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IBEROGRAFIAS

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Colecção Iberografias nº44 (edição comemorativa)

Título: Vida partilhada – Todos nós ibéricos


Autor: Eduardo Lourenço
Organização e Nota explicativa: Rui Jacinto
Revisão: Ana Proença
Design e Capa: Catarina Rocha - Bairro dos Livros
Fotografia da capa © Câmara Municipal da Guarda

Impressão e acabamento: Locape - Artes Gráficas


1.a edição: maio 2023
Depósito legal n.º 516056/23

ISBN: 978-989-8676-36-8
ISBN Âncora: 978 972 780 874 8

Edição n.º 40044

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
geral@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora

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Eduardo Lourenço

VIDA PARTILHADA
TODOS NÓS IBÉRICOS

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IBEROGRAFIAS

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© Alfredo Cunha

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NOTA DE ABERTURA
Sérgio Costa
9

O DESÍGNIO DO PENSADOR, O ESPÍRITO DO LUGAR


Introdução à 1.ª Edição
Virgílio Bento
15

NUNCA SE REGRESSA, PORQUE JÁ SOMOS OUTRO


À guisa de Nota Explicativa
Rui Jacinto
21

VIDA PARTILHADA

Lembrança espectral da Guarda


43
Oito séculos de altiva solidão
51
Todos nós ibéricos
59
Agitadores do espírito ibérico
61
Um dom com memória futura
65
Vida partilhada
67

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DIÁLOGOS TRANSFRONTEIRIÇOS

A Península como problema europeu


73
As Relações ibéricas no contexto da nova europa
81
Identidade e cidadania
85
A Ibéria e o Diálogo Cultural
89
Jogos de fronteira, jogos de memória
93
O nosso tempo e o tempo dos outros
97

ITINERÁRIOS ENSAÍSTICOS

Eu ensaísta me confesso
107
Do Portugal emigrante ao Portugal europeu
113
Navegadores por ruas estrangeiras
125
(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros
131
Tempos de Coimbra
139
Do Homem como Literatura
149
Camões e Cervantes
159
Fernando Pessoa e o Livro do Desassossego
167
Sobre Manuel António Pina
175

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PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO

O duplo rosto da fronteira


181
O génio não tem comentário
185
As fronteiras que não têm fronteiras
189
Todos os nossos mitos e toda a nossa memória
193
Jerónimo Pizarro. 2013
197
Antonio Saéz Delgado. 2014
203
Agustina Bessa-Luís. 2015
207
Luis Sepúlveda. 2016
213
Fernando Paulouro. 2017
217

REGRESSO SEM FIM

Quem vê o seu povo vê o mundo todo


225
Rotas Culturais: Regresso sem fim
237
Memorial Eduardo Lourenço
no Centro de Estudos Ibéricos
241

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NOTA DE ABERTURA

Assinala-se em 2023 o Centenário do Nascimento


de Eduardo Lourenço, um dos maiores vultos da cultura
portuguesa, professor, ensaísta, escritor, pensador incan-
sável de Portugal, da sua identidade e destino.
Guardense por adoção e afeto, Eduardo Lourenço foi
sempre um dos nossos, beirão e raiano. Um D. Quixote
Ibérico como se lhe referiu António Sáez Delgado “que
sabe olhar para o mundo e lê-lo com a lúcida simplici-
dade e inteligente ironia herdeira do melhor espírito de
Sancho Pança”. Um intelectual ibérico e um embaixador
reconhecido da nossa Cultura e dos nossos valores.
No Elogio à Guarda proferido a 27 de novembro de
1999, por ocasião das Comemorações do Oitavo Centenário,
Eduardo Lourenço defendeu que esta quase milenar cida-
de estava “mais vocacionada do que nenhuma outra, para
ser o lugar de diálogo com os que foram nossos adversá-
rios durante séculos”. Num momento em que as frontei-
ras “se apagam” o pensador manifestava o desejo que a
Guarda se tornasse “na mais ibérica e dialogante das ter-
ras”, “sentinela dum futuro comum para uma Ibéria que
é um dos polos desta Europa onde todos nós queremos
estar e, onde querendo ou não, já estamos”.
Na senda de Oliveira Martins, Eduardo Lourenço con-
vocava então a Guarda para a criação de um Instituto da
Civilização Ibérica que unisse as duas Universidades mais
antigas da Península, Coimbra e Salamanca. O desafio foi
bem acolhido e viria a concretizar-se um ano depois, com
a assinatura de um Protocolo e, posteriormente, com a
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criação formal do Centro de Estudos Ibéricos como as-
sociação transfronteiriça sem fins lucrativos, constitu-
ída pela Câmara Municipal da Guarda, Universidade
de Coimbra, Universidade de Salamanca e Instituto
Politécnico da Guarda.
Aliando a investigação à ação e dinamizando a coo-
peração territorial, o Centro de Estudos Ibéricos afirmou-
-se ao longo dos últimos 23 anos como plataforma de
diálogo, encontro de culturas e centro de transferência
de conhecimentos e investigação, contribuindo para su-
perar barreiras e estimular a cooperação entre diferentes
territórios de aquém e além-fronteiras.
A presença tutelar do Diretor Honorífico do CEI foi
inspiradora e determinante para abrir portas e credibilizar
o Centro nos seus primeiros anos. Num percurso de mais
de duas décadas, o pensador manteve com o CEI uma li-
gação de grande proximidade e envolvimento afetivo. A
atenção dispensada ao trabalho quotidiano, a presença
em iniciativas de grande ou pequena dimensão ou a dis-
ponibilidade para mediar contactos conjugam-se numa
outra e maior singularidade: a estratégia do CEI é uma
ressonância alargada do pensamento do grande ensaísta.
O arco temporal entre as Comemorações do Oitavo
Centenário da cidade da Guarda (27/11/1999) e a inau-
guração da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço
(27/11/2008) correspondeu à fase de instalação e arran-
que do CEI. O acompanhamento das suas atividades fei-
to por Eduardo Lourenço foi decisivo para o progressivo
envolvimento e reaproximação do ensaísta à Guarda. O
enraizamento paulatino foi acontecendo através de afe-
tos e iniciativas imateriais, culminando com a Biblioteca
Municipal, equipamento cultural palpável de grande re-
levo e significado que viria a receber o seu nome.
Para além de mentor e Diretor Honorífico do CEI,
Eduardo Lourenço é o patrono de uma moderna Biblioteca
com um acervo de cerca 100.000 volumes, entre os quais
8.500 por si oferecidos, pertencentes à sua biblioteca
particular, enriquecidos com dedicatórias e autógrafos
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de inúmeros autores. Através da Biblioteca Municipal
Eduardo Lourenço e do CEI, o ensaísta reforçou os víncu-
los que ditaram o seu regresso simbólico às origens, a má-
tria Beira, com quem restabelece uma relação perene e
definitiva.
Reconhecido em 2021 como Instituição de Utilidade
Pública, o CEI é hoje um importante projeto de valoriza-
ção cultural e territorial desta região de baixa densida-
de, construído com grande empenho, espírito de união e
cumplicidade.
Cumpre um agradecimento a todos quantos têm
apostado e dado corpo ao projeto, contribuindo para
que a ideia de Eduardo Lourenço se concretizasse, numa
perspetiva de colaboração e entendimento que superou
fronteiras, uniu instituições e pessoas.
O historial do Centro de Estudos Ibéricos e o prestí-
gio e credibilidade com que se foi afirmando nas áreas
da Cultura, do Conhecimento e da Cooperação tradu-
zem-se num legado que assumimos com enorme sen-
tido de responsabilidade. No início de um novo ciclo de
políticas públicas que visam uma verdadeira coesão so-
cial e territorial, surgem oportunidades que obrigam a
um ainda maior empenho e criatividade nos caminhos
a percorrer, sempre focados no reforço da competitivi-
dade dos territórios de baixa densidade, na promoção
de uma coesão social mais inclusiva, na promoção do
acesso aos serviços e qualidade de vida e no apoio a ini-
ciativas de cooperação geradoras de dinâmicas públicas
e privadas positivas.
Caminhos que passam pela cooperação, pelo enten-
dimento e pela união de esforços em torno de um projeto
comum de Europa, que tantas interrogações nos coloca
face aos constantes desafios e mudanças.
A Guarda e o CEI têm, pois, o dever de respeitar o
desafio e o legado de Eduardo Lourenço continuando a
promover iniciativas que honrem a sua obra e memória,
particularmente no ano em que se comemora o cente-
nário do seu nascimento.
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A presente edição desta “Vida Partilhada”, revis-
ta e aumentada, conjuga vários textos que Eduardo
Lourenço escreveu sobre as suas origens, S. Pedro do Rio
Seco, Almeida, a Guarda e a sua relação com o Centro de
Estudos Ibéricos e a sua Biblioteca.
Reconhecendo que a sugestão da criação, nesta
antiga cidade de Fronteira, de um Centro de Estudos
Ibéricos, “caiu, em todos os sentidos, na boa terra” 1,
Eduardo Lourenço sempre manifestou o seu profun-
do apreço e reconhecimento pela concretização de
uma sua ideia. Uma ideia que contribuiu para a sua
reaproximação às origens e se converteria nesta “vida
partilhada”.
Temos que agradecer a Eduardo Lourenço a ideia, o
incentivo e a amizade. Agradecer-lhe por ter lançado as
bases de um projeto de cultura e cooperação que é uma
referência para uma cidade orgulhosa da sua história
que luta pelo progresso e pela coesão dos territórios que
são de baixa densidade, mas que, – estamos certos - têm
enorme potencial.
A Guarda, cidade que, nas palavras nosso Ensaísta
maior, “lhe abriu as portas para o Mundo” reitera o com-
promisso com o projeto do Centro de Estudos Ibéricos
e está grata a Eduardo Lourenço por este legado de
Cultura e Saber.
A Guarda está pronta para assumir o papel maior
de sentinela que Eduardo Lourenço, sábia e ambiciosa-
mente, lhe determinou no contexto do futuro partilha-
do de uma Ibéria, que foi outrora vanguarda da Europa
na globalização das suas naus e caravelas, destino que
devemos cumprir no futuro, aproveitando a logística e a
conectividade digital dos dias de hoje.
Devemos comungar da ambição de Eduardo
Lourenço para este nosso território. A vocação de
hinterland natural, aliada ao lugar de diálogo em que a

1 Lourenço, Eduardo, “Vida Partilhada”, CEI: Conhecimento, Cooperação, Cultura – Dez anos de-
pois (2010), Guarda: CEI
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invenção da Europa converteu a Península, encontra na
antiga guardiã da fronteira lusitana o seu lugar de locali-
zação e realização perfeito.

Sérgio Fernando da Silva Costa


Presidente da Câmara Municipal da Guarda
Membro da Direção do CEI

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“Eu penso que nesta
cidade se podia
imaginar qualquer
coisa como um Instituto
da Civilização Ibérica,
onde os nossos laços
comuns, que só Oliveira
Martins foi capaz de
apreender, fossem
repensados para que
nós soubéssemos
efetivamente quem
somos e onde estamos. ”

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O DESÍGNIO DO PENSADOR, O ESPÍRITO DO LUGAR

Eu penso que nesta cidade se podia imaginar qualquer coisa


como um Instituto da Civilização Ibérica, onde os nossos laços
comuns, que só Oliveira Martins foi capaz de apreender, fossem
repensados para que nós soubéssemos efetivamente quem
somos e onde estamos. (…) Essa é a vocação que eu desejo para
a Guarda. Que ela seja hoje a sentinela dum futuro comum para
uma Ibéria que é um dos polos desta Europa onde todos nós
queremos estar e, onde querendo ou não, já estamos.”
– EDUARDO LOURENÇO – 27 de novembro de 1999

S. Pedro do Rio Seco, a Guarda e a Beira, as origens de


Eduardo Lourenço, sempre estiveram no horizonte deste
navegador por ruas estrangeiras. Numa lúcida reflexão
identitária refere que “viver com tanta paixão o elo que
os liga à pátria – ou melhor, à terra, no sentido mais ar-
caico do termo – do que os portugueses, é difícil, porque
essa paixão é o nome mesmo da sua identidade”. Uma
paixão que assume e o liga de forma indelével à sua al-
deia – tão pobre onde “até o Rio é Seco” – e à sua “capital”
– como se refere afetuosamente à Guarda – que o mar-
cou decisivamente. No começo da sua errância, Eduardo
Lourenço sai do seu pequeno mundo aldeão e vem para
a capital de distrito que “foi a cidade, como Roma era a
Urbe para o cidadão romano”. A Guarda, a Penalva evo-
cada por Vergílio Ferreira na sua Estrela Polar, causou
ao Pensador maior surpresa que qualquer outra cidade
no mundo por onde iria passar. A Guarda representou a
passagem da comunidade para a sociedade e o encontro
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com os outros, apesar de ser uma realidade espectral,
pois onde “ninguém nos conhece, somos espectros de
nós mesmos”.
Por ocasião das Comemorações do Oitavo Cente-
nário da Guarda, em 27 de novembro de 1999, a Guarda
convidou o Pensador para refletir sobre o nosso passado
e para nos ajudar a repensar a vocação que desse senti-
do ao nosso futuro. Num elogio à Guarda a que chamou
“Oito Séculos de Altiva Solidão”, Eduardo Lourenço reflete
sobre o conceito de interioridade, que afirma ser “mais fi-
lho da história do que da geografia”, uma vez que a Beira
só é interior depois que “Portugal se define por um mar”.
À Guarda, não interior, mas coração de Portugal, lançou
Eduardo Lourenço o repto da criação, na senda de Oliveira
Martins, de uma instituição que tivesse por função pen-
sar a jangada de pedra que dos Pirenéus se desloca
para o Atlântico. Atendendo à sua posição geográfica, a
Guarda era, na opinião de Eduardo Lourenço, um espa-
ço hinterland, que poderia favorecer o intercâmbio entre
dois polos culturais importantes da Europa, Coimbra e
Salamanca. Por isso, lançou a ideia da criação do Centro
de Estudos Ibéricos.
A este desafio não podia a Câmara Municipal da
Guarda ficar indiferente e, juntamente com duas das
mais antigas instituições universitárias da Europa (as
Universidades de Coimbra e de Salamanca), constituíram
o Centro de Estudos Ibéricos. Eduardo Lourenço reconhe-
ceria depois o insólito desta situação, pois, talvez pela pri-
meira vez, um pensamento, uma ideia sua se tornava rea-
lidade. O Centro de Estudos Ibéricos surgiria exatamente
um ano após ter sido lançado o repto. Teve a boa fortuna
de ser patrocinado, de um lado e de outro da imaginária
fronteira, pelas duas instituições que ao longo dos sécu-
los foram modelo da universidade peninsular. Como se
ambas apenas aguardassem o chamamento autêntico
que as associasse no estudo da Civilização Ibérica como
um todo multidisciplinar.

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A Guarda goza de uma posição privilegiada e pro-
curou, fazendo jus ao nome e à História, afirmar uma
centralidade – no plano geoestratégico, primeiro; nas
particulares circunstâncias sociais, económicas e cultu-
rais, depois. Eduardo Lourenço intuiu a necessidade de
uma mudança de paradigma: “um propósito e desafio,
na aparência insólito, de estabelecer um elo de tipo novo,
num tempo novo, o de uma Europa em redefinição do
estatuto milenário, entre os dois países independentes e
vizinhos, Portugal e Espanha.” Considerou assim ser im-
perativo que a união e o desenvolvimento das regiões de
fronteira que unem os dois países prosseguissem, redi-
recionando-se através dos valores imateriais: séculos de
História partilhada, vivências em comum, cumplicidades.
A cultura, a ciência e o saber formam a riqueza potencial
que determinará a sobrevivência de uma identidade pró-
pria num quadro continental com crescente e expressiva
multiplicidade civilizacional.
Ao lançar o desafio da criação do Centro de Estudos
Ibéricos, Eduardo Lourenço impulsionava a Guarda a re-
afirmar a sua centralidade, valorizando o espaço trans-
fronteiriço onde se enquadra e projetando-o para uma
dimensão ambiciosa e integradora. Associação trans-
fronteiriça sem fins lucrativos, formada inicialmente
pela Câmara Municipal da Guarda, pela Universidade
de Coimbra e pela Universidade de Salamanca, às quais
haveria de associar-se o Instituto Politécnico da Guarda,
o Centro de Estudos Ibéricos assenta numa parceria vo-
cacionada para a cooperação territorial na Raia Central
Ibérica. As quatro instituições comprometeram-se a
agir pelo encontro, pela reflexão e pela divulgação das
culturas portuguesa e espanhola, a reforçar o relacio-
namento, a cooperação e a investigação no campo uni-
versitário, a promover o intercâmbio entre organismos
e departamentos que representem áreas académicas e
científicas dos dois países e a apoiar a formação e a in-
vestigação. Foi, afinal, para este diálogo ibérico que o
Centro surgiu. Situada no eixo histórico e cultural que
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liga Coimbra a Salamanca, a Guarda tem procurado
cumprir o desígnio de dinamizar proximidades e reforçar
laços de entendimento.
Talvez, em qualquer circunstância, Eduardo Lourenço
estivesse no tempo de rever o começo do labirinto da sau-
dade, inquietação profunda que só um povo errante pode
compreender e em que este ilustre cidadão do mundo
bem se revê: «Não queremos deixar perdido aquilo que
nos foi valioso. É uma espécie de contínua ressurreição
em vida». Mas foi o Centro de Estudos Ibéricos que fez o
pensador regressar aos espaços míticos do seu próprio
imaginário. Não tivesse existido o repto e talvez ele tar-
dasse em voltar. Sempre que regressa à sua aldeia e à
sua “capital”, revisita as paisagens, os sons e os rumores
invisíveis das falas da lembrança, onde todo o passado
se faz presente. Eduardo Lourenço redescobre, então, o
seu pequeno grande mundo e cumpre a ansiada pere-
grinação silenciosa para, como Machado de Assis, atar as
duas pontas da vida – a do nascimento e a do crepúsculo
– num só nó.
O tempo de São Pedro do Rio Seco (a infância) dá lu-
gar ao tempo da Guarda (para onde saiu aos dez anos); ao
tempo de Lisboa (na década de 30); ao tempo de Coimbra
(nos anos 40 e 50); ao tempo da errância (em que deam-
bulou pelo Mundo); e ao tempo de Vence, onde Eduardo
Lourenço vive desde 1974. Tão vasta caminhada forma-
-lhe a convicção: nenhuma terra é de ninguém; todos os
lugares são de toda a gente. É nesse teorema que tra-
ça o sonho de ver a cidade do seu segundo tempo – do
tempo das descobertas e das paixões – potenciada como
encruzilhada de culturas e saberes. Vivemos na orla da
fronteira, mas nem por isso, lamenta o pensador, «ultra-
passámos a distância, para não dizer o desconhecimento,
do país vizinho». É um «escândalo cultural», mas é ainda
mais «uma grande perda de ambos os lados, que, apesar
das óbvias diferenças têm as mesmas raízes culturais».
O desafio foi acolhido. Treze anos depois da Sessão
Solene dos Oitocentos Anos do Foral, o Centro de Estudos
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Ibéricos mostra que a Guarda ganhou a aposta na coo-
peração como forma de superar fronteiras, que procura
encetar um diálogo entre culturas ancestralmente sepa-
radas, prosseguindo os valores humanistas e a dimen-
são universal, lapidarmente enunciados por Eduardo
Lourenço, que devem pautar a identidade deste lugar.
A pronta resposta das instituições de ensino superior en-
volvidas, a entusiasta adesão de uma elite dos mais repu-
tados nomes da ciência e da investigação, a multiplici-
dade de eventos realizada e o crescente reconhecimento
nos meios académicos e culturais dos dois países têm
contribuído para a consolidação do Centro de Estudos
Ibéricos na sua utilidade e singularidade.
O Centro de Estudos Ibéricos tem vindo a afirmar-
-se como plataforma de diálogo, encontro de culturas e
centro de transferência de conhecimentos, apostado na
valorização da aprendizagem, do ensino, da formação e
da investigação, dinamizando eventos e congregando
vontades imprescindíveis para fomentar relações cada
vez mais íntimas e cúmplices entre pessoas e institui-
ções, contribuindo, pelas iniciativas que tem protago-
nizado, para superar barreiras e estimular a cooperação
entre diferentes territórios de aquém e além-fronteiras.
O futuro ganha-se no fortalecimento dessa vocação e
no alcance de novas ambições. Os três grandes investi-
mentos em infra-estruturas culturais nos últimos anos –
Teatro Municipal da Guarda, Centro de Estudos Ibéricos
e Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço – asseguram
uma oferta cultural de qualidade que se assume como
pilar de uma estratégia de afirmação da Guarda enquan-
to Capital Cultural do Interior, através da promoção da
cultura, do conhecimento, da investigação e da leitura. O
Centro de Estudos Ibéricos é um projeto estratégico no
campo da Cultura e do Saber, por ser o exemplo da nossa
visão de futuro para a cidade da Guarda e para a região
transfronteiriça: um espaço de confluência e uma centra-
lidade ibérica, alicerçada no Conhecimento, na Inovação
e na Cooperação.
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Os textos que se dão à estampa compilam notas e
artigos editados em várias publicações, produzidos em
diferentes momentos, resultantes das múltiplas interven-
ções que marcaram a afetuosa e frutuosa colaboração de
Eduardo Lourenço com a Guarda e o CEI. Fazendo jus ao
percurso ensaístico do seu autor, a diversidade das abor-
dagens levou ao agrupamento nos eixos temáticos que
melhor definem os sentidos de mais de uma década de
cooperação: a Guarda e o seu entorno, textos matriciais
onde discorre sobre a Guarda, a região e a estrutural emi-
gração; CEI e Prémio Eduardo Lourenço, testemunhos
sobre o Centro e algumas personalidades contemplados
com o prémio de que é patrono; Diálogos transfrontei-
riços: a Ibéria e a Europa, onde aborda assuntos cuja
reconhecida competência lhe mereceu a distinção com
um prémio europeu; Itinerários ensaísticos, que reúne
várias intervenções, designadamente sobre alguns escri-
tores; Regresso sem fim, documenta, simbolicamente, a
corrente de afetos, nunca interrompida, com a pequena
pátria beirã.
Além de conferir unidade e coerência a títulos di-
versos e dispersos, a compilação destes textos concre-
tiza uma edição comemorativa do 90.º Aniversário do
Professor Eduardo Lourenço. Com esta iniciativa, mani-
festamos a nossa reconhecida gratidão a quem permitiu
que “uma simples sugestão se convertesse em vida parti-
lhada”. E assim, mais do que mostrar o nosso afeto é con-
tinuarmos a aventura dum Regresso sem fim à Guarda e
às nossas matriciais origens.

Guarda, 12 de abril de 2013

Virgílio Bento
Em 2013, enquanto Vice-Presidente da Câmara Municipal da Guarda
e Membro da Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos

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NUNCA SE REGRESSA, PORQUE JÁ SOMOS OUTRO

À guisa de Nota Explicativa

“lugar de um diálogo, necessário mais que nunca, (…) onde


os nossos laços comuns (…) fossem repensados para que nós
soubéssemos efetivamente quem somos e onde estamos, não tão
isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar dos outros,
para sabermos quem é o outro, com quem devemos dialogar.”

O Centro de Estudos Ibéricos (CEI) lançou, na pre-


sença do autor, Vida Partilhada. Eduardo Lourenço, o
CEI e a cooperação cultural, durante um encontro re-
alizado em 23 de maio de 2013 onde se comemoraram
os seus noventa anos. A obra, que reúne trinta textos de
Eduardo Lourenço elaborados em momentos distintos
e sob diferentes pretextos e que assumem vários forma-
tos e dimensões variáveis, tem um subtítulo que vincula,
umbilicalmente, a instituição ao seu Mentor e o CEI à co-
operação cultural.
A presente edição, cujo lançamento, volvidos dez
anos, coincide com o início do Centenário do Nascimento
de Eduardo Lourenço (1923-2023), incorpora mais nove
ensaios entretanto dados à estampa. Esta reedição foi
reorganizada para assegurar uma leitura mais fluida
e compreensiva do conjunto da obra e justifica-se por
vincar uma justa e merecida homenagem. Este signifi-
cado é redobrado por acontecer numa data evocativa
e pelo subtítulo agora atribuído: “Todos nós Ibéricos”.
A frase, que encabeça um brevíssimo ensaio escrito
num momento fundador do CEI (2001), transmite, com
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assertividade cristalina, a visão do seu Patrono, Mentor
e Diretor Honorífico, mas, também, o espírito que deve
animar o Centro e o rumo que importa prosseguir: a sua
afirmação como um espaço aberto e de diálogo onde o
conhecimento e a cultura estimulem a cooperação ativa
entre povos irmanados pelas línguas ibéricas.
Os vários textos reunidos nesta obra cobrem um
arco temporal balizado por momentos simbólicos que
são, também, referências incontornáveis, pelo seu sig-
nificado e alcance, da relação íntima que Eduardo
Lourenço estabeleceu com a Guarda e o CEI: (i) os dois
primeiros, que sinalizam o progressivo reencontro do
ensaísta com a sua mátria, resultaram da homenagem
prestada na Guarda (Lembrança espectral da Guarda,
1995) e da Conferência que proferiu na abertura solene
das Comemorações do Oitavo Centenário da Guarda
(Oito séculos de altiva solidão, 26 de novembro de 1999);
(ii) o último, em termos cronológicos (Do Homem como
Literatura), fruto da intervenção que fez na entrega do
Prémio Eduardo Lourenço a Basilio Losada, em 18 de se-
tembro de 2018, coincide com a última viagem à Guarda,
representando, por isso, a despedida da Biblioteca que
tem Eduardo Lourenço como patrono e do Centro criado
sob a sua inspiração.
Os textos apresentados, que percorrem duas déca-
das de cumplicidade e frutuoso labor, tanto pontuam a
história, marcam o ritmo e definem as principais etapas
do CEI, como testemunham o envolvimento próximo e
relativamente assíduo nas suas atividades. A presença
tutelar de Eduardo Lourenço, sempre inspirada e inspi-
radora, foi determinante para abrir portas, estabelecer
pontes e credibilizar o CEI nos momentos fundacionais.
As suas palavras, que aqui se perpetuam para memória
futura, são um ativo inestimável, parte dum património
coletivo que nos ajuda a conhecer melhor e a entender
o outro, onde se encontram referências e apontam cami-
nhos suficientemente estimulantes para encarar o futuro
com mais otimismo.
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. VIDA PARTILHADA: A GUARDA E O CENTRO DE ESTU-
DOS IBÉRICOS

“o Centro (…) tem contribuído para dar à Guarda um papel


de mediador entre as nossas duas culturas peninsulares,
tão próximas nas suas raízes, mas distantes no seu convívio
histórico concreto. E não era outro o projecto deste Centro,
que o de conhecer a sério o que também, com dano mútuo,
desconhecíamos” (2010).

A Lembrança espectal da Guarda e Oito séculos


de altiva solidão são textos seminais que nos situam
no tempo e no espaço, que permitem compreender
melhor os antecedentes, os pressupostos conceptuais
e os contextos territoriais (locais, nacionais, ibéricos e
europeus) que estiveram subjacentes à ideia lançada por
Eduardo Lourenço quando expressou a “vocação” que as-
pirava para a Guarda: “que ela seja hoje a sentinela dum
futuro comum para uma Ibéria que é um dos polos desta
Europa onde todos nós queremos estar e, onde queren-
do ou não, já estamos.” O caminho apontado conduziu
a dois momentos capitais: a assinatura do Protocolo de
Parceria que formalizou a criação do CEI, em 27 de no-
vembro de 2000, celebrado entre a Câmara Municipal
da Guarda e as duas Universidades mais antigas da
Península, a Universidade de Coimbra e a Universidade
de Salamanca; a institucionalização do CEI publicada no
DR, nº 171, III Série, de 25 de julho de 2001.
Consumou-se, deste modo, a sua premonição: “que a
mais lusitana das fronteiras, no momento em que elas se
apagam, podia ser a mais ibérica e dialogante das terras,
a do diálogo aberto e vivificante com o deserto de que
nos separámos e continuou a florir em nós no silêncio.
Cumpre-nos a nós ser o elo natural do novo diálogo em
que a invenção da Europa converteu a Península” (1999).
Concomitantemente, Eduardo Lourenço deu expressão
pública do vínculo telúrico que o unia a Almeida, à Guarda
e à região, esboçando, assim, uma ténue aproximação
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que cresce sob a forma dum tímido regresso à medida
que aquela ideia germina e se concretiza: “quis a histórica
vila de Almeida associar-se a essa festa e a capital do nos-
so distrito conferir foros de acontecimento cultural aquilo
que já me teria sobejado como íntima romaria do coração
e do espírito ao lugar natal onde tudo quanto me impor-
ta – afeição dos próximos e gosto da sua companhia no
meio de uma natureza que era como o corpo intemporal
de Deus – me foi dado de uma vez para sempre. (…) a
Guarda, esta cidadezinha alcandorada e fria, então ainda
lembrada da primeira República, foi, para mim, a cidade,
como Roma era a urbe para o cidadão romano” (1995).
A maturação da ideia que culminou na criação do
CEI ganha raízes mais fundas e um rumo mais nítido a
cada nova iniciativa: “ao conhecimento e à clara visão do
que foi e continua sendo a versão peninsular da Europa
se deve votar o nosso Centro de Estudos Ibéricos” (2001).
Num evento importante, realizado neste mesmo ano,
Eduardo Lourenço começa a ficar convencido que a ideia
se tornará realidade, ao ponto de afirmar que “começa,
hoje, o que se pode considerar como o segundo peque-
no passo para materializar a sugestão um pouco onírica,
aventurosa, de criar na nossa capital de fronteira, que é a
Guarda, um Centro de Estudos Ibéricos, contando natu-
ralmente que pudesse receber, como recebeu, o patrocí-
nio e a tutela cultural das duas grandes Universidades da
Península: a Universidade de Salamanca e a Universidade
de Coimbra” (2001).
Os fundamentos que sustentaram o discurso da
criação do CEI iam sendo explicitados em iniciativas
singelas ou em momentos marcantes, como a inaugu-
ração da sede do Centro (2005) ou a comemoração do
seu 10º aniversário (2010). Naquela inauguração referiu
que “abolir as fronteiras ou torná-las de símbolo de se-
paração em sentido de mútua imolação, foi a ideia que
presidiu à criação do Centro que, hoje, será oficialmente
inaugurado. O essencial do projeto, modesto nos meios,
mas ambicioso nos fins é, em última análise, o de pensar
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em comum a hora de uma Península que é, hoje, muito
diferente do que já foi. Uma Península que reocupou o
seu lugar na Europa, numa versão diversa da que foi a
nossa no Século de Ouro, e que se encontra confronta-
da em conjunto com desafios de dimensão planetária de
um género novo” (2005).
Anos mais tarde, em data comemorativa e, portanto,
de balanço, retoma tais ideias lembrando que “dez anos
passaram e o que era apenas uma sugestão e um pe-
queno sonho de alterar profundamente as nossas mú-
tuas relações de conhecimento e desconhecimento, co-
meça a receber um princípio de existência. E um pouco
mais do que isso. Primeiro, pelo empenhamento nesta
iniciativa transibérica a partir de uma pequena cidade,
guardiã secular de fronteiras, e do que nela separa, das
duas Universidades que, também, nos mesmos séculos,
foram lugar do mais alto ensino e do reconhecimento da
Cultura que nos é comum: Coimbra e Salamanca”.
A inauguração da Biblioteca Municipal Eduardo
Lourenço (BMEL) pelo Presidente da República, Professor
Aníbal Cavaco Silva, em 27 de novembro de 2008, foi um
ponto alto desta vida partilhada. Nesta data mostrou-se a
exposição Um (e)terno olhar: Eduardo Lourenço, Vergílio
Ferreira e a Guarda e foi publicado o respetivo catálogo
acompanhado pelo lançamento doutras edições sobre o
ensaísta: Existência e Filosofia. O ensaísmo de Eduardo
Lourenço (João Tiago Pedroso de Lima) e Leituras de
Eduardo Lourenço: um labirinto de saudades, um lega-
do com futuro.
Pressentindo um fim inevitável, entre emoção e nos-
talgia, fez questão de assinalar o momento, doando parte
da sua biblioteca pessoal (cf. a lista de obras doadas em
Leituras de Eduardo Lourenço: um labirinto de saudades,
um legado com futuro). As palavras que dirigiu, ao retribuir
os agradecimentos, navegam num mar de sentimentos
que confirmam uma relação intemporal: “com esta doação
(…) eu estou dizendo adeus a mim mesmo e preparando o
mais confortável dos túmulos que é o de saber que assim
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continuarei entre gente que teve alguma consideração por
aquilo que eu sou e que escrevi. Sei que é como dar-me
uma outra vida, uma memória futura, que esses livros se-
rão lidos por outros mais jovens e que viverão. São os meus
livros, os livros dos meus amores, dos meus estudos, das
minhas paixões, literárias e, portanto, através dessa doação
está alguma coisa mais de mim, (…) uma maneira de con-
sagrar à capital do Distrito onde eu nasci uma função de
preservar alguma coisa do menino que eu fui nesta Cidade
onde entrei para o liceu, aos 10 anos, onde fiz a 3ª. classe e a
quem me ligam tantos laços afectivos” (2008).
O resultado desta caminhada de duas décadas mos-
tra que foi feito um esforço para verter a inspiração e os en-
sinamentos de Eduardo Lourenço na missão do CEI pau-
tada pelo Conhecimento, Cultura, Cooperação. A Guarda,
por seu lado, não só reforçou a sua posição no eixo científi-
co e cultural estruturado pelas (univer)cidades de Coimbra
– Guarda – Salamanca como adquiriu, com este processo,
centralidade, cosmopolitismo e capital relacional.

. DIÁLOGOS TRANSFRONTEIRIÇOS: A IBÉRIA E A EUROPA

“A famosa problematização do nosso destino que nos causava


tantos problemas enquanto peninsulares que se viam como
atores políticos de segunda grandeza, de segunda instância. Se
nós pensamos que, particularmente a América Latina, é filha
direta da Península nós não podemos ser problematizados
a esse título. A esse título, já sem o sabermos, essa existência
transatlântica fazia que não sentíssemos tanto as humilhações
que tínhamos em relação à “outra” Europa. Estávamos
construindo algo que nós nem sabíamos o que era, maior do que
nós e isso não é o nosso passado, isso é o nosso presente e penso
que será realmente o nosso futuro. O nosso futuro está naquilo
que realmente inventámos, trazendo à Europa uma Europa que
ela não conhecia” (2011).

A fronteira será enfatizada, tanto no seu significa-


do polissémico como no papel ao longo da história de-
vido à localização da Guarda, sempre com a Ibéria e a
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Europa em pano de fundo, e aos pressupostos, espírito
e momento em que foi criado o CEI. Importa ter presen-
te, então como agora, que a Europa se encontrava em
profunda mutação, se anunciava uma Europa sem fron-
teiras, apostada em liberalizar o mercado e a circulação
de pessoas e bens, que a queda do Muro de Berlim e os
acertos geográficos nos limites fronteiriços fariam irrom-
per, a começar nos Balcãs, novos e sangrentos conflitos.
Os traumas deixados por estas cicatrizes da História,
muitos presentes em várias partes da Europa, convivem
com aquele quadro, já problemático, e com o desconfor-
to das regiões fronteiriças serem as mais pobres no con-
texto europeu. A convicção que estas regiões serão inca-
pazes de reverter tão profundas debilidades estruturais,
económicas e sociais, se entregues exclusivamente à sua
sorte e à dinâmica do mercado, levou à decisão de se im-
plementar uma Iniciativa Comunitária específica para as
áreas de fronteira. O Interreg, criado em 1990, tornou-se
num objetivo formal da Política Regional, em 2000, iden-
tificado como Cooperação Territorial Europeia (CTE), pro-
grama que é um dos principais instrumentos da coesão
económica, social e territorial na União Europeia.
A maneira da Europa se (re)ver, olhar as fronteiras
e a cooperação transfronteiriça mudou profundamente
nas últimas décadas e, com estas alterações, também
mudou o desenho das políticas públicas e dos conse-
quentes programas operacionais. A sexta (6ª) geração do
Interreg (2021-2027), que se está a iniciar, embora conti-
nue a apoiar a cooperação entre as regiões, os cidadãos e
os operadores económicos nas respetivas fronteiras ter-
restres e marítimas, assenta noutras regras e prossegue
objetivos bem distintos dos iniciais. Importa reconhe-
cer, apesar de algumas dificuldades e desacertos, que o
Interreg foi uma oportunidade plenamente aproveitada
pelo CEI, que o seu apoio foi decisivo para concretizar a
generalidade dos projetos e das iniciativas promovidas.
Esta política de cooperação transfronteiriça, que é
intrínseca e faz parte do código genético do CEI, foi vital
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por ter disponibilizado os apoios necessários para res-
ponder a dois desafios complementares: dar corpo, isto
é, uma casa que albergasse o espírito e a causa Ibérica,
que vinha sendo tão eloquentemente teorizada. É justa
uma breve referência a estes dois tipos complementares
de iniciativas: (i) A casa, a sede do CEI, um dos projetos fí-
sicos, de índole material, que irmana com outros equipa-
mentos estruturantes construídos na Guarda entre 2005
e 2008. O Teatro Municipal da Guarda (TMG, 25.04.2005),
Centro de Estudos Ibéricos (CEI, 10.10.2005, Biblioteca
Municipal Eduardo Lourenço (BMEL, 27.11.2008) repre-
sentam um porvir e a assunção da cultura como um de-
sígnio, a abertura da cidade ao exterior, ao diálogo e à
cooperação; (ii) O espírito, a causa Ibérica, a verdadeira
alma do CEI, na sua dimensão mais imaterial e intangí-
vel, reside no património que tem vindo a ser construído
a partir de múltiplas iniciativas, de cursos e seminários a
outros encontros, eventos culturais e apoio à investiga-
ção, sem esquecer o vasto projeto editorial e o Prémio
Eduardo Lourenço.
Os intervenientes e a qualidade do material produzi-
do permitem que se destaquem os Curso de Verão, reali-
zados anualmente, e encontros como o Colóquio A Ibéria
no Contexto Europeu (26.11.2001), que contou com os ne-
gociadores da adesão dos países ibéricos à CEE, respeti-
vamente, Mário Soares e Fernando Morán, além das ex-
posições de Cláudio Guillén, Fernando Savater e Eduardo
Lourenço. A riqueza dos conteúdos que proporcionaram
mostrou que era importante fixar para a posteridade tais
debates, levando o CEI a desenvolver um plano edito-
rial onde, além de edições avulso, sobretudo catálogos
resultantes de projetos ou de exposições que promove
regularmente, se destacam: a Coleção Iberografias, com
quarenta e três títulos publicados (Nº 1, 2004; Nº 43, 2022);
e Iberografias. Revista de Estudos Ibéricos, com periodi-
cidade anual (Nº 1, 2005; Nº 18, 2022),
O legado de Eduardo Lourenço, o estudo e a divul-
gação da sua obra, além do Prémio com o seu nome e
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do Ciclo de Conferências Leituras de Eduardo Lourenço,
com periodicidade regular, já motivou um conjunto
de edições específicas: Leituras de Eduardo Lourenço
― Um labirinto de saudades, um legado com futuro
(2008); Um (e)terno olhar: Eduardo Lourenço, Vergílio
Ferreira e a Guarda (2008); Existência e Filosofia.
O ensaísmo de Eduardo Lourenço (2008); Vida
Partilhada – Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação
Cultural (2013); Falar Sempre de Outra Coisa –
Ensaios sobre Eduardo Lourenço (2012); Metaf ísica
da Revolução – Poética e Política no ensaísmo
de Eduardo Lourenço (2012).
Embora o foco de Eduardo Lourenço se situasse sem-
pre no campo conceptual, no domínio teórico, no mundo
das ideias, apreciava a mobilização dos meios para as coi-
sas acontecessem e os projetos se concretizassem: “Eu
lancei essa ideia – naquela altura não tinha outra – mas
a verdade é que eu realmente sou uma pessoa incapaz
de levar à prática seja o que for. Mas alguém, realmen-
te mais concreto, com os pés mais assentes na terra, to-
mou essa ideia em mão e conseguiu torná-la realidade. É
magnífico que seja uma pequena cidade que tenha tido
esta coragem, que eu próprio não teria, de pegar numa
ideia simples, numa espécie de pequeno sonho, que o
tenha levado à frente e que neste momento já tenha asas
para voos mais altos, que é aquilo que eu desejo que é o
diálogo entre Portugal e Espanha” (2011).
As suas preocupações sempre se situaram na proble-
matização da Península como problema europeu, em dis-
cutir As relações ibéricas no contexto da nova Europa, em
refletir sobre A Ibéria e o diálogo cultural ou Identidade e
cidadania (2011). Acha que “o nosso público natural são os
jovens, os estudantes. É para eles que nós temos de pensar
que o afastamento lamentável ou o pouco conhecimento
que os dois Países têm um do outro, deverá ser colmata-
do e que, através deles, possamos viver de uma maneira
diferente essa famosa relativa ausência, um pouco mítica,
entre os nossos dois Países e as duas culturas.”
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Insistia na convicção de que “Nós, portugueses, te-
mos muita dificuldade em conceber como um todo o
corpo peninsular. Como história, como política, mesmo
como cultura, em sentido profundo, a Península foram
sempre “penínsulas” que se expressaram quer nos seus
conflitos internos, quer nas suas relações diferentes com
a Europa e com o mundo. Portugal e a Espanha viveram,
durante séculos, destinos extremamente análogos, por
vezes paralelos, mas sempre como dois atores. (…) Agora
estamos já normalizados e felizes, de algum modo, em
termos europeus daqui. Mas a Europa não está normali-
zada nem feliz em termos de Europa aquela que não tem
mais horizonte do que essa própria Europa. Mas nós in-
ventámos, construímos – ou através de nós constituiu-se
e inventou-se – uma outra Europa, e em última análise
uma Europa outra, a de um “novo mundo” que não está
só no passado (2011).
A fronteira e a Europa são temas de reflexão per-
manente ao ponto de interrogar “em termos america-
nos onde é a nossa fronteira? Em parte, nenhuma, nem
naquela que temos à vista e atravessamos a pé enxuto,
como César o Rubicão. A verdadeira fronteira é simbólica,
não natural, como essa mesma do célebre riacho italiano
que separava a ordem de Roma, da desordem do capri-
cho ditatorial. As fronteiras chamadas naturais perten-
cem mais à geografia que à história (2004).
“O que nos aconteceu, o que nos acontece, é bem
mais radical e mais interessante: mortais ou não, nós euro-
peus não nos imaginamos já como culturalmente paradig-
máticos. E isto tem as suas consequências quanto ao nos-
so destino cultural de europeus confrontados com outros
destinos tão convencidos como o nosso o foi de que a ele
e a ele só cabiam a vocação da universalidade e a gerência
do sentido da aventura humana. Os outros não só nos in-
terpelam como sempre o fizeram não como nos julgam e
nos contestam ou nos remiram por lei, tendo para connos-
co aquele reflexo de compaixão, de equidade ou de remor-
so que os europeus conheciam já nos Persas de Esquilo e
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um dia os levaram a redigir os Ensaios ou as Cartas Persas.
A cultura europeia que julgava o mundo está em julga-
mento e daí podermos continuar os nossos jogos culturais
como se estivéssemos sós no mundo” (2006)
Consciente que o Muro tinha caído para os dois la-
dos, que vivíamos tempos incertos, de transição e eram
espectáveis tempos conturbados sinalizou com estas
reflexões a perspetiva de que o CEI devia ambicionar: ir
além da geopolítica transfronteiriça, abrir-se a uma co-
operação transibérica onde “o nosso futuro está naqui-
lo que realmente inventámos, trazendo à Europa uma
Europa que ela não conhecia” (2011).

. ITINERÁRIOS ENSAÍSTICOS

“o que eu fiz na minha vida foi uma espécie de diálogo, de


conversa imaginária, uma glosa contínua, uma espécie de
poética e filosófica ao mesmo tempo, sem distinção entre
uma coisa e outra. Depois de abandonado o sonho Hegeliano
de aceder a um tipo de discurso que englobasse a totalidade
possível da experiência humana foi decisivo para mim ter
encontrado Kierkegaard e Pessoa quase ao mesmo tempo”
(2008).

