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Rui Jacinto (coordenação)


Colecção

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1. Iberismo e Cooperação – Passado e Futuro da Península Ibérica
2. O Direito e a Cooperação Ibérica
3. O Outro Lado da Lua – Inéditos de Eduardo Lourenço
4. Entre Margens e Fronteiras – Para uma Geografia das Ausências e Centro de Estudos Ibéricos
das Identidades Raianas
5. Territórios e Culturas Ibéricas
6. Saúde sem Fronteiras O Centro de Estudos Ibéricos é uma asso-
7. O Direito e a Cooperação Ibérica II
ciação transfronteiriça sem fins lucrativos,
8. O Interior Raiano do Centro de Portugal – Outras Fronteiras, Novos
Intercâmbios constituído pela Câmara Municipal da
9. Um Cruzamento de Fronteiras – O Discurso dos Concelhos da Guarda
em Cortes Guarda, Universidade de Coimbra, Universi-
10. Territórios e Culturas lbéricas II dade de Salamanca e Instituto Politécnico
11. União Europeia, Fronteira e Território
12. Existência e Filosofia – O Ensaísmo de Eduardo Lourenço da Guarda.
13. Abandono do Espaço Agrícola na “Beira Transmontana”

NOVAS FRONTEIRAS,
14. Educação – Reconfiguração e Limites das Suas Fronteiras
15. Escola – Problemas e Desafios A ideia partiu do ensaísta Eduardo Lourenço
16. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa – Paisagens, na sessão solene comemorativa do Oitavo
Territórios, Políticas no Brasil e em Portugal
17. Interioridade / Insularidade – Despovoamento / Desertificação Centenário do Foral da Guarda, em 1999,

OUTROS DIÁLOGOS
18. Efeito Barreira e Cooperação Transfronteiriça na Raia Ibérica
tendo em vista a criação de um Centro de
19. Patrimónios, Territórios e Turismo Cultural
20. A Cidade e os Novos Desafios Urbanos Estudos que contribuísse para um renovado
21. Vida Partilhada – Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação Cultural
conhecimento das diversas culturas da
22. Falar Sempre de Outra Coisa – Ensaios Sobre Eduardo Lourenço
23. Metafísica da Revolução – Poética e Política no Ensaísmo de Península e para o estudo da Civilização
Eduardo Lourenço AS NOVAS GEOGRAFIAS Ibérica como um todo.
24. Paisagens, Patrimónios e Turismo Cultural
25. Condições de Vida, Coesão Social e Cooperação Territorial DOS PAÍSES DE LÍNGUA
26. Paisagens e Dinâmicas Territoriais em Portugal e no Brasil – As
Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
PORTUGUESA Criado formalmente em Maio de 2001, o
27. Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança – Das Vulnerabilidades
às Dinâmicas de Desenvolvimento
CEI tem vindo a afirmar-se como pólo privi-
28. Paisagens, Patrimónios, Turismos legiado de encontro, reflexão, estudo e
29. Educação e Cultura Mediática – Análise de Implicações Deseducativas
30. Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança – Paisagens e
divulgação de temas comuns e afins a
Patrimónios, Permanências e Mobilidades Portugal e Espanha, com especial incidência
31. Diálogos (Trans)fronteiriços – Patrimónios, Territórios, Culturas RUI JACINTO
32. Outras Fronteiras, Novas Geografias - Intercâmbios e Diálogos (coordenação) na região transfronteiriça.
Territoriais
33. Lugares e Territórios – Património, Turismo Sustentável, Coesão Territorial
34. Andanças e Reflexões Transfronteiriças – Roteiro Miguel de Unamuno
– Eduardo Lourenço
35. Novas Fronteiras, Outros Diálogos – Paisagens, Patrimónios, Cultura
36. Novas Fronteiras, Outros diálogos: Cooperação e Desenvolvimento
Territorial
37. Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
38. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa: Cooperação
e Desenvolvimento
39. Geografias e Poéticas da Fronteira - Leituras do Território
40. Dinâmicas Socioeconómicas - Em Diferentes contextos territoriais
41. Geografia sem Fronteiras - Diálogos entre Portugal e o Brasil
42. Paisagens e Desevolvimento Rural
43. Sociedade e memória os territórios
44. Vida Partilhada – Todos Nos Ibéricos – Eduardo Lourenço

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IBEROGRAFIAS

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NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
AS NOVAS GEOGRAFIAS DOS PAÍSES
DE LÍNGUA PORTUGUESA

Coordenação:
Rui Jacinto

IBEROGRAFIAS

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Coleção Iberografias
Volume 45
Título: Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Coordenação: Rui Jacinto
Apoio à edição: Ana Margarida Proença
Autores: Alexsandra Maria Vieira Muniz, Andréa Ferreira Leite, Ângela Maria Cavalcanti Ramalho, Angela Zatta, Antonio Alfredo
Teles de Carvalho, Antonio Marcos Gomes da Silva, Antonio Nivaldo Hespanhol, Arlete Moysés Rodrigues, Bárbara Monteiro,
Catarina Isabel Dourado Ferreira Grilo, Cidoval Morais de Sousa, Cleiton Marinho Lima Nogueira, Davidson Matheus Félix
Pereira, Dhiego Antonio de Medeiros, Diego da Luz Rocha, Diogo Laércio Gonçalves, Dirce Maria Antunes Suertegaray, Doralice
Sátyro Maia, Enrique Cabero Morán, Fernando Nazareno do Nascimento, Francisco José Araujo, Giacomo Zanolin, Giampietro
Mazza, Helena Santana, Inocêncio de Oliveira Borges Neto, Isabel Cristina Afonso Lopes, Joana Cristina Capela de Campos, João
Almeida, José Borzachiello da Silva, José Delgado Álvarez, José Irivaldo Alves de Oliveira Silva, Juan Andrés Blanco Rodríguez,
Juliane Maistro, Lía Fernández Sangrador, Luiz António Araújo Gonçalves, Marcos Antônio Vieira Dias, Marianna França Monteiro,
Messias Modesto dos Passos, Mozart de Sá Tavares Júnior, Nathanne Karita Gonçalves da Fonseca, Nilson Cesar Fraga, Pedro de
Almeida Vasconcelos, Rafael Albuquerque Xavier, Rafaella Larissa Gomes da Silva, Renan Rubert Rosas Neto, Roberta Moreira
Wichmann, Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol, Rosário Santana, Rubén Sánchez Domínguez, Rui Jacinto, Samara de
Souto Antero, Thais Helena Gonçalves, Tiago Almeida de Oliveira, Tiago Estevam Gonçalves, Valber Muniz de Oliveira, Valéria
Cristina Pereira da Silva

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: Sofia Travassos | Âncora Editora


Fotografia: Inés García Ruiz

Impressão e acabamento: Locape - Artes Gráficas

1.ª edição: junho de 2023


Depósito legal n.º xxxxx/23

ISBN CEI: 978 989 867 610 8


ISBN: 978 972 780 885 4

Edição n.º 41045

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
geral@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.

Apoios:

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NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS: AS NOVAS GEOGRAFIAS 9
DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA
Rui Jacinto

I. PAISAGEM, RECURSOS, TURISMO

Por uma análise da fisiologia da paisagem: aplicada ao Pontal do Paranapanema 19


Messias Modesto dos Passos, Diogo Laércio Gonçalves e Juliane Maístro
Aplicação da Legislação Ambiental Brasileira na Raia Divisória São Paulo-Paraná- 51
-Mato Grosso do Sul, Brasil: análise das potencialidades para criação de corredores
ecológicos
Diogo Laércio Gonçalves e Messias Modesto dos Passos
Ilha da Asinara: da prisão ao Parque Nacional e Área Marinha Protegida. História, 73
usos e perspectivas
Giampietro Mazza e Giacomo Zanolin
Os novos moinhos trarão bons ventos? O Parque Eólico de Santa Lúzia (PB) como 85
vetor do desenvolvimento local sustentável
Ângela Maria Cavalcanti Ramalho e Fernando Nazareno do Nascimento
Acesso e governança da água no semiárido brasileiro: um estudo em 97
comunidades rurais do Estado da Paraíba
Andréa Ferreira Leite, Cidoval Morais de Sousa e José Irivaldo Alves de Oliveira Silva
Potencial geoturístico da Área de Proteção Ambiental no Cariri Paraibano, Brasil 117
Marcos Antônio Vieira Dias e Rafael Albuquerque Xavier
Análise do turismo desenvolvido na Área de Proteção Ambiental da Barra 135
do Rio Mamanguape, Rio Tinto, Brasil
Rafaella Larissa Gomes da Silva e Rafael Albuquerque Xavier
A Gestão da Comunicação Digital como fator promocional do Enoturismo 149
e dos Territórios Vinhateiros
Catarina Isabel Dourado Ferreira Grilo

II. AGRICULTURA E DESENVOLVIMENTO RURAL

A agricultura urbana e periurbana e os circuitos curtos de comercialização 165


de alimentos em Presidente Prudente – SP
Antonio Nivaldo Hespanhol e Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol
Descrição morfológica do perfil de solo em uma propriedade rural da área 183
de proteção ambiental do Timburi, Município de Presidente Prudente-SP
Thais Helena Gonçalves

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Novas Formas de Trabalho e a (Nova) Função do Espaço Rural 195
João Almeida
A questão agrária e os assentamentos rurais no Pontal do Paranapanema: 211
o caso da Fazenda Santa Rita
Juliane Maistro
Tecendo os fios do desenvolvimento social e econômico do município de São Bento 233
na Paraíba - Brasil
Valber Muniz de Oliveira, Roberta Moreira Wichmann, Ângela Maria Cavalcanti
Ramalho e Tiago Almeida de Oliveira
A (In)segurança alimentar em tempos pandêmicos e de desmonte institucional 247
no Brasil
Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol; Antonio N. Hespanhol

III. CIDADE E DINÂMICAS DO ESPAÇO URBANO

Os agentes econômicos da cidade de Salvador (1549-1999) 269


Pedro de Almeida Vasconcelos
Mudanças na organização do espaço urbano brasileiro 283
José Borzacchiello da Silva
O ordenamento territorial e a função social da propriedade urbana e da cidade 295
Arlete Moysés Rodrigues
Território como norma e território normado: análise da agiotagem no Brasil 309
Dhiego Antonio de Medeiros
Ferrovia e transformação da estrutura urbana nas cidades intermediárias do Brasil 329
e da Espanha
Doralice Sátyro Maia
A produção do espaço produtivo e sua atual relação com a urbanização 353
em Campina Grande-PB, Brasil
Davidson Matheus Félix Pereira
As novas centralidades e dinâmicas territoriais das cidades do Noroeste do Estado 369
do Ceará, Brasil
Luiz António Araújo Gonçalves
Gestão Ambiental (SGA): tecendo elos na cadeia produtiva das fábricas de 383
calçados em Campina Grande –PB na perspectiva do desenvolvimento sustentável
Samara de Souto Antero, Ângela Maria Cavalcanti e Cidoval Morais de Sousa
Neoliberalização do espaço na região metropolitana de Fortaleza (RMF) 393
Cleiton Marinho Lima Nogueira
Reestruturação Urbana e o comércio de Fortaleza (Ceará) 405
Alexsandra Maria Vieira Muniz e José Borzachiello da Silva
Governança urbana: coalizões, poder corporativo e planejamento em Fortaleza, Brasil 425
Tiago Estevam Gonçalves

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IV. ARTE, CULTURA E LEITURAS DO TERRITÓRIO
Toponímia e leitura da paisagem: os nomes indígenas das cidades e municípios 445
do Rio Grande do Sul
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Rui Jacinto e Inocencio de Oliveira Borges Neto
Contribuições da Revista do IAGA na difusão de conhecimentos sobre o território 465
alagoano no Nordeste do Brasil na segunda metade do século XIX
Renan Rubert Rosas Neto; Antonio Alfredo Teles de Carvalho
Memórias Cerradeiras. O uso das plantas para a cura no Município de Ouvidor 479
(GO), Brasil
Nathanne Karita Gonçalves da Fonseca
O patrimônio de palavras: poetas e poemas no espaço da cidade 495
Valéria Cristina Pereira da Silva, Antonio Marcos Gomes da Silva e Mozart de Sá
Tavares Júnior
A pedra, a concha e o homem: os sons que emergem de uma prática musical 513
em territórios de fronteira
Helena Santana e Rosário Santana
Modelos de gestão dos bens Património Mundial: O caso da Universidade 531
de Coimbra - Alta e Sofia
Joana Cristina Capela de Campos

V. SOCIEDADE E TERRITÓRIO
Homenagem à supremacia branca na Região da Guerra do Contestado: uma 561
análise dos monumentos da Praça do Conhecimento, em Videira/SC/Brasil
Nilson Cesar Fraga, Angela Zatta e Diego da Luz Rocha
O silenciamento do escravo Prudêncio: um artifício narrativo de denúncia social 581
e resistência negra
Marianna França Monteiro
Guerra na Ucrânia, antiglobalismo como política de Estado e retração Política 591
e democrática global
Francisco José Araujo
O Enfermeiro Especialista promotor da qualidade dos cuidados na ERPI S. Silvestre, 605
ADM Estrela, Guarda
Bárbara Monteiro e Isabel Cristina Afonso Lopes
El escenario demográfico de la frontera castellano-leonesa con Portugal: 621
una perspectiva temporal
Lía Fernández Sangrador
Emigración y población vinculada entre la península y América: el caso de Zamora 641
y Salamanca
José Delgado Álvarez, Rubén Sánchez Domínguez e Juan Andrés Blanco Rodríguez
Los Consejos Económicos y Sociales de las Comunidades Autónomas en España 669
Enrique Cabero Morán

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NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
AS NOVAS GEOGRAFIAS DOS PAÍSES
DE LÍNGUA PORTUGUESA

Rui Jacinto1

Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Investigação, Inovação e Território

O Curso de Verão que o Centro de Estudos Ibéricos realiza sem interrupção desde
2001 afirmou-se como um encontro de referência para investigadores de várias áreas disci-
plinares oriundos dos países ibéricos e dos que têm a língua portuguesa como idioma ofi-
cial. Cumpre-se, com esta iniciativa, um dos mais nobres propósitos do Professor Eduardo
Lourenço, cujo Centenário do seu nascimento se está a comemorar, quando preconizou
ser o CEI o “lugar de um diálogo, necessário mais que nunca, (…) onde os nossos laços
comuns (…) fossem repensados para que nós soubéssemos efetivamente quem somos e
onde estamos, não tão isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar dos outros,

9 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
para sabermos quem é o outro, com quem devemos dialogar”.
Nesta senda, a XXII edição do Curso de Verão, que aconteceu em 2022 sob o lema Novas
fronteiras, outros diálogos: cooperação e desenvolvimento, contou com mais de uma centena de
participantes e cerca de quatro dezenas de comunicações cujos conteúdos proporcionaram
a presente publicação. O título sinaliza, antes de mais, o caminho que o CEI persegue com
insistência a partir de pressupostos que estruturam um debate que urge aprofundar:
. Fronteiras. O período de mudança, rutura e aceleração da história que atravessamos,
com pesadas consequências económicas, sociais e territoriais, não só desencadeia novos de-
safios, individuais e coletivos, como nos coloca no limiar duma nova era. No advento deste
tempo novo despontam sinais que reconfiguram o significado de todo o tipo de fronteiras,
reais, virtuais e metafóricas, que enfatizam a sua polissemia e potenciam a mutabilidade
das suas funções tradicionais. Não precisamos anunciar o seu regresso para constatarmos
que se afirmam com mais ímpeto, que se transformaram em muros quase intransponíveis
1
Centro de Estudos Geográficos e Ordenamento do Território (CEGOT)
Centro de Estudos Ibéricos (CEI)

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que delimitam estados e segregam territórios. A sua crescente eficácia no plano doméstico,
apesar de se manifestar com maior subtileza e fluidez, não só acentua a separação entre
pessoas como aumenta a invisibilidade de muitos excluídos. A sua plasticidade não lhes
retirou a capacidade de gerar tensões e conflitos, desde as debatidas fronteiras da ciência
às que se confrontam no plano geopolítico. Além de todas estas razões não parece razoável
que se admita a sua permeabilidade, quase exclusivamente, para liberalizar o mercado e
facilitar a circulação de pessoas e bens. Por outro lado, importa conhecer com mais asserti-
vidade as novas qualidades e os contornos fluídos das fronteiras emergentes.
. Diálogos. Um dos antídotos encontrados para superar os traumas europeus simbolizados
por aquelas cicatrizes da História foi o diálogo que havia de conduzir, depois da Segunda
Guerra Mundial, à institucionalização da CEE, atual União Europeia, pelo Tratado de Roma
(1959). As guerras, ontem como hoje, sobretudo as que aconteceram na Europa após a queda
do Muro de Berlim (9 de novembro de 1989), dos Balcãs (1991-2001) à iniciada em 24 de
fevereiro de 2022, com a invasão da Ucrânia, mostram a necessidade absoluta do diálogo para
superar divergências por mais insanáveis que possam parecer. Num outro plano, também se
reclamou o diálogo para esbater o efeito nefasto das fronteiras e promover o desenvolvimento
económico e social nos espaços que lhes eram adjacentes. Como facilmente se constata, as
regiões fronteiriças são por norma as mais pobres e, paradoxalmente, a Europa sem fronteiras
foi proclamada, apenas, para efeitos de construção do Mercado Único. A convicção que as
regiões de fronteira, como as de baixa densidade, igualmente frágeis, são incapazes de reverter
as respetivas debilidades estruturais se entregues exclusivamente à sua sorte e às dinâmicas do
mercado, levou à promoção de políticas específicas para aquelas áreas. O diálogo entre pessoas
10 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

e instituições, de costas voltadas por imperativo de tais limites, foi a estratégia adotada para
permeabilizar as fronteiras. O diálogo transversal, a nível europeu e ibérico, ditado por razões
económicas, sociais e políticas, também é válido para outros fins e no sentido dos meridianos,
entre o norte e o sul, com um duplo propósito: (i) debater novas agendas temáticas e as suas
implicações e consequências em diferentes contextos territoriais; (ii) consolidar parcerias e de-
senvolver redes de investigação para fomentar a troca de conhecimentos, experiências e boas
práticas, especialmente entre Países de Língua Portuguesa, tendo presente que a geografia é
uma base sólida para a cooperação, a investigação e o desenvolvimento.
. Cooperação. A parceria que foi celebrada para criar o CEI decorreu da concertação entre
instituições sediadas em territórios dos dois lados da Raia Central Ibérica. A sua evolução
decorreu à sombra da cooperação transfronteiriça e do apoio de programas que emanam
da Cooperação Territorial Europeia (CTE), um dos principais instrumentos da coesão eco-
nómica, social e territorial na União Europeia. As redes de investigação e as plataformas de
transferência de conhecimentos, de âmbito transfronteiriço, têm-se alargado com a inclu-
são de investigadores e instituições de geografias cada vez mais amplas. Este alargamento

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estratégico tem mostrado as virtualidades da cooperação para a transferência de conheci-
mentos e a difusão de boas práticas, contributos que são relevantes para recentrar periferias
e promover a coesão económica, social e territorial. Este diálogo que se tem vindo a abrir ao
Sul, sobretudo aos Países de Língua Portuguesa, torna ainda mais firme a convicção que é “a
cooperação que reforça, a competição que estimula e a solidariedade que une”.
. Desenvolvimento. A adoção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da resolução inti-
tulada Transformar o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, em 25
de setembro de 2015, abriu as portas ao debate sobre uma agenda transformadora para o de-
senvolvimento sustentável. Seja qual for a leitura que se faça destes conceitos e da importância
dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e das 169 metas a implementar
pelos diferentes países (a assunção da Agenda 2030) importa acompanhar a integração dos
ODS nas políticas, processos e ações desenvolvidas nos planos nacional, regional e global. Os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que alguns consideram ser uma visão comum
para a Humanidade e um contrato social entre os líderes mundiais e os povos, abriu o debate
em torno dos conceitos de desenvolvimento e de sustentabilidade. Comparar as idiossincra-
sias inerentes a cada realidade, as potencialidade, fragilidades e dinâmicas dos diferentes terri-
tórios, os papéis e comportamentos dos atores e o impacte local das políticas são aspetos a que
devemos dar a melhor atenção. Importa ainda trocar experiências, identificar boas práticas e
divulgar iniciativas inovadoras que continuam a ser ensaiadas em diferentes contextos territo-
riais. Porque as crises se sucedem e os novos problemas não se resolvem com velhas soluções é
imperioso monitorizar os efeitos sociais, económicos e territoriais das políticas publicas.
O Curso de Verão, além do que se disse, ainda responde a um dos desígnios preco-

11 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
nizado pelo Mentor, Patrono e Diretor Honorífico que idealizou para o CEI um ”papel
de mediador entre as nossas duas culturas peninsulares, tão próximas nas suas raízes, mas
distantes no seu convívio histórico concreto”. E não era outro o projecto deste Centro,
que o de conhecer a sério o que também, com dano mútuo, desconhecíamos”. A afirma-
ção do Centro como plataforma de difusão do conhecimento, o reforço da sua missão ao
nível da qualificação das pessoas e dos territórios, sobretudo dos mais vulneráveis, reclama
continuidade na investigação colaborativa, inovação nas iniciativas e nos procedimentos,
compromisso e cumplicidade com os espaços mais frágeis, que são sempre os mais despro-
tegidos a injustiças e expostos a todo o tipo de exclusões.

Cooperação & desenvolvimento: observatório de dinâmicas socio-


-territoriais em diferentes contextos geopolíticos

Os textos dos investigadores brasileiros (29), portugueses (5), espanhóis (3) e italianos
(1) reunidos na presente edição cobrem um espetro diversificado de temas que percorrem

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algumas matérias que fazem as agendas atuais da investigação e da ação. As 38 comunica-
ções, que permitem conhecer lugares e regiões de diferentes países, sobretudo do Brasil,
foram organizadas em cinco apartados:
. Paisagem, recursos, turismo, cujos trabalhos põem em destaque temas como: (i) paisa-
gens, a análise da sua fisiologia, a aplicação da legislação ambiental, criação de corredores
ecológicos e a gestão de parque e áreas protegidas; (ii) recursos naturais e energias renováveis,
do aproveitamento eólico (os novos moinhos trarão bons ventos?) à gestão dos recurso hí-
dricos, particularmente o acesso e a governança da água em áreas sensíveis como é o caso
do semiárido brasileiro; finalmente, (iii) turismo, encarado como uma oportunidade e não
como panaceia de todos os problemas locais, do potencial geoturístico das áreas de proteção
ambiental (Cariri Paraibano ou a Barra do Rio Mamanguape) à importância da comunicação
digital na promoção de certos territórios (enoturismo).
. Agricultura e desenvolvimento rural integra estudos que evidenciam a mudanças profun-
das que percorre o mundo rural em todas as latitudes com destaque para: (i) condições natu-
rais e os aspetos sociais, a morfológica e o perfil de solo, o desenvolvimento social e económico
em áreas rurais, a questão agrária e os assentamentos rurais, as novas formas de trabalho e
a (nova) função do espaço rural, cada vez mais sem agricultura; (ii) novas práticas agrícolas
(urbana e periurbana), circuitos curtos de comercialização e a (in)segurança alimentar.
. Cidade e dinâmicas do espaço urbano inclui textos que abordam diferentes problemá-
ticas urbanas: (i) os agentes económicos e a organização do espaço urbano, o ordenamento do
território, a função social da cidade e da propriedade urbana, a especulação sobre o território
quando funciona como norma; (ii) as comunicações e a (re)organização do tecido urbano, onde
12 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

se destaca o papel da ferrovia na transformação da estrutura urbana das cidades intermediá-


rias, a produção do espaço produtivo e sua relação com a urbanização, a industrialização e o
aparecimento de cidades novas (Santo André e o Complexo Industrial de Sines); (iii) novas
centralidades e dinâmicas urbanas, a importância do comércio, a neoliberalização do espaço
e o (recente) processo de expansão metropolitana; (iv) cidade, gestão ambiental, desenvolvimento
sustentável, governança e planejamento.
. Arte, cultura e leituras do território agrega uma perspetiva que tem vindo a recrutar
investigadores e a diversificar o âmbito das abordagens: (i) leituras da paisagem e do ter-
ritório a partir da toponímia, a importância dos centros de saber na produção e difusão
de conhecimentos sobre o território (caso do IHGAL) ou o sistema de gestão dos bens
patrimoniais; (ii) património e memória, seja o literário (o património de palavras: poetas e
poemas no espaço da cidade), o musical (os sons que emergem de uma prática musical em
territórios de fronteira) ou os saberes populares (o uso das plantas medicinais).
. Sociedade e território trespassa matérias diversificadas tais como: (i) conflitos e tensões
sociais que se evidenciam tanto através de sinais públicos como pelo silenciamento (do

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escravo Prudêncio: artifício narrativo de denúncia social e resistência negra); (ii) questões
sociais, seja o inverno demográfico que afeta as áreas de fronteira luso-castelhana, a emi-
gração ou o papel e importância do enfermeiro na prestação e melhoria da qualidade dos
cuidados de saúde, sobretudo entre a população idosa e mais isolada; (iii) tensões e politicas
que estão a gerar uma nova ordem mundial ou o debate sobre a importância de certas
instituições na promoção da coesão territorial.

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa: é a cooperação


que reforça, a competição que estimula, a solidariedade que une

A presente publicação mostra como em diferentes contextos territoriais ocorrem, na-


turalmente, distintas dinâmicas paisagísticas, económicas, sociais, culturais e políticas,
como se apontam estratégias e preconizam políticas diversas com o objetivo de esbater
assimetrias, reverter tendências recessivas e promover a coesão dos territórios. Esta ideia
sinaliza uma linha de investigação que o CEI internalizou após o Seminário Os países de
língua portuguesa e as suas geografias: dinâmicas socioeconómicas e processos de reestruturação
territorial, realizado em 2009, com o envolvimento de investigadores de universidades de
Portugal e do Brasil.
A trajetória do CEI neste particular pode ser lida a partir das publicações vindas a
lume nos últimos anos que refletem duas tendências fundamentais: (i) o património apre-
ciável que foi sendo acumulado contendo informação preciosa sobre os Países de Língua
Portuguesa; (ii) a centralidade do CEI como ponto focal duma rede de investigadores que

13 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
se abre a novos grupos de pesquisa dispersos por várias universidades dos Países de Língua
Portuguesa, especialmente Brasil, Cabo Verde e Moçambique (Rui Jacinto, 2016, 2017,
2020, 2021)2.
O diálogo continuado, profundo e profícuo, que continua a ser encetado está paten-
te nos 15 livros lançados entre 2010 e 2023, a que temos de juntar vários capítulos da
Iberografias, revista anual do CEI3. Tal património afirma o CEI como uma referência in-
contornável na cooperação territorial transatlântica, dimensão que alargou o perímetro da
dimensão transfronteiriça em que se havia especializado. O projeto As Novas Geografias dos
Países de Língua Portuguesa, contudo, não se resume nem esgota no Curso de Verão porque
tem outros complementos diretos, seja o Transversalidades: Fotografia sem Fronteiras, o
2
Rui Jacinto: Renovar a agenda para uma cooperação inteligente (2016); Outras fronteiras, novas geografias:
intercâmbios e diálogos territoriais (2017); As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa: um
lento devir (2020); As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa: Cooperação e Desenvolvimento
(2020); Geograficidades lusófonas. Caminhos para um diálogo entre margens (2020); Diálogo sem fron-
teiras: Portugal, Brasil e as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa (2021).
3
Ver em anexo: Referências. Publicações do CEI.

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Encontro Imagem e Território ou o Prémio CEI – Investigação, Inovação & Território
[CEI – IIT] 4.
O diálogo multiterritorial, a partilha de conhecimentos e a troca de experiências são
dimensões imprescindíveis para se construir um olhar mais amplo e holístico sobre as
Geografias dos Países de Língua Portuguesa. Superar eventuais ressentimentos coloniais
obrigam-nos a levar em consideração os conselhos avisados de Eduardo Lourenço para
ultrapassar “o inocente tema da lusofonia”, essa “selva obscura ou voluntariamente obscu-
recida pela interferência ou coexistência nele de leituras, de intenções inconfessadas ou in-
confessáveis, outras vezes bem explícitas, mas todas elas expressão de contextos, situações,
mitologias culturais, de todo em todo não homólogas e, só no melhor dos casos, análogas.
Esta é a realidade e como tal a devemos assumir. Em cada um dos antigos espaços poten-
cialmente lusófonos e hoje política e economicamente autónomos, a afirmação identitária
subdetermina todos os reflexos e o destino inteiro das respetivas culturas na plenitude das
suas diferenças” (A Nau de Ícaro, 1999: 179).
Estamos conscientes que “nem como língua, nem como cultura, nem como ficção, o
imaginário lusófono se nos define hoje nos tão celebrados e gastos termos camonianos de
uma só alma pelo mundo em pedaços repartida. O imaginário lusófono tornou-se, defi-
nitivamente, o da pluralidade e da diferença e é através desta evidência que nos cabe, ou
nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a um espaço cultural
fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido de partilha em comum, só pode existir
pelo conhecimento cada vez mais sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade
e dessa diferença. Se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na
14 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

medida do possível, como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana,


cabo-verdiana ou são-tomense.” (A Nau de Ícaro, 1999: 112).
A aposta do CEI em patrocinar este tipo de iniciativas não faz esquecer estes conse-
lhos nem a preocupação de Eduardo Lourenço quanto à “famosa problematização do nosso
destino que nos causava tantos problemas enquanto peninsulares que se viam como atores
políticos de segunda grandeza, de segunda instância. Se nós pensamos que, particularmente
a América Latina, é filha direta da Península nós não podemos ser problematizados a esse tí-
tulo. A esse título, já sem o sabermos, essa existência transatlântica fazia que não sentíssemos
tanto as humilhações que tínhamos em relação à “outra” Europa. Estávamos construindo
algo que nós nem sabíamos o que era, maior do que nós e isso não é o nosso passado, isso é
o nosso presente e penso que será realmente o nosso futuro. O nosso futuro está naquilo que
realmente inventámos, trazendo à Europa uma Europa que ela não conhecia” (2011).

4
https://www.cei.pt/transversalidades/
https://www.cei.pt/transversalidades/vi-encontros-imagem-e-territorio.html

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Os Países de Língua Portuguesa (PLP), dispersos por diferentes continentes (América
do Sul, África, Europa e Oceânia), são bem diversos em termos naturais, económicos,
sociais, culturais e políticos. As respetivas localizações e os processos históricos e de in-
tegração regional não impactam como potenciam tais diversidades, reconfigurando uma
geografia, ainda mais rica e complexa, que alberga perto de 280 milhões de falantes e faz do
português a língua mais falada no hemisfério sul e a quinta a nível mundial. A diversidade
do quadro natural e as especificidades dos contextos humanos acentuam as assimetrias e
conferem mais complexidade aos processos de desenvolvimento e integração territorial, a
qualquer escala, da local e urbana à metropolitana, da regional à supranacional.
O estudo comparativo das Geografias dos Países de Língua Portuguesa permitirá iden-
tificar similitudes, encontrar divergências e mapear novas configurações ambientais, eco-
nómicos, sociais, culturais. Além de maior empenho teórico, metodológicos e operativo
para analisar realidades tão distintas e a diversidade de processos que estão a ocorrer nos
diferentes países o desenvolvimento do projeto As Novas Geografias dos Países de Língua
Portuguesa pressupõe:
(i) Intensificar a internacionalização do CEI alargando as parcerias a novas instituições
dos Países de Língua Portuguesa. Além das parcerias já consolidadas importa criar condi-
ções para uma participação mais ativa nas atividades do CEI de investigadores de outras
Universidades.
(ii) Integrar redes para dinamizar a investigação, promover a inovação e qualificar pessoas
e territórios. Integrar investigadores e divulgar a investigação em curso nos PLP, fomentar
a análise comparativa da diversidade paisagística e sociocultural de espaços localizados em

15 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
vários continentes, interpretar as dinâmicas socio-territoriais, rápidas e profundas, que
estão a ocorrer em Portugal e no mundo que fala português.
(iii) Consolidar o projeto, difundir resultados, promover boas práticas. A realização de
eventos no âmbito do projeto permitirá comparar metodologias de trabalho, divulgar
resultados, qualificar investigadores e dar a conhecer centros de investigação.

A informação, rica e diversificada, que o CEI continua a acumular é um inegável


património que está a ser construído coletivamente. Pela preciosa, qualificada e generosa
colaboração impõe-se um reconhecido agradecimento aos autores que tornaram possível
esta coletânea. O CEI, ao promover a sua difusão, não só dignifica o projeto como acom-
panha Eduardo Lourenço na convicção que é “a esperança, o sonho, a utopia, que são a sua
substância já incorporada no nosso presente, coabitam connosco e guiam todos os nossos passos e
pensamentos” (A Nau de Ícaro, 1999: 62).

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Referências. Publicações do CEI

Coleção Iberografias
- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa. Paisagens, Territórios, Políticas no Brasil e
em Portugal (Coleção Iberografias, n.º 16, 2010).
- Interioridade / Insularidade; Despovoamento / Desertificação. Paisagens, Riscos Naturais e
Educação Ambiental em Portugal e Cabo Verde (n.º 17, 2011).
- Condições de vida, Coesão social e Cooperação Territorial (n.º 25, 2013).
- Paisagens e Dinâmicas Territoriais em Portugal e no Brasil. As Novas Geografias dos Países de
Língua Portuguesa (n.º 26, 2014).
- Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança: Paisagens e patrimónios, permanências e mobili-
dades (n.º 30, 2016).
- Diálogos (Trans)fronteiriços – Património, Territórios, Culturas (n.º 31, 2017)
- Lugares e territórios: património, turismo sustentável, coesão territorial (n.º 33, 2018).
- Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura (n.º 35, 2019).
- Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Cooperação e Desenvolvimento Territorial (n.º 36, 2019).
- As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa: Cooperação e Desenvolvimento (n.º 38,
2020).
- Geografias & Poéticas da Fronteira: Leituras do território (n.º 39, 2021).
- Dinâmicas Sócioeconómicas em diferentes contextos territoriais (n.º 40, 2021).
- Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil (n.º 40, 2021).
- Paisagens e Desenvolvimento Rural (n.º 42, 2022).
- Sociedade e Memória dos Territórios (n.º 43, 2022).
16 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Iberografias. Revista de Estudos Ibéricos


Publicação anual, editada pelo CEI, onde se encontram vários capítulos em diversos números dedi-
cados às Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa, designadamente:
(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros e Nós Terra, Nós Geografia Contributos para uma
Geografia de Cabo Verde (n.º 11, 2015);
Geografia e Poética do Olhar, um diálogo geofotográfico entre geógrafos portugueses e brasileiros
(n.º 12, 2016; n.º 13, 2017);
Geografia de Moçambique (n.º 13, 2017);
Patrimónios e Território (n.º 14, 2018);
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa n.º 16, 2020) e (n.º 18, 2022).

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I. PAISAGEM, RECURSOS, TURISMO
II. II

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Por uma análise da fisiologia da paisagem:
aplicada ao Pontal do Paranapanema

Messias Modesto dos Passos1


Diogo Laércio Gonçalves2
Juliane Maistro3

Introdução

“A paisagem é o reflexo e a marca impressa da sociedade dos homens na natureza.


Ela faz parte de nós mesmos. Como um espelho, ela nos reflete. Ao mesmo tempo,
ferramenta e cenário. Como nós e conosco, ela evolui, móvel e frágil. Nem estática,
nem condenada. Precisamos fazê-la viver, pois nenhum homem, nenhuma sociedade,

19 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
pode viver sem território, sem identidade, sem paisagem.” (Bertrand, 2007).

Pintura, literatura, arte dos jardins foram, por essência, elitistas e, à exceção dos jardins
japoneses, não se vulgarizaram antes do fim do século XIX e início do século XX. A ideia
de paisagem, mais ou menos bem abordada segundo os tempos, os lugares e as disciplinas,
ficou por muito tempo um negócio de iniciados.
A partir do século XIX, o termo paisagem é profundamente utilizado em Geografia e,
em geral, se concebe como o conjunto de “formas” que caracterizam um setor determinado
da superfície terrestre. A partir desta concepção que considera puramente as formas, o que
se distingue é a heterogeneidade da homogeneidade, de modo que se podem analisar os

1
Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT-UNESP, Presidente Prudente/SP-Brasil,
mmpassos86@gmail.com
2
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT-UNESP, Presidente Prudente/SP-Brasil,
diogo.goncalves@unesp.br
3
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT-UNESP, Presidente Prudente/SP-Brasil,
julianemaistro@gmail.com

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elementos em função de sua forma e magnitude e, assim, obter uma classificação de pai-
sagens: morfológicas, vegetais, agrárias etc. Esse conceito de paisagem foi introduzido em
Geografia por A. Hommeyerem mediante a forma alemã Landschaft, entendendo exata-
mente por este termo, o conjunto de elementos observáveis desde um ponto alto.
As línguas germânicas apresentam um claro paralelismo através da palavra originária
land, com um sentido praticamente igual e da qual derivam landschaft (alemão), landscape
(inglês), landschap (holandês) etc. Esse significado de espaço territorial, mais ou menos
definido, remonta ao momento da aparição das línguas vernáculas e podemos dizer que
esse sentido original, com certas correções, é válido ainda hoje.
A possibilidade de deslocamentos mais rápidos, as epopeias coloniais, a aparição e a
difusão da fotografia, o papel da imprensa, o acesso aos romances de aventuras ou regiona-
listas, a tomada de consciência das agressões das quais as paisagens são vítimas etc., levam
à tomada de consciência coletiva da noção comum de paisagem.
A Geografia sempre utilizou a paisagem como uma ferramenta de observação e de hie-
rarquização dos fenômenos espaciais, sem que, aliás, verdadeiros consensos metodológicos
acontecessem ou fossem impostos sobre níveis pertinentes de análise.
Inicialmente lembremos que há três diferentes correntes de estudo da paisagem:
.uma corrente naturalista
.uma corrente sensível
.uma corrente mais flexível
No entanto, a paisagem, sobretudo considerada no seu aspecto dinâmico de “proces-
sos paisagísticos” deve ser estudada como um “polisistema” formado pela combinação dos
20 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sistemas natural, social, econômico, cultural etc.


Para abordar a paisagem adotamos três entradas: materialidade, sensibilidade e repre-
sentação. Esse posicionamento, conhecido como Tripé Paisagístico deixa, de acordo com
os questionamentos iniciais, com a realidade da região de estudo e com os objetivos, a
liberdade de privilegiar mais ou menos cada uma das entradas. Porém, é na sua utilização
completa que ela atinge de maneira mais eficaz seus objetivos.  
A paisagem se presta, entre outras finalidades, para enraizar o meio ambiente no ter-
ritório dos homens e na longa história das sociedades (enfim, são as sucessivas sociedades
que constroem as sucessivas paisagens como lugar para morar, trabalhar e sonhar...).
Abordar a paisagem como uma questão transversal – e de travessia4 – suscita muito mais
interrogações que afirmações. A citação de Michel Serres “Le paysage revient inattendu dans le

4
Aqui, Transversal – e de travessia é uma referência ao livro Une géographie traversière. L’environnement à
travers territoires et temporalités, de autoria de Bertrand C et G. (2002). Paris: Arguments, 309 p.

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vide où le système comme un arc-en ciel dans le pré »5, página 229, Les cinq sens, Grasset, 1983,
coloca as questões essenciais inerentes à paisagem e nos irterpela sobre muitos pontos:
• O retorno da paisagem: foi preciso esperar o fim dos Trinta Gloriosos para que se ti-
vesse um olhar de interesse pela paisagem, há muito tempo esquecida, notadamente
pelos gestores do território;
• A relação entre paisagem e sistema;
• A abordagem sensível, poética e cultural, que marca o retorno da paisagem através
da imagem do arco-íris.
A primeira dificuldade desde que se fala de paisagem é lhe dar uma definição.
Segundo um provérbio chinês “a paisagem está ao mesmo tempo na frente dos olhos e atrás
dos olhos”. Cada um de nós tem uma imagem associada à paisagem e a define através de
suas próprias referências. E mais, todos os povos não exprimem a noção de paisagem.
Esta concepção vaga tem um sentido diferente em função das línguas e das culturas. Os
rurais não falam de paisagem, eles falam da terra: “a gente cultiva a terra” e a gente “olha
a paisagem”.

A fisiologia da paisagem

Introduzida no currículo de bacharelado do Departamento de Geografia da


Faculdade de Filosofia da USP em 1968, por inspiração do Prof. Aziz Nacib Ab’Sáber,
a disciplina Fisiologia da Paisagem propunha três objetivos, conforme consta na Ementa
da disciplina:

21 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
1. Levar à compreensão da organização, do funcionamento e da dinâmica das paisa-
gens, especialmente as tropicais;
2. Enfatizar o estudo e a análise integrada dos elementos constituintes das paisagens;
3. Compreender e discutir conceitos, leis e influências das ações antrópicas.
Sem obscurecer a grande contribuição do Prof. Aziz, somos da opinião de que as
melhores tentativas de compreensão do complexo paisagem, a partir do entendimento de
sua estrutura, funcionamento e dinâmica se deram-se a partir da Ciência da Paisagem na
ex-URSS (Landschaftovedenie), tendo em Sochava a Figura maiúscula na elaboração do

5
“A paisagem retorna, inesperada, para o vazio ou o sistema como um arco-íris no prado.”

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modelo teórico geossistêmico, que se valeu de uma longa e contínua evolução epistemoló-
gica da Geografia Física Complexa desenvolvida na ex-URSS6.
Atribuímos à Bertrand (1967) o mérito de, a partir de uma ruptura epistemológica
da Geografia francesa, passar da “descrição monográfica subjetiva” para o modelo teóri-
co geossistêmico com ênfase para as relações sociedade-natureza.
Apesar de ser coerente se considerar “Paysage et géographie physique globale.
Esquisse méthodologique” como o artigo fundador de Bertrand, é preciso lembrar que
Claude e Georges Bertrand começaram suas investigações nos anos 1950, quando a
geografia em muitos países estava perdendo seu caráter integrador e não propunha
os métodos adequados para o estudo do meio natural em sua globalidade. Buscando
um novo conceito na tentativa de recuperar o papel da geografia no estudo do meio
ambiente se inspiram na ecologia norte-americana, na “Landschaftskunde” alemã, na
teoria de sistema e de conjuntos, no conceito de geossistema soviético e em alguns
conceitos e métodos de análise integrada. Os autores propõem sua própria metodo-
logia de estudo geográfico do meio ambiente que se baseia no conceito de geossiste-
ma. Ainda que o termo e alguns de seus elementos principais foram emprestados do
modelo naturalista e quantitativo soviético (V.B. Sochava, A.G. Isachenko). Georges
Bertrand adapta o conceito de geossistema a uma realidade distinta, a dos países da
Europa Ocidental, com paisagens extremamente antropizadas, porém também às li-
mitações dos recursos materiais dos laboratórios franceses, incomparáveis, nos anos
1960-80, com os soviéticos, simplificando e propondo um modelo mais qualitativo
e antropizado.
22 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Inicialmente Bertrand considerava o geossistema como uma das unidades horizon-


tais do terreno: geossistema, geofacies e geótopo. Mais tarde, ele próprio reconhece que

6
) Le géosystème soviétique a été inventé pour contribuer à la connaissance pratique des terres vierges
de Sibérie à l’échelle d’un continent. Si les ressemblances et les emprunts sont nombreux, il diffère
fondamentalement du géosystème “cantabrique”. D’une part, c’est un concept strictement matérialiste
et naturaliste qui ne fait idéologiquement aucune place à la société et à son impact sur la nature (N.
Beroutchachvili). D’autre part, il est fondé sur un grand projet de colonisation et s’appuie sur de puis-
santes méthodes et technologies de terrain hors de notre portée - Extraído de: Texte remanié de la con-
férence de clôture prononcée en espagnol à l’Université de Cantabria (Santander) à l’occasion du “día de
la Geografía” le 18 octobre 2013, p. 16.

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o geossistema é tão somente um modelo e, portanto, uma abstração e, passa a definir as
unidades de terreno, de forma hierárquica: geótopo, geofácies e geocomplexo7.
O modelo geossistêmico bertrandiano é constituído de três subsistemas: potencial
ecológico/abiótico, exploração biológica/biótico e ação antrópica.
Segundo Bertrand, os especialistas em ciências naturais e os ecólogos não viam com
bons olhos o cômputo da intervenção humana. E o que Bertrand fez, na verdade, foi
inserir o antrópico no modelo russo – este limitado aos dois subsistemas: potencial eco-
lógico e exploração biológica –, ou seja, partir do pressuposto de que a “natureza não é
natural”, pois, está irremediavelmente impactada pela sociedade.
O fato da natureza está impactada – pela sociedade – não cria ao geossistema o com-
promisso de estudar a sociedade e, sim, o funcionamento do território modificado pela
sociedade, portanto, o Geossistema é um conceito antrópico.
O Geossistema é um problema ambiental clássico/um conceito naturalista ama-
durecido. Há outra dimensão ambiental: a paisagem. Como as sucessivas sociedades
constroem as sucessivas paisagens para morar, trabalhar e sonhar? É um problema social,
econômico e, também, da “vida das pessoas”... Passamos do Geossistema para a história
da área, da memória das pessoas.
Atrás da noção de meio ambiente há um modo de ver, de interpretar e de viver o
mundo, ao mesmo tempo global e interativo, que supera e impregna toda análise cien-
tífica. Ele faz parte da cultura contemporânea da mesma forma que as noções de identi-
dade, de patrimônio, de desenvolvimento, de paisagem. O meio ambiente é muito mais
do que um conceito científico.

23 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
O fenômeno ambiental nasceu da humanização e da socialização. Ele foi primei-
ramente cosmogônico e religioso. Para compreendê-lo e dominar seu sentido e seus
recursos, a ciência e a técnica o dividiram em frações de saber cada vez mais finas e cada
vez mais eficientes, até perder de vista a totalidade e a interatividade.
Só tardiamente, ao longo dos séculos XVIII e XIX, por caminhos diversos e nem
sempre convergentes, que certos exploradores e cientistas (sociólogos americanos, na-
turalistas alemães e anglo-saxônicos, geógrafos alemães e franceses, depois ecologistas)

7
A l’origine de la méthode nous avons utilisé le terme de géosystème pour désigner à la fois le concept gé-
néral et une unité spatiale intermédiaire entre le géofaciés et le pays. L’erreur a été répercutée dans tous les
travaux jusque dans les années 1970, en particulier dans les applications cartographiques (Pérou, Pyrénées)
y compris dans les montagnes cantabriques. Cette regrettable confusion a été corrigée à la suite des critiques
de chercheurs soviétiques (D. L. Armand, V. B. Sochava et N. Beroutchachvili). Depuis nous réservons
le terme de géosystème au concept général et abstrait, détaché de toute unité territoriale concrète. Dans
l’échelle temporo-spatiale de référence et la cartographie afférente, le terme de géosystème est remplacé par
celui de géocomplexe (géotope, géofaciès, géocomplexe, pays, région...). - Extraído de: Texte remanié de la
conférence de clôture prononcée en espagnol à l’Université de Cantabria (Santander) à l’occasion du “día de
la Geografía” le 18 octobre 2013, p. 17.

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sentiram a necessidade, ao mesmo tempo cultural e científica, de estruturar parcial-
mente aquilo que havia sido separado e de considerá-lo como um todo, primeiramente
como uma estrutura, em seguida como um sistema funcional. Houve primeiramen-
te uma concepção naturalista do meio ambiente, no início tendo como objeto as
plantas e os animais, em seguida a biocenose, enfim, uma concepção ecologicamente
mais elaborada, em parte inspirada pelo conceito de ecossistema. Um limite decisi-
vo foi superado com a consideração da dimensão social e a exploração da interface
natureza-sociedade.
A introdução da dimensão social e cultural vem então reforçar e completar a
noção de diversidade que não é apenas de ordem biológica. É bem sabido que o meio
ambiente de uns não é o meio ambiente de outros e que muitas incompreensões e
conflitos nascem desta situação. Aqui, tocamos exatamente um dos pontos mais sen-
síveis do desenvolvimento sustentável que a pesquisa sobre ou para o meio ambiente
não poderá atingir se não seguir um caminho obrigatório através das culturas e das
práticas sociais.
Desde a origem, a pesquisa sobre o meio ambiente está indissoluvel-
mente ligada à interdisciplinaridade

Esta é, de fato, sua razão de ser, mas também seu tormento, na medida em que esta
situação excepcional é dificilmente admitida pelas disciplinas constituídas e não é cla-
ramente reconhecida e bem administrada pelas instituições científicas e administrativas.
Os estudos sobre o meio ambiente, sobretudo quando eles se situam na interface entre as
24 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ciências da sociedade e as ciências da natureza, são ainda, com muita frequência, uma rea-
lização de “invasores de fronteiras”, espécie de contrabandistas da pesquisa cuja existência
é certamente reconhecida, mas aos quais é permanentemente pedido que justifiquem sua
identidade e sua atividade.
A dimensão social e o procedimento interdisciplinar não são as duas únicas questões
agudas que vão condicionar a pesquisa futura sobre o meio ambiente e sua operaciona-
lidade. Problemas de método que não podemos analisar aqui também se apresentam: a
extensão da análise de sistema às ciências sociais, a dialética entre a monografia e o modelo,
o reconhecimento das temporalidades, ritmos, periodizações específicas ao meio ambiente
e, muito especialmente, a durabilidade que falta inscrever nas temporalidades e nos ritmos.
Seria preciso, em todos estes campos e em muitos outros, poder trazer propostas que não
fossem dispersas e disparatadas. O meio ambiente se tornou um campo científico vasto,
vago, mas reconhecido. Não teria chegado o tempo, pelo menos em termos de prospecção e
de cenário, de considerar a construção de uma espécie de paradigma ambiental, ao mesmo
tempo centralizador e amplamente aberto para o conjunto das disciplinas envolvidas?

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A dinâmica da paisagem

Se há um contraste de paisagem, há, também, um contraste político-adminis-


trativo. Para conhecer a Geografia Física é preciso conhecer os problemas sociais,
econômicos, administrativos...

Considerando a paisagem como uma entidade global, admite-se implicitamente que


os elementos que a constituem participam de uma dinâmica comum que não correspon-
de obrigatoriamente à evolução de cada um dentre eles tomados separadamente. Somos
levados então a procurar os mecanismos gerais da paisagem, em particular no âmbito dos
geossistemas e dos geofácies.
O sistema de evolução de uma unidade de paisagem reúne todas as formas de energia,
complementares ou antagônicas que, reagindo dialeticamente umas em relação às outras,
determinam a evolução geral dessa paisagem. Para as necessidades da análise, podem-se
isolar três conjuntos diferentes no interior de um mesmo sistema de evolução. Com efeito,
eles estão estreitamente solidários e se entrecruzam largamente:
. O sistema geomorfogenético tal qual o compreendem os geomorfologistas modernos
que insistem no seu caráter dinâmico e biocliomático (J. Tricart);
. A dinâmica biológica que intervém ao nível do tapete vegetal e dos solos. Ela é de-
terminada por toda cadeia de reações ecofisiológicas que se manifestam através dos fenô-
menos de adaptação (ecótipos), de plasticidade, de disseminação, de concorrência entre as
espécies ou as formações vegetais etc., com prolongamentos no nível dos solos;

25 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
. O sistema de exploração antrópica que tem muitas vezes um papel determinante, seja
ativando ou desencadeando erosões, seja somente modificando a vegetação ou o solo (des-
matamento, reflorestamento...).
O sistema de evolução se define por uma série de agentes e de processos mais ou menos
bem hierarquizados. Sem querer desenvolver aqui essa questão, podem ser distinguidos
agentes naturais (climáticos, biológicos etc.) que determinam processos naturais (ravina-
mentos, pedogênese, dinâmica ecofisiológica...) e agentes antrópicos (sociedades agropas-
toris, florestais...) dos quais dependem os processos antrópicos (desmatamento, incêndio
reflorestamento). Se não é nunca fácil apreciar a importância de determinado agente ou
de determinado processo isolado, é, no entanto, possível classificar os sistemas de evolução
em função dos fatores dominantes (geomorfogenético, antrópico...). É já um primeiro
esboço de classificação das paisagens.
As tipologias estritamente fisionômicas (vertente florestal, chapada arenítica reco-
berto com vegetação de cerrado) ou ecológicas (geossistemas tropicais, atlântico, monta-
nhês...) não deram os resultados esperados. Elas são cômodas, mas carecem de rigor e sua

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generalização é difícil. A escolha caiu numa tipologia dinâmica que classifica os geossiste-
mas em função de sua evolução e que engloba através disso todos os aspectos das paisagens.
Ela leva em conta três elementos: o sistema de evolução, o estágio atingido em relação ao
clímax, o sentido geral da dinâmica (progressiva, regressiva, estabilidade). Esta tipologia
se inspira, portanto, na teoria de bioresistasia de H. Erhart. Foram distinguidos 7 tipos de
geossistemas agrupados em 2 conjuntos dinâmicos diferentes.

Os geossistemas em biostasia

Trata-se de paisagens em que a atividade geomorfogenética é fraca ou nula. O poten-


cial ecológico é, no caso, mais ou menos estável. O sistema de evolução é dominado pelos
agentes e os processos bioquímicos: pedogênese, concorrência entre as espécies vegetais
etc. A intervenção antrópica pode provocar uma dinâmica regressiva da vegetação e dos
solos, mas ela nunca compromete gravemente o equilíbrio entre o potencial ecológico e
a exploração biológica. Esses geosistemas em estado de biostasia classificam-se de acordo
com sua maior ou menor estabilidade.
Os geossistemas climáticos, plesioclimáticos ou subclimáticos correspondem a paisagens
onde o clímax é mais ou menos bem conservado, por exemplo, uma vertente montanhosa
sombreada com cobertura viva (P. Birot) contínua e estável, formada por uma floresta
tropical em solos evoluídos. A intervenção humana, de caráter limitado, não compromete
o equilíbrio de conjunto do geossistema. No caso de um desmatamento ou mesmo de
acidente natural (corrida de lama), observa-se bem rapidamente uma reconstituição da
26 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

cobertura vegetal e dos solos; o potencial ecológico não parece modificado.


Os geossistemas paraclimácicos aparecem no decorrer de uma evolução regressiva, ge-
ralmente de origem antrópica, logo que se opera um bloqueamento relativamente longo
ligado a uma modificação parcial do potencial ecológico ou da exploração biológica.
A base aqui é de origem pedológica. A podzolização interdita todo retorno espontâneo
do clímax florestal. A evolução não pode prosseguir senão artificialmente para uma outra
forma de clímax (reflorestamento com resinosas após aração profunda).
Os geossistemas degradados com dinâmica progressiva são bem frequentes nas mon-
tanhas temperadas úmidas submetidas ao êxodo rural. Os territórios rurais cultivados pas-
sam ao abandono, com landes, capoeiras e retorno a um estado floresta-clímax. É o caso
de certas áreas declivosas dos territórios rurais da Serra da Mantiqueira, por exemplo, que
se cobrem de mata com elevada biodiversidade que não constituem obrigatoriamente a
frente pioneira da floresta de vegetação-clímax anteriormente destruída.
Os geossistemas degradados com dinâmica regressiva sem modificação importante do potencial
ecológico representam as paisagens não afrouxadas ou ainda Serra do Mar com economia

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agropastoril. A vegetação é modificada ou destruída, os solos são transformados pelas práticas
culturais e o percurso dos animais. No entanto, o equilíbrio ecológico não é rompido, mal-
grado um início de ressecamento ecológico. As erosões mecânicas, sempre muito localizadas,
guardam um caráter excepcional (por exemplo, ao longo dos caminhos vicinais).

Os geossistemas em resistasia

A geomorfogênese domina a dinâmica global das paisagens. A erosão, o transporte e a


acumulação dos detritos de toda a sorte (húmus, detritos vegetais, horizontes pedológicos,
mantos superficiais e fragmentos de rocha in loco) levam a uma mobilidade das vertentes
e a uma modificação mais ou menos possante do potencial ecológico. A geomorfogênese
contraria a pedogênese e a colonização vegetal. No entanto, é preciso distinguir os 2 níveis
de intensidade:
De um lado, os casos de resistasia verdadeira ligados a uma crise geomorfoclimá-
tica capaz de modificar o modelado e o relevo. O sistema de evolução das paisagens
se reduz então ao sistema de erosão clássico. A destruição da vegetação e do solo pode
nesse caso ser total. Cria-se um geossistema inteiramente novo. Este fenômeno é fre-
quente nas margens das regiões áridas e mesmo em regiões tropicais, submetidas à
agricultura intensiva, sem técnicas de conservação do solo, como acontece no Pontal
do Paranapanema, por exemplo, onde ele é muitas vezes acelerado pela exploração an-
trópica. Pode tratar-se também de uma ruptura de equilíbrio catastrófica (por exemplo,
lava torrencial em montanha).

27 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Por outro lado, os casos de resistasia limitada à cobertura viva da vertente, isto é, à parte
superficial das vertentes: vegetação, restos vegetais, húmus, solos e, às vezes, manto super-
ficial e lençóis freáticos epidérmicos. Esta evolução ainda não interessou suficientemente
aos geógrafos e aos biogeógrafos. É certo que ela é quase negligenciável do ponto de vista
geomorfológico porque ela não cria relevos, mesmo que anuncie às vezes os inícios de uma
crise geomorfológica. No entanto, seu interesse é capital do ponto de vista biogeográfico
porque ela mobiliza toda a parte biologicamente ativa da vertente. Pode-se qualificar esta
erosão de epidérmica para bem distingui-la da erosão verdadeira ou geomorfológica e para
evitar as confusões e as discussões inúteis que durante certo tempo puseram em oposição
contra e a favor da erosão sob cobertura vegetal: eles não falavam do mesmo tipo de erosão
nem da mesma cobertura vegetal e não situavam na mesma escala. A erosão epidérmica
tinha já sido definida sob o nome de erosão biológica (G. Bertrand, ibid. Note 19,140-
143), mas este qualificativo era uma fonte de confusão. A tipologia dos geossistemas em
resistasia deve levar em conta todos esses fatos.

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Os geossistemas com geomorfogênese natural. Nas regiões áridas e semi-áridas, assim
como na alta montanha, a erosão faz parte do clímax, isto é, ela contribui a limitar natu-
ralmente o desenvolvimento da vegetação e dos solos (vertente montanhosa com talude
de detritos móvel, superfície de um glacis de erosão alimentado por escoamento anasto-
mosado de oued).
Os geossistemas regressivos com geomorfogênese ligada à ação antrópica. Já se insistiu lon-
gamente sobre este aspecto da dinâmica das paisagens. É preciso encarar 3 casos: primeiro,
os geossistemas em resistasia bioclimática cuja geomorfogênese é ativada pelo homem. Em
seguida, os geossistemas marginais em mosaico, isto é, com geofácies em resistasia e com
geofácies em biostasia, caracterizados por certo desequilíbrio e certa fragilidade natural. O
exemplo típico é o do domínio mediterrâneo cuja degradação não está ligada somente ao
fator antrópico. Enfim, os geossistemas regressivos e com potencial ecológico degradado
que se desenvolve por intervenção antrópica no seio das paisagens em plena biostasia (cer-
tas culturas de plantation em economia colonial).
Este esboço tipológico deve ser sumariamente colocado na dupla perspectiva do tempo
e do espaço.
No tempo, o problema mais delicado é considerar a parte das heranças. Com efeito,
essas não são somente geomorfológicas e pedológicas, mas também florísticas e antrópi-
cas. Seria preciso reconstituir a cadeia histórica dos geossistemas, sobretudo levando em
conta a alternância e a duração respectiva das fases de equilíbrio biológico e das fases da
atividade geomorfológica. Os resultados combinados da análise de pólen, do exame dos
depósitos superficiais e dos paleo-solos, do estudo da ação humana, desde os inícios da
28 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

vida pastoril e da agricultura, permitem às vezes obter-se uma ideia precisa da dinâmica re-
cente das paisagens. As Áreas de Preservação Permanente e Matas Ciliares da raia divisória
São Paulo-Mato Grosso do Sul se prestam bem a essa pesquisa graças aos levantamentos
fitossociológicos.
No espaço, a justaposição dos geossistemas é um fato geral. No entanto, os geossiste-
mas com equilíbrio biológico ocorrem, sobretudo, nas zonas temperadas tropicais úmidas,
assim como em certas regiões de planície. A alta montanha e as diagonais áridas abrigam
os geossistemas com maior ou menor atividade geomorfogenética. A exploração antrópi-
ca está em vias de perturbar esta distribuição essencialmente bioclimática estendendo os
geossistemas em desequilíbrio biológico. Mas a erosão geomorfológica, muitas vezes rápida
e espetacular, não se exerce senão em superfícies reduzidas. Em compensação, o verdadeiro
perigo do ponto de vista da organização do espaço é a erosão epidérmica que, de forma às
vezes insidiosa, arranha a película viva das vertentes em setores extensos sem que se preste
a ela uma real atenção. O estudo da distribuição espacial dos geossistemas é, pois, um pro-
blema de geografia ativa que vem reforçar o interesse da pesquisa cartográfica.

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A dinâmica/fisiologia da paisagem no Pontal do Paranapanema

A história territorial do Pontal do Paranapanema é reflexo dessa realidade nacional,


ou seja, as dinâmicas socioambientais desta região se deram, também, de forma muito
rápida, cíclica e pouco duradoura, refletindo nas transformações históricas e na dinâ-
mica atual da paisagem, ou seja, no potencial ecológico, na exploração biológica e nos
agentes e sujeitos sociais. A compreensão dessas dinâmicas apenas será possível a partir
da convergência de diferentes perspectivas: estudo sobre o meio ambiente, sobre o de-
senvolvimento rural, sobre planejamento regional e urbano, e, ainda, sobre as dinâmicas
socioambientais e territoriais. Nesse sentido, é preciso desenvolver estudos dentro do
contexto econômico e social predominante ao longo da história de ocupação desse ter-
ritório e, sobretudo, termos em consideração as “sucessivas sociedades” e suas relações
com o meio, isto é, (1) a degradação do meio ambiente a partir de uma análise integra-
da: desmatamento-erosão-assoreamento-desperenização dos cursos d´água; (2) a história
do uso e da propriedade da terra; (3) dos impactos das grandes obras – hidrelétricas,
usinas de álcool e (4) dos reflexos das alterações do potencial ecológico e da exploração
biológica sobre a sustentabilidade do desenvolvimento local-regional. O desafio que está
colocado para o geógrafo é ‘territorializar’ o meio ambiente e, com isso, tentar superar a
análise setorizada, onde as disciplinas e, consequentemente o conhecimento científico,
estavam isoladas.

A análise integrada da paisagem

29 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Dos três níveis de tratamento propostos por AB’SÁBER (1969) no desenvolvimento
dos estudos geomorfológicos, o que trata de compreender globalmente a fisiologia da pai-
sagem é o que se identifica mais plenamente com a proposta de nossa pesquisa.
O estudo integrado do “sistema natural” envolve problemas de dinâmica e de compar-
timentação, caracterizados estes na escolha das “unidades elementares da paisagem”.
O Pontal do Paranapanema, apresenta uma certa homogeneidade geomorfológica, litoló-
gica e climática, que se por um lado dificulta a cartografia das “unidades elementares da pai-
sagem”, uma vez que esta homogeneidade mascara a individualidade da ação dos elementos
do meio, de outro, realça a dinâmica do todo, responsável pela individualidade da paisagem.
Essa “homogeneidade”, vai em parte, desaparecer à medida que a exploração antrópica,
elimina ou modifica a cobertura florestal e contribui, desse modo, para que os agentes climá-
ticos tenham uma atuação morfogenética mais vigorosa, diversificando a paisagem e criando
um verdadeiro mosaico de setores que equivalem a um “mostruário” para o observador.

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A análise da fisiologia da paisagem no Pontal do Paranapanema (Figura 1) tem como
recorte geográfico, mais específico e mais detalhado, a bacia hidrográfica do ribeirão Santo
Antônio (Figura 2).

Figura 1 - Imagem Landsat TM - CC 453 – 05/08/2001que se presta Figura 2 (à direita) - Córrego do


para mostrar o uso da terra, com destaque para os reservatórios da Engano ou Santo Antonio (Landsat
UHE de Porto Primavera, no rio Paraná (ao norte) e de Rosana, no rio 1999 – CC 453). Imagem tratada
Paranapanema (ao sul). Aplicando-se um zoom na imagem, percebe-se no Laboratoire Costel – Université
30 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

com maior clareza os cursos fluviais, desprovidos de matas ciliares. Rennes 2 – France.

A unidade da paisagem e a compartimentação geomorfológica

Os chapadões ocidentais paulistas compreendem uma área de algumas dezenas de


milhares de quilômetros quadrados, situada no extremo oeste do estado de São Paulo, a
partir de 80-100 km à retaguarda das escarpas arenítico-basálticas e do bordo ocidental dos
planaltos residuais cretácicos (Serra de Agudos e do Mirante, Planalto de Marília; Serra de
Dourados e de Brotas ou Planalto de Dourados).
No extremo-oeste, o relevo regional se traduz por um tipo de arranjo estrutural sob
o controle de camadas praticamente horizontais e subhorizontais, embora ocorra com
frequência a formação de escarpas devido à diferente litologia, ao estado de agregação ou à
cimentação da rocha. Nas folhas topográficas estas áreas são facilmente identificáveis pelo
maior adensamento da rede hidrográfica.

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A área ocupada pela Formação Caiuá possui um relevo mais suave, com poucos e peque-
nos cursos de água, apesar do alto índice pluviométrico. A monotonia do relevo é quebrada
pelo aparecimento de morros testemunhos e pequenas escarpas, assim como por morros
isolados de pouca altura, formados por cascalheiras - presentes nas proximidades do rio
Paranapanema.
No Pontal do Paranapanema a área rebaixada dos chapadões ocidentais paulistas passa
a incidir sobre estruturas cada vez mais antigas que a Formação Bauru; a princípio, no
Pontal e no extremo Norte do Paraná, são os arenitos da formação Caiuá e depois, os
basaltos do Terceiro Planalto Paranaense, que foram afetados pelo rabaixamento erosivo
e pela pediplanação neogênicos (AB’Sáber, 1969). O Morro do Diabo, o Morro Santa
Ida e do Três Morrinhos, esses três últimos localizados no município de Terra Rica (PR),
são testemunhos da antiga extensão dos arenitos da Série Bauru, ao mesmo tempo que se
comportam como relevos residuais do pediplano neogênico, nessa área extremo-oeste dos
baixos chapadões ocidentais.
Mesmo reconhecendo que o Pontal possui filiação evolutiva muito direta com a
história paleoclimática e paleobotânica Quaternária das áreas ou zonas onde elas se ex-
pandiram e de certo modo se fixaram, temos que admitir que os processos morfocli-
máticos recentes modelaram em rochas sedimentares subhorizontais, litologicamente
homogêneas, um verdadeiro relevo de feições pouco variáveis. Criou-se uma espécie de
mar de chapadões baixos predominantemente florestados, porém dotados eventualmen-
te de “enclaves” de cerradões, cerrados (sul de Presidente Bernardes, arredores de Álvares
Machado, sul de Sandovalina e de Estrela do Norte) e de cactáceas (Presidente Epitácio,

31 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Presidente Venceslau e sobretudo na Reserva do Morro do Diabo).

Foto 1 – Exemplar de Cereus sp, localizado na Reserva Estadual do Morro do Diabo,


testemunho da ação do paleoclima do período neogênico. PASSOS: 11/09/2021.

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Em numerosas áreas, próximas do contato entre arenitos e basaltos (proximida-
de de Planalto do Sul, de Cuiabá Paulista etc.) ou em plenos espigões rebaixados,
aparecem cabeceiras em “vales” (nascentes do ribeirão Água Sumida, por exemplo),
feições exóticas muito mais vinculadas ao domínio dos chapadões do Centro-Oeste
(domínio dos cerrados) do que propriamente associados ao relevo dos chapadões
revestidos de matas. Tais domínios ou conjuntos regionais de paisagem morfocli-
mática, ora do tipo zonal, ora do tipo azonal, não dependem somente da zonação
climática atual, mas também dos efeitos acumulados de uma série de flutuações
climáticas pretéritas (AB’Sáber, 1957, 1977; Cailleux e Tricart, 1957; Tricart, 1958;
Bigarella e AB’Sáber, 1961), que atuaram no território brasileiro, sobretudo a partir
dos fins do Terciário.
Assim, segundo Landim e Soares (1976) podemos aceitar como “policíclico” o mo-
delado físico regional resultante da retomada da erosão em dois ciclos erosivos, o Ciclo
Velhas e o Ciclo Paraguaçu; também como poligênico porque foi gerado sob condições
climáticas diversas, isto é, condições semiáridas e úmidas alternantes no Plio-Pleistoceno
e condições úmidas no Holoceno (Recente e Atual).
O modelado semiárido do Plio-Pleistoceno legou à paisagem física atual formas
fisiográficas típicas, tais como morros testemunhos, relevos tabulares, paleo-pedimentos
(stone-lines), paleo-pediplanos exumados e paleocolúvios (paleotaludes), formas pretéri-
tas de deposição que sob a ação do clima úmido atual, modelaram a compartimentação
geomorfológica atual dos chapadões escalonados do Sudoeste Paulista.
No Pontal do Paranapanema é possível distinguir pelo menos quatro tipos de feições
32 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

geomorfológicas:
1. “Espigão divisor dos rios Paraná e Paranapanema”, compartimento que con-
tém a superfície de cimeira regional. Trata-se de remanescente da superfí-
cie sul-americana, esculpida nos arenitos da Formação Caiuá e da Formação
Bauru. Na área em estudo, coincide com o topo das cabeceiras dos ribeirões
de nascentes próximas à Planalto do Sul e Cuiabá Paulista (ribeirão Água
Sumida, ribeirão Cuiabá, ribeirão Nhacá). As nascentes desses córregos se
apresentam bastante dissecadas, conforme observadas in loco. É bom lembrar
que essas feições são também facilmente percebidas nas imagens de satélite.
A expansão recente da dendritificação nas cabeceiras dos pequenos afluentes,
nascidos nos espigões mais elevados (remanescentes da superfície neogênica
ou de seus relevos residuais, deposição), acompanhou de perto uma extensiva
fase de suavização de vertentes.

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2. Zona de amplas colinas de nível intermediário (250-500 m), de extensos e
aplainados, vertentes com perfis retilíneos e suavemente convexos, drenagem de
baixa densidade, padrão subdendrítico, vales abertos – prevalecentes na região.
3. Baixos terraços - superfície com altitudes de 250 metros.
4. Planícies aluviais e de canais anastomosados (entre 240 e 250 metros). Tais
planícies de inundação embutidas entre faixas de baixos terraços morfologi-
camente mal pronunciados, ora se alargam, ora se estreitam. Estão localizadas
junto à margem do rio Paranapanema, na margem do rio Paraná, junto à
confluência dos rios Paraná e Paranapanema – “Pontalzinho” – e ainda, na
curva do Paranapanema, próximo a Teodoro Sampaio, de onde era retirada a
matéria-prima (barro/argila) utilizada pelas olarias para a produção de tijolos.
Atualmente essa área está inundada pelo reservatório da Usina Hidrelétrica
de Rosana.

A carta hipsométrica da área (Figura 3), elaborado a partir da Carta Topográfica -


escala 1:250.000, folha SF-22-Y-B, mostra que as menores altitudes (240 m) estão na
confluência dos rios Paraná-Paranapanema. As maiores são encontradas no espigão divi-
sor desses dois grandes rios: na nascente do Córrego Lajeadinho (451 m) – afluente dos
ribeirão Cuiabá – próximo ao patrimônio de Planalto do Sul e nas nascentes do Córrego
do Macaco e do Córrego Água Sumida (440 m).
As cotas mais elevadas podem ser melhor localizadas na “bissetriz” do ângulo
formado pelos rios Paraná e Paranapanema, no rumo aproximado de 70º NE, isto é,

33 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
no espigão. Partindo-se da “entrada” do Pontal em direção à confluência desses rios,
temos o seguinte quadro altimétrico: as cotas são mais elevadas nas proximidades
de Planalto do Sul (450 m) e vão decaindo suavemente em direção à Rosana (330
a 340 m). Na Figura 3, os pontos mais elevados são facilmente notados pelo maior
adensamento das curvas de nível. Apesar da pequena densidade da rede de drena-
gem, nessas áreas de cotas mais elevadas, tem-se a cabeceira de pequenos córregos
ou ribeirões.
Embora o espigão divisor dos rios Paraná e Paranapanema se apresente mais largo
nas proximidades de Planalto do Sul e Ponto Alegre e, vai se estreitando à medida
que se aproxima de Rosana, as nascentes dos córregos e ribeirões – que vertem para
esses dois rios – mantêm praticamente a mesma distância entre si (2 a 5 quilômetros,
aproximadamente). Tal fato é explicado pelo maior adensamento de incisões fluviais,
denunciando uma evolução de natureza regressiva das cabeceiras, nos pontos mais
elevados do espigão divisor.

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34 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 - O encontro oblíquo dos rios Paraná e Paranapanema, bem como a disposição paralela dos seus afluen-
tes, forma um desenho bastante interessante da rede de drenagem e do relevo regional. Esta disposição paralela
dos afluentes, fruto das condições geológicas, assim como das características climáticas, deram origem a um
relevo pouco acidentado e com vales pouco profundos e retilíneos. Extraído de Jailton.

Os processos morfogenéticos atuais e a fisiologia da paisagem

Nas últimas décadas, em vários países, surgiram inúmeras tentativas para resta-
belecer a visão integrada da paisagem, com a elaboração de novos métodos, novas

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abordagens e novos paradigmas. A aplicação da teoria dos sistemas aos estudos geo-
gráficos propagou-se ampla e rapidamente entre os geógrafos e a abordagem sistê-
mica tem fornecido, há algum tempo, uma unidade metodológica a esses estudos,
revitalizando-os, dinamizando-os e fornecendo oportunidade para reconsiderações
críticas de muitos conceitos. Dentre eles, pode-se dar destaque ao conceito de pai-
sagem pois, resultante da interação de elementos diversos, que funcionam inte-
gralmente, elas são exemplos típicos de fenômenos a serem analisados através da
abordagem sistêmica.
Sempre presente no contexto geográfico, este conceito sofreu amplas considera-
ções, de acordo com a tendência teórico-metodológica que dominava em diferentes
épocas. Mas, desde a focalização global de Humboldt, passando pela perspectiva ideo-
gráfica, que originou as famosas monografia regionais com La Blache como o grande
expoente e, dentro da nova fase integradora impulsionada por Troll e ampliada pelo
enfoque geossistêmico de Sochava e pela Geografia Global de Bertrand, o objetivo
praticamente permaneceu o mesmo: a paisagem, mudando apenas a perspectiva, a
abordagem e o vocabulário. Na verdade, todas as linhas de estudo e de pesquisa reto-
maram o tema mais tradicional da prática geográfica – a paisagem – ora conferindo
este ou aquele suporte teórico.
Nas duas últimas décadas, tem havido um grande aumento no interesse pela paisa-
gem, tanto nas geociências e nas ciências biológicas, especialmente a Ecologia, quanto
nas humanas e tecnológicas. No panorama geográfico, os estudos atuais de Geografia
Física, visam a compreensão do complexo da paisagem, procurando entender a sua es-

35 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
trutura, funcionamento e dinâmica, através do enfoque geossistêmico.
Assim, ao estudar os processos morfogenéticos atuais e a fisiologia da paisagem,
acentuamos a tendência à uma análise integrada da paisagem, deixando de lado os mé-
todos separativos/elementaristas, adotados pela fisiografia e muito encontrados ainda,
em algumas obras de geografia regional.
Há uma verdadeira revolução metodológica aplicada à implementação de técnicas
dos impactos naturais e antropogênicos sobre a natureza. Algumas dessas técnicas atin-
gem alto grau de sofisticação no que diz respeito à quantificação, uso de computadores
e mesmo modelo de predição.
No presente estudo, valorizou-se a observação direta de campo, análise de fotos
Drone, imagens Landsat e dados meteorológicos. A análise dos processos morfogenéti-
cos atuais e a fisiologia da paisagem no Pontal do Paranapanema também se sustentará
na bibliografia consultada (Ruellan, F., 1953; Erhart, H., 1955; Fournier, F., 1960;
Tricart, J. et Cailleux, A., 1965; Christofoletti, A., 1968; Ploey, J. et Savat, J., 1968;
Cruz, º, 1974; Lombardi Neto e Bertoni, 1975; Sudo, H., 1980).

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Os processos morfogenéticos têm suas características definidas pela ação conjunta da
compartimentação geomorfológica, das condições geopedológicas, da dinâmica clímato-
-hidrológica, da exploração biológica e das alterações antrópicas.
Nos itens anteriores abordamos a presença desse elementos da paisagem e, nesse mo-
mento passamos a mostrar a fisiologia da paisagem determinadas pela efetiva integração,
funcionamento e evolução desses elementos.
A eliminação da cobertura vegetal natural é o início de toda uma fase resistásica. O
processo de posse e ocupação das terras do Pontal está ligado ao desmatamento e for-
mação imediata das pastagens. Em muitas glebas, primeiro se plantou o capim, depois
criou-se o boi e no final desse processo é que veio o desmatamento, consubstanciando a
posse da terra.
Onde a sequência capim-boi-”pastagem”-desmatamento definiu na área core do Pontal
uma morfogênese de impactos negativos menos significativos quando comparados às áreas
essencialmente agrícolas do município de Mirante do Paranapanema, onde a sequência
desmatamento-agricultura-exaurimento do solo-pastagem, determinou um caráter muito
mais agressivo dos agentes morfogenéticos.
Nas áreas de ocupação agrícola, os agentes morfogenéticos passaram a se manifestar
com grande agressividade, definindo uma dinâmica da paisagem com características de
ruptura: erosão em sulcos – que resultaram na formação de inúmeras voçorocas –, erosão
laminar intensa, com eliminação dos horizontes superficiais do solo, em intervalo curto
de tempo e ainda com assoreamento e desperenização de muitos córregos e ribeirões, de
grande importância na dinâmica clímato-hidrológica. A elevação do nível de base regional
36 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(rios Paraná/257m e Paranapanema/257m) em função dos reservatórios formados para


atender às usinas hidrelétricas da CESP, certamente agrava o processo de assoreamento dos
cursos d’água, conforme constatamos nas últimas observações no terreno.
O próprio processo de formação das pastagens somado às condições geo-pedológicas
e clímato-hidrológicas da área core do Pontal, impedem uma atuação mais agressiva dos
agentes morfogenéticos.
Os solos originados da Formação Caiuá, por exemplo, apresentam horizonte B latos-
sólico bastante profundo, não se observando diferença textural acentuada entre os hori-
zontes A e B, e possuem boa drenagem interna.
Esses aspectos do solo da região favorece a infiltração, sendo, portanto, baixa a capaci-
dade erosiva das águas de escoamento superficial. Isso fica muito claro, quando passamos
para áreas onde o solo apresenta horizonte B textural.
Com relação aos dados de densidade hidrográfica, dois aspectos podem ser considerados
na tentativa de explicar a fraca associação entre densidade hidrográfica e frequência de ra-
vinas. Um aspecto é que no Pontal predominam formações superficiais fundamentalmente

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 36 20/06/2023 16:45:40


arenosas. O segundo aspecto – que de certa forma é consequência do primeiro – é que, na
área em questão, a densidade hidrográfica pode ser considerada baixa, quando comparada
com ouras áreas próximas, de ocorrência da Formação Bauru.
A Formação Caiuá apresenta um padrão de drenagem que se caracteriza por cursos
d’água de perfil longitudinal retilíneo e alongado, sem afluentes; ao contrário da Formação
Bauru, onde os cursos d’água apresentam um perfil longitudinal com arcos e curvas peque-
nas e inúmeros afluentes, definindo uma densidade hidrográfica mais elevada que atua no
modelado de forma mais agressiva. Os geótopos, onde os valores de densidade hidrográfica
são mais elevados, apresentam afloramentos do arenito Bauru (alto do espigão divisor dos
rios Paraná e Paranapanema: nascentes dos ribeirões Água Sumida, Nhacá, Cuiabá, córrego
do Bonito e da Água da Prata, principalmente). O arenito Bauru – menos permeável – cons-
titui nível de base para o lençol de água subterrânea, conforme observamos nessas cabeceiras.
No entanto, ao lado desse quadro geral onde é permitido generalizações desse nível,
vamos encontrar algumas unidades menores da paisagem, onde as formas do relevo defi-
nem desníveis bastante acentuados e, ainda, outras onde as ações antrópicas interferem de
modo mais incisivo, ativando a morfogênese.
Nas nossas observações de campo e entrevistas com moradores e proprietários rurais
fica bem claro que a percepção que eles têm da importância de se aplicar técnicas de
manejo do solo – curvas de nível, por exemplo –, ou da necessidade e importância da
manutenção de matas galerias ou mesma da preservação da Reserva Estadual do Morro do
Diabo é muito ruim: eles confessam que a área de reserva deveria ser desmatada e ocupada.
As tentativas esboçadas por alguns proprietários, no sentido de controlar a erosão do

37 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
solo, são as mais bizarras. Simplesmente eles não recebem orientação técnica agronômica
alguma. E como alguns estão conscientes da gravidade da erosão em suas propriedades,
recorrem a soluções sem obter resultados efetivos.
Entre as unidades, os elementos da paisagem que chamam a atenção pela ruptura do
equilíbrio, e que se encontram em fase resistásica, podemos destacar:
1. as pequenas propriedades (próximas à Planalto do Sul, por exemplo), que são
super exploradas por arrendatários.
2. as obras públicas – rodovias asfaltadas, sem obras de arte adequadas–, conforme
observamos entre Planalto do Sul e Teodoro Sampaio e ainda, o asfaltamento de
ruas, conforme constatamos em Cuiabá Paulista, tem contribuído para a intensi-
ficação da erosão. É a partir das “cabeças de pontes”, dos locais de drenagem con-
centrada das águas pluviais, que se verificam algumas voçorocas de difícil controle.
Tal fato é agravado ainda mais pelo fato que a preocupação com essas voçorocas
surge apenas no momento em que há interrupção do fluxo rodoviário. E a preo-
cupação é somente com o leito da rodovia.

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Em resumo, podemos afirmar que em decorrência dos processos morfogenéticos atuais
é possível ressaltar os seguintes aspectos, definidores da fisiologia da paisagem:
No período mais úmido, que coincide com temperaturas mais elevadas, os proces-
sos morfogenéticos são agudizados pela ocorrência de precipitações convectivas, muito
intensas, em intervalos curtos de tempo.
No período mais seco, a deficiência hídrica do solo atinge pontos críticos, se refle-
tindo de modo negativo nas pastagens e no nível d’água dos ribeirões e córregos. Após a
estiagem, as primeiras chuvas é que surpreendem glebas de solos desprotegidos (mesmo
em áreas de pastagens), determinando efeitos erosivos intensos.
A erosão laminar (pouco perceptível nas imagens de satélite), é muito evidente
quando se percorre as propriedades, sobretudo nas passagens dos topos para as vertentes,
e responsável pela eliminação dos horizontes superficiais dos solos.
O ravinamento, como processo mais agressivo de incisão do relevo, aparece disse-
cando as cabeceiras dos córregos, sobretudo daqueles com nascentes do ribeirão Água
Sumida, em decorrência do desmatamento e das pequenas propriedades que aí se encon-
tram num processo intensivo de exploração agrícola. O relevo nesse ponto da bacia do
ribeirão Água Sumida, apresenta, além disso, vertentes curtas com inclinação de 8 a 12
graus, agravando a questão.
38 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Foto 2 – O médio curso do ribeirão Água Sumida que se presta para exemplificar como as margens são erodidas
pelo pisoteio do gado, agravando o processo de assoreamento do curso fluvial. PASSOS: 04/09/2021.

São nessas manifestações espasmódicas das condições climáticas que a fisiologia da


paisagem se revela mais claramente.

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Nos momentos de chuvas mais intensas, é muito grave a erosão laminar, que chega a
comprometer plantações inteiras, causando sérios prejuízos nas áreas agrícolas onde, certa-
mente, a cobertura florestal teria amortecido o impacto.
Quando as chuvas de primavera-verão são irregulares, com 60-70 dias sem precipi-
tações, define-se um quadro de seca, com implicações graves na fisiologia da paisagem:
muitos córregos e ribeirões secam em alguns trechos, as pastagens se mostram frágeis e não
resistem, obrigando os fazendeiros a darem maior atenção ao rebanho (onde se registram
mortes de reses), a população pobre se desloca para a cidade em busca da subsistência. A
região convive assim, com os excessos e a falta de escoamento superficial após a perda da
mata original.
O exemplo dessa dinâmica, que mais nos chamou a atenção é o da bacia do alto ribei-
rão Santo Antônio.
Após retirada a cobertura vegetal, a área foi submetida ao uso agrícola, sem a
menor preocupação com um manejo mais adequado às novas condições. A erosão la-
minar acabou destruindo todo o horizonte superficial do solo, tornando-o impróprio
à agricultura. Com a eliminação do horizonte superficial, o solo se tornou mais im-
permeável, criando um déficit hídrico muito sério, uma vez que a infiltração foi dras-
ticamente reduzida, com efeitos negativos sobre a pedogênese. Surgiram as pastagens,
que após 8-10 anos apresentaram uma queda na sua capacidade de apascentamento de
4 a 5 para 0,5 a 1 cabeça por hectare. O assoreamento e desperenização do córrego já
estava muito avançado.

39 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Foto 3 – Alta bacia do ribeirão Santo Antônio, cujo leito fluvial está assoreado
e quase que totalmente desperenizado. PASSOS: 09/09/2021.

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É bom lembrar que estamos nos referindo a uma área onde as condições ambien-
tais (solo, topografia) poderiam perfeitamente ser exploradas por atividades agríco-
las, se o processo como se deu a apropriação da área não tivesse atingido tal nível de
instabilidade.
Em praticamente toda área estudada observou-se as mesmas condições: córregos e
ribeirões rasos, assoreados, com margens destruídas, sem mata ciliar e sem avistamen-
to de exemplares da fauna silvestre. Apesar do trabalho ter sido desenvolvido sempre
às margens de rios, poucos peixes ou outras formas de vida aquática foram avistados.
Observamos, ainda, intenso pisoteio causado pelo gado bovino que, via de regra, tem
livre acesso às áreas de preservação permanente. As fotos 4 e 5 apresentam uma amostra
da situação verificada nos trabalhos de campo.
40 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Foto 4 - Média bacia do ribeirão Santo Antônio ou Foto 5 – Ribeirão Santo Antônio ou do Engano (a
do Engano - município de Mirante do Paranapanema 500 m a jusante da ponte/SP-613. O leito principal
- revelador da excepcionalidade do regime fluvial se encontra totalmente assoreado e a lâmina d´água
regional: as águas de verão têm energia suficiente não atinge usualmente mais de 40 cm de profundida-
para erodir o terraço fluvial, enquanto que na estação de na estação chuvosa. A drenagem apresenta-se anas-
seca (abril-setembro) observa-se desperenização em tomosada – em vários trechos desse ribeirão -, devido
alguns trechos. As condições geopedológicas (arenito à incompetência do curso d´água em transportar todo
e terraços fluviais hidromorfizados) associadas à ação o material sedimentar que vem de montante
antrópica negativa desencadearam o agressivo proces-
so de lesionamento da paisagem, Passos: 15/04/2003.
Pode-se observar nas análises de campo que o córrego
não apresenta nenhum tipo de vegetação arbórea em
suas margens o que contribui para o processo de as-
soreamento a que o mesmo está submetido (Foto 5).
Também observamos que o gado tem livre acesso às
suas águas ao longo de todo seu leito, o que contribui
para o avançado processo de degradação.

As Figuras 4, 5, 6 e 7 se prestam para o acompanhamento da evolução da


mata ciliar do ribeirão Santo Antônio, no período de 1985 a 2010.

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Figura 4 - As matas ciliares da bacia do ribeirão Santo Figura 5 - Em 1995, a situação das matas ciliares
Antônio, em 1985, captadas pelo satélite Landsat 7. praticamente não se altera, em relação ao registrado
Observa-se que na Alta Bacia, onde se iniciou a ocu- na imagem de 1985.
pação do território, a partir de pequenas propriedades
com intensiva cultura de algodão, entre os anos de
1950 a 1965, o desmatamento foi mais agressivo.

41 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 6 - O registro de 2005 acusa uma evolução po- Figura 7 - O registro de 2010 acusa, como fato novo
sitiva das matas ciliares, notadamente na Alta Bacia. e mais relevante, a redução da mata ciliar na alta bacia
Este fato se deve, provavelmente, ao relaxamento da do ribeirão Santo Antônio. Essa realidade foi motiva-
ação antrópica, pois, ocorreu a substituição de agri- da pelo temor dos proprietários em relação ao Novo
cultura por pastagens e, também, se verifica a chegada Código Florestal Brasileiro e, então, anteciparam o
da cana-de-açúcar, cujo sistema de produção está desmatamento: lamentável!
apoiado em arrendamento de terras, cujos contratos,
entre as usinas e os proprietários, contemplam a não
utilização das áreas de APPs.

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Outra observação importante é a de que os córregos estão quase em sua totalidade
localizados em áreas de pastagem ou em que determinados períodos são transformadas em
pastagens. Isto impede a regeneração da vegetação individualmente, uma vez que o gado
come ou pisoteia as poucas plântulas que tentam crescer, impedindo a recomposição dos
fragmentos e das matas ciliares.
As Figuras 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14, elaboradas a partir da aplicação teórico-metodo-
lógica de análise geossistêmica, se prestam para demonstrar as dinâmicas paisagístsicas no
recorte geográfico da bacia hidrográfica do ribeirão Santo Antônio.
A combinação dos elementos naturais associada à cultura dos seus agentes e sujeitos
definem processos que se prestam para diagnosticar-prognosticar as transformações histó-
ricas e as dinâmicas atuais em cada um dos três segmentos da bacia hidrográfica, objeto
desse projeto.
A decomposição do todo espacial em suas partes, ou seja, a subdivisão da área em
unidades elementares, tem como fim compreender as “descontinuidades objetivas da pai-
sagem”, segundo propôs Bertrand (1968, p. 251).
Partindo dos elementos fornecidos pela pesquisa, é possível uma classificação das
unidades componentes da paisagem, na bacia do ribeirão Santo Antônio, em função
de uma tipologia dinâmica e da fragilidade dos equilíbrios morfo-pedogenéticos, nos
seguintes tipos:
42 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 8 - “núcleos de desertificação” /unidade de paisagem em resistasia, retomada por ação antrópica, com po-
tencial ecológico degradado –, podendo ser reconhecidos como verdadeiros geótopos áridos, sem que a pedogênese
completasse sua evolução. Em sua gênese, incluem-se fatos ligados a uma predisposição
da estrutura geoecológica, na maior parte das vezes acentuada por ações antrópicas.

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Durante a última glaciação quaternária, a vegetação de mata de alguns geótopos foi
mais lesionada e até mesmo eliminada e que, na fase pós-glacial, embora tenham ocorrido
intervalos de “otimum climaticum” favoráveis à biota tropical úmida, não houve tempo su-
ficiente para o desenvolvimento da pedogênese. Quando as ações antrópicas eliminaram a
cobertura vegetal, o suporte geoecológico revelou sua natureza de sedimentos (sedimentos
cenozóicos) não pedogeneizados. A dinâmica atual observada nesses “núcleos de deserti-
ficação” – sob o clima tropical úmido – revela que a pedogênese é parcialmente anulada
pela morfogênese.

43 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Figura 9 - áreas de vegetação residual em biostasia subclimácica e paraclimácica – nessas áreas, o potencial ecológico
se mantém praticamente estável e em equilíbrio com a exploração biológica, embora esta se apresente sensivelmen-
te alterada pela ação antrópica, principalmente de sua composição florística e da fauna. A título de exemplificar
essas unidades, inserimos a Figura 9 onde a vegetação de mata tropical semidecídua eliminada, foi substituída por
espécies vegetais de maior valência ecológica (embaúba, taquaras, sapé e o próprio capim colonião, semeado pelos
posseiros). A madeira de maior valor econômico foi parcialmente retirada de todas as áreas de matas que restaram
por efeito da ação antrópica. Embora o potencial ecológico dessa unidade não tenha sido alterado, ele não oferece
condições muito favoráveis ao ressurgimento da biota tropical, nos geótopos de onde ela foi eliminada. Certamente,
a fase mais favorável – “otimum climaticum” – para o ressurgimento natural da mata talvez tenha passado.

No entanto, nas condições biogeográficas atuais – tanto do potencial ecológico, quan-


to da exploração biológica – se não ocorrerem novas intervenções antrópicas, é possível
que essas biotas evoluam para uma dinâmica climácica (plenitude da biostasia), mesmo
sofrendo alterações na composição florística. O desequilíbrio deu-se no momento em que
a ação antrópica se fez presente.
Algumas dessas áreas florestadas estão mais bem conservadas (subclimácicas), enquan-
to outras sofreram uma modificação parcial da exploração biológica (paraclimácica).

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Figura 10 - áreas de pastagens artificiais extensivas com dinâmica regressiva (geofácies degradados em mosaico) – são
áreas cuja biostasia original foi atingida pela ação antrópica, sem modificação importante no potencial ecológico.
A unidade de paisagem, aqui mostrada, está na área de transição entre a alta e a média bacia do ribeirão Santo
Antônio. A ocorrência de mangueiras se prestam como testemunhos do habitat rural mais denso do período onde
o mundo rural estava mais estruturado, notadamente em torno do cultivo do algodão. No entanto, é na média e
na baixa bacia hidrográfica - de ocorrência da média e da grande propriedade agropecuária/cana-de-açúcar - que
a dinâmica regressiva se manifesta de forma mais generalizada. A substituição da cobertura vegetal de mata pelas
pastagens, interferiu mais na exploração biológica. Em regra geral, a morfogênese só é mais ativa que a pedogênese
em setores localizados, sobretudo nas áreas onde se tem adotado a prática de “refazer” os pastos. Esse processo con-
siste em revolver (gradear) o solo, tombar o capim e cultivar a área, durante um, dois e até três anos (com mamona
e algodão, principalmente). Nesse período, a erosão laminar é acelerada, observando-se uma intensidade maior no
processo de assoreamento e desperenização dos cursos d’água, além da substituição do capim colonião por braquiá-
rias. O uso indiscriminado de insumos básicos nas lavouras (agrotóxicos) compromete a qualidade da água e polui
44 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

o solo. Nesse caso, o potencial ecológico pode ser atingido e produzir parcelas em resistasia antrópica.

Figura 11 - Áreas de usos intensivos com minifúndios em resistasia antrópica – incluímos nessa categoria o conjunto
das pequenas propriedades situadas, notadamente na alta bacia do ribeirão Santo Antônio.

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As áreas de minifúndios apresentam uma dinâmica regressiva com eliminação da
exploração biológica e uma degradação do potencial ecológico, provocadas pela in-
tervenção antrópica. A topografia movimentada em que se encontra a maioria desses
minifúndios, a suscetibilidade/vulnerabilidade do solo ao processo erosivo e, notada-
mente o manejo inadequado que recebem por parte dos pequenos proprietários - regra
geral muito descapitalizados/empobrecidos - contribuem para ativar a morfogênese,
cuja manifestação mais evidente é a erosão laminar e em sulcos, que também está
comprometendo negativamente a dinâmica hidrológica, tendo em vista o grau de as-
soreamento e de desperenização dos córregos e ribeirões que constituem a bacia hidro-
gráfica do ribeirão Santo Antônio. Lembremos que a destruição da vegetação nesses
minifúndios foi total e o solo se encontra em níveis críticos de perda de fertilidade,
explicando a opção pelo cultivo da mamona. As poucas nascentes e minas d’água
estão secando, principalmente durante a estiagem, prova de que o lençol freático está
descendo a níveis cada vez mais baixos.

45 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 12 - áreas de veredas com dinâmica regressiva de origem antrópica: as várzeas do ribeirão Santo Antônio, ori-
ginalmente, estavam inseridas em um geossistema em biostasia, representando geofácies parcelados com campos
ou matas ciliares. Mesmo as ocupadas com pastagens às vezes se diferenciam do conjunto devido às inundações
sazonais, com o pasto apodrecendo pela ação do excesso de água.

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Figura 13 - área canavieira com dinâmica estável – área inicialmente ocupada com a cultura de algodão e, em
seguida com pastagens. Nos últimos anos, a crise da pecuária e os conflitos com o MST levaram os proprietários
a optarem por arrendamento de suas terras às usinas de álcool. Os contratos de arrendamento são atenciosos em
relação às “terras produtivas” evitando, sobretudo, o plantio da cana em áreas suscetíveis à erosão ou nas APPs.
46 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 14 - Unidades de “neogeossistemas” (capoeiras) em dinâmica progressiva - essas unidades surgem a partir da
redução da ação antrópica, onde as pastagens, sem manejos adequados, se degradam e permitem o surgimento
de “capoeiras”. Na alta bacia do ribeirão Santo Antônio, onde o processo de desterrorialização foi mais acentua-
do - fim do mundo rural motivado pelo abandono dos campos agrícolas, abandono dos bairros rurais, dos cemi-
térios rurais, do esvaziamento populacional. A “pecuária” nessas pequenas propriedades é basicamente de gado
leiteiro que constitui a base da economia local. Os neogeossistemas (geofacies) estão dominados, notadamente,
por espécies invasoras, dentre as quais se destaca “o assa peixe”.

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Considerações finais

No Sudoeste Paulista, a ocupação, a princípio motivada pelo avanço do café e da ferrovia,


no início do século XX, é “redefinida” a partir do uso das terras areníticas e terá na cultura
do algodão – a partir dos anos 1940 – a sua maior motivação. No extremo Sudoeste/Pontal
do Paranapanema, o caráter de apropriação ilegal das reservas florestais, caracterizou-se por
elevada agressividade, onde o desmatar foi a única forma de “legitimar” a posse.
O nosso objetivo maior foi o de entendermos os dinamismos de cada parcela e de
suas relações com os contextos socioeconômicos e políticos nacionais, até porque, são
regiões comandadas por decisões externas.
Estamos muito próximos da realidade ao afirmarmos que a raia divisória, no conjun-
to, apresenta-se como um espaço de baixa fluidez, de lentidão e opaco.
As análises das imagens satelitares, os registros fotográficos, as observações sobre o
terreno, as entrevistas etc. se prestam melhor – acreditamos – à explicitação dos proces-
sos evolutivos do que o tratamento numérico.
Estamos, pois, assumindo uma abordagem mais qualitativa, porém mais apropriada à
compreensão do processo de construção da paisagem na raia divisória.
O uso da palavra raia sugere um espaço integrado, cuja evolução contempla a partici-
pação dos agentes e dos atores no seu todo – na raia.
O processo de ocupação de cada uma das parcelas se deu diferentemente: no tempo
e na forma. Essa herança ficou plasmada na paisagem atual, malgrado o curto período de
atuação dos agentes.

47 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Vale destacar que:
. A ocorrência do Arenito Bauru, no Sudoeste paulista, condicionou um modelo de
ocupação marcadamente agrícola, enquanto que, nas áreas de ocorrência do Caiuá (extre-
mo Sudoeste/Pontal do Paranapanema) predominou, desde o início, a pecuária extensiva;
. No Sudoeste paulista, na área de ocorrência do Caiuá, os vales são abertos, as águas
mais espraiadas. Essa morfologia do relevo, associada à dinâmica das águas fluviais, ficou
totalmente à mercê do processo de erosão, transporte e sedimentação, interferindo na
fisiologia da paisagem, notadamente pelo assoreamento e desperenização aguda dos pe-
quenos cursos fluviais.
. No Sudoeste paulista, as áreas de relevo mais rugoso (topos) estão estreitamen-
te relacionadas à ocorrência do arenito Bauru carbonatado. Os primeiros pioneiros
– menos preparados tecnicamente e economicamente – ocuparam essas áreas mais ele-
vadas, autênticas “bocas-do-sertão”, resultando no caráter muito agressivo de lesiona-
mento da paisagem.

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Resumo

A Fisiologia da Paisagem propõem-se três objetivos básicos: (a) levar à compreensão da organi-
zação, do funcionamento e da dinâmica das paisagens, especialmente as tropicais; (b) enfatizar o
estudo e a análise integrada dos elementos constituintes das paisagens; (c) compreender e discutir
conceitos, leis e influências das ações antrópicas. Desde a origem, a pesquisa sobre o meio ambiente
está indissoluvelmente ligada à interdisciplinaridade. Considerando a paisagem como uma entidade
global, admite-se implicitamente que os elementos que a constituem participam de uma dinâmica
comum que não corresponde obrigatoriamente à evolução de cada um dentre eles tomados sepa-
radamente. Para as necessidades da análise, podem-se isolar três conjuntos diferentes no interior
de um mesmo sistema de evolução: o sistema geomorfogenético, a dinâmica biológica e o sistema de
exploração antrópica. Optamos por uma tipologia dinâmica que classifica os geossistemas em fun-
ção de sua evolução e que engloba através disso todos os aspectos das paisagens. Ela leva em conta
três elementos: o sistema de evolução, o estágio atingido em relação ao clímax, o sentido geral da
dinâmica (progressiva, regressiva, estabilidade). Esta tipologia se inspira, portanto, na teoria de bio-
resistasia de H. ERHART. Foram distinguidos 7 tipos de geossistemas agrupados em 2 conjuntos
dinâmicos diferentes. O Pontal do Paranapanema, apresenta uma certa homogeneidade geomorfo-
lógica, litológica e climática, que se por um lado dificulta a cartografia das “unidades elementares da
paisagem”, uma vez que esta homogeneidade mascara a individualidade da ação dos elementos do
meio, de outro, realça a dinâmica do todo, responsável pela individualidade da paisagem. As análi-
ses das imagens satelitares, os registros fotográficos, as observações sobre o terreno, as entrevistas etc.
se prestam à explicitação dos processos evolutivos do que o tratamento numérico.
Palavras-chave: Fisiologia da paisagem – geossistema – biostasia – resistasia – Pontal do
Paranapanema, bacia do ribeirão Santo Antônio.
48 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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SUSTENTÁVEL – SEMAD. Glossário de Termos Relacionados à Gestão de Recursos
Hídricos. Disponível em: http://comites.igam.mg.gov.br/new/images/stories/Pdf/glossario.

49 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 49 20/06/2023 16:45:43


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Aplicação da Legislação Ambiental Brasileira
na Raia Divisória São Paulo-Paraná-Mato Grosso
do Sul, Brasil: análise das potencialidades para
criação de corredores ecológicos

Diogo Laércio Gonçalves1


Messias Modesto dos Passos2

Introdução

A diversificação do uso e cobertura da terra, seja pela agricultura, pecuária ou aden-


samentos urbanos, fazem com que os habitats naturais das espécies de fauna e flora,
sofram com a pressão exercida pelo processo de fragmentação. Este processo, consiste
na divisão em uma série de manchas de vegetação remanescentes sob um mosaico de
paisagem cercadas por uma matriz ou de uma vegetação diferente e/ou de uso da terra.
Saunders, Hobbs & Margules (1992), destacam que o processo de fragmentação da pai-
sagem produz dois efeitos principais: um consiste na alteração do microclima dentro e
ao redor do remanescente florestal e o outro no isolamento de uma determinada mancha

51 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
das demais existentes na paisagem circundante.
Com o avanço das discussões acerca do meio ambiente e da constante degradação dos
recursos naturais, o conceito de corredor ecológico foi introduzido numa alternativa para
a conexão destas paisagens. Nas últimas décadas, ficou à cargo da ecologia da paisagem
bem como da biogeografia, propor medidas mitigadoras para amenizar os processos de frag-
mentação, bem como do efeito de borda através da conectividade dos fragmentos florestais.
Atualmente, boa parte das políticas e legislações ambientais versam sobre as ligações ecoló-
gicas, que são reconhecidas como um princípio fundamental no ordenamento do território
e gestão de terras, sendo eficazes na conservação da biodiversidade, reduzindo os impactos
referentes aos processos de fragmentação e do efeito de borda.

