço sobre como, em seu entender, deveria o/a Velho Conti-
nente/UE lidar com esta Rússia renascida das cinzas do Império Soviético, nos
parece ausente a ideia de uma Europa geográfica “ à De Gaulle” – do Atlântico
aos Urais – e/ou una em torno de um projeto político tão autónomo quanto
24
possível da hiperpotência americana. Encontramos antes a lourenciana atual
Europa introuvable detentora de uma visão do mundo herdeira de uma civiliza-
ção dialogante e dialética; realidade (ou utopia?) cultural de tradição milenária – a
das catedrais, das universidades e da memória. E é em função dessa mitologia

Eduardo Lourenço refere-se, uma vez mais, à Turquia como, sem ser já a pátria do turco contra o qual se
apelava à cruzada, aquela que durante séculos foi «o inimigo institucional da Europa».
22
E em que não está certamente sozinho. Veja-se, por exemplo, o artigo de 2020 “A nova velha Guerra Fria
– ou como o Ocidente ‘perdeu’ a Rússia” em que o jornalista do Diário de Notícias, Carlos Santos Pereira,
especialista em assuntos da Europa de Leste, faz a história da imagem da Rússia/União Soviética e das
suas relações tensas no/com o Ocidente, para terminar defendendo nestes termos o “peso” da Rússia numa
Europa “cultural”: «O divórcio marginaliza profundamente a Rússia. Mas deixa também a Europa mais pobre,
e em vários domínios. De todas as dimensões em que se possa conceber a Europa, a identidade cultural
será decerto a mais fundadora. E, em rigor, será difícil conceber qualquer ideia de cultura sem o contributo
de Dostoievski, Diaguilev, Tchaikovski, Stravinski ou Tarkovski».
23
Eduardo Lourenço, “A infinita ilusão”, in LER, nº138, 2015 (entrevista de Paulo Moura), p.36.
24
Não importando aqui explanar em profundidade o pensamento de Eduardo Lourenço sobre as relações
geopolíticas e culturais entre o Velho Continente e os Estados Unidos de que se ocupou em inúmeros
ensaios (quase todos os de A Europa Desencantada:Para uma Mitologia Europeia e alguns de O Esplendor
do Caos) com constantes interpelações à Europa, que chegou a apelidar de Natolândia, deixamos apenas a
referência ao seu claro não “antiamericanismo primário”, rotundamente expresso, por exemplo, quando numa
entrevista em que se pronunciava, mais uma vez, sobre a mundialização da cultura americana, à pergunta
«Sente-se americano ou europeu?, respondeu sem rodeios: «Simplesmente europeu, por isso mesmo nada
antiamericano». Eduardo Lourenço,“Portugal ainda espera muito que as soluções caiam do céu”, Diário de
Notícias, Lisboa, 29 de dezembro de 2003, p.4 (entrevista de Maria Augusta Silva).
218 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

cultural europeia compartilhada que Eduardo Lourenço une umbilicalmente Eu-


ropa e Rússia, entre cujas literatura, música e cultura científicas acha que não
há nada de irredutivelmente estranho, expressando-o lapidarmente ao justificar
«(...) porque a Rússia pertence à Europa cultural e historicamente. É a pátria de
Tolstói, mesmo [considerando] que não é um modelo democrático propriamente
25
convincente».
Na verdade, e sendo certo que Eduardo Lourenço sempre reconheceu ser a
Europa um continente de paz com um passado bélico, sabemos como, mais do
que guerreiras, são literárias, arttísticas, religiosas... as suas referências euro-
peias. Assim, não espantará esta curiosidade de, sempre que nos quer dar conta
do que é a sua Europa da cultura, o fazer recorrendo à sua lista de «estrelas fixas
do céu cultural europeu», numa expressão feliz que atribui ao ensaísta francês
Charles Du Bos. E repare-se que, se nela não há muita variação – incluindo sem-
pre os grandes nomes das literaturas italiana, francesa, inglesa … – os maiores
escritores russos também nunca faltam, como podemos confirmar em três exem-
plos que escolhemos avulsamente, a saber: «A Europa não vai apenas do Atlânti-
co aos Urais, ela vai, sobretudo, das pátrias de Camões, de Cervantes, de Dante,
26
de Bède, ou de Shakespeare, às de Menkiewicz, Miloscz, Tolstoï ou Pasternak.» ;
«onde brilham (…) Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes, Rousseau, Goethe,
27
Dickens, Tolstoi; Proust, autores de universal irradiação e leitura.» e, por con-
traste com os heróis da “gesta americana” vendidos ao mundo através do cine-
ma de Hollywood: «Para nossa consolação, os nossos heróis reais são literatura,
criaturas sem morte possível, filhos de Shakespeare, de Cervantes, de Dickens,
de Flaubert, de Tolstoi ou Dostoievski, quando não ícones literários onde texto e
28
autor se confundem como Byron, Rimbaud, Kafka, Artaud ou Pessoa».
É que «da literatura para a vida é um salto quando uma vem da outra». Es-
crevia Eduardo Lourenço em carta a Miguel Torga em 27 de novembro de 1955 a
propósito das gentes retratadas pelo médico contista em Contos da Montanha.
Assim, e sendo a inversa também verdadeira, (re)ler os grandes romances russos
do século XIX (e porque não os de Nabokov e a poesia de Joseph Brodsky?) –
como ouvir a música festiva e cosmopolita de Tchaikovski – talvez nos permita
compreender – mesmo que não o aceitemos na sua inumana violência – que o
que se passa agora em redor do Mar Negro, como em 1941-1942 nas planícies
do sul da Ucrânia ou na incendiada Moscovo às botas das tropas napoleónicas
são, afinal, só algumas das cenas sangrentas mais recentes desta longa peça

25
Eduardo Lourenço, “Um europeu desencantado”, in P2 – Público, 19 de maio de 2013 (entrevista de Teresa
de Sousa), p.14.
26
Nossa tradução. Eduardo Lourenço (1987), “L’Europe et nous”, in Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, p.39.
27
Eduardo Lourenço, “Nós e a Europa: ressentimento e fascínio”, in Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p.25.
28
Eduardo Lourenço, “Nós como futuro” in A Nau de Ícaro, 1997, Lisboa, Gradiva, 2004, pp.65-66.
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
219
Dulce Martinho

trágica que tem sido a história da Europa. Dito de outro modo, uma vez mais, nas
palavras de um ensaísta, autor de obra crítica analítica, banhada por um discurso
poético único como é o de Eduardo Lourenço, mesmo quando simples e espon-
taneamente falava connosco: «O Bem não é exprimível, é sempre qualquer coisa
que falta, n ós somos sensíveis às coisas que constituem para nós uma ameaça,
um princípio de desordem a que, nas suas diversas formas, chamamos o Mal.
Tentamos defender-nos dele, mas ao mesmo tempo somos fascinados por ele, é
29
um pouco o sal da vida».
Vida que Eduardo Lourenço viveu longa e “distraidamente”, como nos dizia
repetidas vezes, com a sua doce ironia. Sobre a Europa, sem catastrofismos, mas
absolutamente consciente do seu sentido histórico, por mais “desarrumada” e
sem líderes de têmpera que ela se nos vá apresentando, concluiu: «O que nos
trouxe até aqui foi a tradição europeia, essa coisa fáustica, de dominar o mun-
do. E que nos afasta da casa onde nascemos e vivemos conformados com um
destino que não inventámos, mas que nos inventou a nós. Não sabemos em que
30
ponto estamos da História do Homem». Essa que, sempre insistiu o Professor,
31
«é um combate sem fim».
Já ele, o Professor Eduardo Lourenço como nosso “mestre de pensar”, estará
certamente nas palavras luminosas de outro sábio sereno como é José Tolentino
de Mendonça, quando este escreve: «Sábio é aquele que se senta na penumbra,
olhando com ponderada distância para as ilusões de transparência que a luz e a
32
existência acendem».
E, a quem tão generosamente aos 85 anos se sentia ainda «em dívida para
33
com a Humanidade inteira», só podemos terminar com um OBRIGADA, Professor.

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visão de Edições (coordenação de Isabel Baltazar e Alice Cunha), pp. 225-228.

29
Eduardo Lourenço, “Eduardo Lourenço”, in 25 Portugueses, Lisboa, Editorial Notícias, 27 de janeiro de 1999
(entrevista de Luís Osório), p.161.
30
Eduardo Lourenço, “Eduardo Lourenço ― A infinita ilusão”, in LER, nº138, 2015 (entrevista de Paulo Moura),
p.37.
31
Ibid. p.39.
32
José Tolentino Mendonça, Uma beleza que nos pertence, Lisboa, Quetzal Editores, 2019, p. 176
33
Eduardo Lourenço, “Estou em dívida para com a Humanidade inteira”, in LER, nº72, 2008 (entrevista de
Carlos Vaz Marques), p.38.
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DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
221
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sia-12902920.html)
Piedade A. N. (2015). Em Diálogo com Eduardo Lourenço. Lisboa: Gradiva

Nota: O texto acima corresponde, no essencial, à intervenção (não escrita) da sua autora na
mesa-redonda “Algumas leituras da Europa em Eduardo Lourenço”, realizada, em junho de
2023, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (Guarda) no âmbito das comemorações do
Centenário de Eduardo Lourenço.
eduardo
lourenço:
um tempo brasileiro
breve mas duradouro

Organização de OSVALDO MANUEL SILVESTRE


Coordenação de PEDRO SERRA
INTRODUÇÃO

OSVALDO MANUEL SILVESTRE*

DESCOBRIR O BRASIL A PARTIR DA BAHIA


Reúnem-se neste volume as intervenções que, nos dias 15 e 16 de junho de
2023, na Biblioteca Municipal da cidade da Guarda, exploraram o “fascínio e mi-
ragem” que o Brasil representou para Eduardo Lourenço. Sob o título “Eduardo
Lourenço: um tempo brasileiro breve, mas duradouro”, um grupo de especia-
listas convidados analisou e discutiu quer os textos que o ensaísta nos deixou
sobre matéria brasileira, quer o lugar da coisa brasileira na sua obra e no seu
trabalho intelectual. O colóquio integrou-se nas comemorações do centenário
de nascimento do ensaísta, sob a égide do Centro de Estudos Ibéricos e com a
colaboração de várias entidades, de entre as quais o Centro de Estudios Brasi-
leños, a Área de Filología Galega e Portuguesa (GIR EP&B/Colaboratorio Europeo
de Estudios Brasileños), ambos da Universidade de Salamanca, e o Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra.
O volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço dedicado ao Brasil,
com o título Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem (trabalho editorial de Maria de
Lourdes Soares, Fundação Calouste Gulbenkian, 2018), tem cerca de 700 pági-
nas. Um tal volume de escrita seria sempre justificação bastante para um coló-
quio como o que decorreu na Guarda. Mas o que surpreende é a constatação de
que toda essa reflexão sobre matéria brasileira parte de um conhecimento direto
de apenas um ano, em 1958-59, quando Lourenço foi docente de filosofia na
Universidade da Bahia, ainda que acrescentado por alguns outros períodos mais
ou menos breves (um semestre como professor visitante no Instituto de Estudos
da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, nos anos 80,
por exemplo). Daí o título proposto para este evento: um tempo brasileiro breve,
enquanto experiência direta, mas duradouro nos seus efeitos.

*
Osvaldo Manuel Silvestre é professor de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Cinema na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. É coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros e dirigiu no biénio de
2021-23 o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. É responsável científico pelo espólio de Carlos
de Oliveira no Museu do Neo-Realismo e prefaciou a reedição do romance Alcateia, em 2021. O seu último
livro publicado foi o volume, que coorganizou com Rita Patrício, Conferências do Cinquentenário da Teoria
da Literatura de Vítor Aguiar e Silva, Braga, UMinho Editora, 2020. Organizou, com Pedro Serra, o dossiê
temático do número 209 (2022) da Colóquio/Letras, com o título “A Voz na Literatura”.
228 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Dispomos de várias descrições do período de Eduardo Lourenço na Bahia,


todas elas saborosas, francas e corajosas, desde logo na admissão de choques
culturais, estranhamentos e resistências do próprio ensaísta a essa cultura outra
que é a do Brasil baiano. Permitam-me que recorde alguns desses momentos.
Para começar, a estranheza do professor que vê uma funcionária entrar a certa
altura na sala de aula com uma bandeja com uma xícara de café, que não bebe
por não beber café, para passado um bocado ver a funcionária regressar, desta
1
vez com um sumo de guaraná, que achará “uma coisa indescritível, deliciosa” ,
convencendo-nos intimamente de que esse guaraná bebido numa aula de fe-
nomenologia será para sempre a sua madeleine brasileira. Ou o momento em
que um jovem expansivo, frequentador ocasional das suas aulas, lhe exibe o
grosso volume de Grande Sertão: Veredas e proclama que se o professor quiser
conhecer o Brasil terá de ler a obra maior de João Guimarães Rosa. O jovem cha-
mava-se Glauber Rocha e esse será um dos grandes momentos de revelação do
Brasil durante a estadia de Lourenço e mesmo depois. Ou ainda esse momento
único e demasiado revelador em que num terreiro de candomblé, sentindo os
efeitos da percussão sobre o seu cartesianismo, o intelectual “horrorosamente
europeu” que é Lourenço recusa o transe e deixa o terreiro – espantado por ver
Jorge Amado entregar-se àquilo mesmo. E, claro, todos os episódios relativos
à Bahia daqueles anos, anos que coincidem com um dos períodos em que o
Brasil “vai dar certo”, o período de Juscelino Kubitschek, em que instituições são
criadas (universidades, por exemplo, como a de Assis, a cuja fundação assiste,
deslumbrado com as batas brancas dos professores, como se toda a universida-
de quisesse dar prova da sua entrega ao ofício e culto da ciência) e em que uma
vivência democrática se instala, como nos concertos de música do século XX
pelo maestro Koellreuther na reitoria da Universidade da Bahia, “com pessoas
de pé descalço na assistência que entravam e sentavam-se nas cadeiras... o mais
democraticamente do mundo” (TB: 563).
No Brasil, como não podia deixar de ser, Lourenço reencontra Portugal, des-
de logo nos portugueses aí emigrados ou exilados. Como Agostinho da Silva,
que lhe abre a porta da sua casa em Florianópolis “com uma enorme e negra
aranha dos trópicos na palma da mão esquerda, divertido com o meu assom-
bro e não pequeno temor” (TB: 219), deixando-lhe a impressão de estar perante
“um dos homens mais extra-ordinários que me foi dado conhecer” (id.). Mas é
também no Brasil, mais propriamente na casa de Martim Gonçalves, diretor da
Escola de Teatro da Bahia, que Lourenço descobre um quadro da pintora Vieira
da Silva, em tons de verde, que Martim Gonçalves lhe comprara durante a sua
estadia no Rio de Janeiro, quadro esse que o reconcilia com a pintura abstrata

1
Eduardo Lourenço, Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem. Ed. de Maria de Lourdes Soares, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2018, p. 560. A partir daqui a obra será referida pela abreviação do título seguida do
número de página.
INTRODUÇÃO
229
Osvaldo Manuel Silvestre

e lhe instila a paixão pela obra de Vieira da Silva, sobre a qual virá a escrever
textos fundamentais. Por fim, é também no Brasil que se relaciona com os exila-
dos anti-salazaristas, muitos deles, nas suas palavras, pessoas “mais arcaicas do
que o Salazar ... completamente desfasados em relação às coisas portuguesas”
(TB: 567), personagens vivendo entre sonho e ilusão (o que, na sua descrição,
inclui gente tão diversa e distinta como Jaime Cortesão ou Jorge de Sena). É, por
fim, e decisivamente, no Brasil que Eduardo Lourenço se confronta com a ques-
tão colonial, já que em 1958-59 as descolonizações se sucedem em catadupa,
anunciando o fim de uma era. Nas suas palavras, em entrevista a Rui Moreira
Leite, “Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este
tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que
não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem
se conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português” (TB: 558).
Uma série de textos incluídos no volume Tempo Brasileiro, alguns deles apenas
esboços, dão conta da contundência da sua escrita, que elegerá como alvo prin-
cipal Gilberto Freyre e os equívocos do seu pensamento sobre a estrutura racial
da colonização.
Um episódio vai permitir a Lourenço exprimir o seu pensamento sobre a ques-
tão, um ano após o seu regresso à Europa, em 1960, em artigo assinado com
pseudónimo no Portugal Livre, jornal da oposição antissalazarista no Brasil. O ar-
tigo, com o título “Brasil – Caução do Colonialismo Português”, tem como alvo a
visita do presidente Kubitscheck a Portugal, no âmbito das Comemorações Henri-
quinas, comemorações que sem essa presença teriam estrondosamente falhado.
O equívoco do presidente brasileiro é duramente denunciado, nos termos de uma
“caução do colonialismo” português, tanto mais que, nas suas palavras, “O Brasil
era a última das Nações a poder participar sem se renegar na sua essência, no in-
sultante e louco festival do colonialismo que são as Comemorações Henriquinas”
(TB: 343). Como se isto não fosse bastante, Lourenço vira-se contra o próprio jor-
nal em que publica o artigo, chamando a atenção para o facto de o Portugal Livre
se ter indignado com o gesto de Kubitscheck, lendo-o como apoio à ditadura de
Salazar, deixando passar a caução colonial explícita nesse mesmo gesto. A dureza
das palavras de Lourenço, que visam também a oposição a Salazar, ainda hoje
surpreende: “A maior miséria do colonialismo é que ele coloniza os colonizadores.
Nenhum povo foi vítima disso no grau em que o são os portugueses” (TB: 345).
Receio bem que estas palavras, que à data muito poucos intelectuais portugueses
subscreveriam, sejam, ainda hoje, mais atuais do que desejaríamos.
Descobrir Portugal no Brasil foi, pois, para Lourenço descobrir a estrutu-
ra do colonialismo, bem como, em reverso, aquilo a que viria a chamar “O
mito da comunidade luso-brasileira”, tema que longamente explorou, já que
nele se manifestaria, com cristalina evidência, a irrealidade da autoimagem
que, na sua leitura, definiria a identidade portuguesa. Uma identidade para a
230 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

qual o Brasil, enquanto ressentimento e delírio, ou miragem e fascínio, ofereceu


o alimento mais apetecido. Mas no Brasil Eduardo Lourenço descobriu também, e
sobretudo, a grande literatura que veio complementar as suas leituras brasileiras,
geracionalmente focadas no romance de 30, e lhe permitiu pensar um espaço
alargado e heterogéneo do idioma, à imagem daquele sertão que, na versão de
Guimarães Rosa, “está em toda a parte”. Numa passagem decisiva do grande
ensaio “Guimarães Rosa ou o terceiro sertão”, Lourenço recusa a leitura segundo
a qual, “falando-se e falando sertanejo”, Rosa cederia a “um continente folclóri-
co em vias de extinção” TB: 163). Para depois apresentar o projeto de Rosa em
termos que resumem tudo o que foi para Lourenço a lição da grande literatura
brasileira:
Guimarães Rosa desce ao porão do Brasil como língua, descobre-a, e não por aca-
so, naquelas Minas sem as quais o Brasil como veio a existir nunca se teria feito
nação. Nessa descida atravessa as camadas de falas, os tempos de uma língua que
se reinventa (ou que ele pode recriar sem fim) para contar histórias de um passado
aparentemente morto – e que é simplesmente a língua portuguesa, sem sujeito e
com todos os sujeitos, tal como um Cristo descendo ao nosso limbo-língua onde as
canções de amigo, Amadis, Fernão Lopes, Vieira ou todos os criadores do próprio
Brasil esperassem a sua vinda para começar uma estória que não vem na história
porque a transcende. (id.)

É nesse Brasil, cuja melhor metáfora seria o sertão, mas cujo espaço natural
é o da linguagem, que o tempo brasileiro de Eduardo Lourenço, celebrado neste
volume, não cessará tão cedo, como bem o demonstram os textos aqui reunidos.

OS TEXTOS DESTE VOLUME


No texto que abre o volume, “Eduardo Lourenço, a casa perdida e o Brasil:
uma outra semântica do tempo histórico”, Roberto Vecchi recorre ao seu exaus-
tivo conhecimento do arquipélago textual de Lourenço para distinguir um antes
e um depois do Brasil quer nos temas tratados, quer no modo de abordagem
deles. O Brasil surge assim como um divisor de águas no percurso do ensaísta,
entre a heterodoxia que define desde sempre o seu perfil espiritual e um impen-
sado, que vai emergindo da conexão entre o salazarismo, já seu bem conhecido,
e o colonialismo, de que toma então plena consciência e que será a partir daí o
pano de fundo da sua reflexão sobre a identidade nacional. Mas o Brasil será
também tema eleito a partir de então, quer na sua literatura (que, na proposta de
Vecchi, terá o dom de, nos seus casos maiores, como no dos Sertões, de Eucli-
des da Cunha, refinar e potenciar as capacidades de leitura de Lourenço), quer
na sua mitologia cultural e, mais ainda, na sua contribuição para aquilo a que
INTRODUÇÃO
231
Osvaldo Manuel Silvestre

chamou, num texto fundamental, “O Mito da Comunidade Luso-Brasileira”. Por


fim, o Brasil oferece à reflexão de Lourenço a revelação de uma outra semântica
do tempo histórico, na medida em que se coloca numa posição duplamente ana-
crónica em relação a Portugal, quer por representar, e ser, o passado esvaído do
império, quer por permitir entrever, na sua própria história, o destino pós-colonial
de Portugal que então se anunciava sobretudo em África.
No texto seguinte, com o título “A Rasura do Trágico como Operação Infinita”,
Eduardo Sterzi interroga demoradamente o ensaio de interpretação global que
Lourenço dedicou à literatura brasileira – “Da Literatura Brasileira como Rasu-
ra do Trágico” (1984) – no qual está em pauta, na sua leitura, “o descompasso
fundamental entre uma sociedade e sua história supostamente destinadas ao
trágico e a literatura que emerge dessa sociedade e dessa história para resistir
ao trágico”. Existe, contudo, algo que no trágico não se deixa rasurar e esse seria
o recalcado do texto de Lourenço, que encontra o seu nó cego na sua leitura
de Oswald de Andrade como exemplo puro de uma rasura do trágico de que,
em rigor, nenhum dos autores eleitos, de Machado de Assis a Clarice Lispector,
consegue ser um bom exemplo. Sterzi argumenta longa e demoradamente, no
sentido contrário, lendo Oswald como autor no qual a alegria tem como contra-
face um “sentimento da história como catástrofe”, que definiria de resto, na sua
estrutura profunda, o modernismo de 22. Na leitura de Sterzi, por fim, o Tropica-
lismo seria o momento no qual a “devoração universal” da antropofagia devém
o operador crítico da cultura brasileira, enquanto cultura na qual a plenitude do
mínimo coincide com o esplendor barroco do máximo, cultura em que, por isso
mesmo, o monumento nasce já como ruína e em que todos os momentos históri-
cos são resgatados, mesmo os esquecidos, fazendo das estórias “tragédias não
propriamente rasuradas mas em rasura”.
O texto de Luís Bueno, “Oropa, França Bahia: regionalismo e provincianismo
em Eduardo Lourenço”, começa por situar a perspetiva da crítica cultural de Lou-
renço, entre a “ousadia de ver o mundo a partir de uma experiência nacional, no
caso a de Portugal, uma experiência constitutiva da ‘Europa’ que o marginaliza”,
e a sua experiência latino-americana, como algo que o força a “questionar ideolo-
gicamente o próprio centralismo europeu”. É, pois, a partir dessa modalidade de
provincianismo, e de um conhecimento precoce da literatura brasileira, sobretudo
a de 30, que Lourenço se relaciona com o Brasil e a sua cultura, mesmo nos pon-
tos em que a estranheza radical desta lhe suscita uma rejeição assumidamente et-
nocêntrica, como no episódio do terreiro de candomblé bahiano narrado pelo pró-
prio em entrevista – episódio do qual emerge a figura fascinante de Jorge Amado,
cuja obra Lourenço não deixa de elogiar, mesmo onde ela parece ceder mais ao
encantamento do que à análise, mas cuja personagem, em trânsito entre o mun-
do da Razão e o mundo outro do transe, lhe suscita total perplexidade. Bueno
discute então a questão do regionalismo, que a seu ver no Brasil “gera grande
232 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

confusão e dá azo às mais diversas manifestações do pior provincianismo”. Para


esse efeito, contrasta a posição de Lourenço com a de Antonio Candido, autor
que manifesta uma grande dificuldade em predicar positivamente o regionalismo,
resgatando a obra de Guimarães Rosa em nome daquilo que descreve como o seu
“super-regionalismo”. Enquanto Candido, no fundo, qualifica o regionalismo como
provinciano em nome de uma perspetiva em rigor europeia, Lourenço, a partir
desse difícil lugar europeu que é o português, conseguiria resgatar as diversas
formas de viver, que são as de “Oropa, França Bahia”.
O texto de Talles Faria, “Luso, iluso, desilusão: o fio de Eduardo Lourenço no
‘labirinto do ressentimento’ luso-brasileiro”, aborda a áspera questão da relação
pós-colonial entre Portugal e Brasil, quer dentro do delírio que Lourenço temati-
zou como definidor da autoimagem portuguesa (um delírio ou fantasia que atri-
bui a Portugal um papel eternamente definidor da identidade brasileira, de que
derivaria uma ferida incicatrizável em resultado da perda do Brasil), quer dentro
da assimetria de uma relação que, do lado brasileiro, parece movida por uma
pulsão amnésica ante um legado, na aparência, sem legatário que o reivindique.
Partindo da tese de Darcy Ribeiro segundo a qual o brasileiro produziu uma ra-
sura na sua tríplice matriz fundadora, para pensar a sua identidade a partir dessa
“ninguendade”, Talles Faria analisa a história, razões e configuração atual do
“excesso de ressentimento” antilusitano presente na cultura brasileira. Mas, so-
bretudo, recenseia aqueles momentos em que Lourenço reconhece que na vasta
miscigenação sociocultural brasileira, o contributo português não pode ser já as-
sumido por essa população senão parcial e fragmentariamente. Resta, contudo,
o labirinto do mútuo ressentimento, do qual, nas próprias palavras de Lourenço,
“ninguém sai sem ajuda”, o que implica o reconhecimento pleno do outro. Nas
palavras de Talles Faria, tal implicaria usar o pensamento de Lourenço como um
fio condutor para fora do labirinto, um fio que “talvez a uma nova modernidade,
melhor e heterodoxa, neobarroca e morena, a qual ainda hoje não pôde existir
fora das mitologias e das ortodoxias de nós mesmos.”
Os restantes textos do volume optam por um estreitamento de foco, elegen-
do objetos que, por mais particulares, não pretendem ter a capacidade de inter-
rogar o sentido global da relação de Lourenço com o Brasil – perfazendo, porém,
um elenco de obras, literárias ou artísticas, que mobilizaram a atenção e energia
do ensaísta para a sua prática de leitura, a um tempo próxima e remota, como sa-
bemos. Annita Costa Malufe, em “O inumano em Clarice, segundo E. L.”, estuda o
papel desempenhado por Clarice Lispector na reflexão de Lourenço sobre a lite-
ratura brasileira, já que embora não chegando a dedicar-lhe um texto autónomo,
é um nome recorrente nos seus textos quando se refere a literatura brasileira do
século XX. Clarice é em Lourenço, de acordo com Annita, um emblema do que o
ensaísta buscou ao investigar os mistérios da literatura contemporânea, naquilo
que ela subverte do romantismo, afirmando uma “mística do avesso” enquanto
INTRODUÇÃO
233
Osvaldo Manuel Silvestre

possível saída para o impasse do humano em tempos de niilismo. Explorando a


forma como Fernando Pessoa revela em Lourenço todo o alcance da questão do
trágico – enquanto abismo entre a linguagem e a opacidade do real e enquanto
cisão e vazio “que, humanamente, não pode ser suplantado” – Annita descreve
a leitura de Clarice por Lourenço como transmutação da ausência radical de Pes-
soa num excesso de vida, imersão extática na imanência que se afasta da angús-
tia sem remédio de Pessoa. Ou seja, uma travessia do niilismo que se transmuta
em excesso e positividade.
O artigo de Pedro Serra, “O Barroco no Purgatório da Linguagem”, incide
sobre o uso da palavra ‘barroco’ em diferentes textos de Eduardo Lourenço vin-
culados ao ‘tempo brasileiro’. Assim, põe à prova as condições de possibilidade
de ler esses textos a contrapelo, descrevendo neles os traços de estesia movida
pela vivência lourenciana da Igreja de São Francisco da Bahia. O «equívoco»
que, décadas mais tarde, Eduardo Lourenço considera ser atributo da sua ‘con-
testatária’ fenomenologia do ‘barroco’, não rasura a positividade da intensidade
qualificada dessa vivência. Lourenço, pouco dado a «transes», submeteu o seu
pensamento sobre a arte, e sobre a escrita, a uma penúltima visão do barroco:
uma iluminação que ‘vem depois’, tardia como toda a iluminação.
Por fim, Osvaldo Manuel Silvestre, em “O ‘fulgor bárbaro’ de Deus e o Diabo
na Terra do Sol: Glauber Rocha por Eduardo Lourenço”, analisa os dois textos,
ambos com data de 1967, em que Eduardo Lourenço aborda Deus e o diabo na
terra do sol (1964), de Glauber Rocha, no contexto de uma reflexão que parte
da dimensão cinematográfica para visar o cultural e o mitológico. Na sua leitu-
ra, nem o filme de Glauber, nem a maioria dos filmes do Cinema Novo, foram
concebidos como “diversão ou mercadoria, mesmo aceitável, mas como atos
através dos quais jogam a sua definição e o destino da realidade tratada”. Esta
leitura implica uma rejeição do formalismo cinematográfico e, ao mesmo tempo,
atribui ao Cinema Novo uma posição de revisão crítica das mitologias de origem
literária, de Euclides da Cunha a Jorge Amado e a Guimarães Rosa, de cujo ar-
caísmo e “folclore” Glauber e seus camaradas se distanciariam. Na perspetiva
do autor do artigo, a posição de Lourenço, insistindo na sub-rogação do estético
em relação a uma reflexão identitária entendida como missão geracional, é difi-
cilmente compaginável com muito do que escreveu, desde logo sobre Pessoa, e
revela o impacto de Glauber Rocha no seu pensamento, em grau bem superior
ao expectável.

CONHECER O BRASIL, INVENTAR O BRASIL


Em texto publicado a 1 de dezembro de 2002 na Folha de São Paulo, a pro-
pósito do centenário de Os Sertões de Euclides da Cunha, com o título “Sobre
234 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Euclides”, Eduardo Lourenço afirma, logo a abrir: “Conheci tarde o livro de Eucli-
des. Por dever de ofício, primeiro, por paradoxal sedução, depois. Não creio que
tenha verdadeira leitura para quem não conheça o Brasil” (TB: 167). A afirmação,
que parece colocar-se do lado de uma longa tradição de empirismo literário e
cultural, é questionada na frase imediatamente seguinte: “Precisamente o Brasil
que Euclides inventa escrevendo-o por paixão de geógrafo e empenhamento
jornalístico e político” (id.). Não se trata em rigor de uma contradição, a que
reconhecemos entre a exigência de conhecer o Brasil como condição de possi-
bilidade para poder ler Os Sertões e a logo imediata afirmação de que o Brasil
dessa obra é inventado por Euclides, uma invenção produzida, de resto, entre
geografia e política, discursos à primeira vista mais do lado do conhecimento
que do da invenção. Nada disto é contraditório no pensamento de Lourenço e
contradição seria supor que conhecer empírica e positivamente o Brasil seria
para ele garantia do que quer que fosse em termos de um conhecimento pro-
fundo do mesmo Brasil. E, contudo, como vimos, Lourenço beneficiou desse co-
nhecimento, no período em que residiu na Bahia, um período marcado por uma
verdadeira revolução cultural na cidade, que depois alastraria para todo o Brasil,
quer por meio dos filmes de Glauber Rocha, quer por meio do Tropicalismo, que
teria numa plêiade de músicos baianos o seu fulcro, para não referir o teatro, a
arquitetura de Lina Bo Bardi, o design de Rogério Duarte ou a escrita de autores
como Waly Salomão ou Gramiro de Matos.
Nesse sentido, a leitura tardia de Os Sertões por Lourenço coaduna-se ple-
namente com um conhecimento do Brasil que, remontando à sua juventude, por
meio dos chamados romancistas de 30, viria a ser relançado pelo estímulo pro-
duzido por essa sua experiência baiana, tornando-se um projeto de toda a vida e
afetando toda a sua reflexão, da propriamente literária à identitária, nos diversos
planos em que ela se viria a desenrolar: antropológico, sociológico, histórico,
político, enfim, estético. Partindo sempre, porém, do pressuposto que percorre
toda a escrita de Lourenço: o de que só a literatura e a arte permitem conhecer
profundamente a realidade, na medida em que só elas a imaginam ou inventam
para lá da sua mera facticidade. Nas suas quase 700 páginas, o volume Tempo
Brasileiro: Fascínio e Miragem mostra bem como o seu conhecimento do Brasil
se foi aprofundando, à medida em que ia crescendo o seu conhecimento de toda
a reflexão produzida sobre esse país imenso, complexo, paradoxal e inesgotável
– mas também, e como o exemplo de Os Sertões demonstra, à medida em que
ia crescendo o seu conhecimento desse Brasil inventado na literatura e nas artes
e, por isso, infinitamente mais verdadeiro do que o mero Brasil histórico. Até
porque, como escreveu Carlos Drummond de Andrade em 1934, em palavras que
permanecem válidas para lá de qualquer contexto ou facticidade (e que a analíti-
ca de Lourenço permitiria transpor para Portugal), “Nosso Brasil é no outro mun-
do. Este não é o Brasil. / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”
PENSAR EN LA PROVINCIA CON EDUARDO
LOURENÇO EN SU CENTENARIO

PEDRO SERRA*

Um inverno, em que a aldeia estava feita corte com homens de tanto preço
que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior deles em casa
dum antigo morador daquele lugar, que também o fora em outra idade da
casa dos reis, d’onde, com a mudança e experiência dos anos, fez eleição
dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida, grande acerto
de quem colhe este fruto maduro entre desenganos. Ali, ora em conver-
sação aprazível, ora em moderado e quieto jogo, se passava o tempo, se
gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de
novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro.
Francisco Rodrigues Lobo

En nuestros días – eso a que llamamos ‘nuestra actualidad’, en sus manifes-


taciones visibles, pero también, en gran o mayor medida, en su incomprehensi-
bilidad –, la efeméride es el formato hegemónico de los intercambios prácticos y
simbólicos en el campo de las bellas letras y de las bellas artes, acaso resultado
de la presión del mercado y de los soportes digitales que van pautando las prác-
ticas culturales, también aquellas que emanan de un ámbito más específico como
es aquél que nos moviliza: la universidad. En rigor, y acaso mejor, un espacio como
el del Centro de Estudos Ibéricos, en el que concurren liberalmente la Universidad
de Coimbra, la Universidad de Salamanca, el Instituto Politécnico de Guarda y el
Ayuntamiento de Guarda. Consabidamente, el lugar imaginado por Eduardo Lou-
renço – cuyo centenario celebramos en el presente año de 2023 –, y consolidado
como espacio de colaboración interuniversitaria de más de 20 años de intensa
actividad. Espacio, a un tiempo, de frontera y transfronterizo, enclave que viene
haciendo sonar campanas y alarmas, siempre productivamente, hermanando las

*
Pedro Serra é Professor Catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Salamanca,
onde coordena a Cátedra de Estudos Portugueses IC/USAL e é responsável da Área de Filologia Galega
e Portuguesa. IP do GIR em Estudos Portugueses e Brasileiros – que integra o Colaboratório Europeu de
Estudos Brasileiros COLEEB –, é membro investigador do CLP (Coimbra), do grupo HELICOM (Autónoma de
Madrid) e do CRIMIC (Sorbonne). Dirige, no Departamento de Filologia Moderna, o mestrado em Estudos da
Ásia Oriental MELYCA.
236 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

provincias interiores colindantes de Portugal y España, abriéndolas y proyectán-


dolas al mundo: replicando, así, el perfil y la trayectoria de la figura ibérica que
lo inspira, Eduardo Lourenço.
Los tiempos del espacio universitario – tanto como lugar institucional, como
sitio y como situación – no tiene, acaso no debiera, ser ritmado por las determi-
naciones ni del mercado ni de la cultura, tanto en su modulación estatal como
privada. Se subraya este reparo o reserva en el contexto de la vexata questio
de la muy alardeada ‘autonomía universitaria’, reconocida, justamente recono-
cida, tanto de jure como, hasta cierto punto, de facto. Sin embargo, ‘autonomía’
significa atribuirse su propia ley de movimiento y finalidad, lo que también de-
biera concurrir en la administración sabia y prudente de un tiempo propio, nece-
sariamente discontinuo y descontinuado con relación a las temporalidades del
mercado y, lato sensu, del estado, de la ciudadanía y de la sociedad civil. Dicha
discontinuidad no es enajenación – suponerlo, en rigor, es una ingenuidad, y de-
fender que lo fuera un despropósito –, es tan sólo un principio, un a priori, cuya
necesidad deriva de la universidad – y esta sí es una convicción que en mí no
proviene de cualquier convencimiento – como lugar y situación movilizados por
actos intelectuales, movilizados por el pensamiento crítico. En facultades como
una Facultad de Filología – o de Letras –, cuya versión moderna y contemporá-
nea, como se sabe, ha venido desplegando, hasta hace poco, un modelo matri-
cial humboldtiano, tiene por misión específica pensar el lenguaje, en tanto que lo
haga críticamente de modo a colaborar en el conjunto del «arte científico» desar-
rollado en otras facultades que no tienen ese designio como mandato prioritario.
«Arte científico» es expresión de Fichte, protagonista junto con Schleiermacher
y Humboldt, en los debates que sustanciaron la fundación de la Universidad de
Berlín, en 1810, hoy Humboldt-Universität zu Berlin. Por ‘ciencia’ habremos de
entender diferentes, y diferenciados, dominios del conocimiento humano, tanto
los amparados por el sintagma ‘ciencias de la naturaleza’, como por las llamadas
‘ciencias del espíritu’. Institución de la investigación y de la enseñanza, aunque
en lo más reciente se le hayan agregado la gestión y la transferencia, no consa-
gradas por aquella matriz, sin que vayamos teniendo muy claro cuáles son sus
plusvalías objetivas para la partilla y la producción de pensamiento crítico. Acaso
un enclave como el Centro de Estudos Ibéricos, bajo los auspicios de la obra de
su patrono mayor, en tanto espacio interuniversitario, sea el idóneo para seguir
cumpliendo el desiderata de los studia humanitatis, proporcionando las condi-
ciones y los medios de producir pensamiento crítico. Un pensamiento crítico en
la provincia: pensar en la provincia – o provincias, por el trazo transfronterizo
y, también, transnacional y transcontinental que aquí tiene especial acomodo si
juntamos a la vocación ibérica la relación con América Latina.
Pensar en provincias… Hay un lugar de la Ética a Nicómaco que tiene un
considerable poder de solicitación, un mínimo pero fulgurante chispazo del
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
237
Pedro Serra

pensamiento. Asevera Aristóteles que un hombre que se aparta de la conviven-


cia de los otros hombres o es un Dios o es una Bestia. Y su ética eudemonista es
fraternal, es decir, se basa en la prioridad de la convivencia, en la prioridad de
la amistad – una noción en rigor compleja, de aquellas que exige una descrip-
ción densa – en la definición del hombre, del individuo, de la comunidad. Quizás
lleguemos nunca a entender la fascinación nutrida por ese lugar textual. Quizás
incluso un día esta fascinación se enfríe y extinga, arrinconada en el museo de
curiosidades de los escasos libros que pasan – precarios, alados – por nuestros
scriptoria. En todo caso, se viene imponiendo la convicción de que la Moderni-
dad – otra noción comodín que puede no decir nada, queriendo decirlo todo – ha
añadido por lo menos una figura más a la fórmula aristotélica: el hombre que se
aparta del trato de los otros hombres, puede que sea un Dios, puede que sea una
Bestia o – añadiríamos, con la venia de admitir la vil profanación – puede que
sea un pensador o un creador. Aunque la ontología de estos pensador y creador
traiga también acoplada otra sombra: la Masa.
Si podemos aceptar que un dios o una bestia son seres discretos en el orden
de los seres, no así un pensador/creador y la Masa, que carecen de auto-eviden-
cia, y en realidad se anudan. Por ello el pensador/creador, aunque pueda llegar
a asumir que también es Masa, tiene que execrarla. En todo caso, la desacrali-
zación, la secularización y el desencantamiento del mundo – eso a lo que justa-
mente podemos llamar Modernidad – proyecta en la escena de la vida a estos
dos ángeles caídos: el pensador/creador y la Masa, divinidades menores. En rea-
lidad, podríamos hablar de un mismo dañado ángel caído. Es por ello por lo que
la humanidad moderna es la de un hombre que podríamos llamar “tardío” y, la
suya, una humanidad tardía. La humanidad tardía es aquella que viene después,
“fuera de lugar, fuera de tiempo, fuera de sí”. Excéntrico, el humano tardío mira
la maravillosa y espantosa novedad del mundo como si fuera una última mirada.
Abocado a la vibración de intensidades discontinuas, un lugar que perciba es la
última percepción del lugar; un momento que perciba, es la percepción terminal
del momento. La intensidad perceptiva – y no percibe siempre con la misma in-
tensidad, hay por razones obscuras momentos especialmente intensos – lo vio-
lenta en un grado físico: lo saca fuera de sí. El momento de intensidad suspende
una temporalidad voraz, aunque paradójicamente esté engastado en el tiempo.
El Heidegger que ha ido siendo conocido y repisado, en tanto lectores de
literatura y eso que en su momento se llamó teoría literaria y que después se vino
a reconfigurar como simplemente teoría, ha sido ampliamente objeto de una
progresiva dispensación. Se trata, claro está, del Heidegger autor de El origen
de la obra de arte (35-37, 50 y 60) y de la Carta sobre el Humanismo (1946). El
Heidegger tardío, pues. ¿Por qué leer poesía en función de las creencias heideg-
gerianas sobre poesía? Como ya ha sido estudiado, hay serias probabilidades de
que sus valoraciones sobre poesía no sean muy distintas de las aseveraciones
238 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

que expresa en los ensayos sobre Hölderlin, lo que equivale a interrogarnos


hasta que punto no sólo son sobre Hölderlin los ensayos de Heidegger sobre
Hölderlin, sino que son más sobre lo que escribe. Esto, obviamente plantea un
conflicto entre la analítica del texto poético y la teoría que subyace a la práctica
analítica. Por otra parte, y de la mano de Peter Sloterdijk, concretamente de su
polémico – equívocamente polémico – Normas para el parque humano, se han
puesto de manifiesto, de modo poderoso y ponderoso, las limitaciones del idea-
lismo antropológico heideggeriano plasmado en su Carta sobre el humanismo.
Para Sloterdijk, haciendo acopio de Platón, Nietzsche y Foucault en pro de su
tesis, ese claro del bosque dónde un guardador del ser pastoreara una especie
de homo anterior, es una ilusión. No existe tal cosa como un ser humano no
tecnológicamente determinado. La técnica es un a priori en la definición de lo
humano. En suma, lo que sobrevuela la revisión llevada a cabo por Sloterdijk es
la noción de un humanismo banal conformando el texto de Heidegger.
Un humanismo banal que, bien pensado, limita la posibilidad de pensar lo
que nuestro presente nos invita y hace imperativo pensar. La posibilidad del pen-
samiento, por cierto, es la piedra angular de “¿Por qué permanecemos en la
provincia?”, un texto especialmente relevante para la materia y el enclave en
pauta que le da cobijo. Más concretamente, en un texto de notabilísima impron-
ta romántica – sobre la genealogía romántica del pensamiento heideggeriano,
léase Romanticismo. Una odisea del espíritu alemán de Rüdiger Safranski, autor
de una de las más conocidas biografías del filósofo alemán: Martin Heidegger.
Between Good and Evil (1998) – Heidegger nos propone un paisaje habilitado
como condición de posibilidad del pensamiento. Su privado claro del bosque,
hueco de soledad acompañada y comulgada quietud silenciosa, dónde recordar
el Ser: “Cuando en la profunda noche del invierno una furiosa tormenta de nieve
brama sacudiéndose en torno al refugio (“die Hütte”) y oscurece y oculta todo,
entonces es la hora propicia de la Filosofía. Su preguntar debe tornarse entonces
sencillo y esencial. La elaboración de cada pensamiento no puede ser sino ardua
y severa. El esfuerzo por acuñar las palabras se parece a la resistencia de los
1
erguidos abetos contra la tormenta”. Paisaje del pensamiento, mínimo paisana-
je: el filósofo y el campesino en el hueco de soledad acompañada y comulgada
quietud silenciosa.
En septiembre de 1933, a Heidegger le es ofrecido el puesto de filosofía de la
Universidad de Berlín, a expensas del ministro prusiano de cultura. Un mes des-
pués, el ministro de cultura bávaro lo invita a ocupar el decanato de filosofía de
la Universidad de Munich. Ambas propuestas tenían un conspicuo peso político,
corroborado y amplificado por la resonancia mediática que tuvieron. Y ambas

1
Cito por una traducción de Francisco de Lara. Cf. Martin HEIDEGGER, “Paisaje creador: ¿Por qué permanecemos
en la provincia?”, en Experiencias del pensar (1910-1976), Francisco de Lara, trad., Madrid: Abada Editores,
2014, p. 16.
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
239
Pedro Serra

fueron rechazadas por Heidegger. Justamente en la alocución radiofónica pro-


ferida en 1933, “¿Por qué permanecemos en la provincia?”. Son argumentos que
justifiquen el rechazo de las invitaciones. Una lectura apriorística del texto nos
devuelve no tanto una pieza argumental como una singular meditación. En ese
momento, los rectores de las universidades alemanas se encuentran empeñados
en la configuración de un marco legal que permita subordinar las instituciones al
estado. A la conferencia que los reúne en Berlín, Heidegger, habiendo sustituido
a Wilhelm von Möllendorf hacía escasos meses, no asiste como representante
de la Universidad de Freiburg. La presión que está sufriendo para llevar a cabo
nombramientos de decanos afectos al partido nacional-socialista es grande. Hei-
degger acabará por dimitir a finales de 1934. La tarea de una renovación auto-a-
sertiva de la universidad queda truncada. Esta es una cuestión fundamental para
entender el contexto de la alocución radiofónica. El deceso de la universidad
2
como “lugar legislador del espíritu”.
Una alocución que no podemos dejar de situar en el contexto de su misión
rectoral. Y para entender esta misión, hay que plantear ¿en qué sentido o senti-
dos tuvo sentido la movilización espiritual de la Revolución del Nacional Socialis-
mo para Heidegger? István Fehér, en un estudio intitulado “Ontología fundamen-
tal e interludio político: Heidegger como Rector de la Universidad de Freiburg”
(1992), argumenta que para Heidegger no se trató tanto de politizar la ciencia y
la universidad como el de ayudar a dotar de contenido a un movimiento social y
político ya existente. Traducido del inglés: “En la medida en que una renovación
que se base en el auto-conciencia presuponga alejamiento radical y enraizarse
en uno mismo, semejante renovación se opone a la subversión radical de los
3
condicionantes fácticos”. Así, la universidad es política no tanto porque se intro-
duzca en el ámbito de la política, pero porque es un dominio determinado por
una comunidad nacional e histórica. Heidegger se percata de que la Universidad
no puede consumar su auto-determinación, es decir, su autonomía. Y, con ello,
se trunca también la recuperación del sentido originario o radicular de la ciencia
como agente conformador de la vida espiritual de un pueblo. Eso es lo que está
en causa en “¿Por qué permanecemos en la provincia”: el extravío de una univer-
sidad incondicional, acaso condición de una auténtica universidad.
Es así como acaso la alocución radiofónica de Heidegger no importe tanto
como articulación del binomio campo/ciudad, y sí como modulación de un de-
sencanto por el mundo académico. Es lo que ha puesto de manifiesto Pierre
Bourdieu en su La ontología política de Martin Heidegger (1988). En versión es-
pañola: “Y sin duda deberíamos ver en su encuentro exaltado con un idealizado
campesino antes la expresión desplazada y sublimada de su ambivalencia hacia

2
Cf. István FÉHER, “Fundamental Ontology and Political Interlude: Heidegger as Rector of the University of
Freiburg”, in Christopher McCann, Heidegger. Critical Assessments, New York: Routledge, 1992, p. 176.
3
Id., ibid.: 181.
240 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

4
el mundo intelectual que una causa actual de esta experiencia”. Efectivamente,
toda la trayectoria de Heidegger está determinada por su relación francamente
ambivalente con el mundo intelectual. Vale la pena recordar su posición en el
campo cultural, en el campo del debate y confrontación de ideas que, acorde
con la hermenéutica de Bourdieu es una confrontación sobredeterminada por el
agon de la ascesis social.
5
Proveniente de la pequeña burguesía, de formación jesuítica – sale del se-
minario de Tivis, en el sur de Alemania, por cuestiones de salud, habiendo ape-
nas empezado el noviciado, en octubre de 1909 –, su antagonismo hacia la so-
ciedad intelectual cubría un amplio espectro. De hecho, para configurar su lugar
de autenticidad tiene de conformarlo como negación de toda la intelectualidad
considerada “desarraigada” y “errante”. Universidad moribunda, vida urbana in-
fectada y decadente. Para el “último hombre agrario” como se le ha llamado, el
combate es total. Como pone de manifiesto Bourdieu, neo-kantismo, neo-tomis-
mo o fenomenología – que definen el espacio de posibilidades filosóficas – son
opciones hermenéuticas que tienen vinculadas tendencias morales, opciones
políticas, incluso fisionomías concretas que determinan el sujeto en situación. En
este sentido, Heidegger procura la configuración de una posición que obligue a
todos los posibles situacionales a redefinirse en el campo de fuerzas, que es un
campo de distribución de poder.
¿Será verdaderamente una pregunta la que nos propone Heidegger en “¿Por
qué permanecemos en la provincia?” ¿Nos propone verdaderamente optar, o
supone el texto una opción por un estilo de vida que permite el pensamiento?
Leyendo una y otra vez la alocución radiofónica proferida en 1933 y que sería
publicada en marzo de 1934 en Der Alemanne, se va revelando progresivamente
la condición poética de muchos de sus loci textuales. Poética prosificada que
replica como una vulgata cierta retoricidad romántica: “Hace poco recibí la se-
gunda llamada a la Universidad de Berlín. En una ocasión semejante me retiro
de la ciudad a mi refugio. Escucho lo que dicen las montañas, los bosques y las
6
granjas”. Un cierto romanticismo, pero no ciertamente aquél, por ejemplo de un
Wordsworth, que sabe bien que las piedras – la naturaleza – sólo sermonean si
antes el poeta escondió el sermón debajo. El proprio campesino, incrustado en
el paisaje, es un silencio que habla: “Voy a lo de mi viejo amigo, un campesino
de 75 años. En los periódicos ha leído sobre el llamado a Berlín. ¿Qué irá a decir?
Lentamente desliza la segura mirada de sus ojos claros en los míos, mantiene los

4
Pierre BOURDIEU, L’Ontologie Politique de Martin Heidegger, Paris: Minuit, 1988, p. 51. Traducción de mi
responsabilidad.
5
En Hugo OTT, “Biographical Bases for Heidegger’s Mentality of Desunity”, in Tom ROCKMORE y Joseph MARGOLIS,
The Heidegger Case, 1992, se recoge un comentario sintomático de lo que vendrá a ser el declarado desprecio
por la orden: “Entre otras cosas, el Comunismo puede ser horrible, pero el asunto es claro: el Jesuitismo es
diabólico, si se me permite la expresión” (p. 102; traducción de mi responsabilidad).
6
Op. cit., ed. cit., p. 20.
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
241
Pedro Serra

labios fuertemente apretados, me coloca su mano fielmente circunspecta sobre


mi hombro y sacude su cabeza en forma apenas perceptible. Esto quiere decir:
7
¡irrevocablemente no!”. Dice “no” quien dice “no”, es decir, Heidegger, aunque
diga que lo dice el campesino. Como en alguna lírica romántica, la prosopopeya
es el tropo maestro de este discurso.
Como en el caso de la lectura que Heidegger hizo de Hölderlin, el texto, la es-
critura, dice exactamente lo contrario de lo que quiere decir Heidegger. Asimis-
mo, si suspendemos las circunvoluciones ontológicas, fenomenológicas y exis-
tenciales que podemos atribuir a la pieza y pensamos las materialidades de la
comunicación que la determinaron, le devolveremos la posibilidad de ser pensa-
do en tanto productor de presencia.¿ Cómo distinguir el texto de Heidegger, por
qué pureza idealizada, de su materialización hertziana y su ulterior circulación en
soporte impreso? La radio y la prensa, esos mismos índices de modernidad que
el texto quisiera execrar. Esas mismas máquinas y esa misma antropo-técnica
que nos devuelven la inaccesibilidad de un por otra parte ilusorio claro del bos-
que dónde pastoreara el ser y su lenguaje.
Si aceptamos plantear que el lenguaje en el texto en causa funciona como en
un poema, la cuestión que se sigue sólo puede ser: ¿qué dice un poema? ¿Qué
relación se establece entre la escritura en tanto producción de un encadenado
de palabras y la lectura de ese texto? ¿Será la palabra capaz de funcionar como
instrumento de remisión del sujeto a su referente, en la producción de una ex-
periencia capaz de proporcionar al lector, en tanto experiencia, el correlato de
aquello que es enunciado en tanto texto? Este sería sin duda un problema al que
tendría que enfrentarse un campesino que leyera un periódico.
¿Por qué permanecer en la provincia?, un escenario para el pensamiento.
Si acaso el pensamiento fuera determinado por el paisaje como condición de
posibilidad, podemos sin duda añadir que en la Modernidad hay otros especies
de espacios a tener en cuenta. Desde luego la ciudad y su bullicio de imágenes
sin un arconte que las sujete. La experiencia moderna es subsumida precisamen-
te por la desterritorialización, la del hombre que sabe ser “huésped de un solo
día”. El nombre que nos viene inmediatamente a la retentiva es, claro está, el
de Walter Benjamin. Pero podríamos arropar la materia aludiendo al intelectual
del exilium perpetuum, el individuo desterrado, el ciudadano de una nación sin
territorio. El destierro no rasura la afección del lugar, más bien la somete a una
crisis, un principio crítico: el lugar como provincia crítica. Se trata, muy concreta-
mente, de Edward Saïd, el autor de dos textos teóricos estimulantes: “Travelling
Theory” (The World, the Text, the Critic, 1983) y “Travelling Theory Reconsidered”
(Reflections on Exile and Other Essays, 1994). El Saïd, en suma, que propuso una
amplia analítica de la itinerancia de la teoría. De hecho, ese creo que es uno de

7
Id., ibid., p. 21.
242 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

los grandes temas de nuestro tiempo: ¿cómo viaja una teoría ya que la condición
de posibilidad de la teoría es el viaje?
El postulado básico de Said estriba en que la vinculación de la teoría no sólo
a su momento histórico como a su geografía: a su lugar, en suma. Si en el primer
ensayo, bajo influjo luckácsiano, Said concibe la necesaria vocación itinerante de
la teoría como una suerte de degradación de su energía o eficacia, en el segundo
estudio la valoración del imperativo desplazamiento de la teoría no es modulada
por un tan conspicuo pesimismo. El nuevo lance de gran calado interpretativo lo
plasma en una pequeña fórmula: “El movimiento [la itinerancia] sugiere la posi-
bilidad de que lugares, emplazamientos y situaciones sean activamente diferen-
8
tes para la teoría, sin universalismos fáciles ni totalizaciones generalizadoras”.
Tremenda frase que nos dice distintas cosas en pocas palabras: por un lado, las
condiciones de posibilidad de la teoría amplían su espacialidad; por otro la ecua-
ción local/universal es sometida a una auténtica tempestad. Nos aboca a pensar
lo que, por cierto, es lección de la antropología crítica. Cómo ha formulado el an-
tropólogo Clifford Geertz en un ensayo de referencia, “la verdadera oposición no
se establece entre un conocimiento ‘local’ y otro ‘universal’, y sí entre un tipo de
9
conocimiento local y otro. Geertz pone en duda incluso la necesidad de articular
semejante oposición.
Sea como fuere, volvamos al autor de Orientalismo y su teoría en estado de
perpetuum mobile. Teoría en exilio, que sale “fuera del lugar”, que sale “fuera del
tiempo” y que supone, también, una salida “fuera de sí”. Es ese el último desar-
rollo de la crítica secular que fue fraguando a lo largo de las décadas. Su último
libro, un libro póstumo, se intitula On Late Style. Music and Literature Against the
Grain (2006). La noción de “estilo tardío” es un avatar de la itinerancia de la teo-
ría. Ahí, Said amplía el desplazamiento del cuerpo en los espacios a una singular
10
alteración de conciencia. “Late style is in, and oddly apart from the present” ,
propone Said. Una suerte de escrita en trance, como la de un Adorno, “romántico
desilusionado que existe casi extáticamente separado de las nuevas y mons-
11
truosas formas modernas, pero en una especie de complicidad con ellas”. El
vocablo replica en el ensayo dedicado a Glenn Gould, donde se alude al interés,
por parte del pianista, de producir “un estado de libertad extática por y en su
12
performance”. En fin, aun una tercera fórmula por la cual se dice esa experien-
cia, una fórmula que insinúa una consciencia alterada: “Lo tardío es estar al final,
plenamente consciente, lleno de memoria, y también muy (incluso preternatural-

8
Edward SAID, Reflexions on Exile and Other Essays, Harvard: Harvard University Press, 2000, p. 441.
9
Cf. Clifford GEERTZ, Available Light. Anthropological Reflections on Philosophical Topics, Princeton: Princeton
University Press, 2000.
10
Edward Said, On Late Style. Music and Literature Against the Grain, London: Verso, 2007, p. 24.
11
Id., ibid., p. 23. Traducción de mi responsabilidad.
12
Id., ibid., p. 124.
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
243
Pedro Serra

13
mente) consciente del presente”. El humano tardío es aquél que viene después,
“fuera de lugar, fuera de tiempo, fuera de sí”. Y esta pudiera ser una descripción
formal de la ‘provincia crítica’ en la que podemos y no podemos quedarnos. Pero
que necesita, imperativamente necesita, de espacios para pensar como el Cen-
tro de Estudos Ibéricos, y guías antecesores como Eduardo Lourenço.