O ensaio, fulcro das suas reflexões como havia de


confessar, foi o ponto de partida de Eduardo Lourenço
para um mar infinito de digressões temáticas: “À falta de
ser um grande filósofo posso consentir ser apelidado “el
pequeño filósofo” como dizia um critico jovem piedoso,
implacável, há uns anos atrás, que eu era um filósofo de
província. Aceito a designação … sou, gostosamente, um
filósofo de província, outra versão do que é um ensaís-
ta” (2008). Acabaria por revisitar, nas várias intervenções
com que nos brindou em diferentes iniciativas promovi-
das pelo CEI, alguns temas que são clássicos numa obra
vasta e polifacetada, onde se destacam a emigração, o
colonialismo e a lusofonia, os tempos e o ambiente cultu-
ral de Coimbra e a grande paixão que foi a literatura.
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Ao discorrer sobre a transição do Portugal emigrante
ao Portugal europeu refere que “tendo sempre emigrado,
os portugueses haviam assumido esse destino, ou essa fa-
talidade, à imagem positiva que eles fazem de si mesmos
e ao papel que desempenhavam, ou julgavam desempe-
nhar, sobre o palco do mundo. Ao partir para o Brasil, os
Estados Unidos, a Argentina, a Venezuela, ou indo para as
nossas antigas colónias, os nossos emigrantes seguiam,
involuntariamente, o percurso dos antigos descobridores.
No anonimato e com discrição, eles prolongavam a epo-
peia, o dever de se espalharem pelo mundo, não apenas
para aí refazerem as suas vidas, mas também para aí de-
sempenhar, em uníssono com os outros europeus, um pa-
pel civilizador ou, pelo menos, de comando” (2000).
Num texto que preparou para a antologia Identidades
fugidias (Navegadores por ruas estrangeiras, 2001), escre-
veu que “ninguém estranhará que uma terra de fronteira
– um cais como um outro se lembre de consagrar à in-
dizível vivência em terra alheia, esta antologia de acasos,
ligados entre si pelo fio ténue e fundo das diversas ma-
neiras de perder pátria, e de inventar, através do que em
nós é sofrido, e às vezes até desejado como exílio, larga
ou breve ausência ou definitivo adeus ao que se deixou
e nunca nos deixa. Nem tudo neste rosário de vivências
como “outros”, só por não estarmos em casa, releva da já
muitas vezes glosada, aventura emigrante. Antes se pode-
ria falar de uma espécie de memorial de um nomadismo
mais arcaico tornado quase destino, se não vocação, num
povo que ao largo dos séculos derivou ao longo de mares
e continentes, por vontade própria, sem nunca encontrar,
fora dele, um outro rosto diferente do que levou” (2001).
A emigração e o regresso, enquanto componen-
tes estruturais da sociedade e da cultura portuguesa,
foram objeto de vários estudos e demoradas análises.
Considerou, a este propósito, que “por instinto, os nossos
emigrantes saíram em grupo. Diferiam quanto podiam
o encontro com “o outro”, aquele que não vos compre-
ende, nem sabe o vosso nome. É aí que a verdadeira
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diáspora começa. Perdemos o nome. Por isso mesmo, o
nome pátrio adquire então uma magia, um fulgor que o
aconchego doméstico nem de longe deixava prever. O
exílio, a emigração, a expatriação, a vida entre “gente re-
mota” é quase, desde o início, já um regresso. Mas antes
de tudo, embora às avessas, a revelação da nossa identi-
dade. Em casa não precisávamos dela. Tínhamos a cole-
tiva para nos identificar. Apenas passamos a fronteira da
língua, dos gestos, dos costumes, começa a nossa desi-
dentificação” (2001). Sobre o retorno já havia sentencia-
do que “só Deus festeja os filhos pródigos. Os homens
têm grande dificuldade em aceitar aqueles que regres-
sam a casa com os braços cheios de presentes, como
o fazem os nossos emigrantes em férias. Estes sabiam
que tinham que fazer-se perdoar, não dos seus pecados
– ou seja, do seu sucesso –, mas do ressentimento de
uma pátria incapaz de os reter e, agora, espantada com
o seu êxito” (2000).
O colonialismo e a lusofonia são temas recorrentes
que retoma com insistência, fundamentalmente, depois
da passagem por Salvador. Reconhece que “o que acon-
tece é que os portugueses inventaram, para seu próprio
consolo, que o seu colonialismo não era igual aos outros.
O problema é que todos os colonizadores pensam a mes-
ma coisa. O seu colonialismo é que é bom, o dos outros
não é tão bom como isso e o nosso era o melhor de to-
dos. Não seria o melhor de todos, mas também não foi
o pior”. (…) “Depois de termos sido os maus da fita, sem
termos o poder para o ser. Felizmente, penso que toda
esta história vai ser outra vez revisitada, reescrita por nós
em primeiro lugar, mas penso igualmente no outro lado,
porque nós não temos ainda um discurso, pelo menos
eu não tenho, também não sou historiador… Agora que-
remos ter a plena palavra do outro. Não a confiscámos,
talvez por ignorância, mais do que por outra coisa, mas
precisamos saber o que foi para nós esse império pela
boca daqueles que eram objeto dessa dominação ou
desse domínio” (2015).
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No Seminário (Re)Encontros em tempo de (Des)
Encontros. Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas
Geografias, realizado na Universidade de Coimbra, no dia
23 de abril de 2015 apela a um diálogo com o outro, que
considera interessante, como “tudo quanto vem das no-
vas culturas para que possamos perceber o que fomos,
não na nossa própria imagem narcísica, mas no que fo-
mos aos olhos dos outros com quem estávamos confron-
tados: alguns na convicção do sentido da história, como
se dirá mais tarde, e outro estudo simplesmente porque
assim é o movimento da humanidade. Estamos muito
atentos a tudo quanto as novas gerações de africanos
escrevem, dizem, pensam e, para isso, é que são necessá-
rios seminários como este” (2015).
Os tempos de Coimbra foram cruciais, ecoaram fun-
do na vida e prolongaram-se, rizomaticamente, na vasta
obra de Eduardo Lourenço. Estas paisagens matriciais,
havia de confessar, estava impregnada duma “mitologia
coimbrã” que “existe e eu naturalmente ignorava, quan-
do cheguei aqui, em 1940, que ia entrar num mundo com
outras regras e outros ritos, sobretudo naquela época em
que Coimbra ainda tinha essa espécie de monopólio mui-
to simbólico, porque, na verdade, naquela altura só havia
mais duas ou três universidades e todas elas muito mais
recentes do que a famosa Universidade de Coimbra”.
O convívio com uma geração que se afirmou no
panorama cultural nacional começa pela contestação a
uma certa tradição e aos seus símbolos: “Eu nunca fui
muito folclorizante e na minha geração éramos muito
reticentes em relação ao culto da tradição e das praxes.
O grupinho em que eu me vim depois a reconhecer era
muito anti praxista, que naquela altura não significava
apenas uma coisa de ordem de ritos académicos com
uma certa tradição, era também uma maneira de não
querer comungar da atmosfera “luso oficial” do país; ser
anti praxista era um sentimento de oposição de algum
modo latente mas eu não comunguei de uma coisa nem
de outra”.
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A sua geração, onde vão pontificar Carlos Oliveira,
Joaquim Namorado, João José Cochofel ou, duma outra
maneira, Miguel Torga, vão inaugurar “outo tipo de mi-
tologia coimbrã que foi muito eficaz e que teve grande
tradução na ordem da poesia e da ideologia, uma gera-
ção que mais tarde recebera o nome de neorrealista, que
é relativamente tardia, e que era, pura e simplesmente,
toda uma geração cujas raízes se encontram nos anos
trinta”. Resumindo, “existe uma leitura plural do mun-
do em que vivemos e, portanto, os tempos de Coimbra
estão no passado e são o que são. Estão no passado por-
que é onde tudo está, porque o presente é a única coisa
em que nós estamos, sendo o presente a negação desse
passado. Hoje não vivemos naquela convicção de que o
mundo ocidental e a Europa em particular são os atores
da história por excelência e que os outros são subalter-
nos” (2012).
A literatura foi uma grande paixão de Eduardo
Lourenço e lendários os seus ensaios sobre Fernando
Pessoa, a teorização sobre o neorrealismo, os prefácios
que escreve para obras de vários escritores. A sua últi-
ma intervenção, feita na sessão de entrega do Prémio
Eduardo Lourenço a Basilio Losada, foi precisamente so-
bre Do Homem como Literatura, uma espécie de can-
to do signo revisitado: “Em certas culturas, para quem a
atividade literária é o paradigma da mais alta expressão
criadora, costuma dizer-se de muitos escritores que es-
crevem como quem professa, que entram na literatura
como se ela tivesse portas ou como quem entra para um
convento. Isto dá a medida da sacralização de que a cria-
ção literária é exemplo nos tempos modernos. A moder-
nidade em última análise é precisamente a sublimação
da escrita até então reservada ao texto sagrado. As feiras
literárias do mundo inteiro, a sua proliferação - que tam-
bém pode ser lida como banalização do objeto literário -
testemunham o impacto, a centralidade como referente
simbolizante privilegiado da criatividade humana - a par
da música - do planeta literatura” (2018).
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Em momentos importantes do ciclo de vida que
partilhou com o CEI as suas intervenções versaram te-
mas literários:
— Camões e Cervantes vieram pela sua mão ao seminá-
rio A Ibéria no Contexto Europeu quando, em setem-
bro de 2005, “Em véspera da inauguração do Centro
de Estudos Ibéricos sugeri que se fizesse uma sessão
cultural que tivesse como objetivo pensar ou evocar,
de algum modo, aquilo que são referências míticas
da nossa cultura ibérica: Camões e Cervantes, tanto
mais que este ano é aquele em que o mundo inteiro
celebra o aparecimento dessa obra sem par chama-
da Dom Quixote”.
— Numa homenagem a Manuel António Pina
(21.01.2010): “MAP é um dos raros poetas do meu co-
nhecimento que não confere ao que chamamos in-
terioridade uma qualquer consistência e faz dela a
essência mesma da nossa identidade. Para ele, tudo
– mesmo o mais subtil e efémero – é pura exteriori-
dade. Como a literatura tem vivido, desde a sua ori-
gem, da convicção de que o sentido e a realidade do
mundo só dessa mítica interioridade são a expressão
e o espelho, suspeitá-la ou preferir-lhe esse outro es-
pelho, o da exterioridade (onde tudo está inscrito e
de onde tudo é descrito), é uma espécie de revolu-
ção coperniciana na ordem da poética e da poesia.
MAP não a inventou nem a consome a sós” (2012).
— Na Conferência Portugal e o seu Destino (6 e 7 de ju-
nho de 2013), ao dissertar sobre Fernando Pessoa e o
Livro do Desassossego: “Fernando Pessoa é uma es-
pécie de tóxico divino para a nossa pretensão, que
constituiu a essência do que nós somos, de que há
qualquer coisa que efetivamente tem sentido e que
nele mesmo contém o sentido dos sentidos” (2013).

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. PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO

“Somos nós todos, em particular, eu, que lhe agradeço o ter


tido a gentileza e a humildade de aceitar este Prémio [Eduardo
Lourenço]”.

O Prémio Eduardo Lourenço foi instituído em 2004


com o objetivo de galardoar personalidades ou institui-
ções com intervenção relevante no âmbito da cultura, ci-
dadania e cooperação ibéricas. O Patrono esteve presen-
te em 10 edições, até 2018, como provam as intervenções
nas sessões de entrega do Prémio e que se encontram
reproduzidas nesta obra. Entre 2004 e 2022 foram galar-
doadas 18 personalidades: Maria Helena da Rocha Pereira
(2004), Agustín Remesal (2006), Maria João Pires (2007),
Ángel Campos Pámpano (2008), Jorge Figueiredo Dias
(2009), César Antonio Molina (2010), Mia Couto (2011),
José María Martín Patino (2012), Jerónimo Pizarro (2013),
Antonio Sáez Delgado (2014), Agustina Bessa-Luís (2015),
Luis Sepúlveda (2016), Fernando Paulouro das Neves
(2017), Basilio Losada Castro (2018), Carlos Reis (2019),
Ángel Marcos de Dios (2020), Fundação José Saramago
(2021) e Valentín Cabero Diéguez (2022).

. REGRESSO SEM FIM: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO


“Naquele tempo a nossa aldeia não estava ainda, digamos,
dissolvida como todas, num mundo real a que pertencia e hoje
está talvez dissolvida, como todos nós, numa espécie de esfera
virtual, que de facto é de toda a gente e de ninguém” (2012).

Havia escrito em outro local que a inauguração do


memorial, em 2012, integrada na homenagem que teve
lugar em São Pedro de Rio Seco, simboliza o reencon-
tro de Eduardo Lourenço com as origens, acelera a ca-
minhada final que se concluirá com a sua última visita
à Guarda, em 7 de setembro de 2018, para a entrega do
Prémio Eduardo Lourenço. A intervenção que intitulou
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Quem vê o seu povo vê o mundo todo, o documentário
Regresso sem fim são apenas etapas do Roteiro Eduardo
Lourenço, essa viagem interminável pelos lugares de
memória que incluirá o Memorial Eduardo Lourenço no
Centro de Estudos Ibéricos.

. NÓS COMO FUTURO: O ESPÍRITO DO LUGAR E O DESTINO


DO CEI
“a esperança, o sonho, a utopia, que são a sua substância já
incorporada no nosso presente, coabitam connosco e guiam
todos os nossos passos e pensamentos” (A Nau de Ícaro, 1999: 62).

Vinte anos é muito tempo e enormes foram as mu-


danças ocorridas no CEI, na Guarda, no País, na Europa e
no Mundo, como já havia vincado no prefácio de mais uma
edição do Labirinto da saudade (Para uma revisitação
improvável, 2000: 12): “Na aparência, o país que há vinte
e dois anos podia justificar um livro como O Labirinto já
não existe. Nestas duas décadas não mudámos apenas
de estatuto histórico-político, de civilização e de ritos so-
ciais que julgávamos, lamentando-o, característicos de
uma sociedade quase marginal em relação aos padrões
europeus. Mudámos, literalmente falando, e sem quase
nos dar mos conta disso, de mundo. Mudámos porque o
mundo conheceu uma metamorfose sem precedentes,
não apenas exterior, mas de fundo”,
Na entrada do novo milénio a cidade não tinha com-
paração com as feições da Guarda que Eduardo Lourenço
conheceu quando chegou, nos anos 30 do século XX, para
concluir a instrução primária e frequentar o liceu. A cida-
de que estava a emergir quando os respetivos caminhos
se voltam a cruzar é marcada por alguns projetos que vão
dar um espírito novo à velha urbe e que ficam, indele-
velmente, ligados à figura tutelar de Eduardo Lourenço:
a Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço e o Centro de
Estudos Ibéricos.

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A obra agora editada, que se pode interpretar por
uma merecida homenagem, reúne textos que são um le-
gado que prestigia a Guarda e o CEI. Ao contribuir com re-
flexões tão amplas e abrangentes, indispensáveis a qual-
quer visão holística, integrada e integradora do mundo
em que vivemos, Eduardo Lourenço fornece orientações
para compreendermos como aqui chegamos, onde esta-
mos, para onde ambicionamos ir.
Porque “desde há um quarto de século, sem cuida-
dos de império, rendeiros módicos da nova Europa, po-
demos cultivar enfim, o nosso jardim” (Portugal como
destino, 1999: 72), cumpre à Guarda e ao CEI continuar a
honrar a memória de Eduardo Lourenço aproveitando os
seus ensinamentos para alimentar “a esperança, o sonho,
a utopia” “incorporada no nosso presente”.

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© Câmara Municipal da Guarda

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VIDA PARTILHADA:
A GUARDA E O CENTRO
DE ESTUDOS IBÉRICOS

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LEMBRANÇA ESPECTRAL DA GUARDA

Intervenção na homenagem que lhe foi prestada, na Guarda, a 10 de


setembro de 1995 1

Quem vê o seu povo vê o mundo todo.


– PROVÉRBIO FAMILIAR –

J’ignore pour qui j’écris mais je sais pourquoi j’écris. J’écris pour
me justifier. Aux yeux de qui? Je vous l’ai déjà dit, je brave le
ridicule de vous le redire …. Aux yeux de l’enfant que je fus.
– BERNANOS –

Queiramo-lo ou não, todos nós escrevemos aquilo


que, com razão ou sem ela, os outros recebem como obra
nossa. Alguma coisa de mim deve estar no que, ao longo
de quase meio século e sempre como por acaso, fui es-
crevendo e pode justificar, no âmbito cândido e protegi-
do da nossa dura e arcaica província, esta homenagem.
A presença do Senhor Presidente da República e o
apadrinhamento de tantas personalidades marcantes no
campo da ação, da literatura, da arte e do jornalismo con-
ferem-lhe um sentido e um eco que não podia ser previs-
to pelos modestos conterrâneos que a imaginaram.
Em semelhante ocasião gostaria de forçar a íntima
repugnância que sempre me tolheu, como se convives-
se comigo o célebre demónio socrático, em me assumir
como autor, como um eu, não só responsável, mas mini-
mamente solidário com aquilo que em princípio nasce

1 LOURENÇO, Eduardo – J.L. – Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 667, 1996, 8 de maio, 11-12
BAPTISTA, Maria Manuel O outro lado da lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço. Guarda:
Campo das Letras/Centro de Estudos Ibéricos, 2005. ISBN 972-610-941-8
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de mim, me implica, compromete e me serve de ponte
para os outros. Mas sou incapaz de viver a minha rela-
ção com o escrito de outra maneira que sob a forma de
máscara. O meu destino literário, se é um, foi o de me
empregar nos “outros”, mortos ou vivos, e dizer através
deles aquilo que não sei, não posso ou não quero dizer
com absoluto senhorio. Aquele que eu atribuo aos cria-
dores em sentido pleno e que tanto espanta, o meu ami-
go Vergílio Ferreira. Não sei quem me fala e não será hoje
que o aprenderei.
Há anos, em Paris, único da minha espécie dentro da
embaixada de poetas e romancistas que com tanto bri-
lho representaram a nossa cultura, fui apresentado por
Eduardo Prado Coelho ao público da Sorbonne como “o
amigo dos Poetas”. Está certo. Da Poesia seria ainda me-
lhor. Mas por não ser sujeito dela não posso investir-me
dessa função sagrada que desde sempre confere aos
seus cultores o papel de vates, de profetas ou pastores
do ser, que quer dizer, de voz essencial da comunidade.
Pertenço, no melhor dos casos à espécie crítica que está
para a criação como na Idade Média a Filosofia estava para
a Teologia. Não é modéstia – imodéstia da minha parte,
é justa perceção – pelo menos assim o penso – do meu
lugar próprio dentro do complexo labiríntico da Cultura
que em última análise não é outra coisa do que consciên-
cia natural da criação, espécie de acompanhamento me-
lancólico da nossa mão esquerda, glosando sempre em
atraso a vaga irresistível da inspiração digna desse nome.
Melancolia de quem está separado dos cumes, mas deles
vive ou para eles indefinidamente aspira. Todavia, por as-
sim ser, também mais obrigado me sinto, aqui, como eu
sem máscara, no inconforto da minha nudez, a agrade-
cer sem restrições esta excessiva festa que os meus con-
terrâneos quiseram oferecer a quem tão cedo partiu para
longes terras sem partir da sua companhia.
Quis a histórica vila de Almeida associar-se a essa
festa e a capital do nosso distrito conferir foros de acon-
tecimento cultural aquilo que já me teria sobejado como
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íntima romaria do coração e do espírito ao lugar natal
onde tudo quanto me importa – afeição dos próximos e
gosto da sua companhia no meio de uma natureza que
era como o corpo intemporal de Deus – me foi dado de
uma vez para sempre. Todos nós, nascidos numa aldeia
ou num bairro da mais cosmopolita das cidades, nasce-
mos num sítio igual e tivemos o gosto da infância que é o
mesmo da vida que ainda não caiu no mundo. Como os
povos felizes, as infâncias não têm história. São os outros
que no-la contam ou recordam. A nossa vida passa-se a
inventar a infância que não tivemos e a tentar merecê-
-la. Para mim, o encontro com o mundo – o que chamo
queda – foi precisamente nesta cidade onde estamos.
Digamos a primeira escala de uma errância que não ter-
minou. Nos anos trinta – em 1931 – a Guarda, esta cidade-
zinha alcandorada e fria, então ainda lembrada da pri-
meira República, foi, para mim, a cidade, como Roma era
a Urbe para o cidadão romano.
Atrás de mim ficava, para sempre, separada de tudo,
à margem e no centro de tudo, a aldeia “piccolo mon-
do antico” para me lembrar de um título de Antonio
Fogazzaro, lido na adolescência. Esse pequeno mundo
não o posso evocar senão através de uma velha página
de “Diário” sempre adiado, onde em aí ouso assumir-me
como seu autor. É a um Tu imaginário que confio a mi-
nha indizível vivência desse mundo vivo e morto.
“Tu” habitaste um planeta desaparecido. Não podias
adivinhar que o que te cercava era mais estranho que a
face escondida da lua. Se tivesses sabido que o granito
triste, as mãos terrosas, as camisas encardidas da tua gen-
te, seus gestos, suas palavras já haviam morrido há sécu-
los e te batiam no rosto como a luz das estrelas há muito
extintas, terias sido mais atento. Assim, tudo te passou
como água entre os dedos. Mais tarde podias ter regis-
tado essas vozes, o diálogo entre fantasmas que elas não
sabiam ser, mas ninguém te preparara para Óscar Lewis
da tua própria gente. Tu habitaste entre gente medie-
va, medievo tu mesmo. E foi o melhor que te aconteceu.
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A família da tua infância, a tua aldeia árida e pobre, hoje
dissolvida em poeira e saudade estelar, viviam sem con-
tradição alguma no neolítico, na pré-história, na idade
média, um pouco no século xix (quando alguém ia à es-
tação de Vilar Formoso), e não sabiam quase nada do sé-
culo xx, que as ignorava. Nem água encanada, nem luz
elétrica que só quarenta anos mais tarde viria alumiar
um mundo perdido. A água espera ainda, e é bem feito
para um povo que se chama Rio Seco.
Poucas vezes, a tão desencontrados tempos, foi ofe-
recido um espaço tão claro. Os perfis humanos como as
luzes recortam-se num espaço de cristal. Cada casa tem
seu nome, cada árvore, cada animal, cada criatura, cada
parcela de terra. Tudo é claro, silencioso e vibrante como
o quadrado do cemitério que remata o povoado como
uma demonstração sem réplica. Também ele mudou.
Está menos empapado de mortos. A antiga poeira anóni-
ma não foi renovada. Os quatro ciprestes de cada canto
estão quase secos, faltos de branca argila, mais mortos
que a morte. Já não se persignam os garotos escarrapa-
chados nos burros que vão à lenha menos esfarrapados
que há quarenta anos. Alguns assobiam ainda para es-
conjurar alguma veleidade póstuma dos seus parentes.
Muitos pensam que os pais, já longe ou noutros conti-
nentes, não se misturarão a essa terra seca, nem ficarão
sob cruzes precárias confundidos entre os montículos
cobertos de erva sem quase uma flor. Nenhum pode
imaginar que este quadrado branco era para os pais a
barca escura que conduzia aos céus. Durante centenas
de anos, as Teresas, as Marias, os Josés, os Antónios aqui
esperaram a ressurreição que não veio, e eles já não es-
peram. Mas nem podem imaginar que para a criança de
há quarenta anos este minúsculo quadrado de terra teve
a largura da Morte e o sabor de uma vertigem onde se
afundava o sol e as constelações.
Era o tempo em que essa aldeia era um organismo
vivo, uma espécie de homem coletivo, separado do mun-
do que o desconhecia e ele desconhecia, homem de dura
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enxada e de seus parcos frutos. Entre a fome e o sol todos
os dias eram seus. Pouco a pouco esse vasto mundo in-
vadiu-lhe a casa, separou-se de si mesmo convidando-o
para manjares mais suculentos que nunca mais lhe sa-
ciarão a antiga fome. Envergonhou-se dos tamancos, das
meias de algodão, do casaco de serrobeco, pôs um pouco
mais de açúcar no café, aprendeu a ler e a esquecer o
que lia e conheceu, enfim, a sua milenária miséria. Em
quarenta anos passou da planta de Pan e das aventuras
de Dafnes e Cloé ao esplendor imaginário da televisão e
seus amores piegas, seus locutores ventríloquos, vende-
dores de elixires divinos. Só é pena que tanta felicidade e
tanto sonho a domicílio nem cure fome de séculos nem
faça florir o deserto. As novecentas almas do povoado re-
colheram à sombra ou esperam por ela. Já não habitam
essas cozinhas enfumadas de trogloditas felizes. As mais
audazes partiram à busca de alimento, música, cinema….
Estão em África, no Brasil, em França, na Alemanha e até
na Espanha. Lá é o São Pedro deles. Este, a minha aldeia
sem história de ouro e sangue, navio encalhado na me-
seta hispânica, enterra-se docemente na sua inexistên-
cia, com todas as luzes apagadas e um carregamento de
fantasmas coberto de antigo suor e de mais antigas lágri-
mas. Quem o pudesse ressuscitar…
Deixando a aldeia deixara a comunidade para entrar
no que confusamente adivinhava ser a sociedade. De cer-
to modo, cidade alguma, de Coimbra a Lisboa, de Paris
a Nova Iorque, de Hamburgo a Nice, me causará maior
surpresa que este pequeno mundo onde a pequena tri-
bo familiar estava perdida entre outras tribos, onde cer-
tas casas me pareciam palácios com as suas janelas de
cristal talhado e altas portas senhoriais, detrás das quais
entrevia uma vida misteriosa, de uma humanidade dife-
rente, como nos sonhos.
Da verdadeira Guarda só me eram familiares o frio,
a neve, o nevoeiro, que hoje veio envolver-nos, o céu var-
rido, a aparência sideral que anos mais tarde Vergílio
Ferreira, evocará, magistralmente, em Estrela Polar.
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Nesses oníricos anos da minha terceira classe a Guarda
era só não ser São Pedro, a perda do ninho, o primeiro
encontro com os outros. Dois anos mais tarde entraria
aqui no Liceu, primeira saída do reino protegido de toda
a infância que Sartre invoca em Les Mots, e também
o primeiro degrau de um percurso sem fim – o que se
chama um curso, e é uma batalha incruenta para desco-
brir o nosso papel na vida. Pelo menos assim era para os
filhos de modesta extração, como os meus irmãos e eu,
que vínhamos de aldeias remotas para ser gente. E que,
deixados a si mesmos aqui, muitas vezes se perdiam em
cafés parados no tempo, dignos do cinema neorrealis-
ta. A rádio, nas tardes imóveis dos domingos, enchia o
jardim em frente do quartel com a música melancólica
de fados, de tangos ou de notícias de um mundo onde
se preparavam desastres que, como sempre, não nos
diziam respeito.
Pela idade, mas também creio, por alguma coisa
que era própria desta cidade – como a radiografia artís-
tica de Vergílio Ferreira mo confirmou – a Guarda ficou
sendo para mim, uma realidade espectral. Uma espécie
de Marienbad com as suas altas peanhas encimadas
por bustos de personagens misteriosos como num ce-
mitério no deserto, ou uma pequena Davos – Platz, com
o seu célebre Sanatório de onde se escoavam às vezes
para as ruas da cidade criaturas pálidas que atravessa-
vam, desviando-se das pessoas sãs, como fantasmas.
Só uma tarde soube que era lugar de sonhos de outra
espécie, desses sonhos que só as pequenas cidades se-
cretam, sonhos de ambição política, de saber, de poder
social que tanto beirão – alguns aqui presentes – ilustra-
rão. Menos conhecia os poetas, com exceção do autor
de Luar de Janeiro, Augusto Gil, um António Nobre sem
pose, mas também sem o seu génio, que andava a justo
título nas seletas, com a celebérrima Balada de Neve,
que parece ter deixado traços num famoso poema de
Pessoa. Dos vivos, vi passar na rua, envolto em soturni-
dade, Nuno de Montemor a caminho do Lactário desta
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cidade, um autor da nossa província profunda, que evo-
cava, para um largo público católico do país, dramas e
paixões do mundo eclesiástico.
Bem se deixa ver que nada fiz na Guarda, ou pela
Guarda, que mereça a atenção e o desvelo com que hoje
rodeia um filho do distrito, que, como disse em Almeida,
foi mais do que pródigo. Mas a Guarda deixou-me, sem
dúvida, a sua marca de cidade que imitava, nos seus ri-
tos iniciáticos, a lendária Coimbra que mais tarde seria,
senão a da vocação, ao menos a pátria da iniciação cultu-
ral. A adolescência é o tempo incerto para toda a gente.
Naquela época abordara a este páramo pátrio o sonho
portátil que chamamos cinema. Aquele que será para
mim como o livro de imagens da História Sem Fim. Nas
ruas cantava-se o “Teodoro não vás ao sonoro”. Aqui vi o
primeiro filme de cowboys que não tinha ainda a dig-
nidade dos Westerns, Tom Mix, rei dos cavaleiros e uma
versão extraordinária de Romeu e Julieta com Norma
Shearer que podia, à vontade, ser avó de Romeu. Pelo
menos mãe. Pareceu-me sublime.
Na adolescência vivemos com naturalidade no
sublime. E se aí ele não nos eleva um pouco acima de
nós mesmos, corremos o risco de o falhar para sempre.
Foi dessas alturas, que eram de vida, de sonhos vagos,
de vertigens inocentes e do coração, que o tempo da
Guarda foi feito para mim. E é assim que se conserva
em qualquer desvão da minha memória esburacada.
Muitos anos mais tarde, vindo de Lisboa a caminho de
França, já então a minha segunda pátria, por escolha e
enraizamento familiar, percorri a minha antiga cidadezi-
nha, entretanto crescida e moderna, como um extrater-
restre. Onde ninguém nos conhece somos espectros de
nós mesmos. A cidade estava quase deserta. Era noite.
De súbito, reconheci, encostado contra os cunhais da
Farmácia da Misericórdia, onde há séculos, como diria
o Eça, se discutia a política deste mundo e do outro, um
antigo amigo do meu pai parecido com George Sanders,
playboy que em cada fim do mês largava para Lisboa
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para jogar, numa noite, o seu parco ordenado. Meu pai,
pai de tanto filho, era o contrário desse personagem,
mas essa extravagância fascinava-o. Não ousei falar-lhe.
Não me quis confrontar com o meu próprio espectro.
O tempo da Guarda tornara-se legenda. Legenda mi-
nha, mas que quis evocar para encontrar alguma justi-
ficação para estar aqui, ao abrigo dos olhares compla-
centes e benévolos, não ardendo como um fósforo frio,
à maneira do muito revisitado Pessoa, mas recordando
águas passadas, que pelo milagre da estima alheia, se
tornaram vivas. A todos os que pela sua presença neste
momento me fazem existir com mais força e convicção
do que a chamada minha vida, em perpétua busca de si
mesma, o meu fundo agradecimento.

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OITO SÉCULOS DE ALTIVA SOLIDÃO

Oração de Sapiência na sessão solene das Comemorações dos Oitocen-


tos Anos da Guarda, 26 de novembro de 1999 1

Neste século, há apenas trinta e poucos anos, Vergílio


Ferreira consagrou à Guarda da sua adolescência, fre-
mente e inquieta, a mais espectral evocação que o anti-
quíssimo burgo de D. Sancho mereceu até hoje. Não por
acaso, esse seu romance se chama Estrela Polar, estrela
álgida, solitária, a quem incumbimos da missão de nos
guiar na noite escura do mundo. A ele voltarei.
O mesmo Vergílio Ferreira, sempre tão presen-
te na minha lembrança, num discurso memorável, em
Bruxelas, disse que da nossa língua se vê o mar. Ele pen-
sava, como todos nós, na numerosa corte de poetas, que
desde os cancioneiros a Sophia de Mello Breyner, pas-
sando por Camões, Antero, Nobre, Pessoa, envolveram a
nossa imagem de portugueses nas ondas do mar, que
nos foi destino. É curioso que o tenha dito, porque da sua
língua natal, da língua desta beira serrana e da sua capi-
tal, cercada de um silêncio de séculos, físicos e simbóli-
cos, não se vê o mar. Sabe-se que existe, pressente-se tal-
vez, adivinha-se, sonha-se com ele como Adamastor com
uma Tétis que o não anda cercando. O mar é, e foi-nos,
porta para o mundo. Mas o destino desta velha terra,
consagrada à defesa e vigilância de um pequeno reino,
que não sabia ainda que seria grande e disperso como
um arquipélago, não era o da viagem mas o da vigília, do
ensimesmamento e, em todos os sentidos do termo, da

1 BAPTISTA, Maria Manuel – O outro lado da lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço. Guarda:
Campo das Letras/Centro de Estudos Ibéricos, 2005. ISBN 972-610-941-8
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solidão. Da grande solidão das Beiras falou o etnólogo e
antropólogo Jorge Dias.
Falemos nós da sua efetiva interioridade, mais filha
da história do que da geografia, não para assinalar uma
condição de isolamento, difícil de viver e aceitar, mais a
mais num espaço tão pequeno como o nosso, em que
tudo está próximo de tudo, mas para a pensar.
Só em termos modernos, o ser interior é vivido
e percebido como uma espécie de maldição ou fata-
lidade. A nossa velha Beira, a sua capital, que hoje se
recorda de um longo e solitário passado, só é interior
depois que Portugal se define por um mar que hoje
nem fica longe para ninguém, mas então era como um
outro planeta.
Nos seus começos, esta cidade e a velha Beira, que
dominava altaneira, foram, não apenas fronteira, mas co-
ração de Portugal. Então o nosso horizonte vital, o nosso
mar de terra e pedra é a meseta contígua, matriz de onde
nos separámos, espécie de deserto de onde durante sé-
culos, inquietos como no romance de Dino Buzatti, espe-
rávamos, não os tártaros, mas os nossos excessivamente
próximos castelhanos.
Estas terras, esta cidade e a muralha intermitente de
castelos com que o céu se emparceirou, não eram ain-
da a ex-fronteira sem emprego de um país com os olhos
no vasto mundo, mas os guardiães da casa comum que
confiava na sua vigilância. Em nome de El-Rei D. Sancho
ou do previdente D. Fernando fora criada e amuralhada
para ser, em todos os campos, a guarda desse reino fraco
e vulnerável. Não éramos, no sentido preciso, realmente
a Guarda, não éramos o Far-West ou o far-east de um
país que nos voltava as costas, mas a sua sentinela, a sua
guarda avançada, entrada de reino e saída natural e futu-
ra para a vasta Europa, além da Espanha.
Os oito séculos que celebramos têm muitos tem-
pos. Antes que a história, que não é fatalidade, mas obra
nossa, convertesse a fortaleza viva e útil dos séculos me-
dievais em sentinela espectral, sobre que cairá, insone, a
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neve dos dias e com ela o desconforto, o sentimento de
estar parado ou desfasada do resto do país.
Esta Beira foi o Portugal profundo, o Portugal do
arado, da cruz e da espada, confundidas como era lei do
tempo, terra e gente em luta com uma natureza avara,
ganhando, com suor e sangue, o que ninguém lhe dava
de graça e sempre pronta para ir, não para o mar, mas
além dos mares, para sítios que nem os sonhos avistam,
fosse o Brasil, fosse o Oriente, fosse a Austrália, fosse o
Canadá. Nesse mundo e nessa época, ninguém sofria
de interioridade. Simbolicamente sede de um dos mais
prestigiados bispados do reino, a Guarda não sabia – nin-
guém se preocupava muito com essas fantasmagorias
– que um dia seria por dentro menos do que era então,
uma cidade coroada por uma Sé fortaleza, navio de pe-
dra ao alto de uma montanha. E esse navio às avessas é
ainda hoje o brasão de uma história que só espera de nós
que descubra outra vocação, outro rumo, para ter tanto
sentido como o tinha nesse tempo em que a sombra de
Castela não nos deixava dormir.
A evocação ou a referência ao passado só é interes-
sante por pôr em causa o presente e explicar as suas nos-
talgias ou o seu mal-estar. Ser interior hoje, ser capital ou
cidade de interior é vivido como punição, como empo-
brecimento efetivo e simbólico, como fatalidade. É verda-
de que a cidade de D. Sancho pagou caro o seu papel de
sentinela, ao mesmo tempo real e ilusório. Que aceitou
com demasiada passividade o destino barroco, e mais
tarde o administrativo, que o século xix lhe proporcionou.
E que lhe tem custado acompanhar a tumultuosa meta-
morfose de um Portugal que está apanhando ao mesmo
tempo todos os comboios perdidos que nos afastavam
da Europa.
Não é a única. Mas talvez como nenhuma se encon-
tra hoje confrontada com um desafio a si mesma, de
perfil desconhecido noutros tempos, mesmo próximos.
E, como muitas outras entre nós, mas de uma maneira
aguda, dividida entre o que se pode chamar a miragem
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folclorizante de si mesma e a miragem futurante de uma
vida contemporânea da Internet, onde, paradoxalmente,
sentir-se isolado do mundo nem é álibi nem desculpa,
tão impossível o parece. Ao menos virtualmente.
Cultivar as nossas raízes, inspirar-se nelas ou delas
para sentir-se como uma espécie de barca que voga no
tempo, não é nenhum pecado. A Beira, a nossa Guarda,
são terras de larga e funda memória. A nossa alma ar-
caica, quer dizer original, e sobretudo imemorial, fazem
parte de nós mesmos sem saber como a somos e o que
somos nela. Mas a tentação folclorizante é um pouco a
perversão desse tempo imemorial e interior, a vontade
de querer “voluntaristicamente” estar num tempo que já
não é o nosso.
É o presente que vivifica todos os passados. O nosso
está nas pedras que já lá estavam antes de sermos rei-
no e cidade querida de reis. Está em costumes que ain-
da têm em nós ecos insuspeitados. Faz parte do imen-
so arquivo de afetos, como diria o ator e poeta Américo
Rodrigues, que fizeram de nós o que somos, particular e
fundo, como se fôssemos irmãos gémeos das pedras que
na montanha nos parecem gente viva. É bom não per-
der nada do que nos identifica, mesmo o que só se torna
nosso por graça dos céus. Se não temos um património
provincial tão rico como outros cantos de Portugal, não
é desprezível, é o nosso e na sua relativa modéstia está
certo com tudo quanto somos de nu e depurado. A pe-
quena capela do Mileu pode ser um símbolo da nossa
comovente riqueza de pobres, tão bela como uma cate-
dral. Nós não somos o Minho e a sua ridente paisagem.
Somos assim, sem seduções exteriores, fiéis a esta in-
consciente alma de semeadores de centeio e cortadores
de pedra dura para resistir ao vento, à chuva e ao peso
dos anos. Sob os pés temos todos uma herança mais de
granito que de terra e com ela um passado que nunca
nos deixará perder na areia do presente e na confusão
prodigiosa do mundo. Podemos incorporar dele tudo o
que precisamos, até tempo dos outros, que não sabemos
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quem eram e de repente nos fizeram canteiros pré-his-
tóricos. Émulos, diz-se talvez com o costumado exagero
lusitano, dos Miguel Ângelos, de Lascaux e Altamira. Bem
precisávamos desta oferenda dos céus, destas abençoa-
das gravuras do Côa, outrora fronteira entre nós e Leão,
para colmatar o nosso défice de mitologia cultural, no
sentido comum do termo.
As nossas criações, os nossos grandes homens,
por culpa nossa ou deles, não tiveram a fortuna de se
tornar ícones nacionais. Nem cronistas ingénuos que,
por patriotismo, inventavam cortes não havidas como
Bernardo Brito, nem Rui de Pina, culpado por Herculano
de não ser Fernão Lopes, nem um desses conquistado-
res que fizeram o nosso Império, nem sequer um Zé
do Telhado digno de legenda para nos vingar de tanto
esquecimento. Este sim é que será o tal preço da inte-
rioridade. Também não tivemos um Aquilino nem um
Torga para mitificar as nossas terras de Deus e do diabo.
Tivemos um Vergílio Ferreira para apreender como nin-
guém a solidão sideral e, ao fim e ao cabo, vivificante,
dos ermos e dos páramos onde o destino nos fez nascer.
Mas toda a gente se lembra da “Aparição”, hino ao mais
solar, embora também solitário, recanto de Portugal e
pouca se lembra de “Estrela Polar”, elegia da cidade, do
luar de Janeiro e suas frias claridades, ao menos por fora
e ardentes por dentro.
A nossa mitologia de beirões é modesta, mas não é
nada que me desagrade. Ela corresponde a uma interio-
ridade que não é apenas exterioridade, distância onde
a vida é suposta ser melhor (o que não é da ordem da
prova, mas realmente mais tumultuosa, mais complexa e
mais divertida, em todo o sentido do termo) mas é uma
interioridade que é sobretudo intimidade, longa con-
versa de séculos sem eco planetário nem sequer casei-
ro. Assim foi no passado ou assim pensamos que fomos,
pelo menos quando nos contemplamos nos espelhos,
acaso mais imaginários que reais onde os outros se nos
mostram mais satisfeitos de si do que nós o somos.
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No presente, esta Beira e esta cidade multicentená-
rias e mais jovens do que eram nesse passado sem re-
gresso, adivinham-se ou apraz-me imaginá-las como um
grito suspenso, uma sufocação insuportável e inconfor-
mada com a sua herança insuficientemente partilhada
com o resto do país e do mundo, uma espécie de grito
contido à espera de hora e vez.
Li, não sei onde, que as gentes desta cidade de altu-
ras se interrogavam seriamente a respeito do que devia
ou deve ser a sua vocação. Creio que o texto não se referia
a nenhum projeto ou programa de vida de configuração
pragmática, de tudo quanto é necessário e urgente para
que esta velha e um pouco melancólica capital de distrito
ascenda aos níveis de conforto, de vida, de progresso cul-
tural, dignos de uma cidade moderna neste tempo e em
Portugal. Suponho que a Guarda, ou quem escrevia por
ela, sonhava com qualquer coisa que lhe desse um per-
fil particular, que lhe definisse, se não uma missão, uma
vocação que desse sentido ao seu futuro.
Estar na fronteira como sempre esteve, mas agora
mais próxima da Europa do que o resto de Portugal, não
acordou nela outras exigências e uma outra vocação?
A Beira, com a sua cidade, está mais no caminho da
Europa até nós do que de nós até à Europa. Foi sempre
assim. A Europa passa-lhe à porta, mas pouco mais do
que isso. Compreende-se que um genérico projeto euro-
peu a não contente ou exalte ou esteja fora do seu alcan-
ce. Esse é o projeto de Portugal no seu conjunto.
Que resta à Guarda? Mobilar melhor a sua estelar so-
lidão histórico-cultural, sem ter, enfim, o sentimento de
a quebrar?
Só os caros cidadãos egitanienses podem definir os
seus sonhos e as suas aspirações. Para quem de dentro e
de fora contempla a nossa altiva solidão, o caso não pa-
rece desesperado. O mar, que a Beira e a sua cidade não
receberam em companhia, está há séculos diante desta
cidade. Como ameaça mais ou menos onírica, mas sim-
bólica para a sua e nossa identidade. Já não se chama
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Castela, chama-se Espanha, não porta para a Europa,
mas a Europa vizinha, a Europa próxima, interland natu-
ral do nosso retângulo mágico.
Em suma, que a mais lusitana das fronteiras, no mo-
mento em que elas se apagam, podia ser a mais ibérica
e dialogante das terras, a do diálogo aberto e vivificante
com o deserto de que nos separámos e continuou a florir
em nós no silêncio. Cumpre-nos a nós ser o elo natural do
novo diálogo em que a invenção da Europa converteu a
Península. O futuro o dirá.
E aqui suspendi o texto porque parecia que esta-
va cometendo uma heresia, ou que as minhas palavras
fossem tomadas escandalosamente. Não é o caso. Eu
creio que esta cidade está mais vocacionada que nenhu-
ma outra, e este espaço, para ser o lugar de um diálogo,
necessário mais que nunca, com aqueles que foram os
nossos adversários durante séculos.
Eu penso que nesta cidade se podia imaginar qual-
quer coisa como um Instituto da Civilização Ibérica, onde
os nossos laços comuns que só Oliveira Martins foi capaz
de apreender, fossem repensados para que nós soubés-
semos efetivamente quem somos e onde estamos, não
tão isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar
dos outros, para sabermos quem é o outro, com quem
devemos dialogar e assim nos defender de uma maneira
diferente da que foi a nossa durante séculos.
Essa é a vocação que eu desejo para a Guarda. Que
ela seja hoje a sentinela dum futuro comum para uma
Ibéria que é um dos polos desta Europa onde todos nós
queremos estar e, onde querendo ou não, já estamos.

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TODOS NÓS IBÉRICOS1

Por ocasião do Oitavo Centenário da nossa cidade


surgiu a ideia de criar nesta velha terra de fronteira en-
tre Portugal e Espanha, um Centro de Estudos Ibéricos.
A sugestão teve a boa fortuna de ser apadrinhada, de um
lado e de outro dessa histórica fronteira, pelas duas ins-
tituições que, ao longo dos séculos e, em prioridade, fo-
ram um modelo da universidade peninsular: Salamanca
e Coimbra. Sem esse patrocínio, não poderia ser levado a
cabo o ambicioso projeto concebido para esse Centro: o
de contribuir, não apenas para um renovado conhecimen-
to das diversas culturas da Península, mas para o estudo
da Civilização Ibérica como um todo.
No estado atual do mundo, ameaçado ao mesmo
tempo da uniformização em termos de tecnologia e de
disseminação em termos de identidades culturais sobre si
mesmas fechadas, a Península Ibérica oferece um exem-
plo raro de uma Comunidade Cultural de longo passado
comum e de heranças partilhadas que a institui como
um dos espaços privilegiados onde se joga o sentido da
História presente e futura. Já é tempo de cultivar essa vi-
nha comum com um interesse e um fervor incomuns.
A sombra tutelar de Oliveira Martins, criador do pró-
prio conceito de Civilização Ibérica e autor da História
dessa mesma civilização, inspira este projeto. Sabemos
como Unamuno o admirava e comungava no mesmo
ideário Ibérico. Mas o que era apenas ideologia ou visão

1 Revista Iberografias, nº 1 (2005). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 - 2858
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há mais de um século é hoje conveniência e imperativo
dos novos tempos.
Ao conhecimento e à clara visão do que foi e continua
sendo a versão peninsular da Europa se deve votar o nosso
Centro de Estudos Ibéricos tanto mais que dela faz parte
integrante a primeira, e até hoje nunca ultrapassada, voca-
ção planetária da mesma Europa.
O que foi sonho do mundo merece ser repensado
para saber melhor quem fomos, quem realmente somos
e quem podemos ser. Todos nós ibéricos.

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AGITADORES DO ESPÍRITO IBÉRICO

Intervenção proferida na inauguração da sede do CEI, em setembro


de 20051

Estou aqui apenas como a pessoa que, por oca-


sião das Comemorações do Oitavo Centenário da nossa
Cidade, teve a ideia, talvez um pouco onírica, de imaginar
que, aqui, nesta cidade tão bem colocada, como uma es-
pécie de centro estratégico entre Portugal e Espanha, se
poderia imaginar um centro onde se refletisse sobre as re-
lações ou não relações dos povos da Península. Na verda-
de, esta ideia teria morrido no momento mesmo em que
a iniciei, se não estivesse na assistência o Sr. Presidente
da República, a quem a ideia agradou. Já se sabe que só
o poder tem força mágica para levar uma simples ideia
a um começo da realidade! Estava também presente, a
cara Presidente da Câmara, Dr.ª Maria do Carmo Borges,
que “tomou a peito” o projeto e com os seus colaborado-
res deu corpo a esta ideia. É sobretudo a eles que se deve
a passagem de uma simples ideia à realidade, que já é, e
que vai ser concretizada com a inauguração da sede do
Centro de Estudos Ibéricos – no princípio pensado como
uma espécie de instituição com ambições mais vastas,
mas que, provavelmente, não poderiam alcançar-se
numa cidade como a nossa. Este projeto começou a ter
possibilidade de existência com a ideia de que a Guarda
não estaria sozinha, mas seria sim o lugar de articulação,
na ordem cultural, entre os dois grandes povos clássicos
da cultura da nossa Ibéria, que são Coimbra e Salamanca.

1 Revista Iberografias, n.º 2 (2006). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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É uma honra que uma ideia tão simples se pos-
sa concretizar, porque, de facto, Coimbra de um lado e
Salamanca do outro permitem, com a sua participação,
dar um começo de vida e existência a essa ideia peregrina,
mas muito enraizada em mim.
Em criança entretive-me, como Charlie Chaplin num
célebre filme, a caminhar de um e outro lado da real e
imaginária linha que separa o pequeno reino lusitano da
imensa Espanha apenas adivinhada. Foi a minha primei-
ra vivência da fronteira! No fundo, não desejaria aboli-la.
As fronteiras definem-nos…Talvez este jogo inocente te-
nha inspirado, inconscientemente, a sugestão de onde
veio a ideia de um centro ou de uma instituição que abo-
lisse, na ordem do imaginário, que é a da cultura, não tan-
to esses estóicos litígios que, durante séculos, separaram,
na ordem política, os dois povos da ibéria e que são, de
algum modo, a condição da identidade de ambos, mas
o menos aceitável desconhecimento ou insuficiente co-
nhecimento que portugueses e espanhóis tiveram uns
dos outros, sendo, como Oliveira Martins mostrou, dois
ramos da mesma árvore ibérica. Mais se tornaram quan-
do, tendo saído ambos das ocidentais praias de Lisboa e
de Sevilha, ilustraram essa dualidade gémea do Oriente
ao Peru. Esse é, há cinco séculos, o autêntico espaço da
famosa civilização ibérica, de conquistadores conquista-
dos e transfigurados por essa saída pelo mundo, tão ou
mais aventurosa que a de D. Quixote.
Abolir as fronteiras ou torná-las de símbolo de se-
paração em sentido de mútua imolação, foi a ideia que
presidiu à criação do Centro que, hoje, será oficialmente
inaugurado.
O essencial do projeto, modesto nos meios, mas ambi-
cioso nos fins é, em última análise, o de pensar em comum
a hora de uma Península que é, hoje, muito diferente do
que já foi. Uma Península que reocupou o seu lugar na
Europa, numa versão diversa da que foi a nossa no Século
de Ouro, e que se encontra confrontada em conjunto com
desafios de dimensão planetária de um género novo.
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Celebra-se, este ano, o quarto centenário de um livro
que é, não só o espelho e a honra de Espanha, mas o es-
pelho de uma universalidade e humanidade incompará-
veis. Nele se consignou, com alguma melancolia, a morte
de um sonho que foi comum a Portugal e a Espanha du-
rante séculos e cujo ecos não se extinguiram. Esse sonho
prosseguia do que se chamou o espírito de cruzada que
da Idade Média nos vinha. Nesse sentido, D. Quixote era
já o seu requiem e nós, os vivos, celebramos os requiens
para que os mortos ressuscitem e não para consagrar
essa morte. No sentido Clássico, esse cruzeirismo não
pertence ao espírito do nosso tempo, mas não é razão
para que morramos de melancolia como o herói sublime.
A cruzada ibérica é, hoje, outra. Não é a do sentido ca-
moniano da fé e do império, nem é essa cruzada dos céus
da ficção imortalizada por Cervantes, mas é aquela que
impõe o estado de uma sociedade de poder e conheci-
mento em luta pelo domínio da Natureza, mas mais ain-
da em luta pelo Mundo, que saiu do domínio da Natureza
por nós inaugurado pela era cartesiana, pelo racionalis-
mo moderno, que afastou, pouco a pouco, o homem da
relação idílica que mantinha com a Natureza. Estamos
no século da robótica, no século da virtualidade, no sé-
culo em que a nossa meditação sobre o nosso lugar no
mundo mudou de instrumentos e de dimensão. Temos
que acompanhar a luta do espírito moderno, que tanto
nos custou, a nós peninsulares, dar-lhe uma continua-
ção, que outros povos na Europa estavam dando, depois
de nós termos sido aqueles que levámos essa Europa ao
resto do Mundo. Agora, somos convidados a escolher um
mundo, mas sem saber se a nossa ação e a nossa capa-
cidade de domínio desse Mundo é uma prática que nos
salva ou nos condena.
Fui eu que sugeri a criação deste Centro e, agora,
deixo mais uma outra sugestão para materializar, ainda
mais, a função de elo, entre Portugal e Espanha, que o
Centro de Estudos Ibéricos se pudesse, um dia, chamar
Oliveira Martins e Unamuno e, assim, ficariam ligados
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dois grandes vultos da cultura ibérica. Oliveira Martins,
porque chamou a atenção para a pouca força com que
tematizámos a nossa vida, estruturalmente épica, e
Unamuno, porque foi um dos grandes agitadores do
espírito ibérico.