1
Professor Assistente Doutor, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências, Tecnologia e
Educação, Campus de Ourinhos/SP-Brasil, e-mail: diogo.goncalves@unesp.br ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-0647-6283
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual Paulista, Faculdade
de Ciências e Tecnologia, Campus Presidente Prudente/SP-Brasil. e-mail: mmpassos86@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0360-7612

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Considerando a análise epistemológica do Sistema GTP (Geossistema-Território-
Paisagem), proposto por Bertrand (1992), bem como dos principais conceitos re-
lacionados aos corredores ecológicos na recomposição de paisagens fragmentadas,
temos como questionamento primordial: afinal de contas, é possível aplicar o GTP
para o planejamento ambiental na indicação de áreas potenciais para criação de
corredores ecológicos? Indo mais além, o que a geografia física em seu caráter global
(geomorfologia, geologia, biogeografia, climatologia, pedologia, hidrologia e etc.),
pode contribuir no âmbito de pesquisas voltadas à conexão de paisagens fragmen-
tadas? Além disso, quais são as potencialidades da aplicação da legislação ambiental
brasileira, na condução da criação de novos corredores ecológicos?
Numa visão geral, vemos que o conceito de corredor ecológico claramente apon-
ta para uma visão da ecologia (o próprio nome “ecológico” responde este questio-
namento). Todavia, ao analisarmos a ecologia da paisagem, como ramo da ecologia
que sustenta a tese da paisagem enquanto um conceito biocêntrico pautado no mo-
saico: mancha-corredor-matriz, vemos que suas matrizes apontam à uma herança
geográfica, mais precisamente da biogeografia de Carl Troll, que em 1939, lançou
as bases para a criação da ecologia da paisagem, posteriormente a denominando de
geoecologia das paisagens.
De fato, o caráter científico da paisagem advém da geografia, introduzido por
Humboldt, depois pela geografia francesa de La Blache, a anglo-saxônica de Sauer
e, posteriormente, pelo movimento de renovação da geografia e influência direta da
Teoria Geral dos Sistemas (TGS) de Bertalanffy, nas conceituações do próprio Troll
52 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

na Alemanha, de Sochava e o Geossistema, enquanto modelo teórico da paisagem na


antiga União Soviética e de Bertrand com a ressignificação da paisagem e do geossis-
tema em Toulouse na França.
Ao passo que a TGS influencia a geografia a pensar sistemicamente, o mesmo
ocorre com a ecologia, que anteriormente ao conceito de geossistema, propõe atra-
vés de Arthur Tansley, o conceito de ecossistema. A diferença substancial entre o
geossistema e ecossistema, está no caráter biocêntrico do modelo ecológico, ao passo
que o modelo geográfico se atenta ao fator antrópico como item indispensável na
análise global.
Esta “separação” de conceitos e modelos sistêmicos, permitiu a geografia analisar
o fator antrópico em conjunto com a geografia física global. Entretanto, a ecologia
tomou o protagonismo do tema “meio ambiente” uma vez que as questões ambien-
tais suscitadas em debates, conferências, palestras e outros eventos relacionados à
esta natureza, pós Estocolmo, criaram uma visão ecológica do meio ambiente, mui-
tas vezes associando a ecologia como um sinônimo.

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Outrossim, faltava à geografia uma abordagem mais afinca sobre as questões
ambientais, que privilegiasse uma análise globalizada dos elementos naturais e as
perturbações de ordem antrópica. Bertrand (1992), tentou incluir, através do sis-
tema GTP, uma análise global que incluísse a geografia na temática meio ambiente
e fornecesse um intercâmbio direto com outras ciências correlatas como a própria
ecologia.
Pensando desta maneira, a utilização do GTP, pode sim trazer subsídios im-
portantes para o planejamento ambiental de corredores ecológicos, haja visto que a
análise dos elementos geográficos (clima, solo, vegetação, relevo e água), associados
aos fatores antrópicos, indicando as áreas mais vulneráveis, com potenciais para a
conectividade das paisagens.
Nesta tentativa de abarcar o GTP (do ponto de vista geográfico), com o concei-
to de corredor ecológico (do ponto de vista ecológico), temos como elemento em
comum as questões legais que tangem a legislação ambiental brasileira enquanto
áreas protegidas, tanto de proteção integral, como de uso sustentável, sendo: Áreas
de Preservação Permanente (APP), Reservas Legais(RL), Unidades de Conservação
(UC) e corredores ecológicos já existentes, como ponto de partida para o planeja-
mento e conexão das paisagens.
Neste ínterim, temos como exemplo a análise da paisagem da Raia Divisória São
Paulo-Paraná-Mato Grosso do Sul (Figura 1), região que congrega a zona de contato
imediato entre três unidades federativas do território brasileiro, interligadas por dois
importantes rios: o Paraná e o Paranapanema. Cabe ressaltar, que além do avanço da

53 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
agricultura e da pecuária, a raia também conta com dois grandes empreendimentos
hidrelétricos, a UHE Rosana e UHE Engenheiro Sérgio Motta, que transformaram
significativamente as paisagens nesta região nas ultimas décadas.
Com efeito das modificações supracitadas, veremos quais as potencialidades de
aplicação da legislação ambiental brasileira, frente ao planejamento para a criação
de corredores ecológicos, levando em consideração o suporte teórico-metodológico
do sistema GTP de Georges Bertrand. O trabalho a seguir, é o resultado final da
tese de doutoramento defendida pelo autor principal no ano de 2020 e intitulada:
“Políticas ambientais na raia divisória São Paulo-Paraná-Mato Grosso do Sul:
estudo das áreas potenciais para a criação de corredores ecológicos”3

3
Disponível em < http://hdl.handle.net/11449/194383>

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Figura 1 – Localização Geográfica da Raia Divisória SP-PR-MS
54 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Org.: Gonçalves, D. L. (2020)

Procedimentos Metodológicos

O trabalho contou com a revisão bibliográfica de livros, artigos e teses, sobre os temas
pertinentes a pesquisa, especialmente: a paisagem, o geossistema o sistema GTP, ecologia
da paisagem, corredores ecológicos, além do entendimento das leis que norteiam o sistema
ambiental brasileiro.
No tocante a visão de paisagem enquanto categoria de análise/conceito científico den-
tro da geografia, a revisão bibliográfica envolveu uma análise da obra do geógrafo francês
Georges Bertrand a partir do seu entendimento do conceito de geossistema (inicialmente
proposto por Sochava na antiga União Soviética) pautado em uma análise global que va-
lorize a geodiversidade, ressaltando a importância de todos os componentes que englobem
o meio físico, biótico e social. Com o intuito de discutir as transformações na paisagem
também refletimos sobre seu modelo de análise do meio ambiente estruturado a partir de

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três conceitos/entradas que compõem esta análise global: O Geossistema (entrada natura-
lista) o Território (entrada socioeconômica) e a Paisagem (entrada socioambiental).
Já a revisão sobre a legislação ambiental brasileira para Áreas de Preservação Permanente,
Reservas Legais, Unidades de Conservação e Corredores Ecológicos, foi embasada nas
leis federais: 12.651/2012 e 12.727/2012 (Código Florestal Brasileiro), nº 9.985/2000
(Sistema Nacional de Unidades de Conservação), Resolução CONAMA nº 302/2002 e
etc. Além disso, foram analisados os Planos Ambientais de Conservação e Uso da Água do
Entorno do Reservatório (PACUERA) das usinas hidrelétricas da área de estudo.
Utilizando os dados dos fragmentos florestais para o ano de 2017 extraídos do mapa
de uso e cobertura da Terra da Coleção IV do MapBiomas, foram confrontados com os
limites estabelecidos para Áreas de Preservação Permanente na Raia Divisória. Para a cria-
ção dos limites de APP, utilizou-se a ferramenta do ArcGIS 10.2: Geoprocessing > Buffer,
em cada classe de APP contida no Código Florestal Brasileiro. Em caso de sobreposição
de limites, a exemplo das APP em nascentes e ao redor de cursos d’água, utilizou-se a fer-
ramenta Erase, apagando as sobreposições, paulatinamente até a última classe. Após este
processo, todos os dados de APP foram unificados a partir da ferramenta Merge.
Com o confronto dos dados de cobertura florestal e o limite das APPs, foi elaborado
o mapa de uso e cobertura da terra em APP, indicando as áreas e os percentuais de cober-
tura florestal ou de vegetação de várzea dentro das APP, dando destaque para as principais
bacias hidrográficas existentes na área da Raia Divisória.
A partir da análise inicial, produzimos um modelo baseado na proposta de Ramos
et al. (1976), que propõem a divisão da paisagem em matrizes hexagonais do mesmo ta-

55 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
manho, criando uma fishnet (grade) para toda paisagem. Esta proposta tem sido bastante
difundida na ecologia da paisagem e na biogeografia, especialmente na modelagem de
corredores ecológicos, indicando as localidades com menor incidência de fragmentos flo-
restais dentro do raio de cada hexágono.
O formato hexagonal ao contrário de outras formas geométricas é mais utilizado de-
vido ao espaçamento regular em relação às outras redes de igual densidade e o perímetro
menor. Também se destaca a vantagem de possuir seis unidades adjacentes em posição
simetricamente equivalentes (RAMOS et al., 1976 & LEAL et al., 2019). Desta maneira,
de acordo com a escala de trabalho escolhida (1:250.000), dividiu-se a paisagem da Raia
Divisória em uma malha de 373 hexágonos iguais de 50 km² no formato shapefile.
Para isto, utilizou-se a ferramenta Create Hexagon Regions, também disponível na exten-
são Patch Analyst. Analisando os fragmentos florestais do ano de 2017, estabelecemos uma
classificação baseada no percentual de cobertura florestal por propriedade rural destinada
para Reserva Legal na região da Raia (mínimo de 20%), considerando também o cômputo
da APP na complementação do percentual de RL em caso de áreas consolidadas (Figura 2)

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Figura 2 – Percentual de cobertura florestal por matriz hexagonal
Org.: Gonçalves, D. L. (2020)

Os dados de cobertura florestal foram intersectados com as áreas dos hexágonos, a


partir da ferramenta Tabulate Intersection, que cria uma tabela com o percentual de co-
bertura florestal para cada hexágono existente. Após este processo, a tabela é adicionada
ao atributo do shapefile da matriz hexagonal a partir da ferramenta Join (juntar), dando
as informações em percentual, para a composição do mapa final a partir das classes
estabelecidas.
Com os resultados obtidos para cada ano, podemos ver como se deram as mudanças
do ponto de vista da preservação da paisagem, chegando até o percentual mais atual
(2017). A partir deste último mapa, também estimamos os mesmos dados de fragmen-
tos florestais para os imóveis rurais com cadastramento realizado e informações georre-
56 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ferenciadas no Sistema do Cadastro Ambiental Rural (SICAR), considerando o mesmo


processo e a mesma classificação feita para os hexágonos.
A partir da compilação dos mapas finais, estabelecemos uma escala de vulnerabi-
lidade dos geocomplexos no qual foram avaliados e reclassificados cada unidade de
acordo com o grau de antropização e a fragilidade natural do ambiente considerando
os aspectos físicos da paisagem (relevo, solo, ausência de cobertura vegetal e etc.), es-
tabelecendo quatro graus de vulnerabilidade variando de: muito baixa, baixa, média e
alta, baseado na metodologia de Bertrand (1968) e na Teoria Ecodinâmica de Tricart
(1977).
Com este dado, aliado à avaliação dos hexágonos do ano de 2017 estabeleceu-se o
mapa de prioridades para conectividade. Finalizando como proposta de planejamento
ambiental, estimou-se as potencialidades de ganho perante a adequação as leis federais:
12.651/2012 e 12.727/2012 (Código Florestal Brasileiro), considerando a recomposi-
ção das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal, indicando um cenário futuro
para a paisagem da Raia Divisória SP-PR-MS.

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Resultados e Discussões

Analisando a paisagem da Raia Divisória SP-PR-MS, sob a perspectiva teórico-me-


todológica de Bertrand, propomos uma taxonomia que leve em consideração as carac-
terísticas relativamente homogêneas que compõem cada unidade geossistêmica, as quais
denominaremos: unidades de geocomplexos. Como pressuposto, temos a análise geossis-
têmica pela tríade Potencial Ecológico + Exploração Biológica + Ação Antrópica, através
do cruzamento dos dados do meio físico (hipsometria, declividade, geologia, hidrografia,
clima, vegetação, solos) e de uso e cobertura da terra no ano de 2017.
Ao todo, foram identificadas quinze unidades de geocomplexos ao longo da
Raia Divisória SP-PR-MS. Para a indicação das áreas potenciais para criação de cor-
redores ecológicos, propomos uma reclassificação destas unidades, através da qual
avaliamos seu grau de vulnerabilidade. Esta reclassificação, leva em consideração
todos os atributos de cada geocomplexo, dando ênfase à três elementos principais no
que concerne à visão tripolar entre potencial ecológico, exploração biológica e ação
antrópica, sendo estes, respectivamente: a geomorfologia, a vegetação remanescente
e o uso e cobertura da terra.
A partir destes elementos, é possível indicar as áreas com maior vulnerabilidade a
processos ambientais, como a erosão e o assoreamento que, por consequência, atingem
diretamente o funcionamento e a qualidade de vida dos organismos dentro daquele geo-
complexo. Desta forma, as quinze unidades de geocomplexos apresentadas anteriormente
foram reagrupadas de acordo com os fatores supracitados, em quatro graus de vulnera-

57 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
bilidade, de acordo com a relação de equilíbrio e desequilíbrio entre os componentes do
geocomplexo, variando de muito baixa (para ambientes naturais), baixa, média e alta (para
ambientes antrópicos de acordo com as condições do relevo e o grau de antropização).
Os geocomplexos de ordem naturais, apresentando-se relativamente estáveis, porém
por estarem distribuídos em fragmentos ao longo da paisagem, maciçamente marcada
por áreas antropizadas, podem ser passivos de ações antrópicas em suas adjacências. As
áreas de vulnerabilidade baixa, indicam geocomplexo de uso antrópico, mas com pouca
ação geomorfológica, dado a topografia do relevo, sujeito apenas a inundações periódicas
devido ao regime fluvial.
Nas áreas de média e alta vulnerabilidade, a diferenciação está associada à rugosidade
do relevo e de sua topografia, o que influencia diretamente a densidade de drenagem e o
grau de suscetibilidade à erosão que, em conjunto à ausência de matas ciliares, podem re-
sultar em processos como o assoreamento, especialmente em adensamentos urbanos onde

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a pressão antrópica é constante. Vejamos a distribuição da vulnerabilidade dos geocomple-
xos na Raia Divisória SP-PR-MS na figura 3:

Figura 3 – Vulnerabilidade dos Geocomplexos da Raia Divisória SP-PR-MS


Org.: Gonçalves, D. L. (2020)
58 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Juntamente com as APPs e RLs, a presença de Unidades de Conservação (UCs) aju-


dam a proteger geocomplexos importantes, sendo um instrumento de lei aplicável tanto
para as esferas públicas (Federal, Estadual e Municipal), como pela iniciativa privada, atra-
vés de Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN). A manutenção, acesso e uso
das UCs, variam de acordo com sua categoria, podendo ser de proteção integral, ao exem-
plo de: Parques, Estações Ecológicas, Reservas Biológicas ou etc., como também de uso
sustentável, como no caso das Áreas de Proteção Ambiental (APA), Reservas Extrativistas,
RPPNs, dentre outras. Vejamos agora o caso específico de cada um destes instrumentos
de lei para a Raia Divisória SP-PR-MS:

Área de Preservação Permanente (APP):

A definição atual de APP de acordo com a legislação ambiental brasileira


vigente (Lei Federal 12.651/2012) é a seguinte:

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[...] área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função am-
biental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a
biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar
o bem-estar das populações humanas (BRASIL,2012)

Tanto a Lei Federal nº 12.651 de 2012 como a sua complementação pela nº


12.727 do mesmo ano, determina diferentes larguras de faixas de APPs para cada
tipo, metragem ou tamanho do corpo d’água. Em casos específicos como dos re-
servatórios de usinas hidrelétricas, a metragem é estabelecida a partir do licen-
ciamento ambiental da obra, estando condicionado à implantação de um Plano
Ambiental de Conservação e Uso do Entorno do Reservatório (PACUERA), res-
peitando a faixa mínima de 30 metros e a máxima de 100 metros em áreas rurais,
enquanto nas áreas urbanas a faixa mínima de 15 metros e máxima de 30 metros
(BRASIL, 2012).
Também para o caso dos reservatórios das usinas, o Código Florestal Brasileiro,
em seu artigo 62 estabelece que para as Áreas de Preservação Permanente de reser-
vatórios de geração de energia, em que os contratos de concessão ou autorização
assinados sejam anteriores à Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de
2001, a metragem é definida pela distância entre o nível máximo operativo normal e
a cota máxima maximorum, atingida apenas em eventos de grandes cheias (BRASIL,
2012).

59 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Em geral, a maior parte dos cursos d’águas da Raia Divisória, formados por
afluentes dos rios Paraná e Paranapanema é composta por cursos d’água, com menos
de 10 metros de largura, o que exige uma faixa de APP de no mínimo 30 metros a
partir do leito regular. Para as nascentes, independente da largura do canal, é com-
putado um raio de 50 metros de APP a partir do ponto inicial de cada canal. Já para
os lagos e lagoas naturais presentes, principalmente na margem sul-mato-grossense
no leito regular do rio Paraná, a metragem das APPs varia de acordo com a área das
mesmas, sendo 50 metros para lagos/lagoas com até 20 hectares e 100 metros acima
de 20 hectares.
Nos poucos trechos de leito regular dos rios Paraná e Paranapanema, as metra-
gens das APPS são calculadas a partir da largura do canal, sendo respeitada uma
faixa de 200 metros para o leito regular do rio Paranapanema e de 500 metros para
o rio Paraná. Para os reservatórios das usinas hidrelétricas construídas pela CESP,
foram definidas a metragem máxima de 100 metros, a partir da cota máxima de
cada reservatório, estabelecidos no processo de licenciamento ambiental e do EIA/

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RIMA de cada usina e ratificada também no PACUERA, o que supera a metragem
estabelecida pelo Código Florestal vigente.
Neste contexto, as áreas totais a serem destinadas para a composição das APPs
na Raia Divisória, correspondem à 388,24 km², desconsiderando as sobreposições
entre as metragens de uma classe de APP para outra, sendo 131,10 km² no estado de
São Paulo, 106,84 km² no Paraná e 150,30 km² no Mato Grosso do Sul. Todavia, ao
observarmos as APPs com o uso da terra ao longo da Raia Divisória, vemos que boa
parte delas não estão sendo respeitadas.
A partir da tabulação dos dados entre a intersecção dos buffers de APPs com o
mapa de uso e cobertura da terra do ano de 2017, foi possível verificar que cerca de
61% (267,63 km²) das áreas de APP correspondem à uso consolidado, sobretudo
com agricultura e principalmente com pecuária enquanto apenas 23% (87,70 km²)
corresponde às APP com uso florestal (mata nativa ou reflorestamento). Os outros
16% (62,91 km²) correspondem às APPs em áreas de vegetação de várzea (formações
pioneiras e outras formações naturais não-florestais.
Do percentual de desconformidade legal em APPs avaliado, 32,88% corres-
pondem às áreas destinadas à pastagem, enquanto 2,44% para agricultura (culturas
anuais perenes e culturas semi-perenes). Os outros 25,43%, correspondem às áreas
de mosaico de agricultura e pastagem, enquanto 0,31% diz respeito à infraestrutura
urbana e 0,11% à outras áreas não vegetadas.
No tocante às APPs preservadas, 22,33% são constituídas por formação florestal
e apenas 0,22% são de vegetação savânica (cerrado). As áreas de floresta plantada re-
60 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

florestamentos) correspondem à um pequeno percentual de 0,04%, já as vegetações


típicas de áreas aluviais (várzeas), correspondem à 5,89% de vegetação campestre e
10,32% para outras áreas naturais não-florestais.
Analisando as porções de cada estado na raia e as respectivas bacias hidrográfi-
cas dos afluentes dos rios Paraná e Paranapanema, vemos que é na porção paulista
o maior índice de desconformidade no uso da terra nas APPs, com apenas 29,94%
(cerca de 39,25 km²) de suas áreas preservadas, compostas por florestas e vegetação
de várzea. Nas bacias afluentes do rio Paraná, vemos que boa parte das APPs nos
cursos principais de bacias como: Ribeirão Anhumas, Córrego da Lagoa, Córrego do
Inseto e Córrego Laranja Azeda, estão relativamente preservadas. Entretanto, quan-
do analisamos a situação de seus afluentes e, principalmente, de algumas cabeceiras,
vemos às APPs não se encontram preservadas (Figura 4)

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Figura 4 – Uso da Terra em APP na Raia Divisória SP-PR-MS
Org.: Gonçalves, D. L. (2020)

Na parte paulista da bacia do Paranapanema, a situação se reflete com o mesmo pa-

61 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
drão de uso encontrado na bacia do Paraná, como no caso da bacia dos ribeirões Nhacá,
Água Branca e Cuiabá. No caso da bacia do ribeirão Bonito, a mesma se encontra com
boa parte das APPs preservadas em virtude da sua localização na unidade de conservação
do Parque Estadual Morro do Diabo. Uma das principais bacias desta região, a do ribei-
rão Santo Antônio, afluente do rio Pirapozinho, foi uma das que demonstraram maior
ausência de vegetação natural nas APP, especialmente em suas nascentes, assim como na
do ribeirão Sedama.
No lado paranaense, a situação das APP, não diferiu muito com relação à vertente
paulista. Cerca de 66,34% (70,88 km²) das APP apresentaram uso da terra com pastagem
e agricultura, enquanto apenas 33,66% (35,96 km²) correspondem às áreas com vegetação
natural (florestal ou campestre).
Todavia, ao analisarmos as bacias hidrográficas dos afluentes do rio Paraná e do rio
Paranapanema nesta vertente, vemos que algumas delas apresentam boa parte das APPs
preservadas, a exemplo da bacia do ribeirão São Francisco (a maior das bacias da porção
paranaense) e rio Caiuá.

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Por último, a porção sul-mato-grossense, apresenta a maior taxa de preservação das
APP na Raia Divisória, sendo a única porção dentre as analisadas, onde a taxa de pre-
servação é maior que a taxa de uso consolidado. Do total do uso dentro das APPs, cerca
de 50,17% (75,40 km²) correspondem às áreas preservadas, seja com vegetação flores-
tal (mata atlântica e cerrado) com 22,53% (33,86 km²), como vegetação de várzea com
27,64% (41,54 km²). O restante (49,83%), correspondem às APP com uso consolidado,
contabilizando uma área de 74,89 km², sobretudo destinadas à pastagem para pecuária.
No caso das bacias hidrográficas dos afluentes do rio Paraná nesta porção, vemos que
a maior parte destas contam com a presença de APP, especialmente as bacias dos córregos:
Samambaia, Três Barras, e do Baile, além do rio Quiterói e dos ribeirões: Quiteroizinho
e do Quebracho. Cabe ressaltar também a presença das APP nas lagoas naturais, espe-
cialmente nos córregos do Baile e Samambaia, parte delas inclusa dentro da Área de
Preservação Ambiental Ilhas e Várzeas do rio Paraná. O mapa a seguir mostra a desconfor-
midade de uso da terra em APP4 para toda a Raia Divisória SP-PR-MS

Reservas Legais e Unidades de Conservação:

No tocante as demais áreas protegidas da Raia Divisória SP-PR-MS pela legislação


ambiental brasileira, temos as Reservas Legais e as Unidades de Conservação. O conceito
de Reserva Legal foi instituído a partir do Código Florestal de 1965 (Lei 4.771/1965)
sendo sua definição retificada pela Medida Provisória Nº 2.166-67 de 24 de agosto de
2001. Com a modificação do Código Florestal em 2012, a denominação de Reserva Legal
62 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

atual é a seguinte:

[...] área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada


nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sus-
tentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação
dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o
abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa; (BRASIL, 2012)

4
Considera-se como desconformidade, os conflitos de uso da terra em APPs que não possuam cobertura
vegetal natural em suas referidas metragens de acordo com cada categoria prevista na legislação ambiental.
Entretanto, vale ressaltar que o Código Florestal Brasileiro em sua última grande reformulação (Lei Federal
nº 12.651/2012), concedeu a anistia de multas ambientais até o dia 22 de julho de 2008, permitindo assim
a supressão e o uso tanto das APP como das RL que continham: edificações, benfeitorias ou atividades
agrossilvipastoris, até a referida data, de acordo com o 4ª parágrafo do capítulo XIII da referida lei
(BRASIL,2012). Desta maneira, o mapa a ser apresentado constitui uma análise geral entre os conflitos
APP com/sem vegetação natural, sem considerar a situação de cada imóvel/proprietário rural no tocante ao
enquadramento ao código florestal.

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Com o advento do Cadastro Ambiental Rural, por meio de seu sistema nacional
(SICAR), as RLs que estão devidamente legalizadas/averbadas, possuem o seu devido re-
gistro, sendo georreferenciadas e disponibilizadas no formato shapefile (.shp). Também
estão computadas, RLs que foram averbadas por meio de um vínculo de compensação de
outro imóvel, além de reservas que ainda estão em processo de averbação e por último as
áreas indicadas para composição de Reservas Legais, propostas de acordo com o número e
tamanho dos imóveis rurais. No caso da Raia Divisória o percentual por imóvel é de 20%
da área total.
Dentre as quatro categorias de RLs, presentes no SICAR, a Raia Divisória apresentou
6.358 reservas legais, as quais 1.465 já se encontram averbadas, sendo 4 destas vinculadas a
compensação de outros imóveis rurais. Do restante das RLs, 66 estão aprovadas, mas ainda
passam por processo de averbação, tendo 4.827 RLs propostas.
Na porção paulista, o número de RLs averbadas são de 173, além de 14 que já se
encontram aprovadas, mas não averbadas, todavia, 2.700 RLs estão propostas. O lado
paranaense é o que possui maior número de RLs averbadas 1.260, além de outras 4 de
compensação de outros imóveis e 52 aprovadas para averbação, muito em decorrência
da estrutura fundiária nesta porção do estado. Além disso, existem 1.322 RLs propostas.
Na raia sul-mato-grossense, o número de RLs é menor sendo apenas 28 averbadas e 805
propostas.
No caso das Unidades de Conservação, a Legislação ambiental Brasileira criou o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), pela lei federal nº 9.985 de 18
de julho de 2000. A demora significativa para o projeto sair do papel, vinha dos embates

63 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
entre a bancada ruralista, ambientalistas, movimentos sociais e organizações não-governa-
mentais (GUERRA & COELHO,2002).
Com a regulamentação do SNUC, o conceito de UC no âmbito da gestão ambiental
brasileira foi ratificado e sua gestão e critérios para criação de novas áreas protegidas passa-
ram a ser organizadas inicialmente pelo IBAMA, sendo posteriormente destinada à autar-
quia especial vinculada ao MMA criada em 2007, denominada Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A política nacional de áreas protegidas no Brasil sob amparo legislativo do SNUC,
tem como aporte teórico o conceito técnico legislativo nacional, adotado da Convenção de
Biodiversidade Biológica (CDB) elaborado durante a ECO-92, bem como conceito pro-
posto pela União Internacional para Conservação da Natureza-UICN (GONÇALVES,
BARBOSA & PASSOS, 2018). De acordo com o SNUC, entende-se por unidade de
conservação:
[...]espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdi-
cionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder

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Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de
administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (BRASIL, 2000)

Em concomitância com as APPs e RLs, as Unidades de Conservação também repre-


sentam uma fatia significativa das poucas áreas ainda preservadas na Raia Divisória. Ao
todo, atualmente existem cinco Unidades de Conservação presentes na Raia Divisória
SP-PR MS sendo: duas federais, duas estaduais e uma municipal, das quais: quatro são de
proteção integral e apenas uma de uso sustentável.
A Área de Proteção Ambiental Ilhas e Várzeas do Rio Paraná é uma UC Federal de uso
sustentável, criada em 1997, como medida mitigatória a construção da UHE Engenheiro
Sérgio Motta, abrangendo os três estados da Raia, possui uma área total de 10.051,8071
km², da qual cerca de dos quais 1586,02 km² estão na área da Raia. Nesta APA, exis-
tem outras UCs sobrepostas: o Parque Nacional de Ilha Grande, Parque Estadual Ilhas e
Várzeas do rio Ivinhema e a Estação Ecológica (ESEC) Municipal Veredas de Taquarussu,
esta última, criada em 2017 está totalmente inclusa na área da raia com 30,65 km², sendo
de proteção integral. Sua gestão é dada pela Secretaria de Meio Ambiente e Turismo do
Município de Taquarussu-MS, em conjunto com o ICMBio (órgão gestor da APA).
O Parque Estadual Morro do Diabo foi criado em 1941 como reserva, virou parque
estadual em 1986, sendo a UC mais antiga do Pontal do Paranapanema, possui uma
área de 338,5 km², sendo o principal refúgio do Leontopithecus chrysopygus (Mico-leão-
preto), espécie ameaçada que chegou a ser considerada extinta por muitos anos. A gestão
é de responsabilidade da Fundação para Conservação e Produção Florestal do Estado de
64 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

São Paulo. Já ESEC Mico Leão Preto, é uma UC federal criada em 2002, e retificada
2004 possuindo 66,77 km² distribuídos em quatro glebas: Água Sumida, Ponte Branca,
Tucano e Santa Maria, nos municípios de: Teodoro Sampaio, Euclides da Cunha Paulista,
Marabá Paulista e Presidente Epitácio, geridos pelo ICMBio. Ambas as UCs são de pro-
teção integral.
Por fim, a ESEC do Caiuá é uma UC Estadual de proteção integral, localizada em
Diamante do Norte-PR. Criada em 1994 e ampliada em 2008 é gerida pelo Instituto
Ambiental do Paraná (IAP). Sua criação se deu como medida compensatória à construção
da UHE Rosana, sendo hoje, o maior remanescente florestal contínuo do noroeste do
Paraná abrangendo 14,27 km².
Posteriormente, para a composição das áreas potenciais para a criação de corredores
ecológicos, analisamos o cálculo do percentual de cobertura florestal, estabelecendo alguns
critérios, baseados no Código Florestal Brasileiro, no que se refere especificamente à com-
posição de áreas de APP e RL em propriedades rurais com o uso já consolidado, em con-
sonância ao inciso IV do artigo 3º da Lei 12.651/12, que concede anistia aos proprietários

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rurais que desmataram as suas terras até o dia 22 de julho de 2008, instalando edificações,
benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris.
Com efeito da lei, considerando que maior parte das propriedades rurais da região
já apresentada uso consolidado anterior a 2008, é permitido o cômputo das Áreas de
Preservação Permanente, no percentual estabelecido por propriedade para a composição
de Reservas Legais (que para a Raia Divisória é de 20%). Cabe ressaltar que para RL já
existentes, a lei não permite sua supressão ou diminuição, sendo obrigatória sua manuten-
ção, independentemente da existência de APP dentro da propriedade.
Neste contexto, a partir escala de percentual de análise dos fragmentos florestais existen-
tes, contemplando os casos específicos citados pelo Código Florestal Brasileiro, onde pode-
mos identificar as regiões que mais necessitam da composição de áreas de conectividade, bem
como a regularização das áreas de APP e RL, de acordo com o percentual mínimo estabele-
cido (Figura 5). A espacialização dos dados seguiu duas etapas, nas quais inicialmente anali-
samos os percentuais para cada propriedade rural a partir da grade fundiária disponibilizada
pelo SICAR. Considerando que nem todos os imóveis rurais da Raia Divisória concluíram a
adesão e o georreferenciamento de sua propriedade no âmbito do Cadastro Ambiental Rural,
algumas áreas não possuíam informações sobre os limites das propriedades.

65 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 5 – Percentual de Cobertura Florestal por Imóvel Rural na Raia Divisória SP-PR-MS (2017)
Org.: Gonçalves, D. L (2020)

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 65 20/06/2023 16:45:55


Com relação ao percentual de cobertura florestal por imóvel, a situação mais crítica é
na porção paulista, especialmente nas bacias hidrográficas dos ribeirões: Santo Antônio,
Anhumas e Cuiabá (esta última próxima ao Parque Estadual Morro do Diabo), onde o
percentual de cobertura florestal predominante de apenas cerca de 5%. Este panorama se
estende para algumas regiões do Paraná, especialmente nas bacias do Ribeirão São Pedro,
Córrego Maracanã, Água do Trajano, Água Guaiçará, Ribeirão Coroa do Frade e no baixo
curso do Ribeirão São Francisco.
No Mato Grosso do Sul, as áreas com menor percentual estão localizadas no alto e
médio curso da bacia do Córrego do Baile e Ribeirão Esperança, próximo ao núcleo urba-
no de Nova Andradina. É também nesta porção, onde encontram-se as áreas com maior
percentual de cobertura florestal por propriedade, sendo considerado preservado (acima
de 20%), especialmente no alto e médio curso de bacias hidrográficas como dos córregos:
Três Barras, Fumaça e Machado, além do Rio Quiterói e algumas áreas dos ribeirões:
Quiteroizinho e Quebracho
Considerando a realidade atual com base nas informações para o ano de 2017, con-
duzimos nossa análise final para a identificação das áreas potenciais para a conectividade,
baseando-se em alguns critérios geográficos e ecológicos, sendo estes: a vulnerabilidade dos
geocomplexos (de acordo com os critérios já elencados), o percentual de cobertura florestal
e o grau de distanciamento entre os fragmentos florestais.
A partir dos aspectos avaliados, nossa proposta está pautada inicialmente na recompo-
sição das Áreas de Preservação Permanente, sobretudo no âmbito das bacias hidrográficas
presentes no entorno do Parque Estadual Morro do Diabo e da ESEC Mico Leão Preto
66 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

na porção paulista da raia, área considerada de potencialidade muito alta para a criação de
corredores ecológicos, tendo em vista as condições atuais e por ter a maior área de reduto
da fauna e flora da Raia.
Através do conjunto: Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal e Unidades de
Conservação, sua distribuição de acordo com o Código Florestal Brasileiro e as potencia-
lidades emergentes identificadas neste trabalho, temos a condição de mensurar os ganhos
ambientais atrelados ao exercício efetivo da Legislação Ambiental Brasileira, especialmente
na recomposição das APP, onde teríamos um acréscimo de 237,62 km², o que corresponde
a um ganho de 13,4 % nas áreas destinadas a floresta. Cabe ressaltar que as APP, especial-
mente ao redor dos cursos d’águas e nascentes, tornam-se corredores ecológicos naturais,
facilitando a dispersão das espécies ao longo de uma bacia hidrográfica.
Para as áreas de Reserva Legal a área total de ganhos ambientais é de 800, 94 km²
que corresponde um acréscimo de 46,3% na composição das áreas de fragmentos flo-
restais. Ao todo, a área dos ganhos ambientais somadas APP e RL é de 1038,56 km²,
incidindo em um percentual de acréscimo de 60,04% na classe de florestas na Raia

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Divisória, o que contabiliza 6,35% da área total da Raia em ganhos de preservação
ambiental.
Com relação a espacialização destes ganhos, considerando a proposta de avaliação por
meio de matrizes hexagonais de 50 km², classificados anteriormente para o ano de 2017,
vemos que do total de hexágonos avaliados (373), houve uma redução significativa entre
as classes de percentual de cobertura florestal muito baixo (até 5%), com decréscimo de
22,52% e baixo (5% a 8%), onde a subtração indicou redução de 6,97% com relação aos
dados de 2017, vejamos na figura 6 abaixo:

67 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Figura 6 – Percentual de Cobertura Florestal por matriz hexagonal: Cenário atual e possibilidades futuras
Org.: Gonçalves, D. L (2020)

Por outro lado, vemos o acréscimo nas classes de maior percentual de cobertura florestal
como na: média (de 10% a 15%), onde o percentual subiu 12,6% (a maior média entre as
matrizes analisadas) o que indica uma taxa de preservação relativamente próxima ao adequado
(15% a 20%), no qual o acréscimo obtido foi de 8,57%. As áreas preservadas, consideradas
acima do percentual de 20% de cobertura florestal, considerando o cômputo APP+RL em
áreas consolidadas, obteve um acréscimo total de 8,31%. Lembrando que este cálculo incide
apenas no percentual florestal, sem considerar os gecomplexos naturais de planícies e terraços.
Para a espacialização dos ganhos ambientais, apresentamos como síntese o mapa de
cenário ideal (Figura 7) considerando os fragmentos florestais residuais, as APPs, RLs e
Unidades de Conservação existentes na Raia Divisória SP-PR-MS:

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Considerações Finais:

Como pode ser observado no trabalho, através do simples exercício efetivo da aplica-
ção da legislação ambiental brasileira, temos a possibilidade de ampliar conectividade da
paisagem, através do estabelecimento de corredores ecológicos. Neste contexto, o planeja-
68 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

mento ambiental apresentado pela teoria geossistêmica, notadamente pelo modelo GTP,
indicaram as áreas prioritárias para a conectividade, sejam eles pela recomposição de APP,
criação de novas Unidades de Conservação e a destinação correta de Reservas Legais em
imóveis rurais.
As áreas com prioridade muito alta, localizam-se próximo ao epicentro de contato
maior entre as três unidades de federação da Raia Divisória, na região que abriga as duas
hidrelétricas (Rosana e Engenheiro Sérgio Motta). A presença da ESEC do Caiuá, bem
como de algumas áreas de reflorestamento da CESP, aliados a recomposição das APPs e
criação de novas Reservas Legais seguindo a indicação dada pelo CAR, podem contribuir
para a conectividade destas áreas.
Ademais, paisagens importantes como o Morro Três Irmãos em Terra Rica-PR, po-
deriam ganhar áreas de preservação ao seu entorno, seja por meio de RLs, RPPNs ou até
mesmo a criação de uma unidade de conservação, contribuindo para ações socioambien-
tais e educativas na região. Nos núcleos com prioridade muito alta, tanto no Paraná como
no Mato Grosso do Sul, a recomposição das APPs e averbação de RLs, são fundamentais

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 68 20/06/2023 16:46:01


para a conectividade destas áreas, que compõem dois biomas distintos: Mata Atlântica e
Cerrado, respectivamente.
Já nas áreas indicadas com média prioridade, a ideia passa pela preservação dos geo-
complexos de áreas de várzea a maior parte destes incluído na APA Ilhas e Várzeas do Rio
Paraná, com vegetação em diferentes níveis. Por fim, a área mais estável localizada no Mato
Grosso do Sul, indica um panorama de preservação, associada a manutenção das APPs
e RLs e a recomposição das mesmas quando indicadas, considerando a sua importância
como uma zona de transição Mata Atlântica/Cerrado.

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo, fazer uma análise das potencialidades de cria-
ção de corredores ecológicos interligando os fragmentos florestais na Raia Divisória São
Paulo-Paraná-Mato Grosso do Sul, considerando os aspectos legais, propostos pela legislação
ambiental brasileira. A metodologia incluiu a revisão bibliográfica das leis ambientais presen-
tes no território brasileiro, seja por meio do Código Florestal ou pelo Sistema Nacional de
Unidades de Conservação, especialmente no que concerne os conceitos de: Área de Preservação
Permanente (APP), Reserva Legal, Unidade de Conservação e Corredor Ecológico. Para a
caracterização da área de estudo e identificação das áreas potenciais para criação dos corre-
dores ecológicos, utilizou-se a aporte da teoria geossistêmica sob a égide bertrandiana, basea-
da no tripé: potencial ecológico + exploração biológica + ação antrópica e do modelo GTP
(Geossistema, Território e Paisagem) a partir de três entradas: naturalista, socioeconômica
e sociocultural. Foram identificados a situação atual dos fragmentos florestais e os confli-
tos de uso e cobertura da terra presentes nas APP ao longo dos afluentes dos rios Paraná e
Paranapanema. Através da referida análise, foi possível mensurar cenários futuros mediante ao

69 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
cumprimento da legislação ambiental nas APP e projeção de novas reservas legais propostas
pelo Cadastro Ambiental Rural, bem como a indicação de áreas para criação de corredores
ecológicos, que ampliariam o fluxo gênico das espécies de fauna e flora nesta porção do espaço
na transição dos biomas da Mata Atlântica-Cerrado. Os dados da pesquisa, foram sistematiza-
dos por meio de tabelas, gráficos e mapas. Pretende-se assim, contribuir para o planejamento
ambiental da Raia Divisória por meio da conectividade das paisagens na recomposição das
APPs e Reservas Legais, bem como pela criação de novas unidades de conservação, especial-
mente os corredores ecológicos.
Palavras-Chave: Legislação Ambiental Brasileira, Fragmentos Florestais, Paisagem, Corredores
Ecológicos.

Abstract:

The present work aims to analyze the potential for creating ecological corridors linking
forest fragments in the São Paulo-Paraná-Mato Grosso do Sul Divisive Line, considering the
legal aspects proposed by Brazilian environmental legislation. The methodology included a bi-
bliographic review of the environmental laws present in the Brazilian territory, either through

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the Forest Code or the National System of Conservation Units, especially regarding the con-
cepts of: Permanent Preservation Area (APP), Legal Reserve, Conservation and Ecological
Corridor. For the characterization of the study area and identification of potential areas for the
creation of ecological corridors, the contribution of the geosystemic theory was used under the
Bertrandian aegis, based on the tripod: ecological potential + biological exploration + anthro-
pic action and the GTP model (Geosystem, Territory and Landscape) from three inputs: na-
turalistic, socioeconomic and sociocultural. The current situation of forest fragments and the
conflicts of land use and land cover present in the APPs along the tributaries of the Paraná and
Paranapanema rivers were identified. Through this analysis, it was possible to measure future
scenarios by complying with environmental legislation in the APPs and projecting new legal
reserves proposed by the Rural Environmental Registry, as well as indicating areas for the crea-
tion of ecological corridors, which would increase the gene flow of species of fauna and flora in
this portion of the space in the transition of the Atlantic Forest-Cerrado biomes. The research
data were systematized through tables, graphs and maps. Thus, it is intended to contribute to
the environmental planning of Raia Divisoria through the connectivity of landscapes in the
recomposition of APPs and Legal Reserves, as well as the creation of new conservation units,
especially the ecological corridors.
Keywords: Brazilian Environmental Legislation, Forest Fragments, Landscape, Ecological
Corridors.

Referências Bibliográficas

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TRICART, Jean. – Ecodinâmica - Rio De Janeiro, IBGE, Diretoria Técnica, SUPREN,1977

71 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 71 20/06/2023 16:46:01


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Ilha da Asinara: da prisão ao Parque
Nacional e Área Marinha Protegida.
História, usos e perspectivas1

Giampietro Mazza 2
Giacomo Zanolin 3

Introdução

Uma das finalidades dos parques nacionais, conforme indicado na lei-quadro da legisla-
ção italiana das áreas protegidas (394/91), é a promoção de atividades de pesquisa científica,
formação e educação ambiental, destinadas não apenas ao conhecimento do território e do
recurso natural, mas também e sobretudo como o desenvolvimento de novos comportamen-
tos positivos em relação ao meio ambiente, na consciência e respeito de todas as relações
biológicas existentes na natureza. A autoridade do parque criou assim vários observatórios,
ambientais, de vida selvagem, do mar, com tarefas de proteção da biodiversidade, recuperação
e recenseamento de espécies animais e educação ambiental (Cattaneo Vietti e Tunesi, 2007).

73 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
O presente trabalho vai analisar a evolução dos processos de territorialização relativamen-
te a Ilha de Asinara (Sardenha-Italia) que a partir do 1997 é Parque Nacional e desde 2002
foi reconhecida como Área Marinha Protegida, após 112 anos de história de “ilha prisão”
com inevitável e forte limitação ao uso do espaço e acesso à ilha pelos cidadãos (Gutierrez
et al., 1998; Brandis et al., 2001; Forteleoni e Gazzale, 2008; Vinceti, 2009; Corbau et al.,
2019, Corbau et al., 2019b). Hoje a ilha é caracterizada por um aumento da procura tu-
rística e uma relativa remodelação da oferta por parte do órgão gestor do Parque Nacional.
O estudo é desenvolvido com o objetivo de compreender e analisar os processos terri-
toriais que revolucionaram o uso espacial da Ilha de Asinara. Em termos gerais, é necessário
chegar a um maior conhecimento dos elementos fatores locais e do desempenho do proje-
to de desenvolvimento sistémico que afetou o território nas últimas décadas, envolvendo,

1
Embora o trabalho seja o resultado de uma estreita colaboração entre os autores, no entanto, os pontos 1 e
3 devem ser atribuídos a Giampietro Mazza e os pontos 2 e 4 a Giacomo Zanolin.
2
Dipartimento di Scienze della formazione, Università di Genova, giampietro.mazza@unige.it
3
Dipartimento di Scienze della formazione, Università di Genova, giacomo.zanilin@unige.it

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em diferentes graus, os atores públicos e privados no processo de desenvolvimento do
território. Partindo de uma análise do estado dos locais, referindo-se tanto ao contexto
histórico-geográfico como à capital territorial presente na zona, foram identificadas solu-
ções integradas e sustentáveis que constituíram a base para o estabelecimento do Parque
Nacional e da Área Marinha Protegida, trazendo um desenvolvimento sustentável e dura-
douro. Mais especificamente, o estudo pretende contribuir para a construção de uma visão
a longo prazo baseada em linhas de desenvolvimento coerentes com os planos estratégicos
locais, de acordo com as necessidades da comunidade envolvida (Porto Torres), com par-
ticular referência a uma gestão de todo o património (paisagístico, histórico, ambiental,
cultural, etc.) destinada a maximizar os resultados com uma orientação verde.

Área de estudo

A ilha de Asinara, localizada no extremo noroeste da Sardenha, ocupa uma porção ter-
ritorial de cerca de 51 km², desenvolvendo-se ao longo de um complexo costeiro de mais de
110 km. O seu comprimento máximo é de 8 km, enquanto a sua largura diverge, desde um
máximo de 7 km no norte até 290 metros na Cala di Scombro (Giglio, 1970; Brandis et al.,
2001; Forteleoni e Gazzale, 2008). Enquadra-se inteiramente no município de Porto Torres,
cidade da Sardenha setentrional. A paisagem é essencialmente mediterrânica, caracterizada
por uma alternância de costa alta no oeste e costa baixa e arenosa no leste, que contribuem
para a peculiaridade paisagística da ilha (Carboni e Ginesu 2010; Ginesu et al., 2014). O
ambiente é predominantemente montanhoso, com a maior elevação alcançada em Punta
74 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

della Scomunica, no norte, a 408 metros. Na parte central de Asinara encontra-se o trecho
liso principal, Campu Perdu, onde, historicamente, a principal presença humana tem estado
concentrada. Consiste em litologias devido a dois complexos metamórficos de média e alta
qualidade envolvidos nas fases de deformação herciciana e um complexo de granito hercínia-
no tardio que constitui o único afloramento de granito paleozóico no noroeste da Sardenha
(Carosi et al., 2004). A cadeia ocidental de relevos apresenta, também de um ponto de vista
estrutural, a continuação para norte da cadeia Argentiera Paleozóica. A tectónica mais re-
cente (Cenozóico) produziu uma inclinação geral para leste do norte da Nurra, e, portanto,
da ilha, determinando, entre outras coisas, as principais características morfo-tectónicas de
Asinara que se manifestam principalmente no forte contraste entre a morfologia da costa oci-
dental e a da costa oriental (Carosi et al., 2004; Ginesu et al., 2014). As condições históricas
e naturais de isolamento, o ambiente em que existem frequentemente poucos sinais antropo-
génicos, tanto em grandes extensões de costa como na maioria das áreas interiores, criaram as
condições para uma grande variedade de fauna e flora, com importantes presenças indígenas
na área. Muitas das espécies da fauna são de grande importância a nível mundial devido à sua

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 74 20/06/2023 16:46:01


raridade, tendo sido incluídas em listas nacionais e internacionais de espécies ameaçadas de
extinção. A paisagem vegetal de Asinara incorpora uma grande variedade, indicando tanto
os caracteres estritamente naturais e endémicos como os de clara derivação antrópica. De
grande interesse ambiental e paisagístico é a presença de várias espécies endémicas, entre as
quais a de maior especificidade é a Centaurea Horrida Badarò, que só se encontra em todo o
mundo na Ilha de Asinara, na península de Stintino, na península de Capo Caccia e na Ilha
de Tavolara (Bocchieri, 1988). Em geral, a paisagem da ilha é dominada pela presença ho-
mogénea do maqui mediterrânico, que cobre uma grande parte do território com formações
de zimbro, zambujeiro, esteva e aroeira. Uma formação original de azinheira ainda sobrevive,
presente apenas na localidade de Elighe Mannu, perto de Punta della Scomunica (Fig. 1).

75 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1. Zonizzazione del Parco Nazionale e dell’Area Marina Protetta dell’Isola dell’Asinara. Nossa elaboração
sobre dados http://www.parks.it/parco.nazionale.asinara/mapl.php.

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Hoje não há comunidade residente e as atividades antrópicas estão exclusiva-
mente relacionadas aos serviços turísticos e à pesquisa científica. As infraestruturas
são também bastante limitadas: a ilha é atravessada por uma estrada principal, desde
Fornelli a sul até Cala d’Oliva a norte, numa extensão de cerca de 25 km. Embora
a Autoridade do Parque Nacional pretenda reconstituir um centro habitado e resta-
belecer atividades tradicionais. A realização do Parque Asinara, para além da valo-
rização e proteção do território, abriu novas perspetivas económicas para o inteiro
setor noroeste da Sardenha, favorecendo o desenvolvimento turístico numa zona
com um setor produtivo bastante diversificado, com elevadas taxas de desempre-
go, é o caso de Stintino e Porto Torres, concelhos que se inserem na Vasta Área do
Parque. De facto, a economia de Stintino está ligada a formas de turismo costeiro,
portanto puramente estacional, a de Porto Torres, para além da importância óbvia
dos serviços portuários, está ligada tanto a atividades que sobreviveram ao declínio
da indústria petroquímica como ao sector primário. Inevitavelmente, a criação do
parque tornou-se um novo elemento através do qual se pode relançar a economia
local e empreender novas formas de desenvolvimento, especialmente numa perspe-
tiva de sustentabilidade.
O sistema de mobilidade e transporte na Ilha, inclui as estruturas de ligação marí-
tima fora da mesma e as infraestruturas rodoviárias de mobilidade interna. Quanto às
conexões marítimas, a Asinara está ligada aos portos de Stintino e Porto Torres e pos-
sui três pontos de atracação: o cais Fornelli, o cais La Reale e o cais Cala d’Oliva, utili-
zados principalmente por barcos de serviço e por operadores turísticos. Anteriormente
76 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

destacou a existência de uma única rede de infraestruturas, que é acompanhada por


uma rede secundária. Este última é utilizada sobretudo para visitas e excursões e é
maioritariamente constituído por trilhos e caminhos de mulas que permitem chegar
a alguns lugares, sobretudo costeiros, da ilha. Em relação ao escasso desenvolvimento
da rede, e também a presença de áreas com proteção integral, não está permitido
chegar os todos os lugares da ilha, assim também de não afetar significativamente a
sua naturalidade.
Relativamente ao aspeto demográfico, na Asinara não existem residentes, hoje há
uma população, em rotação, de 5 habitantes, composta por pessoal da Autoridade do
Parque Nacional, o Corpo Florestal de Supervisão Ambiental e a Autoridade Florestal
da Sardenha que realiza atividades de controle, vigilância e gestão. Além destes resi-
dentes, cerca de 30 operadores passam o dia na ilha durante os seus dias de trabalho
para realizar atividades de gestão. Em geral, o atual sistema de povoamento é o resul-
tado de necessidades histórico-políticas muito particulares como a Estação de Saúde
Marítima e da Colónia Agrícola Criminal instituídas no final do ano 1800 (Trova,

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 76 20/06/2023 16:46:02


2015). Historicamente o povoamento, nas suas várias fases, se estabeleceu ao longo da
costa leste, mais acessível e protegida.
Uma etapa fundamental, que reescreve a história e o futuro da ilha, com o fim
do sistema feudal, é a decisão, em 1885, de estabelecer o primeiro lazareto do Reino
da Itália e a primeira colónia penal, com a consequente expulsão forçada de seus ha-
bitantes que atingiram seu auge naqueles anos com cerca de quinhentos moradores
(Cassitta e Spanu, 2012). O conseguinte processo de de-territorialização e emigração
dos residentes, tomou forma com a posterior re-territorialização nas cidades atuais de
Porto Torres e Stintino, onde se estabeleceram os exilados de Asinara. O sistema das
casas de reclusão na ilha configurou-se de forma bastante heterogénea, com prédios
prisionais localizados em todo o território, mas com relevantes diferenças na ges-
tão dos internos4, com um dinamismo vivo que atribui “sentido à territorialidade”
(Brundu e Manca, 2011). De fato, a ilha permaneceu inacessível a qualquer forma que
não estivesse estritamente ligada à função carcerária por 112 anos.

Processos de territorialização: evolução da utilização do espaço

A construção de um sistema complexo de instalações prisionais resultou na terri-


torialização espacial da Ilha de Asinara e numa consequente evolução da paisagem. A
migração forçada para a qual os habitantes da ilha foram obrigados a migrar gerou a
perda das atividades tradicionais que estavam disseminadas no território e que tinham
caracterizado a paisagem agrícola local, que foi afetada pelo clima semi-árido, decidi-

77 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
damente mais seco do que o resto do Noroeste da Sardenha, sobre o qual a ausência
de alívio significativo também pesou fortemente.
O sistema de povoamento presente na ilha é o resultado de diferentes necessidades
temporais, alteradas pelos povoamentos da Estação Marítima de Saúde e da Colónia
Penal Agrícola (Trova, 2015), mas mais geralmente, nas suas várias fases, tem-se ma-
nifestado ao longo da linha costeira oriental mais acessível e protegida.

4
As instalações prisionais foram divididas de acordo com o tipo de infração, a perigosidade dos reclusos e a
sua proveniência.

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Figura 2. Zoneamento de Asinara.
https://www.parcoasinara.org/it/contenuti/articoli/dettagli/524/.
78 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A distribuição dos núcleos antrópicos é generalizada em toda a ilha, sendo os princi-


pais Fornelli e Santa Maria a sul, no sector central encontra-se o núcleo de Tumbarino.
Enquanto a maioria está concentrada na parte norte, mais extensa. Em ordem estão
os núcleos de Campu Perdu, Campo Faro, La Reale, Trabuccato e Cala d’Oliva, todos
concentrados na costa. O interior, por outro lado, são os núcleos de Case Bianche e
Elighe Mannu. As zonas de Cala d’Oliva e La Reale representam os principais centros
de Asinara.
A utilização do espaço e a sua territorialização foram fortemente afetadas pela prisão
da ilha e pela sua inacessibilidade durante mais de um século a outras utilizações para além
das previstas pela presença das instalações prisionais. A posterior realização do Parque
Nacional primeiro e depois da Área Marinha Protegida favoreceu uma nova utilização do
espaço, embora com limitações territoriais.
A evolução na utilização do espaço e a implementação de processos territoriais tem
sido fortemente orientada pelo processo de zoneamento da Área Marinha Protegida e do

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Parque Nacional. De facto, a ilha está subdividida em zonas sujeitas a diferentes regimes
de proteção, em virtude das características ambientais presentes (Villa, et al., 2002), como
mostra a figura 2.
No perímetro de Asinara, definido pelo Decreto Ministerial de 13/8/2002, as seguin-
tes áreas são definidas como zona A, na qual apenas são permitidas ações de salvamento e
busca, e sujeitas a reserva integral:
- No norte, de punta del Parco a punta dello Scorno;
- No sector sudeste, de punta Galetta a punta l’Arroccu;
- No sector sudoeste, de punta Pedra Bianca a punta Agnadda.
A zona de reserva geral B, onde são permitidas as atividades clássicas praticadas em
contextos marinhos, inclui todos os troços de mar da ilha, exceto a sul, de Punta Salippi a
Punta Barbarossa. A zona de reserva C inclui todo o perímetro de Asinara, onde todas as
atividades na zona B são permitidas, embora com parâmetros menos restritivos.
Quanto ao perímetro do Parque Nacional das Ilhas Asinara, este foi definido através
do Decreto Presidencial de 3/10/2002 e está subdividido da seguinte forma:
- Zona 1, de excecional interesse natural e ambiental, na qual apenas são permitidas
operações estritamente relacionadas com a gestão do parque;
- A zona 2, de interesse excecional, inclui quase 90% de todo o território insular, na
qual são permitidas iniciativas que não perturbem o ambiente e a paisagem;
- A zona 3, de valor paisagístico relevante, inclui as zonas mais antropizadas de Fornelli,
Cala Reale e Cala d’Oliva, onde as atividades permitidas num centro urbano são permiti-
das, embora em condições especiais.

79 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
O zoneamento representa certamente um instrumento para proteger e salvaguardar o
ambiente e as suas peculiaridades, introduzindo restrições na sua utilização. É uma forma
de territorialização espacial através da qual o poder é exercido. Nos últimos anos, na ilha
de Asinara, teve lugar a reutilização de estruturas pré-existentes, iniciando um processo
de reconversão social, cultural e económica, com repercussões positivas também na vasta
área do Parque Nacional (Brandis et al., 2001). Após o encerramento das instalações pe-
nitenciárias, o fenómeno turístico tem vindo a adquirir uma força crescente. Embora seja
verdade que numa fase inicial era possível visitar uma pequena parte de Asinara (na zona
sul) e apenas durante meio dia, hoje o turismo chega a toda a ilha, com exceção das áreas
proibidas pelo zoneamento.
Foram criadas dozes trilhas, desenvolvidos em diferentes temáticas, onde é possível pra-
ticar o ecoturismo, com diferentes graus de dificuldade (uma delas, a trilha tátil, é um ele-
mento importante para o turismo social) e diferentes práticas de turismo sustentável foram
estabelecidas. A conversão dos edifícios levou também à criação das primeiras instalações de
alojamento: hoje existem mais de 40 camas na ilha, espalhadas por todo o território.

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A territorialização espacial foi também configurada com um dos pressupostos por
detrás do estabelecimento de uma Área Marinha Protegida e de um Parque Nacional,
nomeadamente a sua função educativa. Foram criados laboratórios e centros de inves-
tigação na ilha para preservar e melhorar os ambientes e ecossistemas locais5. Essencial
é a função desempenhada pelo Observatório do Mar, que foi inaugurado em 2012,
reutilizando a antiga casa dos relâmpagos. Permite aos visitantes da Área Protegida
Marinha e do Parque Nacional Asinara aproximarem-se do sistema marinho com a
criação de uma estrutura, que faz parte da Rede Asinara de Educação Ambiental,
dentro da qual se encontra alojado, o Centro de Recuperação de Animais Marinhos
do Parque Nacional Asinara e a AMP “Isola dell’Asinara”. É um centro de referência
para a investigação científica e recolha de informação específica sobre o meio marinho.
Ligado à proteção deste ambiente, o Santuário de Mamíferos de Pelagos foi criado em
1999, na sequência de um acordo internacional entre Itália, França e o Principado
do Mónaco. Esta é a primeira área protegida do mundo dedicada à proteção de cetá-
ceos, distribuída por uma área de 96.000 km², incluindo a Área Marinha Protegida e
o Parque Nacional de Asinara. Também é significativa a criação do Observatório da
Fauna e de um Observatório Ambiental. O primeiro está localizado no antigo ramo
prisional de Tumbarino, cuja realização foi possível graças à renovação de alguns dos
edifícios da aldeia. A criação do Observatório da Fauna contribui para o programa
global de salvaguarda dos habitats naturais e de proteção das espécies animais amea-
çadas de extinção. O Observatório Ambiental consiste numa estação automática que
monitoriza continuamente os parâmetros meteorológicos e de qualidade do ar.
80 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A função educacional é exercida em grande parte pelo papel desempenhado pelos


Observatórios na ilha e pelos projectos de investigação desenvolvidos pela governan-
ce em parceria com as universidades. Mas, como refere Zanolin, “il valore educativo
dell’isola è quindi legato soprattutto alla sua riconnessione con il mondo, organizzata in
modo costruttivo e accettando la presenza degli esseri umani al suo interno” (Zanolin,
2022, p.199)
Embora seja difícil quantificar os impactos sociais positivos provocados pela go-
vernação local (em virtude da ausência de uma população residente na ilha), são evi-
dentes práticas sustentáveis na reutilização de estruturas pré-existentes, das práticas
turísticas através o reconhecimento da capacidade de carga, identificada como 900
turistas por dia (Carbau, et al., 2019), e gestão eficiente dos recursos renováveis (Floris
et al., 2020), também em virtude da escassa presença de água em Asinara (Garau,
2009; Marini et al., 2017).

5
https://www.parcoasinara.org/it/contenuti/articoli/dettagli/526/.

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Conclusões

A história da ilha conta um processo evolutivo de libertação, marcado pela transi-


ção da prisão-ilha para o parque-ilha, ou seja, um processo de “reapropriação territorial”
levado a cabo pela comunidade local de Porto Torres (Gazale e Congiatu, 2002). Após
o estabelecimento do Parque Nacional, foi elaborado o Plano do Parque Nacional, que
representa o instrumento fundamental de planeamento de uma área protegida. No caso
específico de Asinara, o plano representa a primeira experiência de campo na Sardenha
(Forteleoni, 2008).
De acordo com a diretiva MATTM de 2017, diretiva ex Cap. 1551 do Ministério do
Ambiente e Proteção da Terra e do Mar, prot. n. 1988/2018 de 05 06 2018, foi elabo-
rado pelo Parque Nacional de Asinara e pela Área Marítima Protegida em parceria com
a Universidade de Sassari o plano territorial Parkway da Vasta Área do Parque Nacional
de Asinara. Isto prevê a criação de um sistema territorial no qual a conservação, o desen-
volvimento sustentável, a investigação e a valorização dos recursos naturais e humanos
estão integrados para assegurar o crescimento e um futuro para as populações locais, com
o objetivo de oferecer às gerações mais jovens oportunidades de emprego de acordo com
os ditames da economia verde, que incluem a otimização da utilização dos serviços ecos-
sistémicos. O plano envolve seis municípios da vasta área, com a intenção de reunir todo
o capital territorial e humano, conservando-o e valorizando-o em função de um turismo
lento (Girepam).
Ao desenvolvimento da Vasta Área do Parque Nacional de Asinara vai contribuir para

81 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
a promoção da mobilidade suave e para a criação de uma série de rotas verdes, orientadas
para a promoção e valorização do território, reunindo atracões culturais, ambientais, pai-
sagísticas e religiosas.
A proteção e valorização do território é profuso através de toda uma série de inicia-
tivas levadas a cabo pela Autoridade de Gestão de Parques e Áreas Marinhas Protegidas,
destinadas a promover práticas virtuosas e sustentáveis de educação ambiental através das
atividades conduzidas pelos observatórios da ilha.
O turismo faz parte de um caminho funcional às necessidades locais, de acordo com
os princípios da sustentabilidade. A introdução da capacidade de carga, identificada como
900 turistas por dia (Corbau et al., 2019) resume esta intenção. As iniciativas de coope-
ração territorial e de paternidade representam um laboratório destinado a experimentar
novas conexões entre o homem e o ambiente, procurando fomentar a criação de “uma rede
que aplique os princípios de cooperação para a implementação de uma gestão integrada e
sustentável dos recursos naturais, a fim de aumentar a competitividade da área em termos
de economia e turismo”, como indicado pelo objetivo geral da RETRAPARC.

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83 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Os novos moinhos trarão bons ventos?
O Parque Eólico de Santa Luzia (PB)
como vetor do desenvolvimento
local sustentável

Ângela Maria Cavalcanti Ramalho1


Fernando Nazareno do Nascimento2

Introdução

O ponto inicial para começar a estudar a Energia Eólica ou Energia dos Ventos, é saber
como ela é produzida na natureza. Numa definição mais simplória possível, os ventos nada
mais são do que o ar em movimento. Este movimento das camadas de ar na atmosfera,
acontece basicamente por troca de calor. O sol aquece mais rapidamente as camadas de
ar que estão mais próximas à superfície terrestre. Com este aquecimento, acontece uma
diferença de pressão entre as camadas de ar e por fenômeno natural ocorre a subida
deste ar mais quente para as camadas superiores da atmosfera. Neste momento, e em
consequência, as camadas de ar superiores que estão mais frias, são deslocadas para baixo.

85 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Basicamente ocorre um ciclo infinito de subida e descida das camadas de ar no sentido de
fazer essas trocas de calor. Há basicamente três tipos de ventos, todos gerados em função
das variações de pressão: ventos curtos e fortes chamados rajadas; ventos longos e de força
intermediária chamados tufões, furacões ou vendavais e os ventos mais suaves, chamados
brisas. Obviamente a frequência com que estes fenômenos acontecem na superfície do
planeta, é variável por região em função de outras características naturais como relevo,
vegetação, posição em relação ao litoral, entre outros. É consenso entre os pesquisadores
que a faixa de velocidade do vento ideal para a exploração desta forma de energia vai de
21 a 26 km/h, ou seja, mais importante do que a força dos ventos é a constância de sua
velocidade dentro da faixa ideal (Brasil, 2016).
O potencial de geração de energia eólica no mundo atualmente é de 840 TW
(840 x 1012 watts). Este número representa 40 vezes o consumo mundial de energia.
Logo estamos falando de uma fonte energética de um incrível potencial de exploração.
1
Universidade Estadual da Paraíba - angelamcramalho@gmail.com
2
Universidade Estadual da Paraíba - fernando.nazareno60@gmail.com

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Basicamente estamos no começo da exploração desta forma de energia. O seu cres-
cimento nas últimas décadas evoluiu de forma extraordinária em todos os aspectos,
desde tamanhos de equipamentos à potência instalada, passando por custos. Em 1980,
as torres tenham em média 17 metros de altura com 0,07 MW de potência. Em 2020
esse número cresceu para 116 metros de altura em média e 2,4 MW de potência ins-
talada. Em 1980 a capacidade instalada no mundo era de 280 GW (280 x 109 watts)
e atualmente há uma capacidade mundial instalada de 680 GW, em constante cresci-
mento. Esta evolução fantástica em tão pouco tempo também se reflete nos custos de
produção, considerando-se que atualmente os custos são 20 vezes inferiores aos custos
de 1980 (ONU, 2021). Atualmente os custos por KW gerados variam dentro da faixa
de US$ 20,00 a US$ 30,00 enquanto em 1980 ficavam na faixa de US$ 400,00 a US$
600,00. Nas previsões de crescimento da produção desta forma de energia, trabalha-se
com números que até 2050 serão investidos US$ 1,2 trilhões para multiplicar por 10
os volumes de produção atuais (Irena, 2021).
Diante das pressões internacionais considerando o esgotamento das matrizes conven-
cionais, os desdobramentos sociais, políticos e ambientais, o uso de fontes alternativas de
energia tem sido crescente em todo o mundo, o que demanda desenvolver tecnologias
mais limpas, notadamente na busca de reduzir os impactos das energias fósseis.
O avanço nas pesquisas sobre fontes alternativas de energias renováveis foi inicialmen-
te demandado pelas pressões ambientalistas no sentido de reduzir a emissão de gases po-
luentes e ao mesmo tempo manter a capacidade de fornecimento de energia para atender
as demandas industriais e da economia em geral (UNEP, 2008).
86 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

O fato de a Matriz Energética Mundial ter em sua maior parte a participação de ener-
gias não renováveis, confirma que durante décadas os estudos para desenvolver tecnologias
que tornassem viáveis as energias renováveis, foram negligenciados. No Brasil a expansão
de projetos de energias renováveis é resultante da política nacional de diversificação da
matriz energética, definindo ações para investimentos em fontes renováveis, como uma
alternativa ao enfrentamento da problemática da crise energética vivenciada em 2001 e
anos subsequentes (ELETROBRAS, 2010).
Vale assinalar que a matriz energética brasileira é privilegiada em relação aos demais
países pelo fato de que suas principais fontes de energia elétrica são as usinas hidrelétri-
cas, cujo único insumo é a água das chuvas armazenadas em barragens (D’araújo, 2009),
(Araújo, Goes, 2009). Este tipo de energia responde por 65% de toda a energia elétrica
gerada e consumida no Brasil, contra uma participação de apenas 17% nos países da
OCDE - Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico, segundo dados
da Resenha Energética Brasileira de 2016 do Ministério de Minas e Energia (Brasil, 2017;
Internacional Energy Agency, 2015).

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No Brasil a produção da energia eólica, possui 15,50 GW de energia instalada, o que
significa 9,8% da energia elétrica gerada no país. Com 525 parques eólicos em operação
e outros 316 em construção, a expansão de projetos no país é resultante da política nacio-
nal de diversificação da matriz energética, com investimentos em fontes renováveis como
instrumento de enfrentamento diante do cenário da crise energética (Abeeólica, 2018).

Contextualização do Problema

O advento da produção de energias renováveis é uma realidade mundial e nacional


bastante relevante, não só pela contribuição que apresenta para o balanço energético dos
países onde estão inseridos, através da geração de menor dependência externa de petróleo e
gás, como também pelas contribuições para mitigar o Efeito Estufa no planeta e fortalecer
as economias locais como geradoras de emprego e renda.
A implantação desses parques representa novas perspectivas econômicas para a região
semiárida, com incremento das atividades locais para atender às demandas emergentes por
produtos e serviços, principalmente no segmento saúde e educação. Aumento do volume
de atividades da construção civil, sobretudo na área de moradias, com impactos socioe-
conômicos significativos na melhoria da qualidade de vida como grandes indicadores de
desenvolvimento econômico e social.
Ademais, faz-se necessário compreender alguns aspectos sobre a interface energia eó-
lica e desenvolvimento regional, na perspectiva de entender que a atividade não alcança
importância apenas pela lógica da necessidade do aumento da oferta de energia através de

87 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
outras fontes, como também pela lógica do crescimento econômico com base no aporte
de que uma cadeia produtiva local, que valoriza as características e potencialidades regio-
nais e locais com criação de empregos, capacitação e formação de mão de obra além da
redução de emissões de CO2.
O advento destas produções de energias renováveis contribuem como fatores extre-
mamente importantes para os investimentos estruturantes na região onde estão inseridos e
terminam por gerar novas necessidades específicas de produtos e serviços.
A produção de energia eólica situa-se entre o impasse do crescimento econômico re-
gional e o conflito social. O discurso dos defensores, políticos e gestores estampa “que
os ventos são os motores que impulsionam o crescimento local e regional”, partindo da
premissa de que é uma atividade ambientalmente sustentável que tem gerado emprego e
renda, para muitas regiões no Nordeste, assumindo desta forma o protagonismo desses
projetos de geração de energias renováveis.
A região semiárida do Nordeste vem sendo ocupada com uma nova atividade a
partir das instalações das usinas trazendo uma nova dinâmica regional, novos agentes,

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impactando a economia local, o meio-ambiente, as relações sociais e a vida das pessoas
de uma maneira em geral. Diante do cenário de diversificação de atividades produtivas a
geração de energia eólica surge como uma nova proposta para as políticas de crescimento
econômico regional, além de trazer benefícios aos municípios e estimular os estados pro-
dutores com um maior desempenho econômico.
Como são investimentos que ainda estão em fase de crescimento e/ou implantação,
fazem-se necessários nesta fase, a realização de estudos dos fenômenos já ocorridos e dos
que ainda estão por vir. Neste sentido, é importante fazer análises e conhecer tendências
a partir do cenário existente no presente e possíveis caminhos que cada variável seguirá ao
longo do tempo.
A apresentação deste estudo e de suas contribuições científicas justifica-se pela realida-
de de pobreza que se apresenta no lócus social em estudo e as condições naturais, políticas
e climáticas adversas, agravadas pelo problema social oriundo da concentração das terras
nas mãos dos grandes latifúndios, na maioria dos casos improdutivos. Tendo em vista as
demandas sociais, urge a necessidade de apresentar alternativas para alcançar os objetivos
de crescimento econômico e social para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, in-
clusive no sentido de conter a transferência de mão-de-obra para outras regiões através de
melhorias na educação e nos treinamentos técnicos ofertados e do aproveitamento desses
egressos no universo local.
Através de análises sistemáticas dos cenários, é possível colocar à disposição do poder
público, sobretudo prefeituras e ministério público, informações embasadas cientifica-
mente que apontarão caminhos para a implementação de políticas públicas inclusivas que
88 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

resultem em melhores retornos na qualidade de vida dos moradores da região.


Considerando ainda, que estudar a variável desenvolvimento é deslocar um olhar para
cultura, saúde, educação, habitação, lazer, alimentação, demografia, ecologia, tecnologia
e políticas públicas na circunferência da política energética. Vale dizer que a energia está
presente em todos os campos sociais, necessária para manter as engrenagens da econo-
mia dentro do contexto global, assinalando ainda que a questão energética no contexto
atual internacional vem apresentando grande visibilidade nos discursos técnicos, políticos
e científicos, principalmente pelos investimentos na área de energias renováveis.
Portanto, ao traçar-se um processo de crescimento econômico com impactos sociais
diante da trama das desigualdades regionais, as energias renováveis são elementos funda-
mentais para o incremento da atividade econômica promotora do desenvolvimento so-
cioeconômico local e regional.
Em outra dimensão a expansão das atividades de construções dos parques eólicos e
da produção da energia eólica têm causado nas comunidades externalidades negativas e o
surgimento de muitos conflitos. A partir desta situação, faz-se inevitável as mensurações

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entre prós e contras dos empreendimentos, sabendo-se da função das empresas e do setor
público, atuarem no sentido de mitigar consequências danosas. Do ponto de vista social, o
estudo pode apresentar uma contribuição relevante ao identificar que as implantações des-
tes parques eólicos trazem impactos positivos para a comunidade local, seguindo a linha de
pensamento de Furtado (1972) ao assinalar a possibilidade de haver sinais que indiquem
um caminho para a melhoria da qualidade de vida e uma proposta de desenvolvimento
social, impactando positivamente as comunidades com a implantação de projetos sociais,
culturais, de saúde e ambiental com equidade para população local. Considerando-se a
desigualdade social da população do semiárido nordestino e suas dificuldades em estabe-
lecer economias competitivas ou mais produtivas nas condições naturais adversas, agrava-
das pelo problema da escassez de chuvas, políticas hídricas, desigualdades sociais também
oriundas da concentração das terras nas mãos dos grandes latifúndios improdutivos, na
maioria dos casos.
Desse modo, a apresentação dos dados científicos justifica-se a partir da necessidade da
academia instalada na região, propor alternativas com vistas a alcançar os objetivos de cres-
cimento econômico, desenvolvimento regional se houver, além de melhorias nas condi-
ções sociais dos seus cidadãos, melhorando em consequência a qualidade de vida de todos,
inclusive no sentido de conter a transferência de mão-de-obra para outras regiões através
de melhorias na educação, dos treinamentos técnicos ofertados e do aproveitamento desses
egressos na economia local.Nos processos endógenos de desenvolvimento regional, são os
atores da própria localidade que coordenam o desenvolvimento de estratégias a partir do
potencial desenvolvimentista da própria região, controlando o processo de transformação

89 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
local, visando aumentar o estado de bem-estar da própria comunidade (Barquero, 2001).
Obviamente, sem o Capital e sem a presença do Estado no sentido de definir as linhas
estratégicas do desenvolvimento, esta atividade entregue apenas a comunidade tornar-se-ia
quase impossível de ser concretizada. Neste sentido, foi fundamental para o desenvolvi-
mento da indústria de energias renováveis no Nordeste, a participação do estado como
condutor de objetivos.
A produção comercial das energias renováveis é uma atividade industrial de ex-
trema importância na economia global nos dias atuais. O fenômeno da globalização
interferiu de maneira vigorosa nas relações geopolíticas das regiões, acirrando a con-
corrência no modo capitalista de produção com mudanças nos sistemas de relações
entre redes (Castells, 1999). Dentro desta nova realidade mundial, o modelo capita-
lista pós-globalização, passou a se gerido por três eixos, a saber: 1) atividades econô-
micas globais 2) inovação baseada em conhecimento, produtividade/competitividade
3) redes de fluxos financeiros (Capra, 2003). Diante desta nova realidade geopolítica,
a primeira grande modificação no Sistema Elétrico Brasileiro para adequar-se, seria

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a abertura ao capital estrangeiro para investimentos em grandes projetos de energias
renováveis.
Indicadores são muito importantes neste estudo da Dinâmica do Desenvolvimento
Regional e seus Impactos Econômicos e Socioambientais na Região de Santa Luzia (PB), em
consequência das implantações dos Parques de Energia Eólica. Número de empregos for-
mais na região, empregos diretos e indiretos gerados, arrecadação de impostos, sobretudo
ICMS a partir do incremento das atividades econômicas geradas, além dos indicadores
sociais de extrema relevância, tais como aumento violência, prostituição, consumo de be-
bidas alcóolicas, tráfico de drogas, doenças ocupacionais e outras relacionadas à ocupação
territorial, além dos incrementos das demandas por saúde educação e transportes.
Neste aspecto, os indicadores são dos municípios de Santa Luzia, São Mamede, São
José do Sabugi, Junco do Seridó, Areia de Baraúna e Patos, com suas áreas rurais e urbanas.
Impostos Municipal e Estadual como IPTU e ICMS, empregos gerados, Incremento da
população economicamente ativa, aumento da oferta de vagas na educação. Aumento dos
serviços de saúde ofertados, aumento das demandas judiciais, conflitos por terra, conflitos
nas relações pessoais, números de agressões e assassinatos, doenças sexualmente transmis-
síveis, doenças ocupacionais e psicológicas, perspectivas de novos investimentos.
Os dados coletados e as análises irão permitir traçar uma visão dos cenários configu-
rados a partir dos impactos econômicos, sociais, governamentais, tecnológicas e culturais
da região a partir do advento do empreendimento.Já o complexo de Energia Eólica da
Região de Santa Luzia, pertencente ao grupo Neoenergia, subsidiária da empresa espanho-
la Iberdrola, começou a ser construído em 2014 e a operar em 2017. Desde então, tem
90 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

apresentado uma curva ininterrupta de crescimento na produção de energia. Trata-se de


um grande investimento para uma região carente por suas características de adversidades
climáticas e a consequente falta de alternativas econômicas capazes de alavancar seu desen-
volvimento e o consequente incremento na qualidade de vida dos seus cidadãos.
O Complexo Eólico de Santa Luzia está numa região do sertão meridional da Paraíba,
cujas populações somadas dos cinco municípios (Santa Luzia, Junco do Seridó, São
Mamede, São José do Sabugí e Areia de Baraúna) mais a sede da REGIC Patos, somam
um total de 146 mil habitantes, sendo 36 mil distribuídos pelos municípios contemplados
pelos investimentos em análise. É uma região com escassos investimentos públicos e pri-
vados, além de pouquíssimas alternativas de atividades econômicas.
A partir da chegada desses investimentos espanhóis para a região, aconteceram muitas
mudanças na vida da comunidade. Com impactos de natureza econômica, social, am-
biental e também cultural. Pode-se considerar a instalação destas usinas como um marco
divisor na vida da comunidade, da região e seu entorno, pois que outras cidades foram
beneficiadas com o investimento, como por exemplo, Patos e Pombal.

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Com o novo cenário, surge a necessidade de analisar os impactos econômicos e
socioambientais consequentes desta conquista (Rocha, 2016), a partir das diversas va-
riáveis e atores sociais envolvidos, no sentido de contribuir para tomadas de decisões que
possam trazer benefícios para a comunidade através de políticas públicas que promovam
a inclusão social.
Assim, em um cenário de uma região carente de investimentos públicos e pri-
vados, além de poucas alternativas de atividades econômicas, as instalações desses
parques eólicos trazem um sinal para ampliar o processo de Crescimento Econômico.
Contudo, há outras variáveis já analisadas, como impactos econômicos, sociais e am-
bientais que também compõem o conjunto de alterações regionais, os quais hão de ser
também estudados.
Alguns indicadores são muito importantes nestes estudos, como número de empregos
formais na região, empregos diretos e indiretos gerados, arrecadação de impostos, sobretu-
do ICMS a partir do incremento das atividades econômicas geradas, além dos indicadores
sociais de extrema relevância, tais como aumento da violência, das doenças ocupacionais e
outras relacionadas à ocupação territorial, além dos incrementos das demandas por saúde
em geral, educação e transportes. Neste aspecto, podemos resumir Cenários e Indicadores
da seguinte forma:

Indicadores Econômicos
Arrecadação de Impostos
Arrecadação de ICMS na Região de Santa Luzia de 2010 a 2019

91 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
QUADRO 8

ANO VALOR R$ mil ANO VALOR R$ mil

2010 1.464,2 2015 2.522,4

2011 1.521,1 2016 2.605,2

2012 868,7 2017 2.850,2

2013 2.042,4 2018 3.142,9

2014 2.487,4 2019 3.583,2

FONTE: SEFAZ (PB), 2020

Nesta análise preliminar do crescimento da arrecadação de ICMS, que é o


Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, é importante destacar três pe-
ríodos. De 2010 a 2013, quando não havia o empreendimento, de 2014 a 2016, que

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foi o período de obras e finalmente de 2017 a 2019, já com as usinas em operação.
O crescimento da média de arrecadação do período das obras em relação ao perío-
do anterior foi de 75,2%. O período de operações cresceu 23,5% em relação ao de
obras.
Portanto, o período de operações cresceu em média 165,4% em relação ao período
anterior, quando não havia nada do empreendimento na cidade. Ou seja, o benefício
econômico do período pós-usina é incontestável. Um crescimento na arrecadação do prin-
cipal imposto que é distribuído na cidade, de 165% em 10 anos, contra uma inflação acu-
mulada no mesmo período de 58,5% (FGV, 2020) é um número fantástico que mostra
o impacto econômico extremamente positivo do empreendimento para a economia do
município.

Geração de Empregos
Empregos Formais na Região de Santa Luzia de 2010 a 2019.

QUADRO 9

ANO EMPREGADOS ANO EMPREGADOS


2010 1.414 2015 1.604
2011 1.475 2016 1.403
2012 1.485 2017 1.393
2013 1.602 2018 1.404
2014 1.832 2019 1.621
92 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

FONTE: IBGE, 2020

Empresas Formais na Região de Santa Luzia de 2010 a 2019.

QUADRO 10

ANO EMPRESAS ANO EMPRESAS


2010 356 2015 263
2011 269 2016 273
2012 259 2017 295
2013 298 2018 263
2014 277 2019 281

FONTE: IBGE, 2020

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Nos quadros acima, é possível avaliar o tamanho da economia do município. Esses são
números oficiais referentes ao período, apurados pelo IBGE. No período de 2014 a 2017,
foram empregados cerca de 1.800 trabalhadores nas obras das usinas. Esse número não foi
computado, pelo fato desses empregados serem registrados nas sedes das empresas.
No entanto, a população estimada de Santa Luzia para este ano é de 15.426 habitantes
(IBGE, 2020), ou seja, 1.800 trabalhadores representam 11% da população e 28% a mais
do que todos os trabalhadores registrados no município. Estes 1.800 empregados, estão
atualmente sendo recontratados para as obras dos Parques Chafariz, que é uma extensão
do empreendimento.
Ressalte-se que os três Parques Eólicos da região, estão instalados em municípios como
Junco do Seridó, São José do Sabugi, Areia de Baraúna e São Mamede, que enfrentam rea-
lidades econômicas e sociais adversas. Portanto, um conjunto de parques em expansão gera
previsões muito otimistas, tanto em termos de geração de energia elétrica, quanto do retorno
social e econômico para a região. Estão sendo construídos pela empresa, mais 15 parques de
energia eólica e uma usina de energia solar de médias proporções. A partir de 2023 a previ-
são de empregos diretos neste empreendimento é de 2.000 postos de trabalho e pelo menos
1.500 indiretos.

Conclusão

Estamos falando de uma indústria em potencial que pode representar o encontro do


Estado com a sua grande vocação econômica. O polo paraibano de energias renováveis

93 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
pode chegar a ser disparadamente a maior fonte pagadora de tributos estaduais, além
de grande geradora de empregos e grande fonte de atração de indústrias ligadas ao setor.
Agora mesmo está sendo implantada em João Pessoa uma grande fábrica de painéis solares,
atraída pelo nosso fantástico potencial e dos estados vizinhos. Grandes grupos têm pro-
curado o nordeste para investimentos deste tipo, a exemplo dos fabricantes de torres que
estão instalados na Bahia e de fabricantes de aerogeradores em Pernambuco.
O aproveitamento do grande potencial de energias renováveis no nordeste e mais es-
pecificamente na Paraíba, poderá transformar a região em grande polo exportador no
médio prazo.

Resumo

O objetivo deste estudo é analisar as dinâmicas econômica e social com viés na impulsão do
crescimento econômico regional a partir das instalações dos Parques de Energia Eólica na região de
Santa Luzia (PB). Para tanto se faz necessário uma pesquisa dos complexos eólicos, no que diz respeito

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ao estudo dos empreendimentos com seus respectivos investimentos, atração de novos negócios para
atender as demandas comunitárias e de fornecedores para atender especificamente aos parques, iden-
tificação dos acionistas majoritários, períodos de construções, entrada em operações, números de
empregos gerados durante as obras e nos períodos de operações definitivas, bem como as perspectivas
de médio e longo prazo dos empreendimentos e suas interações com as comunidades, principalmente
nos aspectos sociais e econômicos. Analisaremos eventuais mudanças nos patamares de arrecadações
dos diversos impostos federais, bem como eventuais ocorrências significativas em fatores sociais como
a geração de demanda e consequente oferta de serviços de saúde, educação e segurança pública. No
Brasil a expansão dos projetos de parques eólicos é resultante da política nacional de diversificação da
matriz energética, que definiu os rumos para a realização de investimentos em fontes renováveis como
alternativa para o enfrentamento da crise energética, pautado na lógica de que os ventos são o motor
que impulsionam o desenvolvimento local e regional, gerando emprego e renda, com base em uma
atividade ambientalmente correta. A metodologia para atingir os objetivos propostos é uma pesqui-
sa do tipo exploratória, descritiva e analítica com caráter quantitativo e principalmente qualitativo,
considerando-se a Crise Energética e o Esgotamento do Atual Modelo. Os instrumentos de coleta
de dados aplicados serão a coleta de dados oficiais; entrevistas semiestruturadas com moradores da
localidade, agentes públicos e gestores dos parques eólicos, além de pesquisas nos setores produtivos
da região que possam identificar eventuais progressos nas taxas de crescimento econômico. Os resul-
tados iniciais assinalam que a implantação desses parques representa um canal com novas dinâmicas
econômicas para a região, com incremento das atividades locais para atender às novas demandas por
produtos e serviços, principalmente em saúde e educação, além de aumento do volume de atividades
da construção civil, sobretudo na área de moradias, com impactos sociais e econômicos significativos
na melhoria da qualidade de vida e no desenvolvimento local.
Palavras-chave: Energias Renováveis. Desenvolvimento Regional. Políticas Públicas.

Objetivos
94 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Geral

Analisar as dinâmicas econômica e social com viés na impulsão do crescimento econômico a par-
tir das implantações dos Parques de Energia Eólica da Região de Santa Luzia (PB) e procurar respostas
para o entendimento de que este crescimento é ou não capaz de gerar Desenvolvimento Regional.

Específicos

. Avaliar o incremento das atividades econômicas do uso e fomento de fontes de energias reno-
váveis para o crescimento econômico e o desenvolvimento regional no território, se houver.
. Identificar de que forma as implantações dos empreendimentos de usinas de energias renová-
veis contribuem na condução de um processo dinâmico de crescimento econômico da área.
. Identificar os impactos socioambientais causados pela instalação dos parques eólicos nas co-
munidades do entorno das torres com aerogeradores.
. Analisar os mecanismos de incentivos governamentais adotados, de modo a garantir a conti-
nuidade do desenvolvimento do setor.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 94 20/06/2023 16:46:03


Justificativa

O uso de  energias renováveis  é um fator relevante para preservação dos recursos naturais,
controle do efeito estufa e, desde que o projeto seja ambientalmente bem elaborado, contribui
também para não alterar significativamente a paisagem natural com sua exploração (IEA, 2015).
Deve-se assinalar a importância de se buscar melhorar os padrões de consumo como maneira de
atingir eficiência energética para o entendimento do processo nas várias esferas de conhecimento,
além de ampliá-los sobre os investimentos estruturantes para a região na qual estão inseridos. Isto
termina por atrair produtos e serviços em função da geração de necessidades específicas. Eis a teia
complexa que justifica o estudo em tela.
A partir da construção de novos cenários no território com a instalação dos Parques Eólicos na
Região Santa Luzia (PB), surgem demandas pela ampliação de estudos sistemáticos sobre os impac-
tos econômicos e socioambientais resultantes do estado da arte. Com base na análise das diversas
variáveis, tais como cenários e atores sociais envolvidos, sendo possível contribuir para tomada de
decisões e políticas públicas que possam trazer benefícios para a comunidade através de ações que
tragam melhorias da qualidade de vida da população do entorno e da região.
A implantação das usinas de energia renováveis na região, provocaram mudanças significativas
na vida das pessoas e no território de maneira em geral, considerando que são investimentos que
estão em fase de crescimento, sendo importante conhecer os fenômenos ocorridos e os que ainda
estão por vir. Neste sentido, é importante realizar estudos com viés amplo e interdisciplinar para
conhecer as tendências a partir dos cenários que se configuram no presente e possíveis caminhos
que seguirão ao longo do tempo.
Assim, a partir da análise dos cenários em tela é possível identificar suas importâncias
sociais, que vão das contribuições ambientais de redução das emissões de gases de efeito estufa,
até o aumento na oferta de trabalho e renda por meio do pagamento dos arrendamentos de
terras, como também investimentos em programas socioambientais. Essas são variáveis impor-

95 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
tantes também nas análises dos impactos socioeconômicos dos empreendimentos, pois que
passa a remunerar o capital aplicado a terra e que na maioria das vezes, é ocioso ou muito
pouco explorado com agricultura e pecuária de subsistência.

Referências Bibliográficas

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Eólica 2018. São Paulo, 2019.
ARAÚJO, M. GOES, T. Energias Alternativas Fortalecem a Matriz Energética. Revista de Política
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mento-energetico/publicações/resenha-energetica-brasileira Consulta em 16 de abril de 2020
às 12:35 h.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 95 20/06/2023 16:46:03


CAPRA, F. As Conexões Ocultas. Editora Cultrix. São Paulo, 2003.
CASTELLS, S.M. A Sociedade em Rede. Editora Paz e Terra. São Paulo, 1999.
D`ARAÚJO, R. P. O Setor Elétrico Brasileiro – Uma Aventura Mercantil. Brasília: CONFEA,
2009. 300p.
ELETROBRAS. Diagnóstico de Eficiência Energética – Medição e Verificação. Editora Eletrobrás.
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21st Century Prosperity and Job Generation. UNEP Launches Green Economy Iniciative to
Get the Global Market Back to Work. Press Release, London, Nairobi, 22/10/2008, pág. 1.
96 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Acesso e governança da água
no semiárido brasileiro:
um estudo em comunidades rurais
do Estado da Paraíba

Andréa Ferreira Leite1


Cidoval Morais de Sousa2
José Irivaldo Alves de Oliveira Silva3

A crise global da água, uma crise política

Diversas regiões do planeta padecem com conflitos ligados à disponibilidade hídrica.


Nesse sentido, a escassez de água e a desigualdade no acesso afeta uma expressiva parcela
da população mundial. A ameaça eminente da falta de água e sua carência já observada em
áreas significativas, tornam a água um tema recorrente de discussões acadêmicas, jornalís-
ticas, sociais e políticas, em todo o mundo. O relatório Water Security for All (Segurança

97 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Hídrica para Todos), publicado pela UNICEF, evidencia essa realidade a partir da consta-
tação de que, atualmente, 1,42 bilhão de pessoas vivem em áreas de alta ou extremamente
alta vulnerabilidade da água, o que corresponde a aproximadamente 20% dos habitantes
do planeta (UNICEF, 2021).
Esse contexto é justificado sobre várias perspectivas, uma delas é a distribuição irregu-
lar da água no espaço terrestre, o que compromete a disponibilidade efetiva deste recurso
para a população. O Brasil apresenta, em termos globais uma situação hídrica confortá-
vel, uma vez que possui cerca de 13% de toda água doce disponível no planeta (ANA,
2013). No entanto, a desigualdade na distribuição de água é uma realidade observada
quando as regiões do país são equiparadas, revelando áreas de escassez hídrica, em espe-
cial, a região semiárida nordestina e os centros urbanos do Sudeste. Na Região Norte,
por exemplo, onde há o menor contingente populacional, estão presentes quase 70% das
1
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) andrealeiteh@gmail.com
2
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) cidoval@gmail.com
3
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) irivaldo.cdsa@gmail.com

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águas superficiais, entretanto, no Nordeste, Região que abriga aproximadamente 30% da
população, há pouco mais de 3% dos recursos hídricos do país (IBGE; 2010).
Outro fator que implica a disponibilidade hídrica é o aumento da demanda de água,
tanto pelo aumento populacional, quanto motivado pelo desenvolvimento econômico e a
mudança nos padrões de consumo, associado ao modelo capitalista contemporâneo. Nessa
perspectiva, a demanda de água doce se expandiu 6 vezes no último século, com progres-
sivo aumento, e, a previsão de crescimento no consumo mundial de água é de quase 25%
até 2030 (UNESCO, 2021). Essas estimativas também são verificadas no Brasil, que teve
um aumento de 80% na demanda de água nas últimas décadas, com previsão de mais 24%
até 2030, condição relacionada ao desenvolvimento econômico e ao processo de urbani-
zação do país (ANA, 2019).
Além da distribuição irregular e do aumento da demanda da água, as mudanças cli-
máticas estão diretamente relacionadas à condição de estresse hídrico, situação entendida
como a escassez de água decorrente da assimetria entre demanda e oferta numa determi-
nada região (Cunha, 1998). Essa problemática assola sobretudo os países menos desen-
volvidos que não possuem períodos regulares de chuvas, como o Brasil. A alteração no
regime de chuvas e as mudanças climáticas são capazes de suscitar eventos extremos, como
inundações ou secas prolongadas. Nesse cenário, a escassez hídrica é agravada, promoven-
do conflitos e movimentos de migração, e ocasionando relevantes perdas na esfera social e
econômica (Banco Mundial, 2018).

A mudança climática afetará a disponibilidade, a qualidade e a quantidade de


98 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

água para as necessidades humanas básicas, ameaçando o aproveitamento efetivo do


direito humano à água e ao saneamento para, potencialmente, bilhões de pessoas.
As mudanças hidrológicas induzidas pela mudança climática acrescerão desafios à
gestão sustentável dos recursos hídricos, que já estão sob forte pressão em muitas
regiões do mundo (UNESCO, 2020).

Os dados disponibilizados pelos órgãos de monitoramento da água no planeta, eviden-


ciam um alerta para o cenário de insegurança, quanto ao acesso a este recurso vital. Em con-
sonância com a gravidade desta problemática, a diretora executiva do UNICEF, Henrietta
Fore, afirma que: “A crise mundial da água não está simplesmente chegando, ela está aqui, e
as mudanças climáticas só vão piorá-la” (UNICEF, 2021, p.1). Nessa conjuntura, os fatores
naturais que intensificam às questões relacionadas ao acesso à água, não estão isolados.
A crise global da água está associada a interpretações de múltiplos âmbitos, que abran-
gem não só causas naturais, mas também fatores demográficos, econômicos e até edu-
cacionais, entretanto, é na esfera política que essa problemática possui seus principais

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determinantes. Essa compreensão se apoia na percepção de que diante da sua importância
e disponibilidade limitada, a água corresponde a um dispositivo de poder, e sua gestão
suscetível às deliberações políticas (Castro, 2016). Nesse sentido, as políticas estabelecidas
e as decisões do poder públicos podem não promover a equidade, favorecendo uns em
detrimento de outros, agravando assim o panorama de desigualdade social.
As interferências políticas causam fragilidade nos processos de gestão da água, oca-
sionando uma maior instabilidade e insegurança quanto ao suprimento desse recurso
para população. É possível assimilar, portanto, que, os problemas ligados à escassez de
água advêm principalmente de motivos políticos, e não apenas de razões técnicas ou
ambientais (Castro, 2017). Essa percepção pode ser corroborada a partir de determina-
das regiões que, historicamente sofrem com falta d’água, e que poderiam ter a questão
solucionada com o uso de técnicas já conhecidas de estocagem e reaproveitamento,
porém, não há a efetivação de ações políticas para sanar essa carência. A análise da crise
hídrica remete assim a uma combinação de fatores naturais e sociais que possibilitam o
entendimento do caráter político da água. (Ribeiro, 2008).
A falta de acesso à água não está relacionada essencialmente à escassez de recursos
hídricos numa determinada região, mas sim pela ausência ou insuficiência de investimen-
tos, infraestrutura e assimetria na distribuição. É o que aponta o relatório do International
Water Management Institute, ao constatar que a escassez econômica da água afeta cerca de
1,6 bilhão de pessoas, o que significa que, mesmo que a água esteja fisicamente disponível,
a carência de infraestrutura impossibilita que as pessoas tenham acesso à água (IWMI,
2007). Ainda nas localidades que possuem a disponibilidade física e de infraestrutura, a

99 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
assimetria social faz com que nem todos possam arcar com os custos das tarifas cobradas
pelo abastecimento. Esses cenários expõe o cerne político-social da crise da água.
Ao conceber a política como fundamento norteador para solucionar as problemá-
ticas relacionadas ao acesso à água, é necessário observar os modelos de gestão hídrica
praticados pelos países. O contexto mundial de mudanças decorrentes do crescente con-
sumo humano e da redução das reservas de água, exige da gestão política uma adequação
dos modelos adotados, no sentido de prover a garantia de acesso à água (Oliveira, 2011).
A ausência ou deficiência de políticas de gestão das águas intensificam os efeitos da crise
da água, enquanto, a implementação de políticas efetivas, podem impedir ou atenuar
muitas dos reflexos nocivos desse contexto (Banco Mundial, 2018).

Política e Governança da água no Brasil

A atual concepção de políticas públicas da água no Brasil é inspirada no modelo fran-


cês de gestão e governança das águas, que visa a descentralização administrativa da gestão

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e a participação social (Laigneau, 2014). As Discurssões que consolidaram a gestão das
águas vigente no Brasil, foram potencializadas a partir da formulação da Agenda 21, du-
rante a realização da Conferência Rio 92. Essa versão contemporânea de gerenciamento
das águas é apoiada na ideia de desenvolvimento sustentável e foi reflexo de um contexto
mundial de reação da sociedade com relação aos desastres ambientais ocorridos na segunda
metade do século XX (Campos, 2014).
O mais recente modelo de política das águas também inova quanto à sua construção
conceitual, teórica e operacional, se caracterizando como processo de governança, concei-
to que vai além da gestão (Jacobi, 2012). A conjuntura de gestão e governança da água
no Brasil se estabelece com o papel do Estado menos voltado à proteção, incentivando a
competição e visando maior parceria com a sociedade, características que estão associadas
ao neoliberalismo, e que fundamenta alguns pilares do novo marco regulatório, como a
cobrança pelo seu uso e a privatização das empresas públicas de água, uma representação
significativa da mercadorização dos recursos hídricos (Ioris, 2009).
As diretrizes vigentes sobre as águas brasileiras são estabelecidas a partir da Política
Nacional de Recursos Hídricos instituída em 1997, com a lei 9.433/97, conhecida como
a “Lei das Águas” (Pagnoccheschi, 2016). O domínio público da água, afirmado por esta
legislação, não define a União e os Estados como proprietário da água, mas como gestores
desse bem para o atendimento do interesse coletivo (Machado, 2018), assim, atualizando
e ampliando o sentido da normatização prevista pela Constituição Federal nos seus 20º e
26º artigos.
100 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Art.20, Inciso III - São bens da união (...) os lagos, rios e quaisquer correntes
de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de
limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham,
bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; (Brasil, 1988)

Art.26, Inciso I - Incluem-se entre os bens do Estado (...) as águas superficiais ou


subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma
da lei, as decorrentes de obras da União. (Brasil, 1988)

A Lei das Águas é baseada nos princípios de que a água é um bem de domínio público,
e por ser considerada um recurso natural limitado, é dotado de valor econômico (Brasil,
1997). Denominada como recurso, a água recebe uma atribuição econômica, aspecto que
é defendido com base no pressuposto de que essa atribuição torna a regulação mais efi-
caz. Porém, na perspectiva social, essa tipificação econômica da água abre margem para

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possíveis processos de mercantilização da água, comprometendo assim a universalização e
democratização do seu acesso (Santos et al, 2013).

Por um lado, não há como negar que a introdução de princípios de racionalida-


de econômica é condição necessária para resolver os graves problemas de gestão do
setor. No entanto, o reconhecimento de que a água tem um valor econômico não
implica que o recurso (e por derivação seus serviços) deve ser conceituado como um
bem econômico, de acordo com a teoria econômica que distingue entre bens públi-
cos e bens econômicos, sendo estes últimos aqueles em que é possível excluir do seu
consumo quem não paga (CASTRO, 2016, p. 136).