REFERÊNCIAS
Bourdieu P. (1988). L’Ontologie Politique de Martin Heidegger, Paris: Minuit.
Fehér I. (1992). “Fundamental Ontology and Political Interlude: Heidegger as Rector
of the University of Freiburg”, in Christopher McCann, Heidegger. Critical Asses-
sments, New York: Routledge, pp. 159-197.
Geertz C. (2000). Available Light. Anthropological Reflections on Philosophical Topi-
cs, Princeton: Princeton University Press.
Heidegger M. (2014). “Paisaje creador: ¿Por qué permanecemos en la provincia?”,
en Experiencias del pensar (1910-1976), Francisco de Lara, trad., Madrid: Abada
Editores, pp. 15-19.
Ott H. (1992). “Biographical Bases for Heidegger’s Mentality of Desunity”, in Tom
Rockmore y Joseph Margolis, The Heidegger Case: On Philosophy and Politics,
Philadelphia: Temple University Press, pp. 92-113.
Safranski R. (1997). Un maestro de Alemania. Martin Heidegger y su tiempo, Raul
Galbás, trad., Barcelona: Tusquets.
Said E. (2000). Reflexions on Exile and Other Essays, Harvard: Harvard University
Press.
Said E. (2007). On Late Style. Music and Literature Against the Grain, London: Verso.
Sloterdijk P. (2007). Regras para o Parque Humano, Manuel Resende, trad., Luís
Quintais, pref., Coimbra: Angelus Novus.

13
Id., ibid., p. 14.
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA
E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO
TEMPO HISTÓRICO

ROBERTO VECCHI*

Que o Brasil marque um divisor de águas nítido na trajetória biográfica e


profissional do Professor Eduardo Lourenço é uma evidência fora de qualquer
dúvida. A sua estadia, em particular na Bahia, cria o pensador que será, não só
do ponto de vista de um amadurecimento académico, mas, fora de um plano
biográfico, sobretudo no ajustamento de um modo de olhar o mundo e de afinar
uma voz crítica ainda em construção.
Nestes dias de memória e comemorações o assunto frequentemente veio
à tona. Trata-se de um aspeto muito vistoso: com Margarida Calafate Ribeiro
quando organizámos o volume de escritos sobre o colonialismo, Do colonialis-
mo como nosso impensado (2014) tornou-nos evidente que a estadia no Brasil
tinha sido fundamental, ao lado de um outro evento histórico que encontrará no
seu regresso, a guerra da Argélia, para a configuração de uma ferramenta nova
e agudíssima para interpretar o progressivo colapso do colonialismo de Portu-
gal em África. Sobre este tema, ainda no tom criticamente débil da entrevista,
Eduardo Lourenço tinha já manifestado com lucidez a dívida de conhecimento,
experiências, ajustamento de visões que se interseta com o período no Brasil.
A citação recursiva é a da entrevista «A miragem brasileira» de Rui Moreira
Leite na «Colóquio/Letras» de 2009 quando o Professor em chave memorialista
observa:
E, evidentemente, percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar
à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma
vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas

*
Roberto Vecchi é professor catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira e de História da cultura portuguesa
na Universidade de Bolonha. É, desde 2007, coordenador da Cátedra Eduardo Lourenço (Camões-UNIBO)
com Margarida Calafate Ribeiro. Em Portugal, é investigador associado do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra onde participou do Projeto “Memoirs. Filhos do império e pós-memórias europeias”.
Foi presidente, de 2014 a 2021 da AIL, a Associação Internacional de Lusitanistas. É Honorary Professor (2021-
2024) of Lusophone Studies na School of Cultures, Languages and Area Studies da University of Nottingham
(UK). Autor de uma bibliografia extensa sobre a teoria e a história das culturas de língua portuguesa, assina-
lam-se, em coautoria com Vincenzo Russo, o volume A literatura Portuguesa. Modos de ler (Lisboa, 2022) e
em coautoria com Margarida Calfate Ribeiro o volume Eduardo Lourenço: Uma geopolítica do pensamento
(Porto, 2023).
246 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, parado-
xalmente, comecei a interessar‑me por este tema do império, da colonização, e no
fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história
portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido
o império português. Em última análise, portanto, todo o arrière plan do Labirinto da
1
Saudade tem a ver com a minha estadia na Bahia .

A experiência do Brasil assim, como uma passagem seminal no amadureci-


mento do estudioso. Uma evidência deste percurso decorre de imediato de uma
visão também sumária da produção científica de Eduardo Lourenço antes da ida
ao Brasil. Já tinha publicado dois livros, um que reunira o seu trabalho filosófico
de formação, em Heterodoxia (de 1949 que é um livro de estreia, já como cole-
tânea de ensaios, com uma visão muito mais ampla do meio académico de onde
surgiu) e a monografia concisa de 50 páginas, na verdade um ensaio, O deses-
pero humanista na obra de Miguel Torga (1955 depois republicado como capítulo
em Tempo e poesia de 1974), leitura de arcabouço filosófico que se debruça
sobre uma obra literária. Muito interessante sempre o arquipélago heterogéneo
de outros textos fragmentários.
Se uma imagem interpretativa é possível, da constelação dos mais que 50
textos publicados até a saída para o Brasil, é a de um filósofo eclético que já
elegeu a variedade incontornável como musa. E um olhar de grande qualidade
sobre uma fase conturbada da história universal. Entre estes contributos, define-
-se o perfil de um filósofo que se concede multíplices licenças, a partir das incur-
sões literárias (Namora, Carlos de Oliveira, Torga, Teixeira de Pascoaes, Pessoa,
Orpheu, os surrealistas também Camus, Gide, Descartes e também brasileiros
– com um precoce interesse em 1945 – com Mário de Andrade, Jorge Amado
e Lins do Rego) mas que mantém uma robusta base teórica, que se combina se
2
quisermos com a reflexão metaliterária sobre o papel e as funções da crítica .
O ano de permanência na Bahia, numa conjuntura especial, 1958-59, contri-
bui a definir a voz crítica a vir. O repertório de perspetivas e temas críticos que,
de modo não exclusivo mas com uma contribuição relevante e um impacto forte
inicial, começa a tomar forma no tempo brasileiro é bastante amplo e produzirá
amadurecimentos em tempos variáveis.
Numa lista imediata e incompleta, que não pode ser confinada nos aspetos
biográficos do ano passado no Brasil, nem pode ser cronológica – por uma ca-
raterística própria do pensamento de Eduardo Lourenço que não é linear mas é
tanto especulativa como editorialmente cumulativo, constituído por uma dialéti-
ca fulmínea e plástica de abandonos e retornos ― podemos dizer que alguns dos

1
Rui MOREIRA LEITE, «A miragem brasileira», Colóquio/Letras, 171 (2009), p. 298.
2
Virgílio BENTO, Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto de saudades, um legado com futuro. Guarda:
Centro de Estudos Ibéricos, 2008, pp.32-34.
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO TEMPO HISTÓRICO
247
Roberto Vecchi

eixos fundamentais se esboçam. É aliás a linha de interpretação que utiliza Maria


de Lurdes Soares ao organizar o volume da Obra completa Tempo Brasileiro:
Fascínio e Miragem (2018).
Aqui distinguiria alguns de ampla magnitude que irão acompanhar por longas
décadas o pensamento do Professor tornando-se eixos, digamos assim, quase
obsessivos. Se por um lado o embrião da “Psicanálise mítica”, o ensaio dorsal
do Labirinto da saudade que disseca o papel do mito e do irrealismo nos facta
da história de Portugal e na sua construção ontológica, encontra o seu rasto na
Bahia (inclusive na perspetiva crítica pela metáfora da psicanalise, como ocorre
no ensaio de 1971 «De um certo (e inevitável) anti portuguesismo da cultura bra-
3
sileira: para uma psicanalise das relações entre o Brasil e Portugal» ) por outro os
pilares do pensamento em gestação encontram um campo especial de estudo,
de desmontagem, de interrogação.
A resenha seria ampla e marcada por um aspeto crítico. Lembramos como
já a elaboração operacional do conceito de mitologia que proporcionará uma
ferramenta acutilante para abordar o irrealismo português já começa a ter uma
primeira forma. Num dos ensaios mais importantes (sincrónicos) da produção
brasileira como «O mito da comunidade luso-brasileira», pelas referências situá-
vel no período da Bahia, de 1959, mostra a consciência do potencial interpretati-
vo do mito, portanto a configuração em curso de uma mito-crítica de que deriva
a anamnese de uma sondagem profunda de um Portugal marcado por complexa
dobras: ‘A fabricação de mitos em que entretemos a ausência de uma positiva re-
lação connosco mesmos é o refúgio de sonho para a nossa falsa vida’ (TB: 248).
Neste ensaio há também um outro embrião relevante que será objeto de
uma inexaurível reflexão carregada por referenciais diferentes. É a ideia de co-
munidade que é combinada com o mito, um mito no entanto “frágil” (TB: 250),
referido à comunidade luso-brasiliera, tema da longa reflexão deixada no entan-
to inacabada. O que surpreende é que já Lourenço pensa a comunidade a partir
de uma despotencialização, de uma força desconstituinte, de uma subtração de
obra que levam a pensar na perspetiva que duas ou três décadas depois a filo-
sofia pós-estruturalista trilhará lucidamente a partir de uma desmontagem critica
dos dispositivos imunitários inerentes à comunidade assim como detetável na
longa história do século trágico. O que está em construção expõe-se claramente
em fragmentos como este:
O conceito de Comunidade pode ser evocado justamente como conceito mediador,
como ideia directiva visando uma unidade que se sabe inexistente mas que não é
absurdo desejar que se estabeleça. Neste sentido, o seu emprego nada teria ou nada
tem de irreal pois, a priori, não há motivo suficiente para não ter como possível um

3
Eduardo LOURENÇO, Tempo brasileiro: fascínio e miragem, coordenação, introdução, notas e notícias bio-
bibliográficas de Maria de Lourdes Soares. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 265. A partir
daqui a obra será referida pela abreviação TB seguida do número de página.
248 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

qualquer resultado histórico que possa efectivamente designar-se como Comunida-


de. Quando nós dizemos que a alusão e a evocação actual da Comunidade Luso-Bra-
sileira é um mito, nós sublinhamos, primeiro: que essa alusão e evocação é unilateral
e puramente sentimental; segundo: que não há actualmente medida comum entre as
duas realidades visadas por essa ideia de Comunidade. (TB: 253)

Nos desdobramentos deste pensamento sobre a comunidade, como é sa-


bido, entrará a reflexão sobre Portugal e sobre a Europa, ou para melhor dizer,
o conceito de comunidade é o elo que une as duas partes, tornando-as reci-
procamente inteligíveis, Portugal no espelho da Europa, Europa no espelho de
Portugal. A mitologia assim é o modo com que um conceito forte, como o de
comunidade (a que poderíamos associar o termo problemático de identidade) é
despotencializado e mostrado não do ponto de vista da força, mas, pelo contrá-
rio, da debilidade, o que abre uma fértil conexão de Lourenço como mediador
das ideias do Walter Benjamin de Sobre o conceito de história e da desmonta-
gem da ideia de soberania que Jacques Derrida opera nos últimos seminários a
partir da reflexão sobre a força débil. Os escritos do período brasileiro tornam
clara a projeção de uma matriz que conecta Portugal e o Brasil a partir de fios
que são conceituais e não históricos ou retóricos ou de outra natureza.
Um outro traço seminal que se reconhece à experiência brasileira é aque-
le, impensado, do trágico. O tema permite uma observação atenta dos modos
com que o Professor elaborava ideias e experiência. O tema do trágico e da
sua relação com a tragédia surge como interrogação no limiar entre o aprofun-
damento filosófico e construção de um dispositivo crítico literário, nos anos 60.
Como é sabido, é nos textos publicados em «O Tempo e o Modo» onde define
a sua original abordagem sobre trágico e tragédia. Lourenço vai além de uma
dicotomização modelar onde o trágico (moderno) oscila entre extremos que não
se deixam superar e uma dialética que produz uma síntese de opostos que apro-
4
xima o trágico do caráter ético da historicidade . No entanto, no trágico há um
rasto anti-dialético que não se dissolve e que substancia o sentido trágico, o
que confirma a sua diferença em relação à dialética. Lourenço expõe um traço
5
próprio e contraditório da Tragédia: esta de fato abole o trágico exprimindo-o . E
define, numa espécie de quiasmo, a relação trágico-tragédia e a dicotomia entre
clássico e moderno: ‘o trágico enquanto ser é o que escapa à «compreensão», à
visibilidade humana, é o domínio dos deuses, quer dizer, de outra-coisa-que-o-
-homem. Mas o trágico enquanto apreendido, expresso (e é isto antes de tudo a
6
tragédia grega) é por natureza des-tragificação’ .

4
Barnaba MAJ, Idea del tragico e coscienza storica nelle “fratture” del Moderno. Macerata: Quodlibet, 2003,
p.29.
5
Cfr. Eduardo LOURENÇO, O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993). Lisboa: Gradiva, 2017, p.38.
6
Ibid. p.42.
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO TEMPO HISTÓRICO
249
Roberto Vecchi

O Brasil reemerge no começo da década de 80 quando, em 1984, prepara


o texto «Da literatura brasileira como rasura do trágico», publicado em 1999 em
A nau de Ícaro seguido de Imagem e miragem da Lusofonia. Aqui Eduardo Lou-
renço seleciona ensaios sobre autores da literatura brasileira e encontra casos
que lhe permitem discutir o tema do trágico na cultura brasileira e que mostra a
riqueza do conceito elaborado por ele: pense-se no caso de Machado de Assis
cuja natureza alegórica equívoca, ‘tanto pode ser lida como rasura do trágico
na medida em que o nomeia e lhe dá um lugar (secundário) na partitura da vida,
como justa compreensão do trágico enquanto acompanhamento necessário e
permanente da mesma vida. Não é fácil escolher, para adequada perspectiva
da obra de Machado de Assis, entre o optimismo trágico e a tragédia optimista’
(TB: 149).
A cultura brasileira seria assim uma cultura “trágica”, no sentido que destra-
gifica o conteúdo da tragédia expressando-o. É uma grande virada crítica que
modifica a própria ontologia da cultura brasileira e que só um conhecimento não
superficial pode depreender.
Este caso como adiantava mostra uma impossibilidade de reconstrução do
pensamento do Professor: não poderá ocorrer por uma linearidade cronológica
mas com a consciência de uma acumulação onde a dispersão domina, não há
retornos regulares mas uma intermitência constante que rearruma a disposição
das parte me relação ao todo. O dado editorial referido aos projetos como a
Obra completa que inclusive nestes dias de celebração do centenário emerge, é
essencialmente este.
Na resenha incompleta dos tributos do Brasil para obra acrescentaria um ou-
tro aspeto que creio o evento da Guarda mostra. Se para o Brasil chega um filo-
sofo atento às fenomenologias literárias, o Brasil, seria melhor, a complexidade
da literatura brasileira, aumenta a capacidade de leitura refinada de Eduardo
Lourenço. Os exemplos são infinitos e Tempo brasileiro: fascínio e miragem da
obra completa exibe plenamente este traço. Só quero lembrar um fragmento,
aliás minúsculo mas que é uma amostra da profundeza aguda do leitor. Aqui
também a cronologia não funcionaria para explicar a partir do elo experiencial:
trata-se de um texto redigido em 2002 para a Folha de São Paulo, publicado
no caderno Mais! especial ‘Os Sertões’ Faz Cem Anos e depois republicado nos
dois volumes do Brasil. A sensibilidade da leitura, atualizada no plano da crítica,
evidencia-se muito bem no desfecho do artigo:
É um livro que o leitor deve construir com o material apenas elaborado do autor que
está ao mesmo tempo fora do seu texto e dentro dele. A revolta de Canudos, que
devia ser uma mera excrescência da sua ficção ctónica e antropológica, revela-o a si
mesmo como um Homero bárbaro como todos os Homeros. A crónica de um episódio
excêntrico de um mundo excêntrico converte-se, graças à sua paixão cívica e ética,
em adivinhação e compaixão proféticas por conta do futuro. A crónica de um Brasil
250 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

como o avesso do paraíso. Com Antônio Conselheiro, um redentor sem redenção.


(TB: 167)

Temos uma perfeita colocação d’Os sertões tanto do ponto de vista morfoló-
gico como da interpretação das figuras opositivas que dominam o tecido textual
da obra de Euclides e correspondem ao desajuste da modernização de que Os
sertões são a monumentalização mais cortante.
Ainda assim, por linhas de continuidade, não é imediato entender, fora dos
biografismos idealísticos, o caráter seminal da estadia brasileira, complexa, in-
tensa, formativa. Se quiséssemos encontrar uma forma sintética, diríamos que
se coloca no eixo entre a heterodoxia que vem como iluminação precoce já des-
de 1949 quando da publicação do volume de estreia e onde se explica já muito
bem que o espírito da heterodoxia é não aceitar um só caminho nem de os re-
cusar a todos abrindo já ao pensamento trágico e o impensado que amadurece
com os dois grandes temas históricos por pensar, o Salazarismo e o colonialismo.
O Brasil inscreve-se no ponto de interseção das duas linhas. No entanto,
o que emerge dos muitos materiais, fragmentários e lucidíssimo do Brasil e
das suas consequências, é talvez um outro dispositivo que se forma um pouco
por acaso, mas que determina uma larga contrapartida teórica nas décadas
seguinte. Para apreciá-lo talvez se deva atingir das anotações íntimas, como
por exemplo a página do diário “A casa perdida”, datado na Bahia em 10 de
Setembro de 1958:
Se tivesse que nomear o mestre da vida secreta, aquela única voz que sem palavras
me ensinou o que homens e livros nunca puderam apagar nem ampliar, sem hesi-
tações eu designaria o primeiro companheiro da minha infância solitária e triste: o
vento. Mas o que a minha alma nele aprendeu ou o que essa voz poderosa aí tem
inscrito evoluiu com a passagem dos anos. Vinha por sobre a aberta fronteira para
me dar uma pátria num tempo e num espaço que jamais serão os meus. Sempre
soprou do mais antigo e imortal de mim para me arrancar à morte. Sempre veio di-
zer-me que devia levantar voo do chão estreitíssimo onde igualmente agonizo desde
o infinito tempo que me coube. Mas há trinta anos, fabuloso pequeno abismo que
jamais supus me viesse a separar de mim, essa voz inominada do grande deus cego
do meu planalto hispânico vinha aninhar-se como uma pomba em meu coração vazio
de futuro e enchê-lo de uma informe e tremente esperança. (TB: 463)

A diversidade implicada pela evocação poder-se-ia motivar pelo encontro de


forças opostas o exótico da estadia americana contrasta com o endótico ibérico
da memória: na verdade mostra uma realidade humana onde a alteridade non
passa de uma perspetiva do próprio (ou parafraseando a lição do doutoramento
honoris causa da UFRJ. “Nós só existimos no espelho do outro” (1995). Mas a
este aspeto importante de um limiar que se define entre um tempo privado e
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO TEMPO HISTÓRICO
251
Roberto Vecchi

um tempo público, entre a escrita íntima e a ação pública do pensamento e da


crítica, há um aspeto relevante que se vai se definindo e que, a meu ver, se refere
a aspetos mais materialmente hermenêuticos do que a vestígios pessoais ou
biográfico que também contribuem a formar um pensamento outro.
Sinteticamente e de modo um pouco apodítico, diria que o Brasil forja para
Eduardo Lourenço uma outra semântica do tempo histórico. Talvez não seja fora
de lugar aqui recuperar a definição de Reinhart Koselleck onde esta semântica
decorre de experiências históricas do tempo que poe em relação uma certa for-
7
ma de passado com uma certa forma de futuro .
O que se percebe é que o Brasil de Lourenço é um anacronismo de Portugal
num duplo sentido: materializa um passado de Portugal que já esvaiu (o impé-
rio) e um futuro que ainda (pela questão africana ainda antes da “revolta” ou
guerra colonial) não se definiu. Uma ruína portanto mas também um horizonte
(e, aliás, Lourenço capta precocemente os efeitos perniciosos de ter uma nação
problematicamente “pós-colonial” como horizonte, o Brasil, quando critica o lu-
8
so-tropicalismo de Freyre, ‘caução do colonialismo português’ justamente pelo
entrelaçamento de tempos históricos ideológica e oportunisticamente articula-
dos, o Brasil como futuro do passado).
A perspetiva que se cria portanto na experiência do Brasil, daquele momento
histórico aliás do Brasil intersetado pelo momento histórico de Portugal (à beira
da eclosão da guerra colonial e com a guerra da Argélia em pleno desenvolvi-
mento) constrói não só o repertório de temas, mas também um modus operandi
di pensamento crítico que se afasta progressivamente da filosofia para assumir
as feições de um “pensamento sem nome” (como Unamuno define o trágico) que
encontra no arquivo das literaturas, literatura brasileira, portuguesa, de língua
portuguesa ou obras universais) os casos principais sobre os quais refletir e pe-
los quais expressar um novo pensamento.
Desde os primórdios já marcados pelo inacabado como forma paradoxal mas
efetiva perante um Real inacessível, entre um tempo alheio e um tempo próprio,
como forma epistemológica de apreensão permanente do outro. É algo que co-
meça de um víeis melancólico nos “destroços” da própria memória (num diário
que nunca se constituirá) e que une espaços remotos e irredutíveis, o Brasil e
São Pedro do Rio seco, que se disperdem em todo o lugar. O acesso impossível
ao passado, tenazmente perseguido, como tentativa, ou ensaio, de retorno im-
possível a um tempo definitivamente perdido. O labirinto de uma constelação de
perdas. Saudade, melancolia, nostalgia, como noutros momentos o Professor
explicará. Lucidamente esboçado, já em 1958, na Bahia, o manifesto da obra a
ser, o pensamento de muitas décadas:

7
R. KOSELLECK, Futuro passato. Per una semantica dei tempi storici. Genova: Marietti, 2000, p.5.
8
E. LOURENÇO, Do colonialismo como nosso impensado. Org. Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi.
Lisboa: Gradiva, 2014, p.21
252 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

O grande rio da melancolia era transparente. A sua substância era o meu sonho e o
meu sonho estava diante de mim. A grande tristeza nascia da distância impossível
entre uma vida perdida entre pedras e alma ignorada do mundo e esse fabuloso
ignorado mundo, sempre do lado de lá de inacessíveis montanhas, mas real como o
paraíso. (...)

O rio da melancolia já não o distingo de mim. A sua transparência tem uma densidade
de chumbo. A voz do meu anjo é agora de fogo e respondem-lhe ainda as minhas
lágrimas. Mas agora são reais. (TB: 464)

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te Ribeiro e Roberto Vecchi. Lisboa, Gradiva.
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Calouste Gulbenkian.
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Macerata, Quodlibet.
Moreira Leite R. (2009). «A miragem brasileira», Colóquio/Letras, 171, pp. 296-312.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO
OPERAÇÃO INFINITA

EDUARDO STERZI*

«os fins obscuros que persigo»


Eduardo Lourenço, «Guimarães Rosa ou o terceiro sertão» (1997)

«Da literatura brasileira como rasura do trágico»: o título do ensaio de Eduar-


do Lourenço ― escrito em 1984, apresentado como conferência no mesmo ano
e publicado só em 1998, como primeiro texto do primeiro número da Terceira
Margem: Revista do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade do Porto ―
sintetiza todo um programa de interpretação e reflexão que vinha de longe, das
primeiras leituras de literatura brasileira, ainda na década de 40, de que dão tes-
temunho seus ensaios de 1945 sobre Mário de Andrade, por ocasião da morte do
autor de Macunaíma, e sobre os «novos romances» de Jorge Amado e José Lins
do Rego. Mas esse programa talvez não tenha vindo menos da experiência direta
do Brasil durante o breve ― porém, ao que parece, marcante ― período em que
morou em Salvador e deu aulas de filosofia na Universidade da Bahia, entre maio
1
de 1958 e meados de 1959. O próprio Lourenço, vale lembrar, atribuía àqueles
meses passados no Brasil a intuição do que se revelaria a questão central de
sua obra. Como disse numa entrevista concedida a Rui Moreira Leite em 2000,
durante uma viagem ao país:
Foi aqui, no Brasil, que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do
império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia
ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta

*
Eduardo Sterzi (Porto Alegre, Brasil, 1973) é professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp, Brasil) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Publicou, entre outros, Saudades do mundo: notícias da Antropofagia, Por que ler Dante e A prova dos
nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria. É autor também dos livros de poesia Prosa, Aleijão e
Maus poemas e das peças teatrais reunidas em Cavalo sopa martelo. Como curador, participou das equipes
responsáveis pelas exposições Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo (Sesc
Ipiranga e Sesc Araraquara, no Brasil; Weltkulturenmuseum, na Alemanha; e Centro Internacional das Artes
José de Guimarães, em Portugal), Caixa-preta (Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre) e Desvairar 22 (Sesc
Pinheiros, São Paulo).
1
Eduardo LOURENÇO, «Mário de Andrade: o homem e o sistema» (1945) e «Novos romances brasileiros» (1945),
in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2018,
pp. 97-101 e 103-106. O segundo texto já havia sido recuperado, antes, em Do Brasil: fascínio e miragem,
org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Gradiva, 2015, pp. 43-49.
254 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo
2
o arrière plan d’O labirinto da saudade tem a ver com a minha estada na Bahia.

Essa longa radicação do ensaio sobre a «rasura do trágico» não condicio-


na, porém, uma concepção estática ou clausurada da literatura brasileira, muito
pelo contrário. Talvez tenha sido justamente esse prolongamento por décadas
da reflexão sobre as obras literárias produzidas no Brasil, a que se somou a ob-
servação também distendida, embora tantas vezes pontualmente intensificada,
de outros aspectos da cultura e da história do país, a propiciar o diagnóstico da
rasura do trágico como traço característico dessa literatura. Mas também, e so-
bretudo, a conferir a devida complexidade a tal diagnóstico. E a própria ambiva-
lência, quando não aversão, de Eduardo Lourenço diante de parte daquilo que,
no Brasil, excede a literatura torna mais dinâmica essa percepção, exigindo, dos
leitores dessas leituras (por exemplo, nós), uma mobilidade crítica, em alguma
medida análoga à dele, que não tome como definitivo nenhum patamar inter-
pretativo alcançado e que, fiel a essa abertura, ao desejo de abrangência que
lhe era inerente e à continuidade objetiva dos processos descritos no ensaio,
insista nos parâmetros que o crítico estabeleceu com base num intervalo histó-
rico determinado e num corpus circunscrito (na primeira publicação, em revista,
havia um subtítulo: «De Machado de Assis a Clarice Lispector»), não para ver os
textos literários e outros objetos culturais posteriores simplesmente confirma-
rem os juízos e os sentidos já mais ou menos assentados ― pelo contrário, para
auscultar, nesses novos textos e objetos, os desdobramentos possíveis, ainda
que imprevistos, ou sobretudo porque imprevistos, e até antitéticos e questio-
nadores, com relação àquele programa de interpretação e reflexão. Foi, afinal, o
próprio Eduardo Lourenço quem sugeriu que «o verdadeiro crítico é aquele que
não compreende a obra [ou, aqui, a sequência de obras: a «literatura brasileira»]
3
e antevê (um pouco) as razões porque não pode compreendê-la».
Não por acaso, o crítico começa o ensaio sobre a «rasura do trágico» assina-
lando as contradições, verdadeiras ou aparentes, não só da literatura brasileira,
mas também da perspectiva crítica pela qual examina essa literatura. É mesmo
a um enlace de contradições, objetivas e subjetivas, que assistimos aí, e será
razoável supor que umas condicionam as outras, sendo, porém, provavelmente
infrutífero tentar individuar um sentido único para o que parece ser antes uma
mútua e tensa determinação, em que, como em toda boa crítica, os objetos produ-
zem as perspectivas tanto quanto as perspectivas produzem os objetos. A primeira
frase do ensaio pode ser lida como uma cobrança de racionalidade dirigida ao

2
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)» in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2018, p. 558.
3
Eduardo LOURENÇO, «Crítica, obra e tempo» (1968), in O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993),
Lisboa: Presença, 1994, p. 51.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
255
Eduardo Sterzi

Brasil e à sua literatura a partir da constatação da originalidade violenta do país


― e, portanto, também como expressão de uma decepção, se esta é, de fato, a
palavra (talvez seja mais adequado, de acordo com o próprio Lourenço, insistir
na ideia de incompreensão, com a correspondente antevisão das razões de não
compreender):
Espaço original de confronto entre homens de culturas diferentes, sociedade es-
clavagista, em seguida, continente de abismais diferenças de estatuto económico
e social, o Brasil parecia vocacionado para terra de eleição de uma literatura parti-
cularmente sensível ao que Unamuno chamou o «sentimento trágico da vida e dos
povos». Contudo, poucas vezes os célebres esquemas da sociologia cultural à Taine
se revelarão mais inadequados do que no caso do Brasil. Pelo menos, na aparência.
Com efeito, mesmo quem tenha da literatura brasileira um conhecimento superficial
não deixará de ficar impressionado com a presença nela de uma espécie de estra-
tégia (sem dúvida, inconsciente) destinada a contornar os aspectos mais trágicos
da condição humana. E, para além deles, a própria ideia do trágico como horizonte
4
espiritual ou visão do mundo.

Há duas precisões impostas ao argumento ao longo dessa sua formulação


que vão fazendo a interpretação proposta já no título perder seu caráter presu-
mivelmente lapidar e taxativo: «Pelo menos, na aparência», frisa Lourenço sobre
a inadequação ao caso específico do Brasil dos «esquemas da sociologia cultu-
ral à Taine»; «sem dúvida, inconsciente», assinala sobre a «estratégia» (ou, mais
exatamente «espécie de estratégia») adotada pelos escritores brasileiros para
«contornar» (e não, agora, rasurar) o trágico. Ressalva semelhante encontra-se
no parágrafo seguinte, quando o crítico escreve, a propósito de Machado de
Assis, que «o sentido oscila sem fim na corda da evidência racional, o que bem
pode ter-se como a definição mesma, ao menos intelectual, do sentimento in-
5
tenso da tragédia e do trágico» . O que parece estar em questão, sempre que
Eduardo Lourenço, ao longo deste ensaio, se vale de construções análogas, por
meio das quais faz vacilar as próprias afirmações (e os juízos a elas subjacentes),
é não só o descompasso fundamental entre uma sociedade e sua história su-
postamente destinadas ao trágico e a literatura que emerge dessa sociedade e
dessa história para resistir ao trágico, mas o próprio lugar da razão ― e também,
portanto, do inconsciente ― nesse enredo.
Daí que seja decisiva, em sua análise de Machado de Assis, ponto de partida
do seu percurso, o conflito entre a «ironia transcendental» e o «sentimento da
vida como tragédia», com a ironia ― tropo da razão, e sobretudo da razão levada

4
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico» (1984), in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2018, p. 148.
5
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico» (1984), in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, p. 148. Grifo meu.
256 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

ao seus extremos e, portanto, também a seus avessos ― «sobrevoando ou rela-


tivizando tudo», mesmo a mais profunda negatividade, aquela do inconsciente
6
e do trágico. Em «O alienista», por exemplo, é por meio da ironia que o escritor
«subtrai a sua visão ao triunfo do puro sem-sentido», reencontrando a razão ali
onde ela parecia faltar, na forma da «consciência de um trágico de algum modo
7
transcendente ao próprio trágico». Ou, como Lourenço diz em seguida: «Se a es-
sência do trágico é a consciência de que tudo é shakespeariana ilusão, decerto
Machado de Assis não exemplifica o nosso propósito. Seria antes excepção que
paradigma». Em alguma proporção, claro que respeitando as particularidades
atinentes a cada autor examinado ou apenas nomeado, o ensaio sobre a rasura
do trágico como «uma das notas características do imaginário brasileiro» toma a
forma de uma análise sobretudo das exceções a essa norma que seria a rasura.
Esse será mesmo o gesto recorrente ao longo do texto: perseguir uma rasura
do trágico que, na verdade, reafirma o trágico supostamente rasurado. Isso vale
não só para Machado, mas para Euclides da Cunha, Jorge Amado, José Lins do
Rego, o hoje esquecido Amando Fontes, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e
Clarice Lispector.
Talvez se possa ver aí, nessa perseguição algo circular e, portanto, em algu-
ma medida, obsessiva, e ela mesma trágica, a manifestação de uma consciência
― talvez, inconsciente, pelo menos em parte (como poderia assinalar o próprio
Lourenço) ― de que a rasura do trágico, por mais definidora que seja, só se deixa
pensar combinada ao que, no trágico, não se deixa rasurar. Podemos então ver
a rasura do trágico, a um só tempo, como ultrapassagem e recalcamento: afinal,
quando um texto ou parte dele é rasurado, pode-se ainda ler, por baixo dos sig-
nos que eventualmente substituem aqueles suprimidos, isto é, além ou aquém
do novo discurso, a própria lacuna criada pela rasura, o espaço vazio que, de
um ponto de vista semiótico (se não também poético, retórico, político, ético,
psíquico...), coincide com aquele «sem-sentido» que Eduardo Lourenço identifica
no centro das formas mais extremas ou puras de trágico, aquele centro que,
supostamente, a literatura brasileira, pelo menos aquela que vai de Machado a
8
Clarice, está quase sempre contornando.

6
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, id.
7
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
ibid.
8
Aliás, essa leitura da lacuna ― isto é, da própria rasura como presença na escrita ― vale para o próprio ensaio
«Da literatura brasileira como rasura do trágico». Penso não nas alterações pontuais ao longo do texto, que têm
natureza mais cosmética, mas, sobretudo, na rasura da epígrafe de Clarice Lispector que se acha na publicação
primeira na revista Terceira Margem e depois desaparece na versão em livro: «Eu tenho, à medida que designo
― e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar».
Tal epígrafe apontava, ao que parece, para uma redução da aventura literária clariciana ao âmbito da linguagem,
justamente ali onde o corpo parece assomar: o conflito do semiótico com o semântico, que produz o trágico como
não-sentido, traz em si, embutido, um conflito entre o semântico e o somático.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
257
Eduardo Sterzi

Vale lembrar, neste ponto, que, no ensaio teórico «Do trágico e da tragé-
dia», publicado originalmente em 1964 e recolhido depois em O canto do signo,
Lourenço não apenas já propunha que o trágico propriamente dito escapa às
definições intelectuais, como vislumbrava na própria forma inicialmente grega
da tragédia ― que consistiria na expressão e estetização de um «mistério» origi-
9
nalmente «inexpresso» ― já um «modo de abolição do trágico». Nesse quadro,
as experiências literárias dos últimos cento e poucos anos no Brasil, aquelas
que parecem se dirigir para uma rasura ou contorno do trágico, poderiam ser
vistas talvez como uma realização concentrada e exemplar, justamente porque
tardia, de um processo bem mais amplo, tanto no espaço quanto no tempo. Esse
nexo trans-histórico talvez se deva ao próprio modo como a cultura literária ― e
não só literária ― teve e tem de se constituir num país construído a partir da
experiência da colonização. A necessária busca de autonomia, não só da nação,
mas, sobretudo, daquilo que não cabe de todo na nação e nos seus discursos de
unidade ainda recendentes do processo colonial ― é o caso dos povos indígenas,
dos africanos escravizados, dos seus descendentes e de toda a imensa massa
cuja existência se dá, a um só tempo, sob o tacão brutal da história e fora da
história (trata-se, de fato, de uma fuga, ainda que restrita por vezes à imagina-
ção, seja esta poética ou religiosa, para o mato, para a aldeia, para o quilombo,
para o terreiro...), na experiência de um «tempo sem tempo», segundo expres-
são recorrente do próprio Eduardo Lourenço, que, por vezes se confunde com
o «mito», mas que é antes ou depois o próprio tempo da literatura «em estado
de emergência e de calamidade pública», como se lê neste grande momento da
autoconsciência crítico-criativa da história literária brasileira que é a «Dedicatória
do autor (Na verdade Clarice Lispector)» de A hora da estrela.
À luz da dialética do trágico subjacente ao intervalo histórico-literário exa-
minado por Eduardo Lourenço, não faz sentido interpretar Oswald de Andrade
como exceção a esse esquema de exceções, isto é, como o único exemplo, di-
gamos, puro da «rasura do trágico». De fato, dentre os autores abordados no
ensaio, é Oswald o único modernista com direito a ser nomeado; direito que
não se estende, porém, a nenhum título seu: em sua figura, mais até do que na
sua obra, Eduardo Lourenço parece ver sintetizada «a estrutura cultural eufórica
que caracteriza o Modernismo Brasileiro», que teria como base ― nas palavras
do próprio crítico, não do escritor ― a reatualização do «mito fundador do novo
mundo como paraíso, alheio ao bem e ao mal da tradição judaico-cristã do des-
cobridor», a que se acrescentam «algumas sugestões de Nietzsche e Marinetti
que iam no mesmo sentido». Porém (e a menção a Nietzsche, exegeta do «nas-
cimento da tragédia» e profeta do seu renascimento na modernidade, já deveria
servir de advertência interna ao próprio discurso do observador) esse juízo

9
Eduardo LOURENÇO, «Do trágico e da tragédia» (1964), in O canto do signo, p. 31.
258 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

parece passar longe do que realmente está em questão na experiência literária e


filosófica oswaldiana, ignorando sobretudo a importância que nela desempenha
o trágico, não apenas como contraponto à euforia flagrada por Lourenço ― que
é, no léxico de Oswald, mais propriamente alegria ―, mas, antes, como coração
obscuro, como irrasurável pulsão de treva, da própria «estrutura [...] eufórica»,
que, por isso mesmo, se coloca, a um só tempo, dentro e fora da cultura. Oswald,
de fato, confere à tragédia e ao trágico um lugar decisivo no seu pensamento.
O Matriarcado, forma-matriz da sua concepção de política, é concebido a partir
10
da Oresteia de Ésquilo tal como lida por Bachofen. O próprio Carnaval é visto
por ele como uma elaboração da manifestação grega, que seria, na verdade,
africana, como propõe no ensaio «Descoberta da África», de 1954. Reivindicação
semelhante já aparece, porém, num dos poemas de Pau-Brasil, trinta anos antes;
o título é «semana santa»:
A matraca alegre
Debaixo do céu de comemoração
Diz que a Tragédia passou longe
O Brasil é onde o sangue corre
E o ouro se encaixa
No coração da muralha negra
Recortada
Laminada
11
Verde

Como a maioria dos poemas do livro, este é bem mais ambivalente e sombrio
do que parece. A Ressurreição, que a Semana Santa reencena, é, em certa me-
dida, a antítese da tragédia ― e, portanto, um exemplo de «rasura do trágico» ― e
justifica a transformação imediata, no primeiro verso, da matraca, instrumento de
lamentação, em manifestação de alegria. O que complica essa interpretação é
que, a partir do quarto verso («O Brasil é onde o sangue corre»), e justamente
depois de nomeado o contorno, se não a rasura, do trágico («Diz que a Tragédia
passou longe»), o poema se revela, por meio da fusão imagética entre paisa-
gem (verde) e personagens (negros), um instantâneo do movimento interno ao

10
«O matriarcado tomba ante o voto de Minerva que absolve Orestes matricida. Com o matriarcado cai a propriedade
comum do solo e inicia-se dialeticamente o ‘progresso’ – a propriedade privada, fortalecida desde então pelo
direito paterno e pela herança.» (Oswald de Andrade, Os dentes do dragão, org. Maria Eugenia Boaventura, São
Paulo: Globo, 1990, pp. 122-3). «Estava aí assinalada a revolução que, na Grécia, destronava a mãe do seu poderio
incontestável. De ora em diante seria aceito na Hélade o direito paterno e suas consequências. Fundava-se assim
o instituto da herança patrilinear. Não quer isso dizer que o patriarcado tivesse sido uma invenção grega, mas
foram os gregos, através de Ésquilo, que definitivamente fixaram as transformações da era matriarcal para a do
poder paterno.» (Oswald de Andrade, «A crise da filosofia messiânica» [1950], in A utopia antropofágica, São
Paulo: Globo e Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 212)
11
Oswald de Andrade, Obra incompleta, ed. crítica Jorge Schwartz, São Paulo: Edusp, 2021, t. I, p. 112.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
259
Eduardo Sterzi

próprio livro em que está situado: afinal, sua segunda seção, «Poemas da co-
lonização», não apenas intercepta o curso esboçado na primeira, «História do
Brasil», mudando em negatividade o que era, de início, positividade, mas tam-
bém projeta esse cariz negativo sobre as seções seguintes. Se há uma unidade
em Pau-Brasil, é aquela conferida pela colonização e pela escravidão ― e pelas
longas repercussões destas e pelas tentativas de responder ou resistir a elas.
Nos termos dos próprios modernistas, podemos dizer que o «claro riso dos
modernos», a que se referiu Ronald de Carvalho, extraía sua claridade, por
contraste, da contraface sombria do movimento, que era expressão transfigu-
radora justamente do seu sentimento da história como catástrofe, mais do que
de qualquer sensação de ausência de história. O «não-tempo» é, na verdade,
um outro tempo, e suas formas preferenciais podem ser, de fato, o mito, a
fábula, a estória. «A estória quer ser contra a História», o dictum de Guimarães
Rosa, é outra forma de dizer: «Contra as histórias do homem que começam no
Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado». Se Stephen Dedalus,
isto é, James Joyce, tenta despertar do pesadelo da História, aqui se trata de
dormir de novo para tentar outro sonho, isto é, outra história (aliás, como fez
também o irlandês, em alguma medida, na sua obra final, Finnegans Wake). A
Antropofagia de Oswald (e de Tarsila, de Raul Bopp, do Macunaíma) é uma ten-
tativa de dar a esse sonho a dimensão mais vasta possível, que não é, porém,
a de um universal indeterminado moldado a partir da expansão colonial (que,
se possível, alcancançará até as estrelas, apropriando-se do brilho delas como
último butim), mas a da comunidade radical, que tem como gesto decisivo
aquela incorporação do inimigo que é também, e sobretudo, desapropriação
de si, implicada nas cosmopolíticas ameríndias (e que tem a terra não apenas
como limite, mas como meta).
E não deixa de ser prova de inteligência crítica em permanente revisão que,
às primeiras críticas de Eduardo Lourenço à reivindicação por intelectuais e ar-
tistas brasileiros, do romantismo ao modernismo e depois, dos indígenas como
figuras de origem alternativas a Portugal, e, por isso mesmo, encerradas no pas-
sado, suceda uma constatação muito simples e ainda hoje, porém, espantosa
para muitos, e não só fora do Brasil, enunciada pelo próprio crítico: «aqui no Bra-
12
sil [...], há de facto índios». Lourenço atribui a constatação à leitura dos poemas
de Affonso Romano de Sant’Anna: «Aquela coisa de ser índio, eu considerava
isso como algo retórico e poético, mesmo virtual, mas enganava-me. Trata-se de
uma reivindicação de uma espécie de um tempo outro, e o tempo outro só pode
13
ser efectivamente anterior à colonização».
12
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)» in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, p. 570.
13
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)» in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, p. 570.
260 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

A passagem de 1928 a 1930, por esse ângulo, talvez não represente a ruptura
que, de um lado, Oswald e, de outro, os novos romancistas adivinharam, mas uma
continuidade dialética. E podemos revisitar esse quadro nos termos da reflexão,
14
ainda, de Eduardo Lourenço. Nos ensaios de 1945 sobre literatura brasileira, a
questão do trágico já estava presente, sobretudo naquele acerca dos romances
então recém-publicados de Jorge Amado (Terras do sem fim e São Jorge dos
Ilhéus) e José Lins do Rego (Fogo morto). O crítico frisa, de início, a «coerência»
― que, aliás, julga maior do que nos livros anteriores desses autores ― «entre a
15
realidade dos seus personagens e a verdade dos seus conflitos». E é significati-
vo que reconheça exatamente nessa coerência, ou, antes, na «consciência» sem-
pre «mais nítida» que esses escritores têm «dos seus processos, possibilidades
e limitações», uma força incapaz de alterar «aquilo que o crítico europeu» (assim
Eduardo Lourenço se figura no ensaio) «considera em geral como excessivo», isto
é, «o primitivismo anímico de tipos e o desbordamento emotivo e lírico em que se
16
movimentam». Pode-se mesmo cogitar que esse primitivismo e esse desborda-
mento, que atordoam «o crítico europeu», mais do que não serem afetados por
aquela consciência autoral ou escritural, talvez nasçam precisamente dela ― e da
busca de afinidade, que ela implica num caso como o da literatura brasileira, com
modos de pensamento não-ocidentais, afinidade, que, porém, o crítico despreza,
em outra circunstância, como «culto de um dionisismo bastardo, promovido e glo-
17
sado como compensação da miséria e da impotência histórica real».
É uma outra concepção de literatura que se afirma assim, na qual a dimen-
são política se reveste de uma imediatez corpórea, mas também espiritual (aqui,
onde, como bem disse Oswald, «o espírito recusa-se a conceber o espírito sem
18
corpo» ), impensável a partir dos modelos europeus, sejam aqueles institucio-
nais, sejam aqueles revolucionários: «A sub-humanidade de moleques, capan-
gas, jagunços, tropeiros ou trabalhadores de usina vive as realidades imediatas
da vida com uma violência e ingenuidade de que nós não nos podemos dar per-
19
feita conta, no nosso mundo mais complicado, mais regrado e menos original».
Não será uma distorção ver, nessa passagem de Lourenço, um correlato analí-
tico do magistral explicit do ensaio de Montaigne sobre os canibais, no qual o
filósofo, depois de reverenciar a sabedoria política, mas também poética, dos

14
E a data é ela mesma, nos planos brasileiro e mundial, de despertar e de ressonhar.
15
Na verdade, para ser exato, diz que os romances «testemunham uma maior fidelidade [...] à coerência» ― e
essa multiplicação de instâncias (fidelidade à coerência, quando apenas coerência já daria conta) pode ser
vista como sintomática de um anseio de mediação justamente diante de uma literatura em que as mediações,
como veremos, faltam (ou, pelo menos, não se apresentam como seriam de se esperar para um «crítico
europeu»). In Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 103.
16
Eduardo LOURENÇO, «Novos romances brasileiros» (1945), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 103.
17
Eduardo Lourenço, «De um certo (e inevitável) antiportuguesismo da cultura brasileira. Para uma psicanálise
das relações entre o Brasil e Portugal», in Tempo brasileiro, p. 269.
18
Oswald de Andrade, «Manifesto antropófago» (1928), in A utopia antropofágica, p. 48.
19
Eduardo LOURENÇO, «Novos romances brasileiros» (1945), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 103.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
261
Eduardo Sterzi

indígenas do Brasil, diz, numa tirada à altura do desfecho de Some like it hot
(«Nobody’s perfect»): «Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo,
essa gente não usa calças!» («Tout cela ne va pas trop mal: mais quoy, ils ne por-
tent point de haut de chausses»). E, de fato, vale recordar, «moleques, capangas,
jagunços, tropeiros ou trabalhadores de usina» são ― de um ponto de vista cultu-
ral e político, mas também genético (que importa menos) ― índios, como bem viu
Eduardo Viveiros de Castro: «O homem livre da ordem escravocrata, para usar a
linguagem da Maria Sylvia de Carvalho Franco, é um índio. O caipira é um índio,
o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o camponês do interior do Nordeste
20
é um índio».
O que surpreende naquelas figuras ― naqueles sujeitos nunca de todo indi-
vidualizados, embora já extrapolando a representação tipológica convencional,
conforme já os encontrávamos nos Sertões de Euclides da Cunha ― é o contras-
te entre sua «humanidade sem futuro, perdida na pura fantasmagoria da fome
21
e do desespero» , e a esperança marxista que alimentava os escritores. Em
suma, a falta de um recorte mais ou menos nítido de classe, a que tampouco a
categoria acategórica (e caracteristicamente moderno-europeia) do lumpen dá
conta, exclui essas vidas tanto da pulsão futurista supostamente preponderante
no modernismo («os silenciosos retirantes de Vidas Secas, da mesma linhagem
22
dos sertanejos de Euclides, se dirigem para um futuro improvável» ), quanto da
própria utopia socialista. (O mesmo espanto ganha forma anedótica no relato
sobre Jorge Amado, comunista e «pai-de-santo» ― na verdade, obá de Xangô do
23
Ilê Axé Opô Afonjá. )
Tudo isso ganha peso maior, para a compreensão não apenas da literatura
brasileira, mas da própria perspectiva a partir da qual Eduardo Lourenço a mira,
quando se leva em conta sua proposição, em outra circunstância, de que Brasil
e Portugal são «os dois pólos de uma constelação cultural» ― uma constelação
«única no planeta, aquela que na Europa, na América do Sul, em África e na
Oceânia fala ou se ouve ainda em portuguesa língua, de todos os que a falam e
recriam e de ninguém» ―, mas também, mais concretamente ― isto é, passando,
de forma decisiva, pelo corpo, pela presença do corpo num determinado lugar,
que por essa presença mesma, em alguma medida, se indetermina ―, a partir da
visão de Salvador, ao fim da década de 50, na forma de «uma cidade como teria

20
Eduardo Viveiros de Castro, «“No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”» (2006), entrevista a Carlos
Dias Jr., Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogério Duarte do Pateo e Uirá Felippe
Garcia, in Eduardo Viveiros de Castro, org. Renato Sztutman, Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 147.
21
Eduardo Lourenço, «Guimarães Rosa ou o terceiro sertão» (1997), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
p. 159.
22
Idem.
23
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (entrevista por Rui Moreira Leite)» (2000), p. 565. O esclareci-
mento sobre o real modo de inserção de Jorge Amado na estrutura do candomblé é oferecido, em nota,
pela organizadora do volume.
262 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

24
sido Lisboa sem o terremoto». Isto é, talvez possamos extrapolar, uma Lisboa
deslocada para a outra margem do Atlântico, sem uma catástrofe pontual em
que se consiga identificar o momento da destruição (que, no entanto, está lá),
mas também sem o iluminismo (que é sempre um ilusionismo) da reconstrução.
É no contato direto com essa cidade a um só tempo tão familiar e absoluta-
mente estranha para um intelectual português («Na Bahia nós temos a impressão
de que, de facto, é outro mundo») que, conforme Lourenço recorda na mesma
entrevista, descobriu o «ouvido absoluto» de Jorge Amado, a capacidade que o
escritor tinha de apreender e inscrever em seus textos as vozes das ruas: «ele
captava instintivamente aquele falar da Bahia e aqueles seus personagens já me
pareciam menos extraordinários do que antes, porque, de facto, os seus perso-
25
nagens andavam na rua» (eis um modo prévio de dizer, como depois disse, con-
forme já vimos, que «aqui no Brasil [...], há de facto índios»). Nesse movimento,
não apenas «a cultura» antes «apenas livresca» ― isto é, marcada decisivamente
26
pela forte presença da literatura brasileira dos anos 30 no Portugal dos anos 40
― se torna realmente, no sentido mais abrangente da palavra, cultura; a própria
literatura, aí, se revela uma operação intelectual complexa, que não separa as
letras das vozes, antes se abre às vozes para que estas abalem as letras. E é
curioso ― embora compreensível para quem, na mesma entrevista, se confessa
27
«horrorosamente europeu» ― que o crítico, vendo, ou ouvindo, as coisas ainda
um tanto de fora, prefira ressaltar, no «ouvido absoluto» de Jorge Amado, o ins-
tinto em vez do intelecto, quando se tratava, na verdade, de romper a barreira
entre um modo e outro de aproximação ao mundo ― e de aproximação à escrita.
Ainda que Glauber Rocha, um cineasta, desempenhe um papel fundamental
na formação brasileira de Eduardo Lourenço, tendo sido o responsável, confor-
me registra, pelas suas incursões nos sertões de Euclides da Cunha e de Guima-
28
rães Rosa , e ainda que o crítico tenha feito a experiência direta da sociedade e
da cultura brasileiras, no período em Salvador, ele, quando o assunto é o Brasil,
se mantém dentro dos limites da literatura ou, mais exatamente, da textualidade
(engloba também a história e a sociologia, que lê, porém, romanescamente).

24
Eduardo Lourenço, «Nostalgia atlântica. Sobre Portugal e o Brasil» (1996) e «A miragem brasileira (Entrevista
por Rui Moreira Leite)», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, pp. 302 e 558.
25
Eduardo Lourenço, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)», in Tempo brasileiro: fascínio
e miragem p. 558.
26
«Quando vim para o Brasil, a cultura era apenas livresca, isto é, feita através de leituras, e como toda a minha
geração ― e já vinha um pouco da geração anterior ― estava a par do que naquela altura era novidade: o
impacto da cultura brasileira. Da literatura brasileira, mais que da cultura, explico melhor: pertenço a uma
geração para a qual Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz eram presenças
muito vivas no contexto cultural português.» Eduardo Lourenço, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui
Moreira Leite)» (2000), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 557.
27
Eduardo Lourenço, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)», in Tempo brasileiro: fascínio
e miragem, p. 564.
28
Eduardo Lourenço, «Nós só existimos no espelho dos outros» (1995), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
p. 222.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
263
Eduardo Sterzi

E, ao permanecer nessa zona exclusivamente textual, não tem como dar o de-
vido peso à operação de Glauber Rocha ao recorrer à poesia popular cantada
e à música de Villa-Lobos em seus filmes: apontar justamente para um além da
literatura que seria constitutivo mesmo da cultura literária brasileira, um além
― uma superação dialética, que leva consigo a literatura suprimida ― que, em
seguida a Glauber, a Tropicália exploraria como nenhum outro movimento (e não
por acaso, nela, a literatura propriamente dita desempenha papel menor diante
das outras artes).
E, porém, é justamente na Tropicália, redescoberta e revelação do moder-
nismo a partir da inspiração glauberiana, que as questões que se revelariam
centrais para a interpretação do Brasil por Eduardo Lourenço ganham sua formu-
lação mais radical ― e, justamente por isso, mais inaceitáveis, pode-se depreen-
der, para «o crítico europeu», que nelas veria talvez a quintessência daquele
«dionisianismo» rejeitado. No entanto, tudo nos pressupostos das suas leituras
brasileiras também aponta para esse Dioniso redivivo: da sua noção de um trá-
gico inapreendido pela tragédia até sua análise de Clarice Lispector, na qual vê:
«A sua viagem far-se-á de abandono em abandono, de distanciamento voluntário
da face escrita da vida em direcção ao pura e indizivelmente material, descida
ou “subida” ao inferno do que existe, tão humildemente aceite como marca do
real que dessa descida resulte, enfim, o encontro com o neutro divino, o aquém-
29
-humano presente no coração do homem». O problema é que esse «material»,
esse «aquém-humano», não é, na verdade, um lugar de pureza, como as noções
de ascese e de neutro podem fazer supor, mas, conforme nota a própria Clari-
ce Lispector nos últimos momentos de seu percurso literário e vital, quando diz
que «também o que presta não presta» e que há também «a hora do lixo» (que
coincide, aliás, quase integralmente com a «hora da estrela» ― e, portanto, com a
morte), esse «coração selvagem» é essencialmente impuro, englobando de uma
só vez Spinoza e os «romance[s] lacrimogêneo[s] de cordel».
Macabéa ― tanto quanto Lindoneia, a personagem de Rubens Gerchman e
depois de Gilberto Gil e Caetano Veloso ― é uma heroína tropicalista, isto é, uma
heroína «de nossa gente», em sentido residualmente marioandradiano (embo-
ra «nossa gente» já não seja o que era), isto é, menos uma síntese de um povo
preexistente do que o flagrante de um povo outro, subterrâneo embora «à flor
da pele», que as ideias correntes de povo não abarcam, ou abarcam mal, assim
como figuração de um povo por vir, ainda que sob a forma da morte. Nesse sen-
tido, podemos depreender que comer a barata é tanto uma variante do beijo ao
30
leproso de São Francisco de Assis, como a interpreta Eduardo Lourenço , quanto
uma retomada extrema do tema da Antropofagia como «devoração universal», o

29
Eduardo Lourenço, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
p. 153.
30
Eduardo Lourenço, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 153.
264 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

31
que ele não entrevê. A «plenitude do mínimo» ― em que eu e mundo coincidem
― só pode ser também esplendor barroco do máximo, e mesmo, utopicamente, do
todo, esse todo que, no entanto, jamais se computa completamente, do que resul-
ta que o monumento só possa ser, já de início, ruína. Há algo na Tropicália daquela
pretensão benjaminiana, que não por acaso tomou a forma de um bric-à-brac no
Trabalho das passagens, de abarcar, na visão da história, todos os momentos,
mesmo os mais esquecidos. Não por acaso, o Aleph é uma figura latino-ameri-
cana, e Eduardo Lourenço vê em Grande sertão: veredas uma «macromónada»
32
― «feito de miríades de mónadas, ou seja, de contos». Ou mais propriamente, de
estórias, de tragédias não propriamente rasuradas, mas em rasura.