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UM DOM COM MEMÓRIA FUTURA

Intervenção proferida na Guarda a 23 de maio de 20081

Raras vezes me senti numa situação tão embaraço-


sa. Acabo de receber os agradecimentos pelo facto de ter
doado à futura Biblioteca, num gesto que pode ser consi-
derado o cúmulo do narcisismo, uma série de livros que,
efetivamente, representam alguma coisa para mim, lei-
tor compulsivo de tudo o que é escrito e não apenas livro.
Encontrar-me nesta figura de doador no dia mesmo em
que recebo de pessoas amigas, de alguns leitores, sobre-
tudo muitos que estão nesta sala, parabéns pelo facto de
fazer anos, é uma fatalidade de que eu não sou sujeito.
Tantos anos tão leves e tão pesados anos, as duas coisas
ao mesmo tempo, assim festejados colocam-me na situ-
ação de devedor com tanta mensagem de amizade e de
saudação neste dia.
O dom de livros é um gesto natural de alguém que
se aproxima do fim da sua vida, vivida no meio de tan-
tos livros. O único mérito que se pode ter nesse gesto é o
facto de ser um gesto libertador, de salvaguarda, de uma
companhia que me foi preciosa e, ao mesmo tempo, um
momento de grave consideração. Com esta doação e
outra futura que se prepara dos meus outros livros, so-
bretudo de natureza filosófica, eu estou dizendo adeus a
mim mesmo e preparando o mais confortável dos túmu-
los que é o de saber que assim continuarei entre gente
que teve alguma consideração por aquilo que eu sou e

1 Leituras de Eduardo Lourenço – Um labirinto de saudades, um legado com futuro (2008).


Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISBN 978-972-99435-7-7
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que escrevi. Sei que é como dar-me uma outra vida, uma
memória futura, que esses livros serão lidos por outros
mais jovens e que viverão. São os meus livros, os livros dos
meus amores, dos meus estudos, das minhas paixões,
literárias e, portanto, através dessa doação está algu-
ma coisa mais de mim, porque não ofereço livros meus.
Estão lá só por acaso que eu sou pouco cuidadoso nesse
capítulo, mas que é uma maneira de consagrar à capital
do Distrito onde eu nasci uma função de preservar algu-
ma coisa do menino que eu fui nesta Cidade onde entrei
para o liceu, aos 10 anos, onde fiz a 3.ª Classe e a quem me
ligam tantos laços afetivos.

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VIDA PARTILHADA1

É de crer que a sugestão de criar, numa antiga ci-


dade de fronteira, de velhos pergaminhos, um Centro
de Estudos Ibéricos, caiu, em todos os sentidos, na boa
terra. Talvez apenas porque as circunstâncias lhe eram
propícias. Mas, sobretudo, porque encontrou eco nos
responsáveis políticos e culturais que lhe podiam dar
vida. Antes de mais, a então Presidente da Câmara,
Dra. Maria do Carmo Borges, que a acolheu favoravel-
mente e o então Presidente da República, Doutor Jorge
Sampaio, que logo a apadrinhou. Assim nasceu o Centro
de Estudos Ibéricos, propósito e desafio, na aparência
insólito, de estabelecer um elo de tipo novo, num tempo
novo, o de uma Europa em redefinição do estatuto mi-
lenário, entre os dois países independentes e vizinhos,
Portugal e Espanha.
Dez anos passaram e o que era apenas uma suges-
tão e um pequeno sonho de alterar profundamente as
nossas mútuas relações de conhecimento (e desconhe-
cimento), começa a receber um princípio de existência.
E um pouco mais do que isso. Primeiro, pelo empenha-
mento nesta iniciativa transibérica a partir de uma pe-
quena cidade, guardiã secular de fronteiras, e do que
nela separa, das duas Universidades que, também, nos
mesmos séculos, foram lugar do mais alto ensino e do
reconhecimento da Cultura que nos é comum: Coimbra

1 Eduardo Lourenço – CEI: Conhecimento, Cultura, Cooperação – Dez anos depois (2010). Guarda:
CEI. ISBN 978-989-96411-2-9
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e Salamanca. O Centro não podia existir senão apoiado
nos mestres, estudiosos e estudantes desses imemoriais
Estudos peninsulares. Historiadores, geógrafos, sociólo-
gos, humanistas, das duas velhas Universidades deram
vida e têm animado o jovem Centro de Estudos Ibéricos.
Graças a eles, o Centro, junto com as outras instituições
de interesse cultural da nossa cidade, tem contribuído
para dar à Guarda um papel de mediadora entre as nos-
sas duas culturas peninsulares, tão próximas nas suas
raízes, mas distantes no seu convívio histórico concreto.
E não era outro o projeto deste Centro, que o de conhecer a
sério o que também, com dano mútuo, desconhecíamos.
Nada do que nestes breves anos foi levado a cabo
teria sido possível sem o empenho dos responsáveis ins-
titucionais e culturais do Centro, tutelado pela Câmara
da nossa Cidade. Com rara devoção, o Dr. Virgílio Bento e
Dr.ª Alexandra Isidro têm, durante estes poucos anos de
vida do Centro, os decisivos, contribuído para que uma
simples sugestão se convertesse em vida partilhada.

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“(…) quando tomámos
maior consciência
dessa Europa, já então
a duas velocidades,
não era tanto a Europa
que se constituía num
problema para
a península, mas
a península que
era problematizada
por essa Europa.”

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© Vitorino Coragem

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DIÁLOGOS
TRANSFRONTEIRIÇOS:
A IBÉRIA E A EUROPA

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A PENÍNSULA COMO PROBLEMA EUROPEU

Intervenção no Colóquio “A Ibéria no Contexto Europeu”, Guarda, no dia 26


de novembro de 20011

No livro Nós e a Europa já tive ocasião de abordar


tangencialmente a questão da “Península como pro-
blema europeu”, mas aqui desejaria enfocá-la de outra
maneira, em função da totalidade peninsular. Quer dizer,
não como o historial da nossa relação complexa com a
Europa – a título de portugueses, a título de espanhóis,
na sua diversidade de castelhanos, catalães, bascos, etc.
– mas como a península no seu relacionamento global
com essa Europa. É uma hipótese de trabalho que pode
ser discutida mesmo como hipótese.
É sabido que Michelet resumiu a Inglaterra com um
pleonasmo provocante: “a Inglaterra é uma ilha”. Queria
ele dizer que, tendo-se isso em consideração, tudo o mais
era mera consequência. A nossa península não é obvia-
mente uma ilha, todavia uma certa perfeição das suas for-
mas, as que condicionam a nossa imagem dela, faz com
que esta imensa península europeia – o seu ponto extre-
mo da Europa – sugiram uma configuração de ilha sobre-
tudo quando ela está completa. Quer dizer, quando não
é aquela representação que vem nos mapas meteoroló-
gicos da nossa península em que Portugal ou é um espa-
ço, quase virtual, onde não chove, não correm rios para o
Atlântico, ou então aquela outra imagem pura e simples-
mente onde a Espanha se representa a si mesma como
aquela famosa pele de touro célebre. Aí, sem o nosso

1 Revista Iberografias, nº 1 (2005). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos/ Câmara Municipal da


Guarda. ISSN: 1646 – 2858
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retângulo nessa altura temos a impressão de ter caído no
Atlântico. Mas quando olhamos o mapa da Europa e veri-
ficamos o que é essa Península, o que nos fascina, o que
nos impressiona, é a sua totalidade, a sua imagem perfeita
que se podia imaginar que fosse realmente uma ilha.
Talvez por isso, o mais célebre dos nossos romancis-
tas não fez mais do que ceder à inspiração da geografia
imaginando a nossa península como uma ilha e pondo-a
a derivar no Atlântico em direção ao Sul. Com isso, José
Saramago sugeria que a península não era europeia ou
que ele talvez não desejava que o fosse. Essa extravagan-
te e original ficção é um discurso acerca da península
(não apenas nem sobretudo de ordem geográfica) sus-
penso pelo fio de um certo complexo de ressentimento
do que somos ou nos sentimos como peninsulares em
relação à Europa mas é igualmente uma reivindicação da
nossa autonomia ibérica.
É o que eu nesse livro Nós e a Europa designei como
dupla postulação em relação à Europa: ressentimento e
fascínio. No tempo em que nós, peninsulares, tínhamos o
sentimento de não sermos vistos ou aceites como euro-
peus de primeira, esse reflexo ou sentimento de diferen-
ça e de uma certa excentricidade em relação à Europa
tinha a sua explicação, embora não a sua justificação.
Isso sucedeu quando a Península entrou no que chama-
mos a idade barroca separando-se histórica, e sobretudo
simbolicamente, de uma Europa que entrava plenamen-
te na era burguesa, que tinha no protestantismo a sua
tradução ideológica e, mais do que tudo, por complexas
razões, começava a criar entre a prática científica além-
-Pirenéus e aquém-Pirenéus uma distância que tanto
nos faria sofrer e tão graves consequências geraria, e que
ainda hoje, pelo menos no que diz respeito a Portugal,
são visíveis.
Começava então a problematizar-se a nossa re-
lação com a Europa e essa Europa a problematizar a
Península. Na verdade, quando tomámos maior consci-
ência dessa Europa, já então a duas velocidades, não era
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tanto a Europa que se constituía num problema para a
península, mas a península que era problematizada por
essa Europa.
Hoje percebemos melhor que aquilo que mais tarde
se transformou num tópico de que a península era uma
civilização, uma cultura em processo de decadência, quer
dizer, em vias de se afastar do paradigma clássico da mo-
dernidade, tinha pouco a ver com o olhar que a Europa
da revolução científica, económica e depois política e
ideológica era ou considerava a península. Era sobretu-
do o nosso próprio olhar de antigos e naturais atores de
história da Europa do séc. xv e do séc. xvi, conscientes
de ter saído dos seus respetivos esplendores. Foi só bem
tarde que um certo discurso das luzes, já nos finais do
séc. xviii nos começou a habituar à ideia e a insistir no
nosso famoso atraso e a dar-nos conselhos para que o
resolvêssemos.
No séc. xvii – no famoso século do Génio, o de
Decartes, Pascal, Leibniz e Newton – mas, sobretudo, no
das sociedades científicas que começavam a marcar a
paisagem cultural europeia através das quais a ideia e o
sentido de progresso entrava na história, – ninguém con-
siderava as pátrias de Cervantes, de Lope, de Calderón,
de Gracian, de Francisco Manuel de Melo como uma ilha
em vias de se separar culturalmente da Europa. O século
de Luís XIV não tem leitura sem a osmose profunda en-
tre a cultura peninsular – então no seu esplendor – e os
seus Corneille, os seus Racine, os seus Molière; e bastava
Cervantes para que não estivéssemos separados, como
depois nos julgámos, da Europa mais vanguardista.
A Cultura Europeia caminha, como caminhou sempre, a
ritmos diferentes e o que era novo era essa tendência a
afastar-se da aventura moderna por excelência, aquela
que obras como Daniel Deföe ilustraram, mas que vendo
bem, provavelmente não existiriam se antes dele um ho-
mem, o autor de D. Quixote não tivesse existido e lança-
do a Europa no caminho das suas próprias aventuras ao
mesmo tempo reais e oníricas.
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Na verdade, mesmo nas épocas de maior distancia-
ção entre as diversas culturas europeias, a trama da sua
cultura foi sempre mais unida do que podemos imaginar.
Hoje e aqueles que têm uma visão comparatista em ge-
ral das culturas e das civilizações – e tenho aqui ao lado
um eminente representante desse tipo de olhar, Claudio
Guillén – sabem até que ponto de facto essas famosos
abismos e separações, são muitas vezes mais fantasmáti-
cos do que verdadeiramente reais.
Esta ideia de que à medida que se constituía, a nova
Europa era para a península um problema, não apenas na
ordem política, mas civilizacional e cultural, tem alguma
razão de ser. Se não seria inexplicável que tivéssemos inte-
riorizado tanto a famosa expressão que havia alguma coi-
sa que separava a Europa de além-Pirenéus da Europa de
aquém-Pirenéus. Talvez devêssemos convir que, antes de
mais, a Península onde um dos seus povos ou cada um por
sua conta se tinha efetivamente retirado, em parte, da cena
europeia, confinando-se ao aquém dos Pirenéus antecipar
a fabulosa deriva que, mais tarde, a Jangada de Pedra de
José Saramago vai alegorizar. Essa Península aquém dos
Pirenéus não derivou, não fugiu para os seus domínios
da América pois que o já tinha feito de algum modo no
século xvi, mas a partir dessa época refugiou-se neles.
Nós, portugueses, usamos muito a expressão definido-
ra da nossa atitude intrapeninsular: dizemos que vivemos
ou temos vivido de costas voltadas para a Espanha. Bem
mais importante e decisivo foi que cada um de nós mes-
mos começasse a estar voltados de costas para a Europa,
para essa Europa além Pirenéus. A certa altura tinha que
chegar o momento em que pensávamos que a Europa nos
tinha também voltado as costas – relativamente, entenda-
-se, pois, o fim da colonização espanhola da América – como
da colonização menos acentuada de Portugal no Brasil – foi
o de encontrar lá as razões de estar presente na Europa.
O destino decidirá também outra coisa, mas os ga-
leões que a Europa de Morgan e Surcuf aprisionavam,
traziam também prata para investir e nos integrar, da
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maneira mais ativa possível, justamente nessa mesma
Europa. Só nesse sentido, e em termos de política e de
guerra a Europa era problema para nós e nós um verda-
deiro problema para a Europa em ascensão, península na
sua face ibérica, transatlântica e asiática era um objeto
de presa ou de contenção. A Península que constituiu
questão para a Europa, se isso tem verdadeiro sentido,
foi aquela que desde a chegada à Índia até aos reinos de
Filipe II e III tentou impor ou jogar um jogo igual com
as potências europeias mais representativas: a Inglaterra
ou a França. Portugal, nessa época integrado no proje-
to político da Casa de Áustria, é então mais europeu do
que nunca mais o será. Sê-lo-á ainda na Guerra dos Sete
anos, onde a Europa, independentemente do seu espa-
ço de colonização se bate entre ela ou em família. Nessa
altura estávamos a ser Europa como um todo à força
circunstancial.
Foi a Revolução e as guerras napoleónicas que pu-
seram fim a esse artificial, mas simpático equilíbrio. Com
a chegada dessa era numa Europa que era ainda a da
guerra de rendas e com a Revolução, entrámos na época
de ferro europeia, a que está terminando sob os nossos
olhos e somos ex-centrados da história da Europa. É a
partir de então que as nossas relações com a Europa, em
todo o caso na vertente guerreira, económica, política e
até cultural, se problematizam. É então que a Europa se
torna um problema para a Península.
Nós, portugueses, temos muita dificuldade em con-
ceber como um todo o corpo peninsular. Como história,
como política, mesmo como cultura, em sentido pro-
fundo, a Península foram sempre “penínsulas” que se
expressaram quer nos seus conflitos internos, quer nas
suas relações diferentes com a Europa e com o mundo.
Portugal e a Espanha viveram, durante séculos, desti-
nos extremamente análogos, por vezes paralelos, mas
sempre como dois atores. Vivemos juntos, por exemplo,
o período do fim da colonização espanhola na América?
Vivemos juntos, – ou a Espanha viveu a nossa perda do
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Brasil como qualquer coisa que a afetasse a ela direta-
mente? Vivemos nós a perda, inclusive, do fim do gran-
de império espanhol que tem lugar no fim do século xix
em Cuba como se fosse qualquer coisa que nos atingisse
profundamente – e atingia – mas para o vizinho que su-
portava a dor e o peso e a reflexão dessa perda? Tomaram
os espanhóis as nossas dores quando a Inglaterra nos en-
viou um ultimato colocando-nos naquele lugar que em
termos de força e de potência e de poderio ela considera-
va que era o nosso, quer dizer o mais subalterno realmen-
te possível e pouco europeu no sentido imperialista em
que a Inglaterra se afirmava? – Não.
Como peninsulares, compartilhando a dupla face do
conflito, portugueses e espanhóis só realmente viveram e
ressentiram em comum a tragédia espanhola, refiro-me
naturalmente à Guerra Civil. Mas essa tragédia não foi ape-
nas peninsular nem única e verdadeiramente espanhola.
Foi um conflito específico onde a Europa e o mundo já es-
tavam implicados e que teria as suas consequências. Com
o fim da Segunda Guerra Mundial e sobretudo o fim do
confronto entre leste e oeste, o nosso relacionamento pe-
ninsular com a Europa sofreu uma alteração radical. Não
tivemos nisso, nós portugueses nem espanhóis, nenhum
papel de atores, porque o sujeito dela foi a própria Europa.
Embora os traços das antigas querelas, ambições,
medos e prevenções permaneçam, o atual relaciona-
mento do povo europeu, dos povos europeus uns com os
outros e neles, os nossos – de portugueses e espanhóis –
essa problematização tradicional da nossa relação com a
Europa, mesmo no que nela havia de onírico ou de absur-
do recolheu ao museu da história. É aquilo que eu penso.
Que mais não fosse porque a Europa, no seu conjunto, esta
nova Europa próspera, continental, empenhada em in-
ventar-se como uma espécie de Nação-Europa, – quando
essa utopia perdeu o seu fascínio – recolheu ela própria ao
museu da história ou antes mais, talvez, real e simbolica-
mente ela tornou-se no mais magnificente museu da his-
tória e é como museu da história que os outros, sobretudo
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os novos senhores da política mundial, nos visitam e nos
utilizam. Enquanto Península e em termos políticos, nun-
ca tivemos verdadeiramente grande contenciosos com
a Europa, a não ser dessa Europa instalada em si mesma
como um mito, até pela simples razão que um tal confli-
to, em última análise, era absurdo porque não há, se nós
pensamos na história da Europa no seu conjunto, desde
os tempos romanos até hoje, poucos espaços mais euro-
peus, que os da Península, sendo mesmo uma espécie de
Europa antes da própria Europa. Foi aqui que os conflitos
da antiguidade se terminaram ou se jogaram. Foi aqui
que César e Pompeu dirimiram as suas questões para o
domínio do mundo antigo. Fomos integrados cedo nes-
sa Europa, provavelmente um dos mistérios desse famoso
afastamento é que nós fomos um pouco Europa, antes do
que uma grande parte dessa Europa fosse Europa.
Nós podemos imaginar que uma parte dessa Europa,
vista do nosso ponto de vista, em todo o caso, aqui no ex-
tremo ocidente, era uma espécie de barbárie definida com
vários graus até chegar ao reino de Moscóvia. Como nós
já tínhamos tido os Cartagineses, os Fenícios, os Gregos
e depois os Romanos em nossa casa, nós fazemos parte
dessa história. Não é a história da Europa como moderni-
dade, da sua invenção com a modernidade, é uma outra
história que está firme por trás, no horizonte, no passado
dessa mesma história. Mas mesmo esse contencioso fic-
cional, com alguns motivos sérios subjacentes já não tem
agora razão de ser, não porque a península se tenha dilu-
ído na Europa, mas com mais verdade porque a Europa,
essa tal da modernidade, nos entrou em casa e se diluiu
ela mesma na Península como Europa, a Europa que se
propôs homogeneizar o resto da outra Europa. Esse con-
tencioso e essa problematização não têm hoje razão de
ser, em todo o caso não se podem pôr as relações com a
Europa nos mesmos termos em que se punham há ape-
nas 50 anos. Nós entrámos efetivamente para a casa co-
mum, se é que alguma vez estivemos efetivamente longe
dela como o supusemos, sobretudo a Espanha, foi sempre
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tão intensamente interligada ao destino da Europa e ao
destino mais central da própria Europa.
O nosso caso é um pouco diferente porque nós, efe-
tivamente, por vontade dos nossos dirigentes de outro-
ra, por condições do destino, afastámo-nos dos primeiros
dessa Europa. Simbolicamente isto permite uma outra
possibilidade de reler tudo nos aconteceu desde então e
sobretudo esse curioso processo de fascínio e de ressenti-
mento em relação à famosa Europa, quando ela se cons-
titui como Modernidade. Nós fugimos para outro sítio, ou
por outra, nós derivámos, efetivamente, passámos a inven-
tar uma outra Europa, uma outra maneira de ser Europa
e essa outra maneira de ser Europa está viva. É a América,
a América no seu conjunto, desde o Norte até ao sul da
Patagónia. Essa América não é o nosso passado, é, eu pen-
so, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso
futuro, no sentido mais empírico do termo. Agora estamos
já normalizados e felizes, de algum modo, em termos euro-
peus daqui. Mas a Europa não está normalizada nem feliz
em termos de Europa aquela que não tem mais horizonte
do que essa própria Europa. Mas nós inventámos, constru-
ímos – ou através de nós constituiu-se e inventou-se – uma
outra Europa, e em última análise uma Europa outra, a de
um “novo mundo” que não está só no passado.
A famosa problematização do nosso destino que nos
causava tantos problemas enquanto peninsulares que se
viam como atores políticos de segunda grandeza, de se-
gunda instância. Se nós pensamos que, particularmente a
América Latina, é filha direta da Península nós não pode-
mos ser problematizados a esse título. A esse título, já sem
o sabermos, essa existência transatlântica fazia que não
sentíssemos tanto as humilhações que tínhamos em rela-
ção à “outra” Europa. Estávamos construindo algo que nós
nem sabíamos o que era, maior do que nós e isso não é o
nosso passado, isso é o nosso presente e penso que será
realmente o nosso futuro. O nosso futuro está naquilo que
realmente inventámos, trazendo à Europa uma Europa
que ela não conhecia.
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AS RELAÇÕES IBÉRICAS NO CONTEXTO DA NOVA EUROPA

Intervenção proferida no encerramento Colóquio “A Ibéria no Contexto


Europeu”, Guarda, no dia 26 de novembro de 20011

Começa, hoje, o que se pode considerar como o


segundo pequeno passo para materializar a sugestão
um pouco onírica, aventurosa, de criar na nossa capi-
tal de fronteira, que é a Guarda, um Centro de Estudos
Ibéricos, contando naturalmente que pudesse receber,
como recebeu, o patrocínio e a tutela cultural das duas
grandes Universidades da Península: a Universidade de
Salamanca e a Universidade de Coimbra.
Eu queria agradecer, antes de mais, aos ilustres pro-
fessores de Espanha e de Portugal que aceitaram parti-
cipar neste colóquio. Antes de mais, ao Senhor Professor
Claudio Guillén, ao Senhor Ministro Fernando Morán, la-
mentando que, por razões de ordem pessoal, o convite
que foi endereçado ao antigo Embaixador de Espanha
em Portugal, o Professor Raúl Morodo, não pudesse ter
sido aceite, bem como, aos intervenientes da parte por-
tuguesa, em particular, ao nosso antigo Presidente da
República, Dr. Mário Soares.
Queria agradecer igualmente ao Sr. Professor
Valentín Cabero, que representa a Universidade de
Salamanca, a prontidão e simpatia que desde o princípio
manifestou em relação à criação do Centro de Estudos
Ibéricos, julgando-o útil e de futuro, para um maior co-
nhecimento e proximidade, não apenas retórica, mas
vivida, entre os nossos dois Países.

1 Revista Iberografias, nº 1 (2005). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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Agradeço, igualmente, ao Senhor Reitor da
Universidade de Coimbra, uma vez mais, a gentileza e o
apoio que nos trouxe e que nos traz sempre com a sua
presença, representando aquela Universidade que é e foi
durante séculos a única alma mater da cultura portu-
guesa. Igualmente, é com grande prazer e grande hon-
ra que contamos, nesta sessão, com a representação do
Instituto Cervantes, na pessoa do seu Diretor, Professor
Jorge Urrutia, ensaísta e escritor. Apesar dos seus muitos
afazeres, pôde vir até nós e estar aqui presente. A sua in-
tervenção mostrou até que ponto a questão das relações
e da mútua presença, mesmo a mais desconhecida, das
nossas duas culturas, lhe é familiar. Penso que, no futuro,
teremos ocasião de contar de uma maneira ainda mais
orgânica não só com o seu apoio, enquanto Diretor do
Instituto Cervantes em Lisboa, mas com a sua própria
colaboração, enquanto professor, ensaísta e grande es-
tudioso das questões ibéricas. Igualmente, agradeço
à Dr.ª Amandina, Subdiretora do Instituto Camões, o fac-
to de nos trazer aqui o apoio implícito e explícito des-
te Instituto, na representação do seu Diretor, Professor
Jorge Couto, que, por razões pessoais, não pôde estar
connosco neste momento.
Agradeço a disponibilidade que as suas palavras ma-
nifestaram de implicar ainda mais o Instituto nos futuros
colóquios, seminários ou no funcionamento daquilo que o
CEI se propõe fazer. E, já agora, desejava que o Professor
Jorge Urrutia transmitisse ao Sr. Embaixador de Espanha os
nossos agradecimentos pela carta que nos enviou. Quero
que o Sr. Embaixador saiba que todos nós somos sensí-
veis a essa atenção com que o representante de Espanha
acompanha esta tentativa de reforçar um polo cultural,
cuja finalidade não é outra do que contribuir para que este
famoso desconhecimento ou conhecimento imperfeito
dos nossos dois países em todos os domínios e particu-
larmente no próprio domínio cultural, seja cada vez me-
nor. Desejamos que o Centro hoje, e sobretudo no futuro,
seja um lugar de convergência e de recriação de laços que
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sempre existiram e que existem, mas nem sempre pensa-
dos ou vistos com a força daquilo que eles representam.
O Centro de Estudos Ibéricos não começará a pro-
duzir esse efeito para o qual foi pensado enquanto não
encontrar o seu público natural, o público a quem ele é
primordialmente destinado, quer dizer, o meio académi-
co, o meio dos estudantes, e não haja efetivamente entre
o Centro, ainda em vias de se organizar, uma ligação mais
ou menos orgânica, em todo o caso muito forte, entre o
Centro e as atividades universitárias ou parauniversitárias
de que a nossa Beira é a sede. Refiro-me, naturalmente,
ao Instituto Politécnico e à Universidade da Beira Interior.
Só com o público destas duas instituições é que se po-
derá dar um conteúdo real ao programa deste repensa-
mento dos laços, mais ou menos frouxos, entre Espanha e
Portugal. Só quando houver uma tradição, por assim dizer,
académica, além da mera área extrauniversitária, é que
de facto o Centro encontrará efetivamente a sua velocida-
de de cruzeiro. Ainda não é o caso, mas não podemos di-
ferir muito para dar ao Centro aquela consistência, aquela
coerência, aquela eficácia, que não terá se não levarmos a
cabo essa espécie de entrosão entre o Politécnico por um
lado e a Universidade da Beira por outro.
O nosso público natural são os jovens, os estudantes.
É para eles que nós temos de pensar que o afastamento
lamentável ou o pouco conhecimento que os dois Países
têm um do outro, deverá ser colmatado e que, através
deles, possamos viver de uma maneira diferente essa fa-
mosa relativa ausência, um pouco mítica, entre os nos-
sos dois Países e as duas culturas. Este é o meu primeiro
grande voto por ocasião deste segundo colóquio, que
tem o Centro de Estudos Ibéricos como ator.
Naturalmente, eu quero agradecer, mais do que
a ninguém, à Câmara da Guarda, na pessoa da sua
Presidente Dr.ª Maria do Carmo Borges, o apoio sem o
qual este Centro não teria podido sequer existir, e o em-
penho que tem manifestado, até hoje, para que ele real-
mente cumpra, pelo menos em parte, a pequena utopia
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em função da qual foi pensado. A todos desejo realmente
que tenhamos em comum um dia mais ou menos fecun-
do de troca de ideias e de impressões acerca do tema
que aqui nos reúne, que é o da Península, o da Ibéria, no
seu relacionamento com a Europa.

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IDENTIDADE E CIDADANIA: UMA PERSPETIVA

Intervenção na conferência “Identidade e Cidadania”, Guarda, no dia 29


de novembro de 20011

Por circunstâncias especiais não pudemos contar an-


teontem com a presença do Professor Fernando Savater
no nosso dia consagrado aos problemas das relações da
Península com a Europa. Temo-lo hoje connosco e eu co-
meço por lhe agradecer a honra que ele nos dá com a sua
visita, – penso que será a primeira à cidade da Guarda.
É um prazer especial recebê-lo aqui e contar com
a sua palavra para o leque de reflexões que nos entre-
tiveram há dois dias acerca dos problemas da nossa
Península e das suas relações com a Europa.
O Professor Fernando Savater é hoje uma das per-
sonalidades da cultura hispânica mais conhecidas, mais
notáveis. É um filósofo, um cronista, um dramaturgo, um
ficcionista, uma personalidade, como se diz vulgarmen-
te, com muitas cordas no seu arco e, em todas elas, uma
figura particularmente brilhante.
Há muitos anos, não há tantos anos como isso,
Filosofia e Ibéria não rimavam muito, se não por exceção.
Dizia-se que a Ibéria, e em particular Portugal, não ti-
nham queda para a filosofia. Quer dizer, esta cultura que
tinha dado Suárez e outras grandes figuras da história da
filosofia no passado, não teria, na época moderna, pensa-
dores à altura das exigências dessa mesma modernida-
de. No meu tempo, para quem fazia estudos de filosofia,
a filosofia espanhola eram duas pessoas. Talvez só uma,

1 Revista Iberografias, nº 1 (2005). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos/Câmara Municipal da


Guarda. ISSN: 1646 - 2858
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que se chamava José Ortega y Gasset e depois, um pou-
co, Xavier Zubiri.
Eu creio que hoje o panorama, tanto em Espanha
como em Portugal, se alterou profundamente. Os es-
tudos filosóficos conhecem em Espanha uma grande
expansão e ocupam, na cena cultural o primeiro plano
que é aquele que, em princípio lhe deve estar destinado.
O Professor Fernando Savater é um dos mais ilustres
exemplos, digamos, da nova filosofia, se isso se pode di-
zer, da filosofia nova, da nova Espanha. O seu centro de
interesses e aquilo que rapidamente o tornou notável são
as reflexões sobre um dos capítulos mais difíceis da te-
mática filosófica, aquilo que diz respeito à ética e as suas
consequências, seus efeitos, as suas aplicações, a sua in-
serção no contexto da cultura e da sociedade.
Problemas éticos são dos problemas mais difíceis
não só de tratar, mas mesmo de justificar. Estávamos
habituados, de algum modo, a que eles se solucionas-
sem pela relação íntima que tinham tradicionalmente
com a religião. De algum modo, a ética era – tirando
evidentemente referências clássicas e sobre tudo uma
referência fundamental a Aristóteles – uma espécie de
translado de efeito empírico de alguma coisa que as
opções religiosas, o paradigma axiológico de fundo de
ordem religiosa, de algum modo ajudavam a resolver
ou impediam mesmo que se pusessem. O problema
naturalmente tornou-se outro quando a modernidade
se afasta ou se obscurece nela, uma referência de or-
dem transcendente e foi preciso justificar a ética numa
ordem, digamos, puramente humana. Ora, justamen-
te o filósofo Fernando Savater situa-se nessa linha, que
podemos remontar ao pai dessa reflexão – o próprio
Kant – o de uma justificação ética, num contexto e com
umas finalidades puramente humanas.
É o que ele tem feito magistralmente. Por isso os
seus livros têm conhecido tanto sucesso, sobretudo jun-
to de novas gerações para quem a problemática ética é
das mais obscuras e ao mesmo tempo absolutamente
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incontornável. Num mundo como o nosso, sem referên-
cias, sem referentes, propor uma reflexão dessa ordem é
de facto uma audácia e uma contribuição para uma or-
dem nova, que não é apenas ordem no sentido político e
ideológico do termo, mas a ordem mesmo da nossa cul-
tura, da nossa civilização.
Felizmente nós temos algumas obras em português
do Professor Fernando Savater, uma delas que é bem co-
nhecida e que tem muito sucesso é “O meu dicionário
filosófico”. O acento deve ser posto aqui no “meu” dicio-
nário filosófico. É evidente que os dicionários são sem-
pre de alguém, mas a pretensão implícita de um dicio-
nário é de não ser de ninguém. De maneira que assumi
um dicionário filosófico introduzindo-lhe imediatamen-
te essa nota: “isto é, de minha responsabilidade, eu sou
responsável por estas reflexões a propósito dos grandes
conceitos da filosofia, esta é a minha opinião sobre esses
assuntos”, o que é não somente um desafio, de marca
voltairiana, mas um acto ético.
E já nesta atitude nós temos aqui o homem, o gran-
de herdeiro do pensamento do Século das Luzes, o gran-
de conhecedor e amador de Voltaire e Diderot aquele
que, por ser assim, de algum modo teve a coragem de
se situar num domínio que não é aquele que habitual-
mente aparece como sendo mais típico da modernida-
de por um lado, mas sobretudo da pós-modernidade, na
qual se tornou um lugar comum pensar que o século das
luzes em todos os termos nunca foi o Século das Luzes
no sentido próprio, mas sobretudo que deixou de o ser.
Não só não deixou de o ser, mas provavelmente é um
daqueles séculos aos quais seria bem necessário que a
reflexão filosófica em geral e particularmente europeia
voltasse, porque foi um século, o primeiro século em que
a liberdade foi pensada, foi vivida e foi proposta como o
fim mesmo da sociedade humana.
Fernando Savater é um homem livre e é um pen-
sador da liberdade. Como pensador da liberdade pro-
cede com um distanciamento, um humor e uma ironia
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que são herdeiras desse grande século e lhe são instin-
tivamente naturais. Ele tem muitos livros que eu admiro,
mas há um que além de admirar invejo, e invejo que mais
não fosse pelo título. Todos aqueles que de uma maneira
ou de outra se colocam sobre a égide longínqua do ve-
lho Montaigne, gostariam de se ter lembrado de escre-
ver algum dia um livro que se intitulasse o Jardim das
Dúvidas. É um livro magnífico, uma ficção à moda do
próprio século xviii, a de um epistolário, de uma grande
dama espanhola, muito ao corrente, na sua juventude, da
cultura francesa, que em jovem teria cruzado realmen-
te o olhar de Voltaire, sem que Voltaire a visse. E esse é
o começo deste pseudo-epistolário filosófico, em que
essa senhora pede a Voltaire que, em nome desse epi-
sódio da adolescência, consinta em escrever-lhe para lhe
dizer quem é, contar-lhe aquilo que é. Esse é o pretexto
para que Fernando Savater nos retrace um retrato aces-
sível, cheio de humor, o de um conhecedor profundo do
Século das Luzes, que pode abdicar de toda a erudição
habitual de uma biografia clássica, para se dar ao luxo
de nos fazer penetrar no mecanismo mesmo dos pensa-
mentos de Voltaire e, colocado dentro dessa perspetiva
imaginária, responder a uma dama espanhola.
E estamos em pleno centro da nossa própria preocu-
pação, a do relacionamento da Península com a Europa,
pois naquele momento a Europa significava não só, mas
significava sobretudo, Voltaire. Portanto, é uma Espanha
que de algum modo se lê no espelho de Voltaire e um
Voltaire que percebe alguma coisa do Outro, no registo
de uma europeia voltairiana, mas espanhola. É um livro
que eu recomendo, àqueles que não o conhecem, entre
outros.
Não tivemos o prazer de o ter há dois dias, portanto
vamos ouvi-lo como um post-scriptum, um pouco à ma-
neira das migalhas filosóficas de Kierkegaard, em que é
o livro é mais importante que as migalhas. Sabemos que
vamos ter com o Professor Fernando Savater o post-s-
criptum às nossas migalhas de há dois dias.
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A IBÉRIA E O DIÁLOGO CULTURAL

Intervenção proferida na cerimónia comemorativa do 10º aniversário do CEI1

Eu pouca coisa tenho a dizer, a título de Diretor vir-


tual deste Centro de Estudos Ibéricos, que efetivamente
terá nascido de uma sugestão minha, há dez anos, e que,
entretanto, se transformou numa realidade efetiva, não
graças a mim, mas graças àqueles que acolheram a ideia
e permitiram que ela tomasse uma forma institucional,
sob a égide da Câmara. Para isso muito contribuiu não
só o acolhimento que essa ideia teve, há dez anos, quan-
do era Presidente da Câmara a Sra. Dra. Maria do Carmo
Borges e igualmente o então Presidente da República,
Dr. Jorge Sampaio, que está aqui, hoje, connosco, ao fim
de dez anos. E isto parece-me realmente a prova da exis-
tência concreta dessa ideia, pelo que agradeço essa es-
pécie de “tutela simbólica”. Mas eu não tenho imagina-
ção nenhuma. De maneira que eu não podia imaginar
que, ao fim de dez anos, essa simples sugestão se tives-
se transformado, efetivamente, num Centro que já tem
uma história própria. Uma história que, como aqui já foi
dito, se deve ao facto de ter sido concretizada na nossa
cidade de fronteira, com os seus pilares, as suas referên-
cias culturais e simbólicas, assentes nas duas universi-
dades mais importantes da Península Ibérica: Coimbra
e Salamanca. Foi o que aconteceu. E durante estes dez
anos eu tenho seguido, de longe, e com a minha ina-
tenção atenta, aquilo que se tem feito, os congressos, os
colóquios e as iniciativas que têm sido levadas a efeito

1 Revista Iberografias nº 7 (2011). ISSN: 1646-2858.


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pelo CEI. Na verdade, são os professores daquelas duas
Universidades, com os professores aqui da nossa própria
cidade, que têm mantido e têm dado vida a essa ideia
de um Centro dedicado ao diálogo cultural interibérico.
Agradeço àqueles que têm tido a responsabilidade dire-
ta na concretização desta ideia, à Câmara, naturalmen-
te, e àqueles que têm assumido diretamente a direção
do Centro. Eu não trouxe nada preparado em relação ao
tema desta manhã: “Ibéria e o Diálogo Cultural”. A Ibéria
é um vasto assunto. Tínhamos de refazer praticamente
uma parte da história da civilização ocidental a partir
deste tema, porque a Ibéria é mais antiga do que as suas
componentes históricas atuais. O diálogo cultural ibéri-
co remonta há quase 2000 anos, na medida em que foi
instaurado aqui pelo primeiro povo imperial da Europa,
chamado o povo romano e a sua cultura. Nós somos re-
almente filhos de Roma. Mas também somos, provavel-
mente, os filhos dos outros que estavam aqui; nós somos
filhos de uma colonização. Dois povos, que seriam mais
tarde destinados a ser os primeiros povos colonizadores
da Época Moderna, são eles próprios filhos de uma co-
lonização mais antiga, que é a colonização do tipo pré-
-histórico de que só os especialistas podem conhecer
qual o significado e a importância que realmente teve.
Mas o mais estranho, no caso da Península Ibérica,
é que com essa conquista romana, não só da Península
como depois do resto de uma parte da Europa, aconteceu
qualquer coisa de extraordinário. É como se tivéssemos
começado numa espécie de uma hora zero. Efetivamente,
pouca coisa nos ficou daquilo que seria a cultura anterior à
conquista romana, sobretudo em matéria linguística. Nós,
como dizia Camões, falamos romano. E o que é que era-
mos, antes de sermos romanos? Éramos celtas e ibéricos,
e isso não desapareceu, uma vez que está escrito, numa
espécie de inconsciente de ordem geográfica e de ordem
local. Está nos nomes que realmente ficaram. Esta famo-
sa conquista romana representou o início de uma nova
era na história do Ocidente. A Ibéria hoje é aquele espaço
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romanizado, com exceção do País Basco, que conservou
vestígios de uma realidade autonómica em matéria lin-
guística. E na verdade, a Ibéria, a Península, ainda hoje é
constituída pelos três espaços que os romanos definiram:
a Tarraconense, a Bética e a Lusitânia. Estão aí inscritos,
de uma outra maneira, os espaços onde se definiu aquela
que é a primeira grande conquista do império romano e
ao mesmo tempo, também, a primeira Europa. Chegámos
a um certo momento em que nós, ibéricos, nos conside-
rávamos pouco europeus, ou não europeus. Os europeus
eram os outros, a Europa eram os outros. Quando realmen-
te a Península foi a primeira Europa. Verdadeiramente,
sem que o sintamos, aquela que nasceu diretamente
do império romano. Agora, o que ninguém sabia, é que
esse nosso destino enquanto colonizados por Roma, ia ter
uma vocação planetária. E esta vocação é aquela que há
mais de 500 anos marca o destino da nossa Ibéria. Assim
que, embora o meu propósito, quando sugeri a criação
de um Centro de Estudos Ibéricos, fosse, fundamental-
mente, o de ativar o diálogo interno à Península Ibérica,
ele existiu sempre, mais frágil e menos dinâmico segundo
as épocas, mas existiu sempre. Mas, por vicissitudes
que são conhecidas, embora vizinhos no vasto mundo
– no Oriente, na África, na América do Sul – estávamos
aqui em casa, dentro do mesmo espaço, relativamente
separados, depois de termos tido um período durante o
qual a comunicação cultural foi muito forte. No tempo do
Camões as nossas duas culturas estavam muito próximas
uma da outra. Depois, começámos a diversificar um pouco
as nossas referências culturais, e digamos, a esquecermo-
-nos do diálogo interno e da nossa própria cultura ibérica.
Era nesse sentido que eu pensava um pouco no legado de
Oliveira Martins, de que a vida cultural devia começar a re-
forçar-se no interior da nossa própria casa, como casa co-
mum. Antes que este conceito de casa comum tenha sido
aplicado à Europa, em tudo, podíamos aplicá-lo à nossa
própria casa ibérica, à nossa própria península. Essa foi a
ideia. E penso que esta ideia, que tem apenas dez anos
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de tentativa de concretização modesta, numa cidade mo-
desta como a Guarda, se alargará realmente no futuro e
não se limita apenas a um diálogo propriamente fronteiri-
ço, de duas culturas, abrangendo a totalidade dos diversos
diálogos de que a Península Ibérica é feita. E este exemplo
será um exemplo que se alargará. Neste momento, nestes
apenas dez anos, tornou-se muito notório que há um di-
álogo que não existia anteriormente, um diálogo cultural
e já com um interesse muito profundo entre os dois lados
da fronteira. E ultimamente sobretudo a partir de Badajoz.
Badajoz tem a Extremadura do outro lado e tem tido uma
política de diálogo cultural entre vizinhos verdadeiramen-
te notável. No ano passado realizou-se uma exposição em
Badajoz com o título de “Noroeste/Sudoeste”, dedicada
às relações culturais entre os nossos dois países, desde os
fins do século xix até à Guerra de Espanha. Uma iniciati-
va verdadeiramente extraordinária, resultado do trabalho
de uma equipa que, durante cinco anos, se dedicou a fa-
zer uma espécie de levantamento daquilo que pareciam
ser as não relações ou poucas relações entre Portugal e
Espanha, e sobretudo, entre o Portugal da fronteira e a
Espanha da fronteira. São iniciativas desse género que
permitem alterar o não diálogo ou o pouco diálogo que,
nos últimos séculos, tem sido a norma do relacionamento
cultural entre Portugal e a Espanha. Não me vou alargar
mais, vou apenas constatar que dez anos, sendo pouco,
são, para mim, uma surpresa. Eu lancei essa ideia – naquela
altura não tinha outra – mas a verdade é que eu realmente
sou uma pessoa incapaz de levar à prática seja o que for.
Mas alguém, realmente mais concreto, com os pés mais
assentes na terra, tomou essa ideia em mão e conseguiu
torná-la realidade. É magnífico que seja uma pequena
cidade que tenha tido esta coragem, que eu próprio não
teria, de pegar numa ideia simples, numa espécie de pe-
queno sonho, que o tenha levado à frente e que neste mo-
mento já tenha asas para voos mais altos, que é aquilo que
eu desejo que é o diálogo entre Portugal e Espanha.

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JOGOS DE FRONTEIRA, JOGOS DE MEMÓRIA1

Em termos americanos onde é a nossa fronteira? Em


parte, nenhuma, nem naquela que temos à vista e atra-
vessamos a pé enxuto, como César o Rubicão. A verdadei-
ra fronteira é simbólica, não natural, como essa mesma
do célebre riacho italiano que separava a ordem de Roma,
da desordem do capricho ditatorial. As fronteiras chama-
das naturais pertencem mais à geografia que à história.
Nelas não se joga o destino, individual ou coletivo, sob
imperativo ético. Como dizia Hegel, uma montanha é só
o que é. Não deixa passar ou só o consente através do es-
forço incomum. Só porque eles eram Aníbal e Napoleão, a
travessia dos Alpes foi história e não mera geografia.
Uma fronteira é um paradoxo incarnado: “natural”
deixa de significar, simbólica nem precisa de se materia-
lizar. A ordem humana é uma ordem de olhares e os seus
conflitos dirimem-se, como num “western”, em campo
árido para que a violência se exprima, se exorcize e, acaso,
se redima. De quê? Da original realidade da violência que
institui a cidade pondo à sua volta uma fronteira como
fez Rómulo. É estranho pensar que o nascimento do pa-
radigma da urbe é um “ghetto” voluntário. Só tenho casa
minha, só tenho interioridade, inventando a exteriorida-
de, o território do outro como inimigo do meu. Pelo me-
nos é essa a escolha do sedentário. Uma escolha oposta
à de Ulisses, o nómada, o que não tem casa ou a perdeu

1 LOURENÇO, Eduardo, Fronteira, emigração, memória (2004). Guarda: Centro de Estudos


Ibéricos. ISBN 972-99435-0-8
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e erra para voltar a ela. As aventuras da interioridade, as
do simples homem ou da humanidade terminaram há
muito. Ninguém tem casa, ou tudo se passa como se a
não tivesse. Como um deus de ficção, estamos em toda a
parte e em nenhuma. É o refúgio que se tornou inconce-
bível. Ou só acessível aos raros que o podem mandar vi-
giar, como o velho Marlon Brando, na sua ilha de nómada
insone. Já no berço é-nos concedido o dom da ubiquida-
de. Somos enfim aqueles deuses de que o texto sagrado
se ri e agora se riem de todo o texto sagrado, mistério
esvaziado junto do mistério em plena luz da Internet.
O que é fronteira no tempo da Internet? Todas as
mensagens são conexas como rizomas, proliferação in-
sensata num espaço virtual sem lugar para qualquer vi-
vência que possa assimilar-se a uma fronteira e, muito
menos, a um repouso. Estamos num rio-tempo que corre
em todas as direções até para a nascente. E é agora que
nada nos prende e nada nos detém – mas também nada
nos chama ou nos fascina como a antiga fronteira – que
a sua falta nos interpela e nos inquieta. Que somos sem
fronteiras? E que novas fronteiras podemos imaginar
para ter de novo uma casa (a casa), uma cidade (a cida-
de), uma pátria (a pátria), sem perder a humanidade que
com tanto custo construímos, abolindo fronteiras?
Só casas-tempo, vida como memória, que são as que
não se definem por fronteiras naturais mas nos sepa-
ram dos outros, não de maneira contingente e reversível
como o espaço, mas as que se talham nesse rio-tempo
onde o mundo corre e nós permanecemos numa para-
doxal imobilidade. Cada um de nós é essa casa-tempo
que por fora o leva ou é destinada a qualquer porto e,
por dentro, está parada. Tudo o que conta é feito à nossa
imagem, a cidade, o bairro, a nação, o vasto mundo. Nada
são se não são memória viva, ir e vir dentro do nosso pró-
prio barco para aquele porto onde nada nos espera se-
não carregamentos dos sonhos que nos sonham. Se não
fosse assim, como suportaríamos o peso insuportável de
fronteiras que nos tornam inacessível um mundo onde
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devíamos respirar como se estivéssemos no paraíso?
A fronteira é o sinal de que fomos expulsos do paraíso,
de todos os paraísos, salvo o da casa-tempo da memó-
ria, nossa e alheia, onde nos refugiamos para existir como
os anjos que não somos. Mas é também o sinal de que,
transpondo-a, estamos tentando recriar, por nossa conta
e risco, o paraíso perdido.