A legislação brasileira justifica a cobrança pelo uso de recursos hídricos com a finalida-
de de reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma real indicação do seu
valor; incentivar a racionalização do uso da água; e, obter recursos para o financiamento
dos programas e intervenções contemplados nos Planos de Recursos Hídricos. (Brasil,
1997).
Apesar da aparente ambiguidade no tratamento econômico dado à água, a Lei 9.433/97
assegura que em situações de sua falta ou escassez, o uso prioritário dos Recursos Hídricos
é o consumo humano e a dessedentação de animais. É previsto que a gestão dos Recursos
Hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas e que a principal unidade
territorial da Política das Águas é a bacia hidrográfica (Brasil, 1997). Nesse sentido, as
águas de uma bacia hidrográfica devem beneficiar prioritariamente os que moram, vivem

101 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
e trabalham nesse território: “(...) sendo a bacia hidrográfica a estrada natural das águas, a
solidariedade se pratica primeiramente no interior da bacia, para depois transbordar para
fora” (Machado, 2018, p.32).
A propositura da Lei das Águas, baseada no modelo francês, é pautada no fundamento
de uma gestão descentralizada, delineada territorialmente pelas bacias hidrográficas e com
a participação integrada do Poder Público, dos usuários e das comunidades (Brasil, 1997).
Essa organização se dá principalmente nos Estados, a partir da criação dos comitês de ba-
cias hidrográficas. Nos comitês são integrados os representantes da União, do Estado, do
Município e dos diferentes segmentos da sociedade civil, configurando assim uma articula-
ção sociopolítica institucional característica do processo de governança (Jacobi, 2012). De
acordo com o art.39, inciso IV da Lei 9.433/97, cabe aos comitês representar os usuários
da água de sua área de atuação (Brasil, 1997).
O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) é o con-
junto de órgãos e colegiados que concebe e implementa a Política Nacional das Águas.
Esse sistema é composto pelas seguintes estruturas: 1. Conselho Nacional de Recursos

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Hídricos; 2. Agência Nacional de Águas (ANA); 3. Conselhos de Recursos Hídricos dos
Estados e do Distrito Federal; 4. Comitês de Bacia Hidrográfica; 5. Os órgãos dos poderes
públicos federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais cujas competências se relacio-
nem com a gestão de recursos hídricos; e 6. Agências de Água (Brasil, 2000).
O papel principal do SINGREH é promover uma gestão dos usos da água de forma
democrática e participativa, para que isso ocorra, o sistema depende da coordenação e coo-
peração de todas as partes envolvidas. A cooperação permanente de todos os integrantes do
sistema, incluindo os usuários e a sociedade civil, representadas pelos Comitês de Bacias
Hidrográficas, é fundamental para que o processo de governança das águas seja articulado
e eficaz (Machado, 2018). Nesse arranjo, a participação cidadã é destacada por Jacobi
(2012) como um dos principais aspectos para o sucesso da governança e também um dos
seus maiores desafios, pois requer pré-disposição e disponibilidade da sociedade para sua
legítima participação.
Ainda no tocante à participação da sociedade civil, é importante destacar que, além
da política governamental, a governança das águas no Brasil também engloba uma série
de políticas alternativas que visam atenuar os conflitos que envolvem o Estado, o meio
ambiente e a sociedade sobre a questão da água. A maior representação dessa estrutura
paralela ao Estado é a Articulação pelo Semiárido - ASA, que corresponde a uma rede de
mais de 750 organizações da sociedade civil (ASA, 2002). Essas políticas alternativas além
de buscarem construir ações contextualizadas com a região de atuação, com bases nos in-
teresses e potencialidades locais, tem como característica a participação da sociedade civil
nas decisões e formulação de soluções.
102 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A questão da água no semiárido brasileiro

O Semiárido brasileiro é uma região historicamente atingida por episódios de seca e


crise hídrica. A definição desse território foi realizada com base nas características comuns
das localidades que sofrem com o processo recorrente de estiagem. A delimitação mais re-
cente da área compreende um total de 1.427 municípios, e foi oficializada pela Resolução
150, de 13/12/2021 do Conselho Deliberativo da Sudene (SUDENE, 2021).
Associado a discrepâncias sociais, o problema da falta d’água na região produziu um
contexto de dependência e carência desse recurso, impelindo assim a população aos pro-
cessos de migrações sazonais para outras regiões do país, à procura de melhores meios de
sobrevivência, e aos moradores que permaneceram no Semiárido, restou a submissão às
classes dominantes e medidas adotadas pelo Estado (Oliveira, 1977). Essa configuração
revela que as vulnerabilidades desse território não são resultantes apenas de determinantes
naturais, mas principalmente, da sua conjuntura política e social.

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Até o início do século XX, as ações do governo brasileiro para o Semiárido era inicia-
tivas temporárias e emergenciais, praticadas em situações de calamidade para atenuar os
efeitos sociais dos períodos de seca (Buriti e Barbosa, 2018). Nesse sentido, as principais
medidas adotadas eram a doação de alimentos, distribuição de carros-pipa de água e per-
furação de poços (Alves, 2013).
Os investimentos direcionados à infraestrutura hídrica representaram a principal polí-
tica pública estabelecida pelo Estado brasileiro até a década de 1990, sobretudo para cons-
trução de açudes. Essas estruturas financiadas pelo governo eram comumente instaladas
em grandes latifúndios (Buriti; Barbosa, 2018), condição que acentuou os processos de
concentração de poder e de subordinação da população aos donos da terra onde o açude
estava situado.

A construção de grandes obras de infraestrutura hídrica - geralmente concen-


tradas e alocadas nas proximidades das grandes fazendas (...) não apenas não au-
mentaram a disponibilidade de água para as famílias, como ampliaram processos de
concentração de poder e dependência econômica e política, favorecendo a criação de
um “novo coronelismo” modernizado. (Baptista; Campos, 2013, p.62)

Ainda nessa perspectiva, Cordeiro (2013, p.187) pontua: “O Estado, dessa forma,
financiou a concentração fundiária no Semiárido que esteve associada à vulnerabilidade
hídrica dos camponeses.” Observa-se, portanto, que as limitações do Estado contribuíram
para a manutenção das estruturas e desigualdades sociais, originárias da sua constituição

103 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
e resultantes de uma contraditória combinação de interesses e concepções tradicionais e
modernas (Martins, 1999). A partir do histórico das ações governamentais se torna possí-
vel compreender melhor a problemática política e social da água no Semiárido brasileiro,
e notar que as medidas até então aplicadas, não foram eficazes para a região.
A Conferência da ONU – Rio 92, proporcionou a ampliação do debate sobre a demo-
cratização no acesso à água e abriu espaço para uma maior reflexão quanto à abordagem
governamental sobre a questão da água no Semiárido brasileiro. A partir dessas discussões,
se concebeu uma nova política para o Semiárido: a convivência com a seca (Campos,
2014). Nesse direcionamento, as políticas de convivência com a seca buscam promover
soluções conectadas aos interesses e potencialidades locais, e agregando a participação da
sociedade civil nas decisões (ASA, 2002).
Uma política eficiente das águas deve, portanto, considerar que o Semiárido é um
território diverso e heterogêneo, fator que demanda soluções específicas para os seus
espaços socionaturais (Buriti; Barbosa, 2018). Dentre os inúmeros desafios para o de-
senvolvimento de políticas da água eficazes nessa região, destaca-se a conjuntura dos

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pequenos municípios, particularmente nas suas porções rurais. A dispersão das moradias
e a menor escala da população na zona rural constitui um obstáculo a mais para a cria-
ção de políticas eficientes que propiciem o acesso à água tratada e de qualidade (Maria,
2019). O Censo expõe uma diferença acentuada entre o Brasil urbano e rural, quanto
aos índices de abastecimento de água, saneamento e concentração da população em
extrema pobreza (IBGE, 2010).
Nesse panorama, a Paraíba corresponde a um dos Estados brasileiros mais atingidos
com problemas de acesso à água. De acordo com as definições de Áreas Territoriais do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, cerca de 90,91% do território paraibano
está inserido no Semiárido (IBGE, 2021). Além disso, cerca de 33% da população está
concentrada na área rural, um índice superior à média nacional, que é de 15,28% da po-
pulação. O Estado possui um dos piores índices de desenvolvimento humano, ocupando a
23ª posição no país (IBGE, 2021). Nesse território, o acesso à água é em muitas localida-
des caracterizado por precariedade e desigualdades, particularmente nas suas zonas rurais.

Método e lócus do estudo

As técnicas utilizadas para o desenvolvimento dessa investigação visaram uma maior


aproximação com as questões hídricas no contexto rural. O estágio inicial desse estudo
partiu de uma pesquisa bibliográfica relacionada à problemáticas políticas e sociológicas
da água, seguida de um levantamento documental que intencionou elencar dados para de-
linear os aspectos físicos e humanos, e com maior ênfase, informações vinculadas às águas
104 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

que permeiam o espaço investigado.


Os principais dados para análise foram obtidos a partir da realização da pesquisa de
campo e da observação local teve seu início nas sedes administrativas dos municípios
Itatuba e Mogeiro, adentrando progressivamente às configurações dos territórios rurais
dessa região. Nos trajetos percorridos buscou-se compreender a conjuntura física e hu-
mana do território, com ênfase nas formas de acesso à água. A observação local viabilizou
catalogar várias imagens dos recursos utilizados pelas comunidades para acessar, armazenar
e utilizar às águas disponíveis.
As comunidades rurais Juá e Jurema (Figura 1) compõem o lócus desse estudo. Essas
localidades estão inseridas na porção rural dos municípios de Mogeiro e Itatuba, no Estado
da Paraíba. A região está inserida no Semiárido e possui alguns importantes referenciais
hídricos em sua proximidade, como o Rio Paraíba, a Barragem Argemiro de Figueiredo
e o eixo leste da transposição do Rio São Franciso. As particularidades de acesso à água
no âmbito rural semiárido associadas aos processos de apropriação social das águas, fazem
dessa localidade um espaço significativo para observações de caráter social e político.

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O Juá é uma pequena comunidade da zona rural de Mogeiro, distante a aproxima-
damente 35 quilômetros da sede administrativa (Prefeitura) do Município. A localidade
possui rede de iluminação pública com posteamento e distribuição para as casas. Não há
presença de estabelecimentos comerciais, de ensino ou postos de saúde. O povoado tem
cerca de 25 moradias, com características similares e um espaçamento variando de 50 a
100 metros entre as casas.
Na zona rural de Itatuba, a aproximadamente 25 quilômetros da sede do município,
está o Sítio Jurema. O povoado possui uma via central pavimentada com calçamento de
pedra e rede de iluminação pública com distribuição de energia para as residências. O po-
voado tem cerca de 100 residências, com uma distância de 10 a 30 metros entre as casas.
Há alguns pequenos estabelecimentos comerciais, como mercearia, para venda de man-
timentos e bar. Ali também se encontra um grupo escolar de 1º grau em funcionamento
regular, Posto de Saúde e um Cemitério Público

Figura 1 – Mapa representativo da localização das comunidades estudadas

105 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A população alvo desse estudo são moradores da zona rural do agreste paraibano, de
forma específica, 10 moradias visitadas na Comunidade Jurema e 10 na Comunidade Juá.
Esses grupos pesquisados não possuem rede de abastecimento de água, e geograficamente

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estão deslocados do perímetro urbano, apresentando assim acessos alternativos e particu-
lares de acessar a água que consomem.
As informações-base para a análise desse estudo foram, portanto, constituídas a partir
da observação local; de conversas informais e entrevistas semiestruturadas com os atores
sociais envolvidos do processo de governança da água da região investigada. O contato com
os moradores foi realizado em duas etapas, a primeira corresponde a um primeiro contato,
de apresentação da pesquisadora e de seus objetivos, além do convite para participação na
pesquisa, de forma anônima. As primeiras impressões locais já são captadas nesse contato ini-
cial a partir de conversa informal e na segunda visita é realizada a entrevista pré-estruturada,
juntamente com o levantamento fotográfico necessário à caracterização da pesquisa.
Os dados alcançados com a pesquisa tiveram tratamento estatístico para as questões da
entrevista que possuem uma média ou variável pré-determinada, possibilitando a constru-
ção de gráficos e tabelas para melhor visualização dos resultados. A análise desse material
se baseou nas teorias e indicadores sociais de acesso e governança da água considerados
nesse estudo. Já as informações obtidas com as questões abertas e de caráter subjetivo nas
conversações, foram destacados os recortes de maior associação com a temática em estudo,
para que fosse elaborada uma análise do discurso associado à percepção de apropriação
social da água e o processo de participação política nas localidades.

Acesso à água nas comunidades

De forma análoga à maioria das áreas rurais, as comunidades investigadas não possuem
106 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

rede de abastecimento de água, e os moradores dessas localidades se utilizam de meios di-


versos para ter acesso às várias águas para os distintos usos. Nas residências pesquisadas na
comunidade Juá, a água para beber e cozinhar, tem origem no armazenamento da água
de chuva em cisternas em 80% das casas pesquisadas. Já na Jurema, a maior parte (50%)
dos moradores fazem uso da água de um sistema de dessalinização, instalado recentemente
(2020) na comunidade pelo Projeto Água Doce (PAD).
Os moradores das duas comunidades também recorrem à compra de água e as cister-
nas são o principal meio de armazenamento e comportam uma média de 16 mil litros, são
abastecidas no curto período de chuvas característicos do Semiárido, e a água “de beber”
é garantida por 6 ou 7 meses do ano. Na comunidade Jurema a limitação se dá pela difi-
culdade de transporte da água da dessalinizadora, distante para parte das moradias, bem
como a restrição da disponibilidade por moradia, que corresponde a apenas 120 litros de
água por semana.
Mediante essas limitações de armazenamento, transporte e quantidade restrita da água
disponível, as famílias recorrem à compra de água sob o sistema de venda porta-a-porta

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por veículos de particulares que circulam pela região, sobretudo no período de estiagem.
Não há nenhuma comprovação da origem ou formalização no processo de compra e
venda, a água é depositada do carro-pipa para baldes de 20 litros dos próprios moradores,
e é cobrado o valor médio de R$ 2,50 por balde.
Para beber e cozinhar, além da água de chuva, da Dessalinizadora do Projeto Água
Doce (na Jurema) ou comprada em veículos de particulares, um outro fornecimento de
água encontrado foi uma cisterna comunitária abastecida através da ação do Governo
Federal, a Operação Carro-Pipa, instalada no Juá. Esse programa, executado pelo exér-
cito, tem caráter emergencial de distribuição de água potável no Semiárido brasileiro. A
frequência de abastecimento da cisterna pelo exército é semanal. A população local aponta
dificuldades para o deslocamento e transporte da água dessa cisterna para as moradias,
além de terem sinalizado uma percepção negativa sobre a qualidade (quanto ao sabor,
salobra) da água para ingestão.
As águas destinadas à higiene pessoal e para a realização de atividades de subsistência e
econômicas são advindas do Rio Paraíba, que circunda entre 100 e 300 metros das mora-
dias. O uso é voltado somente para essas finalidades, uma vez que os próprios moradores
consideram essa água fluvial imprópria para beber e cozinhar, pois além de ser salobra, eles
têm a percepção de que o Rio recebe detritos em seu curso de várias fontes, como dejetos
humanos e animais, agrotóxicos utilizados em plantações ribeirinhas, escoamento residual
da carcinicultura, produtos de limpeza para lavagem de roupas etc., fatores que inviabili-
zam o consumo humano.
De forma geral, os moradores acessam somente às águas de caráter superficial, como a

107 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
pluvial e fluvial. Não foram encontrados pontos de captação subterrânea de uso particular
nas comunidades, de nenhum tipo, seja na forma de poço caipira ou tubular. O único
poço verificado foi a estrutura vinculada ao PAD na Jurema, para uso comunitário. As
águas superficiais utilizadas pelos moradores são captadas através de dois mecanismos. O
primeiro, voltado para captação da “água de beber” foi o sistema para captação de água da
chuva através de calhas, conectadas ao telhado das casas e fazendo a condução da água até
as cisternas. Já a água do Rio Paraíba é captada por meio de bombeamento.
No Juá, a maioria das casas possui sistema bombeamento particular ou compartilha-
do entre vizinhos, para captação da água canalizada do Rio Paraíba. Enquanto isso, na
Jurema, é inexpressivo o número de casa com bombeamento próprio, nesse caso, a maioria
das residências paga uma mensalidade de R$ 50,00 pelo bombeamento, realizado por uma
equipe itinerante que possui bombas e canalização e comercializam este serviço. O bom-
beamento é feito duas vezes por semana, e para cada moradia abastece uma caixa d’água
com capacidade de 1000 litros, que irá servir para higiene, bem como para atividades de
subsistência.

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Além das cisternas e caixas d’água, o armazenamento doméstico em todas as
moradias é também realizado com utensílios como baldes, tambor, tonel, bacias e
potes de barro. A maioria das famílias não fazem nenhum tipo de tratamento da água,
ou contam apenas com a decantação doméstica para evitar ingestão de sedimentos,
processo popularmente conhecido na localidade como “deixar a água sentar”. O hi-
poclorito de sódio é muito pouco utilizado, e não há distribuição regular por agentes
de saúde.
Não há nenhum monitoramento de qualidade das águas utilizadas na região. Tanto os
moradores do Juá, quanto da Jurema, informaram que não há inspeção da qualidade da
água consumida por parte de nenhum órgão. O único tipo de monitoramento apontado
pela Comunidade é referente ao controle de captação de água do Rio Paraíba, quanto
ao registro de outorgas, que é efetivado pela Agência Executiva de Gestão das Águas do
Estado da Paraíba.
O consumo médio diário de água para cada morador das comunidades pesquisadas
considerou os usos para beber, cozinhar e para higiene pessoal. Os moradores auxiliaram
nessa estimativa com base no uso de baldes de 20 litros, um utensílio presente em todas
as residências visitadas e também utilizado como parâmetro quanto há compra de água e
também para recebimento da água via Projeto Água Doce (Dessalinizadora). A partir das
informações indicadas pelos moradores entrevistados, a estimativa é que em 90% das resi-
dências, a média de consumo de água por morador não ultrapassa 60 litros/dia, realidade
correspondente tanto ao Juá como na Jurema.
No que se refere à destinação das águas após o uso, quase a totalidade dos entrevis-
108 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

tados afirmou que não adota nenhuma modalidade de reuso, e transpareceram não ter
consciência da importância dessa prática ou de possuir orientações de como implementar
tal modalidade nas rotinas diárias. O desinteresse em reutilizar a água captada do Rio
Paraíba fica evidente mediante a impressão de má qualidade dessa água pelos moradores,
percebida como salobra e detentora de poluição de várias origens. Em seu curso, essas
águas recebem dejetos humanos e animais, uma vez que não há saneamento básico na
região, e, além disso, há escoamentos de agrotóxicos e resíduos de carcinicultura, situação
informada pelos próprios moradores que consomem essa água bruta, sem nenhum estágio
de tratamento.
O descarte das águas utilizadas no Juá e na Jurema é feito por canalizações a poucos
metros da residência, e o esgoto é direcionado para uma fossa rudimentar em 90% das
casas, e nos outros 10%, o esgoto é lançado em vala. Todas as moradias visitadas possuem
vaso sanitário, em sua maioria instalados no interior das casas. Considerando esse contex-
to, é importante destacar que, o descarte inadequado de água e esgotos promove a conta-
minação do meio ambiente e consequentemente ao adoecimento da população.

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A participação social na governança da água

O estudo nas comunidades rurais intencionou compreender como se dá o acesso à


água nessas localidades, como também permitiu uma investigação sobre a participação po-
lítica dos moradores no que se refere à governança hídrica na região. No desenvolvimento
das entrevistas, os atores locais, usuários da água, foram consultados sobre como consi-
deram seu acesso à água na comunidade. A maioria dos entrevistados esboçou respostas
que nos encaminha a uma interpretação de que na localidade, os moradores percebem seu
acesso à água como aceitável, porém não satisfatório.

Dá pra viver (...) fica mais complicado quando não chove, por que falta a água doce
pra gente. (homem, 55 anos, agricultor)

Eu não acho muito bom não, falta um conforto pra ter água, sabe?! É sacrificado.
(mulher, 55 anos, agricultora)

A partir dessas respostas é possível perceber um certo grau de insatisfação, e algumas


condições críticas podem ser observada na fala dos moradores, como a insuficiência da
água doce para todo o ano e a dependência do período chuvoso para ter uma segurança
no acesso; a falta de infraestrutura para a condução e distribuição de água nas casas, esbo-
çada pelo sentimento de desconforto da moradora; e, a questão do baixo volume do Rio
Paraíba nos períodos de estiagem, fator que implica também na qualidade da água, que

109 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
fica consequentemente mais concentrada e salobra, como também impacta em atividades
que dependem da água do rio, como a piscicultura e a irrigação para agricultura.

“Poderia melhorar o tratamento, a qualidade da água.”


(mulher, 36 anos, desempregada)

Pode colocar aí como bom, mas tem algumas vezes que tá fedendo a água do rio.
(mulher, 60 anos, aposentada)

Ainda sobre a qualidade da água, durante as conversações no Juá e na Jurema, al-


guns moradores descreveram aspectos que podem comprometer a salubridade básica,
como uma coloração amarelada e forte odor nas águas. Apesar das pessoas não prati-
carem a ingestão, elas utilizam essa água para a higiene pessoal, e demais atividades do
lar e de subsistência, dessa forma, mantendo um contato direto com possível vetor de
contaminação.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 109 20/06/2023 16:46:04


As moradias visitadas também foram consultadas quanto aos programas de universa-
lização de acesso a água. Na comunidade Juá, o Programa 1 milhão de cisternas, o P1MC
da Articulação no Semiárido (ASA), tem papel de destaque, alcançando 60% das resi-
dências. Já na Jurema, é o Projeto Água Doce (PAD), com a instalação do Sistema de
Dessalinização, que atende a 50% da comunidade. Além desses programas, na comunida-
de Juá, há uma cisterna de uso comunitário gerida pela Operação Carro Pipa, que faz parte
do programa de ações emergenciais do Governo Federal.
Em relação à consciência sobre a organização das políticas e projetos ligados à água,
quase a totalidade dos atores locais afirmaram não ter conhecimento sobre o assunto.
Essa realidade abrange 90% dos respondentes na comunidade Juá e 60% na comunidade
Jurema. Nesta última localidade, os moradores especificaram que sua participação quanto
à política e gestão da água é restrita a reuniões esporádicas promovidas pelo PAD, de 3 a
4 vezes por ano, sobre orientações quanto ao consumo da água da Dessalinizadora local.
Outra constatação a se destacar é que, nenhum morador das residências visitadas tem
quaisquer participações no Comitê de Bacia do Rio Paraíba, órgão considerado o princi-
pal espaço de representação de uma comunidade de uma bacia hidrográfica. Além de não
terem participação, também não conhecem os componentes que integram o Comitê da
qual a localidade faz parte. O distanciamento da participação na governança das águas
também é percebido quanto ao desconhecimento de representantes políticos envolvidos
com questões de acesso à água. Dos moradores consultados no Juá, 80% não conhecem
nenhum representante político envolvido com essa temática, enquanto na Jurema, o índi-
ce foi de 100% dos entrevistados.
110 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Quanto aos projetos hídricos de maior referência na região, a Barragem Argemiro de


Figueiredo (Acauã) e o eixo leste da transposição do Rio São Francisco (dutos do Canal
Acauã-Araçagi), os moradores externaram percepções distintas quanto às respectivas obras.
Todos os entrevistados perceberam uma mudança positiva quanto ao acesso à água com a
instalação da Barragem de Acauã, relacionando a maior perenidade do leito do Rio Paraíba
a esse reservatório.
A transposição do Rio São Francisco, eixo leste, que perpassa a poucos metros das
comunidades, parece não ter o mesmo impacto positivo. Os moradores entrevistados não
sinalizaram nenhuma mudança ou benefício no acesso à água local a partir da instalação
do projeto. Não há conhecimento dos moradores sobre um possível acesso a essas águas
conduzidas através de dutos e canais a aproximadamente 400 metros das moradias. O
contato realizado pelos órgãos executores da obra foi restrito a alguns proprietários de ter-
ras para realização de pagamento das respectivas indenizações das áreas utilizadas na obra.
Quanto à construção dessas obras hídricas, os residentes das comunidades afirma-
ram que nunca foram consultados a respeito dessas instalações, em nenhum período de

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execução do projeto. O único contato entre os órgãos gestores e os ribeirinhos dessa região,
conforme informado pelos moradores, foi a realização de uma reunião restrita àqueles que
tiveram direito à indenização. Sendo a obra de interesse público, não houve negociação e
os valores pagos foram considerados baixos, com base nos comentários externados pelos
entrevistados.
Diante dos relatos que descrevem o contato entre a comunidade e os órgãos gestores
das águas, essa interação pode ser caracterizada como distante ou até mesmo inexistente,
considerando que de 70 a 80% das moradias pesquisadas não há nenhum contato com
quaisquer órgãos que integre o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos,
seja local, estadual ou nacional. Nas moradias em que há algum contato, a única interação
verificada foi com a AESA-PB, ainda assim de forma restrita, apenas para efetivação de
registros de outorgas para o uso da água do rio, ou quando há alguma fiscalização quanto
à captação da água.

Considerações

A partir do estudo desenvolvido nas comunidades rurais Jurema e Juá, os dados ob-
tidos retratam uma precariedade quanto às formas de acesso à água. Foram identificadas
fragilidades quanto à disponibilidade e também sobre a qualidade da água que essa popu-
lação consome. As cisternas, como principal forma de armazenamento da água da chuva,
utilizada para beber e cozinhar, não supre a demanda do ano inteiro nas moradias; quando
ocorre o esgotamento dessa fonte, a alternativa de compra não garante nenhuma regula-

111 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
mentação da origem ou tratamento da água vendida porta a porta. Mesmo a presença dos
programas de universalização, como o PAD e Operação Carro Pipa, não garante a abran-
gência da maioria da população local, uma vez que a obtenção daquela água exige deter-
minada logística para o transporte, nem sempre viável ao morador, mediante as distâncias
entre a sua casa e o ponto de distribuição.
A vulnerabilidade dessas localidades também é observada a partir da constatação de
que a média de consumo de água por morador, para beber, cozinhar e higiene pessoal, não
ultrapassa 60 litros por dia, um índice que representa pouco mais da metade da quanti-
dade recomendada pela Organização Mundial da Saúde, que é de 110 litros/dia. Esses re-
sultados sobre as condições de acesso deficitários nas comunidades observadas apresentam
o distanciamento entre a realidade do Semiárido rural brasileiro e as metas do objetivo de
desenvolvimento sustentável da ONU, o ODS 6, que preconiza a universalização da água
potável e do saneamento.
A inexpressiva ou mesmo inexistente participação política dos moradores da Jurema e
do Juá quanto à governança das águas reflete o desafio vinculados aos processos de cidadania

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e democratização da água no Semiárido rural. A ausência de vozes locais na conjuntura da
governança da água pode ser justificada pelo desconhecimento dos moradores quanto ao
sistema de gestão e seu papel político, como principalmente pela falta de interação dos órgãos
representativos dessa esfera, nas comunidades. Esse cenário expõe a distância entre os balizares
legais da governança das águas, que preconizam a democratização, a integração e participação
social, ante a realidade das localidades rurais do semiárido, o que reforça a centralização de
poder do Estado e a manutenção das vulnerabilidades nesta região em particular.

Resumo

O objetivo principal deste estudo foi compreender as formas de acesso e a governança da


água em comunidades rurais do semiárido brasileiro. A investigação ocorreu sob as perspectivas
social e política, visando identificar como essas comunidades periféricas têm acesso à água, e
averiguar como se dá a participação social dos moradores dessas localidades na governança hí-
drica. Na intenção de alcançar uma compreensão integrada e multidimensional da conjuntura
social e política do lócus observado, adotou-se uma pesquisa social de abordagem qualitativa-
-quantitativa como diretriz metodológica. Os dados analisados são provenientes da realização
de entrevistas pré-estruturadas com os moradores de duas comunidades rurais do agreste da
Paraíba. Dentre os resultados identificados, destacam-se: a ausência de rede de abastecimen-
to de água na região; a significativa cobertura do P1MC-ASA; a falta de monitoramento de
qualidade da água consumida; e, a inexistente participação político-social dos moradores das
Comunidades quanto à governança hídrica. A análise realizada sinaliza prováveis vulnerabi-
lidades no modelo de gestão vigente, e apresenta dados que podem ser utilizados como base
comparativa para outras localidades, assim como, contribuir para uma possível formulação de
112 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

novas políticas de governança da água.


Palavras-Chave: Acesso à água; Semiárido brasileiro; Governança da água; Comunidades rurais.

Water access and governance in the Brazilian semiarid region: a study


in rural communities in Paraiba

Abstract

The main objective of this study was to understand the forms of access and governance of
water in rural communities in the Brazilian semi-arid region. The investigation took place from the
social and political perspectives, aiming to identify how these peripheral communities have access
to water, and to find out how the social participation of the residents of these locations in water go-
vernance takes place. In order to achieve an integrated and multidimensional understanding of the
social and political situation of the observed locus, social research with a qualitative-quantitative
approach was adopted as a methodological guideline. The analyzed data come from pre-structured
interviews with the residents of two rural communities in the agreste region of Paraíba. Among the
results identified, the following stand out: the absence of a water supply network in the region; the
significant coverage of the P1MC-ASA; the lack of quality monitoring of the water consumed; and,

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the non-existent political and social participation of the residents of the Communities in terms of
water governance. The analysis carried out indicates probable vulnerabilities in the current mana-
gement model, and presents data that can be used as a comparative basis for other locations, as well
as contributing to the possible formulation of new water governance policies.
Key words: Access to water; Brazilian semiarid; Water governance; Rural communities.

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Potencial geoturístico da Área
de Proteção Ambiental no Cariri
Paraibano, Brasil

Marcos Antônio Vieira Dias1


Rafael Albuquerque Xavier2

Introdução

Ao longo dos últimos anos, a atividade turística intensificou-se no mundo, ganhando


relevância do ponto de vista econômico e se diversificando quanto as suas formas de reali-
zação. As possibilidades postas pelo desenvolvimento dos meios de transportes e comuni-
cação para a circulação de pessoas e, consequentemente, de turistas, favoreceu segmentos
diversos, entre os quais, aquele voltado para o contato com a natureza e seus diferentes
elementos do meio físico abiótico, o chamado geoturismo.
Alimentando estes fluxos, o geoturismo tem se destacado como um segmento que se

117 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
apropria sustentavelmente da geodiversidade presente nos espaços com elementos geo-
lógicos e geomorfológicos que se tornam recursos para a visitação. Entre os espaços com
potencial para o desenvolvimento do geoturismo no Brasil, a Área de Proteção Ambiental
do Cariri Paraibano (APA do Cariri) criada pelo Decreto estadual 25. 083/2004 se destaca
por apresentar potencialidade elevada para a prática geoturística. A área compreende um
total de 18.560 hectares estendendo-se por três municípios paraibanos pertencentes as
Regiões Intermediária e Imediata de Campina Grande- PB, a saber: Boa Vista, Cabaceiras
e São João do Cariri.
Nesse sentido, a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) criou em
2018 o projeto Geoparque Cariri, que apresentou 20 geosítios com potencial para ativi-
dade de geoturismo, sendo 13 na Área de Proteção Ambiental do Cariri Paraibano (APA).
1
Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual da Paraíba
Mestrando em Geografia pela Universidade Federal da Paraíba
2
Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade
Estadual da Paraíba, Brasil e Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba,
Brasil.

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Ao todo o projeto engloba os municípios de Cabaceiras, Boa Vista, São João do Cariri e
Boqueirão-PB. Diante disso, a APA Cariri é uma Unidade de Conservação de uso susten-
tável e tem se destacado pela geodiversidade local, no entanto, como acontece na maioria
das UCs do Brasil, não há uma gestão efetiva, quanto ao uso do local, fazendo-se necessário
um planejamento afim do uso de maneira sustentável e com menores riscos de degradação.
Partindo desse pressuposto, este estudo, tem como objetivo avaliar o potencial geotu-
rístico da área de proteção Ambiental do Cariri Paraibano, com o intuito de desenvolver
economicamente a área e garantir a geoconservação do local, por meio da metodologia
proposta por Ziemann (2016) e adaptada por Ziemann e Figueiró (2017), onde os autores
propõem uma avaliação que leva em consideração os valores geocientíficos, cultural, de
uso, estético e de risco, por meio da fórmula: IAGtur =PGtur [VG (20%) + VCult (20%)
+ VEst (40%) + VUso (20%)] – RD [R (50%) +C (50%)].

Referencial teórico

Geodiversidade

O termo geodiversidade foi usado por Shaples, na Austrália em 1993, o emprego do


conceito, estava voltado para uma perspectiva geral: “the diversity of Earth features and
systems” (A diversidade de fatores e sistemas do planeta terra) (KUBALIKOVÁ, 2013).
Já para Brilha (2005), o termo foi usado na conferência em Malven sobre conservação
geológica e paisagística no Reino Unido, a definição da Royal Society of Nature conserva-
118 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

tion do Reino Unido é usada por vários autores e considera que a geodiversidade consiste
na variedade de ambientes geológicos, fenômenos e processos ativos que dão origem a
paisagem, rochas, minerais, fosseis, solos e outros depósitos superficiais que são o suporte
para a vida na Terra. Nesse sentido, geólogos e geomorfólogos passaram a descrever geo-
diversidade como sendo variedade abiótica na natureza (GRAY, 2004). De acordo com
Azevedo (2007), a geodiversidade está relacionada as variedades de rochas, solos, e todos
os processos que modelam a crosta terrestre.
Na ótica do Serviço Geológico do Brasil- SGB, o termo geodiversidade é aplicado
ao estudo da natureza abiótica (meio físico), constituída por uma variedade de ambien-
tes, composições, fenômenos e processos geológicos que dão origem às paisagens, rochas,
minerais, águas, fósseis, solos, clima e outros depósitos superficiais que propiciam o de-
senvolvimento da vida na Terra, tendo como valores intrínsecos a cultura, o estético, o
econômico, o científico, o educativo e o turístico (CPRM, 2006).
Partindo desses pontos, pode-se entender que a geodiversidade é um conjunto de
fatores abióticos que a modelam a superfície terrestre, podendo ser de caráter geológico

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e geomorfológico, e são por sua vez, agentes condicionantes para a sustentabilidade da
biodiversidade do planeta Terra.

Geoturismo

Hose (1995) considera o Peak District United Kingdom, na Inglaterra o berço de prá-
ticas de geoturismo, onde havia visitas as cavernas e minas desde o século XVII, a definição
só venho em 1995, onde Hose chamou geoturismo de “a provisão de serviços e facilidades
interpretativas que permitem aos turistas adquirirem conhecimento e entendimento da
geologia e geomorfologia de um sítio” (HOSE, 1995,p. 136). Em 2000 Hose redefiniu
o conceito como sendo: Serviços e meios interpretativos que promovem o valor e os be-
nefícios sociais de lugares com atrativos geológicos e geomorfológicos, assegurando sua
conservação, para o uso de estudantes, turistas e outras pessoas com interesses recreativos
e de ócio. (HOSE,2000. p. 136).
No que tange a importância cientifica do conceito, Moreira (2014) ressalta que o
geoturismo não pode ser considerado um modismo, pois, apesar do termo ser considerado
recente, existe diversos trabalhos sobre o termo, no mundo inteiro, Jorge e Guerra (2016)
compreendem a importância da divulgação cientifica, por meios de trabalhos, pois, quan-
to mais for divulgado, mais chance de assegurar as atividades de geoturismo.
No entanto, há uma preocupação no uso dessas atividades geoturísticas, pois, se não
houver plano de manejo, a área pode ser degradada, fazendo o efeito contrário a proposta
do geoturismo, nessa discussão, Jorge e Guerra (2016) ressaltam sobre os pontos negativos

119 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de áreas com atividades de geoturísmo, ou seja, mesmo com atividades sustentáveis, os im-
pactos negativos podem refletir na degradação da geodiversidade, o que leva a necessidade
de um plano de manejo, pois é indispensável em um projeto de geoturísmo.

Metodologia

Para a realização da classificação do índice de aproveitamento geoturístico, usou-se a


metodologia sugerida por Ziemann (2016) e Ziemann e Figueiró (2017), onde os autores
fazem uma adaptação da metodologia de Ziemann (2016) no que diz respeito a quanti-
ficação do potencial geoturístico, que por sua vez, identifica o Índice de Aproveitamento
Geoturístico (IAGtur), levando em consideração os fatores de risco de degradação (RD)
mais o estado de conservação (C) da área.
Partindo desse pressuposto, a metodologia apresenta 4 critérios a saber: Valor Geocientífico
(Vg), Valor Cultural (Vcult), Valor Estético (Vest) e Valor de Uso (Vuso), que totalizam 21
subcritérios, onde é atribuído valor em cada item na seguinte escala: ausência = 0, ruim = 1,

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moderado = 5 e bom = 10, da mesma forma também, é atribuído valor ao Risco de degrada-
ção (RD) e ao Estado de Conservação (C), for fim, soma a média de cada critério, e faz o cál-
culo da porcentagem sugerida na metodologia e por último aplica a fórmula: IAGtur = PGtur
[VG (20%) + VCult (20%) + VEst (40%) + VUso (20%)] – RD [R (50%) + C (50%)].

Caracterização da área de estudo

O recorte da pesquisa compreende um total de 18.560 hectares de três municípios da


região intermediaria e imediata de Campina Grande (IBGE, 2017) na região Nordeste
do Brasil a saber: Boa Vista, Cabaceiras e São João do Cariri. A principal via de acesso
é a BR 230/PB, e a distância média dos municípios com a capital do estado da Paraíba
(João Pessoa) é de 200 km. A área de estudo é definida pelas coordenadas geográficas
Lat.: 7°21’00’’S e 7°25’12’’S, Long:36°15’36’’W e 36°23’24’’W. A Área de Proteção
Ambiental do Cariri paraibano (APA), foi criada pelo Decreto Estadual n° 25.083-2004,
pela Superintendência de Administração do Meio Ambiente da Paraíba – SUDEMA, e
fica na zona rural dos municípios (Figura 1).

Figura – 01 Mapa de Localização da área de estudo


120 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Elaboração dos autores, 2021.

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A APA está inserida no Planalto da Borborema, que por sua vez, é um escudo
cristalino do pré-Cambriano que passou por processos de aplainamento. Segundo
Lira (2010) o Planalto é composto por rochas de diferentes graus de metamorfismo,
que resultou em maciço arqueano proterozóicos gnáissico migmatíticos e algumas
estruturas intrusivas do ciclo brasiliano. Para (Lages et al, 2018), houve também o
soerguimento epirogenético e arqueamento de alguns Planalto da região Nordeste,
como o Planalto da Borborema.
De acordo com Lira (2008) e Lages et al (2018), a evolução geologica e geomorfolo-
gica da região do plúton bravo, deu-se por meio do soerguimento e erosão de solos muito
intemperizados, formados em clima do tipo quente e úmido, nesse sentido, os autores
apontam evidencias como perfil preservado, de pelo menos 15,8 e 2,4 Ma da bacia ad-
jacente de Boa Vista, entre outras evidencias. O clima foi condicionando as geoformas:
matacões, lajedos, inselbergs etc.

Resultados e discussões

Optou-se em seguir os locais já identificados pela CPRM (2018), pois a Companhia


já havia realizado pesquisas no local, e possuía conhecimento holístico do presente recorte
espacial (Área de Proteção Ambiental do Cariri Paraibano), classificando 13 pontos de
geoturismo, dessa forma, aplicamos a metodologia de Ziemann e Figueiró (2017) e obti-
vermos os seguintes resultados, como mostra na Tabela 05.
Partindo dessa perspectiva, as visitações a área de estudo, possibilitou o reconhecimen-

121 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
to da geodiversidade e uma análise sobre todo o contexto do geoparque Cariri, sobretudo
a extensão da APA, um total de 18.560 hectares. Para esse trabalho, mostraremos as prin-
cipais características dos 4 geossítios que apresentaram maior índice de aproveitamento
geoturístico, a saber: Lajedo Pai Mateus, Lajedo Salambaia, Lajedo do Bravo e Lajedo
Sacas de Lã.

1 - Lajedo de Pai Mateus

O Lajedo do Pai Mateus (Figura 2), está localizado a 18,5 km da sede do muni-
cípio de Cabaceiras-PB, que por sua vez, é inserida na região imediata e intermedia-
ria de Campina Grande. A área é conhecida nacionalmente e internacionalmente pela
geodiversidade, onde já foi cenário de filmes e minisséries brasileiras como: Alto da
Compadicida (1999) Onde Nascem os Fortes (2018) entre outros. O mar de bolas,
como também é chamado, possui pinturas rupestres, pintadas pelos índios cariris, cerca
de 12 mil anos atrás.

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Figura- 02 Lajedo de Pai Mateus
Fonte: XAVIER, Rafael. 2019. (Acervo Pessoal).

Inserido no Plúton Bravo na poção sul. O lajedo de Pai Mateus, passou por diversos
processos pedogenéticos, no qual, resultou nas condições de centenas de blocos esferoidal,
formando uma área de matacões, alguns, com cavidades abobadadas, que servia de abrigo
para os índios cariris (Lages et al. 2018).
122 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A elevação rochosa é um relevo residual, que resistiu ao intemperismo causado pelas


chuvas e outras dinâmicas do clima, ao longo dos últimos anos geológicos, há 580 Ma
(Lages et al. 2013), dessa forma, a área que compreende o Lajedo de Pai Mateus é de 1.300
m, cerca de 400 m de largura, podendo chegar a 50 de altura, é classificado do tipo whale-
back, por apresentar semelhança de um dorso de baleia (Lages et al. 2018).
Com isso, nota-se um grau expressivo de geodiversidade e a importância de sua con-
servação, desse modo, foi aplicado o Índice de Aproveitamento Geoturístico afim de obter
o índice do geossítio, analisando cada critério, onde foi obtido os valores, que indicaram
índice positivo para o IAGtur.

Tabela 1- IAGtur do Lajedo de Pai Mateus

Geossítio PG-RD IAG


Lajedo de Pai Mateus 6,88 - 1,16 5,72

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

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Após a valoração de cada subcritério, e aplicado a fórmula, obteve-se o valor de apro-
veitamento geoturístico do lajedo de Pai Mateus, o que apresentou expressivovalor de apro-
veitamento, isso deu-se pelo fato do geossítio já possui uma estrutura para a atividade
de turismo, bem como, a singularidade da paisagem apresentarem índices elevados, na
valoração, além de outros critérios.

2 - Lajedo da Salambaia

O lajedo Salambaia (Figura 3) está localizado na zona rural entre os municípios de


Boa Vista e Cabaceiras, o nome do lajedo vem de uma bromélia cujo o nome cientifico é
pequena comum na região. No que se refere ao corpo granito, é o mais central do Plúton
Bravo e o maior, sua extensão é de 3.000 m de comprimento, podendochegar a 480 m
de largura e 40 m de altura em média, desse lajedo, pode ser visto olajedo de Pai Mateus,
Lajedo do Bravo, entre outros (Lages . 2018).
A estrutura é do tipo dorso de baleia (whale Back) não apresenta blocos ou matacões
sobre o lajedo, toda via, pode ser visto em grande quantidade aos redores. Apresenta di-
versos graus de estágios de intemperismo e erosão, como por exemplo, as caneluras, que
são formadas pelo intemperismo químico e erosão pluvial, além de outros fatores. Pode
ser visto acúmulo de água em alguns locais, formando lagos nos períodos de chuvas.
(Lages et al. 2018).

123 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3- Lajedo da Salambaia


Fonte: XAVIER, Rafael. 2019 (Acervo Pessoal).

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Do ponto de vista estrutural, a fazenda Salambaia possui um projeto inicial de ati-
vidades de visitação, seja para fins recreativos, científicos ou quais outro tipo. A fazenda
dispõe de uma restaurante, sendo que as atividades de turismo são durante o dia e não tem
disponibilidade para dormir no local. Apesar disso, nota-se interesse da proprietária em
desenvolver e aprimorar essas atividades e estrutura local, para atender as demandas de um
geossítio com práticas turísticas (SOUZA, 2019. p. 47). Diante dos levantamentos para
esse geossítio e o reconhecimento da geodiversidade, foi aplicado a fórmula do IAGtur,
onde foi identificado índice de aproveitamento geoturístico expressivo, como pode ser
visto na tabela 2.

Tabela 2- IAGtur do Lajedo da Salambaia

Geossítio PG-RD IAG


Lajedo da Salambaia 5,35 -1,16 4,19

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Diante dos dados obtidos para o Lajedo da Salambaia, observou-se que o geossítio
apresenta índice de aproveitamento geoturístico positivo e com valor expressivo quanto a
valoração dos subcritérios, dessa forma, para esta área, pôde-senotar que a soma dos crité-
rios (PGtur) evidencia o índice do local para a atividade degeoturismo.
124 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

3 - Lajedo do Bravo

Localizado na Zona rural do município de Boa Vista, o Lajedo do Bravo (Figura 04),
é formado por diversas feições oriundas de processos técnicos- estruturais. Está inserido a
leste no plúton Bravo e apresenta uma variedade de geoformas, o qual,proporcionou uma
geodiversidade na paisagem.
De acordo com Lages (2018) o Lajedo do Bravo possui 260 m de comprimento, 130
de largura, em alguns pontos e 30 m de altura, em média. Como o geossítio faz parte do
grande batólito, e por sua fez está no extremo leste, há uma zona de fraturas no sentido
norte-sul, essas fraturas, foi resultado de alívio de pressão do granitoide. Possui varie-
dade de blocos, matacões e geoformas que apresentam diferentes feições. O local além
de possuir uma expressiva geodiversidade, ainda contempla elementos arqueologicos,
proporcionada pelas pinturas rupestres dos índios cariris nos blocos e matacões, além de
12 geoformas com potencial para o geoturismo NASCIMENTO; PEREIRA; SOUZA;
XAVIER, 2019.

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Figura 04- Lajedo do Brav
Fonte: XAVIER, Rafael. 2019 (Acervo Pessoal).

Dessa forma, após a aplicação da fórmula do IAGtur para o Lajedo do Bravo, obteve-
-se um índice bem expressivo para o aproveitamento geoturístico do geossítio como pode

125 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
ser visto na tabela 3.

Tabela 3 IAGtur do Lajedo do Bravo

Geossítio PG-RD IAG


Lajedo do Bravo 6,35-1,16 5,19

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

O IAGtur do Lajedo do Bravo, deu-se valores altos nos subcritérios, para esse geos-
sítio, o valor cultural foi expressivo, tendo em vista que o local, possui um cemitério
indígena entre duas rochas, o que fama a atenção de turistas para a trilha que leva a essas
feições.

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4-Lajedo Saca de Lã

No contexto do Plúton bravo, o geossítio Sacas de Lã (Figura 05), está localizado


a 2 km do Lajedo de Pai Mateus, Zona rural do Município de Cabaceiras.A origem do
nome, deu-se por meio da vivência popular e a feição geomorfológica, uma vez que, é
semelhante a um empilhamento de sacos de lã, a área apresenta, grande potencial geotu-
rístico e possui grande valor científico, cultural, arqueológico, entre outros.

Figura 05 - Sacas de Lã
Fonte: XAVIER, Rafael. 2015. (Acervo Pessoal).
126 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

De acordo com Lima et al. (2009), Sacas de Lã é considerado blocos poliédricos que
por sua vez, são blocos amontoados, nesse sentido, Lages et al. (2013) afirmam que o
amontoado de blocos possui cerca de 20 m de altura, e apresentam formas de modo geral
expressivo regular. No que concerne a formação dessa feição, os autores tecem:

O castle koppie Sacas de Lã é formado pela preservação do estágio inicial do


diaclasamento de fraturas ortogonais fatiados pelas fraturas de alívio sub- horizontais
geradas em dimensões regulares [...] O estágio de clima úmido e seus processos pe-
dogenéticos associados, como o intemperismo químico, está bem representado por
um matacão arredondado solitário que em cima este monólito e também por seu
interior, onde se encontramgrandes blocos vazados que permitem se rastejar sob os
mesmos (Lages; Ferreira; Meneses; Nascimento; Fialho, 2018. p. 23).

Diante disso, o geossítio Sacas de Lã, possui uma singularidade na paisagem, pois além
da feição, o Riacho Boa Vista, dá um aspecto exuberante na paisagem do Cariri paraibano e

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que por sua vez, tem grande potencial geoturístico, além disso, há pinturas rupestres em al-
gumas rochas, marcas dos índios Cariris na região, aumentando o valor científico e cultural.
Nessa perspectiva, foi identificado um expressivo valor na geodiversidade do Sacas de
Lã, onde foi aplicado a fórmula do IAGtur como pode ser visto na tabela 4.

Tabela 4- IAGtur do Sacas de Lã

Geossítio PG-RD IAG


Sacas de Lã 4,20-1,16 3,04

Fonte: Elaborado pelo autor, 2021.

O geossítio Sacas de Lã apresentou PGtur significativo, principalmente no valor geo-


científico, pois o mesmo apresenta grande interesse cientifico, como testemunho de um
relevo residual, como o mesmo pode ser caracterizado.

Visão Geral do IAGTUR Aplicado a APA

Diante da avaliação qualitativa e quantitativa dos pontos 13 pontos de interesse geotu-


rístico, pôde-se perceber que pelo menos 10 pontos apresentaram valores positivos (Figura
06), onde foi identificado valores expressivos de alto grau em pelo menos 8 pontos, a
saber: Lajedo do Pai Mateus (IAGtur: 5,72), Lajedo da Salambaia (IAGtur: 4,19), Lajedo
do Bravo (IAGtur: 519), Sacas de Lã (IAGtur: 3,04), Lagoa de Cunhã (IAGtur: 2,76),

127 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Cânion doRio Soledade (IAGtur: 2,76) e Lajedo Manoel de Souza (IAGtur: 2,30).
Para os geossítios Pedra Oca (IAGtur: 0,68) e Pedra do Cálice (IAGtur: 0,20) que apre-
sentaram potecial baixo, de acordo com a metodologia, esses pontos ainda possuem poten-
cial geoturístico, por outro lado, os geossítios Brecha Magmatica, Tanques com Enclaves de
Diorito e Mistura de Magmas apresentaram índice negativos, o que caracteriza que os pontos
não possuem potencial para serem aproveitados para atividade de turismo, os valores do
IAGtur foram: (IAGtur: -0,97), (IAGtur: -0,49) e (IAGtur: -0,49) respectivamente.

Tabela 05- IAGtur dos 13 geossítios

Geossítio PG-RD IAG


Lajedo de Pai Mateus 6,88 - 1,16 5,72
Lajedo do Bravo 6,35-1,16 5,19
Lajedo da Salambaia 5,35 -1,16 4,19
Muralha do Cariri 5,20-1,70 3,50

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Sacas de Lã 4,20-1,16 3,04
Lagoa da Cunhã 3,92-1,16 2,76
Cânion do Rio Soledade 3,92-1,16 2,76
Lajedo Manoel de Souza 3,46-1,16 2,30
Pedra Oca 2,38-1,70 0,68
Pedra do Cálice 1,90-1,70 0,20
Tanques com Enclaves de Diorito 2,67-3,16 -0,49
Mistura de Magmas 2,67-3,16 -0,49
Brecha Magmática 2,19-3,16 -0,97

Fonte: Elaborado pelo autor, 2021

Nessa ótica, a tabela 05 mostra o ranking dos 13 geossítios e seus recpectivos IAG de
forma decrescente, o que facilita a visualização de todos os pontos de interesse, partindo
desse pressuposto, a figura 06 apresenta o mapa com a localização dos 10 geossítios classi-
ficados com índices positivos para o aproveitamento geoturístico.
128 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 06-Mapa de Localização dos geossítos classificados com índice positivo para IAG
Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

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Geoturismo e o Desenvolvimento Economico e Sustentável

Ziemann e Figueiró (2017) argumentam que o planejamento feito de forma adequada


auxilia no desenvolvimento do local onde o geossítio está inserido, como foi o caso do
Geoparque Quarta Colônia, no Centro-oriental Rio-Grandense, para os autores é impor-
tante desenvolver estratégias que atendam às necessidades de cada ambiente, ou seja, cada
geossítio possui singularidades e precisam ser colocadas em evidência, nos planos de uso.
Por outro lado, quando não há um planejamento adequado para a área os impactos ne-
gativos sobre o geossítios poderá causar pecas ou degradação da geodiversidade, causando o
efeito inversos da proposta do geoturísmo, com isso, Jorge e Guerra (2016) tecem a respeito
da importância de levar em consideração quais impactos negativos poderá causar no local.
Para Moreira (2014) o plano de manejo adequado precisa conter: um inventário da
área escolhida, onde é feito todo o levantamento do local de interesse, posteriormente
deve traçar e definir metas e objetivos, além de conter como será desenvolvido as ações
planejadas e por fim, o gerenciamento e fiscalizações, onde deve monitorar se cada ação
está ocorrendo da forma planejada.
Araújo (2005) evidencia que um instrumento importante para o planejamento geotu-
rístico é interpretação da natureza, ou seja, como será passado para os turistas o conheci-
mento científico, essa discussão também é feira por Gordan et al (2004) onde os autores
argumentam sobre a necessidade de transformar a linguagem cientifica mais acessível e de
fácil compreensão.
Além dessas questões, Rocha e Nascimento (2007) analisando o geoturismo no Parque

129 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Estadual do Pico do Cabugi, no estado do Rio Grande do Norte, encontrou lixos e outras
formas de depredação, o que ressaltaram a ausência de educação ambiental, sobretudo dos
turistas que foram visitar a área.
Para Moura-Fé (2015) esse segmento geoturístico além de possuir importância para
o âmbito científico e educacional, pode gerar empregos para a comunidade e desenvolver
a área, tento em vista a crescente procura por um turismo sustentável, além disso, o autor
enfatiza as questões de logísticas, atribuindo ao poder público uma intervenção em fatores
que contribuem para o aumento de visitações.
Nesse sentido, Silva et al (2021) argumenta acerca da necessidade de catalogação das
áreas que apresentam potencial geoturístico, e que esses inventários apresentem o máximo
de informações do local, se já possui atividade de turismo bem como, dados sobre a geo-
diversidade da área. Nesse sentido, o Geoparque Cariri (proposta da CPRM 2018) possui
diversas discussões científicas sobre a área, Souza (2019) apresenta o Lajedo da Salambaia
como um geossítio que apresenta um geoturísmo ainda esporádico, mas com grande ap-
tidão para essa atividade.

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Para além da Salambaia, pode-se citar as contribuições de Pereira et al (2020) onde os
autores fazem um mapeamento das trilhas do Lajedo do Bravo, onde identificaram o grau
de dificuldade de cada trilha, classificando-as como fácil, ou seja, as condições do ambiente
favorecem um turismo de fácil acesso as geoformas, além disso, ressaltam a necessidade
de sinalização para auxiliar os turistas nas visitações. Nascimento (2019) enfatiza a geodi-
versidade do Lajedo da Salambaia e do Bravo, fazendo uma valoração quanto aos valores
da área, onde reflete a expressiva importância dos geossítos, bem como a necessidade da
conservação dos fatores abióticos.
Como o Brasil é um país com uma extensão territorial grande, possui diversas áreas
com potencial geoturístico, no entanto, precisa de catalogação e divulgação das mesmas,
de acordo com a Nascimento (2008) no Brasil, alguns setores já possui uma atividade
de geoturismo em áreas como: Cataratas de Iguaçu (PR) Pão de Açúcar (RJ) Gruta de
Ubajara (CE), Serra Capivara (PI), Chapada Diamantina (BA) entre outros, segundo o
autor, esses locais já possui umas ações implementadas nesse segmento.
Diante dessas constatações, os trabalhos científicos e os meios de comunicação possuem
grande força para divulgação da geodiversidade, sobretudo a internet, para Nascimento
(2008) a sociedade brasileira ainda é pouco sensível ao patrimônio geológico, o que leva
a um trabalho ainda maior, no que se refere ao reconhecimento da sociedade sobre o geo-
turismo como atividade de recreação e serviços de interpretações dos fatores abióticos da
natureza.

Conclusão
130 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A Área de Proteção Ambiental do Cariri Paraibano - APA, inserida na região imediata


e intermediaria de Campina Grande, é um polígono que abrange os municípios de Boa
Vista, Cabaceiras e São João do Cariri, apresentou expressivo valor para atividade de apro-
veitamento geoturístico, que são serviços que promovem a interpretações de lugares com
atrativos geomorfológicos e geológicos (HOSE, 2000. p. 136).
De acordo com o que foi visto, entende-se que os pontos que mais apresentaram
potencial geoturístico foram áreas que obtiveram na classificação os valores geocientífico,
cultural, estético e de uso (PGtur) altos e baixo índice de degradação (DR), visto que, a
metodologia propôs a subtração do que pode levar a degradação da área.
Diante dessas constatações, entende-se que a área precisa de um plano estratégico para
desenvolver economicamente a área onde está inserida a APA. Foi visto que a atividade de
geoturismo intensifica o fluxo de visitações e consequentemente a necessidade de ofertas
de serviços básicos, como guias, setor alimentício, hospedagem entre outros, o que leva a
comunidade de renda.

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Entende-se que um geoturismo aplicado da maneira correta, atendendo as necessi-
dades de conservação da geodiversidade, tal como a necessidade do consumidor, poten-
cializará a área, por outro lado, se o planejamento não for executado da maneira correta,
poderá aumentar a degradação da diversidade.
Com isso, o planejamento deve conter informações de toda a área, que apresente
potencial geoturístico, ou seja, deve-se ter conhecimento da área, além de traçar metas e
objetivos, designar como serão alcançadas e desenvolver um monitoramento de cada etapa
estabelecida do planejamento.
Foi identificado que um dos fatores que inviabiliza o aumento do fluxo de pessoas nos
geossítios da APA, são as questões logísticas de condução, uma vez que, as estradas vicinais
que ligam os lajedos aos respectivos municípios que estão inseridos precisam ser asfaltas,
além disso, deve ocorrer uma divulgação por meio de trabalhos científicos, uma vez que,
os inventários apresentam informações das áreas de interesse e consequentemente uma
valorização do local, além disso é necessário investimento na divulgação da APA, de forma
que alcance o maior percentual de pessoas, sejam por meio de canais de TVs, rádios, e
quais quer meio de divulgação em massa, como a internet e o vasto campo de pessoas que
utilizam-na o que trará visibilidade para a geodiversidade da áreas com potencial.
Sendo assim, entende-se a necessidade da participação do poder público, tanto no
investimento na área, como também, no enrijecimento das leis e fiscalizações dessas
Unidades de Conservação, sobre tudo a Área de Proteção Ambiental do Cariri Paraibano,
que apresentou índice expressivo para atividade de geoturísmo, um segmento sustentável e
com potencial para desenvolver economicamente a região do Cariri Paraibano.

131 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Resumo

O Cariri Paraibano é uma microrregião localizado no Estado da Paraíba, situada sobre o


Planalto da Borborema e de clima semiárido. Nos últimos anos, diversos estudos têm abordado a
geodiversidade (LAGES et al., 2013; MENEZES e SOUSA, 2016), o geopatrimônio (BORGES
NETO et al., 2020; XAVIER et al., 2018 e 2021) e o geoturismo no Cariri Paraibano (FIALHO
et al., 2010; SOUZA, 2019; PEREIRA et al., 2020). Em toda a região, destaca-se a área granítica
do Plúton Bravo, situado entre os municípios de São João do Cariri, Cabaceiras e Boa Vista. Essa
área concentra o maior número de geossítios catalogados no Projeto Geoparque Cariri Paraibano
(CPRM, 2018), evidenciando, assim, sua grande importância. Em 2004, o Governo da Paraíba
criou uma Área de Proteção Ambiental (APA), abrangendo a totalidade da área granítica do Plúton
Bravo. Entretanto, essa unidade de conservação ainda não possui plano de manejo, tão pouco conse-
lho gestor. Nesse sentido, o trabalho teve como objetivo geral avaliar o potencial para o geoturismo
da APA do Cariri Paraibano. Nessa perspectiva, foi utilizado a metodologia proposta por Ziemann
(2016) e adaptada por Ziemann e Figueiró (2017), que além de avaliar os valores geocientífico,
cultural, estético e de uso, levam em conta o risco de degradação e estágio de conservação da área,

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atribuindo-lhes o Índice de Aproveitamento Geoturístico (IAGtur), além disso, propor estratégias
para o desenvolvimento turismo na área. Foi avaliado os 13 geossítios inventariados pela CPRM
(2018), no projeto Geoparque Cariri Paraibano. Dos 13 geossítios avaliados, 10 apresentaram po-
tencial geoturístico. Foram encontrados valores de alto potencial turístico em 8 geossítios (Lajedo
do Pai Mateus, Lajedo da Salambaia, Lajedo do Bravo, Sacas de Lã, Lagoa da Cunhã, Cânion do
Rio Soledade e Lajedo Manoel de Souza), baixo potencial turístico em 2 geossítios (Pedra Oca e
Pedra do Cálice), e sem potencial turístico nos outros 3 (Brecha Magmática, Tanques com Enclaves
de Diorito e Mistura de Magmas). Os valores geocientífico, cultural, estético e de uso foram altos de
modo geral e o índice de degradação baixo. Contudo, observa-se que o geoturismo ainda é incipien-
te na área, sobretudo pela falta de inventários e divulgação, infraestrutura de acessibilidade e um
plano de desenvolvimento estratégico para o desenvolvimento do geoturismo no Cariri Paraibano.

Palavras-Chave: Geodiversidade; Aproveitamento geoturístico.

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201.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil, Através do PIBIC/CNPq-UEPB.
134 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Análise do turismo desenvolvido
na Área de Proteção Ambiental da Barra
do Rio Mamanguape, Rio Tinto, Brasil 1

Rafaella Larissa Gomes da Silva2


Rafael Albuquerque Xavier3

Introdução

O Ecoturismo é uma segmentação turística desenvolvida em áreas naturais, que busca


beneficiar o meio ambiente e as comunidades visitadas, promovendo aprendizado, respeito
e consciência sobre os aspectos ambientais e culturais. De acordo com Ceballos Lascurain
(1987), o ecoturismo consiste em “viagem a áreas relativamente preservadas com o obje-
tivo específico de lazer, estudar ou admirar paisagens, fauna e flora, assim como qualquer
manifestação cultural existente”.
Contudo, são comuns práticas de ecoturismo se parecerem mais com as do turismo

135 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de massa, gerando degradação ambiental nas áreas exploradas. Uma alternativa susten-
tável, é o turismo de base comunitária, que visa atender a necessidade de conservação
cultural e também ambiental de uma comunidade além de estimular o desenvolvimento
econômico local. A pratica do turismo de base comunitária são comuns em unidades de
conservação.
No Estado da Paraíba, a Área de Proteção Ambiental (APA) da Barra do Rio
Mamanguape vem experimentando um crescente turismo nos últimos anos. O principal
atrativo turístico encontrado nessa unidade de conservação é o Projeto Viva o Peixe-boi
Marinho, que trabalha na preservação, conservação e manejo dos peixes-boi no seu habitat
natural, além das belíssimas paisagens naturais.

1
Estudo realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Estadual
da Paraíba durante o componente Turismo e Meio Ambiente ministrado pelo Prof. Dr: Rafael Albuquerque
Xavier.
2
Universidade Federal da Paraíba; Mestranda em Geografia - rafalgoomes@gmail.com
3
Universidade Estadual da Paraíba Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
rafaelxavier@servidor.uepb.edu.br

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Com isso, este estudo objetiva realizar uma análise crítica do desenvolvimento do Ecoturismo
nesta unidade de conservação ambiental, com ênfase no projeto viva o peixe –boi. Para tanto,
para a construção da base teórica utilizou-se do aporte de alguns autores como Ceballos-
Lascurain (1987;1990), Weaner (2008) e Cruz (2015), além das normativas do Ministério do
Turismo. De forma empírica, realizou-se uma visita in lócus afim de conhecer a prática vivencia-
da nessa atividade turística, podendo desfrutar e entender presencialmente esse ramo turístico,
aproveitando a oportunidade para registros fotográficos. Desse modo, foi possível fazer uma
caracterização da área de estudo e verificar alguns parâmetros como a conservação ambiental, as
práticas de educação ambiental e os benefícios para as comunidades locais receptoras.

Ecoturismo e o Turismo de Base Comunitária

O ecoturismo se caracteriza por atividades que são pautadas em uma relação de susten-
tabilidade e conservação com a natureza, de acordo com o Ministério do Turismo (2010) o
“Ecoturismo é um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patri-
mônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência
ambientalista por meio da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das po-
pulações”, e o que diferencia do turismo convencional é que neste, consiste normalmente na
contemplação de monumentos e paisagens porém sem haver a interação direta.
Logo, no Ecoturismo existe o envolvimento, a ação e o movimento ligado ao meio am-
biente e principalmente pessoas em busca de experiência e contato próximo com a natureza,
seja com a fauna, com a flora, com as formações rochosas, com as paisagens, com os espetá-
136 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

culos naturais, além de ser um turismo informativo, trazendo curiosidades sobre a natureza,
sobre o ambiente e o local, promovendo uma maior integração e educação ambiental.
Desse modo, os praticantes do o ecoturismo irão adquirir consciência e conhecimento
tanto de aspectos naturais quanto culturais a partindo da oportunidade de imergir na
natureza que irá lhe converter em alguém profundamente envolvido com as questões de
conservação, algo que com sua rotina urbana não o permite. (Ceballos-Lascuráin, 1990).
O Ecoturismo é uma tendência mundial, que demanda desde a pratica de esportes radi-
cais até o estudo cientifico dos ecossistemas, essa modalidade turística possui alguns objetivos
como promover e desenvolver o turismo com base cultural e ecologicamente sustentável e tam-
bém promover e incentivar investimentos para a conservação de recursos naturais e culturais
utilizados. Para que essa atividade turística aconteça é necessário três condições básicas: 1) de-
senvolvimento sustentável; 2) educação ambiental; 3) Envolvimento das comunidades locais.
Para Weaver (2008) o ecoturismo é uma forma de turismo que potencializa as
experiências e aprendizagem do meio natural, ou de seus componentes, associadas aos
contexto cultural.

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As principais atividades praticadas no âmbito do Ecoturismo são: observação de fauna;
observação de flora; observação de formações geológicas; visitas a cavernas (espeleoturis-
mo); observação astronômica; mergulho livre; caminhadas; trilhas interpretativas e safaris
fotográficos.
E essas atividades ocorrem preferencialmente em espaços naturais e contribui para a
preservação desses ambientes, pois é uma atividade não invasiva e de baixo impacto pau-
tada na preservação do patrimônio natural e centrada na aprendizagem direta do meio
ambiente, sendo assim uma forma de turismo sustentável. (Fennel, 2008).
Diante desse contexto sobre o ecoturismo, temos o turismo de base comunitária que
é uma atividade turística que ocorre dentro de comunidades fazendo com que a renda
arrecadada com o turismo, seja distribuída na/com a comunidade, o protagonismo dessa
atividade vem da comunidade local.
Esse tipo de turismo visa atender a necessidade de conservação cultural e também
ambiental de uma comunidade além de estimular o desenvolvimento econômico local, o
protagonismo do turismo de base comunitária é toda a comunidade, nesse caso, a comu-
nidade atua em todos os setores, desde os atrativos turísticos que vão ser apresentados até
os serviços como de alimentação; de hospedagem, os artesanatos todos esses complexos
de serviço e de ofertas de serviços e de produtos é constituído pela comunidade, é ela
quem produz, orienta ,vende, e quem recebe o capital que deve ser distribuído dentro
da comunidades, não ficando preso na mãos de terceiros. O turismo de base comunitária
“favorece a coesão e o laço social e o sentido coletivo de vida em sociedade, e que por esta
via, promove a qualidade de vida, o sentido de inclusão, a valorização da cultura local e o

137 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
sentimento de pertencimento.” (Irving ,2009, p.111)
Essa atividade turística oferece uma experiência sensorial, põe seus visitantes em con-
tato com a cultura, com aprendizados tendo sua base para importância da preservação
e da conservação ambiental, possibilitando entender a importância daquele local com a
história, com a cultura das pessoas que moram naquele ambiente, com essa conexão que
o turismo proporciona. “Este tipo de turismo representa, portanto, a interpretação ‘local’
do turismo, frente às projeções de demandas e de cenários do grupo social do destino,
tendo como pano de fundo a dinâmica do mundo globalizado, mas não as imposições da
globalização.” (IRVING ,2009, p.111).
De acordo com as normativas do ICMBio, 2018;
Turismo de Base Comunitária é um modelo de gestão da visitação protagoniza-
do pela comunidade, gerando benefícios coletivos, promovendo a vivência intercul-
tural, a qualidade de vida, a valorização da história e da cultura dessas populações,
bem como a utilização sustentável para fins recreativos e educativos, dos recursos da
Unidade de Conservação.

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Diante disso, esta atividade turística que acontece nas comunidades tem relação com
o turismo responsável e sustentável, a sustentabilidade é essencial para qualquer atividade
econômica e acontece em comunidades, sendo muito comum encontrar essas atividades
em Unidades de Conservação e em áreas de proteção ambiental.

Caracterização do Ecoturismo no Projeto Viva o Peixe - Boi Marinho


na APA da Barra do Rio Mamanguape

De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)


a Área de Proteção Ambiental (APA) é “Área em geral extensa, com certo grau de ocupação
humana, com atributos bióticos, abióticos, estéticos ou culturais importantes para a quali-
dade de vida e o bem-estar das populações humanas. As APA’s tem como objetivo proteger
a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade
do uso dos recursos naturais.”
APA da Barra do Rio Mamanguape, (Figura 01) local de interesse desse estudo, possui
um área de 14.917,79 hectares, o acesso é feito via terrestre através da BR-101 até o mu-
nicípio de Mamanguape, quando passa a ser feito pela PB-041, possui cerca de cinco mil
famílias em 18 povoados, incluídas seis aldeias indígenas da tribo Potiguara, pertencentes
a uma reserva indígena gerida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e situada na
margem esquerda do estuário da foz do Rio Mamanguape.
138 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1: Mapa de Localização da APA da Barra do Rio Mamanguape


Fonte: SILVA, 2021.

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A (APA) da Barra do Rio Mamanguape foi criada por meio do Decreto Presidencial
nº 924, de 10 de setembro de 1993, com um plano de manejo elaborado em 2014, os
principais objetivos para a criação foi de 1) garantir a conservação do hábitat do peixe-boi
marinho (Trichechus manatus manatus); 2) garantir a conservação de expressivos rema-
nescentes de manguezal, Mata Atlântica e dos recursos hídricos existentes; 3) proteger o
peixe-boi marinho e outras espécies ameaçadas de extinção, em âmbito regional; 4) melho-
rar a qualidade de vida das populações residentes, mediante orientação e disciplinamento
das atividades econômicas locais; e 5) fomentar o turismo ecológico e a educação ambiental
O principal atrativo turístico encontrado nessa unidade de conservação é o Projeto
Viva o Peixe-boi Marinho, que trabalha na preservação, conservação e manejo da espécie,
de acordo com a Fundação de Mamíferos Aquáticos (FMA) o projeto Viva o Peixe-Boi
Marinho:
Foi desenvolvido com referenciais de estratégias nacionais e internacionais para
a conservação dos sirênios e apresenta ações inovadoras que vão além do desenvol-
vimento de pesquisa e tecnologia, contemplando, também, as esferas da educação
ambiental, sustentabilidade, desenvolvimento comunitário, fomento ao turismo eco
pedagógico, políticas públicas, promoção da cidadania e inclusão social nas áreas de
ocorrência da espécie.  .

Além disso, a UC (Unidade de Conservação) é um dos pontos de desova da tartaruga-


de-pente, do cavalo-marinho e do caranguejo-uçá, tudo em um ambiente de praias
selvagens, recifes de corais e manguezais bem preservados.

139 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
A FMA é a responsável pela a conservação dos mamíferos marinhos, e se trata de
uma organização não governamental, sem fins lucrativos, que atua nacionalmente e visa
preservar o meio ambiente, promovendo a conservação dos mamíferos aquáticos e seus
habitat natural. Conforme a FMA o projeto Viva o Peixe-Boi Marinho:

Criada em 1989, a Fundação Mamíferos Aquáticos (FMA) é uma organização da


sociedade civil, sem fins lucrativos, que tem como missão promover a conservação dos
mamíferos aquáticos e seus habitats, visando a sustentabilidade socioambiental. Atua
nacionalmente com atividades que envolvem manejo e pesquisa científica, estudando
os efeitos antropogênicos nos recursos marinhos, e com parcerias e ações colaborativas
que promovem mudanças socioambientais. Neste contexto, também está inserida no
apoio à construção e execução de políticas públicas e marcos regulatórios.

O peixe-boi é um mamífero aquático, é um animal herbívoro que se alimenta


de algas, capim-agulha, folhas de mangue e outras plantas marinhas, se trata de um

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animal extremamente dócil, que pode atingir 4 metros de comprimento e pesar até 600
kg, podendo ser encontrado no Brasil nos rios e nos estuário das praias no litoral das
regiões Norte e Nordeste.
Desde o período da colonização essa espécie sofre pressão de caça, da gordura da
carne e da pele para o uso do seu couro, além de fatores antropogênicos, e de outros fa-
tores como os assoreamentos dos rios e manguezais, a poluição hídrica, a destruição dos
manguezais, o uso dos ambientes por embarcações motorizadas que causam ferimentos
no animal e atividades pesqueiras predatórias, entre outras patologias.
Essas causas contribuem com a devastação dos habitats, assim diminuindo os pa-
drões de distribuição da espécie, além do animal ter uma baixa taxa de reprodução
onde a fêmea tem apenas um só filhote a cada 3 anos. Dessa maneira, a espécie que
antes era distribuída do estado Espírito Santo ao estado do Amapá tivesse uma redu-
ção pratica da sua população, sendo classificado como o mamífero aquático que corre
maior risco de extinção do Brasil de acordo com (Chiarello et al., 2008, p. 816).
Contudo, como estratégia de conservação do peixe-boi marinho a APA da Barra de
Mamanguape incentiva o turismo de base comunitária voltado para o Ecoturismo. Uma
das atrações é a visita ao museu, que é administrado pelo ICMBio, e se localiza próximo
ao estuário, onde encontra-se uma exposição fotográfica (figura 2) “Viva o Peixe – Boi
Marinho”.
140 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2 Exposição do Projeto Peixe-Boi


Fonte: SILVA, 2021

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A exposição reúne imagens do animal no seu ambiente natural com suas caracterís-
ticas, curiosidades, riscos de ameaças, área de distribuição da espécie e ademais ossos de
outros animais como baleias e tartarugas (figura 3). Nota-se que o objetivo dessa atividade
é de sensibilizar o público sobre a importância da conservação do peixe-boi marinho e do
meio ambiente, por meio das fotos e dos conteúdos textuais. Nas imagens percebe-se que
cada fotografia contém uma legenda com informações sobre os aspectos ecológicos, bioló-
gicos, fatores de ameaças e os status de conservação do peixe-boi.

141 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 Ossos de animais aquáticos


Fonte: SILVA, 2021.

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Na visita ocorrida no dia 10 de outubro de 2021, constatou-se que na região é pos-
sível fazer passeios de barcos partindo da Barra de Mamanguape, com a observação dos
peixes-boi marinho em ambiente natural (figura 4), de forma responsável e dentro das
normas estabelecidas.
Os passeios são conduzidos por guias cadastrados na APA, além da possibilidade de
avistar os peixes bois em ambiente natural e no espaço de readaptação, o turista ainda pode
contemplar e a aproveitar as belezas naturais presentes no estuário, manguezal, praias e
piscinas naturais.
142 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4 Peixe-boi fêmea Zelinha descansando ao lado da embarcação


Fonte: SILVA, 2021

Análise dos parâmetros de conservação ambiental, práticas de


educação ambiental e os benefícios para as comunidades locais
receptoras na APA da Barra do Rio Mamanguape

O primeiro ponto analisado é a conservação ambiental, conservar o meio ambiente


significa o manter de forma sustentável, com equilíbrio entre o ser humano e a natureza, a

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conservação é importante e precisa existir, pois é impossível o ser humano não intervir em
nada na natureza, mas precisamos desenvolver de uma forma que a conserve mantendo
um bom senso, usando os recursos naturais de uma maneira mais consciente. Nesse aspec-
to, Endres (1998), menciona que:
A conservação ambiental é necessária não só como base para a prática do ecotu-
rismo, mas também como um objetivo a ser alcançado e cada vez mais disseminado
através do estabelecimento dessa atividade. Essa questão não se caracteriza como
imprescindível para o fomento da atividade, porém, aliam-se a ela as possibilidades
de se ampliar a conscientização ambientalista da sociedade, fator indispensável para
um desenvolvimento sustentável. (ENDRES, 1998, p. 47)

Dito isto, nota-se que na APA da Barra do Rio Mamanguape possui a difusão de uma
conscientização ambientalista; o benefício econômico direto para as populações que habi-
tam nessas áreas, com a sua participação na composição do planejamento das atividades
econômicas em suas comunidades, como pontuado por (Endres,1998). Fortalecendo o
pensamento da conservação ambiental, do uso sustentável e consciente visando o não
esgotamento dessa natureza, onde a própria comunidade é a fiscalizadora e protetora da-
quele ambiente.
Essa conservação só é possível por intermédio da educação ambiental, que é o segundo
parâmetro analisado desse estudo, sendo caracterizado como uma ferramenta que atua
ajudando as pessoas a entenderem que cada um é parte do meio ambiente e propondo
uma reflexão sobre a construção dos caminhos que envolvem os aspectos dessa nova

143 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
relação entre a humanidade e a natureza.
Como proposto pelo (Grupo de Trabalho de Educação Ambiental das Organizações
Não Governamentais no Fórum Global,1992) “a Educação Ambiental é considerada
um processo permanente pelo qual os indivíduos e a comunidade tomam consciência
do seu meio ambiente e adquirem conhecimento, os valores, as habilidades, as expe-
riências e a determinação que os tornam aptos a agir –individual ou coletivamente – e
resolver problemas ambientais.”
Com isso, o papel da educação ambiental é fazer com que os indivíduos adquiram
consciência crítica, levando as pessoas a compreender a natureza, e a importância da sua
preservação, e essas atitudes juntamente com a atividade turística fazem com que não ape-
nas as comunidades que estão inseridas nesse ambiente tenham consciência, mais através
da visitação por parte dos turistas outras pessoas com o contato direto com os problemas
ambientais como forma de causar “incômodo” estimule a mudança de atitude.
Na APA da Barra do Rio Mamanguape é possível conhecer vários ecossistemas: o man-
guezal com o estuário, a parte marinha, as formações recifais, fragmentos da mata atlântica,

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e com a visitação é possível sensibilizar as pessoas para a preservação desses ecossistemas
em virtude da sua importância, seja para a cadeia trófica, por causa da quantidade
matéria orgânica, como para manter a biodiversidade, pois muitas espécies utilizam
desse ecossistema para reprodução, esses ecossistemas contribuem para aspectos socioe-
conômicos, sendo fonte de renda para moradores que habitam a área da APA.
Na Revista A Bordo - 15ª Edição - Projeto Viva o Peixe-Boi Marinho é possível notar
práticas de educação ambiental (figura 5) que são oferecidas pelo o FMA. A atividade fez
parte das ações do Dia Mundial de Limpeza de Rios e Praias, dessa forma as crianças desde
cedo vão criando consciência ambiental e cuidando do ambiente em que vivem.
144 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 5. Ações de Educação Ambiental na APA


Fonte: Revista A Bordo - 15ª Edição 4

Apesar dessas atividades, de acordo com o plano de manejo (2014) elaborado pelo
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), existem alguns impactos na
APA como o: turismo predatório/desordenado; especulação imobiliária/empreendimentos
hoteleiros; carcinicultura/pesca predatória; expansão da cultura canavieira/desmatamento;

Disponível em: https://issuu.com/fundacaomamiferosaquaticos/docs/revista_a_bordo_-_15__ed_-_issuu


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uso de madeira para subsistência. Desse modo, faz necessário focar na participação da
comunidade local como forma de assegurar a conservação e o manejo efetivo dos recur-
sos, utilizando a expertise dos usuários locais e a melhoria na sustentabilidade dos meios
de vida locais.
Dessa maneira, os benefícios para as comunidades receptoras é o último ponto de
análise, que é caracterizado por benefícios econômicos: emprego e renda; na área de es-
tudo observa-se que a uma geração de emprego, porém de forma inicial, pois alguns aca-
bam se inserindo na atividade turística como barqueiro ou até mesmo guia turístico, há
também na questão do comércio do artesanato que gera renda pra determinadas famílias
e aquela minoria que possuem de maior capital e investe em um espaço de hospedagem
para receber os turistas e acaba contratando mão de obra local.
Além desses benefícios econômicos, também tem o benefício ao meio ambiente da
localidade, quando é estimulado ações de bases comunitárias voltadas para o desen-
volvimento do turismo de observação dos peixes-boi marinhos faz parte da estratégia
de conservação da espécie. A partir do envolvimento com esta atividade, pescadores e
moradores locais tornam-se mais engajados com a estratégia de conservação da espécie e
do ecossistemas e a visita de turistas interessados pelo tema na região possibilitar ampliar
a sensibilização sobre a conservação da espécie e dos ecossistemas presentes na APA.
Assim a soma da tríade (turista, moradores locais e natureza) irá permitir a realização de
um turismo ecológico, onde cada componente dessa tríade agir de forma participativa,
a economia irá circular e toda comunidade será beneficiada.
Contudo, concordamos com o estudo de Cruz (2015, p. 6) que “constatou-se o

145 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
potencial da comunidade para a construção participativa do ecoturismo de base comu-
nitária no que se refere as potencialidades turísticas, todavia quanto ao desenvolvimento
de fato, ainda existe muito a ser articulado, não só pelo o interesse da comunidade local,
mas do apoio de entidades governamentais, para subsidiar a construção”
De modo geral, a APA necessita de um maior investimento para a pratica da ativi-
dade turística, não se limitando apenas ao projeto peixe-boi que atualmente é o princi-
pal foco do lugar, mais também aproveitar dos vários ecossistemas que essa localidade
oferece.
A APA necessita de algumas melhorias para potencializar essa atividade, como
a maior divulgação, disponibilizar uma melhor estrutura tanto nas vias de acesso,
por se tratar de um área de canavial que contém poucas placas de sinalização, e até
mesmo de uma melhor infraestrutura em relação a hospedagem, e articulação entre
as entidades governamentais, entre outras procedimentos a serem tomados, assim
potencializando esse lugar rico em belezas naturais e que precisa ser conhecido por
mais pessoas.

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Conclusão

Em princípio, observa-se um potencial para o turismo de base comunitária, mesmo


que um pouco tímido nessa região, visto que nessa Unidade de Conservação possui di-
versos atrativos turísticos culturais e naturais, que são promovidos pela comunidade de
pescadores e marisqueiros e de projetos de ação governamental com o Projeto Viva o Peixe
boi que atrai diversos visitantes.
A atividade turística se faz importante na comunidade apesar de estar ainda em fase
inicial, o turismo de forma sustentável é uma proposta para a localidade pois contribuir
com a natureza como um todo para a preservação do meio ambiente, servindo como um
grande apoio à comunidade local, onde os moradores realizam diversas atividades geram
trabalhos renumerados e envolvem desde os artesãos até os guias que conduzem os turistas
no passeio.
Não podendo deixar de ressaltar o trabalho das entidades presentes na APA a FMA e
ICMBio que além da proteção do peixe-boi e do ecossistemas, também se dedica a educar
a comunidade, indo em escolas e até mesmo nas casas para garantir a boa gestão ambiental
da área e conscientizar a população sobre a importância do projeto e do cuidado com a
natureza, e se essa atividade turística ganhar mais força nos moldes do ecoturismo, embora
seja uma atividade econômica tida como pouco impactante do ponto de vista ecológico,
deve ser considerada e planejada com mais cuidado pelas empresas e organizações que dela
fazem uso ou se beneficiam diretamente.
146 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Resumo

O Ecoturismo se caracteriza por ser uma atividade turística que se desenvolve em


áreas naturais, buscando beneficiar o meio ambiente e as comunidades visitadas, pro-
movendo aprendizado, respeito e consciência sobre os aspectos ambientais e culturais.
Sua prática é comum em unidades de conservação, a exemplo da Área de Proteção
Ambiental (APA) da Barra do Rio Mamanguape, localizada no município de Rio Tinto,
litoral norte do Estado da Paraíba. Essa APA foi criada em 1993 e possuí como princi-
pal atrativo turístico, o Projeto Viva o Peixe-boi Marinho, que trabalha na preservação,
conservação e manejo dos peixes-boi no seu habitat natural. Nesse sentido, este estudo
objetiva realizar uma análise crítica do desenvolvimento do Ecoturismo nesta unidade
de conservação. Para a construção da base teórica utilizou-se do aporte de alguns autores
como Ceballos-Lascurain (1987;1990), Weaner (2008) e Cruz (2015), além das nor-
mativas do Ministério do Turismo. Foi realizada uma visita in loco para levantamento
das atividades turísticas praticadas. Desse modo, foi possível fazer uma caracterização da

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área de estudo e verificar alguns parâmetros como a conservação ambiental, as práticas
de educação ambiental e os benefícios para as comunidades locais receptoras. Foram
verificados a existência de dois campings, duas pousadas e opções de casas para aluguel
por temporada, e de apenas dois restaurantes. Tem opções de passeio de barco pelo rio
Mamanguape, trilhas ecológicas, passeio de Bugge, caiaques, pedaladas e luau. Conclui-
se que a atividade turística é importante na comunidade, apesar de estar ainda em fase
inicial. O turismo sustentável é uma proposta para a localidade pois contribui com a
natureza como um todo, desde a preservação do meio ambiente até o envolvimento da
comunidade local. Os moradores realizam diversas atividades relacionadas ao turismo,
gerando trabalhos renumerados, envolvendo desde os artesãos até os guias que condu-
zem os turistas no passeio. No contexto atual, o turismo desenvolvido na APA vem con-
tribuindo para geração de emprego e renda, conscientização e sensibilização ambiental
dos visitantes, e a própria preservação da natureza local.

Referências Bibliográficas

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CEBALLOS-LASCURAIN, H. La Ruta Maya: Um circuito de turismo ecocultural transfronteiri-
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WEAVER, D. (2008). Ecotourim Milton: John Wiley & Sons. 2008,2 ° Edição
148 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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A Gestão da Comunicação Digital como
fator promocional do Enoturismo e dos Ter-
ritórios Vinhateiros

Catarina Isabel Dourado Ferreira Grilo1

“Each destination has its unique characteristic and the purpose


of the research is to help identify future opportunities”
(WTTC: World Travel & Tourism Council, 2018)

Introdução

O fenómeno do turismo e a sua crescente evolução têm proporcionado impactos na


forma como comunicamos, viajamos, gerimos e partilhamos as experiências turísticas, que
sucessivamente levam a mudanças económicas, governamentais, de segurança e de saúde,
que levantam inúmeras questões no que concerne ao formato de gestão da comunicação

149 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
nas empresas. A exploração da gestão da comunicação como ferramenta de estratégia na
área do turismo, promove não só uma reflexão sobre os conteúdos que são difundidos nos
meios digitais como o surgimento de novos desafios comunicativos na promoção dos ser-
viços. O incremento do turismo a nível mundial, vantajoso para os promotores turísticos,
é promovido não só pelo uso da Internet como pela melhor compreensão da utilização da
comunicação digital. Neste artigo são descritas algumas das ferramentas digitais de comu-
nicação promovidas pelo Turismo de Portugal, com o intuito de promover o enoturismo
e os territórios vinhateiros.

Comunicar no Enoturismo

A arte de comunicar assume-se como uma vantagem competitiva em evolução


constante e altamente concorrencial. A necessidade que os seres humanos têm de

1
Doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior
e-mail: catarinaferreiragrilo@gmail.com

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comunicar, tem vindo a aumentar mesmo nos momentos em que não têm nada de
“relevante” para transmitir ou exprimir, o que acontece também com as organizações
(Rego, 2007). A comunicação assume-se como uma necessidade inerente a qualquer
ser humano, ideia realçada por Luhmann (1992:39), que afirma que não haveriam
relações humanas se a mesma não existisse. Estas exigências comunicativas sucedem
porque “a comunicação é inseparável dos comportamentos dos seres humanos, (…)
pode servir para comandar, para condicionar, para persuadir ou para motivar a fazer
algo” (Castro, 2002:25).
A gestão da comunicação é essencial para a obtenção de bons resultados, como fator
fundamental e facilitador da interatividade. A comunicação terá de ser sempre utilizada
da forma mais adequada, tendo em atenção todos os fatores internos e externos da sua
envolvente, por forma a poder influenciar os padrões de produção e a identificação das
diferentes estratégias de cada organização. O planeamento em comunicação está associado
à necessidade de estabelecer uma estratégia bem definida, constituída por um conjunto de
ações estruturadas, que possibilitam alcançar os objetivos pré-definidos, nomeadamente
no que diz respeito a todos os públicos com os quais a organização se relaciona e dos quais
depende o seu sucesso.
As crescentes evoluções da comunicação digital têm proporcionado impactos profun-
dos nas organizações e nos seus públicos, quer a nível interno como externo. Os impactos
das novas tecnologias refletem-se nos processos comunicativos e promovem a rapidez e
a eficiência na comunicação (Terciotti & Macarenco, 2015:17). Neste sentido, a comu-
nicação no turismo é encarada como um grande desafio para os promotores e para os
150 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

territórios.
O Turismo desde o ponto de vista de Wainberg (2003:45), “é um fenómeno especial
da comunicação humana”, transformando uma realidade desconhecida, nunca antes ex-
plorada, num produto desejado. A utilização de uma boa planificação da comunicação “na
complexidade do produto turístico pode conduzir a empresa ao sucesso” (Ruschmann,
2003:182). Com a facilidade de acesso às plataformas digitais, a decisão de aquisição de
um produto turístico está diretamente interligada com a imagem que é difundida digital-
mente. As novas tecnologias vieram estimular as economias, possibilitando a criação de
novas tendências comunicativas. Para Thompson (1995:149), a instantaneidade da troca
de mensagens possibilita e facilita a partilha de informações sobre os destinos, esbatendo as
barreiras geográficas e tornando todos os locais acessíveis, promovendo o turismo através
da utilização da comunicação digital.
Neste mundo onde as tecnologias invadiram o nosso quotidiano, através da internet
e das redes sociais, importa refletir sobre a relevância da comunicação digital na gestão
da comunicação em turismo. As tecnologias da informação e comunicação promovem

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as inovações turísticas e influenciam a indústria do turismo, alterando as formas como
atualmente enfrentamos o nosso dia-a-dia, como passamos os nossos momentos de lazer,
de diversão e as nossas férias (MacKay & Vogt, 2012)
As experiências turísticas iniciam-se virtualmente através da internet, passando
seguramente pela pesquisa nos websites e nas redes sociais, com o intuito de visuali-
zar fotos e comentários realizados por visitantes anteriores. A crescente influência das
redes sociais incrementa a partilha de experiências (Hall & Mitchell, 2002; Kozinets,
2002) muitas vezes em tempo real, contribuindo de forma direta na seleção dos locais
a visitar.
“A crescente popularidade dos sites como YouTube e Facebook demonstra como
a Internet está a mudar. Os usuários não estão simplesmente a descarregar dados,
cada vez mais, fazem upload e partilha de conteúdo entre si, levando a uma pro-
liferação de redes sociais e outras informações geradas pelos usuários dos sites de
conteúdo” (Harris & Rae, 2009).

A internet é a principal fonte de recolha de informações quando estamos a planear


uma viagem, demostrando que muitos turistas estão dependentes da comunicação
digital, vantajosa para os promotores turísticos, no que diz respeito à preparação de
uma deslocação (Xiang et al., 2015), provando que os turistas utilizam a internet para
pesquisar acerca do destino que desejam visitar e a indústria turística faz uso dessa
tecnologia para oferecer a melhor informação ao turista. A empresa de consultadoria
empresarial Deloitte Touche Tohmatsu Limited, refere no seu relatório em 2017, que

151 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
as empresas devem concentrar-se em quatro catalisadores de mudança: a economia; a
mentalidade do consumidor; as possibilidades tecnológicas e as plataformas (Deloitte
Development LLC, 2017).
O Turismo de Portugal, sendo a Autoridade Turística Nacional integrada no Ministério
da Economia e Transição Digital (Turismo de Portugal, s/ d-a), é o responsável pela pro-
moção, valorização e sustentabilidade da atividade turística. Este organismo agrega numa
única entidade todas as competências institucionais relativas à dinamização do turismo,
desde a oferta à procura de produtos turísticos.
As estratégias de comunicação e de promoção dos produtos turísticos foram sendo al-
teradas ao longo dos anos. Em 2013, O “Destino Portugal” sofreu uma das maiores altera-
ções com a introdução da comunicação e marketing digitais, considerando esta abordagem
mais eficaz na promoção de um destino turístico, do que as tradicionais campanhas offline.
Foram realizadas mais de 400 campanhas online, adaptadas às necessidades específicas de
cada mercado (Turismo de Portugal, 2014). Adicionalmente, houve uma mudança na
promoção das plataformas online, por se ter conhecimento que é nessas plataformas que

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as viagens são selecionadas e adquiridas. Desta forma, aproximou o reforço da notoriedade
do “Destino Portugal” do apoio à comercialização necessário para o aumento efetivo das
receitas turísticas. Esta utilização da comunicação digital permitiu acompanhar os turistas
nas diversas fases de escolha dos produtos turísticos.
Em 2019, o Turismo de Portugal é distinguido pelo terceiro ano consecutivo pelo
World Travel Awards. Os prémios World Travel Awards fomentam o reconhecimento do
trabalho desenvolvido na indústria turística à escala global, estimulando a competitivida-
de e qualidade no Turismo. A seleção dos nomeados para o concurso é realizada à escala
mundial por milhares de profissionais do sector. Estes prémios começaram a ser atribuídos
em 1993.
“O facto de ser o terceiro ano consecutivo que a Autoridade Turística Nacional
é distinguida como a < Melhor do Mundo >, não é mais do que o reconhecimento
do sucesso da Estratégia Turismo 2027 e do compromisso deste organismo com a
persecução dos objetivos por ela definidos. Acima de tudo, estão de parabéns todos
os colaboradores do Turismo de Portugal por saberem liderar o turismo do futuro e
mostrarem-se à altura deste desafio que é afirmar Portugal como destino turístico de
excelência” afirmações de Luís Araújo, Presidente do Turismo de Portugal. (Turismo
de Portugal, 2019).

O Turismo de Portugal, através do website “Visit Portugal” (Turismo de Portugal,


2013) e das Redes Sociais assume que são o meio mais privilegiados de comunica-
ção pelos turistas que visitam Portugal, possuindo contas nas plataformas: Facebook
152 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(Turismo de Portugal, s/ d), Twitter (Turismo de Portugal, 2009), Youtube (Turismo


de Portugal, 2008), Instagram (Turismo de Portugal, 2018), Pinterest (Turismo de
Portugal, s/ d), LinkedIn (Turismo de Portugal, s/ d) , tendo também uma App
(Turismo de Portugal, 2017b). No caso das Redes Sociais, os números de seguido-
res têm aumentado gradualmente, desde 2013. Em 2022, a página Facebook possuí
1475360 seguidores, no Instagram 710 mil seguidores e no Twitter 1168 mil seguido-
res (Turismo de Portugal, 2022).
Perante estes novos desafios, o Turismo de Portugal tem desenvolvido inúmeras cam-
panhas de promoção da comunicação digital, das quais destacamos as seguintes:
1 - Programa BEST (Business Education for Smart Tourism) Live Online Training:
Programa desenvolvido pelo Turismo de Portugal em conjunto com a Confederação
do Turismo de Portugal e sete associações do setor. A primeira edição do Programa
BEST decorreu entre dezembro de 2018 e junho de 2019 e envolveu 1.200 partici-
pantes. A segunda edição teve um conjunto de 48 ações de formação e de qualificação,
a nível nacional, com temáticas: o digital, o marketing, os modelos de financiamento,

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a gestão financeira e operacional e os recursos humanos. Teve como objetivo principal
promover o desenvolvimento de competências estratégicas e de gestão das empresas
turísticas assim como incentivar a sua preparação relativamente às tendências dos
mercados globais.

Figura 1. Programa BEST


Fonte: (Turismo de Portugal, 2020a).

2 - #HeritageToShare: Pretendeu mobilizar os portugueses e os estrangeiros na cocria-


ção de conteúdos sobre o destino Portugal, reforçando o envolvimento das pessoas com
o país e criando o movimento #HeritageToShare. O objetivo era que as pessoas criassem

153 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
conteúdos, partilhando as suas histórias nas redes sociais e, nessa medida, o seu património
vivido através de fotografias estivesse relacionado com os sítios classificados pela UNESCO
como Património da Humanidade. A abordagem conceptual da campanha esteve ancorada
em plataformas digitais, com destaque para o Instagram, e incorporou funcionalidades
inovadoras através do uso do som que proporcionava um ambiente intimista e emocional
às histórias sobre o nosso Património. A campanha teve início em dezembro de 2019, pro-
longou-se durante 2020, tendo um investimento total de cerca de 200 mil euros. Passando
pela Universidade de Coimbra, a Arte Rupestre do Vale do Côa, a Dieta Mediterrânica, a
Paisagem Vínica da Ilha do Pico, o Mosteiro da Batalha, a Paisagem Cultural de Sintra, o
Centro Histórico de Évora, a Floresta Laurissilva da Madeira, o Alto Douro Vinhateiro até
aos Caretos de Podence.

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Figura 2. Campanha de Promoção #HeritageToShare
Fonte: (Turismo de Portugal, 2019a).

3 - #LerPortugal, #CantSkipHope: Esta campanha foi lançada a 20 de março


de 2020, inserida no facto de estarmos a passar um período de pandemia devido ao
COVID19. Durante este tempo de confinamento, o Turismo de Portugal convidava
a percorrer cidades, aldeias, mares, rios e montanhas, através das histórias e das pala-
vras dos escritores e dos poetas. Com esta campanha, o Turismo de Portugal pretendeu
continuar a estar presente e apoiar as pessoas / turistas, oferecendo motivos de sonho e
de esperança num novo tempo, através da comunicação digital, afirmando que agora,
154 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

mais do que nunca, os destinos turísticos são a inspiração para viajarmos por Portugal,
mesmo estando em casa.

Figura 3. Campanha de Promoção #LerPortugal


Fonte:(Turismo de Portugal, 2020c).

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Figura 4. Campanha de Promoção #CantSkipHope
Fonte:(Clube Criativos Portugal, 2019).

O Enoturismo é o segmento mais próspero na procura turística. Está vinculado às tradi-


ções das comunidades rurais, podendo gerar receita e emprego nas regiões mais desfavoreci-
das e em declínio. A Carta Europeia de Enoturismo (Europeia, 2006) define o enoturismo
como “todas as atividades e recursos turísticos, de lazer e de tempos livres, relacionados com
as culturas, materiais e imateriais, do vinho e da gastronomia autóctone dos seus territórios”.
O desenvolvimento do enoturismo cria muitas oportunidades de geração de receitas ao

155 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
nível do artesanato, do turismo de natureza, da gastronomia e do agroturismo (UNWTO,
2018), bem como os “prémios alcançados pelo vinhos portugueses que colocam Portugal
entre os melhores do mundo, sendo um cartão de visita para potenciar o Enoturismo”
(Turismo de Portugal, 2017:48), neste sentido a oferta enoturística em Portugal tem-se
qualificado por forma a dar resposta a uma procura cada vez mais exigente.
A atividade promocional do enoturismo está ancorada à preservação e valorização eco-
nómica do património cultural e natural de Portugal, perante este fenómeno os territórios
e os gestores turísticos possuem novos desafios comunicativos na promoção dos seus pro-
dutos e serviços. Do ponto de vista de Scott (2008) as novas regras de posicionamento do
marketing enunciam que as empresas devem fomentar autenticidade na disponibilização
de bons conteúdos e no processo de compra de produtos e/ou serviços online.
Portugal possui 14 regiões vitivinícolas e em todas elas encontramos locais convidati-
vos para conhecer as particularidades da gastronomia e dos vinhos. O tema do Enoturismo
em Portugal está a ser fortemente potencializado pelo Turismo de Portugal (Turismo de
Portugal, 2019b), até ao ano de 2027. Através das seguintes campanhas:

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1 – Estratégias de Turismo 2027 (ET27) - Liderar o Turismo do Futuro em Portugal.
Assume-se como uma estratégia aberta e participativa com o objetivo de auscultar quem
comercializa e comunica a oferta turística portuguesa. Possui como principais objetivos
(Turismo de Portugal, 2017a): Proporcionar um quadro referencial estratégico a 10 anos
para o turismo nacional; Assegurar estabilidade e a assunção de compromissos quanto às
opções estratégicas para o turismo nacional; Promover uma integração das políticas setoriais; 
Gerar uma contínua articulação entre os vários agentes do Turismo e Agir com sentido estra-
tégico no presente e no curto/médio prazo. Neste sentido identificou cinco eixos principais:
156 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 5. Eixos Estratégicos para o Turismo de Portugal.


Fonte: (Turismo de Portugal, 2017a).

2 - “Wine pairs with Portugal” é o mote da campanha de promoção do Enoturismo


que o Turismo de Portugal está a lançar nos mercados do Reino Unido, Espanha, França,
EUA, Brasil, Alemanha e Canadá. Com um investimento de 500 mil euros, a campanha
é exclusiva a meios digitais e prolonga-se até ao final de 2027. Esta é uma das iniciativas
propostas previstas no Plano de Ação para o Enoturismo até 2027, que pretende valorizar
o destino Portugal, numa lógica de cruzamento entre setores, contribuindo para a coesão
e sustentabilidade da atividade turística com o objetivo de posicionar o país como destino
de enoturismo de referência mundial, através dos seguintes filmes promocionais: “Wine
pairs with Adventure”, “Wine pairs with Art”, “Wine pairs with Discovery”, “Wine pairs
with Music”, “Wine pairs with Wellness” (Turismo de Portugal, 2020b). Desde que o pro-
grama foi lançado, em março de 2019, foram já aprovados mais de 60 milhões de euros
de investimento, em 38 projetos de desenvolvimento da oferta, em diferentes vertentes

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 156 20/06/2023 16:46:08


como hotéis temáticos, rotas, enotecas, museus, eventos, adegas, quintas e solares, maio-
ritariamente localizados nas regiões Porto e Norte, Centro e Alentejo. Neste âmbito o
projeto “Wine and Senses”, está a decorrer, promovendo diferentes projetos de cooperação
transfronteiriça, com o propósito de reforçar as identidades locais, o património cultural
e produtos turísticos comuns, de que são exemplo: Discover Duero Douro; Fortificações
Fronteiriças: Promoção do Turismo Cultural Transfronteiriço; EUROACE: Alentejo –
Centro – Extremadura; Eurorregión Destino Turístico Inteligente (EDIT) e a criação de
um plataforma digital de promoção do turismo rural em Espanha e Portugal (SEGITUR).

Figura 6. Campanha de Promoção Wine pairs with Portugal.


Fonte: (Turismo de Portugal, 2020b).

157 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
3 – Programa de Ação para o Enoturismo: Portuguese Wine Tourism (inserido na
Estratégia de Turismo 2027).

Figura 7. Objetivos do Programa de Ação para o Enoturismo.


Fonte: (Turismo de Portugal, 2019b).

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A Estratégia de Turismo 2027 (ET27) - Liderar o Turismo do Futuro em Portugal e o
Plano de Ação para o Enoturismo englobam os objetivos da Comissão Europeia, definin-
do diversos domínios prioritários no desenvolvimento do Turismo. Nestas estratégias são
enunciadas algumas tendências internacionais de turismo com impacto regional, como
por exemplo a mudança do uso produtivo do espaço rural para o uso recreativo através dos
seus recursos culturais, naturais e ambientais.
A atividade promocional do Enoturismo, estará ancorada na preservação e valorização
económica do património cultural e natural, através da gestão da comunicação digital, em
consonância com as previsões apresentadas nos relatórios do World Travel & Tourism Council
(WTTC), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e
Organização Mundial de Turismo (OMT) onde são identificados claramente os benefícios
de utilização: big data, Internet das Coisas (IoT), machine learning, inteligência artificial e
blockchain para a gestão das empresas e dos destinos turísticos (Guerreiro, 2019).