REFERÊNCIAS
Andrade O. de (1990). Os dentes do dragão, org. Maria Eugenia Boaventura. São
Paulo, Globo.
Andrade O. de (1990). A utopia antropofágica. São Paulo, Globo e Secretaria de
Estado da Cultura.
Andrade O. de (2021). Obra incompleta, ed. crítica Jorge Schwartz. São Paulo:
Edusp, t. I.
Lourenço E. (1994). O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993). Lisboa,
Presença.
Lourenço E. (2018). Tempo brasileiro: fascínio e miragem, org. Maria de Lourdes
Soares. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
Castro E. V. de (2008). Encontros. Eduardo Viveiros de Castro, org. Renato Sztut-
man. Rio de Janeiro: Azougue.

31
Idem.
32
Eduardo Lourenço, «Guimarães Rosa ou o terceiro sertão», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 162.
OROPA, FRANÇA, BAHIA:
REGIONALISMO E PROVINCIANISMO
EM EDUARDO LOURENÇO

LUÍS BUENO*

Essas naus são meus tesouros,


ganhou-as matando mouros
o marido de minha tia!
Vêm dos confins do mundo...
De «Oropa, França e Bahia»!
(Ascenso Ferreira)

À época da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, em 1986, Eduar-


do Lourenço escreveu uma série de ensaios que seriam reunidos em 1988 no
volume Nós e a Europa ou as duas razões. Trata-se de um exercício de pensar a
Europa a partir de um ponto de vista ao mesmo tempo europeu, não europeu e
super-europeu. A análise é complexa e matizada e só é possível porque feita por
um português – em todo caso, um homem da Península Ibérica. As duas razões
referidas no título são a que se considera geralmente a razão propriamente dita,
de uma Europa hegemônica tipificada pela França, e a outra uma razão marginal
de cariz católico que, entretanto, tem papel central na formação da razão euro-
peia central.
Os textos vão desenhando a história de uma marginalização intelectual da
Península Ibérica em relação à tal «Europa hegemônica» que já estaria acabada
ao final do século XVII, ao mesmo tempo que consideram, no presente da escrita,
um reposicionamento da própria Europa no mundo do final do século XX, quando
o continente vive uma espécie de crise e «luta desesperadamente pelo seu esta-
tuto histórico e cultural, numa construção de identidade capaz de compensar a
1
sua antiga função de 'olhar do mundo'» .
*
Luís Bueno doutorou-se em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
em 2001. É professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária na Universidade Federal do Paraná (UFPR)
desde 1996. Realizou pós-doutoramentos na Universidade de Lisboa (2007-2008), no King's College London
(2014-2015) e na Universidade Nova de Lisboa (2022-2023). Publicou, entre outros, os livros Uma história do
romance de 30 (Edusp/ Editora Unicamp, 2ª ed 2015), Capas de Santa Rosa (SENAC/ Ateliê, 2016) e Paradeiro
(Ateliê, 2018, prêmio Machado de Assis 2019).
1
Eduardo LOURENÇO, Nós e a Europa ou as duas razões, 3 ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
266 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Num ensaio de título significativo, «Nós e a Europa: ressentimento e fascínio»,


a posição de Portugal na Europa é pensada exatamente a partir de sua experiên-
cia americana:
Na realidade, não só fomos sempre mais europeus do que nós mesmos podíamos
supor, como fora de nós nos tornamos hipereuropeus, criadores com os Espanhois
daquela realidade latino-americana onde a nossa cultura, obrigada a inventar uma
saída dentro do seu voluntarista isolamento ortodoxo, compensou em invenções de
uma originalidade insofismável o alheamento ou o descaso absurdo de uma aventura
do conhecimento que não podia existir sem risco e sem profunda mutação de atitude
2
intelectual .

Para Lourenço, portanto, Portugal está ao mesmo tempo à margem da Euro-


pa e no centro de sua história contemporânea. Se a emergência de uma nova
ordem, na qual a experiência latino-americana tem peso como força a questionar
ideologicamente o próprio centralismo Europeu, só pode fazê-lo a partir de pres-
supostos ligados à razão europeia, ainda que uma outra razão europeia, fruto de
uma profunda mutação.
A palavra provincianismo tem geralmente um sentido pejorativo, como se
o apego a um pedaço do mundo fosse em si um fator de limitação intelectual
e de vivência. Valeria a pena pensar que se trata de uma questão de dosagem.
O apego excessivo aos valores locais é que dá a ideia de provincianismo como
algo negativo. O provincianismo de Eduardo Lourenço é de outra natureza, nada
contendo de apego excessivo, mas sim de uma ousadia de ver o mundo a partir
de uma experiência nacional, no caso a de Portugal, uma experiência constituti-
va da «Europa» que o marginaliza. A partir de sua experiência como português,
Eduardo Lourenço pensa Portugal, é claro, mas dentro de uma equação que in-
clui as ambiguidades dos valores europeus, confrontados por valores estranhos
ou pelo menos divergentes a eles.
É munido desse provincianismo que o crítico olhará para o Brasil e para sua
literatura. E o fará de forma ampla e constante. Contribuiu para isso decerto a
circunstância de pertencer a uma geração que se formou num momento em que
a literatura brasileira era bastante lida e discutida em Portugal. Mas sua trajetória
é muito própria, e o fato de seu primeiro artigo de matéria brasileira, de março de
1945, a ser compilado em Tempo brasileiro: fascínio e imagem, ter sido motivado
pela morte de Mário de Andrade já demonstra sua especificidade em relação aos
demais nomes de sua geração. Quem percorre os periódicos portugueses dos
anos de 1920 aos anos de 1940 não deixará de constatar que Mário de Andrade
– assim como os demais escritores ligados à Semana de 22 – não passa de uma
grande ausência. Em seu artigo, o jovem de 22 anos demonstra surpreendente

1990, p. 53.
2
E. LOURENÇO, Nós e a Europa, p. 27.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
267
Luís Bueno

conhecimento da obra do poeta paulista e faz uma leitura muito atenta da cé-
lebre conferência O movimento modernista, publicada apenas três anos antes.
Nesse momento também é preciso destacar que a literatura brasileira servia de
referência em seus primeiros passos como crítico literário, mesmo quando trata
do romance português, como se vê nas resenhas a Alcateia, de Carlos de Oli-
3 4
veira e Casa da malta, de Fernando Namora , publicadas na revista Vértice em
maio de 1945 e fevereiro de 1946 respectivamente.
Essa identidade portuguesa ao mesmo tempo pouco e muito europeia, e sua
relação com Brasil, revela-se no plano mesmo pessoal em entrevista concedi-
da no ano 2000 a Rui Moreira Leite, que lhe pergunta como havia sentido sua
«iniciação à vida real na Bahia». Em sua resposta, Eduardo Lourenço rememora
a sensação de estranheza que teve ao chegar em Salvador em 1958 para um pe-
ríodo de um ano como professor de filosofia na Universidade da Bahia. Como se
trata de resposta longa, vamos examiná-la em três partes. Ele principia dizendo
isto:
Bom, antes de responder a essa pergunta, uma premissa... eu sou horrorosamente
europeu, não por ser português, mas porque em Portugal eu já era muito voltado
para a Europa, para a sua tradição cultural, mesmo não sendo muito racionalista.
Mas a verdade é que, mesmo tendo em conta a minha formação cultural, eu não tinha
armas, por mais abertura de espírito que houvesse, para, de forma muito positiva,
integrar estas coisas que ia conhecendo. A minha mulher é como se tivesse nascido
realmente em Angola, em Moçambique ou na Bahia, sendo francesa e da Bretanha.
5
Mas a mim aconteceu-me uma coisa extraordinária .

O que chama a atenção de saída é a autocaracterização como europeu – mas


não por ser português, e sim por ser um português meio fora de esquadro, volta-
do mais para a razão de uma Europa hegemônica do que seria de se esperar de
um ibérico. Mas eis que essa sua postura é confrontada com a de sua esposa, ela
sim nada portuguesa, antes 100% francesa, cuja racionalidade por assim dizer
inata não opõe resistência a essa realidade que, sendo brasileira, é ibérica, eu-
ropeia e não europeia ao mesmo tempo. Ora, isso instaura um paradoxo curioso,
aliás já anunciado pela percepção de que ele próprio não era assim tão racional.
A diferença absurda entre o que considerava razoável e aquilo que vê na Bahia
parece-lhe em princípio insuperável exatamente por quê? Salvo engano, em Por-
tugal ou em França naquela altura do século XX, um intelectual, fosse de onde
fosse, convidado para dar aulas de filosofia numa universidade, ficasse onde fi-
casse, tinha instrumentos para pensar que a racionalidade – aquela das ciências

3
Eduardo LOURENÇO, «Alcateia por Carlos de Oliveira», Vértice, Coimbra, n. 12-16, mai. 1945. pp. 52-54.
4
Eduardo LOURENÇO, «Casa da malta de Fernando Namora», Vértice, Coimbra, n. 22-26, fev. 1946. pp. 27-29.
5
Eduardo LOURENÇO, Tempo brasileiro: fascínio e miragem. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, pp.
564-565.
268 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

humanas, da antropologia e da linguística – era a maior arma para enfrentar essa


vida tão absolutamente diferente. Dizendo em outras palavras, era precisamente
a racionalidade o meio privilegiado para produzir uma abertura de espírito que
pudesse fazer do contato com uma vida tão diversa algo que provocasse mais
curiosidade do que repulsa. Psicanaliticamente, para usar uma abordagem que
tanto o interessou, esse impacto pessoal tão perturbador revela mais proximida-
de do que distância, quase um temor de ser um pouco menos europeu – e mais
português – do que julgava ser.
A sequência da resposta revela a difusa consciência que ele tem disso tudo:
A minha atitude – não digo colonialista porque não tem esta conotação – de estra-
nheza mudou desde que assisti, pela primeira vez, a um candomblé. Foi muito im-
pressionante. Começou aquela música e a certa altura eu tive que sair do recinto, não
porque me sentisse mal, mas porque aquele ritmo tinha uma influência mecânica,
fisiológica sobre mim. Era a mesma batida. Nós percebemos como aquele ritmo faz
parte de uma preparação para a discussão de si em que a pessoa fica num transe...
(Devo dizer não nasci muito para transe!...) Mas tive de sair, ir para fora, com um certo
6
medo. Tem realmente uma influência e um impacto...

A atitude inicial do intelectual perante a vida brasileira aparece caracterizada


sem qualquer disfarce como «de estranheza». No entanto, há a necessidade de
acrescentar que não se tratou de atitude colonialista. Mais uma vez a explicação
é a de que a racionalidade se viu afrontada, e literalmente afrontada. Numa ses-
são de candomblé, esse homem, que não se julga tão racional mas ao mesmo
tempo é possuído pela razão, vê-se na iminência de uma possessão de outro
tipo. Não por alguma entidade sobrenatural que se manifestasse naquele ritual
de uma religião tão diferente da tradição cristã (ainda que incorporasse algo
dela), mas pelo ritmo da música ali tocada, capaz de colocar em fuga o jovem
professor de filosofia. É significativo que ele sublinhe que não passou mal. O
incômodo não foi físico, como também não haveria de ter sido espiritual, mas
sim intelectual. Afinal, se não foi a postura colonialista contrariada nem alguma
manifestação espiritual, foi uma reação física que ameaçou com o transe aquela
constituição feita para o raciocínio. Eis o que impossibilita o europeu a «integrar
as coisas que ia conhecendo». Mas a resposta não acaba aí, há um último relato
a fazer.
E assistimos a uma coisa espantosa, ou seja, inacreditável para mim, porque o Jorge
Amado tal como o lemos nos livros é de esquerda e naquela altura esta ideologia
de esquerda era pouco compatível com as manifestações ditas primitivas. Então, com
grande espanto, fomos convidados para assistir à iniciação, à entronização de Jorge
Amado como pai-de-santo. E lá estivemos. Eu disse para mim mesmo: «Não é possível

6
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 565.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
269
Luís Bueno

que este homem esteja ao mesmo tempo de um lado e de outro...» E ele estava,
mais do outro do que daquele que eu pensava estar, o ocidental. E aí sim, embora
eu naquela altura não tivesse reflectido muito sobre isso, provavelmente a minha
atitude seria muito diferente se isso se passasse em São Paulo ou mesmo no Rio. Na
Bahia nós temos a impressão de que, de facto, é outro mundo. Já são outros padrões
7
culturais, outros códigos... E que é esse o Brasil, o Brasil profundo .

Tudo parece estar deslocado ali. O escritor brasileiro de esquerda por força
deveria participar de alguma modalidade da mesma racionalidade do intelectual
europeu, ou ocidental. No entanto, não só o brasileiro não foge ao transe como
8
mergulha nele, a ponto de ser entronizado como pai-de-santo . É o outro lado de
sua própria estupefação, que só pode se resolver, de forma bem pouco racional,
por meio de uma suposição tranquilizadora, a de que em outros lugares do Brasil
essa estranheza não teria acontecido. Suposição tranquilizadora mas frágil, que
precisa apelar para uma ideia como a de que há um «Brasil profundo» e que ele
se encontra em estado puro nalgum lugar do território e não noutros. Se há um
Brasil profundo, ele está em toda parte e em parte alguma. Os desníveis que
parecem insuportáveis a Eduardo Lourenço são perceptíveis mesmo nas grandes
cidades brasileiras como São Paulo e Rio, ainda hoje, e seria preciso um esforço
imenso de alienação para não testemunhá-los numa estadia de quase um ano
nessas cidades como foi a sua em Salvador. E isto fica claro nas impressões que
Lourenço deixou registradas sobre a inauguração da Faculdade de Filosofia de
Assis, no interior de São Paulo, que, na mesma entrevista caracterizaria como «o
faroeste», «mais extraordinário que Hegel na Bahia» e arrematando: «Assisti à
9
fundação de uma Universidade como se estivesse na Idade Média» .
Tudo isso dificulta a compreensão de que Jorge Amado estivesse de um lado
e de outro. Esse tema, aliás, pode nos remeter à crítica que em Portugal se fa-
zia do romance brasileiro. Ao ver incompatibilidades teóricas na vida empírica,
Eduardo Lourenço se aproxima um pouco de João Gaspar Simões, por exemplo,
para quem a literatura brasileira dos anos 30, que tanto interessara ao jovem
crítico em formação, estava fadada a se realizar no plano da objetividade e seria
incapaz de introspeção, que para o velho crítico só poderia existir na literatura de
países velhos, como se só houvesse psicologia no homem europeu.
Não é isso, todavia, que Lourenço expressa como crítico. Em texto inacaba-
do sobre Gabriela cravo e canela, escrito pouco depois de sua experiência na
Bahia, o poder encantatório da música é evocado e a distância em relação à
geração de Simões é sublinhada:

7
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 565.
8
Para sermos precisos, Maria de Lourdes Soares esclarece que na verdade Jorge Amado não foi entronizado
como pai-de-santo, mas recebeu naquela ocasião o título honorífico de Obá de Xangô do Axé Opô Afonjá.
9
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 566.
270 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Por altura dos anos 40, numa então jovem geração portuguesa, passava-se de mão
em mão como um disco um pequeno livro brasileiro cuja prosa tinha o privilégio de
«encantar» no sentido próprio do termo. Do seu balanceamento, da sua brutalidade
lírica, do para nós exótico universo que ele pintava menos que cantava, retínhamos
sobretudo a música e sua primária virtude encantatória. Chamava-se esse livrinho
Mar Morto. Para a geração mais velha o visível processo era um defeito, para nós
uma «descoberta» que nos libertava do analitismo caseiro sem cor a que estávamos
habituados para um mundo odorante, sangrento, bárbaro e lírico, rolando em sua
estranha esfera metafórica uma mesma obsessão rítmica em torno da paisagem fata-
lizada, sumptuosa e impassível ao mesmo tempo onde, mais do que a festa e o com-
10
bate de homens, eclodiam a festa e o combate do sexo, da morte e seus sortilégios .

Ao lado do poder da música, como se vê, há um outro elemento a atrair o jo-


vem leitor: a fuga da racionalidade – ou do analitismo – em direção a um mundo
bárbaro e exótico. A literatura brasileira surge, nessa concepção, como uma pos-
sibilidade de transe que, por ser vicário, muito diferentemente do transe efetivo
quase experimentado em 1959, pode ser vivido e apreciado em sua plena força.
Essa aceitação integral parece nivelar tudo aquilo que constitui a obra, de forma
que a impossibilidade de estar dos dois lados nem é aventada, como se o encon-
tro entre posicionamento político de esquerda e adesão às religiões populares
afro-brasileiras fosse natural na obra como não seria no ritual. E o fato é que
esse encontro dos dois lados é elemento central na concepção de Mar morto,
e foi apontado como contraditório e problemático já por seus contemporâneos
11
no Brasil . Mas é possível compreendê-lo como orgânico, parte fundamental do
projeto do jovem Jorge Amado em sua busca por uma literatura que se consti-
tuísse como engajada ou proletária pela instituição de um heroi popular, ou seja,
como romance fundamental pela tentativa de lidar com o romance dito proletário
fora dos padrões definidos pelas diretrizes soviéticas.
De toda maneira, é notável a forma com que o jovem Eduardo Lourenço apre-
ciou a literatura de Jorge Amado em contraste com a experiência concreta de ver
o mesmo Jorge Amado inserido na realidade “exótica” de um ritual do candom-
blé para apontar como a apreciação por parte do crítico da literatura brasileira
do período entre as décadas de 30 e 60 – para não falar do cinema – sempre
passou pelo que ele repetidamente caracterizou como pertencente ao campo do
bárbaro. Numa carta de 2008 a João Nuno Alçada, Annie Salomon Faria, esposa
de Lourenço, confirma e comenta a estranheza que ele reconhece ter sentido,
nos seguintes termos:

10
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 107.
11
Ver Rubem BRAGA. «Luiz da Silva e Julião Tavares», Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 27, mai. 1937, pp.
3-4 e Graciliano RAMOS. «Decadência do Romance Brasileiro», Literatura, Rio de Janeiro, n. 1, set. 1946, pp.
20-24.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
271
Luís Bueno

Os dias passados na descoberta do Brasil foram momentos felizes – uma vez que
eu gostei sempre de descobrir outros mundos, pessoas diferentes – mas o Eduardo
sentiu-se completamente perdido nesta terra do Outro Mundo semiafricano, que ele
abordava com uma certa estupefacção traduzida por uma espécie de recusa deste
mundo colorido onde se juntava o melhor e o pior, modernismo e ‘magia’ primitiva...
eu achava que ele não se tinha ainda despojado de alguns ‘preconceitos’ de país
12
colonialista .

Não é difícil concluir do que dizem ambos, que a reação de Annie fora de
alguém cosmopolita, enquanto a de Lourenço fora ou «colonialista» como diz
ela e nega ele – ou ao menos provinciana. Aqui, consideraremos tanto a aceita-
ção imediata da contradição entre religião popular e marxismo em Jorge Amado
quanto sua recusa posterior como manifestações daquele provincianismo no
bom sentido. É que, no caso da forma como Lourenço olha para o Brasil, sua
postura radicalmente portuguesa, constitui um ponto de vista que lhe permite
ver a literatura brasileira de maneira muito rica e, supreendente mas não contra-
ditoriamente, cosmopolita.
Isso se nota particularmente na maneira com que ele tratará do regionalis-
mo, uma tendência da literatura brasileira que, no Brasil, gera grande confusão
e dá azo às mais diversas manifestações do pior provincianismo. Para discutir
essa questão, partamos de um ponto ainda exterior à literatura, para captar
uma disciplina de pensamento que ele utilizará para pensar o regionalismo.
Em texto de 1954 – escrito portanto entre o entusiasmo do jovem crítico com a
literatura brasileira e sua experiência de um ano no país –, «As faculdades de
filosofia no Brasil e o destino da sua cultura», seu tema é o desenvolvimento
13
daquilo que ele chama de «disciplinas do espírito» e da «rápida proliferação»
de faculdades de filosofia no país. O objetivo do ensaio é o de pensar em que
termos seria o desenvolvimento mais eficiente e mais enriquecedor dessas dis-
ciplinas nesse novo contexto. E seu ponto de partida é exatamente Portugal.
Ele começa tratando da tradição filosófica portuguesa e seu autodidatismo, que
ele vê como característica também do Brasil. Acentua que é preciso fazer, tan-
to num como noutro país, um esforço de erudição que passa pelo estudo dos
«textos originais dos filósofos» para se «descobrir ou talhar na nossa língua
uma terminologia adequada às necessidades actuais da expressão filosófica»,
já que as «oportunidades oferecidas ao pensamento brasileiro permitem-nos
pela primeira vez a esperança de realcançar para a filosofia em língua portu-
guesa aquela audiência universal que perdemos quando o latim deixou de ser
14
a língua comum dos filósofos» . Para isso, no entanto o pensamento brasileiro

12
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 564.
13
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 175.
14
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 177.
272 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

precisaria se descolar de algumas tentações. A maior delas seria aquilo que, na


lógica que procuramos estabelecer aqui, seria fugir do provincianismo, e isso
expresso de uma forma muito original: «É legítimo e natural que o Brasil se ame
a si mesmo naquilo que é, como todos os povos, mas que não ceda à tentação
15
de tomar demasiado à letra o contentamento alheio por ele» . A outra seria es-
pelhar-se demais naquilo que vinha dos Estados Unidos ou mesmo naquilo que
viesse da própria Europa, num gesto acerca do qual ele próprio comenta, sobre
si mesmo, que «mais estranho é ver um europeu sustentar a necessidade de o
16
Brasil se defender da Europa» .
Em suma, para ele, o pensamento brasileiro, assim como sua arte, precisa
encontrar seu caminho dentro de um mundo que, sendo português, americano e
europeu, precisa ser, no Brasil, outra coisa. E esta forma de pensar o coloca do
outro lado em relação a João Gaspar Simões, para quem à literatura brasileira
faltava sempre aquilo que ela não poderia ser: europeia. É essa forma particular
de ver o mundo a partir do Brasil que lhe interessou em Jorge Amado num pri-
meiro momento e que o entusiasmou em Glauber Rocha, a quem dedicou pági-
nas de grande admiração.
No que toca ao regionalismo, sua disciplina de pensamento é análoga.
Em comunicação escrita mais de quarenta anos depois de seu texto sobre
as faculdades de filosofia, ele apresenta a tese de que a literatura brasileira
havia criado três sertões. O primeiro é o de Euclides da Cunha, cuja obra-
-prima parece ao crítico «mais importante do que a provocatória revolução
17
modernista» , tendo sido capaz de revelar o que ele chama de brasileiro
autêntico, aquele que viveu sem olhar para a Europa. O segundo é o daquela
geração que o encantou, a de Jorge Amado, um «sertão banalmente épico,
18
de uma violência inocente» . Essa geração foi capaz de levar a imagem do
Brasil para o mundo inteiro, especialmente para a Europa, um «consumidor
19
de exotismo e tragédia alheia» . O terceiro é o de Guimarães Rosa, que
«descobre a universalidade de um combate, indissociavelmente terrestre e
celeste, que tem como centro cada ser humano e como teatro o Sertão,
20
assimilado ao mundo inteiro» . Se a reflexão parasse por aqui, a leitura de
Lourenço pouco diferiria da que a crítica brasileira fez da obra do escritor mi-
neiro, que insistiu desde a década de 1950 em seu estatuto de autor «univer-
sal». Mas o crítico dá um passo a mais e desenha essa universalidade dentro
21
da lusofonia porque, para ele, o sertão de Rosa é o «sertão-linguagem» ,

15
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 179.
16
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 181.
17
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 158.
18
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 159.
19
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 160.
20
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 160.
21
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 162.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
273
Luís Bueno

um universo na língua portuguesa que, por mais específico que parecesse,


com suas palavras vindas sabe-se lá de onde, encontrava-se com a tradição
literária portuguesa, de Bernardim Ribeiro a autores do final do século XX,
como Maria Velho da Costa e Almeida Faria, nomes que Lourenço indica
22
explicitamente num outro texto, «Os sertões de Portugal» , como roseanos
em algum sentido.
Nesse texto, portanto, ele integra a experiência de Guimarães Rosa a uma
tradição mais longa de se pensar o Brasil defendendo-o, pelo menos um pouco,
da racionalidade europeia – ainda que, especialmente no caso de Euclides da
Cunha, os instrumentos intelectuais para levar a cabo esse pensamento fossem
os fornecidos pela Europa no século XIX. De toda maneira, precisamente porque
ao final desse processo o terceiro sertão, sem deixar de ser o sertão brasileiro,
ou talvez porque o seja, pôde ser o lugar e o tempo ao qual, para além dos
exotismos, essa não-Europa que é a super-Europa, Portugal, integrou-se com
naturalidade.
É a propósito do autor de Sagarana que o termo regionalismo será discutido
por Lourenço, num texto inacabado que Maria de Lourdes Soares data do final de
1969 ou pouco depois, «Aquilino Ribeiro e Guimarães Rosa». Vale a pena evocar,
para estabelecer o contraste, um artigo da mesma época do crítico brasileiro
Antonio Candido, em que se discute a obra de Rosa em relação ao regionalis-
mo. Candido entende o termo «regionalismo» sempre em mau sentido, como
uma vertente provinciana que tende a folclorizar a vida vivida longe dos centros
urbanos. Sendo assim, para ele Guimarães Rosa não é regionalista, mas«“super-
-regionalista», exatamente por superar aquilo que no regionalismo seria negati-
23
vo, «o pitoresco e o documental» (Candido 1987: 162) como, aliás, teriam feito
outros autores latino-americanos, Juan Rulfo e Alejo Carpentier, por exemplo.
No fundo, fica a ideia de que o termo regionalismo se opõe à ideia de universa-
lidade.
Vejamos agora como Eduardo Lourenço pensa o regionalismo:
O termo «regionalismo» […] é uma dessas misérias da chamada crítica que mal me-
rece ser elucidada. Quem não sabe que todas, mas todas sem excepção, as grandes
obras literárias são, no mais estrito sentido do termo, regionais? Só um criticismo abs-
tractamente universalista, mas que jamais nos disse em que consistia a universalida-
de, pôde adoptar esse termo como conceito crítico e ainda por cima, pejorativo, como
sinónimo de literatura provinciana. Era gente que achava o manoir de Emma Bovary

22
É curioso que, tendo conhecido Almeida Faria, tive a oportunidade de conversar com ele sobre Guimarães
Rosa, que, aliás, ele próprio trouxe para a conversa, contando que lera o primeiro volume do Corpo de baile
assim que foi publicado em Portugal, leitura que o impressionou, entre outras coisas, porque lá ele encontrara
palavras que ele tinha como de sua infância no Alentejo. Quando nos reencontramos dias depois, ele me
mostrou seu exemplar, todo anotado ainda no início dos anos 60.
23
Antonio CANDIDO. «Literatura e subdesenvolvimento». In: Antonio CANDIDO, A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1987, pp. 140-162.
274 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

mais «universal» que qualquer quintinha do Minho ou fazenda de S. Paulo, gente que
jamais tomou a sério a infantil sugestão do catecismo de que «Deus está em toda a
parte». Para eles Deus, sobretudo da literatura e dos objectos dignos dela, encontra-
va-se em Paris, Londres ou Petrogrado. Mais tarde os mesmos descobriram-no em
casa, mas sob reserva de que se tratasse de temas universais, como se eles faltas-
24
sem em qualquer lugar da terra transfigurado pela nossa subversiva respiração .

O crítico chega a esse ponto olhando, mais uma vez, de Portugal ou, mais es-
pecificamente, da obra de Aquilino Ribeiro, que propõe ser pensada em conjunto
com a de Guimarães Rosa. E curiosamente partindo do pressuposto de que não
são obras semelhantes: «O que os aproxima é que nada os aproxima […]. As suas
obras têm o privilégio raro de não parecerem ligar-se a nada mais que à imedia-
ta necessidade de exprimir o singular, primordial e profundo mundo animal e
25
humano que os rodeia» . Fincadas em experiências específicas dos confins do
mundo, são obras que se fundam num universo mental que escapa à racionali-
dade. Sua qualidade não é a de instaurarem uma mitologia – como aliás o crítico
considera que Jorge Amado fizera – mas por se afastarem da reflexão: «No que
têm de único e valioso são eco e palavra de um mundo ainda não coberto por
26
uma explicação de si mesmo» .
Em suma, para Antonio Candido o regionalismo é provinciano. Sua visada so-
bre a literatura brasileira, nesse sentido, finca os pés na Europa, aquela Europa
da racionalidade hegemônica que seria cosmopolita digamos que por natureza.
A visão de Lourenço, por sua vez, seria em princípio provinciana, já que está
fundada em Portugal. Mas não se pode esquecer que Portugal é aquele espaço
e aquele tempo europeu, não-europeu e super-europeu ao mesmo tempo. Ao
contemplar o Brasil e seus confins, o que interessa a essa visão é a forma como,
evitando o perigo de ser americano, ou europeu, ou português (embora possa
ser e seja tudo isso) o regionalismo possa se constituir numa outra razão. Na
lição do Álvaro de Campos entediado de «Opiário»:
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
27
E há só uma maneira de viver .

24
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, pp. 134-135.
25
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 134.
26
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 139.
27
Fernando PESSOA. Obra poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 303.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
275
Luís Bueno

Na lição do pessoano Eduardo Lourenço, a terra continua semelhante e pe-


quenina, mas essa semelhança é também dessemelhança e a pequenez é vasti-
dão. Há só uma maneira de viver, que se manifesta em inúmeras formas de viver.
Por isso, vale a pena ir dar com os costados na Índia ou na China. Ou em Oropa,
França, Bahia.

REFERÊNCIAS
Braga R. (1937). «Luiz da Silva e Julião Tavares», Revista Acadêmica, Rio de Janeiro,
n. 27, mai., pp. 3-4.
Candido A. (1987). «Literatura e subdesenvolvimento». In: Antonio Candido, A edu-
cação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, pp. 140-162.
Ramos G. (1946). «Decadência do Romance Brasileiro», Literatura, Rio de Janeiro, n.
1, set., pp. 20-24.
Lourenço E. (1945). «Alcateia por Carlos de Oliveira», Vértice, Coimbra, n. 12-16,
mai., pp. 52-54.
Lourenço E. (1946). «Casa da malta de Fernando Namora», Vértice, Coimbra, n. 22-
26, fev., pp. 27-29.
Lourenço E. (1990). Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 3ª ed.
Lourenço E. (2018). Tempo brasileiro: fascínio e miragem. Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian.
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE
EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO
RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO

TALLES FARIA*

A quase dois anos das efemérides que assinalariam os “cinco séculos brasi-
leiros”, sintetizadas na fórmula “Brasil 500 Anos”, uma imagem se destaca em
meio à Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, sobressaindo às campanhas elei-
torais daquele ano de 1998, e capta o olhar atencioso de Eduardo Lourenço,
hospedado de frente a ela:
Uma imagem do globo em forma de laranja azul, como a sonhou Paul Éluard e a vi-
ram, dos altos dos céus, Titov e Armstrong [...]. No centro da imagem, como é natural
aqui, está a América do Sul, por sua vez quase ocultada pela enorme mancha verde
do Brasil. [...] É o cartão de identidade do Brasil no limiar do terceiro milénio. A ima-
gem atlântica do globo com o Brasil no meio serve de quadrante ao relógio sobre o
1
qual deslizam os ponteiros das horas e dos segundos. (TB: 385).

Tempo brasileiro sempre apontado para o futuro. O relógio, bem como sua
inscrição, não era exatamente o modo pelo qual “o Brasil se deseja comemorar”,
como supõe o ensaísta que nele observa, com perspicácia, uma dupla rasura: a
amputação da cronologia indígena e do próprio evento que em 22 de abril de
2000 completava os seus quinhentos anos, o desembarque da armada cabralina
nas terras tupiniquins que viriam a ser o litoral baiano. Tratava-se, enredada ao
conjunto das ações do final do primeiro mandato do governo de Fernando Hen-
rique Cardoso, de veiculação ao encargo da Rede Globo de Televisão, assinada
pelo designer Hans Donner, nascido na Alemanha, criado na Áustria e emigrado
para o Brasil. Tratava-se não tanto do modo pelo qual “o Brasil se deseja co-
memorar”, mas do modo pelo qual a Rede Globo desejava comemorar o Brasil,
diferença significativa quando se tem em vista a observação machadiana de que,

*
Talles Faria é Doutor em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas pela Universidade do
Minho, mestre em Estudos Literários e graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Atua nas áreas de literatura brasileira, teoria da literatura e filosofia, interessando-se também pelo ensaísmo
ibero-americano.
1
Usaremos a edição dos textos de temática brasileira de Eduardo Lourenço no volume IV das suas Obras
Completas, pela Fundação Calouste Gulbenkian: Tempo Brasileiro. Fascínio e Miragem, edição de Maria de
Lourdes Soares. Lisboa, 2018. O volume será referido pela abreviação TB, seguido do número de página.
278 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

entre os muitos Brasis possíveis e factíveis, há um “Brasil real” e um “Brasil ofi-


2
cial” . No hotel da Avenida Atlântica, com a imagem de Hans Donner talvez a
invadir-lhe a janela, Lourenço viu um símbolo do “Brasil oficial”, que não está
separado, como mônada, do “Brasil real”, antes com ele se mesclando, dele se
apropriando, influindo, tensionando, caricaturando – gerúndios que servem para
destacar a incompletude e a dinâmica não raro violenta do caráter processual
desta relação no tempo brasileiro. As reproduções do referido relógio sofreram
depredações nas capitais do país; mais do que a rasura dos lusos e dos tupini-
quins que pela primeira vez se viam em 22 de abril de 1500, data implícita do
nascimento do Brasil com certidão lavrada por Caminha, grupos se levantaram
contra a própria ideia da celebração, a sustentarem que nada havia de se come-
morar a propósito do que não fora “descoberta”, mas “invasão”. Desconheço
se isto chegou ao conhecimento de Lourenço. Não sendo tupiniquim, tampouco
português, particularmente prefiro a ideia de nascimento às outras duas: o re-
bento, rebelde ao pai e à mãe desde o berço, não ficou para Pindorama, como
não ficou para Santa Cruz, antes, preferiu dizer-se como nos versos de Carlos
3
Drummond de Andrade :
Por que Brasil e não
outro qualquer nome de aventura?
Brasil fiquei sendo
serei sendo nas escritas do sangue.
[...] Brasileiro sou,
moreno irmão do mundo é que me entendo
e livre irmão do mundo
me pretendo.

E é a percepção para este gesto de rasura genealógica, que o relógio dos


500 Anos transparecia e que não escapara ao olhar atento do ensaísta, o que
faz a observação de Lourenço encontrar-se com a de Darcy Ribeiro, um dos pen-
sadores mais originais do Brasil: ali, na mancha verde e continental que é o seu
estender-se pelo mapa da América do Sul, o brasileiro operou uma rasura em
sua tríplice matriz formadora, na qual o indígena se desindianizou, o africano se
desafricanizou e o europeu se deseuropeízou para que, nesta “ninguendade”
que não se identificava integralmente a nenhuma de suas matrizes, conservan-
do elementos de ambas, passasse a se apropriar de uma identificação que

2
Trata-se de crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, em 29 de dezembro de 1861, na coluna “Comentários
da semana”: “Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela
os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas
viagens cabe-nos perfeitamente. No que diz respeito à política, nada temos a invejar ao reino de Liliput”.
In Joaquim M. Machado de ASSIS, Crônicas, vol. I, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson,
1942, p. 111.
3
Carlos Drummond de ANDRADE, Poesia e prosa, 6ª ed., Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988, pp. 430-431.
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
279
Talles Faria

primeiro lhe foi imputada pelo trabalho de extração do pau-brasil, para ressigni-
ficá-la com um sentido novo que ainda não havia no mundo, a de ser brasileiro.
Se ainda vigora alguma antropofagia cultural no Brasil, a mais significativa é esta:
o apropriar-se para reinventar com outra conotação. Ao lado de Darcy Ribeiro
e de outros intelectuais que se dedicaram a pensar o Brasil, Eduardo Lourenço
parece ser uma das figuras que bem captaram essa ânsia de futuro, de ser em
devir, que dominou a maior parte do “tempo brasileiro”, desde os primórdios de
sua literatura colonial já instauradora de visagens e utopias, entre messianis-
mos e milenarismos. E, ainda que se sentisse excluído da festa, Lourenço teve
a generosidade de saudar “a actual nação-continente, construída penosamente
ao longo de cinco séculos” (TB: 385), ao contrário, por exemplo, da filósofa bra-
sileira Marilena Chauí que, na mesma oportunidade, encerrava o último capítulo
de uma das edições promovidas pelos “500 anos” com a afirmação taxativa de
4
que, afinal, na história do Brasil, “não há o que comemorar” , postura pouco
surpreendente em certo setor da academia brasileira.
Lourenço arremata o seu conciso balanço dos “500 anos” em tonalidades
positivas, mas sem resvalar, entretanto, para qualquer suposição de harmônicas
mitologias lusófonas:
As nossas contas com o Brasil estão saldadas desde sempre. São contas nossas. As
que o Brasil tem conosco são só dele e só ele as conhece. Esperemos, calmamente,
que o Brasil nos descubra. Descobrindo-se. Já não é sem tempo (TB: 386).

Este balanço deve levar em conta, por um lado, aquilo que Lourenço, a par-
tir de um comentário de Medeiros de Freitas acerca das recém-independentes
colônias africanas e as más relações que em 1976 se estabeleciam entre estas e
Portugal, destaca com sua sensibilidade costumeira: nas relações pós-indepen-
dência entre colônia e metrópole é não apenas natural, mas estratégico, que a
primeira expresse uma "má vontade concertada" (TB: 374), a qual não apenas
responde pelo natural ressentimento pela colonização, como serve também para
reposicionar o território e a população independentes no concerto das nações.
Por outro lado, é esta uma etapa transitória e que, apesar de seu natural res-
sentimento, não é suficiente para obliterar os efeitos culturais dos séculos de
domínio colonial e tampouco o deve procurar fazer de forma absoluta. Há perma-
nências, não apenas negativas, mas positivas, e não há por que não as conservar
– sugestão esta feita por Amílcar Cabral no contexto das independências das
5
antigas colônias portuguesas em África . Junto à influência indígena e africana,

4
Marilena CHAUÍ, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2000, p. 59.
5
“Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos
e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome
os caminhos ascendentes da sua própria, cultura que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto
as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras”. In Amílcar CABRAL,
280 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

país mestiço que é, a formação do Brasil só pode ser pensada levando-se tam-
bém em consideração a sua influência lusa, manifesta nas curvas do barroco
que, fazendo-se tropical, e, por vezes, oriental, traça uma espantosa linha de
continuidade, por exemplo, entre Minho e Minas (TB: 388); nas práticas culturais
e religiosas, nas violas do samba e da música caipira, nas pastorinhas, nas festi-
vidades da Semana Santa que são quase as mesmas entre Braga e Ouro Preto,
nos farricocos da Procissão do Fogaréu que chocam os espíritos assustadiços da
classe média das capitais que subvertem não apenas a cultura, mas a cronologia,
para inculcar numa tradição íbero-brasileira do século XVIII, católica, abstrusos
liames com a Ku Klux Klan fundada no século XIX e em franca oposição ao cato-
licismo. É este um Brasil que se perde e se desconhece, motivo pelo qual se há
de concordar aqui com Lourenço:
Pouco importa já que o Brasil não nos veja. Mais importante é saber que o Brasil não
se poderá ver a si mesmo sem nos ver. O progresso da sua autognose só pode ser o
do aprofundamento da sua substância lusíada. (TB: 252).

Como também indígena e africana, formadoras da base social que, posterior-


mente, receberá uma miríade de outras culturas que virão encontrar a sua base
social já consolidada.
A questão que se impõe é a de que, tendo-se em conta o gesto de rasura
que a cultura brasileira estabelece para com suas matrizes – e lembro aqui, ape-
nas para dar um exemplo desta tendência na arte popular, o samba de Candeia
(1977): “Eu não sou africano, não / nem norte-americano, / ao som da cuíca e
6
pandeiro / sou mais o samba brasileiro” – o discurso do “Brasil oficial”, especial-
mente após a proclamação da república, traz quase sempre implícito um rasgo
de antilusitanismo que não encontra paralelo no que diz respeito às outras ma-
trizes culturais. Marca de um ressentimento compreensível, afinal, o colonizador
que dirigiu o país, com menor ou maior controle, foi o português; ao mesmo
tempo, excesso deste mesmo ressentimento, pois o português pouco teria feito
no Brasil, e baixíssima resistência oporia a franceses e a holandeses, sem as
sucessivas alianças entre Diogo Álvares Caramuru e Taparica [séc. XVI], na Bahia;
João Ramalho e Tibiriçá [séc. XVI], em São Paulo; sem a liderança de Arariboia
contra franceses e tamoios na Guanabara [1567] ou a de Felipe Poti contra os
holandeses em Guararapes [1648-1649]. Transcorridas as lutas de independên-
cia – não tão de gabinete como certo senso comum historiográfico brasileiro
procura sugerir, quando se não deveria esquecer dos mortos da Batalha de Je-
nipapo [13 mar. 1823], no Piauí, do heroísmo de Maria Quitéria e da marisqueira

«Libertação nacional e cultura», in Manuela Ribeiro SANCHES, ed., Malhas que os impérios tecem. Lisboa:
Edições 70, 2011, p. 361.
6
Antônio CANDEIA, «Sou mais o samba», in Quatro grandes do samba, Sony Music Enterteinment Brazil LTDA,
1977.
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
281
Talles Faria

Maria Filipa de Oliveira na Guerra de Independência na Bahia [19 fev. 1822 - 7 jul.
1823] – o ressentimento era inevitável: daí se seguiram as contendas conhecidas
como “Mata-Maroto” na Bahia e “Mata-Galego” no Rio, entre 1831-1840, também
motivadas pela abdicação de D. Pedro I; os românticos brasileiros, a partir da pu-
blicação da Revista Nitheroy, em 1836, dão início literário ao lastro da identidade
7
brasileira instaurada no indígena ; ao longo do XIX, o domínio português dos
8
comércios e especialmente dos imóveis no Rio de Janeiro aumentam ainda mais
a tensão, ao ponto desta ser vetorizada na figura de João Romão, o proprietário
português d’ O cortiço, romance publicado por Aluísio de Azevedo em 1890; e,
ainda, a própria ideologia de “branqueamento”, política eugenista da nascente
república brasileira, associada a um discurso de “modernização” atravessado
pelas contradições urbanas suscitadas pela exclusão das camadas populares
brasileiras do direito à propriedade privada, privilegiava, inegavelmente, ao por-
tuguês em comparação com o pardo brasileiro e, mais ainda, com o negro, que
começam essa disputa em grande defasagem pelo escravismo vigente no perío-
do colonial, mantido pela monarquia e não de todo superado pela república. Em
suas memórias, o romancista mineiro Cyro dos Anjos relembra nestes termos o
antilusitanismo no Brasil já adentrada a segunda década do século XX:
Tinha-se medo de infringir o luso Figueiredo [António Pereira Cândido de, gramático,
filólogo, lexicógrafo], como uma beata de pecar contra os mandamentos. Isso trazia
uma raiva surda, um rancor só comparável ao que provocava a análise de trechos de
Os Lusíadas, catados a capricho, para massacrar o preparatoriano. Tudo contribuin-
9
do para fortalecer a birra aos irmãos d’além-mar.

Birra que mobilizará a primeira geração modernista responsável pela Se-


mana de 1922, à qual mesmo o Manoel Bandeira da “Evocação do Recife”
não se mostrará indiferente ao reivindicar a “língua errada”, isto é, a “língua

7
O que é sempre renegá-la a outros grupos, inclusive dos próprios grupos indígenas, uma vez que o indígena
romântico é sempre o tupi, elemento dominante do que há de autocolonização na colonização/invenção do
Brasil. Machado de Assis, em pelo menos duas oportunidades, apontara ressalvas ao artifício indigenista
romântico. Numa crítica ao Uraguai de Basílio da Gama, publicada em 1858, é taxativo: “Sem trilhar a senda
seguida pelos outros, Gama escreveu um poema, se não puramente nacional, ao menos nada europeu. Não
era nacional, porque era indígena, e a poesia indígena, bárbara, a poesia do boré e do tupã, não é a poesia
nacional. O que temos nós com essa raça, com esses primitivos habitadores do país, se os seus costumes
não são a face característica da nossa sociedade?” (Joaquim M. Machado de ASSIS. Obra completa, vol. III.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 785). Avaliação que se prolonga, 15 anos depois, ao conhecido artigo
publicado nos EUA sobre o nosso instinto de nacionalidade: “É certo que a civilização brasileira não está
ligada ao elemento indiano [indígena], nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre
as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária” (ibid., p. 802). Não se trata de um anti-indige-
nismo machadiano, mas, antes, da percepção da complexidade da formação social brasileira, irredutível a
quaisquer de suas matrizes proto-formadoras.
8
Cf. Gladys Sabina RIBEIRO, «“Por que você veio encher o pandulho aqui?” Os portugueses, o antilusitanismo
e a exploração das moradias populares no Rio de Janeiro da República Velha». Análise Social, v. 29 (1994),
pp. 631-654.
9
Cyro dos ANJOS, A menina do sobrado, Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Garnier, 1994, p. 320.
282 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

certa do povo” contra o “macaquear / A sintaxe lusíada”, ambição que encon-


trará ecos profundos no Graciliano Ramos de S. Bernardo e, especialmente,
na linguagem modulada por Guimarães Rosa. Ao longo de todo o primeiro
século pós-independência, as contas dos brasileiros a serem ajustadas com
os portugueses iam da luta pela soberania da posse da terra, ao conflito de
classes, passando pela autoafirmação cultural através de uma mesma língua
que, entre um povo e outro, há naturalmente de ter as suas diferenças. Eis
algumas das paredes do labirinto do ressentimento brasileiro e que Lourenço,
ao invés de optar pelos açúcares de Gilberto Freyre, classifica como “uma
ferida de longa supuração”:
Nem os mais convictos anticolonialistas se deram conta do que foi, do que é, para os
nossos antigos colonizados, a incicatrizável ferida da negação absoluta de que foram
objecto pelo mesmo facto da nossa colonização (TB: 373).

E o labirinto do ressentimento que ata e desata o “lá” e o “cá” também


possui paredes portuguesas: seja pelo “ter perdido o Brasil” e com ele uma
parte de si mesmos – “esta indefinição que no fundo da alma nos define e para
a qual ter perdido o Brasil é apenas o equivalente de ter perdido o Mundo”
(TB: 247; grifos do A.) –, o que, como um observador externo, arrisco a dizer
que o ingresso à União Europeia, até aqui, pelo menos, tenha até certo pon-
to contribuído para superar (precariamente ou não, a ver). Do lado brasileiro,
também pelo gesto não apenas de rasura ou de confronto, mas de negação de
tudo o que tenha lusitanamente influído na América Portuguesa que virá a dar
no Brasil, recusa que se estende a toda a Europa, enquanto se ressaltam (não
sem justiça) os elementos africanos e indígenas. Mas esta justiça não injustifi-
ca o estranhamento do português que, após três séculos como colonizador, e
praticamente outro século e meio como imigrante, depara-se com este muro
em seu lado tropical. E a correspondência trocada entre Lourenço, que atuou
como professor convidado na cátedra de Filosofia da Universidade Federal da
Bahia entre os anos de 1958-59, e Jorge de Sena, que se exilou no Brasil em
1959 e atuou entre 1961-65 como professor de Literatura Portuguesa na Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, em São Paulo, fornece-nos
alguns indícios.
Em carta datada de 08 de junho de 1967, Jorge de Sena, atribulado e amargu-
rado no interior de nosso labirinto, e que é e não é aquele de “Em Creta, com o
Minotauro”, desabafa com Lourenço acerca de suas atribuições no Departamen-
to de Espanhol e Português na Universidade de Wisconsin:
[...] sou no entanto forçado quotidianamente a aceitar o envolvimento do Brasil e da
sua cultura, em termos de americanismo anti-europeu, em termos de flatterie anti-
-portuguesa para agrado dos brasileiros e em termos de a literatura portuguesa ser
um apêndice dos encantamentos pelo folclore brasileiro [...] – tenho de sorrir, quando
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
283
Talles Faria

vem a piada de que português falado e escrito só o brasileiro, quando, no mesmo


10
Departamento, todos os latino-americanos se orgulham da sua cultura hispânica.

Na resposta que Lourenço lhe dirige de Nice, datada de 14 daquele mesmo


mês, após afiar uma crítica a Afrânio Coutinho – nas palavras de Lourenço, “um
dos chefes de fila do anti-portuguesismo cultural que, como muito bem se diz,
é a essência (com raras excepções, se as há) da Cultura brasileira” –, o ensaísta
concorda com o poeta e, fazendo as vezes de Dédalo, coloca também um tijoli-
nho numa das paredes de nosso intricado labirinto:
As suas reflexões sobre o Brasil encheram-me de um certo contentamento por me
confirmarem a minha decisiva experiência de um ano. Até escrevi um longo ensaio
sobre a questão, mas que deixei na gaveta, com receio de que fosse reflexo de res-
sentido. [...] O Brasil é culturalmente nosso rival. E imagino os seus amargos de boca
ao ter de aguentar todo esse americanismo luso-hispânico-brasílico, onde o luso é
11
iluso.

E, noutras cartas, o ressentimento prossegue, seja com Sena a se queixar


da “hipocrisia brasílica” como o modo de o brasileiro lidar culturalmente com o
português – mesmo quando lhe tem apreço pessoal, no fundo o ridicularizaria,
segundo Sena –, seja com Lourenço a se recusar a continuar a falar de “brasi-
leirices” e a observar que “O português comum nem sonha o que é o brasilei-
12
ro comum que alguns Manuéis Bandeiras nos fazem esquecer” . O labirinto do
ressentimento, claro está, possui paredes levantadas de parte a parte. Se houve
e ainda há um antilusitanismo no Brasil, a “hipocrisia brasílica” pela piada ridi-
cularizadora não é voltada apenas aos portugueses, mas também dirigida entre
compatriotas de estados e regiões diferentes. O Manuel Bandeira apreciado por
Lourenço é o mesmo que na “Evocação do Recife” prefere e canta o falar gosto-
so do português do Brasil. Luso, iluso, desilusão: reviravoltas labirínticas que as
paredes dos séculos foram erguendo em torno de nós mesmos. Estamos aqui em
ponto diametralmente oposto ao que propugnou o lusotropicalismo de Gilberto
Freyre, oposição que se manifesta inclusive no estilo de ambos os ensaístas,
dado o gosto à conjunção aditiva pelo brasileiro, e à alternativa pelo português.
Em que pese a rivalidade cultural pressentida por Lourenço na relação da
cultura brasileira com o luso que para ela seria “iluso” – isto é, uma fantasia, um
não-português, não o influenciador por três séculos do que virá a ser a própria
cultura brasileira –, este diagnóstico passa por uma reavaliação no pensamento
do autor de O labirinto da saudade, não para escamotear as diferenças, mas

10
Eduardo LOURENÇO & Jorge de SENA, Correspondência, Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1991, p. 42.
11
Eduardo LOURENÇO & Jorge de SENA, Op. cit., p. 50.
12
Eduardo LOURENÇO & Jorge de SENA, Op. cit., p. 59.
284 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

para dele extirpar o que nele poderia haver de “reflexo de ressentido”. Num
artigo inconcluso dedicado ao livro de José Honório Rodrigues [1964], com da-
tação provável assinalada para o ano de 1969 por Maria de Lourdes Soares para
o quarto volume de suas Obras completas – este “Tempo brasileiro: Fascínio
e miragem” –, isto é, apenas dois anos depois da troca de missivas com Sena
há pouco mencionada, deparamo-nos com um comentário que discrepa do teor
confabulado com o amigo, o que dá mostras do relevo que concedeu e da cora-
gem com a qual enfrentou os complexos das relações luso-brasileiras, malgrado
quaisquer ressentimentos incapazes de se colocarem a par da estatura de nosso
ensaísta:
Que razões têm os brasileiros [que] ascendem [de] um sírio-libanês-brasileiro, um hún-
garo, um japonês, um alemão, até um italiano, para assumir, como o luso-brasileiro
ou seu descendente, toda uma tradição nossa que engloba desde Camões ao vinho
tinto? O milagre da vida e da cultura brasileira é que, por considerável que seja essa
miscigenação sociocultural, o impulso propriamente luso-brasileiro – quer dizer, em úl-
tima análise, o do europeu passado aos trópicos – caldeia as contradições e em certa
medida as reintegra nessa síntese a nenhuma outra parecida que é o Brasil (TB: 365).

Num intervalo de apenas dois anos da troca de cartas com Sena, Lourenço,
também ele, rasura o que dissera antes e decifra o que talvez seja o aspecto
mais relevante da cultura brasileira: ela não se compreende fundada num eth-
nos, mas supõe-se saída do nada existencial da “ninguendade” para fundar-se
a si mesma, numa partenogênese na qual os brasileiros aparecem “como se
fossem filhos de si mesmos” (TB: 276; grifos do A.). As matrizes formadoras dos
núcleos proto-brasileiros, ao se misturarem, engendraram variações – o mulato,
o curiboca, o cafuso – que, por sua vez, se misturaram entre elas e estabelece-
ram novas misturas com as outras origens que passaram a integrar a formação
social do Brasil –, e que passa ainda a demandar outras categorias culturais,
como “sertanejo”, “caboclo”, “gaúcho”, “caipira”, uma rede complexa nas quais
nós mesmos, brasileiros, nos perdemos e nos encontramos, e que nos consome
um pouco o tempo em que poderíamos estar a tratar de algo que não fosse “tão
Brasil”. Afinal, e a observação apurada é do ensaísta: “A cultura brasileira é um
amazônico tecido que os próprios brasileiros só com dificuldade dominam e es-
truturam” (TB: 268). Lourenço desarma a aparência de que o brasileiro comum
torna o luso iluso simplesmente por picardia ou por hipocrisia: não, o brasileiro
comum simplesmente ignora, desconhece e já não reconhece, o que seja luso.
O que é também desconhecer um pouco de nós mesmos, como aos farricocos
de Minas, de Goiás e de Braga. E nós, brasileiros, também não desconhecemos
tanto e tantos de nós?
Menos que o luso ou o iluso, Eduardo Lourenço vem nos lembrar de que
é preciso o abandono da ilusão e o posterior enfrentamento da desilusão que
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
285
Talles Faria

este abandono provoca. Para sair do labirinto, há de se encarar o Minotauro.