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O NOSSO TEMPO E O TEMPO DOS OUTROS1

Pela primeira vez, enquanto atores culturais, os


europeus se encontram confrontados, não só do inte-
rior, mas do exterior, com uma temporalidade própria,
digamos, finita. E isto não pode ser indiferente para a
relação que têm com a sua História com Cultura ou da
sua Cultura como História. A sua e a dos outros agora
percebida e vivida, como não só diversa, nas suas ma-
nifestações, mas como originariamente outra para não
permitir pensar a Cultura como um conceito unívoco e
universal onde a pluralidade das culturas a si mesma
se compreende e se transcende. Cultura já não quer
dizer explícita ou implicitamente Europa como o era
sob a forma hegeliana do Espírito e esta consciência da
intrínseca finitude da nossa cultura nada tem que ver
com a famosa constatação desabusada de Valery de
que “nós, as civilizações sabemos que somos mortais”.
Esta mortalidade geral era, ao fim e ao cabo, consola-
dora para um grande europeu, estilo Valery. O que nos
aconteceu, o que nos acontece, é bem mais radical e
mais interessante: mortais ou não, nós europeus não
nos imaginamos já como culturalmente paradigmáti-
cos. E isto tem as suas consequências quanto ao nosso
destino cultural de europeus confrontados com outros
destinos tão convencidos como o nosso o foi de que a
ele e a ele só cabiam a vocação da universalidade e a
gerência do sentido da aventura humana. Os outros
1 Revista Iberografias, nº 2 (2006). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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não só nos interpelam como sempre o fizeram não
como nos julgam e nos contestam ou nos remiram por
lei, tendo para connosco aquele reflexo de compaixão,
de equidade ou de remorso que os europeus conhe-
ciam já nos Persas de Esquilo e um dia os levaram a
redigir os Ensaios ou as Cartas Persas. A cultura euro-
peia que julgava o mundo está em julgamento e daí
podermos continuar os nossos jogos culturais como se
estivéssemos sós no mundo. O mais lúdico dos prazeres
humanos converteu-se em jogo de vida e morte, não
porque estejamos à beira de ser submersos por uma
barbárie mais inquietante do que aquela que nós mes-
mos inventámos, mas apenas por uma rasura intensiva
e invencível da nossa imaginária identidade. Ao menos
deve mos saber de que é que estamos doentes e se,
condenados à morte, para poder sair da nossa História
que julgávamos “nossa”, de olhos abertos, e não feridos
de um sonambulismo encenável.
Desde que tiveram consciência de si, os europeus
– Heraclito ou Hesíodo – viveram na convicção de que
o seu tempo – o do “seu trabalho e dos seus dias”, tan-
to como o dos seus sonhos – era partilhado por toda a
Humanidade. O encontro com outras culturas, após um
instante de perturbação, como quando se confundiram
com um novo mundo, não abalou a sua convicção de se-
rem os “senhores do tempo”. O que se confinava, fossem
Péricles ou Alexandre – os europeus paradigmáticos na
ordem da vontade de poderio de vocação universal – na
convicção de serem também os senhores da História.
Aliás a História nunca foi para nós outra coisa que a me-
tamorfose, lenta, mas bem-sucedida, do nosso tempo
particular de gregos, romanos e cristãos num tempo vir-
tualmente universal. Aqueles que primeiro mediram o
nosso planeta deram-lhe, para fins práticos, a sua hora
exata. Todos os aeroportos do mundo nos confinam nes-
ta crença de um tempo único. O tempo europeu não só
continua a medir, aparentemente sem oposição, o ritmo
abstrato da mudança cósmica herdada da Babilónia,
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como confere uma orientação preciosa à nossa viagem
que sem esta escansão de tempos, seria vivida como es-
coamento intemporal ou eterno retorno.
O nosso tempo foi tempo de César em lembrança da
primeira Europa imperial, em seguida “tempo de Deus”,
ao mesmo tempo promessa de salvação e guerra do tem-
po no coração do homem. Esta temporalidade veio dar ao
destino europeu a figura felliniana de uma nau chiva…. Foi
sempre como um barco que o imaginário europeu se re-
presentou o seu destino viajante – barco de Noé, de Ulisses,
nau dos Loucos, nau redentora de Colombo – levando a
bordo a humanidade inteira. Mas agora que o tempo eu-
ropeu se tornou ao mesmo tempo, universal e finito, agora
que já não sabemos se a nau mítica possui ainda o desejo
e a força de continuar a sua errância, temos o tempo todo
para examinar a ficção gloriosa que fez da Europa uma es-
pécie de D. João da História, quer dizer, o seu conquistador
indulgente.
Pela primeira vez desde que os Europeus assumiam
o destino de mediadores entre outros povos e continen-
tes, a Europa de Marco Pólo toma consciência do seu es-
paço finito. Todas as naves europeias voltariam ao porto.
Simultaneamente o seu tempo abstratamente universal,
inscrito em todos os relógios do mundo, tornou-se o de
uma temporalidade encolhida, cortada, por assim dizer,
do élan irresistível das épocas com que se julgava res-
ponsável pelo futuro. Como se a Europa sofresse de uma
espécie de anemia, pelo simples facto de já não crer num
futuro que fosse, de algum modo, se não o acabar do seu
sonho conquistador, pelo menos do seu papel entre as
demais culturas. Os europeus veneram ainda o fim do
século e sobretudo o fim do segundo milénio depois de
Cristo, com a ideia de que esta celebração comportava
uma carga simbólica particular. Na verdade, só para nós,
europeus da Europa, o conceito de “fim de século” ou de
“fim de milénio” tem uma ressonância única. Nós senti-
mos bem que esses marcos não têm o mesmo sentido
para as grandes culturas não-europeias – China, Japão,
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Índia, Islão – ou não evocam ou expressamos mesmos
valores fantasmas, os mesmos devaneios, esperanças ou
nostalgias. A essência do tempo e a memória e as memó-
rias não são sobreponíveis.
Mesmo as culturas que retomaram, à sua maneira,
a herança do modelo europeu, como os Estados Unidos
ou a América Latina, relevam de uma temporalidade
histórica, diversa da nossa. O que significa novo milé-
nio – um milénio de memória – para quem só existe há
500 anos? Na realidade, só a referência ao tempo da
cultura europeia está impregnada de uma inquietação
de consonância trágica pelo facto da nossa cultura ter
assumido e bem cedo o papel de Sibila e de Cassandra
da aventura humana. Nós nascemos interrogando a
Esfinge de que desconfiávamos tanto. Todas as cultu-
ras, salvo a nossa, existem em função de uma resposta,
de uma crença ou discurso mítico, fonte de uma fami-
liaridade com o tempo que os europeus, desde Heraclito
e Píndaro, mas sobretudo desde S. Agostinho, nunca
conheceram.
Paradoxalmente, o fim do segundo milénio, esvazia-
do de antemão da sua dimensão sagrada, na medida em
que a Europa já não se vive como cultura crística, está
em vias de dissolver a sua temporalidade trágica num
outro tipo de temporalidade ligada a culturas que nunca
tiveram a necessidade de dramatizar a sua relação com
o tempo, como se elas não fossem para lado nenhum.
À semelhança do antigo Egipto, a China, a Índia, o Japão,
o Islão fundamentalista adere ao seu eterno presente, ou
ao imemorial dele, que se mudam ou renovam-se, na-
turalmente, não sem nunca afivelarem a máscara que a
nossa cultura revestiu tão cedo: essa, a de Édipo de que
erguiam e prendiam evocações; de onde viemos, quem
somos, para onde vamos?
Tudo se passa, nesta aurora de outro milénio, como
se nós, também, tivéssemos renunciado a ir para qual-
quer lado, talvez porque outros, nossos herdeiros, para aí
vão em nosso lugar. Esta visão releva talvez de um olhar
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demasiado contagiado por um presente europeu par-
ticularmente hamletiano, assaltado pelos demónios da
abdicação e da impotência no momento em que nós jul-
gávamos realizar o grande sonho comunitário. Seja como
for, a Europa não vive o seu tempo próprio com aquela
paixão inquieta e inquietante, poderosamente apoiado
pelo futuro, que parecia deportá-la para além de si mes-
ma no momento em que marcava com a sua inquietação
febril o ritmo mesmo da História.
Esta espécie de psicodrama da cultura europeia, a
melancolia que dela exala, é por assim dizer a sombra fa-
tal da ilusão europeia por excelência: a de se identificar
com uma temporalidade que relevava quer de uma Fé
de alcance universal, quer da universalidade mesma da
Razão, que poderia dar conta de tudo, mesmo do misté-
rio ou do enigma da História. Em todas as outras culturas,
o tempo dos homens é o tempo de Deus ou dos deuses.
Só a cultura europeia pretendeu que o tempo de Deus
fosse o tempo dos homens.
Quando este desafio prometaico perdeu a sua razão
de ser, a invocação do homem tendo-se tornado para si
mesmo um fardo mais pesado do que parecia a confian-
ça em Deus, a nossa sede pareceu extinguir-se. Também
nós, como as culturas extáticas, estamos vivendo o nos-
so presente como se não fossemos para parte alguma.
Como personagens de Herman Hess aspiramos ao re-
pouso, o repouso do sonho, durante o qual anjos à moda
de Wim Wenders se encarregariam das nossas tarefas
sobre-humanas, ou como o de Buda, sonho de pálpebras
fechadas, como resposta inacessível ao sofrimento que o
aqui vivo do tempo inflige aos nossos corações de carne
e sangue. Mas aquilo que no Oriente releva da mesma
funda sabedoria, de uma experiência vivida, no Ocidente,
em particular na nossa Europa esquecida dos seus pró-
prios sonhos de absoluto, não passa de uma mera “fas-
cinação” lúdica. Bem significativo, todavia, de uma deri-
va profunda, de uma incapacidade de assumir o tempo
como essência do ser.
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De continente sedutor – com o que há de demoní-
aco ou perverso em toda a sedução – a Europa transfor-
mou-se num continente seduzido. De certo, o espetácu-
lo da nossa cultura – ou da nossa cultura concebida em
espetáculo – não parece muito diferente daquele que
nós evocámos sempre com júbilo, o de todas as grandes
épocas criadoras do passado europeu: tempo das cate-
drais, do Renascimento, da festa Barroca, do romantismo
– apesar da sua essência doentia ou do elán nunca real-
mente terminado do conhecimento objetivo do mundo,
com os seus frutos ao mesmo tempo mágicos e inquie-
tantes. As mudanças e as metamorfoses da sociedade
europeia, em todos os domínios, são vertiginosas. As da
Cultura também, mas não da mesma vertigem. Poder-
se-ia mesmo supor que existe um laço profundo entre
uma mutação tão rápida que se nos torna indiferente, e
o sentimento de tempo suspenso que na ordem do sen-
tido e do símbolo, caracterizaria a nossa relação com a
História enquanto história europeia. Mas esta observação
é demasiado genérica. Se comporta alguma verdade,
devia aplicar-se a outras culturas, tão dinâmicas ou mais
que a da Europa. Ora não é o caso.
Nós sabemos que essas culturas não ressentem nada
que possa comparar-se à nossa melancolia histórica. Elas
relevam de uma outra temporalidade que nenhuma tra-
gédia empírica – mesmo a de Hiroshima – é capaz de afe-
tar. São culturas que, por razões opostas vivem na dene-
gação quase masoquista dos valores religiosos ou éticos
– que lhe servem de referência… Não são, como a cultura
europeia, sobretudo como cultura cristã, com a misteriosa
culpa original mesmo transfigurada em condenação da
redenção. Não é assim a ideia de nenhum japonês, nem
de nenhum americano (apesar da herança cristã) imagi-
nar que a sua cultura, apesar dos horrores de que os seus
países tornaram culpados, penitenciar-se publicamente
por essas catástrofes da sua responsabilidade e consi-
deradas uma mancha indelével como a que Auschwitz
deixou na consciência europeia. Mesmo o Vietname não
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foi peripécia que turvasse a sério a imagem da América
como pátria da Democracia e da Liberdade. A nossa mais
consciência significa que, apesar de tudo, o essencial da
nossa cultura, o seu enraizamento ético, cujos referentes
são Sócrates e o texto bíblico, foi preservado. Por quanto
tempo? É sobre esta linha invisível e precária, que o des-
tino europeu, suspenso da ideia de liberdade de escolha,
de responsabilidade e de salvação, parece hesitar, como
se também ele fosse tentado por um destino pragmáti-
co, típico de uma cultura de indiferença. E pior do que
tudo: da grande indiferença como cultura. Mas como cul-
tura dominante é aquela onde todos estamos planetaria-
mente submersos e ontologicamente distraídos. Esta é a
verdadeira versão de tão glosada – também ludicamente
– morte de Deus. Que a ninguém importa como se ele ti-
vesse outro contendor, que a nossa própria morte – morte
de seres incapazes de distinguir o que os salva do que os
perde. Que Messias nos poderá salvar desta perdição vivi-
da com um esplendor que converteu o espetáculo – mau
grado os seus horrores e indigência – numa Las Vegas
mítica, numa Jerusalém celeste às avessas?

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ITINERÁRIOS ENSAÍSTICOS

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© Câmara Municipal da Guarda

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ITINERÁRIOS ENSAÍSTICOS

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EU ENSAÍSTA ME CONFESSO

Intervenção proferida na apresentação do livro Existência e Filosofia.


O ensaísmo de Eduardo Lourenço, de João Tiago Pedroso de Lima1

Há pouco, foram apresentados dois livros e essa


apresentação foi um dos momentos mais intelectual-
mente emotivos para mim, porque significa que esta
ideia do Centro de Estudos Ibéricos, ideia que foi lança-
da nesta cidade e que foi aceite pela então Presidente
da Câmara, Dr.ª Maria do Carmo, ideia que a cidade acei-
tou e que, partindo de pouco, se transformou em exis-
tência efetiva e se está tornando uma referência cultural
na nossa cidade.
Deixando a analogia, que é muito difícil de sus-
tentar, com a semente, como se diz no Evangelho, está
nascendo já um arbusto consistente e provavelmente
no futuro uma famosa árvore na qual pousarão não só
as aves simbólicas, mas toda uma série de frutos que
têm para mim e para todos, que daqui para diante es-
tarão encarregados de dar ao Centro tudo para o que
foi pensado e imaginado, um saber particular. Além de
uma instituição de tipo cultural, este Centro é uma ins-
tituição especial de um tipo novo. Hoje pólo modesto,
mas já importante, e espero que no futuro cumpra a sua
missão: cultivar os laços que nos ligam historicamente
à nossa vizinha Espanha e particularmente àquela que
nos está mesmo em frente e com a qual nós coexistimos
ao longo dos séculos.

1 Revista Iberografias n.º 12, (2008) Guarda: Campo das Letras/ Centro de Estudos Ibéricos. ISBN
978-989-625-299-1
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Isto é realmente qualquer coisa mais gratificante
além do que eu podia imaginar. Eu tenho pouca imagi-
nação, mas quando as coisas se realizam acabo por me
surpreender a mim próprio. Aquilo que se faz é bem mais
importante do que imaginamos. Nós não temos imagina-
ção para antecipar aquilo que a vida é capaz de inventar
para nos surpreender.
Não queria deixar de passar este momento sem di-
zer alguma coisa sobre um desses livros, pois o outro já
foi magnificamente apresentado e comentado pelo anti-
go Reitor da Universidade de Coimbra, Professor Doutor
Fernando Rebelo. Em relação ao livro do Prof. João Tiago
Pedroso de Lima, que disse estar numa situação delica-
da de ser o autor a comentar o seu próprio livro eu não
o estou menos ao fazer um comentário a um livro que
é consagrado a uma tese universitária sobre o “meu
pensamento ou um aspeto do meu pensamento”.
Encontrei há anos um jovem autor que manifestou
o propósito de me consagrar um estudo, em suma uma
“tese”. Fiquei muito surpreendido com esse propósito do
jovem, então estudante, e sem saber exatamente que
atitude tomar e, não me dando por achado, não me con-
siderando digno de ser um objeto de estudo, de tipo uni-
versitário, sério. Surpreendido e comovido que alguém
achasse que aquilo que eu tinha escrito podia ser objeto
de consagração das consagrações que é ter alguém que
escreve uma tese universitária sobre nós. Tive de me re-
signar à hipótese e confesso que, lendo o que o Prof. João
Tiago escreveu sobre mim, e que está neste livro, fiquei
não surpreendido porque percebi imediatamente que
estava diante de alguém que tinha a sincera paixão pela
reflexão, que tinha a capacidade de se investir em qual-
quer objeto de estudo de natureza filosófica que lhe in-
teressasse e que podia realizar esse trabalho. O que mais
me surpreendeu, quer no caso dele, quer no caso de ou-
tras pessoas que se ocupam de mim, é que tivessem tido
em relação a mim a coragem que eu não tive em relação
a um pensamento… que não foi capaz de se sistematizar
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ele mesmo, apreciar sobre si próprio, que se considerou
sempre como uma porta aberta, como uma aventura,
como um exercício de liberdade em ato em relação ao
pensamento ou ao texto dos outros que tendo um cer-
to momento pretendido ser no sentido académico do
termo filósofo ou philosophe, como dizem os franceses.
Um philosophe são todos os que fazem estudos de
filosofia, mas para mim não é toda a gente que faz estu-
dos de filosofia. O filósofo é uma ave rara, raríssima; nós
somos professores de filosofia. Filósofos há três ou quatro
por século e bastam porque esses, os grandes filósofos, os
grandes criadores de filosofia são os focos em volta dos
quais todo o pensamento se desenvolve. Naturalmente,
eu penso que só esses verdadeiramente filósofos são
dignos que alguém lhes consagre uma glosa que antiga-
mente poderia durar séculos. Durante séculos, Aristóteles
foi o filósofo. Ninguém tinha a pretensão de ser filósofo,
o mestre dos que sabem e eu naturalmente não tinha
pretensão nenhuma de estar inscrito nessa genealogia
fabulosa dos mestres, dos que sabem, ou de outros da
mesma linhagem.
Num certo momento do meu percurso, ainda jo-
vem, desviei-me dessa tentação ou tentativa de querer
também aceder à categoria filosófica para derivar para
um caminho, entre filosofia e literatura. Esse caminho
médio, na ordem dos estudos, na ordem da reflexão,
é representado pela criação, pela invenção, que é um
acontecimento da História Cultural do Ocidente chama-
da “ensaio”. Um ensaio é uma coisa que não tem estatu-
to, imperativo de ser um conhecimento do mais perfeito,
do ser, da natureza, do cosmos, mas que é uma reflexão
de tipo universalizante, aberta, com uma grande carga
de subjetividade e que foi efetivamente inventada so-
bre essa forma por Montaigne. Tanto mais que eu sabia
que um dos meus mestres não tinha grande considera-
ção pelo que chamavam o ensaio, um dos meus outros
mestres era considerado por ele ensaísta e eu lembro-
-me muito bem do tom com que ele se referia a esse
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mestre. Eu, que era no final de contas o discípulo pre-
dileto do meu caro mestre, nunca esquecido, Joaquim
de Carvalho, sei muito bem que este desvio, este afasta-
mento de uma reflexão do tipo mais exigente possível,
sistemática, que se fechasse sobre si própria, que tivesse
uma coerência formal impecável da primeira página até
à última, era uma espécie de deserção. Ele, que era um
grande leitor, um grande admirador de Spinosa, isso é
um filósofo, um criador de um sistema. A Ética é alguma
coisa que é como se fosse digamos não propriamente
a palavra, o verbo na sua expressão da revelação mes-
ma de Deus, mas a revelação de termos agora humanos
que é aquela que está consagrada na Ética. Este tipo de
reflexão não só já existia no passado mas não me sentia
com as qualidades, as capacidades para funcionar de
maneira que escolhi um caminho difícil, um caminho
de muito mais contingente, atribuindo uma liberdade
de pensar por imagens, por intuições que não é pro-
priamente um discurso unicamente de conceitos que
se encadeiam de uma maneira extremamente coerente
e fechada sobre si própria que caracterizam os grandes
textos de filosofia. De maneira que me apaixonei cedo
por outro tipo de Pensadores que na época começam a
ser reabilitados em função de um pensamento de outra
ordem que se chamou de ordem existencial.
A filosofia sempre teve essa componente, natural-
mente, mas agora especificamente esse tipo de pensa-
mento existencial é aquele pensamento que está radi-
cado e que é um discurso em função da existência não
como a existência em si, existência objetiva, quer seja
Deus quer seja o Cosmos, mas da existência mais irredu-
tível aquela que nós somos a própria existência humana.
Os homens, os filósofos, durante séculos, ocuparam-se
da existência objetiva das coisas, da existência do mundo,
da natureza, da existência do homem enquanto objeto.
Mas como ocultando aquilo que é anterior a essa própria
contemplação, a existência de cada um de nós. Foi esse
um pouco o caminho pelo que eu enveredei e, de facto, o
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Tiago sublinhou que o que eu fiz na minha vida foi uma
espécie de diálogo, de conversa imaginária, uma glosa
contínua, uma espécie de poética e filosófica ao mesmo
tempo, sem distinção entre uma coisa e outra. Depois
de abandonado o sonho Hegeliano de aceder a um tipo
de discurso que englobasse a totalidade possível da ex-
periência humana foi decisivo para mim ter encontrado
Kierkegaard e Pessoa quase ao mesmo tempo. Na ordem
da criação, Fernando Pessoa é um pensador e um poeta
que parece ter nascido para pôr em causa toda a espécie
de pensamento que tendem a transformar-se em siste-
ma ou fechar-se sobre si próprios. A sua obra é um exercí-
cio de liberdade infinita e de procura daquilo que não se
encontra e não se acha em vez de ser alguém que, numa
linha de pensamento filosófico clássico, se preocupa por
encontrar a verdade, verdade objetiva, que os filósofos
têm dificuldade em definir e que só a ciência, que é uma
outra forma de filosofia, pretende na sua ordem alcançar.
Assim, me tornei num ensaísta. Nem poeta nem filósofo.
Agradeço a João Tiago Pedroso de Lima que ele te-
nha, efetivamente, tomado a sério essa minha paixão,
esse quase sacrificial exercício em relação a Pessoa e
que de facto, tenha convertido o Pessoa em matéria de
perplexidade, de reflexão sem fim, de pensamentos que
abrem para tudo e para nada, que parecem contraditó-
rios e inconciliáveis, mas que são o mais ardente exercí-
cio, não só da liberdade de pensar, mas como da liber-
dade de imaginar o que não existe. João Tiago percebeu
isso muito bem e apraz-me manifestar, não por razões de
auto-glorificação própria, que me é totalmente estranha
àquilo que eu sou e mereço, mas simples consideração da
sua perspicácia intelectual de jovem filósofo que ele te-
nha percebido que eu não sou um filósofo propriamente
dito e que o seu livro se chame Existência e Filosofia: o
Ensaísmo de Eduardo Lourenço. O maldito ensaísmo,
o pobre ensaísmo! Há um autor espanhol, da primeira
metade do século xx, chamado Azori, que tem um livro
delicioso e sempre invejei muito o título desse livrinho
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chamado El pequeño filósofo. À falta de ser um grande
filósofo posso consentir ser apelidado “el pequeño filó-
sofo” como dizia um critico jovem piedoso, implacável,
há uns anos atrás, que eu era um filósofo de província.
Aceito a designação…sou, gostosamente, um filósofo de
província, outra versão do que é um ensaísta.

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DO PORTUGAL EMIGRANTE AO PORTUGAL EUROPEU1

Mas naquela hora, para Anacleto e Felismina, foi como se lhes


anunciassem a beatitude à mão direita de Deus Padre, e com os
anjos em volta.
AQUILINO RIBEIRO A CASA GRANDE DE ROMARIGÃES

O futuro não o guardamos em casa, perde-se, dispersa, entre a


mera morte e a passagem.
PAULO TEIXEIRA

Nos começos de um lindo mês de maio de um ano


memorável, a “France-Culture”, que é um pouco o espe-
lho da França, relatava aos seus ouvintes a odisseia de
um homem comum, que se tornara o símbolo da nossa
aventura de portugueses comuns neste vasto mundo.
Pareceu-me muito mais que uma coincidência.
Como se de uma estrela apagada há quatro séculos
ressurgisse, em terras de França, após uma longa ausên-
cia, a voz de uma cultura que encontrou na Peregrinação
de Mendes Pinto a narração de um périplo ao qual a ima-
gem de Portugal permaneceu sempre ligada. Mendes
Pinto não é exatamente uma espécie de Ulisses dos po-
bres. O autor da Peregrinação não é de todo Ulisses, rei
e herói de lenda antes da sua peregrinação imposta pe-
los deuses. A deambulação de Mendes Pinto, paradigma
de todas as peregrinações futuras dos portugueses, foi

1 LOURENÇO, Eduardo – Um país de longínquas fronteiras. Guarda, Câmara Municipal, 2000.


ISBN 972-95140-6-2
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determinada pela necessidade, pela simples vontade de
sobreviver, de salvar a vida, num mundo perigoso e, so-
bretudo, num mundo de pobreza. Muito mais que o pró-
prio Camões, nosso herói na literatura e na vida, também
ele, deportado como Portugal inteiro, sensível às mira-
gens do Oriente, Mendes Pinto é, em si só e para sempre,
o Portugal-Emigrante. É porventura mais que um acaso
se as suas narrações lendárias se estendem neste espa-
ço de luz escrita a que chamamos França, num momen-
to em que se assiste, a nível simbólico e a nível da histó-
ria, ao regresso de Portugal a esta Europa de quem foi o
primeiro a afastar-se, muito antes de Colombo conduzir
o destino europeu para margens desconhecidas muito
cedo encravado entre Castela, o Islão e o mar, emigrou
sempre. Talvez não estejam muito errados aqueles que
apenas veem nos Descobrimentos a expressão gloriosa
de um fenómeno mais profundo e ininterrupto a que cha-
mamos Emigração e que, não sei bem porquê, nos obsti-
namos, sem dúvida para o enobrecer, a chamar Diáspora.
Somente os judeus portugueses se podem reclamar
deste destino de ressonâncias tão trágicas. O nosso, para
além desse momento doloroso, foi mais modesto. Foi o
de um povo emigrante e migrante, disperso pelos qua-
tro cantos do mundo, como se nunca tivesse saído de sua
casa. É neste sentido que a nossa história é a do Portugal-
Emigrante, cuja última metamorfose teve lugar há trinta
anos atrás, desta não para outros continentes, mas para a
Europa que, estranhamente, se tornou, na segunda meta-
de do século xx, num continente de imigração.
Durante séculos foram os europeus a emigrar
e, de entre eles, os portugueses foram os primeiros.
Presentemente, a Europa transformou-se no continen-
te para o qual, como se de um Eldorado se tratasse,
a humanidade emigra.
Ainda não refletimos o suficiente sobre esta nova
situação em que se encontra a Europa. E quase nada
refletimos, parece-me a mim, sobre a última – esperemos
que seja a última – aventura de Portugal como nação
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migrante. No entanto, esta nova emigração mudou não
apenas as nossas relações tradicionais com a Europa –
em particular com a França, espaço privilegiado dessa
emigração – mas também a imagem dos portugueses
relativamente a si próprios.
Tendo sempre emigrado, os portugueses haviam as-
sumido esse destino, ou essa fatalidade, à imagem posi-
tiva que eles fazem de si mesmos e ao papel que desem-
penhavam, ou julgavam desempenhar, sobre o palco
do mundo. Ao partir para o Brasil, os Estados Unidos, a
Argentina, a Venezuela, ou indo para as nossas antigas
colónias, os nossos emigrantes seguiam, involuntaria-
mente, o percurso dos antigos descobridores. No ano-
nimato e com discrição, eles prolongavam a epopeia, o
dever de se espalharem pelo mundo, não apenas para
aí refazerem as suas vidas, mas também para aí desem-
penhar, em uníssono com os outros europeus, um papel
civilizador ou, pelo menos, de comando. Com sucesso ou
sem ele, esta emigração assegura, à sua maneira, a pre-
sença de Portugal no mundo, em termos que não obs-
cureçam a mitologia lisonjeira do nosso universalismo de
povo instalado, desde o século xvi, de Macau a Malaca, e
de Ceilão ao Brasil e à África. Em suma, desempenhamos
sob um modo menor – escondendo cuidadosamente o
reverso doloroso desta dispersão forçada – o nosso mítico
papel de “colonizadores”, os primeiros e os últimos, na or-
dem do tempo, da Europa moderna.
É toda esta mitologia, ao mesmo tempo histórica,
ideológica e cultural, que a nova emigração – aquela que
se fez para a Europa – alterou, à primeira vista, de ma-
neira profunda. “Europeus” que emigram para a Europa:
o simples enunciado deste facto deixa-nos sonhadores.
Nós não somos os únicos europeus a ter emigrado para
a Europa por razões estritamente económicas. Antes de
nós, já havia polacos, ucranianos, italianos, espanhóis.
Para ser rigorosos, deveríamos falar de “migrações”, como
aconteceu na Europa e na Ásia durante séculos. Mas a
designação escolhida, um pouco absurda, acabou por se
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revelar justa. Polacos, italianos, espanhóis, e portugueses
depois deles viveram estas migrações como emigrações
verdadeiras, como se tivessem atravessado oceanos, vin-
dos de uma Europa à margem da verdadeira, da rica, da
poderosa Europa. Em todo o caso, uma outra Europa.
Numa perspetiva unicamente económica – aquela que
determina, explica e condiciona o fluxo migratório – , o fe-
nómeno colocava em evidência aquilo a que mais tarde
– e ainda hoje – se chamaria a Europa a duas velocidades.
Não sei como é que os outros europeus viveram esta ex-
periência, particularmente dolorosa, em termos de iden-
tidade, de simbólico e de imaginário, de uma emigração
para o seu próprio continente descoberto como outro
continente. Nós, portugueses, vivemo-la, como seria de
esperar, à maneira portuguesa, negociando os nossos
sofrimentos, as nossas humilhações, as nossas deficiên-
cias de língua ou de savoir-faire, mas também as nossas
novas relações com o outro, ao mesmo tempo de inveja
e de sedução, da forma mais discreta, mais suave possí-
vel. Diz-se mesmo que nos fundimos com a paisagem.
Talvez seja verdade, mas apenas no sentido estratégico,
característico de alguém que não deseja ser localiza-
do. Enganamo-nos quanto à tão famosa capacidade de
adaptação dos portugueses para se tornarem «outros»,
para a qual Fernando Pessoa já encontrara uma expres-
são mítica. Todos aqueles que os conheçam sabem que
os seus disfarces, como os de Woody Allen, são apenas o
método mais retorcido de representar para consigo pró-
prios, e para com os outros, a comédia da superidentida-
de: ser tudo de todas as formas, maneira sublime de ter
um ser real e, talvez, de imitar Deus.
Os portugueses dos anos 60 que atravessavam o
mar terrestre que os separava do El dorado francês, não
eram seres sofisticados como Pessoa, ou como, antes
dele, as centenas de intelectuais que haviam sonhado
com o estrangeiro – e, particularmente, com a França
– como terra de exílio ou de liberdade de espírito. Eram
apenas gente simples, conhecedores das dificuldades da
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vida e a quem tinha sido dito que as novas Índias, o novo
Brasil, os incríveis Estados Unidos dos sonhos mais loucos
se encontravam à mão de semear. Só tinham que dar um
passo, o salto que, mais do que um risco de insucesso, era
uma aventura que eles não conseguiam adivinhar até
que ponto modi ficaria, não apenas as suas vidas reais,
mas mais do que isso, o ancoradouro simbólico num pas-
sado e num discurso identitário multissecular. Como é
que eles podiam supor – embora vivendo-a na sua carne
– que a nova emigração, da qual eram eles os atores, sig-
nificava, de facto, uma mudança, e mesmo uma inversão
de sinal, do nosso antigo destino de povo emigrante? De
repente, os filhos do povo descobridor, os soldados rasos
da aventura colonizadora, e com eles o país europeu que
tão bem soube tapar dos olhos do mundo a sua pobre-
za, eram relegados ao papel de estivadores da Europa2.
Há trinta anos atrás, este facto não era um elogio – era
uma constatação. Hoje em dia, aplica-se a metáfora aos
professores auxiliares dos liceus ou às pessoas do mundo
televisivo que não sejam vedetas. Não se sabe bem se são
os «estivadores» de outrora que subiram de categoria, ou
se os educadores ou os sacristães do efémero desceram
aos porões da História.
Dessa emigração-exílio, vivida pelos intelectu-
ais, pelos romancistas, pelos poetas, temos alguns
testemunhos dilacerantes, sobretudo na obra de
Rodrigues Miguéis. Mas a ferida permanece frequen-
temente escondida, mesmo sob o sarcasmo raivoso,
como é o caso de Jorge de Sena, ou do lirismo som-
brio ou irónico de poetas que viveram no exílio, como
Casais Monteiro, Echevarria, José Augusto Seabra,
Alberto Lacerda, Alfredo Margarido ou João Camilo.
Todo o exílio é duro de viver, não tanto relativamen-
te à terra que nos acolhe, mas relativamente àquela
que perdemos duas vezes, abandonando-a quer se

2 Subtítulo de um conjunto de obras consagradas à emigração portuguesa na Aquitânia. Ed. da


Maison des Sciences d`Aquitaine, Bordéus, 1990.
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queira, quer não. Não esqueçamos que a sublimação
moderna da saudade – a promoção mítica que se asso-
cia ao nome de Portugal nasceu nas margens do Sena,
sob a pluma de Almeida Garrett, menos como sofri-
mento imposto pelo contacto com a cidade-luz, do que
pela recordação de uma Pátria onde, então, não sabia
bem viver.
Os nossos emigrantes – pelos menos os primei-
ros – não possuíam nem tempo, nem meios para dar
uma forma a esse drama de desenraizamento ou às
dificuldades naturais de um enraizamento improvável,
conseguido, mais tarde, pelos seus filhos. Eles não ti-
nham partido, como o haviam feito os nossos poetas
românticos, para esperar que a sua pátria voltasse a
ter uma alma. No seu espírito, esse grande êxodo po-
dia ser antes comparado a uma colossal migração sa-
zonal. Atrás deles, a porta da casa permanecia aberta.
A França não era uma nova Babilónia. Iam para lá na es-
perança de dias melhores. Pouco a pouco, habituavam-
-se a viver em França – ou noutro local – como alunos à
espera das férias. Os regressos barulhentos, nos meses
de Verão, que, durante algumas semanas, transfigura-
vam a vida, ainda rústica, do país natal mudavam-nos
ainda mais. De «estivadores» da Europa aqui, transfor-
mavam-se em tios da América lá. Nada custou mais às
primeiras gerações de emigrantes que esta metamorfo-
se. Da França, terra de acolhimento, receberam, quase
de imediato, para além de uma solicitude interessada, o
respeito e o reconhecimento. Com a mãe-pátria as coi-
sas foram – talvez ainda o sejam – mais complexas e mais
duvidosas. Queríamos o seu dinheiro, mas não aquela
imagem projetada no écran europeu de um povo po-
bre, um pouco perdido na gare de Austerlitz, antes de
encher, já novo-rico, os aeroportos futuristas da França e
da Alemanha. O Portugal oficial da época escondeu du-
rante muito tempo este fenómeno, esta sangria que não
podia evitar, mas da qual muito depressa compreendeu
poder tirar grandes benefícios.
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Todavia, Portugal inteiro – aqueles que tinham fica-
do – escondeu ainda mais profundamente o fenómeno
da emigração ascendente, da emigração bem-sucedida
e, por fim, feitas as contas, da emigração triunfante.
Só Deus festeja os filhos pródigos. Os homens têm
grande dificuldade em aceitar aqueles que regressam a
casa com os braços cheios de presentes, como o fazem os
nossos emigrantes em férias. Estes sabiam que tinham
que fazer-se perdoar, não dos seus pecados – ou seja, do
seu sucesso –, mas do ressentimento de uma pátria inca-
paz de os reter e, agora, espantada com o seu êxito.
Durante os anos 60, o Portugal que emigra é um
país pobre. Não era o único na Europa. A Grécia, a Itália,
a Espanha eram-no tanto quanto ele. Mas este país po-
bre tinha um império. Muitas vezes, sem que disso tives-
sem consciência, o dinheiro dos emigrantes serviu para
sustentar as últimas muralhas de uma fortaleza imperial
cercada por todos os lados. Quando ela caiu, os emigran-
tes estavam mais ricos e Portugal menos pobre. A velha
emigração tinha acabado. Ela tinha contribuído, mais do
que qualquer outro fenómeno, para a metamorfose de
Portugal-pobre em Portugal-rico, mas desejoso de se
sentir mais à vontade numa Europa que se tornara o seu
horizonte irreversível, e onde, paradoxalmente, os nossos
emigrantes e, sobretudo os seus filhos, começavam a ser
considerados exploradores modernos, completamente
portugueses-europeus, e não somente, como desde há
séculos, portugueses que sonhavam com a Europa.
Esta mudança visível, que se acentua com a ade-
são oportuna do pequeno Portugal à «grande Europa»
que inicia o seu voo, merece que nos detenhamos nela
um pouco. Por um desses efeitos de ilusão retrospetiva
Bergson, é que podemos estabelecer agora, uma es-
pécie de elo genealógico, quase causal, entre o antigo
Portugal-Emigração (o dos anos 60 e parte dos anos 70)
e o novo Portugal-Europeu. Ninguém sabe muito bem
o que significa ser europeu, e os portugueses, que fo-
ram hiper-europeus outrora, através do seu mítico papel
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descobridor, sabem-no talvez menos do que ninguém.
Como toda a gente – pelo menos até aos temores sus-
citados por Maastricht – Portugal, que neste momento
preside à União Europeia, brada: «Europa! Europa!» ele
grita mais forte do que qualquer outro país entre os doze
– com exceção talvez da Grécia – porque nenhum tirou
tanto proveito da sua providencial adesão à Europa rica.
Mas o seu coração está lá? Sim e não. Portugal – como de
resto quase todos os outros países que não são, por direi-
to divino da História, da Europa da riqueza ou do poder
– França, Alemanha, Holanda, Bélgica – só é europeu em
Portugal. Ele quer a Europa, ele deseja-se Europa, mas
em Portugal. Se ele fosse tão poderoso como a Inglaterra
talvez mani-festasse, perante a Europa, as mesmas re-
ticências da sua velha aliada. No âmago de si, muitos
portugueses acreditam, como outrora Unamuno, que a
sua vocação os arrasta menos para uma «europeização»
segundo os desejos de Ganivet, de Ortega y Gasset,
de Antero de Quental ou de Sérgio, do que para uma
«portugalização» da Europa. Nós não abdicamos dos
nossos sonhos, dos mais provincianos aos mais subli-
mes, como o do Quinto Império. Povo de sonhos maiores
do que ele, Portugal desejaria estar dentro e fora desta
Europa que escolheu, que não poderia ter deixado de es-
colher, ou antes, que já o escolheu a ele, como a muitos
outros. Mas a escolha que, de certo modo, nos foi impos-
ta, esta escolha que, a nível de interesses, nos enriquece
e nos encanta, essa escolha foi realizada pelo Portugal-
Emigrante, em atos, sem pensamento reservado, políti-
co, ideológico ou cultural.
De certo modo, foi ele que nos precedeu. Ao cabo
de trinta anos, sem que o português médio desse con-
ta da mudança, foi o novo português-europeu que, sem
o querer, pelo simples facto de estar lá, no «coração da
Europa», nos instalou verdadeiramente nela. No fundo,
foi ele que incentivou – mesmo nos menos recetivos – a
ideia de que tornar-se europeu, caminhar no sentido da
futura Europa, não era, apesar de tudo, uma opção muito
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má. Os portugueses constituem uma curiosa mistura de
idealismo onírico e de pragmatismo rasteiro. Embora pa-
gando o preço, a nossa identidade não sofreria mais do
que sofreu a identidade, a figura e o comportamento do
antigo emigrante, em confronto com a Europa culta, or-
denada e, sobretudo, rica.
Contudo, a conversão – se houve conversão – não era
fácil, ou não é ainda fácil. Com efeito, o fenómeno emi-
grante não nos aproximou – sob o plano cultural e simbó-
lico – da Europa, ou seja, da França, para nós, portugueses,
objeto multissecular do nosso fascínio, do nosso sonho e
da nossa desconfiança. Isto pode parecer excessivo, mas
penso ser verdadeiro: o fenómeno da emigração contri-
buiu para atenuar o papel da França como referência in-
contornável da nossa cultura. Talvez haja que acrescentar
que isso sucedeu, no mundo ocidental, com a emergên-
cia, mais ou menos irresistível, do modelo americano,
mesmo no seio da cultura francesa. Seja como for, tudo
se passou como se o emigrante e, mais largamente, a cul-
tura emigrante tivesse banalizado entre nós a imagem da
França nivelando-a, se assim se pode dizer, por baixo. Era
ainda uma maneira mais ou menos subtil para o Portugal
dirigente e cultivado recusar a sua imagem como ima-
gem emigrante. Preparada e pronta, surgiu então nos
écrans de televisão, nas páginas das revistas, através da
colaboração dos «scholars» formados em Oxford, Harvard
ou Berkeley, ou, a nível mais popular, mas não menos ir-
resistível, graças à cadeia da Globo, uma outra cultura pe-
rante a qual o antigo discurso parisiense se tornou menos
brilhante do que outrora. Um dos melhores semanários
portugueses não publica, diretamente em inglês, a lista
das novidades literárias de Nova Iorque?
Não nos deixemos enganar. Grande número de in-
telectuais da casa experimentam um certo prazer, direi
mesmo, um maldoso prazer, vendo os antigos laços re-
ais da nossa identidade cultural e da cultura francesa
um pouco tensos e, em certa medida, desfeitos. Mas nós
amamos muito esta pátria de Montaigne, de Pascal, de
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Voltaire, de Stendhal, de Flaubert, d’Hugo, de Proust e de
Sartre, e amamo-la com um amor sem compensação,
como o outro, mítico, de Sóror Mariana. Outrora, teci, a
respeito daquilo a que chamei «relações assimétricas»
entre as nossas duas culturas, considerações que julgo
ocioso repetir. E tentei fazer compreender porque, em
certa medida, era normal que assim fosse.
Poder-se-ia dizer o mesmo sobre as relações entre
outras culturas – as mais ricas da Europa e de outros luga-
res – como a cultura francesa. Em certo sentido a França
não tem imagem: ela é – talvez pelo papel único represen-
tado por Paris – todas, ou quase todas, as imagens repre-
sentadas pela cultura ocidental. Cada país procurou, na
sua cultura, o que lhe convinha para a alimentar, desper-
tar ou inventar. As nossas relações com a cultura francesa
– e com a França em geral – são antigas, quase regulares
e essenciais para a compreensão da nossa cultura, mas
também ambíguas e, feitas as contas, misteriosas, por-
que, num certo sentido, há poucas culturas tão distantes
uma da outra como a francesa e a portuguesa. Portugal é
um «país mágico» e um país de milagres quotidianos. Em
França também existem, mas há, e houve sempre, Bayles,
Voltaires e Zolas para deles troçar. Ultimamente, Raul
Ruiz – chileno batizado, momentaneamente, português
– escolheu para um seu filme «incompreensível», de um
onirismo desvairado, um personagem francês ávido de
milagres em série. A ação situa-se no Alentejo. A escolha é
fabulosa: há dezoito anos, um velho povo árabe-cristão tor-
nou-se, de um dia para o outro, «marxista». O inverso não
é de excluir. Esta história agrada-me e, presentemente,
qualquer história um pouco exótica, de Wim Wenders a
Alain Tanner ou a João César Monteiro, encontram o seu
lugar privilegiado no nosso lírico país. O devaneio francês
é transparente. Não só o de Rousseau, mas também o do
surrealismo, o mais metódico devaneio jamais concebido.
Também a este título – sobretudo a ele – as relações das
nossas duas culturas só podem ser «assimétricas». A ba-
lança pesa, talvez providencialmente – como único meio
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de equilibrar uma cultura tão estruturalmente sonhadora
como a nossa – para o lado da França.
Com este pano de fundo – possivelmente gerado
por puro delírio – que pensar do imaginário recíproco de
Portugal e da França, tema entrevisto por mim como hi-
potético? Em geral, os portugueses queixam-se da não
reciprocidade, ou antes do déficit, como se diz agora, de
reciprocidade, entre a atenção prestada pelos portugue-
ses à França, e à sua cultura, e aquela que os franceses e
a sua cultura dispensam a Portugal. Que a França esteja
mais presente em Portugal do que Portugal em França,
em termos de consideração, imitação ou influência, tor-
nou-se um lugar comum, decerto fundado em números
estatísticos. De facto, nem os franceses, nem os portu-
gueses se interessam muito uns pelos outros. Contudo
são ainda os franceses que testemunham maior interes-
se pelos autores e artistas de Portugal. Teríamos muita
dificuldade em encontrar, em Portugal, uma atenção tão
qualificada dirigida às grandes figuras da cultura france-
sa. Onde se encontra, então, a carência de reciprocidade?
De facto, esta expressão procura sublinhar que a imagem
ou o conhecimento que o francês médio tem de Portugal
e da sua cultura é vaga, intermitente, sem relação com a
importância, o brilho e a ressonância que nós lhe atribu-
ímos. E, sobretudo, sem a menor proporção com o peso
e a irradiação que a imagem da França e da sua cultura
possui no nosso imaginário. Trata-se, talvez, de uma des-
tas querelas que somente tem um motivo – nós próprios
– ou seja, no fundo, uma falsa querela. Todavia, se ela tem
um sentido, o seu desafio ultrapassa largamente o domí-
nio das coisas que podemos compreender. As relações
das culturas, como as dos seres, mudam sem cessar. O
mal-estar causado outrora pelo apagamento da nossa
cultura no horizonte francês não é hoje o mesmo e os
nossos ressentimentos começam a apagar-se, particu-
larmente no domínio das imagens. Se no decurso dos
últimos trinta anos, por razões já invocadas, a imagem
da França parece menos brilhante ou mais ausente da
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nossa cena cultural, a de Portugal em França adquiriu,
pelo contrário, contornos e um relevo mais nítidos. Por
um lado, porque somos Europa, Europa de pleno direito.
Por outro, porque de um modo talvez ainda insuficien-
temente sentido, uma parte da substância portuguesa
tão naturalmente se alimenta sem cessar a cultura fran-
cesa. Pertencentes às segunda e terceira gerações, são
cada vez mais numerosos os portugueses-franceses ou
os portugueses-europeus – artistas de teatro, músicos,
jornalistas, realizadores, homens de televisão – que se
incorporam, por assim dizer fisicamente, ao novo gené-
rico da França. Reside possivelmente aí a verdadeira reci-
procidade, um diálogo vivido de dentro. Mais amada do
que a presença das nossas «stars» – artistas como Maria
de Medeiros, Maria João Pires, Pomar, Emanuel Nunes,
Manoel de Oliveira, Ana Salazar, Fiadeiro, Saramago ou
Vergílio Ferreira – que, com tanto sucesso, representam
Portugal na França ou na Europa – são os novos euro-
peus-portugueses, ou seja, o novo Portugal europeu,
que estão mudando a velha relação entre a cultura por-
tuguesa e a cultura francesa. Mas não nos enganemos.
Nós ainda nos encontramos somente no alvor de uma
reciprocidade digna deste nome, aquela que ultrapassa,
do interior, duas culturas de pesos tão diferentes, gerindo
cada uma, à sua maneira, a sua herança de universalida-
de ainda prisioneira de antigos fardos, ancorada e ultra-
passada, simultaneamente, pelo movimento mais pro-
fundo que Edgar Morin evoca como cultura planetária.
Na história deste processo de consciencialização plane-
tária, Portugal e a França representaram, separadamen-
te e em conjunto, um papel de relevo. Não há razão para
pensar que na nova reciprocidade universal, suportada
ou assumida, a cultura de Camões e a de Montaigne não
continuem a permuta das suas riquezas, dos seus encan-
tos e até das suas omissões. Nós estamos atentos para os
evocar e, se possível, para os reparar.