Considerações Finais

Todos estes exemplos refletem a importância da Comunicação Digital no Turismo


assumindo-se como uma realidade irreversível, possuindo imensos benefícios relativa-
mente à seleção e determinação dos locais a visitar. Desta forma, tornamo-nos cada vez
mais inseridos num único ecossistema que Marshall McLuhan apelidou de “aldeia global”.
Com a realização de uma gestão e planeamento estratégico destas plataformas digitais
promovem-se os destinos turísticos e incentiva-se a promoção dos destinos. Os turistas do
158 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

futuro serão cada vez mais seletivos, procurando as viagens que mais se adequam às suas
expectativas através das ferramentas digitais.
O Turismo de Portugal tem vindo a acompanhar as tendências internacionais com a
dinamização e planeamento da sua comunicação digital, através das Redes Sociais com
um aumento significativo de seguidores e com a dinamização de inúmeras iniciativas,
tais como: Programa BEST 2020; #HeritageToShare; #LerPortugal; #CantSkipHope;
Wine pairs with Portugal; Estratégias de Turismo 2027 e o Programa de Ação para o
Enoturismo. O Turismo vai ter que continuar a apostar em tecnologias digitais que
melhorem o seu crescimento, permitindo ter uma visão mais digital dos negócios e
capacitar os promotores turísticos, com a previsão que o caminho para o sucesso passa
incondicionalmente pelo online. Para pesquisas futuras, seria útil saber por exemplo:
Que tipo de informações procuram os turistas na internet, sobre os locais que preten-
dem visitar? A procura da informação é feita nos websites e redes sociais governamen-
tais, semelhantes ao Turismo de Portugal, ou procuram informações diretamente nos
promotores turísticos? A análise de este tipo de estudos seria com certeza valiosa para os

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 158 20/06/2023 16:46:08


promotores turísticos, podendo obter informações e adaptarem-se às novas tendências
da comunicação digital.

Resumo

As novas tecnologias digitais vieram estimular as economias, possibilitando a criação de novas


tendências comunicativas. A instantaneidade da troca de mensagens possibilita a partilha de infor-
mações sobre os destinos turísticos, esbatendo as barreiras geográficas e tornando todos os locais
acessíveis, alterando assim os processos comunicativos. Perante este fenómeno, os territórios e os
gestores turísticos possuem novos desafios comunicativos na promoção dos seus produtos e servi-
ços. A exploração da temática da gestão da comunicação como ferramenta de estratégica na área do
turismo, promove uma reflexão sobre os conteúdos que são difundidos nos meios digitais permitin-
do uma melhor compreensão do nível da utilização da comunicação digital.
O Enoturismo é o segmento mais próspero na procura turística, estando vinculado às tradições
das comunidades rurais, criando múltiplas oportunidades de geração de receitas ao nível de emprego,
do artesanato, do turismo de natureza, da gastronomia e do agroturismo.
O tema do Enoturismo em Portugal está a ser fortemente potencializado pelo Turismo de
Portugal até ao ano de 2027, que se encontra sob a tutela do Ministério da Economia, com o intui-
to de promover as regiões vitivinícolas e os seus produtos endógenos.
Nesta comunicação são descritas algumas das ferramentas comunicativas digitais promovidas
Turismo de Portugal, relativamente à promoção do Enoturismo e dos Territórios Vinhateiros. A ati-
vidade promocional está ancorada na preservação e valorização económica do património cultural
e natural de Portugal, através da gestão da comunicação digital por parte do Turismo de Portugal.
Deste modo, está em consonância com as orientações apresentadas nos relatórios do World Travel
& Tourism Council (WTTC), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico
(OCDE) e da Organização Mundial de Turismo onde foram identificados claramente os benefícios

159 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de utilização dos canais digitais na gestão e promoção dos destinos turísticos.
Até 2027 estão em decurso duas estratégias: a Estratégias de Turismo 2027 (ET27) - Liderar o
Turismo do Futuro em Portugal e o Plano de Ação para o Enoturismo. Nestes casos, são enuncia-
das algumas tendências internacionais de turismo com impacto regional, onde são referenciados os
produtos endógenos como ativos, diferenciadores e qualificadores dos territórios.
Sabendo que os turistas do futuro serão cada vez mais seletivos, procurando as viagens que
mais se adequam às suas expectativas, o enoturismo terá que apostar em tecnologias digitais que
melhorem o seu desenvolvimento e crescimento.
Palavras-Chave: Comunicação Digital, Turismo, Enoturismo

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161 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
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II. AGRICULTURA
II. II

E DESENVOLVIMENTO RURAL

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A agricultura urbana e periurbana e os cir-
cuitos curtos de comercialização de ali-
mentos em Presidente Prudente – SP

Antonio Nivaldo Hespanhol1


Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol2

Introdução

A agricultura urbana e periurbana (AUP) costuma ser praticada em cidades de diferentes


portes no Brasil e no mundo. Os produtos por ela gerados são comercializados, em geral, por
intermédio dos chamados circuitos curtos de comercialização de alimentos (CCCA).
A pesquisa, em fase de desenvolvimento, tem como principal objetivo analisar a
inserção da AUP nos CCCA em Presidente Prudente, uma cidade de médio porte si-
tuada no oeste do estado de São Paulo, Brasil. Presidente Prudente é sede da Região
Administrativa homônima, constituída por 53 municípios, como mostrado na Figura 1.

165 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1. Localização de Presidente Prudente - SP

1
Professor da Unesp, Campus de Presidente Prudente. E-mail: nivaldo.hespanhol@unesp.br
2
Professora da Unesp, Campus de Presidente Prudente. E-mail: rosangela.hespanhol@unesp.br

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A AUP é expressiva e diversificada em Presidente Prudente, e os seus produtos desti-
nam-se tanto ao autoconsumo dos produtores e de suas famílias quanto à comercialização.
O estudo está sendo conduzido com base na caracterização e entendimento da dinâ-
mica de participação da AUP no abastecimento dos CCCA, englobando as vendas diretas
(face a face) e indiretas, considerada, neste caso, a intermediação realizada por um único
agente entre o produtor e o consumidor final.
Até o momento, foram realizadas revisão bibliográfica e entrevistas com técnicos e
dirigentes vinculados à Secretaria de Agricultura e Abastecimento de Presidente Prudente,
bem como aplicados formulários a 13 agricultores urbanos e periurbanos que comercia-
lizam a maior parte do que produzem. Nas fases subsequentes serão realizadas entrevistas
com feirantes, vendedores em domicílio, gerentes de supermercados de bairros, proprietá-
rios de sacolões e de bancas instaladas em vias públicas.
A pesquisa de campo foi realizada no ano de 2019, antes da pandemia da COVID-
19. As restrições ao funcionamento dos estabelecimentos comerciais e de serviços e as
demais medidas de distanciamento físico das pessoas adotadas para conter a dissemina-
ção do vírus afetaram duramente os agricultores familiares em geral, inclusive os agricul-
tores urbanos e periurbanos, que tiveram grande dificuldade para comercializar os seus
produtos e obter renda. A pandemia evidenciou as fragilidades dos sistemas alimentares
atuais, marcados pelos circuitos longos de comercialização – ou cadeias longas – nos
quais os alimentos percorrem grandes distâncias antes de chegarem à mesa do consumi-
dor (Fao et al., 2021).
Os produtos cultivados pela AUP são comercializados por intermédio de diferentes
166 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

canais, mas os CCCA apresentam grande potencial de expansão, ainda que enfrentem
dificuldades para se consolidar.

Agricultura Urbana e Periurbana e circuitos curtos de comercialização

A agricultura urbana e periurbana (AUP) pode ser apreendida, de forma geral, como
uma modalidade de produção agropecuária realizada no interior das cidades (espaço in-
traurbano) e no seu entorno (espaço periurbano). Ela é praticada desde o surgimento
das primeiras aglomerações humanas, conforme evidenciam Mougeot (2000), Madaleno
(2001), Roose (2003) e Zaar (2011), e ganhou ainda mais relevância a partir do final do
século passado, com o agravamento da crise econômica em vários países.
Madaleno (2001) salienta que, na atualidade, a AUP está cada vez mais integrada
à gestão urbana, particularmente nos países europeus e da América do Norte, podendo
se constituir numa importante forma de organizar a produção de alimentos, com vistas
a diminuir a pobreza por meio tanto da disponibilização de alimentos frescos, quanto

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 166 20/06/2023 16:46:09


da geração de ocupação e renda, conforme demonstrado por Azevedo et al. (2018) e
Carmo (2021).
No Brasil, a AUP é caracterizada pela coexistência de uma grande diversidade de
formas, de sistemas produtivos e de finalidades, conforme evidenciado por Santandreu
e Lovo (2007) em estudo sobre o tema, que abrangeu 11 regiões metropolitanas (Belo
Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Goiânia, Belém,
Fortaleza, Recife e Salvador).
A maior proximidade do mercado consumidor, a disponibilidade de infraestruturas
de acesso e a concentração territorial de equipamentos de distribuição e armazenagem são
fatores que favorecem a AUP (Silva, 2009). Além desses aspectos locacionais positivos, a
AUP também tem sido beneficiada pela preferência dos consumidores mais exigentes que,
preocupados com a qualidade dos produtos que adquirem, preferem comprar alimentos
frescos comercializados em CCCA.
De acordo com Barrionuevo et al. (2020), as diferentes formas de CCCA existentes
na atualidade possuem três características em comum, quais sejam: a relação de confiança
entre agricultores e consumidores; a maior proximidade cultural e social; e o número re-
duzido de intermediários.
Os CCCA possibilitam uma maior conexão entre consumidores e produtores, visto que
“propõem novos princípios de troca, relocalização dos alimentos, retomam valores, tradições
e novos tipos de relações entre produtores e consumidores” (Darolt et al., 2016, p. 2). A
reconexão entre esses dois agentes tem possibilitado, aos consumidores, o acesso a alimentos
confiáveis e, aos produtores, uma maior autonomia na produção e na venda dos seus produ-

167 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
tos, conforme destacam Goodman (2002) e Cassol (2013), o que favorece o fortalecimento
das chamadas Redes Alimentares Alternativas (RAA), como o fair trade (comércio justo) e as
Community Supported Agriculture - CSA (Agricultura Apoiada pela Comunidade).
Em países mais avançados, há várias iniciativas nessa direção, tais como as Associations
pour le Maintien d’une Agriculture Paysanne - AMAPs (Associações para Manutenção de
uma Agricultura Camponesa), na França; os Gruppi di Acquisto Solidale - GAS (Grupos
de Compra Solidária), na Itália; e os Grupos Autogestionados de Konsumo - GAKs (Grupos
Autogestionados de Consumo), na Espanha, os quais vêm ganhando importância no
abastecimento alimentar (Renting, et al. 2012; Abreu et al., 2019).
Belik e Cunha (2018, p. 71) salientam que

O acesso às informações e o empoderamento do consumidor se refletiu no inte-


resse em conhecer aspectos do processo produtivo para escolher produtos produzidos,
elaborados, manipulados com segurança, pela ausência de contaminantes químicos e
biológicos, ou mesmo pela escolha das técnicas de produção, como os orgânicos.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 167 20/06/2023 16:46:09


Diante do empoderamento de parte dos consumidores, os produtos locais de maior
valor nutricional cultivados em sistemas de produção diferenciados, notadamente orgâni-
cos e agroecológicos, ganharam importância.
Para Conterato et al. (2011, p. 84),

[...] um conjunto de mercados emergentes constituiu-se a partir do âmbito local


e da relação direta entre compradores e vendedores na lógica de cadeias curtas com
capacidade de ressocializar e reespacializar os alimentos. São mercados baseados em
nichos ou especificidades em que reconfiguram politicamente o papel do lugar e das
relações de proximidade entre consumidores e produtores.

Os CCCA destacam-se no contexto das RAAs e têm ganhado relevância em decorrência de


sua potencialidade em reconectar consumidores e produtores e de permitir o conhecimento do
local e do sistema de produção utilizados para cultivar os alimentos (Marsden, 2000).
As modalidades de CCCA são diversas, dentre as quais se destacam a venda direta
(relação face a face) nos locais de produção e em feiras de produtores, a entrega pro-
gramada de cestas de alimentos, as compras solidárias e o atendimento a pedidos de
consumidores por meio de telefone e/ou aplicativos de internet. A venda de alimen-
tos em estabelecimentos pertencentes a cooperativas ou associações de produtores e
mesmo em lojas especializadas e pequenos mercados de bairros também vem amplian-
do a sua importância.
De forma geral, os CCCA, por reduzirem o número de intermediários e os valores
168 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

a eles direcionados, podem contribuir para que os alimentos tenham preços mais justos,
tanto para os consumidores como para os produtores (Rover, Ramos e Miranda, 2020).
Como implicam custos mais baixos com transporte, dado o menor deslocamento dos
produtos, tendem a favorecer o desenvolvimento socioeconômico dos territórios locais,
já que beneficiam um número maior de agricultores (Bava, 2012), além de estimu-
larem o cultivo de produtos agroalimentares que fazem parte dos hábitos locais dos
consumidores.
No Brasil, a distribuição de alimentos realizada pelas grandes centrais de abasteci-
mento é prevalente. Contudo, itens perecíveis como hortaliças, especialmente as folhosas,
menos resistentes ao transporte em longas distâncias, têm sido produzidos no interior das
cidades, no seu entorno ou em áreas rurais situadas nas suas proximidades e comercializa-
dos principalmente por meio de CCCA.
Não há, no país, uma definição oficial de CCCA, diferentemente do que ocorre na
França, onde se admite até um intermediário para o enquadramento nessa categoria.
No entanto, normalmente se considera que os CCCA abrangem tanto a venda direta a

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consumidores feita pelos próprios produtores, quanto a realizada por estabelecimentos que
adquirem os produtos diretamente dos agricultores e os revendem.
De acordo com Contrigiani et al. (2020, p. 8) “o estado de São Paulo é onde se
encontra a maior quantidade de canais curtos de comercialização, seguido do Rio
Grande do Sul e do Rio de Janeiro”. Retiére (2014) analisou a inserção de agricultores
em circuitos curtos de comercialização no estado de São Paulo, a partir do estudo de
casos nas regiões de Piracicaba e do Pontal do Paranapanema, e constatou que a co-
mercialização em CCCA poderá se constituir em alternativa aos sistemas alimentares
dominantes, desde que haja “informação e formação dos agentes sociais envolvidos
(consumidores finais, atores da sociedade civil e gestores públicos)” (Retiére, 2014, p.
103) e que estes promovam “a diversificação dos sistemas produtivos, a valorização da
profissão agrícola e o reconhecimento do seu papel na soberania alimentar do territó-
rio” (Retiére, 2014, p. 103).
A pesquisa, cujos resultados preliminares serão apresentados no item subsequente,
trata do fenômeno da AUP e da sua inserção nos CCCA em Presidente Prudente, no
estado de São Paulo.

A AUP e os circuitos curtos de comercialização de alimentos


em Presidente Prudente

O município de Presidente Prudente possuía 221.938 habitantes em 2021, segun-


do estimativas da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), sendo que

169 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
217.410 (97,96% do total) residiam em áreas urbanas.
A AUP é significativa em Presidente Prudente, sendo praticada em quintais de residên-
cias, terrenos não edificados, áreas públicas no interior da cidade e em terrenos particulares
de maior dimensão situados em áreas periurbanas. Parte de sua produção é direcionada à
subsistência dos seus praticantes e parte se destina à venda, destacando-se, neste caso, os
chamados CCCA, que abarcam tanto a venda direta dos produtores aos consumidores,
quanto os intermediários que adquirem os alimentos e os revendem.

Dimensão e diversidade da AUP em Presidente Prudente

A AUP em Presidente Prudente é bastante heterogênea e relevante, quer no cultivo de


alimentos destinados ao consumo pelos produtores e suas famílias, quer para complemen-
tar a renda dos que a praticam e vendem parte da produção.
Nos anos 1990, foi instituída uma política de apoio a essa modalidade de produção pelo
município estudado, o Programa “Alimenta Prudente”. Por seu intermédio, a prefeitura

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municipal concedia áreas públicas da municipalidade a famílias carentes, para que cultivas-
sem hortaliças. Além da cessão de uso das áreas, fornecia aos produtores sementes e fertili-
zantes orgânicos, bem como disponibilizava orientação técnica, exigindo, em contrapartida,
que parte da produção fosse doada a instituições socioassistenciais. A partir de meados da
primeira década deste século, o Programa foi interrompido e muitos produtores passaram
a cultivar de forma independente nas áreas disponíveis, tanto públicas quanto particulares.
Em 2018, a administração pública municipal lançou o Programa “Semeando
Prudente”, que permitia a entidades, empresas, associações de moradores e grupos de pes-
soas interessadas implantarem hortas comunitárias, para o cultivo de produtos orgânicos
em áreas públicas municipais (Rosa, 2020). Além do cultivo coletivo em áreas públicas, há
muitas iniciativas individuais de AUP praticadas com diferentes finalidades. Com base em
extensa pesquisa de campo, Pereira (2021) identificou culturas agrícolas em 1.054 quin-
tais, 729 lotes não edificados e 75 áreas públicas na cidade, com destaque para a produção
de hortícolas, especialmente folhosas.
Segundo o mesmo autor,

A finalidade do cultivo para consumo próprio ou comercialização refle-


te-se na dimensão da área, nas infraestruturas, nas espécies cultivadas, nos
sistemas de manejo e nas relações estabelecidas pelos produtores agrícolas
com outros agentes, sejam eles fornecedores de insumos ou intermediários.
(Pereira, 2021, p. 6)
170 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Neste trabalho serão apresentados os resultados da pesquisa realizada com 13 agricul-


tores urbanos e periurbanos. A idade dos pesquisados varia de 18 a 76 anos, sendo que
69,2% deles têm mais de 40 anos e 38,5%, idade superior a 60 anos. A AUP se constitui
numa importante fonte de suprimento de alimentos e de complementação da renda fami-
liar, assim como numa forma de reproduzir o modo de vida rural, visto ser essa a origem
da maioria dos praticantes (76,9%).
A extensão das áreas em que os cultivos são realizados normalmente é pequena, como
se pode constatar no Gráfico 1. Sete (53,8%) dos 13 pesquisados cultivam em superfícies
cujas dimensões não ultrapassam mil metros quadrados, três (23,1%), em áreas que variam
de mil até dois mil metros quadrados e outros três, em áreas superiores a dois mil até cinco
mil metros quadrados.
No que concerne às condições de acesso à terra, as áreas utilizadas por oito (61,5%)
dos 13 pesquisados são próprias ou pertencentes a familiares, três (23,1%) cultivam em
áreas cedidas por terceiros, um (7,7%) em área arrendada e um outro em área pública,
conforme demonstrado no Gráfico 2.

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Verifica-se, no Gráfico 3, que 76,9% dos pesquisados utilizam sistemas de cultivo
convencionais; apenas dois (15,4%) adotam o sistema de produção orgânico; e um (7,7%)
cultiva em estufas, utilizando o sistema hidropônico.

171 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Mais da metade dos pesquisados utiliza fertilizantes químicos, entre os quais sete
(53,8%) afirmaram que os aplicam regularmente. Apesar do uso de fertilizantes químicos,
oito (61,5%) deles informaram que não utilizam biocidas (agrotóxicos), o que pode ser
explicado pelos seguintes fatores: a) destinação da produção tanto para o consumo próprio
como para a comercialização, havendo, por isso, a preocupação com a saúde da família
e dos consumidores; b) reduzida disponibilidade de capital para investir na produção; c)
caráter temporário do acesso às áreas em que são realizados os cultivos; d) preocupação
ambiental e maior fiscalização dos consumidores e vizinhos das hortas, particularmente
nas áreas intraurbanas.
Dois pesquisados utilizam sistemas orgânicos de produção. Ambos possuem certifica-
ção, atribuída por certificadora privada credenciada no Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (MAPA), e vendem seus produtos diretamente aos consumidores em
estabelecimentos comerciais próprios.
Um deles é proprietário da empresa “Sinal Verde - Horta Orgânica” e fornece produtos
personalizados, principalmente a clientes com maior poder aquisitivo. No local, situado
no Jardim Paulista, bairro de classe média em Presidente Prudente, o cliente pode observar
a área de produção, pois a horta é contígua e está integrada à loja. Além da produção rea-
lizada nas estufas anexas à loja, a empresa tem cultivo também numa propriedade rural no
município de Santo Expedito, situado a 40 quilômetros de Presidente Prudente.
O segundo produtor orgânico, proprietário da empresa “Vida Orgânica”, cultiva hor-
taliças de folhagens e legumes e vende, além da produção própria, produtos orgânicos
diversificados procedentes de outras regiões do país. Os consumidores podem adquirir os
172 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

produtos tanto na loja quanto por meio de aplicativos da internet. Semanalmente, clientes
recebem, num grupo do WhatsApp, uma lista de produtos disponíveis, sendo mantida,
assim, a comunicação periódica com a clientela.
O sistema hidropônico é empregado por um dos pesquisados, que é sócio da empresa
“Viva Verde”. Os cultivos são realizados em trinta estufas instaladas numa área de cerca
de 10.000 metros quadrados, dedicadas exclusivamente à produção de hortaliças de folha-
gens. Em média, são produzidos trinta mil maços de hortaliças de folhas por mês, e grande
parte é vendida para supermercados e hipermercados de Presidente Prudente. Pequenos
intermediários também adquirem as folhosas no local de produção e as revendem em do-
micílio e/ou em pontos de venda (bancas) instalados em vias públicas da cidade.
Todos os pesquisados produzem folhosas, sendo que seis (46,1%) produzem tam-
bém frutos, raízes e/ou tubérculos em determinadas épocas do ano, com destaque para
a abóbora, o chuchu, o pimentão, o rabanete e a mandioca. Entre as frutas produzidas
pelos pesquisados, destacam-se a acerola e a banana, que são cultivadas por quatro
(30,7%) deles.

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Apesar de sete pesquisados (53,8%) atenderem os requisitos exigidos para serem reco-
nhecidos oficialmente como agricultores familiares, apenas três (23,1%) são portadores da
Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP), documento oficial que possibilita o acesso às
políticas públicas voltadas a essa categoria de agricultores no Brasil, tais como o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e os mercados institucionais
de alimentos. O PRONAF propicia o acesso a linhas de crédito subsidiadas, com baixas taxas
de juros; e a segunda alternativa permite a aquisição de alimentos de portadores da DAP, por
meio de chamadas públicas realizadas pelos governos federal, estaduais e municipais, assim
como por instituições públicas, sem a necessidade de realizar processos licitatórios.
Os problemas enfrentados pelos pesquisados são variados, destacando-se a inexistência
de serviço de orientação técnica oficial voltado ao atendimento de agricultores urbanos e
periurbanos, a escassez de recursos para investir nos cultivos e as limitações relacionadas
à comercialização dos produtos, seja pela dificuldade de acesso aos diferentes canais, seja
pela falta de conhecimentos, habilidade e mesmo de tempo para a preparação e venda dos
produtos aos consumidores finais.

Os circuitos curtos de comercialização de alimentos


em Presidente Prudente

Os principais canais de comercialização utilizados pelos agricultores urbanos e periur-


banos pesquisados em Presidente Prudente são:
a) pontos de venda nos locais da produção;

173 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
b) feiras livres;
c) bancas de rua;
d) mercados de bairro;
e) vendas em domicílio;
f ) supermercados, e
g) lojas próprias.
Mais da metade (53,8%) dos pesquisados utilizam canais variados de comercialização.
Isso ocorre pelo fato de os agricultores, sobretudo os pequenos, possuírem acesso limitado
aos mercados. Os custos envolvidos na comercialização (combustível, desgaste de peças
etc.) também podem ser maiores, especialmente pelo uso dos seus próprios veículos para
realizar a entrega dos produtos. Alia-se a isso a diversidade dos produtos, a pequena escala
da produção e a exigência de regularidade nas entregas (Rover, Ramos e Miranda, 2020).
Quase 40% dos pesquisados possuem pontos de venda nos próprios locais de pro-
dução (38,4%); pouco mais de 30% costumam vender os seus produtos a pessoas que
os comercializam em bancas instaladas ao longo de vias públicas da cidade (30,7%), e

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a mesma proporção comercializa diretamente sua produção em feiras livres; 23% dos
pesquisados vendem seus produtos para sacolões, e o mesmo percentual, para peque-
nos mercados de bairros e supermercados; 15,4% entregam em domicílio, e a mesma
proporção vende para restaurantes ou possui lojas próprias. Apenas um pesquisado
entrega parte da produção à prefeitura municipal, por intermédio de chamada pública
destinada ao atendimento da merenda escolar, com recursos repassados pelo governo
federal, via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), conforme se verifica
no Gráfico 4.
174 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Os diferentes meios de comercialização utilizados pelos agricultores urbanos e pe-


riurbanos pesquisados em Presidente Prudente estão diretamente ligados aos seus portes
produtivos, à capacidade econômica para contratar mão de obra assalariada ou, ainda, à
disponibilidade de força de trabalho familiar.
A venda direta (face a face) aos consumidores costuma ocorrer em pontos instala-
dos nas áreas onde são realizados os cultivos e em feiras livres, bem como a restaurantes
que realizam o preparo dos produtos para a venda na forma de refeições prontas, assim
como nas duas lojas de produtos orgânicos. A comercialização com a interveniência de um

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intermediário é realizada em bancas instaladas ao longo de vias públicas da cidade, sacolões
(quitandas), mercados de bairros e supermercados.
As feiras livres se constituem num importante canal de comercialização de produtos
hortícolas em Presidente Prudente. Atualmente, há 26 feiras convencionais realizadas se-
manalmente, nos diferentes dias da semana e nos distintos bairros da cidade, nas quais
atuam tanto produtores quanto intermediários, conforme se verifica na Tabela 1, elabora-
da e atualizada com base em levantamento feito por Pereira (2020).
Entre terças-feiras e sábados, são realizadas feiras em cinco diferentes bairros da cidade.
Nos bairros Jardim São Matheus, COHAB e Ana Jacinta, elas possuem mais de 50 bancas.
No entanto, metade das feiras da cidade (13) possui entre 20 e 50 bancas e nove delas são
pequenas, entre as quais sete contam com menos de dez. Aos sábados, entre 16 e 21 horas,
e aos domingos, entre 7 e 12 horas, é realizada a maior feira da cidade, com cerca de 200
bancas. Ela ocupa uma das vias da Avenida Manoel Goulart, ao longo de cinco quadras,
nas proximidades do centro da cidade. Esta feira se constitui num importante ponto de
encontro, tendo em vista que, além de produtos hortifrutículas, são comercializadas co-
midas prontas, tais como pães, bolos, queijos caseiros, pastéis, tapiocas, doces, derivados
de milho etc.

Tabela 1. Presidente Prudente: relação de feiras livres,


dia da semana, período e número de bancas por feira

Nº de
Bairro Dia da semana Período
Bancas

175 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Jd. São Matheus Quarta Tarde 57
Cohab Quinta Manhã 55
Ana Jacinta Quinta Tarde 52
Jd. Vale do Sol Sexta Tarde 45
Jd. Brasil Novo Terça Tarde 33
João Domingos Sábado Tarde 32
Vila Dubus Sexta Manhã 29
Jd. Panorâmico Quarta Tarde 28
Jd. Paulista Quarta Manhã 26
Pq. Girassóis Quinta Tarde 25
Res. Servantes Terça Tarde 24
Humberto Salvador Quinta Tarde 24
Novo Bongiovani Sexta Tarde 23
Vila Industrial Terça Manhã 21
Vila Formosa Quarta Manhã 20
V. Tabajara Sábado Manhã 20

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Nº de
Bairro Dia da semana Período
Bancas
Jd. Estoril Sábado Manhã 16
Maré Mansa Terça Tarde 12
Vila Marcondes Quinta Manhã 7
Jd. Cambuci Sexta Tarde 7
Cecap Sábado Manhã 7
Jd. Maracanã Quarta Tarde 5
Jd. Planalto Sexta Manhã 4
Pq. Novo Alvorada Terça Manhã 3
Pq. Cedral Sábado Manhã 2
Tarde/
Av. Manoel Goulart Sábado/Domingo 191
Manhã

Fonte: Adaptada com base em Pereira (2020)

Nas feiras convencionais, além dos produtores que vendem seus próprios produ-
tos, atuam também os intermediários que revendem os itens adquiridos diretamente de
agricultores urbanos e periurbanos ou de áreas rurais, bem como de atacadistas permis-
sionários da unidade da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
(CEAGESP) de Presidente Prudente.
Desde 2014, vêm sendo realizadas na cidade as chamadas “Feiras da Lua”, das quais
participam somente produtores rurais que vendem predominantemente os seus pró-
prios produtos e poucos itens adquiridos de terceiros, especialmente algumas frutas e
176 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

legumes que não são produzidos na região. Duas são instaladas todas as semanas: uma,
às terças-feiras entre 18 e 21 horas, no Bairro Alto da Boa Vista, nas proximidades de
um condomínio residencial fechado de alto padrão (Residencial Dahma I); e outra, às
quartas-feiras e no mesmo horário, nas proximidades de outro condomínio residencial
fechado (Central Park Residence), ambas com cerca de 20 bancas, incluindo as que ven-
dem pães caseiros, pastéis, milho cozido, espetinhos, tapiocas, caldo de cana e outros
produtos. Apenas um dos 13 pesquisados vende folhosas na Feira da Lua, enquanto três
comercializam parte do que produzem em feiras convencionais de Presidente Prudente.
A comercialização dos produtos da AUP representa o maior entrave para os pesqui-
sados, especialmente os que cultivam em pequenas áreas e não têm condições de garantir
a entrega dos produtos em quantidade e com regularidade ao longo de todo o ano, tendo
em vista que, na região, os meses de outono e inverno são mais propícios à produção,
enquanto na primavera e no verão, as chuvas torrenciais e as temperaturas elevadas po-
tencializam a ação de pragas e doenças, o que compromete a qualidade dos produtos e a
rentabilidade dos produtores.

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Além desse problema, os agricultores urbanos e periurbanos costumam enfrentar mais
dificuldades para participar dos mercados institucionais de alimentos (MIAS) do que os
demais agricultores familiares, em virtude de não disporem da Declaração de Aptidão ao
PRONAF, conforme ressaltado no item anterior.
Embora os CCCA sejam relevantes em Presidente Prudente e favoreçam o estabeleci-
mento de relações de proximidade entre produtores e consumidores, não se pode afirmar
que gestores públicos, consumidores e outros atores da sociedade civil estejam suficien-
temente informados e formados para lhes dar a devida importância, nem que venham
promovendo a diversificação dos sistemas produtivos locais, valorizando a profissão de
agricultores e reconhecendo a importância que essa aproximação entre produtores e con-
sumidores poderá vir a ter na soberania alimentar.
Em suma, apesar de a relação entre produtores e consumidores por intermédio dos
CCCA em Presidente Prudente ser importante, tem ainda um longo caminho a trilhar,
pois o apoio oficial é insuficiente e a maioria dos consumidores atribui maior peso ao fator
preço do que à qualidade dos produtos, pouco valorizando a origem local e os sistemas
de cultivo livres da utilização de biocidas e fertilizantes químicos, tais como os produtos
orgânicos e agroecológicos.

Considerações Finais

A AUP vem ampliando a sua importância no Brasil e em vários outros países

177 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
desde as últimas décadas do século passado, sendo bastante expressiva em Presidente
Prudente, onde foi estimulada pelo Programa “Alimenta Prudente”, nos anos 1990, e
pelo Programa “Semeando Prudente”, a partir de 2018, e por meio de iniciativas indi-
viduais e espontâneas.
A AUP usufrui das vantagens derivadas da sua localização privilegiada em relação ao
mercado consumidor e, normalmente, encontra-se bastante articulada com os chamados
CCCA, a exemplo do que ocorre em Presidente Prudente, onde parte dos produtos co-
mercializados nas feiras livres, especialmente as folhosas, é cultivada em áreas urbanas e
periurbanas, absorvendo o trabalho de famílias envolvidas nessa atividade.
Apesar do peso dos CCCA, continuam prevalecendo os circuitos longos de comercia-
lização, dominados principalmente por atacadistas permissionários da unidade local da
Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP) de Presidente
Prudente, que abastece supermercados, hipermercados, quitandas e mesmo os feirantes,
com frutas, legumes, raízes e tubérculos provenientes de outras regiões do estado de São
Paulo e do país.

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A investigação de campo realizada com 13 agricultores urbanos e periurbanos permitiu
constatar que a dimensão das áreas de cultivo dos pesquisados não ultrapassa os cinco mil
metros quadrados, com o predomínio de áreas inferiores a mil metros quadrados. Os culti-
vos dos pesquisados são realizados principalmente em áreas próprias, prevalecendo o sistema
convencional, com emprego de fertilizantes químicos e baixa aplicação de agrotóxicos.
Os canais de comercialização utilizados pelos pesquisados são diversificados, sendo
que seis (46,1%) acessam mais de um canal. A venda direta aos consumidores nos próprios
locais de produção é predominante, seguida pela venda direta em feiras livres. A oferta a
intermediários que possuem bancas em vias públicas da cidade, assim como para sacolões
(quitandas), mercados de bairros e supermercados também é importante.
Embora a pesquisa empírica envolvendo feirantes, vendedores em domicílio, gerentes de
supermercados de bairros, proprietários de sacolões e de bancas instaladas em vias públicas
ainda esteja por ser realizada, pode-se afirmar, pelo que se constatou até esta fase da investiga-
ção, que os CCCA são relevantes e favorecem o estabelecimento de relações de proximidade
entre produtores e consumidores, mas os gestores públicos, consumidores e demais atores da
sociedade civil não dão a importância que eles merecem, dado o seu potencial para estimular
a diversificação dos sistemas produtivos locais e de promover a soberania alimentar.
Normalmente, a venda por intermédio dos CCCA propicia maior renda aos agricultores
urbanos e periurbanos e os aproxima dos consumidores, ao mesmo tempo em que contribui
para ampliar o nível de conscientização dos produtores e consumidores em relação aos bene-
fícios sociais, econômicos, ambientais e nutricionais decorrentes do consumo de alimentos
frescos. As parcelas mais esclarecidas da população vêm tomando consciência da importância
178 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de ingerir produtos frescos e saudáveis, mas para a população de menor renda, o fator preço
continua sendo o que define a escolha dos alimentos a serem adquiridos.

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livro - iberografias 45_20junho2023.indb 180 20/06/2023 16:46:11


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181 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Descrição morfológica do perfil
de solo em uma propriedade rural da área
de proteção ambiental do Timburi,
Município de Presidente Prudente - SP

Thais Helena Gonçalves1

Introdução

A Área de Proteção Ambiental, conhecida como APA do Timburi, foi regularizada de


acordo com a Lei Complementar do Município de Presidente Prudente, estado de São
Paulo, nº 235/2019. Desde então, tornou-se crescente a discussão sobre como protegê-la,
a partir do incentivo por meio de estudos da universidade, assim como o trabalho de edu-
cação ambiental e restauração ecológica de áreas prioritárias.
Têm-se as coordenadas aproximadas de 22°00’00”S e 51°22’00”O. Seu nome
advém por pertencer a Bacia Hidrográfica do Córrego Timburi. Insere-se na Unidade de

183 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Gerenciamento de Recursos Hídricos 21 (UGRHI-21), que tem por órgão responsável o
Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Aguapeí e Peixe. (Figura 1)
Conforme Donaton (2013), a economia da APA do Timburi é baseada em pecuária
de corte e leiteira e a produção de verduras e hortaliças para consumo próprio e comer-
cialização. Por conseguinte, é preciso dar atenção a essas áreas, para que as atividades
rurais não sejam fator determinante de problemas ambientais, como a diminuição da
biodiversidade, problemas com erosão e assoreamento dos rios.

1
Mestranda em Geografia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências
e Tecnologia, Campus de Presidente Prudente/SP- Brasil. e-mail: thais.helena@unesp.br ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0633-746X

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184 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1- Localização Geográfica da Área de Proteção Ambiental Timburi e bacia hidrográfica do córrego Timburi.
Fonte: GONÇALVES, T.H; (2021)

A escolha da propriedade foi realizada conforme a autorização pelo proprietário e a


facilidade de acesso. Ao analisarmos o mapa (mapa x), percebe-se que a propriedade possui
uma área de preservação permanente em seu limite. Além disso, observa-se que boa parte
desta APP foi modificada ao longo dos anos pelo uso e cobertura da terra.
As atividades antrópicas geram alterações ao meio ambiente que interferem negativa-
mente na disponibilidade hídrica, dificultando também a produção no campo. Por isso, o
manejo sustentável e o uso consciente do solo são aliados ao aumento da produtividade e
da economia.
Visando diminuir a degradação ambiental da área e subsidiar ações de recuperação e
restauração ecológica, tal como mitigar os impactos das atividades rurais, a análise mor-
fológica do solo contribui para a conservação do solo e da água, assim como a redução de
perdas.

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Mapa 1- Uso e Cobertura da Terra em APP na Área de Proteção Ambiental Timburi
Fonte: Autoral (2021)

Resultados e Discussões

Como aspectos principais da área, podemos citar o afloramento do lençol freático em


alguns pontos próximos ao perfil de solo escolhido. Também há presença de mata ciliar
apenas de um lado. (Figuras 2 e 3)

185 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2. Afloramento do lençol freático. Figura 3. Fragmento de mata ciliar.


Fonte: Autoral (2021)

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Entende-se que a presença de gado e outros tipos de animais de pastagem, atrapa-
lham a regeneração natural e as atividades na agricultura. Observou-se que o solo na
área de estudo, vem sendo compactado pelo pisoteio (Figura 4). Segundo Pellegrini
et al (2016), o sistema de lavoura e pecuária que ocorre no país, caracteriza-se o uso
intensivo do solo o ano inteiro, o que agrava os problemas de compactação do solo
independentemente do tamanho da propriedade e faz com que o solo perca qualidade
física e química.
186 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4- Presença de gado na área de estudo.


Fonte: Autoral (2021)

Compactado, este solo não consegue germinar as sementes e também se torna inapro-
priado para o desenvolvimento das raízes. Há ainda a diminuição da permeabilidade e a po-
rosidade, dificultando a infiltração da água da chuva e aumentando o escoamento superficial.
A partir disso, dá-se o inicio de processos erosivos. Esse solo desprotegido é lavado
pelas chuvas, que carregam seus nutrientes e sedimentos, podendo ocasionar o assorea-
mento dos cursos d’água.
Ocorre também o impacto nos microorganismos presentes no solo, uma vez que a
quantidade de matéria orgânica é escassa nestas condições. O solo quando compactado não

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têm condição de germinar as sementes e não serve para o desenvolvimento de raízes das
plantas levando a diminuição de fertilidade.
Neste sentido, o ideal seria o isolamento das áreas por cercamento, a fim de evitar este
tipo de impacto. Já para evitar erosões, na propriedade rural foi utilizada a técnica conhe-
cida por ‘paliçada de bambu’ (Figura 5), que tem por objetivo diminuir a ação e velocidade
da água pluvial, barrando também os sedimentos por ela carregados e estabilizando os
processos erosivos.
Consiste na construção de barreiras feitas de bambu e amarradas com sacos de ráfia,
ou material similar, um em cima do outro. Este tipo de barreira física é conhecida por
ser de baixo custo e de fácil colocação e manutenção. Os resultados nesta área vem sendo
significativos.

187 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 5- Técnica conhecida como ‘Paliçada de Bambu’, instalada na propriedade rural.


Fonte: Autoral (2021)

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Descrição morfológica do perfil de solo

O trabalho de campo foi realizado em um período de estiagem e, portanto, o solo


estava seco. A condição do local analisado, era de uma voçoroca. Segundo a AGEITEC
(2022), uma voçoroca é caracterizada por grandes buracos de erosão, geralmente em for-
mações sedimentares arenosas. Na figura a seguir (Figura 6), pode-se observar a diferença
entre os horizontes, bem como o tipo de textura. O material retirado próximo a rocha era
friável e fácil de modelar, enquanto na superfície não apresentava umidade.
Também foi encontrada a presença de macrofauna do solo (animais que vivem no solo,
visíveis a olho nu), como formigas e minhocas. Conforme a EMBRAPA (2021), os ma-
crorganismos tem forte influência na aeração, no movimento da água, nas mudanças no
tempo na matéria orgânica e na composição, abundância e diversidade de outros organis-
mos do solo.
Eles são importantes para a sustentabilidade ambiental dos sistemas de produção agrí-
cola, ajudam a melhorar a fertilidade, agregação e conservação do solo e na auto- regulação
das doenças e pragas.
188 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 6- Diferença de horizontes e plasticidade do solo.


Fonte: Autoral (2021)

A descrição foi realizada conforme a tabela de descrição morfológica disponibiliza-


da pelo Laboratório de Geologia e Pedologia “Ana Primavesi” da Universidade Estadual
Paulista, Julio de Mesquita Filho-Unesp, Campus de Ourinhos- SP.

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IDENTIFICAÇÃO DE CAMADAS

1ª CAMADA: Cor brunada; Solo arenoso/Seco; Presença de matéria orgânica; 10 cm de espessura;


2ª CAMADA: Amarelo; Solo arenoso/Seco; Presença de matéria orgânica; 6 cm de espessura;
3ª CAMADA: Vermelho; Solo pouco argiloso/úmido; Presença de matéria orgânica; 13 cm de espessura;
4ª CAMADA: Amarelo; Solo arenoso/Seco; 16 cm de espessura;
5ª CAMADA: Vermelho; Solo arenoso/Seco; 14 cm de espessura;
6ª CAMADA: Amarelo; Solo argiloso/Úmido; 13 cm de espessura;
7ª CAMADA: Vermelho; Solo argiloso/Muito plástico, não pegajoso; 15 cm de espessura;

189 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 7- Identificação de camadas por meio de observação


Fonte: Autoral (2021)

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Outra observação importante realizada em campo, foi a presença de mosqueamento
(Figura 8), que são manchas de tonalidade e cor diferente, geralmente puxados para o
amarelo. Em solos que possuem a oxi-redução de ferro, comumente há ocorrência de mos-
queados de cor ferruginosa. (CECIERJ,2021).
190 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 8- Presença de mosqueamento.


Fonte: Autoral (2021)

Considerações Finais

Conforme Nunes e Fushimi (2010), a caracterização pedológica desta área é de


Argissolos Vermelho-Amarelo e os Neossolos Litólicos, Latossolos, Planossolos e
Gleissolos. Há predomínio de pastagem, observando ocorrências de processos erosivos
nas cabeceiras de drenagens, em forma de anfiteatro, e nos terraços e planícies aluviais.
(NUNES, 2019).
Analisando o esboço simplicado das principais classes de solos da APA do Timburi, é
possível classificar a área de estudo como solos rasos e desenvolvidos, associação argissolos.
(Mapa 2)

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Mapa 2- Esboço simplificado das principais classes de solos da APA Timburi.
Fonte: MOREIRA, E.S; (2021)

Conforme a EMBRAPA (2020), solos com relevo ondulados (8-20%), como no caso
da APA, tem limitações quanto a sua moderada fragilidade ambiental e suscetibilidade a

191 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
erosão. São associados a menor retenção de umidade, recomendados para lavouras semi-
-intensivas e silvicultura.
Considerando as informações aqui apresentadas, pela bibliografia consultada e o tra-
balho de campo, poderíamos identificar este solo como um argissolo vermelho-amarelo.
Porém, com a mudança de horizontes sendo visível, analisando as características e
condições diagnósticas de antropogênese, principalmente pela modificação da paisagem
ao longo dos anos, ocasionadas pela ação do homem pelo uso intensivo desta terra, bem
como que para recuperar 1 cm de solo, é necessário aproximadamente 400 anos, conforme
dados da EMBRAPA (2021)
Portanto, podemos dizer que esse solo pode ter passado pelo processo de antropização.
Cabe um trabalho de campo mais detalhado, analisando mais pontos e fragmentos.
Deste modo, caracterizou-se este solo pela ordem antropossolos, que possuem caracte-
rísticas distintas dos demais solos naturais. A EMBRAPA (2004), cita que este tipo de solo
se encontra em áreas rurais, com a retirada do solo natural, deposição de lixo e tombamen-
to por maquinário. Há maior fragilidade e suscetibilidade à erosão.

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Destarte, solo tem fator importante quanto a questão dos recursos hídricos e a dispo-
nibilidade de água na bacia, na quantidade/qualidade. Torna-se essencial o trabalho para
analisar a vulnerabilidade ambiental da área e os tipos de solo na APA, visando a preser-
vação e conservação.

Introdução e Justificativa

No Brasil, no século XX, o êxodo rural ganhou força a partir do crescimento populacional nas
cidades e com o intenso aumento das indústrias. Deste modo, muitos deixaram o campo em busca
de melhores condições de vida, seja no trabalho, habitação e saúde. Deve-se dizer que a migração
da zona rural para a zona urbana, aconteceu de forma espontânea e também forçada, uma vez que
a modernização do sistema produtivo no campo, levou os pequenos produtores a não acompanhar
o avanço das tecnologias e o advento da revolução verde. Neste sentido, os que permaneceram no
campo até hoje enfrentam problemas quanto a sua produção e a dificuldade em lidar com os fatores
e elementos do clima. Para isso, visando otimizar a produção rural seja de subsistência como para
comercialização, o agricultor precisa ter o conhecimento básico do solo e do relevo de sua proprie-
dade. Portanto, torna-se necessário o estudo da propriedade de modo a fornecer informações ao
produtor como subsidio para compreender as melhores técnicas a serem empregadas, os custos de
controle e manutenção da área e o favorecimento para certo tipo de atividade. A escolha do ponto
foi feita de acordo com um perfil exposto de solo, visto que em um período de estiagem, fosse difícil
a escavação de uma trincheira. Utilizou-se um formulário para conduzir a observação e análise das
192 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

feições in loco. Posteriormente, com o auxílio de uma revisão referente aos assuntos do tema, foi
possível avaliar e caracterizar esse tipo de solo. Este trabalho visa apresentar a descrição morfológica
de um perfil de solo, a fim de comparar os horizontes de acordo com a sua cor e diferença textural
e identificar o tipo de solo em um ponto de uma propriedade rural na Área de Proteção Ambiental
do Timburi. Para este propósito, foi realizado um trabalho de campo no dia 28 de novembro de
2021. O tempo estava predominantemente seco, com temperatura máxima de 36° e mínima de
17°, conforme dados de previsão do tempo, fornecidos pela empresa de meteorologia AccuWheater.
Palavras-Chave: Área de Preservação Permanente, Geomorfologia, Área de Proteção
Ambiental.

Abstract:

In Brazil, in the 20th century, the rural exodus gained strength from population growth in ci-
ties and the intense increase in industries. Thus, many left the countryside in search of better living
conditions, whether at work, housing and health. It must be said that the migration from rural to

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urban areas happened spontaneously and also forced, since the modernization of the productive
system in the countryside, led small producers not to keep up with the advancement of techno-
logies and the advent of the revolution. green. In this sense, those who remained in the field until
today face problems regarding their production and the difficulty in dealing with the factors and
elements of the climate. For this, in order to optimize rural production, whether for subsistence or
commercialization, the farmer needs to have basic knowledge of the soil and relief of his property.
Therefore, it is necessary to study the property in order to provide information to the producer as a
subsidy to understand the best techniques to be used, the costs of controlling and maintaining the
area and favoring a certain type of activity. The choice of point was made according to an exposed
soil profile, since in a dry period, it was difficult to excavate a trench. A form was used to conduct the
observation and analysis of the features in loco. Subsequently, with the help of a review regarding the
subjects of the theme, it was possible to evaluate and characterize this type of soil. This work aims to
present the morphological description of a soil profile, in order to compare the horizons according to
their color and textural difference and to identify the type of soil at a point of a rural property in the
Timburi Environmental Protection Area. For this purpose, fieldwork was carried out on November
28, 2021. The weather was predominantly dry, with a maximum temperature of 36° and a minimum
of 17°, according to weather forecast data provided by the meteorology company AccuWheater.
Keywords: Permanent Preservation Area, Geomorphology, Environmental Protection Area.

Metodologia

Para o desenvolvimento desse trabalho, foi realizado um trabalho de campo na área de estudo,

193 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
bem como uma revisão bibliográfica e levantamento de informações sobre a área, como sua loca-
lização, os aspectos físicos e a condição atual analisada a partir do uso e cobertura da terra na de
Proteção Ambiental (APA) do Timburi.
Foram utilizadas as imagens de radar da Missão Topográfica Radar Shuttle (SRTM/NASA, 2000)
e as imagens de satélite da série LANDSAT versão 8, ambas com resolução espacial de 30 metros e
radiométrica de 16 bits, a partir da plataforma Earth Explorer. Para este mapeamento foi utilizado o
Manual Técnico de Uso da Terra IBGE (2013) e no que se refere a elaboração de mapas, o software
ArcGis, versão10.3. O mapa de uso e cobertura da terra em APP, foi feito na escala 1.50.000.

Referências

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Disponível em: https://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/solos_tropicais/arvore/
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DONATON, G. Estratégias de reprodução social e econômica em pequenas unidades produtivas
rurais: o caso dos Bairros Rurais 1º de Maio/Timburi e Ponte Alta/córrego da Onça no mu-
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EMBRAPA- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Solos. Disponível em: https://www.
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https://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/sistema_plantio_direto/arvore/CONT 000fwu-
zxobq02wyiv807fiqu9t65gzwu.html>
EMBRAPA- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Antropossolos- Proposta de Ordem-
Documentos 101. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/CNPF-
2009- 09/38117/1/doc101.pdf
FUSHIMI, M. Vulnerabilidade Ambiental aos processos erosivos lineares nas áreas rurais do
município de Presidente Prudente-SP. 2012. 141 p. Dissertação (Mestrado em Geografia) –
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GONÇALVES,T.H. Áreas de Preservação Permanente Fluviais na Área de Proteção Ambiental
do Córrego Timburi, município de Presidente Prudente-SP. Universidade Estadual Paulista
(UNESP), 2021.
MOREIRA, E,S. Elaboração De Bases Cartográficas Como Subsídio Para Implantação De Projetos
De Recuperação De Áreas Degradadas Na Área De Proteção Ambiental De Uso Sustentável
194 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Do Timburi, Município De Presidente Prudente/SP. Universidade Estadual Paulista (UNESP),


2021.
NUNES, J. O. R.; FUSHIMI, M. Mapeamento geomorfológico do município de Presidente
Prudente-SP. In: VIII Simpósio Nacional de Geomorfologia, III Encontro Latino Americano
de Geomorfologia, I Encontro Ibero-Americano de Geomorfologia e I Encontro Ibero-
Americano do Quaternário, 2010, Recife. Anais... Recife: UFPE, 2010.
NUNES, et al. Recuperação de áreas degradadas da Área de Proteção Ambiental de Uso Sustentável
no Timburi, município de Presidente Prudente – SP. Faculdade de Ciências e Tecnologia.
Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente., 2019.
PRESIDENTE PRUDENTE. Lei Complementar nº 235, de 13 de março de 2019. Dispõe sobre
a criação da Área de Proteção Ambiental do Timburi, e dá outras providências. Leis e Decretos
municipais: Presidente Prudente, 2019.

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Novas Formas de Trabalho
e a (Nova) Função do Espaço Rural

João Almeida1

Introdução

Ao longo do tempo, o espaço rural sofreu grandes transformações ao nível da sua


ocupação e das actividades que lá são desenvolvidas. Mas além destas mudanças ‘naturais’
que fazem parte da evolução humana e da nossa vida em sociedade, têm existido ao longo
das últimas décadas uma a perda de sentido e a crise de identidade que afecta o potencial
de desenvolvimento do mundo rural. O mundo rural “já não é agrícola, mas também
ainda não é outra coisa” (Baptista, 2010) vivendo hoje de projecções urbanas e em “plena
fase de artificialização” (Covas, 2011). Isto tem levado a um discurso quer teórico quer

195 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
prático de um espaço rural cada vez mais multifuncional, que é cada vez mais um espaço
produzido, de consumo, de retiro, de lazer, e de protecção da natureza, mas não um espaço
de trabalho e de vida.
Esta comunicação centrar-se-á numa nova (ou renovada) função para o espaço rural
que tem surgido recentemente no discurso político como oportunidade para os ter-
ritórios rurais e de baixa densidade – um espaço onde se trabalha através das novas
formas de trabalho: remoto, híbrido ou teletrabalho. Apesar de discutidas há mais de
trinta anos, estas tendências de trabalho cresceram muito lentamente. No entanto, nos
últimos dois anos, à boleia da pandemia da COVID-19, aumentaram exponencialmente
quando a maioria das pessoas foi obrigada a trabalhar em casa durante o confinamento.
Além disso, a crescente confirmação das vantagens que um ambiente de trabalho mais
flexível pode ter no aumento a produtividade, na melhoria da aquisição de talentos ou
na redução de custos, tem levado cada vez mais empresas a adoptar estas novas formas
de trabalho.
1
GOVCOPP, DCSPT, Universidade de Aveiro (Portugal) -joaolopesalmeida@ua.pt

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Por outro lado, também devido à pandemia, o número de pessoas à procura de um
ambiente mais saudável e menos ‘congestionado’ para viver aumentou rapidamente. Com
esta procura durante a pandemia, as novas formas de trabalho têm sido vistas como uma
oportunidade/ferramenta para os territórios rurais atraírem novos visitantes e futuros re-
sidentes. Em diversos países do mundo, têm sido lançadas diversas estratégias de atracção
de novos visitantes/residentes, desde campanhas de comunicação, apoios directos, vistos,
etc. Também em Portugal, os decisores políticos nacionais e locais estão a tentar ‘surfar a
onda’ desta oportunidade, com o Governo a financiar a criação de uma “Rede Nacional de
Espaços Teletrabalho” em 88 Municípios de baixa densidade, no ano de 2021.
Nesta comunicação vai discutir-se a relevância das novas formas de trabalho para o
desenvolvimento dos territórios rurais, dando exemplos em Portugal e Espanha. Com isto,
procurar-se-á também ajudar na compreensão de como estas tendências podem criar uma
nova função para o espaço rural, o papel destes novos trabalhadores, e de como pode o
espaço rural, que passou de espaço produtor a espaço produzido/consumido nas últimas
décadas, passar novamente a espaço de trabalho e de vida.
O trabalho encontra-se dividido em cinco partes. Primeiramente, é apresentada um
panorama geral da evolução, desafios e oportunidades dos territórios rurais. Em segundo
lugar, abordam-se as novas formas de trabalho e a sua importância. De seguida, analisa-se
o impacto da pandemia nos territórios rurais. Depois, são apresentados quatro casos de
estudo de Portugal e Espanha. Por fim, são discutidas as conclusões deste trabalho e lan-
çadas algumas implicações teóricas e práticas para continuar a discussão no tópico aqui
apresentado.
196 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Espaço Rural: Evolução, Desafios e Oportunidades

O mundo rural agrícola e produtor ou o mundo rural composto maioritariamente por


áreas naturais, já há muito que não existe. A agricultura, que é vista quase como caracte-
rística definidora do espaço rural, tem tido cada vez menos peso na ocupação do espaço,
na produção de riqueza e no número de pessoas e empresas que operam neste sector. Hoje
em dia, o espaço rural aparece como um grande mosaico de configurações sociais e econó-
micas, com o turismo, a indústria, mas principalmente os serviços a representam a grande
fatia de produção de riqueza e de população empregada das economia rurais.
Mas além destas transformações, muitos autores tem também alertado para a crise de
identidade do mundo rural, que deixando de ser agrícola e produtor, ainda não encontrou
a sua nova função (Baptista, 2010). Esta crise de identidade do mundo rural tem levado
muitas vezes a uma esquizofrenia funcional de fazer tudo e mais alguma coisa, muitas
delas para coisas para quais nem o territórios nem os seus actores estão preparados. Esta

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crise é ainda catapultada pelas projecções urbanas que empurram o espaço rural para uma
artificialização cada vez maior da sua identidade, passando a ser um espaço cada vez mais
produzido para os que não são de lá e não querem lá viver, mas apenas estão de passagem
(Covas, 2011).
Esta transformação funcional e crise identitária tem mergulhado os territórios rurais
num ciclo vicioso de declíno com graves consequências sociais, económicas e ambientais.
Um dos principais desafios está relacionado com as tendências sociais e demográficas – um
crescente envelhecimento da população, migração e urbanização. Há uma tendência glo-
bal de urbanização que provoca um fuga de jovens e população activa para cidades onde as
oportunidades de educação, de emprego e melhores salários estão localizadas. Na Europa,
a esmagadora maioria das regiões com maior taxa de dependência de idosos, taxas de fer-
tilidade mais baixas e com maior redução da população nas últimas décadas, são regiões
rurais. Portugal e Espanha são casos paradigmáticos onde isso se verifica com diversas
regiões de ambos os países com perdas de mais de 30% da população nas últimas décadas.
Por outro lado, estes territórios sofrem também de diversos problemas de acessibilidade e
mobilidade, especialmente no que respeita aos serviços de interesse geral (educação, saúde,
etc.), mas também no que toca às infraestruturas tecnológicas, que limitam o acesso à
informação (OECD, 2018), desafiam a qualidade de vida e potencial de desenvolvimento
(Sessa et al., 2020). A falta de investimento público e privado, que é direccionado para as
grandes cidades (onde estão as pessoas), agrava ainda mais este acesso a oportunidades de
educação, profissionais ou de melhor qualidade vida para a pessoas, mas também a opor-
tunidades de crescimento para os empreendedores e empresas (ESPON EMPLOY, 2018).

197 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Este ciclo estrutural de desafios afecta a capacidade destas regiões de resistir ou re-
cuperar dos choques de mercado, sociais e ambientais e de potenciar a sua trajectória de
desenvolvimento (Giannakis & Bruggeman, 2020). Além disso, aceleram as disparidades
territoriais relacionadas com níveis de rendimento mais baixos, exclusão social e digital,
e isolamento são cada vez mais e com expectativa de agravamento nas próximas décadas
(ESPON ETRF, 2019), aumentando a fragmentação social, polarização política e alimen-
tando uma crescente onda populista que tem aproveitado e reforçado o discurso dos “lu-
gares que não importam” (Rodríguez-Pose, 2018).
No entanto, as mesmas características deste espaço rural trouxeram também várias
oportunidades de ‘diferenciação’ destes territórios (Credit et al., 2018). Os territórios rurais
podem liderar os investimentos em energias renováveis e economia circular. As tecnologias
emergentes e a crescente conectividade digital podem ajudar a resolver a falta de capital
humano e a desbloquear o empreendedorismo e a inovação nos sectores tradicionais destes
territórios (OECD, 2018). Estes territórios podem agora levar ao aumento dos interesses e
preocupações das pessoas com a sustentabilidade, o ambiente, e espaços menos povoados.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 197 20/06/2023 16:46:12


A Pandemia no Espaço Rural

A pandemia da Covid-19 foi sem dúvida ‘uma crise como nenhuma outra’, com um
impacto imprevisível e difícil de quantificar, mas sem dúvida esmagador na economia glo-
bal e desigual nos diferentes territórios e nos diferentes sectores económicos (Bailey et al.,
2021; Hall, Scott, & Gössling, 2020).
No caso dos territórios rurais, o efeito da pandemia foi paradoxal. Por um lado, a
população nestes territórios apresentava uma maior proporção de grupos de risco (idosos,
população com menos literacia de saúde) combinada com a falta de equipamentos de
saúde bem equipados, poucos médicos e maiores distâncias de outros hospitais nas cidades
(Henning-Smith, 2020; Phillipson et al., 2020). Além disso, uma maior percentagem de
trabalho que não pode ser feito a partir de casa, juntamente com rendimentos mais bai-
xos, obrigou também as comunidades rurais a continuar a trabalhar, reduzindo os efeitos
prentendidos do teletrabalho obrigatório e das medidas de confinamento. Além disso, os
territórios rurais têm geralmente uma economia muito menos diversificada, muitas delas
altamente dependentes do sector do turismo, que foi um dos sectores mais afectados de-
vido ao cancelamento de todas as actividades culturais, restrição de voos e confinamento
generalizado (Phillipson et al., 2020). Por exemplo, Silva (2021) mostrou que a pandemia
de Covid-19 tinha tido um impacto adverso significativo na maioria dos produtos de alo-
jamento turístico em territórios rurais portugueses. Finalmente, a menor acessibilidade da
população à Internet e as menores competências digitais, teve outros efeitos prejudiciais
no ensino à distância e na qualidade do teletrabalho, aprofundando o fosso digital entre
198 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

territórios urbanos e rurais durante a pandemia (Lai & Widmar, 2021).


Por outro lado, vários relatórios destacam que os territórios rurais podem ter beneficia-
do de um menor impacto da pandemia. Existiram alguns efeitos positivos de curto prazo,
dada a deslocalização temporária de pessoas que vivem em centros urbanos para estes
territórios e consequente aumento do consumo local (Fisher, 2021; Tondelli, de Luca, &
Åberg, 2020). Almeida & Daniel (2022) num estudo sobre o impacto da pandemia em
territórios de baixa densidade, apontam diversas oportunidades de desenvolvimento cria-
das ou aceleradas pela pandemia, nomeadamente a digitalização e adopção de tecnologia,
a cooperação e inovação, as novas percepções sobre a importância do espaço rural e as
novas formas de trabalho (trabalho remoto, teletrabalho, nomadismo digital). Os autores
realçam o crescimento exponencial, durante a pandemia, de novos grupos de pessoas que
procuram novas experiências fora da cidade, que têm maiores preocupações ambientais e
com o bem-estar, que procuram ter impacto nas comunidade locais e que utilizam novas
formas de trabalho para aumentar a sua qualidade de vida. Assim, o espaço rural, especial-
mente num contexto pós-pandemia pode assumir a liderança destas tendências, devendo

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 198 20/06/2023 16:46:13


desenhar estratégias inovadoras que vão de encontro a estes ‘novos’ públicos e que, ao
mesmo tempo, contribuam para o seu desenvolvimento social e económico.

Novas Formas de Trabalho

Antes de tudo, é necessário clarificar alguns conceitos relacionados com estas novas
formas de trabalho. O trabalho remoto é uma forma de trabalho em que os trabalhadores
podem executar a maior parte do seu tempo de trabalho e tarefas em casa ou em espaços
de coworking. Por sua vez, no nomadismo digital, os trabalhadores remotos ou por conta
própria viajam indefinidamente entre diferentes locais enquanto cumprem continuamente
as suas obrigações de trabalho. O nómada digital é uma “classe emergente de profissionais
altamente móveis, cujo trabalho é independente da localização” que trabalham enquan-
to viajam numa base (semi)permanente e vice-versa, formando um novo estilo de vida
móvel” (Olga, 2020).
Há 30 anos, Margrethe Olson salientava que “a tecnologia de burótica permitiria que
muitos trabalhadores dos escritórios sejam potenciais teletrabalhadores na medida em que
o seu trabalho pode ser realizado remotamente com apoio informático e de comunicações”
(Olson, 1983, p. 182). Já em 1983, esta autora explorou as opções destas novas formas de
trabalho, as suas características e necessidades, salientando que “o trabalho à distância só
terá sucesso quando o conceito for institucionalizado” (Olson, 1983, p. 187).
Apesar de ter sido discutido durante mais de trinta anos, o interesse por estas novas
formas de trabalho, nunca (até 2020) houve uma grande mudança na forma como as pes-

199 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
soas, empresas, investigadores e decisores políticos vêem as novas tendências e padrões de
trabalho. Para além de grupos de nicho de freelancers, empresários e alguns empregados da
área tecnológica, poucas pessoas pensavam que o trabalho que realizavam podia ser feito
em casa, num espaço de coworking e em qualquer país do mundo. Apesar deste lento cres-
cimento, as tendências do trabalho remoto e do nomadismo digital apresentavam, mesmo
antes da pandemia, um emergente interesse na nossa sociedade. Em 2019, a WYSE Travel
Confederation já estimava que o número de nómadas digitais em 2035 seria de mais de
mil milhões de pessoas.
Como referido anteriormente a pandemia mudou completamente o paradigma da
adopção e aceitação destas novas formas de trabalho. Com o confinamento generalizado e
a utilização obrigatória do teletrabalho em muitas situações, estas novas formas de trabalho
ganharam uma nova dimensão e interesse quer por parte dos trabalhadores quer por parte
das empresas. Este interesse crescente continuará a acontecer devido aos vários benefícios
que foram verificados “em primeira mão” durante a pandemia. Para as empresas, um local
de trabalho mais flexível pode aumentar a produtividade, melhorar a aquisição de talentos

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 199 20/06/2023 16:46:13


(que podem estar em todo o mundo), e reduzir os custos relacionados com o imobiliário,
por exemplo. Para os trabalhadores, a redução das deslocações pendulares (uma das maio-
res dores de trabalhar nas grandes cidades), uma melhor qualidade de vida (mais tempo,
flexibilidade e melhores condições de vida) e menos custos relacionados com deslocações
ou com a habitação mostram-se vantagens significativas para estes trabalhadores. Num
estudo realizado em Portugal durante a pandemia, a maioria dos trabalhadores remotos
reportou não só ganhos de produtividade ou pela ausência de deslocações até ao local de
trabalho, ou pela maior capacidade de foco nas tarefas, mas também um melhor equilíbrio
entre trabalho e vida pessoal (JLL, 2020).
No entanto, nem tudo são aspectos positivos e há ainda muitas reservas relativa-
mente a estas novas formas de trabalho. Obviamente, o trabalho remoto ou teletrabalho
não é para todos, nem para todos os negócios. Há muitos sectores e profissões que exigem
a presença física e que por isso não devem ser postos de parte com estes novos padrões
de trabalho. Mas mesmo em sectores e trabalhos que podem ser realizados (total ou par-
cialmente) à distância, há ainda muitos desafios a serem enfrentados. Por exemplo, as
empresas terão de criar uma cultura mais forte (remota) para enfrentar a falta de interac-
ção presencial, que leva a problemas de comunicação e ‘desconexão’ entre os membros da
equipa. Além disso, muitos trabalhadores podem não estar preparados para trabalhar à
distância e necessitam de formação específica tanto em competências técnicas (plataformas
de comunicação e colaboração) como em soft skills (auto-motivação, gestão do tempo,
concentração, etc.). Finalmente, há necessidade de um melhor enquadramento legal em
torno do trabalho remoto para garantir que esse regime de trabalho garante um equilíbrio
200 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

real entre a vida profissional e familiar.


Estas reservas têm levado ao debate sobre se estas novas formas de trabalho serão
verdadeiramente uma nova ‘era do trabalho’ e uma tendência realmente para ficar. Vários
relatórios têm afirmado que sim, ficarão. Talvez não de forma tão abrangente como alguns
têm apontado nos últimos dois anos, mas sem dúvida que esta pandemia tem sido um
ponto de viragem na nossa forma de trabalhar. Por exemplo, o dGen Think Tank, no seu
relatório “Remote Work in Europe, 2030”, argumenta que até 2030, 27% dos trabalhadores
nas grandes cidades europeias terá a opção de trabalhar totalmente à distância e deixará as
grandes cidades, e que, em 2030, mais de 50% dos trabalhadores remotos terão mais do
que um emprego e dividirão o seu tempo entre múltiplas empresas.
Outros fenómenos que estão a ocorrer actualmente, reforçam esta ‘nova era do traba-
lho’. A Grande Demissão (The Great Resignation), um fenómeno que começou no início
de 2021, em que os trabalhadores se estão a despedir voluntariamente em massa, por di-
versos motivos, desde a estagnação salarial, poucas oportunidades progressão, ambiente de
trabalho hostil, falta de benefícios, mas também com as políticas inflexíveis de trabalho à

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distância (Parker & Horowitz, 2022). Também o crescimento de um novo perfil de turista
(os half-tourists), ligado a estas novas formas de trabalho tem atraído atenção dos agentes
do sector (Almeida & Belezas, 2022). Estes ‘turistas a tempo parcial’ são pessoas que via-
jam para uma cidade ou país diferente para o visitar e que passam parte do seu tempo a
trabalhar remotamente enquanto lá estão.
Assim, se estamos realmente perante uma nova fase da forma como trabalhamos, é
importante perceber e discutir as implicações que isso terá na nossa forma de viver, prin-
cipalmente onde e como viveremos.

Uma (nova) Oportunidade para o Espaço Rural?

À medida que o trabalho remoto cresce, a relação espacial entre o trabalhador e a sua
empresa está também a ser alterada e renovada. A crescente descentralização dos locais de
trabalho está a desafiar os modelos clássicos da economia urbana e do desenvolvimento
local que precisam de ser repensados. Durante anos, as grandes empresas foram agrupadas
em polos económicos nas grandes cidades (Londres, Nova Iorque, Berlim, etc.). No en-
tanto, o entendimento de que a proximidade física não é necessária para manter elevados
níveis de cooperação e produtividade está a levar a uma crescente descentralização dos
escritórios para áreas suburbanas ou mais periféricas ou para a adopção de políticas de
trabalho totalmente remoto, onde cada trabalhador está num ponto diferente do país ou
do mundo.
Do lado dos trabalhadores, a pandemia de Covid-19 e medo inerente de locais fe-

201 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
chados (metro, comboio) e muito povoados, juntamente com as crescentes preocupações
com a sustentabilidade e os desafios ambientais, trouxeram uma procura renovada de “ar
fresco”, de “casas com quintal” e de cidades mais pequenas com níveis de poluição mais
baixos e maior contacto com a natureza.
Estas novas condições e necessidades têm levado a uma ruptura dos laços com as áreas
urbanas e as grandes metrópoles. A procura crescente de locais onde as pessoas possam en-
contrar uma melhor qualidade de vida, equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e custos de
vida mais baixos terá implicações importantes para as cidades mais pequenas e territórios
periféricos ou rurais. Estes territórios, que têm vindo a sofrer de desafios estruturais como
o despovoamento e a desertificação, podem agora atrair jovens qualificados e promover a
revitalização económica e social há muito desejada. Navegando nesta nova onda, muitos
destes territórios estão a construir infraestruturas, serviços e estratégias para atrair e man-
ter os crescentes empregos e trabalhadores descentralizados, esperando que estes injectem
uma nova vida social e económica às suas empresas e habitantes. O caso paradigmático
é o da Irlanda, onde o Governo, na sua estratégia de desenvolvimento rural 2021-2025

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 201 20/06/2023 16:46:13


(‘Our Rural Future’), apresenta um investimento claro no trabalho remoto como motor
da desenvolvimento dos territórios rurais com – um esquema de vouchers a trabalhadores
remotos para acesso gratuito a digital hubs; instalação de 10.000 hot desks gratuitos; 5
milhões de euros de investimento para melhorar 81 instalações de trabalho remoto em
todo o país; 50.000 euros de financiamento a cada autoridade local para promover opor-
tunidades de trabalho remoto nos seus territórios (Department of Rural and Community
Development, 2022).

Casos de Estudo – Portugal e Espanha

Durante a pandemia o interesse nas ‘novas formas de trabalho’ quer por parte da
política local e nacional, quer por parte da sociedade em geral, cresceu exponencial. Isso
traduziu-se na criação de diversas iniciativas, medidas de apoio e investimentos para agar-
rar esta oportunidade, utilizando-a não só como motor de recuperação pós-pandemia,
mas também como estratégia de combate aos problemas estruturais que a maior parte dos
territórios rurais sofrem. Exemplos dessas iniciativas são os quatros casos (de Portugal e
Espanha) descritos de seguida, que apesar de terem diferentes âmbitos (local, regional ou
nacional), tem todos como premissa a atracção e fixação de trabalhadores remotos e/ou
nómadas digitais como primeiro passo de uma estratégia de repovoamento e revitalização
dos territórios rurais.

Caso 1: Rede ‘Teletrabalho no Interior. Vida Local, Trabalho Global’


202 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(Portugal)

O Ministério da Coesão Territorial em conjunto Ministério do Trabalho, Solidariedade


e Segurança Social criou em 2021 uma rede de espaços de coworking ‘Teletrabalho no
Interior. Vida Local, Trabalho Global’, com o objectivo de facilitando a fixação e atração de
pessoas e empresas em territórios do Interior, contribuindo para a diminuição de desloca-
ções e consequente pegada carbónica e para o aumento da qualidade de vida e conciliação
entre vida profissional e familiar.
Numa primeira fase (até junho 2021) 53 municípios aderiram, mas hoje em dia são já 89
os municípios portugueses de baixa densidade aderentes ao projecto e com um espaço pronto
ou quase pronto a utilizar – 21 na região Norte; 35 na região Centro; 19 na região do Alentejo;
e 14 na região do Algarve – contando ao todo com cerca de 730 lugares de cowork disponíveis.
Os espaços, disponibilizados e geridos pelos Municípios, foram devidamente equipados com
computadores, impressoras e acesso à internet e dispõem de zonas de trabalho, zonas privadas
para videochamadas e reuniões e locais para a apresentações ou ações de formação.

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Figura 1 - Rede de Municípios com espaços de teletrabalho. Fonte: Ministério da Coesão Territorial.

203 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Caso 2: Bragança: Liberdade para Recomeçar (Portugal)

O projecto-piloto “Bragança – Liberdade para Recomeçar”2 visou atrair trabalhadores


remotos para viver e trabalhar durante um mês no Município de Bragança. O Município
ofereceu alojamento gratuito, internet, um cesto de boas-vindas com produtos locais e
vouchers para actividades e experiências locais a quatro famílias seleccionadas. Os partici-
pantes eram oriundos das grandes cidades portuguesas (Porto e Lisboa) e tinha perfis tão
diversos como jornalistas, fotógrafos, instrutores de yoga online ou um antropólogo. Em
apenas 8 dias o projecto recebeu mais de 1800 candidatos, mais de 60% das áreas metro-
politanas portuguesas e mais de 15% de outros países.

2
Ver mais sobre o projecto em: https://www.cm-braganca.pt/servicos-e-informacoes/noticias/
noticia/a-aventura-comeca-agora-braganca-liberdade-para-recomecar

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 203 20/06/2023 16:46:13


Figura 2 - Imagem de promoção do projecto “Bragança, Liberdade para Recomeçar”.
Fonte: Município de Bragança.

De acordo com um dos participantes, “a experiência deve ser repetida em Bragança e


replicada em outros lugares de Portugal (...) o trabalho que desenvolvemos em Bragança
foi exatamente o mesmo que estávamos a fazer em casa. Apenas mudou a localização”.
O projecto teve uma grande repercussão nos meios de comunicação social nacionais
e um enorme alcance nos meios sociais. De acordo com o programa de financiamento
204 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(URBACT), o projecto, associado a uma estratégia de marketing territorial, teve um retor-


no sobre o investimento (ROI) de 1.8 milhões de euros. Para além do impacto no territó-
rio e nas quatro famílias, o projecto abre também portas as estratégias locais direccionadas
a novos grupos-alvo do turismo, tais como trabalhadores à distância e nómadas digitais.
Apesar disso, numa notícia partilhada um ano após o projecto, nenhuma das famílias se-
leccionadas se mudou ou sequer voltou a visitar a região, explicando que os participantes
acharam a “experiência óptima, mas não o suficiente para se mudarem” (Lopes, 2022).

Caso 3: Cooperativa Cowork - Aldeias de Montanha

No final de 2019, ainda antes da pandemia, a Associação de Desenvolvimento


Integrado da Rede das Aldeias de Montanha (ADIRAM) lançou o projecto Cooperativa
Cowork3 em três aldeias do Parque Natural da Serra da Estrela - Alvoco das Várzeas
(Oliveira do Hospital), Lapa dos Dinheiros (Seia) e Videmonte (Guarda). Em parceria
3
Ver mais sobre o projecto em https://coworkaldeiasdemontanha.pt/

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com as Juntas de Freguesia, a ideia do projecto era criar espaços de trabalho em ambiente
rural, aproveitando espaços que estavam sem uso nessas aldeias.
Atrasadas as obras pela pandemia, mas acelerado o interesse nestas novas formas de
trabalho, os espaços entraram em funcionamento em outubro de 2021, altura em que
começaram a receber os primeiros trabalhadores remotos. Após o lançamento destes 3
espaços-piloto, está já em andamento a criação de mais três espaços em três outras aldeias
de montanha – Alpedrinha (Fundão), Folgosinho (Gouveia), Cortes do Meio (Covilhã) -
sendo o objectivo ter oito espaços a funcionar até ao final de 2022.

Figura 3 - Espaço Cooperativa Cowork de Videmonte. Fonte: ADIRAM.

205 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Os espaços distinguem-se não só pelo local onde estão, mas pela forma como foram
construídos (com materiais locais, artesanato, com base na economia circular) e pela li-
gação à população local que “será parte integrante do processo de reabilitação e cocriação
destes espaços” (Francisco Rolo, Presidente ADIRAM).
O projecto tem atraído muita atenção mediática nacional e internacional. Em março
de 2022, o jornal Financial Times publicou uma notícia intitulada “The rise of the rural
remote work” onde dá o exemplo deste projecto e onde conta a história de uma das primei-
ras utilizadores do espaço (Balch, 2022). Até maio de 2022, de acordo com a ADIRAM,
tinham já passado por estes três espaços cerca de 90 pessoas, sendo que cerca de 10% eram
estrangeiros. Apesar destes números e da grande exposição mediática, Andreia Proença,
umas das utilizadoras “habituais” do espaço reconhece em várias entrevistas que deu que
está a maior parte dos dias sozinha no espaço de cowork e que é importante haver cada vez
mais divulgação do projecto (Jornal O Interior, 2021; Coelho, 2022).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 205 20/06/2023 16:46:13


Caso 4: Red Nacional de Pueblos Acogedores (Espanha)

A Red Nacional de Pueblos Acogedores é um projecto desenvolvido pelo El Hueco, uma


empresa social sediada em Soria (Espanha) com o apoio do Grupo Red Eléctrica e da
plataforma Booking.com. O objectivo da iniciativa é atrair trabalhadores remotos para a
aldeias e vilas com menos de 5.000 habitantes, combatendo o grave problema do despo-
voamento que estes territórios sofrem, movimento conhecido como “Espanha Vaciada”.
A rede funciona através do website www.pueblosacogedores.com, onde se pode encon-
trar as localidades aderentes, suas características, desde alojamento, espaços de trabalho,
cobertura da Internet, serviços disponíveis, etc. A plataforma permite filtrar por tipo de lo-
calidade pretendido ou custo de vida semanal, que varia entre 130 a 400 euros por semana.
Além disso, existem também anfitriões locais que aconselham e orientam os trabalhadores
remoto durante a sua estadia, facilitando a sua inserção na localidade.
O projecto conta com 42 ‘pueblos’ aderentes e mais de 1.100 trabalhadores registados
na plataforma, que partilham as suas experiências e colocam outros potenciais trabalha-
dores remotos em contacto. Tal como os exemplos dados anteriormente, o projecto teve
uma grande repercurssão mediática, especialmente durante a pandemia, quer nos media
espanhóis como nos media internacionais, como é o caso da Forbes (Kelly, 2021) ou do The
Wall Street Journal (Papachristou & Miolene, 2022) que apresentaram o caso como opor-
tunidade para os trabalhadores remotos, mas também para a regeneração dos territórios.
206 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4 - Red Nacional de Pueblos Acogedores - Primeiras Localidades Aderentes.


Fonte: REE.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 206 20/06/2023 16:46:13


Considerações Finais

O espaço rural tem vindo a sofrer vários desafios estruturais que afectam o seu po-
tencial de desenvolvimento e a sua capacidade de resistir e recuperar de crises. Para além
destes desafios, várias questões sociais (eurocepticismo, polarização política), económicas
(crises económicas, dívida pública), tecnológicas (tecnologias emergentes), ambientais
(crise climática), e políticas (segurança, guerra, Brexit) têm também ameaçado a coesão
social e económica nos países e regiões europeias.
As novas tendências de trabalho relacionadas com o trabalho remoto e o nomadismo
digital apresentam-se como uma importante oportunidade para os territórios rurais atraírem
e reterem pessoas, fazendo face ao problema do despovoamento e falta de capital humano.
A atracção e retenção destes novos públicos já era vista como relevante para estes territórios
antes da pandemia (Rodríguez-Pose, 2018), mas este interesse foi definitivamente influencia-
do e inflaccionado pelas condições particulares que vivemos durante a pandemia.
Vimos neste estudo, quatro casos desenvolvidos para aproveitar esta oportunidade, em
Portugal e Espanha. Os exemplos apresentados demonstram bem o interesse e investimento por
parte dos governos locais, regionais e nacionais, empresas e sociedade civil nesta temática. Desde
criação de infraestruturas, estratégias de marketing, plataformas digitais, os vários actores locais,
regionais e nacionais têm vindo a actuar para aproveitar esta oportunidade. Apesar disso, e do
seu sucesso mediático e de curto prazo dos exemplos dados, existem ainda algumas dificuldades
para definir estratégias a longo-prazo, integradas entre diversos actores e territórios, para que estes
casos soltos se venham a repercutir em impacto efectivo destes novos públicos nos territórios.

207 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Estes públicos são ainda vistos como visitantes ocasionais que consomem o espaço
rural. No entanto, podemos estar perante uma das maiores oportunidades para o espaço
rural nas últimas décadas. Uma oportunidade que começa com a atracção destes trabalha-
dores remotos e nómadas digitais, mas que rapidamente se pode transformar numa estra-
tégia de revitalização e repovoamento do espaço rural. O espaço rural pode, através destes
novos residentes, voltar a ser um espaço de trabalho e de vida e não apenas um espaço
produzido/consumido para/por visitantes ocasionais (Figura 5).

Figura 5 - Evolução da Função do Espaço Rural.


Fonte: Autor.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 207 20/06/2023 16:46:13


Existe agora a necessidade de desenvolver políticas adaptadas para incorporar estas
novas tendências de trabalho nas estratégias de desenvolvimento local e regional. Para
tornar o trabalho remoto um verdadeiro instrumento para o desenvolvimento rural,
é necessário que este seja integrado nos programas locais de construção de compe-
tências e no mercado de trabalho local. Além disso, é importante garantir as con-
dições adequadas para aproveitar esta oportunidade, tais como a criação de espaços
de coworking, uma comunidade dinâmica de apoio, serviços de informação e apoio
actualizados, bem como estratégias de marketing e inovação territorial partilhadas. Os
decisores políticos devem ir além das abordagens tradicionais, e considerar a elevada
inter-relação entre todos os aspectos do desenvolvimento, instituições e sectores no
espaço rural, procurando definir estratégias partilhadas e participativas com todos os
intervenientes.
A sociedade actual está num ponto de viragem na forma como olha para o seu futuro.
As preocupações sobre uma transição verde e justa para todos estão agora no centro da dis-
cussão. A pandemia da COVID-19 não foi uma “pedra no sapato”, mas antes acelerou este
caminho. No futuro, o principal desafio do espaço rural não será a falta de oportunidades,
mas a forma como as utilizam para promover o seu desenvolvimento económico e social
sustentável, em conjunto com as suas comunidades.

Agradecimentos
208 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Este trabalho é apoiado pela Unidade de Investigação em Governação, Competitividade


e Políticas Públicas (UIBD/04058/2020) + (UIDP04058/2020) e pela Fundação para a
Ciência e Tecnologia através da Bolsa de Doutoramento 2021.05286.BD atribuída ao autor.

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A questão agrária e os assentamentos
rurais no Pontal do Paranapanema:
o caso da Fazenda Santa Rita

Juliane Maístro 1

Introdução

O nosso objetivo maior é mostrar como a presença da CESP se reflete na questão


agrária no Pontal do Paranapanema. No entanto, é preciso entender, primeiro, como essa
problemática comparece ao longo da “evolução” política e social do País e, na especifici-
dade regional.

A questão agrária sempre esteve presente na problemática geral da sociedade brasileira.


Contudo, em alguns momentos da vida nacional, esse tema polarizou os debates com
maior intensidade:

211 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
• Na década de 1930, a discussão da questão agrária girava em torno da crise do café
e da grande depressão iniciada com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929;
• No início dos anos 1960, a discussão sobre a questão agrária fazia parte da polêmi-
ca sobre os rumos que deveria seguir a industrialização brasileira. Questionava-se
então, que a agricultura – devido ao seu atraso – seria um obstáculo ao desenvolvi-
mento econômico, entendido como sinônimo da industrialização do País;
• No período do “milagre brasileiro” (1967 a 1973), a economia nacional passa por
uma fase de crescimento acelerado e pouco se falou da questão agrária. Em parte,
porque a repressão política não permitia. Mas em parte também, porque muitos
achavam que a questão agrária tinha sido resolvida em o aumento da produção
agrícola ocorrido no período do “milagre”.
Segundo Neto (1997), foi na década de 1970 em que ocorre as mais profundas modifi-
cações no rural brasileiro, causada e associada, em grande parte, pelas transformações por que
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Câmpus de Presidente Prudente. E-mail: juliane.maistro@unesp.br.

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passa a estrutura econômica da sociedade, a qual teve início em anos anteriores. Assim, deve-
-se destacar: o acelerado processo de urbanização, tendo como referência o censo de 1970; o
grande aumento do comércio exterior (a partir da segunda metade dos anos de 1960); a mo-
dificação na base técnica de produção rural, absorvendo capital e; a definição de um sistema
de crédito rural, influenciando e amparando o processo de modernização do setor agrícola.
Passada a fase do “milagre”, muitos se dão conta de que o crescimento acelerado do pe-
ríodo 1967/73 havia beneficiado apenas uma minoria privilegiada. E, entre os que tinham
sido penalizados, estavam os trabalhadores em geral, de modo particular, os trabalhadores
rurais.
Um ponto que precisa ser observado é que, quando se pensa em planejamento no
setor agrícola, é importante entendê-lo sempre dentro de um determinado contexto
sociopolítico. Assim, as medidas políticas não são realizadas num contexto neutro,
correspondendo, desta maneira, às posições que ocupam os agentes sociais no interior da
sociedade, segundo Neto (1997). A distribuição dos subsídios não foi realizada de
maneira homogênea entre os agricultores, centralizando-se nas mãos dos mais poderosos, o
que aumentou o cenário de miséria dos pequenos produtores rurais. “Nenhum pla-
nejamento consegue estender benefícios a todos os envolvidos.” (Neto, 1997, p.143). Neste
sentido, segundo Müller (1993), a pobreza moderna rural, efeito da modernização
agrária, não encontra uma maneira de superar esse cenário que lhe é
herdado da dinâmica agrária. Assim:

A pobreza moderna é constituída da modernização brasileira – e da crise nacio-


212 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

nal que vivemos. Sua superação não repousa nos liames que mantém com as ativida-
des agrárias modernas, mas com a dinâmica sociopolítica do país. Será um projeto
político nacional, democrático, que poderá das as coordenadas básicas para a criação
de empregos e distribuição de ativos da população pobre e moderna que reside nas
pequenas cidades e vilas e no meio rural. (Müller, 1993, p.15).

Com o início de uma relativa abertura política no País– a partir de 1978 –, muitas
coisas voltam a ser discutidas e, entre elas, retoma-se com pleno vigor o debate sobre a
questão agrária, novamente dentro do contexto mais geral das crises do sistema econômico
capitalista.
Quando o governo da “Nova República” anunciou a sua “Proposta para Elaboração
do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República” (1986), evidenciou-se, uma
vez mais, o lugar que a questão agrária ocupa na problemática geral da sociedade brasileira.
Houve violenta reação dos grandes proprietários rurais, em todos os cantos do País. Essa
reação variou de acusações diversas ao governo, à mobilização armada.

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Segundo Delgado (2012), foi com a promulgação da Constituição de 1988, que há
uma nova configuração da estruturação das políticas públicas. No capítulo III, por exem-
plo, sobre “Da Ordem Econômica”, será tratado em sete artigos sobre os princípios e dire-
trizes da “Política Agrária e Fundiária e da Reforma Agrária”, em partes ligados ao Estatuto
da Terra (função social), em parte da política agrícola vigente na época do regime militar
(política agrícola conjuntural).
Ainda segundo Delgado (2012), existe, no período posterior a Constituição de 1988,
três vertentes de orientação político-administrativa às políticas agrícola-agrária: a primeira
referente a herança do projeto de “modernização conservadora” do período militar; a
segunda vertente sobre a pressão neoliberal por desregulamentação, livre comércio e
estado mínimo e; a última, sobre a vertente normativa do texto constitucional, cuja novida-
de jurídica consiste em elevar à categoria de direito constitucional vários dos princípios de
política agrária contidos no Estatuto da Terra, ignorados pelo regime militar. Como pode
ser visto, há séculos reivindicando terra, o campesinato aponta a timidez da “Proposta”
e reage com renovadas ocupações de terras. Segundo Grisa e Schneider (2014), his-
toricamente a agricultura familiar (ou pequenos agricultores) sempre se encontraram às
margens das iniciativas do Estado no país, porém iniciaram um novo caminho com a
Constituição de 1988, estimulando novos espaços para a participação social e
reconhecimento de direitos.
A institucionalização da primeira política agrícola nacional, o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura - PRONAF, em 1995, ocorreu devido as mobilizações so-
ciais realizadas pelos movimentos sociais relacionados à agricultura familiar, além dos in-

213 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
teresses do governo federal em preservar a ordem social no campo e certa influência no
sindicalismo dos trabalhadores rurais. (Grisa e Schneider, 2014).
Por volta da década de 1990, as lutas do MST estavam em crescimento e os confli-
tos agrários aumentavam, tomando repercussão nacional e internacional. Somado a isto,
a continuidade das mobilizações sociais, desencadearam o desenvolvimento da política
de assentamentos de reforma agrária, que havia ganhado um novo impulso e a proposta
do Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (1º PNRA), que logo em seguida foram
acalmadas pelas pressões de atores e organizações contrários a este referencial. (Grisa e
Schneider, 2014).
Anunciado como “Proposta para Elaboração” e em relação ao qual a sociedade teria 30
dias para se manifestar, esse esboço do 1º PNRA permanecerá nesse impasse por seis meses,
ao fim dos quais sofrerá, segundo cobertura da imprensa (ver os números da Folha de São
Paulo da época), doze reformulações até receber a versão final.
É dentro desse contexto mais amplo e, sobretudo a partir do governo democráticos que
se instala no Estado de São Paulo em 1982, que os sem-terra do Pontal se organizam e

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pressionam em busca de soluções para a questão agrária dessa região. Nesse sentido, o ob-
jetivo mais específico deste artigo é mostrar como se deu a história, as “lutas” e ocupações
na região do Pontal do Paranapanema, mais especificamente, o caso da Fazenda Santa Rita,
através de bibliografias, dados atualizados do ITESP, campo na região e entrevista. Assim,
para além de entendermos a história desta região, se faz necessária uma reflexão sobre
a prospecção de futuro (ou não), diante da atual realidade do assentamento em estudo.

A presença da CESP e a Questão Agrária na região

Em 1980 teve início a construção das usinas hidrelétricas da CESP no Pontal do


Paranapanema – uma resposta à crise energética do país. As UHEs de Rosana, Taquaruçu
(rio Paranapanema) e de Porto Primavera (rio Paraná) construídas pela CESP no Pontal
do Paranapanema, certamente são as últimas obras de grande porte realizadas no território
paulista. Com a conclusão dessas UHEs, as bacias hidrográficas do Estado de São Paulo
não comportarão mais grandes hidrelétricas.
A barragem de Porto Primavera tem um comprimento de 11.273 m, sendo 2.700 m
de aterro compacto, 7.700 m de aterro hidráulico e 873 m de estruturas de concreto. Com
a construção da barragem de Porto Primavera, cerca de 250 km à montante do rio Paraná
foi transformado em um extenso lago, atingindo as proximidades de Ilha Solteira (largura
média de 12 a 14 km, superfície de 2.250 km² e volume d’água de 21,3 km3, cota 259 m).
O reservatório criado com o barramento do rio, introduziu profundas alterações
no meio ambiente. O seu nível normal está 20 metros acima do nível do rio em Porto
214 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Primavera e, em consequência, a margem situada no Estado de Mato Grosso do Sul, cons-


tituída de várzeas, sofreu uma inundação maior do que a margem paulista, em sua grande
parte formada por “falésias”. Além do mais, as ilhas fluviais, a maioria delas habitada e com
intensa atividade agrícola, ficaram submersas. Novas ilhas, porém, surgiram alterando e
completando a paisagem cujas principais características são dadas pelo reservatório.
No momento em que se optou pela construção das UHEs no Pontal do Paranapanema,
o país se achava numa fase de aumento do consumo de energia elétrica, e de crise energéti-
ca, o que, por si só, foi suficiente para justificar tal opção.
No entanto, em 1982/1983 manifesta-se uma recessão no País, com o consumo de
energia elétrica apresentando taxas bastante inferiores às das duas décadas passadas, o que
aliado às dificuldades financeiras, levou a CESP a readequar seus cronogramas de obras.
Assim, as UHEs de Taquaruçu, Rosana e Porto Primavera, que estavam programa-
das para entrarem em “início de operação” em 1989, 1990 e 1991, respectivamente, a
partir de 1983 têm seus programas de obras condicionados às perspectivas de evolução
de mercado.

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Um dos impactos, foi o deslocamento de grande contingente populacional das áreas
de influências, visando o reassentamento da população, de difícil reabsorção pelas ativida-
des e núcleos remanescentes, agravados pelo baixo nível de renda da população atingida, o
que agudizou a demanda de habitações nos bairros periféricos dos centros urbanos.
Em resumo, a CESP modificou muito a realidade do Pontal. Aos menos atentos, pode
parecer que as obras das UHE geram apenas energia que vai beneficiar tão somente os
centros de maior demanda, situados em regiões distantes, como São Paulo, por exemplo.
Mesmo no caso de impacto social negativo, provocado pela dispensa de mão- de-obra não-
-qualificada, no momento da desaceleração das construções das UHEs, podemos afirmar
que a CESP interferiu, na medida que ela concentrou todo um contingente populacional,
que passou a exercer pressão, evidenciando, como nunca a gravidade da questão agrária
no Pontal.
Esta situação modificou-se temporariamente, com o início da construção das
usinas da CESP, em meados de 1980. Tratava-se de mais uma manifestação da
mentalidade ambiciosa que regeu os nossos destinos durante mais de uma década, com
prejuízos para o País e para o povo. Mudado o governo e esgotados os limites de
endividamento da CESP e do Estado, as obras foram semiparalisadas, a maior parte dos
trabalhadores demitidos, com agravamento do quadro geral de pobreza. Se antes não tinha
trabalho para os que moravam nos municípios do Pontal, agora com o aumento de
operários que vieram de outras cidades para trabalhar nas empreiteiras, somados aos
ilhéus que viviam nas ilhas do rio Paraná, e que foram desalojados pelas enchentes que se
tornaram muito frequentes após a construção das barragens de Itaipu e de Ilha Solteira, o

215 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
número de desempregados aumentou muito, agravando os problemas sociais na região.
O fato é que a recessão econômica colocada em prática pelo Governo Federal e apro-
fundada a partir de 1982, já encontrou o Pontal em situação de crise.

Reassentamento e Reforma Agrária no Pontal

Por iniciativa do Ministro Extraordinário de Assuntos Fundiários, Danilo Venturini,


milhões de brasileiros tiveram acesso a uma pequena cartilha de esclarecimento chamada
“ABC da Terra”, lançada no dia 15 de novembro de 1983, onde se pode ler: “A terra cum-
pre sua função social quando seu uso proporciona o bem-estar de todos os que dela depen-
dem. Para isso, precisamos cultivar e aproveitar corretamente a terra”. Um diálogo entre
os dois personagens em torno dos quais se desenrola o texto da cartilha, torna ainda mais
clara esta ideia: “Tem gente que tem terra que não acaba mais e não usa”, diz o primeiro.
Ao que seu interlocutor retruca: “Se não usar, o Governo pode desapropriar e passar para
quem sabe usar”.

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No mesmo dia em que a cartilha entrava nacionalmente em circulação, 500 famílias
de lavradores, desempregados e famintos, ocupavam uma área de mata da Gleba Tucano,
pertencente à Colonizadora Camargo Corrêa S/A, além de uma área, também de mata,
pertencente à Fazenda Rosanela, de propriedade da VICAR S/A Comercial e Agropastoril,
na esperança de ali poderem se fixar e cultivar a terra.
Oito dias após essa ocupação das terras, todo o efetivo do 18º Batalhão da Polícia
Militar/I, sediado em Presidente Prudente, foi designado para o Pontal do Paranapanema,
no sentido de fazer cumprir a ação de despejo dos posseiros.
No dia 22 de novembro de 1983, portanto, na véspera do despejo, a pedido do
Governador do Estado, chegava à área o Secretário do Trabalho, Dr. Almir Pazzianotto, que
colaborou nas negociações juntamente com o Dr. Zelmo Denari, Procurador do Estado, que
no momento representava o Secretário da Justiça, mais o Padre José Antônio, e os coman-
dantes da tropa militar que já se encontravam na área para realizar o despejo. Em função
dessas presenças, os posseiros acataram a decisão judicial e se retiraram pacificamente.
Após os momentos de negociações, o Dr. Almir Pazzianotto autorizou os sem- terra a
acamparem ao lado da rodovia, ao mesmo tempo que pedia que o pessoal permanecesse
calmo, e que desse um fôlego para as negociações, que deveriam acontecer logo e, sendo
assim, providenciou água através da CESP.
O dia-a-dia das 487 famílias acampadas ao longo da SP-613 que liga Teodoro Sampaio
à Rosana, foi muito difícil: debaixo de lonas de plásticos ou de barracas de sapé, a tempera-
tura chegava a 50ºC nos meses mais quentes do ano. A água armazenada pela CESP, junto
ao acampamento, estava sempre quente, e a incerteza da alimentação do dia seguinte era
216 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

constante, porém, nada disso tirou o ânimo dos acampados.


Neste sentido, foi realizada uma campanha de apoio aos sem-terra do Pontal denomi-
nada “Pontal Urgente”, que contou com a colaboração de várias Secretaria de Estado e de
Prefeituras da região.
Durante a fase do acampamento, o Governo do Estado realizou diversas reuniões com
os fazendeiros no sentido de chegar a um acordo. Uma das propostas que mais se discutiu
entre as partes foi a de que o Governo ficaria com 25% da área, a escolher, e em troca daria
os títulos de posse definitiva aos fazendeiros. Os fazendeiros propuseram o assentamento
dos acampados dentro da área da Reserva Estadual do Morro do Diabo. A discussão das
propostas se dava em clima de tensão e de muitas ameaças pessoais e, por fim, não foram
aceitas. Os proprietários confessaram a disposição de organizar uma milícia armada.
É bom lembrar que a grilagem de terras no Pontal do Paranapanema vem do século pas-
sado, mas a ocupação começou no final da década de 1940, após o Governo ter criado, em
1941 e 1942, as Reservas Estaduais do Morro do Diabo e a do Pontal, respectivamente. Os
supostos proprietários das terras possuem declarações de posse e títulos, que passaram a ser

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contestados pelo Estado a partir de 1957. Diversos processos discriminatórios envolvendo
amplos perímetros, alguns já julgados, procuraram, durante anos, demonstrar em juízo as
irregularidades dos documentos de posse e o caráter devoluto das terras.
A extensão das glebas em litígio, a morosidade das decisões judiciais e a omissão de
diversos governos estaduais, agravaram os problemas fundiários da região, uma das mais
carentes do Estado.
A impossibilidade legal do Governo Estadual de aplicar o Estatuto da Terra (Lei 4.504
de 30 de novembro de 1964), para definir a desapropriação das terras por interesse social,
conforme as razões previstas no artigo 20: latifúndios, áreas beneficiadas por obras de vulto,
desenvolvimento de atividades predatórias, elevada incidência de posseiros e uso inadequa-
do da terras, levou-o a pleitear junto ao Ministério dos Assuntos Fundiários e do INCRA,
a aplicação de medidas como o Estatuto da Terra, diante de um problema fundiário que
ameaçava transformar-se em conflito social.
O INCRA e o Ministério entenderam que não poderiam atuar na questão, mesmo
porque o Estado vem movendo ações discriminatórias na região há vários anos e estas se
alongam na justiça, não só por serem demoradas, mas também porque houve omissão das
administrações estaduais anteriores. Assim, o INCRA, em vez de atender à demanda do
Estado, dispõe-se, através de convênio, a participar ativamente das ações discriminatórias
junto com o Governo Estadual, partindo para novos processos, com base na nova lei de
discriminação, mais rápida.
A posição do Governo Federal, de não aplicar o Estatuto da Terra porque a questão seria
de âmbito estadual, levou o Governador Franco Montoro a “declarar de interesse social para

217 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
fins de desapropriação de terras no Município de Teodoro Sampaio, a Gleba XV de Novembro
com uma área de 13.100 hectare, através do Decreto nº. 22.033 de 23 de março de 1984.
Nas áreas desapropriadas, foram implantados o Projeto de Reassentamento (Gleba
Rosanela) e outro da Reforma Agrária (Gleba XV de Novembro e Santa Rita), Figura 1.
Na execução do Projeto de Reassentamento da Gleba Rosanela, em que foram atendidas
parte das famílias acampadas às margens da SP-613, mais cerca de 300 famílias de ilhéus e
ribeirinhos atingidos pelo enchimento dos lagos da UHE de Rosana e Porto Primavera, a
CESP colaborou com o Instituto de Assuntos Fundiários da Secretaria da Agricultura.
Passos (1988), relata a situação dos acampamentos, conforme texto abaixo:
Quando visitamos – maio/87 – o Projeto de Reassentamento da Gleba Rosanela,
acompanhados por três técnicos da CESP, constatamos que essa empresa planejou e
realizou toda uma infraestrutura para conservação do solo. Por exemplo, o ribeirão
do Engano que já estava assoreado antes da implantação desse Projeto (iniciado em
setembro de 1986), em função das pastagens mal formadas, se apresentava com uma
insignificante lâmina d’água. (Passos, 1988, p.143).

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Figura 1- Assentamentos rurais no Pontal do Paranapanema paulista (1986).
Fonte: LANDSAT (1986). Org.: GONÇALVES (2022): Adaptado por: Maístro (2022).
218 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(A – Gleba XV de Novembro; B – Fazenda Santa Rita;


C – Gleba Dois mil Alqueires e D – Fazenda/destilaria Alcídia).

A imagem de 1986 (Figura 1) revela a existência de dois importantes assentamentos


rurais àquela época, os quais ressaltavam na paisagem pelo grande retalhamento do parce-
lar, quando comparado com seu entorno: a Gleba XV de Novembro, com 13.100 hectares
e a Gleba da Fazenda Santa Rita, ambas criadas como projeto de Reforma Agrária do
Governo Estadual. Uma terceira área de assentamento é observada nas proximidades da
Reserva Estadual do Morro do Diabo, em sua parte oeste. Essa área pertencia à construtora
Camargo Correia e era conhecida como “Dois mil alqueires”, a qual foi alvo de ocupação
por parte dos movimentos de luta pela terra2.
A CESP utilizou tratores de esteira, para efetuar a cada 10/12 m de distância,
“murunduns” (uma espécie de curvas de nível com terraceamento mais volumoso), para

2
No início, as ocupações se davam em áreas de mata. Somente, com a evolução do MST é que as áreas de
fazendas formadas (pastagens, sedes e outras benfeitorias) passaram a ser alvo de ocupação.

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conter a erosão do solo, causada pelas enxurradas. Deu-se preferência à construção de
“murunduns” e não de curvas de nível, porque estas últimas exigem conservação anual, o
que dificultaria, no início, a realização pelos assentados, em função das limitações técni-
co-financeiras e culturais. Os “murunduns” estão projetados para se manterem por 5 ou
6 anos, sem necessidade de conservação. Em cima dos “murunduns” se planta gramíneas
e mucunha preta. Para recuperar o leito do ribeirão do Engano, foram diversos açudes
de modo a permitir o armazenamento de um volume de água suficiente para o gado.
Segundo os técnicos da CESP, o ribeirão do Engano será a partir de agora alimentado
tão somente pelo lençol freático, e não mais pela água de enxurradas. A formação do
lago da UHE de Rosana e a consequente subida do nível do rio Paranapanema, alterou
muito pouco o nível do ribeirão do Engano. Na verdade, apenas uma extensão de 1,5 a
2,5 km à montante da foz desse ribeirão é que foi alterada, no sentido de alargamento
do seu leito.
A abertura de estradas para circulação interna das propriedades no Sudoeste Paulista,
é grande responsável pelo início e agravamento dos processos erosivos, muitas vezes com
formação de voçorocas. Nas áreas de assentamento, com participação da CESP, observa-
mos que foram construídas muitas estradas para facilitar a comunicação entre os pequenos
lotes, todas elas com “camaleão” a cada 12/15 m, o que somado aos “murunduns” da área
de plantio e de pastagens evitam a erosão.