Encará-lo é encarar as faces de dois povos separados por duas nacionalidades
já distintas, mas não adversas ou refratárias uma à outra, posto que há entre
elas contrastes e permanências. Encará-lo é se capacitar a perceber o que é um
antilusitanismo como birra e o que pode ser natural ressentimento num contexto
de debacle econômica generalizada e consequente xenofobia no qual a ilusão
da diáspora brasileira dos últimos anos se converte rapidamente em desilusão
em “terra estrangeira”, o que o filme de Walter Salles já evidenciava em 1996.
É, também, entre nós brasileiros, compreender como este antilusitanismo pode
13
ser manietado por uma classe dominante independente há já dois séculos e
que assim se desvencilha das contas que o povo brasileiro com ela tem a ajus-
tar, transferindo as suas faturas placidamente para o outro lado do Atlântico, de
modo que o antilusitanismo (egresso de suas bases históricas e sociais) funcione
como o gatilho de contenção da revolta de uma classe, explorada, contra a outra,
dominante, imputando a um passado presumidamente não-brasileiro a respon-
sabilidade pelas mazelas do presente brasileiro, fonte do estímulo ao desejo re-
corrente (e masoquista) de termos sido colonizados, por exemplo, por ingleses.
Fazer tudo isto, matar o Minotauro do ressentimento, nunca foi e jamais será
uma tarefa fácil. Mas, se não pudermos ser Teseu nem quisermos partilhar com
o monstro uma xícara de café mexido com o dedo, podemos, pelo menos, conti-
nuar a desenovelar o fio de Lourenço pelas sendas do labirinto, sem nos esque-
cer de que, na lapidar formulação deste que, dentre muitas outras coisas, foi um
sofisticado interlocutor da cultura brasileira:
O ressentimento é um labirinto de que ninguém sai sem ajuda, pois são a fraqueza
e a impotência íntimas que o constroem. É sempre um outro quem dele nos extrai,
mas isso supõe o reconhecimento do outro, quer dizer, é já uma fenda na muralha
(TB: 371; grifos do A.).

Na atual conjuntura de crise civilizacional, de emergência de um mundo mul-


tipolar, a reflexão de Eduardo Lourenço sobre as relações luso-brasileiras extra-
pola o âmbito cultural para adquirir contorno potencialmente geopolítico (e não
por acaso, em 2016, Lourenço foi alçado a Conselheiro de Estado): só podemos
reconhecer a linha de continuidade que nos ata a uma mesma humanidade no

13
“A classe dirigente do novo Brasil, do Brasil cada vez mais ‘brasileiro’, mais multirracial e multicultural, não
podia fazer o processo da sua própria dominação, da continuidade ‘luso-colonial’ que nela se perpetua sem
se diminuir, sem destruir as bases e as referências que fundavam a sua superioridade económica, política e
cultural. A sua estratégia – consciente e inconsciente ao mesmo tempo – foi a de se ir esquecendo do seu
natural passado, de deslocar a sua atenção cultural para novas fontes de cultura” (TB: 278). Ainda em “O
Brasil e a África ou a ilusão materna dos portugueses”, Lourenço (TB: 369) observa que a pouca compreensão
e presença cultural portuguesa no "horizonte [brasileiro] de uma outra que nós pensamos herdeira nossa e
fraterna mas que, para infantilmente se pensar à parte e se branquear, enegrecer, se separa ou transfigura o
comprometedor passado que ela teria, se admitisse ser – como o foi e é –, pelo menos duzentos e cinquenta
anos de vida colonial portuguesa".
286 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

horizonte do reconhecimento desestranhado, para deixarmo-nos entranhar – na


célebre lição pessoana, poeta caro ao ensaísta –, de nossas variadas desconti-
nuidades e diferenças. Não são elas que nos separam: elas são as fendas pelas
quais poderemos começar a nos conhecer, a nos reconhecer e, um dia, a rasurar
não apenas a origem, mas os apontamentos de nosso amarrotado livro de contas
já bicentenário. Que nesse longo romance de formação, superados o idealismo
abstrato e o romantismo da desilusão, seja o fio de Lourenço um condutor aos
primeiros passos para fora do ressentimento e de seu labirinto, e, quem sabe,
este mesmo fio nos ate talvez a uma nova modernidade, melhor e heterodoxa,
neobarroca e morena, a qual ainda hoje não pôde existir fora das mitologias e
das ortodoxias de nós mesmos.

REFERÊNCIAS
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Anjos C. (1994). A menina do sobrado. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Garnier.
Assis J. M. M. (1942). Crônicas, vol. I. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M.
Jackson.
Assis J. M. M. (1997). Obra completa, vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
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Malhas que os impérios tecem, Lisboa: Edições 70, pp. 355-375.
Candeia A. (1977). «Sou mais o samba», in Quatro grandes do samba, Sony Music
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Fundação Perseu Abramo.
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da Moeda.
Lourenço E. (2018). Obras completas, IV: Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem. Lis-
boa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Ribeiro G. S. (1994). «“Por que você veio encher o pandulho aqui?” Os portugueses,
o antilusitanismo e a exploração das moradias populares no Rio de Janeiro da
República Velha». Análise Social, v. 29, pp. 631-654.
Ribeiro D. (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 2ª ed., São
Paulo: Companhia das Letras.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO
EDUARDO LOURENÇO

ANNITA COSTA MALUFE*

1. O ANTITRÁGICO NA LITERATURA BRASILEIRA


Dentre as inúmeras relações de afeto que Eduardo Lourenço travou com a
literatura brasileira, detenho-me em uma específica: aquela com Clarice Lispec-
tor. Não por mero acaso ou preferência pessoal, mas, antes, pelo teor altamente
sugestivo de um texto como “Da literatura brasileira como rasura do trágico”.
Trata-se de um ensaio curto, um tanto lacunar, cujo manuscrito foi apresentado
em congresso no Porto em 1984. Não é especificamente dedicado a Clarice, em-
bora demore-se mais no comentário acerca de sua literatura e a de Machado de
Assis – dois autores que constavam no subtítulo, subtraído na última versão: “De
1
Machado de Assis a Clarice Lispector” . E, ainda assim, por outro lado, é o ensaio
em que se encontra a análise mais detida de Lourenço sobre a autora – que não
chegou a ser objeto de estudo mais detido pelo ensaísta, mesmo se mencionada
em diversos momentos, sempre de modo elogioso.
O interesse do ensaio, no entanto, vai muito além de um estudo de caso.
Situa-se sobretudo no fato de mobilizar conceitos fundamentais do pensamento
de Eduardo Lourenço, simultaneamente mostrando a sua operacionalidade para
um pensamento da literatura e seus sentidos hoje, em um mundo que já não é
o de Clarice, tampouco o de Machado, nem aquele de 1984, quando o texto foi
primeiramente apresentado por Lourenço. Além disso, traz uma provocação e
um paradoxo: ao mesmo tempo em que poderia ser emblemático acerca de uma
certa visão da cultura brasileira, vez por outra insinuada nos textos de Lourenço,

*
Annita Costa Malufe é investigadora da Universidad de Salamanca (Contrato María Zambrano), junto ao
Grupo de Investigación Reconocido Estudios Portugueses y Brasileños. No Brasil, é pesquisadora do CNPq e
docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. É investigadora
colaboradora do ILCML (Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Universidade do Porto). Doutora
em Teoria e História Literária pela UNICAMP, é autora dos livros de ensaios: Territórios dispersos: a poética de
Ana Cristina Cesar (2006) e Poéticas da imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (2011), ambos com
financiamento FAPESP. Realizou duas pesquisas de pós-doutoramento: na USP, “Traços de Beckett na literatura
contemporânea” (bolsa CNPq), supervisionada por Fabio de Souza Andrade; e na PUC-SP, sob supervisão
de Peter Pál Pelbart, “Procedimentos literários em Gilles Deleuze” (bolsa FAPESP). É autora de sete livros de
poemas, dentre os quais Alguém que dorme na plateia vazia (7letras, 2021).
1
O texto foi publicado em três versões, a partir de 1998, com pequenas alterações; a que utilizo aqui é a mais
recente, que está nas Obras completas vol.3 – Tempo brasileiro, editada pela Calouste Gulbenkian em 2018.
288 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

consegue extrapolar essa mesma visão, abrindo-a a um panorama mais amplo,


não somente de reflexão cultural e literária como filosófica. Quase como se, ao
final, acabasse por inverter a sua própria proposição de partida.
Vale recuperar o argumento central do ensaio: para Eduardo Lourenço, have-
ria na literatura brasileira um traço marcante, que pareceria contradizer a dura
história do país, em suas evidentes mazelas (colonialismo, escravidão, miséria,
exploração, desigualdades sociais...). Este seria um traço antitrágico que, ao
mesmo tempo, responderia à construção de um imaginário de um novo Brasil,
liberto de seu passado colonial:
[...] mesmo quem tenha da literatura brasileira um conhecimento superficial não dei-
xará de ficar impressionado com a presença nela de uma espécie de estratégia (sem
dúvida, inconsciente) destinada a contornar os aspectos mais trágicos da condição
humana. E, para além deles, a própria ideia do trágico como horizonte espiritual ou
2
visão do mundo.

Aqui, ele localizaria essa “rasura do trágico”, que poderíamos traduzir por
uma supressão ou uma subtração do aspecto trágico, enquanto reflexo de um
certo modo de ser da cultura brasileira. Na literatura, tal traço apareceria expres-
so em diferentes procedimentos de escrita: a presença da ironia, da alegoria,
do humor, da construção de universos oníricos, mágicos, da fabulação de outros
mundos que de algum modo subtraem-se do mundo real em sua tragicidade, ou
apontam para outras formas, mais lúdicas, mais leves, alegres ou, ainda, despro-
vidas das questões humanas demasiado humanas, de questões psicológicas, por
exemplo. Nesse sentido, os exemplos privilegiados por Lourenço serão, cada um
a seu modo e com sua singularidade, Oswald de Andrade e Jorge Amado. Mas
também José Lins do Rego ou o Graciliano Ramos de Vidas secas (segundo ele,
não o de São Bernardo e Angústia) e, por fim, João Guimarães Rosa. Autores
cujas obras, mesmo tocando em questões fulcrais do sofrimento brasileiro, seus
dramas e catástrofes, confeririam – de diferentes formas, através do humor, da
ironia, ou na sua forma de construção de personagens ou cenários – um colorido
antitrágico para suas desgraças.
Interessante notar que, apesar de figurarem no subtítulo “De Machado de As-
sis a Clarice Lispector” (omitido na última versão do ensaio), esses escritores-ba-
lizas da análise aparecem quase como exceções à regra; ou, mais precisamente
como extremos em que a rasura do trágico não se daria de modo tão evidente.
O próprio ensaísta salienta soar paradoxal falar antitrágico tanto acerca de Ma-
chado quanto de Clarice, “autores que a título diverso, parecem desmentir, fron-
3
talmente, o nosso propósito’ . Logo no início, Lourenço afirma que Machado não

2
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 4. – Tempo brasileiro: fascínio e miragem, coord., intro. Maria de
Lourdes Soares, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 126.
3
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 126.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
289
Annita Costa Malufe

deixa de ser um autor sensível ao sentido do trágico, não servindo propriamente


como exemplo de sua rasura, mas sim, apenas de um deslocamento inicial do
elemento trágico. Com sua ironia e gosto pelo alegórico, Machado abriria uma
4
fissura do/no trágico, ficando “entre o optimismo trágico e a tragédia optimista’ .
Já “a autêntica rasura do trágico enquanto reflexo generalizado da literatura bra-
sileira” seria um advento do século XX, quando “a obsessão da brasilianidade
se converte no objeto supremo da libido escritural do Brasil”. Daí ser o Moder-
5
nismo “o momento antitrágico paradigmático da literatura brasileira’ . Momento
6
de um ‘novo nascimento do Brasil para si mesmo’ , de uma atualização do “mito
fundador do novo mundo como paraíso”, em uma “estrutura cultural eufórica” e
tomada de uma “pulsão positiva e optimista” diante das mazelas da história e da
7
vida social .
Clarice Lispector, por sua vez, será colocada em uma posição ímpar, como se
ela inaugurasse uma “terceira margem do rio do imaginário brasileiro”:
Clarice Lispector procede de outra galáxia, a galáxia sem nome. Terá de merecer, de
conquistar através de um combate de escrita e de espírito dos mais singulares do
nosso século, esse espaço de não-tragédia que a instalará, por seu turno – embora
8
com uma face intocável –, na terceira margem do rio do imaginário brasileiro .

E é essa posição extremamente singular, e ao mesmo tempo, liminar, inter-


valar, é a que, a meu ver, faz de Clarice a autora-foco do ensaio, ainda que não
seja um texto a ela integralmente dedicado. Clarice inauguraria essa terceira
margem pois “será a primeira, em língua portuguesa, a oscular a palavra muda
9
[...] – o que em geral chama-se de "o mal".’ Vê-se que o ensaísta localiza Clarice
em um contexto mais amplo do que o da literatura brasileira: ela é a “primeira em
língua portuguesa”; é aí a primeira a tocar o silêncio, o lado obscuro, o não-dito.
Mas também a primeira a tocar o que, muitas vezes, é tido como “o mal”, pela
nossa cultura ocidental, cristã. Nesse ponto, em que Lourenço identificará um
parentesco com Georges Bataille, Clarice seria uma espécie de profeta do que
definirá por uma “mística do avesso”, como veremos adiante, como resultado de
um percurso em que conquistaria, pouco a pouco, uma espécie de superação do
trágico, rumo a algo bastante singular.
Guimarães Rosa também não deixa de ser localizado em um lugar especial
por Lourenço, por cuja obra sempre demonstra grande admiração. A literatura
de Rosa operaria uma singular transfiguração do trágico, na criação de um “Ser-
tão metafísico”, em que os horrores da condição humana são lançados a um

4
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 128.
5
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 128.
6
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 129.
7
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 129.
8
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
9
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
290 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

lugar mágico: “É a grande translação do trágico brasileiro, a sua transfiguração


10
e transcensão mágicas’ , diz. Contudo, esse mágico roseano contrastaria com
aquele de Jorge Amado de Gabriela, romance responsável por certa mitologia
folclórica de grande “eficácia popular”, criticada por Lourenço, por ter atendido
a uma imagem de brasilidade, um tanto ufanista, que então se fazia forte no
senso comum.
Percebemos que, ao apontar um certo antitrágico, enquanto traço típico da
literatura brasileira, a busca de Lourenço não é por caracterizar o senso co-
mum, que até hoje perdura, da alegria, a leveza, o otimismo ou o espírito festivo
brasileiros. Ao mesmo tempo, não parece ser seu intuito valorar negativamente
a rasura ou o evitamento do trágico, que se faria presente de modos distintos,
como signo depreciador da obra em questão.
Assim, cabe resumir dois aspectos da visão de Lourenço que o ensaio nos
permite vislumbrar: 1) A rasura do trágico não é identificada apenas na pulsão
otimista ou eufórica, ela também estaria em romances como Vidas secas ou
Grande sertão veredas, sendo caracterizada por uma pluralidade de tipos de
manifestações em que se dá um “triunfo da face solar da vida sobre a sua face
11
nocturna” da existência . 2) Não há uma valoração de Lourenço acerca de tal
rasura do trágico, ou seja, o texto não permite afirmar se o antitrágico seria para
ele algo positivo ou negativo. De modo geral, há um tom elogioso aos escri-
tores evocados, como se Lourenço aí enxergasse uma potência relevante, ou
ao menos alguma novidade ou singularidade, nesse singular modo brasileiro de
rasurar o trágico.

2. O TRÁGICO, O DESASSOSSEGO
Porém, se considerarmos o quanto o trágico configurou um conceito caro a
Eduardo Lourenço, ao longo de suas obras, intriga perceber o sentido mais exato
da proposição-chave que move o ensaio; quais suas implicações e consequên-
cias críticas e conceituais tanto para a visão de Lourenço sobre a literatura bra-
sileira quanto para o seu olhar para a obra de Clarice Lispector? Para começar,
o texto pouco nos traz de uma definição precisa do trágico. Lourenço parece aí
pressupor um leitor que partilhe de seu conceito de trágico ou, quem sabe, ar-
risca-se, deixando margens para que o termo seja compreendido em seu senso
mais amplo e comum. Mas o que ele entende exatamente por trágico? Por que in-
cluir o caso Clarice nessa linhagem antitrágica, à qual ela tanto parece destoar?
O que está em jogo é uma problemática de fundo, presente no pensamento
de Lourenço, que consiste, em primeiro lugar, na constatação de uma natureza

10
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
11
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
291
Annita Costa Malufe

trágica da existência humana; e, em segundo, na premissa de que a potência


poética da palavra é aquela que de algum modo ausculta esse trágico. O poético
é o dizer que nos ajuda a conviver com o trágico, a acolhê-lo, a dar-lhe um lu-
gar, ainda que no não-lugar irreal e impossível da literatura. Lembremo-nos que,
em outro momento, Lourenço define a poesia como “a encarnação sensível da
12
impossibilidade de expressão do Infinito no finito’ . Invertendo, ou derivando,
a máxima de Novalis, o ensaísta português adiciona e põe a ênfase na impossi-
bilidade da expressão – essa que, no entanto, deve ser expressa pela poesia,
ou ainda, cuja expressão define a própria poesia enquanto encarnação desse
impossível que nos ronda.
Aí encontra-se o núcleo do trágico em Lourenço: o abismo, a separação ineli-
dível entre real e linguagem, mas também entre Deus e o homem – o infinito e o
finito –, entre o homem e outro homem, bem como entre o homem e si mesmo.
Como dirá José Gil: “O trágico [em Eduardo Loureço] vem da absoluta opacidade
da existência e, por consequência, da impotência da linguagem que a nomeia
13
e anseia por captar” . As palavras são decididamente apartadas da existência
14
humana e é nessa absoluta separação – trágica – que vive o ser humano. Para
Gil, esse núcleo trágico é ele mesmo o motor do pensamento de Lourenço, a
dar-se em um “exercício constante de desassossego a que o pensador trágico
15
se obriga” .
Não é apenas terminologicamente que Gil aqui aproxima a escrita de Lou-
renço àquela de Fernando Pessoa; ele alude, antes de tudo, ao movimento do
desassossego enquanto a condição mesma da escrita poética e, podemos acres-
centar, ensaística. Vale lembrar que José Gil remete o desassossego pessoano
16
ao conceito de desejo em Gilles Deleuze e Félix Guattari , enfatizando aí aquilo
que o faz ser o movimento incessante da criação, submetido antes ao excesso
do que à falta. Não é por acaso, portanto, que Gil fala em um exercício de de-
sassossego em Lourenço, cujo movimento do desejo seria baseado no princípio
trágico: o qual seria, em si mesmo, oscilação, inquietude, transbordamento de
sentidos. O trágico enquanto princípio resultará, diz Gil, em um pensamento in-
quieto, avesso a cristalizações e ancoragens. Daí ser esse núcleo trágico defi-
nido pelo paradoxo em que convivem, por um lado, a vivência da opacidade do
real, isto é, da impossibilidade da linguagem de o dizer ou alcançar; e, por outro,
a necessidade suprema do ser humano em dizer esse mesmo real que o escapa.
Ou, ainda, a sua necessidade de nomear, reiteradamente, essa impossibilidade.

12
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, coord., intro. Carlos Mendes de Souza, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 94.
13
José GIL e Fernando CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa: Relógio d’Água, 1996, p. 11.
14
Eduardo Lourenço recolhe a formulação da experiência trágica da existência de diversos pensadores; porém,
segundo José Gil, sua concepção se deve, em maior medida, a Kierkegaard.
15
J. GIL e F. CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, p. 14.
16
José GIL, Cansaço, tédio, desassossego, Lisboa: Relógio d'Água, 2013, p. 105.
292 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Ou seja, Lourenço seria um pensador que se instala ele mesmo no paradoxo


trágico: “porque é da consciência da impossibilidade da transparência [da lin-
guagem] que nasce a única possibilidade de fazer alguma luz nessa opacidade
17
fundamental [do real]’ . Trata-se sobretudo de provocar o movimento próprio do
pensar, enquanto ininterrupta corrente de conexões inesperadas, sem repouso
ou identidade: “Trata-se, pois, de pensar, de pensar sempre em nome daquilo
18
que não se deixa pensar e dizer” . E aquilo que não se deixa pensar e dizer, o
elemento trágico, deve-se, antes de tudo, em Lourenço, ao fato de sermos seres
temporais. De modo que há que se considerar que a natureza trágica se liga
19
essencialmente à vivência humana da temporalidade , referindo-se à condição
exilada do ser humano sobretudo em sua relação com o Tempo:
Nada ilustrará com mais veemência esta ‘condição exilada’ que somos e que perma-
nentemente se nos escapa do que a relação, ao mesmo tempo falhada e iniludível,
20
com a temporalidade que simultaneamente nos constitui e nos desconstrói .

Esse trágico decorre da consciência, humana demasiado humana, de sermos


apartados do Eterno. E, se o trágico grego era, por sua vez, a expressão de um
abismo intransponível entre o tempo humano e o divino, agora, na ausência de
qualquer figura para a transcendência, o abismo situa-se irremediavelmente en-
tre o ser humano e suas próprias idealizações. No trágico moderno, um lugar foi
deixado vago, já que, juntamente a Deus, foi também extinta qualquer possibili-
dade de eternidade, unidade, totalidade, sentido e mesmo de um certo Homem.
Ou, como dirá Lourenço, talvez esse lugar não esteja propriamente vazio: os
deuses nos deixaram sós, mas sempre haverá um Ser que resiste a todo dizer, e
simultaneamente a necessidade do homem de perseguir esse tal Ser indizível –
este que hoje, no trágico moderno, encontra-se na própria linguagem: “O trágico
reflui da exterioridade onde desde sempre parece ter tido o centro, para o seu
21
núcleo primordial: a Linguagem” .
Parece não haver melhor tradução do trágico moderno para Lourenço do que
o grande autor a que dedicou muitas de suas obras, Fernando Pessoa. Seja na
expressão da temporalidade propriamente humana, em sua não-fixidez, tão bem
dramatizada no processo da heteronímia; seja em Caeiro, como encarnação da

17
J. GIL e F. CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, p. 12.
18
J. GIL e F. CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, p. 13.
19
Conforme salienta João Tiago Lima: “Compreender o homem na sua temporalidade, ou melhor, enquanto
temporalidade, constituiu, desde as reflexões mais jovens, preocupação fulcral no percurso filosófico de
Eduardo Lourenço”. (João Tiago Pedroso LIMA, Existência e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço,
Porto: Campo das Letras, 2008, p. 24.) O que Lourenço fará sobretudo a partir do diálogo com o pensamento
de Heidegger. O tempo, como o ensaísta declara em textos e entrevistas, constituiu a sua preocupação
central e, segundo ele, a sua tese jamais inteiramente realizada.
20
J. T. P. LIMA, Existência e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço, p. 105.
21
Eduardo LOURENÇO, O canto do signo – existência e literatura (1957-1993), Lisboa: Editorial Presença, 1994,
p. 32.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
293
Annita Costa Malufe

impossibilidade metafísica de nomear o real; seja no desassossego que apresen-


taria “com uma clareza que ofusca, a encenação abismal do Eu, como ausência
22
radical de si mesmo e do mundo” , Pessoa dá corpo à nossa cisão, ao vazio que,
humanamente, não pode ser suplantado. Essa ausência radical, esse rasgo, faz
de Pessoa um caso paradigmático para Lourenço. Ausência de si, do mundo, e
que no poeta é ausência tanto de Deus quanto do Homem, ausência da própria
humanidade e, por fim, ausência de si mesmo para si. Como Lourenço mostrará
em diversos ensaios, Pessoa encarna uma sensação de inexistência que é ponto
culminante de uma impossibilidade de se fixar e de fixar a linguagem; poeta
23
que encarna “... esse episódio da imaginação a que chamamos a realidade” .
É todo esse trágico, humano, que, subitamente, apareceria rasurado em Clarice
Lispector.

3. O AVESSO DO TRÁGICO OU O INUMANO


Lembremos que, no caso do ensaio em questão, Lourenço tem em vista so-
bretudo o quinto romance de Clarice, A paixão segundo G.H., de 1964, em que a
travessia cristã, a Paixão, é transposta para uma situação absolutamente mínima,
banal – o encontro da personagem-narradora com uma barata –, da qual Clarice
extrai a matéria de uma ascese espiritual inusitada e pagã. É a transposição da
experiência mística, como aponta Benedito Nunes, e que a leva ao êxtase “em
24
que a personagem perde seu Eu e a narrativa a sua identidade literária” .
Essa experiência mística é, portanto, para Nunes, também a da linguagem,
lugar da travessia de G. H., e de Clarice, em busca do inexpressivo, impessoal
e neutro. Nunes não se utiliza do mesmo termo, mas podemos localizar aqui
certa ‘mística do avesso’ de que nos fala Lourenço: “em direção ao pura e in-
25
dizivelmente material” . Em seu movimento de ascese, Clarice não se dirige à
transcendência, a um ponto ideal, abstrato, mas, ao contrário, empreende uma
busca absolutamente corpórea. Ou ainda, como na frase de G. H., uma busca
que se dá na tessitura mesma das coisas: “Eu estava vivendo da tessitura de que
26
as coisas são feitas” .
É assim que Clarice reverteria ao avesso a mística, esvaziando qualquer
transcendência e mergulhando em um dos elementos mais terrestres e rasteiros
que possa haver: o corpo de uma barata. Sua ascese consistirá no abandono

22
Eduardo LOURENÇO, Fernando, Rei da Nossa Baviera, Lisboa: IN-CM, 1986, p. 86.
23
Fernando PESSOA, Livro do desassossego, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa: Tinta-da-China, 2014, p. 477.
24
Benedito NUNES, “Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção”, Remate de Males, n. 9, 1989, p. 66.
Segundo Nunes, é a própria narrativa de Clarice que beira o inenarrável, em uma ‘impossível busca do
inexpressivo e do silêncio’ (p. 67).
25
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro p. 131.
26
Clarice LISPECTOR, A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p. 102.
294 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

das idealizações humanas, o que, por outro lado, não implicará em se acomodar
puro dado empírico, mas dele partir para uma ascese que é antes uma queda, do
que uma subida aos céus. A tessitura das coisas é a marca do real que está para
aquém do humano, um: “neutro-divino, o aquém-humano presente no coração
27
do homem” . Daí ser essa uma ascese do corpo, das sensações, do contato
28
íntimo – e estranho, ou como o quer Nunes “uma intimidade exteriorizada”
– com o que de mais material possa haver, em todo seu horror, surpresa e
indecifração.
A cena do romance em que G. H. come a barata e toma contato com a subs-
tância informe e viscosa seria um instante-chave: “Saborear a barata é aceitar
29
o real no seu horror resplandecente” . Haveria nesse gesto uma aceitação e
uma incorporação do inumano e, mais do que isso, uma comunhão com ele.
Esse é o instante em que a personagem agrega a seu próprio corpo o elemen-
to inumano, que é ainda o “mal” e o Inexpresso, figurados pela barata, e dele
consegue extrair vida, abertura, continuidade. O êxtase então se dá e percorre
a narração enquanto uma espécie de alívio do despojamento do Eu, do humano
e suas transcendências.
Aqui, aproximamo-nos da rasura do trágico em que Lourenço localiza em Cla-
rice. Como se ela partisse da mesma “ausência radical” pressuposta pelo trágico
de Pessoa para, no entanto, transmutá-la num excesso de vida, que parece vazar
nos interstícios do mínimo, do mais minimamente material:
Eu, corpo inteiro da barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois
enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos,
sou o trechos e luz mais branca no reboco da parece – sou cada pedaço infernal de
mim – a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os
30
pedaços continuarão estremecendo e se mexendo .

A resposta da literatura de Clarice à impossibilidade humana do eterno, à


fissura trágica entre o eu e o mundo, é descer ao rés mais possível da imanên-
cia, chão no qual vislumbra-se mais do que apenas o dado empírico e cru da
experiência: vislumbra-se a vida impessoal e neutra, inumada, em seu pulso.
Neste solo imanente está o que Lourenço chamará de “plenitude do mínimo”,
que a leva a uma espécie de devir-inumano do humano, em que por um instante
ocorreria uma suspensão da separação, do abismo insolúvel, que nos constitui:

27
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
28
Benedito NUNES, “Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção”, p. 68. Aqui cabe marcar a proximidade
da proposta de Nunes, ‘o naufrágio da introspecção’, com a ‘rasura do trágico’, de Lourenço. Em ambos
Clarice aparece como uma espécie de superação, de falha, de uma certa cultura humanista, romântica ou
mesmo metafísica. Contudo, Nunes dá maior relevância a uma ascese que se daria na própria materialidade
da linguagem.
29
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 132.
30
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 65.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
295
Annita Costa Malufe

Clarice viaja para o ponto nu onde o eu abdica da sua odisseia romântica em busca
de céus inexistentes, trocando-os pela plenitude do mínimo, da anulação que a res-
tabelece na realeza perdida de um eu que é mundo e de um mundo que é eu. Da
aceitação do inumano, substância de tudo quanto existe, nasce a paz para o que em
31
nós de humano se designa .

Assistimos à narração da descoberta do inumano: “Escuta, diante da barata


viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos
32
humanos.” G. H. narra seu percurso de decepção e surpresa diante dessa reve-
lação que, em seguida, será razão de júbilo e êxtase. Despojar-se do humano é
sobretudo se livrar do eu, a partir da vivência na “tessitura de que as coisas são
feitas”, em uma comunhão que, no entanto, se dá a partir da incorporação do
mal, e de um nietzschiano para além de bem e mal, uma vez que para além de
qualquer moral, ou transcendência, humana.
Notemos que o mínimo em Clarice a leva ao êxtase, enquanto que em Pes-
soa, as sensações que captam o mínimo coexistem com uma angústia irremediá-
vel, de que ele jamais se livra. Como expresso no fragmento “Milímetros (sen-
33
sações de coisas mínimas)” do Livro do desassossego , a vivência intensa das
sensações é ao mesmo tempo o manancial da poesia, a fonte do processo de
criação poética de Pessoa, baseado na análise das sensações, e o motivo de sua
34
exaustão e sofrimento .
Já o mínimo em Clarice é a vivência de uma plenitude. Surge como a “linha
de mistério e fogo” a “linha sub-reptícia”, que passa entre cada elemento míni-
mo, cada grão, e os liga. Vivenciar o mínimo é vivenciar “o elemento vital que
35
liga as coisas”. Esse elemento de ligação seria o neutro e inexpressivo, dirá a
narradora de Clarice, o que teria sempre sido a sua busca – o entre:
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca
cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número
dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas
notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos
de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um
sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de
mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é
aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. [...] Estou tentando te dizer de como

31
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 132.
32
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 69.
33
“Mas só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente”. (F. PESSOA, Livro
do desassossego, p. 110).
34
Não são poucos os momentos em que Lourenço se refere à ‘visão trágica e niilista’ de Pessoa. (Eduardo
LOURENÇO, Poesia e metafísica, Lisboa: Gradiva, 2002, p. 210).
35
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 100.
296 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

cheguei ao neutro e inexpressivo de mim. [...] O neutro. Estou falando do elemento


36
vital que liga as coisas .

Clarice narra a imersão do humano na pura matéria, nas moléculas, átomos,


nas forças, que nos fazem ser da mesma carne que o mundo. O corpo, antes
humano, torna-se então parte da “respiração contínua do mundo”, transmuta-se
em uma linha neutra, sub-reptícia. Tal plenitude só pode ocorrer no agora, no
instante-já, para lembrarmos de outro termo caro à Clarice:
Mas eu estava no deserto. E não é só no ápice de um oásis que é agora: agora tam-
bém é no deserto, e pleno. Era já. Pela primeira vez na minha vida tratava-se plena-
37
mente de agora. Esta era a maior brutalidade que eu jamais recebera .

Essa imersão poderia ser igualmente aquela do leitor (para) Lourenço, que
38
se vê apreendido pelo “inapreensível instante” , nessa conciliação em que, ele
mesmo, leitor, experimenta um devir-inumano. Daí ser essa uma suspensão do
humano demasiado humano, naquilo que, inclusive, dele depende a própria no-
ção de trágico. A rasura do trágico em Clarice advém, assim, do que em sua
escrita impossibilita a própria existência do humano. Do que ela opera de trans-
mutação na experiência do Homem, do sujeito, da interioridade, da essência.
Avatares de uma certa tradição metafísica que parecem naufragar nessa poética.
E assim, conclui Lourenço, se:
[...] nenhuma tragédia é possível neste deserto-oásis de Clarice, é porque não há
confronto entre “eu” e “vida”, não há cisão, mas somente coexistência, continuidade:
39
‘numa paixão de que o silêncio [...] é o resto, o que já nada significa .

O trecho do romance de Clarice destacado por Lourenço na conclusão do


ensaio instala-se justamente nesse ponto paradoxal: deserto-oásis, em que o ser
une-se ao não-ser, o dito à mentira, o ínfimo ao grandioso. Lourenço edita as pa-
lavras de Clarice e sublinha a expressão”‘a vida se me é”, como expressão-chave
da ascese em que eu e vida se dissolvem numa mesma respiração, a ‘respiração
contínua do mundo’ ou o silêncio, o deserto:
Oh, Deus, eu me sentia batizada pelo mundo. Eu botara na boca a matéria de uma
barata, e enfim realizara o ato ínfimo. [...] Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que
eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. [...] como poderia eu dizer sem que a
palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se
40
me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro .

36
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 98 e p. 100.
37
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 80.
38
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, p. 76.
39
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, p. 132.
40
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, p. 132.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
297
Annita Costa Malufe

Vemos que a rasura do trágico em Clarice não se liga a um desvio ou exclusão


do trágico; mas parece ser, antes, resultado de uma travessia. Clarice não rasura
o trágico por evitá-lo, mas por mergulhar em uma imanência que o faz naufragar.
G. H. passa a ser uma habitante do deserto, no agora da existência neutra, sem
nome. Tal rasura passa por um devir-inumano que desconstrói, por dentro, uma
certa versão do humano, que é esta da nossa tradição metafísica, da qual o trá-
gico moderno, seu infinito vazio e abismo, seria, quem sabe, um último avatar.
O trecho de A paixão segundo G.H. que serviu de epígrafe ao ensaio de
Lourenço em sua primeira versão, esclarece de saída a inversão realizada por
Clarice: “Eu tenho, à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma
41
linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar” . Cla-
rice não se desvia do problema trágico, mas aí se instala, no abismo que separa
a linguagem do real, para daí extrair o êxtase. O abismo não é visto como impos-
sibilidade ou falta: transmuta-se em excesso, positividade, tenho muito mais à
medida que não consigo designar.
E é nesse sentido que arrisco que tal rasura apontaria para uma travessia do
niilismo, que estaria sugerida, mas não explícita, na fala de Lourenço. Como se
Clarice atravessasse o deserto e, de algum modo, desse-nos notícias do outro
lado do espelho:
E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no
deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monó-
tono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora.
Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma
42
verdade [...] .

REFERÊNCIAS
Gil J. (2013). Cansaço, tédio, desassossego, Lisboa: Relógio d'Água.
Gil J. e Catroga F. (1996). O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa: Relógio
d’Água.
Lima J. T. P. (2008). Existência e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço, Porto:
Campo das Letras.
Lima J. T. P. (2013). Falar sempre se outra coisa – Ensaios sobre Eduardo Lourenço,
col. Iberografias Guarda/ Lisboa: Centro de Estudos Ibéricos/ Âncora Editora.
Lispector C. (1964). A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro: Edição do Autor.
Lourenço E. (1998). “Da literatura brasileira como rasura do trágico – de Machado
de Assis a Clarice Lispector”, Terceira Margem, Revista de Estudos Brasileiros,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n. 1.

41
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 178.
42
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 60.
298 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Lourenço E. (1986). Fernando, Rei da Nossa Baviera, Lisboa: IN-CM.


Lourenço E. (2016). Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, coord., intro. Carlos
Mendes de Souza, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Lourenço E. (2018). Obras completas vol. 4. – Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
coord., intro. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian..
Lourenço E. (1994). O canto do signo – existência e literatura (1957-1993), Lisboa:
Editorial Presença.
Lourenço E. (2002). Poesia e metafísica, Lisboa: Gradiva.
Pessoa F. (2014). Livro do desassossego, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa: Tinta-da-China.
O BARROCO NO PURGATÓRIO
DA LINGUAGEM

PEDRO SERRA*

[‘Barroco’ é] uma etiqueta totalmente dispensável quando se trabalha


1
com os resíduos do século XVII e ainda do XVIII.
João Adolfo Hansen

Também por motivos que não têm muito a ver com a mesma estética, se esta nobre
2
dama existe, foram eles [os «séculos malditos»], ou parte deles, reabilitados.
Eduardo Lourenço

Enceto algumas reflexões sobre o uso da palavra ‘barroco’ em Eduardo Lou-


renço apontando para uma efeméride por vir – certamente uma efeméride me-
nor e, previsivelmente, sem grande ressonância social – que ocorrerá no ano de
2025 e que muito importa para o cronótopo ibérico a que, centrando-me nalguns
poucos textos do autor de Heterodoxias, vou fazer referência. Um começo pouco
importante, mas ao qual, certamente, como todo o começo – assim o formulou
3
Parménides de Eleia –, terei de voltar. Refiro-me aos 50 anos da primeira edição
4
de La cultura del barroco: análisis de una estructura histórica, do historiador
José Antonio Maravall, natural de Játiva – onde nasceu em 1911 –, insigne pro-
fessor da Universidade Complutense de Madrid, cidade onde faleceu em 1986.
1975, o ano de publicação da obra, foi transcendental para a Península Ibé-
rica. Em Novembro, Francisco Franco morre. Em Portugal, por sua vez, em Abril
*
Pedro Serra é Professor Catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Salamanca,
onde coordena a Cátedra de Estudos Portugueses IC/USAL e é responsável da Área de Filologia Galega
e Portuguesa. IP do GIR em Estudos Portugueses e Brasileiros – que integra o Colaboratório Europeu de
Estudos Brasileiros COLEEB –, é membro investigador do CLP (Coimbra), do grupo HELICOM (Autónoma de
Madrid) e do CRIMIC (Sorbonne). Dirige, no Departamento de Filologia Moderna, o mestrado em Estudos da
Ásia Oriental MELYCA.
1
João Adolfo HANSEN, «Notas sobre o ‘barroco’», Revista do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, nº 4, Ouro
Preto, Universidade Federal de Ouro Preto, Dezembro de 1997, pág. 18.
2
Eduardo LOURENÇO, Obras Completas, vol. IV, Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem, coordenação, introdução,
notas e notícias bibliográficas de Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018,
pág. 191.
3
O fragmento 5, a que aqui faço referência, reza assim: «É tudo para mim o mesmo, onde quer que comece;
pois aí voltarei na devida altura» (in G. S. KIRK et alii, 1982, p. 275).
4
Cf. José Antonio MARAVALL, La cultura del barroco. Análisis de una estructura histórica, Barcelona, Editorial
Ariel, 1990.
300 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

do ano anterior, 1974, um golpe militar seguido de um curto ciclo revolucionário


põe fim a uma Guerra Colonial e a 40 anos de ditadura. Anos de advento da de-
mocracia – e que, como processo adventício, não se limita a datas ou marcos: a
democracia nos Estados peninsulares foi sonhada, imaginada e pensada, antes
dessas datas; como advento, é também um processo que ultrapassa o que acon-
teceu naqueles anos: continua a acontecer. Por outras palavras, foi detonada
uma nova «entrada na história» de ambos os Estados ibéricos.
Não é possível aprofundar, neste momento, a importância académica e sim-
bólica da obra de José Antonio Maravall naqueles idos de floração primaveril ibé-
rica, ao sobrevir uma etapa transicional em que o ufanismo político e institucional
teve, na analítica do poder dos séculos áureos – suas materialidades e formas –,
uma robusta arqueologia. Atrevo-me, no entanto, a assinalar o brilhante lance de
dados de Maravall ao colocar a palavra «estrutura» no subtítulo: «Análise de uma
estrutura histórica». Desenvolvido no tempo lento e longo exigido pelo estudo,
entre Roma (Universidade de Roma, 1960), Paris (École Normale Supérieur des
Hautes Études, 1966; Sorbonne Université, 1970-1971) e, finalmente, em Madrid
(Universidade Complutense, 1972-1973), durante 15 anos de reflexão e medita-
ção metódica e judiciosa, é o próprio Maravall que expõe para o ‘seu’ tempo – e
deixará para a posteridade – um importante alerta: «E penso que, se a palavra
análise pode ter despertado alguma surpresa quando foi usada neste lugar, que-
ro dizer, em relação aos desenvolvimentos que se seguem, estou certo de que é
o termo estrutura que terá provocado francas objeções ao referir-se ao método
5
e ao conteúdo do presente livro».
A rigor, José Antonio Maravall já havia usado a palavra em 1958, na sua Teoria
do conhecimento histórico. Mas o ponto decisivo, nesse ano de 1975, é o de se
distanciar da fortuna e ascensão do estruturalismo francês, de cunho eminente-
mente formalista. O modo genérico de repensar o «barroco» por parte de Mara-
vall é, precisamente, o de, enquanto «estrutura histórica», não limitar a sua ope-
racionalidade ao quadro de um estudo estilístico e morfológico. Mas acrescenta
uma ponderação epistemológica essencial, ou, se assim o quisermos colocar,
que se enquadra nos emaranhados do chamado «círculo hermenêutico». Nesse
sentido, José Antonio Maravall desloca a intensão e a problemática do binómio
‘parte/todo’ introduzindo – do meu ponto de vista, com suma acuidade – uma
outra categoria: a de «conjunto». Categoria que será, precisamente, o cerne do
conhecimento histórico e, ao mesmo tempo, do entendimento histórico: «Mas a
teoria que o historiador constrói – aplicando a sua observação a um campo que,
previamente constituído por ela mesma, levanta – é a imagem mental de um
conjunto, ou simplesmente é o conjunto que interpretativamente relacionou em
6
suas partes a mente do observador». Dos postulados relacionais e vagamente

5
Id., ibid., p. 15. As traduções levadas a cabo neste artigo são da minha responsabilidade.
6
Op. cit., ed. cit., p. 17. Eu sublinho.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
301
Pedro Serra

perspectivistas que daqui decorrem, estrutura, assim, é o nome para uma espé-
cie de ‘totalidade’ que é mais do que a soma de suas ‘partes’. Isto dista, eviden-
temente, dos atributos de sistematicidade, inconsciência e universalidade atri-
buídas à noção de «estrutura» por um Lévi-Strauss, por exemplo. Digamos, muito
sucintamente, que o momento subjectivo da epistemologia que insufla Maravall
não é subrogado.
Por outro lado, assinalo que as reflexões contidas em A Cultura do Barroco.
Análise de Uma Estrutura Histórica sobre a ala ocidental portuguesa da Penín-
sula Ibérica, e da sua geografia transcontinental coextensiva, primam pela sua
ausência, muito embora por vezes José Antonio Maravall aluda à necessidade
de incorporar, na «estrutura» que subtil e solidamente urde, casuística barroca
em língua portuguesa e, também, do espaço latino-americano. O objetivo do
ilustre historiador foi, em grande medida, o de situar e assentar o «caso» do
barroco espanhol no contexto da Europa. Mas, por exemplo, quando se refere
a Victor-Lucien Tapié, autor de Baroque et classicisme, de 1957, para nele assi-
nalar a ‘ausência’ do barroco espanhol, faz a seguinte precisão: «Observemos
que mesmo quando Tapié fez um livro que citámos sobre o barroco, se nas suas
páginas tratava de França, Itália, Europa Central e Brasil, não havia qualquer
referência a Espanha, embora o facto já fosse completamente injustificável na
7
altura em que a obra foi publicada». Não menciona especificamente o Reino de
Portugal, mas menciona a Colónia do Brasil, o que certamente se justifica pela
modulação próspera da «cultura barroca» que aí teve lugar. Ao tempo da historio-
grafia especializada a que Maravall se refere, o caso brasileiro é já inscrito como
emblemático do âmbito lusófono.
Cabe destacar, portanto, em José Antonio Maravall, o gesto de colocar o caso
do «barroco espanhol» no mapa dos estudos europeus – Alemanha, França, Itá-
lia, Inglaterra – sobre o barroco. O lance é significativo, diz respeito não só à
geografia político-social, literária ou artística desta «estrutura histórica», mas
também, afinal, à provocação e estímulo do necessário alargamento desta es-
trutura a geografias extraeuropeias, sendo um caso conspícuo o da produção
cultural de língua portuguesa, do Reino de Portugal e do Brasil Colónia, apesar
de tudo, em larga medida ausentes da obra. Em simultâneo, é também um facto
digno de nota que Maravall esboce com traço grosso uma matéria igualmente
relevante: o de a historiografia europeia sobre o barroco ter prestado atenção
ao «caso» brasileiro antes mesmo de contemplar o barroco espanhol, ou sequer
da península ibérica.
Ora propus-me avançar com algumas cláusulas, necessariamente provisó-
rias, sobre o rendimento e préstimo do vocábulo ‘barroco’ nos seguintes textos
vinculados ao ‘tempo brasileiro’ de Eduardo Lourenço. Neste sentido, as peças

7
Id., ibidem, p. 40.
302 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

textuais de variada extensão e propósito coligidas no volume IV da edição


das Obras Completas lourencianas, coordenado por Maria de Lourdes Soares e
editados em livro, com a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2018
– decerto ainda sob a supervisão do seu autor –, são os seguintes, numa conca-
tenação que não é a do livro, mas que aqui submeto a uma razão cronológica:
«Fenomenologia e História da Arte – O Exemplo do Barroco – Breve Fenome-
nologia do Barroco» (s/d, conferência proferida, no Brasil, a 19.08.1959), «Breve
história de um equívoco. Talvez recuperável» (08.10.198<7>) – textos que foram
incluídos em Destroços. O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios (2004) – e «Apo-
8
teose Barroca» (08.11.1999). É este o corpus lourenciano que recorto e a que
aludirei, muito embora atraindo algumas outras peças – poucas – igualmente
relevantes para as minhas reflexões.
Ora, distinguindo ‘vivência’ de ‘experiência’, é possível ajuizar estes textos
encontrando neles os traços de um momento ou momentos de intensidade
qualificada na visitação de Eduardo Lourenço à Igreja de S. Francisco da Bahia,
aquando da sua estada de aproximadamente um ano no Brasil. Para Eduardo
Lourenço, de resto, o deslocamento espácio-temporal para o Brasil foi abundan-
te em momentos de intensidade qualificada: «A minha estada no Brasil foi curta,
apenas de um ano. Nós nunca sabemos muito sobre as experiências que vive-
mos, qual foi o seu real impacto, porque muitas vezes só mais tarde é que se
9
toma conhecimento disso». Ainda: «Na altura não me dei conta de muita coisa,
10
isso só mais tarde». Assim, de um lado, as ‘vivências’ – o «mundo da vida»; de
outro, o labor cognitivo delas, conformando-as como ‘experiências’, que neces-
sariamente vêm depois ou «mais tarde» – o voo tardio da ave de Minerva. Ora,
Eduardo Lourenço foi expondo várias destas situações, acasos tornados neces-
sidades: notórios exemplos são a assistência à fundação de uma universidade, a
11
Faculdade de Assis, ou a uma cerimónia de candomblé.
Todas elas são importantes, com ‘ares de família’ – constituindo uma espécie
de schemata ou esquema –, também pelo que repetem na diferença. Para o meu
artigo, seja como for, a que destaco com traço grosso diz respeito a um concerto
na Reitoria da Universidade da Bahia. Eis a descrição que dela faz Eduardo Lou-
renço, em 2009, cinquenta anos após a curta estada no Brasil, rememorando a
etapa de professor de filosofia nos trópicos: «Eu tratava entre outras coisas de
Fenomenologia. A de Hegel... Só quem conhece o Brasil pode apreciar o que isto

8
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., pp. 197-208, 191-194 e 387-388, respectivamente. Os primeiros dois
textos integram a segunda parte do volume, «Do filosofar e do educar: luminosas presenças» (págs. 173-
234); o terceiro, por seu turno, pertence à quinta parte, «A rasura da descoberta ou a morte de Cabral» (pp.
377-400).
9
Id., ibid., p. 558.
10
Id., ibid., p. 569.
11
Respigo aqui lugares da notável entrevista concedida por Lourenço a Rui Moreira LEITE, «A miragem brasileira»,
em Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., pp. 557-571.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
303
Pedro Serra

tem de ‘barroco’ no sentido mais forte do termo. A Bahia dessa época não era
precisamente a cosmopolita São Paulo. Contudo, a Bahia já tinha naquela altura
coisas que só acontecem no Brasil». A estada bahiana proporciona a Lourenço
presenças irredutíveis: «Por exemplo: lá estava o maestro Koellreutter, que ini-
ciara essa capital do barroco brasileiro e nosso na música mais vanguardista.
Imagine-se o que era um concerto de Schönberg ou Alban Berg na Reitoria da
12
Bahia para umas vinte pessoas. Era o mesmo que ‘ensinar’ Hegel...» Imiscui-se
aqui, desde já, a problemática do uso da palavra ‘barroco’ nos textos de Eduardo
Lourenço. Em 2009, «no sentido mais forte do termo», ‘barroco’ é atributo da
docência na Bahia, em 1958, da filosofia de Hegel. Implicitamente, por outro
lado, insinua-se que havendo um ‘sentido mais forte do termo’, pode também
ocorrer um ‘sentido mais fraco do termo’. Ao mesmo tempo, ponto importante,
Lourenço inscreve uma obviedade que, por ser dita, já o não é tanto: as suas
vivências foram bahianas e não paulistas. Mas mais ainda: num salto vertigino-
so, o exemplo que proporciona coloca em relação singular o «barroco brasileiro
e nosso» (eu sublinho) com a «música mais vanguardista», fazendo dela, ainda,
analogia. «Imagine-se», diz Eduardo Lourenço em 2009; mas, em rigor, Eduardo
Lourenço esteve lá. O ponto decisivo desta descrição é mesmo este: o ‘sentido
mais forte’ do «barroco», tanto na filosofia como na música, tem a sua condição
13
de possibilidade no estar lá ou no ter estado lá.
Como argumentarei, percutem nesta cena – que, insisto, tem valor esque-
mático – os termos do barroco de Eduardo Lourenço ou, em rigor, dos barro-
cos de Eduardo Lourenço, pois já se insinuou um uso de ‘sentido mais forte’ e
um uso de ‘sentido mais fraco’ da palavra. Pela singularidade desta pragmática

12
Id., ibid., p. 563.
13
Não é a Música, mas sim espécies de música, o que, em rigor, está em causa. Chamo a atenção para a
excusatio non petita das seguintes palavras de Eduardo Lourenço: «A minha atitude – não digo colonialista
porque não tem essa conotação – de estranheza mudou desde que assisti, pela primeira vez, a um can-
domblé. Foi muito impressionante. Começou aquela música e a certa altura eu tive de sair do recinto, não
porque me sentisse mal, mas porque aquele ritmo tinha uma influência mecânica, fisiológica sobre mim.
Era a mesma batida. Nós percebemos como aquele ritmo faz parte de uma preparação para a discussão em
que a pessoa fica num transe... (Devo dizer, não nasci muito para transe!...) Mas tive de sair, ir para fora, com
um certo medo. Tem realmente uma influência, um impacto...» (id., ibid., p. 565). Lourenço é consciente da
distinção que faz, pois, entre a ‘música’ de uma situação como a do candomblé e a ‘música’ avançada – isto
é, de vanguarda – a que também faz referência. Mas a distinção não é «colonialista». Por outras palavras,
a reacção – ‘medo’, ‘transe’, ‘sair do recinto’ – diz respeito à «influência mecânica, fisiológica». Por outras
palavras, é anterior à atribuição de um qualquer sentido: uma «conotação», digamos. ‘Sair do recinto’ não
supõe rejeição ao fenómeno da ‘batida’ e do ‘ritmo’. Eduardo Lourenço estaca antes do «transe» vivido
em primeira pessoa, em que se perde a primeira pessoa. Esta retracção não é assim tão importante para
poder, legitimamente, pensar sobre o «transe». Pode fazê-lo, por exemplo, lendo Santa Teresa de Ávila, ou
interpretando «O êxtase de Santa Teresa» de Bernini, sem que esta opção signifique preconceito cultural ou
civilizacional. De resto, o que apontar para o candomblé significa, por parte de Eduardo Lourenço, mesmo
com as ressalvas mencionadas da «estranheza» sentida, é atribuir-lhe o valor de ser pensado por alguém.
‘Batida’ e ‘ritmos’, tanto do candomblé como de uma peça de música erudita, detêm um valor estésico cuja
positividade – um «impacto» – não rasura uma sua eventual negação ao nível da atribuição de sentido.
Desde logo porque essa atribuição tem, precisamente, como atributo, o negativo.
304 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

vocabular, Lourenço lança-nos de borco num outro problema: o de ser, a noção


de «barroco», quando aferida em função de diferentes coisas e objectos que
fazem parte de um amplo arquivo de fenómenos artísticos e literários, uma no-
ção especialmente espinhosa no que toca ao seu assentamento categorial. É o
próprio Eduardo Lourenço quem nos alerta para este facto: «é difícil encontrar
na história das categorias artísticas alguma mais própria para exemplificar a con-
fusão a que se chega quando nos pomos ao serviço de metodologias genéricas,
14
empíricas ou extrínsecas aos objectos aos quais se aplicam». Palavras da confe-
rência proferida na Bahia, em 1959, «Fenomenologia e História da Arte – O Exem-
plo do Barroco – Breve Fenomenologia do Barroco», de onde destaco a notável
primeira parte – de corte mais teorético ou filosofante –, estimulante e vigorosa,
antecipo, como também o é, por diferentes razões, a própria descriptio da Igreja
de São Francisco e o salto propriamente interpretativo – que coroa o exercício
crítico – que dela faz. Como categoria histórico-estética, formula Lourenço, o
‘barroco’ é detido pelo «purgatório da linguagem». Não o ‘inferno’ ou o ‘paraíso’
da linguagem, mas sim o seu ‘purgatório’, e como ‘purgatório’. Concluirei o meu
artigo voltando às valências críticas desta figura purgatória, que vale tanto para
a alegorese barroca como para a alegoria da sua leitura fenomenológica.
O contexto académico em que a conferência foi proferida não é de somenos
importância, obviamente. Foi turbulento e tenso, o IV Colóquio Internacional de
Estudos Luso-Brasileiros, realizado entre os dias 10 e 21 de Agosto de 1959. Lou-
15
renço participou na organização, mas perante a perspectiva e iminência de um
encontro convivial com Marcelo Caetano, regressa a Portugal precisamente no
16
desfecho do atribulado evento, cujo eco em Portugal seria, entretanto, abafa-
17
do. Confluem no colóquio o oposicionismo exilado e o oficialismo do regime.
Turbulências e tensões, indo ao essencial, diziam respeito à questão colonial,
matéria transcendental a que Eduardo Lourenço dedicará, como sabemos, a par-
tir precisamente do seu ‘tempo brasileiro’, escritos e páginas decisivas após o

14
Id., ibid., p. 203.
15
Como palestrante, Lourenço inscreve-se em três secções: «Literatura», «Belas Artes» e «Medicina». Cf.
Maria de Fátima Maia RIBEIRO, «IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (1959) e estratégias
de interlocução e de silenciamentos, na construção de alteridades e relações culturais», in Márcio Ricardo
Coelho MUNIZ et alii, Anais do XXII Congresso da ABRAPLIP, Bahia: UFBA, 2009, pp. 689-699.
16
Na entrevista concedida a Rui Moreira Leite, publicada sob o título «A Miragem Brasileira», Eduardo Lourenço
faz referência a este facto. A entrevista integra o volume Tempo Brasileiro (op. cit., ed. cit., pp. 557-571).
17
Álvaro da Costa Pimpão, também participante no colóquio, gravaria um depoimento radiofónico emitido em
Portugal dando conta do acontecimento, mas ocultando parte do ocorrido. Costa Pimpão vai ao colóquio
como representante oficial do regime de Oliveira Salazar, facto que move firmes críticas de Adolfo Casais
Monteiro. No artigo «A Grande Hipocrisia da Comunidade», publicado no Jornal da Bahia de 15-16 de Agosto
(Caderno 2, pág. 4), escreve Casais Monteiro: «Pergunta-se compreensivelmente, como pode haver diálogo
entre um povo livre e um povo de bôca tapada» (apud Maria de Fátima Maia RIBEIRO, op. cit., ed. cit., p. 697).
Sobre o colóquio, veja-se a tese de doutoramento, incidindo sobre a documentação completa arquivada do
evento, de Maria de Fátima Maia RIBEIRO, IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros: relações
culturais, identidade, alteridade, Salvador: UFBA, 1999.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
305
Pedro Serra

retorno a Portugal. No meu artigo, este tema não é prioritário, muito embora
tenha a sua ressonância na análise e síntese que «Fenomenologia e História
da Arte – O Exemplo do Barroco – Breve Fenomenologia do Barroco» propõe,
como veremos. Emanando de vivências pessoais, e focalizando teoreticamente,
18
na conferência, a «supremacia do presente sobre o passado», o que talvez seja
de lamentar é o facto de Eduardo Lourenço não ter avançado de forma mais
insistente e constante na sua proposta de uma «fenomenologia da arte» e, mais
concretamente, de uma estética do barroco.
Em «Apoteose barroca», pequeno texto escrito aquando, e no contexto, da ex-
19
posição «Brasil Barroco – Entre Céu e Terra», realizada no Petit Palais em Paris,
20
por ocasião da efeméride dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, teremos
um Eduardo Lourenço já mais mobilizado pela contestação, algo desencantada
mas bem afiada, de «Um barroco que não veio de parte nenhuma, emanação ou
21
essência de uma ‘brasilidade’ naturalmente barroca». No fundo, uma efeméride
que repete, na diferença, aquela constatação referente à historiografia transpi-
renaica sobre o barroco que foi apontada por José Antonio Maravall, e a que o
historiador espanhol responde, em 1975, com La cultura del barroco. Análisis de
una estructura histórica. Em 1999 – o manuscrito de «Apoteose Barroca» data de
8 de Novembro desse ano –, Eduardo Lourenço faz o que pode, e é muito: «Ne-
22
nhum Paris nos consegue distinguir» referindo-se, claro está, a Portugal e ao
23
Brasil, aos brasileiros e aos portugueses, perante um barroco «luso-brasileiro».
Mas fá-lo reduzindo a questão do barroco à sua razão latamente identitária e co-
munitária, sem dúvida ponderosa e necessária, mas que fica aquém da reflexão
sobre o barroco proposta em 1959, reflexão importante, quero crer, para uma
qualquer história ou filosofia sua.
«Nenhum Paris nos consegue distinguir», formulou com contundência e preci-
são Eduardo Lourenço. Estabelecer ou não distinções é ainda uma forma de distin-
guir, isto é, de pensar. O trabalho intelectual de Eduardo Lourenço foi sempre movi-
do por esta libido sciendi. Cabe avançar lembrando, neste sentido, que o exercício
de uma intervenção na complexa e densa matéria do barroco peninsular ibérico
o mobilizou em diferentes outras oportunidades, nomeadamente incidindo sobre

18
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 203.
19
Redigido em Vence e publicado apenas 3 dias depois da cópia manuscrita que se conserva, concretamente
na revista Visão de 11 de Novembro de 1999.
20
Foram exibidas 350 obras. Entre outros de Frei Agostinho de Jesus, Manuel Menezes da Costa, Manuel da
Costa Ataíde, Mestre Valentim e, destacadamente, de António Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
21
Id., ibid., p. 387.
22
Id., ibid., p. 388.
23
Amplia Eduardo LOURENÇO: «Nos quinhentos anos de história brasileira, trezentos anos partilhados connosco,
nada há, em todos os sentidos, mais português que no chamado ‘barroco brasileiro’. E não será em Paris que
ele parecerá, a quem não é cego, menos ‘português’, o que em boa verdade e para o nosso comum século
barroco, quer dizer ‘luso-brasileiro’» (id., ibid., p. 388). Como articularei mais adiante, mesmo a questão
latamente política que aqui, necessariamente, reverbera advém, e é concebida por Eduardo Lourenço, em
função da noção de «essência contingente», aninhada nas suas reflexões fenomenológicas sobre o barroco.
306 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

24
o objecto literário. Matéria que retorna uma e outra vez, o que é certo que o
enfrentamento ao barroco começa por incidir sobre um ‘caso’ da arquitectura
colonial, a já mencionada Igreja de São Francisco da Bahia. No ‘tempo brasileiro’,
25
Eduardo Lourenço – pouco dado a «transes» –, averbou vivências de intensi-
dade qualificada. A pergunta que, neste sentido, se impõe é a de ponderar em
26
que sentido foram ‘profanas’ – isto é, críticas – semelhantes iluminações lou-
rencianas ou, se preferirmos, aludindo ao subtítulo da secção do volume Tempo
Brasileiro: Fascínio e Miragem onde foram coligidos, de «luminosa presença»?
Dilucidar esta matéria passa, desde logo, pelo campo de atracção semântico
da figura do «purgatório da linguagem» a que já aludi, sintagma cunhado para
significar a sua digressão fenomenológica sobre o ‘barroco’.
Deixemos de lado a modéstia ‘científica’ com que Lourenço revisitou, em
1987, o texto da conferência – até então inédito, mas que manteve intacto –,
24
Um caso exemplar têmo-lo em «Camões e Góngora», de 1980, cuja leitura se recomenda para calibrar
de que modo opera o close reading de Eduardo Lourenço. Aí, as figuras de Polifemo e do Adamastor, na
atracção delas que o ensaio de Eduardo Lourenço perfaz, cifram ou refractam o modelo de relação entre
ambos os poetas, predicada pela repetição da diferença. Isto é, determinada por uma tensão dialéctica em
que a concordância é a síntese de um processo de contrastes. É esta, no fundo, a proposta do ensaio – a de
um Camões como «elo» da linhagem peninsular que conduz dos ‘órfãos de Petrarca’ a Góngora: por outras
palavras, o «elo principal» é a introdução dessa tensão dialéctica na «paisagem literária hispânica», ou, se
quisermos, numa «Ilha de Páscoa», como lhe chama Lourenço, que desmanche a retórica do excepcionalismo
que anima muita da historiografia espanhola sobre o período. Ou por outras palavras ainda: é escrever um
ensaio como «Camões e Góngora» como resposta, e envio desafiante, à lição magistral de Dámaso Alonso
sobre o «barroquismo» do Polifemo, amostra maior de um «barroquismo» que é «uma enorme ‘coincidencia
oppositorum’» (Dámaso ALONSO, 2009: 248). A epígrafe do ensaio lourenciano é, aliás, precisamente uma
cláusula do muito admirado Dámaso Alonso: «Da montanha de imitações ovidianas emerge, joia intacta e
eterna, a Fábula de Polifemo, de Góngora» (Dámaso ALONSO, 2019: 145). Citar este lugar é tornar explícito
o retoque que Eduardo Lourenço reclama para o acto interpretativo específico que pretende levar a cabo.
Camões e Góngora, dispõe o título do ensaio de Eduardo Lourenço, sendo que o par é unido por um modelo
oximorónico de relação, aninhado na conjunção coordenativa «e» que concatena o par. O ensaio lourenciano
é a realização do título como sintagma em que palpita um oximoro. Camões e de Góngora são postos em
relação por Eduardo Lourenço relevando aquilo que ambos partilham de negação de uma metafísica do
processo poético, muito embora de modos diferenciados: trágica a do primeiro, melodramática – ou barroca
– a do segundo. Poesias que, no fundo, constituem, para Eduardo Lourenço, um princípio de corrosão de
uma «paisagem literária hispânica» em que a lógica da unidade – a de «uma estátua da ilha de Páscoa» –
prevaleça. Negação, decerto, de uma Península Metafísica, mas talvez, concomitantemente, afirmação de
uma Península Estética.
25
Veja-se, supra, a nota 13.
26
Trato, aqui, de entrosar, na minha reflexão sobre os momentos de intensidade qualificada perscrutáveis nos
textos de Eduardo Lourenço, a espinhosa noção de iluminação profana de Walter Benjamin. Entre o elogio e
o fascínio, Benjamin atribui um ‘falho’ à iluminação surrealista, que carece da leitura e do pensamento para
ser verdadeiramente «profana». O surrealismo dispõe, sim, das «forças da embriaguez» para a revolução:
«Mas – aponta Benjamin –, colocar a tónica exclusivamente nela [entenda-se: nela, embriaguez] significaria
pospor completamente a preparação metódica e disciplinar da revolução em favor de uma praxis que oscila
entre o exercício e a véspera» (Walter BENJAMIN, «El surrealismo. Última instantânea de la inteligência euro-
pea», in Iluminaciones IV, trad. Roberto Blatt, Madrid: Taurus, 1998, p. 58; tradução do espanhol da minha
responsabilidade). Reiterando, e por outras palavras, Benjamin reserva a sua noção de iluminação profana
para, por exemplo, a leitura e o pensamento sobre a ‘embriaguez’, a ‘telepatia’ ou o ‘haxixe’. No seguimento
da nota anterior sobre a vivência do candomblé, não é o «transe» o que profanamente ilumina – um «transe»
não é dialético – mas sim o acto cognitivo que o traduz em compreensão e conhecimento. Num certo sentido,
é também o que significa um barroco no purgatório da linguagem.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
307
Pedro Serra

aquando da sua inclusão no volume O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios.