Vence e Paris, em maio de 1992


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NAVEGADORES POR RUAS ESTRANGEIRAS1

Ninguém estranhará que uma terra de fronteira – um


cais como um outro se lembre de consagrar à indizível vi-
vência em terra alheia, esta antologia de acasos, ligados
entre si pelo fio ténue e fundo das diversas maneiras de
perder pátria, e de inventar, através do que em nós é so-
frido, e às vezes até desejado como exílio, larga ou breve
ausência ou definitivo adeus ao que se deixou e nunca nos
deixa. Nem tudo neste rosário de vivências como “outros”,
só por não estarmos em casa, releva da já muitas vezes
glosada, aventura emigrante. Antes se poderia falar de
uma espécie de memorial de um nomadismo mais arcai-
co tornado quase destino, se não vocação, num povo que
ao largo dos séculos derivou ao longo de mares e conti-
nentes, por vontade própria, sem nunca encontrar, fora
dele, um outro rosto diferente do que levou. Também se
podia falar – e com impropriedade se fala – de Diáspora,
dispersão dolorosa através do mundo, nunca aceite, se al-
guém, tragédia da História ou tirania monstruosa, nos ti-
vessem imposto um destino errante e de errância.
Tudo foi sempre, relativamente suave, no que às ve-
zes somos tentados a mitificar como Diáspora. Já o escre-
vi: nenhum Tito nos expulsou do templo Portugal ou das
pátrias escritas em português. Saímos à busca do mun-
do, para demandar eldorados imaginários, ou apenas “re-
cursos de vida” como diziam, com toda a inocência, os

1 Eduardo Lourenço – Identidades fugidias (2001), Guarda: Centro de Estudos Ibéricos / Câmara
Municipal da Guarda. ISBN 972-95140-8-9
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nossos bandeirantes no Brasil do século xviii. Com não
menos inocência, sob o tom épico, lá se diz, nos Lusíadas,
que “não são para mandados” os portugueses. Assim se
confessa que “somos para mandar” e, sob este lema ou
nesta convicção, fomos ao encontro dos outros, em úl-
tima análise “para mandar” mesmo quando, no melhor
dos casos, isso queria dizer sobretudo não ser mandados.
Este fio, vermelho ou negro, como se preferir, entretece
aquela trama épica que nós confundimos com a nossa
própria História enquanto descobridora, colonizadora e
depois, mais tranquilamente colonial.
A vivência de nós como “outros”, aquela a que a mo-
derna emigração deu origem, embora entrelaçada com
a antiga, é de uma outra configuração. Tudo se passa
como se fossemos não uma, mas duas Histórias. E, na
verdade, o somos. A maioria das páginas desta antologia,
que pela qualidade e diversidade surpreenderão os leito-
res, só tem que ver com a segunda História, a nossa, se
não como “mandados”, já não como “mandantes”. Mas
as duas Histórias interferem. A nossa maneira de ter ain-
da pátria, depois de deixada e até de perdida, tem mui-
to a ver com aquilo que fomos quando tínhamos uma
pátria maior que a verdadeira, como um sol no meio do
mundo. Nem por outra razão, milhões dos nossos emi-
grantes, que pouco ou nunca o leram, se reúnem em “ar-
cas de Noé pátrias”, batizadas com o nome de Camões.
Aí preservamos, magicamente, a essência mesma de
tudo o que abandonámos ou perdemos. Por causa des-
ta nossa absurda e sublime hiperidentidade guardamos,
mesmo nos extremos de dúvida e desespero, “a lem-
brança de Sião e tudo quanto nela passámos” e, com ela,
o caminho de casa. É o que relembra, abrindo esta an-
tologia, Manuel Alegre. É também aquilo que das mais
imprevistas maneiras, mesmo quem tem menos razão
– ou nenhuma – de se sentir tão camoniano como nós
(ou talvez mais, em outro registo) nos é lembrado, como
se fosse de todo novo, nestas plurais vivências de não
estar em “nossa casa”, que podem ir desde a nostalgia
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sorridente de Germano de Almeida, à evocação perplexa
de Mia Couto ou ao testemunho dilacerado e dilacerante
em Paulouro das Neves.
Não se nasce português impunemente. Mas só
os que deixaram alguma vez de reconhecer nos olhos
alheios aquela espécie de “identidade divina”, que só
pelo simples facto de serem portugueses imaginavam
sua, conhecem o preço dessa predestinação. Viver com
tanta paixão o elo que os liga à pátria – ou melhor, à ter-
ra, no sentido mais arcaico do termo – do que os portu-
gueses, é difícil porque essa paixão é o nome mesmo
da sua identidade. Não serão os únicos. Mas para eles
– desde aqueles que vivem essa identidade em termos
viscerais até aos que podem distanciar-se dela pensan-
do-a, – a súbita ofuscação desse laço é uma experiência
de morte. A nossa vivência identitária é pouco media-
da pelas mil e uma figuras, comportamentos sociais e
culturais que lhe dão uma consistência e uma estrutura
mais coerente e, em última análise, mais resistente do
que a visceral ou emocional.
Ninguém emigra para ir ao encontro do outro, quer
dizer, de alguém ao fim e ao cabo semelhante a nós.
O “encontro do outro” é antes de mais o desencontro
connosco. E para o saber não é preciso sair, em sentido
próprio, da nossa pátria. Basta sair do que chamamos
a nossa casa. Sartre em Les Mots, Pessoa na sua poesia,
descrevem bem essa queda, essa perdição do paraíso
que os outros, o mundo como mundo “dos outros” signi-
fica. Por instinto, os nossos emigrantes saíram em grupo.
Diferiam quanto podiam o encontro com “o outro”, aque-
le que não vos compreende, nem sabe o vosso nome.
É aí que a verdadeira diáspora começa. Perdemos o
nome. Por isso mesmo, o nome pátrio adquire então uma
magia, um fulgor que o aconchego doméstico nem de
longe deixava prever. O exílio, a emigração, a expatriação,
a vida entre “gente remota” é quase, desde o início, já um
regresso. Mas antes de tudo, embora às avessas, a revela-
ção da nossa identidade. Em casa não precisávamos dela.
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Tínhamos a coletiva para nos identificar. Apenas passa-
mos a fronteira da língua, dos gestos, dos costumes, co-
meça a nossa desidentificação.
Mia Couto intitulou a sua lúcida e dolorosa reflexão
sobre o “ser africano” ou o “ser branco” – sob o fundo
de serenidade – de “identidades fugidias”. Todas o são.
E até precárias. Mas não é assim que elas se vivem. Uma
identidade é um mito ou não é nada. Enquanto realidade
histórica ou empírica, um nada a desfaz. Também é isso
– ou pode ser ou acaba por ser – uma autêntica emigra-
ção. Sem querer, o tempo corrói aquilo que supúnhamos
que era em nós como a natureza mesma. Tudo se altera
ou até se perde. A começar pela língua, coração único de
todo o sentimento ou realidade identitária. Mas se a me-
mória do que se foi – o mito – permanece, ou não está de
todo morta, sempre o milagre de algum regresso a casa é
possível. Como um milagre, não como um prémio.
Há nesta antologia textos que são, pleonasticamen-
te, isso mesmo, de antologia. Alguns são de obras já pu-
blicadas como os dos poetas Manuel Alegre, Eugénio de
Andrade, Fernando Echevarría. Outros, páginas de ro-
mances como a realista e pungente evocação do nosso
Toronto emigrante por João de Melo ou a fantástica evo-
cação do trotamundos mágico de O Vale da Paixão de
Lídia Jorge. Nenhum texto é indiferente nesta calorosa
coletânea, em torno do que, por definição, é tão indiscu-
tível, esta descida ao poço sem fundo da nossa vida que
de si mesma se sabe ausente e repartida, mesmo se essa
vivência pode ser evocada com absoluta (quase ...) ausên-
cia de «pathos» em apenas duas páginas por Fernando
Venâncio. Ou com um «pathos» dominado e como-
vente em João Aguiar, versão contemporânea daque-
le singular destino da Maria do Frei Luis de Sousa, que
morria de pura tristeza. Morrer por já não ter pátria que
mais morte de puro triste, como dizia um poeta do nos-
so Cancioneiro, que aquela que ele evoca em Agostinho
do Rosário? Como pano de fundo, o pequeno texto de
Américo Rodrigues inscreve estas ausências, no silêncio
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muito seu do grito. Esta coletânea será para muitos lei-
tores uma ocasião de descobrir sob feição novas autores
que, por distantes da pátria, apesar de conhecidos, não
gozam ainda daquela reputação que visivelmente mere-
cem. E por acaso de distraída atenção ou incúria, aqui se
notará a ausência de «virtuosos» de exílios ou diásporas,
douradas ou não, como Hélder Macedo, Eugénio Lisboa,
Onésimo de Almeida ou Luís Sousa Rebelo, ou por de-
ver de ofício, de gente como Marcelo Mathias, Paulo
Castilho ou José Augusto Seabra. E porque não o autor
de “Natureza Morta”, José Augusto França? As belas pá-
ginas em que Amadeu Lopes Sabino evoca o seu antigo
destino clandestino tocam de maneira original a vivência
de si como estrangeiro, amarga como muitas, mas como
poucas, libertadora. A aventura de quem sai de casa e
encontra o mundo de onde melhor verá a casa.
Nem tudo é tragédia ou drama na nossa navegação
de acaso ou escolha forçada em ruas estrangeiras. São
muitas as «canções do destino» errante. Nenhuma mais
surpreendente que a evocada no texto com esse título
por Katherine Vaz. Ela mesma não partiu de nenhum
cais como aquele de onde partiu o navegador português
de ruas alheias. Americana de ascendência açoriana
acordou, por assim dizer no alto mar, lá fora, mas cerca
dos seus, espécie de ilha coletiva que nunca a deixaria
sentir-se estrangeira. Quem é estrangeiro na América?
O leitor descobrirá nas suas páginas, não apenas uma au-
tora de uma originalidade indiscutível, como um outro
olhar sobre «o estrangeiro» em nós. Na Califórnia, entre
os outros como em casa, uma tardia história de amor ilu-
mina retrospetivamente um passado de ausência com
fundo de tristeza. Para viver uma história como esta vale
a pena sair de todas as casas. Mesmo daquela que por
excelência, chamamos a nossa casa. Há «gente feliz com
lágrimas». E mais feliz ainda sem elas. Lá fora, entre os
outros, a maravilhosa avó da narradora, não precisa de
voltar a casa como todos nós, banais ou sublimes Ulisses.
Está no centro de todas as casas, no espaço sem fronteira
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do amor. Não será fácil para os leitores desta antologia da
errância esquecer a não errância daquela açoriana dota-
da para a felicidade. Nem o encanto com que nos é con-
tada. Que mais não houvesse – e muito há – essas pági-
nas onde descobri um autor valem a singular navegação,
onde estrangeiros nos sentiremos acompanhados.

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(RE)ENCONTRO EM TEMPO DE (DES)ENCONTROS

Intervenção proferida no Seminário “(Re)Encontros em tempo de (Des)


Encontros. Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias”,
Coimbra, no dia 23 de abril de 20151

O tema deste Seminário: “(Re)Encontros em tempo


de (Des)Encontros – Os Países de Língua Portuguesa e
suas Novas Geografias” deixa-me de alguma forma em-
baraçado por não saber o que possa dizer de interessante
a este respeito.
É verdade que escrevi, há muito tempo e alguém
publicou por mim, um certo número de reflexões acerca
do que foi a nossa atitude de portugueses, durante
séculos, a partir do momento em que saímos do território
europeu para outros territórios, uns descobertos e onde
não havia ninguém a quem colonizar, outros com quem
travamos relações coloniais ou colonialistas. Essa reflexão
é uma reflexão sobre aquilo que durante quinhentos anos
foi uma tal evidência para nós de que tínhamos direito a
ser, porque tínhamos descoberto terras desconhecidas,
mares desconhecidos… em que o nosso destino, escrito
nos astros, era que fossemos aqueles que nos sentíamos
em casa, embora estando na casa dos outros sem
autorização deles.
Embora tenha feito esse género de meditações,
um pouco masoquistas, que assumo, elas são sobretu-
do tentativas de pensar a nova situação. Uma vez que
esse nosso famoso império, que existiu não apenas em
termos oníricos e em função dos sonhos compensató-
rios do pequeno país que foi responsável por territórios

1 Revista Iberografias nº 11 (2015) – pág. 175 a 178. ISSN: 1646-2858.


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muito longe dos europeus de onde partiu e que, uma vez
terminado, se podia pensar esse contencioso doloroso de
um passado recente. Tudo isso tinha relegado essa nos-
sa vivência de antigos colonizadores, bem ou mal-aceites
para a História. Penso que a nossa situação atual de um
pequeno país que, durante quinhentos anos, se pensou
grande sobretudo em termos de ordem europeia, ele
que é um país tão pequeno, com tão pouca influência
na Europa, se pensou grande porque tinha essas famo-
sas terras longínquas, onde assentou sem autorização
dos outros. A começar por Cabo Verde, pela Guiné e mais
tarde pelo Brasil…, mas Portugal é um dos países a quem
podia acontecer, na lógica da civilização planetária ou
semi planetária, que era, até então, a do mundo, de lhe
acontecer a mesma coisa. Sempre pensei que, uma vez
findo o capítulo império imperial, real ou onírico, que
não tínhamos terminado com o problema que nos pôs
quer no passado, quer no presente, e sobretudo no fu-
turo, com esse mundo, que nós pensávamos nosso, que
foi nosso subjetivamente, oniricamente, para nos com-
pensar do que eramos de pouco. Mas que devia ser um
tema em que, nós querendo ou não, nos iria fixar numa
atenção nostálgica interminável. Nos mitos gregos, há
um que é mito de Deucalião semelhante ao mito do dilú-
vio e, quando o dilúvio acontece, os deuses recomendam
a Deucalião que, para povoar a terra tinham que esco-
lher as pedras e deitar para as costas as suas pedras e
que novos filhos nasceriam desse gesto recriador de al-
guma coisa que tinha sido destruída, morta ou perdida.
Pensava que eramos como Deucalião. Vamos passar o
resto da nossa vida, que é longa, quase infinita, com o
império que pensávamos que tínhamos ou que tivemos,
em certos momentos mais do que noutros, que pensá-
vamos que esse sonho tinha terminado e acabou, não
vamos ocupar-nos desse império perdido, mais do que
nos ocupamos do que quando o tínhamos, porque penso
que esse relacionamento faz parte da nossa história hu-
mana com outros povos, com outras culturas, com outras
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línguas. É qualquer coisa que é inerente ao estatuto da
Humanidade enquanto tal.
O caso de Portugal não é único, mas um entre outros
que em termos análogos se chama colonização. Fazem
parte da História Universal e que, por mais discutidos que
devam ser os termos em que essas colonizações tiveram
lugar – e são diferentes de uns territórios para outros, de
uns tempos para outros – se criam através de um laço
que é muito mais profundo e mais duradouro nas suas
consequências, nos seus efeitos do que podemos imagi-
nar. Mesmo se são processos de dominação de um povo
num certo momento sobre o outro ou de representantes
desse povo sobre o outro, os laços reais que se criam, a
não ser que sejam dominações absolutamente bárbaras,
destruidoras ou absolutas: são laços estranhos, mas que
continuam a fazer parte não só do nosso presente, mas
a condicionar o nosso futuro. Penso que temos sorte! É
uma coisa estranha, talvez não se apercebam… quando
veio o 25 de abril e que, em poucos dias, poucos meses, os
portugueses tiveram de abdicar não espontaneamente
(naturalmente ninguém abdica espontaneamente), mas
foram forçados do exterior a dar-se conta que o tempo
do domínio estava terminado, não podia ser recuperado.
Tinham de fazer uma leitura daquilo que foi o seu pas-
sado enquanto colonizadores e, na medida do possível,
compreender agora melhor aquilo que eram os coloniza-
dos, quando eles não foram capazes de os compreender
como eles pediam para ser compreendidos ou deviam ser
compreendidos. Só me interessei por esta questão por-
que estava na França quando começou a descolonização
universal primeiro, e depois a descolonização particular
relativa à França e, particularmente, aquele momento
que é conhecido como a Guerra da Argélia. Portanto, vivi
a Guerra da Argélia como se fosse qualquer coisa que dis-
sesse respeito a Portugal, mas sobretudo com a convicção
de que aquilo com que a França estava confrontada, que
não era uma coisa à parte, que era um movimento uni-
versal a que ninguém escaparia, e mais não lhe escaparia
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um pequeno país como o nosso. Tratou-se de uma co-
lonização assumida como tal, com vantagens em todas
as ordens de uma das nações tida pelos outros como
exemplar em várias áreas não só de riqueza, sabedoria,
técnicas, etc. Ora nós, sendo uma nação sem essas capa-
cidades comparáveis às de França, íamos ter de abdicar
desses domínios vários que tínhamos através da terra. O
que acontece é que os portugueses inventaram, para seu
próprio consolo, que o seu colonialismo não era igual aos
outros. O problema é que todos os colonizadores pensam
a mesma coisa. O seu colonialismo é que é bom, o dos
outros não é tão bom como isso e o nosso era o melhor
de todos. Não seria o melhor de todos, mas também não
foi o pior. Vejam que não passaram quarenta anos sobre
o 25 de abril e as consequências nessa ordem foram a
abdicação assumida de um império de quinhentos anos,
que podia ser para um país, tão pequeno como Portugal,
a perda do sopro do sentido que tinha sido a sua história
durante séculos e que nos íamos afundar numa espécie
de tristeza de lágrimas sem fim pelo império perdido, por
essa gente que nos amava tanto e que, afinal de contas,
tinha acordado e não queria mais que nós fossemos os
dominadores e eles os dominados.
Só agora, ao fim de quarenta anos, estamos a per-
ceber o que se passou na Guiné, em Moçambique, em
Angola…para não falar do outro nosso ex-império. O que
se passou com outras nações colonizadoras da Europa,
que também tiveram de abdicar, forçados pelos domi-
nados do seu antigo império ou da pretensão de manter
esse império para sempre. Engraçado agora é que esta-
mos a perceber o que era esse império verdadeiramente,
porque o império – direi para empregar uma fórmula que
eu tenho a tendência, um pouco narcísica, de repetir “que
o império não existiu” – existiu para quem lá estava mais
do que para o continente. Foram, portanto, eles que nos
obrigaram a dizer “não isto não é assim, não queremos,
acabou” e separaram-se. É de facto extraordinário! Não
sei se algum dos países que colonizaram os outros países
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teriam ao fim de tão poucos anos um espetáculo como
este que nos é fornecido agora a nós ex-colonizadores,
ex-imperialistas, ex-império factício ou fictício, que vem
para a televisão contar como se fosse uma história de fa-
mília aquilo que foi dramático durante os treze anos que
durou o confronto entre nós e as antigas colónias portu-
guesas batizadas de províncias. Então, vê-se que alguma
coisa houve nessa nossa presença entre outras, culturas,
outros futuros, nações e que o diálogo continuou, por-
que se criaram laços ao longo dos quinhentos anos, mas
provavelmente até os maiores laços se criaram durante a
própria luta em que os antigos colonizados lutavam para
reclamar o seu direito a serem eles próprios a regerem o
seu próprio destino. Vejo dificilmente que em França fos-
se possível, hoje, ver na televisão aquilo que nós vemos:
os franceses e os argelinos estarem num debate quase
fraterno como se já se conhecessem desde o pai Adão a
discutir e não se tivesse passado nada. Não acredito!
Penso que os laços que se criaram com África e
em geral por todos os outros países, já não falamos do
Brasil, que é um caso que foi resolvido há mais de duzen-
tos anos e que era um caso pouco diferente do caso de
África. No caso do Brasil, não sei o que é que se lhe pode
aplicar, é muito difícil imaginar o que foi a nossa relação
com o Brasil, porque não foi uma relação de conquista
propriamente. O Brasil não era conquistável; era um ter-
ritório em que os seus autóctones, os índios brasileiros,
não tinham capacidade de se defender de um ataque
guerreiro. Era como se tivessem chegado àquelas mar-
gens e se tivessem instalado. Os índios não podiam im-
pedir totalmente que as pessoas se instalassem ali e isso
prolongou-se durante séculos. Com as nações africanas
não foi isso que aconteceu. Foram primeiro relações de
comércio, depois as relações de comércio de uma certa
gratuidade, passaram a ser relações de instalação for-
çada nesses territórios de obrigar os outros a trabalhar
em função do colonizador futuro, portanto temos um
paradigma completamente diferente do que foi o nosso
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relacionamento com o Brasil. Apesar de tudo, engloba-
mos todos os países que falam ou que admitiram que a
sua própria língua, o português como língua oficial. Vejo
agora que essa famosa designação, os famosos PALOP já
não são PALOP são CPLP, gosto mais! O PALOP parece
um monstro um pouco difícil até de ler. O PLP é melhor,
mais racional, mais claro, penso que o nosso relaciona-
mento a vários níveis com os ex – PALOP e os PLP vai ser
mais natural.
Penso que vamos viver, no futuro, com mais naturali-
dade, com uma familiaridade maior, relações com as an-
tigas colónias do que vivemos, não só com os outros que
não falam a nossa língua, mas também com os outros,
com o próprio Brasil que foi a coroa da glória da nossa
presença no mundo, enquanto descobridores, para não
dizer colonizadores. A palavra custa muito a empregar
em relação ao Brasil, gosto mesmo que os brasileiros me
expliquem que espécie de colonização foi a nossa, para
me dizerem quem são e quem é que nós somos. Isto são
reflexões de alguém que não tem nenhuma qualidade
historiográfica para se pronunciar. É um desejo, é um
puro desejo de imaginar que estes quinhentos anos, não
foram os quinhentos anos no sentido próprio, mas so-
bretudo nos últimos cem anos, depois que a vontade de
dominação em termos modernos são aqueles que justi-
ficam não o último e em definitivo confronto entre colo-
nizados e colonizadores que durou nos anos sessenta e
anteriormente nos finais do século xix, quando a Europa
inteira se sentia como centro da colonização do resto
do mundo. Nós somos um caso particular e mais anti-
go, apenas. A Europa inteira projetou-se sobre o mundo
que havia e continua. Já não continua menos, que já não
podemos como dizem na minha terra “com uma gata
pelo rabo”, mas se não somos europeus são outros que
se encarregam daquilo que é o reflexo da humanidade
inteira aqueles que são mais poderosos, que dominam
os outros. Vai haver um espaço onde a antiga língua por-
tuguesa foi admitida como língua oficial que vai ser um
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passo de encontro verdadeiro. Agora que já não há aque-
les obstáculos que durante séculos havia entre nós. É
pelo menos o que desejo, que este encontro seja apenas
um reencontro que estava latente e que agora pode ser
explicitado e vivido de uma maneira mais pacífica, mais
aberta mais clara e sem todas estas justificações, que
não eram justas para manter um domínio sobre alguém
que não quer o nosso domínio e não nasceu para ser do-
minado pelos outros.
Uma última nota sobre os dois países da Ibéria:
Portugal e Espanha pertenceram à primeira fase da
colonização dos colonizadores europeus, foram os dois
primeiros. Primeiro porque Espanha aparece no proces-
so de colonização cem anos depois de Portugal, como
efeito de todas as Descobertas dos portugueses, ou en-
contros com outros países ao longo do Atlântico e de-
pois no Pacífico, que os portugueses realizam e depois
há o golpe de Colombo. Um golpe mais extraordinário.
De repente, o sentido da busca que era o oriente mu-
da-se no sentido do ocidente e descobre-se uma nova
terra incógnita e um novo mundo. Esse novo mundo vai
ser da parte da Espanha, que é uma grande potência
da Europa na época. Maior potência que a França, esse
novo mundo vai ser conquistado, no sentido forte do
termo, porque os espanhóis vão encontrar diante deles
nações tão insuspeitadas, tão cultas ou tão cultivadas
como as que conhecíamos da Antiguidade no Egipto,
na China, mas sobretudo no Egipto, que foi o primeiro
paradigma. O México vai ser conquistado a ferro e fogo
como o Perú. Nada disso podia acontecer com um país
tão pequenino como Portugal, que tinha apenas um
milhão e meio de habitantes quando se lançou nessas
aventuras e os países com que se encontrou a Índia era
uma tal imensidade que podíamos estar só pela von-
tade dos outros na beirinha, só por razões de comércio
e não pela vontade de conquistar. Todavia, houve um
movimento conquistador português absoluto, que é o
momento do Albuquerque. É uma coisa que ainda hoje
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me espanta, quando se passa diante do monumento
dos Jerónimos. Um pequeno povo tem esse atrevimen-
to de desafiar, lá longe, de resto um inimigo tradicional
e com que estávamos confrontados no velho mundo,
quero dizer, não menos os indianos que propriamente
outros adversários, mas isso é história para poema épi-
co, que já foi escrito, não podemos escrever outro, mes-
mo que pudéssemos não eramos capazes. Agora temos
de nos confrontar como os bons da fita. Depois de ter-
mos sido os maus da fita, sem termos o poder para o ser.
Felizmente, penso que toda esta história vai ser outra
vez revisitada, reescrita por nós em primeiro lugar, mas
penso igualmente no outro lado, porque nós não temos
ainda um discurso, pelo menos eu não tenho, também
não sou historiador… Agora queremos ter a plena pa-
lavra do outro. Não a confiscámos, talvez por ignorân-
cia, mais do que por outra coisa, mas precisamos sa-
ber o que foi para nós esse império pela boca daqueles
que eram objeto dessa dominação ou desse domínio.
Portanto, interessa-nos tudo quanto vem das novas cul-
turas para que possamos perceber o que fomos, não na
nossa própria imagem narcísica, mas no que fomos aos
olhos dos outros com quem estávamos confrontados:
alguns na convicção do sentido da história, como se dirá
mais tarde, e outro estudo simplesmente porque assim
é o movimento da humanidade. Estamos muito atentos
a tudo quanto as novas gerações de africanos escrevem,
dizem, pensam e, para isso, é que são necessários semi-
nários como este.

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TEMPOS DE COIMBRA

Intervenção no Colóquio “Eduardo Lourenço: as paisagens matriciais e


os tempos de Coimbra”, Coimbra, dia 26 de abril de 20121

Por ordem deste curioso colóquio centrado não sei


porquê na minha pessoa, tenho que cumprir este exer-
cício narcísico de estar aqui, direta ou indiretamente, a
referir-me a parte do meu percurso de vida.
Quero, antes de mais agradecer a todos os que tive-
ram a gentileza de vir até aqui nesta manhã um pouco
sombria, em particular à grande Helenista, Doutora Maria
Helena da Rocha Pereira, de que tive a sorte de ser o pri-
meiro condiscípulo na Universidade que nós frequentá-
mos já há longo tempo, e que tem sempre a gentileza de
ter acompanhado de uma maneira ou de outra o percur-
so deste amigo voador, difícil de localizar e mesmo de
algum modo inlocalizável.
Também queria agradecer ao Senhor Prof. Fernando
Rodríguez de la Flor, grande professor universitário de
Salamanca, especialista do Barroco e que tem tido a gen-
tileza de participar nos trabalhos do Centro de Estudos
Ibéricos e dar, com outros, a presença concreta a esta
ideia que esteve na génese do Centro, uma espécie de
três polos sobre os quais nos se inscreve o conceito do
CEI. Três polos não será uma figura geométrica muito
correta, mas é a realidade, e desses polos, dois são as duas
universidades mais importantes da península, podendo
mesmo dar uma ordem de prioridade, e sobretudo, de
eficácia no tempo, à Universidade de Salamanca, que
foi um dos grandes centros universitários, não apenas

1 Revista Iberografias, nº 8 (2012). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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ibéricos mas europeus, que uma parte dos nossos estu-
dantes frequentou, da Idade Média até ao Renascimento.
A Universidade de Salamanca pertence ao espaço cultural
matricial universitário ibérico e mesmo europeu, portan-
to é uma grande honra que a Universidade de Salamanca
se tenha querido associar à velha Universidade de
Coimbra, que foi, durante tantos séculos “a Universidade”
(não havia outra em Portugal e nos espaços de presença
portuguesa até à independência do Brasil). Congratulo-
me que esta pequena utopia de uma atenção particular
para com a civilização ibérica no seu conjunto tenha um
começo de realização e de ati vidades como tem feito até
hoje, embora a mim se deva apenas o facto de ter lan-
çado essa ideia. Quero agradecer ao Dr. Virgílio Bento e
à Dr.ª Alexandra Isidro o interesse e o cuidado com que
têm acarinhado e dado forma concreta a este pequeno
sonho de um Centro preocupado com o pensamento
ibérico e a cultura ibérica em geral.
E também quero lembrar que está nesta mesa um
jovem professor de filosofia, o Dr. João Tiago, que só por
tempos da minha própria exegese, se assim se pode di-
zer, tem acompanhado o meu percurso e ultimamente
é ele o responsável pela publicação do primeiro volume
das chamadas “Obras completas”. Estou-lhe muito grato
pela generosidade de se ter encarregado desse género
de funções.
O assunto deste colóquio deixa-me perplexo
“Colóquio Eduardo Lourenço, as paisagens matriciais
e os tempos de Coimbra” … A mim o que me apetecia
era falar de uma coisa de que é raro falar, sobretudo aqui
na presença tão amiga e simpática de jovens colegas e
grandes universitários, que seria a “mitologia coimbrã”.
A mitologia coimbrã existe e eu naturalmente igno-
rava, quando cheguei aqui, em 1940, que ia entrar num
mundo com outras regras e outros ritos, sobretudo na-
quela época em que Coimbra ainda tinha essa espécie de
monopólio muito simbólico, porque, na verdade, naque-
la altura só havia mais duas ou três universidades e todas
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elas muito mais recentes do que a famosa Universidade de
Coimbra. Esta Universidade que eu já conhecia antes de
conhecer, porque, como dizia Platão, é sempre assim que
as coisas começam. Na minha aldeia havia três estudantes
que eram estudantes de Coimbra e que eram uma espé-
cie de aparições quando vinham de férias e nos traziam
notícias do que nós não sabíamos e contavam grandes
aventuras, sobretudo aventuras de adolescência ou de co-
meço de idade adulta que nos deslumbravam; além disso
eram uns grandes campeões de futebol e jogavam com
uma bola verdadeira – a primeira bola de futebol que eu vi
no mundo – e não uma daquelas bolas de trapos com que
a gente se entretinha na aldeia. Portanto, falavam desta
Coimbra e o que é curioso é que referiam alguns nomes
de professores famosos, sem eu nunca imaginar que, um
dia, iria ser não só aluno da Universidade mas assistente
na Faculdade de Letras de um desses famosos professo-
res, cujo nome tinha chegado à minha aldeia e que tinha
uma reputação de ordem cultural e também um pouco
ideológica, alguém que, estamos nós no início do Estado
Novo, passava como um liberal, e que mantém ainda
grande tradição portuguesa, o Prof. Joaquim de Carvalho.
Eu nunca imaginei que um dia viesse a ser assisten-
te dele, tanto mais que ele nunca me tratou como outra
coisa que “menino”. A Universidade de Coimbra era uma
universidade ainda muito familiar, e daí cheia de ritos, de
gente que tinha tradições académicas que passavam de
pais para filhos. Coimbra era realmente um núcleo um
pouco à parte, mas quando me refiro à mitologia coimbrã
penso fundamentalmente que esta cidade, além de ser
o Studium Universalis foi também a cidade da juventude
portuguesa que aqui estudava e onde há uma espécie de
continuidade não de tipo ficcional, mas de tipo poético.
A poesia em Portugal fazia-se na Universitária. Toda a
gente andou em Coimbra até finais do século xix e, por-
tanto, esta era a cidade dessa ordem poética.
Eu nunca fui muito folclorizante e na minha geração
éramos muito reticentes em relação ao culto da tradição
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e das praxes. O grupinho em que eu me vim depois a re-
conhecer era muito anti praxista, que naquela altura não
significava apenas uma coisa de ordem de ritos académi-
cos com uma certa tradição, era também uma maneira de
não querer comungar da atmosfera “luso oficial” do país;
ser anti praxista era um sentimento de oposição de algum
modo latente mas eu não comunguei de uma coisa nem
de outra. Eu vinha de Lisboa, de um colégio militar, uma
coisa fechada, e Coimbra foi para mim a descoberta de
um outro mundo, um mundo novo de novas amizades e
sobretudo de entrar num percurso estranho, primeiro nas
ciências, depois nas letras, e ficar para sempre no círculo
encantado desta cidade universitária, na altura única.
É claro que a gente sabe que a mitologia coimbrã
tem o seu ponto mais alto, sobretudo pelo estatuto lite-
rário, no famoso texto de Eça de Queirós dedicado a me-
mória de Antero de Quental, onde toda a mitologia mo-
derna do lugar cultural e também de vocação ideológica
da academia de Coimbra é invocada como qualquer coi-
sa de representativa de uma nova leitura do passado cul-
tural deste país. As conferências tiveram lugar em Lisboa,
mas foram realizadas por antigos estudantes, quase to-
dos estudantes de Coimbra, entre os quais Antero e Eça
de Queirós. E Eça, nostalgicamente, escreve esse famoso
texto em que se identifica com Antero e instala na nossa
mitologia moderna um discurso sobre Coimbra.
Curiosamente, quando cheguei a Coimbra ainda es-
sas imagens, esse mito coimbrão centrado na Geração
de Setenta, estava muito vivo. Lembra-me muito bem
que na nossa Queima das Fitas, um bocadinho tocados,
íamos no desfile pela Sá da Bandeira abaixo a dizer “nós
somos a nova geração de setenta”. Felizmente não fi-
cou registo daquelas loucuras que, naquela altura, eram
compreensíveis. Mas esta assemelhação era muito inte-
ressante porque era para nós estarmos a reivindicar, a
manifestar contra o que não se podia nomear, embora
a não nomeação fosse superior à nomeação, e até mais
interessante do ponto de vista de imaginação.
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Curiosamente quando eu cheguei inaugurava-se
outo tipo de mitologia coimbrã que foi muito eficaz e que
teve grande tradução na ordem da poesia e da ideologia,
uma geração que mais tarde recebera o nome de neor-
realista, que é relativamente tardia, e que era, pura e sim-
plesmente, toda uma geração cujas raízes se encontram
nos anos trinta. Penso que uma das coisas mais impor-
tantes para a minha geração, mesmo de adolescente, foi
o que se passou em Espanha, em trinta e seis. A juven-
tude portuguesa identificou-se com uma das partes em
luta e outra provavelmente com outra parte do país e do
mundo. E Coimbra era conhecida nessa época pelas lu-
tas que se faziam quando havia eleições; uma luta entre a
direita e a esquerda fundamentalmente, com forças mais
ou menos iguais. O que era novo naquela altura não era
o discurso oficial dominante, mas uma nova geração que
reclamava numa nova utopia na ordem ideológica, uma
utopia cheia de esperança em que a história e o futuro
se identificavam com as suas próprias ilusões políticas e
sociais e que deixou uma marca na cultura coimbrã que
ainda persiste até hoje. A famosa geração neorrealista foi
uma espécie de cultura dominante de Coimbra, com ma-
nifestações noutros pontos do país, traduzindo uma geo-
grafia cultural cujo enraizamento histórico ou cultural se
encontrava nesta Coimbra.
Coimbra ainda era uma espécie de ilha naquela épo-
ca. Curiosamente nós, e eu pelo menos, embora até co-
nhecesse pessoas que tinham estado ligadas a essa ge-
ração como o poeta Miguel Torga, famoso dissidente, já
não era uma coisa muito viva em Coimbra, nessa época.
Esta nova geração era uma geração que conhecia essa
presença e que estava em diálogo com ela mas também
com atitudes críticas em relação à atitude considerada
ainda muito subjetivista e romântica, uma vez que a ge-
ração de que eu estive próximo em certo momento esta-
va muito implicada numa luta já de um novo tipo, ideoló-
gico e político, que se reclamava das tradições europeias
e até universais. Desde a revolução de 1917 a Europa
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continuaria, durante mais de setenta anos, a ser confron-
tada com essa ideologia que pretendeu, pretende e con-
tinua a pretender ser uma ideologia de alcance universal.
Na minha geração muitos dos meus amigos conheciam
e eram influenciados pelas teorias Marxistas e o que ha-
via ali era a ideia de que o país onde a revolução se tinha
dado era um novo horizonte, não só ideológico, mas até
cultural, e que durante mais de cinquenta anos foi um
dos polos em torno dos quais girou toda a cultura não só
a europeia, como a universal.
Em Portugal estas coisas eram muito atenuadas
mas a verdade é que essa geração deixou marcas, bem
patentes no famoso texto do Antero em que se refere à
“primeira geração que teve consciência que saía dos car-
ris de tradição”, que, a par do texto de Eça, ficou como
uma das referências culturais para a minha geração.
Nos anos setenta quando se celebrou o centenário da
Geração de Setenta vim a Coimbra fazer uma conferên-
cia e sugeri que esta Coimbra devia ter uma lembrança
de Antero de Quental completa, viva, erigindo-lhe uma
estátua. Até hoje. Antero teve realmente que pagar aque-
le atrevimento, aquela audácia, aquele desafio a todo um
passado cultural, para além do desafio a si mesmo que
pagou como se sabe. Antero de Quental continua à es-
pera que seja um dia homenageado nesta terra como
merece. Para a minha geração ele pertence aquelas refe-
rências, aos ícones culturais e de memória, para além de
ser um grande poeta.
Ainda que promovamos a adolescência a primeira
juventude ao momento mítico do silêncio, a verdade é
que cada geração se reinventa e se remitifica, sobretu-
do numa cidade como esta, uma cidade com todo um
passado cultural extraordinário e ao mesmo tempo uma
cidade de onde partiam iniciativas e movimentos, quer
poéticos quer ideológicos, de grande importância.
Nos anos sessenta, quando o país é confrontado com
uma das maiores crises da sua história, quando o império
português é ameaçado pela onda da descolonização e se
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aproxima o seu crepúsculo, também há uma geração e
que deixou marcas na história por razões de ordem ide-
ológica e política. As universidades são sempre focos de
contestação potentes, mas eu já não vivi cá esse tipo de
mitologia, mas em França, no famoso maio de 68. Mas
aqui são razões nacionais, de uma juventude académica
que vai ser confrontada não só com o desafio genérico
em relação ao estatuto do país como país independente
e dos últimos países colonizadores.
Coimbra tem todo esse percurso e quando começam
a aparecer outras universidades pelo país, sobretudo de-
pois de Veiga Simão, o paradigma continua a ser, às vezes
caricaturalmente, o paradigma coimbrão – tudo quer ser
a sua Coimbra. O meu período coimbrão foi, do ponto de
vista cultural, decisivo e foi aqui nesta cidade que aprendi
alguma coisa. Eu era um aluno relativamente aplicado,
creio eu, – aplicado aquilo que me interessava e pouco
aplicado aquilo que não me interessava – mas não só co-
nheci aqui pessoas que tiveram no meu percurso uma
influência capital, entre as quais o meu amigo Carlos de
Oliveira, um dos grandes poetas que ainda hoje tem um
estatuto de memória muito vivo, como outros camaradas
daquela época que partilhavam um certo ponto de vis-
ta ideológico, bem como de outros que representavam
uma outra tradição nossa.
Uma das essências da mitologia da ordem ideológi-
ca, aqui por influência da França, é a de que a esquerda
tem uma espécie de monopólio ideológico daquilo que é
socialmente mais critico ou mais revolucionário, deixan-
do à direita o papel de “mau da fita”. Naquela altura dava-
-me muito bem com muita gente que não partilhava as
minhas ideias porque uma coletividade, e sobretudo
uma coletividade académica, é também uma espécie de
todo, um parlamentarismo. Havia apostas diferentes de
ordem ideológica e cultural, mas a verdade é que naque-
la altura em Coimbra toda a gente se conhecia e a cidade
ainda tinha essa característica de ser fundamentalmente
“a universidade”.
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Coimbra é não só a cidade da primeira geração ro-
mântica, a Geração de Setenta, – uma dimensão até en-
tão desconhecida na ordem do tempo – mas também a
Coimbra da República e a Coimbra do Estado Novo.
É necessário revisitar nostalgicamente a memória
para ser um pouco mais justo com os tempos que se
viveram e com as suas dissensões e rivalidades. Uma
época é sempre de ordem cultural, extremamente
complexa e dialética. A história de um povo e de uma
cultura é uma história dos seus tempos, tempos diver-
sos, em que os tempos não se seguem uns aos outros
como por continuidade, mas cada tempo recomeça a
totalidade do passado que está atrás dele e de outra
maneira. O inevitável Pessoa disse esta coisa maravi-
lhosa “cada época lega a outra aquilo que ela não foi”.
Portanto o tempo, esse tempo mítico de Coimbra em
que nós vivemos está encerrado numa espécie de cáp-
sula temporal em que as oposições e as contradições
faziam sistema.
O passado tem que se compreender em função de
uma coisa irrepetível e única que cada presente significa.
A ideia que nos vem do século xix, uma espécie de uma
linha que assegura a ideia de progresso – ideia mítica
excelente – é a ideia da humanidade que visa uma per-
feição da herança daquilo que se passou. Mas os des-
mentidos do século xx, e já agora do século xxi, são de
tal ordem que nós não podemos viver nessa ilusão que
foi uma ilusão das luzes no seu conjunto, mas sobretu-
do da época positivista. Estamos numa espécie de uma
encruzilhada estranha em que o mundo não tem aquela
certeza, aquelas evidências que, durante quase duzen-
tos anos, guiaram a marcha das sociedades ocidentais.
O que realmente aconteceu de extraordinário é que esse
monopólio mítico do ocidente em geral e da Europa em
particular já não é aquilo que era. Esses mundos até exis-
tiam antes do próprio ocidente, sete ou oito, fechados em
si mesmo como o Japão, mas não tinham outra visibilida-
de que não a leitura que o Ocidente lhe dava.
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Existe uma leitura plural do mundo em vivemos e,
portanto, os tempos de Coimbra estão no passado e são
o que são. Estão no passado porque é onde tudo está,
porque o presente é a única coisa em que nós estamos,
sendo o presente a negação desse passado. Hoje não
vivemos naquela convicção de que o mundo ocidental
e a Europa em particular são os atores da história por
excelência e que os outros são subalternos. Ou todos
fomos atores da história ou todos somos subalternos,
pouco importa. Daí esta ideia de que o sentimento que
temos neste momento é de que entrámos num mundo
muito diferente daquele que existia, pelo menos até a
queda do muro de Berlim, o que nos deixa perplexos e
provavelmente inquietos, mas que tem uma necessida-
de tão forte de se impor à nossa atenção como todos os
outros passados.
A verdade é que não podemos viver senão com esta
ideia de que o tempo em que a gente vive era o tempo
– a famosa e misteriosa expressão do evangelho “naque-
le tempo”. Naquele tempo era o tempo da revelação e
cada época que vem é aquele tempo, que é o emblema
de um dos livros mais populares da mitologia coimbrã,
“In ilo tempore”. É o tempo de uma geração. O resto ou
é morto, ou puro sonho.