Os conflitos de terras no Pontal: o exemplo da fazenda Santa Rita

219 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Nesse momento, passamos a tratar de problemas inerentes e atuais da questão agrária
no extremo sudoeste paulista: os conflitos de terras do Pontal, através do exemplo da fazen-
da Santa Rita, localizada no município de Euclides da Cunha Paulista; (b) da presença da
CESP – ora amenizando a problemática regional, nos momentos de absorção de mão-de-
-obra, na fase de maior aceleração da construção das UHEs de Rosana, Taquaruçu e Porto
Primavera, ora aprofundando ainda mais essa questão, nos momentos de desaceleração
dessas obras e, consequente liberação dessa mesma mão-de-obra.
O Assentamento Santa Rita, tem 5 km de extensão e suas terras estão entre o córrego
da Anta e o córrego Santa Rita. O conflito de terra da fazenda Santa Rita foi o mais divul-
gado pela imprensa regional e estadual e, o que mais atraiu o nosso interesse. Contudo,
em outras “propriedades” os fazendeiros conseguiram expulsar os arrendatários/posseiros
utilizando-se de mecanismos idênticos.
O assentamento Santa Rita (Figura 2) está localizada no município de Euclides da
Cunha, tendo como marco geográfico mais importante, o ribeirão do Piau, na vertente do
rio Paranapanema.

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Figura 2 – Núcleo central do Assentamento Santa Rita.
A área de solo nu é o “campo de laço”. Ao fundo, o rio Paranapanema.
Fonte: Gonçalves (2022) - Drone.

É nesta fazenda que surge o primeiro conflito de terra, na região. Inicialmente eram
155 famílias que ocupavam uma área de 209 alqueires, introduzida numa propriedade
220 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de 4.500 alqueires. A maior parte dessas famílias foi colocada na área pelo fazendeiro
Francisco Telles, na qualidade de arrendatários. Francisco Telles arrendou a área do Justino
de Andrade, que se dizia o proprietário. O arrendamento entre Justino de Andrade e
Francisco Telles foi feito pelo prazo de 3 anos, durante os quais, este último desmataria a
área, venderia a madeira, cultivaria o solo e, ao final, entregaria a área com capim plantado.
Como Francisco Telles não tinha condições de cumprir o acordo dentro do prazo estabele-
cido, subarrendou a referida área para as famílias, presentes na fazenda, pelo prazo de sete
anos, com o trato de entregar o capim plantado, ao final deste prazo.
Vencido o acordo entre Justino de Andrade e Francisco Telles, este foi obrigado a
entregar a área ao proprietário. As famílias que subarrendaram a área, sem conhecer o
contrato entre os dois fazendeiros, procuraram o Sr. Justino para negociar a permanên-
cia deles na área, até o final do contrato dos sete anos, como arrendatários. Este não
aceitou e, os ameaçou de expulsão das terras, mas, como já corria o boato de que as
terras eram do Governo do Estado, essas famílias resistiram à pressão do fazendeiro. É
bom lembrar que essas famílias sempre se mostraram dispostas a um acordo e a pagar a

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renda pelo uso da terra e que o Sr. Justino se negou a qualquer acordo, apelando para o
despejo das famílias.
Foram frequentes os atos de violência – espancamentos, assassinatos, envenenamentos
de poços, queima de barracos, destruição das lavouras, etc. – conforme descrição feita
pelos interessados e pela imprensa. Sem ajuda do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, essas
famílias contrataram um advogado e iniciou-se, então, a luta judicial. De arrendatários,
eles passaram a posseiros. Apesar da interferência do Bispo Diocesano e do vigário da
Paróquia nestas contestações, recorrendo muitas vezes às autoridades competentes, denun-
ciando as injustiças, o processo ia se arrastando com mais violência e ameaças por parte dos
jagunços do fazendeiro.
No dia 22 de agosto de 1973, o 18º Batalhão de Polícia Militar, sediado em Presidente
Prudente, se dirige para a Fazenda Santa Rita para garantir o cumprimento da ação judicial
de despejo. Foi um despejo violento, porém sem mortes. Na medida em que as famílias iam
deixando suas casas, carregando o que podiam, os capatazes da fazenda, misturando-se aos
policiais ateavam fogo nos ranchos ao mesmo tempo em que os tratores vinham destruindo
as plantações que já estavam na época da colheita. Este acontecimento foi documentado
pela TV Tibaji do Estado do Paraná. Muitas famílias foram recolhidas nas casas de seus
familiares e amigos, algumas foram alojadas na Escola Estadual de Euclides da Cunha,
outras foram para o Estado do Paraná e do Mato Grosso, sendo que uma parte voltou
novamente para o arrendamento, por não ter outra opção.
Nesse primeiro momento, somente um grupo foi expulso, pois a tática era fazer o
despejo por parte. No governo anterior, essas famílias conseguiram algumas vitórias, como

221 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
o direito de retirar a madeira da própria área para construir suas casas, que antes eram de
pau-a-pique. O Sr. Justino conseguiu suspender, através de uma decisão do Tribunal de
Justiça de São Paulo, a emissão da posse das terras desapropriadas, já determinada pelo juiz
da Comarca de Teodoro Sampaio em favor da Fazenda estadual.
A situação dos trabalhadores rurais no Pontal se agravou ainda mais, após a tentativa
governamental de impor melhores relações de trabalho, através da aplicação do Estatuto
do Trabalhador Rural, em 1968, quando os donos das fazendas de café, localizadas na
região – distritos de Cuiabá Paulista, Novo Horizonte, Oriente e Promissão – se recusaram
a contratar seus antigos colonos como mensalistas e com direito a 13º salário, conforme
prescreve aquele Estatuto.
As geadas de 1975 e as facilidades de compra de terras mais baratas em áreas de cerra-
do, levou os plantadores de café do Pontal a venderem as suas propriedades e se dedicarem
à cultura de café na região de Franca/SP.
Atualmente, nessas propriedades estão sendo cultivadas soja e pastagem, absor-
vendo menos mão-de-obra. E, mais recentemente, predomina o plantio de cana de

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açúcar e a instalação de inúmeras usinas de álcool-açúcar. A Figura 3 abaixo, mostra
uma fotografia tirada em campo, onde podemos verificar como era a estrutura das
primeiras casas.

Figura 3- Casa no Assentamento Santa Rita.


Fonte: Maístro (2022).
222 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A substituição da cultura do café pela soja, no Norte do Paraná, interferiu muito na


vida dos trabalhadores rurais daquele Estado e do Pontal do Paranapanema, uma vez que,
esses últimos se deslocavam para o Estado vizinho, nos momentos da colheita dessa cultura,
e tinham nessa atividade, importante fonte de renda.
Devido ao seu atual sistema produtivo, o Município de Teodoro Sampaio foi res-
ponsável pela expulsão de 1.606 trabalhadores rurais entre 1975 e 1980 – cerca de 25%
de sua força de trabalho agrícola. A região do Pontal é hoje uma das menos desenvolvidas
do Estado: a taxa média de analfabetismo ultrapassa os 30%; cerca de 20% da população
economicamente ativa recebe menos e 1 salário mínimo; 18% recebe de 1 a 2 salários mí-
nimos e, aproximadamente metade da população não tem remuneração alguma. Apenas
3,5% ganha mais de 5 salários mínimos (Relatório CESP/1980).

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A criação do Assentamento Santa Rita

Após a resistência dos arrendatários, o Estado respondeu com a criação do


Assentamento Santa Rita, no dia 23 de outubro de 1991. Uma particularidade marcan-
te desse Assentamento é que a grande maioria dos beneficiários iniciais residem lá ou
morreram como assentados. Apenas quatro assentados iniciais foram indenizados pela
benfeitorias e deixaram de serem beneficiários.
Atualmente o assentantamento tem 51 lotes. No início, eram 90 famílias, no entanto,
como a área do Santa Rita não comportava todas as famílias, foi criado o Acampamento
Porto Letícia, para onde foram deslocadas 36 famílias e, na Gleba XV de Novembro,
foram assentadas 10 famílias, na qual houve desistência de 02 famílias de assentados.
Quanto a faixa etária média dos assentados, ela está em torno de 50 anos.
A grande maioria dos lotes do Santa Rita tem dimensões média de 14 hectares, en-
tretanto, há também alguns poucos lotes com cerca de 20 hectares, aproximadamente.
O uso do solo é dedicado à pecuária leiteira, de baixo a muito baixo rendimento e ao plan-
tio de mandioca, o que é considerado pouco para uma vida digna dos assentados. Atualmente,
está em início de implantação o cultivo do bicho da seda, que será analisado mais adiante.
Observamos, também, que os assentados usufrui de benefícios financeiros do FUNRURAL.
Em termos de lazer e convívio social, os entrevistados apontam como atividades a
prova de laço (Figura 4), jogo de futebol no campo da área comunitária do assentamento,
pesca, churrascos e festas culturais como fogueiras em comemorações de datas religiosas.

223 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4 - Assentamento Santa Rita – Campo de laço.


Fonte: Passos (2022).

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Ainda é importante citar sobre a questão mais atual, que está em torno do Projeto de
Lei 410/21, o qual permite a titulação dos assentamentos do Estado de São Paulo. A não
titulação mantém a estrutura da comunidade, mesmo quem tem o interesse de deixar de
ser beneficiário, pois é necessário comunicar o Estado e iniciar o processo de indenização
de benfeitorias previsto na lei 4957/85 e na lei 16115/2016; o lote é avaliado pelo Estado,
publicado o período de inscrição, todos os interessados inscritos devem possuir cadastro
no ITESP, ser maior de 18 anos, comprovar moradia na região no mínimo dois anos e três
anos de experiência agrícola.
Após o cadastro, os interessados passam por uma Comissão de Seleção, onde a do-
cumentação é avaliada. Posteriormente, é criada uma lista, onde o inscrito com maior
pontuação em primeiro até o de menor pontuação em último, levando em consideração
para esta pontuação se é agregado (filho de assentado) ou não, se possui família ou é
solteiro, força de exploração maior ou menor, experiência agrícola comprovada, entre
outros requisitos.
Após todo este processo, o de maior pontuação determina se indeniza o beneficiário
e passa a ser o novo beneficiário ou desiste. No caso desistência, o segundo colocado é
convocado até um dos classificados realizar o pagamento da indenização e, passar a ser
o novo beneficiário. Com essa estratégia, o assentamento mantém a estrutura, sendo
bem provável que o lote seja adquirido, no futuro, por filhos de assentados do próprio
assentamento ou de assentamentos vizinhos.
Entretanto, com a titulação, os beneficiários poderão comercializar o lote sem a inter-
venção do Estado, podendo vender pra quem tem mais poder aquisitivo, não sendo neces-
224 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sária a triagem para saber se há aptidão agrícola ou não, além de se esperar que aumentará
substancialmente o valor por hectare da terra, já que pelas regras atuais, os mesmos podem
negociar apenas as benfeitorias existentes no lote. Portanto, a titulação pode ser um “tiro
no pé” dos assentados e do assentamento, pois, pode ocorrer que uma mesma pessoa com-
pre vários lotes, desestruturando o projeto, iniciado através de muitas lutas, sofrimentos e
perdas. Abaixo pode-se visualizar, na Figura 5, uma antiga escola abandonada dentro do
assentamento Santa Rita.

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Figura 5- Escola abandonada.
Fonte: Passos (2022).

Diante dessas constatações, é possível prever o futuro do assentamento, conforme rela-


to de técnicos do ITESP, de Euclides da Cunha Paulista:

A lei 16115/2019 trouxe consigo o Contrato de Concessão de Uso, o qual per-


mite a um dos agregados (filho de beneficiário) ser destinado uma área do lote e,
nesta área, existe a possibilidade do agregado emitir um talão de nota produtora e

225 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
uma declaração de aptidão ao PRONAF (DAP). A DAP permite que o agregado
acesse linhas de financiamento do PRONAF, desde que sua atividade seja a amplia-
ção da atividade dos pais ou uma nova atividade. Fazendo com que os filhos de bene-
ficiários se estabeleçam na propriedade, e outros voltem, pois, existe a possibilidade
de retirar o sustento da propriedade para sua família.
Com a Titulação, o mais provável é que ocorra a reconcentração das terras,
mesmo que se crie mecanismos para evitar essa dinâmica. Uma das consequências
dessa provável nova realidade, serás o êxodo rural. E, pior, um duro golpe na história
dos pioneiros do assentamento. (ITESP, abril de 2022, Saída de Campo).

O projeto Bicho-da-Seda

Os agentes locais, especialmente os técnicos do ITESP e os gestores públicos munici-


pais, buscam alternativas para o desenvolvimento local-regional e permanência dos assen-
tados, mesmo após o direito de Titulação.

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Uma das alternativas viáveis é o plantio da Amora para a criação/reprodução do Bicho
da Seda. O objetivo imediato dessa alternativa, denominada de “Plano Rota da Seda” é
que, em 2023, hajam ao menos 500 assentados engajados nessa atividade. Para o municí-
pio de Euclides da Cunha Paulista, é esperado que se alcance o número de 120 produtores
envolvidos com a sericultura, segundo informações coletadas em campo.
A produção do Bicho-da-Seda deve atenuar, de modo significativo, o risco do êxodo
rural dos filhos de assentados rurais. Esta prática é respaldada na Legislação Estadual (Lei
4957, de 30 de dezembro de 1985), que dispõe sobre planos públicos de valorização e
aproveitamento de recursos fundiários.
Somado a isto, a Lei 16115, de 14 de janeiro de 2016, altera a Lei nº 4957/85, com al-
gumas medidas que tentam sanar este problema, como a emissão do Termo de Concessão
de Uso da propriedade dentre outras melhorias; a emissão de um segundo talão de nota pro-
dutora que permite a comercialização da produção, uma segunda declaração de aptidão ao
PRONAF (DAP) na mesma propriedade. A DAP permite que o agrafado acesso linhas de
financiamento a taxa de juros de 4% ao ano, isso em 2021 com carência, prazos e parcelas
baseados na atividade a ser financiada.
A alteração da legislação e a contemplação de medidas para atenuar o problema do
êxodo rural, faz com que a sericicultura se torne ainda mais evidente, servindo como uma
alternativa de atividade agrícola, impedindo que filhos de assentados pela reforma agrária
tenham interesse de em sair destas áreas em busca de empregos em grandes centros.
É evidente que, com o desemprego em alta, a sericicultura ganha relevância como al-
ternativa para manter o assentado e os seus filhos no lote. Já se nota, inclusive, o retorno de
226 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

alguns filhos que migraram para centros urbanos e, na dificuldade de emprego, estão retor-
nando aos assentamentos e se dedicando a atividades próprias de policultura, piscicultura,
sericultura, melhoria do (pequeno) rebanho leiteiro e, também, complementação da renda
a partir de dias de trabalho prestados aos vizinhos.
O impacto negativo sobre a atividade da sericultura, uma atividade muito sensível, é a
pulverização de agrotóxicos (inseticidas), nas fazendas vizinhas que se dedicam ao plantio
da soja e da cana-de-açúcar.
Desta maneira, é urgente que se faça o Ordenamento Ecológico e Econômico, de
modo a que o desenvolvimento local-regional tenha caráter de sustentabilidade.

Um depoimento histórico

No dia 10 de abril de 2022, visitamos o Assentamento Santa Rita e registramos o


depoimento de uma pioneira desse assentamento. De origem Paraibana, chegou ao
Assentamento aos 16 anos, no ano de 1969. Na época, morava com os pais em lote

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arrendado de Francisco Teles. Segundo a depoente, os arrendatários seriam donos da terra
após três anos, segundo informações dada por Chico Teles, porém não era verdade. Alguns
anos depois, os moradores foram expulsos, por cerca de 118 policiais, de suas casas e, estas,
queimadas. Muitos assentados foram presos e veneno foi colocado nos poços de água, cau-
sando diversas doenças. Na fase de expulsão, a Fazenda Santa Rita tinha aproximadamente
609 habitantes, os quais foram socorridos pelo promotor Delmo Zanari.

A entrevista:

Em entrevista semidirigida, realizada com a Sra. Araci Ramalho da Silva, no dia 10 de


abril de 2022, seguindo o roteiro pré elaborado, colhemos as informações abaixo:

Nome, idades, estado civil, com quem mora?


Nome: Araci Ramalho da Silva
Idade: 70 anos
Estado civil: Viúva
Com quem mora: filho, nora e 1 neto.
Lote: 38

O Sr.(a) gosta de viver neste lugar? Porquê?


Gosta de viver neste lugar por conta da história que construiu, criando sua família
e raízes.

227 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Sempre morou aqui?
Não, veio da Paraíba, depois foi morar em Cafezinho (Teodoro Sampaio) e, por fim,
no Assentamento Santa Rita. Os motivos que a fizeram ficar foi a família (os pais, irmãos,
filhos da irmã).

Como era este lugar no passado (10, 20, 30 anos atrás)? O município mudou mitos deste
tempo até os dias de hoje? Em sua opinião quais foram as principais mudanças?
Tinha muita mata (peroba, madeira), que foi derrubada com autorização para plantar
roça com contrato de produtor rural. A peroba foi utilizada para construir casas.

Quando o senhor(a) pensa neste lugar em que vive, qual é a primeira imagem que lhe vem
na cabeça?
Pessoas que perderam a vida, destruição de casas, da roça...

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Qual a importância do córrego e/ou de suas nascentes no seu dia-a-dia?
Córrego “bueirinho” e córrego da Anta. Córregos perderam o volume de água nos dias
atuais.

Como o senhor(a) avalia a situação dos recursos naturais neste local?


Ruim. Solo foi muito degradado, falta recursos (adubo, calcário) e apoio do estado.

De que forma o senhor(a) pensa o futuro deste lugar?


A esperança de melhora vem da mudança de governo, que olhe e invista nos assenta-
dos, pois quem está bem são apenas os fazendeiros. A população mais nova procura possi-
bilidades fora, sai para estudar e não volta por falta de oportunidades no local.

Qual imagem o senhor(a) levaria deste lugar em caso de uma mudança amanhã?
Lugar tranquilo, que pode criar a família. Sentiria saudade.

Quais fotografias o senhor(a) enviaria a um parente que está distante para que ele conheça
o lugar onde vive?
A mangueira que o pai plantou.

Quais paisagens, ou quais elementos da paisagem lhe choca mais? (qualquer coisa que você
considere negativo e que gostaria que desaparecesse)
Não há nada que a incomode.
228 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A sua vida neste local está melhor agora do que no passado?


Sim, está melhor. Hoje tem água encanada, energia, porém tem como melhorar com
incentivos do governo.

Resumo

A título de introdução desse artigo, é preciso entender, primeiro, como essa problemática com-
parece ao longo da “evolução” política e social do País e, na especificidade regional. A questão
agrária sempre esteve presente na problemática geral da sociedade brasileira. Contudo, em alguns
momentos da vida nacional, esse tema polarizou os debates com maior intensidade: (a) na década
de 1930, a discussão da questão agrária girava em torno da crise do café e da grande depressão ini-
ciada com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929; (b) no início dos anos sessenta, a discussão
sobre a questão agrária fazia parte da polêmica sobre os rumos que deveria seguir a industrialização
brasileira. Questionava-se então, que a agricultura – devido ao seu atraso – seria um obstáculo ao
desenvolvimento econômico, entendido como sinônimo da industrialização do País. No período
do “milagre brasileiro” (1967 a 1973), a economia nacional passa por uma fase de crescimento

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acelerado e pouco se falou da questão agrária. Em parte, porque a repressão política não permitia.
Mas em parte também, porque muitos achavam que a questão agrária tinha sido resolvida com
o aumento da produção agrícola ocorrido no período do “milagre”. Passada a fase do “milagre”,
muitos se dão conta de que o crescimento acelerado do período 1967/73 tinha beneficiado apenas
uma minoria privilegiada. E, entre os que tinham sido penalizados, estavam os trabalhadores em
geral, de modo particular, os trabalhadores rurais. Com o início de uma relativa abertura política
no País– a partir de 1978 –, muitas coisas voltam a serem discutidas e, entre elas, retoma-se com
pleno vigor o debate sobre a questão agrária, novamente dentro do contexto mais geral das crises do
sistema econômico capitalista. Quando o governo da “Nova República” anunciou a sua “Proposta
para Elaboração do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República”, evidenciou-se, uma
vez mais, o lugar que a questão agrária ocupa na problemática geral da sociedade brasileira. Houve
violenta reação dos grandes proprietários rurais, em todos os cantos do País. Essa reação variou de
acusações diversas ao governo, à mobilização armada. Há séculos reivindicando terra, o campesi-
nato aponta a timidez da “Proposta” e reage com renovadas ocupações de terras. Anunciado como
“Proposta para Elaboração” e em relação ao qual a sociedade teria 30 dias para se manifestar, esse
esboço do 1º PNRA permaneceria nesse impasse por seis meses, ao fim dos quais sofrerá, segundo
cobertura da imprensa, doze reformulações até receber a versão final. É dentro desse contexto mais
amplo e, sobretudo a partir do governo democrático que se instala no Estado de São Paulo, em
1982, que os sem-terra do Pontal se organizam e pressionam em busca de soluções para a questão
agrária dessa região. Aqui, nós vamos abordar o caso dos conflitos de terras do Pontal, através do
exemplo da fazenda Santa Rita e da presença da CESP – ora amenizando a problemática regional,
nos momentos de absorção de mão-de-obra, na fase de maior aceleração da construção das UHE de
Rosana, Taquaruçu e Porto Primavera, ora agudizando ainda mais essa questão, nos momentos de
desaceleração dessas obras e, consequente liberação dessa mesma mão-de-obra. Os procedimentos
metodológicos estão sustentados em pesquisa bibliográfica, em consulta aos arquivos do ITESP –
Instituto de Terras do Estado de São Paulo, em entrevistas com os sujeitos e agentes envolvidos.

229 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Palavras-chave: Questão Agrária. Assentamento rural. Fazenda Santa Rita. Pontal do
Paranapanema. Raia Divisória.

Considerações Finais

O presente artigo apresentou a uma retrospectiva histórica quanto a questão agrária no


Brasil, relacionando-a com as mudanças sociais e políticas. Além da pesquisa bibliográfica,
houveram consultas aos arquivos do Instituto de Terras do Estado de São Paulo – ITESP,
entrevistas com os sujeitos e agentes envolvidos.
Durante um certo período, a agricultura era entendida, de certa forma, como prejudi-
cial ao desenvolvimento econômico e, consequente, industrialização no país. Nesse senti-
do, o texto trata sobre o esquecimento, por parte do Estado, que a questão agrária passou
durante o período do “milagre econômico”, beneficiando apenas uma minoria privilegiada
e, punindo os trabalhadores rurais.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 229 20/06/2023 16:46:21


O debate sobre esta questão só volta a ser retomado com a abertura política, a partir
de 1978, anunciando, no governo da “Nova República”, uma “Proposta para Elaboração
do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária, o qual não foi bem aceito por uma parcela mais
abastada da população, levando a várias mobilizações dos dois lados.
É neste cenário, depois de séculos reivindicando terra, que o trabalhador do campo
reage com várias ocupações de terras. Dentro deste contexto geral que ocorre no Estado de
São Paulo, no ano de 1982, a pressão dos sem-terra do Pontal, organizando-se por buscas
de soluções para a questão agrária.
Neste estudo de caso, tivemos a abordagem dos conflitos de terra na região da Fazenda
Santa Rita, sobretudo, também, levando em consideração da presença da CESP. O assen-
tamento Santa Rita, possui atualmente 51 lotes, com dimensões média de 14 hectares e,
poucos lotes com cerca de 20 hectares, aproximadamente.
Após a resolução da problemática histórica da ocupação dos arrendatários nesta região,
o Estado respondeu com a criação do Assentamento Santa Rita, em 23 de outubro de 1991,
o qual apresenta a pecuária leiteira e o plantio de mandioca, como principal fonte de renda.
É importante destacar, também, o inicio da implantação do cultivo do bicho da seda,
através do plantio de amora.
Esta alternativa se deu por agentes locais, a fim de aumentar o desenvolvimento local-
-regional, visando a permanência dos assentados, mesmo com a possibilidade do direito
de Titulação, a qual aumenta o risco do exôdo rural dos filhos de assentados rurais desta
localidade, já que através dela os beneficários poderão comercializar o lote sem a interven-
ção do Estado.
230 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Assim, a sericultura se torna uma solução para esta população, atenuando os interesses
de saída destas áreas para a cidade, ganhando ainda mais relevância diante do atual cená-
rio econômico do país e o desemprego em alta. Entretanto, é importante salientar sobre
a dificuldade e, impacto negativo, que esta cultura vem sofrendo com a pulverização de
agrotóxicos nas fazendas vizinhas, prejudicando a atividade, além da saúde dos moradores.
Conclui-se, portanto, que a realização do Ordenamento Ecológico e Econômico se faz
necessário para que o desenvolvimento local-regional se concretize, tendo, juntamente,
um caráter sustentável.

Referências

CESP. Relatório Síntese – Reservatório de Porto Primavera: controle ambiental e aproveitamento múlti-
plo. São Paulo: THEMAG Engenharia, 1980.
CESP. Usina Hidrelétrica de Porto Primavera: Estudo de Impacto Ambiental. São Paulo: Consórcio
THEMAG–ENGEA–UMAH, 1994, 34 vol.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 230 20/06/2023 16:46:21


CESP. Usina Hidrelétrica de Porto Primavera: Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto
Ambiental. São Paulo: Consórcio THEMAG-ENGEA–UMAH, 1994, 2 vol.
DELGADO, Guilherme Costa. Do Capital Financeiro na Agricultura à Economia do Agronegócio
– Mudanças Cíclicas em Meio Século (1965 – 2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.
GRISA, Catia; Schneider, Sergio. Três Gerações Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de
Interação entre Sociedade e Estado no Brasil. RESR, Piracibaca-SP, Vol.52, Supl. 1, p. S125-S146,
2014.
MÜLLER, Geraldo. Brasil Agrário – Heranças e Tendências. Revista São Paulo em Perspectiva, 7 (3):
11-20, julho/setembro 1993.
NETO, Wenceslau Gonçalves. Estado e Agricultura no Brasil – Política Agrícola e Modernização
Econômica Brasileira 1960 – 1980. Editora HUCITEC, 1997.
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1988. Tese (Doutorado em Geografia). FFLCH, USP, São Paulo.
PASSOS, Messias Modesto dos. A Raia Divisória: Geossistema, Paisagem e Ecohistória. Maringá:
Eduem, 2006; 132 pp.
PASSOS, Messias Modesto dos. A Raia Divisória: Eco-história da raia divisória São Paulo – Paraná
– Mato Grosso do Sul. Maringá: Eduem, 2007; 310 pp.
PASSOS, Messias Modesto dos. A Raia Divisória: Geo-foto-grafia da raia divisória São Paulo –
Paraná – Mato Grosso do Sul. Maringá: Eduem, 2008; 69 pp.

231 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Tecendo os fios do desenvolvimento social
e econômico do município
de São Bento na Paraíba - Brasil

Valber Muniz de Oliveira 1


Roberta Moreira Wichmann2
Ângela Maria Cavalcanti Ramalho3
Tiago Almeida de Oliveira4

Introdução

Em âmbito internacional, o setor têxtil se escala como um dos setores econômicos que
contribuíram substancialmente com a Revolução Industrial inglesa nos séculos XVIII e
XIX. Já no Brasil a indústria têxtil, impulsionou o processo de industrialização, exercendo
um papel fundamental na economia brasileira e se tornando um dos mais importantes

233 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
setores industriais do país (Cavalcanti; Santos, 2021). O setor se amplia pela capacidade da
utilização de grande número de trabalhadores, notadamente pelo processo manufatureiro.
Nos últimos anos no Brasil, a organização dos processos produtivos locais ganhou
espaços como forma de engajar as produções locais aos sistemas prolíferos nacional e
internacional. Para tanto, se fez necessário, estratégias relacionadas com a modernização
do maquinário e do meio de produção, pois se espera que as empresas busquem um
aumento de rendimento e redução de custos através do uso de máquinas modernas e
trabalhadores mais especializados (Redesist, 2021). Por outro lado, as estratégias de coo-
peração entre os agentes, como formas de governança, normas sociais entre as empresas
do ramo, dos agentes políticos e sociais, qualificação dos trabalhadores e das associações,
interferem de forma significativa, nos arranjos produtivos locais. Neste contexto, se

1
Mestre em Desenvolvimento Regional - PPGDR (UEPB) - valber.oliv@gmail.com
2
Professora Doutora Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) - roberta.wi-
chmann@idp.edu.br
3
Professora Doutora PPGDR (UEPB) - angela@servidor.uepb.edu.br
4
Professor Doutor PPGDR (UEPB) - tadolive@servidor.uepb.edu.br

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 233 20/06/2023 16:46:21


insere o processo produtivo da fabricação de redes em São Bento - PB, que se representa
como uma atividade econômica diferenciada em relação às demais regiões econômicas
do Estado (Carneiro; Sá, 2007).
Na região Nordeste do Brasil, o desenvolvimento da atividade têxtil inicia-se no sé-
culo XVIII a partir da cultura do algodão, de forma artesanal, tornando-se uma relevante
atividade econômica da região. No Estado da Paraíba, o surgimento da indústria têxtil é
datado a partir de 1950, com alinhamento ao processamento de sisal, com a implantação
da indústria de cordoaria de sisal que tinha o mercado externo seu principal foco. Os dois
segmentos produtivos constituem no contexto a base da indústria têxtil da Paraíba, que se
modernizou crescendo de forma acelerada. Vale assinalar que a atividade têxtil é um dos
segmentos produtivos mais tradicionais da Paraíba (CINEP, 2021), com destaque, neste
setor, para as cidades de Cajazeiras, Catolé do Rocha, Itaporanga, Patos, Pombal, Santa
Luzia, Sousa e São Bento. Este último tem um destaque nacional por ser considerada a
“capital mundial das redes,” como grande produtora têxtil (Gomes, 2009).
O município de São Bento é conhecido nacionalmente pela fabricação de redes de
dormir, uma atividade laboral alcançada de forma de tecelagem artesanal e também meca-
nizada. A relação de São Bento com as redes começou antes mesmo da emancipação da ci-
dade, em 1959. As famílias estabelecidas na região já trabalhavam com fabricação de redes
em teares manuais, e vendiam a produção como ambulantes. A atividade de tecelagem é
feita, em sua maioria, por pequenos fabricantes de redes, por meio de uma especificidade
cultural no processo produtivo que é a transferência de saberes de geração para geração,
fazendo com que o setor não se torne apenas uma atividade econômica, mas também que
234 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

retrate a preservação de uma identidade cultural local (Fiep, 2021).


A indústria têxtil de São Bento é responsável por grande parcela da arrecadação do
Estado da Paraíba e fonte da economia da população local e circunvizinhas, com enfoque
principal na produção de artigos de cama, mesa, banho e redes de dormir, principal produ-
to em cenário nacional e até mesmo mundial, em que são produzidas mais de 12 milhões
de redes por ano (Oliveira; Rodrigues, 2009). A difusão dos produtos têxteis fabricados
na cidade para todo o território nacional pode ser considerada decisiva para o reaparelha-
mento de sua indústria.
A concentração da atividade têxtil no espaço geográfico, agregado a um conjunto de
atividades de fiação, propicia condições para o desenvolvimento local, além de contribuir
para minimizar os efeitos das adversidades climáticas, já que o município está inserido no
semiárido paraibano. Destarte, o diferencial do processo produtivo de redes de dormir está
agregado ao potencial e aproveitamento da mão de obra familiar. Constata-se que quase
todo o processo produtivo é realizado com uso intensivo de mão de obra terceirizada e
informal em situação precarizada, com pouca ou reduzida inovação tecnológica. O parque

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produtivo é formado por estabelecimentos que, em sua maioria, fazem parte de um circuito
da dinâmica da economia local com empreendimento desenvolvidos a partir de iniciativas
próprias, com uma margem de pequenos investimentos externos (CARNEIRO, 2014).
O Contexto local em que São Bento está inserido é necessário para o entendimento
das transformações ocorridas no processo de desenvolvimento do município, a qual não se
pode negar o impacto comercio de diversos produtos têxteis, impactando diretamente nos
seus indicadores sociais e econômicos. Neste sentido, este estudo realiza uma análise pela
ótica dos indicadores socioeconômicos e classifica, por meio da formação de clusters, qual
seria a localização referente aos indicadores socioeconômicos de São Bento em referência
aos principais municípios do Estado da Paraíba.

Material

São Bento é uma cidade de Estado do Paraíba. Os habitantes se chamam são-bentenses.


O município se estende por 245,8 km², situado a 612 metros de altitude, São Bento tem
as seguintes coordenadas geográficas: Latitude: 7° 16’ 60’’ Sul, Longitude: 37° 30’ 0’’
Oeste, o Quadro 1 traz o detalhamento geográfico do município.

Quadro 1- São Bento-PB: detalhamento geográfico

Área da unidade territorial [2020] 245,840 km²


Arborização de vias públicas [2010] 98%

235 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Urbanização de vias públicas [2010] 1,4%
Bioma [2019] Caatinga
Hierarquia urbana [2018] Centro de Zona A (4A)
Região de Influência [2018] Arranjo Populacional de Patos/PB – Centro Sub-regional A (3A)
Região intermediária [2020] Patos
Região imediata [2020] Catolé do Rocha - São Bento
Mesorregião [2020] Sertão Paraibano
Microrregião [2020] Catolé do Rocha

Fonte: IBGE (2021b).

Caracterização da Área

O município de São Bento está localizado na mesorregião sertaneja da Paraíba, mais


especificamente na região intermediaria de Patos, conhecida popularmente de Capital do
Sertão, estando na região imediata de Catolé do Rocha (IBGE, 2021b), que se destaca
também no ramo têxtil, com sua fabricação de moda íntima.

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É distante 375 km (quilômetros) da capital do estado, João Pessoa, cuja população,
conforme dados do IBGE para o ano de 2017, totalizava 34.215 habitantes, sendo a 13°
cidade mais populosa da Paraíba. Na Figura 1 é apresentado o mapa com a localização da
cidade de São Bento e coordenadas geográficas do município.

Figura 1 - Mapa da Paraíba com a localização da cidade de São Bento-PB e coordenadas geográficas
Fonte: IBGE/SIRGAS (2000).

Banco de dados
236 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Os dados foram coletados de fontes secundárias do Atlas Brasil (Atlas Brasil, 2022) e
compõem os fatores socioeconômicos e sociodemográficos dos municípios do estado da
Paraíba referentes ao censo demográfico de 2010 e pesquisas do IPEA data do intervalo de
2010 a 2018. A Tabela 1 tem as 29 variáveis consideradas no estudo.

Tabela 1: Variáveis sociodemográficas e econômicas


do Censo IBGE 2010 e IPEA data obtidas do Atlas Brasil.

Variáveis Sociodemográficas
1:IDHM 2010
2:Razão de dependência 2010
3: % de ocupados de 18 anos ou mais que são trabalhadores do setor público 2010
4: % de ocupados de 18 anos ou mais que são trabalhadores por conta própria 2010
5: Grau de formalização dos ocupados - 18 anos ou mais 2010
6: % dos ocupados no setor agropecuário 2010
7: % dos ocupados na indústria de transformação 2010

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8: % dos ocupados no setor comércio 2010
9: % dos ocupados no setor de serviços 2010
10: % dos ocupados com rendimento de até 1 salário mínimo 2010
11: Media de Participação de 2013 a 2016
12: Media de Participação no valor Adicionado 2013 a 2016
13: 10% mais ricos 2010
14: Índice de Gini 2010
15: Renda per capita 2010
16: % de pobres 2010
17: Produto Interno Bruto per capita 2016
18: Taxa de desocupação - 18 anos ou mais de idade 2010
19: Transferência per capita do Bolsa Família 2017
20: Taxa de Distorção Idade-Série no fundamental 2017
21: Taxa de Distorção Idade-Série no médio 2017
22: Rendimento médio no setor formal 2017
23: Transferência per capita do Benefício de Prestação Continuada 2017
24: % de nascidos vivos com pelo menos sete consultas de pré-natal 2017
25: Taxa bruta de mortalidade 2017
26: Taxa de mortalidade por doenças não transmissíveis 2017
27: % de internações por condições sensíveis à atenção primária 2017
28: % de analfabetos com 15 anos ou mais de idade no Cadastro Único 2017
29: % de pessoas inscritas no Cadastro Único*

237 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Atlas Brasil.

Método Estatístico

Com base nas variáveis descritas, realizou-se a análise de cluster para identificar
vários grupos de municípios. Para efeitos desta análise, todas as variáveis consideradas
foram padronizadas. O método empregado neste estudo não faz suposições distributivas,
portanto, nenhuma outra transformação dos dados foi realizada. O procedimento
hierárquico de Ward foi usado primeiramente para definir o número de clusters,
enquanto o procedimento de cluster não hierárquico K-means, utilizando os centros de
cluster obtidos com o método de Ward como pontos de semente iniciais, foi usado para
melhorar os resultados.
Encontram-se na literatura especializada vários algoritmos k-means disponíveis que é
utilizado para agrupamento. O algoritmo padrão é o algoritmo Hartigan-Wong (1979),

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que define a variação total dentro do cluster como a soma das distâncias quadradas, dis-
tâncias euclidianas entre os itens e o centróide correspondente:

Em que:
i) xi projeta um ponto observado pertencente ao cluster Ck;
ii) µk é o valor médio dos pontos atribuídos ao cluster Ck.
Cada observação (xi) é atribuída a um determinado agrupamento de forma que a soma dos
quadrados da distância da observação aos centros atribuídos do agrupamento µk seja mínima.
O agrupamento k-means requer que os usuários especifiquem o número de clusters a
serem gerados. Para escolher o número correto de clusters esperados (k) pode-se calcular
o agrupamento de k-means usando diferentes valores de agrupamentos k. Em seguida, a
soma do quadrado dentro do cluster (within sum square) é calculada de acordo com o
número de clusters. A localização de uma dobra (cotovelo) em um gráfico é geralmente
considerada como um indicador do número apropriado de clusters (kneeplot).
Define-se a variação total dentro do cluster da seguinte forma:

Assim, a primeira etapa ao usar o k-means é indicar o número de clusters (k) que serão
gerados na solução final. O algoritmo começa selecionando aleatoriamente k objetos do
conjunto de dados para servir como centros iniciais para os clusters. Os objetos seleciona-
238 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

dos também são conhecidos como meios do cluster ou centróides. Em seguida, cada um
dos objetos restantes é atribuído ao seu centróide mais próximo, onde o mais próximo é
definido usando a distância euclidiana entre o objeto e a média do cluster. Esta fase é cha-
mada de “etapa de atribuição de cluster”. Para usar a distância baseada em uma medida de
correlação, os dados são inseridos como z escores.
O algoritmo k-means pode ser resumido da seguinte forma: 1) Especifica-se o número de
clusters (k) a serem criados (pelo analista via gráfico do cotovelo); 2) Seleciona-se k objetos
aleatoriamente do conjunto de dados como os centros ou meios do cluster inicial; 3) Atribui-
se cada observação ao seu centróide mais próximo, com base na distância euclidiana entre o
objeto e o centroide; 4) Para cada um dos k clusters, atualiza-se o cluster do centróide calcu-
lando os novos valores médios de todos os pontos de dados no cluster. O centróide de um
k-ésimo aglomerado é um vetor de comprimento p contendo as médias de todas as variáveis
para as observações no k-ésimo aglomerado, onde p é o número de variáveis; 5) Minimize-se
iterativamente o total dentro da soma do quadrado. Ou seja, itera-se as etapas 3 e 4 até que
as designações de cluster parem de mudar ou o número máximo de iterações seja alcançado.

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Além da realização de análises multivariadas, foram realizadas análises descriti-
vas. As análises foram feitas no software R (R Core Team, 2021) e os pacotes factoextra
(Kassambara; Mundt, 2020), cluster (Maechler, 2019) e clustrd (Markos et al, 2019).

Resultados e Discussão

O Índice de Desenvolvimento Humano IDH do Brasil em 2021 foi de 0,754 ocu-


pando a 87ª posição no ranking entre 191 países. Em 2020, estava na 86ª, com índice de
0,758 (Governo, 2022). Neste sentido, apesar de não comparáveis diretamente o Índice
de Desenvolvimento Humano Municipal IDHM médio calculado, com base neste estu-
do, para o Estado da Paraíba foi de 0,58, estando próximo da faixa de IDHM médio de
(0,60 a 0,69). O município de São Bento apresentou exatamente o valor médio de IDHM
(0,58). O valor do índice de Gini para este município foi de 0,57, valor superior à média
do estado. O valor do índice deve-se ser lido como quanto menor melhor, logo é demons-
trado que São Bento é uma cidade com uma taxa de desigualdade maior que a média do
Estado. O PIB per capita de São Bento observado foi maior que 75% dos municípios da
Paraíba, bem como a porcentagem de ocupados no setor de comércio e de serviços. A
porcentagem de trabalhadores com renda de um salário mínimo foi próxima dos 75% dos
municípios do Estado da Paraíba com 67,21%. Em relação ao PIB per capita em 2016 o
município de São Bento teve desempenho melhor que 75% dos municípios paraibanos.
O resultado da análise estatística pelo método estatístico k-means, utilizando os dados
da Tabela 1 referentes aos 223 municípios do Estado da Paraíba, resultou no gráfico de

239 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
cotovelo da Figura 2.

Figura 2- Gráfico de cotovelo para o número ótimo de clusters pelo método de k-means para os municípios do
Estado da Paraíba.
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da Tabela 1. Análise estatística pelo método estatístico
k-means, referentes aos 223 municípios do Estado da Paraíba.

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O número de grupos de foi sugerido é quatro 4. Desta forma, ao realizar o agrupamen-
to pela técnica de aprendizado não supervisionado tem-se no grupo (1) 77 municípios,
no grupo (2) 77 munícipios, no grupo (3) 51 municípios e no grupo (4) 17 municípios.
A ordem de municípios com maiores valores nas variáveis socioeconômicas vai do grupo
4 ao grupo 1.
Com a técnica de k-means (Figura 3) pelo gráfico de cluster plot empregada
aos dados socioeconômicos dos municípios do estado da Paraíba, pode-se perceber
que os municípios contidos no grupo 3 são mais homogêneos ao centroide em re-
lação aos demais municípios dos outros grupos, principalmente aos municípios do
grupo (cluster) 4, que apresentam maior dispersão em relação ao centroide. E o
que isso significa em termos de variáveis analisadas que estas cidades são mais pa-
recidas entre si do que os demais de outros clusters, mesmo estes municípios estan-
do distantes geograficamente possuem fatores socioeconômico e demográficos se-
melhante
240 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 - Cluster plot dos agrupamentos pelo método de k-means para os municípios do Estado da Paraíba
Fonte: Elaborado pelos autores.

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Considerando-se esta configuração de análise não supervisionada, São Bento está lo-
calizado no Cluster 3. O Quadro 2 apresenta cada município e o seu respectivo cluster de
referência formado pela técnica estatística utilizada.

Quadro 2 - Classificação dos grupos


e dos municípios do Estado da Paraíba de acordo com fatorial k-means.

Cl Municípios Cl Municípios Cl Municípios Cl Municípios

2 Água Branca 1 Diamante 2 Pilões 1 Santana dos Gar-


rotes

2 Aguiar 2 Dona Inês 2 Pilõezinhos 1 Joca Claudino

1 Alagoa Grande 1 Bernardino Batista 1 Pirpirituba 3 Santa Rita

2 Alagoa Nova 1 Boa Ventura 2 Pitimbu 1 Santa Teresinha

1 Alagoinha 3 Boa Vista 2 Pocinhos 1 Santo André

1 Alcantil 1 Bom Jesus 1 Juru 1 Serra da Raiz

2 Algodão de Jandaíra 1 Bom Sucesso 2 Lagoa de Dentro 1 Nova Floresta

3 Alhandra 2 Bonito de Santa Fé 1 Lagoa 1 Nova Olinda

2 Amparo 1 Boqueirão 1 Lagoa Seca 1 Nova Palmeira

1 Aparecida 2 Borborema 2 Lastro 3 São Bento

2 Araçagi 3 Brejo do Cruz 2 Livramento 1 São Domingos do


Cariri

2 Arara 1 Brejo dos Santos 1 Logradouro 1 São Domingos

241 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
2 Araruna 3 Caaporã 3 Lucena 1 São Francisco

1 Areia de Baraúnas 1 Cabaceiras 2 Mãe D’Água 1 São João do Cariri

2 Areial 4 Cabedelo 1 Malta 1 São João do Rio do


Peixe

1 Areia 1 Cachoeira dos 3 Mamanguape 2 São João do Tigre


Índios

2 Aroeiras 1 Cacimba de Areia 2 Manaíra 2 São José da Lagoa


Tapada

1 Assunção 2 Cacimba de Dentro 2 Marcação 2 São José de Caiana

2 Baía da Traição 2 Cacimbas 1 Mari 2 São José de Espi-


nharas

2 Bananeiras 2 Jacaraú 1 Marizópolis 1 São José de Piranhas

2 Baraúna 1 Jericó 2 Massaranduba 2 São José de Princesa

2 Barra de Santana 4 João Pessoa 3 Mataraca 1 São José do Bonfim

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2 Barra de Santa Rosa 1 Juarez Távora 2 Matinhas 1 São José do Brejo
do Cruz

1 Barra de São Miguel 2 Juazeirinho 1 Mato Grosso 1 São José do Sabugi

3 Bayeux 1 Junco do Seridó 2 Maturéia 2 São José dos Cor-


deiros

1 Belém do Brejo do 3 Juripiranga 2 Mogeiro 2 São José dos Ramos


Cruz

3 Belém 1 Duas Estradas 2 Montadas 1 São Mamede

3 Sapé 1 Emas 1 Monte Horebe 2 São Miguel de


Taipu

1 Caldas Brandão 3 Esperança 3 Monteiro 2 São Sebastião de


Lagoa de Roça

2 Camalaú 2 Fagundes 2 Mulungu 1 São Sebastião do


Umbuzeiro

4 Campina Grande 1 Frei Martinho 2 Natuba 1 São Bentinho

1 Caiçara 2 Gado Bravo 2 Nazarezinho 1 Várzea

3 Cajazeiras 3 Guarabira 2 Poço Dantas 1 Vieirópolis

1 Cajazeirinhas 1 Gurinhém 1 Pedra Lavada 1 Vista Serrana

3 Capim 1 Gurjão 1 Poço de José de 2 São Vicente do


Moura Seridó

1 Caraúbas 1 Ibiara 3 Pombal 1 Serra Branca

1 Carrapateira 1 Igaracy 1 Prata 2 Serra Grande


242 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

2 Casserengue 2 Imaculada 1 Princesa Isabel 1 Serra Redonda

1 Catingueira 1 Ingá 1 Puxinanã 2 Serraria

3 Catolé do Rocha 3 Itabaiana 3 Queimadas 1 Sertãozinho

1 Caturité 3 Itaporanga 1 Quixabá 2 Sobrado

1 Conceição 2 Itapororoca 1 Remígio 1 Solânea

1 Condado 2 Itatuba 1 Riachão do Baca- 3 Soledade


marte

3 Conde 1 Olho D’Água 2 Riachão do Poço 2 Sossêgo

1 Congo 1 Olivedos 2 Riachão 3 Sousa

1 Coremas 1 Ouro Velho 1 Riacho de Santo 1 Sumé


Antônio

1 Coxixola 1 Parari 1 Riacho dos Cavalos 2 Tacima

2 Cruz do Espírito 1 Passagem 3 Rio Tinto 1 Taperoá


Santo

1 Cubati 3 Patos 2 Salgadinho 2 Tavares

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2 Cuité de Maman- 1 Paulista 2 Salgado de São Félix 1 Teixeira
guape

1 Cuitegi 1 Pedra Branca 2 Santa Cecília 1 Tenório

1 Cuité 3 Pedras de Fogo 1 Santa Cruz 1 Triunfo

2 Curral de Cima 2 Pedro Régis 1 Santa Helena 1 Uiraúna

1 Curral Velho 1 Piancó 2 Santa Inês 2 Umbuzeiro

2 Damião 1 Picuí 3 Santa Luzia 1 Zabelê

2 Desterro 1 Pilar 2 Santana de Man-    


gueira

Fonte: Elaborado pelos autores.

De acordo com os resultados do cluster 3, tem-se que o município de São Bento está
no mesmo cluster de municípios que estão em regiões geográficas do Estado da Paraíba
distintas, como por exemplo, o município de Santa Rita que está no cluster 3 e pertence
a região geográfica litorânea conhecida como mata paraibana que possui recursos naturais
e reúne condições geográficas bem mais favoráveis ao desenvolvimento humano do que
a região geográfica do Sertão. Neste sentido, iguais a municípios com elevado IDHM e
localizados nas regiões mais desenvolvidas do estado como os municípios de Esperança,
Santa Rita, Rio Tinto.
Em relação aos municípios circunvizinhos pertencentes a microrregião do sertão da
Paraíba, a Tabela 2 apresenta o resultado da comparação de São Bento em relação aos

243 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
demais municípios de acordo com os clusters formados pela técnica fatorial k-means. Isso
permite visualizar municípios de acordo com o seu nível de desenvolvimento comum.

Tabela 2: Resumo dos Clusters de desenvolvimento


pela técnica de Fatorial K-means para os municípios da microrregião do Sertão.

Município Cluster
Belém do Brejo do Cruz (PB) 1
Riacho dos Cavalos (PB) 1
Paulista (PB) 1
Mato Grosso (PB) 1
Bom Sucesso (PB) 1
Brejo do Cruz (PB) 3
Catolé do Rocha (PB) 3
São Bento (PB) 3

Fonte: Elaborado pelos autores.

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De acordo com o Econodata (2022) São Bento possui 2020 empresas em
funcionamento, sendo 1.067 Empresas de Comércio Varejista, 425 Empresas de Serviços,
421 Empresas de Alimentício e 302 Empresas de Indústrias da transformação.
Pode-se observar o que diferencia São Bento dos demais municípios circunvizinhos é
o setor têxtil que, direta ou indiretamente, influencia seus indicadores socioeconômicos e
demográficos. Este último é devido ao fato deste município receber muito fluxo de pes-
soas vindas de diversas regiões do Brasil com intuito de comercializar e adquirir produtos
têxteis locais. Isto faz o comércio deste município ser pujante. Já em relação aos aspectos
econômicos e sociais, no município de São Bento são influenciados posto que as indústrias
têxteis empregam grande número de sua força de trabalho e fazem com que São Bento seja
o maior produtor de redes de dormir do Brasil (Oliveira; Rodrigues, 2009).

Conclusão

Analisado a técnica estatísticas utilizada, conclui-se que o município de São Bento,


apesar de ser de pequeno porte e estar em uma região mais afastada dos principais mu-
nicípios com maiores taxas de desenvolvimento no Estado, pertencente de acordo com a
técnica de k-means, ao mesmo grupo de cidades de maior porte e localizadas em regiões
mais ricas do estado, como a zona da mata paraibana.
Neste sentido, dada a análise de cluster, assinala-se que o município de São Bento na
Paraíba encontra-se em clusters nomeado de intermediário de desenvolvimento, locali-
zando-se entre municípios como Esperança, Santa Luiza, Bayer, Monteiro e Itaporanga.
244 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Resumo

O presente estudo tem como objetivo avaliar o grau de desenvolvimento social e econômico do
município brasileiro de São Bento na Paraíba a partir da aplicação de técnica de análise de Cluster,
com base nos dados do Atlas Brasil e do Sidra Cidades do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) no período de 2010 a 2018. Foram utilizados métodos multivariados de análise
de clusters via k-means na perspectiva de contribuir na formulação de políticas e desenvolvimento.
O município de São Bento é conhecido nacionalmente pela fabricação de redes de dormir, uma
atividade laboral feita de forma artesanal, e também mecanizada. Em sua maioria, é realizada por
pequenos fabricantes de redes, através da transferência de saberes de geração para geração, fazendo
com que o setor não se torne apenas uma atividade econômica, mas também retrate a preservação
de uma identidade cultural local. Logo, a inspiração do empreendedorismo dos pequenos fabri-
cantes de redes tem relação com a história local. Como consequência, desenvolveram-se novas
oportunidades de empregos para a população local e de seu entorno, não dependendo exclusiva-
mente da agricultura e da pecuária no sertão paraibano. A difusão dos produtos têxteis fabricados
na cidade para todo o território nacional pode ser considerada decisiva para o reaparelhamento de

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 244 20/06/2023 16:46:22


sua indústria, sendo produzidas mais de 12 milhões de redes por ano. A metodologia da pesqui-
sa apresenta uma abordagem quantitativa utilizando técnicas de análise estatística que identifica
agrupamentos entre as cidades do Estado da Paraíba com base em indicadores socioeconômicos
e sociodemográficos obtidos do Atlas Brasil. Identifica-se então a qual cluster o município de São
Bento pertence e qual é o seu nível de desenvolvimento em relação aos outros 223 municípios
paraibanos. Neste sentido, sobre a ótica destes indicadores e da análise de cluster, São Bento está
inserido em um cluster que possui municípios que tiveram seu desenvolvimento facilitado devido
à sua localização geográfica, destoando assim de seus vizinhos.
Palavras-Chave: Análise de Cluster. k-means; Industrial Têxtil. Desenvolvimento Regional.

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livro - iberografias 45_20junho2023.indb 246 20/06/2023 16:46:22


A (in)segurança alimentar em tempos
pandêmicos e de desmanche institucional
no Brasil

Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol1


Antonio Nivaldo Hespanhol2

Introdução

A abordagem do tema da (in)segurança alimentar no Brasil no período contemporâ-


neo não pode ser adequadamente realizada se não for considerada a confluência e sobrepo-
sição das crises sanitária, econômica, política e social que têm assolado parte significativa
da população, particularmente a parcela mais vulnerável economicamente, e afetado de
maneira desigual as diferentes regiões, assim como as áreas urbanas e rurais.
A insegurança alimentar ocorre quando não é garantido o acesso regular e permanente
a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que isso comprometa o atendi-

247 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
mento de outras necessidades essenciais dos indivíduos.
A insegurança alimentar, em seus diferentes níveis (leve, moderado e grave) que vinha
sendo reduzida até 2014, por conta da centralidade que esse tema assumiu no governo fede-
ral, particularmente durante as duas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), em
que foi implementado um conjunto de políticas e ações articuladas entre agricultura familiar
e segurança alimentar, além de programas sociais, direcionados a garantir renda mínima e
acesso aos alimentos, voltou a se ampliar, progressivamente, a partir daí. Isso ocorreu em
decorrência do aprofundamento das crises econômicas, políticas e sociais que se ampliaram
a partir de 2016, mas sobretudo do desmonte das principais políticas públicas direcionadas
à agricultura familiar e à segurança alimentar promovidos pelo governo Bolsonaro que assu-
miu o poder em 2019. Assim, a perda de centralidade das políticas de garantia de segurança
alimentar associada as consequências nefastas da pandemia da SARS-CoV-2 (COVID-19),
ampliaram as desigualdades sociais e os índices de insegurança alimentar no país.
1
FCT/UNESP de Pres. Prudente (SP) - rosangela.hespanhol@unesp.br
2
FCT/UNESP de Pres. Prudente (SP) - nivaldo.hespanhol@unesp.br

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O presente artigo tem como objetivo principal analisar o aumento da (in)segurança
alimentar no Brasil a partir de 2014, evidenciando as diferenciações existentes entre as
cinco grandes regiões do país e a incidência ainda maior do problema sobre as popula-
ções residentes nos espaços rurais.
A pesquisa teve caráter exploratório e descritivo, com abordagem qualiquantitativa.
Para se alcançar o objetivo delineado foram realizados: levantamento bibliográfico, se-
leção e leitura de textos e documentos diversos sobre o tema; consulta e coleta de dados
nas seguintes fontes: Relatórios da Organização das Nacões Unidas para a Agricultura
e Alimentação (FAO – ONU); Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2004, 2009 e
2013 e da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2017/2018; e a Rede Brasileira de
Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), por intermédio do I e do
II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia no Brasil
realizados nos anos de 2020 e 2021/22.
O texto está estruturado em duas partes, além desta introdução, das considerações
finais e referências bibliográficas. Na primeira parte, se enfoca como o termo segurança
alimentar, surgido após a primeira guerra mundial, mas que ganha relevância sobretudo
no pós-Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU e da FAO, foi progressivamente
tendo seu sentido ampliado, embora a fome no mundo persista. Na segunda parte, se ana-
lisa e contextualiza a ampliação da segurança alimentar no período 2003/2014 e, a partir
daí, com o agravamento das crises econômicas, políticas, sociais e a pandemia, houve o
aumento da insegurança alimentar no país, ao mesmo tempo em que ocorria o desmanche
248 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

institucional das políticas do governo federal direcionadas à agricultura familiar, à prote-


ção social e à segurança alimentar.

Segurança Alimentar: um conceito em construção

A Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é um conceito que vem sendo cons-


truído ao longo das últimas décadas, sendo o seu significado progressivamente alterado e
ampliado em virtude dos avanços que ocorreram nos estudos sobre o tema e nos acordos
internacionais firmados em conferências promovidas pela ONU. A preocupação com a se-
gurança alimentar das populações ganhou expressividade principalmente após a II Guerra
Mundial, diante da necessidade de enfrentar o problema da fome que requeria ações
emergenciais de governos, organismos multilaterais, Organizações Não Governamentais
(ONGs) e movimentos sociais organizados.
De acordo com Leão (2013, p.11), a SAN:

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 248 20/06/2023 16:46:23


[…] é um conceito em permanente construção. A questão alimentar e nutri-
cional está relacionada aos mais diferentes tipos de interesses e essa concepção, na
realidade, ainda é assunto em debate por diversos segmentos da sociedade no Brasil e
no mundo. Além disso, o conceito evolui na medida em que avança a história da hu-
manidade e alteram-se a organização social e as relações de poder em uma sociedade.

Embora a segurança alimentar tenha entrado na pauta das discussões dos países euro-
peus durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ela ganhou centralidade somente
a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando, grande parte do território
da Europa foi devastado e ficou sem condições de produzir os alimentos necessários para
atender as necessidades da sua população (Belik, 2003). Foram implementadas políticas
continentais para que fosse garantido o acesso à alimentação em quaisquer situações, seja
em caso de guerra ou de dificuldades econômicas (Galeazzi, 1996). A própria constituição
da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 e da Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no mesmo ano, reforçou a importância das
discussões sobre a fome e a pobreza, bem como sobre as estratégias para combatê-las entre
os países participantes.
De acordo com Silva (2014), a criação da FAO foi a principal iniciativa de articulação
internacional para a elaboração e o planejamento de estratégias contra a fome em nível
global. Castro (1980/1946) e Hirai e Anjos (2007) também realçam a importância desem-
penhada pela FAO – ONU.
No período pós Segunda Guerra, a insegurança alimentar ainda era compreendida

249 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
apenas como a insuficiência na disponibilidade de alimentos à população. A partir dessa
compreensão, foram instituídas iniciativas de promoção de assistência alimentar que uti-
lizavam, em geral, os excedentes de produção dos países ricos, já que se entendia que a
insegurança alimentar era o resultado da produção insuficiente de alimentos nos países
pobres. Nesse contexto, a segurança alimentar era apreendida apenas como a necessidade
de erradicação da fome. Com a justificativa de aumentar a produção de alimentos e com-
bater a fome, países do capitalismo central e organismos multilaterais passaram a estimular
a adoção do pacote tecnológico da Revolução Verde pelos países do Sul global. Segundo
Leão (2013, p.12):

[…] desde o final da Segunda Guerra Mundial, o aumento da produção de ali-


mentos do planeta cresceu muito além do aumento da própria população mundial.
Entretanto, a elevação da oferta de comida resultante da Revolução Verde não foi
acompanhada pelo declínio da fome mundial como se prometia. De fato, a fome
que persiste e assola diversas regiões do planeta é determinada pela falta de acesso

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à terra para produção ou pela insuficiência de renda para comprar alimentos – ou
seja, é o resultado da injustiça social vigente e não da falta de produção de alimentos.

Como afirma Lima (2020), parte importante dessa produção agropecuária moderniza-
da foi transformada em commodities, dissociando-se de sua função social, que é alimentar
as pessoas, passando a se constituir em locus de interesse das grandes empresas que domi-
nam o sistema agroalimentar.
Nos anos 1970, a forte crise provocada pelas sucessivas quebras de safras em virtude de
problemas de ordem meteorológica, particularmente na África, motivou a realização da I
Conferência Mundial de Alimentação, promovida pela FAO – ONU, em 1974 (Almeida
Filho, et. al., 2007). Durante a realização dessa conferência se identificou que a garantia da
segurança alimentar deveria considerar também uma política de armazenamento estraté-
gico e de oferta de alimentos pelos países, além de continuar incentivando o aumento da
sua produção por meio do pacote tecnológico da Revolução Verde. De acordo com Leão
(2013), o enfoque nesse período estava ainda mais centrado na produção de alimentos
e no aumento dos índices de produtividade, ficando a dimensão do direito humano à
alimentação em segundo plano.
Nessa década se reconheceu que uma das principais causas da insegurança alimentar da
população era a falta de garantia de acesso físico e econômico aos alimentos em decorrência
tanto da pobreza, como da dificuldade de acesso à renda e à terra. Dessa forma, o conceito de
segurança alimentar passou a ser relacionado com a garantia do acesso físico e econômico das
pessoas às quantidades suficientes de alimentos e de forma permanente.
250 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

No final da década de 1980 e início dos anos 1990, o conceito de segurança alimentar
passou a incorporar também as noções de acesso a alimentos seguros (não contaminados
biológica ou quimicamente) e de qualidade (nutricional, biológica, sanitária e tecnológica),
produzidos de forma sustentável, equilibrada e culturalmente aceitável. Essa visão foi con-
solidada nas declarações da Conferência Internacional de Nutrição, realizada em Roma, em
1992, pela FAO e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (Leão, 2013).
A partir dos anos 1990, consolida-se um forte movimento em direção à reafirma-
ção do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), conforme previsto na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e no Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC (1966).
A Cúpula Mundial da Alimentação, organizada pela FAO e realizada em Roma, em
1996, associou definitivamente o DHAA à garantia da segurança alimentar e nutricional
(SAN). A partir de então, de forma progressiva, a SAN começou a ser entendida como uma
estratégia para garantir esses direitos. Durante a realização dessa cúpula, se chegou a um
consenso pelos 185 países signatários de que há segurança alimentar “quando as pessoas têm,

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a todo momento, acesso físico e econômico a alimentos seguros, a fim de levarem uma vida
ativa e sã” (FAO/ONU, 1996, s.p).

Almeida Filho et. al. (2007, p. 4) destacam que:


A análise da conjuntura mundial na década de 1990 deixa evidente que ações
contraditórias foram sendo implantadas pelos diferentes governos. Vários dos com-
promissos assumidos na Conferência Mundial de 1996 têm sido usados de forma a
obstruir a construção de um aparato adequado de Segurança alimentar no âmbito
mundial. Por outro lado, as políticas de comércio internacional dos países desen-
volvidos continuam a impor restrições às exportações de alimentos das nações em
desenvolvimento, causando assim problemas de geração de emprego e renda nas
áreas produtoras de alimentos para a exportação

No ano de 2000, foi realizada em Nova York, a Cúpula do Milênio da ONU, na qual
ficou acordado entre os governos presentes o compromisso de reduzir os índices de pobre-
za, fome e das desigualdades sociais no mundo até o ano de 2015, o que posteriormente foi
adotado por 192 países. Nesta reunião, em virtude das diversas discussões que ocorreram
sobre os direitos humanos, a má distribuição de renda, as epidemias e a fome, entre outros,
levaram à criação da “Declaração do Milênio”, documento que definiu os Oito Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (ODM): 1) erradicação da extrema pobreza e da fome;
2) universalização do ensino primário fundamental; 3) promoção da igualdade de gênero
e capacitação das mulheres; 4) redução da mortalidade infantil; 5) melhora da saúde das

251 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
gestantes e mães; 6) enfrentamento da HIV/AIDS, malária e outras doenças; 7) garantia
do desenvolvimento sustentável; e 8) desenvolvimento da parceria global para o desenvol-
vimento (ONU, 2000; Morel, 2004).
No entanto, de acordo com Silva (2014, p. 15), a “tímida resolução do evento, que
estabeleceu como meta a redução da fome e da desnutrição à metade até 2015, de acordo
com os índices de 1996”, não agradou grande parte dos representantes presentes no fórum
paralelo de organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais3.

3
É importante destacar que desde 2001 são organizados os Fóruns Sociais Mundiais (FSM), encontro in-
ternacional, articulado por movimentos sociais, ONGs e pela comunidade civil para discutir e lutar contra
o neoliberalismo, o imperialismo e, sobretudo, contra desigualdades sociais provocadas pela globalização.
Um dos objetivos principais do FSM de 2001 foi o de estabelecer um contraponto ao Fórum Econômico
Mundial, realizado anualmente desde 1974, em Davos (Suíça). Os FSM abarcam uma pauta ampla de
questões como direitos humanos, luta contra a guerra e pela paz, economia solidária, gênero, soberania ali-
mentar, entre outros, o FSM vem mobilizando um número cada vez maior de pessoas sob lema “um outro
mundo é possível”.

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Dessa forma, a partir de 2013 iniciaram-se as discussões e negociações para que
se retomassem os oito ODMs com o intuito de ampliar o seu alcance. Assim, em
2015, na Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realiza-
da na sede da ONU, líderes mundiais e representantes da sociedade civil reuniram-
-se e, depois de muitas discussões e negociações, decidiram, a partir dos Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio, adotar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, que resultou no estabelecimento de 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) e 169 metas. Nesta agenda estão previstas ações mundiais visando
à erradicação da pobreza, a segurança alimentar, a saúde, a educação, a igualdade de
gênero, a redução das desigualdades etc. De acordo com o documento da ONU, os
17 ODS são integrados e indivisíveis, equilibrando as dimensões econômicas, sociais
e ambientais do desenvolvimento sustentável.
No Quadro 1 são apresentados os significados e as ações relacionados à SAN,
considerando alguns marcos temporais importantes entre a Primeira Guerra Mundial
e 2015, quando foi realizada a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento
Sustentável.

Quadro 1: Períodos, significados e ações relacionados


à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)

Períodos Significados Ações


252 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Fome: Flagelo Mundial


Atrelado ao conceito de
Pós I Guerra Mundial segurança nacional e da
Ações coordenadas entre os governos
(1914/1917) autonomia de cada país
produzir sua própria ali-
mentação
“Assistência” alimentar; comercialização
Pós II Guerra Mundial – Insuficiência na disponi-
dos excedentes de produtos dos países
1945 – Criação da FAO/ bilidade de alimentos nos
ricos para os pobres – Disseminação do
ONU países pobres;
pacote da Revolução Verde.
Anos 1970 -
Política de armazenamento estratégico e
I Conferencia Mundial Foco: na insuficiência de
da oferta de alimentos pelos países, além
de Alimentação (FAO, alimentos
do aumento da produção.
1974)
Os conceitos de segurança
e insegurança alimentar
Os ganhos na produtividade geraram ex-
passaram a ser associados
cedentes que foram colocados no mercado
Anos 1980 com a pobreza e a falta de
na forma de alimentos industrializados,
acesso aos recursos como
mas ainda sem a erradicação da fome.
renda e terra, necessários
para a garantia da SAN

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Períodos Significados Ações
Acesso a alimentos seguros
(não contaminados bioló-
Anos 1990 gica ou quimicamente) e
Conferência Internacio- de qualidade (nutricional,
nal de Nutrição, realizada biológica, sanitária e tec- Indivisibilidade dos Direitos Humanos
em Roma (FAO/OMS, nológica), produzidos de
1992) forma sustentável, equi-
librada e culturalmente
aceitável.

185 países signatários do entendimento


1996 - Cúpula Mundial AS – Direito Humano à de que a fome e a desnutrição são inacei-
da Alimentação em Alimentação Adequada táveis e que o acesso a alimentos nutri-
Roma (FAO) (DHAA). cionalmente adequados e seguros é um
direito de cada pessoa.

Definição de oito (8) Obje- 189 Estados concordaram com o na redu-


2000 – Cúpula do tivos de Desenvolvimento ção dos índices de pobreza, fome e desi-
Milênio em Nova York do Milênio (ODM), desta- gualdades sociais até o ano de 2015, por
(ONU) cando-se a erradicação da meio das Metas do Milênio, o que poste-
extrema pobreza e da fome. riormente foi adotado por 192 países.

Os ODS foram construídos em um pro-


Definição dos Objetivos de cesso de negociação mundial, que teve iní-
2015 – Cúpula das Desenvolvimento Sustentável cio em 2013. Nesta agenda estão previstas
Nações Unidas sobre o (ODS), que passam a ser 17
e 169 metas a serem atingidas
ações mundiais visando à erradicação
Desenvolvimento Sus-
até 2030. da pobreza, segurança alimentar, saúde,
tentável
educação, igualdade de gênero, redução
das desigualdades etc.

253 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Organização: Hespanhol (2022).

A despeito dos avanços nas discussões sobre a segurança alimentar, em nível mun-
dial, especialmente no que concerne ao estabelecimento de acordos e definição de dire-
trizes gerais, ainda há uma distância muito grande entre o discurso dos governantes e os
reais interesses de cada país manifestados nos compromissos assumidos nas Conferências
Mundiais e que estão longe de serem cumpridos, já que muitos são contrários aos inte-
resses de nações ou de grupos econômicos (ALMEIDA FILHO et. al., 2007) que atuam
em escala global.
Mesmo sendo um direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU, desde 1948, a insegurança alimentar ainda assola parte significa-
tiva da população global, especialmente na África, Ásia e América Latina e Caribe. Tal
situação vinha melhorando até meados da segunda década desse século, mas voltou a
regredir a partir daí.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 253 20/06/2023 16:46:23


Entre 2016 e 2019 a proporção da população mundial em situação de insegurança
alimentar grave elevou de 7,9% para 9,3%. De 2019 para 2020, os efeitos econô-
micos e sociais negativos decorrentes da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2
(COVID-19) provocaram a elevação da proporção da população mundial em situa-
ção de insegurança alimentar grave de 9,3% para 10,9% e para 11,7% em 2021, de
acordo com os dados divulgados pela FAO, Fundo das Nações Unidas para a Infância
(FIDA), Organização Mundial da Saúde  (OMS), Programa Mundial de Alimentos da
ONU (PMA) e Fundo das Nações Unidas para a Infância  (UNICEF) na publicação
“El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo” realizada no cor-
rente ano (2022).

Entre 702 y 828 millones de personas padecían hambre en 2021 – 103 millones
más entre 2019 y 2020 y 46 millones más en 2021 – , considerando el punto medio
del rango estimado (FAO, FIDA, OMS, PMA y UNICEF. 2022, p. 12).

Na América Latina e Caribe, a proporção da população em situação de insegurança


alimentar grave elevou-se de 8,8% em 2016 para 9,9% em 2019. De 2019 para 2020, tal
cifra elevou-se para 12,8% e para 14,2% em 2021, atingindo 56,5 milhões de pessoas, de
acordo com os dados da FAO, FIDA, OMS, PMA e UNICEF (2022).
Mais da metade de todas as pessoas que enfrentam o flagelo da fome vive na Ásia (418
milhões); mais de um terço na África (282 milhões); e uma proporção menor na América
Latina e Caribe (56,5 milhões). O aumento mais acentuado da fome ocorreu na África,
254 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

onde a prevalência estimada – em 23,4% da população – é mais do que o dobro de qual-


quer outra região.

O aumento da (In)Segurança Alimentar no Brasil: da centralidade da


SAN ao desmanche institucional das políticas do governo federal

A segurança alimentar é definida pela FAO (1996, s.p) como uma “situação na qual


todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico, social e econômico a recursos
suficientes e seguros a alimentos nutritivos que atendam às suas necessidades dietéticas e
preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”.
Na perspectiva de Maluf (2001), a segurança alimentar deve ser entendida como a ex-
pressão política do direito básico à alimentação, materializando-se no atendimento pleno
da demanda por alimentos por parte da população.
No Brasil, de acordo com documento aprovado na II Conferência Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, e incorporado na Lei de Segurança Alimentar e

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 254 20/06/2023 16:46:23


Nutricional (Lei nº 11.346, de 15 de julho de 2006), a segurança alimentar é definida
em seu Artigo 3º como “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente
a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que
respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente susten-
táveis” (Brasil, 2006, s.p).
O conceito de insegurança alimentar, por sua vez, é utilizado quando não há o acesso
regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que isso
comprometa o acesso a outras necessidades essenciais pelas pessoas.
A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) determina que essa situação pode
ser considerada em três níveis:
a) Leve: quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no fu-
turo ou a qualidade dos alimentos é comprometida para manter a quantidade de
alimentos necessária para a família;
b) Moderada: quando há redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/
ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre
os adultos;
c) Grave: quando há redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou
seja, ocorre a ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos
entre todos os moradores da residência, incluindo as crianças. Nessa situação, a
fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.

255 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
A insegurança alimentar pode ocorrer por fatores variados. No caso brasileiro, o
problema da insegurança alimentar está intimamente ligado a fatores socioeconômicos,
como a concentração da renda, o baixo poder aquisitivo dos salários e os elevados níveis
de desemprego e de informalidade do trabalho (Mattei, 2012), além da histórica desi-
gualdade social.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2004, 2009 e
2013 vinham mostrando importante redução do percentual de domicílios em situação
de insegurança alimentar e nutricional em todo o país, que progressivamente estava di-
minuindo: decaindo de 35,2% da população em 2004 para 30,4% em 2009 e 22,9%
em 2013. A insegurança alimentar grave, por sua vez, diminuiu de 9,4% da população
em 2004 para 6,6% em 2009 e 4,2% em 2013, quando atingiu o seu menor índice. Ou
seja, no período entre 2004 e 2013, o percentual da população brasileira com segurança
alimentar cresceu de 64,8% em 2004 para 69,6% em 2009 e alcançou 77,1% em 2013,
como se verifica na tabela 1.

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Tabela 1 - Proporção da população brasileira em situação de Segurança e de
Insegurança Alimentar em 2004, 2009, 2013, 2018, 2020 e 2021/2022 (%)

Segurança Alimentar Insegurança alimentar IA IA IA


(IA) Leve Moderada Grave
PNAD 2004 64,8 35,2 13,8 12,0 9,4
PNAD 2009 69,6 30,4 15,8 8,0 6,6
PNAD 2013 77,1 22,9 12,6 6,1 4,2
POF 2018 63,3 36,7 20,7 10,2 5,8
I VIGISAN 2020 44,8 55,2 34,7 11,5 9,0
II VIGISAN 2021/2022 41,3 58,7 28,0 15,5 15,2

Fonte: IBGE e Rede PENSSAN 2020 e 2021/2022

A expressiva redução da insegurança alimentar no Brasil entre 2004 e 2013 foi


propiciada por um amplo conjunto de políticas públicas, as quais fizeram com que o
país reduzisse a insegurança alimentar grave a índice inferior a 5% e saísse do mapa da
fome da FAO – ONU. O êxito alcançado pelo país por meio de um conjunto amplo
de políticas públicas e ações articuladas de apoio à agricultura familiar, de segurança
alimentar – como o Programa Fome Zero – e de garantia de renda mínima – como o
Bolsa Família – pelo governo federal reduziram a insegurança alimentar e despertou
o interesse de instituições e países preocupados com o combate a fome e a miséria4.
Entretanto, a partir de 2014, com a ampliação da recessão econômica que passou a
256 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

assolar o país, a crise política que redundou no impeachment da presidente Dilma Roussef
em 2016 e na perda de centralidade das políticas sociais e de segurança alimentar no gover-
no de Michel Temer que assumiu o poder em agosto de 2016, alteraram profundamente o
contexto da segurança alimentar no país.
Dessa forma, a partir de 2016, o cenário foi alterado e se aprofundou o desmonte das
políticas públicas e de iniciativas destinadas à agricultura familiar, as quais haviam atingi-
do seu ápice entre 2003 e 2014, período considerado como a “década de ouro” das ações
voltadas ao setor (Favareto e Aquino, 2021). Como ressaltam Marques et al. (2019, p. 8),
o reforço ou o enfraquecimento de políticas públicas estão inseridas

4
A FAO/ONU lançou o PAA África, abrangendo países como Etiópia, Maláui, Moçambique, Níger e
Senegal e a Assembleia Geral das Nações Unidas considerou 2014 como o “Ano Internacional da Agricultura
Familiar” para dar visibilidade e discutir a importância dessa modalidade de agricultura na produção de ali-
mentos e na erradicação da miséria no mundo (ONU, 2014). Em dezembro de 2017, a Assembleia Geral
das Nações Unidas aprovou nova resolução declarando o período 2019-2028 como a Década das Nações
Unidas para a Agricultura Familiar.

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[...] em um processo dinâmico de montagem e desmontagem. A despeito de nossa
ainda incipiente democracia, essa processualidade resulta da própria participação social
[...]. Trata-se de considerá-las em jogo democrático, pois elas respondem a demandas e
dizem respeito a processos que não se estabilizam, tampouco asseguram a democracia;
são, antes, sistemas que se constituíram, ao longo dos últimos 30 anos, a partir de uma
rede complexa de lutas. Essas lutas, por sua vez, dão-se por procedimentos heterogê-
neos e controversos que, frente à atual investida neoliberal pela qual o país passa [...],
implicam a fragilização crescente de alguns avanços, especialmente daqueles voltados
para grupos sociais vulneráveis, nos quais se pretendia imprimir alguma modalidade de
ascensão social, possibilitando acesso a condições de vida mais dignas.

Intensificaram-se os embates e conflitos que, como demonstram Marques et al. (2019,


p. 8), “estão na base do desmonte em curso, perceptível na desarticulação de peças im-
portantes: redução de financiamento5, precarização do trabalho e emendas constitucionais
que restringem direitos, sob o argumento de exigências da segurança pública”.
Isso ocorreu em virtude não somente da ruptura institucional e política resultante do
impeachment de Dilma Rousseff, mas também da intensa e constante negociação que o
governo de Michel Temer teve que manter com o Congresso Nacional – sobretudo com o
Centrão6 – para se manter no poder até o final de 2018, já que sua legitimidade foi perma-
nentemente contestada por parte da sociedade e de vários partidos.
Com o governo Bolsonaro iniciado em 2019, várias políticas sociais e direitos dos tra-

257 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
balhadores reconhecidos e reforçados a partir da Constituição Federal de 1988, passaram
a ser ameaçados. Uma das primeiras medidas implementadas foi transferir a Secretaria
Especial da Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil para o
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), cuja agenda esteve sempre
identificada com os interesses do agronegócio. Como destacam Marques et al. (2019, p.
8), o desmonte promovido no governo Bolsonaro não apenas desfigura o desenho pro-
posto para as políticas públicas, mas promove também “a eliminação real ou simbólica de
sujeitos, grupos e segmentos” mais vulneráveis para os quais elas foram elaboradas, entre
eles, os agricultores familiares.

5
A redução no orçamento ocorreu pela aprovação da Emenda Constitucional 95, também denominada “EC
do Teto dos Gastos”, que congelou os gastos públicos por 20 anos.
6
O termo “Centrão” refere-se a “um bloco informal na Câmara dos Deputados que reúne parlamentares de
legendas de centro e centro-direita. O grupo é menos conhecido por suas bandeiras e mais pela característica
de se aliar a governos diferentes, independentemente da ideologia”. https://www. g1.globo.com/politica/
noticia/2020/04/29/entenda-o-que-e-o-centrao-bloco-na-camara-do-qual-bolsonaro-tenta-se-aproximar.
ghtml. Acessado 02/09/2021.

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Entre a POF de 2018 e a I e a II VIGISAN houve expressiva redução na segurança
alimentar, que diminuiu de 63,3% da população brasileira, em 2018, para 44,8%, em
2020, e atingiu apenas 41,3% da população em 2021/2022, enquanto que a situação da
insegurança alimentar foi agravada no Brasil. É importante destacar que a insegurança
alimentar grave, isto é, quando a pessoa passa a conviver cotidianamente com a fome,
cresceu de 4,2% (o equivalente a 10,3 milhões de pessoas) em 2013, para 15,2% (33,1
milhões de pessoas) da população brasileira em 2021/2022 (Rede PENSSAN), como se
pode observar na tabela 1.
Esse aumento da insegurança alimentar nos últimos três anos ocorreu em decorrência
de dois fatores primordiais:
• a eleição de um governo de direita (Jair Bolsonaro) que desarticulou as políticas
públicas destinadas à segurança alimentar justamente num período de estagnação
econômica, elevadas taxas de desemprego e subemprego e de incremento nos pre-
ços dos alimentos, diminuindo drasticamente as possibilidades da população mais
pobre se alimentar e atender outras necessidades básicas;
• a pandemia da SARS-Cov2 que intensificou, entre outros problemas, a insegurança
alimentar em seus diferentes níveis no país, a partir de março de 2020.

É importante destacar que, embora a pandemia tenha agravado a situação, como


destacam Paula e Zimmermann (2021), a pobreza, a fome e, acrescentaríamos, a desi-
gualdade social, são aspectos estruturais da sociedade brasileira, sendo que as profundas
desigualdades no país foram particularmente ampliadas com a implantação de uma agen-
258 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

da neoliberal de desmonte de políticas de proteção social implementada, a partir de 2016,


pelo Governo Temer e aprofundada, a partir de 2019, pelo Governo Bolsonaro.
Nesse cenário de desmonte das políticas públicas, direta ou indiretamente voltadas à
proteção social e à promoção da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), programas
relevantes como o de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Bolsa Família (PBF) foram
substituídos pelos Programas Alimenta Brasil e Auxílio Brasil, respectivamente, os quais
têm se demonstrado frágeis em suas concepções e objetivos, além de abrangerem um
número menor de pessoas. Ademais, desde 2017 os valores de referência, por aluno,
para a alimentação escolar não são corrigidos, com defasagem superior a 30% em termos
reais. Assim, os valores repassados pelo governo federal aos municípios, por intermédio
do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) não têm sido suficientes para
que os municípios adquiram produtos frescos (verduras, legumes, frutas etc.) dos agri-
cultores familiares.
Diante da escassez de recursos, muitos municípios reduziram a compra direta de pro-
dutos da agricultura familiar, assim como o número de refeições oferecidas aos alunos,

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voltando a disponibilizar apenas produtos industrializados que são mais baratos, mas pos-
suem menor valor nutricional, a exemplo dos biscoitos e sucos artificiais.
Os frágeis indícios de recuperação da atividade econômica medida pelo crescimento
do Produto Interno Bruto (PIB) não foram acompanhados da melhoria dos rendimentos
da população e de significativa recuperação das taxas de emprego. Tais fatos levaram ao
aumento das desigualdades regionais e sociais no país que, somado à elevada inflação, em
particular nos preços dos alimentos, e ao desmonte das políticas sociais, impactaram com
mais intensidade o poder de compra dos mais vulnerabilizados que precisam dispor de
uma proporção maior da sua exígua renda na compra de alimentos.
Entretanto, como destacam Paula e Zimmermann (2021, p. 61):

O aumento do número de famílias em estado de insegurança alimentar se refere


tanto àquelas já vivendo em condições vulneráveis quanto às que se empobreceram
nos últimos anos. Houve, assim, um deslocamento social para baixo de grupos da
classe média rumo à pobreza, e daqueles já vivendo precariamente, rumo à extrema
pobreza. Esse processo de clara deterioração social é um resultado direto da redução
do poder de compra, pela redução da renda nominal ou aumento dos preços, para
a qual contribuem decisivamente o aumento do desemprego, a informalidade do
trabalho e a precarização dos programas de assistência governamental. [...]. Um
crescente número de famílias se vê, portanto, desprotegido dos meios necessários
para sobreviver dignamente, tanto pela dinâmica dos mercados que aprofunda desi-
gualdades e concentra renda, quanto pelas decisões políticas dos governos posterio-

259 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
res a 2016 de retirar o aparelho de Estado de seu papel de proteção social.

De acordo com os resultados publicados recentemente pela Rede PENSSAN no país7,


se constatou que 55,2% da população brasileira (equivalente a 116 milhões de pessoas)
vivenciavam, em dezembro de 2020, a insegurança alimentar (leve e moderada), enquanto
que 9% (aproximadamente 19 milhões de pessoas) encontravam-se em situação de inse-
gurança alimentar grave, ou seja, passavam fome (Rede PENSSAN, 2021). Entre a popu-
lação rural, a proporção em situação de insegurança alimentar grave era de 12%.
No Brasil, em 2018, eram 10,3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave,
aumentando para 19,1 milhões, em 2020. Portanto, neste período, foram cerca de nove
milhões de brasileiros(as) a mais que passaram a enfrentar a fome no seu cotidiano (Rede
PENSSAN, 2021). 
7
Esses dados foram apontados no I Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19, divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar
(Rede PENSSAN), que realizou uma pesquisa com 2.180 domicílios, em áreas urbanas e rurais das cinco
grandes regiões brasileiras, entre os meses de novembro e dezembro de 2020.

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De acordo com dados da Rede PENSSAN, em 2020, 63 milhões de pessoas viviam no
país com menos de R$ 455,00 por mês e 20 milhões de pessoas com menos de R$ 157,00
por mês, sendo classificados, respectivamente, como pobres e extremamente pobres, con-
siderando a linha de pobreza estabelecida pelo Banco Mundial. 
De acordo com a pesquisa efetuada pela Rede PENSSAN, em 2020, entre aqueles
domicílios em que havia insegurança alimentar estavam 22,8% das famílias com renda per
capita igual ou inferior a 1/4 do salário mínimo, 15,6% daquelas com renda per capita de
até 1/2 salário mínimo, 6,5% das que viviam com uma renda per capita entre ½ salário
mínimo e um salário mínimo, e nenhuma com renda per capita superior a este patamar.
Esse panorama é percebido também quando são comparadas as condições de trabalho.
Enquanto a insegurança alimentar grave era de 22,1% entre os desempregados, chegava
a 15,7% entre aqueles trabalhando na informalidade e 3,7% entre os que estavam traba-
lhando com carteira assinada. Em 14,3% dos domicílios pesquisados havia pelo menos
um morador/a procurando emprego, e em 8,2% dos domicílios pesquisados, a pessoa
responsável pela família estava desempregada.
Nessa mesma pesquisa se constatou que 22,8% das famílias brasileiras que vivem
com até ¼ de salário mínimo per capita (cerca de R$ 275,00) apresentaram situação de
insegurança alimentar grave. Esse percentual é 2,5 vezes superior à média nacional. Ou
seja, quanto menor a renda monetária da família, maior a insegurança alimentar (Rede
PENSSAN, 2020).
As diferentes formas como a (in)segurança alimentar se apresenta no Brasil de-
monstram as desigualdades sociais que se manifestam também em escala regional,
260 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sendo que as situações mais preocupantes estão nas regiões Norte, Nordeste e Centro-
Oeste do país, onde os índices de insegurança alimentar são altos, ou seja, atingem
mais de 50% da população pesquisada, como se pode verificar na Tabela 2.

Tabela 2 – Segurança e Insegurança alimentar (leve, moderada e


grave), segundo as regiões brasileiras – em %

Segurança Insegurança Insegurança Alimentar


Regiões
Alimentar Alimentar Leve Moderada Grave
Norte 36,9 63,1 31,0 14,0 18,1
Nordeste 28,1 71,9 41,1 17,0 13,8
Centro Oeste 46,7 53,3 34,5 11,7 6,9
Sul/Sudeste 53,1 46,9 32,3 8,6 6,0

Fonte: Rede PENSSAN (2020).

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No caso da Região Centro-Oeste, o mercado internacional altamente favorável à
comercialização de grãos associado ao estímulo dado pelo governo Bolsonaro – cuja base
de apoio político está fortemente ancorada nos grandes produtores rurais e na bancada
ruralista – as exportações de commodities, tem levado à expansão do agronegócio, rela-
cionado à produção de grãos que, por sua vez, tem ampliado a concentração fundiária,
o desmatamento, a expropriação de posseiros, indígenas etc., agravando a insegurança
alimentar, sobretudo, mas não exclusivamente, nas áreas rurais.
Nas regiões mais pobres economicamente, como o Norte e o Nordeste do país,
a insegurança alimentar grave é mais alta do que a média nacional. No Norte, por
exemplo, 18,1% dos domicílios vivenciaram insegurança alimentar grave em 2020. No
Nordeste, esse percentual é menor, 13,8%, mas, ainda assim, é maior que a média na-
cional que foi de 9%. É importante destacar que, em 25% dos domicílios pesquisados
nas regiões Norte e Nordeste, viviam famílias com rendimentos mensais abaixo de ¼
do salário mínimo per capita, percentual que foi de 10% nas demais regiões brasileiras
(Rede PENSSAN, 2020).
A pesquisa realizada em 2020 pela Rede PENSSAN revelou que, enquanto a média
nacional da insegurança alimentar era de 55,2% dos domicílios, na região Norte esse
percentual chegava a 63,1% e no Nordeste atingia 71,9%, evidenciando as desigualda-
des regionais do país, como se constata na tabela 2.
Nas áreas rurais, os percentuais de insegurança alimentar eram expressivos nas re-
giões Norte e Nordeste, de 62,0% e 70,6%, respectivamente, demostrando as precárias
condições de acesso aos alimentos, mas também de acesso à terra. Nessas áreas rurais

261 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
do Norte e Nordeste, este cenário se agrava já que 25% dos domicílios sobrevivem com
rendimentos mensais abaixo de ¼ do salário-mínimo, altas taxas de desemprego, endivi-
damento e corte de despesas para alimentação. Assim, os grupos mais vulneráveis nessas
regiões são os indígenas, os quilombolas e os agricultores familiares que não consegui-
ram ter acesso às políticas públicas e programas de proteção social.
Considerando os dados mais recentes publicados pela Rede PENSSAN (2021/2022),
se verifica também que, enquanto no país, na média, 41,3% dos domicílios apresentavam
segurança alimentar, nas áreas urbanas esse percentual era um pouco maior (42,2%),
mas nas áreas rurais era de apenas 36,2% (Rede PENSSAN, 2021/2022), como se pode
observar na Figura 1.

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Figura 1 – Incidência da Segurança Alimentar e da Insegurança Alimentar no Brasil:
média do país e das áreas urbanas e rurais
262 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Nas áreas urbanas, a insegurança alimentar atinge 57,8% dos domicílios pesqui-
sados, sendo que 15,0% encontravam-se em situação de insegurança alimentar grave,
ou seja, passavam fome. Nesse contexto, a criação do Auxílio Emergencial8, em 2020,
pelo governo federal – a partir de pressões da sociedade civil e do Congresso Nacional
face à emergência e aos desdobramentos sociais da pandemia do coronavírus -,

8
Podem se candidatar ao programa, famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. Para as famí-
lias em situação de pobreza é necessário que apresentem, em sua composição gestantes, nutrizes (mães
que amamentam), crianças, adolescentes ou jovens entre 0 e 21 anos incompletos. As famílias extre-
mamente pobres são aquelas que têm renda familiar per capita mensal igual ou inferior a R$ 105,00
(cento e cinco reais). As famílias pobres são aquelas que têm renda familiar per capita de R$ 100,01
(cem reais e um centavo) a R$ 200,00 (duzentos reais). Para se candidatar ao Programa, é necessário
que a família esteja inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, com seus
dados atualizados há menos de 2 anos, além de atender aos critérios de renda e condicionalidades do
programa.

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destinado à parcela da população em situação de pobreza ou extremamente pobre9,
campanhas emergenciais de doação de alimentos e produtos de higiene foram efetua-
das por ONGs e pela sociedade civil organizada, contribuindo pontualmente para
garantir o acesso à alimentação e itens de higiene, sobretudo durante a fase mais aguda
da pandemia.
É importante destacar, no entanto que, a redução no valor do benefício pago do
Auxílio Emergencial, do número de parcelas – em 2020, quando foi criado, eram cinco
parcelas de R$ 600,00 às famílias; em 2021 foram pagas quatro parcelas de R$ 250,00
por família – e do número de pessoas beneficiadas – em 2020 foram 118 milhões de
pessoas (55,8% da população) e em 2021 foram 77 milhões (36,6% da população) -
impactou diretamente na segurança alimentar da população mais vulnerável que, sem
o recebimento da auxílio, teve que sair do isolamento social para trabalhar, mesmo que
em ocupações informais.
Nas áreas rurais, por sua vez, a insegurança alimentar alcançou 63,8% dos domicí-
lios, sendo que destes 18,6% encontravam-se em situação de insegurança alimentar grave,
maior do que a média nacional (15,5%), como se evidencia na Figura 1. Até os lares dos
agricultores familiares e pequenos produtores rurais foram atingidos pela insegurança
alimentar grave (fome), tendo representado 21,8% dos domicílios, como destacam Paula
e Zimmermann (2021). A pobreza das populações rurais associada ao desmonte das po-
líticas de apoio às populações do campo, como o PAA e o PNAE, impôs dificuldades de
acesso aos alimentos e, consequentemente, provocou escassez.

263 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Considerações Finais

A segurança alimentar, que ganhou relevância em termos institucionais sobretudo


após a II Guerra Mundial, teve seu sentido ampliado progressivamente ao longo do
tempo. Entretanto, apesar dos avanços nas discussões sobre a segurança alimentar, em
nível mundial, especialmente no que concerne ao estabelecimento de acordos e defini-
ção de diretrizes gerais, ainda há uma distância muito grande entre o discurso dos gover-
nantes e os reais interesses de cada país manifestados nos compromissos assumidos nas
Conferências Mundiais e que estão longe de serem cumpridos, já que muitos são con-
trários aos interesses de nações ou de grupos econômicos que atuam em escala global.

9
O Auxílio Emergencial foi um benefício criado para garantir uma renda mínima às famílias em situação
mais vulnerável durante a pandemia, já que muitas atividades econômicas foram afetadas pela crise. Em
2020, foram pagas cinco parcelas de R$ 600, 00 às famílias contempladas, totalizando 118 milhões de
pessoas (55,8% da população). Em 2021, foram pagas quatro parcelas mensais de R$ 250,00 por família,
totalizando 77 milhões de pessoas assistidas (36,6% da população).

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Mesmo sendo um direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU, desde 1948, a insegurança alimentar ainda assola parte significativa
da população global, especialmente na África, Ásia e América Latina e Caribe.
Ainda que a pandemia da Covid-19 tenha agravado o problema da insegurança ali-
mentar no Brasil, as diferentes crises que afetaram o Brasil nos últimos anos, associadas ao
desmantelamento das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, sobretudo
aquelas que visavam melhorar o acesso da população em situação de vulnerabilidade social,
como o PAA, ou que contribuíam para garantir a alimentação escolar dos alunos, sobre-
tudo daqueles que não conseguem se alimentar adequadamente em casa, como o PNAE,
agravaram os diferentes níveis de insegurança alimentar, especialmente a grave (fome).
Embora campanhas de arrecadação de alimentos, de forma emergencial, tenham
sido realizadas por diferentes instituições e Organizações Não Governamentais (ONGs)
no país, o papel do Estado por meio das políticas públicas e “da geração de emprego e
renda dentro de um processo de desenvolvimento econômico inclusivo, que distribua
melhor a renda” (Graziano da Silva, 2022), é de fundamental importância, sendo que
a falta delas ou o seu enfraquecimento nos últimos anos no Brasil, associado a outros
fatores, fizeram com que a insegurança alimentar grave voltasse aos patamares do início
do século XXI.
O Brasil já demonstrou que tem experiência na implementação de políticas públicas
de segurança alimentar – como o PAA e o PNAE –, mas é necessário não apenas que elas
sejam retomadas, mas aprofundadas e, sobretudo que tenham continuidade, constituin-
do-se não apenas em políticas de governo, mas de Estado, pois como afirmava Betinho, da
264 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ONG Ação da Cidadania: “quem tem fome tem pressa”.

Referências Bibliográficas

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266 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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III. CIDADES E DINÂMICAS
II. II

DO ESPAÇO URBANO

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Os agentes econômicos
da Cidade de Salvador (1599-1999)

Pedro de Almeida Vasconcelos1

Introdução

A importância dos agentes econômicos varia segundo o período examinado. Certos


agentes que foram importantes no momento da implantação da cidade, porém vão perder
o seu papel hegemônico nos períodos mais recentes.
Foram examinados nove agentes econômicos: os senhores de engenho, os comercian-
tes, os traficantes de escravos, os artesões, os industriais, os banqueiros, os proprietários
fundiários e promotores imobiliários, as grandes empresas e os prestadores de serviços. Os
primeiros agentes terão um maior desenvolvimento neste texto devido a maior espessura
temporal das atividades.

269 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Os senhores de engenho

No Regimento enviado por Tomé de Souza, fundador da cidade de Salvador em 1549,


o rei determinava a doação de terras, na forma de sesmarias, mediante pagamento de dízi-
mos para Ordem do Cristo. O número de senhores de engenhos era então limitado pelas
especificidades da produção de açúcar e pela importância dos investimentos necessários
para a transformação local.
Desde o início, os senhores de engenhos formaram a primeira classe dirigente local.
Comandavam a Câmara Municipal e ocupavam os principais postos da confraria de maior
prestígio social, a da Santa Casa da Misericórdia. Os proprietários agrícolas faziam tam-
bém doações para as ordens religiosas, de terras urbanas ou até de fazendas com escravos.

1
Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Território, Ambiente e Sociedade da Universidade
Católica de Salvador e Professor Participante do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal da Bahia; Pesquisador CNPq. - pavascon@uol.com.br

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A necessidade de mão de obra para a produção de açúcar iria mudar a sociedade local:
em 1576, já eram importados 3.000 escravos para os engenhos da Bahia.
A capitania da Bahia se tornou a principal produtora de açúcar do Brasil: 50 engenhos
já estavam em atividade no Recôncavo em 1612, a região em torno da baia de Todos os
Santos.
Depois da invasão de Salvador entre 1624-1625, os holandeses ocuparam o Nordeste
(1630-1654). Em 1639, eles incendiaram 27 engenhos de açúcar e em 1649, 30 engenhos
foram destruídos, causando grande impacto na produção açucareira.
Após a invasão, os senhores de engenho alcançaram o seu apogeu. Já em 1636, eles
obtiveram da Coroa que suas dívidas não fossem executadas. Por outro lado, eles ajudavam
o Estado na defesa da cidade: em 1640, as trincheiras da cidade foram abertas por escravos
do Recôncavo. O forte de São Pedro, começado em 1646, foi construído por escravos
alugados e impostos foram exigidos aos produtores de cana de açúcar, para permitir a
construção do referido forte. Em 1663, obtiveram uma nova determinação que interditava
as confiscações dos bens e execuções por dívidas.
Os proprietários de terras continuaram a contribuir para o desenvolvimento da cidade
na construção do primeiro convento feminino concluído em 1667, graças ao financia-
mento dos senhores de engenhos. Financiaram também a construção do Noviciado dos
Jesuítas. Proprietários cederam para os franciscanos uma fazenda e escravos no Recôncavo.
Os exploradores de minas também colaboraram com o crescimento da cidade: o convento
das Mercês foi financiado pela herança de um explorador da região de Jacobina;
A concorrência do açúcar das Antilhas ficou perceptível a partir de 1680 com a queda
270 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

da demanda do produto. Mas a descoberta de ouro em Minas Gerais (1698) levou a um


aumento da demanda em escravos e os preços dos mesmos se elevaram fortemente: em
1723 o preço de um escravo passou de 40.000 para 200.000 reis. Em 1728, foram tam-
bém descobertos diamantes em Minas Gerais.
Os agentes econômicos, ainda profundamente impregnados da mentalidade religiosa,
e cuja circulação se ampliava em função da descoberta das minas de ouro, contribuíram na
transformação da cidade durante “a idade de ouro” de Salvador. Durante esse período enor-
mes riquezas acumuladas foram aplicadas na construção, reforma e ampliação dos princi-
pais prédios religiosos de Salvador, conventos, igrejas de paróquias ou igrejas das confrarias.
Os proprietários agrícolas também construíram solares imponentes na Cidade
Alta. O Vice-Rei do período de 1714 a 1718, Pedro Antônio de Noronha, visitou o
Recôncavo para convidar os senhores de engenhos a morar em Salvador, a fim de refor-
çar o papel da cidade.
Os senhores de engenhos continuam importantes. Em 1759, o número de engenhos
na Bahia passou para 172. O açúcar conheceu novamente um período favorável, entre

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1787 e 1821, graças a queda da produção no Haiti. Em 1818, a exportação do açúcar
provinha dos 511 engenhos da Bahia. Em 1822, a concessão de terras (as sesmarias) foi
interditada no Brasil, o que tornou mais difícil o acesso à terra.
Os proprietários de engenhos do Recôncavo comandaram o cerco de Salvador durante
a Guerra de Independência (1822/1823). Após a guerra, em 1835, havia um total de 605
engenhos, dos quais 46 com vapor. Entre 1842 e 1860, a economia passou por uma nova
fase de recuperação graças a alta do preço do açúcar.
Mas em 1850, ano do fim do tráfico de escravos, a Bahia perdeu o lugar de primeiro
produtor nacional de açúcar. Os senhores de engenho possuíam o elevado número de
1.671 engenhos na Bahia, entre eles 144 a vapor, e cerca de 40.000 escravos, produzindo
4 milhões de arrobas de açúcar em 1855.
Em 1870, o açúcar baiano desapareceu dos mercados externos, mas em 1875, o núme-
ro de engenhos ainda aumentou, atingindo 1.892, dos quais 282 com vapor. No mesmo
ano o fumo se tornou o primeiro produto de exportação da Bahia.
Na Bahia, depois da abolição da escravidão em 1888, a produção do açúcar entrou em
crise. Apesar dessa crise, em 1907, ainda existiam 32 usinas. Este número caiu para 12 em
1927 o que mostra o declínio do setor. Logo o cacau, produzido no sul do Estado, recupe-
rou a economia e as exportações da Bahia (1890/1920). Foi sobretudo através dos impostos
que o cacau contribuiu para o desenvolvimento de Salvador. A produção do fumo se de-
senvolveu igualmente: em 1905, Bahia se tornou novamente o maior produtor. Em 1932,
Bahia era ainda o segundo estado brasileiro em volumes de exportações desse produto.
A agricultura entrou em um processo de declínio total, sobretudo no Recôncavo, onde

271 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
as atividades da Petrobras acabaram desestruturando o pouco que sobrou de uma agri-
cultura organizada. Em 1956, 12 usinas de açúcar ainda funcionavam no Recôncavo, e a
produção destinava-se para o consumo de Bahia.
A agricultura, em áreas próximas do litoral continuou em crise; a produção do açú-
car conheceu um longo declínio tanto que hoje, apenas duas usinas funcionam ainda no
Recôncavo. Por outro lado, dois novos setores se desenvolveram, com repercussões diretas
sobre a economia baiana e indireta sobre Salvador: o da produção de soja, no extremo oeste
do estado, e o da produção de frutas tropicais para exportação no vale do rio São Francisco.

Os Comerciantes

Os comerciantes não tinham a mesma importância social dos senhores de engenhos.


Por exemplo, não podiam ser provedores da prestigiosa ordem da Misericórdia nem das
Câmaras Municipais. No levantamento dos contribuintes de 1648, já se contava um total
de 77 comerciantes em Salvador, o que dá uma medida da importância dessa categoria.