Considera, assim, no texto apenso cujo título é «Breve História de um Equívoco»,
que a conferência foi levada a cabo por um «jovem aprendiz de filosofia», tratan-
do-se, ainda segundo as suas próprias palavras, de uma «tentativa especulativa
27
e fervorosa». Especulação e fervor, dois atributos da libido sciendi lourenciana
naqueles idos de finais da década de cinquenta. Entretanto, o segundo reparo
autocrítico do texto de 1987 diz respeito ao objecto que moveu a conferência, a
28
Igreja de São Francisco da Bahia, afinal um «caso híbrido». Assim, Lourenço re-
conhece um ‘ruído’ no objecto escolhido para encetar as suas reflexões estéticas
sobre o barroco. Seja como for, não deixa de formular um problema da historio-
grafia que, em última instância, ‘salvaria’ a conferência e, neste sentido, validaria
a sua edição em letra de forma n’O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios. Con-
cretamente, num subtil à parte colocado entre hífenes, aventa: «deste hibridismo
não será feita a maioria daquelas obras que um ‘rótulo’ póstumo unifica para
29
prazer dos historiadores?» . A conferência supõe, de facto, um enfrentamento
da fenomenologia e da historiografia, especialmente quando se trata de pensar
a história das formas, enfim, da arte como fenómeno a um tempo estético e his-
tórico. De algum modo, o que Eduardo Lourenço pretende apontar, em 1959, é
uma ausência ou, se se quiser, um singular e radical sequestro do barroco pela
historiografia romântico-positivista, tanto pelas suas determinações metafísicas
quanto pelas suas aspirações científicas. Nem idealismo nem «coisismo» mobi-
30
lizam a fenomenologia ‘contestatária’ acometida na conferência. Enfim, como
saldo da nótula apensa à conferência cinquenta anos depois de ter sido proferi-
da, uma chave de ouro em forma de oximoro insistindo no «equívoco» mas, de
modo conspícuo, positivando o valor do ‘erro’ na complexa matéria em pauta:

27
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 193.
28
A Igreja de São Francisco da Bahia que Eduardo Lourenço viu congrega formas e materialidades barrocas
e rococó. Sobre o rococó brasileiro, veja-se Myriam Andrade Ribeiro de OLIVEIRA, O Rococó Religioso no
Brasil e Seus Antecedentes Europeus, São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Afirma a responsável deste excelente
livro: «Sínteses do barroco tardio e do rococó são frequëntes na arquitectura do período, particularmente
a de cunho religioso, levando muitas vezes os autores a não reconhecerem distinções nítidas entre os dois
estilos» (p. 43).
29
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 193.
30
Um estudo das ‘fontes’ de índole filosófica e historiográfica que percutem na conferência de Eduardo
Lourenço – estudo que excede o escopo e o desígnio do presente artigo – contaria com o generoso
espargimento de menções ao longo do texto. Referências, digamos, enxutas, que nos devolvem um «jovem
aprendiz de filosofia» que, como leitor, reduz o lido ao essencial. No que toca à filosofia e especificamente
a fenomenologia, de modo destacado, o Husserl do «voltar às coisas mesmas» (id., ibid., p. 200). Contudo,
Lourenço tempera a lição do idealismo que o insufla: «Nós preferimos seguir aqui a inspiração de Espinosa
e Hegel que reencontramos em Heidegger» (id., ibid., p. 201). Pascal, Kant, Karl Marx e Max Scheler são
igualmente conjurados. No que toca, mais concretamente, à estética do barroco, Croce, Menéndez Pelayo e
Wölfflin, são atraídos para o texto. Contudo, consequente e coerente com a sua perspectiva fenomenológica,
a seguinte afirmação é esclarecedora: «Deliberadamente alheios às leituras póstumas da História ou de
qualquer disciplina pseudocientífica, deixemos a Coisa mesma descobrir-se em nós na sua imediatidade ou
naquilo que para nós não comporta anterioridade. Não nos interessa abordar o barroco através de Croce
ou D’Ors ou Weisenbach» (id., ibid., p. 204).
308 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

assim, a Igreja de São Francisco da Bahia foi «exemplo do barroco», e como tal
31
«a tomei, como ser verá, certamente errada e erradamente certa». Vivências e
experiências são, aqui, talvez agudamente descritas como ‘erros’ que ‘acertam’.
Especulação e fervor modelizam uma conferência que, já o disse, se divide
em duas partes. A primeira delas tem por título «O exemplo do barroco», e a
segunda «Breve fenomenologia do barroco». Dois andamentos densamente en-
trosados que, contudo, manifestam uma relativa autonomia. Para debulhar uma
e outra nos seus conteúdos essenciais começo por notar a ocorrência em ambas
do verbo ‘penetrar’. Do latim penetrare – com o sentido de ‘entrar no interior de
algo’ ou ‘ingressar chegando até ao fundo’ –, a palavra tem a sua raiz nas formas
adverbiais penes – ‘dentro, no interior’ – e penitus – ‘até ao fundo, interna e pro-
fundamente’. Ainda, na origem destes advérbios, penus, penoris, com o sentido
de ‘despensa ou provisão de víveres essenciais à sobrevivência’, mas também
‘parte interna e profunda de uma morada’. Ora, na secção inicial «O exemplo do
barroco» é-nos dito do «desejo de penetrar o sentido, a significação de tal ou tal
32
obra ou de um conjunto de obras de arte». Pouco mais adiante, ainda, reincide
o vocábulo: «importa-nos muito mais penetrar a significação adstrita a essa for-
ma, o conteúdo intra-humano dessa forma, pois a isso se resumem significação e
33
sentido». Por seu turno, em «Breve fenomenologia do barroco» – em que temos
34
propriamente a «vivência arquitectónica» , como lhe chama o próprio Eduardo
Lourenço, da Igreja de São Francisco da Bahia –, podemos ler: «Se do exterior
penetrarmos no interior, uma segunda vivência nos espera que não é indepen-
35
dente da primeira». Como podemos constatar, ‘penetrar’ detém quer uma va-
lência hermenêutica – a atribuição de sentido ou significação é como uma pe-
netração –, quer um valor não-hermenêutico – ‘penetrar’ refere um movimento
espácio-temporal de trânsito entre o exterior e o interior, no caso, a passagem do
exterior para o interior de um templo. A libido sciendi lourenciana é integrada por
esta dupla ‘penetração’ estruturante. Começarei, então, por descrever sintetica-
mente os possíveis e limites epistémicos da «fenomenologia da arte» articulados
em «O exemplo do barroco» para, depois, num segundo andamento, ler a con-
trapelo – porque, como veremos, será necessário fazê-lo –, também com ânimo
sintético, a segunda parte da conferência, «Breve fenomenologia do barroco».
Começo por antecipar, contudo, que um dos grandes achados epistémicos
do constructo crítico lourenciano sobre o barroco é o que colocar, como a priori
da cognição, a fisicidade da obra de arte. Cito algo mais extensamente: «O fac-
to dessa contemporaneidade física da obra de arte, diante da qual os homens
desfilam como se tratasse de um museu, e o facto mais radical de cada leitura
31
Id., ibid., p. 193. Eu sublinho.
32
Id., ibid., p. 199.
33
Id., ibid.,
34
Id., ibid., p. 205.
35
Id., ibid.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
309
Pedro Serra

ser sempre leitura do presente e no presente provocam o paradoxo aparente


36
da famosa intemporalidade da obra de arte que tanto intrigava Karl Marx». O
«purgatório da linguagem» acomoda este ‘contacto liminar’ com a obra de arte
como ‘coisa’ – próxima ou distante, visível ou invisível –, confluindo nele, «pur-
gatório da linguagem», tanto uma dimensão deíctica como uma dimensão de
revelação. Assim, assevera Lourenço: «O método fenomenológico é justamente
a teoria e a prática desta pura presencialidade irredutível, lógica e ontologica-
37
mente anterior ao conhecimento histórico e científico da realidade». Estamos
perante, poderíamos dizer, uma teoria da presença que se não distingue do pro-
blema da presença do e no barroco. E eis, assim, o conteúdo ‘contestatário’ da
conferência bahiana de 1959: Eduardo Lourenço tenta um marco especulativo
que, focalizando a forma barroca, não é um formalismo. E não o é porque dispõe
uma história do barroco que atenta prioritariamente a historicidade das formas.
Mas, mais ainda, não o é porque essa historicidade requer a materialidade da
forma. Por último, ponto igualmente crucial, a «presencialidade irredutível» não
é propriamente crítica. Já o sublinhei – ‘aponta’ e ‘revela’. O constructo teorético
fenomenológico de Eduardo Lourenço perfaz o seu valor crítico na atribuição de
sentido ou significação: o salto simbólico ou alegórico com que, em rigor, cul-
mina a análise da Igreja de São Francisco. A conferência da Bahia, demanda da
verdade da «arte barroca», carreia no âmago a noção de «essência contingente»,
o que a distingue da historiografia determinada pela ilusão de «realidades eter-
38
nas». A historiografia impugnada pela conferência não é, em rigor, histórica,
pois reduz uma obra de arte «à génese da sua aparência» ou à «classificação
39
estética», ‘máscaras’ ou ‘camuflagens’ do «erro do historiador». Para Lourenço,
40
a obra de arte «nunca foi um produto natural» – distinguindo-se, assim, de um
Walter Benjamin, em quem verbera a natureza como a priori –, muito embora
essa mesma obra de arte tenha uma história natural. É assim que: «A obra de arte
segrega, à segunda potência, esta historicidade [isto é: a da «história concluída
da forma»]. Contudo, não pelo espírito, como romanticamente se afirma, mas
41
pela matéria duradoira em que se configura». Eduardo Lourenço não avança no
problema de quão «duradoira» é a «matéria» configuradora, mas já é muito o que
propõe e tenta com esta disposição.
Aqui chegados, é sem dúvida ocioso reiterar que Lourenço não foi nem pre-
tendeu ser um historiador da arte. Nem sequer, ainda, um filósofo da arte. Seja
como for, circulam pela peça tanto conteúdos oriundos de um como de outro
domínio. Submeter o texto a uma análise de fontes excede o meu escopo, e

36
Id., ibid., pp. 199-200.
37
Id., ibid., p. 200.
38
Cf. id., ibid., p. 202.
39
Id., ibid., p. 198.
40
Id., ibid., p. 199.
41
Id., ibid.
310 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

o escopo destas cláusulas provisórias. É certo que a conferência de Eduardo


Lourenço é determinada pela «fenomenologia»; também é explícito, ainda, que a
move o desejo de pensar algo como uma «estética» do barroco. Residirá aqui, de
resto, uma das principais objecções aos conteúdos do texto. João Adolfo Hansen
poderia ser convocado, pelo consabido anacronismo que tanto «estética» como
«barroco» concitam, ao nos relacionarmos com coisas e objectos dos séculos
XVII e XVIII, tanto no âmbito das letras como das artes plásticas. O «anacronis-
mo» da publicação em letra de forma da conferência – recordo, em 1957 – trun-
cou decerto a sua inscrição na chamada, e bem conhecida, querela do barroco
42
detonada por Haroldo de Campos. Contudo, apesar da peça textual de Eduardo
Lourenço – de resto, assumida e, em última instância, conscientemente – ser
atravessada e informada pelos mencionados anacronismos, não é menos certo
que se trata de uma tentativa de formalizar, pela palavra escrita, uma vivência es-
tésica. Ora, a minha proposta é a de, precisamente, fazer uma descrição – se se
quiser, com algo de close reading – desta mediação do sensível pelo inteligível.
Não se trata, enfim, de negar ou rasurar a disposição latamente crítica do tex-
to, tensado pelo não-hermenêutico e o corolário interpretativo; trata-se, sim, de
lê-lo a contrapelo como cifra da afecção sensível de um corpo tropeçando com
42
Numa das descrições de ‘barroco’ polemicamente conformada por Haroldo de Campos, lemos: «Nesse modelo
[da Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido], à evidência, não cabe o barroco, em cuja estética
são enfatizadas a função poética e a função metalinguística, a auto-reflexividade do texto e a autotematização
inter-e-intratextual do código (meta-sonetos que desarmam e desnudam a estrutura do soneto, por exemplo;
citação, paráfrase e tradução como dispositivos plagiotrópicos de dialogismo literário e desfrute retórico de
estilemas codificados)» (Haroldo de Campos, p. 33). Imediatamente após esta descrição, Campos cita Severo
Sarduy, de quem sobreleva a síntese: o ‘barroco’ é uma «estética da vertigem do lúdico». Chamo a atenção
para as judiciosas observações de Alcir Pécora a respeito da querela do barroco que sobrevém nos finais
dos anos 80: «Entre excluir o barroco do estudo sob a alegação de estar ausente da formação nacional, e
incluí-lo, como antecipação do nacional, qual é pior? Difícil e vã escolha» (2011, p. n.p). Duas décadas após
o diferendo, num lance crítico que obsolesce o agonismo do debate entre ‘sociologia’ e ‘formalismo’, entre
‘formação’ e ‘sequestro’, entre Antonio Candido e Haroldo de Campos, Pécora valida a posição de João
Adolfo Hansen que representa, digamos, uma perspectiva filológica, que é a de evidenciar um impasse
que demanda produtividade reavaliadora. Escolher é tanto «vão» como «difícil». 1989, ano de publicação
tanto de O Seqüestro do Barroco como de A Sátira e o Engenho, se mobilizou o enfrentamento polemizante
entre Antonio Candido e Haroldo de Campos, é também o momento – de algum modo, ainda ‘cego’ –, do
polemismo que a obra de Hansen comporta e que, vinte anos volvidos, no momento da recensão de Pécora,
ainda está por fazer. Uma coisa parece certa: relevar o conteúdo polémico da perspectiva filológica implica
necessariamente fazê-lo com a densidade da filologia. E fazê-lo, também necessariamente, numa deriva em
que contrastam dois tempos diferentes: os idos de finais dos anos 80 são ainda momento de debates da e
pela teoria; não assim as segunda e terceira décadas do século XXI. Sinto-me mais próximo de Hansen – a
filologia – do que de Haroldo de Campos – a pulsão criativa, mediada pela máquina da deriva estruturalista
–, mas com uma ressalva. Considero que se podem fazer redescrições, e, neste sentido, reavaliações de
coisas e objectos do ‘barroco histórico’ tomando como ponto de partida o estésico. Não me repugna o uso
da palavra ‘barroco’, ou sequer de ‘estética’ devidamente enxugadas do lastre romântico, se numa eventual
leitura aplicada se manifestar a complexidade e densidade do conceito, e a resistência que lhe opõe o objecto
lido. Como mais adiante articularei, para o ‘barroco’ valerá uma noção como a de design, tal como a propõe
Boris Groys (cf. 2023). As coisas e objectos dos séculos XVI e XVII são ainda ‘nossas’. Um livro como o de
José Emílio-Nelson Sonetos de Veste Pluma (Porto: Edições Mortas, 2022, desenhos de Pedro Proença),
em edição originalmente bilingue português/espanhol, é uma boa amostra, como de resto o é o conjunto
da obra deste poeta português contemporâneo.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
311
Pedro Serra

uma coisa no mundo da vida. Vamos, então, à penetração de Eduardo Lourenço


no templo bahiano, assinalando, desde já, que a entrada, nele, é mediada he-
gemonicamente pela sensorialidade visual, que metonimiza e metaforiza – isto
é: reduz – a afecção corporal desse trânsito entre o exterior e o interior daquela
espécie de espaço. A «vivência arquitectónica» do monumento significou, essen-
43
cialmente, «olhá-lo por dentro e por fora» ; ou, numa síntese igualmente ajus-
tada, na visitação como ‘presença irredutível’ daquele habitat humano – uma
igreja, diz-nos Eduardo Lourenço, é recinto de «humanização de uma necessida-
44
de» – em que a «vista é absorvida». Em rigor, de um ponto de vista medial que
se radicalize, muito embora a dominante visual que a determina, a ‘presença
irredutível’ não redunda numa ‘imagem icónica’ nem é movida sequer por uma
imagem – ver, no mundo da vida, não é uma imagem; Eduardo Lourenço não ins-
creveu a ‘presença irredutível’ numa eventual fotografia ou imagem-movimento.
O que dispomos é de uma conferência impressa com uma descriptio logóica
(escrita/voz) dessa vivência: uma ‘figuração linguistica’.
Fá-lo-ei, pois, mas não sem antes sintetizar os termos da leitura a contrapelo
da descriptio lourenciana da Igreja de São Francisco da Bahia, pela qual vou prio-
rizar o estésico sobre o estético. Neste sentido, esta entrada no «purgatório da
linguagem» do barroco requer as seguintes considerações prévias. Antes de ser
‘figuração linguística’ ou ‘imaginação icónica’ com valoração artística, a relação
que se estabelece com uma coisa verbal ou uma coisa visual é estésica. A ais-
45
thesis precede a estética. Por outro lado, é neste confuso enclave perceptivo
que estas coisas mostram a sua reflexividade e autorreflexividade. Isto significa
que a sua verdade consiste em ser medium (opus ipsum), embora em ambos
os casos a sua condição medial – ou medialidade – seja necessariamente ocluí-
46
da para, num «segundo de inversão», cumprir a sua emergência ou aparência
47
como aparência, actualizando a sua instanciação «sem referência metafísica»
48
onde se aninha uma «diferença sem diferença». O valor heurístico disso a que
chamamos Arte, dos objetos literários e artísticos, reside no facto de intensifica-
rem essa «reflexividade» e «autorreflexividade», fornecendo modelos cognitivos
não discursivos – isto é, não semióticos ou não lógicos – determinados por um
dispositivo catacrético: ou seja, não figurativo.

43
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 205.
44
Id., ibid., p. 206.
45
Cf. Johanna DRUCKER, Speclab. Digital Aesthetics and Projects in Speculative Computing, Chicago y Londres:
University of Chicago Press, 2009, pp. 127 y passim.
46
Cf. Werner HAMACHER, «The Second of Inversion. The Movement of a Figure through Celan’s Poetry», Yale
French Studies, nº 69 Yale: Yale University Press, 1985, pp. 276-311.
47
Cf. Karl Heinz BOHRER, «Instants of diminishing representation. The Problem of Temporal Modalities», in
Heidrun Friese, ed., Time and Rupture in Modern Thought, Liverpool: Liverpool University Press, 2001, pp.
113-134.
48
Cf. Boris GROYS, «Sobre lo Nuevo», Artnodes. Intersection Between Arts, Sciences and Technologies, Barcelona:
Universidade Aberta da Catalunha, Dezembro de 2002, pp. 1-13 [Artigo online].
312 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

As reticências sobre a possibilidade de uma teoria dos meios e da medialida-


49
de – a obstrução de uma sua filosofia – conduzem à revisão de qualquer lance
teórico, à reavaliação de outro objeto emaranhado: a teoria, precisamente.
Um revisionismo não menos necessário do que aquele que está implícito e
enredado no uso de expressões operatórias como ‘figuração linguística’ ou
‘imaginação icónica’. Seja como for, por outro lado, a ‘figuração linguística’
e a ‘imaginação icónica’ distinguem-se precisamente de forma irredutível, na
50
sua condição medial. A anestesia da ‘imaginação icónica’ não é escrutável

49
Uma entrada na problemática da génese do meio é-nos proporcionada por Friedrich Kittler, na contramão
de reflexões como as levadas a cabo por de John Guillory, este último um teórico que vincula essa génese
à invenção da tipografia de caracteres móveis, considerando que, anteriormente, não haveria consciência
medial. Cf. John GUILLORY, «Genesis of the Media Concept», Critical Inquiry, 36.2, 2010, pp. 321-362. Kittler
escreve: «No entanto, por surpreendente que pareça, os meios de comunicação em Aristóteles existem.
Não como parte de sua ontologia, mas como parte de sua teoria do homem psicofísico» (Friedrich KITTLER,
«Towards an Ontology of Media», Theory, Culture & Society, vol. 26, 2-3, Los Angeles, Londres, Nova Delhi e
Singapura: SAGE, 2009, pp. 23-31, p. 25). A mediação entendida nestes termos não replica o binómio natureza/
técnica. Desta forma, a mediação física do sensorium é tida em plena consideração: «No caso do sentido
auditivo, deve haver ar entre a coisa e o tímpano, bem como entre o tímpano e a cóclea. No caso da visão, a
questão é ainda mais complicada: entre a coisa e a íris humana – cujo belo nome aristotélico, aliás, significa
‘noiva’ – deve haver ar, enquanto entre a íris e a retina deve haver água» (ibidem). Para Kittler, o espinhoso da
matriz aristotélica para a problemática em questão reside no facto de ser também de Aristóteles a noção de
phoné semantiké; em suma, da voz como logos, uma distinção ainda não hegemónica no momento em que
o Estagirita a formula: especificamente, Kittler alude à discriminação entre phoné e graphé, voz e escrita,
distinção que implica que o sistema de signos é postulado como sendo subsidiário ao aural. Daí surge uma
metafísica que tem como condição de possibilidade o esquecimento do ambiente e da mediação tecnológica.
O «ser» é considerado aural, e a auralidade não é coextensiva com suporte técnico, assim como a lógica e
a física o são num outro nível. Para Kittler, em suma, o advento da tecnologia digital – impacto verberado
por Heidegger, que a considerava o fim da filosofia – será a oportunidade de pensar para além do binómio
matéria/forma.
50
Refiro-me, aqui, a um dos principais representantes da chamada nova filologia, Jerome MACGANN. Num robusto
livro dedicado aos desafios da arte filológica, The Textual Condition (Princeton: Princeton University Press,
1992), MacGann argumenta a favor da actualidade de uma filologia que cumpre o seu aggiornamento através
das novas tecnologias e, também, dos problemas levantados latu sensu pela «teoria» – termo que poderia
incluir, no início dos anos 1990, tanto a teoria literária quanto a teoria crítica. Numa cláusula mínima que é
especialmente cara a MacGann – «Não pode haver arte sem resistência nos materiais» – William Morris colou
tanto o objecto artístico como o acto artístico à sua condição «material». Nesse sentido, somos confrontados
com uma primeira ordem de problemas, que derivam da possibilidade de objetivar o que entendemos por
«materialidade» da arte literária. Por outro lado, as dificuldades aumentam quando a cláusula também define
a condição artística como uma «resistência nos materiais». Homóloga, talvez, da dificuldade de qualquer
leitura apontada por Nietzsche quando distinguiu uma leitura «pela» e «na» – em língua alemã: durch – inter-
pretação. Nietzsche formulou, numa conhecida passagem, que «ler filologicamente» significa confrontar a
leitura «teológica», isto é, significa ler de uma forma que não «falsifique» os textos pela «interpretação». E era
precisamente o que um «teólogo» – ou aquele cujo «sangue» de teólogo corre nas veias – não podia fazer:
«Outro sinal do teólogo», diz-nos Friedrich NIETZSCHE, «é a sua incapacidade para a filologia. Por filologia
entende-se aqui, num sentido muito geral, a arte de ler bem; saber interpretar os factos sem os distorcer com
interpretações; sem perder, por uma questão de compreensão, a prudência, a paciência e a finura. Filologia
como ephexis na interpretação, sejam livros ou notícias, jornais, do destino ou de dados meteorológicos»
(Kritische Gesamtansgabe, vol. VI (3), Giorgio COLLI e Mazzino MONTINARI (orgs.), Berlim: Walter de Gruyter
& Co., 1969, p. 231. Este «sentido muito geral» da leitura filológica segundo Nietzsche – que não era, como
sabemos, o único significado que o filósofo alemão atribuía ao termo «filologia» (cf. Rafael GUTIÉRREZ GIRARDOT,
Nietzsche y la filología clásica, Málaga: Analecta Malacitana/Universidad de Málaga, 1997) – pressupõe
também uma ética que fundamente a «boa leitura», que, não sendo uma ciência ou uma teologia, é uma
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
313
Pedro Serra

51
pelo modelo semiótico-discursivo da linguagem; ao mesmo tempo, a autorre-
flexividade perceptiva da ‘figuração linguística’ não compartilha com a ‘imagem
icónica’ a impossibilidade de autonegação, que lhe é vedada, e determina a sua
52
medialidade ; além do mais, e sobretudo, a condição medial da ‘figuração lin-
guística’ é desenrolada na dobra diabólica que supõe ser linguagem em regime
de auto-afecção – que podemos chamar tanto «filologia» quanto «poesia», ou
53
mesmo «poesia como prima filologia» – que não cessa de entrelaçar a per-
ceptividade visual e, intuitivamente, outra ordem de mediação, sem com ela se
confundir, nem podendo ser totalmente dela extirpada dela: a percepção aural.
Acrescente-se a estes regimes mediais discretos da visualidade e à auralidade,
54
pelo menos, e por último, a «tactilidade primordial».
Eduardo Lourenço começa a sua descrição pelo exterior do edifício, pela fa-
chada, atraindo, para tanto, a geometria – a abstracção – das «linhas horizontais
e verticais», por um lado, e de outro, da linha ou «motivo curvo». Se as primeiras
preponderam, as segundas manifestam-se discretamente. Começa, pois, pela
estrutura do templo, um arranque more geométrico. Sobrevém, imediatamente,
a penetração para o interior daquele «habitat humano». Prefigura já, em rigor,
na destrinça entre o horizontal/vertical e o curvo, é aqui que acontece o mo-
mento de intensidade qualificada que é figurado como «contraste» ou «desfa-
sagem» – são estas as palavras utilizadas por Lourenço: penetrar no templo,
em síntese, é passar do ‘abstracto’ para o ‘concreto’: se o continente era geo-
55
métrico, o conteúdo «apela a olhar para cada pormenor». A vista foi absorvida
pelo agonismo do desfasamento, que é a «nota dominante»: «Este contraste é

«Kunst», uma «arte» que implica exigências rigorosas. Vale ressaltar o duplo e divergente significado que
«interpretação» tem naquele lugar do Anticristo: (a) ler «pela interpretação» ou (b) ler «na interpretação».
Por outras palavras, (a) ler «teologicamente» é fazê-lo submetendo o objecto lido a uma interpretação a
priori que «falsifica», ou seja, na qual tudo é feito pela interpretação; (b) «ler filologicamente», por sua vez,
é provocar «boa leitura» na interpretação; a filologia de que fala Nietzsche aqui é a ephexis, termo do qual,
entre os diferentes significados recolhidos por Lidell-Scott-Jones (Henry George LIDDELL, Robert SCOTT, Henry
Stuart JONES, Roderick MCKENZIE, A Greek-English Lexicon, 9ª ed., Oxford/New York: Clarendon Press/Oxford
University Press, 1996), destaco os de «controlo», «cepticismo», «pausa», «contenção» ou «paragem». Ou seja,
a filologia como ephexis supõe um processo de confronto com o que é lido cujo ethos tem, como atributos,
a cautela, a paciência ou a delicadeza. Ler bem pressupõe, portanto, uma cadência, um movimento, uma
batida – uma espécie de travagem.
51
Cf. Dieter MERSCH, «Aesthetic Difference: On the ‘Wisdom’ of the Arts», in Irene Hediger y Jill Scott (orgs.),
Recomposing Art and Science: artists-in-labs, Berlín/Boston: De Gruyter, 2016, pp. 235-250.
52
Cf. Dieter MERSCH, «Aesthetic Thinking. Art as theoria», in Dieter MERSCH, Sylvia SASSE e Sandro ZANETTI,
Aesthetic Theory, Zurich: Diaphanes, 2019, pp. 219-236.
53
Cf. Werner HAMACHER, Para – la filología; 95 tesis sobre la filología, trad. Laura S. Carugati, Buenos Aires:
Miño Dávila Editores, 2011.
54
Mark Hansen, em Bodies in Code. Interfaces with Digital Media propõe, justamente, uma «tactilidade primordial»
como condição de possibilidade de toda a sensorialidade: «Thus, tactility is at once the most primitive sense
formation and the sensible–transcendental origin of the sensible per se; it must simultaneously instance two
divergent ontological formations and must also bridge the gap between them, forming some kind of passage
across the empirical – transcendental divide» (Mark HANSEN, 2006, p. 68). Este mesmo quadro especulativo,
do meu ponto de vista, pode servir para pensar produtivamente outras mediações.
55
Eduardo Lourenço, op. cit., ed. cit., p. 205.
314 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

a essência desta arquitectura barroca e nada tem a ver com a oposição entre
56
fundo e forma» , pois na verdade estamos perante dois fundos e duas formas
que, finalmente, não permitem articular a noção deste barroco arquitectónico
57
como um «estilo», ao carecer de unicidade. Dentro da igreja, «figuras», «talhas»
ou «colunas» perdem, e simultaneamente não perdem, a sua evidência. Estas
partículas elementares contaminam-se numa «imensa filigrana» ou «serpentino
58 59
bordado». O paroxismo que aí colapsa carreia «palpação e visão». O obser-
vador foi tocado pelo interior do templo, intensificado pela negação dele que o
exterior supõe: «frenesi sensível». É de tal ordem que aquele templo expulsa a
auralidade da música barroca ou a densidade do chiaroscuro da pintura barro-
ca. Especialmente notória, para Eduardo Lourenço, é a expulsão da escultura:
«a escultura aí aparece anulada em função de um movimento de volumes sem
60
descontinuidade». Numa outra descrição do mesmo movimento volumétrico –
este é o ponto chave: a rítmica inapelavelmente impressiva da contaminação das
formas – do interior do espaço, eis a formulação lourenciana: o «revestimento é
61
escultura e baixo-relevo que se autodestrói, mas para nenhum fim». Já tecerei
algumas considerações sobre este cancelamento da finalidade. Antes, porém,
gostaria de sublinhar que toda a descrição do templo está marcada por uma
substância: o ouro. Toda a descrição decorre da afecção agenciada pelo material
aurífero. O ouro, em primeira e última instância, põe do avesso a interioridade
62
do templo. Equivale a uma luz que «canta em vão» e é «forma de reflexo» num
excesso de hipervisibilidade que desmancha o agonismo do visto e do não visto.
Até aqui, então, a leitura a contrapelo da vivência estésica, ou melhor, das pa-
lavras e sintagmas que são catacrese dela. Avanço, agora, com a passagem da
estesia figurada para o domínio da sua simbólica ou da simbologia que Eduardo
Lourenço lhe atribui. Para tanto, começo por fazer uma citação de Boris Groys
que proponho como alavanca para sintetizar esse salto hermenêutico lourencia-
no. Um lugar, de resto, que pode ser produtivo para deslindar o ‘barroco’ «no
purgatório da linguagem», tal como formula a conferência bahiana. Devido à sua
relativa extensão, destaco o parágrafo de Groys com um corpo de letra diferente
ao do resto do meu artigo:
Enquanto Deus estava vivo, o design da alma era visto como garantia da dimensão
transtemporal e eterna do indivíduo humano. Acreditava-se que Deus era um es-
pectador da alma humana. Aos seus olhos, uma alma justa e eticamente correcta
era bela, isto é, simples, transparente, bem formada, harmoniosa, não desfigurada

56
Id., ibid.
57
Cf. id., ibid.
58
Id., ibid., p. 206.
59
Id., ibid., p. 207.
60
Id., ibid.
61
Id., ibid., pp. 207-208. Eu sublinho.
62
Id., ibid., p. 207.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
315
Pedro Serra

por vícios obscuros ou marcada por paixões terrenas. Muitas vezes esquece-se que,
dentro da tradição cristã, a ética sempre esteve subordinada à estética, isto é, ao
design da alma. Tanto as regras éticas quanto as do ascetismo espiritual (de prática
e exercícios espirituais) serviram basicamente para projetar a alma de tal forma que
ela fosse aceitável aos olhos de Deus, para que Ele a deixasse entrar no paraíso. O
projeto da alma individual sob o olhar de Deus é um tema recorrente nos tratados
teológicos, e representações medievais de almas que aguardam o Juízo Final foram
usadas para visualizar suas regras. O design da alma destinado ao olhar de Deus –
simples, ascético, minimalista – era claramente diferente da estética mundana da
alma, que desejava materiais sumptuosos, ornamentação complexa e riquezas fabu-
63
losas, e por isso estava localizada no inferno.

Para o caso de que aqui nos ocupamos, o ‘barroco’ não como «estilo» – Lou-
renço dixit – ou como «categoria genérica» – ibidem – de caução tardia român-
tica e pós-romântica – lição também de Hansen –, mas como design. Seria este
um nome, assim, para a estética da alma sob o ‘olhar’ do Outro absoluto: Deus,
um deus spectator. Ora, a síntese interpretativa ou hermenêutica de Eduardo
Lourenço, o salto da estética para a «realidade intra-humana» das formas e suas
marcações materiais – é na matéria, víamos mais acima, e não no espírito que
estriba, segundo Eduardo Lourenço, a historicidade da arte – que o autor beirão
propõe, é assaz singular, acidental e necessariamente vinculada às vivências
64
numa «terra hostil à Morte». Desde já, isto implica a tópica de uma «religião que
65
perdera o sentido do trágico», ou a pouca importância de saber se obedece
66
a uma «intenção teológica precisa». Deus já não olha a «espécie de Homem
[que] se configura nesta forma chamada barroca?», pergunta Eduardo Lourenço.
Ou o design do templo bahiano encarna uma «estética mundana da alma», como
distingue Boris Broys? Forma separada «do contacto profundo com as suas raí-
67 68
zes»? ‘Reflexo’, ‘máscara’, ‘aparência’ «para a nossa sensibilidade infantil» ?
69 70
Delirante «Paraíso de pacotilha» ou «céu de ópera»? Infernal expulsão de
Deus e do Homem? Indicação e revelação da sociedade do espectáculo? «Se
quisermos resumir – afirma Eduardo Lourenço – a vivência total do barroco, na
medida em que a igreja por nós escolhida lhe dá existência, diríamos que a sua
essência é uma dissociação real da totalidade expressa compensada pela apa-
rência de uma unidade espectacular, por seu turno corroída por uma manifesta

63
Boris GROYS, Devenir obra de arte, trad. Juan Madalini, Buenos Aires/Madrid: Caja Negra Editora, 2022, p.
16. A tradução do español é da minha responsabilidade.
64
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 208.
65
Id., ibid., p. 207.
66
Id., ibid.
67
Id., ibid., p. 208.
68
Id., ibid.
69
Id., ibid., p. 207.
70
Id., ibid.
316 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

71
dissociação de fundo e forma». O sublinhado é do conferencista bahiano. É
72
símbolo, alegoria ou figura, a descriptio que Eduardo Lourenço leva a cabo?
Eis, pois, o enredo do barroco lourenciano no «purgatório da linguagem»: ar-
riscar uma resposta é distinguir ou colapsar a distinção entre o céu e o inferno,
algo em que talvez apenas nos reste a insistência de continuar a valer a pena.
Enfim, modestamente opto pela figuralidade da esquemática dos momentos de
intensidade qualificada que percorrem os textos de lourencianos vinculados ao
‘tempo brasileiro’. O olhar de Eduardo Lourenço foi prefigurado pelo olhar de
73
Pêro Andrade de Caminha, um olhar «espontaneamente estético».

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and Technologies, Barcelona: Universidade Aberta da Catalunha, Dezembro de
2002, pp. 1-13 [Artigo online].

71
Id., ibid., p. 208.
72
A «riqueza da máscara» é uma fórmula poderosa de Eduardo Lourenço, em que redunda um pensamento
fenomenológico que vai avançando por erros que acertam. De algum modo, o que aqui se miniaturiza é a
alegoria como poética principal do barroco. Recordaria, neste sentido, que a despedida do barroco levada
a cabo, num encontro académico, em 2008, por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (Universidade de Coimbra/
Universidade do Minho) teve por título e matéria, justamente, «A poética da alegoria e o barroco» (cf. Vítor
Manuel de AGUIAR e SILVA, «A Poética da Alegoria e o Barroco», in Marta Teixeira ANACLETO, Sara AUGUSTO
e Zulmira SANTOS, coords., D. Francisco Manuel de Melo e o Barroco Peninsular, Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra/Ediciones Universidad de Salamanca, 2010, pp. 95-117), revisão em chave benjami-
niana da matéria barroca que tanto lhe devemos. E não tem sido outra a lição dos estudos sobre o barroco
ibérico, mas na fase tardia também colonial (cf. Fernando R. DE LA FLOR, «El Barroco (Ultra) Peninsular», in in
Marta Teixeira ANACLETO, Sara AUGUSTO e Zulmira SANTOS, coords., D. Francisco Manuel de Melo e o Barroco
Peninsular, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Ediciones Universidad de Salamanca, 2010, pp.
17-41) – estudos igualmente marcados por Walter Benjamin –, de Fernando R. de la Flor (Universidade de
Salamanca).
73
Id., ibid., p. 397.
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Barroco Peninsular, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Ediciones
Universidad de Salamanca, pp. 17-41.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS
E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER
ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO

OSVALDO MANUEL SILVESTRE*

Em dois textos publicados em 1967, Eduardo Lourenço aborda o filme de


Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol (1964), no contexto de uma refle-
xão que parte da dimensão cinematográfica para visar o cultural e o mitológico.
Na sua leitura, o filme de Glauber, e boa parte dos filmes do Cinema Novo, não
foram concebidos como “diversão ou mercadoria, mesmo aceitável, mas como
1
atos através dos quais jogam a sua definição e o destino da realidade tratada” .
Ao longo desses ensaios Lourenço reforça os vínculos entre o cinema de Glauber
Rocha e a revisão crítica da mitologia brasileira, fazendo do cineasta algo próxi-
mo de um brasilianista, o que definiria o melhor do Cinema Novo e o colocaria
na linhagem do modernismo de 22.

ENCONTROS E ATRASOS
Eduardo Lourenço referiu em entrevista, com o cuidado colocado na recupe-
ração dos encontros decisivos, aquele momento em que o jovem Glauber Rocha,
seu aluno eventual de fenomenologia na Universidade da Bahia, um dia “entrou
na sala balançando um grosso livro e disse ‘Professor, para conhecer o Brasil, o
senhor precisa ler este livro!’ E mostrou a capa de Grande Sertão: Veredas” (TB:
624). Passava-se isto em 1958, Glauber andava pelos 19 anos, Lourenço pelos
35, e a relação que se estabeleceria entre ambos viria a justificar a presença
do casal Lourenço no casamento de Glauber com Helena Ignez, futura musa do
*
Osvaldo Manuel Silvestre é professor de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Cinema na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. É coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros e dirigiu no biénio de
2021-23 o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. É responsável científico pelo espólio de Carlos
de Oliveira no Museu do Neo-Realismo e prefaciou a reedição do romance Alcateia, em 2021. O seu último
livro publicado foi o volume, que coorganizou com Rita Patrício, Conferências do Cinquentenário da Teoria
da Literatura de Vítor Aguiar e Silva, Braga, UMinho Editora, 2020. Organizou, com Pedro Serra, o dossiê
temático do número 209 (2022) da Colóquio/Letras, com o título “A Voz na Literatura”.
1
Usarei a reunião dos textos de Eduardo Lourenço sobre o Brasil na edição das Obras pela Fundação Calouste
Gulbenkian, Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem, Obras Completas, vol. IV, Ed. de Maria de Lourdes Soares,
2018. O texto em causa é “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, p. 121. Em futuras referências,
será usada a abreviatura TB seguida do número de página.
320 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Cinema Novo e do Cinema Marginal, no ano seguinte. Um elemento, identificável


nesta cena, aproxima fortemente os dois homens: o livro e a relação voraz com
a leitura. Se não existem descrições sugestivas dessa relação em Lourenço, a
sua própria obra de leitor crítico, desde a juventude, é um eloquente atestado da
desnecessidade de tais descrições. Quanto a Glauber, a ostentação do grosso
tomo de Guimarães Rosa funciona como metonímia de uma relação insaciável
com a leitura, que é também, em grande medida, uma relação com a literatura,
2
um tema inesgotável no cineasta .
É, pois, reconhecível em Glauber uma sólida formação literária, que o gesto
de propor Grande Sertão: Veredas à consideração de Eduardo Lourenço emble-
matiza. Lourenço notará que o cinema chega tarde à revolução desencadeada
pelo modernismo de 1922, pois
A visão crítica da realidade brasileira, calorosa e ao mesmo tempo revolucionária,
já encontrara outros meios de expressão e através deles pudera mesmo aceder a
um nível de qualidade reconhecido fora das fronteiras do Brasil. Referimo-nos, claro
está, à música representada por um Villa-Lobos, ao teatro e, sobretudo, ao romance,
em particular ao de tema sertanejo, de Minas ou do Nordeste (TB: 118).

Ora, é justamente este papel secundário que o cinema novo visa pôr em cau-
sa, completando com esse gesto o programa multidisciplinar do Modernismo
de 1922, como se percebe em texto de Glauber de 1975, com o título “Palma de
Ouro 75”, incluído em Revolução do Cinema Novo:
Kynema Novo é a síntese da literatura, do teatro, da música, da pintura e da política
brasileira a partir das rupturas de 1922 que impuseram aos intelectuais e artistas o
3
repensar teórico e prática revolucionária.

A questão do contributo que só o cinema pode dar, regressa num texto de


1968, em que a propósito do tratamento do misticismo, se afirma que
Neste ponto, o cinema novo deu contribuição afetiva para o conhecimento do Brasil,
pois discutiu ao vivo da imagem e do som o que antes era apenas estatística, e, na
maior parte, má literatura porque, nesta literatura, o misticismo é inocentemente in-
4
corporado como valor cultural.

2
Sylvie Pierre descreve a relação de Glauber Rocha com a leitura nestes termos: “Ele não pára de ler. Durante
toda sua vida foi um leitor voraz. E seu modo de ler é sempre orientado para uma rápida assimilação dos
elementos úteis a seu processo criador pessoal, um pouco como Godard. Mas a bibliofagia glauberiana,
diferente da de Jean-Luc Godard, praticamente não gera citações em seus filmes. Glauber Rocha, é bas-
tante perceptível no documento de Bauchau, lê sintética e globalmente, no sentido literal do termo: lê seu
lugar de brasileiro no mundo da cultura. Na primavera de 1981, muito preocupado com a literatura clássica
portuguesa, fica evidente que se dirige ao útero ou feto da civilização, à raiz lusitana de seu mundo”. Sylvie
Pierre, Glauber Rocha. Campinas, Papirus Editora, 1996, p. 94.
3
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo. São Paulo, CosacNaify, 2004, p. 285.
4
Glauber Rocha, Op. cit., p. 147.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
321
Osvaldo Manuel Silvestre

O Modernismo, afirma Glauber, estava incompleto sem a “comunicação ci-


5
nematográfica” . E o cinema novo, argumenta ainda Glauber citando o famoso
ensaio de Paulo Emílio Salles Gomes, “Uma situação colonial”, de 1960, “inseriu
‘a questão cinematográfica na questão nacional’ recuperando um atraso históri-
6
co de Sessenta Anos” . Este atraso do cinema no tratamento da especificidade
brasileira não seria, contudo, irreversível. Pelo contrário, argumentará Glauber
uma e outra vez, nenhuma arte tem o potencial do cinema para alcançar uma
mimese dotada “da imagem e do som”, como vimos antes, ou, nas palavras de
Ismail Xavier no Prefácio a Revolução do Cinema Novo, de uma “apreensão sen-
7
sível do mundo” . No texto que dedicou a Garrincha, alegria do povo (1962), de
Joaquim Pedro de Andrade, incluído em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro,
Glauber dará à questão a coloração de uma fatalidade hegeliana:
Como observou Leon Hirzman em um dos muitos debates do cinema novo, o filme
brasileiro marcha para ser o reflexo da alma nacional: mais do que o filme em si, inte-
ressa é saber que o país em progresso terá no cinema sua expressão por excelência.
Na medida em que este cinema for a verdade, o país terá em seu próprio conheci-
8
mento sua própria expressão.

Tudo isto, obviamente, é o programa do Modernismo de 22, exponenciado


pelo potencial técnico-mimético de uma arte que permitiria dar a ver e ouvir o
corpo e a voz do povo brasileiro. Numa passagem do texto “Cinema Verdade
65”, de Revolução do Cinema Novo, a propósito do filme Fala, Brasília, de Nel-
son Pereira dos Santos, Glauber afirma a este respeito o seguinte:
O fato do cinema-verdade gravar a voz do povo é fundamental por ser uma contri-
buição para o desenvolvimento e o conhecimento da língua, e para o conhecimento
da linguagem que é a expressão exata de todo um sistema psicológico. Esse tipo de
linguagem, que achamos engraçado no cinema-verdade e que às vezes nos seduz,
é no fundo uma linguagem falada, um dos aspectos do cinema-verdade, contribuirá
9
inclusive para a própria literatura brasileira.

A passagem ecoa toda uma série de posições do modernismo de 22 sobre a


linguagem errada e perfeita do povo e coloca o cinema-verdade ao serviço de
um projeto de indagação a um tempo etnolinguístico e psicológico, um projeto
iniciado na literatura, e em particular na poesia, mas que a técnica que permite
o cinema-verdade potenciaria de forma insuspeita. Note-se que técnica não é
forma e, menos ainda, formalismo, como o cineasta pouco antes esclarecera,
afirmando que o método do cinema em som direto “tem que ser realizado com
5
Glauber Rocha, Op. cit., p. 308.
6
Glauber Rocha, Op. cit., p. 360.
7
Ismail Xavier, “Prefácio” a Revolução do Cinema Novo, p. 25.
8
Glauber Rocha, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo, CosacNaify, 2003, p. 151.
9
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 77.
322 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

10
uma técnica perfeita” , mas que um tal método não equivale a “aprimoramen-
11
to formal” , já que o típico (a eleição de uma personagem com potencial para
funcionar como típica entre quinhentos mil malandros) é mais forte do que o
detalhe pitoresco. O cinema enquanto cinema-verdade permitiria fechar o círcu-
lo iniciado pelo projeto modernista de auscultação da verdade da fala do povo,
conferindo-lhe a mais-valia da técnica do som direto – o que permitiria realizar
na prática esse desejo modernista de auscultação do corpo político brasileiro
ao vivo, o qual, pela sua pura e simples manifestação, destroçaria gramáticas e
linguagens e, na sua peculiar formulação, contribuiria “inclusive para a própria
literatura brasileira”. Nascida na literatura, o projeto de auscultar a fala errada
e verdadeira do povo conheceria no cinema-verdade o seu momento decisivo,
fornecendo à literatura um aluvião de materiais a que ela não teria capacidade
de acesso, por razões especificamente técnico-miméticas. Ora, se “A linguagem
12
é sempre um teatro colonial” , como afirma, em texto sobre Glauber Rocha, o
teórico e crítico argentino David Oubiña, o cinema-verdade seria a própria repre-
sentação expandida desse teatro.

UM SERTÃO, TRÊS SERTÕES


Até aqui, o enquadramento da questão, que no primeiro Eduardo Lourenço
– o que escreve em 1945 um texto ainda demasiado refém da mitologia moder-
nista brasileira sobre “Mário de Andrade: o homem e o sistema”, texto esse no
qual é possível contudo encontrar uma reflexão sistémica sobre o Modernismo
sem par no pensamento estético e cultural português de então; mas também
o que em 1958-1959 tem a revelação de todo o espectro do processo de des-
coberta modernista do Brasil – tende a proceder por encaixe do literário e do
cinematográfico no projeto cultural herdado de 1922. Será preciso que passe
muito tempo sobre esse período inicial para que em textos como “Da literatura
brasileira como rasura do trágico”, de 1984, e sobretudo “Guimarães Rosa ou o
13
terceiro sertão” , de 1997, um notório afastamento das coordenadas da revo-
lução cultural proposta pela Semana de Arte Moderna tenha lugar. Recordo a
primeira frase deste último ensaio:
Como não sou brasileiro, não me sinto na obrigação de comungar inteiramente num
dos mitos mais vivos da mitologia cultural do país de Guimarães Rosa. Refiro-me,

10
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, id.
11
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, id.
12
David Oubiña, “Prometeo Furioso. Canibalismo y demolición en Glauber Rocha”, in Filmologia. Ensayos con
el cine. Buenos Aires, Manantial, 2015, p. 61.
13
Eduardo Lourenço, “Guimarães Rosa ou o terceiro sertão”, in Tempo Brasileiro, pp. 155-163.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
323
Osvaldo Manuel Silvestre

claro está, ao da famosa ‘Semana de Arte Moderna’ de São Paulo, momento de auto-
consciência paroxística da cultura brasileira (TB: 155).