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DO HOMEM COMO LITERATURA

Intervenção proferida na sessão de entrega do Prémio Eduardo Lourenço


a Basilio Losada1

Quero agradecer à Guarda o convite que me fez para


estar aqui, por ocasião da homenagem que prestamos ao
Prof. Basilio Losada.
Para celebrar dignamente uma personalidade como
o Professor e Escritor Basilio Losada seria preciso uma en-
ciclopédia. Ele não é apenas um escritor, um poeta, um
filólogo, mas, verdadeiramente, uma enciclopédia de vida.
Só posso responder, de algum modo, tendo audácia de to-
car o tema de todos os temas de alguém que está há mui-
tos anos empenhado numa série de coisas que têm a ver
com a cultura propriamente dita. Seria ocasião de evocar
a temática “Do Homem como Literatura”:

Le seul moyen de supporter l’existence, c’est de s’étourdir dans la


littérature comme dans une orgie perpétuelle.
FLAUBERT

De certos sonhos, como o narrador da Recherche,


acordamos com a sensação de ressuscitar. Ou até de
nascer. Não como Colombo avistando terra desconheci-
da, mas a mais conhecida, a que chamamos vida, a nossa
vida, a realidade. A sonhos onde perdemos a identida-
de, por monstruosos, como um quadro de Bosch, ape-
lidamos de pesadelos. Têm a sua lógica, são mesmo os
morfemas da sintaxe oculta da vida, mas, como sonhos,

1 Revista de Estudos Ibéricos, nº 14, 2018: 169-174. ISSN: 1646-2858


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são para quem os vive a versão doméstica e íntima do
inferno. É por isso que quando dizemos “sonho” e “so-
nhos” pensamos antes naquela imersão num universo
sem peso, num voo com pássaro dentro, numa viagem
num mundo de que não desejaríamos acordar. Quando
saímos deles o regresso à realidade oscila entre a incre-
dulidade e a tristeza. Na sua luz é a vida que parece pura
deceção e irrealidade.
O Sigismundo de Calderón vive alternadamente
esta dupla face da vida como “sonho e anti sonho”, tudo
pertence à lógica da realidade. Aquela que psicólogos ou
analistas visitam ou revisitam para descobrir neles, ou sob
eles, o sujeito que nele se sonha, dessonha, ou é sonhado
como no célebre apólogo chinês da borboleta como so-
nho do homem, ou do homem como sonho de borbole-
ta. O Oriente começa sempre pelo fim, sabe, quando nós
ignoramos os termos da questão. É por isso que desde os
pré-socráticos, anacronizando um pouco, nós entrámos
no labirinto daquela insólita perplexidade que veio a auto
designar-se por “antropologia”, ciência ou melhor “logos”,
discurso acerca do Homem, como se o Homem fosse um
objeto e não seu sujeito. Quem é esse “ser que sonha”
sem se reconhecer no que sonha em sentido psicológico
e ontológico, ou é sonhado sem saber por quem e com
que fim?
Do Homem, e por consequência das múltiplas ima-
gens que condicionam as não menos múltiplas “antropo-
logias” ou a única Antropologia intrinsecamente aberta
sobre a questão que a legitima (qual é o ser do Homem?),
clássicas definições foram dadas. Que por definição,
acertando sempre, o não definem. No pressuposto ou na
evidência empírica do seu género entre os outros entes,
o Homem é “animal que ri”, à espera de Victor Hugo para
glosar a tragédia do seu riso sem fim, do “animal que
chora” para consolo de Heráclito, que dança para o olhar
de Nietzsche, que “pensa” para se compreender a si e ao
universo na luminosidade sem sombra da evidência do
que se pensa e sabe que se pensa. E, com mais modéstia,
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mas essa sem partilha, “o ser que fala” e falando a si se
nomeia passando pelo circuito da nomeação de todos os
outros seres e do universo.
Curiosamente, neste quadro um pouco borgiano
não figura, ou raramente, a ideia de confinar a «essência»
do Homem ao sonho, talvez porque seja tão óbvio que
os homens sonham e essa «propriedade» não tivesse, por
assim dizer, ressonâncias tão específicas, como as de ser
«falante» ou «ridente», ou «racional» e de tão palpáveis
efeitos como os de ser o «célebre animal político». Na
verdade, essa não-significância de «sonhar» como traço
de definição antropológica tem a sua razão de ser.
Todos os seres «sonham», asseverava o mágico Novalis,
remetendo assim o «sonho» para a Natureza ou a natureza
em nós. E quem não «sonha» nesse mero sentido natural,
confirmam doutamente sábios americanos a respeito dos
ratos, morre. Sem metáfora. Mas é de uma outra espécie
de sonho, um sonho que não vem da Natureza para nós,
um sonho que não somos nós fugindo à realidade, mas
investindo-a, revestindo-a com uma segunda vida, em
todos os sentidos sobrenatural, que em vez de apenas
sobreviver sem mudar de essência ontologicamente nos
transfiguramos. O lugar, ou antes, o ato dessa transfigu-
ração chama-se, para empregar uma expressão moder-
na de um ato intemporal, Literatura.
Numa fórmula de recorte elitista, Ortega Y Gasset
escreveu: “só há duas espécies de homens: os poetas e
os outros.” Não estou certo que os aqui denominados
“outros” não sejam também “poetas”, e os chamados
“poetas” outros, mas suponho que Ortega quis apenas
assinalar que a assunção plena do “humano”, ou mesmo
a essência da humanidade, era a sua poeticidade. Desde
que Heidegger glosou Hölderlin, não há consideração so-
bre o “literário” em geral que, em alemão, se separe do
poético, que não reitere essa intuição da essencialidade
poética do que chamamos Homem. E sem lembrar que
para o autor de Hyperion “é poeticamente que o Homem
habita a terra”.
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Mas não é precisamente nesta linha, que facilmente
deriva numa espécie de idolatria ou sacralização da litera-
tura, que se situam estas considerações sobre o “Homem
como literatura”. Também nada têm a ver com a História
específica de uma expressão entre outras, da capacida-
de de simbolização da linguagem que permite ao uni-
verso interior dos homens dar-se a ler, ou a ver, no cha-
mado universo escrito, aquela que indiferente à maldição
de Babel, se converteu em livro e enche as bibliotecas,
as livrarias ou as estantes do mundo inteiro. A literatura,
como englobante ou campo da atividade literária, ativi-
dade sociológica ou culturalmente apropriada para ca-
racterizar antropologicamente como signo de particular
relevância a Humanidade, está fora dos meus propósitos.
Melhor, temo que este género de considerações deslegi-
time, de raiz, toda a espécie de pretensão antropológica,
quer dizer, toda a tentativa não só de encontrar uma res-
posta, mas até de conferir um sentido à questão “o que é
o Homem?”.
Em certas culturas, para quem a atividade literária
é o paradigma da mais alta expressão criadora, costuma
dizer-se de muitos escritores que escrevem como quem
professa, que entram na literatura como se ela tivesse
portas ou como quem entra para um convento. Isto dá a
medida da sacralização de que a criação literária é exem-
plo nos tempos modernos. A modernidade em última
análise é precisamente a sublimação da escrita até então
reservada ao texto sagrado. As feiras literárias do mundo
inteiro, a sua proliferação — que também pode ser lida
como banalização do objeto literário — testemunham o
impacto, a centralidade como referente simbolizante pri-
vilegiado da criatividade humana — a par da música —
do planeta literatura.
Desde Guttenberg, até hoje, a famosa galáxia da coi-
sa escrita envolve-nos, ou envolvia-nos, como se desde
sempre nós tivéssemos nascido, respirado, à sombra da
imensa floresta escrita. E se, de maneira sensível, uma
parte da humanidade não se dá conta dessa presença,
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ou por não saber ler ou por indiferença, é fácil imaginar
o que seria o mundo se subitamente nos convertessem,
por qualquer acidente como um apocalíptico incêndio
de todas as nossas bibliotecas de Alexandria, num uni-
verso sem livros. Do que neles está, naturalmente, e tão
misterioso é. A hipótese de um mundo, em sentido banal,
sem livros, como até agora os conhecemos, nem sequer é
do domínio da ficção. Dentro em pouco transportaremos
connosco todas as bibliotecas do planeta. Se viajamos
ainda na literatura como mundo naquilo que justifica
que o “homem como literatura” não é apenas o homem
que escreveu livros, que leu livros, para quem os livros são
como uma segunda e original maneira, ontologicamente
falando, de “ser humanidade”, é outra coisa.
A literatura, embora o seu conceito seja recente, é
antiquíssima. Pode até supor-se que seja coessencial à
linguagem que, falando o mundo, o fabula. Como ativida-
de distinta, autónoma, como a dos escribas e — porque
não? — a daqueles a quem devemos os monumentos
que a História da Literatura sacralizou — Bíblia, Homero,
Mahabarata, Popol Vuh — é relativamente recente. Mas
desde o início modificou a relação dos homens consigo
mesmos. Ou, antes, criou-lhe uma imagem, e uma ima-
gem renovável, sem a qual se pode dizer que não tinham
imagem. Todas as águas do rio não podiam inventar
Narciso, nem obscuros cercos da Ásia Menor, Aquiles, se
alguém não tivesse fixado em coisa recitável ou escri-
ta o amor de preferência a si mesmo, ou a fúria heroica
de todos os Westerns futuros, numa narrativa imortal. É
tentador imaginar que esses “criadores” — e jamais será
possível empregar o conceito com mais propriedade que
para esses inventores ou recitadores de mitos — não fa-
zem mais que transpor, ou transcrever “sonhos”. Quer di-
zer que a ficção é de uma natureza análoga àquela que
tem lugar no sonhador. Esta ideia é tão óbvia que mesmo
um tão profundo e original espeleólogo do imaginário
como Bachelard julgou apropriado assimilar o poema, o
ficcional, ao sonho acordado.
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Mas o sonhador não é, em sentido próprio, o sujeito
do seu sonho. Alguém sonha nele. Nem por outro moti-
vo os interpelados pelo sonho o atribuíam aos deuses e
requeriam adivinhos ou profetas para lhes decifrar a di-
vina mensagem. Nabucodonosor, o Faraó, Sócrates não
procedem de outra maneira. A nenhum ocorreria a ideia-
-chave da futura idade, não apenas da Literatura, mas
do Homem-como-Literatura: Madame Bovary, a minha
obra, o meu sonho fora de mim, sou eu. Mesmo com a
adição futura de Proust — um eu, sim, mas não o que
frequentava os salões de Madame Verdurin —, o sonho
escrito, sobretudo o mais escrito — como o Surrealismo
o desejou —, está fora da esfera dos sonhos de que se
acorda para entrar na “Realidade”. Não escapou ao ho-
mem antigo que as míticas narrativas, esta primeira apa-
rição da Literatura na sua inocência devastadora, eram
um mundo paralelo ao outro, mas misteriosamente
exemplar. Ou, mais precisamente, que as suas criaturas,
Ulisses, Aquiles, Nausica, Helena, participavam da vida di-
vina. E sobretudo que daí em diante, a vida real, mesmo
a mais mítica, seria em relação à existência puramente li-
terária, muito platonicamente, a sombra de um ideal. Nas
suas campanhas, Alexandre imitava e invejava Aquiles
como os leitores de Tintim (pequenos e até grandes) o
acompanhavam ao seu Oriente de ficção.
Pode considerar-se a mais memorável encarnação
do Poder, Alexandre impregnado e fascinado pela Ilíada,
como expressão natural do Homem-como-Literatura.
Quer dizer, com mais precisão, da Literatura como for-
ma do mundo, fora da qual tudo existe ou pode existir,
mas não resiste, não perdura, não fulgura, transfiguran-
do sem fim a nossa relação com a realidade. Os guardi-
ões sem dono da cidade, os seus filósofos — entre eles o
maior — cedo se deram conta de que na exigência, não
menos divina, ou a única divina, da Verdade, de que o
conhecimento exigido e requerido pelo que é e é eter-
namente verdadeiro é este mundo de ficção que como
Helena atrai após si os olhares dos velhos troianos — e
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menos velhos — há um problema, uma querela, em todo
o caso, uma perplexidade. Não vou relembrar se a forma
como Platão o entendeu — e à sua maneira resolveu — é
a única ou a melhor. Mas seria petulância de gente que
se crê mais lúcida só por vir depois ignorar que aquilo
que ele designava já como “a eterna querela entre Poesia
e Filosofia”, sob outra roupagem, deixou de existir ou não
tem razão de ser.
Não estava, contudo, nas mãos de ninguém que o
surgimento do “homem como literatura”, não só per-
turbasse a relação abstrata do Homem com a Verdade,
como investisse por dentro a fortaleza pura do saber
e a forma humana que a sua perspetiva induz a ponto
de inverter os termos da querela. Sem dúvida, uma ou-
tra imagem, mais conforme ao sonho de Platão e filho
dele, informa e condiciona a figura do Homem moderno,
a do Homem-como-Ciência. Os seus efeitos na ordem
antropológica não têm rival em termos de magia natu-
ral, assegurando-lhe a posse e domínio da Natureza que
Descartes nos prometera. Mas não o mudam por dentro,
não lhe dão uma outra alma, porque o não mudam para
quem é. Quer dizer, para quem se sonha. Só o imaginá-
rio escrito, onde se perde quem sonha arrastado sob as
figuras dos Dom Quixote, Don Juan, Hamlet, Julien Sorel,
Mister Pikwick, Ivan Karamazov, a Catarina d’O Monte dos
Vendavais, Anna Karenina, a Joaninha dos Olhos Verdes
ou suas irmãs gémeas contemporâneas, tem esse poder.
É esse poder, essa existência outra, aquela através da
qual a humanidade se torna, não episodicamente, mas
essencialmente, Literatura.
Durante milénios, a humanidade teve literatura,
mas não era, seriamente falando, literatura. Literatura,
o único sonho de onde uma vez imersos não podemos
acordar. É uma história sem fim, como a de um filme cé-
lebre onde somos apenas aquilo que lemos e o que le-
mos nos converte em «anjos», indiferentes ao espaço e
ao tempo. Seria longo, ou impossível, evocar aqui os ava-
tares desta metamorfose do homem que tem literatura
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no homem que é literatura e mais difícil ainda explanar
as modalidades deste ser-literatura da Humanidade. O
“ser literatura”, que a invenção de Dom Quixote mitifica,
na verdade não pode ser ultrapassado. Todo o leitor, para
quem realmente um livro existe e lhe rouba a sua reali-
dade imediata, é Dom Quixote, mas não tem o mesmo
significado em Chateaubriand, em Goethe, em Flaubert,
onde a humanidade como literatura toma a forma mes-
ma da tentação e deixa de ser apenas a quinta-essên-
cia da nossa vontade de sermos deuses, para se tornar
na fonte envenenada do desespero mais raro, aquele a
que Claude Edmond Magny numa carta célebre sobre o
poder da escrita — só comparável à Carta a Um Jovem
Poeta de Rilke, ou à Carta de Lord Chandos de Hugo von
Hofmannsthal — chama o desespero literário. Flaubert
conheceu-o, Mallarmé fez dele um jogo, e depois dele
essa consciência da mortalidade do que em si mesmo
é imortal, ou bem pior, da inacessibilidade intrínseca da
ficção onde, como Deus em Cristo, os autores põem toda
a sua complacência, tornou-se, por assim dizer, o a priori
de toda a criação literária. Enquanto tais, eles não são o
homem-como-literatura. São só aqueles que permitem
aos outros, graças a uma privação sem nome, de ad-
quirir uma existência lendo-os. Pensar que o não alcan-
cem justifica esse famoso desespero literário, quer dizer
“celui / qui s’empare de l’écrivain lorsqu’il desespère de la
littérature et à cause d’elle”.
Felizmente o homem-como-literatura está todo do
lado do leitor que pode ser e começou por ser fatalmen-
te todo o autor digno desse nome. É como leitores que
nós somos “literatura”, paisagem invadida, submersa, ilu-
minada por todas as emoções, sentimentos, angústias,
alegrias que, para parafrasear Pessoa, não damos a nós
mesmos nem à vida, mas estão lá, inscritas, incoativas,
nesse lugar sem lugar nem espaço mais virtual que to-
dos os espaços virtuais que chamamos livro e em virtu-
de do qual somos literatura. É nesse lugar que se inverte
a desesperada sentença de que em face da tragédia da
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nossa verdadeira vida como esperança realmente ferida
de morte tudo o resto é literatura. Não, a literatura é o
resto, um pouco como Pascoaes dizia da Saudade que
é o que fica quando tudo morreu. Num filme célebre de
François Truffaut, inspirado de Bradbury, o cineasta mos-
tra-nos homens que não são mais que livros: como lou-
cos circulam nos jardins de um mundo onde a literatura
perdeu o direito de cidade, cada um recitando as pala-
vras onde a essência da Humanidade é suposta preser-
var-se. Um é a Odisseia, outro a Divina Comédia, outro
Dom Quixote, outro Madame Bovary, outro O Processo.
Em suma, bibliotecas vivas para que o Homem não possa
morrer. Em tempos de Salman Rushdie aquela alegoria
da ciência-ficção não perdeu atualidade. O interesse dela
não seria grande se só a tomássemos como reverência
ou até idolatria de uma particular criação do espírito e da
imaginação dos homens que no livro e na Literatura se
encarnam. Mas é outra coisa: esses homens-livros são só
a Humanidade tornada Literatura, não por escrever ou ler
livros que contêm a nossa realidade ou a nossa verdade
como uma estela dá conta de uma batalha ou de uma
legenda, mas antes por serem o espelho infinitamente
refletido do nosso sentimento de nós mesmos, dos ou-
tros e do mundo como incuravelmente ávidos de mais
realidade e verdade que só o imaginá-los inventa para
que possamos suportar a existência na sua opacidade
absoluta. Não são os livros que conservam a cidade, é a
nossa imaginação, nós como Literatura, que inventamos
a verdade. A verdade segundo Xerazade, aquela que afas-
ta os muros da Morte enquanto ela acrescenta um conto
a outro conto. Sem fim.

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CAMÕES E CERVANTES

Intervenção proferida no Colóquio “A Ibéria no Contexto Europeu”,


Guarda, setembro de 20051

Em véspera da inauguração do Centro de Estudos


Ibéricos sugeri que se fizesse uma sessão cultural que ti-
vesse como objetivo pensar ou evocar, de algum modo,
aquilo que são referências míticas da nossa cultura ibéri-
ca: Camões e Cervantes, tanto mais que este ano é aque-
le em que o mundo inteiro celebra o aparecimento dessa
obra sem par chamada Dom Quixote.
De uma maneira muito sumária, vou tentar ligar um
pouco essas duas referências culturais, provavelmen-
te não tão bem como aqui o farão durante esta manhã,
mas servindo-me, de algum modo, de uma referência in-
termediária, que não é outra senão a de Oliveira Martins.
Foi, efetivamente, Oliveira Martins quem me sugeriu esta
ideia de um Centro de Estudos Ibéricos, pois foi ele o pri-
meiro a pensar na Península como um todo, não só na
História, mas também na ordem ideológica, espiritual e
cultural, em geral.
Na primeira tentativa que conhecemos de pensar
em conjunto a civilização ibérica – a de Oliveira Martins
–, não apenas na sua face propriamente histórica, quer
dizer, na sua ação de expressão de uma vontade política
com autonomia no meio dos outros povos, era natural es-
perar que, na caracterização do génio peninsular, encon-
trasse no paralelo entre Camões e Cervantes o seu objeto
de peregrinação.

1 Revista Iberografias, nº 2 (2006). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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Próximos no tempo, tempo quase de pai primeiro e
de filho segundo, soldados e poetas de um Portugal e
de uma Espanha no auge da sua afirmação, no tabular
do mundo, esse paralelo devia iluminar, como nenhum
outro, o mistério do génio peninsular de que ambos se
tornaram, até hoje, a expressão mítica.
Pode pensar-se, apenas por razões de patriotismo,
que Oliveira Martins conferisse a Camões, nessa maté-
ria, um estatuto emblemático raro, em todo o caso dife-
rente do que concede a Cervantes. Não se trata, na sua
perspetiva, de qualquer valoração de ordem literária,
que seria absurdo, mas, unicamente, da diversa relação
do minhoto, como ele entende o génio peninsular. Sem
hesitação, Oliveira Martins rotula Os Lusíadas de testa-
mento da Espanha, a Portugal coube, uma vez, a hon-
ra de ser o intérprete da civilização peninsular perante o
mundo. Esse livro, brasão da história de toda a Espanha e
átomo redondo da nossa existência nacional é o poema
de Camões: Os Lusíadas.
Da visão de Oliveira Martins sobre a ação humana,
histórica ou privada, faz parte a ideia de que a vida em si
mesma, na sua forma mais alta, é heroísmo em ato, o que
quer dizer epopeia vivida. É o seu ideal heroico volunta-
rista, pois pouca gente tem tido, entre nós, a consciência
de que a outra face do heroísmo é uma espécie de inver-
são dele, uma espécie de sentimento de que esse próprio
heroísmo confina com a celebridade do fracasso, ou ele
mesmo pode não ter justificação realmente em si.
Porque é que Oliveira Martins consagra um capítu-
lo da sua História da Civilização Ibérica a Camões? Por
razões de ordem patriótica, naturalmente, mas também
pela sua própria visão do mundo como fundamental-
mente epopeica, mesmo se é uma epopeia condenada
ao fracasso, de que os próprios Lusíadas seriam exemplo.
No caso da relação de Os Lusíadas com a nossa ação
no mundo, Oliveira Martins considera o Poema como
uma espécie de epitáfio da Nação, ou mesmo a Bíblia
da Nação. Era natural esperar que se encontrasse outra
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forma de heroísmo, um outro género, que sugerisse a
Oliveira Martins consagrar a Cervantes um capítulo, não
tão importante como consagra a Camões, mas, prova-
velmente, ainda maior. Ignoro porque é que Oliveira
Martins, na sua visão sintética e, ao mesmo tempo, histó-
rica e mítica do nosso passado peninsular, não reservou a
Cervantes a atenção singular que consagrou a Inácio de
Loyola e a Camões. Claro que ele não ignora Cervantes!
Numa breve passagem da História da Península
Ibérica aproxima Cervantes de um istmo ativo do Dom
Quixote, tão heroico como ele na vida, mas já firme de
uma expressão de uma Espanha exausta de feitos épicos.
Quando Filipe II era o monarca mais importante do
seu tempo, na Europa e, consequentemente, no mun-
do, segundo a nossa visão europeio-centrista, mas rei de
uma Espanha que seria mais consciente do que Portugal,
que era, ao mesmo tempo, muito e nada, como os pró-
prios Lusíadas o demonstram. Esta imagem de Cervantes
tornou-se, por assim dizer, clássica. O seu livro, como Bíblia
do Desengano, tem suscitado comentários sem fim. Na vi-
são de Oliveira Martins, intrinsecamente dramática – não
apenas como leitura de civilização de culturas ibéricas, mas
como visão geral do mundo –, e, ao mesmo tempo, pessi-
mista e estoica um herói do desengano, como Cervantes,
devia encontrar uma compreensão e até uma adesão ín-
tima maior do que qualquer outro autor. Afinal, e anteci-
pando um desengano mais profundo do que no séc. xvii
ibérico, Cervantes poderia ser reclamado como patrono.
Oliveira Martins tinha mais motivo do que ninguém para
compreender o desengano positivo do mundo Barroco
que Cervantes exemplifica, exorciza e transfigura, visto
que essa atitude de Dom Quixote tem a virtude de elevar o
desengano particular de uma época virtualmente épica e,
ainda, a componente essencial do destino humano.
Cervantes aparece na História da Civilização Ibérica
no limiar daquilo que, durante três séculos, nós chamá-
mos a decadência da Espanha e, mais latamente, da
nossa Península.
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O livro imortal de Cervantes só com um Romantismo
acederá a um estatuto mítico de uma ilustração, de uma
eterna luta entre o espírito e o real, que é, para Oliveira
Martins, o eco sublimado da decadência histórica da
Espanha. Mas, ao contrário de Antero, essa decadência é
menos um fruto das célebres três causas descobertas na
Inquisição pelos Jesuítas do que o preço do seu histórico
Quixotismo de que o literário, com o seu desengano, será
apenas o melancólico reflexo. Escreve ele: «a Espanha de
Filipe é a mesma de Jimenes, o Portugal de D. João III é o
mesmo de D. João II». Não há sentimento nem ambições
diversas, há apenas a sombra da velhice, o cansaço, de-
pois da grande obra. Toda a energia vencida se perverte
e, assim, a Espanha, além de sofrer as consequências ge-
rais desorganizadoras provocadas pelas descobertas, so-
fria, particularmente, da perversão do espírito que nobre
e entusiasticamente avassalara a Europa.
Indicando com mais precisão o lugar de Dom
Quixote nesta poética de uma decadência heroica, es-
creve: «a Espanha vê no título de Dom Quixote a conde-
nação dos antigos cavaleiros e aplaude essa sátira que
noutro alcance seria apenas um brinquedo erudito».
Bem longe se escondiam, já no passado, as figuras dos
“Amadis”. A cavalaria que Cervantes condena – escreve
Oliveira Martins – não é, porém, só essa, é também a di-
vina, o que ele acusa é a teimosia louca num heroísmo
já sem significação nem alcance. Cervantes, em pessoa,
fora mordido por esse vírus e, agora, velho e desengana-
do, o antigo humorismo dos graciosos da comédia caste-
lhana encarna dentro dele produzindo uma obra genial,
embrulhado na capa esburacada, através da qual viu o
sol a rir-se para ele.
O dualismo do drama espanhol aparece vivo na bio-
grafia do escritor que, no final, conclui, condenando em
massa a nação cuja vida se reproduzia na sua. Esqueçamos
esta condenação que não existe no Dom Quixote, pelo
menos na minha leitura. Retenhamos apenas a dupla
face de um livro de inicial tentação satírica, pouco a pouco
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submersa por uma compreensão de fundura incompará-
vel da alma humana que insufla nas proezas caricatas e
sublimes da banda desenhada divina da nossa condição
humana, todo o peso daquela bondade que o seu con-
temporâneo Shakespeare comparava ao leite da vida.
Não há no Quixote o desdenhoso sorrir que Oliveira
Martins aí vê, mesmo associado a ironia penugenta,
que mais certeiramente lhe associa. A poética do Dom
Quixote revela daquela ironia transcendente que o autor
da História de Portugal revê no seu amigo Antero e, tal-
vez com mais propriedade, de um humor transcendente
que é uma novidade no olhar europeu, um riso ou um
sorriso que sublinha a nossa impotência diante do ideal,
mas vive dele e o aproxima da nossa conatural e intrínse-
ca fragilidade humana. Milagre sem repetição na nossa
Península! Só nas páginas de Dixon, Dostoievsky ou de
Tchecov conhecerá, um dia, uma versão comparada.
Como em todas as obras de génio, esse humor trans-
cendente que, no Dom Quixote, tanta originalidade encar-
na, não é a expressão de uma virtualidade universal e abstra-
ta da nossa condição, mas filha de um tempo. Tempo como
história e tempo como cultura. Aquele que vive na Península
como crepúsculo de um Renascimento que, só por exceção,
conhecemos. Camões é, realmente, a exceção das exceções.
A expressão da sua palinódia sob a forma maneirista, antes
de se tornar visão do mundo na Idade Barroca.
Cervantes está entre tempos: o da idade critica e iró-
nica de Erasmo, que nos aflorou mas não nos penetrou,
mesmo sob a forma hiperbólica de uma loucura onde toda
a crítica do mundo e, antes de mais, da sua religiosidade
tradicional era possível que o mundo de Quevedo já fosse o
do desengano tolerante e melancólico do Dom Quixote, e
o amargo desapiedado e ressentido do Buscón, ou da total
desilusão do Criticón que, em nome de uma fé quase má-
gica, converte o mundo numa fantasmagoria carnavalesca
digna de Jerónimo Bosh ou de Gil Vicente. Já não sendo tão
medieval como o dele, o mundo Cervantes é o mundo em
que o riso e a graça não vivem da sombra da maldade. Mais
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tarde, Baudelaire dirá o espírito do mal que na Modernidade
constituirá o seu resort permanente. Também não é o da
bondade de Rousseau onde não há lugar para ela, pela
nossa condição, ser virtualmente paradisíaca. No mundo
de Cervantes, nem Deus está morto nem o Diabo conduz o
mundo, mas também não é o de Gil Vicente em que, graças
aos Céus, o Diabo é o cómico por excelência e o terror que
inspira e está ao serviço divino, como estratégia de Deus.
O mundo de Cervantes é contra todos os sentidos,
um mundo em estado de graça, não apenas para nos
fazer rir ou sorrir fora da magnanimidade real ou virtual
do sarcasmo, forte tradição peninsular, mas também de
uma ironia que nunca foi muito a nossa especialidade.
A famosa e pertinente inscrição de Cervantes num
espaço de liberdade de pensar e criticar é fruto da ironia
do autor da luxúria e da loucura, Erasmo, e também do
ambiente erasmista que a própria Península há muito vi-
vera, à sua maneira, mas que se tornara o baluarte cultu-
ral e político contra a Europa, cada vez mais protestante.
Qualquer versão da loucura era erasmista e da sua fun-
ção subversiva dos valores culturais de tradição medieval
era não só perigosa, como impensável.
A crítica do estado do mundo, a começar pelo mais
próximo, só pode ser feita de dentro, pondo a sociedade e
os homens na cruz da sua contradição cristã ou latamen-
te evangélica. Não à maneira de Alfonso de Valdês, fiel de
um Gil Vicente sem mor, mas à sua combatente de Deus
em Lepanto, glorificando o Cecílio, chocando-se na sua
vida de todos os dias contra uma sociedade, onde o abis-
mo entre os ideais de justiça e de caridade pleonastica-
mente evangélicas era tão grande como o que separava
os heróis da ficção cavaleiresca do comum dos mortais.
Se alguma vez tinha existido o mundo encantado do
Amadis, dos Cavaleiros da Tábula Redonda, das aventuras
assumidamente delirantes das novelas de cavalaria, nos
novos tempos, na impiedosa luta pelos bens do mundo
desesperada pela conquista da América e pelo triunfo da
idade burguesa, deixara de ser no mundo exemplar na
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ordem ficção para se tornar no mundo de evasão e, mais
gravemente, de mentira.
Realista, lírica ou onírica, toda a dita época é virtual-
mente alegórica, nela se inscrevendo o sentido da vida
humana como destino transcendente, pelo menos na
Península. A humanidade não goza ainda de qualquer
dignidade e, quando isso acontecer, a sua dignidade ali-
teraria advém-lhe de uma denegação ou indiferença a
essa finalidade transcendente.
No tempo de Cervantes, toda a literatura séria releva
o sublime, como Os Lusíadas, com a sua galateia. Todas
as obras estão escritas ou visam escrever-se numa espé-
cie de empírico literário. E talvez o género específico e a
proeza literária que o Dom Quixote representa não seja
mais que uma invenção sem precedentes de ter feito
baixar o sublime do céu à terra.
A famosa invenção do romance como realidade mo-
derna não consiste senão nessa transubstanciação às
avessas sob a máscara da paródia na aparência que já
tinha servido Aristóteles para sair da Idade Média posi-
tivamente ou magicamente continuando no Jardim da
Armida. Cervantes aprenderá a lição e guardará a forma,
invertendo o conteúdo, revestindo e revestindo-se do
seu herói do mundo, da loucura e inventando para tor-
nar nossa a sua mais original criatura: Sancho, o primei-
ro e o mais genial dos heróis sem qualidade nenhuma, o
mais universal pela sua ignorância não douta, uma uni-
versalidade que é da sabedoria humana mais próxima da
inocência que podemos conceber.
Despida da sua máscara sibilina, a loucura quixotesca
é a condição transcendental da sabedoria, do sonho que
propícia uma vivência e um entendimento do mundo e
de nós mesmos ao rés da vida, mas de uma vida elevada
acima de si mesma pelo combate heroicamente travado
e perdido de Dom Quixote. Qualquer que seja a ideia que
se faça da intenção ou das intenções de Cervantes ao es-
crever o Dom Quixote, a sua intrínseca ambiguidade é
inseparável dela, como elmo de Mambrim, e terá sempre
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a dupla leitura da sua aparência e da sua enigmática pro-
liferante e irredutível realidade.
É certamente o primeiro livro que se pode chamar
“work in progress” ou livro “in fieri”. Assistimos à sua gé-
nese e evolução, tanto na sua composição rapsódica e re-
compiladora da primeira parte, como na coerência e afir-
mação dos personagens. Nada há de mais elucidativo no
Dom Quixote que o batismo dos personagens imortais,
a hesitação em nomeá-los com precisão, como se isso se
tornasse contraditório, com frios de morte.
O livro por excelência deixara de ter leitura humana
ou estava fechado. A literatura não é o espelho da ver-
dade se não for o lugar onde ela vacila. Todo o progra-
ma da literatura futura está, por assim dizer, inscrito no
Dom Quixote.
Primeiro que ninguém, Cervantes conheceu esta
vertigem num género mouro. Ele tinha escrito um livro
onde pusera já não só o seu género, mas toda a sua vida.
Um livro cuja profunda seriedade escapava aos que riam
com ele e asseguravam o sucesso inaudito. Esse livro des-
tinado a encantar os séculos futuros era grosseiramente
imitado e troçado. A sua vida, o seu sangue, a alma da sua
alma, eram apenas papel escrito. A este desafio sem pre-
cedentes devemos a segunda parte do Dom Quixote, que
não é apenas uma tradicional continuação das aventuras
do ilustre fidalgo, como as que eram correntes na gran-
de voga da segunda fase da ditadura de cavalaria, mas
que é verdadeiramente o terceiro Quixote, aquele que
nunca teria existido sem a misteriosa e eficaz impostu-
ra de Avelanede (confesso que no meu panteão privado
guardo sempre uma vela acesa em honra do famoso im-
postor). Sem ele não teríamos a segunda parte do Dom
Quixote. A invenção do livro que não vive de paródia, ou
da crítica à ficção como mentira do mundo, mas da fic-
ção como essência do livro, de todos os livros e através
dele da nossa incontornável e interminável ficção.

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FERNANDO PESSOA E O LIVRO DO DESASSOSSEGO

Eduardo Lourenço – intervenção proferida na Conferência “Portugal e o


seu Destino” (6 e 7 de junho de 2013)1

Fernando Pessoa é uma espécie de tóxico divino


para a nossa pretensão, que constituiu a essência do que
nós somos, de que há qualquer coisa que efetivamente
tem sentido e que nele mesmo contém o sentido dos
sentidos. O texto “O tédio no Livro do Desassossego” de
José Gil, é daqueles textos que fecha todas as saídas. Não
há nenhuma espécie de saída. Esta meditação sobre o
tédio só é compreensível para quem tem, verdadeira-
mente, a experiência do tédio. E a experiência do tédio
faz parte das experiências possíveis de cada um de nós.
Provavelmente, uma criança ainda não tem tédio. E é
por isso que de algum modo aquilo que nós chamamos
a infância é o equivalente, simbólico e real, do paraíso
que sonhamos ou pensamos que pode existir. Portanto,
dá sentido, ou não sentido, ao que nós experimenta-
mos, naquilo que chamamos a existência deste lado de
cá, se é que há outra do lado de lá. Mas eu não vou imi-
tar o Bernardo Soares, ou por outra, Fernando Pessoa,
Bernardo Soares interposto, que já tantas vezes cruzei.
Mas este texto é o texto mais radical, certamente, de todo
o Livro do Desassossego Nada fica de pé!
O próprio Antero de Quental que, enquanto poeta
português, enquanto português e enquanto filósofo, está
na origem desta primeira consciência de que a existência
podia não ter verdadeiramente sentido. Que o não ser é
o único ser absoluto. Isso está escrito num soneto célebre

1 Revista Iberografias nº 9 (2013). ISSN: 1646-2858.


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de Antero de Quental. Foi o primeiro que teve a consci-
ência de que a normal confiança que temos da vida é
uma confiança ilusória, que a vida não tem verdadeira-
mente um sentido, que mereça esse nome e que justifi-
que essa própria vida. Mas todo o pessimismo de Antero
de Quental, um pessimismo que é uma espécie de oti-
mismo às avessas, foi de alguém que sonhou, também,
muito mais do que os portugueses já fazem atualmente,
que é uma espécie de confiança absoluta no sentido da
existência. A ideia de que o sol está antes da escuridão,
quando realmente, apareceu num certo momento no
imaginário ocidental, tinha já dado a volta ao oriental.
Mas aquilo que no Oriente é uma espécie de conclusão,
é aquilo que o ocidente vai pôr em dúvida, declarando
que a essência do universo é uma ilusão. Portanto, pare-
ce que, à primeira vista, não se pode ir mais longe do que
numa imagem da humanidade em que a noite é mais
profunda que o dia, em vez da ideia inversa de Nietzsche,
de que o dia é mais profundo que a noite.
Todavia, este texto do Livro do Desassossego, aqui
evocado e lido por José Gil, que é um filósofo a sério e
não aprendiz como eu, é um texto que não deixa nenhu-
ma espécie de saída para ninguém, e todavia, a resposta
está no interior do próprio texto do Fernando Pessoa e
em qualquer poema de qualquer dos heterónimos, mas,
fundamentalmente, no Pessoa ele mesmo, no poema
“Sombras que somos”.
Esta saída sem saída, ou este apelo a uma saída, é
como que uma porta sempre aberta. A porta aberta
somos nós, a nossa própria palavra e a nossa própria
consciência. Não há outra saída, é ela que nos oferece
o mundo, ou por outro lado, é o mundo que se oferece
como tal à nossa visibilidade, a exterioridade absoluta
com que nos encontramos quando abrimos os olhos,
mais profunda de todas as noites. Não há nenhuma defi-
nição que possamos conceber, algum conceito de ver-
dade, em que a palavra luz não esteja inclusiva, aquilo a
que nós chamamos pura verdade. É aquilo que luz, que
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brilha, aquilo que pensa por nós antes de nós pensarmos.
Toda esta iluminação noturna, mórbida, terrificante, so-
bre o tédio em Fernando Pessoa, é a mesma versão, mas
às avessas, é uma espécie de levar ao limite aquilo que
em Antero de Quental já era limite.
O texto do Livro do Desassossego é certamente a
obra mais extraordinária da Literatura Portuguesa. Hoje
se o Fernando Pessoa existe deve-se, fundamental-
mente, ao Livro do Desassossego porque é muito acessí-
vel e porque é de uma lucidez infernal.
A minha amiga Mécia de Sena nem quer ouvir fa-
lar nesse livro, que considera realmente sinistro, o mais
sinistro dos livros. Mas se é o mais sinistro dos livros é
porque há a possibilidade de o ler como tal. Portanto,
há uma comparação e uma alternativa possível a todas
as coisas. Na Bíblia está escrito que Deus, quando criou
o mundo e criou Adão, deixou-lhe a nomeação do mun-
do. A coisa era tão delicada, mesmo para Deus, que ele
deixou a Adão o encargo de nomear o mundo e assim o
responsabilizou. Portanto, somos nós, que atribuímos o
sentido às coisas. Mas nós queríamos que a nomeação
que fazemos do mundo fosse ratificada por Deus. Que
Deus nos dissesse: “É assim”, que Ele viesse cada vez
que temos uma dificuldade de distinguir o que é bom
do que é mau, o que é claro do que é luminoso, o que
é verdadeiro do que é falso. Que houvesse uma entida-
de superior visível, que desse uma mão, como o Jesus
Cristo, do Eça de Queiroz, num conto infantil, que nos
desse a mão e dissesse: “Estou aqui”. Mas Ele não está
aqui, ou se está nós não sabemos identificá-lo, ou te-
mos de identificá-lo à nossa própria custa, conhecendo
a resposta.
Em todo o caso, este é um daqueles textos que nos
deixam, não num desassossego banal de qualquer coisa
que nos aflige, mas um desassossego que faz parte da
essência, mesmo da existência. O fundo da existência é
desassossego, ou na terminologia de Santo Agostinho in-
quietude. Essa inquietude faz parte da condição humana,
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como tal, mas não faz menos parte dessa inquietude o
querer sair dela.
Nestes dois textos parece que Fernando Pessoa
nos quer encerrar definitivamente numa espécie de
“Casa Verde”, ao lembrando-me de um famoso conto de
Machado de Assis, que é uma fábula tenebrosa e mara-
vilhosa ao mesmo tempo, em que um psicanalista, ins-
talado numa aldeia pobre do Brasil, tem a ideia de co-
locar todas as pessoas na Casa Verde, que é o hospital
dos loucos. E ele decide que toda a gente é candidata a
esse hospital de loucos e não descansa enquanto, pouco
a pouco, vai pondo cada pessoa dentro da Casa Verde.
Até que já não existe mais ninguém, toda a gente está
na Casa Verde! Este texto é uma espécie de Casa Verde:
toda a gente está lá, exceto ele. Até que, faz uma segunda
reflexão e diz: “não, provavelmente eu enganei-me, eu é
que devia estar na Casa Verde”. Então os outros saem to-
dos da Casa Verde e fica lá o sujeito que manda os outros
para a Casa Verde. Fernando Pessoa joga esses jogos
todos ao mesmo tempo, e não há saída para isto. É uma
fábula mais atroz que as fábulas do Kafka.
Uma espécie de saída, ao mesmo tempo terrível,
terrificante e com um humor transcendente. É engraça-
do que este texto, como em muitas páginas do Livro do
Desassossego é virtualmente, ou inconscientemente,
de um humor de ninguém, um humor sem sujeito, ab-
soluto, uma paródia de tudo que é a certeza, que é lumi-
noso, que é claro. Na verdade, ele tem uma táctica extra-
ordinária, em que, pensamento sobre pensamento, se
traduz numa espécie de nevrose absoluta, da qual só sai
por uma espécie de regresso àquilo que é mais primitivo
ainda do que toda a nossa angústia, que é a não angús-
tia da inocência quando Portugal e o seu Destino ainda
não caímos nessa espécie de paraíso perdido onde nos
supomos tombados. O que é maravilhoso num texto
como este, é o de facto de ser uma espécie de odisseia,
através da noite, da obscuridade, daquilo que não tem
sentido, daquilo que é uma espécie de riso sardónico de
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um Deus que existe ou não existe, pouco importa, e cujo
refúgio é dado por um outro olhar, que é o olhar mítico e
mitificado do Alberto Caeiro, uma espécie de reserva do
lugar do sentido para àquilo que a natureza nos diz sem
pensamento. E daí as descrições maravilhosas que ele
faz, nesse livro terrífico que é o Livro do Desassossego,
sobre as luzes da cidade de Lisboa, os crepúsculos que
morrem, quer dizer, tudo o que fala, uma fala que não é
a nossa fala, mas na qual encontramos, senão um sen-
tido que não existe em parte nenhuma, nem sequer
na natureza, mas uma espécie de felicidade, o anúncio
de uma felicidade possível, uma cor que se esvai, um
pássaro que foge.
Encontrar Fernando Pessoa não é um encontro de
que se possa sair incólume, ninguém sai o mesmo se
o leu verdadeiramente. Assim como de nenhum poe-
ta, ficcionista, ou grande criador. Não se sai incólume.
Porque a palavra dessa gente tem o condão de ser para
nós uma palavra mais importante, do que a nossa pró-
pria palavra. É a palavra na qual nós nos reconhecemos,
a qual nos dá um eu que nós não tínhamos, um eu su-
plementar, diferente do eu inacessível. Porque para cada
um de nós, o nosso próprio eu é a realidade mais miste-
riosa, provavelmente a que tem menos sentido, e o sen-
tido vem-nos do confronto com o outro, com os outros e
com o exterior propriamente dito. Não se sai incólume.
E eu, como outra gente que se encontrou com Fernando
Pessoa, quis de facto conhecê-lo, lê-lo, aprender com ele.
Descobrir uma espécie de anti-mundo. Um mundo às ve-
zes mais terrífico que todos esses mundos que a ficção
científica inventa.
Eu desejei, na leitura que fiz, ou na leitura que faz o
José Gil, que é uma leitura mais moderna que a minha,
digamos até pós-moderna, desejei afrontar esse mar te-
nebroso, uma nova espécie que é o texto de Fernando
Pessoa com a ilusão de que podia atravessá-lo, sair e en-
contrar nele a famosa porta aberta. Claro que não encon-
trei. Ninguém encontra. A porta aberta é aquilo que cada
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um de nós é, como palavra, como consciência de si, como
consciência do universo, como suporte transcendente de
todas as realidades que existem da própria existência.
Não sei se a porta aberta existe, mas nenhum de
nós, nem a título pessoal, nem a título coletivo, pode
existir sem imaginar uma qualquer porta aberta, numa
cela tão tenebrosa como esta que é descrita no Livro do
Desassossego. Ou ficamos na Casa Verde, e essa é a gran-
de tentação de ler o jovem Pessoa, o jovem Pessoa que
queria a toda a força um certificado dos psiquiatras da
época, dizendo que era louco. O que já pode ser um ates-
tado de uma certa loucura, mesmo no sentido banal da
palavra. Mas a verdade era mais profunda. A interrogação
de Pessoa, a perplexidade de Pessoa é de um grau tal que
efetivamente não há nada a fazer. Ou se não lê, ou se lê
e deixa de fora, ou, se nos confrontamos com ele, temos
que estar dispostos a saber que encontrámos, nem Deus
nem o Diabo, mas qualquer coisa mais terrível que um
e o outro, que é, realmente, a nossa própria impotência
em ser, nós mesmos, a luz do mundo. Mas, de qualquer
modo, os poetas, um grande poeta, serve para uma luz
provisória, se de facto o mundo não tem um sentido
esclarecedor e eu penso que a existência terá realmente
um sentido, e sobretudo os sentidos que os homens e a
atividade humana lhe conferem.
Não é muito consolador, mas entre uma clássica
perspetiva de uma visão otimista do mundo, de uma an-
tevisão otimista do mundo, nós não somos obrigados a
escolher e, provavelmente, não temos a capacidade de
escolher. Jorge de Sena tinha esse sentimento. Nós não
temos capacidade para essas questões últimas que nos
pomos. Pomos as questões, mas não temos as respostas,
mesmo a questão que é ao mesmo tempo a mais alta
e mais infantil de todas, de que existe alguma coisa, em
vez de coisa nenhuma. Quem me pode responder a isso?
Apenas a podemos formular. Temos uma ideia que isso
tem algum sentido, mas o sentido que tem, nós não o po-
demos precisar. Está na própria questão. Quem dá essa
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resposta? Precisávamos de um Deus para nos dizer qual
era a resposta. Ele é que sabe. Se criou, como dizia José
Saramago, que se explique. Como Ele não dá explicações
corretas às perguntas se não através de uma lei deferida,
cada um de nós é responsável pela resposta que dá às
perguntas que Ele próprio faz, ou a título pessoal ou a
título coletivo, pouco importa.
Na verdade, podemos inverter um pouco a famo-
sa perplexidade de Pascal, a primeira e mais profunda
em relação à crença tradicional da civilização ocidental,
enquanto ocidental cristã.
Apostemos que um sentido existe. Se existe, ganha-
mos tudo, se não existe, não perdemos nada.

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SOBRE MANUEL ANTÓNIO PINA

Intervenção proferida no Seminário “Manuel António Pina – Palavras


para além das fronteiras”, Guarda, dia 21 de janeiro de 20101

Voz dele, voz nossa? Nossa porque dele.


MANUEL ANTÓNIO PINA

Manuel António Pina é, entre outras coisas, um ro-


mântico antirromântico. A sua visão não procede da
consciência de um espaço fantástico, como a de qualquer
Avatar, visado como de pura imaginação. O seu espaço
matricial, se paradoxo se consente é o da morte, com mi-
núscula e não maiúscula como o de Antero. Também não
o é o da morte apavorada e domesticada de Pessoa: o
daquilo que não pode ser dito – e ainda menos enfrenta-
do – sem nos retirarmos da existência que nos supomos.
É só aquilo que lá está mesmo sem se anunciar.
Em suma, o que nos divide e não nos deixa unir a
nós mesmos. Agora. Não depois daquilo que chamamos
a «nossa morte», o impensável por excelência.
A morte, a sua presença, se assim se pode dizer, no
texto e na perceção dela na poesia de Manuel António
Pina (MAP), é qualquer coisa que, desde sempre, faz cor-
po connosco, que embebe o nosso quotidiano ou se tor-
na fantasma no quarto desconhecido onde, de repente,
acordamos outros. É, sobretudo, aquilo que uma vez per-
cebido não nos deixa dizer eu, sem que dessa nomeação
imortalizante se levante essa espécie de fantasma que

1 Revista Iberografias, nº 8 (2012). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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nunca mais se dissolverá na bruma da vida, que não é a
do Outro, mas o outro de nós mesmos.
A nossa morte, na visão de MAP, está connosco como
a sombra com o corpo. Não se recorta como uma ausên-
cia que, por milagre, se pudesse converter em presença,
uma presença de nós em nós mesmos como se fosse-
mos deuses ou, pelo menos, anjos. É como ausência de
nós mesmos que a morte nos interpela. Mas a nossa res-
posta nunca nos dará a presença que nós reclamamos
para nos assumir como os eus que nós supomos.
MAP é um dos raros poetas do meu conhecimento
que não confere ao que chamamos interioridade uma
qualquer consistência e faz dela a essência mesma da
nossa identidade. Para ele, tudo – mesmo o mais subtil
e efémero – é pura exterioridade. Como a literatura tem
vivido, desde a sua origem, da convicção de que o sentido
e a realidade do mundo só dessa mítica interioridade são
a expressão e o espelho, suspeitá-la ou preferir-lhe esse
outro espelho, o da exterioridade (onde tudo está inscrito
e de onde tudo é descrito), é uma espécie de revolução
coperniciana na ordem da poética e da poesia. MAP não
a inventou nem a consome a sós. Assume, isso sim, como
uma espécie de evidência fundadora da sua prática poé-
tica, a que vinha a caminho e constitui a vocação latente
da modernidade: escrever, evocar a realidade com tinta
mesmo da realidade, o que está fora, que existe porque
nós a vemos, mas que já nos via antes que a víssemos.
Por isso da sua temática original faz parte um parado-
xal combate no seio da literatura e mesmo contra a litera-
tura, como palavra que não só canta e transfigura a realida-
de, mas, por assim dizer, a cria. Para ele as palavras não são
aquele mágico cristal, evocado por Eugénio de Andrade,
que refletemo mundo ou o condensam. As palavras são
apenas a ilusão de serem esse espelho nosso, ou do mundo,
que apenas existe como ilusão. Quer dizer: literatura.
As suas palavras conscientes de ser shakespearia-
namente words e, ao mesmo tempo, pura exterioridade,
como a da música:
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Ouvir-me fora de mim falando alto?
Que outras palavras são estas impronunciadas, falando por mim
pondo-se entre mim e as minhas palavras não me deixando falar?
E estas, as palavras do poema fazendo de nós Literatura?

A ausência instalada no coração da nossa realidade,


ou o que assim chamamos, isto que nos permite separar
a vida da morte, que nos duplica imaginariamente, só a
pura exterioridade o alcança. A nossa condição – até na
relação com os outros, mesmo os mais amados – é ser-
mos gémeos divididos:

Em algum sítio onde és um só como dois gémeos divididos,


entre o nó da vida e o nó
da morte, um sonho de sentidos;
em algum passado
em algum princípio, em algum modo da memória ou de olvido
em alguma estranheza, em algum sono

ou em alguma espécie de saudade física e visceral


de seres real,
pura exterioridade.

Paradoxalmente, uma tão funda consciência da sua


irrealidade, numa versão pós-pessoana, confere à poesia
de Manuel António Pina uma não menor e quase obses-
siva pulsão para promover todas as aparências quotidia-
nas a verdadeiras configurações angélicas com o dom
de nos instalar na realidade, ou antes naquela realidade
onde misteriosamente fomos frustrados.
Jamais teremos – para nós mesmos – aquela reali-
dade de que um cão desfruta para não ser humano e,
assim, de Deus nunca abandonado. A ele ninguém o
abandona. Entre ele e a vida não há hiato. Só nós somos
hiato absoluto, sem ponte para nos unir a nós. Desta vi-
são, ao mesmo tempo desesperada e lúcida da condição
humana de nós mesmos, vive, poeticamente insólita, a
inquietante e tranquila poesia de Manuel António Pina.

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“Somos nós todos,
em particular, eu,
que lhe agradeço o
ter tido a gentileza
e a humildade
de aceitar este
Prémio [Eduardo
Lourenço].”