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Os negociantes formavam uma classe em ascensão. O viajante Dampier, em 1699,
escreveu que os comerciantes eram em sua maioria portugueses e que todo o comércio
acontecia nos navios portugueses. Salvador era então “o centro de todo o comércio do Brasil”.
Uma Ordem Real de 1740 permitiu aos comerciantes de fazer parte das Câmaras,
eliminando assim um dos obstáculos para a ascensão social desta classe. Em 1759, havia,
segundo Caldas, 120 negociantes, entre os quais 14 possuíam importantes riquezas acu-
muladas e sete negociavam com Portugal.
As atividades marítimas eram também importantes. O contrabandista Lindley, durante
a sua estadia de 1802 até 1803 em Salvador, comentou que o comércio interno era realizado
por 40 navios de 250 toneladas cada e que o comércio local era abastecido por 800 lanchas e
sumacas, “uma riqueza, em grau desconhecido na Europa, é assim posto em circulação”.
Segundo Vilhena, em 1802, a classe dos comerciantes da cidade agrupava 164 homens
e “a praça da Bahia uma das mais comerciosas das colônias portuguesas”. Comentou a parti-
cipação dos comerciantes nas tropas em Salvador: um regimento de úteis era composto de
534 comerciantes; e um regimento de milicianos era formado por 457 artesões, vendedo-
res e taberneiros brancos.
Graças à abertura dos portos, em 1808, por um decreto assinado sob pressão inglesa,
o comércio internacional foi autorizado e os comerciantes estrangeiros se instalaram no
Brasil sem restrições. Em 1812, 154 negociantes locais e 12 firmas estrangeiras estavam
registrados. Os comerciantes inauguraram, em 1817, o imponente prédio da Associação
Comercial. Os comerciantes portugueses viviam na maioria nesta parte da cidade enquan-
to os ingleses moravam nas alturas de Vitoria.
272 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied comentou em 1817 que o comércio fez de


Bahia “uma importante cidade que parece exceder de muito, em tamanho, o Rio de Janeiro”.
Os cientistas J. B von Spix e C. F. P. von Martius, em 1818, afirmaram que “Bahia é sem
dúvida a mais rica e mais ativa praça comercial de todo o Brasil”. Havia 18 casas de comércio
inglesas, duas francesas e duas alemãs. Rugendas permaneceu no Brasil, de 1821 até 1825
e observou sobre a Bahia: “o seu comércio é até superior àquele da capital”.
Numerosos comerciantes portugueses foram expulsos por causa do apoio que deram
para as tropas lusitanas durante a guerra da independência. No momento da sua partida,
em julho de 1823, levaram com eles todas as suas riquezas. A saída dos negociantes portu-
gueses provocou uma crise econômica em 1824. Mas os comerciantes ainda eram impor-
tantes nas ordens leigas: a Ordem Terceira de São Domingos, entre 1816 e 1830, contava
105 membros, a maioria deles comerciantes e a metade dos quais residia na Cidade Baixa.
Os comerciantes pareciam recuperar-se da crise da independência pois, em 1846, já
contribuíam para a construção da muralha da Ladeira da Conceição e em 1848, equipa-
ram a cidade com a primeira bomba anti-incêndio.

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Os ingleses começaram a dominar o comércio exterior: em 1827, 122 dos 150
navios que atracaram em Salvador, navegavam sob pavilhão inglês. A primeira linha
de navegação a vapor entre o Brasil e a Inglaterra foi criada em 1858. Doravante, a
navegação não dependia mais das condições marítimas ou climáticas e um tráfico
regular se tornou possível. O porto de Salvador começou a perder importância ao pro-
veito de Recife, mais próximo da Europa. A inauguração em 1869, do canal de Suez,
diminuiu a importância do Atlântico Sul com consequências negativas para o porto e
o comércio de Salvador.
Os comerciantes de Salvador implantaram um conjunto uniforme de magníficos
imóveis em frente ao porto. As ordens leigas ainda eram associações de prestígio: a
Ordem Terceira do Carmo, entre 1877 e 1900, contava 148 membros, dentre os quais
108 eram comerciantes.
Na república, os principais agentes econômicos continuam sendo os comerciantes.
Segundo Durval Aguiar, em 1889, o comércio da cidade era o “segundo comércio [...]
do país, especialmente quanto à importação”, havendo um movimento de 4.000 embar-
cações por ano. O comércio de exportação estava sob o controle estrangeiro: em 1891,
sobre 11 casas de exportação, quatro eram alemães, três inglesas, três americanas e ape-
nas uma nacional. As casas importadoras eram 64. O comércio de varejo contabilizava
965 casas, sendo 500 de molhados.
A abertura do Canal de Panamá (1914) diminui ainda mais a importância da na-
vegação no Atlântico Sul e a do porto de Salvador.
O comércio, no período de 1945-1969 ainda não tinha evoluído para formas

273 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
mais modernas e descentralizadas. Em 1940, o número de trabalhadores emprega-
dos no comércio era de 18.823. Milton Santos informou que em 1950, o comércio
varejista de Salvador representava 45,6% do total do Estado da Bahia, e o grossista
83,88%.
Foram as novas formas de implantação comercial que revolucionaram, não apenas
o comércio como também a estrutura urbana de Salvador. Novos centros comerciais
surgiram, causando um grande impacto sobre o comércio tradicional da área central
da cidade. O Shopping Center Iguatemi foi inaugurado em 1975 na nova área de ex-
pansão da cidade. Alcançou um total de 508 lojas em 1998 e se tornou o coração do
novo centro metropolitano e de novos eixos de crescimento.
Em 1985, os efetivos trabalhando no comércio atingiram 65.443 trabalhadores,
em um total de 7.689 estabelecimentos o que dá uma média de oito trabalhadores
por estabelecimento. Havia em 1995, 18.825 estabelecimentos comerciais, entre eles
17.066 para venda ao varejo.

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Os Traficantes de Escravos

Este é, certamente, uma atividade muito importante no passado, pela fixação dos gan-
hos na cidade, embora relativamente pouco estudada.
Com a invasão holandesa do nordeste do Brasil, e posteriormente a conquista tempo-
rária de Angola e São Tomé e Príncipe, levou a realização do tráfico direto entre a Bahia e
o Golfo de Benim, na África.
Entre 1752 e 1756, devido à limitação de 24 navios para o tráfico de escravos, um mo-
nopólio se estabeleceu, sob o controle de 40 negociantes de Bahia e de 20 de Pernambuco.
Este monopólio rompia o “sistema triangular” colonial, permitindo uma maior acumu-
lação de riquezas na colônia. Em 1759, segundo Caldas, 28 negociantes da Bahia se diri-
giram para Costa de Mina e 12 para Angola, levando consigo 28.000 rolos de tabaco, a
principal mercadoria de troca por escravos.
Os traficantes de escravos se tornavam uma categoria muito influente em Salvador.
Nas instruções de 1779, assinadas por Martinho de Mello e Castro para o Marquês de
Valença, foram feitos comentários interessantes da perspectiva da metrópole sobre esse
tráfico:
“gravíssimos inconvenientes [...] a este Reino, em deixarmos o comércio da África entre-
gue nas mãos dos Americanos, lhes permitindo liberdade de poderem fazer aquella nave-
gação e negociar em todos os portos daquele Continente, não nos lembrando de acordar
ao mesmo tempo [...] tivessem os portugueses a preferência da mesma sorte que a Capital
e seus habitantes a devem sempre ter em toda parte sobre as colônias e habitantes dela”.
274 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Criticava ainda “[...] apropriaram-se alguns homens de negócio, da Bahia todos os navios
de comércio daquele porto para a Costa da África e fazerem dele hum rigoroso monopólio [...]”,
assim como o contrabando de fazendas estrangeiras2.
Em 1797, o fumo exportado para Costa de Mina alcançou 245.532$000 réis. Em
1798, segundo Vilhena, a importação de escravos da Costa de Mina aumentou para
490.300$000 réis e a de Angola para 172,080$000 réis. Estes valores correspondiam a
40% da exportação do açúcar o que registra a importância do capital investido no tráfico.
Na sequência dos tratados anglo-portugueses de 1810, 17 dos 32 navios que realiza-
vam o tráfico negreiro em Salvador, foram capturados pelos britânicos com o consequente
fechamento, em 1812, de cinco das principais casas comerciais da cidade.
A viajante Maria Graham considerava Salvador como o principal porto de escravos no
Brasil, informando que 76 navios tinham viajado, em 1820, para a África. A riqueza dos

2
Amaral in SILVA, i., 1937, V. 5, p. 350.

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principais traficantes de escravos pode ser avaliada, por exemplo, pela residência com 22
janelas, de Domingos José Martins. Foi lá que Jérôme Bonaparte ficou hospedado durante
a sua visita em Salvador em 1806.
O pastor norte-americano Kidder observou, em 1839, uma certa paralisia do comér-
cio baiano, consequência das patrulhas inglesas contra o tráfico negreiro. Contudo, segun-
do ele, “poucos navios negreiros foram armados, sem largos créditos de casas britânicas”.
Por outro lado, os proprietários de navios continuaram o tráfego de escravos até 1850,
data da sua abolição, apesar das persecuções dos navios britânicos. Um cônsul francês,
Maubuisson em Salvador, informou em 1847, que “o tráfico dos negros forma o principal
elemento do comércio desta praça”. Maubuisson deu a lista dos navios enviados para África
em 1846, e dos armadores de navios negreiros, como Joaquim Pereira Marinho, proprietá-
rio dos navios “Três Amigos”, de 406 toneladas (para Onin, ou seja, Lagos, atual Nigéria)
que trouxe 1.330 escravos no mesmo ano.
Com o fim do tráfico de escravos em 1850, os recursos aplicados nestas atividades
foram reconvertidos em diferentes setores urbanos que ganharam um certo dinamismo. O
comerciante Joaquim Pereira Marinho ilustra bem esta conversão de recursos: em 1851, ele
adquiriu 24 casas na Cidade Baixa, que tinham pertencido aos Carmelitas Descalços; em
1858, ele participou à fundação do Banco da Bahia; e em 1876, ele presidiu a Associação
Comercial. Ele possuía ações da Cia. de Navegação Baiana e residia no Corredor da Vitória.
O seu inventário de 1887 constam bens imóveis no valor de 2.400:000$000 réis. Outro
traficante de escravos, Antônio Pedroso de Albuquerque possuía uma fábrica de tecidos em
Valença, Bahia, uma empresa de navegação a vapor e engenhos em Itaparica, São Francisco

275 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
do Conde e Santo Amaro, com um total de 560 escravos (de um valor de 471:420$000
réis). O seu inventário de 1883 consta de 3.742:714$871 réis em bens imóveis.

Os Artesões

Para a construção da cidade, em 1549, Edison Carneiro registrou um mestre de obra,


16 pedreiros, 15 carpinteiros, 10 ferreiros, oito serradores, oito telheiros, cinco calafates,
quatro serralheiros, quatro caieiros e três cabouqueiros. Foram os primeiros artesões em
Salvador. Os artesões eram considerados na Misericórdia como “irmãos menores”, porque
realizavam trabalhos manuais, malvistos numa sociedade senhorial. Os artesões começa-
ram a se organizar: a confraria dos oficiais mecânicos foi fundada pelos Jesuítas em 1614.
Em 1641, depois da restauração portuguesa, o primeiro Juiz do Povo foi eleito, assim
como quatro representantes dos mestres artesões, o que diminuiu um pouco o poder da
elite agrária. Na relação dos contribuintes de 1648, já apareciam 70 oficiais mecânicos,
número próximo dos comerciantes.

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Em 1701 foi confirmado pela Câmara que os oficiais mecânicos deveriam realizar exa-
mes para exercer os ofícios. Em 1713, o Juiz do Povo e os representantes dos mestres artesões
foram suprimidos depois de um motim. Em 1732, um mestre pedreiro tinha uma “empresa”
de 40 escravos o que ilustra um dos possíveis desdobramentos do escravismo urbano.
O Estado português estabeleceu medidas de controle rigorosas na Colônia. Em 1766,
o trabalho dos 158 ourives foi proibido. Posteriormente, em 1815, os ourives foram auto-
rizados a retomarem suas atividades.
Depois da Independência, a Constituição do Império de 1824 aboliu as corporações,
seus juízes, escrivães e mestres.
Encontramos um levantamento estatístico para Salvador, datado de 1855, que traz
uma enumeração das oficinas existentes na cidade: no total estavam registradas 676 ofi-
cinas. As atividades artesanais foram, em sua maior parte, substituídas pelas atividades
industriais.

Os Industriais

As medidas de controle do Estado português continuam: em 1785, as fábricas de teci-


dos foram proibidas na Colônia. A interdição das manufaturas foi revogada em 1808 com
a chegada do Príncipe português no Brasil: as primeiras fábricas foram instaladas: uma de
vidro, em 1808 e uma fábrica de rapé, em 1816.
A categoria emergente dos industriais se fortaleceu: em 1834, Meuron, proprietá-
rio de uma indústria de fumo, legou uma fortuna de 20.000$000 réis ao Colégio do
276 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Sagrado Coração de Jesus. Em 1842, a primeira indústria têxtil instalou-se em Salvador, a


do Queimado; seguida por aquela de N. S. da Conceição onde trabalhavam 50 operários.
Posteriormente os industriais se tornam uma categoria importante e fundaram nume-
rosas fábricas: em 1855, uma fábrica de máquinas para engenhos, a Cameron &Smith, com
60 operários dos quais eram 19 estrangeiros e 10 escravos em Itapagipe. A partir de 1870,
novas fábricas têxteis foram implantadas. Finalmente, em 1880, já havia uma indústria de
lapidação de diamantes.
Os industriais, no final do século XIX tinha estabelecimentos de maior dimensão: em
1889, uma fábrica de vestuários foi inaugurada em Salvador: a Sampaio & Cia, empregan-
do 400 trabalhadores. Em 1891, o Empório industrial do Norte foi fundado em Itapagipe
pelo industrial Luiz Tarquínio, empregando 1.600 operários e dispondo de um capital de
5.878 milhões de réis. Ele implantou a primeira vila operária, totalizando 258 casas. No
mesmo ano, os reagrupamentos industriais começaram: a Cia. União Fabril, resultado da
fusão de seis fábricas, totalizavam 1.170 operários e um capital de 3.172 milhões de réis,
em seis estabelecimentos.

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Em 1893, 107 fábricas estavam instaladas em Salvador, das quais 50 eram simples pa-
darias. Havia três fábricas de chapéus, uma das quais uma empregava 500 operários. Havia
também duas fábricas de calçados, uma empregando 800 operários.
Em 1907, 53 fábricas estavam em atividade em Salvador, sem contar as padarias.
Destacavam-se as 11 fábricas têxteis onde trabalham 3.530 operários. Em 1927, o número
de indústrias têxteis em Salvador caiu para nove. Uma fábrica de chocolate entrou em
atividade em 1944.
Em 1951, a Usina Hidroelétrica de São Francisco foi inaugurada e passou a fornecer
energia elétrica para as capitais nordestinas, permitindo a sua industrialização. A criação
da Petrobras em 1953 suscitou o aparecimento de 13.000 empregos no Recôncavo.
No ano seguinte, empreendeu-se a construção da Refinaria Landulpho Alves, em São
Francisco do Conde. Um organismo visando o desenvolvimento do Nordeste foi criado
em 1959, a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), cuja sede está
em Recife.
No Censo de 1940, apenas 17.916 trabalhadores tinham sido registrados na indústria
de Salvador. A cidade contava em 1954, 15.000 operários (entre eles mais de 5.000 ope-
rários em Itapagipe); em São Paulo, já havia 440.000 no mesmo ano. Em 1955, 514 es-
tabelecimentos industriais funcionavam em Salvador. Em 1956, o município concentrava
ainda 58% da produção industrial do Estado.
Em 1967, o Governo da Bahia inaugurou o Centro Industrial de Aratu, situado em
grande parte nos municípios vizinhos de Salvador, com o objetivo de fornecer um parque
industrial dotado de uma boa infraestrutura. Entre 1960 e 1970, a Bahia absorbeu 41%

277 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
dos investimentos realizados no Nordeste.
Em 1971, as obras para construção do porto de Aratu foram iniciadas para responder
às necessidades das companhias instaladas no Centro Industrial de Aratu et no futuro
complexo petroquímico.
Na Bahia, 4,5 miliares de dólares foram investidos em 1978, na implantação do
Complexo Petroquímico de Camaçari. Em 1987, os novos investimentos, de mais
de 1,3 bilhões de dólares, permitiram a sua duplicação. A implantação do complexo
se fez graças a investimentos do governo federal assim como de recursos nacionais e
internacionais.
A maioria dos investimentos industriais foram realizados na periferia do municí-
pio de Salvador, no Polo Petroquímico de Camaçari, como implantação da Copene –
Petroquímica do Nordeste, em 1977, a maior companhia industrial da Bahia em 1991. Os
efeitos destes investimentos sobre a metrópole foram consideráveis.
Nos anos 1970, o grupo Odebrecht lançou um grande loteamento industrial e ataca-
dista, o “Porto Seco Pirajá”. Em 1975, a Usina Siderúrgica de Bahia, Usiba, foi instalada.

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Em 1990, 50 das 200 maiores companhias do Estado estavam localizadas em Salvador,
23 na construção civil, 11 na exploração dos minerais metálicos e as outras nos alimentos
e nas matérias plásticas.
Em 1995, o total dos estabelecimentos industriais em Salvador era de 1.568. O nú-
mero de pessoas ocupadas nas indústrias de transformação em Salvador, era apenas de
30.293, o que dá uma média de 19 trabalhadores por fábrica, dado que confirma bem que
a maioria dos estabelecimentos era de tamanho médio ou pequeno.
Como o desenvolvimento industrial de Salvador ocorreu tardiamente e foi realizado a
partir do planejamento de grandes zonas industriais nos municípios vizinhos, o município
de Salvador não pode contar com uma grande participação de novas indústrias, o que
acarretou problemas de ordem fiscal e financeira para a metrópole. As receitas de Salvador
em 1996 foram de 1.022 bilhões de reais para um total de 2,2 milhões de habitantes (464
reais por habitante), que refletem a pouca importância da atividade industrial no território
municipal.

Os Banqueiros

Um grande financista, em 1700, legou para Misericórdia uma fortuna considerável, e


se tornou o Provedor da Misericórdia, a ordem mais prestigiosa.
Três companhias de seguros foram criadas em 1808. Elas eram importantes para ga-
rantir a segurança dos navios do tráfico negreiro.
Em 1817, foi inaugurada o primeiro banco, a Caixa dos Descontos. Entre os seus
278 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

diretores, reencontramos P. R. Bandeira, que figurava em primeiro lugar na lista dos ricos
comerciantes em 1769.
Embora o período de 1823 a 1849 tenha sido bastante instável, o capital financeiro
se desenvolveu: as agências de seguro continuaram a suas atividades. Em 1834, a Caixa
Econômica da Cidade de Bahia foi fundada. Em 1845, o Banco Comercial da Província de
Bahia foi criado. Em 1848, três outros bancos foram implantados. Em 1858, foi fundado o
Banco da Bahia do qual um dos primeiros diretores foi o citado Joaquim Pereira Marinho,
ex-traficante de escravos. Em 1874, uma filial do London & Brazilian Bank foi inaugurada.
Novas companhias de seguro apareceram: em 1870, fundou-se a importante
Companhia. de Seguros Aliança da Bahia.
Doze companhias de seguro funcionavam em Salvador em 1893, em sua maioria es-
trangeiras: quatro inglesas, duas alemãs, uma portuguesa, uma americana e quatro bra-
sileiras. No mesmo ano, já havia seis estabelecimentos de crédito. O imóvel da British
Bank of South America foi inaugurado em 1895. Em 1928, havia em Salvador 11 agências
bancárias das quais três eram estrangeiras. O Presidente do Banco de Crédito Agrícola da

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Bahia foi governador entre 1908 e 1911, assim como o Presidente do Banco Econômico,
entre 1928 e 1930, o que demonstra a importância da categoria.
Em 1952, Salvador tinha 17 bancos dos quais um era estrangeiro. Frente às mudanças
econômicas e ao movimento de concentração financeira, a maioria dos bancos regionais
de dimensão nacional não puderam resistir.

Os Proprietários Fundários e Promotores Imobiliários

O Capitão Tomaz da S. Paranhos comprou da Marquesa de Niza, em 1839, terras no


Rio Vermelho e Cabula, tornando-se assim um grande proprietário fundiário da periferia
da época da cidade.
Apenas em 1925 foi aprovado o primeiro projeto oficial de loteamento da cidade, em
Itapagipe.
Entretanto, nos anos 1950 um número elevado de 128 projetos de loteamento foi
aprovado pela Prefeitura.
Em 1968, vastos terrenos municipais foram alienados pela prefeitura. Grande parte
das terras urbanas passaram assim para a propriedade privada.
Os proprietários de terrenos e os promotores fundiários foram responsáveis pela im-
plantação de loteamentos que, devido a suas dimensões, podem chegar à formação de
bairros inteiros. Os setores de promoção imobiliária e da construção foram responsáveis
pela construção de imóveis residenciais e de escritórios, sobretudo torres elevadas, que
modificaram a fisionomia da cidade e mudaram as densidades de ocupação do solo, com

279 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
repercussões sobretudo no nível das infraestruturas e da circulação.
De fato, além dos impactos diretos e indiretos dos agentes econômicos, pode-se afir-
mar que a produção imobiliária é a responsável pela maior parte do desenvolvimento
urbano “legal” de Salvador.

As Grandes Empresas

As obras públicas de grande porte interessaram também as empresas estrangeiras: em


1891, obras do porte foram concedidas para a Cia. Docas e Melhoramentos da Bahia, e
depois em 1907, a Sociedade Portuária da Bahia continuou estas obras à serviço do gover-
no federal.
Um outro segmento importante consolidou-se, aquele das grandes empresas da
construção, algumas realizando obras no nível internacional: a Companhia Norberto
Odebrecht e a Goes Cohabita Construtora, fundadas respectivamente em 1946 e
1959.

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Durante o período de 1970 a 1999, grandes empresas de construção pesada foram
criadas, operando no nível nacional e internacional e que vem responder a uma demanda
por parte do setor público para obras de grande porte. Entre as 200 maiores indústrias
baianas em 1991, 27 eram empresas da construção: seis foram fundadas nos anos 1950,
seis nos anos 1960 e 11 nos anos 1970. Entre elas, a Construtora Suarez (1975) e a
Construtora OAS (1976). A OAS era a empresa que utilizava a mão de obra a mais nume-
rosa, 18.343 trabalhadores em 1991.

Os Prestadores de Serviços

Finalmente, os estabelecimentos classificados nos serviços totalizavam 5.949 unidades


e agrupavam 54.640 trabalhadores em 1985 o que dava uma média de 10 trabalhadores
por estabelecimento. Em 1995, o número de estabelecimentos de serviço passou a 8.345,
ou seja, 19% na hotelaria e alimentação (setores ligados às atividades do turismo). A eco-
nomia de Salvador tem nos serviços a principal atividade econômica.

Conclusões

Os agentes econômicos tiveram um papel crescente na construção da cidade, sempre


complementar àquele do Estado.
Os agentes econômicos continuam hoje a participar na construção da cidade, sob
diversas formas como por exemplo, a construção dos locais de trabalho e de produção de
280 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

bem e serviços: os centros comerciais; os imóveis de escritórios; os imóveis industriais e


galpões, et., enquanto a outra parte da cidade é o resultado das invasões dos terrenos e da
implantação de loteamentos populares irregulares, eles também são agentes econômicos,
porém “ilegais”.

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Mudanças na organização
do espaço urbano brasileiro

José Borzacchiello da Silva1

Introdução

O artigo discute a mobilidade da população e a consequente alteração que vem


ocorrendo na rede de cidades no Brasil a partir do final do século XX e no século XXI.
De imediato surgiu a necessidade de analise de mapas e dados capazes de mostrar esse
movimento da malha urbana brasileira e as transformações dos diferentes processos ex-
plicativos. Chamou a atenção a redução do ritmo de crescimento das metrópoles já
consolidadas, com acréscimo demográfico diminuto a partir dos resultados censitários
obtidos desde os anos 1980. O contraponto por sua vez, se dá no crescimento demográ-
fico mais acentuado nas chamadas cidades de porte médio pelo Brasil afora. Esse proces-

283 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
so permite ler a dinâmica dessas cidades como a extensão dos tentáculos das metrópoles
que reorganizam os espaços do país e firmam presença em todo o território, mesmo com
crescimento demográfico pífio. O novo,sob a ótica da cidade e do urbano, desponta com
a constatação da expressão adquirida pelas chamadas cidades do agronegócio, especial-
mente as do Centro-Oeste e as da Amazônia que apresentam um dinamismo produtivo
sem igual. Além da redução dos índices de crescimento demográfico das metrópoles
consolidadas do país, constata-se também um acelerado processo de empobrecimento
da população acompanhado pelo crescimento exponencial das áreas de favelas e de ha-
bitações precarizadas. Acrescenta-se ainda, a acentuada queda da qualidade de vida, o
que aponta para a ausência ou fragilidade das políticas públicas voltadas aos programas
habitacionais e aos de transferência de renda e de redução da pobreza. Entretanto, nes-
sas áreas novas e dinâmicas do interior do país onde o agronegócio prospera, as cidades
crescem rapidamente e adquirem perfil de centros equipados, dotados de comércio e

1
PPG em Geografia da UFC e PUC-Rio - borzajose@gmail.com

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serviços capazes de atender diferentes demandas. Elas criam novas frentes de trabalho
para vários profissionais, muitos dos quais se encontravam desempregados ou à procura
de emprego nos grandes centros. As cidades do agronegócio mostram-se promissoras
para diferentes setores. Entretanto, há forte manifestação de segregação sócio-espacial,
que separa e exclui os proprietários brancos, oriundos do sul do país, dos migrantes ne-
gros e pardos que atravessam o território nacional em busca de trabalho e de melhores
condições de vida. Constatar essas mudanças torna-se essencial para uma melhor com-
preensão da dinâmica espacial brasileira.
As lutas por melhorias e mudanças no quadro político do país por sua vez, tomaram
maior vigor na efervescência dos movimentos sociais, inclusive, os sindicais, focados na re-
democratização do país e na formação partidária de militantes de esquerda, organizados e
mobilizados a partir do chão das fábricas com a participação efetiva de profissionais de outras
áreas e intelectuais. Esses movimentos que eclodiram com a abertura política no país com
lutas contínuas que sinalizavam um processo de redemocratização. Essas ações contavam com
expressivo apoio do segmento da igreja católica engajado na organização de Comunidades
Eclesiais de Base, fundamentadas na Teologia da Libertação. O Brasil urbano urgia por mu-
danças e o Movimento Nacional pela Reforma Urbana ensejava uma luta que ultrapassasse
uma mera demanda por construção de moradias populares. O movimento continuou rei-
vindicando a democratização das condições sociais de acesso aos espaços das cidades. Após
a promulgação da Constituição Federal, os movimentos sociais envidaram esforços para a
articulação de suas reivindicações por meio da organização do Fórum Nacional de Reforma
Urbana (FNRU). No Brasil, o direito à cidade está descrito no Estatuto da Cidade (Lei no
284 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

10.257/2001), no art. 2o, incisos I e II, que dispõem sobre o direito a cidades sustentáveis. O
Estatuto regulamenta os artigos referentes à política urbana no âmbito federal (artigos. 182
e 183 da Constituição Federal de 1988). Com isso, importantes avanços foram alcançados,
embora não sejam suficientes para o atendimento das demandas.

O Brasil caminha para o oeste

Pais com enorme superfície e com várias frentes de ocupação e povoamento, o Brasil
carece de um entendimento mais preciso do significado e aplicação do conceito de escala
capaz de facilitar a compreensão do processo de interpretação e leitura de seu território. A
veiculação da informação de forma globalizada, com todas as nuances ideológicas possíveis,
mescla as noções de tempo e espaço, acrescidos agora, com a de escala. Esse amálgama cor-
rompe, no plano das aparências, a ideia de limites e fronteiras gerando, ao mesmo tempo
situações contraditórias. A vertente social da geografia, na medida do possível reage, elabo-
rando esquemas teóricos e roteiros metodológicos, tentando aproximar seus pressupostos

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com a análise do país real. O urbano no Brasil se enquadra no contexto da conjuntura global,
o que significa dizer que as metrópoles já não crescem em termos demográficos nos mesmos
ritmos registrados até os anos 1980, o que é reforçado por POCHMANN (2022)2 ao afir-
mar que “Enquanto as cidades médias, sobretudo as ligadas ao agronegócio exportador, se
expandem, grandes centros urbanos estão estagnados. Sem dinamismo produtivo, imperam
o inchamento dos serviços, os trambiques, os bicos e a vida débito-crédito”.
Sob o ponto de vista do avanço das redes técnicas, suas implicações tempo espaciais
provocaram mudanças significativas no território brasileiro. As cidades de porte médio
adquiriram expressão em todo o território nacional exercendo papel preponderante nas
áreas mais distantes, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. As conquistas na
área das tecnologias de comunicação e de informação possibilitaram contato direto dessas
cidades contidas na malha informacional do país associadas à expansão da aviação comer-
cial e militar que cruza o Brasil em várias direções. A malha aérea e rodoviária tradicional
estava circunscrita às cidades localizadas na faixa litorânea. A transferência da nova capital
do país para a recém fundada Brasília, em 1960, localizada no Planalto Central alterou,
substancialmente, a dinâmica territorial brasileira. Rapidamente, a nova capital se conso-
lidou como povo irradiador de crescimento. Seu aeroporto é um dos mais movimentados
do Brasil, mantendo conexão com cidades de todas as regiões e com algumas do exterior,
além de ser ponto inicial de rodovias que ligam Brasília a todas as capitais dos estados do
país. A grande transformação no uso do território se dá com a expansão do agronegócio,
especialmente ao ligado ao cultivo de soja e de algodão e à criação de gado. Com o agro-
negócio, algumas cidades se refuncionalizaram, tornando-se importantes pólos comerciais

285 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
e de serviços, enquanto outras foram criadas para atender às demandas de um mercado
promissor.
Discutindo a rede urbana brasileira sob a égide do cultivo de soja em larga escala e o surgi-
mento de cidades novas que já apresentam um destacável dinamismo, ELIAS 3assim se coloca:
“Um tipo de cidade vem ganhando destaque na rede urbana brasileira são
as denominadas cidades do agronegócio. De maneira geral, essas são cidades de
pequeno e médio portes e resultam da expansão da urbanização inerente às novas
formas de uso e ocupação do território brasileiro associadas à reestruturação pro-
dutiva da agropecuária e à expansão da economia e da sociedade do agronegócio
globalizado. As cidades do agronegócio existem em todo o Brasil. Algumas são mais
antigas e encontram-se em permanente processo de (re)estruturação, enquanto

2
Pochmann, Márcio, Cidades em Transe, Outras Palavras, Publicado 12/01/2022 às 14:32 - Atualizado
12/01/2022 às 14:h.
3
Elias, Denise, Uma radiografia das “cidades do agronegócio”, Outras Palavras, Disponível em: https://ou-
traspalavras.net/cidadesemtranse/uma-radiografia-das-cidades-do-agronegocio/ , Acesso em 08.09.2022.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 285 20/06/2023 16:46:26


outras já nascem como fruto da difusão do agronegócio e da divisão do trabalho
por ele estabelecida, especialmente nas fronteiras agrícolas. Essa tipologia de cida-
de é um exemplo efetivo do uso do território brasileiro para atender os interesses
das corporações do agronegócio. Citemos algumas: Sinop, Sorriso, Nova Mutum
e Lucas do Rio Verde (MT); Balsas (MA); Uruçuí (PI); Rio Verde (GO); Ribeirão
Preto (SP); Luís Eduardo Magalhães (BA); Petrolina (PE); Chapecó (SC); Dourados
(MS); Uberlândia (MG); Passo Fundo (RS), entre várias outras.”

Esse movimento, marcado pela passagem para novo regime de acumulação, é acompa-
nhado por mudanças fundamentais multiformes no modo de produção e de consumo, nas
transações e nos mecanismos institucionais de regulação das relações sociais. Eles induzem
a uma reestruturação espacial da sociedade inteira; redefinição do conteúdo ideológico dos
espaços; estabelecimento de nova divisão social e espacial do trabalho; criação de novos
espaços de produção e de consumo.
286 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1 – Rede urbana – Brasil – 2018 - IBGE4

4
Disponível em: https://geoftp.ibge.gov.br › mapas › Mapa_1-Red., acesso em 20.09.2022

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 286 20/06/2023 16:46:26


No mapa da Figura 1, observa-se a dominância das grandes metrópoles no sudeste e
na faixa do litoral. Entretanto, é visível, a expansão da malha urbana em direção ao oeste
do país, especialmente, no entorno do Distrito Federal e de Goiânia. Percebe-se também,
as cidades ligadas às áreas de expansão do agronegócio.
Já Diniz (2013)5a propósito da dinâmica da sociedade brasileira, afirma que
‘Passadas as fases colonial e escravista, de uma agricultura mercantil para fora e
natural para dentro, a agropecuária brasileira assumiu, historicamente, dois padrões
predominantes, que perduraram de meados do século XIX até a segunda metade
do século XX. O primeiro, por uma agricultura mercantil, liderada pelo café não
escravista e por uma agropecuária mercantil de alimentos e, posteriormente, pela
produção de matérias primas....esse padrão produtivo se localizou, inicialmente,
no estado de São Paulo, estendendo-se para seus vizinhos, de Minas Gerais ao Rio
Grande do Sul, embora houvesse dentro desta ampla região sub-regiões ou grupos
populacionais dedicados predominantemente a atividades de subsistência. O outro
padrão produtivo se caracterizou pela predominância da subsistência ou de relações
de trabalho não assalariadas, o que ocorreu nas regiões de ocupação antiga e estagna-
das, como os casos de parcela do território mineiro e do Nordeste. Neste último, há
que ressaltar a remanescente atividade açucareira na região da mata nordestina, com
trabalho assalariado, mas com precárias condições e relações de trabalho.”

O autor aprofunda a análise da expansão territorial brasileira e remete à discussão do


processo histórico de ocupação do Brasil por parte dos portugueses e os conflitos decorren-

287 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
tes dos choques com os nativos ocupantes das terras do litoral, à medida que os lusitanos
avançavam mata adentro em direção oeste, modificando os contornos territoriais, ultra-
passando limites definidos em acordos e tratados.
Para os portugueses, a expansão para o oeste tinha o objetivo de ultrapassar os limites
estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas, o que conforme Fonseca, (S/D, p.5)6
“resultou, após disputas diplomáticas e vários tratados, na configuração atual da linha
de fronteiras do país. Esse processo de povoamento e ocupação do território do Brasil

5
Diniz, Clélio Campolina (Abril de 2013) Dinâmica Regional e Ordenamento do Território Brasileiro: de-
safios e oportunidades, Texto para Discussão N° 471, CEDEPLAR, UFMG, p. 22
6
Fonseca, Dante Ribeiro da. Esse caráter expansionista atribuído às bandeiras foi mais praticado nas áreas
periféricas aos centros políticos e econômicos coloniais. São Paulo e Belém do Pará foram os núcleos irradia-
dores das ações que vieram a romper com os limites de Tordesilhas. Os processos de conquista e ocupação
portuguesa, efetivos na bacia do rio Amazonas, podem ser situados entre construção do Forte do Presépio,
origem da atual cidade de Belém, em 1616, até o Tratado de Madri (1750). No norte da colônia, é a partir
de Belém que se dá o avanço sobre Tordesilhas. O Tratado de Madri representa o início da consolidação
jurídica do processo de consolidação portuguesa para oeste de Tordesilhas.IN: http://www.uel.br/cch/his/
ISNHM/AnaisPDF/danterfonseca.pdf S/D. p. 5. Acesso em 06,09,2021.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 287 20/06/2023 16:46:26


não resultou em contato e assimilação cultural dos povos vizinhos. Ao contrário, o país
crescia territorialmente, demarcava a posse onde assentava infra-estrutura e serviços de
segurança, com a construção de fortificações, voltando-se, cada vez mais, para e, em si,
sem negar, no entanto, sua excepcional atração pelo hemisfério norte, onde estão as raízes
da dominação européia sobres os povos originários, antigos ocupantes da terra brasilis.7
288 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2 – Proposta de novo mapa das capitanias hereditárias, J. P. Cintra8, 2013F


Fonte: Cintra (2013)

7
É o termo utilizado para denominar o Brasil antes da chegada dos Europeus, a terra dos índios. .A ex-
pressão “terra brasilis” já aparecia em mapas dos séculos XVI e XVII, como por exemplo o mapa feito por
Pedro Reinel e Lopo Homem em 1519. IN: https://www.dicionarioinformal.com.br/terra+brasilis/Acesso
em 06.09.2021
8
Cintra, J. P. “Reconstruindo o Mapa das Capitanias Hereditárias”. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo.
N. Sér. v.21. n.2. p. 11-45. Jul.- dez. 2013.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 288 20/06/2023 16:46:26


O mapa fala por si. O sistema de Capitanias Hereditárias, implantado pelos portugue-
ses no Brasil em 1534, marca o início da primeira divisão política da colônia. Observa-se no
mapa que vários estados da federação localizados no litoral, guardam ainda, vestígios dessa
prática colonial. Nada melhor para compreender a expansão oeste do Brasil como o olhar de
Becker através da palavras de Vieira,Toledo, Rocha e Santos Júnior (2014)9 quando dizem:
“Utilizando a noção de fronteira já há cinquenta anos atrás, Bertha Becker mostrou como
a Região Amazônica, após ter sido fronteira de recursos minerais na primeira metade do
século XX, tornou-se uma “fronteira móvel”a partir dos anos 1960, onde a circulação
da força de trabalho, vinculada à expansão do povoamento, permitia a acumulação de
capital no setor agropecuário. Mais recentemente, a Amazônia passaria a representar,
na concepção da autora, uma “fronteira do capital natural”, valorizada estrategicamente
como símbolo de vida e capital natural, num processo de ‘mercantilização da natureza’.”
Por outro lado, fica evidente que no país, o que foi ocupado pela expansão em direção
oeste resultou no atual contorno de seu território. O litoral continua atraindo investidores
nacionais e estrangeiros em atividades imobiliárias para fins residenciais e turístico. No
passado ele foi a base da ocupação portuguesa com o cultivo da cana de açúcar e atraía a
atenção de invasores estrangeiros que tentavam se fixar na colônia portuguesa da América
do Sul. Muitos desses estrangeiros se instalaram, mesmo que temporariamente, no país.
Entretanto, a ocupação mais duradoura foi a do domínio holandês que se estendeu de
1630 a 1654. Os holandeses escolheram o Recife, no Nordeste brasileiro, como sede de
seu governo durante o período de sua fixação na cobiçada colônia portuguesa. Segundo
Netscher(1942)10 “A partir de 1581, quando essa magnífica região caiu, com Portugal, sob

289 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
o domínio espanhol, ficou exposta às ousadas investidas dos holandeses, então em pleno
estado de guerra com a Espanha”.
Apesar das medidas de segurança e proteção adotadas no litoral pelos portugueses,
como as feitorias e fortificações, o que lhes garantiram a posse definitiva do território e
de toda a ocupação. Continuaram preocupados com a construção de fortes nas principais
bacias hidrográficas no interior, especialmente nas áreas de contato com a expansão da
ocupação hispânica para o leste da América do Sul. Toda essa estratégia de proteção e se-
gurança de sua colônia caiu por terra durante o período sob dominação da Espanha.

9
VIeira, I.C.G.. Toledo, P.Mann de. Rocha, G. de M. Santos Júnior, R.A. O. Bertha Becker E A Amazônia
in: Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XIX, nº 1103
(4), 25 de diciembre de  2014. Disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/b3w-1103-4.htm, Acesso em
03.10.2022
10
Netscher, P. M.Os Holandeses no Brasil: Noticia Histórlca Dos Países-Baixos e do Brasil no Século XVII,
São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Companhia Editora NacionaL, 1942, p. 40, Disponível
em https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/304/1/220%20%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf,
acesso em 20.09.2022

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Outro fato importante do processo de expansão dos limites territoriais do Brasil está
ligado ao rápido aumento do criatório de gado bovino.
“A penetração do gado pelos sertões nem sempre ocorreu pacificamente. Na Bahia,
um grande levante de índios obrigou o  Governo Geral  a pedir ajuda aos bandeirantes
paulistas. Estes  sertanistas  de contrato, acostumados ao  apresamento  do índio, depois
transformaram-se em fazendeiros de gado, como foi o caso de Domingos Jorge Velho.
O historiador Capistrano de Abreu diz, em seu livro Capítulos de História Colonial que
«... muitos dos paulistas não tornaram mais a São Paulo e preferiram a vida de grandes pro-
prietários nas terras adquiridas por suas armas... Ainda antes do descobrimento das minas,
sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas e do São Francisco havia mais de cem famílias
paulistas entregues à criação de gado.»11
Essa concentração histórica de famílias paulistas proprietárias de fazendas de criação de
gado no Nordeste brasileiro, tem o seu contraponto contemporâneo nas áreas de cultivo de
soja onde florescem as chamadas cidades do agronegócio que apresentam um expressivo di-
namismo produtivo. A base econômica do país permanece a mesma – pecuária e agricultura
de onde se originam as commodities, aumentando os lucros das exportações brasileiras.

A constatação dessas mudanças torna-se essencial para uma melhor compreensão da


dinâmica espacial do território brasileiro, posto que no passado, essa expansão tinha enor-
me dependência de mão de obra. Junto com a expansão do povoamento, seguiam negros
e índios escravizados que serviam aos proprietários de terra além de pastorar o gado criado
de forma extensiva o que provocava a expansão do tamanho das propriedades. A terra,
290 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

entretanto, não tinha valor na perspectiva da acumulação capitalista. Esse processo sofre
enorme mudança a partir de 1850, com a promulgação da Lei de Terras. As campanhas
abolicionistas nacional e internacional apressaram a promulgação da Lei no 601, de 18 de
setembro de 1850, impulsionada pelos senhores escravocratas que devido às fortes pres-
sões, previam o fim da escravatura e a emergência da mercadoria terra que além do preço,
adquiria valor, na lógica da acumulação.
A Lei número 601“Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que
são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem
como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e de-
marcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas par-
ticulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros,
autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara.”12

11
Disponível em: https://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/feiras_gado.html, acesso em 03.10.2022
12
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm, acesso em 03.10.2022

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A Lei de Terras foi fundamental na estruturação do mundo agrário brasileiro. A titu-
lação das terras dava origem à propriedade privada no país. O cultivo comercial do café
consolidou o mercado de terras e a formação de enormes fazendas localizadas no Vale do
Rio Paraíba do Sul que abrangem hoje territórios dos estados do Rio de Janeiro e de São
Paulo. Foi nesse último que o cultivo do café conheceu o seu auge. Os negros escravizados
garantiam o sucesso desse produto promissor que ganhava mercado pelo mundo afora. Em
seguida, foram os colonos estrangeiros, principalmente os italianos que chegaram ao Brasil
a partir da segunda metade do século XIX e foram orientados para trabalhar nas lavouras
de café.
O mundo urbano, ainda incipiente, restringia-se, principalmente, à função adminis-
trativa localizada nas capitais das províncias. As fazendas de café e as senzalas que alo-
javam os escravizados originaram pequenos núcleos que animavam a incipiente vida
nesses povoados, gênese de futuras cidades. As campanhas abolicionistas e a Abolição da
Escravatura, de 1888, resultaram no surgimento de um sujeito social original – os homens
negros livres que perdiam os seus alojamentos e a manutenção alimentar e seguiam para
as cidades sem qualificação e sem meios de ajuste a um novo ambiente, o que explica, em
parte, a formação de favelas e periferias das cidades brasileiras. À medida que as cidades
cresciam, aumentava o índice de população urbana e reduzia o de população rural. Esse
processo pode ser visto nas FIGURAS 3 e 4.

291 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3. Taxa de Urbanização Brasileira


Fonte: Censos do IBGE (1940-2010)

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 291 20/06/2023 16:46:26


Observa-se na Figura 3 a inversão ocorrida a partir dos anos 1940, quando apenas 31
% da população brasileira moravam em cidades. O crescimento da população urbana foi
acentuado até os anos de 1991, com a taxa de 74%.
A Figura 4 mostra os índices de população urbana por região em 2015. A região su-
deste, que foi a base da cultura cafeeira no passado e a que associa industrialização à urba-
nização. As indústrias manufaturadas atraíram enormes contingentes para a região a partir
dos anos 1940. Com a indústria automobilística e toda a sua cadeia produtiva, o sudeste,
especialmente São Paulo, transformou-se num dos mais importantes centros industriais
da América Latina. Outro destaque é a região Centro-Oeste, conhecida pelo crescimento
das lavouras do agronegócio e pela pecuária, atividades caracterizadas pelo alto nível de
mecanização ou que ocupam pouca mão de obra, daí o aumento dos índices de população
urbana. Além das atividades econômicas destacam-se a RIDE de Brasília13 e a metrópole
de Goiânia.
292 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4. Brasil: percentual da população que vive em área urbana em 2015


Fonte: Organizado proIBGE Educa com dados da PNAD(2015)

13
A Região Integrada de Desenvolvimento (Ride) do Distrito Federal e Entorno foi instituída pela Lei
Complementar nº 94/1998. A definição de sua área de abrangência, compreendendo o Distrito Federal,
19 municípios do Estado de Goiás e três municípios do Estado de Minas Gerais, não foi, contudo, sufi-
cientemente debatida. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/%-
C3%81rea-de-Influ%C3%AAncia-de-Bras%C3%ADlia-e-Proposta-de-Amplia%C3%A7%C3%A3o-da-
-RIDE-do-DF-e-Entorno.pdf Acesso em 20/09/2022

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 292 20/06/2023 16:46:27


Conforme Becker (2001.p.139)14 discutindo a ocupação da Amazônia “O povoamen-
to regional passou a ter um padrão concentrado, sobretudo ao longo das rodovias, sepa-
rado por grandes extensões florestais. Numa outra escala, o adensamento das estradas na
borda da floresta gerou o grande arco de desmatamento e focos de calor”.
Seguindo essa mesma lógica, o IMAZON15 construiu uma linha do tempo sobre a
ocupação da Amazônia que assim se apresenta:

“Linha do tempo entenda como ocorreu a ocupação da Amazônia - Anos 1990:


O impacto da soja
A realização da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, batizada de Eco-92, coloca definitivamente a questão ambiental
e a Amazônia na pauta das grandes discussões mundiais. A ideia de que as florestas
precisam ser preservadas conquista o imaginário popular.
Ao mesmo tempo, a soja chega à Amazônia. O grão, que desde a década de
1970 já figurava entre os principais produtos da pauta de exportação brasileira, é
adaptado ao cerrado e se transforma em um dos vilões do desmatamento. A produ-
ção atrai uma nova leva de imigrantes, dessa vez do Sul e Sudeste do país. Durante a
década de 1990, a área total desmatada volta a dar um salto, chegando a 41 milhões
de hectares.

Considerações Finais

293 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
No momento em que encerro esse artigo, provavelmente várias pessoas sozinhas ou
em grupo estão se deslocando em direção ao oeste brasileiro em busca de melhores condi-
ções de vida. Momento também que várias cidades pioneiras do agronegócio podem estar
incorporando alguma novidade tecnológica, em vários setores, oferecendo vagas para pro-
fissionais de diferentes áreas, inclusive as de saúde - médicas ou paramédicas. Certamente,
aviões e jatinhos cruzam os céus sejam de empresas aéreas ou de proprietários transpor-
tando alguém. Tratores, ceifadeiras, maquinário moderno cruzam o campo em várias dire-
ções. Ao mesmo tempo essas cidades renovam o comércio de implementos agrícolas, venda
14
Becker, Bertha K. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para
projetar cenários? IN: Parcerias Estratégicas - Número 12 - Setembro 2001, p. 139.
Disponível:https://docs.ufpr.br/~adilar/GEOPOL%C3%8DTICA2019/Geopolitica%20da%20Amazonia/
Amaz%C3%B4nia_Pol%C3%ADtica%20de%20ocupa%C3%A7%C3%A3o.pdf, Acesso em 03.10.2022
15
O Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) é uma instituição brasileira de pesquisa
que tem como missão promover conservação e desenvolvimento sustentável na Amazônia. Somos uma
organização dedicada à pesquisa e busca por soluções para os problemas de uso e conservação dos recursos
naturais da Amazônia. Disponível em : https://imazon.org.br/imprensa/linha-do-tempo-entenda-como-o-
correu-a-ocupacao-da-amazonia/, Acesso em 03.10.2022.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 293 20/06/2023 16:46:27


de telefones celulares de última geração, de máquinas e equipamentos, revendas de auto-
móveis de grande porte com tração nas quatro rodas. Homens com botas sujas de barro
e com chapéus de boiadeiro entram nas lojas, bares e restaurantes. Sons de emissoras de
rádio e de emissoras de TV. Nas periferias dessas cidades, uma população de baixo poder
aquisitivo continua vivendo, fazendo as melhorias possíveis em suas casas. Construídas ge-
ralmente nos fundos dos terrenos, permanecem um bom tempo sem serem rebocadas. Em
muitas delas restos de material de construção aguardam que as condições melhorem para
serem utilizados. O automóvel antigo estacionado no quintal. Um cachorro e um jardim
caseiro rústico. São traços que faço para descrever esse Brasil que avança Centro-Oeste e
Amazônia adentro. Esse avanço para o oeste continua carregando sonhos e esperanças. É
a realização para os que dominam e controlam o capital no campo e para os profissionais
liberais. É o sonho possível para os que seguem a travessia de um processo migratório que
parece interminável.
294 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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O ordenamento territorial e a função social
da propriedade urbana e da cidade

Arlete Moysés Rodrigues 1

Introdução

O objetivo de analisar a relação entre os instrumentos de ordenamento territorial e os


princípios da função social da propriedade e da cidade, expressos na Constituição Brasileira
de 1988 (Brasil, 1988) e no Estatuto da Cidade (Brasil, 2001), é compreender os limites e
as possibilidades desses princípios, enquadrados como instrumentos de planejamento mu-
nicipal, e averiguar como estudos e pesquisas abordam tal temática, ou seja, como tratam
da função social da propriedade e da cidade a partir do enquadramento desses princípios
como instrumentos de planejamento.
Os princípios da Função Social da Propriedade Urbana e da Cidade têm sua origem

295 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
na Habitat I, realizada em 1976, em Vancouver, no Canadá, quando se destacou que a
terra urbana, pela sua importância, não poderia ficar refém da especulação imobiliária e
do mercado e que o Estado deveria intervir para limitar a especulação e garantir o acesso
à terra urbana/casa à maioria das pessoas. Tais princípios foram apresentados pelo Fórum
Nacional da Reforma Urbana no Congresso Constituinte e incluídos na Constituição
Brasileira de 1988, no capítulo referente à política Urbana.
O Fórum da Reforma Urbana tinha como meta contribuir para que o Estado exer-
cesse de maneira eficaz sua função de mediar conflitos entre a especulação imobiliária
– que deixa terras vazias na área urbana – e os trabalhadores de baixos salários – que
procuram ter acesso a uma moradia digna em áreas com infraestrutura e equipamentos
públicos. Porém, os princípios foram enquadrados, na Constituição Brasileira, como
parâmetros para o planejamento urbano, concretizável nos planos diretores munici-
pais, visando a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da

1
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas e UFPB Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: moysesarlete@gmail.com

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 295 20/06/2023 16:46:27


propriedade urbana. Ao enquadrar os princípios como instrumentos de planejamento,
os pressupostos de atuação do Estado para coibir a especulação são deslocados e passam
a centrar-se na forma de atuar, fazendo as prefeituras municipais elaborarem e execu-
tarem planos diretores em áreas delimitadas, não levando em conta o planejamento
urbano em geral.
A hipótese que apresentamos é a de que quando os princípios da função social da
propriedade e da cidade são enquadrados como instrumentos do planejamento, além de
serem ineficazes para o ordenamento territorial, perdem sua força política enquanto prin-
cípios, submetem as agendas de pesquisa a uma temática centrada na aplicação de instru-
mentos de planejamento e limitam as lutas dos movimentos populares, que acabam sendo
capturados para averiguar a elaboração e a execução de planos diretores.
A premissa de apagamento dos princípios, em função de seu enquadramento como
norma de planejamento, baseia-se no fato de que muitos estudos e pesquisas sobre a temá-
tica, bem como a ação de lideranças de movimentos populares, enfatizam os processos de
elaboração e execução de planos diretores municipais sem analisar o significado da função
social da propriedade e da cidade e as contradições decorrentes da produção capitalista do
espaço. Predominam estudos que revelam os problemas na utilização dos instrumentos e
que mostram a ausência de participação de movimentos populares urbanos em audiências
públicas e na demarcação de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, sem, contu-
do, refletir sobre o significado e significante da função social da cidade e da propriedade
detendo-se exclusivamente nos instrumentos de planejamento.
Nesse sentido, entendemos que o ordenamento territorial desloca a importância da
296 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

função social da cidade e da propriedade e passa a ser apenas norma a ser seguida. A partir
dessa lógica positivista, os estudos e as pesquisas utilizam novas matrizes discursivas, ou
até mesmo novos paradigmas científicos, utilizando parâmetros de análise centrados no
planejamento territorial. Os movimentos populares, por sua vez, também deslocam as suas
reivindicações: antes baseadas em princípios, passam a ser baseadas em regras e parâmetros
do ordenamento territorial e na elaboração dos planos diretores. Dessa forma, os princí-
pios perdem sua importância política e se vinculam mais diretamente ao planejamento que
visa a propiciar padrões urbanos modernos.

Enquadramento dos Princípios da Função Social da Propriedade e da


Cidade em Normas de Ordenamento Territorial.

O ordenamento territorial é uma das funções do Estado e para que se concretize, por
meio do planejamento, a política pública espacial tem como objetivo promover desenvol-
vimento econômico e estimular a justiça espacial, desse modo precisa de instrumentos, de

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 296 20/06/2023 16:46:27


levantamentos sociais/econômicos/territoriais e de premissas para sua concretização. Tem
como pressuposto propiciar um desenvolvimento econômico equilibrado e sustentável
quando calcado na realidade concreta, como aponta João Ferrão (2011). Esse pressuposto
implica levantamentos de dados, diagnósticos gerais e propostas que pretendem equilibrar
o desenvolvimento territorial, em especial ao se referirem aos planos diretores municipais
centrados nas áreas urbanas. As premissas de um ordenamento territorial podem ter como
meta conseguir um equilíbrio no desenvolvimento econômico e, ainda, promover o acesso
à produção social, como é o caso de pensar no acesso à terra urbana para moradia.
Assinalamos que não faremos, neste texto, uma análise sobre o Estado capitalista e
seus aparelhos, e nem sobre o planejamento territorial em suas múltiplas dimensões, ape-
sar da importância da temática. Centramos nossa exposição no que consideramos desvios
decorrentes do enquadramento de princípios em instrumentos de planejamento. Ou seja,
não temos a pretensão de expor as teorias do Estado e sim de relacionar a urbanização,
calcada na propriedade da terra e nos meios de produção e para a qual se procura estabele-
cer critérios a fim de limitar a especulação imobiliária, dentro das normas capitalistas, e o
enquadramento dos princípios como parâmetros de instrumentos de planejamento, com
o objetivo de averiguar como esse enquadramento altera, ou não, os estudos e as pesquisas
e a atuação dos movimentos sociais sobre o tema.
A Emenda Popular sobre a questão urbana, apresentada ao Congresso Constituinte
brasileiro em 1988, propugnava que os princípios da função social deveriam ser autoapli-
cáveis, ou seja, não vinculados às normas rígidas e sim calcados nas contradições da pro-
dução e reprodução do espaço urbano e nos conflitos sociais relativos ao acesso à cidade

297 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
infraestruturada. O documento delineava, também, critérios para averiguar as contradi-
ções e os conflitos expressos nas áreas urbanas.
Porém, os princípios da função social da cidade e da propriedade, na Constituição de
1988, foram enquadrados como instrumentos para serem utilizados no ordenamento territo-
rial, concretizáveis em Planos Diretores Municipais, obrigatórios para Municípios com mais
de 20 mil habitantes e aqueles que integram as regiões metropolitanas e os de especial interesse
turístico. O enquadramento dos princípios em normas de planejamento restringiu a possibili-
dade de sua autoaplicação em disputas territoriais sobre a função social da propriedade. Com
isso, passou a ser utilizado para demarcar áreas que não estavam cumprindo sua função social.
O enquadramento da função social da cidade e da propriedade no planejamento
consta do artigo 182 § 2º da Constituição Federal de 1988: “A propriedade urbana
cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor” (Brasil, 1988). Já o Estatuto da Cidade2, que regu-

2
Doravante será chamado de Estatuto.

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lamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, tem sido destacado
como um marco regulatório inovador para o controle do processo de urbanização com
perspectivas inéditas para o planejamento urbano no Brasil, por ter fornecido arcabouço
jurídico, técnico, urbanístico e parâmetros sociais para elaboração e execução dos Planos
Diretores Municipais. O reconhecimento internacional da importância dos princípios
sobre a função social da propriedade e da participação social no planejamento é exem-
plificado pela sua incorporação na Nova Agenda Urbana, elaborada na III Conferência
das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, realizada
em Quito em 2016 (ONU, 2016).
Não temos dúvida de que os aparatos jurídicos e urbanísticos são fundamentais para o
planejamento territorial. Contudo, podemos questionar se os princípios, quando enqua-
drados como normas da política urbana de uso do solo, provocam um deslocamento da
essência para a aparência. Vejamos o Artigo 2º do Estatuto da Cidade:
Artigo 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes
gerais:
I – Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra ur-
bana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – Gestão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompa-
nhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
298 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

III – Cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da


sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – Planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da
população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de
influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus
efeitos negativos sobre o meio ambiente;
V – Oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos
adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;
VI – Ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação
à infraestrutura urbana;
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como
pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente;

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e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não
utilização;
f ) a deterioração das áreas urbanizadas;
g) a poluição e a degradação ambiental;
 h) a exposição da população a riscos de desastres.                    
VII – Integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais,
tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob
sua área de influência;
VIII – Adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de ex-
pansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e
econômica do Município e do território sob sua área de influência;
IX – Justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
X – Adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira
e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar
os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes seg-
mentos sociais;
XI – Recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a
valorização de imóveis urbanos;
XII – Proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construí-
do, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII –Audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos
processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos poten-

299 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
cialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a
segurança da população;
XIV – Regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população
de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e
ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as
normas ambientais;
XV – Simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das nor-
mas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes
e unidades habitacionais;
XVI – Isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção
de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o
interesse social.
XVII - Estímulo à utilização, nos parcelamentos do solo e nas edificações urba-
nas, de sistemas operacionais, padrões construtivos e aportes tecnológicos que obje-
tivem a redução de impactos ambientais e a economia de recursos naturais.             

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XVIII - Tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura de ener-
gia, telecomunicações, abastecimento de água e saneamento.                    
XIX – Garantia de condições condignas de acessibilidade, utilização e conforto
nas dependências internas das edificações urbanas, inclusive nas destinadas à mo-
radia e ao serviço dos trabalhadores domésticos, observados requisitos mínimos de
dimensionamento, ventilação, iluminação, ergonomia, privacidade e qualidade dos
materiais empregados (Brasil, 2001, grifos nossos).

Trata-se de diretrizes gerais que deveriam orientar a política urbana, entretanto, não
explicitam como atingir a função social da cidade e da propriedade, ou o que significa a
justa distribuição dos benefícios e os ônus decorrentes do processo de urbanização. No
Capítulo 2, artigo 4º, do Estatuto, estão elencados os instrumentos para a elaboração de
planos diretores municipais e os institutos jurídicos aplicáveis de acordo com legislação
específica, como a legislação de regularização fundiária de interesse social, leis municipais
específicas para os impactos de vizinhança entre outros. No mesmo Capítulo 2, em seu
artigo 5º, constam os instrumentos a serem aplicados em imóveis não edificados, subuti-
lizados ou não utilizados, ou seja, os que não cumprem sua função social, de acordo com
critérios de cada município.
O Estatuto forneceu, então, critérios para demarcar áreas que não cumprem a função
social da cidade e da propriedade urbana e para delimitar áreas ocupadas como ZEIS
(Zonas Especiais de Interesse Social)3, as quais possibilitariam, se efetivadas, a permanên-
300 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

cia nas áreas ocupadas para moradia. Ademais, o documento criou parâmetros para a par-
ticipação social nos planos diretores. Em decorrência de a Lei do Estatuto ter completado
20 anos em 2021, foram realizados debates e encontros e publicados artigos e livros com
o objetivo de avaliar os avanços e os desafios do planejamento e da política urbana. Tais
materiais ressaltam tanto a qualidade dos instrumentos como as dificuldades e os desafios
para sua aplicabilidade.
Em áreas infraestruturadas, parcial ou totalmente desocupadas, o Estatuto define que
o Município atue para que o proprietário lhe dê uma finalidade: deve-se aumentar o IPTU
durante cinco anos e, após esse período, caso não tenha sido dada uma finalidade ao
local, a área/imóvel deveria ser desapropriada por títulos de dívida pública. Entretanto,
até agora, 20 anos após o Estatuto da Cidade ser publicado, nenhuma desapropriação foi
realizada, pois, além do tempo para a implementação do Plano Diretor, a autorização para
emissão de títulos de dívida pública é realizada pelo Senado Federal, o que demonstra que

3
Sobre as ZEIS, ver, em especial, Moraes (2019).

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a alteração de pagamento prévio e em dinheiro, como previsto por Constituições anterio-
res, para pagamento em títulos de dívida pública, é um avanço apenas retórico.
Do ponto de vista pragmático, o Estatuto que orienta a elaboração de Planos Diretores
tem sido pouco efetivo, mesmo para os padrões de planejamento urbano brasileiro. Os
Planos Diretores definem a política urbana, apresentam um quadro genérico de orde-
namento territorial com a pretensão de que os instrumentos sejam aplicáveis e, ainda,
preveem que esses instrumentos, após 2001, pudessem ser a expressão da política urbana
(Rodrigues, 2016), todavia, não trazem meios de como concretizar a função social.
Além disso, a participação social é um simulacro, como mostra a maioria dos estudos
e pesquisas. Os movimentos populares urbanos, quando se possibilita sua participação,
têm mais a finalidade de cumprir a etapa prevista do que realmente alterar a dinâmica e
a demarcação das áreas que não cumprem a função social de acordo com as premissas do
ordenamento territorial. A perspectiva não tem sido a de debater os critérios para definir
se uma propriedade cumpre sua função social, mas a de referendar as normas técnicas e
de aplicação dos instrumentos em áreas vazias e/ou em áreas ocupadas para moradia. O
enquadramento da função social da propriedade em instrumentos para o planejamento
conduziu lideranças de movimentos populares a concentrar sua atuação no planejamen-
to municipal, desvinculando-os, em grande medida, da luta pelo direito à moradia e do
acesso ao solo urbano infraestruturado. Dessa forma, as lideranças dos movimentos ficam
reféns da agenda estatal ao participarem de audiências públicas que apenas os ouvem sem
considerar de fato suas propostas.
Nessa perspectiva de análise, a fim de entender a importância atribuída ao Estatuto

301 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
da Cidade e a obrigatoriedade de elaborar planos diretores municipais, há debates que
apresentam o planejamento como solução e sua ausência como problema. Ou seja, dá-se
ao planejamento um potencial que ele não tem quando princípios, premissas são transfor-
madas em instrumentos técnicos.
Uma questão que não aparece nos estudos é se os princípios, quando enquadrados
como instrumentos de planejamento, poderiam garantir soluções reais e concretas ou se
ficariam reféns de normas de ordenamento territorial, sem possibilidade de atingirem a
função social da propriedade e da cidade. Há ausência de estudos que procuram com-
preender se marcos regulatórios aplicados ao planejamento urbano permitem realmente
fazer cumprir a função social; e se a produção de moradia de interesse social, que é in-
dispensável para atender às necessidades dos que não têm acesso ao mercado formal, tem
como premissa atender ao direito à moradia.
Em síntese, os planos diretores da maioria dos municípios brasileiros mencionam os
instrumentos constantes do Estatuto da Cidade sem correlacionar diretamente com a pró-
pria área urbana dos municípios e, geralmente, não consideram a diversidade da produção

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e da reprodução do espaço urbano e as contradições e os conflitos do uso do Espaço.
Limitam-se, quando isto ocorre, a definir as áreas onde os instrumentos seriam aplicáveis,
ou seja, são normas técnicas independentes das condições de produção e de expansão
do espaço urbano. Alguns municípios contam com um simulacro de participação social,
ouvindo as pessoas sem considerar suas reivindicações. O Estatuto, portanto, define as
normas e os critérios para a aplicação de instrumentos referente à subutilização ou não
utilização de imóveis urbanos (edificados ou não). Na realidade, define-se como o enqua-
dramento da função social da propriedade e da cidade deve ser utilizado na elaboração de
planos diretores sem, contudo, explicitar o que significa concretamente aplicar um princí-
pio em apenas determinadas parcelas do espaço urbano.

As pesquisas científicas e a participação social

As pesquisas e os estudos sobre planos diretores e a função social da cidade e da pro-


priedade se concentram em: analisar a aplicação dos instrumentos; localizar as áreas de-
marcadas e sua relação com a desigualdade socioespacial; verificar se são áreas ocupadas
para habitação de trabalhadores ou se são áreas vazias; e averiguar qual a participação social
na elaboração e na execução dos planos diretores. Analisam, assim, se a política urbana
está sendo ou não concretizada, se os espaços vazios no tecido urbano que contam com in-
fraestrutura e equipamentos coletivos estão diminuindo e, ainda, se o ideário, apresentado
abstratamente, de promover um desenvolvimento menos desequilibrado, mais inclusivo e
sustentável está sendo atingido. Porém, o princípio, utilizado para demarcar áreas especí-
302 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ficas, não se aplica à totalidade do urbano e, desse modo, não pode atender ao equilíbrio
da ocupação do espaço urbano.

Como o padrão de pesquisas está centrado não nos princípios e sim no ordenamento
territorial, a totalidade da produção do espaço não é analisada e muitos menos o significa-
do de deslocar princípios gerais para aplicação de instrumentos de planejamento.
Vários estudos têm abordado predominantemente a aplicação dos instrumentos, sem
os correlacionar com os princípios ou, no máximo, correlacionando-os com áreas deli-
mitadas previamente. Verifica-se, também, a incidência de análises que mostram que os
programas de moradia de interesse social são instalados em áreas distantes, em locais onde
não há infraestrutura, mostrando que tais programas não se concatenam com o direito à
moradia e ao mundo do trabalho.
Podemos nos questionar se a predominância desse tipo de análise caracteriza um pa-
radigma científico, tal como analisado por Thomaz Kuhn (2007), ou seria mais uma ma-
triz discursiva, como apontado por Eder Sader (1988), correspondendo a um conjunto

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articulado de falas, lugares e práticas (Rodrigues,2011). Paradigma e/ou matriz discursiva
são estudos que analisam criticamente a atuação governamental, porém, não apontam as
contradições inerentes à produção capitalista do e no espaço urbano. Segundo Khun, pa-
radigma científico é um enfoque que é aceito pela comunidade científica. Estamos diante,
então, de um paradigma com este significado ou de uma tendência de centrar-se critica-
mente na atuação dos governos e no uso do espaço, o que leva a relacionar a questão do
enquadramento de princípios como o da função social da cidade e da propriedade como
uma construção teórica que desloca os estudos e as pesquisas. Essa tendência de se centrar
não na essência dos princípios, mas na aplicação dos instrumentos de planejamento estaria
relacionada à ausência ou à inadequação de arcabouço teórico e de instrumentais analíticos
que permitam compreender a totalidade?
Observamos que há um padrão de análises na descrição dos problemas, na inadequa-
ção de uso do solo e dos recursos, nos limites de definição das áreas que não cumprem a
função social e na não observância do que está expresso na legislação de uso do solo, do
simulacro da participação social, entretanto, no geral, tal padrão não se correlaciona com
os princípios e os direitos constitucionais, isto é, com a totalidade da produção do espaço.
Indagamos se os estudos, centrados nos instrumentos do Estatuto, permitem entender
que os princípios são apenas instrumentos de planejamento e não a sua efetivação. Em
relação ao direito à moradia, que é inerente às premissas da função social da propriedade,
o questionamento é se os estudos apresentam a contradição entre a moradia ser um direito,
uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma mercadoria que se valoriza com a produção da
e na cidade ou se detêm nas características precárias da produção estatal e na delimitação

303 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de áreas que não cumprem a função social.
Assim, é preciso procurar as possíveis explicações para entender se realmente há des-
locamento de análises do conteúdo para as formas, analisando o arcabouço teórico e as
categorias analíticas utilizadas, e verificar se há um paradigma científico e/ou matrizes
discursivas que explicam uma certa “reprodução” de enfoques. Enfim, é necessário com-
preender, como já dito, se este padrão de pesquisa permite ou não o desvendamento da
complexidade da produção do espaço urbano ou se fica refém de uma agenda estatal que
desvia o olhar dos princípios, portanto da essência, para o planejamento, a forma de atuar
no urbano.
Importante ressaltar que há estudos que analisam a pouca eficácia de planos diretores
para resolver as contradições e os conflitos4, mostrando que os problemas, quando a ênfase
é o ordenamento territorial, são apenas escamoteados.

4
Ver, entre outros autores, Villaça (2005) e Burnet (2011) que averiguam a dimensão de fetiche dos planos
diretores.

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Analisar se há deslocamentos nas análises, calcadas no enquadramento de princípios e
direitos no planejamento, não implica uma crítica simplista, pelo contrário, o objetivo é,
com base na teoria crítica sobre o espaço urbano5, compreender a análise da cidade e do
urbano em sua complexidade e poder contribuir com ela. Milton Santos (1996) aponta a
importância da técnica como mediação entre os princípios e a ação. Enfim, ao que tudo
indica, os estudos centrados nas normas técnicas ocultam os princípios para os quais as
normas foram criadas.
A função social da cidade e da propriedade depende da disputa política e é parte ine-
rente das lutas de classes, não apenas quando se expressa em conflitos, mas por ser parte
da dinâmica da produção e da reprodução da cidade capitalista e das possibilidades de
apropriação da função social da cidade. Por isso, não se confunde com o direito à cidade,
porém, para muitas lideranças de movimentos populares, as lutas que se travam por direi-
tos sociais expressos no urbano representam uma forma de colocar em destaque o Direito
à Cidade, ou ter a cidade produzida como um direito.
Desde a segunda metade do século XX, é no urbano que se aplicam os excedentes de
capitais (Harvey, 2005; 2011). A urbanização está embutida no ideário do urbano moder-
no e, dessa forma, o planejamento territorial visa ao progresso, propiciando a continuidade
da acumulação do capital.
Enfim, o deslocamento dos princípios para instrumentos de planejamento não equa-
ciona soluções em relação ao uso do espaço em sua totalidade. São instrumentos que
podem estar relacionados, ou não, às ideologias pertinentes ao urbano, influenciando,
dessa forma, os estudos urbanos, voltados mais diretamente ao uso do espaço. É preciso
304 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

avançar nas análises que permitem entender a contradição entre a produção do espaço
e a reprodução das condições sociais e de que forma o padrão de estudos a propósito da
aplicabilidade dos instrumentos de planejamento sobre a função social da cidade e da pro-
priedade permitem desvendar a realidade. Nos padrões de estudos e pesquisas, verificamos
que há poucas análises com foco nas contradições do Estado capitalista e de seu aparato
jurídico6.
A questão é averiguar se os estudos e as pesquisas se limitam, ou não, a esperar que os
princípios da função social da cidade, da propriedade e o direito à moradia sejam atingidos
por meio dos mecanismos de planejamento e da produção estatal de moradia. Trata-se de
procurar entender se os deslocamentos discursivos da política dificultam a compreensão
da produção e da reprodução do espaço e explicar se os estudos e pesquisas, ao se limita-
rem a relacionar a aplicação das leis e normas e da produção estatal, permitem entender a
5
Ver Brenner (2010; 2018); Harvey (2005; 2011); Lefebvre (2013;2008); e Santos (1996). Há muitos estu-
dos que utilizam a teoria crítica urbana e não estão aqui citados.
6
Ver, entre outros, Pachukanis (2017) e Mascaro (2013).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 304 20/06/2023 16:46:28


produção do espaço em sua totalidade. Os questionamentos que seguem a partir disso são:
ao centrar-se nas aplicações das normas aos planos diretores, os estudos permitem enten-
der o conteúdo dos princípios? Ou seja, análises críticas sobre a aplicação dos instrumentos
desvelam a realidade? Apesar da preocupação com as condições de vida da maioria, parece
que há uma tendência de seguir a agenda estatal. É evidente que a agenda estatal precisa e
deve ser analisada, porém, nosso objetivo é apontar que o enquadramento dos princípios
em normas de planejamento deslocam análises da função social da cidade e da propriedade
para normas de planejamento territorial.
Outra questão precisa ser considerada: quando os estudos forem centrados nos planos
diretores, pode se considerar a totalidade da produção e da reprodução do espaço urbano?
Constar de mapeamentos e de leis sobre planos diretores não são garantias de que a função
social da propriedade seja observada, pois, ao longo do tempo, as demarcações podem ser
modificadas, com ou sem consulta popular.
A função social da cidade e da propriedade e o direito à moradia são inerentes ao
próprio Estado capitalista. Atender à função social, tal como previsto na legislação, depen-
de de disputa política, não apenas quando ela se expressa em conflitos, mas como parte
integrante da dinâmica contraditória da produção e da reprodução da cidade capitalista.
Nossa hipótese aqui é a de que princípios, como a função social da cidade e da pro-
priedade, assim como o direito à moradia, ao serem enquadrados como normas do pla-
nejamento, perdem sua força como fundamento político e tornam-se instrumentos de
demarcação territorial e de produção habitacional. Esses deslocamentos se reproduzem nos
estudos acadêmicos que enfatizam os instrumentos de planejamento e a produção estatal

305 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de moradia, sem explicitar a essência das contradições da produção capitalista do espaço.
Há, também, muitas pesquisas que apontam que não se garante a permanência na
terra/casa ocupada para moradia, fora dos parâmetros jurídicos e urbanísticos, mesmo
quando as áreas/edifícios  não cumprem sua função social, inclusive quando estão demar-
cadas nos planos diretores como ZEIS - Zonas Especial de Interesses Social. Quando se
delimitam as ZEIS, o fundamento não é o direito à moradia, mas a aplicação do instru-
mento que define áreas a serem urbanizadas com moradia de interesse social. Além disso,
há frequentes alterações dos limites das ZEIS de acordo com o interesse para a expansão
capitalista do espaço, como tem ocorrido em João Pessoa, na Paraíba, com o programa
João Pessoa Sustentável (João Pessoa, 2014). Ou seja, demarcadas ou não como ZEIS, as
remoções ocorrem sem que se atente para a função social da cidade e da propriedade. São
utilizadas, retoricamente, como forma de aplicar instrumentos de planejamento.
Enfim, quando os princípios são enquadrados como instrumento de planejamento,
eles são aplicáveis apenas em lugares específicos, não são universalizáveis e não se aplicam
a toda a extensão urbana e sim, apenas, nas áreas demarcadas, consideradas como não

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 305 20/06/2023 16:46:28


utilizadas ou subutilizadas, ou seja, em vazios urbanos e em imóveis desocupados ou par-
cialmente ocupados. São enquadráveis na cidade já edificada e não como princípios para
impedir o alargamento dos problemas resultantes da expansão em geral. Eles não têm
como pressuposto atender às necessidades da maioria.
Dessa forma, os instrumentos possibilitariam limitar a especulação imobiliária em
vazios urbanos e imóveis vazios, mas não na totalidade da cidade. Portanto, os princípios
ficam restritos a instrumentos sem prazo para sua aplicação.
Os estudos e pesquisas se debruçam em analisar a aplicação dos instrumentos e não
em suas contradições e conflitos. Eles se concentram em verificar a aplicação dos instru-
mentos, ao que tudo indica, sem validar e sem identificar quais seriam os princípios. Além
disso, focam em avaliar se a participação social foi efetiva ou não, se foram demarcadas as
áreas que não cumprem a função social e se as ZEIS estão efetivadas ou em transformação.
Com isso, embora mostrem as falácias das alterações e o não atendimento à função social
como previsto nos instrumentos de planejamento, não desenvolvem uma análise sobre o
significado e a significância da função social da propriedade e da cidade.
Já em relação às lutas sociais, há um deslocamento para a aplicação dos instrumentos
e não para a validação dos princípios, como se os instrumentos fossem em si mesmos os
que definem a função social. Os movimentos populares reivindicam participação real na
elaboração dos planos diretores, contudo, o que tem ocorrido são audiências públicas
para referendar o que foi definido pelos técnicos. Eles ainda reivindicam a demarcação
de ZEIS, entretanto, o que se tem observado é que, demarcadas, elas permanecem apenas
nos mapeamentos e são alteradas de acordo com os interesses políticos/econômicos. Os
306 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

movimentos têm lutado pela aplicação da função social contra os despejos que, no Brasil,
não cessaram nem durante a pandemia.

Considerações finais

O ordenamento territorial, tarefa e função do Estado capitalista, geralmente coloca como


“técnicos” problemas políticos/econômicos e sociais, na tentativa de promover o desenvolvi-
mento econômico e a modernização do espaço urbano. Os princípios ficam ocultos, o espaço
se torna instrumental e as contradições são deslocadas para debater o planejamento muni-
cipal. A ênfase deixa de ser os princípios e passa a ser a forma e o ideal de um planejamento
que solucionaria os problemas decorrentes da produção capitalista do espaço. Normas, leis
e parâmetros relativos ao ordenamento territorial podem tanto ser utilizados para as lutas
sociais, como podem ser uma forma de ocultar as contradições e os conflitos.
Consideramos que, no geral, ao se tornar apenas instrumentos de planejamento, os
princípios perdem sua função de garantir direitos e deixam de ser aplicados para a cidade

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em sua totalidade. Desse modo, o enquadramento da função social da cidade e da pro-
priedade em instrumentos do ordenamento territorial, fundamental para que o Estado
possa planejar o desenvolvimento urbano, transforma-se não apenas na política urbana
por excelência, mas no deslocamento da política para normas de planejamento. Essa é uma
função e uma tarefa do Estado, porém, fica a indagação do porquê os estudos e as pesquisas
se centrarem em padrões de análises que ocultam as contradições e os conflitos.
Mostrando que os princípios e os direitos não estão garantidos, nem pela lei em
geral, nem pelos princípios, e utilizando-se do formato dos Orçamentos Participativos
e das Conferências Nacionais – eventos realizados durante os governos do Partido dos
Trabalhadores pelo Ministério das Cidades –, mais de 400 movimentos populares urbanos
realizaram em junho de 2022 a Conferência Popular pelo Direito à Cidade que contou, na
sua fase nacional, com mais de 600 delegados.
Ao todo, foram realizados 232 eventos preparatórios com debates e plenárias. Os pon-
tos debatidos ressaltam os direitos como o de moradia, transporte, saneamento básico e as
premissas como função social da cidade e da propriedade, colocando em pauta a utopia da
cidade como direito. O documento final destaca a necessidade de uma Reforma Urbana
e de um combate frontal à especulação imobiliária. Além disso, aponta a necessidade de
enfrentamento do déficit de moradias, produzindo novas unidades, promovendo a regula-
rização fundiária de interesse social, urbanizando as favelas, garantindo transporte público
e instalando equipamentos coletivos, como escolas, creches e postos de saúde. As propostas
aprovadas não são simples reivindicações a partir da agenda estatal e das leis existentes, e
sim uma plataforma de lutas (Conferência Popular pelo Direto a Cidade, 2022).

307 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Portanto, como vimos, apesar de o enquadramento dos princípios da função social da
cidade e da propriedade retirar a dimensão política dos princípios, de esse enquadramento
sequer propiciar um ordenamento territorial com vistas à justiça espacial, de os movimentos
populares e a academia ficarem reféns da agenda estatal e de centrarem suas análises nos instru-
mentos do planejamento e não nos princípios, há, como mostra a Conferência Popular pelo
Direito à Cidade, possibilidades de avançar nas lutas sociais e no conhecimento científico.

Referências Bibliográficas

Brasil. (1988). BBRASILConstituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.


Organização do texto por Juarez de Oliveira. 4ª. Edição: São Paulo: Saraiva, 1990.
Brasil. (2001). Lei nº 10.257/2001. Estatuto da Cidade. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de
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Brenner, Neil. (2010). O que é teoria crítica urbana. Revista EMetropolis, Rio de Janeiro, n. 03, ano
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em: 12 mar. 2022.

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Território como norma e território normado:
análise da agiotagem no Brasil

Dhiego Antonio de Medeiros1

Introdução

De forma geral, a oferta de empréstimo de dinheiro a taxas de juros acima do permiti-


do e, sem a devida autorização dos órgãos reguladores de um determinado país, é conside-
rada agiotagem (COSER, 1999; FERREIRA, 1999; GAMA, 2002). Contudo, pensar tal
prática no atual período histórico – notadamente marcado pela hegemonia e capilaridade
da esfera financeira – consiste numa importante tarefa da qual as ciências humanas não
devem se furtar.
Tão antigo quanto atual, historicamente “irreparável” no que diz respeito a estudos

309 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
específicos sobre a sua existência na Geografia, de forte presença nas esferas existenciais
das formações socioespaciais do hemisfério sul, a agiotagem pode ser tomada como um
fenômeno multiforme, complexo e, portanto, também passível de análise geográfica, in-
tentada no presente trabalho, a partir do exame de conteúdos normativos e técnicos que
combatem a agiotagem no Brasil.
A agiotagem tradicional, consiste na mais conhecida e convencional forma ilegal e
antediluviana de empréstimo de dinheiro. Trata-se de um tipo de “rugosidade”, pois essa
forma atravessa o tempo, sendo conhecida, antes mesmo dos registros bíblicos. A título
de informação, a Bíblia2 não apresenta o termo agiotagem ou agiota, porém menciona a
palavra usura, que do ponto de vista etimológico, provém de duas palavras latinas: usus
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo n.º 20/08530-2). Professor Assistente do Curso de
Geografia da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal/Campus V). E-mail: dhiego.medeiros@uneal.edu.br
2
“Por usura, a Igreja entende, com efeito, todo negócio que comporta o pagamento de juros: Por isso, o
crédito, base do grande comércio e do banco, é interdito. Em virtude dessa definição, todo mercador-
banqueiro, praticamente, é um usurário” (LE GOFF, [1986] 1991, p. 73).

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e rei, tendo o sentido de cobrança pelo uso das coisas. No que se refere ao empréstimo
pecuniário (de dinheiro), usura designa a cobrança exagerada de juros ao devedor, tendo,
no limite, o mesmo sentido de agiota3. Desse modo, a prática de empréstimo de dinheiro,
na forma de “capital usurário”, precede o modo de produção capitalista e sempre possuiu
uma relação direta com a religião – mais precisamente, com o Cristianismo.
Contudo, inicialmente avessa ao mercador-banqueiro medieval (sinônimo de usu-
rário), ao longo do tempo a Igreja – passando do compromisso com o feudalismo ao
compromisso com o capitalismo – não tardou a admitir o essencial de suas práticas. Nas
palavras de Le Goff ([1986] 1991: 99)
A condenação da usura, de certas formas de empréstimo a juros, levou os mer-
cadores a aperfeiçoar os seus métodos, a recorrer a sutilezas. O desenvolvimento da
letra de câmbio, documento capital na ascensão da classe mercantil, encontra sua
fonte no desejo de obedecer à Igreja substituindo uma operação de crédito que ela
reprova por uma operação de câmbio que ela tolera.

Todavia, é na sociedade capitalista, com o desenvolvimento do sistema de crédito, que


esta forma denominada por Marx ([1867] 1983), “capital portador de juros”, torna-se
mercadoria. A propósito, o termo agiotagem designa formas de usura ilegais, já que o
sistema bancário é um sistema normatizado de usura. Quer dizer, de um sistema de co-
brança de juros institucionalizado e legalmente aceito. Logo, no plano etimológico, a pa-
lavra agiotagem advém do francês – agiotage, sendo considerada sinônimo de especulação,
usura. Assim, quem pratica a agiotagem é denominado agioteur, usurier. Em português
310 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

[brasileiro]: agiota (provém do italiano aggio [vantagem, lucro] e allage, do grego [troca,
câmbio]; em português de Portugal: onzenário, onzeneiro; em língua inglesa: moneylender,
loanshark; em espanhol: usurero, prestamista.4
No plano metodológico, no âmbito teórico – para além dos diálogos com os campos
da sociologia, história, direito, por exemplo –, alguns dos referenciais, no plano geográfico
foram, Santos (1996), a partir da sua noção de espaço geográfico e território usado; Antas
Júnior (2005), para uma discussão mais apurada sobre as normas; Contel (2006) a partir
da noção de hipercapilaridade das finanças; Castro (2003), sobre os nexos entre território
e instituições e Machado (2017), sobre o papel das finanças no espaço geográfico e a sua
discussão sobre o binômio legal-ilegal.

3
A esse respeito, Richard Sennet ([1994] 2003: 174, 190-191) usou o termo agiotagem e agiota para tratar
do empréstimo de dinheiro realizado pelos povos judeus desde o século XII, em Veneza, desde o século XII.
4
As respectivas palavras em idiomas diferentes do português brasileiro foram pesquisadas nos dicionários e
obras diversas da literatura, economia e sociologia informadas no item bibliografia.

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Com o propósito de apreender a temática da agiotagem realizou-se uma pesquisa do-
cumental a partir de uma análise pormenorizada dos conteúdos normativos – textos cons-
titucionais, leis, decretos, resoluções e o código penal – que vigeram ou estão em vigor
no território brasileiro, possibilitando identificar as redefinições da temática ao longo do
tempo. Assim, o presente texto está estruturado em dois pontos principais: I. apresenta-se
um panorama do processo de regulação da agiotagem no Brasil; II. trata-se das implicações
–principalmente no âmbito geográfico – da Lei Complementar nº 167, que dispõe sobre
a Empresa Simples de Crédito (doravante ESC), sancionada pela Presidência da República
no dia 24 de abril de 2019 e considerada pelo Governo brasileiro vigente a principal me-
dida de combate à agiotagem dos últimos 20 anos.

Território normado: breve panorama da regulação da agiotagem no Brasil

A política e a norma são variáveis-chave para a interpretação do espaço geográfico


que ao ser utilizado, torna-se território na perspectiva teórica ora adotada. Assim, o en-
tendimento da dimensão temporal e do processo das modernizações se faz imprescindível
à apreensão de como os sistemas normativos são fundamentais na compreensão das for-
mações territoriais (Antas Jr., 2005) e, portanto, no entendimento do território normado.
Isto é, como se estabeleceu temporalmente uma dimensão repressiva acentuada, resultado
da ação arbitrária expressa por instituições jurídicas.
Ora, a agiotagem está presente na legislação brasileira entendida como a prática da
usura fora das normas estabelecidas e agentes autorizados, possuindo instrumentos nor-

311 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
mativos que fazem referência direta e outros indiretamente a essa prática de rendimento de
capital através de cobrança de juros, conforme constatou-se através da pesquisa documen-
tal realizada. Para esta análise, para fins didáticos e de exposição, o conjunto de normas
foi organizado de forma cronológica em cinco períodos5 do Brasil republicano, a saber: 1.
República Velha e marco inicial da fase republicana, empreendido entre os anos 1889 a
1930; 2. Era Vargas e segunda fase da república, entendido entre os anos 1930 a 1945; 3.
República Nova, referente aos anos 1945 até 1964; 4. Ditadura Militar, vivida no Brasil
entre os anos 1964 a 1985; e Nova República, iniciada em 1985 e ainda em curso.
Para o primeiro período referido (1889-1930) não se verificou nenhum instrumento
que tratasse da usura de maneira específica. Esta prática não estava prevista conforme as
análises realizadas tanto na Constituição Politica do Imperio do Brazil, de 25 de março
de 1824, quanto na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de
fevereiro de 1891.
5
Conforme tratado por Prado Júnior ([1945] 2012) e Fausto (2001). Como também pelo sítio eletrônico do
Senado Federal do Brasil.

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A prática da usura aparece como crime na legislação a partir do segundo período defi-
nido (1930-1945), que empreende a Era Vargas e a segunda fase da República, conforme
se verifica no Quadro 1. Inicialmente sua tratativa ocorre de maneira indireta através do
Decreto nº 19.604/1931 e posteriormente diretamente já com o Decreto do Governo
Vargas de nº 22.626/1933, que chega a ser revogado por Fernando Collor por Decreto
de 25 de abril de 1991 e sendo revigorado por Decreto de 29 de novembro de 1991. Esse
instrumento do Governo Vargas passa a ser conhecido como a Lei da Usura, vedando em
contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal, admitindo somente a taxa extra
de 1% a título de mora e ainda proibindo a contagem de juros sobre juros, os chamados
juros compostos.
Com isso, a prática da usura passa a configurar crime previstos nas duas constituições
brasileiras seguintes (de 1934 e de 1937), sendo inclusive registrada a sua punição na
forma da lei, que será mais claramente expressa somente alguns anos depois, quando passa
a ser prevista no Código Penal Brasileiro de 7 de dezembro de 1940, considerada crime de
extorsão e/ou extorsão indireta, com penas de acordo com Quadro 1.

Quadro 1 – Era Vargas e o segundo período da República: 1930-1945

Instrumentos Normativos

Decreto nº 19.604, de 19 de janeiro de 1931


Primeira legislação especifica de proteção da economia popular, que visou punir as falsificações e fraudes de gêneros
alimentícios.
312 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933


Dispõe sobre os juros nos contratos e dá outras providencias
Art. 1º. É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao
dobro da taxa legal.

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934


Art. 117 - A lei promoverá o fomento da economia popular, o desenvolvimento do crédito e a nacionalização progressiva dos bancos de
depósito. Igualmente providenciará sobre a nacionalização das empresas de seguros em todas as suas modalidades, devendo constituir-se
em sociedades brasileiras as estrangeiras que atualmente operam no País.
Parágrafo único - É proibida a usura, que será punida na forma da Lei.

Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937


Art. 141 - A lei fomentará a economia popular, assegurando-lhe garantias especiais. Os crimes contra a economia po-
pular são equiparados aos crimes contra o Estado, devendo a lei cominar-lhes penas graves e prescrever-lhes processos e
julgamentos adequados à sua pronta e segura punição.
Art. 142 - A usura será punida.

Decreto-Lei nº 170, de 5 de janeiro de 1938


Regula as disposições sobre as contas em moeda nacional de residentes no exterior, para efeito da fiscalização das ope-
rações de câmbio. (Revogado pelo Decreto nº 9.025/48)

Decreto Lei nº 869, de 18 de novembro de 1938


Define os crimes contra a economia popular, sua guarda e seu emprego.
Tal instrumento surge com o incentivo para legislação desse teor a partir da Constituição de 1937.

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Decreto-Lei nº 1.201, de 8 de abril de 1939
Dispõe sobre as operações de câmbio, estabelecendo liberdade de operações nos termos do presente instrumento.

Código Penal Brasileiro de 7 de dezembro de 1940 (Instituído por Decreto-Lei no 2.848)


A pratica da usura é considerada crime de extorsão e/ou extorsão indireta, previstas no Código Penal Brasileiro.
Crime de extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem
indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade.
§ 2º - Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do artigo anterior.
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção
da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923,
de 2009).
Crime de extorsão indireta
Art. 160 - Exigir ou receber, como garantia de dívida, abusando da situação de alguém, documento que pode dar causa
a procedimento criminal contra a vítima ou contra terceiro:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Contratação de operação de crédito (Incluído no código penal pela Lei nº 10.028, de 2000)
Art. 359-A. Ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito, interno ou externo, sem prévia autorização legislativa:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
Parágrafo único. Incide na mesma pena quem ordena, autoriza ou realiza operação de crédito, interno ou externo:
I - Com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei ou em resolução do Senado Federal.
II - Quando o montante da dívida consolidada ultrapassa o limite máximo autorizado por lei.

Fonte: Pesquisa documental. Elaboração própria, 2022.

No terceiro período elegido, referente a República Nova entendida entre os anos 1945
a 1964, a usura permanece prevista em texto constitucional com punição, agora na consti-

313 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
tuição de 1946. Ademais, nesse período outros instrumentos surgem com um trato indireto
em referência a usura e mais diretamente em relação a operações de câmbio e cobrança de
juros. Conforme se verifica no Quadro 2, destaca-se a Lei 1.521/51 promulgada na ditadura
de Getúlio Vargas e que altera os dispositivos dos crimes contra a economia popular, e ainda
a Lei 1.807/53 que dispõe sobre operações de câmbio com taxas de juros livres mediante
acordos entre as partes.

Quadro 2 – República Nova: 1945-1964

Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946


Art. 154 - A usura, em todas as suas modalidades, será punida na forma da lei.

Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951


Altera os dispositivos da legislação até então vigentes sobre os crimes contra a economia popular. Sendo inclusive,
na época, acompanhada pela lei 1.522/51, que autorizava o Governo Federal a intervir no domínio econômico para
assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo. A Lei 1.522/51 (Governo Vargas) foi revo-
gada pela Lei Delegada nº 4 de 1962 (Governo Goulart) e está também foi revogada pela Lei nº 13.874/19 (Governo
Bolsonaro).

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Decreto-Lei nº 9.025, de 27 de fevereiro de 1946
Instrumento do Governo Dutra, que dispõe sobre as operações de câmbio, regula o retorno de capitais estrangeiros e
dá outras providencias.

Lei nº 1.807, de 7 de janeiro de 1953


Dispõe sobre operações de câmbio e dá outras providências. Regulamentada pelo Decreto nº 42.820/57
Art 2º As operações de câmbio, não incluídas na enumeração do artigo anterior, serão efetuadas pelas taxas livremente
convencionadas entre as partes, salvo deliberação em contrário do Poder Executivo, por via de decreto, em caso de ex-
cepcional gravidade, mediante proposta do Conselho da Superintendência da Moeda e do Crédito, vedadas quaisquer
discriminações para operações da mesma natureza.
Art 8º A prática das operações de câmbio, de que trata o artigo 2º desta lei, é privativa dos estabelecimentos bancários
e sociedades de crédito autorizados pelo Governo, na forma da legislação em vigor.

Fonte: Pesquisa documental. Elaboração própria, 2022.

O quarto período, referente a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) é marcado


por dois instrumentos que abordam mais especificadamente a questão das taxas de
juros no país. De acordo com o Quadro 3, a Lei 4.595/1964 promulgada no Governo
Castelo Branco dispõe sobre as instituições da máquina pública que acompanham
as atividades financeiras no Brasil, tornando-se amplamente conhecida como Lei da
Reforma Bancária, instituindo o Conselho Monetário Nacional com competência
de disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em
todas as suas formas, além de limitar, sempre que necessário as taxas de juros. Já a
Constituição Federal de 1967, quando versa sobre a ordem econômica no país, prevê
a repressão ao abuso econômico através de aumentos de lucros, citando inclusive a
314 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

questão da taxa de juros a ser limitada.

Quadro 3 – Ditadura Militar: 1964-1985

Instrumentos normativos

Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964


Dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, Cria o Conselho Monetário Nacional e dá
outras providências.

Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967


Art. 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
I - Liberdade de iniciativa;
II - Valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
III - função social da propriedade;
IV - Harmonia e solidariedade entre os fatores de produção;
V - Desenvolvimento econômico;
VI - Repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência
e o aumento arbitrário dos lucros.
§ 2º - A lei disporá sobre o volume anual ou periódico das emissões, sobre as características dos títulos, a taxa dos
juros, o prazo e as condições de resgate.

Fonte: Pesquisa documental. Elaboração própria, 2022.

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O quinto período elegido empreende a Nova República, iniciada em 1985 no contex-
to da redemocratização do país após a Ditadura Militar, com o estabelecimento de eleições
diretas em todos os níveis governamentais e em vigência até os dias atuais. Nesse período
o primeiro instrumento a se destacar é a Lei 7.492/86 promulgada pelo Governo Sarney e
que ao definir os crimes contra a economia nacional criminaliza a cobrança de juros fora
dos limites previstos na legislação, inclusive com pena de reclusão e multa.
Em acordo com o Quadro 4, a Constituição Cidadã de 1988 previa em seu Art. 192,
inciso 3º, que as taxas de juros não poderiam ultrapassar os 12% ao ano, sendo as even-
tuais cobranças acima dessa porcentagem enquadradas como crime de usura. No entanto,
isto é revogado pela Emenda Constitucional nº 40 de 29 de maio de 2003, a partir de
quando a cobrança de juros passa então a não possuir taxa regulamente definida.
Genericamente, no Governo Collor a usura passa a também ser prevista no Código
de Defesa do Consumidor a partir da Lei 8.078/90 que o institui, bem como no Governo
FHC com o Código Civil Brasileiro, instituído pela Lei 10.406/02, mas em ambos os
casos sem definição de limites ao que seriam as taxas de juros permitidas, o que não
permite clareza de quando a cobrança de juros passaria a configurar o crime de usura.
Já no Governo Bolsonaro, a Lei Complementar nº 167/19 cria as ESCs e para
tanto altera Leis como a de Lavagem de Dinheiro e Lei do Simples Nacional conforme
Quadro 4. Com isso, as ESCs permitem que qualquer indivíduo empreste dinheiro ao
mercado local das Micro e Pequenas Empresas e Micro Empreendedores Individuais,
não existindo capital mínimo e o capital máximo limitado a R$ 4,8 milhões, sendo a
remuneração da ESC resultante somente dos juros remuneratórios que não se limitam

315 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
aos previstos na Lei da Usura e no Código Civil.

Quadro 4 – Nova República: 1985 (em curso)

Instrumentos normativos

Lei nº 7.492 de 16 de junho de 1986


Define os crimes contra o sistema financeiro nacional e dá outras providências
O Art. 8º prevê como um crime ao sistema financeiro “Exigir, em desacordo com a legislação, juro, comissão ou
qualquer tipo de remuneração sobre operação de crédito ou de seguro, administração de fundo mútuo ou fiscal ou de
consórcio, serviço de corretagem ou distribuição de títulos ou valores mobiliários”. Pena de 1 ano e 4 meses e multa.

Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988.


Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a
servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será
regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições
que o integram. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)
§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente refe-
ridas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será
conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. (Revogado
pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)

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Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990
Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.
A usura representa um crime contra o Código de Defesa do Consumidor
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qual-
quer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao
dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao
consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:
I - Preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II - Montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros;
III - acréscimos legalmente previstos;
IV - Número e periodicidade das prestações;
V - Soma total a pagar, com e sem financiamento.
§ 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois
por cento do valor da prestação. (Redação dada pela Lei nº 9.298, de 1º.8.1996)
§ 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução propor-
cional dos juros e demais acréscimos.

Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002


Institui o Código Civil
Capítulo IV - os juros legais.
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provie-
rem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos
devidos à Fazenda Nacional.
Art. 407. Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas
em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença
judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes.
Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não
poderão exceder a taxa a que se refere o Art. 406, permitida a capitalização anual.

Lei Complementar nº 167, de 24 de abril de 2019


Dispõe sobre a Empresa Simples de Crédito (ESC) e altera a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998 (Lei de Lavagem de
Dinheiro), a Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006
316 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(Lei do Simples Nacional), para regulamentar a ESC e instituir o Inova Simples.


§ 4º do Art. 5º - não se aplicam à ESC as limitações à cobrança de juros previstas na Lei da Usura e no Art. 591 do
Código Civil.

Fonte: Pesquisa documental. Elaboração própria, 2022.

Com a análise do conteúdo normativo acima apresentado, torna-se possível entender


como a legislação sobre a usura e a taxa de juros surge nos diferentes momentos da história
do Brasil. Logo, até a publicação da Lei da Usura em 1933 não se tinha um tratamento
claro do tema em nenhum instrumento normativo. A partir desse momento passa a estar
presente na legislação brasileira, sendo inserida na constituição federal a partir da edição
de 1934 e passando a ser tratada como crime contra a economia popular.
Esse tratamento da usura como crime passa a ser “suavizado” a partir da Emenda
Constitucional nº 40, de 2003, que revoga o inciso 3º do Art. 192 da Constituição Federal
de 1988. Permitindo, portanto, a prática livre de taxas de juros, sem limitações previstas
em lei. Já com a criação das ESCs, conforme Lei Complementar 167/19 anteriormente

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referida, passa a ser previsto a atividade de empréstimos sem uma limitação de taxas de
juros, isso é melhor analisado no item a seguir.

O território como norma e a resposta do Estado brasileiro via ESC

Compreendido como instância social, as diferentes formas do direito são constituídas


historicamente a partir de instituições que também são produtoras de normas. Logo, para
uma análise do fenômeno congruente com a complexidade do período, é fundamental
atentar não somente para as normas oficiais – leis, decretos, circulares – que regulam a
atividade, mas identificar as normas internas que modulam os sistemas de ações de cada
agente, pois cada objeto técnico criado e implementado no território é gerador de deman-
das por normas de uso e demandas sociais por regulação. Portanto, de acordo com Faria
([1999] 2004: 154), “[...] o direito positivo do Estado-nação já não dispõe mais de condi-
ções para se organizar quase exclusivamente sob a forma de atos unilaterais, transmitindo
de modo ‘imperativo’ as diretrizes e os comandos do legislador”.
De acordo com Wolkmer (2001: 154), existem amplas parcelas de “corpos intermediá-
rios”, que mesmo com baixo grau de institucionalização, elaboram e produzem suas próprias
disposições normativas onde “[...] ocorre uma ‘regulação interna’, ‘informal’, ‘autônoma’
e ‘espontânea, paralela e independente da normatividade estatal, dos códigos oficiais, das
legislações elaboradas pelas elites políticas dominantes e pelos juízes nos tribunais estatais”.
Dessa forma, para a compreensão da difusão do crédito, nomeadamente no período
atual, faz-se necessária uma interpretação congruente com os usos do território e, assim,

317 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
entender porque ele se mostra como é atualmente. Ou seja, de avaliar que, conforme
Souza (2003: 17), “O território, modernamente, é entendido não apenas como limite
político administrativo, senão também como espaço efetivamente usado pela sociedade e
pelas empresas.” Logo, os eventos relativos ao sistema financeiro deflagrados (sobretudo
a partir da segunda metade do século XX), se acirraram e apresentam graves implicações
nas formações socioespaciais latino-americanas em quase duas décadas do século em curso,
tendo como uma importante expressão dos processos mencionados a estrutura oligopolista
dos mercados, a exemplo do mercado bancário.
É nesse sentido que é preciso situar a análise da ESC, destinada à realização de opera-
ções de crédito com recursos próprios, vedada a cobrança de encargos e tarifas. Tendo uma
atuação – área geográfica de atuação – limitada ao seu município sede e em municípios
limítrofes. No que se refere ao seu funcionamento, a ESC pode ser aberta com as se-
guintes naturezas jurídicas: Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI),
Empresário Individual ou Sociedade Limitada. O que permite que toda pessoa física possa
abrir uma ESC, mas podendo participar de apenas uma, não sendo permitidas filiais.