Não se trata apenas de proceder à desmistificação e desmitificação perio-


dicamente solicitadas pela praxis e pela hermenêutica cultural. De facto, aquilo
que Lourenço fará nesse ensaio é propor um outro fundamento para a reflexão
sobre a identidade brasileira, que vai buscar, num lance de grande alcance (e
de grande interesse para uma leitura de Glauber Rocha) a Euclides da Cunha.
Recordo a sua tese:
A contribuição de Euclides para a imagem do Brasil, a sua intuição de uma espaciali-
dade singular vivida por dentro e não mero objeto de pasmo ou desdém alheio, a sua
intuição ainda mais decisiva de uma temporalidade de um homem cujo ser (como o
seu estar e o seu dizer) se vê moldado por esse relógio sem ponteiros do sertão, é
mais importante do que a provocatória revolução modernista, toda ela inscrita num
tempo que nem sequer é apenas brasileiro. (TB: 158)

O operador crítico de que Lourenço aqui lança mão não é tanto, ou apenas,
o sertão, mas antes a longa duração que o define (o “relógio sem ponteiros do
sertão”), ao pé da qual todas as revoluções, provocatórias ou não, se tornam
irrelevantes – tanto mais que, ao contrário da temporalidade do sertão, a do
modernismo nem sequer seria apenas brasileira. Comentário bastante proble-
mático, diga-se, já que pressupõe uma contraposição (regime temporal brasileiro
vs regime temporal apenas parcialmente brasileiro) que reproduz uma discutível
ontologia da autenticidade cultural e permitindo abrir um debate sobre se algu-
ma cultura vive numa temporalidade só sua. A que se soma uma desvaloriza-
ção do modernismo enquanto provocação, algo de reconhecível na analítica de
Lourenço, que tende sempre a valorizar modalidades de uma fenomenologia da
redução ao essencial, o que não seria o caso sobretudo daquelas variantes do
moderno mais dadas a vanguardismos, por definição, para Lourenço, histriónicas
e superficiais, apesar das aparências em contrário (este modelo é igualmente
reconhecível na sua análise do caso português).
Em todo o caso, na proposta de Lourenço a “visão do Sertão Brasil proposta
por Euclides cumpre, pois, as funções de um mito” (TB: id.). Que depois remata,
em modo revisionista: “A sombra de Euclides paira sobre toda a literatura que
por seu formal ou indireto exemplo vai descobrir o Brasil no espelho do Brasil”
(TB: id.). Ora, este quadro é substancialmente diverso do dos textos de 1967 so-
bre Glauber Rocha e o seu então Magnum Opus, Deus e o diabo na terra do sol.
Nos textos de 1967, aquilo que no ensaio de 1997 será nomeado e discriminado
como os três sertões (o de Euclides, o do romance de 30, o de Guimarães Rosa),
surge anexado num bloco descritivo relativamente homogéneo, que funciona
como o pano de fundo e a inspiração do épico de Glauber Rocha. Vejamos uma
324 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

frase esclarecedora do ensaio “Deus e o diabo na terra do sol. Um filme brasileiro


14
excecional”, publicado no Comércio do Porto a 23 de maio de 1967 :
Desta ‘matéria do Nordeste’ (como se diz ‘matéria da Bretanha’) inventada pela His-
tória e por Euclides da Cunha, retomada por Lins do Rego, Graciliano, Jorge Amado e
Guimarães Rosa sob ângulos diversos, mas complementares, extraiu Glauber Rocha
uma obra de bárbaro fulgor, desmedida de ambições e geniais perspetivas (TB: 114).

Não é possível descortinar aqui uma diferença crítica entre os três sertões,
tanto mais que são apresentados como tendo ângulos diversos, mas comple-
mentares. A situação não muda substancialmente no texto seguinte, editado na
revista O Tempo e o Modo no mesmo ano de 1967 com o título “O Cinema Novo
15
e a Mitologia Cultural Brasileira” . É certo que se refere a “intuição de génio” de
Euclides, “elevando uma obscura e quase grotesca revolta mística afogada em
sangue a uma guerra de Tróia brasileira” (TB: 122), assim como se evidencia a
oposição do filme de Glauber, bem como dos dos seus camaradas, “ao sentido
e à inflexão que a mesma cultura brasileira assume atualmente em obras tão
representativas como as de Guimarães Rosa e de Jorge Amado” (TB: 127), uma
16
inflexão num sentido arcaizante, de que o cinema novo se distancia . Mas no
essencial a homogeneização dos três sertões é de regra, como se pode perceber
na frase em que se refere que o tema do filme de Glauber é “já mediado, como
dissemos, pela visão de Lins do Rego, de Euclides, de Guimarães Rosa” (id.: 123).
No texto de 1997, o recorte dos três sertões ganha um alcance quase onto-
lógico, já que o primeiro sertão, o de Euclides, é descrito como o momento de
produção do mito – não apenas o da imagem banalizada de “um Brasil em luta
consigo mesmo enquanto cultura de violência social incompreensível” (TB: 158-
9), mas sobretudo o da produção do Brasil espelho do Brasil; o segundo, do ro-
mance de 30, o sertão “banalmente épico, de uma violência inocente” (TB: 159),

14
Eduardo Lourenço, “Deus e o diabo na terra do sol. Um filme brasileiro excecional”, in Tempo Brasileiro,
pp. 111-115.
15
Eduardo Lourenço, “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, in Tempo Brasileiro, pp. 117-128.
16
A inflexão é detalhada em seguida, fazendo acompanhar o arcaísmo do seu folclore: “O caráter arcaizante
da grande obra de Guimarães Rosa é evidente e não menor é o pendor do último Jorge Amado (a partir de
Gabriela sobretudo) para nos mostrar o folclore baiano como visão do mundo redentora e resposta original
e positiva às contradições brasileiras. Ora, de certo modo, é esse arcaísmo e esse folclore que Glauber
Rocha e seus camaradas distanciam (embora enraizados nele) reenviando para o passado a epopeia dos
jagunços e dos taumaturgos primitivos e apelando para um povo liberto e redimido dos seus fantasmas pela
sua lucidez e esforço” (id.: 127). O primado negativo do folclore no imaginário é um a priori da leitura que
Lourenço produz do Brasil e de toda a América Latina, bem patente em formulações como “exterioridade
folclorizante” (p. 114), “fascinação meramente folclorizante” (115), o “elemento mais visivelmente folclórico”
(p. 119), tudo traços de que o Cinema Novo se emanciparia, como se torna dialeticamente visível na penúltima
frase do texto “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”: “Esta obra violenta e lúcida na sua aparente
desordem que um jovem fez ‘explodir’ sobre o palco sereno e seleto do cinema mundial exorciza ao mesmo
tempo uma consciência cultural folclorizante, como é a latino-americana, e universaliza uma mitologia da
violência com quinhentos anos de tradição ao reenviar para a ilusão os falsos deuses e os eficazes demónios
que a teciam” (128).
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
325
Osvaldo Manuel Silvestre

é o “retrato do Brasil saindo à força de braços da sua Idade Média e apostando já


num mundo em fase de globalização” (TB: id.); o terceiro, o de Guimarães Rosa,
lugar da “universalidade de um combate , indissociavelmente terrestre e celeste,
que tem como centro cada ser humano e como teatro o Sertão, assimilado ao
mundo inteiro” (TB: 160). Tentando uma difícil tradução categorial, já que as ca-
tegorias transbordam parcialmente umas nas outras, diríamos que na leitura de
17
Lourenço o sertão de Euclides é de ordem espacial , identificando um território
que se expandirá até se confundir com o Brasil profundo, o dos romancistas de
30 de ordem histórica e o de Rosa de ordem metafísica. O sertão desdobra-se,
pois, numa “pluralidade de sertões” (TB: 158), cuja discriminação permitiria ler a
literatura brasileira do século do modernismo, num registo paralelo ao das cate-
gorias propostas por esse modernismo e de alcance tão vasto (cultural, social,
económico, etc.), ainda que diverso, como o pretendido por ele.
Creio, ou espero, não me ter perdido nesta deriva sertaneja, quer porque o
18
cinema de Glauber não é pensável sem esse chão , quer porque essa deriva
nos permite reconduzir a questão à sua origem: aquele momento de verdadeira
“cena primitiva” em que o jovem Glauber exibe para o professor Lourenço o livro
que lhe permitirá conhecer o Brasil. Não parece ser excessivo admitir que dos
três sertões discriminados no ensaio de 1997, o então jovem Lourenço conhe-
ceria sobretudo, ou mesmo apenas, o segundo, produzido por essa plêiade de
romancistas sociais que tanto impacto tiveram entre os jovens escritores neor-
realistas da sua geração portuguesa, coimbrã, mas não apenas. É compreensível
que o então muito recente romance de Guimarães Rosa não fosse ainda do seu
conhecimento, e tudo indica que o mesmo sucederia com Euclides, autor prova-
velmente recuperado na sequência da leitura de Grande Sertão: Veredas, para
19
justamente produzir a sequência que desemboca no grande romance de Rosa .
É manifesto que, quando escreve os dois ensaios de 1967 sobre Deus e o
diabo na terra do sol, ou seja, nove anos após o momento em que Glauber lhe
apresenta Grande Sertão: Veredas, Lourenço conhece já a sequência completa,
mas tudo o resto é pouco claro. Aquilo que podemos supor é que (i) Lourenço

17
No fundo, e para retomar as palavras de Lourenço, Euclides da Cunha realiza plenamente o projeto de
todo um século de produção da cartografia identitária do Brasil já independente: o de sonhar “a história, a
literatura, a sociologia, a própria geografia de um espaço que só pode ser descrito como um dos atributos
de Deus, o da imensidade” (TB, p. 156).
18
Num texto recente, Nuno Ramos desdobra este chão, que descreve como as “conquistas culturais” das quais
Glauber parte, em três componentes: “a) o chamado romance regionalista, que atravessa nossa literatura desde
o início dos anos 30, b) a literatura de cordel, com seu correlato cancioneiro e repentista, e c) a tragédia de
Canudos, popularizada no meio culto por Euclides e ainda ecoando na tradição oral popular” (Nuno Ramos,
“Trança (ainda Moebius). Glauber Rocha, Caetano Veloso e Tunga”, in Verifique se o mesmo. São Paulo,
Todavia, 2019, pp. 61-62). Não coincidindo com os três sertões de Lourenço, a sobreposição ou cruzamento
das duas análises é manifesta, com a particularidade de dar a ver, na eleição do cordel, o relacionamento
apenas pontual da analítica de Lourenço com esse nível mais popular ou, como tende a dizer, folclórico.
19
Recordo que o próprio Lourenço admite, em texto de 2002 publicado na Folha de São Paulo, com o título
“Sobre Euclides”, que a sua leitura do grande livro de Euclides da Cunha foi tardia.
326 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

entra no mundo de Guimarães Rosa em 1958 pela mão de Glauber Rocha; (ii)
entrando em Rosa, Lourenço recua em seguida até Euclides da Cunha; (iii) é o
filme Deus e o diabo na terra do sol que lhe transmite a perceção do alcance
crítico do “sertão” como instrumento para pensar, não apenas a literatura, mas
a mitologia cultural brasileira inteira, processo a que se entregará em regime
intermitente até ao ensaio de 1997. O que significa que do panorama dos três
sertões do ensaio de 1997 está ausente aquele que foi realmente instrumental
para Lourenço proceder a essa, tardia mas decisiva, discriminação histórico-lite-
rária e cultural: o sertão de Glauber Rocha, no qual o recuo a Euclides ganha o
poder de uma incisão em profundidade no corpo histórico-social, mas também
imaginário, do Brasil, por meio do refrão que atravessa o filme e o confronta com
a irrealização da dialética socio-histórica brasileira: “O sertão vai virá mar, o mar
vai virá sertão”.
Seja-me permitido aqui um breve excurso. No centenário dos eventos de Ca-
nudos, o fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira deslocou-se ao local do massacre
e aí produziu um portfolio que, acompanhado de um texto de Ivana Bentes com
o título “O sertão de Canudos”, resultaria no livro Canudos. 100 Anos, editado em
1997, um clássico instantâneo da tradição do Photo Book no Brasil. O texto, que
oscila entre a reportagem e o trabalho histórico-etnográfico, tem um premedita-
do ponto alto na secção dedicada ao Monte Santo, local de romaria e milagre,
de acordo com a lenda de Antonio Conselheiro. Nesse ponto, as camadas da
história do sertão, e em particular de Canudos, ganham a sobreposição da ca-
mada peculiar dos trabalhos de rodagem de Glauber, em termos que vale a pena
recordar:
Depois da passagem do frade capuchinho no século XVIII, de Antonio Conselheiro,
no século XIX, e de milhares de fiéis ao longo destes séculos pelo calvário popular,
Dedega invoca outro personagem que iria entrar para a memória da cidade. O ci-
neasta Glauber Rocha que subiu o caminho da Santa Cruz, em 1963, com equipamen-
tos, câmera, centenas de figurantes e atores. Glauber faria ali a obra-prima Deus e o
Diabo na Terra do Sol. O sertão e o monte produziam mais uma transubstanciação,
da religião e da fome à estética.

Fazendo uma figuração no filme, Dedega lembra da inquietação do povo no alto do


monte diante do personagem de Antonio Conselheiro redivivo como o Santo Sebas-
tião do filme de Glauber. A soberba visão do Monte Santo, o caminho duro e esta-
fante da Santa Cruz, a beleza do vale visto lá de cima presidem o transe religioso, o
massacre dos beatos e o masoquismo penitente do povo mostrado por Glauber no
20
filme.

20
Ivana Bentes, “O sertão de Canudos”, in Evandro Teixeira, Canudos 100 Anos. Rio de Janeiro, Editora Textual,
1997, pp. 115-6.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
327
Osvaldo Manuel Silvestre

Nas palavras da informante Dedega, a rodagem do filme de Glauber acres-


centa-se à lenda porque brota dela e funde-se nela (o que poderia ser lido como
um triunfo póstumo do sertão sobre o intelectual brechtiano Glauber), o que nos
permite moderar o entusiasmo crítico da conclusão de Lourenço no ensaio “O Ci-
nema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, quando atribui ao filme o poder de
produzir uma “catarse do imaginário” produzido pelo sertão, com o seu cortejo
de violência e alienação. Não parece ser, de facto, isso que lemos nas palavras
de Dedega... Ou, pelo menos, para preservarmos a distância crítica em relação
à informante, digamos que o sertão, mais a sua mitologia, parecem sobreviver
a uma ou outra catarse do seu imaginário, com todas as consequências de tais
processos de purificação sobre a integridade desse imaginário.
Regressemos então ao ensaio de Lourenço sobre os três sertões. A ausência
do sertão de Glauber é tão mais notória quanto, no ensaio editado em O Tempo
e o Modo em 1967, Lourenço dirá que
O interesse da obra de Glauber Rocha não é apenas cinematográfico. O seu filme é
um acontecimento cultural da ordem de Os Sertões e dos romances do Nordeste,
uma captação invulgar da essência mítica e real do Brasil. Nenhum futuro ensaio
de compreensão da realidade mais original do Brasil poderá esquecer o horizonte
paroxístico, épico e lírico ao mesmo tempo, constituído pelas imagens de Deus e o
diabo na terra do sol. (TB: 122)

Como entender este silenciamento do sertão de Glauber na pluralidade de


sertões que Lourenço discrimina em 1997 no sertão enquanto metacategoria
que, na sua leitura, não é acomodável na designação “literatura regionalista”,
que explicitamente descreve (uma descrição que é toda uma reserva) como cate-
21
goria exterior ao mundo literário? Faço notar, já agora, que esta categorização
faz lembrar, ainda que num quadro concetual e historiográfico muito diverso, a
posição famosa de Antonio Candido que, no ensaio “Literatura e Subdesenvol-
vimento”, com primeira publicação em 1970, após rastrear a fenomenologia do
regionalismo nas literaturas latino-americanas, nas quais teria desempenhado
um relevante papel histórico – “O regionalismo foi uma etapa necessária, que
22
fez a literatura, sobretudo o romance e o conto, focalizar a realidade local” –,
decreta o seu “total anacronismo” “nos países de absoluto predomínio da cultu-
23
ra das grandes cidades” , cujos bons exemplos seriam a Argentina e o Uruguai.
Nos outros países, de que dá como exemplos Guimarães Rosa ou Juan Rulfo,
ter-se-ia passado a uma nova fase, a que dá o nome de super-regionalismo, na

21
Recordo as palavras de Lourenço: “Literatura do Nordeste, literatura de Minas, literatura do Sul, não são
categorias do mundo literário” (TB: 159).
22
Antonio Candido, “Literatura e Subdesenvolvimento”, in A Educação pela Noite & outros ensaios. São Paulo,
Editora Ática, 1989, p. 159.
23
Antonio Candido, Op. cit, id.
328 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

24
qual se transfigura “o próprio material daquilo que foi um dia o nativismo” , ou
seja, nos termos eleitos para Guimarães Rosa, obras “solidamente plantada[s] no
25
que poderia chamar de a universalidade da região” .
Ora, em Lourenço o sertão é essa “universalidade da região”, ou seja, uma
metacategoria que abarcaria a “pura fantasmagoria da fome e do desespero ...
de violência assumida, aquém da lei, humana ou divina” (TB: 159), à qual se opo-
ria o sonho “mais tenaz” do Brasil, o “de se pensar, imaginar e querer como uma
cultura da felicidade” (TB: id.). A explicação mais pregnante para essa ausência
do sertão de Glauber seria talvez a de que o ensaio de 1997 mostraria, na sua
discriminação dos três sertões, que Glauber herda uma tematização e um imagi-
nário ao qual não consegue acrescentar algo definível como um quarto sertão,
dada a cristalização dos anteriores. Glauber, digamos, produziria uma síntese
fílmica de um epos longamente trabalhado e herdado na literatura brasileira (o
que significaria que a literatura triunfaria sobre o cinema, na versão do crítico li-
terário Eduardo Lourenço). O que nos permite introduzir um dos temas decisivos
da escrita de Lourenço sobre o sertão e sobre Glauber: a epopeia, mais pura-
mente reconhecível em Euclides, oscilando depois entre “um filão inesgotável
de cenários épicos às avessas” (TB: 160), sobretudo no caso dos romancistas de
30, e o percurso que vai da epopeia à “elegia metafísica” (TB: 161) em Guimarães
Rosa. No primeiro ensaio sobre Deus e o diabo na terra do sol, é enfatizada a
“coerência estrutural de canto épico que nele tem lugar” (TB: 112), que “marcará
uma data na história cinematográfica do Brasil e até na sua história cultural” (TB:
id.). Esta questão é colocada, no segundo ensaio, ao serviço de uma pedagogia
crítica do imaginário brasileiro, quando se afirma, em tom algo irredentista, que
Neste sentido, Deus e o diabo na terra do sol, independentemente do dramatismo
que lhe é próprio enquanto filme, é um momento cultural dramático, pois é nele e
através dele que por fim adquire uma dimensão épica esse mesmo mundo de heróis
e frustes cuja fascinação impede justamente o povo brasileiro de se ver ao natural no
espelho que deve redimi-lo (TB: 127-8).

Notemos o “por fim”, que atribui ao trabalho de Glauber uma posição termi-
nal na dialética da épica do sertão, posição essa em relação à qual o Louren-
26
ço da maturidade parece recuar. Mas notemos também como essa dialética

24
Antonio Candido, Op. cit, p. 162.
25
Antonio Candido, Op. cit, id.
26
Notemos, contudo, que essa posição terminal do filme de Glauber é ainda declarada no mesmo ensaio
mais globalmente, em relação a todo o imaginário do sertão: “Como todas as obras originais – e Deus e o
Diabo na Terra do Sol é uma delas – o filme de Glauber Rocha resume, fecha e supera, definitivamente, a
temática nordestina ao esgotar-lhe a potencialidade mítica. Neste sentido, é obra sem amanhã” (TB: 122).
Esta posição poderia abrir o caminho a uma perspetiva como a de Fabio Akcelrud Durão, que em texto muito
recente sobre Carolina de Jesus, propõe a substituição, em sentido forte, do sertão pela favela no imaginário
literário e cultural brasileiro contemporâneo: “With the progression of urbanization and industrialization in
the country, the sertão lost much of its importance to another space of exclusion, that of the favela. One of
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
329
Osvaldo Manuel Silvestre

pressupõe um momento de desmistificação (o momento aufklarer, digamos, com


ou sem sombras frankfurtianas), esse momento em que António Conselheiro,
Lampião e Maria Bonita perdem o seu poder de fascinação, ou alienação, permi-
tindo que o povo brasileiro se veja, enfim, “no espelho que deve redimi-lo”. Este
momento regressa na conclusão do segundo ensaio, quando a perspetiva de
Lourenço se alarga à história latino-americana, para resgatar no filme de Glauber
uma “catarse do imaginário” que pede, de facto, o amparo de uma filosofia da
redenção:
Esta obra violenta e lúcida na sua aparente desordem que um jovem faz “explodir”
sobre o palco sereno e seleto do cinema mundial exorciza ao mesmo tempo uma
consciência cultural folclorizante, como é a latino-americana, e universaliza uma mi-
tologia da violência com quinhentos anos de tradição ao reenviar para a ilusão os
falsos deuses e os eficazes demónios que a teciam. Essa catarse do imaginário será
suficiente para que uma história menos alienada irrompa às portas escaldantes do
Sertão (TB: 128).

É provável que a história traumática que será de imediato a do Brasil logo


após 1967, data da publicação destes ensaios sobre o grande filme de Glauber
Rocha, tenha lançado algum ceticismo sobre a formulação demasiado otimis-
ta com que Lourenço profetiza um efeito de exorcismo e catarse que qualifica
como “suficiente para que uma história menos alienada irrompa às portas
escaldantes do Sertão” (itálico meu). Mas queria enfatizar que este é o quadro
no qual o debate ideológico em torno do filme de Glauber, mas também em
torno do cinema novo, se processará no Brasil, ainda que para tal seja neces-
sário recuar da redenção prometida por Lourenço no final do seu texto a um
momento mais sóbrio, no começo do primeiro ensaio, quando traça o quadro
no qual a reflexão sobre Deus e o diabo na terra do sol ganha um real alcance
crítico:
Nenhuma outra obra assinala como esta a tomada de consciência coletiva da con-
tradição essencial da realidade brasileira (de que a do Nordeste é só a exasperação
suprema) e embora Deus e o diabo na terra do sol se enraíze nela como no seu
húmus próprio, a ela se subtrai recriando-a em termos de epopeia crítica (TB: 112,
itálico meu).

the very few Brazilian words to have entered the English language in the XXth century, it designates a locus
of settlement for those coming from other regions or who were being relocated from parts of the city they
could no longer inhabit; it is also a place in which the poor are concentrated in the most outraging living
conditions. If in the sertão people and place were closely associated, in the favela the latter determines
the former: if the sertanejo is a being, the favelado is a state. Or not.” “A Spatial Curse: Carolina Maria de
Jesus and the Favela”, in Alfred J. López and Ricardo Quintana-Vallejo (eds.), The Routledge Companion to
Literature and the Global South. London-NY, Routledge, 2023.
330 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

A DIALÉTICA OU ANTÓNIO DAS MORTES


Falemos então de epopeia crítica, ou “ao segundo grau” (TB: 114), uma formu-
lação alternativa no ensaio de Lourenço. Para começar, lembremos como Glau-
ber coloca a questão de “contar uma história” na já referida entrevista de 1967
à Positif:
Há poucos dias, um amigo brasileiro me perguntou quando eu vou tentar resolver
contar uma história num filme. Caio sempre num conflito e tento abrir um discurso
crítico sobre a história. O cinema político é uma discussão sobre estes fatos. E acho
que a montagem está ligada a esta acumulação de vários conflitos, ao mesmo tempo
27
subjetivos e objetivos .

Estas palavras, já agora, podiam ter sido ditas pelo Jean-Luc Godard da épo-
ca, sem mais. Como a distância crítica em relação a Eisenstein, declarada na
mesma entrevista: “Não se pode negar que a sombra de Einsenstein está presen-
te nesse filme, sobretudo na primeira parte. Eu gosto muito de Eisenstein, mas
eu vivo numa realidade que não é uma epopeia no estilo de Alexandre Nevski,
28
nem um drama histórico estilo Ivan, o terrível” . Num livro de referência já citado
a crítica francesa Sylvie Pierre abordou esta questão com grande pertinência:
“Glauber Rocha é um dramaturgo épico cuja obsessão é inscrever a tragédia na
29
história, é fazer o palco do mundo encontrar-se com o palco da representação” .
Tal encontro, como já se percebeu, segue sempre aquele perfil desenhado, entre
outros (incluindo o próprio Glauber), por David Oubiña quando responde à sua
própria pergunta: “Com que se parece um filme de Rocha? Poderia dizer-se: a
30
épica de Eisenstein arrasada pelo vandalismo de Godard” . Num longo texto de
1968 que já aqui referi, “O cinema novo e a aventura da criação”, Glauber Rocha
trata ele mesmo a questão da épica do sertão, recuando à cena primitiva da re-
presentação do Brasil (a “Carta” de Caminha), e colocando a sua indagação sob
o espectro alargado de uma crítica cultural:
O mesmo se passa com o folclore: qualquer trabalho das velhas gerações é esteti-
zante e o exemplo de Euclides da Cunha é exaltado muito mais pelo fragor do estilo
do que pela tragicidade do documento. A épica dos impotentes – eis o ideal da cul-
tura brasileira dominante, e nesta onda entra grande parte da esquerda.

O cinema novo, sabendo que o herói não tem caráter, foi às fontes da “epopeia” e
lá descobriu a corrosão original, mistificada, que começa nos tempos da carta de
31
Caminha.

27
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 124.
28
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 112-3.
29
Sylvie Pierre, Op. cit., p. 94.
30
David Oubiña, Op. cit., p. 60.
31
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 147.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
331
Osvaldo Manuel Silvestre

Para resumir, então: nem a épica de Eisenstein, nem a dos impotentes. E


sim, uma épica habitada por um princípio de corrosão que, na leitura incisiva do
cineasta-crítico, impregna, qual vírus fundador, os discursos representacionais
produzidos no Brasil desde o seu momento inicial – momento que, nesta leitu-
ra, se esvazia de qualquer poder de fundação, num triunfo da corrosão sobre o
substancialismo da origem. Não se trata apenas, então, de produzir uma Revisão
Crítica do Cinema Brasileiro, para me reportar ao livro de Glauber com data de
1963, mas sim de uma revisão crítica dos discursos por meio dos quais se pro-
duziu a representação socio-histórica, mas também a simbólico-imaginária, do
Brasil.
No mesmo ano de 1967 em que Eduardo Lourenço publicou os seus ensaios
sobre Galuber Rocha e o cinema novo, o crítico Jean-Claude Bernardet, francês
naturalizado brasileiro, publicou o livro Brasil em tempo de cinema, com o sub-
título Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. O livro, que acompanha,
de forma crítica, mas aguerrida, o desabrochar do cinema novo, tem em Deus e
o diabo na terra do sol a sua alavanca dialética. Ou melhor, em António das Mor-
tes, a personagem à qual Glauber dedicará toda a longa-metragem seguinte, O
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, filme que no exterior se chamará
apenas António das Mortes. Passo a transcrever a impressionante dedicatória do
livro de Bernardet:
Este livro – quase uma autobiografia – é dedicado a António das Mortes.

O argumento do livro de Bernardet, se o posso tentar resumir, é aproximada-


mente este. Até ao cinema novo não existe uma produção cinematográfica local
que interpele a realidade brasileira (uma frase famosa do autor é esta: “Para o
32
público brasileiro, cinema é cinema estrangeiro” ). Logo, a situação brasileira,
33
no que toca ao cinema, “é um típico exemplo de alienação” , que a invocação
permanente do argumento da insuficiência técnica apenas reforça. Nas palavras
de Bernardet, as falhas técnicas dos filmes brasileiros do cinema novo não são
defeitos, mas antes “uma realidade subdesenvolvida filmada de um modo sub-
34
desenvolvido” , o que faz com que, nos melhores casos, a insuficiência técnica
35
se torne um “poderoso fator dramático” . Na primeira longa-metragem de Glau-
ber, Barravento, apesar do populismo implícito no movimento de “ida ao povo”,
a importância da obra provinha do facto de ter sido o primeiro filme “que captou
aspectos essenciais da atual sociedade brasileira: um filme cuja estrutura trans-
36
põe para o plano da arte uma das estruturas da sociedade em que se insere” .
O filme exprime profundamente a sociedade brasileira, apesar do equívoco da
32
Jean-Claude Bernardet, Brasil em tempo de cinema. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 31.
33
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 34.
34
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 38.
35
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., id.
36
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 79.
332 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

personagem de Firmino, um revolucionário que parece propor uma alteração vo-


luntarista de estruturas sociais, que exigem um outro grau de consciencialização
(os pescadores, dirá o crítico, buscam “soluções religiosas para problemas con-
37
cretos” ). Falta, segundo Bernardet, uma consciência crítica dessas estruturas,
desde logo da parte do realizador, que nos melhores momentos do filme acerta
involuntariamente.
Tudo muda com a personagem de António das Mortes em Deus e o diabo
38
na terra do sol, personagem contraditória que “atinge dimensões trágicas” ,
39
perfeita “ilustração do bastardo sartriano” . António das Mortes é a “contradi-
40
ção enigmática” , é a personagem dotada “de uma dimensão que faltava aos
41
outros: a má consciência” . Por isso mesmo, Glauber Rocha, que teve problemas
na conceção da personagem, dirá que “o filme é uma fábula, só pára para ser
42
realista em Antônio das Mortes” . Bernardet não deixa de assinalar as contradi-
ções da personagem, que parece ainda funcionar como aquele que dá ao povo
(a Manuel) a sua revolução, criando as condições para que este elimine enfim a
sua alienação, o que não conseguira até aí, caindo na ilusão do beato e depois
na do cangaço. Mas com António das Mortes o cinema novo produzira enfim uma
personagem dotada da capacidade de intuir o sentido mais profundo da dialética
socio-histórica brasileira, o que Bernardet resume da seguinte forma autobiográ-
fica (e daí a dedicatória do livro):
Essa má consciência [de Antônio das Mortes] não é outra que a de Glauber Rocha,
que a minha, que a de todos nós, ou melhor, de cada um de nós. E é por isso,
parece-me, que Antônio das Mortes tem tamanho poder de sedução, e por isso
resiste tanto à interpretação. Porque interpretar Antônio é nos analisarmos a nós
43
próprios.

Esta questão levar-nos-ia longe, mas devo terminar. Regresso para isso a um
ponto problemático do segundo ensaio de Lourenço: aquele em que, após dese-
nhar o quadro de um cinema (o dos cinemas novos) produzido por cineastas-críti-
cos, ou seja, o quadro alargado em que “A criação, no cinema como na literatura
(para seu bem ou seu mal), passa agora quase fatalmente pela escolaridade, o
que não era o caso da grande época hollywoodiana” (TB: 120), Lourenço cons-
tata que no caso brasileiro os efeitos perniciosos dessa situação não ocorrem,
apesar de também eles serem “filhos do cinema”. Para propor em seguida, como
explicação, que tal não ocorre “porque neles é por demasia aguda a consciência

37
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 95.
38
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 94.
39
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 96.
40
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., id.
41
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 99.
42
Glauber Rocha, apud Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 98.
43
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 99.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
333
Osvaldo Manuel Silvestre

da aberração hipotética que seria um cinema votado ao demónio do formalismo


num mundo onde milhões dos seus semelhantes subsistem a custo” (TB: id.).
O argumento, que propõe um fundamento infinitamente durativo (quando
ocorrerá um mundo que nos permita, sem má consciência, uma arte que se de-
more sobre a beleza da forma?), é também por isso auto-refutante, já que produz
uma determinação absoluta que não autoriza, em rigor, que pensemos um lugar
não-determinado para a arte (por exemplo, a de Fernando Pessoa, para recorrer
a um exemplo decisivo para Lourenço, bastando pensar a esse respeito na sua
refutação do determinismo de classe com que a crítica neorrealista leu Pessoa).
E suponho que aqui entra em cena, com todo o peso da sua economia política,
a realidade industrial do cinema, conduzindo Lourenço a afirmações não reco-
nhecíveis na sua crítica a outras modalidades de expressão artística. Em todo o
caso, Lourenço abona-se para esta posição no próprio Glauber, que num texto
transcrito pelo ensaísta, defende que para o cinema novo “a necessidade de
44
conhecimento será sempre mais forte que as puras especulações estéticas” .
Para afirmar, em seguida, que “Desmitificar o cinema, libertando as suas formas
de expressão, desmitificar a realidade pela verdade do cinema, tal é o difícil e
45
duplo papel do cinema de hoje” . Isto não é propriamente a defesa do “demónio
do formalismo”, convenhamos, mas não é nem industrialismo nem realismo so-
cialista: é sim um trabalho sobre as formas que, produzindo “epopeias críticas”,
criou uma relação não imediata nem fácil com o público brasileiro, relação que
de certo modo se mantém até hoje. É certo, porém, que o mesmo Glauber vol-
tará ao assunto afirmando que o cinema brasileiro “tenta humildemente ser um
olhar novo pousado sobre uma realidade que o sofrimento marcou”, concluindo
com chave de ouro: “Com efeito, o nosso problema é o de exprimir a autêntica
46
especificidade do Brasil” .
Lourenço, seguindo as pisadas de Glauber – é talvez altura de assumir o
que se foi tornando óbvio: que a cena memorial em que o jovem Glauber exibe
Grande Sertão: Veredas ao professor é uma cena em que o discípulo desloca a
economia da relação entre o lugar do mestre e o do discípulo –, afirmará, pouco
depois, que perante a “íntima comunhão com a matéria abordada”, a “autenti-
cidade crítica” e a “seriedade” demonstrada pelos novos cineastas brasileiros,
“proezas de outro género e de outro alcance chegam a parecer suspeitas” (TB:
121), relançando, pois, o anátema sobre o “demónio do formalismo”. Para con-
cluir, de novo seguindo as pisadas de Glauber:
Sem dúvida, o segredo desta seriedade deve-se à atitude ideológica e à crítica aprofun-
dada a que esses jovens cineastas submeteram o cinema brasileiro anterior, enquanto

44
Glauber Rocha, apud Eduardo Lourenço, “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, in Tempo
Brasileiro, p. 120.
45
Glauber Rocha, apud Eduardo Lourenço, Op. cit., id.
46
Glauber Rocha, apud Eduardo Lourenço, Op. cit., id.
334 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

elemento alienante da visão brasileira do Brasil, tanto como à vontade de se identi-


ficar à mais nua e desesperada realidade que os cerca sem por isso desesperarem
dela (TB: 121).

De Bernardet a Lourenço e deste a Glauber, o traço de união parece ser a


forma como a interiorização da dialética socio-histórica do Brasil pelo cinema
novo (ou na personagem emblema que é António das Mortes), cria um modelo de
leitura para cuja ponderação proponho as palavras de Paulo Emílio Salles Gomes
no Prefácio à 1ª edição de Brasil em Tempo de Cinema, de Bernardet: “Apesar de
não haver no livro julgamento artístico das fitas, estabeleceu-se uma harmoniosa
hierarquia: as fitas mais belas foram as que melhor se prestaram à interpretação
47
social” . A diferença de Lourenço em relação a Bernardet é que no português
não falta o julgamento artístico dos filmes de Glauber ou dos restantes cinenovis-
tas, por exemplo, quando se pronuncia sobre Os Fuzis, de Ruy Guerra. A questão
é que o faz em termos que relançam o quadro em que avalia a (im)pertinência
social e estética do Cinema Novo:
Ruy Guerra mobiliza processos paralelos aos de Glauber Rocha (o discurso off do
falso Profeta, a imagem hiperbólica) mas o resultado não alcança a mesma força, tal-
vez pela subtil desfasagem de intenção crítica e da sua tradução plástica, por vezes
paradoxalmente esteticista (visão lenta e recomeçada de miúros, etc.) (124)

O que surpreende, pois, é que o seu discurso permaneça ainda assim tão
próximo da lógica e da estratégia de Glauber Rocha, que em mais de uma dimen-
são reproduz a lógica e estratégia do modernismo de 1922, na sua fundamental
articulação entre prática artística e interrogação identitária – que noutras oca-
siões, mais tardias, o mesmo Lourenço não deixará de questionar. A culpa deste
deslize, obviamente, é de Glauber Rocha, de quem haveria de ser?

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47
Paulo Emílio Salles Gomes, “Prefácio da 1ª edição”, in Brasil em tempo de cinema, p. 18.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
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PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA: O INTERCÂMBIO A PARTIR DA GEOGRAFIA
337
José Borzacchiello da Silva
eduardo
lourenço:
PREMIO e
centenário
premio
eduardo
lourenço
GALERIA DE PREMIADOS

2004 2006 2007 2008


MARIA HELENA DA ROCHA AGUSTÍN REMESAL MARIA JOÃO PIRES ÁNGEL CAMPOS PÁMPANO
PEREIRA Jornalista Pianista Poeta, tradutor, editor
Catedrática jubilada e professor
da Universidade de Coimbra

2009 2010 2011 2012


FIGUEIREDO DIAS CÉSAR ANTONIO MOLINA MIA COUTO JOSÉ MARÍA
Catedrático jubilado Autor de obras de ensaio, Escritor, jornalista MARTÍN PATINO
da Universidade de Coimbra prosa e poesia e biólogo moçambicano Escritor e Teólogo
Jesuíta espanhol

2013 2014 2015 2016


JERÓNIMO PIZARRO ANTONIO SÁEZ DELGADO AGUSTINA BESSA-LUIS LUIS SEPÚLVEDA
Professor de Literaturas Professor de Filologia Escritora Escritor
Hispânicas e investigador Hispânica na Universidade
da obra de Fernando Pessoa de Évora
2017 2018 2019
FERNANDO PAULOURO BASÍLIO LOSADA CARLOS REIS
Jornalista e Escritor Professor e Escritor Professor e Escritor

2020 2021 2022


ÁNGEL MARCOS DE DIOS FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO VALENTÍN CABERO
Professor e Escritor Professor

2023
LÍDIA JORGE
Escritora
Fotografia de Alfredo Cunha
LÍDIA JORGE
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO 2023

Lídia Jorge, nascida a 18 de junho de 1946 em Boliqueime (Loulé), licenciou-


-se pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Filologia Românica,
no final dos anos 60. Em 1970, parte para Angola e Moçambique, onde exerce
a função de docente no Ensino Secundário e testemunha o ambiente vivido du-
rante a guerra colonial que viria, posteriormente, a ficcionar na obra Costa dos
Murmúrios (1988).
Após o regresso a Lisboa, Lídia Jorge mantém a atividade literária, estrean-
do-se no panorama literário nacional com o romance O Dia dos Prodígios (1980),
uma narrativa de sentido alegórico referente ao enclausuramento português
durante o Estado Novo, que alcançou, desde logo, um enorme sucesso entre o
público e a crítica, sendo-lhe atribuído o Prémio Malheiro Dias, da Academia de
Ciências de Lisboa (1981).
Seguem-se outros dois romances, O Cais das Merendas (1982) e Notícia da
Cidade Silvestre (1984), ambos vencedores do Prémio Literário Município de Lis-
boa. A obra que se segue é a já referida Costa dos Murmúrios, adaptada ao
cinema pela realizadora Margarida Cardoso, (2004) e, até à atualidade, levou
a cabo uma vastíssima lista bibliográfica, maioritariamente romancista em que,
para além dos já referidos exemplares, se destaca ainda a obra O Vale da Paixão
(1998), vencedora do Prémio D. Dinis da Fundação da Casa Mateus (1998), do
Prémio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa (1998), do Prémio Máxima
Literatura (1998) e do Prémio de Ficção do P.E.N. Clube Português (1998).
Em 2000, Lídia Jorge é distinguida com o Prémio Jean Monet de Litera-
tura Europeia, Escritor Europeu do Ano. O romance O Vento Assobiando nas
Gruas (2002) foi também distinguido, com o Grande Prémio da Associação
Portuguesa de Escritores (2002) e o Prémio Correntes d'Escritas (2002). Em
2007, com o romance Combateremos a Sombra, recebeu em França o Prémio
Michel Brisset (2008), atribuído pela Associação dos Psiquiatras Franceses.O
seu romance Estuário (2018) esteve entre os 13 finalistas do Prémio Médicis
(França) em 2019.
Com chancela da Editora Sextante, publicou em 2009, o livro de ensaios Con-
trato Sentimental, a sua única obra ensaísta que se trata, essencialmente, de
uma reflexão sobre o futuro do país.
Para além do Romance, Lídia Jorge dedicou também parte da sua atividade
literária ao Conto, publicando três antologias de contos da sua autoria (Marido
e outros Contos, 1997, O Belo Adormecido, 2003, e Praça de Londres, 2008) e
ainda duas publicações separadas (A Instrumentalina, 1992, e O Conto do Nada-
dor, 1992).
É nesta altura que passa também a desempenhar funções na Alta Autoridade
para a Comunicação Social (de 1990 a 1994), sendo ainda professora convidada
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Integrou o Conselho Geral
da Universidade do Algarve que, em 2010, lhe atribuiu o doutoramento Honoris
Causa. Em 2020, o número 205 da Revista COLÓQUIO LETRAS foi-lhe dedicado.
Em 2021, a número 136 da Revista Espanhola TURIA também lhe dedicou o seu
dossier principal. Em setembro desse ano, a Universidade de Genebra, na Suíça,
inaugurou a Cátedra Lídia Jorge. E em abril de 2022, na Universidade de Massa-
chussets UMass Amherst, foi inaugurada uma Cátedra Lídia Jorge.
Lídia Jorge escreveu ainda textos de teatro, contos infantis e um livro de
crónicas, bem como um livro de poesia em 2019.
Para além dos já mencionados prémios literários, foi ainda distinguida com o
Albatroz, Prémio Internacional de Literatura da Fundação Günter Grass (2006),
atribuído pelo conjunto da sua obra, com o Grande Prémio da Sociedade Portu-
guesa de Autores, Millenium BCP (2007), com o Prémio Speciale Giuseppe Acer-
bi, Scrittura Femmenile (2007), o Prémio da Latinidade, João Neves da Fontoura,
União Latina (2011), o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014), o Prémio
Vergílio Ferreira (2015), Grande Prémio de Literatura dst (2019), foi Finalista do
Prémio Médicis étranger (2019). Em 2020, a Feira do Livro de Guadalajara distin-
guiu-a com o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas, e, recentemente, a
Associação Portuguesa de Escritores e o Município de Braga deram-lhe o Prémio
Vida Literária Vítor Aguiar e Silva (2023). O romance “Misericórdia” foi premia-
do com o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues 2023 e Prémio PEN Clube
2023 na categoria de Narrativa.
Em 2013, Lídia Jorge foi considerada, pela revista francesa Le Magazine Lit-
téraire, uma das «10 grandes vozes da literatura europeia».
Em Portugal, o Presidente da República, Jorge Sampaio, a 9 de março de
2005, condecorou-a com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. O Presi-
dente da República Francesa, Jacques Chirac, a 13 de abril de 2005, condecorou-
-a como Dama da Ordem das Artes e das Letras de França, sendo posteriormente
elevada ao grau de Oficial. É presentemente membro do Conselho de Estado.
premio
eduardo
lourenço
2022

Discursos proferidos na Sessão de Entrega do Prémio


Eduardo Lourenço 2022 (CEI - Guarda, 03/03/2023)
SESSÃO DE ENTREGA DO PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO 2022

Teve lugar no dia 3 de março, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, a


sessão de entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2022 ao geógrafo e professor
catedrático Valentín Cabero Diéguez.
A cerimónia contou com intervenções dos representantes das instituições
que constituem o CEI: Sérgio Costa, Presidente da Câmara Municipal da Guarda,
Ricardo Rivero, Reitor da Universidade de Salamanca, Delfim Leão, Vice-Reitor
da Universidade de Coimbra e Manuel Salgado, Vice-Presidente do Instituto Po-
litécnico da Guarda. Interveio na sessão, em representação do Ministro da Cultu-
ra, Suzana Menezes, Diretora da Direção Regional da Cultura do Centro. O elogio
ao premiado esteve a cargo de Fernando Rubio, Alcalde do Ayuntamiento de
Juzbado, em nome dos Ayuntamientos de Juzbado, Monleras e Morille.
O Júri reconheceu os méritos académicos e científicos de Valentín Cabero
Diéguez em particular o seu compromisso cívico com os territórios mais frágeis, a
sua contribuição para a cooperação ibérica, bem como a sua dedicação aos luga-
res, pessoas, paisagens e aos valores patrimoniais da fronteira luso-espanhola.
SÉRGIO COSTA
PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DA GUARDA

A ocasião que nos junta aqui hoje, a entrega do Prémio Eduardo Lourenço ao
Professor Valentín Cabero Diéguez, espelha a verdadeira cooperação e a genuí-
na amizade ibérica.
E é a melhor homenagem que podemos fazer ao Fundador e Patrono do Centro
de Estudos Ibéricos – sonho de Eduardo Lourenço, materializado por pessoas que,
ao longo de mais de duas décadas, entregaram o seu saber a este grande projeto.
Seja bem-vindo, estimado Professor Valentín, a esta casa que é sua.
No ano em que assinalamos o Centenário do Nascimento de Eduardo Lou-
renço, entregamos o Prémio com o nome do nosso ensaísta maior a um iberista
convicto como o Professor Valentín Cabero.

Não poderíamos escolher melhor forma de iniciar as comemorações do Cen-


tenário do Nascimento do Nosso Eduardo Lourenço.
Além de a nossa Biblioteca possuir o seu nome, imortalizado num dos mais
emblemáticos equipamentos culturais da nossa cidade e concelho, a Guarda tem
de continuar a promover o seu pensamento e a sua obra.
Com Eduardo Lourenço a Guarda ultrapassa a sua geografia abraçando a
Península Ibérica e a sua cultura, que se tornou global com a expansão “por
mares nunca dantes navegados” de Portugal e Espanha.
Este agradecimento Guardense torna-se parco perante este Homem sábio,
cuja humildade desarmava qualquer pessoa que com ele privava e ouvia as suas
palavras e ideário.
Eduardo Lourenço é Guardense por adoção e afeto, daqueles que bem sa-
bem e defendem que esta quase milenar cidade está “mais vocacionada do que
nenhuma outra, para ser o lugar de diálogo com os que foram nossos adversá-
rios durante séculos”.
Foi sob este pretexto que Eduardo Lourenço, no Elogio à Guarda proferido a
27 de novembro de 1999, por ocasião do Oitavo Centenário, nos convocou, nos
desafiou, à criação de um Instituto para o Estudo da Civilização Ibérica.
350 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

O desafio foi bem acolhido pelas instituições que corporizam hoje o Centro
de Estudos Ibéricos: a Câmara Municipal da Guarda, a Universidade de Coim-
bra, a Universidade de Salamanca e o Instituto Politécnico da Guarda, a cujos
representantes aqui presentes reitero o agradecimento pelo compromisso par-
tilhado ao longo dos últimos 20 anos – que, estou certo, durará muitas mais
décadas.
Apesar de já não estar entre nós, nunca deixará de ser recordado pelo seu
enorme legado intelectual e, principalmente, porque sempre defendeu que Por-
tugal não era um país isolado e marginalizado da Europa, colocando-se na linha
da frente da defesa da cultura portuguesa e a sua importância no contexto
europeu.
Contribuiu deste modo para o fim do estereótipo do “orgulhosamente
sós” que atormentou Portugal durante alguns anos, recordando-nos o valor
e a influência da cultura portuguesa e espanhola no cenário europeu e mun-
dial.
Deixou-nos com a ideia da afirmação da Civilização Ibérica e a sua importân-
cia europeia e global.
A nossa história entrelaçada de presença muçulmana, a nossa tradição da
filosofia medieval e que tanto, mas tanto em comum, o demonstram.
Mas porque os projetos e as instituições têm rosto, apraz-me prestar público
agradecimento ao nosso querido Professor Valentín Cabero por ter acreditado
na ideia do Centro de Estudos Ibéricos, abraçado o desafio e tudo ter feito, junto
da sua secular Universidade, para que dali se olhasse para esta histórica cidade
de fronteira e para o potencial que o projeto poderia ter.
De facto, a Guarda não poderia ter encontrado melhor Embaixador! Se o Cen-
tro de Estudos Ibéricos é hoje uma realidade reconhecida nacional e internacio-
nalmente, muito o deve ao trabalho de Valentín Cabero. Em verdadeiro espírito
de equipa e congregação de vontades com todos os parceiros!
O próprio Eduardo Lourenço viria a confessar que, talvez pela primeira vez,
um pensamento, uma ideia sua, se tornava realidade. Lembrava, em 2010, na
comemoração do 10º aniversário do CEI, que “a sugestão de criar, numa antiga
cidade de fronteira, de velhos pergaminhos, um Centro de Estudos Ibéricos, caiu,
em todos os sentidos, na boa terra e nas mãos de boa gente”. E disse então que
o Centro não podia existir senão apoiado nos mestres, estudiosos e estudantes
das duas Universidades mais antigas da Península: o Professor Valentín Cabero
foi um desses mestres.
Num percurso de mais de duas décadas, Eduardo Lourenço manteve com
o CEI uma ligação de grande proximidade e envolvimento afetivo, a que sim-
bolicamente se referia como “uma simples sugestão que se converteu em vida
partilhada”.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
351
2022

A atenção dispensada ao trabalho quotidiano, a presença em iniciativas


de grande ou pequena dimensão ou a disponibilidade para mediar contactos
conjugaram-se numa particular singularidade: a estratégia do CEI é uma resso-
nância alargada do pensamento do grande ensaísta.
A aposta na cooperação como forma de superar fronteiras, a procura de um
diálogo entre culturas ancestralmente separadas, prosseguindo os valores hu-
manistas e a dimensão universal, lapidarmente enunciados por Eduardo Louren-
ço, são, pois, o cerne da identidade do Centro de Estudos Ibéricos.
Desde a sua criação, o CEI desenvolveu progressivamente uma estratégia
clara: aliar a investigação à ação e dinamizar a cooperação territorial, afirmando-
-se como plataforma de diálogo, encontro de culturas e centro de transferência
de conhecimentos e investigação.
Contribui para superar barreiras e estimular a cooperação entre diferentes
territórios de aquém e além-fronteiras.
O CEI é, pois, um importante projeto de valorização cultural e territorial desta
região de baixa densidade, construído ao longo dos anos com grande empenho,
espírito de união e cumplicidade.
Mas é preciso querer e saber ir mais longe. É preciso, justamente, potenciar
todo o trabalho feito e o prestígio alcançado, para idealizar e concretizar novas
abordagens e áreas de intervenção, que interpretem a realidade concreta do
tempo e do lugar.
Portugal, Espanha e a Europa atravessam uma das mais complexas crises
económicas e sociais de sempre. Há problemas semelhantes nas margens da
nossa fronteira: o abandono, o despovoamento, a ausência de incentivo e de
investimentos.
Nesta luta comum pela sobrevivência do Interior temos de nos olhar de fren-
te, como povos que vivem preocupações e anseios iguais.
Temos de ser o “litoral” mais próximo, recíproco e de oportunidades vastas,
muitas ainda por explorar.
Temos de saber implantar uma visão estratégica para uma verdadeira região
transfronteiriça, que se articule com poderes regionais, nacionais e comunitários.
O atual Executivo Municipal da Guarda tem cruzado a nossa fronteira e está
a dialogar e a trabalhar para estabelecer parcerias e projetos com “nuestros
hermanos”, ganhando peso estratégico e competitivo.
É um desafio para o qual estamos convocados, também no Centro de Estudos
Ibéricos, até tendo em vista este ciclo de apoios Europeus.
Um desafio a toda a sua importante comunidade, à Universidade de Coim-
bra, à Universidade de Salamanca e ao Instituto Politécnico da Guarda. E, des-
de logo, ao Município da Guarda, primeiro e empenhado impulsionador deste
projeto.
352 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Temos grandes projetos de futuro para o CEI!


Ilustres convidados,
Minhas Senhoras e Senhores,

É para mim uma honra presidir a esta sessão e congratulo-me com a decisão
do Júri em atribuir o Prémio Eduardo Lourenço 2022 ao Professor Valentín Cabero.
Valentín Cabero corporiza o próprio espírito deste Prémio que visa distinguir
personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura,
cidadania e cooperação ibéricas.
O júri reconheceu e entendeu distinguir o trabalho do Geógrafo, catedráti-
co jubilado da Universidade de Salamanca, a sua dedicação aos lugares e às
pessoas, às paisagens e aos valores patrimoniais bem como o seu conhecimen-
to rigoroso dos processos de transformação dos territórios mais vulneráveis da
fronteira luso-espanhola.
Profundo conhecedor de Portugal, dedicou muito do seu labor ao reconhe-
cimento da fronteira terrestre, linhas que foram feitas para separar, mas onde
ele sempre encontra o diálogo, a troca e a amizade. Um território de encontros
e desencontros que evoluiu para um novo espírito de fronteira marcado pela
inovação e cooperação.
Valentín Cabero acredita convictamente que, para vencer a ausência, para
superar as velhas e as novas fronteiras (reais ou simbólicas) e promover a coesão
das regiões periféricas, é fundamental criar solidariedades e promover a coope-
ração real entre pessoas e territórios.
A fronteira foi, pois, o cais de partida para uma viagem que acabou por ter
como porto de abrigo e lugar de destino a Guarda e o Centro de Estudos Ibéricos,
esta casa comum que se transformaria, também, numa causa igualmente comum.
Permitam-me que cite Fernando Paulouro, aqui presente, também ele já ga-
lardoado com este Prémio: “Valentín Cabero é um geógrafo que faz do rumor do
mundo uma grande paixão, elege a geografia (também) como fenómeno senti-
mental e de afetos e combina o local e o global numa articulação de densidade
humana e cultural, convocando-nos à descoberta das particularidades para po-
dermos perceber a condição humana na sua complexidade”.
Deixarei ao Excelentíssimo Alcalde Fernando Rubio a abordagem ao percurso
académico, cívico e social do nosso galardoado. Mas permitam-me que desta-
que o profundo conhecimento e amor que Valentín Cabero nutre pelo nosso país
e pela região raiana em particular.
Valentín Cabero, tal como Miguel de Unamuno, o velho reitor da sua univer-
sidade, tem Portugal no seu coração. Uma raiz afetiva que supera fronteiras e
se traduz num conhecimento concreto do território, dos lugares e das pessoas.
Os ensinamentos que sabe transmitir em palestras académicas ou nos traba-
lhos de campo de que tanta gosta, a sua simplicidade e a constante disponibili-
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
353
2022

dade, traduzem-se num amplo reconhecimento não só de estudantes e investi-


gadores, mas de cidadãos de tantos lugares que aprenderam com alguém que
desce da cátedra e vem ao terreno debater com eles as questões da sociedade,
dos desafios do mundo rural, da importância da conservação da natureza e da
sua valorização económica e social.
Nos seus infatigáveis périplos pelos caminhos transfronteiriços estabele-
ceu pontes, conheceu o outro e estabeleceu relações de igualdade e diálogo
baseados no respeito mútuo, no conhecimento e no reconhecimento, imbuído
de um compromisso cívico reivindicativo da igualdade, da justiça e da defesa dos
direitos dos mais esquecidos.
Esta enorme paixão por Portugal, que conhece como poucos, não deixará
certamente de lhe suscitar, como a Unamuno, uma íntima interrogação:
“Que terá este Portugal – penso – para assim me atrair? Que terá esta terra,
por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Eu não sei; contu-
do, quanto mais vou a ela, mais desejo voltar.”
Porque conhece, porque ama, porque, além da sua Espanha, vive Portugal
como poucos, Valentín Cabero é, de facto, um dos grandes geógrafos ibéricos.

O Prémio Eduardo Lourenço está, pois, muito bem confiado!

Em nome da Câmara Municipal da Guarda e em nome desta cidade que tanto


lhe deve, aceite, Senhor Professor Valentín Cabero, um abraço fraterno de
reconhecimento e amizade.