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© Câmara Municipal da Guarda

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PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO

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O DUPLO ROSTO DA FRONTEIRA

Intervenção proferida na Sessão de Entrega do Prémio 2006 a Agustín


Remesal1

O Prémio que este ano o Centro de Estudos Ibéricos,


através do seu júri luso-espanhol, atribui ao homem
da fronteira e jornalista de televisão, Agustín Remesal,
tem um significado muito particular. É o primeiro que
é concedido a um homem dos “media” e, ao mesmo
tempo, a um intelectual que, ao longo do seu percurso,
se tem interrogado de uma maneira apaixonada acerca
da vivência singular de um dos espaços “raia” da nos-
sa Península, o que, desde há séculos, separa Portugal
de Castela e, mais latamente, Portugal de Espanha.
A História da nossa Península não é propriamente a his-
tória de Penélope, uma espécie de tela misteriosa em
perpétua urdidura histórica.
Na Europa, “a raia quebrada” a que Agustín Remesal
consagrou um excelente e inédito documentário, é um
autêntico paradoxo. Ela não é propriamente os Pirenéus
ou o Reno, ou o Elba ou o Vistúla, realidades separadoras
e obstáculos de densidade palpável, historicamente qua-
se intransponíveis em termos guerreiros.
Fisicamente – geograficamente – nada, nada de
diferente separa Portugal da fronteiriça Espanha. É a
mesma meseta que nos continua, a mesma planura da
Extremadura e com mais força simbólica, os mesmos rios
que, como se soubessem onde está o mar deles, recortam
o nosso País e se perdem no Oceano. Geograficamente,
somos um todo. É a História multicentenária que nos

1 Revista Iberografias, nº 2 (2006). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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divide. E essa História é a de uma separação política cul-
tivada e mantida, não sem dificuldade, durante séculos,
com as suas peripécias conhecidas e cuja compreensão
deve mais às comoções intermitentes da política euro-
peia do que às rivalidades e relações de força do nosso
destino comum intra peninsular.
Há um drama peninsular e nós fazemos parte dele.
Mas quando comparamos o nosso destino ao de outros
espaços conflituosos da Europa, ao fim e ao cabo, os nos-
sos dramas – e em particular, o de Portugal – têm um lado
lírico que outros nos podem invejar. A periferia tem-nos
preservado da grande “tragédia europeia”. Uma precoce
partida para o largo de toda a tragédia digna desse nome.
Pode pensar-se que esta fuga para o outro lado do
Atlântico, onde repetimos a cisão peninsular – relativi-
zou, afinal, a dramaticidade da nossa famosa “fronteira”.
Como se entre Portugal e Espanha, de Toro mais do que
de Aljubarrota – tivéssemos decidido, não ver, não ter em
conta «a nossa “raia quebrada”». Nós sabemos que está lá
– aqui mesmo ao lado – como se não estivesse. Tradições
culturais de milénios, religiosas, falas tão próximas, de-
viam tornar, por assim dizer, invisíveis as nossas mútuas
fronteiras – e penso que, simbolicamente, e não apenas
como bem-vindos turistas, os nossos amigos espanhóis
assim a atravessam. Paradoxalmente, fizemos da “seme-
lhança” e do mimetismo, para lembrar René Gérard, a
mais sólida das fronteiras, feita de quase nada, apenas da
vivência secular de uma diferença local que o estatuto de
Nação, na Europa e fora dela, universalizou com o nome
de Portugal.
Tudo isto podia ser apenas coisa do passado, já sem
importância, no momento em que a Europa se desenha
como espaço comum – ou assim se sonha e em que por
definição a problemática da fronteira ou os seus proble-
mas deixam de ser preocupação política ou militar, como
durante séculos. Somos um continente em paz. Isto pare-
ce um dado adquirido. Mas que paz? A antiga paixão que
a fronteira assinalava como signo de confronto mortal
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está, sem dúvida, adormecida. É uma boa ocasião para
pensar o que é uma fronteira, e não apenas imaginar que
desapareceu, magicamente. Mesmo um pequeno país,
como a Bélgica, a fronteira pode ser ainda a rua vizinha da
Flandres. A nossa, assumida há muito como algo natural,
não nos interpela ou nos preocupa como drama virtual.
Temos, agora, todo o tempo para revisitar a fronteira
que fomos e ainda somos, anexando como algo familiar
e positivo, como faz o nosso premiado Agustín Remesal.
Temos sobretudo, tempo para pensar e viver a fronteira
como algo positivo. Não apenas o que separa ou ameaça.
Mas como algo que nos põe limites que são de espaço e
de memória. E que, por isso, paradoxalmente, nos define.
E bem pensada é já um diálogo em si mesma. Devemos
estar gratos a Agustín Remesal por ter ilustrado, tão con-
cretamente, com a sua paixão pela raia que nos separa e
une, a virtude nova em folha deste diálogo de fronteiras
em terras da Europa que bem precisa dele.

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O GÉNIO NÃO TEM COMENTÁRIO

Intervenção proferida na Sessão de Entrega do Prémio 2007 a Maria


João Pires1

A nenhum título eu devia estar aqui e podem per-


ceber como é incómoda a minha situação e, ao mesmo
tempo, não queria não estar e estar aqui! Não apenas
porque pensava encontrar aqui a Pianista a quem o Júri
decidiu atribuir um prémio com o meu nome, mas, pura
e simplesmente, porque me é sempre muito grato reen-
contrar no meu País e aqui nesta Cidade que também
foi minha, que é minha, e estar, de algum modo, entre os
meus. No resto completamente deslocado!
O Senhor Reitor de Coimbra pensou que eu seria
a pessoa indicada para falar, um pouco por dentro, da
grande pianista Maria João Pires. Posso falar dela a vários
títulos, mas não com o título daquilo que a faz grande,
porque ela é grande como pianista, como grande artis-
ta, porque falar de uma maneira correta, convincente da
criação em si ou sobre uma criação, como é uma grande
interpretação, que é o caso de Maria João Pires, não está
ao meu alcance.
O meu amigo (falo sempre dele no presente) Vergílio
Ferreira um dia disse que se admirava que, sendo eu tão
curioso – as pessoas nascem curiosas e eu sou uma de-
las –, daquilo que ele conhecia das minhas reflexões so-
bre tudo e nada, havia um domínio que me parecia não
estar ou estar fora do meu alcance, insinuando mes-
mo que não me interessaria. Ele, para quem a música

1 Revista Iberografias, nº 3 (2007). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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representava tanto, como todos os leitores da sua obra
sabem, eu não disse nada em relação a esta constatação,
sempre com aquela ponta irónica, do meu amigo Vergílio
Ferreira. Mas fiquei tocado, porque se sentisse que fosse
exato que a música não me dissesse nada ou que mesmo
não soubesse dizer nada dela que tivesse algum interes-
se, isso seria uma espécie de atestado de carência muito
mais profunda do que ele poderia imaginar, seria uma
ferida de que eu não seria capaz de me curar. Não disse
nada ate hoje, não o deveria dizer, possivelmente, neste
momento, mas é o momento justo, porque este Prémio
consagra uma grande artista, a nossa maior Pianista de
renome internacional e de reconhecida aceitação. Ele
enganava-se porque da música, não da dela, de uma ma-
neira técnica, ou de qualquer outro grande intérprete eu
não seria capaz de dizer qualquer coisa que para mim
fosse válida. De resto, em todos os discursos críticos, de
ordem estética, sobre as diversas expressões artísticas da
Humanidade, aquele em que sempre encontro, a não ser
que seja filho dos próprios criadores ou intérpretes, de al-
guém que fala efetivamente de dentro, sempre encontro
naquilo a que se chama a crítica que regra geral está nas
revistas ou nos jornais acerca dos espetáculos musicais,
sempre encontro nisso que é mais literatura do que ver-
dadeiramente uma palavra que é capaz de dizer o milagre
sempre único e irrepetível de uma grande criação ou de
uma grande interpretação e que a homenagem do silên-
cio é mais profunda do que a espécie da literatura, nem
sempre boa, que em volta desses milagres contínuos’ se
podem realizar. Todavia podia dizer, como Baudelaire,
«la music m’a envahie toujours comme la mer». Não há
nenhuma arte, nenhuma expressão da criação humana
que me toque tao profundamente como aquilo que se
chama vulgarmente a grande música e mesmo a músi-
ca em geral a que nós chamamos apenas a música po-
pular, essa que comovia tanto o Pessoa ortónimo, dessa
que anonimamente nos chega aos ouvidos através de
alguém que toca um realejo na rua. Mas a boa música
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sempre me tocou e, naturalmente, gostaria de poder de-
dicar às grandes interpretações, que eu tive o gosto de
ouvir, de Maria João Pires um comentário digno dela,
mas sou absolutamente incapaz. Ouvi-la foi sempre um
ato incomparável quase no limite da expressão mística
de que não há nada a dizer se não repercutir a profunda
emoção, o facto de que nos passamos para um outro pla-
no que no sentido próprio é da ordem do invisível.
Tive ocasião em Portugal, mas sobretudo lá fora, de
cruzar e de ouvir Maria João Pires. Lembro-me de uma
passagem dela, numa altura em que ela tinha um pe-
queno problema, deu um concerto no Museu Chagall,
em Nice, e eu tive o prazer de estar e de assistir. Estava
presente o Chagall que a acompanhou no piano e era
quase como avô dela (Chagall nessa altura deveria ter
quase a minha idade: 85 anos). Ouvi-a em Roma, quan-
do ela foi convidada pela Escola de Santa Cecília, de
fama universal, um público absolutamente extasiado,
comovido e, naturalmente, entre esse público estava eu
duplamen te comovido como ouvinte fascinado e como
português lá fora.
O génio não tem comentário, constitui ele uma só
espécie. Este Prémio dedicado e concedido a Maria João
Pires, a ela nada lhe acrescenta, porque ela está para
além de qualquer prémio. Muito cedo, lá fora, eu lia as
críticas que se lhe referiam e havia uma palavra que se
repetia muito quando ela se revelou. A sua aparição en-
tre os grandes intérpretes foi, efetivamente, uma sorte e
uma espécie de revelação. O que lia era que as pesso-
as tinham um sentimento ouvindo-a, de que ela não era
apenas uma grande intérprete com grandes conheci-
mentos técnicos e de execução, ela era alguém que era
habitada pelos autores que interpretava: Chopin, Mozart,
Beethoven. Todos os que a ouviram não podem deixar
de concordar que Maria João Pires pertence a essas ra-
ras pessoas que quando tocam estão como que possuí-
das por qualquer coisa que as ultrapassa e que as domi-
na nos domina a nós pobres mortais. Lamento que não
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esteja entre nós. Lamento que ela sem querer esteja aqui
representando um pouco uma figura célebre de uma
ópera chamada Arlésienne que é uma figura de que se
fala durante toda a Ópera e os espectadores esperam
que Arlésienne apareça sem ela nunca aparecer lamento
que a nossa Arlésienne não esteja aqui, mas ela está aqui
como estava quando a ouvimos tocar, está nos seus dis-
cos, podemos ir para casa e ouvi-la. Se não veio foi porque
teve fortes motivos que a impediram de estar connosco,
mas eu penso que ela está connosco e nós estamos com
ela. Que queremos mais?! Peço à sua filha, que penso que
foi uma daquelas meninas que eu vi uma vez em Vence
numa dessas peregrinações que Maria João Pires faz pelo
Mundo, que diga à sua mãe que apesar da sua ausência
física, ela está na nossa memória e está sobretudo nes-
sas “mãos que movem o Mundo” como ouvi dizer recen-
temente a um maestro, Simon Regales, que as mãos de
Maria João Pires não têm prémio que lhe sirvam.

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AS FRONTEIRAS QUE NÃO TÊM FRONTEIRAS

Intervenção proferida na Sessão de Entrega do Prémio 2010 a César


Antonio Molina1

Somos nós todos, em particular, eu, que lhe agrade-


ço o ter tido a gentileza e a humildade de aceitar este
Prémio. Bastava este discurso de agradecimento do pre-
miado para que eu tivesse consciência da razão de ser
deste Centro de Estudos Ibéricos, consagrado ao diálogo
dos dois países: colmatar, não o diálogo mítico que nun-
ca existiu, mas um certo obscurecimento dele, sobretudo
nos dois últimos séculos.
O Premiado de hoje é ao mesmo tempo um poeta,
um grande jornalista, um escritor, um cronista, e coisa
que é um pouco o sonho, mais ou menos escondido e in-
consciente, de todos os intelectuais, que é quererem ser
homens de ação. Alguns o são, mas não muitos.
E no caso dele é não só um escritor, no sentido for-
te da palavra, um poeta, um grande cronista, um grande
humanista, como se viu, mas foi, uma parte da sua vida,
um dos maiores animadores culturais que a Espanha
se deu a si mesma. Primeiro como Diretor do Círculo de
Belas Artes de Madrid onde tive ocasião, em tempos e a
seu convite, de apresentar uma pequena comunicação.
Em seguida, Diretor do Instituto Cervantes, que é uma
instituição extraordinária que qualquer país do mun-
do invejaria, se a conhecesse ou se a conhece, e sobre o
seu consulado conseguiu uma afirmação e uma presen-
ça no mundo realmente extraordinária. E por último, foi
Ministro da Cultura da vizinha Espanha.

1 Revista Iberografias, nº 7 (2011). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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Portanto, ele reúne duas coisas dificilmente concili-
áveis: um autor, de pleno direito, um poeta e, ao mesmo
tempo, um homem de ação. É claro que, apesar de todo
o seu sucesso e todo o seu destino de homem público e
político, eu penso que aquilo que é mais importante para
ele é a criação literária, o facto de ser o autor das obras de
que é autor.
A primeira obra que eu conheci dele é um livro, fa-
moso, sobre El iberismo y outros escritos de literatura
portuguesa, em que tive a surpresa de ver que também
figurava nessas páginas.
Todos os autores gostam de sair do espaço onde
são mais ou menos conhecidos para atravessar fron-
teiras. César Molina foi uma das pessoas que me aju-
dou a passar este tipo de fronteiras mais difíceis de
contar que são as fronteiras que não têm fronteiras, as
fronteiras de um texto, de encontrar autores que nos
leem realmente numa outra língua, embora próxima,
como o castelhano.
Mas além disso, ele é autor não só de poemas, mas
de livros que são de um grande autor. As suas “Memórias
de ficção” são obras de um ficcionista e cronista a tempo
inteiro, são uma espécie de diário/crónica, em que vemos
a quantidade e a qualidade dos interesses, não apenas
literários, mas artísticos, de tudo quanto diz respeito real-
mente à criação de César António Molina. São obras que
se leem não só com grande encanto literário, mas que
nos dão um conhecimento profundo, não só da cultura
espanhola, das suas obsessões, mas da cultura europeia
em geral e da cultura universal.
César António Molina tem esta visão ao mesmo
tempo intensa do particular onde ele está centrado, de
alguém que tem uma “pátria chica” que é a Galiza, que
é a mãe cultural da nossa, e uma pátria maior que é, no
fundo, a cultura universal. É um autor que se interessa e
que tem um sentido inato da universalidade.
E universalidade é sempre a universalidade de uma
particularidade e não de um cosmopolitismo abstrato,
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de um interesse abstrato, realmente, por aquilo que os
outros fazem, que os outros criam, que os outros são.
Portanto, enquanto pessoa que dá o nome a este
Prémio, eu é que não posso fazer mais do que regozijar-
-me pelo facto de um autor como o César António Molina
tenha aceitado receber este Prémio.
Evocou-se aqui Ángel Crespo, que também foi al-
guém que procurou, com uma forte exigência, dar ex-
pressão ao conjunto das criações de tipo peninsular e
que talvez tenha experimentado essa necessidade com
mais violência por ter estado na América, propriamente
espanhola, durante algum tempo. Dali ele viu, perfeita-
mente, que a Península Ibérica não era apenas esta es-
pécie de ilha, um pouco paradoxal, em relação à restante
Europa, mas que era, de facto, uma ilha mundo e uma
ilha que marcou o mundo pela sua presença.
Portanto, é este iberismo aquele que está presente
em toda a obra escrita de César Antonio Molina, não um
iberismo narcísico, mesmo se, historicamente, a Ibéria
foi, com as suas duas nações, Portugal e Espanha, uma
nave que deu a volta ao mundo. Uma Ibéria que é em
si mesma, realmente, um mundo, com uma autonomia
cultural, uma alma, uma cultura e, esperemos, um futuro
que é uma das grandes apostas que a humanidade tem
sobre si mesma, sob a forma das nossas duas línguas.
A César Antonio Molina os meus agradecimentos por ter
aceitado este Prémio.

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TODOS OS NOSSOS MITOS E TODA A NOSSA MEMÓRIA

Intervenção proferida na Sessão de Entrega do Prémio 2011 a Mia Couto1

Há dois dias Mia Couto disse ser para ele uma gran-
de honra receber um prémio com o nome de Eduardo
Lourenço. Não. A honra é toda nossa e o mérito é dele,
em absoluto, e o mesmo se poderia dizer a todos os que
já receberam este prémio. Mas o caso do nosso premiado
deste ano tem algo de singular porque ultrapassa o seu
simples e raro estatuto de escritor – um dos maiores es-
critores da língua portuguesa contemporânea. Alguém
que tem uma obra que é a obra de um poeta, um poeta
que tem este dom de reinventar, para uso próprio e para
uso daqueles que o leem, uma espécie de conto mágico
acerca da nossa relação com o real em geral, mas com um
enraizamento no imaginário e em evidências que, sendo
de língua portuguesa, têm qualquer coisa de único.
Mia Couto reinventa o espaço que nós supúnhamos
ser o da nossa cultura enquanto cultura portuguesa de vo-
cação colonizadora – auto atribuída e europeizante – para
nos recriar outro tipo de realidade anterior ao nosso con-
tacto com a África, com a mãe África, que só tão tardia-
mente, e por razões etnográficas, assim foi chamada, ten-
do nós sido dos primeiros a iniciar esse estranho contacto,
banquete, convívio, submissão do outro, a que chamamos
“a África”. Essa mãe África que, a partir dos finais do sécu-
lo xix, se tornou uma espécie de presa elementar, o ter-
reno de caça das aventuras neoimperialistas coloniais da
Europa, já numa perspetiva diferente daquela que tinha
sido a da colonização dos povos ibéricos no século xv e xvi.

1 Revista Iberografias, nº 8 (2012). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. ISSN: 1646 – 2858
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A nossa geração viveu o fim desse contacto primeiro,
privilegiado e contínuo com a África, a que chamámos,
durante tantos séculos, o nosso império. Foi um drama
de ordem histórica e política que se insere num movi-
mento mais vasto de reivindicação de povos submetidos
pelo antigo imperialismo europeu e que, recuperando
dos grandes movimentos contra esse imperialismo colo-
nial, revindicaram as suas respetivas independências.
Lembro-me de que, estando no Brasil, em 1958, li
uma entrevista que o futuro Primeiro-ministro Marcelo
Caetano deu aos jornalistas estrangeiros que se encon-
travam em Portugal, onde ele dava uma espécie de lição
pedagógica para lhes explicar o que era Portugal, o que é
que Portugal pretendia, a injustiça que se fazia a Portugal
por só considerarem certos defeitos, (que eram óbvios,
como o seu estatuto democrático duvidoso), e surge esta
frase extraordinária: “O mundo inteiro arde e Portugal é o
oásis da paz”. Eu fiquei gelado porque, não sendo profeta
nem Cassandra, pensei “Que raio de frase! Vai-nos cair o
raio da História em casa”. Passados poucos anos come-
çava o que não vai ter nome – nunca vai ter um nome
– a famosa Guerra Colonial. Uma guerra feita a colónias,
depois províncias, que considerávamos como fa zendo
parte do nosso próprio território – “Portugal, do Minho
até Timor”. Ideia maravilhosa para nós, portugueses, na-
turalmente, mas que tinha que ter uma outra leitura, as
perguntas aos outros se queriam realmente pertencer a
este espaço extraordinário, auto-civilizador e colonizador
que era Portugal desde que se lançou nas grandes aven-
turas marítimas. Todos conhecemos o fim dos quinhen-
tos anos de império. Conhecemos igualmente o facto de
que vivemos muita à portuguesa esse fim de império:
como se não tivesse acabado, e isto é que é novo. O nosso
famoso império de quinhentos anos tem toda uma me-
mória que é absolutamente capital para nós, portugue-
ses, como definidora do nosso percurso histórico e tem
uma espécie de livro santo com o qual se fez a última
cruzada de Portugal no mundo: as campanhas de África
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foram feitas com bandeiras com os dísticos maravilhosos
e famosos dos Lusíadas.
Com a revolução de abril pusemos fim a esses séculos de
império – ou de império sonhado, muitas vezes mais onírico
do que real – e foi como se não tivéssemos perdido verdadei-
ramente nada. Penso que isto é que é um pouco milagroso,
pois não houve nenhuma espécie de drama, de traumatismo
intenso a essa perda que era inevitável na ordem histórica.
Também só pouco a pouco é que houve uma literatura
que refletiu o drama, da nossa parte, de todos aqueles que fo-
ram atores, forçados ou não, dessa última aventura imperial.
Há toda uma literatura nossa que deu conta do que
foi esse drama, essa tragédia. Mas a tragédia fantástica era
superior a essa tragédia puramente nacional, portugue-
sa, porque era contrária à essência mesma dessa cruzada:
nós tínhamos dado essa presença como justificada pelas
razões mais sublimes. Contudo, o sonho teve a sua nega-
ção nesse combate, que, na verdade, era, para muitos por-
tugueses, considerado como um combate fratricida.
Apesar do fim do facto colonial, um facto que é
um pecado original da civilização europeia, a verdade é
que os contatos colonizadores deixam sempre marcas e
são ao mesmo tempo lugar de contradições supremas,
começos e abertura para outras coisas.
A obra de Mia Couto é provavelmente a única obra em
que aquilo que foi uma tragédia escondida, da nossa parte,
aparece como vivida com uma naturalidade extraordinária.
Porque ele, caso extraordinário e raro, adotou
Moçambique como a sua nova nação e, já num capítulo
de uma simples perspetiva literária é extraordinário ima-
ginar que este jovem escritor e os outros seus pares, que
nas respetivas nações, são os ficcionistas, os poetas, os
romancistas, que, por milagre da história estão na hora
zero das suas novas vidas como nações independentes,
surjam, de algum modo, como os Homeros ou Heródotos
dos novos espaços e da nova inteligência.
Mia Couto é um poeta extraordinário, um grande es-
critor que, talvez como nenhum autor português, unifica
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por dentro e ao nível mais alto toda a herança da cultura
portuguesa em geral e sobretudo dos sonhos da nossa
língua que perdurou tantos séculos.
Ele é um elo vivo, não só de toda a tradição portu-
guesa, mas de todo o espaço da língua portuguesa, par-
ticularmente pela ligação extraordinária com o Brasil e
com os seus autores mais representativos.
Como autor de língua portuguesa, manteve e man-
tém com a obra de Guimarães Rosa o diálogo mais profun-
do ao nível de uma reinvenção, de uma recriação do dado
da língua habitual que ele transforma e recria como se an-
tes dele começasse ali a própria história: a sua e a do mun-
do em que vivemos. É igualmente alguém que tem um
tipo de imaginário que podíamos ligar a um outro grande
autor, desta vez não só do espaço português, mas do espa-
ço ibérico em geral, Juan Rulfo, o autor de Pedro Páramo.
Mia Couto é um dos maiores romancistas que co-
nheço, alguém que rasura o espaço natural que separa
aquilo do que é vivo daquilo que é morto, em função de
uma visão das coisas em que vida e morte estão tão con-
fundidas que não podem ser separadas umas das outras.
Num dos seus maravilhosos romances, A Varanda de
Frangipani, Mia Couto conta-nos a história de um morto,
mas um morto que é ao mesmo tempo um ressuscitado,
e com ele ressuscita todo o passado da língua portugue-
sa, todos os nossos mitos e toda a nossa memória, para a
reciclar em função das novas realidades, da realidade afri-
cana – a mais profunda –, aquela que ele vai adotar como
sua segunda pátria. Como se fosse um menino que desse
a essa língua só oral da velha África a sua primeira chan-
ce de poder ser partilhada para além dessa África, pelo
mundo inteiro. Bastava isso para justificar qualquer espé-
cie de prémio e espero que este prémio que hoje lhe con-
cedemos seja apenas um dos pequenos prémios do seu
percurso, coroado por outros, e que um dia seja um dos
autores de origem portuguesa tão universal como a sua
própria obra já o é hoje. Muito obrigado.

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INTERVENÇÃO PROFERIDA NA ENTREGA DO PRÉMIO
EDUARDO LOURENÇO (2013) A JERÓNIMO PIZARRO1

O mais natural seria que o Presidente do Júri deste


Prémio, o Senhor Reitor da Universidade de Coimbra, es-
tivesse aqui no meu lugar. É um pouco bizarro, não quero
que isto rime com Pizarro, que seja eu quem aqui esteja,
embora seja com muito orgulho e muita alegria que aqui
estou neste momento no dia em que se confere o Prémio
ao escritor e investigador, o Professor Jerónimo Pizarro.
Nem sempre me foi possível estar na Guarda nou-
tras ocasiões em que outras pessoas receberam este
Prémio e aproveito esta ocasião para saudar um dos pre-
miados que não tive ocasião de felicitar quando recebeu
este mesmo Prémio, o jornalista Agustín Remesal que só
agora tive a honra de conhecer!
A Senhora Vice-Reitora da Universidade de
Salamanca deu a tónica da situação muito particular em
que se encontra alguém que intitulou outro e o encon-
tra no seu caminho, que se a pessoa se heteronimiza de
maneira a podermos jogar indefinidamente o jogo dos
reflexos que essa heteronímia produz, por exemplo, po-
dia lembrar-me que além de ser o mais jovem dos he-
terónimos pessoanos, Jerónimo Pizarro também fosse
uma reencarnação do famoso conquistador Colombo
Pizarro, mas ele tem algumas razões próprias para em
seu próprio nome receber este Prémio que o Júri achou
bem conferir-lhe e que foi grato dar-lhe o meu nome e
quero saudá-lo dessa condição.

1 Revista Iberografias nº 9 (2013). ISSN: 1646-2858.


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Os pessoanos começam a constituir uma família
particular que se multiplica e este Prémio é a ocasião de
dar uma expressão concreta a uma das intenções que
me levaram, em tempos, através de passagem na altu-
ra em que se celebrava um centenário da nossa querida
Cidade, a sugerir a criação do Centro de Estudos Ibéricos.
Mas nunca imaginei que dessa simples sugestão, que
provavelmente nunca teria passado a efetivar-se se
quem de direito a não acolhesse, entre nós o Presidente
da Câmara dessa época, e igualmente isso me pare-
ceu importante para o futuro dessa sugestão que um
Presidente que eu muito admiro e estimo, o Doutor Jorge
Sampaio, tivesse acolhido essa sugestão e estivesse dis-
posto a incitar aqueles que me ouviram nesse momen-
to a tomá-la a sério. Ora nunca imaginei – que apesar
de tudo tenho pouca imaginação – que essa sugestão
aludisse, e a comparação é muito atrevida e um pouco
absurda, ao famoso arbusto de que fala o Evangelho, que
é muito modesto mas que cresce e onde veem pousar
as aves do céu aqui não serão propriamente as aves do
céu mas é já certo número de pessoas que, a partir deste
Centro e através deste Prémio, levaram o nome da nos-
sa cidade, e através dele um pouco do nome da nossa
própria cultura, não só ao espaço ibérico, a quem em
princípio se destinava, mas para além do espaço ibérico,
um espaço filho desta mesma Ibéria como é o caso do
primeiro destes premiados latino-americanos, o jovem
colombiano Jerónimo Pizarro.
A Colômbia já existia para nós não só aqueles que
amam, conhecem a América Latina, mas porque a
Colômbia teve a sorte de ter entre eles um verdadeiro
génio de ficção chamado García Márquez, que pôs com
outros grandes Latino-americanos, colocou a América
Latina na Galáxia da Cultura Universal. Quanto a Jerónimo
Pizarro, não sei exatamente quais os caminhos que o le-
varam a vir da sua América, da sua alta Bogotá, ao pé da
qual a nossa Guarda, a mais alta cidade do País, é uma
pequena colina – até aqui à nossa beira e até Portugal e a
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interessar-se como ele fez por Fernando Pessoa. São inu-
meráveis naturalmente os exegetas da obra de Fernando
Pessoa, e ele é o último mais conhecido com outro que
não é Latino-americano, mas é americano Zenith.
No caso de Jerónimo Pizarro depois de ter recebido
este Prémio, li nos jornais que ele tinha declarado que a
obra de Pessoa ainda não foi suficientemente explora-
da, que ainda há, por assim dizer, uma outra arca, sem
arca invisível mas real ao mesmo tempo que continua
a merecer a atenção de quem se interessa pela obra
de Fernando Pessoa, além daquela que já foi publica-
da, e ele mesmo é um exemplo de que certas obras de
Fernando Pessoa e, particularmente, aquelas de mais
difícil acesso e compreensão que são as dos primeiros
tempos da vida e da obra de Fernando Pessoa merecem
até hoje. O nosso Premiado é autor de uma obra extre-
mamente interessante sobre as relações entre poesia e
loucura, um tema que diz respeito a Fernando Pessoa,
por Pessoa ter vivido toda a sua adolescência com uma
espécie de fascínio mórbido e inquietante convicto de
que génio e loucura tinham uma relação íntima entre
eles, o que não era coisa nova porque toda a antiguidade
já tinha tido essa perceção. É ao estudo pormenorizado
desse fascínio, quase tentação, de que Jerónimo Pizarro
consagrou um ensaio notável que bastaria e basta para
merecer o Prémio. Fernando Pessoa é um poeta, hoje,
universalmente conhecido e não será a última vez que
alguém se debruça sobre ele, convicto e com razão, de
ter acrescentado alguma coisa às exegeses de outros
mais velhos e já alguns deles desaparecidos, outros em
vias de desaparecimento mais ou menos crepuscular.
Fernando Pessoa, ele próprio, referiu num poema a es-
pécie de ciúme, quase de raiva que ele tinha por saber,
como ele diz, que o menor dos seus versos seria mais
eterno e mais perene que ele próprio e que já há mui-
to tempo a sua memória, a não ser aquela inscrita nos
seus próprios versos, teria desaparecido mas os versos
continuariam, como se tivessem uma existência em si
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que ele nunca realmente alcançaria, porque nós somos
eternamente efêmeros ou efemeramente eternos. E é
verdade que há um drama, um drama intelectual, ainda
mais doloroso do que este ciúme do poeta de si mesmo,
por aquilo que ele criou, que a dos seus críticos dos seus
exegetas. Pode perder-se uma vida inteira ao serviço de
pessoas convencidos de que deciframos o seu misté-
rio e quando estávamos tão contentes de ter decifrado
o mistério ou enigma, vem outra geração que propõe
um outro enigma e assim sucessivamente. Aquilo que é
consolador, para quem escreve um poema verdadeira-
mente digno desse nome ou uma ficção, é qualquer coi-
sa que garante a alguém subjetivamente uma espécie
não só de alegria criadora da mais consoladora de todas
mas uma espécie de eternidade sensível. Mas um crítico,
uma exegese, nunca está seguro disso, pois ele escreve,
passa uma vida dedicada realmente ao estudo ou à de-
voção com o outro e depois outras devoções relegam-
-no para o seu passado. É natural que cada geração que
vem tenha sobre os grandes autores a sua própria visão
e que sobre essa visão a exegese daqueles que os pre-
cederam se torne menos clara, ou mesmo perca a força
que já teve. Provavelmente, algum dia, outros autores,
mais novos ainda que ele, escreverão ou reescreverão o
que ele já escreveu sobre essa vida imaginária, que to-
das o são, mas a de Fernando Pessoa é voluntariamente
e só pura imaginação.
Em todo o caso, é grato para quem está no pas-
sado dessa exegese, como eu, receber a companhia e
o reforço dum jovem exegeta com as suas novidades.
Provavelmente, todos os críticos têm essa missão de en-
terrar aqueles que os precederam com flores, e esse é um
belo enterro. É bom que os mais jovens renovem aquilo
que os mais velhos tentaram fazer e o nosso Premiado
é tão jovem que pode ainda conhecer o destino daque-
les que o precederam. Ele está de parabéns e tenho a
certeza que não só o estudo de Pessoa, mas o estudo
de outros poetas merecerá dele a mesma atenção que
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ele dedicou já a Fernando Pessoa. Parabéns, meu caro
Jerónimo Pizarro!
Parabéns e agradecimentos por ter incluído na
galáxia Pessoa um espaço que até agora era um espa-
ço possível, mas não real. Passou para o outro lado do
Atlântico a língua espanhola, onde já estaria para po-
etas, mas agora é um jovem colombiano latino-ameri-
cano que consagra o melhor do seu esforço ao estudo
do nosso poeta, que não tem pátria senão a pátria que
ele próprio cedeu escrevendo os versos que escreveu.
Mas é bom que na língua espanhola do outro lado do
Atlântico ele dê a conhecer mais do que até agora se co-
nhecia, o Fernando Pessoa, e isso justificaria que só por
isso o Centro de Estudos Ibéricos tivesse sido inventado
e criado. Os meus agradecimentos.
 

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INTERVENÇÃO PROFERIDA NA ENTREGA DO PRÉMIO
EDUARDO LOURENÇO (2014) A ANTONIO SAÉZ DELGADO1

Nasci vizinho da Espanha, numa fronteira que me


define e da qual sou pertença. O meu avô tinha uma pro-
priedade na linha de fronteira e nós gostávamos de fazer
como o Charlot no filme, e passar, ao mesmo tempo, os
dois lados da fronteira, para ocupar, virtualmente, os dois
espaços. Uns espaços que não sabíamos o que signifi-
cavam na ordem da História e, sobretudo, na ordem da
política e da ideologia naquela época.
Quanto ao tédio, que foi aqui evocado pelo
Sr. Presidente da Câmara, é uma ordem de considerações
de ordem genérica, que resume, em si própria, uma cer-
ta maneira de pensar a essência daquilo que nós somos:
seres que vivem no tempo e que se definem através da
sua expressão temporal. O tédio é exatamente o contrá-
rio, um tempo suspenso, um tempo que não tem sentido
interior, um tempo vazio, e isso é que o torna insupor-
tável. Dos três êxtases temporais clássicos, agostinianos
ou pós-agostinianos, não é tanto o passado, ou mesmo
o presente que nos define. O que nos define e nos dá
algum sentido é a flecha do futuro. Somos fundamental-
mente seres futurantes, mas, ao mesmo tempo, também
somos memória.
O Poeta que hoje aqui homenageamos e cuja obra
vai ser abordada de uma maneira séria e atenta pelo
meu amigo e filósofo João Tiago, é um poeta cuja te-
mática fundamental e central é o que nós somos como

1 Revista Iberografias nº 10 (2014). ISSN: 1646-2858


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memória. É claro que isso faz parte da lírica universal,
mas no caso dele, surpreendeu-me a tonalidade parti-
cular como trata este tema. No seu livro “Eu menos yo”,
um título já em si magnífico e um tema de modéstia
suprema, de um eu que não está cheio de si próprio, um
eu que tem mais atenção àquilo que nos falta, do que
aquilo que nós somos ou que pretendemos ser. E não é
por acaso que ele, nesse seu livro, evoca um dos grandes
poetas que nós comemorámos aqui na Guarda em 2010,
Manuel António Pina.
Debruço-me sobre um livro intitulado “Ruínas”, um
título extraordinário num mundo onde os acontecimen-
tos se superam uns aos outros, sem tempo sequer para
podermos dar conta daquilo que está a acontecer, em
que todos os dias é como se o mundo nascesse na hora
zero e se substituísse pelo outro. António Sáez tem a co-
ragem de intitular o seu livro de poemas “Ruínas”, uma
temática que não é estranha à nossa história da poesia
ocidental. No momento em que a Europa entrava no que
se chamou fase da luz, em relação à outra fase anterior,
que teria sido uma espécie de trevas ou de obscurantis-
mo, há um conjunto de poetas nórdicos que se dedica-
ram à exploração das ruínas. Ruínas que eram contem-
porâneas com a ideia de progresso naquele a que se
chamou o Século das Luzes. E em pleno Século das Luzes
a Providência, ou a falta dela, fez com que os homens vi-
vessem o Terramoto de Lisboa, que pôs em causa o sen-
timento que tínhamos em relação à Providência e a um
destino favorável à Humanidade.
Vivemos hoje numa espécie de Las Vegas planetária,
num espetáculo permanente que não tem outra justifi-
cação senão o próprio espetáculo, cada vez mais surpre-
endente e fosforescente, sem tempo para que aquilo que
era antigamente um vagar comum da humanidade pos-
sa ainda ressentir-se como qualquer coisa mais natural e
mais profunda do que esta simples entrega ao momen-
to que passa. Não sendo novo, o tema das Ruínas é um
tema eterno do tempo que passa e liricamente não se
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ocupa mais do que isso. O nosso Camões lá diz, num ver-
so conhecido: “O tempo que tudo desbarata…”. Ao tem-
po que tudo desbarata consagra o nosso Poeta as suas
meditações numa tonalidade suave.
A melancolia é a cor verdadeira do tempo verda-
deiro, que é aquilo de que somos feitos e nos mata e
dissolve. António Sáez descreve-o de uma maneira mui-
to calma e suave, embora logo no primeiro texto desse
livro ele diga: “Lo sé. El tiempo todo lo devasta. Es vano
este empeño de transitar cada día un paisaje de casas
desoladas como animales heridos. Lo sé. El ruido de la
nostalgia se hace insoportable. Camino de una estación
a outra del infierno.”2
Não é propriamente uma receção triunfal que o poe-
ta abre. Todos os poemas são, no fundo, uma luta interna
entre o poético e o não poético, aquilo a que chamamos
prosa, sendo que a última palavra desta é alegria. Quem
quiser ler António Sáez terá de refazer este percurso que
é murmurado e familiar, e sobretudo, que é uma espécie
de voz misturada com uma outra, que se sente que seja
voz interna de toda esta visão. Uma outra presença mais
suave, que encanta o poeta e lhe dá verdadeiro sentido.

2 Antonio Sáez Delgado, in Ruinas


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INTERVENÇÃO PROFERIDA ENTREGA DO PRÉMIO
EDUARDO LOURENÇO (2015) A AGUSTINA BESSA-LUÍS1

Agustina Bessa-Luís não é apenas uma escritora


entre outras, embora das mais célebres da Literatura
Portuguesa.
Há muito que para todos aqueles que pertencem à
geração a que eu também pertenço (por contiguidade e
nada mais...), Agustina Bessa-Luís foi percebida como um
caso à parte dentro da história da Literatura Portuguesa
do século XX. Quando publicou a sua famosa “Sibila” ti-
vemos a impressão de que nada havia de comparável
àquele livro, que ela, ainda relativamente jovem, tinha
escrito e que modificou a perspetiva que podemos ter
sobre a leitura – não só da literatura contemporânea, dela
e daquilo que a sucede – mas de toda a nossa Literatura.
Nestas coisas de talentos ou génios diversos do alto
reconhecimento, só Agustina podia merecer o título de
génio. Agustina é, verdadeiramente, não só uma natu-
reza genial no sentido, no grau de imprevisibilidade, de
originalidade da sua imaginação, da sua escrita, mas
também qualquer coisa ainda mais rara, uma espécie de
abundância inexplicável, de torrente indomável acerca
de uma experiência ao mesmo tempo limitada como é
a de cada um de nós. Seria como se o génio da espécie
e, sobretudo, o génio da própria memória da Literatura
e Língua Portuguesa, se tivesse concentrado nela e que
nada pudesse realmente inscrevê-la de uma maneira tra-
dicional ao lado de outras, tal é a sua fulgurância, o seu

1Revista Iberografias nº 11 (2015). ISSN: 1646-2858


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sentido das contradições profundas que são todo o des-
tino humano. Ela não é uma filósofa, é mais do que isso!
Lembro-me que, em tempos, numa sessão dedicada a
Fernando Pessoa, no Porto, alguém passou um papeli-
nho com a pergunta “qual é o maior poeta português?”,
que circulou nas mesas, e foi espantoso que alguém ti-
vesse escrito “Agustina Bessa-Luís”, que não passa por
ser um poeta no sentido formal da palavra. Mas quem
escreveu isso teve a consciência muito forte do que esta-
va pensando, a expressão que lhe convém é: um imenso
poeta, que é a categoria máxima de quem escreve.
A genialidade é a capacidade de ver para além do
que nós vemos normalmente e de confabular isso em
mitos, em histórias, em evocações, em criações de figu-
ras que são, à primeira vista, como uma espécie de delírio
sagrado. Basta lermos umas páginas de Agustina para
entrarmos nessa torrente que não tem precedentes na
história da Literatura Portuguesa e não sei quantas terá
realmente no futuro.... Comparando com os nossos gran-
des homens de escrita do passado, não vejo melhor com-
paração que com o universo de António Vieira. Para mim,
estas são as duas figuras mais extraordinárias em maté-
ria de criação propriamente literária, porque incontrola-
da, e o paradoxo é que não se esperaria que fosse uma
mulher portuguesa dos meados do século XX.
Escrevi, em tempos, sobre Agustina Bessa-Luís, que
ela pertence a uma constelação bem precisa na área de
onde emerge. Ela não vem das capitais, vem do Norte, da
parte mais arcaica e mais profunda, historicamente fa-
lando, do nosso pequeno país e grande país. Ela vem do
Norte e vem também da Ibéria. A sua personalidade, essa
espécie de genialidade torrencial, absoluta, essa espécie
de génio da ficcionalidade, vem também das raízes do
sangue espanhol que corre nas suas veias. Esse sangue
só tem uma encarnação maior da nossa Península, que
se chama Cervantes. Agustina é uma Cervantes, mas, ao
mesmo tempo, uma Sherazade que conta, não só a his-
tória do seu pequeno mundo, um pequeno mundo que,
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como para outros grandes escritores, se torne resumo de
todo o mundo porque, efetivamente, em cada pequeno
mundo a humanidade está sempre toda presente. Mas
não queria fazer mais considerações em volta do génio,
porque basta ler uma página para perceber o que ela é.
No seu último livro “O elogio do inacabado” o título diz
tudo: o livro está realmente acabado, mas é um aca-
bado sem fim e, ao mesmo tempo, um adeus sem fim
que Agustina faz à Literatura e à sua própria vida. Uma
página ou duas bastam para que mergulhemos, sem
preparação de espécie alguma, no que são os textos e
a realidade da literatura e num universo em particular
que é o dela. Começo com o seu último livro, intitulado
“Homens e mulheres”: «As coisas grandiosas devem ser
narradas de uma maneira simples; as coisas mesquinhas,
de uma maneira subtil. Outras há, porém, que de míse-
ras ou soberbas, não se lhes encontra rosto. A existência
tem um móbil para cada uma das criaturas. Não é a lei da
sobrevivência que as move, nem a da autodestruição tão-
-pouco. São as coisas vividas, os tempos, as mudanças.
Efeitos de amor e ódio os desenharam ao natural, que é o
esmero da alma. Efeitos de amor e ódio. Como na peça de
Calderón. Trata-se nesta história duma mulher a quem a
culpa não humilhou, porque fez dela a imolação ao terror
dos outros. Uma mulher que eu conheci.
Imaginai, não sei, um lugar pedregoso e feio, com
carvalhas antigas plantadas entre penedos saibrentos.
Um riacho que parecia correr sobre um leito de sal bor-
bulhava no fundo dum verde precipício. As vides soltas
pendiam dos tristes lódãos, as enxurradas abriam valas
fundas nos caminhos. Um caminho – o resto eram tri-
lhos de mulas onde se desfilava a sinistra processioná-
ria, a bicha dos pinheiros. Os seus novelos como que vi-
drados viam-se nos ramos; elas iam através das matas,
em grandes fitas aveludadas. Pareciam ser atraídas por
motivo mais poderoso que o da sobrevivência, porque
transpunham os pinhais onde dispunham de farto ali-
mento, e não paravam nunca. O pólen amarelo que as
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revestia ficava no chão como enxofre vertido. Acontecia
isto na Primavera.
Por ali ficavam os moinhos. Dominavam o vale como
fortalezas, como casamatas, iguais àquelas que se veem
nos Alpes Marítimos ao lado das pontes bombardeadas
que jamais foram reconstruídas.»
E são estas passagens absolutamente imprevistas
e tipicamente oníricas como se fossem realmente pura
fantasia que fazem esta mistura de hiper-realismo, não
é? E de sonho:
«Havia ali um pouco dessa hostilidade fracassada e
sem objeto. Os moinhos pareciam conter, em vez de mós
titubeantes na sua moagem, em vez disso e de cestos
feitos de silvas e palha painça, rebeldes fuzis silenciosos.
Mas eram apenas moinhos.» Depois invocando um per-
sonagem: «Agora, retalhada a quinta, os moinhos tinham
rendeiros, o Abel Seco, homem espesso de juízo, enorme,
de rosto redondo, aluado e bonito. Cem anos de vida len-
ta, rochosa, sem vizinhos, fizeram-lhe a família circuns-
pecta, de falas escassas. A solidão dera-lhe uma candura
fria, um certo espanto do olhar que arremedava o senti-
mento. Aos quarenta anos Abel Seco era o homem muito
perfeito de semblante grave, mais turvo do que risonho.
A mulher apagava-se muito ao lado daquele Moisés mo-
leiro. Era franzina, de expressão distraída por dores anti-
gas meio esquecidas. Duas lindas filhas tinham-lhe mor-
rido, já moças; tinham morrido encostadas ao seu peito,
compostas, tristes, mas não saudosas de nada. Elas assim
o diziam: “-Já não vou deitar as flores à Carminha, que
casa em março...” Era como uma falta de que cada uma
acusasse, a sua falta nessa manhã de bodas, com o grupo
das jocistas de blusa azul, atirando aos noivos camélias
desfolhadas. O pórtico do mosteiro romano apresentava
não sei que esplendor robusto, como uma condecoração
de pedra, posta como horizonte daquele grupo absorto
que posava para os retratos. (…)
Ali viveu Sousa Cardoso, mais além o Nobre, am-
bos contratados cedo pela morte, ambos vagabundos
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envergonhados como são os portugueses de bem.
E Pascoais, contrito dalgum pecado celeste, viveu tam-
bém nos próximos lugares, narrando a infância de Deus
em versos transidos de orgulho que bem personificava
a humildade. Ali, ali, os ventos dobram os ciprestes dos
jardins mais mortuários do que os próprios cemitérios.
O vento sibila por sob as portas principais dos casões
abandonados onde as últimas obras pressagiaram a
morte do velho amo. Fecharam-se as portadas, cresce-
ram demasiado as guias das roseiras, os tanques cobri-
ram-se de lentilha verde. Morreram envenenados os mo-
lossos acorrentados, e a sua casota apodrece com repas
de palha estripadas do ninho. A casa vazia de um cão
é mais confrangedora do que a casa fechada pelo luto.
O guardião despedido ou morto como que imprime maior
deserto ao recinto outrora vigiado. Deserta de amigos, de
cheiro, de acontecimentos. Portas que nunca tinham tido
cor que a elas chegasse, porque eram abertas, de par em
par. E delas se passava às cozinhas amplas e chispantes,
com fornalhas esbraseadas e lares borralhentos onde
apurava a comida com uma lentidão sumarenta e ditosa.
Porém, em profundos cantos, lamentamos o êxodo das
províncias, a terra que se exige industriosa compensação
deixada talvez ainda a esse amor censurado dos seus ti-
ranos desiludidos. É ainda a mesma e nós não. Somos os
mesmos e ela não será mais igual. Algo se decompôs, algo
se dissolveu no coração da terra. Os lugares existem, as ár-
vores, as mais belas, foram protegidas e derramam a sua
sombra escura. Mas talvez entristecêssemos, ou perdês-
semos de facto os olhos de ver, como diziam os antigos.
Ou então tudo deve ser assim. Já nos pesa o espírito para
o leve cargo do passado, certos quadros perdidos onde
estavam ainda todos aqueles que amamos.»
Isto é Agustina. Não é uma página, milhares de pá-
ginas de Agustina, são iguais a esta página. Uma pági-
na destas que muitos escritores podem escrever, mas
milhares destas páginas?! Não conheço nenhum!