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A lei que regulamenta a ESC, altera leis anteriores, a saber: I. Altera parte do artigo 9 da Lei
de Lavagem de Dinheiro (nº 9.613, de 3 de março de 1998) para incluir a ESC como sujeitas
aos mecanismos de controle, inserindo-a nos mecanismos da identificação dos clientes e ma-
nutenção de registros e ainda da comunicação de operações financeiras; II. Altera os artigos 15
e 20 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, inserindo a ESC na legislação do imposto
de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e III.
Altera a Lei do Simples Nacional (Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006),
enquadrando a ESC no artigo 17 que prevê as microempresas e empresas de pequeno porte que
não poderão recolher os impostos e contribuições na forma do Simples Nacional.
As ESCs são autorizadas pela referida Lei para a prestação dos seguintes serviços: emprés-
timos, financiamentos e desconto de títulos de crédito para Microempreendedores Individuais
(MEI), Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP). Para tanto, poderá uti-
lizar-se de alienação fiduciária, avalista e fiador como garantias das operações, que realizará
obedecendo as seguintes etapas: formalização da operação, a partir de contrato entre a ESC e
o tomador do crédito; disponibilização do empréstimo, que deverá acontecer através de debito
em conta bancária da ESC e consequente crédito em conta do tomador; e registro da operação
através de entidade registradora devidamente autorizada pelo Banco Central do Brasil.
Conforme se verifica no Gráfico 1, o número de ESCs no Brasil tem se mantido está-
vel e com aumentos, considerando as grandes regiões. Essa tendência também é percebida
no âmbito das Unidades Federativas, constatada nos dados da Tabela 1.

Gráfico 1 – Brasil: evolução do número de Empresa Simples


318 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de Crédito por grande região (2021/2022)

Fonte: Portal DataSebrae, 2021-2022. Elaboração própria.

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Tabela 1 – Brasil: evolução do número
de Empresa Simples de Crédito por Unidade Federativa

UF ESCs em ESCs em
maio/2021 maio/2022
SP 252 272
PR 72 80
MG 58 57
SC 57 57
RS 50 52
GO 43 51
RJ 36 44
CE 34 37
DF 32 33
MT 31 30
MS 15 22
ES 16 21
AM 17 16
BA 12 16
PE 13 16
PI 12 14
AL 11 12
PB 10 12
PA 12 11
TO 9 11
MA 7 9
RN 8 7

319 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
AC 1 3
RO 3 3
AP 2 2
SE 2 2
RR 1 1
Total 816 891

Fonte: Portal DataSebrae, 2021-2022. Elaboração própria.

Com o propósito de diversificar a “oferta legal” de crédito no país, como também, de


superar o avanço do “mercado ilegal” de crédito, a Presidência da República sancionou
a Lei Complementar nº 167, que dispõe sobre a ESC, que consiste na permissão de que
empréstimos, financiamentos e descontos de títulos sejam realizados por pessoas jurídicas,
com seu próprio capital, sem a regulação do Banco Central. Como principal idealizador
das ESC, o ex-presidente nacional do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae) e atual assessor especial do Ministério da Economia, Guilherme Afif
Domingos afirmou:

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A empresa simples de crédito é aquele indivíduo que, sem autorização nenhu-
ma, porque não precisa de autorização, simplesmente registra uma empresa, que é
simples de crédito, e passa a emprestar na sua comunidade, a um juro que vai ser
com certeza menor do que é oferecido na região, porque hoje os grandes bancos cap-
tam de todos, mas só emprestam para alguns. (apud AGÊNCIA BRASIL, 2019)6.

Na verdade, a ESC tem como objetivo principal, fornecer crédito aos microempreen-
dedores individuais (MEIs), microempresas (MEs) e empresas de pequeno porte (EPPs).
Quando questionado sobre a natureza da ESC, respondeu Afif (apud DINIZ, 2019)7:
“Não estou inventando nada, só estou voltando ao século passado, o famoso crédito na
caderneta, que era o crédito olho no olho.” Já com relação a outra questão, se a ESC não
seria uma legalização da agiotagem, completou: “É a concorrência com a agiotagem. A
agiotagem já é oficializada com os juros do cartão de crédito e do cheque especial, que
chega a 340% ao ano.”
Portanto, a ESC passa a concorrer diretamente com os bancos estatais – de desenvol-
vimento e comerciais – que são responsáveis pela oferta da maior fatia do microcrédito no
país e, desde o ano de 2016 sofrem com o “movimento” de redução no número de fixos
e de recursos humanos. Contudo, vale destacar a reflexão de Lazzarato ([2013] 2017: 14,
grifo nosso): “o que é preciso sublimar nem é tanto o poder econômico da finança ou suas
inovações técnicas, mas muito mais o fato de que ela funciona como um dispositivo de go-
vernança transversal – transversal à sociedade e transversal ao planeta.”
Na contemporaneidade, as instituições financeiras detêm amplo e eficiente raio de
320 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ação alcançando a totalidade dos níveis e escalas do sistema urbano brasileiro. Logo, os
avanços técnicos8 permitiram ao sistema financeiro a incorporação de uma considerável
variedade de serviços bancários e não bancários, que somaram-se aos já desempenhados
pelas redes de agências e postos de atendimentos. Contel (2006) destaca os principais
canais eletrônicos que conheceram uma difusão mais acentuada no espaço geográfico,
como os Caixas Eletrônicos (ATMs), Banco por Internet (internet banking), Centrais

6
AGÊNCIA BRASIL. Bolsonaro sanciona lei de criação da Empresa Simples de Crédito: o objetivo é facilitar
acesso de micro e pequenas empresas ao dinheiro. Época Negócios, abr. 2019. Disponível em: <https://
epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/04/bolsonaro-sanciona-lei-de-criacao-da-empresa-simples-
de-credito.html>. Acesso em: 03 jul. 2019.
7
DINIZ, Ana Carolina. “É o famoso crédito na caderneta olho no olho”. O Globo [O Boa Chance], 12
maio 2019. Disponível em: <http://afif.com.br/wp-content/uploads/2019/05/O_Globo_ESC_12052019-
completa.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2019.
8
Segundo Mattos (2014: 4): “El aporte de las NTIC fue de crucial importancia para la intensificación
del despliegue económico-espacial y el funcionamiento en tiempo real, y a escala planetaria, de la nueva
arquitectura financiera y productiva, que en ese mismo momento se estaba constituyendo en uno de los
componentes medulares del proceso de globalización.”

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de Atendimento Telefônico (call centers), Terminais de Cartões de Crédito e de Débito,
Cheque Eletrônico e Wireless Aplication Assistent (WAP). Acrescente-se a esse grupo as
Fintechs – empresas (Startups) especializadas na prestação de serviços financeiros com o
uso de plataformas digitais.
Dada essa recente hipercapilaridade do acesso ao crédito, vê-se que se instala, de
forma ubíqua, uma racionalidade vertical, financeira, que impõe muito mais uma
solidariedade organizacional que uma solidariedade orgânica ao sistema de ações do
espaço brasileiro. A finança se entroniza como principal variável do atual período
histórico e passa a comandar as regiões segundo suas vicissitudes. (Contel, 2006:
285-286).

Nesse contexto, vale lembrar que a diversificação e a intensificação da capilaridade dos


serviços financeiros no território não se deram concomitantemente a qualquer alteração
mais profunda no quadro de concentração bancária no país. Em face disso, o pluralismo
jurídico surge como conceito importante na compreensão dos vários sistemas de ações nos
lugares. Trata-se de perceber que o monismo estatal é insuficiente para apreender os múl-
tiplos e diferentes usos do território realizados pela população, instituições de naturezas
distintas, firmas (Santos, 1996). Portanto, o pluralismo jurídico permite captar as institui-
ções geradoras de uma produção jurídica mediante meios normativos não-convencionais,
infra-estatal e não oficial (Santos, 1988; Wolkmer, 2001; Faria, [1999] 2004).

Daí a importância do papel atribuído a norma no presente estudo. Outrossim, é ba-

321 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
silar apreendermos que as organizações – na forma de empresas, instituições e associações
de pessoas – exercem ações em diversos lugares, e são por excelência produtoras de normas
(Silveira, 1999). Desse modo, vale acrescentar que o território é constituído tanto por
normas jurídicas quanto por normas não jurídicas9.

Conclusão

Com a análise do conteúdo normativo oficial ora apresentado, verificou-se que, até
o momento não foi possível realizar uma periodização, restando-nos, apenas, reconhecer
os diferentes “momentos” do ponto de vista normativo do tratamento do tema no Brasil.

9
“Daí que a geografia precise se aproximar mais do debate sobre o pluralismo jurídico contemporâneo, uma
vez que fazem parte da construção da geopolítica atual não só os Estados territoriais, mas também outra
sorte de agentes que produzem políticas e produzem instrumentos legais próprios – normas, regulamentos,
leis – para a realização de suas políticas. Cumpre ressaltar que tais modos de produção jurídica não colidem
obrigatoriamente com interesses estatais, aliás, podem até concorrer para objetivos comuns” (Antas Jr.,
2017: 17).

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Ademais, o tratamento claro da usura no Brasil acontece somente a partir da Lei da Usura
de 1933, passando a se fazer presente também nos textos constitucionais.
De acordo com Contel (2006), no que concerne ao Brasil, a formação do sistema
bancário e financeiro obedece a três períodos definidos, especialmente, a partir dos con-
teúdos políticos, técnicos e normativos vigentes em cada momento histórico no territó-
rio. Observou-se que há uma relação intrínseca entre o processo de formação do sistema
bancário e financeiro brasileiro com a emissão de conteúdos normativos relacionados ao
tema da agiotagem ou usura. Logo, a redefinição dos conteúdos normativos do território
brasileiro – sobretudo, com o Golpe Militar de 1964, através das Reformas Gerais do
Sistema Monetário-Creditício (1964) e a Financeira (1965), – teve papel fundamental na
execução das políticas de reestruturação do sistema financeiro, além de abrir um leque de
possibilidades de criação de novas formas de atuação das instituições financeiras no terri-
tório, ampliando, ainda, a comercialização de novos produtos e serviços.
Para o autor, o primeiro período (1905-1964) se refere à gênese e à formação do mo-
derno sistema bancário brasileiro, sendo caracterizado pela instalação dos primeiros agen-
tes financeiros no território e da sua base regional de atuação, com destaque para a criação
da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc). O segundo período (1964-1994)
marca a integração do território nacional, sobretudo nos aspectos material e informacio-
nal, o que possibilitou novas perspectivas aos agentes do sistema bancário, com destaque
para a Reforma Bancária de 1964/1965. Por fim, o terceiro e atual período se inicia em
1994, com a criação do Plano Real e, consequentemente, com o processo de privatização e
desnacionalização de vários empresas e autarquias estatais, inclusive parte do sistema ban-
322 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

cário público, resultando, por sua vez, na emergência de novas racionalidades financeiras
no território brasileiro.
Compreende-se que a ESC, faz parte dessas racionalidades. Entretanto, a referida me-
dida não enfrenta a extrema concentração no setor bancário, ademais, legitima o quadro
permanente de usura institucionalizada, acirrando a tensão entre o binômio legal-ilegal no
espaço geográfico e revelando o papel exercido pela norma, carregada de um pluralismo
jurídico. Na verdade, como a regra para o período histórico atual é o fortalecimento do
caráter tentacular do sistema de crédito nas suas mais diversas formas – a hipercapilaridade
do crédito, segundo Contel (2006) – o dinheiro disponibilizado via sistema de crédito
de uma dada maneira, é, sempre, capital portador de juros (e portanto, funciona como
“mercadoria”).
Na verdade, verifica-se que o não cumprimento do dispositivo constitucional – § 3º
do Art. 192 da Constituição de 1988 – que limitava a taxa de juros a 12% ao ano, per-
mitindo, a prática livre de taxas de juros, sem limitações previstas em lei, imediatamente,
desconstrói o argumento dos sucessivos Governos brasileiros que justificam o aumento

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exponencial do número de intermediários e agentes financeiros bancários e não bancários,
sob o pretexto de aumentar a concorrência na oferta de crédito e consequentemente baixar
as taxas de juros e a oferta de crédito ilegal. Revelando, portanto, à tendência do período
da globalização neoliberal da proeminência de uma política das empresas sob a política
dos Estados.

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Ferrovia e transformação da estrutura
urbana nas cidades intermediárias
do Brasil e da Espanha

Doralice Sátyro Maia1

O texto apresentado tem como principal propósito analisar a importância da imple-


mentação da ferrovia nas cidades intermediarias do Brasil e da Espanha, no que diz res-
peito às alterações na dinâmica socioespacial e na estrutura urbana. Tal propósito parte
das seguintes questões: i) Sendo a ferrovia um elemento técnico moderno, associado ao
movimento da Modernidade, quais as principais alterações e/ou resultados na estrutura
dessas cidades? e ii) Este aparato técnico impulsionou a (re)estruturação das cidades? Para
a análise, elegemos duas cidades intermediárias como recortes espaciais, uma do Brasil e
outra da Espanha: Caruaru – Pernambuco, Brasil e Valladolid na Comunidad Autónoma
de Castilla y León na Espanha. (Figuras 1 e 2).

329 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

1
Universidade Federal da Paraíba - doralicemaia@hotmail.com

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Figura 1: Caruaru (Brasil) na Malha Ferroviária do século XIX

Figura 2: Valladolid (Espanha) na Malha Ferroviária do século XIX


330 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A perspectiva de análise dá-se, sobremodo, na escala intraurbana, embora as manifes-


tações e repercussões dos processos interurbanos tenham ressonância sobre o objeto. Desta
forma, o estudo em alguns aspectos requer o enfoque multiescalar e utiliza como princi-
pais procedimentos a pesquisa histórica documental e bibliográfica. Os acervos documen-
tais pesquisados, referentes à cidade brasileira, foram o Arquivo Nacional, a Hemeroteca
da Biblioteca Nacional, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/
Superintendência Pernambuco (IPHAN/PE) e o Museu do Barro, além da biblioteca da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru. No caso da cidade do território es-
panhol, buscamos documentação no “Archivo Histórico Ferroviario de la Fundación de
los Ferrocarriles Españoles”, no “Archivo Municipal de Valladolid” e no Portal Web do
“Ayuntamiento de Valladolid”, como também na Biblioteca da Universidad de Valladolid.
No intuito de introduzirmos a discussão com base nos dois recortes espaciais, cabe
registrarmos algumas notas introdutórias sobre o movimento da Modernidade, a cidade
e a ferrovia. Entendemos a Modernidade como um movimento marcado por mudanças
de ideias, acontecimentos e inovações, a partir das concepções de Berman (1986) e de

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Lefebvre (1969). Com base na concepção de Berman, nos interessa a segunda fase do mo-
vimento da Modernidade, ou seja, a que se estende desde a Revolução Francesa (1790) até
o final do século XIX. Tal escolha se justifica por ser neste período que ocorrem as grandes
alterações na paisagem, na dinâmica da sociedade, dando lugar ao que o autor denomina
de uma “experiência moderna”. (Berman, 1986, p. 16).
As alterações mencionadas se dão pelas profundas mudanças na estrutura da socie-
dade, na economia, na política, e, por conseguinte, nas cidades. É nas cidades que os
incrementos tecnológicos modernos serão implementados de forma latente. São alterações
que desestabilizam a vida das pessoas, uma vez que as sensações e sentimentos contradi-
tórios se tornam eminentes e são percebidos em obras literárias de autores como Dickens,
Dostoievski, Zola e Machado de Assis, por exemplo. É neste período em que as contradi-
ções econômicas e sociais se tornam latentes.
É, portanto, no século XIX que aparatos técnicos como iluminação pública, telégrafo,
maquinário industrial e ferrovia serão instalados não só na Europa, onde se desencadeia
tal movimento, mas também nos territórios mais longínquos, ou periféricos, a exemplo do
Brasil. Estes elementos técnicos mudam a relação espaço tempo, como bem nos esclarece
Santos (2006). Assim, ao se instalar nos diversos territórios e cidades, a Modernidade re-
quer mudanças na morfologia e estrutura urbana. Um dos aparatos técnicos que provoca
tais alterações é a ferrovia. Mumford considera a ferrovia como o terceiro componente,
junto à indústria e aos casebres da complexidade urbanística do século XIX. (Mumford,
1998).
Certamente, as estações ferroviárias das grandes cidades constituem verdadeiros cen-

331 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
tros de ebulição da vida urbana, ou mesmo um “nuevo fórum que desplazó a los que
lo habían sido anteriormente, la iglesia o la plaza del ayuntamiento, llegando incluso a
apropiarse de elementos que caracterizaban y simbolizaban aquellas estructuras.” (López
García, 1986, p. 27). Assim, particularmente nestas cidades, o edifício da estação ferro-
viária teria que corresponder a uma nova porta de entrada e, também ter o esplendor de
uma catedral: “Incorporada a la silueta de la estación, la arrebatada así aquella tradicional
imagen, símbolo de poder, que ahora ostentaba el ferrocarril.” (Id. Ibd).
Tendo em vista a sua magnitude e o grau de interferência na malha urbana, era preciso
grande parcela de terra, pois não só eram necessários terrenos para a estação de passageiros
e de mercadorias, as oficinas e os depósitos, como também por onde passariam os trilhos.
Desta forma, era comum que as estações surgissem fora do tecido urbano consolidado.
Santos y Ganges, ao analisar a relação urbanismo e ferrovia, explica, que no século XIX,
a maior parte dos núcleos urbanos na Espanha já possuíam linha férrea e que, neste terri-
tório, as ferrovias se projetaram como meio de comunicação mecanizada entre Madrid e
as fronteiras e portos do Reino. Assim, “sólo las estaciones de término en origen y destino

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podían diseñarse como grandes estaciones centrales, al estilo de las existentes en París,
Londres o Berlín”, e cita as estações de “Madrid-Atocha, Valencia-Norte o Bilbao-Abando,
entre otras, aunque no tanto de las de ciudades de menor tamaño.” (Santos y Ganges,
2011, p. 159).
Nas cidades intermediárias, especialmente quando eram erguidas como estações se-
cundárias nas redes ferroviárias, estas não tinham tão grandiosidade. Contudo, mesmo
sendo edifícios simples, não deixaram de constituir importantes marcos nas cidades.
A grandiosidade, o esplendor e a riqueza dos materiais dependiam da posição na rede
ferroviária, da dinâmica econômica e urbana e ainda da companhia ferroviária.
O autor anteriormente mencionado, ainda esclarece que, “en el interior peninsular,
como tierra de paso, la práctica habitual em la disposición de las instalaciones ferrovia-
rias respecto a la línea férrea era proyectar una estación intermedia pasante, fuera del
casco urbano, allí donde había menos problemas urbanísticos y económicos siempre que
la configuración lo permitiera”. (Santos y Ganges, 2011, p. 160). Desse modo, a forma e a
disposição da estação de passageiros das “estaciones de passo”, ou seja, as que não eram as
das pontas, segundo o autor, normalmente passaram a ser laterais e paralelas à via, por cus-
tar menos, ser mais versátil para possíveis modificações no futuro. Porém, adverte: “estas
virtudes son todas ellas funcionales, puesto que, desde el punto de vista de la ciudad, estas
líneas pasantes suponen una barrera más fuerte al crecimiento urbano.” (Santos y Ganges,
2011, p. 160).
As negociações para a instalação da ferrovia, além de todas as questões que envolvem
concessões, participação público e privada, entre outras, davam-se em torno do problema
332 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

da terra. Fato é que, no século XIX e princípio do XX, quando a ferrovia era sinônimo
de progresso, os governantes e a elite local agiam em prol da sua instalação, muitas vezes
concedendo os terrenos para a sua construção, ou intermediando e facilitando as expro-
priações necessárias.
Seguramente, desde a chegada do material para a construção da ferrovia e o início das
obras, que ocorriam alterações no espaço, impulsionando, na maioria das vezes, o cresci-
mento para aquela direção. Surgem estabelecimentos comerciais, hotéis, restaurantes, bem
como novas áreas residenciais. Estas últimas separadas normalmente pela linha férrea que
dividia os bairros operários dos bairros burgueses. Tais alterações e incrementos na expan-
são do tecido urbano dão-se em consonância com as mudanças na dinâmica urbana nas
mais distintas realidades, em diferentes escalas e graus de intensidade.
Dado o exposto, tomaremos duas realidades, duas cidades localizadas em continentes
diferentes, com histórias muito distintas, uma no interior do Nordeste brasileiro e outra
na Espanha continental, para observarmos quais foram as consequências da instalação da
linha ferroviária nestes dois sítios. Assim, para além desta introdução o texto contém duas

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outras seções: na primeira apresentaremos uma síntese histórica das duas cidades estuda-
das e a posição de ambas na rede urbana regional na qual se encontram e, na segunda,
finalizaremos com a análise mais focada na estrutura urbana dessas cidades a partir da
implementação da ferrovia.

Cidades no interior do território brasileiro e espanhol: percursos históri-


cos diversos

Antes de apresentarmos as duas realidades, ressalta-se que não se pretende realizar um


estudo comparativo do percurso histórico das duas cidades, mas registrar e estabelecer
alguns marcos da sua história a fim de favorecer a compreensão das mudanças provocadas
pela instalação da ferrovia nas suas respectivas estruturas. Iniciaremos com Caruaru e de-
pois passaremos para Valladolid, invertendo a cronologia temporal das suas origens.

Caruaru: entreposto comercial do Agreste Pernambucano

A cidade de Caruaru está localizada na zona do Agreste do estado de Pernambuco, re-


gião Nordeste do Brasil. O processo de ocupação territorial desta região, após a dominação
portuguesa, é caracterizado genericamente por duas atividades produtivas: a cana-de-açú-
car na denominada Zona da Mata (mais próxima do litoral) e o gado vacun, no Sertão. As
áreas mencionadas são diferenciadas pelos elementos naturais e, por conseguinte, pelo tipo
de ocupação, como caracterizou Andrade:

333 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
[...]. Dessa diversidade climática surgiria a dualidade consagrada pelos nordes-
tinos e expressa no período colonial em dois sistemas de exploração agrária diversos,
que se complementam economicamente, mas que política e socialmente se contra-
dizem: o Nordeste da cana-de-açúcar e o Nordeste do gado. (Andrade, 2011, p. 37).

Desse modo, Caruaru está situada nesta ampla região caracterizada como semiárida,
mas mais exatamente em uma área de transição, ou seja, entre a zona litorânea e o semiári-
do. Tal zona de transição é conhecida como Agreste. De acordo com Cavalcanti,
Somente a partir do século XIX passou a ser cunhado o termo “Agreste” para
caracterizar uma área de transição, um ecótono, entre as terras úmidas do litoral,
historicamente dedicadas à cana-de-açúcar e as áreas sertanejas semiáridas, com seus
tradicionais criatórios extensivos de gado. (Cavalcanti, 2015, p. 40).

Muito embora tenha se constituído enquanto área de transição, ou a que estava


entre o litoral e o sertão mais propriamente caracterizado, o Agreste tardou um pouco

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mais a ser ocupado, certamente em função do planalto da Borborema, cuja escarpa
separa a Zona da Mata das áreas de caatinga. (Andrade, 2011). Será então no século
XVIII que a ocupação do Agreste se consolidará com a produção de agrícola alimentar,
mas principalmente com o algodão, estimulado pela política do Marquês de Pombal,
ao criar uma inspetoria específica para esse produto no porto do Recife. (Cavalcanti,
2015). Esta cultura foi posteriormente impulsionada pelo comércio de exportação em
períodos, como a Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783), Guerra
Anglo-estadunidense (1812-1815) e a Guerra de Secessão (1861-1865), também nos
Estados Unidos. Apesar da oscilação econômica, o algodão foi um produto que as-
sociado à criação do gado bovino impulsionou a ocupação do Agreste nordestino e,
particularmente, o de Pernambuco.
Caruaru surge nas proximidades do Rio Ipojuca, no Planalto da Borborema, com
uma altitude média de 554 metros, em terras anteriormente ocupadas pelos indígenas
Caruru, depois transformada em sesmaria, concedida à família Rodrigues de Sá no final
do século XVII, com a atividade pecuária e culturas de subsistência. O Rio Ipojuca serviu
de caminho para o transporte do gado no sentido Sertão – Litoral. Diante disso, a área
começou a servir de pouso para os tropeiros e mercadores. Nesta mesma propriedade, em
1782, é construída uma capela que passa a atrair as pessoas das localidades próximas para
os cultos religiosos. Assim, nas ocasiões de batismos, casamentos, festas religiosas (dia de
Nossa Senhora da Conceição, Semana Santa, dentre outras datas), somava-se maior núme-
ro de pessoas, estimulando a atividade comercial, com a venda de produtos diversos. Este
comércio deu origem à feira livre, que se formou na frente da igreja e que foi ganhando
334 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

cada vez mais importância nos anos posteriores. Dessa maneira, a feira livre de Caruaru
torna-se um importante componente da dinâmica urbana, por promover a economia e a
vida social regional.
A feira, inicialmente, localizava-se na Rua do Comércio, a partir da calçada da Igreja
da Conceição, com barracas diversas de frutas, legumes, utensílios domésticos e para o
trabalho agropecuário, além de produtos dos engenhos e pequenas indústrias locais. Como
já descrita por muitos autores, a feira era o lugar onde de tudo poderia se encontrar: frutas,
legumes, ervas medicinais: “chapéus de couro, cestos, passarinhos, cavalos, peles de sucuri.
Envoltas em xales vistosos, o cachimbo de barro cozido pendente do lábio, mulheres cabo-
clas, negras e sararás fazem barganha com a freguesia.” (Conde, 1960, p. 51).
No ano de 1802, Neves (2003), apoiado na descrição de viagem “do Recife ao
Cabrobó”, comandada pelo capitão José Rodrigues da Cruz, registra que em Caruaru
havia cerca de 60 casas e dois currais. O autor destaca o fato de um destes currais ter per-
manecido no interior da cidade, enquanto local de realização da feira de gado, até o início
do século XX. Em 1848, é inaugurada a segunda igreja, a de Nossa Senhora das Dores.

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Em 1852, contabiliza-se 98 edificações, dentre estas, cinco comerciais e as demais de uso
residencial ou misto. No ano de 1857, é elevada à categoria de cidade e, em 1858, são
computadas 12 ruas. (Neves, 2003, p. 74).
Ainda de acordo com Neves, pode-se verificar que o crescimento de Caruaru teve
alguns edifícios como balizadores, a exemplo da Igreja Nossa Senhora da Conceição e
da Matriz, o que impulsionou a abertura de ruas e a construção de novas edificações. A
construção desta segunda igreja não segue o padrão mais comum, por não ter gerado um
pátio na sua frente. Contudo, como bem destaca Neves (2003),
[...] servirá para o desenvolvimento da antiga rua da Angolinha, já existente
quando da sua construção e, posteriormente chamada rua da Matriz (atual Rio
Branco). Entretanto, possuirá um jardim lateral, ou uma praça ajardinada, sendo
construída no alinhamento da quadra, e não isolada como foi a primeira, a então
capela de Nossa Senhora da Conceição. (Neves, 2003, p. 71).

Além disso, o autor destaca a outra característica tão comum no urbanismo de origem
português, que é o traçado viário adaptado à topografia, o que resulta, como bem descreve
Oliveira, em “formas urbanas relativamente sinuosas”, mantendo as “vias principais com
declividades suaves; quadras com tamanhos diversos e lotes estreitos e compridos”, onde
se erguem edificações predominantemente geminadas e sem recuo frontal, tipologia tão
clássica das cidades brasileiras até o século XIX. (Oliveira, 2016, p. 59).
O estudo de Neves (2003) nos oferece alguns croquis da cidade, que representam o seu
crescimento inicial, tão importantes para a nossa análise. Alerta-se, porém, que se trata de

335 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
um exercício de aproximação, dada a escassez de documentos, em especial, mapas e planos
urbanos, com informações mais precisas. Assim, o autor sintetiza três momentos desta
“evolução urbana”: anos de 1800, 1820 e 1858. Define também os principais “percursos
matrizes”, que direcionam a expansão da cidade.
No primeiro, o de 1800, destacam-se dois caminhos: o da estrada de boiadas e o
da Fazenda Santa Rosa; o de 1820, além dos dois eixos iniciais, há um outro cami-
nho, em direção à Lagoa da Ponta na direção norte; e no de 1858, mantem-se os três
eixos, contudo, no caminho para lagoa da Ponte já há quadras definidas, mostrando
a expansão nesta direção, além de um maior número de quadras no sentido dos dois
outros eixos. Tais direcionamentos imprimem ao núcleo a feição cruciforme. (Neves,
2003, p. 71).

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Fonte: Neves (2003).

O referido autor, embasado no levantamento realizado pela Câmara de Vereadores


336 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

em 1858, diz haver registro de 12 ruas “oficiais” e vários becos, que surgem, sem mais
seguirem o “curso do rio ou procurando outros percursos-matrizes, mas sim, através da
ocupação das áreas intersticiais existentes entre os percursos-matrizes originais, gerando
percursos de implantação e de união, que darão ao tecido urbano um aspecto mais ou
menos radioconcêntrico”. (Neves, 2003, p. 76).
É durante a segunda metade do século XIX que a economia de Caruaru recebe forte
impulso em função da produção algodoeira. Neste período, em decorrência da Guerra da
Secessão nos Estados Unidos, o governo britânico passa a investir na produção e exporta-
ção do algodão no Nordeste brasileiro. Em Caruaru serão instaladas duas grandes usinas
de beneficiamento do algodão: a Boxwell e a Sanbra. Estas empresas chegam à cidade
beneficiando-se da instalação da ferrovia e da energia elétrica.
A ferrovia que se instala em Caruaru é originalmente a Estrada de Ferro Recife and
San Francisco Railway Company, com o intuito de ligar Recife (capital da Província de
Pernambuco) ao Rio São Francisco, importante canal de comunicação para o interior do
nordeste brasileiro. Em 1858, partindo de Recife, inaugura-se o primeiro trecho, com um

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trajeto de 31,5 km e, após algumas interrupções, atinge Escada, em 1860, e Una (atual
Palmares), em 1862. (Cavalcanti, 2015). Permanece aí por vinte anos, prosseguindo até
Garanhuns, atingindo depois a Província de Alagoas, mas já não prossegue até o Rio São
Francisco. Este projeto inicial é substituído pelo interesse em chegar até as localidades pro-
dutoras de algodão. Assim, prossegue no sentido de Russinhas-Gravatá e chega a Caruaru,
em 1895. Neste momento, já operava a empresa Great Western of Brazil. Atingir tais
localidades não foi algo simples, dado o relevo acidentado do Planalto da Borborema.
(Freire, 2017).
A inauguração da ferrovia em Caruaru dá-se em dezembro de 1895, momento em que
a população se reúne diante da estação para aguardar o símbolo do progresso. A estação
e os trilhos são implantados em uma área descontínua ao tecido urbano consolidado.
(Figura 4). Junto à estação são construídos armazéns e edificados alguns edifícios indus-
triais, como a Caroá, a Boxwell e a Sanbra. (Maia, 2017). É o que descreve a notícia no
Jornal Vanguarda:
A Boxwell, é bom que se diga, é anterior a linha férrea. Mas, quando aqui se ins-
talou, já o fez com a certeza de que a estrada de ferro era um projeto que se tornaria
realidade. E, não por acaso, escolheu as margens da estação ferroviária para instalar
suas máquinas de processar algodão. Nos tempos áureos a empresa se dava ao luxo de
ter uma linhazinha, fazendo atalho para dentro dos seus galpões. (Jornal Vanguarda,
02 a 08 de dezembro de 1985).

337 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4: Caruaru: Malha Urbana, Estação e Ferrovia

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A indústria Caroá, como o próprio nome diz, produzia artigos derivados do caroá,
planta típica da zona semiárida do Nordeste brasileiro e utilizada para confecção de bar-
bantes, linhas de pesca, tecidos, cestos, esteiras e chapéus, além de outras peças artesanais e
decorativas. Tal indústria pertencia a um empresário sócio ativo da Associação Comercial
e Empresarial de Caruaru, que instala junto à fábrica uma vila operária com escola, clube
e uma usina elétrica, que fornecia energia para a fábrica e áreas próximas.
Para além dessas indústrias de beneficiamento de fibras, tem-se a instalação, em 1922,
de um curtume, o Curtume São João, que vai se tornar um dos maiores produtores de
couro do Nordeste. Diferente das outras indústrias, o curtume se localizava em outra área
da cidade, mais distante da estação ferroviária e dos trilhos.
Fato interessante a assinalar é que, quando se inaugura a estação ferroviária, anuncia-se
a instalação de um outro importante equipamento técnico: a energia elétrica. Notifica o
Jornal Vanguarda, em volume comemorativo dos cem anos da estrada de ferro: “A socie-
dade caruaruense estava numa verdadeira euforia. O governador havia inaugurado a linha
férrea e o prefeito entregava o serviço de energia elétrica. Era o prenúncio de um novo
tempo para a cidade”. (Jornal Vanguarda, 02 a 08 de dezembro de 1995).
Observe-se que a alusão aos novos tempos, no sentido de aspirar a Modernidade,
explicita-se nas palavras do jornalista. É, de fato, o que representavam tais equipamentos
técnicos, tanto a ferrovia como a energia elétrica. Sobre as repercussões destes elementos
na estrutura urbana, principalmente da ferrovia, veremos em sessão posterior.

Valladolid: cidade de vários marcos históricos


338 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A origem de Valladolid demanda algumas controversas que envolvem principalmente


romanos e mouros. Fato é que a sua história remonta a Antiguidade. Encontramos no
“Manual Histórico y Descriptivo de Valladolid”, de 1865, a descrição do que constituía
Valladolid. Nesta descrição se tem o perímetro do então “povoado”. Assim, por interesse do
então Conde de Ansuréz, foram construídos alguns edifícios fora das muralhas: o Palácio
para sua residência2; a igreja de Nta. Sra. de la Antígua; a igreja de Nta. Sra. de la Asunción
(onde foi erguida a catedral); a Igreja de St. Nicolas (às margens do rio Pisuerga, próximo
à ponte Mayor); um hospital denominado de “Todos los Santos” e a Ponte Mayor. No
século XIII, a cidade ganha mais importância dada a contínua permanência da residência
dos “Reyes y Grandeza de Castilla, como por los frecuentes Concilios y Cortes en ella ce-
lebrados.” (Manual Descriptivo de Valladolid, 1885, p. 10). No transcurso temporal entre

2
Palacio construído em 1074, serviu depois de hospital Hospital de Esgueva, estava situado na atual
Calle Esgueva, cujo edifício foi demolido em 1974 junto com outros do entorno para dar lugar a prédios
residenciais.

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os séculos XIII e XVI, à medida que vai ganhando destaque, vai crescendo a população,
um número significativo de religiosos que também constroem seus edifícios e, por conse-
guinte, vai se expandindo extramuros, exigindo, por sua vez uma nova muralha. Assim,
com uma nova dimensão, a cidade incorpora os edifícios construídos, especialmente os
religiosos, com igrejas, ermitas, conventos, monastérios e hospitais. Há que se destacar a
criação da Universidade de Valladolid e a realização de uma feira semanal.
O século XVI é marcado pelo império de Felipe II, nascido em Valladolid, e que foi
rei da Espanha entre 1556 e 1598. A cidade encontrava-se em ascendência e com aumento
populacional, as artes, o comércio e a indústria prosperavam. Neste cenário, destacam-se
as artes, especialmente a escultura e a arquitetura. Logo após, em 1601, já no reinado
de Felipe III, a corte é transladada para Valladolid, tornando esta cidade a capital do
Império. Dessa forma, a cidade tem novo incremento em importância econômica e polí-
tica. (Manual Descriptivo de Valladolid, 1885, p. 63). Tal apogeu, enquanto capital do
império, dura pouco tempo, apenas cinco anos E, após a transferência da Corte de volta
para Madrid, a cidade passa por um período de declínio populacional e econômico. O
ano de 1636 é marcado por uma inundação do rio Pisuerga, que atinge um nível nunca
antes visto, causando danos a vários edifícios: “Ochocientos fueron los edificios arruina-
dos, ascendiendo á mas de 130 las personas que entonces perecieron; no siendo posible
calcular las inmensas pérdidas sufridas en los muchos almacenes y bodegas que inundaron
las aguas” (Op. cit, p. 80).
As inundações dos rios Pisuerga e Esgueva são marcos na história da cidade também
no século XVIII, e, depois disso, a cidade segue sem maiores alterações, uma vez que não

339 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
há muitos acontecimentos importantes. Em 1746, é instituída a Academia Geográfico-
Histórica, que passa a ocupar um dos salões do Palácio Real. Outras entidades acadêmicas
são aí instaladas: a “Academia de San Carlos de Jurisprudencia teórico-práctica”, em 1784,
e a “Real Sociedad Económica de Amigos del País, encargada de promover el estable-
cimiento de Escuelas de Instrucción primaria, y dispensar su protección á las fábricas,
talleres, manufacturas y demás clases de industria agrícola ó fabril.” Além destas, em 1783,
são aprovados os estatutos da Real Sociedade de Matemática e Belas Artes, que já se encon-
trava em funcionamento. Em 1786 foi criada a “Real Junta de Policía”, responsável pela
limpeza, adorno e iluminação da cidade e, em 1787, se instalam as “Juntas de Caridad”
dos bairros e Paróquias. Dentre as alterações realizadas pela “Real Junta de Policía”, além
da recuperação de edifícios danificados pelas inundações dos rios, registra-se a plantação
de árvores na área já demarcada como Campo Grande. O plantio das árvores, a construção
de uma fonte e de uma ponte, além da instalação de bancos, atendiam alguns preceitos de
ajardinamento que começavam a se consolidar. E em 1785 é construído o “Paseo de las
Moreras”. Já no que se refere às atividades econômicas, destacam-se os teares, chegando a

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possuir 235 teares com 7050 empregados no fabrico dos tecidos. Estas são as principais
características da cidade até o início do século XIX.
Os primeiros anos do século XIX são identificados pela invasão francesa nos territórios
espanhol e português. Na década de 1820, a cidade é acometida pela epidemia de cólera,
quando muitos falecem. Nos anos 1830, ocorrem os conflitos dado, o falecimento do rei
Fernando VII. No entanto, um marco para a cidade foi a construção do Canal de Castilla,
uma obra de engenharia que facilitaria a comercialização dos cereais. Tal fato fomenta a
construção de fábricas e armazéns de farinha, o que, por sua vez, promoverá o aumento
populacional e a dinâmica econômica. Neste período, algumas obras de melhoramentos
são realizadas na cidade: substituição dos canais de condução de água e da iluminação pú-
blica, construção de um cemitério extramuro, além do melhoramento no Campo Grande,
que se tornará um jardim público, e a canalização de um braço do rio Esgueva, dirimindo
os danos das inundações. (Manual Descriptivo de Valladolid, 1865).
García Fernandez (1974) descreve a cidade da primeira metade do século XIX, como sendo
meramente administrativa e comercial. Funções estas derivadas da sua qualidade de capital da
província e de capital regional, dado o fato de ser sede da “Chancillería” e da “Universidad”. É
a partir da segunda metade do século XIX que Valladolid recebe novos incrementos, que irão
possibilitar se tornar uma cidade industrial. Uma das razões para tal transformação, afirma o
autor, é a sua situação, ou seja, por estar localizada no centro “de la Cuenca de Castilla la Vieja,
y próxima al Duero, através de sus afluentes de la orilla derecha, que el Pisuerga recoge em
abanico, tiene paso fácil para regiones del Norte”. (García Fernandez, 1974, p. 18).
A construção do Canal de Castilla impulsionou a atividade comercial e a origem do
340 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

aparecimento de indústrias entre os anos 1841 e 1857. Segundo García Fernandez (1974),
os capitais locais, adquiridos com a comercialização do trigo, foram investidos em esta-
belecimentos industriais, que se diferenciavam dos anteriores de caráter mais artesanal.
Os que se instalaram neste período formaram grandes plantas e eram movidos pela má-
quina a vapor: constituíam metalúrgicas, fábricas têxteis (algodão e lã), fábricas de farinha
(aproveitavam a energia hidráulica do Canal), fábrica de papel, de sabão e de fertilizantes.
Porém, tais indústrias não perduraram por muito tempo, tendo como uma das principais
razões a crise econômica de 1864, mas também a instalação da ferrovia que “permitió
la llegada de los produtos industriales, primero de las otras regiones españolas con más
tradición industrial, y después de los países extranjeros.” (García Fernandez, 1974, p. 21).
Contudo, como bem alerta García Fernandez, se por um lado a ferrovia contribuiu para
o declínio das primeiras indústrias, por outro, favoreceu a prosperidade econômica no último
terço do século XIX, com o impulso à atividade comercial e ao surgimento de outras indústrias.
O sistema ferroviário espanhol mantém a configuração precedente dos caminhos dos
séculos XVI e XVII e das estradas do século XVIII, ou seja, o sistema radial, tendo a capital

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Madrid como núcleo central. As primeiras iniciativas deram-se a partir de capitais estran-
geiros, que passam a ser regulamentados pela Ley General de Ferrocarriles, de 1855. Esta
lei, segundo Wais (1987, p. 102), “no solo es aprobada, sino que sirve para que las grandes
líneas alcancen rápidamente su construcción.” Embora não haja um plano completo es-
tabelecido, dizem que as ferrovias sairão de Madrid em direção aos portos e às fronteiras.
Tal assertiva confirma a constituição de uma estrutura radial e, a partir da referida lei, se
estabelece as condições de subvenção e ajuda econômica.
A primeira linha que comunicará Valladolid é a ferrovia Madrid-Irún, tendo, por-
tanto, como dois pontos términos de ligação, a capital Madrid e o porto de Irún, no
sentido Sul-Norte. O seu traçado foi definido passando por Valladolid, uma vez que já se
constituía em um centro com base econômica e dinâmica urbana suficiente para alojar os
trabalhadores e a equipe de técnicos especializados, além de estar situada de forma quase
equidistante de Madrid e Irún. Assim, se instalam em Valladolid, em 1856, quando se dão
início às obras da ferrovia nos dois sentidos: em direção a Burgos (sentido Nordeste) e em
direção a Medina del Campo (Sul). Em 1860 são finalizados os dois primeiros trechos: em
setembro, em Medina del Campo, e em novembro, em Burgos.
Muito embora as construções da via férrea tenham se dado desde 1856, será em 1858
que se efetiva a criação da “Compañía de los Caminos de Hierro del Norte de España”.
(Wais, 1987). Esta empresa, ao assumir a ferrovia Madrid-Irún, elege Valladolid como
centro principal para instalar equipamentos e pessoal. Escreve García Fernandez:
Aquí estuvieron establecidas em los primeros años de su existencia las oficinas
de la Compañía; por la ciudad se comenzaron las obras del tendido de la línea; y en

341 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
ella fue por donde se inauguró el primer tramo, que entró en servicio oficialmente el
1 de agosto de 1860 por el sector de Venta de Baños a la ciudad como prolongación
del ramal de Alar del Rey, que con un sentido estratégico grande se apresuró a cons-
truir la misma Compañía del Norte”. (García Fernández, 1974, p. 23).

Em 1864, a linha é completamente construída e desta data até 1888 outras linhas e ra-
mais foram sendo inaugurados, tendo como tronco principal Valladolid: ramal de Medina
del Campo a Zamora (1864); Alar del Rey y Santander (1866); Medina del Campo a
Salamanca (1877); Palencia a La Coruña (1883); León a Gijón (1884); Segovia a Medina
del Campo até Madrid (1888). Acrescenta-se a ferrovia Valladolid-Ariza, construída
por pressão de comerciantes e empresários que tinham interesse em conectar-se com a
Catalunha. Assim, Valladolid, “si convirtió por su situación en una de las más importantes
encrucijadas de nuestra red de ferrocarriles. Desde la ciudad no sólo existía una fácil co-
municación con el resto de la región, sino también con principales centros vitales del país.”
(García Fernandez, 1974, p. 24).

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O lugar onde se constrói a estação, as oficinas e os armazéns, é um terreno grande de
39,9 hectares, em parte cedido pelo Município, onde anteriormente estava um dos con-
ventos desamortizados, o de Capuchinos y el de la Merced Descalza e outros particulares
que foram desapropriados. A definição pelo terreno não foi tão simples, segundo Lalana
Soto (2005), “desde mediados de 1856 nombra el Ayuntamiento una comisión para
estudiar esta cesión, que se hará efectiva el de 10 de agosto de 1857”. Os argumentos
que justificam a cessão estão pautados na “conveniencia y utilidad pública de la futura
estación, al considerar que la estación y la vía serían las definidoras de lo urbano y lo no
urbano”. (Lalana Soto, 2005, p. 28). Essa discussão sobre a expropriação dos terrenos
perdura por anos.3
O projeto de construção deste complexo ferroviário foi elaborado pelo francês Désiré
Jules Lesguiller, em finais dos anos 1850. Nesta proposta, os “Almacenes y los Talleres
debían localizarse a oriente de la vía general, frente a la estación en el sentido estricto o
comercial del término, lo cual exigía que por el lado de la ciudad, a poniente de la vía,
se ubicaran las Oficinas y la totalidad de las instalaciones de servicio público.” (Santos
y Ganges, 2003, p. 115). Contudo, em função de uma “lógica sectorial”, do ponto de
vista da engenharia, “supuso que el camino de la estación no fuese ortogonal a la vía sino
desviado hacia la encrucijada del vértice oriental del Campo Grande, la actual plaza de
Colón.” (Santos y Ganges, 2003, p. 115). Assim, a ideia era reunir o aparato técnico, com
todos seus edifícios e complementos, a um projeto urbanístico, em que a estação de fato se
tornasse uma nova porta de entrada da cidade, voltada para uma grande avenida, acompa-
nhada muitas vezes de jardins e de edifícios imponentes, como palácios e grandes hotéis.
342 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Tal intencionalidade integra a mentalidade da época, havendo, como escreve Florence


Bourillon, uma estreita relação entre promotores de companhias ferroviárias e construtores
de grandes hotéis e palácios: “De l’expérience des Pereire et du Grand Hôtel des chemins
de fer, devenu Grand Hôtel du Louvre pour l’Exposition universelle de 1855, à celle de
Nagelmackers”. (Bourillon, 2008, p. 2).
O caso de Valladolid, pelo menos no que se refere à aspiração inicial, mostra a conso-
nância com a literatura tratada no início deste texto, de que no século XIX, a estação ferro-
viária ocupa um lugar de monumentalização dos edifícios públicos na cidade, assim como
os correios, a prefeitura e a sede da companhia de eletricidade. Além disso, certamente, na
sua grande maioria, o edifício de passageiros localizava-se em área fora do tecido urbano
consolidado, produzindo uma nova área ou distrito. Enfim, a estação ferroviária, no século
XIX, “occupe dans le paysage urbain toute sa place.” (Bourillon, 2008, p. 4).

3
Para melhor compreensão das questões referentes à concessão e ao pagamento dos terrenos, ver Lalana Soto,
2005.

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Contudo, tal perspectiva ou ideário em Valladolid não se consolida por completo. Há
que registrar que, em 1866, a sede da Compañía del Norte, com todos seus escritórios, são
transferidos para Madrid. Posteriormente, em 1868, estes edifícios são convertidos em uma
escola para os filhos dos empregados e operários. Então, durante o século XIX, vários projetos
foram elaborados, com base nos projetos originais, para adaptar os edifícios e demais insta-
lações às necessidades, seja para reparar, seja para ampliar esses espaços. Destaca-se que se os
edifícios onde funcionavam os escritórios ficaram sem uso por alguns anos, as oficinas, ou
para usarmos o termo mais exato os “Talleres Generales”, mantiveram a sua importância por
um largo período, uma vez que “surgieron como ‘taller central y único’ de uma compañía que
no dejó de construir nuevas líneas y, sobre todo, de adquirir otras ya existentes durante todo el
siglo XIX.” Este crescimento soma-se à necessidade de reconstrução dado o incêndio de 1879,
“condujeron probablemente a la proyectación de nuevas naves sobre la base de la misma
estructura y disposición, aunque ampliándose hacia el sur, ocupando el centro del recinto
ferroviario, más alejado de las vías generales de la estación. (Santos y Ganges, 2003, p. 118).
Trata-se de um verdadeiro complexo ferroviário, que usualmente se atribuía a de-
nominação de “Estación”, para todo o conjunto de edificações e entrançado de trilhos.
(Santos y Ganges, 2003, p. 114). Acrescenta-se que, inicialmente, o edifício de passageiros
funcionou em uma instalação provisória. A estação definitiva foi projetada em 1891, e
construída entre 1891 e 1895. (Figura 5)

343 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 5: Diagrama aproximado da localização da área da Compañía del Norte em Valladolid


Fonte: Lalana Soto, 2005, p. 29 (Elaborado pelo autor a partir da sobreposição do polígono da estação sobre o
plano urbano de Valladolid de 1911 e o plano de Valladolid dos Hermanos Ameller, de 1844.

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Assim, mesmo sendo localizado em área não contígua ao tecido urbano, a instalação
do parque ferroviário provocou alterações nas vias de comunicação anteriormente existen-
tes e definiu a abertura de novas ruas. Explica Lalana Soto (2005):
La instalación del recinto ferroviario supone, además, el desplazamiento de la
entrada en la ciudad desde la carretera de Segovia, que se hacía a través del llamado
Portillo de la Merced. El portillo, que daría a la actual calle Panaderos, se desplaza
hasta la actual calle de Labradores, que se convertirá desde entonces en la entrada a
Valladolid desde Segovia. (p. 29).

Pelo exposto, não só a linha férrea e a estação foram importantes para a estrutura e
dinâmica da cidade, mas também, e com poderosa força, as oficinas onde trabalhavam
muitos operários, exigindo toda uma logística para seu funcionamento e para suprir a
vida dos que ali se empregavam. Na verdade, os denominados “Talleres del Ferrocarril”
chegaram a empregar 3000 pessoas. Além disso, é necessário destacar que se tratava de um
trabalho estável e bem remunerado, comparado com as outras indústrias, e que deram ori-
gem a novos estabelecimentos de indústria metalúrgica. Neste período, há um impulso na
economia local, o que possibilitou o aparecimento de outras indústrias como de cerâmica,
de telhas e tijolos, de farinhas, etc. O impacto da ferrovia em Valladolid é impressionante,
mesmo se tratando da extensão do tecido urbano. É o que expressa Alonso Vila et all:
Cuando el ferrocarril llegó a Valladolid en 1860, la ciudad ocupaba unas 218
hectáreas. Casi de un año para otro, apareció una actividad antes desconocida, que
pasó a ocupar 70 hectáreas entre vías, estación y talleres, un 32 % más respecto al
344 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

continuo urbano anterior. El suelo industrial pasó de 13 a 36 hectáreas, sobre todo


por la creación de los Talleres de Norte. Más adelante se abrirían las estaciones de
vía estrecha de S. Bartolomé (1884) y de Campo de Béjar (1890), y la línea de Ariza
(1895), con lo que siguieron ampliándose las posibilidades de relación con la indus-
tria. (Alonso Villa et all., p. 58-59).

No jornal “El Financiero” de 1911, registra-se a importancia dos “Talleres de la


Compañía del Norte” para a “prosperidad de la capital de la Castilla la Vieja”:
[…]. Los edificios se elevan em frente mismo de la estación, y los viajeros
pueden ver desde el tren una parte de ellos. En este momento se encuentran en
completa transformación que los convertirá en talleres modernísimos, y que serán,
dentro de poco tiempo, no sólo los más importantes de las Compañías españolas,
sino que no tengan que envidiar á las Compañías de Extranjero. (El Financero,
2005 [1911], p.21).

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É notória, pois, a repercussão da ferrovia na estrutura e na dinâmica desta cidade, o
que poderemos apresentar com mais detalhes na sessão que segue.

Ferrovia e estrutura urbana em duas distantes realidades: Valladolid e


Caruaru

Conforme afirmamos no início deste texto, elegemos duas cidades em continentes,


países e territórios bastante diversos, bem como com histórias muito diferentes. Porém,
ambas estão situadas no interior dos seus territórios e, antes da ferrovia, já apresentavam
uma centralidade regional. Assim, a pergunta que fizemos será agora retomada, qual seja:
Qual ou quais as implicações da instalação deste equipamento técnico na estrutura das
duas cidades com histórias e dinâmicas distintas?
A respeito da estrutura da cidade, nos apoiamos em Sposito (1996, 2007). A autora
explica que a estruturação da cidade corresponde à disposição dos diferentes usos do solo
urbano, isto é, ao “mosaico-resultado do processo de alocação/realocação das atividades
econômicas e das funções residencial, de lazer e de circulação nas cidades”. (Sposito, 1996,
p. 111). Estamos, pois, nos referindo ao espaço intraurbano, enquanto resultado de uma
produção social. (Castells, 1983; Corrêa, 1989).
A partir da exposição anterior, está claro que a ferrovia provocou alterações na di-
nâmica econômica e na estrutura de ambas as cidades, mesmo que com intensidades
distintas. Observamos que a ferrovia, ao se instalar na cidade de Caruaru, conduziu a lo-
calização das indústrias de beneficiamento de algodão – que eram as principais da cidade

345 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
– para a proximidade da estação ferroviária. Recordemos que as ferrovias brasileiras, e
particularmente a “Great Western of Brazil”, foi implantada sobretudo para favorecer
o transporte de mercadorias, neste caso em particular, o algodão que era produzido na
região e que tem um grande impulso no final do século XIX e início do século XX, mas
também serviu para conduzir passageiros. O algodão foi responsável pela instalação de
uma das grandes indústrias aí localizadas, a Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste
Brasileiro, S.A)4. Além da Sanbra, na mesma área estava instalada a Boxwell, fundada em
1870, como anteriormente mencionado.
Oliveira, ao tratar do crescimento da cidade de Caruaru, ressalta com base em estudos
de outros pesquisadores, que além dos eixos de crescimento observados por Neves (2003),

4
A Sanbra origina-se da antiga empresa Cavalcanti & Cia do ramo do algodão sediada em Recife, capital de
Pernambuco. Esta empresa pertencia ao grupo Bunge, que compra a Cavalcanti & Cia em 1929 e modifica
seu nome para Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro (Sanbra). A partir de então, irradia-se pelo
Nordeste, e posteriormente no Sudeste. No mesmo ano da sua compra, passa a produzir o óleo de algodão
para consumo doméstico. (Costa; Silva, 2020).

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o núcleo urbano está circundado por “limites e barreiras”, que lhe imprimem marcas na
sua morfologia. Segundo o autor, “o estudo do crescimento urbano sugere que o núcleo
central se desenvolveu [sic] envolto por quatro barreiras, sendo três naturais e uma artifi-
cial: o Rio Ipojuca ao sul, a Linha Férrea ao norte, o Morro Bom Jesus ao oeste, e um ria-
cho afluente do Rio Ipojuca a leste.” Esta delimitação, de acordo com o autor, corresponde
ao bairro Central ou Nossa Senhora das Dores. (Oliveira, 2016, p. 60-61).
No final do século XIX, nota-se um salto no ritmo de expansão da malha urbana,
com um maior número de ruas e quadras. Observa-se, a partir do desenho feito por Neves
(2003) (Figura 4), que apesar de ainda se manter o eixo estruturante do antigo caminho
das boiadas, o primeiro identificado no início do século, o que mais se destacam são as
linhas limítrofes, representadas pela ferrovia e pelo rio Ipojuca.
O mesmo autor escreve: “a via férrea será o limite da malha urbana ao norte até a
metade do século XX, desenvolvendo-se ao longo da mesma, apenas armazéns de secos e
molhados, residências de funcionários da The Great Western of Brazil Railway Co. Ltd.
(próximas à estação) e fábricas de beneficiamento de algodão como a Fábrica Caroá.”
(Neves, 2003, p. 77)
Contribui também para esta análise o estudo feito por Oliveira (2016) e a descrição
apresentada pelo volume Caruaru 1977, pois elucidam como se deu a ocupação urbana no
final do século XIX, após a construção da ferrovia:
A ocupação do solo se desenvolveu obedecendo ao traçado imposto por estes
elementos: sinuoso junto às margens do rio e ferrovia, circular em torno do morro.
Como limites físicos, estes elementos controlaram, durante certo tempo, os proces-
346 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sos de adensamento e expansão da cidade. [...]. Somente após o adensamento da área


entre o rio e a ferrovia, a expansão pela periferia se acelerou, criando áreas, em forma
e função, diferentes da área central. (CARUARU, 1977, p. 154)

A expansão, para além das linhas limítrofes, dá-se, segundo Oliveira (2016), de forma
descontínua, a partir da transformação de terra rural em urbana, ocorrendo em momentos
distintos, conforme os interesses dos proprietários fundiários e mantendo vazios urbanos.
Além da ferrovia, inaugurada em 1895, como já mencionado, neste mesmo ano tem-
-se a inauguração do serviço de energia elétrica. Entretanto, este serviço restringia-se ao
entorno da estação, permanecendo ainda por longo período o restante da cidade ilumina-
da por azeite de peixe, como atesta Silva (2017).
Ainda segundo Silva, em 1913, já havia na cidade alguns estabelecimentos comerciais
que eram servidos por energia elétrica, ou seja, antes do serviço público ser inaugurado na
cidade. A energia para estes estabelecimentos era fornecida pela “primeira padaria automá-
tica de Caruaru”. (Silva, 2017, p. 26). A energia era fornecida

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[...] a todos os estabelecimentos comerciais situados em seu quarteirão, que ia
do Beco de Barros Coelho (atual Rua dos Expedicionários) ao beco de Domininha
(atual Travessa 15 de novembro). A novidade era sensacional e dava um aspecto festi-
vo à Rua da Frente, onde a iluminação comum, à noite, bastante precária, era à base
de lampiões de gás ou de óleo de carrapateira.” (Barbalho, 1983, p. 25).

Apesar de alguns esforços para instalar a energia elétrica em toda cidade no ano de
1916, em função das complicações causadas pela Primeira Guerra Mundial, o serviço não
se concretiza, pois havia restrição de material. Assim, será em novembro de 1918 que a
iluminação pública será inaugurada tendo a energia produzida por uma usina, que estava
localizada na Rua Saldanha da Gama. (Silva, 2017, p 30). Desse modo, muito embora
anunciada no mesmo dia da inauguração da ferrovia, demorará alguns anos para que o
serviço de iluminação pública possa ser usufruído pela maior parte da população.
Mais próxima dos acontecimentos e repercussões da Revolução Industrial e dos gran-
des movimentos da modernidade, muito embora em uma região conhecida como eco-
nomicamente frágil, Valladolid, mesmo após a transferência da sede da Compañía del
Ferrocarril del Norte para Madrid, que, conforme assinalado em tópico anterior, provoca
uma quebra no ritmo de crescimento econômico da cidade, recebe novos incrementos ur-
banísticos, atribuindo à área onde se instala a estação ferroviária uma feição de “moderna”,
com um casario destinado à população de alta renda, como também, uma expansão no
sentido Sul, nos terrenos que ficam por trás da estação e dos trilhos.
Vale lembrar que a ferrovia produz um efeito direto na centralidade regional de

347 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Valladolid, por favorecer o mercado do trigo e derivados. Além disso, escreve García
Fernandez (1974, p. 25-26): “Sin embargo, el influjo del ferrocarril no se limitó a canalizar
el principal producto de la agricultura castellana hacia la ciudad, contribuyendo con ello
a su prosperidad; sino, que además, en contrapartida creó también un importante tráfico
de reflujo, y de no menos valor.” Pois, como acrescenta o autor, dada a sua situação na
rede ferroviária, Valladolid foi eleita pelas empresas industriais do país, “como centro de
depósito de mercancias para luego ser distribuídas al resto de la región e incluso a zonas
alejadas como Galicia y Asturias”. (Id. Ibd.).
Desta forma, todas estas mudanças econômicas na escala regional favorecem altera-
ções no espaço intraurbano e na dinâmica urbana. Como anteriormente mencionado, a
importância do “Talleres del Ferrocarri de la Compañía del Norte”, e o elevado número
de empregados, impulsiona a migração de trabalhadores para a cidade, bem como fa-
vorecem a instalação de outros estabelecimentos industriais, particularmente de cunho
metalúrgico. Explicam Pablo Alonso Villa, Pedro Pablo Ortúñez Goicolea e Fernando
Zaparaín Hernández:

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Sin duda, el sector que resultó más beneficiado por este nuevo medio de trans-
porte y quiza por eso supuso una de las excepciones al clima de atonía empresarial
que se extendió por Valladolid, fue el metalmecánico. Por una parte, el ferrocarril
aceleró y abarató la llegada de carbón – esencial para la fundición – procedente pri-
mero del norte de Palencia y después de Asturias.Por otra, el tren pudo aprovechar
un sector metalúrgico previo, al que contribuyó con sus propios talleres y que, gra-
cias a sus efectos de arrastre vía proveedores, se fue haciendo cada vez más importan-
te llegándose a formar un distrito industrial. (Alonso Villa et all., 2021, p. 72-73).

Porém, não só a indústria metalúrgica se expande, os referidos autores mostram o


acréscimo do número de estabelecimentos industriais no período 1860 e 1895, bem como
a sua relação com a ferrovia. Dentre as indústrias, destacam-se as têxteis, as agroalimen-
tares, as metalúrgicas, mas há também acréscimo de indústrias químicas, de construção e
de energia. Acrescentam ainda que as fábricas de tecido de algodão se instalaram princi-
palmente nos terrenos por onde passaria a ferrovia, e outras nas proximidades da estação.
Ainda com base no artigo de Alonso Villa, Ortúñez Goicolea e Zaparín Fernández,
inicialmente tinha-se nos terrenos atrás da estação, apenas os próprios “Talleres del Norte”.
As demais indústrias “comenzaron a formar un abanico en los espacios disponibles entre
la entrada de la estación y el ramal sur del Esgueva. Se formó así un nuevo núcleo fabril
atraído por la proximidad de las vías”. (p. 73).
Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, mantem-se o cres-
cimento do solo industrial vinculado à ferrovia. Contudo, em menor ritmo que nos anos
348 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

anteriores, principalmente a partir de 1905. A área ocupada por indústria passa de 26 para
53 hectares.
Ressalta-se as mudanças no sistema ferroviário, dada a conexão à linha Madrid-Irún
com outras linhas de via estreita como a de Rioseco, cujas estações estavam fora da zona
urbana de Valladolid; a linha de “ancho convencional a Ariza, de MZA, com la estación
de La Esperanza (1895).” (Alonso Villa et all, 2001, p. 75). Os autores citados destacam
que a mudança no uso do solo, no que diz respeito à localização das indústrias, se dá pois
[…] las fábricas no solo se colocarían a lo largo de las líneas férreas, sino también
en el espacio que quedaba «atrapado» entre los cruces de vías. El suelo industrial y
ferroviario, dejaría de ser un trazo en el territorio para formar una red, con acumu-
laciones de gran superficie alrededor de sus estaciones y nodos. El poder de atrac-
ción ya no dependería tanto de una compañía, como del intercambio entre ellas.
La superficie ocupada por el ferrocarril se incrementó, pasando de las 50 hectáreas
anteriores – estación, vías, playas y Talleres de Norte – a 74 hectáreas. (Alonso Villa
et all., 2001, p. 75).

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A ferrovia proporciona, dessa maneira, relevantes alterações na dinâmica econômica
de Valladolid, e por sua vez, em sua estrutura urbana, seja pelo incremento industrial,
seja pelas alterações no uso do solo, na morfologia urbana e na própria extensão do seu
tecido. Observa-se uma significativa expansão no sentido Sul, desde a estação ferroviária
da Compañía del Norte com a instalação de indústrias, mas também com a construção
de residências para trabalhadores – Las Delícias, Barrio San Andrés – e, no sentido Norte,
ou no espaço entre essa estação e a área urbana consolidada, mudanças significativas com
abertura de novas ruas, pavimentação, construção de residências para a burguesia, ajardi-
namento, etc.
María Antonia Virgili Blanquet (1984), ao expor sobre “el ferrocarril y la ciudad”,
ademais do afirmado anteriormente, destaca o papel que a estação exerce como polo de
atração para a população urbana e de revitalização da zona na qual foi construída. Mas
também, assinala como a via férrea se torna uma linha limítrofe do crescimento da cida-
de, “asumiendo el papel de uma auténtica muralla moderna, en um momento em que,
el anhelo de la ciudad decimonónica, es derribarlas.” (Virgili Blanquet, 1984, p. 476).
Acrescenta a autora: “Los terrenos situados al otro lado de la vía férrea, en su mayoría
todavía rurales, se lotifican y surgen así los inicios de barrios tan importantes como Las
Delicias, La Farola, Pajarillos Altos y La Pilarica.” Segundo a autora, tais bairros serão re-
conhecidos oficialmente em torno de 1920. (Id. Ibd, p. 478).
Diferentemente de muitas cidades do território espanhol, em Valladolid não se projeta
um “ensanche” desde a estação à área urbana consolidada. Contudo, haverá obras de abertu-
ras de vias, mudanças no traçado de algumas outras e um impulso à construção de edifícios

349 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
destinados à população de renda média na zona mais próxima à estação e ao Parque Campo
Grande. Dentre os projetos urbanos, Virgili Blanquet (1984) destaca um que data de 1863,
intitulado “Plano topográfico de uma parte de la ciudad de Valladolid con el proyecto de
una nueva calle em el Rastro, continuación de la calle de la Victoria y embellecimiento del
Campo Grande”. (p. 478-480). Neste projeto, já se observa a abertura das novas ruas, como
Gamazo e Miguel Iscar, como também propostas de alienações em área onde posteriormente
irão realizar-se nas ruas de Santiago, Teresa Gil, Quiñones, dentre outras. A referida autora,
acrescenta que além dessas indicações, se pode observar, a partir do mesmo plano, “como son
prioritárias las transformaciones que abarcan la parte Sur, em um intento de satisfacer com
estas reformas y nuevas aperturas la necesidad de tener uma buena comunicación com las
zonas que se están convirtiendo en principales”. (Virgili Blanquet, 1984, p. 480). Tal cons-
tatação, pode ser ratificada pelos “expedientes de señalamiento de línea” do “Ayutamiento de
Valladolid” encontrados no Archivo Municipal de Valladolid.
Para Alfonso Álvarez Mora, desde a decisão em instalar uma Estação Ferroviária na
cidade, que começam a surgir uma série de propostas visando incorporar tal edifício à

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cidade existente, ou seja, “a reconsiderar la estrutura espacial heredada em función de la
presencia de la misma”. (Álvarez Mora, 2005, p. 97). Um dos primeiros projetos, segundo
o autor, foi o de prologar a “calle de la Constitución, a um lado y outro de la misma, hasta
alcanzar los dos extremos de la zona meridional de Valladolid” e um segundo propõe a
“Prolongación de la calle del Duque de la Victoria a la Estación de Ferrocarril”. Porém,
adverte Álvarez Mora, tais projetos tardam bastante serem concretizados, chegando até a
última década do século XIX, como se pode verificar a partir da proposta “Proyecto de
la Prolongación de la Calle del Duque de la Victoria hasta la Acera de Recoletos y sus
Encuentros y Accerosrios” de 1890. (Álvarez Mora, 2005, p. 102). Uma outra advertência
feita pelo autor é o protagonismo dos proprietários fundiários na execução dos projetos.
Na mesma obra, cita o exemplo das “calles Gamazo y Muro. La calle Gamazo, recta en su
totalidad, se identifica, prácticamente, con el primer proyecto de prolongación de la calle
de la Victoria, primitivo proyecto en el que no estaba incluida la segunda calle citada, la de
Muro.” A ideia em abrir-se uma nova rua, que se constituirá na “calle de Muro”, parte de
um empresário proprietário dos terrenos aí localizados e onde estava uma indústria tam-
bém de sua propriedade. Assim, propõe a abertura “de una calle distinta que pasase por su
propiedad, aunque para ello tuviese que plantearse con un ‘quiebro’, en su parte central,
donde se formaría una plaza frente a la entrada de la industria de la que era propietario
el citado empresario.” (Álvarez Mora, 2005, p. 103). Tal interferência dá-se ao conceder
a terra urbana ao Ayuntamiento em troca da instalação dos equipamentos urbanos. De
fato, observa-se “tal quebra” no percurso das vias que partem da área mais consolidada no
sentido da estação ferroviária.
350 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

O conjunto de ações, operações, projetos que irão promover modificações na estrutura


urbana de Valladolid requer sem dúvida, um olhar mais atento, que a despeito de ter sido
realizado por alguns autores, ainda merece análise mais profunda. No momento, não se
tem a intenção de avançar nesta análise, mas somente indicar as principais repercussões da
ferrovia na estrutura urbana da referida cidade.
Pelo que se expôs, é notório que a instalação da ferrovia em Valladolid provoca acen-
tuadas alterações, tanto do ponto de vista urbanístico, na estrutura da cidade, como na
própria dinâmica da cidade. Porém, ao mesmo tempo que impulsiona a abertura de novas
ruas, a mudança no uso do solo e a instalação de um maior número de indústrias, a via
férrea também se constitui em uma linha limítrofe, demarcando de forma bastante nítida
a cidade burguesa e a cidade operária, como bem assinala Santos y Ganges (1998, p. 11):
“En Valladolid la vía tiene, además, carácter de barrera social debido a la naturaleza que
históricamente han adquirido los barrios a uno y otro lado de las vías”.
Ao tomarmos os dois exemplos, podemos observar como a instalação de um equipa-
mento técnico de grande magnitude promove alterações seja na estrutura e na morfologia

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urbana, seja na dinâmica e na vida dos que habitam a cidade. Tais mudanças não se deram
com a mesma intensidade e nem na mesma proporção, porém, se mostram importantes
nos dois casos, sendo de forma mais efetiva em Valladolid, dada a maior importância da sua
estação e da sua situação enquanto um nó ferroviário no sistema viário espanhol. Caruaru,
por sua vez, converte-se em um importante centro agroexportador, tornando-se também
sede de indústrias algodoeiras. As mudanças são visíveis, portanto, também na estrutura, na
morfologia e na dinâmica urbana de Caruaru, que se torna uma centralidade regional no
semiárido nordestino brasileiro.

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A produção do espaço produtivo
e sua atual relação com a urbanização
em Campina Grande-PB, Brasil 1

Davidson Matheus Félix Pereira 2

Introdução

A cidade de Campina Grande3 é um fenômeno urbano singular no contexto da rede


urbana do Nordeste brasileira. O seu complexo aparato produtivo, em uma das regiões
menos industrializadas do Brasil e mais pauperizadas, confere uma dinâmica a esse núcleo
urbano que chama atenção dos pesquisadores da Geografia e ciências sociais afins. A rela-
ção entre o desenvolvimento industrial e urbano dessa cidade, que se imbrica com maior
intensidade na década de 1960, vem demonstrando a necessidade de uma análise mais
aprofundada, a partir de uma entrada da Geografia Econômica Crítica.
Assim, nesse artigo propõe-se uma abordagem que considere o espaço em sua totali-

353 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
dade, como uma síntese de várias contradições, tão próprias do modo de produção capi-
talista. Nesse sentido, algumas variáveis podem ajudar a adentrar no âmago e na estrutura
das relações de produção que animam a cidade, já que a mesma não é passiva. Mas sim,
determinada historicamente pelo modo de produção dominante e a formação social bra-
sileira que a inscreve.
Essa proposição se alinha ao entendimento de Lefebvre, segundo o qual o espaço é
um concreto que interfere diretamente tanto na organização do trabalho produtivo, como

1
O artigo sistematiza resultados da dissertação intitulada: Reestruturação espacial e produtiva na Indústria de
calçados de Campina Grande-PB: Espaço e Trabalho no Regime de Acumulação Flexível (PEREIRA, 2021).
A pesquisa foi realizada no Departamento de Geociências (Geografia) da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e orientada pela Prof. Dra. Arlete Moysés Rodrigues e coorientada pelo Prof. Dr. Alexandre Sabino
do Nascimento e contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
2
Universidade Estadual de Campinas – ÚNICAMP - davidsonacrata@outlook.com
3
Campina Grande, é um município do interior paraibano, o mesmo município possui uma população
estimada em 409.731 habitantes (IBGE, 2020), localizada no Brejo do Estado da Paraíba, na região
Intermediária de Campina Grande, que compreende 72 municípios.

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(2000, p. 5) também organiza a própria produção propriamente dita. Sendo, portanto,
um produto das forças produtivas e das relações sociais de produção (Lefebvre, 2000, p.
46). Assim, pode-se afirmar que o espaço é duplamente determinado enquanto produto e
produtivo (Lefebrvre, 2000, p. 150).
É a partir dessa chave de análise, que buscaremos analisar a relação entre a urbanização
e industrialização em Campina Grande. Tendo em consideração o imbricamento histórico
entre o desenvolvimento do capital produtivo e do crescimento urbano nessa cidade. Daí
a importância de um exame, ao longo do tempo do crescimento do emprego da força de
trabalho, a criação de novas unidades produtivas no espaço e a produção das infraestrutu-
ras físico sociais necessárias à produção.
Observaremos nesse artigo os processos que prefiguraram a inflexão histórica na ci-
dade de Campina Grande, quando se torna efetivamente um espaço urbano centralizado,
concentrado em uma verdadeira unidade de consumo e um espaço produtivo propriamen-
te dito.
Não obstante, deve-se ter em consideração nessa pesquisa a relação capital-trabalho
como a contradição estruturadora do espaço, isto é, a dominação do capital sobre o tra-
balhador livre. O urbano se apresenta nesse quadro enquanto um reflexo da necessidade
incessante do capital, isto é, de crescer e gerar valor exponencialmente. Simultaneamente,
aparece enquanto espaço de consumo, consumido sobretudo, pela maior parte da popu-
lação da cidade: a classe trabalhadora, seja na forma de várias infraestruturas como a casa,
estradas, hospitais, escolas e etc. Sem essas infraestruturas não há mercado de trabalho, e
consequentemente, não há condições gerais de produção, nem reprodução do capital.
354 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Sendo assim, importa este artigo entender de que modo a relação entre o crescimento
do capital fixo e das relações de produção em Campina Grande impulsiona a criação das
condições de produção do espaço de consumo e reprodução da força de trabalho, ou seja,
no crescimento do espaço urbano em geral do município.
A metodologia que adotamos assume um caráter quali-quantitativo. Em primeiro
lugar, realizamos uma pesquisa documental e bibliográfica no que concerne ao conteú-
do histórico do desenvolvimento industrial e urbano da cidade em questão. Além disso,
outros dados qualitativos foram importantes para caracterizar o objeto de estudo em sua
dinâmica atual, sobretudo, a pesquisa de campo e a análise de imagem de satélite. Com
relação aos dados secundários, recorremos aos dados do IBGE e IPEA, para entendermos
a evolução no número de pessoal ocupado, número de estabelecimentos industriais, pro-
duto interno bruto, crescimento populacional e etc.
Desse modo, foi possível pontuar alguns elementos históricos do crescimento urbano
e do desenvolvimento industrial, traçando alguns paralelos, necessários e possíveis no tra-
balho presente. Por fim, utilizamos imagens de satélite do Google Earth, para realização de

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um zoneamento preliminar das áreas de expansão urbana e industrial na Zona Sudoeste e
Sul da cidade de Campina Grande entre as décadas de 2000 e 2020. Por fim, realizamos
o geoprocessamento dos dados e a elaboração dos mapas com o auxílio do software livre
QGis 3.10.6, que proporcionou a representação espacial da dinâmica produtiva e imobi-
liária atual da cidade.

Teorizando a Concentração Industrial e o Crescimento Urbano: As


Condições Gerais de Produção uma Chave de Análise

A cidade no atual estádio das “forças produtivas” (Marx, 1985, p. 107) da formação
capitalista, corresponde a uma forma específica das relações de produção e de dominação
que constituem a estrutura de reprodução da sociedade presente. O modelo de produção
industrial, que também é um modo de vida, tem uma parcela significativa no condicio-
namento do espaço urbano, que por sua vez é uma condição para a reprodução desse
modelo. Este influiu diretamente na criação dos modos de vida da população trabalhadora
de Campina Grande, implicando também em uma relação de centralidade na região de
influência da mesma.
Mas a cidade não é apenas o lugar de concentração industrial, senão também de sua
distribuição (Rodrigues, 1988) e reserva de um mercado de trabalho espacialmente con-
centrado e dividido em classes sociais. Como afirma Arlete Rodrigues:
para que a produção industrial e a acumulação de capital sejam possíveis é pre-
ciso que haja mão-de-obra disponível, ou seja, que se considere que a população está

355 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
dividida em classes sociais, sendo uma delas aquela que essencialmente vende a sua
força de trabalho. (Rodrigues, 1988, p.35).

Tomemos como exemplo a expansão das relações de assalariamento na cidade de


Campina Grande nas últimas décadas (1990-2020), sobretudo da indústria de transfor-
mação. As mesmas permitem a absorção de uma parcela de despossuídos do campo, re-
cém-chegados na cidade enquanto força de trabalho. Constituem também as condições
de possibilidade desses trabalhadores sobreviverem. Sem com isso eliminar a exploração e
superexploração contida no próprio local de trabalho, como é o caso das grandes indústrias
de calçados, como a Alpargatas S. A4.
Essas determinações são mais evidentes e estruturadoras no espaço urbano, visto
que nele, pelo seu caráter reunidor de pessoas e mercadorias, é gerado uma centralização

4
A alpargatas S.A é uma empresa brasileira de capital aberto e produz as sandálias da marca Havaianas. Sua
unidade industrial em Campina Grande-PB foi instalada no ano de 1985, e atualmente é a empresa que
mais emprega no município, contando em sua produção com cerca de 8.000 trabalhadores.

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“saturação” e por vezes até mesmo, “explosão”, conformando a natureza do “tecido urbano
moderno” (Lefebvre, 2000, p. 87). Logo, o espaço se torna na contemporaneidade um
concreto, um “meio” e também um “modo” de organização do consumo, uma verdadei-
ra “unidade de consumo” correlata “às grandes unidades de produção”. Consumo esse,
função da reprodução da própria força de trabalho, “ou seja, das condições do trabalho
produtivo” (Lefebvre, 2008, p. 46).
Esse processo não é despropositado. A geografia da extensão do modo de produção
capitalista após sua fase imperialista toma cada vez mais os contornos e conteúdo de
concentração e centralização hierarquizada do espaço. Amplificando assim, os benefí-
cios, as forças produtivas e as condições de dominação pelo espaço, traços marcantes da
sociedade contemporânea (Lefebvre, 2000, p. 9). Por esses meios, são transformados
o significado e as condições históricas e geográficas com que se reproduzem as classes
sociais envoltas no espaço.
Esse processo é tendencialmente crescente na cidade capitalista, tendo em vista que,
como um sistema singular (a cidade) e ao mesmo tempo parte de um sistema totalizante
(o mundo), pautado na acumulação ampliada, a cidade tende a crescer acompanhando o
ritmo de acumulação global. Nesse sentido, centros regionais como Campina Grande, que
apresentam uma importância industrial, se estruturam a partir justamente desses princí-
pios de concentração, condições próprias do crescimento da produção, do emprego da
força de trabalho, e em razão disso, do próprio espaço urbano.
Em outros termos, a configuração dos sistemas urbanos e os níveis de crescimento,
podem ser analisados em um primeiro momento a partir da chave analítica weberiana, que
356 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

diz respeito ao equilíbrio das economias e deseconomias externas (Richardson, 1978, p.


2). Em que a localização das atividades capitalistas, é definida em grande parte pela neces-
sidade das economias de aglomeração, seja de força de trabalho, infraestrutura, condições
político-institucionais.
Seguindo esse pressuposto, Richardson chega a afirmar que algumas cidades podem
alcançar um “tamanho ótimo” (Richardson, 1978), que tende a aumentar as desecono-
mias externas, o que em nossa opinião é uma consideração relativamente arbitrária, pois
o “ótimo” não considera as forças produtivas como um fenômeno histórico e socialmente
determinado.5
Contudo, há de se concordar que a acumulação e centralização das forças produtivas
pode chegar à um nível e uma forma inviabilizadora de determinadas atividades, as quais
precisam de condições adequadas aos seus processos de produção, distribuição e circulação

5
Milton Santos nos dá uma visão de maior detalhamento acerca dessa questão. Na realidade, as empresas em
geral, precisam acessar o Capital Geral, encontrado na cidade como um todo, para manterem suas taxas de
lucro, mas também as “frações do território urbano preparadas para seu uso” (Santos, 2009, p. 132-3).

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das mercadorias e serviços. Por esses motivos, o conceito de condições gerais de produção,
além de mais sofisticado, nos permite uma visão de totalidade da geografia econômica do
fenômeno industrial e urbano.
As condições gerais de produção na literatura marxista, dizem respeito justamente
as condições de viabilização da reprodução dos capitais individuais e seu conjunto.
Podendo ser divididos em dois conjuntos de condições gerais de produção, segundo
Sandra Lencioni: 1. Meio de circulação em conexão direta com o processo de pro-
dução: Bancos, Redes de circulação material (rodovias, hidrovias, redes de circulação
imaterial (telecomunicação, informática) 2. Meios de consumo coletivos em conexão
indireta com o processo de produção (hospitais, escolas, centros de lazer, esportivos)
(Lencioni, 2007).

Desenvolvimento histórico e espacial da Indústria em Campina Grande

Campina Grande, teve sua formação socioespacial definida pela sua localização pró-
xima aos “caminhos de penetração” para a região do Sertão do estado paraibano, que
permitiram sua conformação enquanto um centro de comércio de gado (Andrade, 1973,
p.149-150). No século XIX o cultivo de algodão se tornou uma atividade importante no
município e sua região, tendo ganhado impulso através da construção da rede ferroviária
concentrando os fluxos em Campina Grande. Essa infraestrutura funcionou como motor
de escoamento da produção para outras capitais onde a mercadoria seguia para exportação.
Esses serão os marcos na criação das condições gerais de produção que fundamentam a

357 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
expressividade de sua economia urbana na região do Agreste paraibano, incluindo o seu
importante aparato produtivo.
Nos anos 1930, um importante desenvolvimento industrial se deu nessa cidade. A
situação geográfica permitia aos comerciantes e industriais do município obterem uma
conexão direta com o sertão paraibano. Isso conferiu condições de crescimento tanto para
a economia algodoeira, através da absorção do produto de outras regiões, quanto para a
gênese de uma indústria calçadista nascente de bases semiartesanais, via acesso ao mercado
coureiro (Pereira, 2021, p. 39).
Portanto, a industrialização da cidade se dá inicialmente com o desenvolvimento do
ramo têxtil. O processo produtivo, era sobretudo pautado no beneficiamento e prensa-
gem de algodão, imprimido, especialmente após a instalação da Sociedade Algodoeira do
Nordeste Brasileiro S.A-Sanbra (Figura 1), em 1935, mas também, das empresas Anderson
Clayton e a Zé Marques de Almeida. As economias geradas por essas empresas, criaram
assim, as condições gerais de produção para a alavancagem de outros subsetores, como o
calçadista (Alves, 2013, p. 83).

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Figura 1: SANBRA em Campina Grande nas décadas de 1940 e 1950
Fonte: Retalhos Históricos de Campina Grande, acessado em 03/01/2023. Disponível em: http://cgretalhos.
blogspot.com/2009/11/sanbra.html#.Y7RS43bMLIU

Por sua vez, o ramo calçadista nasce em Campina Grande no final da década de 1930,
com a instalação dos curtumes de Manoel Motta, fundado em 1924, (Figura 2) e o de
Vilarim Meira. A importância de Campina Grande como principal produtora de calçados
na época, era tão clara que, entre o período de 1937 a 1945, a cidade já contava com mais
de 30 novas indústrias calçadistas. (Oliveira; Rodrigues,2009, p 29).
358 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2: O Curtume São José (1924-1983)


Fonte: Memorial FIEP, Acessado no site Retalhos Históricos de Campina Grande, Acessado em 03/01/2023.
Disponível em: http://cgretalhos.blogspot.com/2010/06/memoria-fotografica-o-curtume-sao-jose.html

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Nesse período, a indústria da cidade, se concentrava em áreas situadas entre o Centro
da cidade e os bairros hoje conhecidos como Estação Velha e Liberdade. A seguir analisare-
mos o redirecionamento da localização fabril na cidade e a inserção da produção industrial
nesse espaço.
A indústria de Campina Grande continua a se desenvolver mesmo após a crise da
indústria calçadista em 1940 (Pereira, 2021) Os subsetores tradicionais, com intensivo
uso de mão de obra, tiveram o incremento tecnológico, assimilando alguns processos de
produção fordistas na década de 1960.
Nesse período, o capital industrial era sobretudo advindo da própria cidade e região,
em 1960, 9 das 12 empresas com mais de 50 operários eram de capital local. Destacamos
que além do aumento no volume de investimentos realizados pelos capitalistas do setor
comercial na cidade no período, também houve o incremento dos investimentos em pe-
quenas atividades fabris provenientes do próprio operariado nascente na indústria de be-
neficiamento de algodão. Nesse sentido, o capital industrial passou a estruturar a vida
urbana em Campina Grande, ao passo que as indústrias alimentícias e químicas (para pro-
dução de produtos de higiene) encontraram uma demanda local considerável (Cardoso,
1963, p. 426).
Esse novo padrão de acumulação local e o correspondente aumento do proletariado
urbano e das relações de assalariamento, criaram as condições gerais de produção para a
transformação das relações de produção existentes no setor industrial da cidade, influen-
ciando no interesse de zonear a cidade em função da disposição espacial condizente às
necessidades das novas atividades industriais.

359 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Além disso, o crescente papel que as cidades do interior nordestino vinham adqui-
rindo, implicou na necessidade de o Estado em sua esfera local e estadual construírem o
bairro Distrito Industrial nos anos 1963, com o intuito de comportar as grandes empresas
que viriam a se instalar na cidade. Essa infraestrutura física, jurídica e social teve como
principal investimento uma planta industrial da empresa Wallig Nordeste. Instalada nesse
distrito nos anos 1965, a empresa de metalmecânica Wallig oriunda da cidade de Porto
Alegre-RS, passa a fabricar fogões a gás nessa planta produtiva.
Podemos dizer que a instalação dessa empresa, transforma totalmente o espaço pro-
dutivo na cidade e as configurações das relações capital-trabalho, principalmente, atra-
vés da generalização do assalariamento na cidade e a constituição de uma configuração
espacial produtiva mais ampla. Vale lembrar, que a instalação dessa empresa, gerou a
abertura de uma certa cadeia produtiva na cidade, que passou a servir essa grande indús-
tria (Pereira, 2021).
Outra empresa importante nesse sentido para a sedimentação da estrutura produ-
tiva desse centro regional, foi a empresa pernambucana BESA-Borracha Esponjosa S/A

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 359 20/06/2023 16:46:36


Indústria e Comércio, também instalada no Distrito Industrial em 14 de dezembro de
1966. Destaca-se o fato de ser uma das primeiras empresas calçadistas nos moldes moder-
nos de produção, somando-se ao fato, de utilizar materiais de borracha na confecção de
sandálias do estilo japonesa (concorrendo com as Havaianas da empresa sediada em São
Paulo, a Alpargatas S.A).
Como pode ser visto na Tabela 1, o aumento das forças produtivas, muito provavel-
mente desempenhou um papel importante no crescimento urbano do município, dado a
mudança na própria estrutura econômica da cidade, que a partir da década de 1960 passa a
ser determinantemente condicionada pelas economias geradas pelo setor industrial. Tudo
aponta para que não seja uma coincidência o fato de a virada urbana na cidade ter ocorrido
justamente entre as décadas de 1960-1970, onde há o incremento de 95.751 na população
urbana (crescimento de 133,7%). Período em que justamente a indústria de transforma-
ção adquire um estágio de maturidade após a instalação da Wallig Nordeste6 e a BESA,
como já mencionado.

Tabela 1: População Residente no Município de Campina Grande-PB

1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010


População 173.206 204.583 195.303 247.827 326.307 355.331 385.213
Total
Rural 91.874 132.999 27.968 19.645 18.839 17.847 18.004
Urbano 81.332 71.584 167.335 228.182 307.468 337.484 367.209
360 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do IPEA e IBGE (2010), em http://www.ipeadata.gov.br/Default.
aspx acessados em 09/07/2020.

Todas essas condições, aliadas a uma mudança na estrutura produtiva nacional e à


reestruturação da indústria de calçados do país na década de 1980, resultaram na alocação
de plantas produtivas do setor de calçados na cidade de Campina Grande. Conferindo um
outro padrão de indústria na cidade, mais verticalizado e ainda mais intensivo em força
de trabalho atraindo investimentos de empresas como a fabricante de calçados femininos
Azaleia S/A; e Alpargatas S.A, fabricante das sandálias Havaianas. Além disso, houve o
aumento da centralização industrial nesse município, sendo que entre 1970 e 1995 são
abertas 509 unidades de produção industriais (Tabela 2), passando de 294 no ano de 1970
para 803 em 1995.

6
Em 1975 a cidade contava com 263 empreendimentos industriais, tendo como maior empregadora a
empresa Wallig Nordeste que chega a empregar em seu auge cerca de 2000 operários (CARVALHO, 2017,
p.62).

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Tabela 2: Nº total de Estabelecimentos
ou Unidades Locais da Industria em Campina Grande-PB

1960 1970 1980 1995 2006 2017 2018


Número de estab. 212 294 420 803 789 832 771

Fonte: Elaboração Própria a partir de dados do IPEA, Censo Industrial do IBGE-1960 e do IBGE-
Cadastro Central de Empresas (2018), em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx e https://sidra.ibge.gov.br/
Tabela/6449#resultado, acesso em 09/07/2020.

A produção do espaço produtivo, é, portanto, resultante da reprodução das relações de pro-


dução na cidade. Isso implica dizer, e os dados demonstram, que a expansão do espaço produtivo
só pôde se dar pelo incremento tecnológico, técnico e informacional e sobretudo do emprego
da força de trabalho, o que correspondeu ao aumento das forças produtivas na cidade. Como
pode ser observado na Tabela 3, entre os anos 2000 e 2010, houve a criação de 8623 postos de
trabalho na indústria, um aumento de 177,2% no número de operários. Esse crescimento do
emprego da força de trabalho na cidade merece ser melhor aprofundado em outros estudos.

Tabela 3: Evolução do Pessoal Ocupado


na Indústria em Campina Grande-PB entre 1907-2020

Evolução do Pessoal Ocupado na Indústria em Campina Grande-PB


Ano 1907 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020
Nº de Operários/Pessoal
23 2.974 4.446 7.824 9.518 11.161 19.784 19.421
Ocupado na Indústria

361 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Fonte: Ano de 1907 (IPEA data); 1960-1980 (Censos Industriais); 1990-2020 (MTE/RAIS).

A evolução do pessoal ocupado, não se deu sem exploração, pois como dissemos no iní-
cio do artigo, Campina Grande se encontra na região mais subdesenvolvida do país, onde o
mercado de trabalho se conforma a partir de baixos salários. Isso tende, no modo de produção
capitalista a atrair o interesse de empresas intensivas em trabalho e super exploradoras. Nesse
sentido, Edward Soja demonstra que o crescimento do emprego tende a estar atrelado a exis-
tência de” bolsões de trabalho comparativamente baratos”, pouco organizados e mais fáceis
de manipular, mesclando uma miríade de frações da classe trabalhadora, como “técnicos es-
pecializados, trabalhadores sem turno integral, imigrantes e mulheres” (SOJA, 1993, p. 227).
Destaquemos brevemente o aspecto da importância relativa que a indústria possui
na economia urbana campinense. Se compararmos a capital do estado da Paraíba, João
Pessoa, observaremos que o valor adicionado do setor industrial é relativamente maior em
Campina Grande que nesse outro município. Enquanto em Campina Grande, a indústria
produz o correspondente à 20,38 do PIB municipal, em João Pessoa esse setor possui im-
portância relativa menor, isto é, 16,18%.

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Tabela 4: Valor Adicionado Bruto
por setor a preços correntes (R$ 1.000) em Campina Grande-PB (2020)

Adm. e servi- Impostos e


Cidade Agropecuária Indústria Serviços Total per capita
ços pub. subsídios
Campina Grande 34.174 2.054.831 4.674.214 1.975.533 1.343.027 10.081.780 24.481,81
João Pessoa 39.790 3.360.162 10.608.595 4.053.626 2.704.377 20.766.551 25.402,17

Fonte: Produto Interno Bruto dos Municípios, IBGE (2020). Disponível em: https://www.ibge.
gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9088-produto-interno-bruto-dos-municipios.
html?t=pib-por-municipio&c=2504009

Dinâmica Espacial Recente do Espaço Industrial


e Urbano de Campina Grande

A década de 1990 marca uma nova fase no processo de produção do espaço produtivo
de Campina Grande, tanto em função da instalação de novas grandes empresas quanto
pela expansão da produção nas unidades produtivas pré-existentes (o que significou o
aumento do consumo do espaço), oferecendo um novo conteúdo ao espaço urbano dessa
cidade. Esse momento histórico demarca o advento da estrutura produtiva que se verifica
contemporaneamente (Mapa 1), sobretudo através da instalação da Coteminas S/A em
1997, grande empresa do ramo têxtil de capital nacional, criando um outro distrito indus-
trial na cidade, o Distrito do Velame, o qual analisaremos mais a frente.
362 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Mapa 1: Espaço industrial de Campina Grande em 2020


Fonte: Elaborado por Davidson Matheus Félix Pereira a partir de dados da FIEPB (2020).

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Como pode ser visto, o padrão de uso e ocupação do solo direcionado as atividades
industriais se desloca da porção Leste e Centro da cidade para a porção Sul e Sudoeste,
justamente nos eixos das BRs 104 e 230, importantes vias para o escoamento da produção
da cidade e, concentrando-se sobretudo no entorno do entroncamento dessas duas BRs.
Entretanto, o Distrito Industrial permanece sendo a área que concentra maior capital
fixo e variável (trabalhadores) na cidade. Aqui chamaremos essa área de núcleo industrial
da cidade (Mapa 2), pelo fato de ser o espaço onde há uma maior densidade de empresas
de grande e médio porte na cidade, ou seja, onde há maior densidade de capital e uma
maior complexidade de relações sociais de produção.

363 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Mapa 2: Zona Industrial de Campina Grande-PB


Fonte: Elaborado pelo autor, com base em estudo de campo realizado em 09/03/2021.

Por esses fatores, o preço da terra no núcleo industrial é provavelmente o mais caro com
relação a esse uso. Ora, além da concentração de empresas, outros fatores continuaram sendo
importantes para manter o alto valor das terras e a permanência de condições gerais de produ-
ção. Destacamos, a presença do SENAI CIT (Centro de Inovação e Tecnologia Industrial) e o
SESI Distrito Industrial- Centro de Atividades João Rique Ferreira (CAT JRF). Além do mais
esse núcleo industrial continuou se situando em um espaço privilegiado no tocante ao acesso
a mão-de-obra tendo fácil acesso tanto à municípios vizinhos, quanto ao Centro da cidade.

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Sendo assim, o núcleo industrial se apresenta mais como uma zona industrial hetero-
gênea quanto ao tipo de atividades fabris e industriais. Comportando desde indústrias de
plásticos injetados, a indústrias de cadernos, fechaduras, eletrônicos. Demonstrando um
alto grau de internalização e independência das empresas que contrasta com a realidade
dos distritos industriais propriamente ditos.
Para fundamentar nossa hipótese, tomemos como exemplo a empresa Silvana (que
produz principalmente fechaduras, correntes, cadeado), a Silvana7 iniciou sua produ-
ção nos anos 1964 em Campina Grande, em um período bem próximo a instalação
da Wallig Nordeste. Hoje conta com cerca de 400 operários, mas pouco terceiriza sua
produção na cidade.
Além dessas indústrias de transformação, importa destacar que o espaço industrial
propriamente dito da cidade, também se articula e divide espaço com as atividades de
reparação mecânica, dado a proximidade com o bairro Distrito dos Mecânicos. Logo, há
uma crescente escassez de terrenos no núcleo da zona industrial da cidade, tendo em vista
além da pressão imobiliária a permanência de várias pequenas empresas e oficinas próximo
e dentro do próprio Distrito Industrial.
Assim, o modo de vida que se produz na área industrial da cidade é singular, se dis-
tinguindo de qualquer outra em geral na cidade. Esse espaço industrial híbrido, congrega
uma massa de trabalhadores das oficinas, catadores de materiais recicláveis das próprias
oficinas, profissionais do sexo (lembremos que esse ambiente industrial é predominante-
mente masculino), ao lado de escolas, terrenos baldios, canais de água, ocupações, favelas
e loteamentos do governo federal. Nesse lugar fica visível o quanto o capital pode tomar
364 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

múltiplas formas e se reproduzir de maneira bastante variável em conjunto à pobreza nas


paisagens mais improváveis.
Subsequentemente, pode-se observar a produção do espaço produtivo em direção ao
bairro Velame, como demonstramos anteriormente com relação a empresa Coteminas S.A.
Vale salientar que esse bairro anteriormente era uma grande reserva de terras, afastada da
zona urbana, ideal para a instalação de grandes indústrias que buscavam expandir sua uni-
dade industrial a longo prazo. Segundo Richardson, a questão dos custos dos transportes
possui influência nos fatores de localização da indústria, sobretudo aquelas que servem a
mercados externos e que tendem a se concentrarem no subúrbio das cidades (Richardson,
1978, p.22-23).
Sendo assim, é possível que a instalação de algumas unidades produtivas, e por
conseguinte, as infraestruturas: viária, de transmissão e saneamento trazida para a
viabilidade dessa produção, permitiram entre outras coisas, a transformação da terra

7
Em 2014 a empresa foi comprada pela multinacional Sueco-Finlandesa Assa Abloy.

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rural em terra urbana e consigo, a valorização da terra urbana nessa área. Não à toa,
tem-se verificado a disputa pelo uso do solo por parte do capital imobiliário e indus-
trial nesse recorte da cidade, dando uma forma espacial bastante heterogênea e com-
plexa ao espaço (Mapa 3).

365 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Mapa 3: Industrialização e Expansão Urbana na Zona Sul-Sudoeste de Campina Grande (2007-2021)
Fonte: Elaborado por Davidson Matheus Félix Pereira (2021) a partir de análise de imagens de satélite do
Google Earth (2021).

Portanto, podemos tomar como hipótese que o núcleo industrial do Velame se torna
parte do processo de industrialização mais geral que ocorre na cidade. Como dissemos, ele
é o espaço que inicia e conecta a industrialização da Zona Sul e na Alça Sudoeste da cidade.
Afinal, alguns fixos espaciais impediam e ainda impedem a expansão industrial do nú-
cleo industrial principal, no bairro Distrito Industrial, ressaltamos entre eles: o Aeroporto
de Campina Grande João Suassuna e as empresas de utilidade pública como a CHESF
(Companhia Hidrelétrica do São Francisco), mas também, como já discutimos a própria
zona residencial.

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Conclusões

A natureza cumulativa do capital se expressa no espaço consumindo e produzindo


novos espaços. É esse o movimento que captamos, quando investigamos a atuação do
capital industrial em Campina Grande, um movimento de apropriação e (re)produção
(desigual) do espaço na cidade.
Nesse breve estudo, foi possível pontuar alguns dos principais antecedentes do desen-
volvimento industrial campinense. Em que destaca-se o papel da indústria têxtil e calça-
dista e sua articulação com o crescimento populacional e do mercado de trabalho. Além
disso, sinalizamos que as transformações no capitalismo global e na economia brasilei-
ra influíram diretamente na dinâmica produtiva nordestina, em especial a de Campina
Grande. Tendo como por efeito, a produção do espaço produtivo da cidade em 1960 e sua
reestruturação na década 1990.
A pesquisa aponta para a necessidade de pesquisas futuras que busquem aprofundar
a dinâmica da produção do espaço produtivo de Campina Grande, tanto em função da
instalação de novas grandes empresas, quanto pela expansão da produção nas unidades
produtivas, como tem sido até hoje com relação a Alpargatas S.A (com o aumento da área
construída em sua planta industrial nos últimos anos).
Interessa também desvendar os recentes efeitos do uso e ocupação industrial no eixo
da BR-230. Nesse período instalam-se empresas como a concessionária da Mercedes-Benz
Unidas e uma empresa de logística, a Nazaria Distribuidora Farmacêutica.
Portanto, essa pesquisa aponta para a necessidade de entender algumas dinâmicas,
366 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

como a importância do capital produtivo na urbanização das cidades não metropolitanas


brasileira e a relação entre a verticalização produtiva e a organização espacial produtiva,
que ao que parece, gerou uma concentração e contiguidade espacial particular.
Logo, a zona industrial da cidade se apresenta enquanto um conjunto de frações do
espaço industrial articulada por diferentes capitais, diversos interesses, formas de produzir
e trabalhar e, por fim, de processos espaciais.
Esse espaço é continuidade e descontinuidade em um só tempo. É continuidade na
medida que manifesta o movimento de reprodução do capital industrial (e seus correlatos)
na cidade, produzindo um fenômeno geral em espaços particulares. Mas também descon-
tínuo, tendo em vista a natureza distinta de cada fração de capital e de classe.
Assim, um esforço para apreender a divisão espacial do trabalho o espaço industrial
de Campina Grande é necessário, tendo em conta a necessidade de entender a gênese
e desenvolvimento desse capital no espaço, a partir da exploração da força de trabalho.
Contudo, não se deve com isso, perder de vista a totalidade do processo, em outras pala-
vras, as condições econômico-sociais e políticas que determinam a produção desse espaço

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e, portanto, as variadas contradições entre o capital e o trabalho decorrentes dessa estrutu-
ra sócio geográfica. Além do mais, a análise do espaço industrial não pode perder de vista
a análise da cidade, suas condições gerais de produção como um todo, ou seja, a cidade
enquanto força produtiva.

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368 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 368 20/06/2023 16:46:39


As novas centralidades e dinâmicas
territoriais das cidades do Noroeste
do Estado do Ceará, Brasil

Luiz Antônio Araújo Gonçalves1

Introdução

As cidades no Nordeste brasileiro passaram, na última década, por transformações


significativas que apontam um dinamismo urbano-regional que não se verificava outrora.
Muitas cidades passaram por ciclos econômicos (cana-gado-algodão), experimentaram um
primeiro período de industrialização, posteriormente, com a instalação seletiva das indús-
trias incentivadas pela política de desenvolvimento do Nordeste e, passados os momentos
altos dessas atividades econômicas, foi por meio do comércio e dos serviços que mantive-
ram o conjunto de relações com outros centros urbanos.
Não obstante o contraste entre novos e velhos sertões marcados por uma economia

369 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
sem produção que sustenta a economia local de muitos centros urbanos do sertão nordes-
tino (Gomes, 2001), chama atenção a dinâmica territorial alcançada por diversas cidades
mesmo diante de heranças de desigualdades regionais e do processo de estruturação urba-
na que concentrou a população nas grandes cidades, gerando uma desigualdade na rede
urbana brasileira. Assim, o conjunto de políticas regionais iniciadas a partir de 2003, gerou
um padrão de crescimento assentado na produção e consumo de massa que favoreceu,
principalmente, os estados e municípios, sobretudo, nas regiões Norte e Nordeste. Desse
modo, os municípios e cidades médias dessas regiões tiveram um crescimento mais in-
tenso, agregando maiores vantagens e sem os problemas característicos das concentrações
metropolitanas (Araújo, 2013).
A proposta desse ensaio versou sobre a análise das cidades classificadas como centros
sub-regionais na rede urbana na porção Noroeste do estado do Ceará, região Nordeste do
Brasil. Esse trabalho constitui, ainda, uma parte de nossa pesquisa de estágio pós-doutoral
1
Programa de Pós-Graduação em Geografia, Mestrado Acadêmico, da Universidade Estadual Vale do Acaraú
(PROPGEO/UVA) Sobral, Ceará, Brasil - luiz_goncalves@uvanet.br

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realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPgGEO, da Universidade
Federal do Ceará – UFC. Compreendemos que novas centralidades e dinâmicas territoriais
são geradas pela divisão territorial do trabalho e redefinem a rede urbana funcional atri-
buindo novas funcionalidades às cidades submetidas à cidade média de Sobral (Figura 1).
A relevância do estudo tem o sentido de desvelar as novas configurações da rede ur-
bana no Noroeste cearense a partir da reflexão sobre a urbanização e o fenômeno urbano
mediado pela diferenciação espacial entre os lugares. Para analisar as diferenciações funcio-
nais das cidades em foco e sua relação hierárquica no contexto urbano-regional tomamos
como referência, a pesquisa REGIC/IBGE (2020). A abordagem qualitativa da pesquisa
visa captar dinâmica urbana com a expansão das atividades terciárias (comércio e serviços)
e identificação das alterações no modo de vida e adequação às lógicas globais de comércio
e consumo.
370 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1 – Localização das cidades (sub-centros regionais) do Noroeste do estado do Ceará, Brasil

As transformações das formas tradicionais de comércio (feiras e o mercados) comuns


nos núcleos centrais de diversas cidades do sertão, têm demonstrado sua capacidade de
adaptação ao cenário do capitalismo contemporâneo, de relações financeiras globalizadas
que produzem uma espacialidade que incorpora modernizações e promove reestruturações
urbanas. Daí, verificarmos a relevância de captar essa dinâmica sob a lógica terciária nes-
sas cidades que assumem um patamar de destaque frente a outras cidades. Antes, porém,

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iremos explanar sobre os aspectos que consolidaram a centralidade da metrópole Fortaleza,
capital do Estado do Ceará, no contexto da rede urbana cearense.