Bem-haja!
354 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

RICARDO RIVERO ORTEGA


RECTOR DE LA UNIVERSIDAD DE SALAMANCA

Este solemne acto de entrega del Premio Eduardo Lourenço es siempre un


motivo de encuentro y de felicidad compartida para cuantos formamos parte del
Centro de Estudios Ibéricos ― CEI, y en este año de una manera muy singular.
La presencia de Directora de Cultura de la Región Centro refrenda el papel
desempeñado por el CEI a lo largo de los años y nos alienta a seguir desar-
rollando proyectos innovadores desde el conocimiento y la cooperación en pro
de la cohesión de los territorios, en especial de esta frontera interior en la que
estamos.
La Universidad de Salamanca como bien saben forma parte de este centro
desde su formación y a lo largo de estos 23 años ha mantenido su compromiso
con él y, por tanto, con los valores expresados en su ideario: conocimiento, coo-
peración y diálogo que bien reflejan el “espíritu de Guarda” y la idea de Eduardo
Lourenço.
Nos sentimos orgullosos de que el saber generado en las universidades, en
la de Salamanca y también en la de Coimbra, tenga una repercusión en la socie-
dad y en el entorno más próximo, en este caso la frontera que nos une y que da
sentido al Centro de Estudios Ibéricos, con sede en esta atalaya histórica de la
ciudad de Guarda. El hermanamiento de las dos universidades, el Instituto Poli-
técnico y la propia ciudad de Guarda ha dado sus frutos a lo largo de estos años
con actividades que se mantienen en el tiempo gracias al esfuerzo generoso
de cuantos trabajan para incorporar cada año nuevos enfoques desde las más
variadas perspectivas al estudio de la realidad que nos rodea, de la situación de
la frontera y de la colaboración entre las instituciones y las personas.
Felicidad reforzada, decía al principio, por la labor del CEI que he señalado y
por este premio Eduardo Lourenço, que lleva el nombre de su director honorífico.
Con él se honra la memoria del gran ensayista en temas culturales, ibéricos y
universales, y uno de los intelectuales europeos más prestigiosos, y se reconoce
a aquellas personas e instituciones que han desempeñado un papel relevante en
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
355
2022

la protección de la cultura, la ciudadanía o la cooperación ibérica, como reza el


artículo 1 de su reglamento. Estamos ante un premio que ha alcanzado su décimo
octava edición – su mayoría de edad ― y que constituye un referente en ambos
lados de la frontera. Los 17 premiados en las ediciones anteriores realzan el pre-
mio, pues son un ejemplo de maestría cada cual en su ámbito de conocimiento
o artístico, y del esfuerzo y el trabajo en pro de la sociedad y del entendimien-
to entre los pueblos y, llegado el momento de sumar a esa lista al Dr. Valentín
Cabero Diéguez, yo añadiría de cooperación y diálogo entre los territorios y las
personas.
Y ahora sí, enhorabuena Valentín. Permítanme unas palabras personales so-
bre mi compañero, tan ligado al Estudio Salamantino y al que conozco desde
hace años. Luego llegará el momento de repasar sus méritos, pero no puedo de-
jar de señalar que en él convergen los tres grandes requisitos antes señalados.
Un conocimiento de la Geografía de carácter integral e interdisciplinar, brindado
siempre con generosidad a sus estudiantes y a cuantos le rodeaban o cuando
la situación lo requería. De su compromiso ciudadano habla el hecho de que la
propuesta del premio haya partido de la sociedad civil, de alcaldes de diferentes
municipios. De la cooperación solo recordar su denodado trabajo para que este
Centro fuera una realidad, su recorrido por la raya, arriba y abajo, a uno y otro
lado, su conocimiento de Portugal y las relaciones ibéricas como se puede leer
en la lección inaugural de curso académico 2002-2003 sobre Iberismo y coope-
ración y su amor por Portugal reflejado en sus escritos, en sus palabras y en su
continua colaboración con colegas y amigos portugueses, que no ha cesado a
pesar de no tener ya obligaciones inherentes a su cargo.
Valentín, querido amigo, reúnes cualidades poco comunes que te convier-
ten en un digno y singular destinatario del Premio Eduardo Lourenço, como han
reconocido de manera unánime los miembros del jurado, y has hecho que hoy
sea un día feliz para cuantos aquí estamos y para cuantos te acompañan en la
distancia.
La Universidad de Salamanca se siente honrada de que hayas pertenecido a
su claustro y como parte del Centro de Estudios Ibéricos, la Universidad seguirá
trabajando por la cooperación y el entendimiento mutuo y en este año en el
que celebraremos el centenario de Eduardo Lourenço, retomo sus palabras y
el deseo de “que la más lusitana de las fronteras pueda ser la más ibérica y
dialogante de las tierras, la del diálogo abierto y vivificante” y Guarda y el CEI,
“centinela de un futuro común”

Textos de Eduardo Lourenço en portugués


Lourenço Eduardo (1999). Oito séculos de Altiva Solidão! (Discurso en las conmemo-
raciones de los 800 años del fuero de la ciudad de Guarda). https://www.cei.pt/cei/
discursos_el.htm#discurso02
356 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Que resta à Guarda? Mobilar melhor a sua estelar solidão histórico-cultural,


sem ter, enfim, o sentimento de a quebrar? Só os caros cidadãos egitanienses
podem definir os seus sonhos e as suas aspirações. Para quem de dentro e de
fora contempla a nossa altiva solidão, o caso não parece desesperado. O mar,
que a Beira e a sua cidade não receberam em companhia, está há séculos diante
desta cidade. Como ameaça mais ou menos onírica, mas simbólica para a sua e
nossa identidade. Já não se chama Castela, chama-se Espanha, não porta para
a Europa, mas a Europa vizinha, a Europa próxima, interland natural do nosso
rectângulo mágico.
Em suma, que a mais lusitana das fronteiras, no momento em que elas se
apagam, podia ser a mais ibérica e dialogante das terras, a do diálogo aberto e
vivificante com o deserto de que nos separámos e continuou a florir em nós no
silêncio. Cumpre-nos a nós ser o elo natural do novo diálogo em que a invenção
da Europa converteu a Península. O futuro o dirá.
…..
Essa é a vocação que eu desejo para a Guarda. Que ela seja hoje a sentinela
dum futuro comum para uma Ibéria que é um dos pólos desta Europa onde todos
nós queremos estar e, onde querendo ou não, já estamos.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
357
2022

DELFIM LEÃO
VICE-REITOR DA CULTURA, COMUNICAÇÃO E CIÊNCIA
ABERTA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Na Lição de Abertura do Ano Académico de 2022-2003, publicada pouco


depois sob a forma de livro, com o título de Iberismo e cooperação: passado
e futuro da Península Ibérica (Porto, Campo das Letras, 2004), o Prof. Doutor
Valentín Cabero Diéguez afirmava (p. 8) que, “numa dimensão espacial, a escala
peninsular obriga-nos a um olhar atento e solidário quanto ao manuseamento
sustentado dos recursos naturais, renováveis e não renováveis; numa dimensão
temporal, a civilização herdada que nos é comum exige-nos, no contexto euro-
peu e ibérico, a cooperação e a criação de estruturas socioeconómicas e de con-
vivência que fortaleçam o bem-estar, a igualdade ou equidade, tendo em vista
a verdadeira fraternidade procurada por iberistas utópicos de ontem e de hoje”.
Proferidas há duas dezenas de anos, não acusam estas palavras o desgaste do
tempo que caracteriza as agendas oportunistas e passageiras, nem a pequenez
agastada de quem se move em horizontes de alcance limitado. Pelo contrário,
como é distintivo de grandes pensadores que genuinamente se preocupam com
as causas, as coisas e as pessoas às quais dedicam o seu tempo e o seu labor,
as afirmações de Cabero Diéguez possuem a ponderada ressonância de quem
antevê desafios à frente do seu tempo e para eles encontra certeiras soluções.
Com efeito, essa oikoumene ibérica ou casa comum não se identifica apenas
com espaços e recursos partilhados, mas com a acertada leitura da justa medida
que assiste à relação do ser humano com o território que o nutre e acolhe. Cons-
titui uma comunidade de afetos, de mundividências e narrativas seculares que
moldam identidades com a mesma serena insistência com que um riacho estival
penteia o leito rugoso que demoradamente atravessa.
Conhecedor profundo da realidade ibérica e dos desafios que põem à prova
as populações e os territórios mais vulneráveis da raia luso-espanhola, o Prof.
Doutor Valentín Cabero Diéguez ilustra, em toda a plenitude, os valores que nor-
teiam o Centro de Estudos Ibéricos e colhem comum inspiração na figura de
358 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Eduardo Lourenço. A decisão unânime do Júri de lhe atribuir o Prémio Eduardo


Lourenço, na sua 18ª edição, espelha a ponderação da maturidade, mas também
a emoção de quem sente que fazer justiça não é uma utopia distante, mas antes
uma palpável realidade ibérica.
Assim, em nome do senhor Reitor da Universidade de Coimbra, Prof. Doutor
Amílcar Falcão, apresento-lhe as mais vivas felicitações pela obtenção deste pré-
mio altamente simbólico.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
359
2022

SUZANA MENEZES
DIRETORA REGIONAL DE CULTURA DO CENTRO

Junto-me, uma vez mais, a esta emblemática cerimónia em nome do Sr. Mi-
nistro da Cultura, Doutor Pedro Adão e Silva, mas, naturalmente, também, em
nome da Direção Regional de Cultura do Centro que assume, no contexto das
Comemorações do Centenário de Eduardo Lourenço, juntamente com um gran-
de leque de outras entidades, o papel de parceiro.
E de outro modo não poderia ser. É de facto, com muita alegria e orgulho
que nos associamos a estas comemorações e não apenas pelo facto de com
elas celebrarmos a vida e obra de Eduardo Lourenço como, sobretudo, porque
nos associamos a um programa de grande qualidade científica que, não tenho
dúvidas, irá marcar a paisagem cultural da nossa região com os seus quatro ei-
xos estruturantes - "aprofundar o conhecimento da obra", "ampliar o universo de
leitores", "expandir o legado de Eduardo Lourenço" e "territorializar um pensa-
mento desterrioterializado".
E estes são os eixos que, se me permitem, garantirão um objetivo maior de
política pública cultural: preservar, salvaguardar e valorizar o nosso património.
Por isso, e desde já, as minhas palavras são de felicitação à Câmara Muni-
cipal da Guarda e ao Centro de Estudos Ibéricos que assumem a coordenação
nacional da celebração do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço e de
felicitação à incansável equipa responsável pela programação desta efeméride,
que conseguiu, com o seu entusiasmo, convocar uma larga rede de parceiros
nacionais e internacionais da maior relevância.
Finalmente, uma palavra especial sobre a edição de 2022 do Prémio Eduardo
Lourenço, começando por felicitar o Júri pela escolha do premiado, que não po-
dia ser nem mais acertada, nem mais atual, à luz de algumas das preocupações
e princípios estratégicos de política pública definidos para o nosso País, designa-
damente, a questão dos territórios fragilizados de baixa densidade e a questão
dos modelos de cooperação transfronteiriça Portugal-Espanha.
Aliás, como terão eventualmente presente, a Comissão Europeia aprovou, há
cerca de seis meses atrás, o maior programa de cooperação transfronteiriça da
360 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Europa, através da atribuição de 320 milhões de euros para a cooperação entre


Portugal e Espanha.
Este é um programa que visa estimular as relações transfronteiriças através
de um conjunto muito amplo de medidas, como o apoio à criação de redes en-
tre pequenas e médias empresas no domínio da investigação e transferência
de conhecimento, a melhoria da eficiência energética de edifícios públicos, o
apoio ao turismo sustentável, o apoio à preservação do património cultural, o
apoio ao desenvolvimento de infraestruturas de saúde e o apoio e estímulo à
formação profissional para as pessoas que vivem na região transfronteiriça,
procurando, deste modo, dar resposta a muitos dos desafios que temos pela
frente para garantir, efetivamente, um país territorial e socialmente mais coe-
so.
Porém, como também sabemos, estimular a cooperação territorial e encon-
trar e implementar modelos de desenvolvimento sustentável adequados a cada
território, está profundamente dependente do conhecimento e da investigação
que se produz, a cada dia, dentro das nossas universidades.
Deste modo, visibilizar o trabalho e a investigação científica do Professor
Valentín Cabero Diéguez, que como defende o júri, assumiu um compromisso
cívico com os territórios mais frágeis e contribuiu, com a sua investigação, para a
promoção da cooperação ibérica, é visibilizar, também, e a esse tempo, o conhe-
cimento que os nossos territórios e os nossos decisores políticos devem ter para
desenhar e implementar as suas estratégias de desenvolvimento.
E devo dizer, talvez nunca como hoje tenha sido tão importante aproximar
o conhecimento produzido dentro da academia dos nossos decisores políticos.
No momento em que os nossos Municípios estão, certamente, a desenhar
as suas estratégias de desenvolvimento para a próxima década, no momento
em que as nossas comunidades intermunicipais definem as suas estratégias de
escala sub-regional para a próxima década, no momento em que a Comissão
de Coordenação e Desenvolvimento Regional estabelece as orientações polí-
ticas e estratégicas para o próximo programa plurianual de investimento, urge,
neste momento, que conheçamos a fundo a investigação e pesquisa prospetiva
produzida por investigadores como Valentín Cabero Diéguez que dedicou, pre-
cisamente, uma parte da sua vida, a investigar processos de transformação dos
territórios mais vulneráveis da fronteira luso-espanhola.
Assim, e a finalizar, saúdo o Júri do Prémio Eduardo Lourenço pela muito
oportuna e relevante distinção da edição deste ano e ao Professor Valentín Ca-
bero Diéguez agradeço cada minuto que dedicou a estudar, investigar e pensar
o tema do desenvolvimento social, cultural e económico dos nossos territórios
de fronteira.
A todos e todas vós, muito grata pela atenção que me dispensaram.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
361
2022

MANUEL SALGADO
VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO POLITÉCNICO
DA GUARDA

Cumprimento, de modo especial, o Sr. Professor Valentín Cabero Diéguez e


sua família e, portanto, permitam congratular pela atribuição do Prémio Eduardo
Lourenço de 2022 que, naturalmente, muito nos honra à nossa Instituição IPG e
à nossa cidade; pois o Sr. Professor sempre valorizou e promoveu a articulação
destas três Instituições de Ensino Superior, pela sua participação empenhada em
muitas iniciativas conjuntas, sobretudo as congregadas no projeto do Centro de
Estudos Ibéricos (CEI), num eixo que tem também grande significado em termos
geográficos na nossa Península Ibérica.
Portanto, Portugal e Espanha, ou seja Nós, como comunidade Ibérica, e não
os outros, do outro lado da fronteira, que partilham este território peninsular,
devem continuar a interagir em todas as dimensões da sustentabilidade, sobre-
tudo a nível ambiental e social e, por essa via, potenciar as melhores dinâmicas
económicas e políticas, de modo a permitir maior coesão e estabilidade.
Vivemos neste território transfronteiriço, entre Coimbra e Salamanca, no qual
será preciso recentrar as políticas transfronteiriças para estarem mais ao serviço
das pessoas dos 2 lados da fronteira!
Porém, este território está cada vez mais despovoado e envelhecido, o que
nos exige outras políticas e estratégias de coesão territorial. De facto, o desen-
volvimento do interior, que está alinhado com o nosso slogan no IPG (O potencial
do Interior), que é de baixa densidade, pelas suas características sociodemo-
gráficas, que se continuam a acentuar com o passar das últimas décadas, como
podemos confirmar nos censos de 2021.
Eu gosto de salientar o valor ambiental e cultural dos territórios em que vive-
mos, entre Coimbra e Salamanca.
Mas será que temos dado o valor devido ao ambiente e à ecologia?
362 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

E nas dimensões social e cultural, qual tem sido o modelo de desenvolvi-


mento que fomente a equidade e acesso de todos, também dos dois lados da
fronteira?
O modelo de desenvolvimento sustentável, que tanto se apregoa, parece
muito exigente e pressupõe esta articulação entre estas dimensões com a polí-
tica e a económica.
Quero dar os parabéns a toda equipa do CEI, em nome do IPG, porque
representa um projeto e um caminho que se tem vindo a desenvolver, de proje-
ção de personalidades que serão intemporais, e que todos assumimos, de forma
diferente, e para nós, no IPG, é uma grande honra partilharmos estas palavras
e, neste âmbito, estou certo que o Professor Valentín Cabero Diéguez continuar.
Gostaria, ainda, de relevar a nossa intenção, no IPG, de desenvolver um
Catálogo de Premiados e Documentário Prémio Eduardo Lourenço para a come-
moração do Centenário, de modo a revisitar e a celebrar todas as personalidades
e instituições premiadas desde 2004 até 2022.
Muito obrigado e muchas gracias, a todos pela atenção dispensada,
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
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FERNANDO RUBIO DE LA IGLESIA


ALCALDE DE JUZBADO, SALAMANCA

Buenas tardes a todos los asistentes a este hermoso acto: un gran reconoci-
miento para una gran persona, que sin duda hace honor al nombre del premio.

Quiero, en primer lugar, agradecer el inmenso honor que se me regala con el


encargo de esta laudatio. Lo proclamo dando también voz a mis queridos com-
pañeros de fatigas, los alcaldes de Morille, Manuel Ambrosio Sánchez, y de Monle-
ras, Ángel Delgado (hoy con la representación de la vicealcaldesa Raquel Delgado).
También a dos confidentes excelentes que han aportado buena lana para tejer
estas palabras: Maribel Martín, Geógrafa de la Universidad de Salamanca, y Jabito
Jablonski, Director de la oficina de desarrollo local de Juzbado. Gracias a todos
ellos y a quienes apoyasteis nuestra propuesta con vuestras cartas de adhesión.
Hablo, pues, en nombre de tres pueblos, Juzbado, Morille y Monleras, que un día
tuvimos la fortuna de encontrar en nuestros caminos al Profesor Valentín Cabero
y después la bendición de surcarlos junto a él. Tres pueblos que, felizmente, hace
algunos meses decidimos presentar de manera conjunta su candidatura al Premio
Eduardo Lourenço, instituido para personalidades con una destacada contribución
en “el ámbito de la cultura, la ciudadanía y la cooperación ibéricas”. Tres valores
que, por aclamación, confluyen en el premiado.
Pero permítanme ir más allá: somos una pieza más de tantas que se han senti-
do representadas con nuestra iniciativa. La candidatura del Profesor Cabero llegó
con el alma de muchos otros pueblos e instituciones, de muchas otras personas
que han disfrutado de su compañía y amistad a un lado y otro de la frontera. Somos
muchos los que nos hemos visto arropados en algún momento por su cercanía, su
sabiduría y, algo menos común que lo define intensamente, su compromiso con
nosotros y nuestra tierra. Y son muchos más los que nos han mostrado alegría sin-
cera por este reconocimiento. Así pues, nos sentimos doblemente honrados, por
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haber dado el paso que nos ha traído hasta aquí y por la feliz unanimidad que ha
florecido en torno a una persona sencilla, sabia y querida por todos, seguramente
porque es, en esencia, una buena persona. Por todo ello, queremos responder con
nuestro agradecimiento profundo a las entidades que instituyen el Premio Eduardo
Lourenço y, cómo no, a los miembros del jurado.
Antes de continuar, Valentín e hijos, permitidme un recuerdo para Maritere, tu
querida esposa, vuestra querida madre, que tanto ayudó a forjar tantos momen-
tos que esta tarde parecen confluir de golpe en esta sala, que falta desde hace
ya demasiado tiempo. Valentín, llena la ausencia con poesía, que a menudo te
acompaña. Comprende, como Vicente Aleixandre, que hoy ella continúa siendo el
cuerpo feliz que fluye entre tus manos, el rostro amado donde contemplas el mun-
do, donde graciosos pájaros se copian fugitivos volando a la región donde nada
se olvida. Después, busca los árboles, descansa y piensa que te has sentado en
el centro del bosque a respirar, como escribió tu paisano y amigo Antonio Colinas.
Sería inabarcable y pretencioso mostrar una semblanza completa de Valentín
Cabero. Les ahorraré ese exceso, en la certeza de que omitiré gran parte de lo im-
portante. Me dispongo a resumir, sin embargo, que su trayectoria docente comien-
za recién concluida su licenciatura, en el año 1968, como becario de investigación
en la Universidad de Salamanca, la misma que 44 años después le entregará el
Premio María de Maeztu a la Excelencia Científica en su edición de 2012. Su jubila-
ción en el año 2013, tras haber alcanzado la cátedra de Geografía en el año 1984,
no supone un punto final en su carrera en modo alguno. A quien nace para lo que
hace nunca le abandona la vocación, y Valentín continúa enseñando, escribiendo
y mostrando al mundo su enorme pasión por la tierra, sus paisajes y los modos
de habitarla, siempre con la enorme carga ética que emana de su magisterio de
manera natural.
Formador de profesores, director de trabajos de investigación, tesinas, tesis
doctorales, miembro de numerosos comités científicos de congresos y editoriales,
partícipe en la dirección de prestigiosas revistas de Geografía, le acompaña una
extensa bibliografía, caracterizada por la profundidad de análisis y la calidad de
sus propuestas. Cabe destacar sus libros relacionados con los espacios de mon-
taña, los cambios regionales, el paisaje y la transformación de los usos del suelo,
la ordenación del territorio y los problemas territoriales en las áreas fronterizas o
periféricas.
En el apartado de la cooperación internacional, cuenta con estancias en dife-
rentes universidades de Francia, Rusia, Polonia, Colombia, Cabo Verde o Brasil, así
como colaboraciones con instituciones europeas. Ha ejercido como miembro del
Comité Científico y de Expertos de la Asociación de las Regiones Fronterizas de
Europa. Pero una de sus grandes pasiones, tal vez la mayor, ha sido y es la coope-
ración con Portugal, desde la dirección de tesis doctorales y cursos de formación
de profesores ligados hoy a universidades e Institutos politécnicos portugueses, a
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su presencia en tribunales de trabajos de maestrado en la Universidad de Coim-


bra, de Lisboa, Trás-os-Montes e Alto Douro o de Covilha. Investigador principal en
Proyectos Transfronterizos como el de Beira Interior/Salamanca-Cáceres o los de
Cooperación y Desarrollo impulsados por el Centro de Estudios Ibéricos, la Univer-
sidad de Salamanca, el Instituto Politécnico de Guarda y la Universidad de Coimbra
Esta cooperación ibérica se inició en la fecha ya lejana de 1979, hace 44 años,
cuando participó de forma activa en el I Coloquio Ibérico de Geografía, auspiciado
por los profesores Orlando Ribero de la Universidad de Lisboa y Ángel de Cabo, su
maestro en la Universidad de Salamanca. Desde entonces su presencia y sus po-
nencias en los encuentros promovidos por las Asociaciones portuguesa y española
de Geografía han sido una constante.
Por otra parte, su relación con las universidades de Cáceres, León y Salamanca
ha contribuido al profundo conocimiento que Valentín Cabero tiene de los espacios
fronterizos y de las freguesias y municipios rayanos, y a su presencia en proyec-
tos transfronterizos de cooperación e intercambio entre instituciones españolas y
portuguesas.
Su contribución más personal a la cooperación ibérica tiene su punto álgido en
las postrimerías del siglo XX, cuando fue designado por el Rector de la Universidad
de Salamanca, Ignacio Berdugo, para las conversaciones y trabajos preparatorios
que llevaron a la firma de los acuerdos entre las Universidades de Coimbra y Sa-
lamanca, y la Cámara municipal de Guarda para la constitución del Centro de Es-
tudios Ibéricos. Desde esos momentos y hasta su jubilación ha participado en los
proyectos desarrollados por el Centro. Valentín Cabero es, ante todo, un iberista
convencido y militante, una de esas personas a cuyo paso la frontera se difumina,
una visión que hace escuela y ha calado (por ejemplo, entre quienes hemos pro-
puesto su candidatura al premio que ahora recibe).
Su vínculo con tierras leonesas (donde ve la luz) y castellanas, su cercanía a
los espacios de montaña y a las pequeñas cabeceras comarcales han contribuido
a que gran parte de sus estudios se hayan centrado en las zonas de borde, en
las áreas de montaña y en el mundo rural, con especial incidencia en la debilidad
socioeconómica de estos espacios, en su abandono demográfico y en las alejadas
políticas públicas que han sufrido y sufren.
El compromiso del profesor Cabero con la ciudadanía se pone de manifiesto en
las innumerables colaboraciones con asociaciones y ONGs, en sus estudios sobre
la pobreza, el medio ambiente o los conflictos territoriales. En este apartado, siem-
pre ha acompañado sin recibir nada a cambio a cuantos han solicitado su apoyo
en forma de conferencias, participación en jornadas, foros o asesoramiento a aso-
ciaciones y ayuntamientos. La humanidad, la fraternidad, regalar lo que sabes,
el compromiso desinteresado, la bondad no son valores fácilmente localizables
en un currículum académico. Priorizarlos conlleva ciertos paréntesis en la carrera
profesional, pero al final conceden a la persona el afecto sincero del prójimo y la
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moldean con un carisma especial. Tal vez por ese espíritu libertario y fraternal, el
Profesor Cabero ha sufrido también desprecio, e incluso en algunos momentos la
persecución de algunos medios de comunicación y ámbitos de poder. En sus inicios
en la Universidad de Salamanca llegó a ser despojado de su docencia por rebelde.
Cualquiera puede imaginar a un joven Profesor Cabero contestando con argumen-
tos, sin perder nunca su amabilidad innata (con certeza, forjada en la niñez y refor-
zada en sus cientos de paseos solitarios). Al fin y al cabo, Valentín es un magnífico
rousseauniano, que no concibe el camino sin ensoñación, ni pérdida en el bosque
sin buscar la utopía del territorio.
Otro hito en su recorrido son los artículos en medios de comunicación, como
respuesta ante desastres en la gestión del territorio y en defensa del patrimonio
heredado. Son referencia ineludible en el ámbito del desarrollo rural. Es el caso de
sus escritos en defensa de las juntas vecinales y bienes comunales, sus denuncias
de la ley española (mal llamada) de racionalización y sostenibilidad de la adminis-
tración local, contemplada por el profesor como una desamortización encubierta
para los pueblos pequeños y el medio rural, o su clamor contra obras faraónicas,
más inspiradas por inclinaciones corruptas y megalómanas que por la búsqueda
del desarrollo sostenible de los pueblos y sus gentes. En la misma línea, su intensa
labor pionera en la consecución del Parque Natural de Sanabria, su trabajo necesa-
rio en la creación del Parque Nacional de la Sierra de Guadarrama, su defensa de
la naturaleza como miembro de la Reserva de la Biosfera de Ancares, o la firma de
la Declaración por un sistema alimentario basado en la agroecología y la soberanía
alimentaria, en enero de 2022. Ello, como una pequeña muestra de la amplia pro-
ducción social del Profesor.
En esta misma línea, ha prestado sus conocimientos, por ejemplo, a las Cortes
de Castilla y Léon en la Comisión de Asuntos Europeos y la Comisión sobre la Evo-
lución de la Población de Castilla y León, o a la Comisión especial de estudio sobre
las medidas a desarrollar para evitar la despoblación de las zonas de montaña, del
Senado de España.
Terminemos con otra de sus pasiones, ya aludida en su vertiente poética: la
literatura, donde siempre ha encontrado refugio y referencias.
Cuando Carlo Levi, en los años 30 del siglo pasado, es confinado por los fas-
cistas a Gagliano, en la Basilicata italiana, se encuentra con paisanos conscientes
de su condición de desheredados de la tierra. Se autodenominan “bestias”, por
haberlo oído así a algún terrateniente cercano. Dicen que Cristo no llegó hasta allí:
Cristo se paró en Éboli, o como mucho en Matera.
Herbert Luethy, en Francia contra sí misma habla de las zonas rurales como
lugares ajenos a cualquier suceso importante: es la “petite histoire”, la del tiempo
detenido y olvido asegurado. Julio Caro Baroja, en su análisis de lo que ya conside-
ra “éxodo rural” a mediados del siglo pasado, al analizar las tradiciones de España
la llama “la historia chica”, la que no se vive, se padece: allá donde los hombres
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nunca tuvieron nada que decir ni están en los libros. Una imagen similar del medio
rural proyecta su admirado John Berger en Puerca tierra, nuestro amigo común Ro-
gelio Blanco en su novela Dismundo o, de un modo aún más descarnado, Delibes
en Los Santos Inocentes, Buñuel en su documental Tierra sin pan o tantos otros
cronistas de los desheredados de la tierra y sus territorios.
Algo más de luz proyecta la novela La ciudad y las sierras. Eça de Queirós,
muy apreciado por el Profesor Cabero, muestra un París bullicioso (la ciudad) que
contrapone con el paisaje rural del Bajo Duero portugués (las sierras), adonde los
protagonistas deben regresar por asuntos familiares. La sola comparación de la
ciudad más dinámica y seductora con el entorno rural más detenido en el tiempo
resulta irónica. Sin embargo, el cosmopolita Jacinto encuentra junto al Duero una
inesperada felicidad: “La sierra toda se ofrecía en su belleza eterna y verdadera”,
y Eça de Queirós termina ofreciendo un canto a la “agreste y serena naturaleza”,
dicho con sus propias palabras.
En esa luz final de las sierras de Queirós encontramos más al Profesor Cabero.
Él ha elegido a las bestias, a los no cristianos de Levi, y se ha comprometido con la
historia chica de Caro Baroja, aquella que, por no suceder nada relevante para las
grandes crónicas, ni siquiera existe. Sin embargo, ésa es la historia del día a día,
la que construye y custodia el territorio, la que preserva los paisajes y defiende a
los paisanos, la que no merece el fatalismo ni la imagen sombría que a menudo se
le otorga, la que debe recuperar su autoestima para reivindicarse y luchar por sus
derechos.
La mirada de nuestro querido amigo Valentín Cabero confía en el territorio, en
sus pobladores más vulnerables, en su aprovechamiento sostenible y bien distri-
buido, en el paisaje. Valentín ha sembrado utopía y muchos a su lado hemos reco-
gido realidad. Al fin y al cabo, su buen amigo, el poeta Juan Carlos Mestre, ya se lo
dijo aquella emocionante tarde de primavera en Juzbado:
Tus antepasados inventaron la Vía Láctea,
dieron a esa intemperie el nombre de la necesidad,
al hambre le llamaron muralla del hambre,
a la pobreza le pusieron el nombre de todo lo que no es extraño a la pobreza.
Poco es, querido amigo Valentín, lo que puede hacer un hombre con el pensa-
miento del hambre,
apenas dibujar un pez en el polvo de los caminos,
apenas atravesar el mar en una cruz de palo."

Felicidades, familia.
Felicidades, Maritere, allá donde quiera que seas aire.
Felicidades, querido Valentín.

Gracias a todos.
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VALENTÍN CABERO
GALARDOADO

Mis primeras palabras en esta intervención son de sincera y profunda gra-


titud por el reconocimiento que se me concede con este galardón, que lleva el
nombre tan entrañable y noble para todos nosotros de Eduardo Lourenço; su
nombre, junto al de José de Saramago, representa los más altos valores éticos,
cívicos e intelectuales de la cultura portuguesa e ibérica de las últimas déca-
das del siglo XX y principios del siglo XXI. Tendría que sumar a los dos grandes
escritores y pensadores, la figura tan representativa para mí de Miguel Torga,
un Orfeo granítico y rebelde, que tomó su seudónimo, Miguel, de dos grandes
escritores ibéricos, españoles, a los que admiraba, Miguel de Cervantes y Miguel
de Unamuno, y su apellido de la planta ericácea, la torga, nuestra urce, que cre-
ce resistente a las intemperies e incendios en nuestras montañas del noroeste
ibérico y que durante siglos ha dado calor a las “lareiras”, hogares campesinos
de nuestras montañas.

Es, por tanto, un altísimo honor para un profesor universitario, que lo ha


sido afortunadamente a lo largo de la Vía de la Plata, con dedicación exclusiva
a la enseñanza e investigación de nuestros entornos geográficos y vitales, re-
cibir este premio en este lugar tan ligado a la memoria de Eduardo Lourenço
y a nuestros trabajos de cooperación y de encuentros ibéricos. Recordemos
que hace poco tiempo, y en plena pandemia, el 10 de octubre de 2020, se
reunieron también aquí, en el Centro de Estudios Ibéricos y en la Cámara de
Guarda, los Jefes de Gobierno de Portugal y España, Antonio Costa y Pedro
Sánchez, con motivo de la celebración de la XXXI Cumbre Ibérica Portugal-Es-
paña, y firmaron La Estrategia Común de Desarrollo Transfronterizo, con cierto
entusiasmo y esperanza para estos territorios del Interior peninsular. De algún
modo, la ciudad recuperaba con nuevos impulsos aquel “espíritu de Guarda”
de 1976, cuando ambos países iniciaban, después de más cuarenta años de
autarquías, dictaduras y cerrazón en las relaciones humanas y rayanas, la
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apertura de las fronteras y la colaboración en tareas comunes en el contexto


ibérico y europeo.
Este Centro de Estudios Ibéricos y esta ciudad de Guarda han sido muy ge-
nerosos con mi trabajo y mi persona, pues antes de la pandemia, en el otoño de
2019, la Cámara Municipal de Guarda me concedió, junto al profesor Rui Jacinto,
nuestro buen amigo, la Medalla Municipal de Mérito, por nuestra labor en favor
de las actividades del CEI, y su integración en la vida de la región y de la ciudad
más alta de Portugal (1056 m). Hace muchos años que me siento como un beirão
más, y estaré en deuda feliz y permanente con esta ciudad en la Beira Interior,
capital de la Beira Alta, y que hoy nos acoge tan amablemente, como siempre,
honrando una vez más a los atributos que la identifican y la diferencian en torno
a las cinco f: farta, forte, fría, fiel y fermosa.
Merecen un agradecimiento muy cordial y afectivo los miembros del jurado
del Premio Eduardo Lourenço, compuesto por ilustres miembros de las Universi-
dades de Salamanca y Coimbra y que, presididos por el Rector de la Universidad
de Salamanca, Ricardo Rivero, me han honrado con una decisión unánime. Muito
obrigado.
Y naturalmente, nuestra gratitud más sincera y personal a los proponentes
de mi candidatura, pues partió de tres pequeños municipios, Juzbado, Monleras
y Morille, cuyos alcaldes aquí presentes, Fernando Rubio de la Iglesia, Ángel
Miguel Delgado García y Manuel Ambrosio Sánchez Sánchez, son ejemplo de
una gestión municipal inteligente y en favor de un mundo rural vivo. Vuestra pro-
puesta ha recibido el apoyo de un numeroso grupo de colegas y amigos de las
universidades españolas, portuguesas, e iberoamericanas y lusófonas, al igual
que de personas de la cultura y de la sociedad civil que han apoyado, asimismo,
la candidatura con palabras y elogios muy generosos. Muchas gracias a todos,
a los que nos acompañáis en este acto, y a los que estando ausentes y lejos de
aquí, por distintas circunstancias, han mostrado su apoyo incondicional a la can-
didatura y a las tareas que viene desarrollando el CEI.
Hay una ausencia en esta sala y en este acto, cuya memoria y recuerdo cobra
un significado íntimo y entrañable para mí y para mis hijos y nietos al recibir este
Premio. Nuestro agradecimiento total y más profundo a nuestra esposa y madre,
M.ª Teresa del Río López (1949-2022), que nos dejó a finales de marzo del año
pasado. Sin su compañía bondadosa y desprendida, llena de ternuras, a lo largo
de más cincuenta años, y sin su trabajo silencioso, nunca hubiésemos alcanzado
los méritos que se me atribuyen. A ella dedicamos de manera personal y familiar
este Premio Eduardo Lourenço.

En su ausencia me acompañan varios familiares y muchos y excelentes ami-


gos y colegas; particularmente me abrigan y custodian en este acto mis hijos
(Pablo, Maite, Nacho, y mi hija Ana desde Quito, junto a sus parejas, Rosina,
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Jabito, Victor y Susana) y mis nietos (Nayara, Daniel, Blanca, Arturo, Arotía y Gre-
ta), que me dan fuerzas para seguir en este camino de conocimiento y construc-
ción sensata de la península Ibérica, más allá de las fronteras.

Permitidme que señale ahora algunas reflexiones sobre el Centro de Estu-


dios Ibéricos que esta tarde nos congrega en una feliz convivencia de españoles
y portugueses de uno y otro lado de la raya; unos llegados de Extremadura, otros
han venido desde las tierras más al Norte, desde Asturias y León, y un buen nú-
mero de personas son vecinos de la provincia de Salamanca; y reconozco a los
amigos y colegas portugueses llegados desde el valle del Mondego y Coimbra,
desde el valle del Zêzere o del Côa e incluso desde Trás-os-Montes. Todos ellos,
creo interpretar, son cómplices con los proyectos del CEI y las relaciones frater-
nas entre españoles y portugueses.

Ya se han señalado por parte de quienes me han precedido en el uso de la


palabra algunas de las acciones y virtudes que concurren en este Centro compar-
tido desde hace veintidós años por las universidades de Coimbra y Salamanca,
y el Instituto Politécnico de Guarda, bajo el protagonismo y cobijo municipal de
la Cámara de Guarda. He de subrayar las palabras e ideas que se han expre-
sado en torno a la función de encrucijada de la ciudad de Guarda, entre Lisboa
y Madrid, entre Salamanca y Coimbra, entre las tierras del Norte portugués y
el Sur, que la convierten en una ciudad media con una capacidad de articula-
ción y cohesión territorial y social de indudable transcendencia peninsular; he
de destacar las referencias a la función de puente cultural y de intercambio del
conocimiento que ofrece la ciudad y que el Centro de Estudios Ibéricos impulsa
con un sentido transversal hacia dentro y hacia fuera, hacia el interior y hacia
el exterior, buscando una revitalización creadora en los territorios próximos del
Interior; este puente peninsular del CEI y de Guarda se ha comprometido en sus
tareas con los territorios más desfavorecidos en el ámbito transfronterizo y en
el interior peninsular, los llamados tecnocráticamente en los informes más o
menos oficiales territorios de baja densidad. Y por, supuesto, vuestras palabras
sobre la cooperación y un futuro común compartido siguen siendo un reto social,
político y territorial de gran envergadura, que en los momentos tan llenos de
incertidumbres y malestar en que vivimos presenta nuevos desafíos; el CEI debe
afrontar estos retos con energías renovadas y propuestas cargadas de iberismo
activo en la construcción sensata de un futuro esperanzador para los territorios
rayanos y olvidados.
Considero, por tanto, que el Centro de Estudios Ibéricos es un gran proyecto
vinculado a la cultura, al conocimiento, a la cooperación y a la ciudadanía ibé-
rica y trans-ibérica. Como se ha señalado, la idea inicial nace con motivo de la
celebración de los 800 de la fundación de Guarda a finales del siglo XX, bajo la
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propuesta luminosa de Eduardo Lourenço de crear en Guarda un centro de es-


tudios vinculado a la cultura ibérica, apoyándose en la herencia histórica y rege-
neracionista de Joaquín P. de Oliveira Martins: Historia de la Civilización Ibérica
(1879), que supuso un aldabonazo intelectual a uno y otro lado de la frontera y
una llamada a la percepción de nuestro devenir común. Sobre la obra de Oliveira
Martins, Unamuno escribió: “debería ser un breviario de todo español culto y de
todo portugués culto”
Al respecto del nacimiento y creación del Centro de Estudios Ibéricos, recuer-
do bien cuando Álvaro Guerreiro y Virgilio Bento, en nombre de la Presidenta de
la Cámara de Guarda, M.ª do Carmo Borges, se presentaron en mi despacho de
la Facultad de Geografía e Historia, desordenado y lleno de libros y mapas, con
este mensaje: queremos que nos ayudes a crear y diseñar un centro de estudios
en Guarda que reciba el apoyo de la Universidad de Salamanca y de la Universi-
dad de Coimbra. Luego se sumaría el Instituto Politécnico de Guarda.
No me detendré en los pormenores y detalles del proceso administrativo, y
de la configuración del Centro y de esta Biblioteca que nos acoge con el apoyo
de los fondos estructurales y de cooperación transfronteriza de la Unión Euro-
pea. Si he de señalar que no fue fácil salir entonces de los marcos encorsetados
de nuestras universidades, y descender a los compromisos más activos y huma-
nos con los territorios y gentes de nuestros entornos. Los principios de una geo-
grafía activa y sensible con los territorios más periféricos y desamparados como
las áreas de montaña y espacios transfronterizos me comprometieron con entu-
siasmo y sentido solidario con el proyecto y las tareas del CEI. Portugal y Guarda,
junto a sus áreas transfronterizas, se convertían en mis referencias preferentes
de trabajo, con todas sus virtudes y valores naturales y humanos, con todos sus
problemas de cohesión y de relación, con todas sus potencialidades y recursos
estratégicos para afrontar el futuro con optimismo y dignidad.
Afortunadamente en el CEI se ha logrado crear verdaderos equipos de traba-
jo a partir de una dedicación intensa de su Comisión Ejecutiva, y el apoyo funda-
mental de las Universidades de Salamanca, de Coimbra y el Instituto Politécnico
de Guarda, y sobre todo de la Cámara de Guarda y las responsables administra-
tivas del Centro, Alexandra, Ana y Sofia. Dentro de la Comisión Ejecutiva he de
subrayar la función tan decisiva del profesor Rui Jacinto a lo largo de todos estos
años, con el que he compartido proyectos, tareas y debates siempre creativos y
positivos.
Nos acompañan profesores que han participado con gran responsabilidad
institucional y cívica en la Comisión Ejecutiva, siempre en favor de los intereses
públicos y comunes, que merecen nuestro agradecimiento y reconocimiento por
su labor desinteresada y ponderada. Citaré a los profesores Antonio José Dias
de Almeida y José Manuel Mota da Romana, que además tradujeron al portugués
con gran respeto y excelente escritura mi ensayo sobre Iberismo y Cooperación.
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Pasado y futuro de la Península Ibérica (Primer nº de la Colección Iberografías


del CEI, Campo das Letras, 2004).
Esta aventura del CEI sería incompleta de no haber contado con un buen
número de alumnos, muchos de ellos excelentes profesionales en los territorios
transfronterizos, que, año tras año, asisten con entusiasmo a nuestros Cursos de
Verano y a cuántas acciones de formación o de estudio se programan desde el
CEI. Su participación y su compañía tan afectiva en este acto nos llena de alegría
y agradecimientos.
Ahora bien, el CEI goza de buena salud porque las instituciones que lo am-
paran y lo sustentan tienen confianza y fe en la función estratégica y cívica de su
presencia y de su necesidad como bisagra de intercambio y encuentro. Sus ob-
jetivos en torno a la cultura, al conocimiento y la cooperación han sido asumidos
con suma certidumbre y determinación por todos los presidentes de la Cámara
Municipal de Guarda que he tenido la suerte de conocer y tratar, comenzado con
la energía vital y sentido cívico de M.ª do Carmo Borges, y siguiendo por Álvaro
Guerreiro, Joaquim Valente, Álvaro Amaro, Carlos Chaves Monteiro y en la actua-
lidad Sérgio Costa, o por quiénes estuvieron más directamente al frente del CEI
como los “vereadores” Virgílio Bento, Víctor Amaral, o ahora Amélia Fernandes.
Y en mi trayectoria relacionada directamente con el CEI y con las relaciones
transfronterizas he gozado una y otra vez de la confianza de todos rectores de
la Universidad de Salamanca para que el proyecto se consolidara desde finales
del siglo pasado hasta hoy; de los profesores Ignacio Berdugo Gómez de la
Torre, Enrique Battaner Arias, José Ramón Alonso, Daniel Hernández Ruipérez
y Ricardo Rivero Ortega, que ha pronunciado palabras muy elogiosas del CEI y
de este premiado; deseo subrayar que están aquí, con nosotros, funcionarios y
profesores de la Universidad de Salamanca, que desde sus responsabilidades
institucionales, académicas o administrativas apoyaron con fuerza y vigor las ta-
reas del CEI y la consecución de fondos europeos para su desarrollo y sostén; me
refiero a los gerentes en su día de la Universidad de Salamanca, Antonio Alonso
y Antonio Arias; al Subdirector Nacional de Archivos y Bibliotecas, Severiano Her-
nández, y anteriormente Archivero de la Universidad de Salamanca; y me refiero
a la que fue Vicerrectora de Investigación y de Relaciones Internacionales, M.ª
Ángeles Serrano, una profesora sensible y seriamente comprometida con todas
sus tareas y con el futuro de este centro.
Quisiera subrayar, asimismo, en esta mirada institucional, el apoyo tan de-
cisivo de la Uuniversidad de Coimbra, desde la andadura inicial de este viaje
común y compartido en defensa de los territorios transfronterizos. Debo recordar
al amigo y Rector Fernando Rebelo, a Fernando Seabra, a João Gabriel Silva y
al actual Amílcar Falcão, señalando la relación tan participativa que han tenido
con el CEI los vicerrectores Avelãs Nunes, Cristina Robalo Cordeiro, y quién nos
acompaña Delfim Leão.
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Del mismo modo, considero que la presencia del Instituto Politécnico de


Guarda en el CEI incorpora una dosis fundamental al abordar los problemas de
formación superior desde la proximidad. Recuerdo a los tres presidentes con los
que he convivido a la largo de estos años: Jorge Mendes (2001-2010), Constan-
tino Rei (2010-2018), Joaquim Brigas (2018 hasta la presente data), al igual que
la presencia activa al lado del CEI de los vicepresidentes Gonçalo Poeta y quien
nos acompaña en la mesa, Manuel Salgado.

Desde sus inicios el CEI se ha venido apoyando en principios iberistas y tran-


siberistas, heredados de la mejor tradición intelectual portuguesa y española.
No es el momento para una exégesis detallada de todas las cuestiones posibles
relacionadas con estos principios, pero tres grandes maestros portugueses ya
señalados nos han dejado elocuentes y sabios mensajes en sus obras y en sus
actitudes vitales. Me refiero a Eduardo Lourenço, José Saramago, y Miguel Tor-
ga. No quisiera olvidarme de Fernando Pessoa, del que Eduardo Lourenço escri-
bió con esa capacidad de relación y sabiduría tan transversal y singular que tan
amenamente practicaba. El pasado año, Pilar del Río, nos recordó con palabras
muy cercanas, en este mismo lugar, las relaciones tan amigables de José Sara-
mago y Eduardo Lourenço.
Al rememorar y evocar al profesor Eduardo Lourenço y sus reflexiones ibe-
ristas y transiberistas, estamos hablando de dos contextos geográficos y “oikou-
menes” tan vitales para portugueses y españoles como son Europa y nosotros,
y el hogar ibérico, marcos comunes de nuestro devenir en el tiempo y en el
espacio. De ambas referencias nos dejó testimonios explícitos en sus ensayos
o en sus intervenciones orales, remarcando en todo momento la dimensión cul-
tural de nuestros lazos comunes y de los problemas colectivos compartidos. En
los artículos y mensajes que releo se entrevera de manera diagonal la idea de la
casa común ibérica y europea o, en otros términos, la causa común ibérica y eu-
ropea, envuelta y comprometida con las premisas y principios de una construc-
ción democrática conjunta y solidaria. De algún modo, los vínculos más sólidos
arrancan de tiempos recientes y hasta épicos, con las emigraciones y exilios de
españoles y portugueses a Europa, en un viraje histórico que intentará una vez
más salir con la emigración o el exilio de aquellos mundos ibéricos de pobrezas
y de dictaduras. Tras los éxodos, para algunos verdaderas diásporas, vendrán las
revoluciones y transiciones democráticas (24 de Abril de 1974; Constitución de
la República de Portugal, 1976; Constitución del Reino de España, 1978), y luego
el ingreso conjunto de Portugal y de España en Europa(1986), acompañado de
sucesivos procesos de acercamiento, cooperación e integración a partir de ac-
ciones y proyectos amparados desde la actual Unión Europea, que en nuestro
entorno próximo y urbano de Guarda nos muestra su propia imagen y expresión
en la creación del Teatro Municipal de Guarda(2005), el Centro de Estudios
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Ibéricos (2000 / 2005) y la Biblioteca pública(2008) que ahora nos acoge y lleva
el nombre insigne de Eduardo Lourenço.
Al respecto, en un bello artículo de Eduardo Lourenço: “Do Portugal emigrante
ao Portugal europeu” (Paris-Vence, mayo de 1992) e incluido en el libro Um País
de Longínquas Fronteiras (2000), nos expone la peregrinación de los portugue-
ses en busca de un nuevo Eldorado en el continente europeo, particularmente en
Francia. Lo mismo podríamos decir de los españoles. Poco hemos reflexionado
sobre estos hechos migratorios que, en el pasado, desde el siglo XVI hasta la se-
gunda mitad del siglo XX, estuvieron ligados a los caminos de los descubridores
y a los países lusófonos e ibéricos y al continente americano. Es clave, pues, la
metamorfosis en las relaciones con Europa, con Francia para Portugal, y con las
propias patrias ibéricas de partida, incapaces entonces de mantener y retener a
sus hijos, acentuándose estos cambios con la adhesión oportuna de Portugal y
de España a la “grande Europa”. Y así, además de la adhesión formal, será sobre
todo la mudanza de los emigrantes la que nos integró en Europa: “foi o novo
portugués-europeu que, sem o querer, pelo simples facto de estar lá, no coração
da Europa, nos instalou verdadeiramente nela”, escribe Eduardo Lourenço. Con
la emigración portuguesa y española a Europa se cumplieron muchos sueños, sin
duda, y las mixturas culturales han creado nuevas formas de convivencia y tole-
rancia. Y a pesar de las asimetrías culturales existentes, cada vez más débiles,
dos figuras literarias tan representativas como Camões y Cervantes, se manifies-
tan desde Europa y la Península Ibérica con sentido universal y dan vida a dos
instituciones llenas de mensajes iberistas y lusófonos: el Instituto Cervantes y el
Instituto Camões.
Con un mensaje universal y a la vez con una percepción asentada en la pro-
ximidades vitales y culturales, Eduardo Lourenço nos invita y nos reta a repensar
nuestro futuro en Europa, en la península Ibérica y en los lugares en que vivi-
mos. El pensador regresa al espíritu del lugar, allí donde descubrió el mundo
desde una humilde aldea rayana; valora con perspectivas de futuro la posición
estratégica de Guarda y su función de encrucijada o bisagra urbana y cultural;
y afirma con visión integradora que todos nosotros somos ibéricos, reafirmando
así los fundamentos matriciales peninsulares, y abogando por los diálogos trans-
versales entre pueblos hermanados por la cultura y las raíces comunes; además,
enmarca sus miradas e ideas, más allá de las fronteras, en el contexto europeo
de la nueva Europa, tomando conciencia de nuestro significado peninsular y de
nuestras relaciones complejas con Europa; precisamente, por ello, y por nues-
tra relación histórica con otros continentes y territorios lejanos, colonizados y
conquistados durante quinientos años, debemos plantearnos una relectura de
nuestros sueños narcisistas e imperiales, estableciendo diálogos de manera na-
tural y abierta con los países de lengua portuguesa o española, e intercambiando
ideas y conocimientos en lugares de encuentro y de debate como el Centro de
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
375
2022

Estudios Ibéricos. Entonces, el transiberismo cobra todo su significado y trans-


cendencia política, social, geográfica y cultural. (*)
Con análogas ideas se manifiesta el pensamiento de José Saramago, cuyo
centenario celebramos el pasado año 2022 (1922-2010). Quizás sus mensajes
cobran más fuerza política y territorial, pues sus afirmaciones y propuestas ibe-
ristas adquieren un valor cultural, cívico y geográfico enriquecedor, al apoyarse y
entrelazarse en las herencias y diferencias históricas peninsulares, construidas
bajo principios de diversidad y complementariedad(“el mosaico ibérico”, escribe
en los Cuadernos de Lanzarote); y desde este marco de pluralidad, el diálogo con
las culturas africanas lusófonas o las iberoamericanas alcanza un significado par-
ticularmente rico, humanista, solidario y coherente, convirtiendo a la península
Ibérica y al transiberismo (Trans-ibericidade) de Saramago en una de las claves
territoriales y culturales del Sur de Europa en sus encuentros y relaciones con
África, América y el mundo actual.
El gran sueño y metáfora del transiberismo de Saramago alcanza una audaz
propuesta narrativa en su libro La balsa de piedra (A jangada da pedra, 1986),
una fábula llena de ironías, escepticismos y guiños inteligentes de crítica his-
tórica y geográfica, que, a partir de una gigantesca grieta en Los Pirineos y su
ruptura con Europa, la península se transformada en una gran isla flotante en
busca del Sur y camino de los pueblos al otro lado del Atlántico. Las inserciones
de historias paralelas como el desgarre del Peñón de Gibraltar, convertido en una
minúscula isla y perdiendo su valor estratégico, o la referencia al dolor histórico
por la pérdida de Olivenza por parte de los portugueses, van llenado la narración
de una gran complejidad y de múltiples mensajes de dimensión iberista. Tam-
bién expresa un homenaje a los pequeños lugares, construidos con esfuerzos
colectivos ímprobos y cargados de memoria histórica y patrimonial desde época
prehistórica. En la edición de 2011 de la Balsa de piedra (Alfaguara) y traducida
por Basilio Losada (1930-2022, Premio Eduardo Lourenço, 2018), se incorpora
como epílogo una narración y pequeño viaje complementario, con los mismos
protagonistas de la novela, al nacimiento de los ríos Guadalquivir y Castril, que
da nombre al lugar de nacimiento de Pilar del Río; en este texto,” De Orce a
Castril por el camino más largo”, traducción de Pilar del Río, se aprecia una con-
sideración y valoración de los pueblos y paisajes recorridos, con un respeto y
admiración por el recurso más vital: “el agua que fluye de la mineral profundidad
de las montañas como una dádiva, sin pedir nada a cambio, excepto que la amen
y la protejan”.

En la obra de Miguel Torga también asistimos a una mirada profunda sobre la


península y sus paisajes: “Olho estos montes circundantes… Os horizontes que
deles contemplei è que me balizaram a alma… Nascemos en un sitio. E ficamos
pela vida a ver o mundo do fragão que nos serviu de mirante” (Diario, 1941).
376 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Por ello, el iberismo que propugna M. Torga, al igual que M. de Unamuno, se


nutre de la intrahistoria arraigada en el paisaje y en la cultura de las gentes más
humildes, en las que la libertad y la soledad se unen con fidelidad y con solida-
ridad a la memoria de la tierra originaria, sin merma alguna por la defensa de
valores vitales y universales, comunes a todos los hombres.
Desde una concepción más antropológica, Miguel Torga descubre en Iberia
un alma común para sus gentes, distinguiendo en su propia persona un alma cí-
vica o portuguesa (que termina en la frontera de Barca d’Alba) y un alma telúrica
e ibérica (que sólo termina en las Montañas de Los Pirineos). Y refuerza su pro-
pia identidad de “portugués hispánico” con estas bellas palabras de su Diario:
“Há no meu peito angustias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade
vasca, dos perfumes do Levante da luz andaluza. Sou, pela graça divina da vida,
peninsular”. No se alejan de esta concepción común algunos escritores actuales
que defienden la permuta y cooperación cultural en el contexto plural de la “ibe-
ricidad” o de la “hispanidade”.
En este contexto, llamo en particular la atención sobre la contribución del
ensayista y humanista E. Lourenço que nos señala: cuando “olhamos o mapa
da Europa e verificamos o que é essa Península, o que nos fascina, o que nos
impresiona, é a sua totalidade, a sua imagem perfeita que se podia imaginar que
fosse realmente uma ilha”, e insiste en la necesidad de recuperar con fuerza y
solidaridad un proyecto común para toda la Península Ibérica en el nuevo con-
texto de integración europea, que Miguel Torga contemplaba al final de su vida
con incertidumbre e ironía.
Un apunte final. Tras la pandemia hemos vivido y sentido el valor de lo próxi-
mo como solidaridad y seguridad; hemos descubierto y reafirmado el significa-
do de la proximidad como ayuda y servicio profundamente humano, sanitario,
asistencial, educativo, o económico, frente a las voracidades y desigualdades
metropolitanas como las vividas estos años en Madrid.
Bien sabemos que las áreas metropolitanas de la península Ibérica, y de todo
el mundo, se nutren de los bienes y recursos procedentes de sus entornos geo-
gráficos y se abastecen para su vida cotidiana de lugares cada vez más lejanos,
lo que supone consumos de energías físicas y humanas en absoluto sostenibles.
Se habla así, en términos académicos y funcionales, nada críticos, de áreas de
influencia, de economías de escala y de aglomeración, y de efectos multiplica-
dores de la riqueza y, por supuesto, … de las especulaciones de todo tipo. Con
lenguaje algo más sofisticado se habla de hinterlands urbanos y metropolita-
nos. La pandemia ha puesto de manifiesto la fragilidad y vulnerabilidad de es-
tos territorios para afrontar con sentido equitativo las necesidades tan vitales
provocadas por la crisis, y al mismo tiempo el valor tan extraordinario de los
recursos estratégicos como el agua, los bienes agroalimentarios y los bosques
antes las crisis sucesivas y ante el cambio y emergencia climática. Las redes de
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
377
2022

ayuda mutua y de solidaridad fueron capaces de romper con las dinámicas de la


desigualdad provocadas por la crisis y por políticas neoliberales brutales, aleja-
das de los servicios más necesarios y humanos de proximidad. Y ahora, junto a
las necesidades de resiliencias múltiples, de sostenibilidades nada retóricas, de
economías circulares ejemplares, de restauración de la naturaleza y de paisajes
representativos, se vuelve hablar en muchas ciudades, afortunadamente, de co-
mercios y servicios de proximidad.

Asimismo, la guerra en un Ucrania, con la agresión rusa, ha puesto de mani-


fiesto y revalorizado todos estos recursos que se localizan precisamente aquí, en
nuestras montañas y territorios olvidados. Lo verde y los recursos naturales: las
aguas, el sol y el viento, los recursos renovables y vitales se convierten en gran
negocio llovido del cielo, y las grandes corporaciones se adornan con verdes
artificiales y sus ejecutivos se visten cínicamente con corbatas de seda verde, y
se bautizan con nombres ecológicos: Green Power, Naturgy, por ejemplo, para
adueñarse de nuestros recursos naturales y de los territorios despoblados como
este, en que nos encontramos.
Estas circunstancias, más las tareas asumidas a lo largo de veintidós años
con verdadero compromiso público y territorial, convierten al Centro de Estudios
Ibéricos en más necesario que nunca, pues nos hallamos justamente al pie de
las aguas nacientes de la Sierra de la Estrella que debemos cuidar y proteger.
Ya hace muchos siglos, los clásicos nos decían que en las montañas están las
fuentes de la vida.
Y en las montañas, nos recordaba nuestro gran maestro ilustrado Alejandro
von Humboldt, está la libertad (“Auf den Bergen ist Freiheit”).
Con mi agradecimiento profundo por este galardón, muchas gracias, muito
obrigado.