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INTERVENÇÃO PROFERIDA NA ENTREGA DO PRÉMIO
EDUARDO LOURENÇO (2016) A LUIS SEPÚLVEDA1

Nas páginas que antecedem o livro famoso que se


tornou uma espécie de referência quase mítica, “O velho
que lia romances de amor”, há uma frase que precede a
história que diz assim: “Sou um escritor mas não tenho
palavras para contar o que se sente numa rede, no meio
da Amazónia, quando a noite envolve tudo e a chuva cai
sem piedade”. Não tenho esta experiência da rede para
entrar em considerações sobre este belo romance, mas
estive uma vez na Amazónia, que não é como estar uma
vez em Cacilhas ou no Norte do nosso pequeno País.
Lembro-me muito bem o que é estar na Amazónia só
por uma noite e é como se assistíssemos a um apocalipse
parecido com o nascimento do próprio mundo. De ma-
drugada, ouve-se um ruído imenso como uma espécie
de um tremor de terra subterrâneo e acorda-se para des-
cobrir que os animais da Amazónia acordam ao mesmo
tempo, num barulho ensurdecedor de fim do mundo.
É verdade que, culturalmente falando, não tenho
uma experiência de outro mundo como tenho da velha
Europa. Essa Europa que atravessa, neste momento, um
momento de perturbação, que se quer desfazer numa
espécie de um caos que não se sabe para onde vai. De
repente, todos esses mundos que nasceram da Europa
ou da sua ação aparecem ou como um recurso possível
para o apocalipse se manifestar ou para serem de facto
um ponto onde os Ulisses europeus se possam refugiar

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(o maior de todos já está refugiado, domina o mundo, e
chama-se Estados Unidos). O outro mundo com um pas-
sado mais modesto, mas grandioso chama-se América
do Sul. É verdade que a América do Sul não é apenas um
acontecimento geográfico entre outros, foi o começo de
uma nova leitura do conhecimento do planeta que nós
habitámos e foi, sobretudo, o triunfo de uma temporalida-
de que nos era totalmente desconhecida e que não tinha,
nem podia ter, leitura. No imaginário dos diversos autores
latino-americanos, sobretudo os das gerações dos países
independentes, não fazem outra coisa senão instalarem-
-se nesse tempo, que não é tempo europeu, tempo que
nós lhe demos, quando Descobridores portugueses ou
espanhóis atracaram do outro lado do Atlântico. É qual-
quer coisa que não tem nome, uma espécie de tempo
zero. Nós levámos para o outro lado do Atlântico, no sécu-
lo xvi, a nossa cultura, a nossa língua, a nossa temporali-
dade e nomeamos as coisas com as nomeações históricas
do nosso próprio passado de ocidentais europeus. Mas fi-
cou por nomear esse tempo que já lá estava antes que
nós chegássemos. Esse tempo que foi uma perplexidade
para algumas criaturas excecionais que tiveram que se
enfrentar com diversas maneiras de ser de cultura de hu-
manidade que era representada pelos índios da América,
como foram batizados. Já nesse batismo é tudo um en-
gano que nunca mais será reposto. A única pessoa que se
preocupou até hoje foi Las Casas, que se admirou imenso
com os evangelistas portugueses que quando chegavam
a algum sítio a única coisa que faziam era pregar numa
árvore o que era um resumo da História do mundo, levada
pelo ocidente cristão. Claro que os índios não podiam ler
essas missivas, por isso, Las Casas pensa que tal era um
ato irrisório dos mais absurdos. Na verdade, essa América
Latina, apesar do engano ou do erro do não conhecimen-
to da realidade, fala as línguas nativas desses países. Raros
livros escritos por latino-americanos me deram a impres-
são – como diz Pablo Neruda no seu “Canto general” – de
recuperar, de outra maneira, essa nova visão do mundo
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do lugar que não é o lugar universal, absoluto e abstrato
importado do Ocidente.
O romance de Luis Sepúlveda mostra uma visão in-
terna porque com a história do seu “velho que lia roman-
ces de amor”, não conta só uma história com o mais uni-
versal dos sentimentos que movem a ficção, mas recria,
de algum modo, uma visão humanizada. De facto, não
sendo militante ecologista, embora seja militante na or-
dem política, Luis Sepúlveda compadece-se com o outro,
o outro de si mesmo. O velho é alguém em quem ele se
reconhece como sendo aquele que se desconhecia até
ao encontro mágico, porque esse velho tem um segredo:
quando nos é apresentado nas primeiras páginas, diz-se
que possuía uma espécie de secretária bizarra, altiva, na
qual estava um certo número de livros que eram peque-
nos romances de amor – a maioria deles de origem euro-
peia. As histórias de amor são sempre uma sub história.
No tempo em que o romance se passa era assim, mas
hoje é ainda mais complicado.
A história de “O Velho que lia Romances de amor”
vai mais longe e transforma aquilo que foi uma espécie
de exceção num tempo excecional, sem leitura possível,
em qualquer coisa que é do nosso tempo. A única coisa
que julgo que é importante naquilo que fazemos, naqui-
lo que somos, naquilo que o mundo é ou pretende ser é,
de facto, reconhecer a sua intrínseca e genérica humani-
dade. Quem ler este livro terá a confirmação de que isso
é feito não apenas em termos de grande conhecimento
do outro em quanto tal, mas que é uma espécie de con-
tinuação da primeira grande epopeia da América Latina
que é a “Epopeia” de Pablo Neruda. Este livro repercu-
te toda essa grande sabedoria, autóctone do continen-
te que tem a sua originalidade: a América Latina. Este
Continente herdou de um dos países que o descobriram
que o mundo é um todo e o descobridor dessa totalidade
foi um português chamado Magalhães, que dará o nome
a um estreito, até então impenetrável. Magalhães é o pri-
meiro que informa que o mundo é realmente redondo.
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Este livro é não só um belo romance de amores, no
sentido mais forte do termo, a invenção de um persona-
gem extremamente tocante, de uma sobre humanidade
no mundo desumanizado e, por isso mesmo, felicito o
Júri (e identifico-me com ele) por ter atribuído o Prémio
a Luis Sepúlveda.

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INTERVENÇÃO PROFERIDA NA ENTREGA DO PRÉMIO
EDUARDO LOURENÇO (2017) A FERNANDO PAULOURO1

Encontro-me hoje numa situação especial, para fes-


tejar o Prémio que foi concedido, com o meu nome, ao
escritor Fernando Paulouro, que felicito e abraço. Este é
um prémio diferente de todos aqueles que até hoje fo-
ram concedidos; conforme o desígnio voluntariamente
utópico e utopista da perspetiva de uma reconsideração
do estatuto cultural, histórico e civilizacional da Península
Ibérica. Trata-se de um prémio que foi concedido a al-
guém que é de uma geografia cultural e de um estilo
relativamente mais modesto; essa modéstia que podia
ser o sinal de uma não modéstia, se a compreendermos
no seu verdadeiro sentido. Não é porque se nasceu numa
aldeia modesta ou num sítio assim considerado no ponto
de vista de dominação de outros olhares que podemos
esquecer que não há hierarquias nessa compreensão do
que é um homem na sua humanidade e na sua essên-
cia. Todos os homens são, não só na nossa tradição cristã
de séculos, filhos de Deus, ou iguais entre si, mas todos
eles são, em si mesmo, uma realidade que não precisa
de ser autojustificada por olhares de outros que a situem
no tempo. Lembro-me de uma frase do meu Filósofo e
Pensador preferido, Montaigne: “cada ser humano é toda
a condição humana”. Não há uma condição humana ide-
alizante que subordine outras porque isso introduziria,
de facto, que nós não temos essa espécie de filiação mí-
tica, real ou vidente de criação divina, mas que seríamos

1 Revista Iberografias nº 13, 2017) – pág. 320 e 321. ISSN: 1646-2858


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enquadrados numa espécie de inscrição, por assim dizer
zoológica ou parecida com isso, que nos reenviaria para
um status que não é compatível com o que chamamos
“a essência humana” ou a dignidade humana.
Fernando Paulouro é um escritor da Beira, que fala,
escreve e reescreve para si próprio o que é a sua vivência
no meio do mundo que é o nosso, da sociedade que é
nossa, e que, querendo ou não querendo, é o exemplo
dessa não relatividade do cultural, pois não há culturas
que subordinem outras. A cultura é a consciência máxi-
ma que o homem pode obter da sua própria condição de
único e insubstituível. Temos alguém que escreve, meta-
foricamente, em “beirão”, ou seja, a partir de uma expe-
riência de vida de dados culturais que contribuíram para
que fosse quem é, tendo, assim, uma carreira não oficial
por excelência que é a do jornalismo, a casa cultural onde
aprendeu o que era de facto uma leitura do mundo que
nos cerca, que nos interroga, que nos pede contas, e de
que ele foi, numa certa fase da vida juvenil, uma espécie
de cronista. Fernando Paulouro é um cronista de con-
vicção e de exceção: o que ele faz é uma espécie de um
diário do que tem sido a sua observação e a sua leitura
do Portugal recente, do pós 25 de abril até aos dias de
hoje. Deliciei-me, naturalmente com aquilo que me pa-
receu que era o mais iluminante e curioso, ainda atual e
continuamente atual e, sobretudo, indiretamente, uma
prova de que a cultura não está em sítios privilegiados
que determinam círculos, que determinam o olhar dos
outros e o condicionam, mas que é um dom natural que
alguns exprimem com maior ou menor felicidade. Temos
um cronista muito a par dos diversos problemas que a
sociedade pós 25 de abril tem posto ao País e isso, em
linguagem do pensamento muito próximo daquilo que é
a vivência que pode ter a comunidade mais próxima de
nós, que é a nossa comunidade primeira que tentamos
compreender para nos compreender a nós próprios. Mas
esta é uma espécie de lição curiosa contra o que se podia
chamar uma certa forma de elitismo transcendente ou
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do que se julga transcendente. Quando, afinal, nós so-
mos seres capazes de dar conta das razões dos nossos
procedimentos, de explicitarmos a nossa capacidade de
escolhas livres, certas e justas. É tudo isso que se encon-
tra em qualquer página que possamos abrir de Fernando
Paulouro que, ao mesmo tempo, curiosamente, tem
uma aptidão filosófica natural, simples, que me surpre-
endeu imenso. Eu próprio estou a cometer o pecado de
que acuso outros, que já julgam que têm a verdade no
bolso. O livro “Crónica do País Relativo – Portugal, minha
questão” é muito interessante porque é uma espécie de
crítica, deste “travers” muito lusitano de nos auto depre-
ciar, que as coisas nunca são como as dos outros, as dos
outros são sempre melhores. É uma espécie de “transfer”
de um hábito, de um reflexo de inveja muito natural das
pequenas comunidades que se conhecem demasiado
umas às outras e, por conseguinte, não consideram que
os outros são deuses. É um País que não precisa de uma
autocrítica sistemática, pois ela exerce-se na menor das
aldeias e isso não é só negativo; é o sentimento de reser-
var uma parte daquilo que nos é devido no diálogo com
os outros e não passar o tempo à espera de revelações
extraordinárias que nos coloquem ao coberto das nossas
próprias responsabilidades.
“Os meus leitores perdoarão que traga hoje, aqui, a
estas notas cursivas um pedaço de história vivida. Aquele
confronto com o imediato, que nós, na aventura cósmica
que nos coube em sorte, pequena partícula existencial
do tempo absoluto, que costumamos designar por co-
modidade na narrativa biográfica, como situações limite”.
“Quem imaginaria que o meu amigo Paulouro, que não
tem um curso académico típico, mas que se formou por
si próprio, tinha esta capacidade de se explicar como um
filósofo, com tudo o que isso significa”. Mas a importân-
cia destas vivências só tem interesse quando, para lá da
reserva pessoal, os acontecimentos, no universo da sua
factualidade, nos transcendem como fenómenos do en-
riquecimento humano. A experiência alcança expressão
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coletiva sempre que as situações nos obrigam a refletir
mais fundo sobre a condição humana e a olhar para os
outros com olhares diferentes”.
Paulouro faz menção a uma nova capacidade huma-
na recente de atenção ao outro que, até há poucos anos
era muito relativa e que, de algum modo, progrediu. Por
exemplo, na minha aldeia quando alguém estava doente
era preciso ir a pé chamar o médico a 9 km, e a mesma
coisa para o senhor abade se precisássemos de confis-
são e podia estar ou não, e ele então faz aqui menção do
tratamento extraordinário de qualquer pessoa que ago-
ra frequente um dos hospitais mais modernos. Estamos
sempre na ideia de que estamos na cauda da história,
mas provavelmente há muitas caudas e muitas maneiras
de estar na cauda da história, mas nós estamos neste sí-
tio que é o nosso e devemos, pelo menos, ter olhos para
distinguir naquilo que é a nossa experiência aquilo que é
aceitável do inaceitável e isso bastará.
Parabéns, Fernando Paulouro!

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“A cultura também
é o que separa e
misteriosamente
desfaz os laços
daquelas vivências
sem verbo, que as
letras das coisas
visíveis, do tempo de
criança, em silêncio,
nos ensinavam.”

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© Câmara Municipal da Guarda

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REGRESSO SEM FIM

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QUEM VÊ O SEU POVO VÊ O MUNDO TODO

Intervenção proferida na Homenagem em S. Pedro do Rio Seco, orga-


nizada pela Associação Rio Vivo e pelo Centro de Estudos Ibéricos, dia
06 de agosto de 2011

Afinal o tempo, que ameaçava chuva, “escampou”,


como se diz aqui, em terras do Ribacôa – daquelas frases
que realmente são daqui e não de outro sítio, ao mesmo
tempo portuguesas e ibéricas.
Eu devia ficar calado, mudo e quedo como um pene-
do, segundo a imagem célebre dos Lusíadas, porque na
verdade isto é tão excessivo, tão desproporcionado àquilo
que eu realmente sou, penso ser e sinto ser, para merecer
este tipo de homenagens que, realmente, só o silêncio
seria conveniente para agradecer da maneira mais singe-
la, do coração, tanta simpatia e tanto afeto, para alguém
que nasceu nesta terra, há longos anos.
Antes de mais, começo a agradecer àqueles que
tiveram a ideia desta homenagem, que me parece re-
almente um pouco pleonástica, porque já fui suficien-
temente homenageado. É verdade que do mel as pes-
soas nunca se cansam e eu tenho alguma afinidade
com o mel porque, uma tia que eu referirei aqui, a quem
eu chamo a “tia dos provérbios” – a Sra. Conceição dos
Santos, mulher sem letras mas de uma dignidade ex-
traordinária – dizia um dos provérbios que eu apliquei a
mim próprio ou ela me aplicava a mim mesmo: “Quem
de mel se faz as abelhas o comem”. Desta vez as abe-
lhas não me devoraram, mas rodearam-me de tanta
doçura, que eu, de facto, fiquei sem raciocínio, sem pa-
lavras, para comentar um acontecimento desta ordem.
Quero agradecer à Associação Rio Vivo e ao Dr. Luís
Queirós, eles sim merecedores de reconhecimento, pela
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ação de mecenato para reanimar, quase no termo clí-
nico, uma aldeia que, apesar de ter séculos de história,
é hoje um espaço tão carente.
Agradeço, igualmente, ao caro amigo Guilherme
d’Oliveira Martins, que, de algum modo, tutelou cultural
e afetivamente a ideia desta homenagem.
Agradeço ao Centro de Estudos Ibéricos, uma ideia
e uma sugestão minha de há alguns anos e que é hoje
uma realidade. Essa ideia que surgiu quando eu tinha
uma crença ainda na sua plenitude, e que continua a
existir de outra maneira, de que tínhamos entrado num
outro tempo europeu, em que as antigas rivalidades, as
antigas hostilidades, mais ou menos justificadas nos seus
tempos, tinham desaparecido e que portanto era preciso
uma outra leitura, um outro comportamento no interior
da Península Ibérica e além do mais no interior daquilo
que nós pensaríamos que estava à nossa vista e em vias
de se cumprir: uma Europa sob o mesmo modelo, o mo-
delo da democracia, espaço de paz e espaço de sucesso.
Sonhos comuns às gerações praticamente desde o sécu-
lo xviii, que têm sonhado umas atrás das outras, sonho
de que não se pode desistir sem se desistir de tudo, do
sentido da nossa história, do nosso passado, mas que
têm dificuldade em cumprir-se e nós sabemos porque
estamos numa dessas horas, em que o futuro é menos
luminoso do que nós imaginávamos apenas, há dez anos,
por assim dizer.
Agradeço ainda a toda a Comissão que deu o seu
apoio a estas cerimónias; não vou nomeá-los, de nenhu-
ma maneira, mas queria destacar algumas pessoas, os
ausentes e os que se deram ao trabalho de vir de tão lon-
ge: o Presidente da Fundação Gulbenkian, em que tenho
a honra de ser Administrador Executivo, Emílio Rui Vilar,
os meus colegas, Marçal Grilo, Diogo Lucena e o antigo
Ministro, e meu amigo, Mariano Gago, Isabel Alçada e ou-
tras pessoas ilustres que estão nesta assembleia. Queria
igualmente saudar, com particular afeição, a presença
de alguém que me é muito caro, Pilar del Río, que muito
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admiro e que está aqui por ser quem é e só por estar ela
também está a presença de alguém que pôs Portugal no
mapa do mundo.
Saúdo igualmente o Sr. Bispo da Guarda, D. Manuel
Felício, e agradeço-lhe a sua presença. Eu sou um batiza-
do e nasci na cristandade, nesta terra de grande história
cristã, pelo que não vejo razão nenhuma para me rene-
gar, naquilo que é superior a mim, que me foi transmiti-
do por pessoas, gerações inteiras que estão atrás de mim,
que testemunharam uma certa fé, comportamentos e
que obedeceram a certos valores.
Vejo também nesta sala muitos intelectuais, que são,
digamos, da mesma família sociológica a que eu perten-
ço. Não é a melhor das famílias, mas é a nossa. Não os vou
nomear todos, mas estou a olhar aqui para o Prof. Gomes
Canotilho, estou a ver os meus amigos das letras, escrito-
res, o Almeida Faria, que embora seja de nova geração é
como se fosse um irmão mais novo, Manuel António Pina,
o meu amigo Manuel Alexandre e muitos outros que es-
tão nesta sala e que eu realmente saúdo e perdoem-me,
realmente, os respetivos esquecimentos.
Naturalmente que os meus familiares que estão aqui
não precisam que eu lhes agradeça porque eu sou eles e
eles são eu, sobretudo nesta circunstância. Vejo que está
também nesta sala alguém para quem tenho uma dívi-
da muito especial, a antiga Governadora Civil da Guarda,
Dra. Maria do Carmo Borges, a quem eu devo a mi-
nha interiorização cívica, a minha adoção como al-
guém que tem alguma coisa a ver com o distrito da
Guarda, se não em particular com esta aldeia que
aqui está. Provavelmente sem aquela cerimónia da
Guarda, nada disto, nada desta espécie de coisas teria,
realmente, acontecido.
Agradecimento por fim para aqueles a quem não sei
como agradecer, que são a maioria dos que estão tam-
bém nesta sala, gente de estatuto social, que é o estatuto
social mais próximo daquele que era o meu e dos meus
na minha infância e ainda hoje.
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Eu tinha um texto preparado, só que uma das mi-
nhas irmãs, sem o ler, decidiu que seria muito chato.
De maneira que nem sei se terei realmente a coragem
de o repetir. E o texto intitulava-se e vai intitular-se, pro-
vavelmente, “Quem vê o seu povo vê o mundo todo”,
que é também uma expressão dessa minha tia dos pro-
vérbios. Ela falava como o Sancho Pança pois tinha pro-
vérbios para tudo. O texto tinha um subtítulo, e vai ter,
naturalmente, que eu vou começar a ler:
“Quem vê o seu povo vê o mundo todo” ou “As ando-
rinhas” (esta parte, a segunda parte, é mais interessante).
A cerimónia desta tarde lembra-me um episódio dos
meus tempos de Coimbra, quando era aí estudante e co-
nheci um jovem poeta e escultor, de ambições desmedi-
das como se devem ter naquela idade, chamado Aureliano
Lima, que queria homenagear e glorificar alguns dos vul-
tos culturais literários de Coimbra do nosso tempo, dos
meados dos anos 40. Entre eles, gente de reputação na-
cional, como Miguel Torga, Paulo Quintela e gente que
deixou o seu nome na literatura contemporânea. Mas não
só esses vultos de Coimbra, mas também Beethoven – era
muito ambicioso – Beethoven e Nietzsche, acho que foi a
primeira vez que eu vi uma representação de Nietzsche,
com os seus famosos bigodes, apoteóticos e desafiadores.
E Aureliano Lima, que era meu amigo, conheci-o
nessas idades, pensou que eu também era glorificável,
naquela idade! Provavelmente naquela idade, seria o
tempo mais justo. E fez-me um busto, um famoso bus-
to. Esse busto, o meu irmão Adriano, mostrou-o um dia a
essa minha tia que estava em Coimbra, que recuou, hor-
rorizada, como se tivesse visto um fantasma. Reação sã,
reação clássica, que é a que tem toda a gente que ainda
não está contaminada e corrompida por um certo pro-
cesso de edificação cultural. Nós não temos imagens, re-
almente, como Deus. E a verdade é que nunca se soube o
que fazer de tal busto, sobretudo eu. E que nunca foi ob-
jeto de exposição artística – talvez realmente o Aureliano
o merecesse – mas sobretudo não teve o futuro supremo,
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que seria para mim impossível de aceitar, de se exibir
numa praça pública.
Porque aceitei, então, agora, que essa homenagem
se fizesse em torno da bela estela de Leonel Moura? Que
é uma estela que me lembra o começo daquele filme fa-
moso do Kubrick, uma espécie de tábua da lei, do come-
ço, onde estaria contido o mistério do universo e que abre
para aquela fulgurância extraordinária do 2001 Odisseia
no Espaço. Esta é mais modesta, naturalmente, e não
tem realmente a pretensão de ir fazer a volta do Cosmos.
Mas é de um excesso já, nessa sua modéstia, que nada
me preparava ou me prepara para aceitar, embora o meu
primeiro gesto seja de o agradecer.
Então, por que é que eu corri o risco, sabendo que
isso ia ser feito, de me ver ali materializado, ou semi-ma-
terializado, já é melhor, correndo o risco de me conver-
ter em morto-vivo ou vivo-morto, quer dizer, em fantas-
ma de mim mesmo? Talvez apenas por isto, por tudo
isto se passar nesta pequena aldeia da minha infância,
provincial como eu, mas sem foguetes, que seriam re-
almente despropositados. Mas sobretudo por me ser
ocasião, não premeditada, de aproveitar para pagar, não
uma dívida, propriamente dita, mas sobretudo um re-
morso, um remorso que ninguém tem, nem seria lógico
que adivinhasse.
Eu sou autor de alguns livros, chamados ensaios.
Com alguns leitores no meu país, sobretudo no que se
chama o meio intelectual e que na minha infância era
mais reduzido do que é hoje. Sem vã glória, nem má
consciência incluo-me, ou os outros me incluem, nessa
sociedade miticamente sem classes, que a si mesma, em
certo momento e em língua russa se auto-designou, a si
mesma, como a “inteligencia”.
A mera lembrança de Diógenes ou de Rousseau, para
não me lembrar de Grouxo Marx, bastaria para não tomar
essa pretensão a sério. Mas nenhuma ironia me redime
de ser o que se chama um autor nada popular, natural-
mente, é um eufemismo. Em nada isso importaria se não
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significasse, como significa, que as poucas pessoas que me
lerão ou ainda leem, só ocasionalmente pertencerão, fun-
damentalmente, aos meus, aos da minha raça, aos da mi-
nha tribo dessa época, com algumas exceções. Separados
de mim, e eu deles, por aquilo que, mais do que tudo, nos
devia ligar, unir, nós que comungámos, em tempos, desse
famoso tempo da infância, do mesmo húmus, do mesmo
espaço, que bebemos das mesmas fontes.
A cultura, a chamada cultura, não é apenas aque-
la música celestial, onde nós vivemos ou somos vividos,
como se fossemos os anjos de nós mesmos. A cultura
também é o que separa e misteriosamente desfaz os la-
ços daquelas vivências sem verbo, que as letras das coisas
visíveis, do tempo de criança, em silêncio, nos ensinavam.
Em suma, não soube ou não pude tanto quanto
me pedia a exigência do meu coração infantil comuni-
car com os meus, por serem do mesmo tempo, herdei-
ros do mesmo passado, amassados no bairro obscuro, de
uma terra obscura e luminosa como todas, de uma aldeia
ignorada do mundo, e quase de si mesma, e que era o
coração do mundo, como todas as infâncias.
Nem toda a gente teve o privilégio de nascer na ci-
dade de Ulisses, na nossa bela capital, Lisboa, e ainda o
maior, de passear ou de ser o passeante imortal da Rua
dos Douradores, como Fernando Pessoa. Mas, mesmo
para ele, o sítio celeste do seu nascimento tinha a figura
de uma aldeia. O mesmo Pessoa, em versos que parecem
prosa, encontrou para todos o S. Pedro do mundo e o seu
rio anónimo, o estatuto sublime, só por ser o estatuto da
diferença. Comparando esse rio anónimo com vantagem,
com o rio dos rios nossos, o Tejo, que vai para o mundo,
que é universal, mas que é demasiado de toda a gente
para ser só, de algum modo, de nós mesmos e de um só.
Como todos sabemos, o sonho às avessas do maior dos
nossos sonhadores virtuais era de que os nossos sonhos, e
o Sonho, com maiúscula, não fossem de ninguém. Parece
o cúmulo da modéstia ou a suprema astúcia como a de
Ulisses, desejando-se ninguém, dizendo-se ninguém,
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para não ser devorado vivo pelo seu mítico carcereiro, que
é simplesmente o próximo que nos não vê.
Em matéria de invisibilidade, esta nossa aldeia, irmã
gémea de tantas da nossa província, ela própria tão isolada,
nós estamos servidos. Naquele tempo a nossa aldeia não
estava ainda, digamos, dissolvida como todas, num mun-
do real a que pertencia e hoje está talvez dissolvida, como
todos nós, numa espécie de esfera virtual, que de facto é
de toda a gente e de ninguém. São Pedro é uma velha al-
deia, anterior mesmo à nacionalidade, com séculos sem
memória celebrada. Terras de Ribacôa, que foram, como
as do Algarve, as últimas a fazerem parte do nosso terri-
tório. Nós somos, portanto, os mais jovens dos portugue-
ses, de algum modo, neste território que é uma parte da
raia, que nos separa do nosso secular vizinho. Vulnerável,
tantas vezes franqueado por ele, e apenas há dois séculos
pelas tropas de Massena. Na minha infância, a lembrança
dos franceses, das suas invasões ainda estava muito viva.
A minha avó, para nos mandar para a cama, quando nós
queríamos ficar com os adultos, dizia frequentemente:
“Alons alons, vamos à cama!” Uma surpresa, como é que a
memória, sem memória, é tão dura e tão persistente.
Na verdade, esta aldeia, como muitas das aldeias de
Portugal, não pertence ao que se chama a grande histó-
ria, com as suas crónicas memoráveis. Com atores e gente
célebre, celebrizada. Pertence mais aquilo que Unamuno,
o nosso famoso vizinho, o autor do “Sentimento trágico
da vida”, o nosso vizinho de Salamanca, chamava a intra-
-história. Quer dizer, a não história do comum de todos nós
e que é aquela que nós, os meus antepassados, viveram
durante séculos, sem que isso tivesse constituído para eles
uma tragédia particular. Estavam no mundo e tinham, na-
quelas épocas, um sentido apurado do que esse mundo
significava, o que lhes pedia e, portanto, essas questões de
hierarquização, de glórias no sentido histórico, mundano
do termo, eram para eles secundárias.
Desta terra, já aqui disse o Dr. Luís Queirós, que
era uma terra de grandes carências, naquele tempo. E,
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todavia, viva, muito mais viva do que é hoje, verdadei-
ramente. E isso é lastimável. Esses 700 habitantes eram
gente que vivia no limiar da pobreza, alguns confiados na
pobreza. Não havia, propriamente, mendigos. Os mendi-
gos não existiam. Os mendigos vinham de fora, como no
poema do Guerra Junqueiro. A pedir, com grandes bar-
bas, naquela altura. Mas não havia propriamente pobres
de pedir, realmente, entre nós, mas havia grande pobre-
za, mas havia também um sentimento do que era uma
comunidade e que essa comunidade tinha um certo sen-
tido, que espero que ainda hoje tenha, de outra maneira.
Os tempos mudaram. Esta aldeia, que parecia tão
isolada do mundo, naquela época, também o estava:
podia passar-se o ano inteiro que mesmo relações de
vizinhança, a cinco quilómetros, não se frequentavam
umas às outras. Só por ocasião de uma festa. Os únicos
sítios de relacionamento, já de tipo social, eram Vilar
Formoso e Almeida.
Em Vilar Formoso aparecia o comboio, o comboio
que nos trazia a Europa, o comboio que trazia as stars da
época, pintadas, que nós dizíamos ir ver como quem ia
ver anjos, quando calhava. E Almeida era a nossa capital
distrital, providencial.
A tantos anos de distância, os poucos anos, apenas
dez, que vivi verdadeiramente nesta terra, com um ano
que saí para a Guarda, parecem cada vez mais meus…
uma espécie de férias grandes, prolongadas. Mais tarde
tomaria consciência de que a minha situação era uma
situação um pouco privilegiada: eu era filho de um mili-
tar modesto, um sargento, mas um sargento era já a pas-
sagem para qualquer coisa que eu só mais tarde, quan-
do se começou a falar das classes e das suas hierarquias,
soube que era a “pequena burguesia”. Eu era um peque-
no burguês, nem era burguês, nem era pequeno, as duas
coisas ao mesmo tempo, situação realmente inconfortá-
vel, mas que constituía uma espécie de privilégio. Mas o
privilégio maior foi eu ser filho de alguém que, num oce-
ano de gente pouco letrada, tinha o gosto das letras, que
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ele tinha cultivado por si próprio, solitariamente, como o
filho maior de uma família que o tinha deixado aqui nes-
ta aldeia, justamente com essa famosa tia, que lhe terá
ensinado alguma sabedoria.
E esse pai que fez estudos de Comércio, ao mesmo
tempo que era militar no Porto, tinha uma mala pois saía
muitas vezes para fazer os seus tirocínios para seguir na
carreira. Todos temos a nossa mala, não é só o Pessoa, eu
também tenho a minha malinha, ou antes, a malinha do
meu pai. E nessa malinha havia o tesouro dos tesouros, de
toda a infância: um livro. Não era a Bíblia propriamente
dita, era só As Pupilas do Sr. Reitor e A Morgadinha dos
Canaviais, de um autor delicioso, maravilhoso, chamado
Júlio Dinis. Que era um autor que se dava nas escolas por-
que não era indecente, não era escandaloso e porque, de
algum modo, dourava um pouco a pílula das dificuldades,
das realidades grosseiras e cruéis do verdadeiro mundo,
do verdadeiro mundo real. Encontrei aí, caí nele como
Astérix na famosa poção, caí no Júlio Dinis, com algum
Júlio Verne à mistura, que também existia na arca, o que
foi cair numa coisa que eu só mais tarde soube que se
chamava literatura. Mas aquilo não foi realmente a lite-
ratura, mas antes entrar num universo mágico, de onde
nunca mais sairia, nem quero sair, nem há saída possível
quando se entra nesse reino de uma vez por todas e so-
bretudo cedo.
Eu não sabia nessa altura que esse Júlio Dinis era
uma espécie de Jane Austen, que nós não sabíamos que
tínhamos. E que continua a ser, com Garrett e uma parte
de Camilo, aquilo que mais retratou com fidelidade esse
país, que era um país que estava na sua transição e que
estava a entrar numa modernidade tardia. Estava no sé-
culo que inaugurou entre nós o liberalismo e, portanto,
estava a europeizar-se lentamente e docemente, à portu-
guesa e sobretudo à Júlio Dinis, como diria o seu irónico
admirador Eça de Queirós. Portanto, eu vivi nesse univer-
so; a minha Alice no País das Maravilhas foi realmente o
encontro com Júlio Dinis e com a literatura.
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Apesar de tudo, apesar desse encontro, apesar dessa
paixão pela leitura eu nunca serei, nunca fui outra coisa
na minha vida que um leitor, um leitor de tudo. Um leitor
compulsivo, opressor de nada, de nada de sapiências par-
ticulares, de saberes particulares. Fui um leitor e sou real-
mente um leitor. Mas, talvez por ser realmente esse leitor
eu não fui outra coisa, que provavelmente teria gostado
de ser. Ser alguém que deu a esta terra alguma coisa que
ela não tinha, um suplemento de imaginário, como só os
poetas ou os romancistas são capazes de dar. Como os
grandes nomes da minha geração, a Agustina, Vergílio,
Eugénio de Andrade, Jorge de Sena ou José Saramago
deram aos países, aos pequenos países, às pequenas
aldeias, onde eles nasceram.
Ou outros, de gerações mais novas, que também,
cada um deles, não para aldeias, já são filhos de vilas,
deram, como Almeida Faria ou a minha amiga, a auto-
ra de “Adoecer”, a Hélia, querida Hélia, que está aqui.
É sempre isto.
Portanto, é justamente isso que eu me sinto, a dívi-
da que eu sinto para este povo onde eu nasci, sobretu-
do para estes que estão agora aqui e que, me conhecem
de uma certa reputação, provavelmente exterior, que eu
tenho esse sentimento, realmente, de dívida. Porque na
verdade, além desse encontro com a literatura na minha
infância, que foi realmente decisivo para mim, foi tam-
bém decisivo ter visto aqui o primeiro filme, que ainda
era de cinema sonoro, na adega desta casa que está aqui,
que era a casa nobre cá do sítio, a casa da família Afonso.
Havia uma adega por fora, parecia um daqueles ambu-
lantes que tinham os pequenos filmes, que passavam
ainda no tempo do sonoro.
Lembro-me desse primeiro filme, como se fosse
hoje. Tratava-se da vida de Cristo, eu penso que devia
ser um do Cecil B. De Mille, qualquer coisa desse género.
Eu sei é que o filme era projetado num lençol que já es-
tava muito riscado. Eu pensei que tinha chovido durante
toda a vida de Cristo e tinha muita compaixão, além da
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paixão, além da comiseração pelas dores, e por aquela
tragédia divina, tinha uma compaixão particular porque
era tanta chuva sobre Nosso Senhor Jesus Cristo, que
era a pessoa mais importante da minha terra e mesmo
do mundo.
Mas na verdade, o que eu aprendi aqui, fora das letras,
foi muito mais importante que tudo o que eu podia apren-
der nas letras. O que eu aprendi aqui foi a vida anterior às
letras. A vida, o que se vê, o que se sente, os únicos momen-
tos em que uma pessoa tem um sentimento de que existe
verdadeiramente e não por procuração, e não ao segundo
grau ou terceiro grau, em que eu sou grande especialista.
Não, eram coisas simples. Um tanque que era uma espécie
de silêncio em vez de ser um volume de água. Os pássaros
que enchiam a aldeia. Os estorninhos que nos eclipsavam
os crepúsculos violentos, quase tropicais, de certos dias.
O cuco que pontuava como um relógio. Este ar transpa-
rente que nos cerca. As nuvens, as nuvens sobretudo, que
eram de cinema divino, um cinema sem autor onde nós
podíamos escrever todos os sonhos, todas as revelações, to-
dos os fantasmas que se podem ter numa vida de criança.
E sobretudo, aqui é que vêm as andorinhas, eu não
podia esquecer as andorinhas. As andorinhas, que foram
mestras não sei de quê, mestras de uma coisa que não
pode ser nomeada e que nós nomeamos chamando-
-lhe felicidade. Era como se fossem umas dançarinas de
Deus. Que todas as Primaveras voltavam para recuperar,
sobre os beirais da minha casa, o ninho que tinham dei-
xado. Vinham, e era uma festa a chegada e todo o tempo
que elas permaneciam aqui, cruzando-se, descruzando-
-se, reinventando coreografias que nenhum coreógrafo
pode imaginar, verdadeiramente celestes.
E são essas andorinhas que eu lembrava, que tam-
bém tinham alguma coisa a ver com essa arca, para mim
mágica, que o meu pai deixou quando saiu da aldeia, ou
ia para fora da aldeia. Nessa arca havia, cuidadosamente
guardado, o jornal do dia da morte de Guerra Junqueiro, o
autor sulfuroso de A velhice do padre eterno, celebérrimo,
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como não se pode imaginar que alguém tivesse sido nes-
se país mais do que ele o foi realmente nessa época, aqui
e nos países de língua portuguesa, sobretudo no Brasil
onde hoje ainda é autor. Nós estamos muito mais adian-
tados, podemos esquecer os Guerra Junqueiros.
O meu pai tinha o jornal cuidadosamente guardado,
eu acho que era A Batalha, havia um dos poemas mais
célebres do Guerra Junqueiro, e ainda hoje, um poema
que merece ser conhecido e lido, um poema que é um
poema de um outro tempo, que já não existe, provavel-
mente já existiria quando ele o escreveu. Mas para isso
existem realmente os poetas. Que eu pensava que era um
poema dos Simples um dos mais lidos, dos mais famosos
dos seus livros, mas não é. Esse poema foi uma amiga
minha aqui presente, que eu saúdo, Ana Maria Almeida
Martins, que me disse que era mesmo um poema que
precede “A velhice do padre eterno”.
A minha confusão é ainda maior porque esse poema
se chama “Aos simples” e esses simples são uma evocação
da nostalgia, de alguém que sabe que está traindo uma
parte do seu passado, de uma fé sem dúvidas, de uma es-
pécie de aceitação do sentido pleno do mundo ainda sem
fendas e que vem de algum modo penitenciar-se anteci-
padamente do sacrilégio que ele vai cometer escrevendo
e provocando um país que está mudando também de
alma com a famosa “A velhice do padre eterno”.
É nesse poema que estão as andorinhas, as ando-
rinhas de que eu me lembrava, além das andorinhas reais,
que dormiam sob o beiral da minha casa. E leio a última
passagem, e com ele saúdo todos aqueles que vieram aqui
para estar comigo numa hora diferente de todas as horas:
Minha mãe, minha mãe Aí que saudade imensa
do tempo em que ajoelhava orando ao pé de ti
Caía mansa a noite
e andorinhas aos pares cruzavam-se voando em torno dos seus
lares suspensos no beiral da casa onde nasci
Estas andorinhas, as da literatura e as da vida, estão suspensas
e são o sinal do momento de felicidade que eu vivi graças a esta
terra onde nasci.
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REDES CULTURAIS: REGRESSO SEM FIM

[Roteiro] Regresso sem Fim1

Lugares incontornáveis do itinerário de Eduardo


Lourenço, São Pedro de Rio Seco, Guarda e Coimbra es-
boçam um eixo entre o interior e o litoral do Centro de
Portugal que ultrapassa fronteiras e liga dois dos mais an-
tigos polos do conhecimento europeu: as Universidades
de Coimbra e Salamanca.
Ao longo da história esta rota foi percorrida em am-
bos os sentidos por múltiplos protagonistas, conheceu
fluxos de intensidade variável consoante as circunstân-
cias que os moviam, fosse o poder proporcionado pela
conquista, a procura de liberdade e de tolerância em
tempos de guerra e opressão, a demanda de cultura e
formação, a busca de melhores condições de vida.
A vida e a obra de Eduardo Lourenço não se circuns-
crevem no espaço vivido na infância e juventude nem
nas ortodoxas fronteiras disciplinares. Exemplo de uma
errância incompleta, com as origens e o retorno per-
manentemente no horizonte, pretendeu-se com este
documentário explorar a relação do autor com as pai-
sagens matriciais da Beira de que se apontam algumas
coordenadas:
– Breve geografia de uma vida. Itinerário inicial: São
Pedro de Rio Seco; Guarda.

1 Documentário sobre Eduardo Lourenço, resultado duma ideia original de Anabela Saint-
-Maurice e de Rui Jacinto, com base numa parceira entre o CEI e a RTP 2; tem a duração de 58
minutos, sendo realizado por Anabela Saint-Maurice e produzido pela Zulfimes.
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– Das origens à peregrinação exterior. Referências
à peregrinação exterior, a França (Vence), Espanha (aqui
tão perto; o outro lado da lua). Nós e a Europa: o acutilan-
te olhar externo de alguém profundamente enraizado no
país profundo.
– Paisagens literárias: uma Rota de Escritores.
A literatura é um tema importante na obra Eduardo
Lourenço. Em Coimbra conviveu com uma geração de
escritores, cujas obras estudou ou prefaciou (Miguel
Torga, Fernando Namora, Carlos Oliveira, Virgílio Ferreira,
Eugénio de Andrade); as origens e as páginas que nos le-
garam desenham uma rota destes escritores pelas paisa-
gens da Beira. As paisagens literárias legadas pelos seus
companheiros de viagem foram revisitadas num estimu-
lante diálogo intergeracional recorrendo a testemunhos
duma nova geração de escritores: Gonçalo M. Tavares,
Pedro Mexia e Hélia Correia e complementadas com de-
poimentos de escritores espanhóis (Fernando Rodriguez
de la Flor, Ángel Marcos de Dios)
– Escritores, livros, bibliotecas: um itinerário cultural.
Da Rota dos Escritores à Rotas das Bibliotecas, onde se
destacam três lugares de exceção:
as Bibliotecas da Universidade de Coimbra, a
Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (Guarda) e a
da Universidade de Salamanca. Os livros doados por
Eduardo Lourenço à Biblioteca Municipal. Os autógrafos
nas obras doadas.
– Património, cultura, fronteira: Eduardo Lourenço
e o diálogo ibérico:
Esbater fronteiras: o Centro de Estudos Ibéricos
(inspirado por Eduardo Lourenço) e cooperação trans-
fronteiriça; Fronteiras de futuro: património, cultura,
conhecimento, recursos para um roteiro cultural (eixo
Coimbra-Guarda-Salamanca); Papel e importância de
Eduardo Lourenço (como Unamuno) na promoção do
diálogo ibérico e universal.

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Apontamentos retirados do Documentário

Qualquer encontro com Eduardo Lourenço é um prazer porque


é um caso raro de alguém que eu admiro e de quem gosto. (…)
Li quase todos os livros de Eduardo Lourenço. Sobretudo os
de literatura, que são os que me interessam mais, sobre Pessoa,
ou um livro que se chama “O Canto do Signo” que é o livro mais
importante sobre Literatura Portuguesa nas últimas décadas
PEDRO MEXIA

Aquela ideia do “regressar onde se foi feliz”; deve-se regressar


ou não?
PEDRO MEXIA

É sem solução. Se não regressa fica-se com essa ferida;


se se regressa, nunca se regressa, porque já somos outro
EDUARDO LOURENÇO

Mas a sua memória de S. Pedro é uma memória feliz?


PEDRO MEXIA

Sim, muito. Fui muito marcado por esta infância arcaica,


de séculos
EDUARDO LOURENÇO

Sendo de gerações muito diferentes, há qualquer coisa de


sentido de humor que nos aproxima. O Prof. Eduardo Lourenço
tem um sentido de humor muito particular. Mesmo havendo
um discurso muito lógico, muito racional, está sempre disponível
para desconstruir o discurso, e isso acho que é uma entrada
no humor, uma grande qualidade do Prof. Eduardo Lourenço
GONÇALO M. TAVARES

Há muitos anos que conheço o Prof. Eduardo Lourenço,


o intelectual ibérico que nos representa fora destas fronteiras.
É um homem de pensamento, um intelectual que já não é nada
frequente e que é transversal a todas as nacionalidades, um
homem de uma dimensão puramente europeia e nesse sentido,
estes intelectuais são muito necessários e muito valiosos nas
culturas e aqui em Espanha, sentimo-lo como alguém próximo
e alguém que nos representa fora deste país
FERNANDO RODRÍGUEZ DE LA FLOR

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Portugal não tem, nunca teve, um pensamento. Pensadores,
alguns, mas também todos muito “secos”. Há depois um astro
que incide sobre esta pessoa excecional que é juntar cultura,
inteligência, memória, para produzir sabedoria, que é outra coisa.
E há ainda outro astro, que incide muito especialmente sobre ele
que é o transformar essa sabedoria em dádiva, e em capacidade
de interpretação e de passagem
HÉLIA CORREIA

A nossa identidade está relacionada com a diferença


com o castelhano. (…) De temperamento eu não sou nada
calmo, sou de reflexões muito rápidas, não tenho temperamento
estoico. Mas fui adquirindo alguma vaga sabedoria,
mas não me serve para nada. Faço sempre as mesmas coisas,
reajo da mesma maneira
EDUARDO LOURENÇO

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MEMORIAL EDUARDO LOURENÇO NO CENTRO
DE ESTUDOS IBÉRICOS

O Centro de Estudos Ibéricos (CEI) surgiu duma


ideia seminal do Professor Eduardo Lourenço (1923-
2020) lançada no célebre discurso “Oito séculos de al-
tiva solidão” proferido em 27 de novembro de 1999 na
abertura das Comemorações do Oitavo Centenário da
Cidade da Guarda. Esta ideia luminosa e o seu pres-
tígio foram importantes para concretizar o protoco-
lo fundador do CEI celebrado em 27/11/2000 entre os
Reitores da Universidade de Coimbra, da Universidade
de Salamanca e a Presidente da Câmara Municipal da
Guarda, cuja formalização aconteceu em 18/05/2001
através de escritura pública.
A relação cúmplice que manteve com o CEI, apro-
fundada através dum acompanhamento próximo e com-
prometido, foi sendo progressivamente enriquecida por
via dum aconselhamento subtil, discreto e assertivo. A
sua magistratura não se esgotou numa mentoria retóri-
ca nem numa influência feita apenas de generosidade
e afetos. A permanente disponibilidade, a participação
ativa nos mais variados eventos e o vasto conhecimento
que colocou à disposição do Centro fizeram do Professor
Eduardo Lourenço, além dum companheiro de jornada,
uma referência inspiradora para o desenvolvimento do
CEI e os caminhos que havia de trilhar.
Esta relação não se circunscreveu a um imaginário nem
ao estrito domínio do intangível porque Eduardo Lourenço
fez questão de a perenizar com dois gestos onde conjugou
a dimensão material com uma forte carga simbólica:
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(i) A doação de parte significativa da sua biblioteca pes-
soal à Guarda, feita em 2008, conforme lista publica-
da em Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto
de saudades, um legado com futuro (CEI, 2008, pp.
117-221). O Município decidiu atribuir, então, o nome
de Eduardo Lourenço à nova Biblioteca Municipal da
Guarda, que se iria inaugurar, entronizando o ensa-
ísta como Patrono da Biblioteca Municipal Eduardo
Lourenço (BMEL).
(ii) A doação ao CEI, em 2019, após a última visita de
Eduardo Lourenço à Guarda, em 18 de setembro de
2018, do material que tinha em seu poder resultante
de homenagens, ofertas, prémios e condecorações
que havia recebido ao longo da vida (cf. Eduardo
Lourenço e o Centro de Estudos Ibéricos: inventário
de espólio doado. In Iberografias. Revista de Estudos
Ibéricos, 2020, Nº 14, pp. 337 – 350).
A preciosidade deste legado e a riqueza cúmplice da
vida partilhada levou o CEI a considerar oportuno pres-
tar um tributo ao Professor Eduardo Lourenço para dar
público testemunho da gratidão e profundo reconheci-
mento por gestos tão magnânimos. A pandemia havia
de atrasar esta preparação e adiar a cerimónia para data
posterior a 1 de dezembro de 2020. Assinalando simboli-
camente a data do aniversário do seu Mentor com a do
Centro de Estudos Ibéricos foi promovida em 21 de maio
de 2021 uma cerimónia onde, além da entrega do Prémio
Eduardo Lourenço 2020, foi inaugurado um Memorial
permanente instalado na sua sede.
O Centro de Estudos Ibéricos honrou, com esta sin-
gela, mas justa e sentida homenagem, o seu Mentor,
Patrono e Diretor Honorífico. Além duma Medalha
Comemorativa dos 20 anos do CEI e do lançamento da
Gravura “Eduardo Lourenço – Heterodoxias”, da auto-
ria de João Pedro Cochofel, teve lugar, sob o formato de
Webinar, o Seminário Leituras de Eduardo Lourenço.
A sede do Centro de Estudos Ibéricos, ao albergar este
Memorial, passou a ser também um local de memória
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onde se mostram Prémios, Diplomas e Condecorações
doados pelo Professor Eduardo Lourenço.
O CEI e a BMEL transformaram-se, deste modo, num
ponto focal, num polo de qualquer Roteiro que se dese-
nhe sob a égide de Eduardo Lourenço. No espaço exte-
rior à Sede do CEI e da BMEL, nos Jardins da Quinta do
Alarcão, pode ainda ser visitado outro memorial, da auto-
ria de Florencio Maíllo, inaugurado em 2017. Além deste
nó, a rede de lugares Lourencianos passa ainda por São
Pedro de Rio Seco, Almeida, Coimbra e Lisboa, para men-
cionar apenas os pontos do território nacional com quem
o Ensaísta estabeleceu um vínculo mais forte e de maior
cumplicidade.
Além da Guarda, o Roteiro Eduardo Lourenço le-
va-nos a outros memoriais dispersos por lugares como:
(i) S. Pedro de Rio Seco, onde se localiza o da autoria de
Leonel Moura, inaugurado em 2011; (ii) Almeida, que ins-
creveu na toponímia urbana o Largo Professor Eduardo
Lourenço (2021), em frente à escola onde fez a quarta
classe, onde se instalou em 2022 o memorial da autoria
de Graça Morais; (iii) Coimbra, onde aos locais simbólicos
(Universidade, Faculdade de Letras, Biblioteca Geral e
Casa da Escrita) podemos juntar a imagem de Eduardo
Lourenço, que circula desde 2021 nos transportes públi-
cos urbanos, associada a frase “Mais importante do que o
destino é a viagem”.

Rui Jacinto

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© João Pedro Cochofel
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