Postfacio
Unos meses después de la lectura de este discurso, con motivo del Centenario de
Eduardo Lourenço (1923-2023), se publican sus ensayos, artículos o intervenciones orales
desde la creación del Centro de Estudios Ibéricos, principalmente; el libro coordinado por
Rui Jacinto lleva por título: Vida Partilhada. Todos nós ibéricos. Eduardo Lourenço, Ibero-
grafias, 44, CEI, Guarda, mayo de 2023, y se apoya en una publicación anterior, realizada
con motivo de la celebración de sus noventa años: Vida Partilhada. Eduardo Lourenço e
a coopreação cultural (CEI, 2013). La presente edición incorpora nuevos ensayos y escri-
tos (9) que amplían y refuerzan sus propuestas iberistas y de diálogo peninsular, europeo
y transibérico, tal como queda reflejado en el subtítulo: “Todos nós ibéricos”.
centenário
do nascimento
de eduardo
lourenço
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE
EDUARDO LOURENÇO (1923-2023)

A preparação do programa do
Centenário do Nascimento de
Eduardo Lourenço tem o envol-
vimento direto de instituições
com quem o ensaísta estabele-
ceu uma relação mais estreita
e que esboçam um possível Ro-
teiro Eduardo Lourenço. Importa
lembrar que, simbolicamente,
Eduardo Lourenço doou a sua
Biblioteca pessoal à Biblioteca
Municipal Eduardo Lourenço
(Guarda), à Biblioteca da Facul-
dade de Letras e à Biblioteca
Geral da Universidade de Coim-
bra, à Casa da Escrita (Câmara
de Coimbra), encontrando-se os seus manuscritos depositados na Biblioteca Na-
cional. Ainda em vida legou ao Centro de Estudos Ibéricos parte significativa do seu
espólio (prémios, condecorações, medalhas, etc.), material que foi parcialmente
usado para criar o Memorial Eduardo Lourenço, instalado na sede do CEI, inaugu-
rado no primeiro aniversário da sua morte.
São parceiros nas comemorações as câmaras municipais de Guarda, Almei-
da e Coimbra, as universidades de Coimbra e Salamanca (Espanha), o Instituto
Politécnico da Guarda, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biblioteca Nacional,
o Instituto Camões, o Centro Nacional de Cultura, a Direção Geral do Livro, dos
Arquivos e das Bibliotecas, a Rede de Bibliotecas Escolares, a Rede Intermunicipal
de Bibliotecas das Beiras e Serra da Estrela, a Direção Regional da Cultura do
Centro, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, o
Turismo Centro de Portugal, o Turismo de Portugal, a Fundação José Saramago
e a Casa Fernando Pessoa.
O grupo que coordena as Comemorações no CEI, constituído por António Pedro
Pita e Rui Jacinto (Universidade de Coimbra), Roberto Vecchi e Margarida Calafate
Ribeiro (Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha), tem vindo a alargar
os contactos com diversas entidades, onde se incluem várias universidades, que já
382 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

manifestaram interesse em se associar às Comemorações do Centenário do Nasci-


mento de Eduardo Lourenço.
O programa das comemorações, que se iniciou na Guarda e em São Pedro do
Rio Seco, no dia 23 de maio, data de aniversário do ensaísta, tem por base quatro
eixos:
1. Aprofundar o conhecimento da obra
Apesar de ter suscitado enorme interesse de investigadores de vários países,
o conhecimento do itinerário e da obra de Eduardo Lourenço não está esgotado.
Compreende-se, pois, que o ano de Centenário seja assinalado por várias iniciati-
vas científicas, de dimensão e alcance variáveis, confluindo para esse aprofunda-
mento.

2. Ampliar o universo de leitores


As obras de Eduardo Lourenço estão disponíveis. É necessário, no entanto,
ampliar o universo dos seus leitores: os leitores especialistas, os leitores interes-
sados e os leitores do futuro. Os livros (com realce para a Rede de Bibliotecas Es-
colares e a Rede de Leitura Pública), as artes plásticas, a música e o cinema serão
meios privilegiados dessa atividade.

3. Expandir o legado
A par do prosseguimento da edição das obras, prevê-se expandir o legado de
Eduardo Lourenço através de edições, exposições, concertos e ciclos de cinema.

4. Territorializar um pensamento desterritorializado


Eduardo Lourenço manteve uma intensa circulação nacional e internacional,
que constitui um sinal de generosidade e, ao mesmo tempo, a importância genuína
concedida a um “outro”. Ancorar um pensamento desterritorializado em referên-
cias territoriais visíveis delimita um território biográfico de especial incidência.

O programa das Comemorações do Centenário está em permanente atualiza-


ção em www.centenarioeduardolourenco.pt

APRESENTAÇÃO DA REDE DE PARCEIROS E DO PRÉ-PROGRAMA


DAS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUAR-
DO LOURENÇO

Teve lugar no dia 3 de março, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, a


apresentação da Rede de Parceiros e do pré-programa das Comemorações do
Centenário do Nascimento de Eduardo Lourenço. A sessão iniciou com o Colóquio
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUARDO LOURENÇO (1923-2023) 383

“Leituras de Eduardo Lourenço: Nós como futuro” e terminou com a Sessão de


Entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2022 a Valentín Cabero Diéguez.

COLÓQUIO “LEITURAS DE EDUARDO LOURENÇO: NÓS COMO


FUTURO”

Ao longo de dezoito anos, o Prémio Eduardo Lourenço distinguiu personalida-


des e instituições com atividade relevante no universo ibérico. Na diversidade dos
seus domínios científicos, há um traço comum no trabalho dos premiados: a preo-
cupação de identificar, no passado e no presente, possibilidades ainda irrealizadas,
lançar sementes, construir hipóteses em tensão para o futuro. Sob o título «Nós
Como Futuro», o CEI propôs às personalidades distinguidas com o Prémio Eduardo
Lourenço uma reflexão, a partir das suas áreas específicas, sobre essas possibili-
dades e a sua importância para as luzes e as sombras do mundo em que vivemos.
O colóquio contou com intervenções de antigos galardoados com o Prémio
Eduardo Lourenço: António Sáez Delgado (2014), Fernando Paulouro (2017), Carlos
Reis (2019) e Pilar del Río (Fundação José Saramago, 2021). A moderação esteve a
cargo de Margarida Calafate Ribeiro.
O vídeo do Colóquio está disponível para visualização no canal do CEI no You-
tube (https://www.youtube.com/watch?v=6ccfjiP_Sys&t=11s)
384 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO EDUARDO LOURENÇO, 23 E 24


DE MAIO

A 23 de maio de 1923, nascia Eduardo Lou-


renço na freguesia de São Pedro do Rio
Seco. Em 2023, celebram-se os 100 anos
de uma vida e carreira extraordinárias, de-
dicadas ao pensamento e reflexão sobre a
cultura, literatura e identidade portugue-
sas.
As iniciativas arrancaram no dia 23 de maio
de manhã, na aldeia natal do ensaísta, S.
Pedro do Rio Seco (Almeida), com a inaugu-
ração de um memorial. A iniciativa contou
ainda com um percurso literário musicado
com a participação de alunos de Almeida, de César Prata e Rui Spranger. As ati-
vidades prosseguiram na Guarda, com um intenso programa onde se destacou a
Sessão Solene de Abertura das Comemorações, o Congresso "Leituras de Eduardo
Lourenço", a inauguração da escultura "Eduardo Lourenço" do artista guardense
Pedro Figueiredo e o Concerto "In Memoriam", da Orquestra Filarmónica Portugue-
sa (com direção artística de Maestro Osvaldo Ferreira e leitura de textos de Eduar-
do Lourenço pelo ator José Neves). Exposições e lançamentos de livros completam
uma programação dedicada à revisitação da obra e pensamento do mentor do CEI
e patrono da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço.
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUARDO LOURENÇO (1923-2023) 385

CONGRESSO LEITURAS DE EDUARDO LOURENÇO

O Congresso “Leituras de Eduardo Lourenço” pretendeu fazer uma revisitação


temática do percurso teórico de Eduardo Lourenço. Estruturado em três tópicos
relevantes ― “O Esplendor do Caos”; “Sobre o Espírito da Heterodoxia” e “Tempo
Português e Outros Tempos” ―, contou com personalidades destacadas do univer-
so lusófono, que procuraram uma interpretação original e criativa.
O primeiro painel “O Esplendor do Caos” teve início no dia 23 de maio, pelas
16h00, com moderação de Inês Cordeiro (Biblioteca Nacional) e intervenções de:
Roberto Vecchi (Cátedra Eduardo Lourenço/Università di Bologna); Maria Manuel
Baptista e Fernanda Castro (Universidade de Aveiro); José Carlos Vasconcelos
(Jornal de Letras, Artes e Ideias); João Dionísio (Universidade de Lisboa).
No dia 24 de maio, terça-feira, durante a manhã, decorreu o painel “Sobre
o Espírito da Heterodoxia” com intervenções de João Tiago Pedroso Lima (Uni-
versidade de Évora); Celeste Natário (Universidade do Porto); Manuela Cruzeiro
(Universidade de Coimbra), tendo a moderação estado a cargo de Manuel Salgado
(Instituto Politécnico da Guarda).
Pelas 15h00 iniciou-se o painel “Tempo Português e Outros tempos”, com inter-
venções de Margarida Calafate Ribeiro (Cátedra Eduardo Lourenço/CES-Universi-
dade de Coimbra); Graça dos Santos (Université Paris Nanterre); Nazir Ahmed Can
(Universitat Autònoma de Barcelona) e Vincenzo Russo (Università di Milano). Este
painel e as conclusões do Congresso estiveram a cargo de Delfim Leão (Universi-
dade de Coimbra) e Antonio Notario Ruiz (Universidade de Salamanca).
Os vídeos dos 3 painéis do congresso estão disponíveis para visualização no
canal do CEI no Youtube: https://www.youtube.com/@ceicentrodeestudosiberi-
cos3039/streams
386 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

INAUGURAÇÃO DA ESCULTURA DE HOMENAGEM A EDUARDO


LOURENÇO, DE PEDRO FIGUEIREDO NO JARDIM JOSÉ DE LEMOS

“Eduardo Lourenço foi uma das personalidades a quem o pensamento português


mais deve. O seu legado foi fundamental para o entendimento coletivo do que é a
Portugalidade. Nesta escultura de homenagem, os livros dissolvem-se com o ho-
mem, simbolizando a fusão entre a obra e a identidade, numa simbiose entre o
pensamento e a escrita. A mão direita pousada sobre os livros desarrumados no
seu escritório fala-nos da vitória da razão sobre o caos.”
Pedro Figueiredo, Maio de 2023

EXPOSIÇÃO “CONTRARIADO, MAS VOU” – EDUARDO LOURENÇO


POR ALFREDO CUNHA

“Conheci Eduardo Lourenço há mais de qua-


renta anos. Fiz-lhe dezenas de retratos nas
mais diversas situações, mas faltava sempre
alguma coisa. No dia 20 de fevereiro de 2014
tinha acabado de fotografar o Prof. Eduardo
Lourenço e o Prof. Adriano Moreira que, esse
ano, participavam nas Correntes d'Escritas na
Póvoa de Varzim, quando, mais uma vez, pedi
ao Prof. Eduardo Lourenço para fazermos uma
sessão de retratos. Ele disse prontamente que
não estava para me aturar... porque o deixava
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUARDO LOURENÇO (1923-2023) 387

sempre parecido com o Salazar! De repente, surge no estúdio a escritora Lídia Jorge, que
diz: "O Professor está tão elegante! Vamos fazer umas fotografias juntos." Foram feitas as
fotos e, quase a terminar, voltei a insistir... Ele olhou para mim e disse: "Você é um chato...
mas está bem. Contrariado, mas vou!" O resultado dos cinco minutos de sessão fotográfica
está aqui.”
Alfredo Cunha

CONCERTO “IN MEMORIAM” DE EDUARDO LOURENÇO, PELA


ORQUESTRA ACADÉMICA FILARMÓNICA PORTUGUESA

Concerto pela Orquestra Académica Filarmónica Portuguesa dirigida pelo


Maestro Osvaldo Ferreira com apresentação de uma obra original da composito-
ra Camila Salomé Menino e interpretação de obras selecionadas por Eduardo
Lourenço para o vinil “Playlist”. Complementarmente, o ator guardense José
Neves leu excertos de obras de Eduardo Lourenço e o pianista da Guarda, Pedro
Nunes, interpretou uma peça a solo.

EXPOSIÇÃO “«FEITO DE PAPEL COM UM CORAÇÃO NO FUNDO»:


SOBREVOANDO A «MALA» DE EDUARDO LOURENÇO – MOSTRA DE
LIVROS DA BIBLIOTECA DE EDUARDO LOURENÇO”

A exposição mergulha no vasto acervo de


livros doados pelo filósofo e ensaísta, da
sua biblioteca pessoal, aquando da inau-
guração da Biblioteca Municipal Eduardo
Lourenço (BMEL), no dia 27 de novembro
de 2008, Dia da Cidade da Guarda. Com
mais de 100 títulos que se dividem em dois
momentos, esta exposição lança luz sobre
dois olhares na biblioteca lourenciana: um
olhar exógeno que incide nas inúmeras
388 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

dedicatórias, entre ternas e desafiantes, presentes nos livros que recebeu ao


longo da sua vida de diversas personalidades e intelectualidades prestigiantes
e instigantes que marcaram a sociedade portuguesa nos séculos XX e XXI, entre
eles, poetas, romancistas, políticos, académicos e a sua própria família; e um
olhar endógeno que se reflete a partir das anotações e comentários filosóficos,
poéticos e, por vezes, irónicos de Eduardo Lourenço nas profusas páginas dos
livros que leu e com os quais dialogou (Curadoria de Maria Manuel Baptista, Fer-
nanda de Castro e Beatriz Stutz ― Universidade de Aveiro/CLLC).

LANÇAMENTO DE LIVROS

“FOTOBIOGRAFIA DE EDUARDO LOURENÇO” DE MARIA MANUEL


BAPTISTA, MANUELA CRUZEIRO E FERNANDA DE CASTRO

No ano em que se assinala o centenário de Eduardo Lourenço, esta obra re-


visita o perfil de um nome maior da cultura portuguesa contemporânea, uma voz
que atravessou fronteiras físicas, estéticas, conceptuais e literárias, e cujo eco
se perpetuou – e perpetua – por Tempos e realidades distintas. Ensaísta, pro-
fessor, filósofo, conselheiro de Estado, Eduardo Lourenço encerra em si mesmo,
e numa obra complexa, vasta e dispersa, um «pensamento que, no seu aparen-
te deambular, voando nas asas do tempo, ou mergulhando fundo na imensidão
de um saber a perder de vista, nos coloca frente a frente com o assombro das
perguntas essenciais e a insatisfação das sempre provisórias respostas», como
destacam Maria Manuel Baptista e Maria Manuela Cruzeiro na nota introdutória
a esta edição. Da infância às primeiras obras publicadas, da vida em França à
consagração inequívoca em Portugal e além-fronteiras, somos convidados a en-
trar neste «labirinto» de conhecimento e afetos, cujo fio do tempo se desenrola
numa simbiose perfeita entre as palavras do protagonista e as fotografias que
desenham a sua história.
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUARDO LOURENÇO (1923-2023) 389

EDUARDO LOURENÇO ― UMA GEOPOLÍTICA DO PENSAMENTO,


DE MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO E ROBERTO VECCHI

"A escrita de Eduardo Lourenço, a sua arte do pensamento, exige uma capa-
cidade de leitura não primária ou estereotipada, reivindica uma epistemologia
adequada. Não interessa de onde vem, mas tem de ser rigorosa. O paradoxo (ou
a dificuldade) é que a heterodoxia enquanto texto, mesmo que indisciplinada,
impõe uma disciplina de leitura sofisticada.
Com este pequeno contributo para a construção de uma “geopolítica do pen-
samento” de Eduardo Lourenço, queremos mostrar que a herança do ensaísta é
essa: ler a obra com o cuidado, com a inteligência, com o entendimento do jogo
subtil de deslocação dos sentidos, lê-la e, a partir dela, pensar." (Da Herança ―
introdução do livro).

“VIDA PARTILHADA: TODOS NÓS IBÉRICOS”, DE EDUARDO


LOURENÇO

Reedição (revista e aumentada) do livro “Vida Partilhada. Eduardo Lourenço,


o CEI e a cooperação cultural” (2013) que conta, para além dos 30 textos então
editados, com mais nove ensaios entretanto dados à estampa. Com organização
e nota explicativa de Rui Jacinto, esta edição pretende assegurar uma leitura
mais fluida e compreensiva do conjunto da obra e justifica-se por vincar uma
justa e merecida homenagem. Este significado é redobrado por acontecer numa
data evocativa – o Centenário de Eduardo Lourenço – e pelo subtítulo agora atri-
buído: “Todos nós Ibéricos”. A frase, que encabeça um brevíssimo ensaio escrito
num momento fundador do CEI (2001), transmite, com assertividade cristalina, a
visão dos seu Patrono, Mentor e Diretor Honorífico, mas, também, o espírito que
deve animar o Centro de Estudos Ibéricos e o rumo que importa prosseguir: a sua
afirmação como um espaço aberto e de diálogo onde o conhecimento e a cultura
estimulem a cooperação ativa entre povos irmanados pelas línguas ibéricas.

COLÓQUIO INTERNACIONAL "EDUARDO LOURENÇO: UM TEMPO


BRASILEIRO BREVE, MAS DURADOURO"

Integrado no programa de Comemorações do Centenário do Nascimento


de Eduardo Lourenço o Colóquio abordou as várias facetas e dimensões do
impacto do Brasil no pensamento do intelectual, escritor, crítico e emigrante
Eduardo Lourenço, recorrendo para esse efeito a especialistas ou em estudos
brasileiros ou na obra do autor. A congregação destes investigadores, oriundos
390 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

de diferentes espaços académicos (Portugal, Brasil, Espanha e Itália), vai ao en-


contro à missão no Centro de Estudos Ibéricos como centro de transferência e
fomento do conhecimento mútuo das culturas e sociedades do âmbito ibérico e
ibero-americano.

O programa foi o seguinte:


15 junho
• "Europa, França, Bahia: regionalismo e provincianismo em Eduardo Louren-
ço" – Luís Bueno, Universidade Federal do Paraná, Brasil
• "O Barroco no da linguagem" – Pedro Serra, Universidade de Salamanca,
Espanha
• "A «rasura do trágico» como operação infinita" – Eduardo Sterzi, Universida-
de Estadual de Campinas, Brasil
• "O inumano em Clarice, segundo E.L." – Annita Costa Malufe, Universidade
de Salamanca, Espanha
• "O «fulgor bárbaro» de Deus e o Diabo na terra do Sol e do Brasil: Glauber
Rocha segundo Eduardo Lourenço" – Osvaldo Manuel Silvestre, Universidade
de Coimbra, Portugal

16 junho
• "Luso, iluso, desilusão: o fio de Eduardo Lourenço no «Labirinto do Ressen-
timento» luso-brasileiro" – Talles Faria, Universidade de Coimbra, Portugal
• "Eduardo Lourenço, a casa perdida e o Brasil: uma outra semântica do tem-
po histórico" – Roberto Vecchi, Cátedra Eduardo Lourenço/Universidade de
Bolonha, Itália

Organizado pelo Centro de Estudos Ibéricos em colaboração com o Centro de


Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca e o Colaboratório Europeu de
Estudos Brasileiros, o Colóquio teve a direção de Osvaldo Silvestre (Universidade
de Coimbra) e a coordenação de Pedro Serra (Universidade de Salamanca).
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUARDO LOURENÇO (1923-2023) 391

MESA-REDONDA “ALGUMAS LEITURAS DA EUROPA EM EDUARDO


LOURENÇO”

Realizou-se no dia 19 de junho, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, a


Mesa-Redonda “Algumas leituras da Europa em Eduardo Lourenço”, numa organi-
zação conjunta do CEI, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Univer-
sidade do Porto) e Associação Portuguesa de Estudos Franceses. As intervenções
estiveram a cargo de Ana Paula Coutinho e Jorge Costa Lopes (ILCML/Univ.Porto) e
Dulce Martinho (Professora do Ensino Secundário).

Segundo o autor de O Labirinto da Saudade, um europeu é, “no essencial, o


herdeiro de uma educação milenária de que, sabendo-o ou não, recebeu um certo
tipo de mitos, de conhecimentos, de histórias e, com isso, alguma inspiração para
tentar preservar no seu ser ou adequá-lo às novas metamorfoses do mundo. Em
suma, um produto da chamada cultura europeia” (2009). Podemos afirmar, entre-
tanto, que existe, na escrita lourenciana, uma paixão pela Europa, o mesmo é dizer,
uma “paixão de compreender” a Europa, mesmo que manifeste, por vezes, um cer-
to “desencanto” pela deriva europeia, nomeadamente após a queda do muro de
Berlim (1989). De qualquer modo, na obra e no pensamento deste “europeu con-
victo” e “cruzado” da Europa, como também se autointitula, a Europa surge, desde
logo, no livro de estreia, Heterodoxia I (1949), mais concretamente no seu primeiro
capítulo, “Europa ou o diálogo que nos falta”. Mais tarde, em Nós e a Europa ou
as Duas Razões (1988), o relacionamento e, inevitavelmente, o diálogo cultural
do nosso país com a Europa e da Europa com Portugal, atravessam praticamente
todos os seus ensaios. Isto sem esquecer a importância do nosso diálogo com
a vizinha Espanha e da Ibéria com os países transpirenaicos. Num outro título, A
Europa Desencantada – Para uma Mitologia Europeia (1994), com alguns ensaios
publicados inicialmente em L’ Europe introuvable – Jalons pour une Mythologie
392 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

européenne (1991), o pensamento de Eduardo Lourenço concentra-se, sobretudo,


no impacto que o desmoronamento do império soviético provocou na Europa co-
munitária, bem como na frágil posição europeia face às Guerras do Golfo e do
Kosovo, e ao seu único vencedor, os Estados Unidos da América. Apesar do de-
sencanto com o bloqueio e a consequente incerteza do projeto europeu, Eduardo
Lourenço assume, contudo, a utopia europeia e o “desejo de uma Europa que não
seja apenas uma bem-sucedida coleção de egoísmos nacionais” (2001). O lugar e
a imagem da França na Europa e no novo mapa mundial, cultural e geopolítico, são
também objeto de reflexão neste último volume.

EXPOSIÇÃO “EDUARDO LOURENÇO: VIDA E OBRA DE UM HETERO-


DOXO”

Foi inaugurada no dia 29 de setembro, em Salamanca, a Exposição “Eduardo


Lourenço: Vida e obra de um heterodoxo”, mostra que conjuga a exposição biobi-
bliográfica “Tempos de Eduardo Lourenço”, do Instituto Camões, com uma mostra
de livros do Fundo doado pelo Ensaísta à Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço
(Guarda).
A exposição biobibliográfica “Tempos de Eduardo Lourenço” parte da Fotobio-
grafia da autoria de Maria Manuela Baptista, Maria Manuela Cruzeiro e Fernanda
de Castro, revisitando o perfil do ensaísta, professor, filósofo e conselheiro de Es-
tado. Conjugando as palavras do próprio com fotografias do seu percurso de vida
delineia-se uma visão cronológica que se inicia na infância, avança pelas primeiras
obras publicadas, passa pela sua vida em França até à sua consagração em Por-
tugal e no estrangeiro. A exposição esteve patente no Colégio Fonseca até 29 de
outubro.
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE EDUARDO LOURENÇO (1923-2023) 393

“CONVERSAS SOBRE HETERODOXIAS”

No mesmo dia, teve lugar na Aula Unamuno da Universidade de Salamanca a


sessão “Conversas sobre Heterodoxias” com a participação de Domingo Hernán-
dez (Univ. de Salamanca), Antonio Notario (Univ. de Salamanca), Pedro Serra (Univ.
de Salamanca), Filipa Soares (Univ. Autónoma de Madrid) e Luís Umbelino (Univ. de
Coimbra), tendo a moderação estado a cargo de Mª Isabel Martín Jiménez (Univ.
de Salamanca).

“EDUARDO LOURENÇO: REGRESSO SEM FIM A UMA BIBLIOTECA


ANTECESSORA”

No dia 18 de outubro foi projetado, no Teatro Juan del Enzina, em Salamanca,


o documentário autobiográfico “Regresso sem Fim” protagonizado por Eduardo
Lourenço.
Pelos 88 anos, o escritor e ensaísta revisitou a aldeia de São Pedro do Rio Seco
e a cidade da Guarda, locais onde respetivamente nasceu e viveu na infância. Nes-
sa viagem às suas memórias é acompanhado pelos escritores Pedro Mexia, Gon-
çalo M. Tavares e Hélia Correia. Interlocutores escolhidos pelo próprio Eduardo
Lourenço para participar neste ´filme homenagem´ em que se regressa ao que se
deixou ― um regresso sempre desejado, mas impossível. O documentário inclui
uma incursão a Salamanca, onde Eduardo Lourenço fará a evocação de um intelec-
tual que marcou a sua geração: Miguel Unamuno. Em ´Regresso sem Fim´ revela-se
394 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

a personalidade vibrante de Eduardo Lourenço, o seu incisivo sentido crítico, a


permanente curiosidade e a capacidade de comunicar de forma clara, e com afeto.
O documentário, realizado por Anabela Saint-Maurice em 2011, é uma coprodu-
ção da RTP e do Centro de Estudos Ibéricos.
Após a projeção do documentário teve lugar uma conversa sobre “A ressonân-
cia de uma obra”, em que participaram alguns galardoados com o Prémio Eduardo
Lourenço: Antonio Sáez Delgado (Premio E.L. 2014), Ángel Marcos de Dios (Premio
E.L. 2019), Fernando Paulouro (Premio E.L. 2017) e Valentín Cabero Diéguez
(Premio E.L 2022).
CEI ACTIVIDADES
395
2023
cei
atividades
2023
CEI ACTIVIDADES
399
2023

ENSINO E FORMAÇÃO
XXIII CURSO DE VERÃO
NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

O Centro de Estudos Ibéricos, enquanto plataforma


de intercâmbio, debate e difusão de conhecimentos
sobre os territórios e as culturas ibéricas, promoveu
o XXIII Curso de Verão, subordinado ao tema gené-
rico “Novas fronteiras, outros diálogos: cooperação
e desenvolvimento”, que decorreu entre Coimbra,
Guarda e Almeida entre os dias 27 de junho e 1 de ju-
lho de 2023, preenchido com Conferências, Comu-
nicações, Painéis de Debate e Trabalhos de Campo
sobre os seguintes temas: i. Patrimónios, paisagens
e desenvolvimento local; ii. Dinâmicas socioeconó-
micas em diferentes contextos territoriais; iii. Políti-
cas públicas, cooperação e desenvolvimento.
No ano em que se comemora o Centenário do Nas-
cimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), mentor,
patrono e Diretor Honorífico do CEI, o Curso abordou o pensamento e o legado
do Ensaísta através de um “Roteiro Eduardo Lourenço”, que decorreu em Coim-
bra, Guarda, Almeida e S. Pedro do Rio Seco.
A edição deste ano contemplou mais de 60 comunicações de investigadores
e professores oriundos do Brasil, Portugal, Espanha, Cabo Verde e Itália, de di-
ferentes universidades e instituições. Assegurou-se, desta forma, o intercâmbio
científico, debate e difusão de conhecimentos sobre diferentes contextos territo-
riais ibéricos, tanto de Portugal e de Espanha como de vários Países, sobretudo
de Língua Portuguesa.
O Curso teve início em Coimbra, na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, no dia 27 de junho, prosseguindo para a Guarda, onde decorreram
as sessões de dia 29, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço. No dia 30 de
junho e 01 de julho realizaram-se os Trabalhos de Campo. Foram realizadas as
seguintes Conferências (3) e Mesas Redondas (4):
1. As Novas Geografias dos Países Ibero-americanos ― Valentín Cabero (Uni-
versidade de Salamanca) e Lúcio Cunha (Universidade de Coimbra)
400 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

2. Transição em territórios em perda demográfica ― João Ferrão (Instituto de


Ciências Sociais, Universidade de Lisboa)
3. Eduardo Lourenço: uma evocação ― João Tiago Lima (Universidade de Évora)
As 54 comunicações tiveram lugar em sessões paralelas que decorreram no
dia 29 de junho, estruturadas nos 12 Painéis Temáticos:
1. Paisagem e gestão dos recursos naturais (3 painéis)
2. Turismo (2 painéis)
3. Agricultura e desenvolvimento rural (2 painéis)
4. Cidade e dinâmicas do espaço urbano (2 painéis)
5. Sociedade e território (2 painéis)
6. Arte, cultura e leituras do território

O Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço foi assinalado com a rea-


lização de 4 roteiros temáticos em torno da vida e da obra do Diretor Honorífico
do CEI: Roteiro 1. Coimbra; Roteiro 2. Almeida; Roteiro 3. S. Pedro do Rio Seco;
Roteiro 4. Guarda.
Os Trabalhos de Campo, uma das imagens de marca do Curso de Verão, fo-
ram subordinados aos seguintes temas:
1. “Património natural, turismo literário e leituras do território” ― Roteiro:
Coimbra – Gouveia – Melo – Linhares – Meios – Guarda.
2. “Geografia, literatura e leituras do território” ― Roteiro: Guarda – Belmonte –
Póvoa da Atalaia – Castelo Novo ― Alpedrinha ― Portela da Gardunha – Guarda

Coordenado por Rui Jacinto (Universidade de Coimbra) e Mª Isabel Mar-


tín Jiménez (Universidade de Salamanca) o Curso, que com cerca de 100
CEI ACTIVIDADES
401
2023

participantes inscritos (nos formatos presencial e online), foi certificado com 3


ECTS pela Universidade de Coimbra (UC) com apoio PRR e creditado pela Univer-
sidade de Salamanca, através do Centro de Formación Permanente.
O programa completo e resumo das comunicações pode ser consultado em:
https://www.cei.pt/cms/wp-content/uploads/2023/06/CursoVerao2023Progra-
maResumos.pdf.
Os vídeos das conferências, painéis de debate e trabalhos de campo estão
disponíveis para visualização no canal do CEI no Youtube (https://www.youtube.
com/channel/UC64NvY-WrpewDNyMwprYljg/videos)
402 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

APRENDER FORA DA SALA DE AULA:


À DESCOBERTA DO MEIO

O Centro de Estudos Ibéricos e o Instituto


Politécnico da Guarda levaram a efeito o 2º
Curso de Formação “Aprender fora da sala
de aula: à descoberta do meio”.
Dirigido a Professores do 1º Ciclo e Edu-
cadores de Infância, o curso decorreu na
sede do CEI, em regime pós-laboral, nos
dias 22, 23, 29,30 de setembro e 6 e 7 de
outubro de 2023 e foi creditado pelo Con-
selho Científico Pedagógico de Formação
Contínua. Entre os conteúdos abordados
destacam-se a valorização sustentável
dos territórios através do envolvimento
da comunidade educativa, a planificação
de atividades em espaços não formais e
a aprendizagem em ambiente não formal
institucional.
A Coordenação científica esteve a cargo de Eduarda Ferreira, Florbela Lages
Rodrigues e Ana Isabel Ventura Lopes (IPG).
CEI ACTIVIDADES
403
2023

INVESTIGAÇÃO

OFICINA DE HISTÓRIA DA GUARDA


VII EDIÇÃO

Teve lugar de 17 a 21 de julho a VII edição da Ofi-


cina de História da Guarda, iniciativa que visa pro-
mover a pesquisa sobre o património e a história
da Guarda e da sua região. Dirigida por Rita Costa
Gomes, Professora de História na Universidade de
Towson (EUA), a Oficina abordou o tema de como
programar um podcast sobre História, e quais os
caminhos possíveis para o desenvolver.
Trata-se de uma iniciativa aberta a todos quantos
se interessam pela história da Guarda e da sua re-
gião. Durante este encontro anual foi construído
um esboço da programação futura deste podcast,
desenvolveu-se alguma pesquisa para episódios já
programados, discutiram-se formatos e alinhamen-
tos, e recrutaram-se novos colaboradores.
A Oficina funcionou em modalidade presencial em horário pós-laboral (18h –
20h), na sede do Centro de Estudos Ibéricos, na Guarda.
404 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

INVESTIGAÇÃO, INOVAÇÃO E TERRITÓRIO


(PRÉMIO CEI-IIT)

Estiveram abertas até 03 de fevereiro de 2023 as candi-


daturas à quinta edição do Prémio CEI-IIT Investigação,
Inovação e Território, iniciativa que visa distinguir traba-
lhos, projetos de investigação e outras iniciativas que re-
vistam uma dimensão inovadora, contribuam para divul-
gar estudos, experiências e boas práticas que concorram
para reforçar a coesão, a cooperação e a competitivida-
de dos territórios fronteiriços e de baixa densidade.
Esta iniciativa decorre do compromisso do CEI com a
cooperação e difusão do conhecimento nestes territó-
rios envolvendo investigadores, atores e instituições
de diferentes regiões e países que apostam num justo
equilíbrio entre a investigação e a ação.
Foram distinguidos os seguintes projetos:
Modalidade 1 – “Investigação: Territórios e sociedades em tempo de mudança”
• Projeto Ir Além – A Inclusão Social de NPT e o Desenvolvimento de Territórios
de Baixa Densidade – João Emílio Alves (Docente no Instituto Politécnico de
Portalegre)
Modalidade 2 – “Projetos e iniciativas inovadoras”
• Empreendedorismo feminino no turismo em territórios de baixa densidade: o
caso das Beiras e Serra da Estrela – Márcia Patrícia Barbosa da Silva (Professo-
ra Auxiliar Convidada Universidade da Beira Interior)
O apoio financeiro concedido a cada projeto foi de 1.750,00€ (mil setecentos
e cinquenta euros). O Júri destacou a diversidade, abrangência e qualidade dos
projetos submetidos a concurso.
A sessão da entrega do Prémio CEI-IIT teve lugar no dia 27 de outubro, na
BMEL (Guarda).
CEI ACTIVIDADES
405
2023

EVENTOS. EXPOSIÇÕES. NOTÍCIAS

TRANSVERSALIDADES
FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS

Estiveram abertas até 5 de maio as candidaturas à


décima segunda edição do Concurso de Fotografia
“Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras”.
Trata-se de uma iniciativa de referência do CEI que
visa documentar a diversidade de territórios, socie-
dades e culturas dos diferentes continentes, em tor-
no de quatro áreas temáticas: (i) Património natural,
paisagens e biodiversidade; (ii) Espaços rurais, agri-
cultura e povoamento; (iii) Cidade e processos de
urbanização; (iv) Cultura e sociedade: diversidade
cultural e inclusão social.
Para além dos prémios habituais, esta edição con-
tou com o apoio da FUJI Portugal que atribuiu um
prémio especial a um concorrente português, estando também previsto um
apoio especial do CEI para um concorrente dos Países Africanos de Língua
Portuguesa.
O projeto "Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras" teve início em
2011 com os objetivos de aproveitar o valor estético, documental e pedagógico
da fotografia para valorizar territórios com menos visibilidade e de fomentar o
diálogo entre territórios, pessoas e instituições pessoas e instituições que se
encontram dispersas pelas amplas geografias do planeta.

PREMIADOS
MELHOR PORTFÓLIO
Arez Ghaderi (Alemanha)
Tema 1. Património natural, paisagens e biodiversidade
Vencedor: Son Duong Cong (Viet Nam)
Menções Honrosas:
. Gabriela Martinez Manosalva (Estados Unidos)
. Wahyu Budiyanto (Indonésia)
. Adra Pallón (Espanha)
406 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Tema 2. Espaços rurais, agricultura e povoamento


Vencedor: Mercedes Castro (Espanha)
Menções Honrosas:
. Javier Arcenillas (Espanha)
. Mohammad Reza Fathi (Irão)
. Felipe Tomás Jiménez Ordóñez (Espanha)
Tema 3. Cidade e processos de urbanização
Vencedor: Rubén Horacio Romano (Argentina)
Menções Honrosas:
. Erçin Ertürk (Turquia)
. Gerson Luís Turelly (Brasil)
Tema 4. Cultura e sociedade: diversidade cultural e inclusão social
Vencedor: Sayed Habib Bidell (Afeganistão)
Menções Honrosas:
. Ollie Pitt (Coreia do Sul)
. Pedro José Saavedra Macías (Espanha)
. Jose Carlos Rozas Carazas (Perú)
. Quico García (Espanha)
Prémio FUJI - Concorrente Português
Adão Salgado
Prémio CEI - Concorrente dos Países Africanos de Língua Portuguesa
Julia Mena Guirrugo (Moçambique)

Fotografia de Arez Ghaderi (Alemanha)


CEI ACTIVIDADES
407
2023

ITINERÂNCIA DE EXPOSIÇÕES

TRANSVERSALIDADES ― FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS 2021 ―


Casa Municipal da Cultura de Seia

A Exposição "Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras 2021" esteve


patente na Casa Municipal da Cultura de Seia até 27 de fevereiro, no âmbito da
habitual colaboração com a Câmara Municipal de Seia.

IMAGEM, CONHECIMENTO E SOCIEDADE


Universidade de Salamanca

A Exposição “Imagem, Conhecimento e


Sociedade” esteve patente na Faculdade
de Geografia e História da Universidade
de Salamanca durante o mês de fevereiro.
A mostra reúne imagens que foram reco-
lhidas para fins diversos por docentes e
investigadores (Carlos Fortuna, Fernanda
Delgado Cravidão, Filipa Bessa, Jorge Pai-
va, José António Bandeirinha, Lúcio Cunha
e Manuel Santos Rosa) de vários ramos, no decurso dos respetivos trabalhos
científicos.

TRANSVERSALIDADES – FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS 2022

A Exposição “Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras” 2022, um dos


projetos âncora do Centro de Estudos Ibéricos, esteve em itinerância nos se-
guintes locais:
• Museu de Salamanca – fevereiro
• Sala da Cidade do Museu Municipal de Coimbra – abril e maio
• Instituto Camões, Lisboa – agosto
• Auditório Municipal de Vila do Conde – setembro e outubro
• Biblioteca Municipal da Covilhã – novembro

A exposição reúne os portefólios vencedores e uma seleção das fotografias


submetidas à décima primeira edição do concurso (2022), organizada em torno
de quatro núcleos temáticos: Património natural, paisagens e biodiversidade;
408 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Espaços rurais, agricultura e povoamento; Cidade e processos de urbanização;


Cultura e sociedade: diversidade cultural e inclusão social.

JOSÉ SARAMAGO, FOTÓGRAFO OCASIONAL – FRAGMENTOS


DUM RETRATO DE PORTUGAL

A Exposição "José Saramago, Fotógrafo ocasional – Fragmentos dum Retrato


de Portugal" com curadoria de Rui Jacinto e Duarte Belo, foi concebida para o 5º
Encontro "Imagem e Território" (2022).
A exposição mostra perto de três centenas e meia de imagens captadas du-
rante a Viagem a Portugal, que o autor selecionou, catalogou e legendou, onde
revela interesses que apontam para quatro coordenadas fundamentais: paisa-
gens, lugares, pessoas e atividades, monumentos e arte sacra. Através destes
CEI ACTIVIDADES
409
2023

apontamentos revisitamos um tempo e percorremos um país quase irreconhecí-


vel. Olhadas a esta distância, tais imagens apenas confirmam que “A felicidade,
fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles.
Entregue, as suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece. Ou recomece. Ne-
nhuma viagem é definitiva”. Sem descurar um dos conselhos de José Saramago
que “Todo o viajante tem direito de inventar as suas próprias geografias. Se o
não fizer, considere-se mero aprendiz de viagens, ainda muito preso à letra da
lição e ao ponteiro do professor” (José Saramago).
A mostra esteve patente no Museu de Ovar em maio e na Fundação José
Saramago, em Lisboa, em junho.

TRANSVERSALIDADES ― FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS 2021


Mação

A exposição "Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras 2021" esteve na


Galeria Carlos Saramago, Centro Cultural Elvino Pereira, em Mação no mês de
setembro. Numa colaboração entre a Associação Rural Move, o Centro de Estu-
dos Ibéricos e o Município de Mação, procurando destacar a beleza e a riqueza
dos territórios rurais através da abordagem única da fotografia.
410 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

6.º ENCONTRO IMAGEM & TERRITÓRIO


FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS

O Centro de Estudos Ibéricos levou a efeito a


sexta edição dos Encontros Imagem & Territó-
rio, de 14 a 22 de abril, na Guarda, evento que
decorre do projeto “Transversalidades – Foto-
grafia sem Fronteiras” e do compromisso do
CEI para com os territórios de baixa densidade,
onde relevam os transfronteiriços.
Este ano os Encontros seguiram o mote da “Me-
mória, Coesão e Literacia Visual” contando com
várias atividades como exposições, debates,
lançamentos de publicações, roteiro e marato-
na fotográfica. A mais valia desta iniciativa tem
sido o envolvimento da comunidade da Guarda,
através de atividades em escolas, instituições
sociais, de saúde e freguesias, levando assim
esta arte a novos públicos, numa perspetiva de democratização cultural.
O programa estruturou-se em torno de 5 grandes temas:
I. Imagem e informação: captar os Rumores do Mundo
II. Imagem e memória
III. Imagem e coesão territorial
IV. Imagem e coesão social
V. Imagem, sociedade, cidadania

O programa geral foi o seguinte:


14 de abril
(Galeria Evelina Coelho Paço da Cultura; Espaço #4, Paço da Cultura; Teatro
Municipal da Guarda)
• Sessão de Abertura
• Rumores do Mundo, Coletiva dos Concorrentes do Concurso Transversalida-
des (Inauguração de Exposição, Lançamento do Catálogo)
• Interior Emergente, Coletiva de Alunos do Instituto Politécnico da Guarda
(Inauguração de Exposição)
CEI ACTIVIDADES
411
2023

• Debate/Painel 1 ― Imagem e coesão territorial: a Terra, as Gentes, o Interior


emergente (Henrique Cayatte, Alberto Prieto, Rui Formoso, Fátima Gonçal-
ves, Duarte Belo, Moderação: Valentín Cabero).

15 de abril
(Mercado Municipal; Museu da Guarda; Biblioteca Municipal Eduardo Louren-
ço; Teatro Municipal da Guarda)
• A Terra e as Gentes, Coletiva do Fotoclube da Guarda (Inauguração de Ex-
posição)
• Memoria en la Raya, Victorino García Calderón (Inauguração de Exposição)
• Reflexões em Preto e Branco: A Jornada de um Cine Teatro no Tempo, Pe-
dro Carvalho (Inauguração de Exposição)
• A face dos livros, Associação Cultural Ephemera (Inauguração de Exposição)
• 100gentes, Pedro Baltazar (Inauguração de Exposição)
• Debate/Painel 3 ― Imagem e coesão territorial: ecos e memórias da frontei-
ra (Álvaro Domingues, María Isabel Jiménez, Helder Sequeira, Valentín Cabe-
ro, Moderação: Lúcio Cunha)

16 de abril
Maratona fotográfica “Imagem & Território” ― Aldeias do Vale do Mondego
A iniciativa, que contou com o apoio da Fujifilmxpt juntou cerca de 50 entu-
siastas da arte fotográfica que tiveram oportunidade de conhecer e fotogra-
far as freguesias da Faia e de Aldeia Viçosa e ainda a Festa da Sra. do Carmo,
que teve lugar nesse dia.

17 de abril
Ensiguarda ― Escola Profissional da Guarda; Escola Secundária Afonso de Al-
buquerque; Museu da Guarda)
• Oficina de fotografia Fujifilm, por Tiago Monteiro
• Sinais dum mundo em mudança, Coletiva dos Concorrentes do Concurso
Transversalidades (Inauguração de Exposição e Oficina de fotografia)
• Olhar a diversidade, compreender o mundo, Coletiva dos Concorrentes do
Concurso Transversalidades (Inauguração de Exposição)
• Visitas guiadas às exposições (orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda)
18 de abril
(Escola Secundária da Sé; Museu da Guarda)
• Geografias do olhar, Coletiva dos Concorrentes do Concurso Transversali-
dades (Inauguração de Exposição e Oficina de fotografia Fujifilm por Tiago
Monteiro)
412 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

• Visitas guiadas às exposições (orientadas pelo Serviço Educativo do Museu


da Guarda)

19 de abril
(Museu da Guarda)
• Visitas guiadas às exposições orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda

20 de abril
(ULS Guarda – Hospital Sousa Martins; Museu da Guarda)
• Pessoas, Lugares, Outros Olhares, Coletiva dos Concorrentes do Concurso
Transversalidades
(Inauguração de Exposição)
• Visitas guiadas às exposições (orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda)

21 de abril
(Museu da Guarda; Estabelecimento Prisional da Guarda
• Visitas guiadas às exposições orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda
• Paisagens, Patrimónios, Culturas, Coletiva dos Concorrentes do Concurso
Transversalidades
(Inauguração de Exposição e Conversa/Debate)
• Debate/Painel 4 – Imagem e inclusão social: práticas e retratos (Aldeia SOS
Guarda, Projeto Tu decides + NDS, CERCIG, Clara Moura, José Manuel Si-
mões, Moderação: Amélia Fernandes)

22 de abril
• Roteiro Fotográfico – Passadiços do Mondego
• Debate/Painel 5 – Imagens sem fronteiras: diálogos lusófonos (Rosilene
Milliotti, Amosse Mucavele, Luísa Ferreira, Mário Macilau, Thandy Pinto, Ro-
berto Montemor, Karla Inajara e RaH BXD, Moderação: Rui Jacinto)
• “Imagem e coesão social”: Além das nossas fronteiras – Coletiva de Jo-
vens da Aldeia SOS da Guarda/Mentoria de Luísa Ferreira (Inauguração da
Exposição)
• Com Vivências – Imagens do Povo (Inauguração da Exposição)
• Cartografias (sub)urbanas: 5 olhares sobre Moçambique – Adiodato Go-
mes, Albino Mahumana, Mário Macilau, Thandy Pinto, Yassmin Forte (Inaugu-
ração da Exposição)
• Topografias da paisagem social, Luísa Ferreira (Inauguração da Exposição)
• Sessão de Encerramento
CEI ACTIVIDADES
413
2023

Debate "Imagem e memória: A face dos livros" – com José Pacheco Pereira
(Ephemera)

O Debate "A Face dos Livros" com José Pacheco Pereira encerrou o 6º En-
contro "Imagem & Território". A conversa versou em torno da exposição da Ephe-
mera que contempla diversas capas de livros ilustradas por autores portugueses
desde o início do século XX até à década de 70.
O Programa detalhado pode ser consultado em: https://www.cei.pt/.../vi-en-
contros-imagem-e-territorio.html
414 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

EXPOSIÇÕES PRINCIPAIS
Rumores do Mundo
Autores: Concorrentes do Concurso Transversalidades 2022
Curadoria: João Pedro Cochofel
Projeto Expositivo: Santiago Santos
Galeria Evelina Coelho ― Paço da Cultura | 14 de abril a 4 de junho de 2023

INTERIOR EMERGENTE
Autores: Ana Caroline Carmo; Ana Isabel Cerqueira; Ana Margarida Rocha; Ana Patrí-
cia D'Apresentação; Ana Teresa Marques; António Rodrigues; Carolina Costa; Catari-
na Silva; Eduardo Martins; Elisabete José; João Rodrigues; Leandro Figueira; Marcelo
Vitória; Maria Ribeiro; Marta Loureiro; Miriam Silva; Pavel Storchak; Pedro Gomes;
Salvador Fernandes; Severino Costa; Tatiana Lucas; Vinícius Machado (Alunos do Ins-
tituto Politécnico da Guarda).
Tutores: Anabela Sardo; Carla Ravasco; Catarina Carreto; Filipe Moreira; Florbela Ro-
drigues; Handerson Engrácio; Henrique Marques; Rosa Branca Figueiredo; Simone
dos Prazeres.
Espaço #4 ― Paço da Cultura | 14 de abril a 4 de junho de 2023
CEI ACTIVIDADES
415
2023

MEMORIA EN LA RAYA
Autor: Victorino García Calderón
Museu da Guarda | 15 de abril a 18 de junho de 2023
416 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

REFLEXÕES EM PRETO E BRANCO: A JORNADA DE UM


CINE TEATRO NO TEMPO
Autor: Pedro Carvalho
Curadoria: Pedro Baltazar
Museu da Guarda | 15 de abril a 18 de junho de 2023

A FACE DOS LIVROS


Autor: Associação Cultural Ephemera
Curadoria: Carla Pacheco
Sala Tempo e Poesia, Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço | 15 de abril a 15 de
maio de 2023.
CEI ACTIVIDADES
417
2023

100GENTES
Autores: Pedro Baltazar
Curadoria: Helder Sequeira
Café Concerto, Teatro Municipal da Guarda | 15 de abril a 30 de junho de 2023

ALÉM DAS NOSSAS FRONTEIRAS


Autores: Coletiva de Jovens da Aldeia SOS da Guarda
Mentoria: Luísa Ferreira
Galeria de Arte, Teatro Municipal da Guarda | 22 de abril a 2 de junho de 2023
418 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

TOPOGRAFIAS DA PAISAGEM SOCIAL


Autor: Luísa Ferreira
Galeria de Arte, Teatro Municipal da Guarda | 22 de abril a 2 de junho de 2023

COM VIVÊNCIAS
Autores: Imagens do Povo (Alexandre Silva, Allan Almeida, Diego Lopes, Felippinho21,
Gabriel Mothé, Guga Ferreira, Jean Barreto, João Teodoro, Jones, Karla Inajara, Monara
Barreto, Pedro Siqueira, RaH BXD, Selma Souza, Vicente Costa, Vitor Melo, Vitória Corrêa)
Curadoria: Rosilene Miliotti
Galeria de Arte, Teatro Municipal da Guarda | 22 de abril a 2 de junho de 2023

CARTOGRAFIAS (SUB)URBANAS: 5 OLHARES SOBRE


MOÇAMBIQUE
Autores: Adiodato Gomes, Albino Mahumana, Mário Macilau, Thandy Pinto, Yassmin Forte
Galeria de Arte, Teatro Municipal da Guarda | 22 de abril a 2 de junho de 2023
CEI ACTIVIDADES
419
2023

CEI INTEGRA REDE PORTUGAL-ESPANHA DE COOPERAÇÃO


TRANSFRONTEIRIÇA (REDCOT)

O Centro de Estudos Ibéricos (CEI), juntamente com diversas entidades por-


tuguesas e espanholas promotoras da cooperação transfronteiriça, integra a
Rede Portugal-Espanha de Cooperação Transfronteiriça (REDCOT), cujo acordo
de constituição foi celebrado no dia 1 de fevereiro, no Museu dos Coches, em
Lisboa.
A Vice-Presidente da Câmara Municipal da Guarda, Amélia Fernandes, repre-
sentou a Direção do Centro de Estudos Ibéricos numa sessão presidida pelas
Ministras da Coesão Territorial do Governo de Portugal, Ana Abrunhosa, e da
Política Territorial do Reino de Espanha, Isabel Rodríguez García, onde também
participaram a Secretária de Estado do Desenvolvimento Regional, Isabel Ferrei-
ra, e o Secretário-Geral para o Desafio Demográfico espanhol, Francesc Boya.
Reconhecendo a necessidade de reforçar a cooperação em zonas de frontei-
ra, o Acordo de Constituição da REDCOT tem como objetivo “dar uma resposta
efetiva às populações locais nas áreas de cuidados de saúde de emergência,
circulação de trabalhadores transfronteiriços, proteção civil, despovoamento,
investimento transporte de mercadorias e apoios sociais e económicos”.
Esta rede informal de cooperação territorial pretende incentivar o desen-
volvimento de mecanismos de colaboração e intercâmbio de boas práticas
capazes de criar sinergias e otimizar ações, impulsionar programas europeus
e assegurar uma maior coordenação e articulação multinível em diversos do-
mínios do território transfronteiriço.
O Acordo de Constituição da Rede Espanha – Portugal de Cooperação
Transfronteiriça (REDCOT) surge na sequência da assinatura do memorando de
entendimento entre o Ministério da Coesão Territorial da República Portuguesa
420 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

e o Ministério de Política Territorial do Reino de Espanha, celebrado no dia 4 de


novembro de 2022, em Viana do Castelo.

COLÓQUIO SOBRE FOTOGRAFIA


A Exposição "Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras 2022" que es-
teve patente no Museu de Salamanca deu o mote a este Colóquio sobre Foto-
grafia, que contou com a participação dos fotógrafos Victorino García, Alberto
Prieto e Santiago Santos e do professor Valentín Cabero Diéguez.
O vídeo deste colóquio está disponível em https://www.youtube.com/wat-
ch?v=f3KgHmBuVjo
CEI ACTIVIDADES
421
2023

EDIÇÕES
REVISTA DE ESTUDOS IBÉRICOS

IBEROGRAFIAS 19 (2023)
O décimo nono número da “Iberografias ― Revista de
Estudos Ibéricos” contempla as múltiplas atividades
promovidas pelo CEI durante o ano de 2023, corpo-
rizando as referências estruturantes da sua missão
nas áreas do Conhecimento, da Cultura e da Coope-
ração.
Consultar livro em: https://www.cei.pt/revista

COLEÇÃO IBEROGRAFIAS*

N. 44. VIDA PARTILHADA – TODOS NÓS


IBÉRICOS
Reedição (revista e aumentada) do livro “Vida Parti-
lhada. Eduardo Lourenço, o CEI e a cooperação cultu-
ral” (2013) que conta, para além dos 30 textos então
editados, com mais nove ensaios entretanto dados à
estampa. Com organização e nota explicativa de Rui
Jacinto, esta edição pretende assegurar uma leitura
mais fluida e compreensiva do conjunto da obra e
justifica-se por vincar uma justa e merecida home-
nagem. Este significado é redobrado por acontecer numa data evocativa – o
Centenário de Eduardo Lourenço – e pelo subtítulo agora atribuído: “Todos nós
Ibéricos”. A frase, que encabeça um brevíssimo ensaio escrito num momento
fundador do CEI (2001), transmite, com assertividade cristalina, a visão dos seu
Patrono, Mentor e Diretor Honorífico, mas, também, o espírito que deve animar
o Centro de Estudos Ibéricos e o rumo que importa prosseguir: a sua afirmação
como um espaço aberto e de diálogo onde o conhecimento e a cultura estimu-
lem a cooperação ativa entre povos irmanados pelas línguas ibéricas.
422 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

N. 45. NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS


DIÁLOGOS: AS NOVAS GEOGRAFIAS
DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA
A XXII edição do Curso de Verão, que aconteceu em
2022 sob o lema Novas fronteiras, outros diálogos:
cooperação e desenvolvimento, contou com mais
de uma centena de participantes e cerca de quatro
dezenas de comunicações cujos conteúdos propor-
cionaram a presente publicação. O título sinaliza
o caminho que o CEI persegue com insistência a
partir de pressupostos que estruturam um debate
sobre as Fronteiras, a Cooperação e o Desenvolvi-
mento que urge aprofundar.

N. 46. EDUARDO LOURENÇO: UMA


BIBLIOGRAFIA (1923-2020)
A obra, da autoria de João Tiago Lima e Isabel Ro-
sete, reúne todos os textos encontrados pelos Au-
tores e que Eduardo Lourenço publicou desde 1943
até à data da sua morte (2020). Não se trata de uma
lista definitiva, porquanto é bem possível que exis-
tam muitos outros textos publicados. Este repertó-
rio constitui uma ferramenta muito útil para todos
os pesquisadores que desejem começar a estudar
a obra de Eduardo Lourenço.

* Consultar livro em: https://www.cei.pt/colecao-iberografias


CEI ACTIVIDADES
423
2023

CATÁLOGOS

RUMORES DO MUNDO, TRANS-


VERSALIDADES — FOTOGRAFIA
SEM FRONTEIRAS
O Catálogo que se dá à estampa e que acom-
panha a Exposição “Rumores do Mundo” é
mais uma prova da importância e dimensão
do projeto “Transversalidades – Fotografia
sem Fronteiras”, iniciativa do Centro de Es-
tudos Ibéricos iniciada em 2011 de reconhe-
cido mérito nacional e internacional.
Consultar catálogo em: https://www.cei.pt/catalogos/

TRANSVERSALIDADES:
FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS
2023
Recorrendo à fotografia para abrir janelas
para o mundo, o “Transversalidades” con-
substancia o compromisso do Centro de Estu-
dos Ibéricos com a cooperação transfronteiri-
ça e os territórios mais excluídos e periféricos
e concorre para a sua missão de plataforma
de diálogo, encontro de culturas e centro de
transferência de conhecimentos.
Consultar catálogo em: https://www.cei.pt/catalogos/

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