A centralidade de Fortaleza na rede urbana cearense

Dentre os trabalhos da Geografia Urbana Cearense destacam-se estudos importantes


sobre a temática da formação, evolução e interiorização da rede urbana do Ceará. Dantas
(2003) destaca que a formação da rede urbana colonial brasileira baseada na instauração
da cidade primaz, em geral próxima ao litoral, articulada com o comércio europeu, pro-
moveu a especialização desses núcleos urbanos no escoamento do açúcar e de especiarias.
Essa lógica de ordenação espacial foi marcante para as áreas da zona da mata e meio norte,
contudo, o quadro diferenciado de ocupação relacionados às dificuldades de consolidação
em razão das estiagens do ambiente de semiaridez e a resistência dos povos nativos inibiu
um processo de ocupação de algumas porções do litoral colonial.
Sobre a formação da rede urbana do Ceará no Período Colonial, esse autor ressalta
que a demanda externa com o mercado europeu e, consequentemente, a necessidade de
um centro litorâneo não foram fatores relevantes na organização espacial naquele período,
de maneira que o sistema de cidades não era provido de “[...] uma cidade primaz, mas de
conjunto de cidades interioranas, articuladas e especializadas na produção e comercializa-
ção da carne seca, ficando sua capital litorânea isolada na zona costeira, sem estabelecer
vínculos com outros centros urbanos coloniais.” (Dantas, 2003, p. 215).
Desse modo, esse autor destaca o domínio do sistema de cidades interioranas no sécu-

371 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
lo XVIII, baseado na lógica de ocupação materializada por um sistema de vias de ligação
entre zonas produtoras de gado e centros coletores e exportadores, tendo como núcleos ur-
banos representativos, as vilas de Aracati, Icó e Sobral que exerciam as funções comercial,
administrativa e de serviços, e a vila do Crato que tinha as funções agrícola, administrativa
e industrial. O comércio da carne seca para as capitanias mais desenvolvidas apoiado na
ocupação do sertão por grandes fazendas de criação de gado, reforçou a estruturação de um
sistema de cidades situadas tanto “[...] nos cruzamentos das vias antigas quanto nos lugares
privilegiados em relação a zonas portuárias.” (Dantas, 2003, p. 215).
A rede urbana cearense, no século XIX, com exceção de Aquiraz, fundada em 1713, e
de Fortaleza, em 1726, ambas situadas no litoral, era composta pelas demais vilas funda-
das no território e localizadas “[...] em pontos estratégicos para a circulação do gado nas
estradas das boiadas [...] de Icó (1736), Aracati (1748), Sobral (1773), Granja (1776),
Quixeramobim (1789), Russas (1801) e Tauá (1802).” (Jucá Neto, 2009, p. 87).
A organização do território, já naquele momento, passava pela adequação à lógica de
distribuição e comercialização de maneira que formas espaciais como a feira e o mercado

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faziam parte das áreas centrais desses núcleos urbanos. Posteriormente, outras formas co-
merciais como as casas comerciais, empórios, lojas de secos e molhados, escritórios de
importação e exportação se instalaram criando uma materialidade que constituiu o desen-
volvimento dessas cidades a partir do comércio.
De acordo com Costa (2017), Fortaleza era um povoado de pouca importância econô-
mica no início do século XIX, exercendo o papel de entreposto militar sem maiores atrati-
vos. Esse cenário mudou com a política imperial de fortalecimento das capitais provinciais
juntamente com a produção do algodão que inseriu o Ceará na Divisão Internacional do
Trabalho e consolidou a hegemonia urbana de Fortaleza na segunda metade do século
XIX.
Silva (1985) destaca o papel que as ferrovias e rodovias tiveram na reestruturação
da rede urbana cearense. A cidade de Fortaleza conquistou, assim, o espaço do sertão
como principal centro coletor da produção primária, primeiramente via ferrovia e, pos-
teriormente, alcançando outros estados pela rodovia (Silva, 2009). A construção de in-
fraestruturas como estrada de ferro ligou a capital aos principais centros interioranos e,
posteriormente, com a construção estradas federais e estaduais e do porto do Mucuripe
carreou a produção e população para a capital litorânea, provocando desníveis em termos
econômicos e populacionais com os centros regionais, e gerando uma rede urbana dese-
quilibrada (Amora; Costa, 2007). A falta de uma maior dinâmica dos núcleos urbanos do
interior e, por conseguinte, sua incapacidade de reter a população migrante do campo,
contribuiu no aumento da migração para Fortaleza (Souza, 2009).
Nos estudos de Souza (1977) sobre a hierarquização dos centros urbanos no estado
372 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

do Ceará, já nos anos 1960, apontava a classificação especial da cidade de Fortaleza como
capital do estado ante as demais cidades cearenses que foram classificadas em cinco cate-
gorias de cidades, ou seja: “1ª categoria – Crato, Juazeiro do Norte e Sobral; 2ª categoria
– Iguatu; 3ª categoria – Crateús, Russas e Senador Pompeu; 4ª categoria – Limoeiro do
Norte, Tauá, Quixadá, Ipu e Baturité; 5ª categoria – Aracati, Brejo Santo, Canindé e
Jaguaruana.” (Souza, 1977, p. 55, negrito nosso).
Amora (1999) já identificava três níveis de assentamentos urbanos na rede urbana
cearense que compreendia a metrópole, as cidades médias ou intermediárias e as pequenas
cidades locais. A autora vai caracterizar o sistema de cidades cearenses pela forte concen-
tração urbana da capital – Fortaleza e a fraca articulação entre as cidades. Embora houvesse
o crescimento de cidades de nível intermediário, havia pouca capacidade de articulação
dos centros locais. Nesse sentido, centros urbanos tradicionais “[...] como Sobral, Crato,
Quixadá e Juazeiro do Norte se reorganizam e passam a apresentar dinamismo econômi-
co com novas funções e consequentemente um novo perfil onde se configuram novas e
velhas relações, [...]” (Amora, 1999, p. 31). A autora observava o lapso temporal, espacial

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e analítico das novas configurações da rede urbana cearense indo de encontro a nossa refle-
xão e hipótese de pesquisa, ou seja, sobre a evolução da rede urbana cearense e a transição
dessas cidades de centros coletores da produção agrícola no passado a centros de comércio
e serviços no período atual.
Quando Silva (1992) apontou as mudanças no espaço urbano da cidade de Fortaleza
nos anos 1970/80, um dos elementos principais foi a concentração demográfica com a
formação de subcentros que passaram a atender às necessidades de consumo da classe
média, enquanto o centro tradicional passou a atender à população moradora da perife-
ria (conjuntos habitacionais). No processo de metropolização de Fortaleza, ou seja, sua
passagem de cidade à condição de metrópole, o comércio e a prestação de serviços “[...]
que lhe conferiram historicamente a condição de polo regional, ao extrapolar os limites
administrativos do estado do Ceará, se expandiram, nas últimas dé­cadas, gerando novos
fluxos e impactando na diversificação e conso­lidação do espaço metropolitano.” (Costa;
Amora, 2015, p. 35).
O desenvolvimento dos setores da economia urbana de Fortaleza promoveu funções
mais complexas que redefiniram sua hierarquia nacional e internacionalmente, fruto da
reestruturação econômica e territorial em adaptação aos processos da globalização capi-
talista. A política econômica executada pelo Estado favoreceu “[...] o extravasamento de
atividades para o espaço metropolitano que foi acompanhado da expansão dos serviços de
educação e saúde, que tiveram impacto na sua área de influência, redefinindo seu papel na
rede urbana brasilei­ra.” (Costa; Amora, 2015, p. 59).
Silva (2006) destaca a força da centralidade de Fortaleza como cidade-sede da

373 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Região metropolitana de maneira que era nítido “[...] o peso de Fortaleza e a ausência
de inovações na composição do sistema de cidades no Ceará. Em termos de emergên-
cia de rede urbana complementar Fortaleza continua uma cidade hipertrofiada, que
provoca uma atrofia no interior do estado.” (Silva, 2006, p. 49). Essa grande cabeça
metropolitana sustentada por um corpo de pequenos municípios de economia frágil e
dependente diretamente dos repasses de verbas públicas e indiretamente de políticas de
transferência de renda e aposentadorias, tornaram crônicos os problemas de sustenta-
ção das economias municipais e do fluxo migratório das cidades sertanejas para a ca-
pital litorânea. Não foi por acaso que Silva denominou Fortaleza como essa metrópole
sertaneja do litoral.
Desse modo, Fortaleza enquanto metrópole passa a incorporar uma totalidade funcio-
nal adquirindo “[...] expressão como artefato produzido com diferentes tipos de infraes-
trutura, de equipa­mentos, de polo de múltiplas atividades, de centro de fluxo e reflu­xo de
pessoas, mercadorias e capitais e pela intensa rede de relações sociais que propicia.” (Silva,
2015, p. 387).

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Para Costa e Amora (2015) embora tenha havido o empenho das políticas públicas
para a desconcentração industrial no restante do estado, estas foram pouco eficientes. Não
obstante, a execução de planos de estímulo à interiorização dos estabelecimentos indus-
triais, pós-políticas de incentivo da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
- SUDENE e difusão relativa de investimentos industriais em alguns municípios no in-
terior, “[...] a maior densidade de estabelecimentos subvencionados dá-se nitida­mente na
Região Metropolitana de Fortaleza, com concentração tam­bém na região do Cariri e em
Sobral.” (Costa; Amora, 2015, p. 87).
Silva (2006) aponta que a interiorização da indústria, principalmente, do setor cal-
çadista gerou novos empregos e provocou fluxos migratórios para as cidades onde novas
fábricas foram instaladas de maneira que os empregos formais e a renda alteraram o perfil
do consumo desses lugares. “Sobral, Russas, Crato são exemplos de cidades que aumenta-
ram consideravelmente o número de postos de trabalho. Observa-se na dinâmica urbana
destas e outras cidades um maior volume de capital circulante. O comércio intensificou
suas atividades.” (Silva, 2006, p. 50). No que se refere às cidades médias cearenses, Amora
e Costa (2007, p. 370) afirmam que essas cidades
[...] também acompanham a lógica econômica, capturando o consumo de ou-
tras cidades. Alteram-se os costumes e o modo de vida interiorano, com a incorpora-
ção de hábitos típicos das grandes cidades. Chegam às cidades médias fast food, cyber
café, lan house, rede de TV por assinatura, internet banda larga. Sinais de telefones
celulares ampliam-se colocando estes centros em patamar bem diferente daquele do
período agrário-exportador.
374 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Nesse contexto, as cidades do interior do estado que tinham a função de centros regio-
nais no passado, hoje têm desempenhando um papel de intermediação entre as pequenas
cidades e a metrópole com maior integração da rede urbana. Embora a centralidade da
capital tenha se intensificado, essas cidades médias destacam-se na rede urbana cearense
sobretudo como centros de comércio e serviços. “Sobral, Juazeiro do Norte e Crato, tradi-
cionais centros regionais, têm seu papel reforçado como pólos comerciais, prestadores de
serviços e agora também industriais.” (Amora, Costa, 2007, p. 375).
O alinhamento dos espaços na periferia do capitalismo com a nova divisão internacio-
nal do trabalho tem influenciado a urbanização de muitas cidades brasileiras sob a influên-
cia da lógica global ocasionando o crescimento de pequenas e médias cidades, inclusive, na
redefinição de seus papéis com o crescimento demográfico, necessidade de infraestrutura
e equipamentos urbanos.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 374 20/06/2023 16:46:40


Novas centralidades e dinâmicas territoriais nas cidades do Noroeste
do Ceará

O estudo Região de Influência das Cidades – REGIC do ano de 2018, estrutura


a rede urbana brasileira em duas dimensões, ou seja, a hierarquia dos centros urbanos
(divididos em cinco níveis) e as regiões de influência que são identificadas “[...] pela liga-
ção das Cidades de menor para as de maior hierarquia urbana. O elo final de cada rede
são as Metrópoles, para onde convergem as vinculações de todas as Cidades presentes no
Território Nacional.” (IBGE, 2020, p. 11). Dando foco à rede constituída pela metrópole
Fortaleza, observamos que:
A rede da Metrópole de Fortaleza se caracteriza por abarcar diversas Unidades
da Federação, total e parcialmente, situando-se no Ceará, Piauí e Maranhão, che-
gando à parte do oeste pernambucano, Tocantins e Pará. É a quinta colocada em
termos de área, com 765 mil km², e tem sob sua influência 630 Cidades, sendo duas
Capitais Regionais A que também contém Capitais Estaduais, a saber os Arranjos
Populacionais de São Luís/MA e de Teresina/PI. Está entre as Metrópoles com a
menor relação do PIB da Capital quando comparado com o da região (29,9%).
Constitui a rede com o menor PIB per capita do País, de apenas R$ 13.500 anuais.
Subordina, diretamente, além das Capitais mencionadas, um grande núme-
ro de Cidades do próprio Estado do Ceará, que também apresenta duas Capitais
Regionais, uma de nível B (o Arranjo Populacional de Juazeiro do Norte/CE) e uma
C (o Arranjo Populacional de Sobral/CE). (IBGE, 2020, p. 15).

375 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Destacando, assim, a rede urbana funcional constituída pelo Arranjo Populacional
de Sobral, na região Noroeste do estado do Ceará, temos, segundo a REGIC de 2018, a
reafirmação do papel exercido pela cidade de Sobral como Capital Regional C, subordi-
nando cerca de 56 municípios, inclusive, alguns municípios dos estados do Maranhão e
Piauí a exemplo de Parnaíba. Dentre as cidades desse arranjo, destacam-se aquelas clas-
sificadas como centros sub-regionais B, ou seja, Camocim, Crateús, Itapajé, Itapipoca
e Tianguá que passam a ter novas funcionalidades no contexto urbano-regional o
que às diferencia das demais cidades e apontam para as particularidades do processo
de urbanização cearense.
A cidade média de Sobral já tem sido foco de vários estudos no âmbito da Geografia
como os trabalhos de Holanda (2000; 2007; 2011; 2013; 2018), Maria Júnior (2003),
Assis (2010), Assis; Araújo; Gomes (2006/2007), Holanda e Amora (2016), Freire;
Holanda (2011), Sá; Holanda (2017), Lopes; Gonçalves (2020). Contudo, chama atenção
as novas dinâmicas territoriais observadas nessas cidades que exercem o papel de centros

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sub-regionais na rede urbana funcional do Noroeste do estado cuja centralidade é exercida
por Sobral, onde podemos observar essa maior concentração de estabelecimentos, sobre-
tudo, do setor do comércio e serviços (Gráfico 1).

Gráfico 1 - Número de estabelecimentos em razão dos grandes setores econômicos

1 2 - Construção 4- 5-
Município 3 - Comércio Total
-Indústria Civil Serviços Agropecuária
Ce-Itapajé 50 11 135 72 2 270
Ce-Camocim 26 15 281 144 20 486
Ce-Crateús 43 26 352 206 2 629
Ce-Itapipoca 50 14 360 230 5 659
Ce-Tianguá 72 82 453 249 29 885
Ce-Sobral 242 129 1.133 998 7 2.509
Total 483 277 2.714 1.899 65 5.438
Fonte: RAIS/CAGED/MTE (2021).

A rede de relações tecidas por essas cidades nos faz recuperar a fala de Sposito (2009,
p. 13) quando trata do esforço de superação da adoção dos adjetivos pequenas e médias ao
estudo das cidades não-metropolitanas justamente pelo reconhecimento do limite teórico-
-conceitual restrito ao tamanho, ou seja, da frequência maior ou menor do que ocorre nes-
376 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ses lugares, das particularidades de uma realidade que é diversa. Tal debate contribui para
compreensão da problemática urbana desses centros urbanos que não são categorizados
como cidades médias, porém também não podemos denominá-los de meros centros locais.
Dantas (2015) chama atenção, por exemplo, para uma ressignificação das cidades li-
torâneas e submissão a uma ordem do turismo metropolitano, entretanto, novos fatos
geográficos podem ser observados que apontam para uma tendência de autonomia relativa
da região Oeste-Noroeste com a instalação de infraestrutura pelo governo do estado, so-
bretudo, dos municípios com maior aporte de receptivo turístico nacional e internacional.
O município de Jijoca de Jericoacoara, que recebia o grande fluxo turístico nacional e
internacional via Aeroporto Internacional Pinto Martins, em Fortaleza, hoje tem parte o
fluxo direcionado ao Aeroporto Regional de Jericoacoara Comandante Ariston Pessoa, lo-
calizado no município de Cruz e distante cerca de 33 quilômetros da vila de Jericoacoara,
principal destino turístico do litoral Oeste do estado.
O Município de Camocim, por conta da sua localização no extremo Oeste, próximo à
divisa com o estado do Piauí, também recebe turistas desse estado e também do estado do

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Maranhão a partir das rodovias e da organização de atrativos como a praia de Maceió, uma
das mais visitadas e que concentra um conjunto de barracas de praia e passeios de carro nas
dunas e lagoas interdunares. O litoral desse município, reconhecido pela tradição pesquei-
ra e pela função portuária que no passado dinamizou a cidade, hoje é explorado por ex-
cursões e passeios turísticos que buscam enquadrá-lo como extensão do segmento turístico
de Jericoacoara compondo o atrativo turístico institucionalizado como Rota das Emoções.
Não obstante, Camocim também recebeu indústria calçadista (Democrata Calçados) e
Instituições de Ensino Superior com a chegada do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Ceará - Campus Camocim e o anúncio de instalação de um novo campus
da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA. Juntas essas IES irão agregar novos con-
teúdos, que têm inferido novos elementos à dinâmica dessa cidade e em seu papel na rede
de cidades imediatas no Noroeste do estado.
A cidade de Crateús, centro regional tradicional, tem se destacado no contexto do ex-
tremo Oeste do estado pelo reforço na oferta de serviços educacionais com a instalação dos
campi da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do IFCE - Campus Crateús. A Faculdade
de Educação de Crateús (FAEC), incorporada à estrutura da Universidade Estadual do
Ceará (UECE) nos anos 1980, também passa por reforma da estrutura física e tem pers-
pectiva de abertura de novos cursos com a construção de um novo campus 2. Acreditamos
que a dinâmica promovida pelas Instituições de Ensino Superior tem redefinido a funcio-
nalidade de Crateús produzindo novas centralidades cidade e região imediata.
Itapajé e Itapipoca são cidades situadas a uma distância média de 130 quilômetros de
Fortaleza. Os municípios ladeiam o maciço da serra de Uruburetama, estando Itapipoca

377 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
mais ao Norte tocando o litoral e o município de Itapajé mais ao Sul, no fundo de vale
por onde passa a rodovia federal BR-222, numa posição intermediária entre Fortaleza e
Sobral. As cidades de Itapipoca e Itapajé, também têm em comum a trajetória de inte-
riorização da indústria calçadista, sendo que Itapipoca sediou a fábrica da Dass Nordeste
Calçados e Artigos Esportivos S.A., e Itapajé, a Fábrica Paquetá Calçados. O espaço ur-
bano de Itapipoca se destaca por já dispor de equipamentos como hospitais (Hospital e
Maternidade São Vicente de Paulo – Rede São Camilo, Hospital Vida), supermercados
(Pinheiro, Atacadão Jurerê), shopping centers3 e Instituições de Ensino Superior a exemplo
da Faculdade de Educação de Itapipoca – FACEDI, também incorporada à estrutura da
Universidade Estadual do Ceará – UECE nos anos 1980. Porém, em período recente, a

2
Herbster, J. B. (2021). Mais educação para o Sertão: novo campus da Faec/Uece em Crateús vai ampliar
possibilidades de formação. Ensino Superior. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2021/ 05/24/mais-
-educacao-para-o-sertao-novo-campus-da-faec-uece-em-crateus-vai-ampliar-possibilidades-de-formacao/.
Acesso em: 30 dez 2021.
3
Cf. ITAPIPOCA ganha seu primeiro shopping center. Diário do Nordeste. Região. 15 ago. 2002.

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cidade também recebeu o novo campus do Centro Universitário UNINTA4, como exten-
são do grupo educacional privado originário da cidade de Sobral. Vale destacar a oferta do
curso de bacharelado em Medicina dentre os cursos de graduação. Já na cidade de Itapajé,
foi inaugurado recentemente (27 ago. 2021) o campus Jardins de Anita da UFC que pas-
sará a ofertar, de início, cursos de análise de sistemas e ciências de dados.
Há uma expectativa de que a oferta de ensino superior modifique, gradativamente, o
perfil socioeconômico dessas cidades e também tenda a redefinir seu papel funcional na
rede urbana cearense, sobretudo, pela proximidade relativa com a metrópole e para aten-
der à demanda futura de pessoal qualificado do Complexo Industrial e Portuário do Pecém
– CIPP, em São Gonçalo do Amarante. Nesse sentido, a situação geográfica em posição
intermediária dessas cidades entre a Capital Regional C – Sobral e a Metrópole Fortaleza
nos aponta para necessidade de estudos que possam capturar a dinâmica de interações e
práticas espaciais entre essas cidades, isto é, em que medida o processo de metropolização é
mais atuante no transbordamento das ações da metrópole ou é possível identificar o papel
que a cidade média de Sobral tem em sua área de influência.
Tianguá também está localizada no extremo Oeste do estado, na divisa com o esta-
do do Piauí, submetida à rede funcional de Sobral. A cidade mostra-se a mais dinâmica
dentre as cidades situadas no topo da Serra da Ibiapaba. Além da área central de comércio
tradicional que incorpora o comércio varejista lojas de eletrodomésticos e roupas (Lojas
Zenir, Esplanada), novas formas comerciais têm surgido a exemplo do Supermercado
Frangolândia situado às margens da BR-116 e o Ibiapaba Shopping, inaugurado em abril
de 20175. A cidade também sedia uma unidade do Central de Abastecimento do Ceará
378 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

S/A. (CEASA), importante entreposto de comercialização de hortifrutigranjeiros produzi-


dos na serra. Importante ressaltar a presença de filiais de clínicas de realização de consultas
médicas e exames de Sobral que se instalaram na cidade que ainda sedia um Campus do
IFCE e da Faculdade FIED/UNINTA, além de polos de EaD de diversos grupos educa-
cionais privados do eixo Sudeste/Sul do país.
Quanto à cidade média de Sobral, sua centralidade é reforçada no período atual, sem
perder dinamismo frente às cidades de sua área de influência. A cidade já contava desde

4
O Centro Universitário UNINTA também irá abrir um campus em Fortaleza com previsão de funciona-
mento em 2022. Cf. Serpa, M. (2021). Faculdade Uninta terá campus em Fortaleza localizado na antiga
Etna. Jornal O Povo, Notícias. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/ 2021/11/24/
centro-universitario-uninta-tera-campus-em-fortaleza-localizado-na-antiga-etna.html. Acesso em 31 dez.
2021.
5
O deputado Gony Arruda (PSD) registrou na sessão plenária ocorrida no dia 03/05/2017, a inauguração
do empreendimento Ibiapaba Shopping, no município de Tianguá, ocorrido no dia 28/04/2017. Disponível
em: https://www.al.ce.gov.br/index.php/pronunciamentos-ordem-do-dia/item/63729-0305rg-od-gony-
arruda. Acesso em: 31 dez. 2021.

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2013 com um shopping center (North Shopping Sobral) que tem passado por expansões de
sua área locável, e unidades de supermercados (Rede Lagoa e Pinheiro Supermercados).
Posteriormente, Sobral recebeu unidades de grandes redes de comércio atacadista nacio-
nais (Atacadão e Assai). Um novo empreendimento foi inaugurado em 12 de agosto de
2021 (Mix Atacarejo)6. A cidade também tem tradição na produção industrial e na oferta
do ensino superior, sediando campi de várias Instituições de Ensino Superior (UVA, UFC,
IFCE, UNINTA), e registra-se a instalação de empreendimentos educacionais a exemplo
da Faculdade Luciano Feijão, inaugurada em 2016.
A dinâmica econômica e urbana manifestada pelos centros sub-regionais brevemente
descritos com a instalação de infraestruturas e de novas formas comerciais como super-
mercados, shoppings, serviços médicos e educacionais como hospitais, clínicas médicas e
Instituições de Ensino Superior públicas e privadas, tem despertado o interesse em pesqui-
sar essas novas centralidades e dinâmicas territoriais geradas pela renovação do comércio
e serviços nessas cidades. O que nos permite gerar algumas questões norteadoras para a
problemática da pesquisa: A expansão urbana das cidades em foco está relacionada ao
papel de comando de Sobral? Quais setores econômicos têm contribuído para o desenvol-
vimento econômico desses municípios? Como o setor terciário (comércio e serviços) tem
influenciado a produção do espaço urbano dessas cidades? Em que medida essas cidades
passam por reestruturação urbana para atender à instalação de novas formas de comércio
e se redefinem novos padrões de consumo? Novas dinâmicas territoriais e novas centra-
lidades são geradas em razão da instalação de empreendimentos comerciais e de serviços
médicos, educacionais? A instalação dessas novas formas tende a alterar o papel funcional

379 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
dessas cidades no contexto da rede urbana do arranjo populacional de Sobral? Acreditamos
que o desenvolvimento da pesquisa possibilitou apontar o que é geral e o que é particular
no processo de urbanização cearense contemporânea mediada pela expansão do terciário e
dar uma contribuição ao entendimento da rede urbana cearense no período atual.

Considerações finais

O papel exercido pelo terciário (comércio e serviços) tem sido importante na dinâmica
dessas cidades, sobretudo, da cidade média de Sobral que tem a primazia da dinâmica comer-
cial da região. Contudo, outras cidades como Crateús, Tianguá, Camocim, Itapipoca e Itapajé
têm assumido novos papéis no contexto urbano-regional contemporâneo e essas mudanças

6
Cf. Cavalcante, B. (2021). Grupo Mateus inaugura atacarejo em Sobral, a segunda loja no Ceará. Jornal
O Povo, Economia. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/economia/ 2021/08/09/grupo-
mateus-inaugura-loja-em-sobral-a-segunda-no-ceara.html. Acesso em: 31 dez 2021.

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podem ser constatadas pela expansão urbana com a construção de novas infraestruturas, lotea-
mentos e a instalação de novas formas de comércio a exemplo de supermercados, hipermerca-
dos, atacarejos, shopping centers, e de equipamentos de serviços que antes não estavam presentes
nesse conjunto de cidades como clínicas médicas, universidades públicas e privadas, empresas
de informática e de internet que têm promovido novas centralidades e novas dinâmicas terri-
toriais redefinindo o papel de influência dessas cidades na rede urbana no Noroeste cearense.
O crescimento urbano e incorporação de novas formas comerciais constitui outro
desafio para o ordenamento urbano dessas cidades e dos fluxos gerados com a dinâmica
intraurbana promovida por shopping centers, centros comerciais, hipermercados acompa-
nhados de lojas comerciais, consultórios médicos, odontológicos que tendem a mudar a
lógica do consumo local dando outra dinâmica ao consumo urbano.
A dinâmica comercial e de serviços dessas cidades nos desafia a estruturar outros passos
para pesquisa como suas implicações no planejamento territorial, nos planos urbanísticos
dessas cidades que passam a reordenar as atividades comerciais tradicionais como a feira,
o mercado, a rua do comércio, das lojas, no centro da cidade carregadas de simbolismo e
identidade com o local, enfrentando a resistências e o conflito com permissionários, lojis-
tas e usuários mediante novas ocupações, usos e convivências de novas formas comerciais
que se instalam na cidade.

Referências Bibliográficas

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380 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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381 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Gestão Ambiental (SGA): tecendo elos
na cadeia produtiva das fábricas
de calçados em Campina Grande –PB na
perspectiva do desenvolvimento sustentável

Samara de Souto Antero1


Ângela Maria Cavalcanti2
Cidoval Morais de Sousa3

Introdução

O presente estudo busca dialogar sob diversas perspectivas, sobre o mercado coureiro
calçadista alocado em Campina Grande/Paraíba. A partir da integração do tema desenvol-
vimento sustentável, desempenho ambiental das fábricas de calçados e demais integrantes
dessa cadeia produtiva, é possível enxergar um cenário de resistência e de iniciativas pri-
vadas para permanência competitiva das empresas na cobrança global por ecoeficiência.

383 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Quando Dias (2011), resgata o objetivo inicial dos encontros mundiais para debate e
análise crítica com enfoque numa economia global sustentável, ele traz que o foco destes
debates é “proporcionar os conhecimentos fundamentais das ciências naturais e das ciên-
cias sociais necessários para a utilização racional e a conservação dos recursos da Biosfera e
para o melhoramento da relação global entre o homem e o meio, assim como para prever
as consequências das ações de hoje sobre o mundo de amanhã, aumentando assim a capa-
cidade do homem para ordenar eficazmente os recursos naturais da Biosfera.”
Ainda que o texto venha esclarecer sobre o maior enfoque dado à década de 70 para
os assuntos correlatos da produção racional e sustentável, trata-se de um tema ainda negli-
genciado principalmente em países classificados como subdesenvolvidos.
“Organismos internacionais, como o Banco Mundial, a Organização Mundial do
Comércio (OMC), as Organização das Nações Unidas (ONU), prescrevem, com maior

1
Mestranda do PPGDR – UEPB - samara.souto.antero@aluno.uepb.edu.br
2
Professora do PPGDR- UEPB - angela@servidor.uepb.edu.br
3
Professor do PPGDR – UEPB - cidoval@servidor.uepb.edu.br

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ênfase nas duas últimas décadas, aos países considerados “subdesenvolvidos ou em de-
senvolvimento” indicações e determinações com o objetivo, em princípio, de resolver os
problemas da desigualdade econômica dos e entre os países. Entre as prescrições, identifi-
ca-se a adesão ao capital externo, reiterando a possibilidade de um desenvolvimento sus-
tentável que compatibilize crescimento econômico, desenvolvimento humano e qualidade
ambiental” (FREITAS at al. 2021)
Ao comparar as indicações realizadas no Programa MAB de 1971, patrocinado pela
UNESCO, e ao ler o consenso dos organismos internacionais atuais citados no parágrafo
anterior, apontando o pensamento comum ao qual as nações devem perseguir de que o
desenvolvimento deve ser ladeado pela atenção à qualidade do desenvolvimento humano
e do meio ambiente, por serem totalmente indissociáveis, percebe-se que o dito óbvio
ainda que repetido década após década não fora assimilado e posto em prática pelas polí-
ticas públicas praticadas principalmente nos países com a economia flutuante na zona de
subdesenvolvimento.
Trazendo o recorte para uma esfera reduzida do objeto de estudo já citado, serão
realizados o referenciamento sócio geográfico da cidade Campina Grande, bem como a
fundamentação teórica acerca da PNRS - Política Nacional de Resíduos Sólidos, Sistema
de Gestão Ambiental, Economia Circular, Exemplos distintos da boa prática de EC e da
negligência à temática abordada neste artigo dentro da conjuntura da cadeia produtiva de
calçados estudada, e considerações.

Atividade Coureiro Calçadista e Campina Grande


384 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

O setor calçadista brasileiro tem destaque mundial por sua produção que atende ao
consumo interno e também se destina à exportação. Segundo a Abicalçados - Associação
Brasileira das Indústrias de Calçados, que possui em sua relação de indústrias associadas,
empresas de todos os portes e de todos os estados brasileiros, relata que em 2019 o Brasil
foi o quarto maior produtor de calçados do mundo, e em seu levantamento dos anos
2017-2018, também se equivale ao 4º maior consumidor de calçados do mundo. Para
atualizar o panorama do setor ao passar pelo período pandêmico, a sua atuação tradi-
cional precisou se reinventar, e assimilar como ferramenta primordial para não chegar à
falência, a presença digital para impulsionar a marca, e também para manter e ampliar
as vendas.
A baixa performance ambiental das pequenas e médias indústrias de forma generali-
zada no Brasil, é rapidamente detectada após a realização de um diagnóstico para aferição
do seu modus operandi na sistematização, planejamento e controle da produção de bens
materiais, em relação ao gerenciamento de resíduos em seus processos.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 384 20/06/2023 16:46:41


Este estudo trata especialmente do cenário apresentado pela produção de calçados na
cidade Campina Grande, no estado Paraíba, cuja produção anual de calçados arrecadou
o montante de US$30,5 no período de janeiro a julho do ano 2020, deixando claro a sua
importância para a economia da Paraíba e também para a região Nordeste. As exporta-
ções de calçados de Campina Grande ultrapassam 95% da exportação total do município
paraibano.
Campina Grande é histórica e culturalmente, uma cidade que conta com a presença de
toda a cadeia produtiva para fabricação de calçados, é possível encontrar na cidade, desde
os insumos necessários à fabricação de calçados, até uma considerável gama de diferentes
segmentos do produto final: calçados de segurança, calçados infantis, calçados artesanais,
calçados esportivos e femininos, como também outros derivados como bolsas, mochilas,
cintos e demais opções de produtos que tenham um processo produtivo semelhante em
insumos e processos, que possam coabitar o mesmo espaço, utilizando o mesmo maquiná-
rio e força de trabalho nas fábricas locais.
Tomando como ponto de partida, para realizar o levantamento acerca da estrutura,
gestão e esforços visando boas práticas em torno da sustentabilidade do setor produtivo es-
tudado, foi identificado que as Indústrias de calçados locais, apresentam baixa performan-
ce ambiental, e dentre os pontos ressaltados como entraves à gestão ambiental nas fábricas,
o fator principal detectado foi o de as consultorias e implementação de SGA-Sistema de
Gestão Ambiental necessitarem investimentos dispendiosos, os quais, muitos empresários
não possuem em reserva, ou ainda não sentem confiança no retorno do investimento em
gestão ambiental.

385 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Em um segundo paradigma levantado pelo artigo, foi identificado que o setor tem
forte presença familiar na gestão das indústrias, ocorrendo muitas vezes uma gestão com
base no repasse de conhecimento de forma empírica. E esse repasse de estratégias e modo
de gerir as fábricas, muitas vezes culturalmente, segue uma linha de raciocínio onde o
investimento em gestão ambiental não é urgente, logo, não prioriza-se a capacitação da
gestão e da força produtiva como um todo, para uma adaptação preocupada com a susten-
tabilidade, com o meio ambiente, e também com as possibilidades de implementação de
uma economia circular, ou em uma escala mais prática, da realização de logística reversa
para otimização da utilização de insumos e da gestão adequada do descarte dos resíduos
fabris.

Política Nacional de Resíduos Sólidos

O Brasil institui a partir da LEI 12.305/10, uma Política Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS), a qual engloba programas que incentivam a prevenção e a redução de resíduos. A

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Lei busca orientar a população para a responsabilidade coletiva sobre a produção de lixo,
cobrando a conscientização comum ao industrial, ao fornecedor de insumos, aos comer-
ciantes e consumidores do produto final, para fazer chegar ao consenso de uma utilização
consciente dos bens materiais, do reuso, da reciclagem e do descarte adequado dos rejeitos.
A PNRS cobra o posicionamento dos órgãos setoriais no tocante à sua organização e
compromisso objetivando elevar o percentual de implantação da logística reversa, sempre
que possível. Em outras e também nessa etapa, inclui em suas diretrizes a importante parti-
cipação dos catadores, enquanto agentes de transformação, na captação dos resíduos e des-
tinação dos mesmos, de forma orientada ao reaproveitamento máximo destes, bem como
no trabalho que previne o aumento do volume jogados nos lixões e aterros sanitários.
O artigo trata ainda, das especificações que devem ser atendidas pelas cooperativas
e associações de catadores, para que possam integrar o Programa. Dentre as exigências,
é obrigatória a formalização enquanto pessoa jurídica, e a capacidade física e de traba-
lho para realizar a devida triagem, classificação e destinação ambientalmente adequada
dos resíduos sólidos que por muitos motivos, não puderam entrar na escala de reuso ou
reciclagem.
Voltando ao setor calçadista, é previsto pela PNRS, que haja de forma setorial um só
plano para gestão de resíduos sólidos, estando este, em obrigação junto ao órgão municipal
competente de anualmente apresentar o relatório contendo informações das ações atuali-
zadas sobre a operacionalização e sobre o planejamento de sua responsabilidade, de acordo
com o regimento do Ministério do Meio Ambiente.
Para fins de esclarecimento, as pequenas e médias empresas, que gerem até 200 litros
386 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de resíduos por dia, ficam legalmente equiparadas à produção de resíduos residencial,


sendo dispensadas da apresentação de um plano para gestão de resíduos. Ainda que as
micro e pequenas empresas gerem resíduos perigosos, o Ministério do Meio Ambiente
considera que estão desobrigadas de apresentar o relatório anual, as empresas que em seu
volume total, gerem o percentual de 95% ou mais, de resíduos não perigosos dentre o todo
de resíduos gerados.
Compreendendo as indústrias de calçados que trabalham em escala maior na produ-
ção de resíduos perigosos, há obrigatoriedade de fornecer ao SINIR – Sistema Nacional de
Informações Sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos, um inventário onde constem a quan-
tidade e o fluxo dos materiais, bem como um relatório detalhado de como é utilizado,
descartado, ou como interage dentro de um programa de logística reversa. Da perspectiva
da gestão das pequenas fábricas locais, e da política pública praticada em torno do setor
estudado, não existe no momento presente, esse reporte de dados e relatórios por parte
das fábricas de calçados de Campina Grande, sendo possível identificar que o modelo
de gestão real está distante da gestão ideal conceituada pela PNRS e dialogada dentre os

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setores públicos que criam as regras e padrões dos modelos a serem seguidos pelas indús-
trias nacionais.

Sistema de Gestão Ambiental

Um sistema de gestão ambiental, tem como objetivo avaliar os impactos ambientais


de determinada atividade econômica, bem como atualizar a organização dos impactos
associados à atividade.
“A norma ISO 14001 foi publicada em setembro de 1996, compreendendo especifi-
cações normativas acordadas internacionalmente e estabelecendo critérios de gestão am-
biental compatíveis com um sistema de gerenciamento voltado à viabilidade da produção
ecologicamente correta e à indução de uma cultura participativa baseada na aprendizagem
organizacional, na disseminação de valores ambientais e na sustentabilidade dos recursos
naturais [Maimon,1999; Valle, 1996; D’Avignon, 1996; e Scherer, 1998 Apud Cristiano
Hugo Cagnin 2000].
Para implementação de um SGA, a empresa precisa compreender que além de uma
exigência de mercado cada vez mais presente, um SGA consiste também numa inovação
de ordem ambiental e estratégica para a organização. Sendo sua implementação uma ini-
ciativa autônoma por parte das empresas, cabendo a estas utilizar do marketing possível,
ou não, buscando com tal modus operandi adaptar-se ao modelo de melhoria contínua.
A literatura e até mesmo o mercado já consideram a gestão por meio dos SGA um
acréscimo além de benéfico ambiental e econômico, uma forte estratégia de mercado.

387 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Podendo ser explorado pelo chamado “marketing verde”, que enxerga na atuação respon-
sável e sustentável o viés de destaque positivo perante a sociedade globalizada e exigente
quanto às práticas dos fornecedores de bens materiais. Assim, além de adicionar um SGA,
a empresa deve divulgar sua operação e os benefícios ao público interno e externo, advin-
dos de tal inovação.

Economia Circular

“A Economia Circular apresenta-se como um modelo que otimiza o fluxo de bens, ma-
ximizando o aproveitamento dos recursos naturais e minimizando a produção de resíduos.
Este modelo permite a maximização do valor económico do produto.” Leitão (2015). Tal
modelo econômico, salta do conceito de economia linear que prevê o fim do ciclo de vida
do bem material com o seu descarte, e visa promover o beneficiamento do resíduo para
que este volte ao topo da cadeia produtiva, com o valor agregado da economia reversa.
Contudo, é importante atentar que o modelo EC, faz da “meia vida” do bem de consumo,

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uma vida mais longa, cujo objetivo é o aproveitamento máximo e por mais tempo dos bens
produzidos pela indústria.
Na perspectiva do mercado local, não tem sido divulgadas práticas que apontem para a
incorporação da EC nas operações de fabricação e nas relações das indústrias junto às em-
presas ou cooperativas de coleta seletiva, ou ainda com pontos para descarte de produtos
para logística reversa e reaproveitamento na matriz produtiva. Por outro lado, há dentre
as indústrias que utilizam material reciclável como matéria prima, na cidade de Campina
Grande, um caso em destaque, visto na sessão seguinte.

Elos da Cadeia Produtiva de Calçados em Campina Grande - PB

Para aproximar o leitor dos casos em observância e estudo dentro da atividade econô-
mica estudada, são trazidos à tona dois casos distintos encontrados no Arranjo Produtivo
de Calçados de Campina Grande. Sendo o primeiro um caso positivo das teorias e práticas
apontadas nesse artigo como as ideais, para a atuação das fábricas de calçados do APL
campinense.
A partir dos resíduos de uma fábrica de calçados de grande porte atuante na cidade
de Campina Grande, um empreendedor inovou ao pesquisar e concretizar o reaproveita-
mento da borracha residual em um novo produto inovador e já patenteado: o pneu que
não fura. Tal pneu, destina-se ao uso em carros de mão utilizados em grande escala na
construção civil para transporte de materiais dentro dos canteiros de obras.
O empreendedor em destaque, por já trabalhar com produtos sustentáveis que apro-
388 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

veitam matéria prima reciclada de garrafas pet, viu no grande volume de borracha residual
da fabricação de calçados uma oportunidade de insumo com menor custo, porém com
qualidade suficiente para ofertar ao mercado consumidor um novo produto com capaci-
dade expandida de vida útil, e inclusive garantia de maior potência para transporte de até
200kg e garantia de seis meses. Além da prática da economia circular, o empreendedor
utiliza a sustentabilidade como estratégia comercial, agregando maior valor ao seu produto
no mercado cada vez mais atento à tal prática.
Ainda sobre o empreendimento, a iniciativa para produção dos pneus sustentáveis, é
de ordem privada, cujo autor do feito buscou em muito o suporte das políticas públicas
vigentes para desenvolvimento de seu projeto e não obteve êxito.
Dentre os casos observados na cidade, que vão na contramão das práticas recomenda-
das para gestão ambiental fabril, é possível demonstrar o caso ocorrido em abril de 2022,
numa fábrica de calçados de médio porte, localizada junto ao parque fabril de calçados de
Campina Grande que tornou-se noticia em jornais locais pela ocorrência de um incêndio
em suas dependências.

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Ao contrário das práticas de gestão ambiental, de um SGA, da promoção da economia
circular e das boas práticas no descarte dos resíduos fabris, houve a acumulação de resíduos
da produção de calçados, sendo estes altamente inflamáveis: plástico, borracha, líquidos
inflamáveis como cola e tinta etc.
Nessa perspectiva, de perdas materiais pela falta de gestão ambiental, gestão de resí-
duos e descontrole no acúmulo de materiais inflamáveis por falta de um SGA, é possível
exemplificar o que são passivos ambientais, tema atual de estudos sobre gestão ambiental,
que fala segundo Ferreira & Bufonni (2006), que se tratam de obrigações contraídas vo-
luntária ou involuntariamente, destinadas ao controle, preservação ou recuperação am-
biental. E para arcar com as despesas citadas, haverá uma despesa ambiental.

Pensamento crítico acerca da sustentabilidade empresarial

Tomando a obra e vida do autor Ignacy Sachs, na defesa por uma gestão em termos
gerais, que considere o pensamento crítico do relacionamento entre sociedade, economia
e meio ambiente a premissa para o equilíbrio e para a sustentabilidade da vida e do planeta
como um organismo indivisível. O autor em seu pioneirismo, conferindo real importância
de que o crescimento econômico seja amparado e ladeado pela distribuição social, como
também pela necessidade de respeitar a natureza.
Sachs, propõe que as indústrias comecem a tratar o processo fabril considerando a
relação com o Sol e a Terra, que são base de todos os insumos, indo até o trato com o lixo.
A proposição é de que as indústrias pratiquem a visão integral dos processos produtivos,

389 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
visão essa, que mesmo com a disseminação da informação e da urgência por processos
sustentáveis, é falha e pouco usual no mercado capitalista prevalecente.
Quando a escola e a economia ensinam a otimizar recursos e aumentar o lucro, ela não
chama a atenção para as críticas cabíveis ao processo de desenvolvimento. Independente
da dimensão da unidade fabril, a sustentabilidade ecológica, deve permear e orientar os
processos de fabricação desde a aquisição dos insumos até a distribuição do produto final.
Esse contexto tratado por Ignacy Sachs, revolve em uma instância mais básica ao con-
ceito de produção mais limpa, e tem seu ápice de conjunção no conceito de economia
circular.
“No Brasil, segundo relatório “o Estado Real das Águas no Brasil – 2003/2004”, ela-
borado pela Defensoria das Águas, a contaminação das águas de rios, lagos e lagoas quin-
tuplicou entre os anos 1993 e 2004. Esse relatório foi realizado a partir do mapeamento
de 35 mil denúncias de agressão ao meio ambiente e ações civis públicas que já receberam
sentença judicial.” (Reinaldo Dias 2011) O relatório deixa claro que a principal fonte de
contaminação identificada, provém das atividades da agroindústria e industrias de modo

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 389 20/06/2023 16:46:41


geral, sendo estas, responsáveis também pelo consumo aproximado de 90% da água, que
após seu uso é devolvida à natureza contaminada.
É necessário observar, que de forma multidisciplinar e sob vários ângulos a gestão
ambiental fabril é urgente, e por esforços ineficientes têm sido executada de forma falha ou
inexistente, a título de políticas públicas para fiscalizar e acompanhar os principais agentes
poluidores identificados desde a I Guerra Mundial: as indústrias.

Considerações

Tomando como ponto de partida, para realizar o levantamento acerca da estrutura,


gestão e esforços visando boas práticas em torno da sustentabilidade do setor produtivo es-
tudado, foi identificado que as Indústrias de calçados locais, apresentam baixa performan-
ce ambiental, e dentre os pontos ressaltados como entraves à gestão ambiental nas fábricas,
o fator principal detectado foi o de as consultorias e implementação de SGA-Sistema de
Gestão Ambiental necessitarem investimentos dispendiosos, os quais, muitos empresários
não possuem em reserva, ou ainda não sentem confiança no retorno do investimento em
gestão ambiental.
O artigo apresenta uma contextualização sucinta do cenário da gestão ambiental pra-
ticada hoje no APL de Calçados de Campina Grande, e para isso é importante percorrer a
teorização aqui realizada, capaz de promover uma visão interdisciplinar das questões que
afastam o setor produtivo estudado da atualização e otimização na gestão para sustentabi-
lidade e para cuidados ao meio ambiente.
390 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Conscientes de que dentre tantas teorias, é importante compreender que sustenta-


bilidade fala de produzir sem promover a escassez ou a degradação, para que haja conti-
nuidade dos processos produtivos, e da manutenção das melhores condições de vida para
a geração presente e gerações futuras da humanidade, o esforço há de ser realizado com
urgência para adequação às normas, e aos processos produtivos e de descarte conscientes
e saudáveis.
O SGA é a ferramenta capaz de promover o processo de melhoria contínua na gestão
ambiental industrial, de aumentar os índices de sustentabilidade e de evoluir ao modelo
de economia circular. Porém com a simplicidade alcançada na implementação dos 3 Rs
da Sustentabilidade: Reduzir, Reciclar e Reutilizar, também é possível elevar o nível de
desempenho ambiental das indústrias de portes pequeno e médio, seja da área geográfica
citada e estudada nesse artigo ou dos demais estados do Brasil.
Para sugerir ações concretas de impacto positivo, a partir da discussão aqui em-
preendida, é válido apontar a importância de parcerias estratégicas para descarte res-
ponsável com cooperativas de catadores, cooperativas de artesãos, realização de venda

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conjunta do APL para usinas de reciclagem (em movimento similar ao dos clusters
na obtenção de vantagens coletivas), e demais ações pensadas coletivamente junto a
academia, na propositura de projetos com o cunho de apropriação social dos estudos
e pesquisas acadêmicas.

Resumo

O artigo objetiva apresentar uma visão integrativa do setor calçadista no tocante ao trato da
gestão ambiental, produção mais limpa e sustentabilidade. Esse estudo relata ainda qual a parti-
cipação da governança pública e entidades de fomento à indústria na orientação, atuação e fis-
calização tendo em vista balizar as ações público privadas que permeiam o setor produtivo. Em
demonstração à relevância científico-socioeconômica do artigo, é destacada a informação acerca da
produção anual de calçados que arrecadou o montante de US$30,5 no período de janeiro a julho
do ano 2020, deixando claro a sua importância para a economia da Paraíba e também para a região
Nordeste do país. O setor calçadista brasileiro tem destaque mundial por sua produção para con-
sumo interno e exportação. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados, que possui
empresas associadas em todo Brasil, em 2019 o país foi o quarto maior produtor de calçados do
mundo, e também o quarto maior consumidor de calçados. A baixa performance ambiental entre
as indústrias calçadistas de menor porte, é rapidamente detectada após o diagnóstico da gestão de
resíduos dos processos fabris, visto que a Política Nacional de Resíduos Sólidos torna flexível o trato
com os resíduos considerados não perigosos, e as políticas públicas não acompanham de forma mais
rigorosa a gestão destes na esfera municipal. A metodologia da pesquisa em função dos objetivos
é exploratória com abordagem quanti-qualitativa, possibilitando o levantamento da conjuntura e
de ações para gestão ambiental empreendidas pelas indústrias calçadistas de Campina Grande-PB,
permitindo maior compreensão da realidade vivenciada.

391 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Palavras- Chave: Gestão Ambiental. Industria Calçadista. Meio Ambiente.

Referências Bibliográficas

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de um sistema de gestão ambiental com base na norma ISO 14001
BUFONNI, A.L. FERREIRA, A.C. A assimetria informacional do risco ambiental nas demons-
trações financeiras: um estudo comparativo Brasil X Eua. Pensar contábil, v. 8, n.31, p. 1-11,
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CAPORALI, Renato. AMORIM, Marcio Guerra. (2014) Desenvolvimento, Inovação e
Sustentabilidade: contribuições de Ignacy Sachs. Editora Garamond Universitária.
DIAS, Reinaldo. 2011. Gestão Ambiental - Responsabilidade e Sustentabilidade. Editora Atlas.
FREITAS, Rosana de Carvalho Martinelli. NELSIS, Camila Magalhães. NUNES, Letícia Soares. A
crítica marxista ao desenvolvimento (in)sustentável. Revista Katálysis [online]. 2012, v. 15, n.
1 [Acessado 28 setembro 2022], pp. 41-51. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1414-
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S1414-49802012000100004.)

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 391 20/06/2023 16:46:41


LEITÃO, Alexandra. 2015. Economia circular: uma nova filosofia de gestão para o séc. XXI.
Acessado em 13 de abril de 2022, às 17h em https://books.google.com.br/books?hl=p-
t-BR&lr=&id=efSJDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT8&dq=economia+circular+conceito&o-
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Política Nacional de Resíduos Sólidos. 2016. Acessada em 10 de agosto de 2022, às 20h em http://
www.ibama.gov.br/residuos/controle-de-residuos/politica-nacional-de-residuos-solidos-pnrs
392 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Neoliberalização do espaço na região
metropolitana de Fortaleza (RMF)

Cleiton Marinho Lima Nogueira1

Espaços Metropolitanos, Globalização e Neoliberalização

Os espaços metropolitanos são caracterizados por uma notória complexidade, que


emerge da forte aglomeração humana, de infraestruturas, de investimentos e das diversas
atividades estabelecidas em uma determinada fração do espaço geográfico, intensamente
urbanizado e detentor de significativas diferenciações internas. Um dos seus mais notórios
atributos é a presença de extensas manchas de urbanização contínua que se prolongam e
atravessam os limites dos territórios políticos-administrativos que dividem esses espaços2.
O gigantismo dos espaços metropolitanos é, ao mesmo tempo, causa e expressão do
seu significativo grau de atração sobre os indivíduos e grupos que vislumbram na situação

393 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
metropolitana a maior possibilidade de satisfação das suas necessidades, e que através de
suas ações também colaboram para a permanente transformação desses espaços. Esses, sem
dúvidas, são ambientes profícuos para a realização de encontros e interações humanas,
mediadas pelo mercado ou espontâneas, constituindo-se locais propícios à inovação, à
competitividade e/ou à colaboração. Desse modo, são nesses espaços onde se concentram
os mais importantes processos de produção, circulação e consumo da economia mundial.
De maneira geral, pode-se dizer que o nível de dinamismo das diversas atividades
nos espaços metropolitanos está intimamente associado às suas formas de integração aos
movimentos de acumulação capitalista, em diferentes escalas. Essas formas de integra-
ção também condicionam e estabelecem a sua capacidade de atração e emissão de fluxos

1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE - cleitonmarinho10@gmail.com
2
Embora a existência de manchas de urbanização contínua (conurbação) e de uma elevada artificialização
das paisagens seja uma das principais características dos espaços metropolitanos, essa característica não é
condição imprescindível para se identificar núcleos urbanos como integrantes desses espaços. Dentro de um
espaço metropolitano podem existir manchas de ruralidade, denotando formas de uso que aparentemente
não são urbanos, mas, em muitos casos, são, na realidade, terras reservadas para especulação imobiliária.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 393 20/06/2023 16:46:41


(investimentos, informação, mercadorias e pessoas), assim como também o ritmo de seu
crescimento e das transformações em suas configurações espaciais.
Nesse sentido, também se pode identificar a existência de hierarquias entre os espaços
metropolitanos. Aqueles espaços que apresentam maior concentração de capitais (finan-
ceiro, físico e humano) estão em posição hierarquicamente superior e, desse modo, pro-
piciam maiores oportunidades para efetivação de diversas trocas – materiais e imateriais.
Nas últimas décadas do século XX, os espaços metropolitanos passaram a evidenciar
profundas e aceleradas transformações em suas bases econômicas e seus mercados de tra-
balho, nos arranjos político-institucionais, assim como na configuração espacial do seu
ambiente construído. Esse conjunto articulado de mudanças é comumente interpretado
como uma necessária condição e expressão de um processo mais amplo, usualmente inti-
tulado globalização.
O conceito de globalização tem sido largamente utilizado, desde a década de 1980,
para caracterizar transformações político-econômico-culturais que emergiram na esteira
da desregulamentação/financeirização da economia, do crescimento da importância das
tecnologias da informação e comunicação e da consequente ampliação das trocas (finan-
ceiras, tecnológicas, de matéria-prima e força de trabalho e informação) em escala global3
Nesse contexto, o termo globalização se difundiu rapidamente no âmbito científico, nos
veículos de comunicação e no senso comum como forma de denominar a rápida redefini-
ção das formas de organização espaço-temporais no capitalismo a partir do final do século
XX, sendo frequentemente apresentado como um processo quase “natural” e irreversível
nas economias de mercado.
394 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Para Harvey (2006b), um dos mais destacados críticos ao referido processo, a globali-
zação não traz novidades no que se refere à lógica capitalista vigente desde o século XIX.
Segundo o autor, não houve
[...] uma revolução fundamental do modo de produção e das relações a ele vin-
culadas, e que, se há alguma real tendência qualitativa, seu rumo é no sentido da
reafirmação dos valores capitalistas do início do século XIX, associada a uma incli-
nação típica do século XXI no sentido de jogar todos (e tudo que possa ser trocado)
na órbita do capital, ao mesmo tempo em que se tornam grandes segmentos da
população mundial permanentemente redundantes no tocante à dinâmica básica da
acumulação do capital (p. 98, grifo nosso).

3
De acordo com Chesnais (1996, p. 23), “o adjetivo globalização surgiu no começo dos anos 80, nas grandes
escolas americanas de administração de empresas, as celebres ‘business management schools’ de Harvad,
Columbia, Standford etc”.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 394 20/06/2023 16:46:42


Em síntese, para Harvey (2006b, p. 81), o termo globalização é utilizado para designar
quatro alterações nas sociedades capitalistas no final do século XX: 1) desregulamentação
financeira; 2) ondas profundas de inovação tecnológica e de inovação e melhoria de pro-
dutos; 3) mudanças da mídia e da comunicação, que por sua vez produziram mudanças no
consumo e na produção; 4) diminuição no custo de tempo de transporte de mercadorias.
Do ponto de vista político-ideológico, o projeto da globalização tem sido favorecido
pelas formulações teóricas neoliberais. Tais ideias passaram a circular em muitos veículos
de comunicação especializados e a fundamentar os discursos de importantes líderes mun-
diais e instituições multilaterais4. De acordo com Peck e Tickell (2002),
Neoliberalism has provided a kind of operating framework or “ideological sof-
tware” for competitive globalization, inspiring and imposing far-reaching programs
of state restructuring and rescaling across a wide range of national and local contexts.
Crucially, its premises also established the ground rules for global lending agencies
operating in the crisis-torn economies of Asia, Africa, Latin America, and the former
Soviet Union, where new forms of “free-market” dirigisme have been constructed.
Indeed, proselytizing the virtues of free trade, flexible labor, and active individua-
lism has become so commonplace in contemporary politics – from Washington to
Moscow – that they hardly even warrant a comment in many quarters . (PECK &2

Tickell, 2002, p.1).

Para Harvey (2011), o neoliberalismo é


[...] em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe

395 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e
capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional
caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livres co-
mércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada
a essa prática (p. 12).

A retórica fundante dos discursos neoliberais enfatiza a defesa das liberdades indi-
viduais e uma forte confiança nas forças do mercado, e entende que através do seu livre
funcionamento, sem intervenção do Estado, seriam encontradas as condições ideais para
a alocação dos investimentos e recursos disponíveis para a sociedade. Sendo assim, essa
concepção de mundo deposita uma grande confiança nas relações de mercado como re-
guladoras e mediadoras das atividades humanas. Desse modo, essa perspectiva reitera,

4
Tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID).

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no plano dos discursos, a defesa das liberdades individuais e a democracia como valores
importantes, embora sua prática tenha-se mostrado em diversos momentos contraditória
e em sentido oposto aos valores propagados.
Nesse contexto, o ataque ao Estado e as experiências socialistas realizadas no oriente
foram e são utilizadas como exemplos negativos da centralização do poder do Estado e sua
intervenção na economia. E até mesmo as crises econômicas dentro da própria economia
capitalista tiveram suas causas atribuídas à ineficiência dos Estados interventores. Para os
teóricos neoliberais, as práticas políticas de intervenção na economia são ineficientes e
seriam as principais responsáveis pela geração de crises, na medida em que promovem dis-
torções nos mercados, mediante o excesso de regulações, que na verdade, seriam barreiras
para o desenvolvimento das empresas. Entre essas barreiras, as mais criticadas são elevados
impostos sobre as empresas, ineficiência dos serviços públicos prestados, excesso de leis
trabalhistas e aumento do custo da força de trabalho.
Desse modo, para os teóricos neoliberais, só um mercado livre da intervenção esta-
tal poderia garantir maior eficiência econômica e assegurar a distribuição de recursos de
maneira mais justa, com base no mérito daqueles indivíduos e empresas mais capazes e
eficientes. Caberia ao Estado garantir um ambiente de maior liberdade e favorável ao de-
senvolvimento dos negócios objetivando a captação de novos investimentos.
De acordo com Theodore, Peck e Brenner (2009, p. 2), entre as principais medidas de
orientação neoliberal, a partir do final do século XX, destacam-se
La desregulación del control del Estado sobre la industria; as ofensivas em con-
tra del trabajo organizado; la redución de impuestos corporativos; la contracción y/o
396 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

privatización de los recursos e servicios públicos; el desmantelamento de los progra-


mas de bienestar social; la ampliación de la movilidad del capital internacional y la
competencia entre localidades .
1

Embora seja difícil estabelecer um quadro único sobre as consequências espaciais des-
sas mudanças político-econômicas, e especialmente sobre as mudanças urbano-metropo-
litanas decorrentes, alguns pesquisadores têm destacado a conexão entre os processos mais
gerais de globalização/neoliberalização e as mudanças nos espaços urbano-metropolitanos,
indicando algumas tendências comuns nesses espaços.

Neoliberalização e metrópoles: abordagem espacial

Em âmbito internacional, Brenner e Theodore (2002, p. 9) estabelecem o termo


reestruturação urbana neoliberal para tratar de algumas mudanças ocorridas nos últimos
30-40 anos nas cidades. Para os autores, o processo de destruição criativa institucional,

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desencadeado por práticas neoliberais, como o desmantelamento das políticas de bem-
-estar social e a interiorização da agenda neoliberal nos governos locais (desregulação,
privatização e liberalização), tem repercussão direta nas formas de urbanização verificadas
nos espaços metropolitanos.
Já Theodore, Peck e Brenner (2009, p. 9) apresentam algumas características associadas
à urbanização neoliberal: “imposição de medidas de austeridade fiscal aos governos locais”;
“privatização dos serviços sociais”; “incorporação dos interesses das elites locais nas políticas
municipais”; “criação de novas áreas de ‘livre comércio’, tecnopolos e áreas de desenvol-
vimento industrial”. Os autores ainda destacam, entre as práticas comuns à urbanização
neoliberal, a criação de oportunidades para investimentos especulativos nos mercados ha-
bitacionais e a emergência de espaços privatizados para o consumo de grupos privilegiados.
Diante da austeridade fiscal, tornou-se uma solução recorrente a transferência de parte das
responsabilidades que outrora pertenciam ao Estado para a iniciativa privada.
Na América Latina, Mattos (2004) tem se dedicado especialmente ao estudo dos im-
pactos da globalização e do neoliberalismo nos espaços metropolitanos na região. Em suas
pesquisas, o autor tem destacado um conjunto de transformações nas metrópoles, a saber:
mudanças nos mercados de trabalho (flexibilização salarial e de direitos); maior polari-
zação econômica e aumento da desigualdade social. O autor ainda destaca as novas for-
mas de expansão metropolitana em virtude da descentralização das atividades produtivas
(agora articuladas em rede) e da proliferação de novos artefatos urbanos fora da mancha
urbana compacta.
Já Mattos (2008) enfatiza os investimentos privados no setor imobiliário no contexto

397 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de globalização e suas implicações no processo de expansão metropolitana. Para o autor
(2008, p. 38), três aspectos se impuseram a partir das mudanças geradas pela crise do for-
dismo, desencadeando uma acentuação da mercantilização do desenvolvimento urbano na
América Latina. São eles: 1) o aumento da disponibilidade de capitais para a realização de
investimentos imobiliários; 2) uma gestão pública sustentada em critérios e neutralidade
e subsidiariedade, capaz de propiciar um ambiente muito mais favorável ao desenvolvi-
mento imobiliário, em virtude de maior liberdade de decisão e ações das empresas; 3)
uma gestão urbana empreendedora determinada em atrair capitais externos, que valoriza a
importância dos investimentos imobiliários.
Segundo o autor, a partir da desregulamentação da economia e do aumento da liber-
dade dos fluxos financeiros e do surgimento de novos instrumentos de inversão no setor
imobiliário (fundos de investimento, compra de títulos e securitizações), as metrópoles
latino-americanas têm entrado nos circuitos globais de investimentos financeiros e imo-
biliários. O resultado tem sido a proliferação de novos artefatos imobiliários, que tem re-
construído as paisagens geográficas metropolitanas da América Latina. Desse modo, uma

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 397 20/06/2023 16:46:42


parte significativa dos excedentes de capital gerados em outras economias tem sido desti-
nada aos mercados imobiliários metropolitanos, provocando novos processos de expansão
através da proliferação desses objetos.
A existência de governos locais dispostos a atrair capitais para os seus territórios tem
facilitado a materialização desses excedentes de capital na forma de grandes investimentos
e projetos como gigantescos condomínios fechados e resorts, por exemplo. Já o descrédito
das intervenções do Estado e do planejamento do tipo modernista, predominantes nas
metrópoles industriais no século XX, contribuiu para a formação de um contexto que de
maior liberdade para as ações dos empreendedores imobiliários.
Lencione (2015; 2008; 2014) também tem se dedicado a analisar a importância das
mudanças recentes no capitalismo e de como a integração entre o capital financeiro e
imobiliário tem sido utilizada para a própria salvação do capitalismo, na medida em que a
produção imobiliária absorve parte dos excedentes de capital global, ajudando a contornar
os problemas de superacumulação recorrentes.
Esse tipo de interpretação tem ajudado a superar as visões que identificam as mu-
danças urbanas, especialmente as novas formas de crescimento metropolitano e novos
objetos imobiliários, como mero resultado de decisões individuais ou de mudanças
tecnológicas. Na realidade, essas transformações, certamente, têm respondido à ne-
cessidade de circulação dos capitais financeiro-imobiliários. Lencione (2015) aponta
a existência de grandes investimentos imobiliários nos espaços metropolitanos em
decorrência desse imperativo.
No Brasil, parte dessas mudanças acima mencionadas também foi observada nos
398 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

governos locais, já que “em função da crise do Estado moderno no Brasil, o quadro po-
lítico, ditatorial, centralizador das ações, foi substituído por um democrático, promotor
de políticas de descentralização” (Dantas et. al, 2006, p. 23). A partir desse período, os
governos locais passaram a assumir maior responsabilidade sobre a formulação de suas
políticas econômicas e sociais. Tal autonomia, associada à crise fiscal do Estado brasileiro
ao longo da década de 1980, conduziu boa parte dos governos estaduais e municipais
do país a adotarem uma postura empreendedora (Harvey, 2006), tendo como principal
objetivo criar condições favoráveis para atração dos capitais privados em busca de valo-
rização para os seus territórios.

Neoliberalização do Espaço na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF)

No estado do Ceará, o final da década de 1980 indicou alterações de ordem políti-


co-econômica, com a ascensão de um novo grupo de gestores públicos que implantou
mudanças nas estratégias de desenvolvimento do Estado, com repercussões sobre o arranjo

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 398 20/06/2023 16:46:42


espacial na RMF. O “governo das mudanças5” trouxe um conceito de Estado com forte
influência do setor privado nas formas de gestão nas ações governamentais. Conforme in-
dicou Bernal (2004, p. 61), a partir desse período, o Ceará passa a adotar a “guerra fiscal”
com estratégia para atração de capitais privados. Essa estratégia foi baseada em três eixos:
atração de indústrias (notadamente oriundas do sul e sudeste do país), investimento na
implantação de um polo turístico e na modernização da agricultura.
As ações governamentais produziram uma reorganização na divisão territorial do traba-
lho na RMF, redefinindo funções de municípios e incorporando novos espaços à dinâmica
metropolitana de Fortaleza. Os incentivos fiscais, associados à dotação de infraestruturas, fa-
voreceram o desenvolvimento de espaços de produção industrial em diversos municípios da
RMF, entre eles Maracanaú, onde já existia um distrito industrial desde 1970, e Horizonte e
Pacajus (incorporados à RMF em 1999). Essas mudanças aceleraram o processo de urbani-
zação nesses municípios e fortaleceram a sua integração à dinâmica metropolitana.
Os municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia também passaram por sig-
nificativas mudanças, após a implantação do complexo industrial e portuário do Pecém
(CIPP). A implantação do CIPP ocorreu mediante a ação do poder público com o obje-
tivo de ampliar o ambiente favorável ao desenvolvimento de novos negócios privados no
Ceará, facilitando o transporte de mercadorias produzidas no estado e na região nordeste.

399 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Mapa 1 – Região Metropolitana de Fortaleza


Fonte: elaboração própria (2022)

5
Governo das Mudanças é uma denominação utilizada para se referir aos governos de Tasso Jereissati e Ciro
Gomes, iniciados no final da década de 1980.

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Objetivando o desenvolvimento do turismo litorâneo, os governos passaram utilizar
recursos locais e buscar fontes de financiamento de instituições multilaterais (como o
Banco Interamericano de Desenvolvimento) para a dotação de infraestruturas necessárias
ao desenvolvimento das atividades turísticas (notadamente implantação de vias litorâneas,
projetos de saneamento e reformas do aeroporto). Conforme indicou Dantas (2009), a
partir dos esforços do Estado, grandes investimentos turísticos-imobiliários passaram a
ocupar o litoral da RMF, reforçando a lógica de urbanização paralela à faixa de praia. Esse
processo atingiu especialmente os setores litorâneos dos municípios de Aquiraz, Cascavel e
Caucaia, que a partir do fortalecimento dessas ações do poder público, passaram a receber
hotéis, resorts e uma quantidade expressiva de casas de veraneio.
Concomitante à ação dos governos estaduais, os governos municipais passaram a ado-
tar políticas favoráveis à atração de investimentos, em muitos casos resumindo os impostos
municipais, investindo em infraestruturas físicas, flexibilizando as legislações que regulam
o uso do solo e, frequentemente doando terrenos para a implantação de empresas em seus
territórios.
Nesse contexto, no setor sudeste da RMF, o município de Eusébio aparece como um
proeminente laboratório para a compreensão das transformações socioespaciais engendra-
das por interesses de empresários em associação com o poder público local. Esse município
tem se caracterizado pela forte atuação do poder municipal na atração de novos investi-
mentos privados para seu território.
A configuração espacial do município, até a década de 1990 caracterizada pela presen-
ça de sítios, chácaras e terrenos não ocupados, atualmente tem expressado e sintetizado os
400 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

novos efeitos de ações sinérgicas entre agentes públicos e privados, tornando Eusébio um
dos territórios mais significativos para a compreensão da expansão metropolitana contem-
porânea. Entre as principais estratégias recentes adotadas pelo poder público municipal
em Eusébio estão: criação de áreas de especialização funcional (distrito industrial e eixos de
concentração de empresas de serviço), mediante doação de terrenos da prefeitura, que tem
beneficiado empresas do setor industrial, o setor de serviços e até igrejas que desenvolvem
projetos sociais para a comunidade.
Entre os anos 2000 e 2020 a prefeitura aprovou mais de 185 normas jurídicas, doan-
do terrenos da prefeitura para empresas do setor privado e algumas instituições religiosas.
Ao todo mais de 100 empresas foram beneficiadas com doações de terrenos. As doações
totalizaram 93, 8 hectares (1,2% do território municipal).
Outra importante estratégia que caracteriza o processo de urbanização neoliberal do mu-
nicípio é o incentivo a crescente produção de gigantescos loteamentos fechados e numerosos
condomínios horizontais, a implantação desses novos investimentos imobiliários tem sido
favorecida pela “flexibilização” da legislação local. A crescente produção desses novos objetos

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imobiliários tem acentuado o caráter privatista da urbanização no município. A proximida-
de com Fortaleza, a grandes quantidades de terrenos não ocupados, a maior celeridade na
aprovação de projetos e uma legislação urbana menos rígida são apontados como fatores que
contribuíram para construção de grandes projetos residenciais no município.
A partir dos anos 2000 o município de Eusébio passa a se destacar como uma das
áreas mais atrativas para implantação de novos investimentos imobiliários. Especialmente
condomínios e loteamentos fechados. A proximidade com Fortaleza, a grande quantidades
de terrenos não ocupados, a maior celeridade na aprovação de projetos e uma legislação
urbana menos rígida são apontados como fatores que contribuíram para construção de
grandes projetos residenciais no município. As analises corroboram a acentuação dos pro-
cessos de fragmentação do município de Eusébio através da proliferação de novos objetos
imobiliários privados. Tais processos apresentam características similares às modificações
verificadas em outras metrópoles brasileiras e latino-americanas6.

Considerações Finais

Ao se abordar a RMF, fica evidente que, assim como na maioria das Regiões
Metropolitanas Brasileiras, mais do que as diferenciações, características dos espaços alta-
mente urbanizados, verifica-se a constituição de subespaços fortemente desiguais, especial-
mente no que se refere à realidade socioeconômica e ao acesso a benefícios da urbanização.
Nos últimos 40 anos essas diferenciações tem assumido novas características, a partir do
estímulo ao investimento corporativo no espaço metropolitano através de um movimento

401 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de adaptação a globalização e maior liberdade e estímulo aos investimentos privados.
O setor sudeste da RMF, notadamente o município de Eusébio, aparece como um proe-
minente laboratório para a compreensão das transformações socioespaciais engendradas por
interesses de empresários, em associação com o poder público. Esse eixo de expansão tem
se caracterizado pela forte atuação da prefeitura na atração de novos investimentos privados
para seu território. Nesse caso, o poder público tem utilizado as características fundiárias do
território municipal para definição de ações que objetivam a implantação de novos investi-
mentos privados. Observam-se três práticas empreendedoras envolvendo a política urbana
do município com o objetivo gerar crescimento econômico, são elas: a doação de terrenos
para empresas privadas, a dotação de infraestruturas e a modificação de leis urbanas. Nesse
contexto, tais ações têm contribuído para uma urbanização do espaço em que os agentes
privados assumem cada vez mais a liderança do processo, e o estado diminui o seu papel
planejador passando a fomentar um urbanismo competitivo e subsidiário.
6
Dentre e as características pode-se mencionar formas mais dispersas de urbanização, dissociação do entorno
imediato, déficit de espaços públicos.

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Entre as características comuns desses novos empreendimentos está a existência de
grandes projetos imobiliários de acesso controlado, que, mais do que habitações, desen-
cadeiam processos de urbanização e privatização dos espaços de consumo coletivo podem
ser classificadas como típicas de um urbanismo neoliberal. Desse modo, essas formas de
crescimento da metrópole se assemelham a processos verificados em outros espaços metro-
politanos brasileiros e da América Latina.
Os empreendimentos, especialmente os do setor sudeste, são caracterizados por uma
dissociação do entorno próximo e têm introduzido mudanças bruscas no espaço que os
cerca. Em geral, o entorno desses espaços é caracterizado pelo deficit de espaços públicos e
lugares de convivência, ampliando o processo de fragmentação sócio-espacial.

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403 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Reestruturação Urbana e o comércio
de Fortaleza (Ceará)

Alexsandra Maria Vieira Muniz1


José Borzachiello da Silva2

Introdução

Diante da transição de uma sociedade urbano-industrial para uma sociedade de ser-


viços Fortaleza se firma como metrópole terciária, com preponderância do comércio e
dos serviços, das atividades ligadas ao turismo, ao mercado imobiliário, o agronegócio e a
agroindústria a este associada, atendendo na maioria das vezes às demandas espaciais que
ultrapassam as fronteiras do território nacional.
Fortaleza expande sua zona de influência, sua hinterlândia, já que, com os atuais sis-
temas técnicos, a rede de cidades tomou variados contornos pelo abandono da antiga rede

405 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
urbana.
A expansão da malha urbana da capital e o surgimento de novas centralidades, sobre-
tudo a partir dos anos 1970, culminaram na consolidação da área central enquanto lócus
do comércio e serviços voltados para o atendimento de demandas da classe de menor
poder aquisitivo. Com isso, o Centro voltou-se predominantemente ao comércio popular.
Por outro lado, observa-se as novas centralidades resultantes da expansão do tecido urbano
e das novas lógicas de uso e consumo, vis a vis, ocorre o processo de reestruturação urbana
com obras de desenvolvimento regional e programas de infraestrutura urbana, edificações
dos espaços produtivos e de reprodução social com o impulso à metropolização industrial,
turística e comercial.

1
Profa. Associada do Departamento de Geografia da UFC. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles –
Núcleo Fortaleza(Lapur) - geoalexsandraufc@gmail.com
2
Prof. Titular do Departamento de Geografia da UFC. Pesquisador do Observatório das Metrópoles –
Núcleo Fortaleza(Lapur) - borzajose@gmail.com

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O objetivo deste artigo é analisar o impacto no comércio de Fortaleza, notadamente
em sua área central diante de um contexto de reestruturação urbana e das políticas de re-
qualificação e de reintegração de áreas centrais. Esta pesquisa qualiquantitativa tem caráter
exploratório. Para tanto, foram adotados procedimentos metodológicos de revisão biblio-
gráfica, levantamento de dados secundários e pesquisas de campo.
Este estudo tem como objeto de investigação a dinâmica da atividade comercial na
cidade de Fortaleza (vide Figura 1).
406 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1: Mapa de Fortaleza

Desta forma estruturou-se o artigo nos seguintes tópicos, quais sejam, Reestruturação
Urbana e metrópole terciária de Fortaleza e Centro da cidade: Espaço tradicional do co-
mércio na capital, na sequência, as considerações finais.

Reestruturação Urbana e Metrópole Terciária de Fortaleza

Fortaleza é uma metrópole multifuncional com preponderância da atividade comercial


que lhe garante uma enorme área de influência que extrapola os limites do estado. No que
tange às relações intraurbanas a cidade se reconfigura com visíveis mudanças sócioespaciais. O
advento do shopping center alterou sobremaneira, o perfil urbano da cidade. Essa nova forma

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de consumo instituída por esses equipamentos de grande porte é acompanhada pelos condo-
mínios fechados e loteamentos murados que exigem uma reestruturação do sistema viário, res-
ponsável pelo esgarçamento da malha e aumento considerável do uso do automóvel particular.
É neste contexto que emerge a necessidade de aprofundamento de pesquisas de inves-
tigação do centro de fortaleza, que passa por reestruturações face às novas áreas comerciais
que se consolidam na metrópole e sua região metropolitana.
Conforme Salgueiro (1995, p. 183),
O comércio é importante para a cidade por uma série de razões. Em primeiro
lugar, a troca é aí uma atividade tão significativa que diversos autores veem nela a razão
essencial do urbano. [...] Em segundo lugar, o comércio e alguns serviços contribuem
fortemente para definir a estrutura dos núcleos de povoamento e para a integração fun-
cional dos bairros periféricos. [...] Em quarto lugar, o comércio é um meio poderoso de
intervenção urbanística através da sua capacidade polarizadora [...].

Acompanhando a tendência mundial de investimento no setor terciário, a metrópole


de Fortaleza não se firma como cidade industrial, mas avança como cidade do terciário,
em razão do crescimento do comércio e dos serviços, das atividades ligadas ao turismo,
ao mercado imobiliário e ao agronegócio, atendendo na maioria das vezes às demandas
espaciais que ultrapassam as fronteiras do Ceará e do Brasil.
O comércio faz cidade ao atrair clientes e mercadorias, ao vivificar determinadas
áreas e precipitar o declínio de outras, mas a sua evolução, do ponto de vista eco-
nómico e espacial, é também influenciada pelas mudanças da sociedade, a transfor-

407 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
mação dos valores e estilos de vida, a evolução dos aglomerados da estrutura urbana
(Salgueiro; Cachinho, 2009, p. 10).

As transformações na economia mundial fazem com que o comércio ganhe uma nova
dinâmica na cidade, atuando no processo de urbanização dispersa. O predomínio do setor
terciário de Fortaleza reflete na configuração espacial urbana com influência nas relações
para além da capital e sua região metropolitana, bem como no espaço transnacional.
Com o abandono da antiga rede urbana em que a hierarquia se dava entre as cidades
vizinhas da maior para a menor, hoje são várias as redes que se articulam a espaços cada vez
mais longínquos. Isto pode ser constatado pela rede de relações que Fortaleza mantêm, seja
para distribuição e consumo final da produção, seja para suprir as demandas das diversas
etapas da produção.
Desta forma, o comércio, como parte do terciário influencia fortemente as cidades,
pois se percebem práticas socioespaciais de diversos agentes, como comerciantes, promo-
tores imobiliários, produtores/fabricantes, consumidores.

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Os shoppings se apresentam como um contínum na ampliação do processo de repro-
dução do capital, seja o capital comercial, financeiro ou imobiliário.
Não podemos esquecer que o shopping-center envolve o sistema rentista do
capital imobiliário, ou seja, os espaços das lojas são alugados e, além disso, é cobrado
um percentual sobre os lucros de cada loja; portanto, a renda permanente do aluguel
acrescida do percentual de lucros sobre as vendas. Lembro aqui que esses grandes
negócios imobiliários tiveram, desde o início, a participação de bancos privados e
públicos... (Pintaudi, 2018, p.11)

Por outro lado, a degradação de áreas centrais tem sido recorrente no Brasil e noutras
cidade do exterior. A resposta a esse processo tem sido o estabelecimento de políticas de
revigoramento dessas cidades.
Segundo Mesentier (2006)
as áreas urbanas de valor patrimonial quando localizadas nos bairros centrais
das cidades, estão no foco das políticas públicas de reestruturação da metrópole,
porque podem tornar-se um fator de atração para os centros urbanos de atividades
produtivas e, por conseqüência, as intervenções urbanas em áreas de valor patrimo-
nial podem ser um fator de dinamização do mercado imobiliário metropolitano.
(Mesentier, 2006)

Muitas cidades que vivenciaram a decadência de seus centros tradicionais empenha-


ram-se na tarefa de requalificar e reestruturar suas áreas centrais visando aproveitar a in-
408 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

fraestrutura instalada e desfrutar do excepcional capital simbólico que possuem tendo em


vista a obtenção de maior renda fundiária. Sobre esse tema assim se manifestou Maricato
(2001) “dotados de uma infraestrutura excepcional em relação às demais regiões da cidade,
os centros metropolitanos vêm sofrendo um significativo esvaziamento ao mesmo tempo
em que as periferias crescem extensivamente”.
Fortaleza não está inserida no rol das cidades de grande porte que tiveram um passado
colonial reconhecido pela valorização do acervo arquitetônico, traçado de ruas, igrejas sun-
tuosas de forte teor artístico, quando comparada com outras cidades como Recife, Salvador
e São Luiz. Ao contrário, só adquiriu feições urbanas compatíveis com estatuto de cidade
do século XIX, com o advento do mercado algodoeiro quando se transformou em centro
de coleta e exportação daquele produto. Com o comércio do algodão a cidade passou a se
comunicar com o sertão através da Estrada de Ferro de Baturité. Seu porto, mesmo precá-
rio devido as arrebentações das vagas marinhas, passou por sensíveis melhorias.
Além de exercer diferentes funções de sede administrativa do Ceará, Fortaleza se fir-
mou como excepcional empório comercial, situação que ostenta até hoje.

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O centro reunia todas as funções necessárias para atender as demandas da capital cea-
rense. Era pólo administrativo, comercial e de serviços. Possuía sede do governo de todos
os poderes e de empresas ligadas aos setores comercial e financeiro.
A cidade crescia conforme os ditames da economia cearense baseada na produção e
comércio internacional do algodão.
De meados do século XIX ao início do século XX, Fortaleza passou por inúmeras
mudanças urbanas, no período denominado Belle Époque, no que tange a instauração de
novos equipamentos e serviços urbanos, tais como transporte coletivo (bondes de tração
animal), eletricidade, calçamento, praças públicas, canalização de água, cafés, escolas de
ensino superior, cinema e teatro.
A malha urbana espraiava-se, em todas as direções. A expansão, entretanto, não foi
suficiente para que o centro ultrapassasse os limites traçados no século XIX. A cidade
de Fortaleza até o final do século XIX se resumia ao perímetro dos boulevards de Adolfo
Herbster.
As plantas arquitetônicas de Adolfo Herbster (1859 e 1875) seguiam um padrão or-
togonal, inspirado por Silva Paulet (1726), visando o ordenamento e o embelezamento da
cidade, bem como serviam de orientação para os caminhos de expansão da malha urbana,
que já demonstrava uma tendência a transposição dos chamados Boulevards, aos moldes
da cultura e arquitetura francesa, que hoje são conhecidas como as Avenidas do Imperador,
Duque de Caxias e Dom Manuel.
A cidade antes restringida aos limites dos Boulevards, se propagava horizontalmente e
de forma desigual e segregada no território, permanecendo no Centro em maior parte as

409 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
atividades comerciais, serviços e equipamentos públicos.
A elite fortalezense, detentora de grande prestígio político e econômico, gradual-
mente distanciava-se das proximidades da área central, num primeiro momento instala-
das no bairro Jacarecanga, primeiro reduto da burguesia e, em seguida, nos bairros mais
a leste do Centro, hoje conhecidos como Aldeota, Meireles, Bairro de Fátima e Praia de
Iracema.
Formavam-se, a partir daí, novas centralidades na capital. Se sobressaem, nesse sentido,
as centralidades da Aldeota, Antônio Bezerra (e corredor da Avenida Bezerra de Meneses),
Messejana e Barra do Ceará (LOPES, 2006, p. 149).
Ainda segundo Lopes (2006, p. 150) a policentralidade de Fortaleza:
[...] é um fato incontestável a partir dos anos de 1990, entretanto a deterioração
do Centro não é um fato natural, é muito mais resultante da falta de investimento
do Poder público na área, em detrimento dos investimentos em outros locais da
cidade, agora mais atrativas para os investimentos locais ou internacionais (LOPES,
2006, p. 150).

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Se em um primeiro momento se verifica uma macrocefalia urbana, a partir de uma
relação interdependente entre Fortaleza e os municípios circundantes, Silva (2009) afir-
ma que:
O crescimento demográfico, a forte pressão sobre o território da capital, a espe-
culação imobiliária e a necessidade de se estabelecer políticas metropolitanas, entre
outros itens, fazem da RMF um imenso laboratório, com uma dinâmica muito es-
pecial devido ao forte comando exercido pela capital. Espaço de contrastes por exce-
lência, vê-se ocupado mais intensamente nos últimos anos, especialmente nas franjas
periurbanas integradas direta ou indiretamente à malha urbana de Fortaleza onde a
precariedade é dominante (Silva, 2009, p. 18).

Observava-se, assim, a concepção da Região Metropolitana de Fortaleza – RMF (Lei


Complementar Federal nº 14/1973) no cenário urbano cearense. É nesse panorama que,
segundo Maricato (2002, p. 4) ocorre um desaceleramento no crescimento das metrópo-
les, onde as periferias passavam a crescer mais do que os núcleos urbanos.
A expansão da malha urbana da capital e o surgimento de novas centralidades, sobre-
tudo a partir dos anos 1970, culminaram na consolidação da área central enquanto lócus
do comércio e serviços voltados para o atendimento de demandas da classe de menor
poder aquisitivo. Segundo Costa
O crescimento populacional provocou um adensamento no núcleo central,
obrigando seus habitantes a irem gradativamente se afastando para as áreas perifé-
ricas. Houve uma seleção de atividades permanecendo, no centro, as tipicamente
410 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

comerciais. (Costa, 2009, p.157).

Com isso, o Centro voltou-se predominantemente ao comércio popular com o co-


mércio varejista e ambulante, com presença marcante da informalidade. Por outro lado,
observa-se as novas centralidades resultantes da expansão do tecido urbano e das novas
lógicas de uso e consumo. Para Dantas (2012, p.63):
É a possibilidade de atendimento de suas necessidades materiais e imateriais
fora do Centro da cidade de Fortaleza o motivador do abandono do Centro pelos
segmentos das classes de maior poder aquisitivo da sociedade fortalezense, tornando-
se seus “novos usuários”, basicamente, a população de baixa renda, camelôs e pedintes
(Dantas, 2012, p. 63).

Dantas (2012) ratifica, o Centro como um “local privilegiado” para a atuação do co-
mércio ambulante, que se expandiu e passou a disputar os espaços e os consumidores com
os estabelecimentos do comércio formal.

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É justamente no Centro, predominantemente na área de maior fluxo de
transeuntes, que o comércio ambulante irá estabelecer-se, consubstanciando-
se, consequentemente, a modificação da paisagem urbana ao criar uma série
de signos capazes de atrair consumidores e reforçar a característica do Centro
enquanto lócus de consumo, juntamente com o comércio estabelecido (Dantas,
2012, p. 71).

Conforme Silva (1992, p. 46)


[...] o centro tradicional da cidade vai se convertendo em centro da periferia,
visto que, a população burguesa e amplos setores da classe média encontram subcen-
tros alternativos que substituem as atividades que eram exercidas anteriormente pela
zona central. Esta por sua vez, cada vez mais se caracteriza como o verdadeiro centro
da periferia (Silva, 1992, p. 46).

Ao empregar o termo “centro da periferia”, Silva (1992) reforça as tendências de trans-


formação do Centro em lócus de consumo para as camadas populares sobretudo a partir
da década de 70.
Lopes (2015, p. 22 e 23) ratifica a contraposição observada quando considerados os
processos associados às classes de maior poder aquisitivo que, segundo o autor:
[...] preferem o shopping center, pois congrega lojas, supermercados, agências
de serviços públicos, caixas eletrônicos, correios, casas autorizadas de conserto de
produtos eletrônicos e os mais modernos cinemas onde ocorrem os lançamentos de

411 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
filmes. A centralização associada à falsa segurança, ao conforto, à disponibilidade
de estacionamento, fez do shopping o local de consumo e lazer da classe média,
consequentemente houve um abandono do Centro por esse segmento social (Lopes,
2015, 22 e 23).

Transpor o Pajeú, riacho localizado a leste da área central, foi um grande feito. O
riacho praticamente desapareceu da paisagem urbana. Na porção Leste, a Avenida Dom
Manuel definiu novos fluxos norte/sul e facilitou a expansão para a Aldeota, bairro de
prestígio que capturou parte substancial das atividades da área central. Esses limites foram
fundamentais na delimitação e reforço das funções centrais da cidade.
A pujança do capital financeiro e das empresas construtoras nacionais ou transnacio-
nais, reforçam mecanismos de reprodução socioespacial alterando a estrutura urbana e a
expansão da malha urbana. Constata o peso e a expressão assumidos pelos condomínios,
loteamentos murados e shoppings que alteram o preço da terra urbana e modificam, so-
bremaneira, o uso do solo.

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Este processo se intensifica durante os anos 1980 e nos anos 1990. Novas atividades
começam a surgir em áreas não centrais, evitando as possíveis desvantagens da área central
e, ao mesmo tempo, beneficiando-se das vantagens das áreas distantes do centro.
[...] a criação de “novas centralidades” contribuindo para lançar as bases de uma
estrutura policêntrica de territórios ligados em rede à custa da perda da importância
docentro tradicional e da estrutura monocêntrica de base hierárquica, ao mesmo
tempo em que favorece a proliferação de implantações de tipo pontual (centros co-
merciais, condomínios de luxo, grandes edifícios de escritórios, conjuntos de habi-
tação social, parques temáticos), isoladas, ou no seio de territórios com outro uso,
que adquirem grande visibilidade e se opõem à organização tradicional em manchas
homogêneas.
Representam a reapropriação da centralidade por atividades e grupos sociais de
maior poder econômico que se vêm justapor ao tecido preexistente e introduzem
rupturas bruscas entre os territórios ocupados pelos vários grupos e organização que,
embora sejam contíguos, não apresentam qualquer continuidade (Salgueiro, 1998,
p. 42).

O centro de Fortaleza, entretanto, permanece exercendo suas funções e mantendo sua


centralidade sobre a cidade. A despeito disto, não se pode negar a perda da hegemonia de
outrora do centro da cidade.
Com a continuada descentralização da atividade comercial, a multiplicação das
formas de comércio, o aparecimento de novos centros de comércio e serviços espe-
412 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

cializados, tanto na cidade como na periferia, e a perda de importância do Centro


de comércio tradicional, o esquema “clássico” de organização urbana da actividade
começa a ser desafiado na sua dupla vertente da estrutura hierárquica e da proemi-
nência do centro único. Assiste-se à substituição progressiva deste modelo de organi-
zação por outro, mais complexo, constituído por vários pólos, uns mais generalistas
outros mais especializados, no seio do qual se desenvolvem complementaridades e
concorrência entre diferentes tipos de centros, formas de comércio e formato de
estabelecimentos. Entre as novas centralidades e as antigas, como mercados e “ve-
lhos” centros, se partilham os fluxos dos consumidores determinados agora por um
complexo de factores e não apenas pelo simples princípio da proximidade e da cen-
tralidade (Salgueiro; Cachinho, 2009, p. 17).

Diante deste contexto, o Centro passou a atrair os olhares do poder público, que histo-
ricamente buscou alternativas para sua requalificação, o que pode ser expresso através dos
sucessivos planos, projetos e intervenções setoriais.

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Centro da cidade: Espaço tradicional do comércio na capital

Fortaleza que é a quinta maior cidade do Brasil com uma população estimada, em
2021, de 2.703.391 habitantes, concentra as principais atividades econômicas com um
PIB de 67.412.733(mil reais) em 2019, o que representa mais de 40% do PIB estadual.
Na análise do Valor Adicionado Bruto, segundo o IBGE, evidencia-se a importância
dos setores mais dinâmicos, tais como os serviços.

Tabela 1 - Valor Adicionado Bruto Setorial


Fortaleza (CE)
Valor Adicionado Bruto Setorial a
preços correntes 2019

VAB Total 100

VAB Agropecuária 0,1

VAB Indústria 13,7

VAB Serviços, exclusive administração 69,3

VAB Administração Pública 16,9

Fonte: IBGE.

Dentre as atividades econômicas, o setor de serviços possui a maior participação do


Valor Adicionado Bruto (VAB) com 69,3% em 2019. Como supramencionado, o desta-
que do comércio e dos serviços reforça a pujança do terciário na economia da capital, que

413 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
se sobressai como metrópole do terciário.
Ressalta-se que o comércio ligado à produção têxtil e confeccionista tem forte re-
presentatividade em Fortaleza e, por conseguinte, no Ceará, com extensão para escala
regional, nacional e internacional (Muniz, 2014), atraindo um grande contingente de
compradores, principalmente sacoleiras e turistas provenientes de outros estados, e países,
como Cabo Verde, Guiana Francesa e Suriname.
No recorte temporal de 2010 a 2020, é possível ver no gráfico 1 construído a partir
da tabulação de dados quantitativos do RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), o
crescimento dos estabelecimentos comerciais no intervalo de 2010 a 2015 em 2.073 es-
tabelecimentos, já considerando os 5 anos subsequentes e inclusive que o ano de 2020 é
um ano atípico devido as consequências advindas da pandemia de Covid, isto tem reflexo
direto na redução de estabelecimentos comerciais passando de 20.137 estabelecimentos
para 16.537 estabelecimentos comerciais.

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Fonte: RAIS. Elaboração própria.

Quanto a representatividade do emprego no comércio em Fortaleza, é possível analisar


pelo gráfico a seguir, que Fortaleza ocupa papel de destaque na região metropolitana de
Fortaleza e que assim como os estabelecimentos comerciais também houve um aumento
do emprego no intervalo de 2010 a 2015, já no ano de pandemia o reflexo se fez notório
na redução de empregos, passando de 150.444 para 128.607.
414 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 414 20/06/2023 16:46:44


Se na escala estadual é a RMF que se destaca na representatividade do setor co-
mercial e nesta o destaque é para a capital. Em Fortaleza tem-se o centro como espaço
tradicional do comércio, a despeito das subcentralidades.
Definido como um dos 121 bairros da cidade, mediante o Decreto Municipal nº
14.498, de 18 de setembro de 2019, o Centro de Fortaleza está situado na porção
centro-norte da cidade, possui área territorial de 4,89 km² e apresenta os seguintes
limites: ao leste, com os bairros Meireles e Aldeota; ao sul, com os bairros Benfica, José
Bonifácio, Joaquim Távora e Farias Brito; ao oeste, com os bairros Jacarecanga e Farias
Brito; e ao norte, com os bairros Moura Brasil e Praia de Iracema, além do Oceano
Atlântico.
O bairro está inserido no perímetro da Região Administrativa denominada
“Secretaria Executiva Regional 12”, juntamente com os bairros Moura Brasil e Praia
de Iracema, de acordo com o que estabeleceu o Decreto Municipal nº 14.590, de 06
de fevereiro de 2020, o qual instituiu a mais recente territorialização administrativa do
município.
O bairro apresenta IDH-B3 de 0,556 (considerado médio) e uma população resi-
dente de 28.538 habitantes, 15,8% maior do que o registrado no censo anterior (2000),
quando foram contabilizados 24.775 habitantes (IBGE, 2010). Esse crescimento po-
pulacional, apesar de promissor, se torna incipiente ao considerarmos o potencial habi-
tacional da região e a disponibilidade de imóveis vazios e subutilizados que poderiam
ser reaproveitados.
Segundo dados da Secretaria Municipal das Finanças – SEFIN (2021), o centro

415 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de Fortaleza possui atualmente cerca de 9.523 imóveis, sendo 9.189 registrados como
predial e 334 como terreno, dos quais 5.427 unidades autônomas4 estão registradas
como comerciais, 3.955 como residenciais e 446 como estabelecimentos de prestação
de serviços (figura 2).

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Figura 2 – Mapa da distribuição espacial dos estabelecimentos comerciais, de serviços
e residências no Bairro Centro – Fortaleza, 2021.

Fonte: SEFIN (2021). (MENDONÇA, 2021).


416 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Como bem ressalta Mendonça (2021) a configuração apresentada na figura 2 demons-


tra uma concentração acentuada de estabelecimentos comerciais e de serviços na zona
central do bairro, enquanto os imóveis residenciais estão distribuídos nas regiões limítrofes
à leste e à oeste, o que pode estar ligado ao histórico esvaziamento populacional da área
central em direção às regiões vizinhas e mais distantes, predominando no núcleo central,
assim, o caráter monofuncional.
Essa tendência, segundo Villaça (1998, p. 246) segue uma lógica onde:
Os centros tradicionais de nossas metrópoles, apesar de suas notórias “decadências”,
continuam sendo os focos irradiadores da organização espacial urbana. Continuam
sendo a maior concentração de lojas, escritórios e serviços – e também de empregos – de
nossas áreas metropolitanas. Atendem a mais população do que outro centro das metrópo-
les, uma vez que atraem maior número de viagens (Villaça, 1998, p. 246).

No centro de Fortaleza, a dinâmica do circuito do comércio popular de confecção


com seus camelódromos, galpões, ambulantes, centros comerciais, instituem e destituem

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espaços da cidade, transformando seus usos e suas paisagens, estabelecendo caminhos e
trajetórias que repercutem sobre toda a população e estão inseridas no circuito inferior
da economia urbana, exemplificado pelos ambulantes, camelôs e feirantes do bairro. A
força e a movimentação desse comércio popular resistem por décadas ao planejamento e
às intervenções da prefeitura para retirá-lo do centro, tentando ordenar a cidade de um
modo que acomode os interesses de grupos mais privilegiados como os comerciantes
das lojas, butiques e de shoppings e também que dificulte o trânsito de veículos e de
pessoas, especialmente de turistas. Estabelece-se, portanto, uma conflitualidade entre a
prefeitura, com investidas de controle e/ou retirada dos feirantes, e ambulantes, com a
resistência deles que retornam ou para o mesmo lugar ou criam novos territórios (Mota
e Barbosa, 2015).
Considerando os limites deste artigo, evidenciamos, dentre os fixos ligado ao comércio
no centro da cidade (Figura 3), o atual beco da poeira (Centro de pequenos negócios de
Fortaleza).

417 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 – Mapa da distribuição espacial dos estabelecimentos comerciais,


de serviços e residências no Bairro Centro – Fortaleza, 2021.

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Beco da Poeira (Atual CPNF)

Na praça Jose de Alencar, feirantes se instalaram no espaço que recebeu a denominação


popular de Beco da Poeira onde se vendia alimentos, livros usados, calçados e miudezas.
O setor de transportes presente na Praça quando a mesma fora terminal de ônibus
contribuía para o intenso fluxo de consumo. Assim, através do seu desenvolvimento de
forma mais dinâmica e crescente na Praça José de Alencar, fez esse espaço se transformar
em um importante fixo do comércio confeccionista do circuito inferior da Economia for-
talezense, o qual irá influenciar na criação de outros territórios que irão concorrer com o
Beco da Poeira dentro do Espaço urbano central no circuito inferior da economia, por
exemplo, a Feira da Rua José Avelino e a Feira da Sé. Assim, as tentativas de realocação dos
comerciantes propostas pela prefeitura, provocou um espraiamento do comercio popular
de confecção para outros pontos da cidade.
De acordo com Silva (2013, p. 98), “Em 1987, a então prefeita, Maria Luíza Fontenele,
pondo em prática um programa de reforma do Centro, a operação ‘Reconquistando o
Coração da Cidade’, retira as paradas de ônibus e os ambulantes da praça”. Estes são trans-
feridos de forma temporária para Praça da Lagoinha que é circunvizinha a José de Alencar.
Tal projeto fora criado para tentar requalificar o espaço Central da cidade e organizar o
comércio ambulante, contudo em 1989, é retomada a presença dos Feirantes no antigo
espaço (Queiroz, Muniz, 2020).
A elevação da informalidade nas atividades terciárias brasileiras gera efeitos sig-
nificativos sobre a economia e a sociedade. Um impacto relevante é sobre a dimi-
418 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

nuição do poder de trabalho organizado, em esferas como a barganha econômica, a


organização sindical e a influência política (Kon, 2004, p. 172).

Além da volta dos ambulantes, a Praça continuou como importante ponto da


circulação de pessoas do transporte coletivo e os feirantes do Beco da Poeira passaram
por constantes embates com o poder público municipal em diferentes gestões para se
tentar colocar em prática o processo de reordenamento do espaço urbano, sendo que
na gestão do Prefeito Juraci Magalhães, o Beco da Poeira que funcionava no meio da
praça, ganhou um galpão que funcionou por bastante tempo na década de 1990 e
anos 2000.
No contexto da Copa do Mundo de 2014, Fortaleza, passa por toda uma reestrutura-
ção urbana provida pelo poder público municipal, na gestão da ex-prefeita, Luiziane Lins,
e após intensos embates, reuniões e inclusive ação policial.
Após a desapropriação do espaço do antigo Beco da Poeira para construção da estação
central do Metrofor parte dos permissionários ocuparam obra inacabada do que ficou

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conhecido como “esqueleto da moda” que data ainda de 2001. Outros se descocaram para
adjacências da Praça José de Alencar.
Outra parte dos permissionários do antigo Beco da Poeira, foram transferidos para o
Centro de Pequenos Negócios de Fortaleza (CPNF), instalado no prédio reformado da
antiga fábrica têxtil. O Beco da Poeira é transferido para o antigo espaço industrial da
Thomaz Pompeu Têxtil, também no Centro de Fortaleza, ocorrendo o que afirma Muniz
(2016, p. 438-439) quanto ao processo de refuncionalização de antigos espaços da produ-
ção têxtil em espaço da comercialização.
Desse modo, o atual “Beco” passa ser chamado de Centro de Pequenos negócios de
Fortaleza - CPNF, contudo é mais conhecido como Novo Beco da Poeira, seu novo espaço
traz diversas melhorias estruturais, acessibilidade, melhor organização na distribuição dos
boxes, predomínio do comércio confeccionista e também se desenvolve a venda de apare-
lhos eletrônicos, celulares, papelaria, bijuterias, miudezas e também prestações de serviços
ligados a caixas 24 horas, salão de beleza e restaurantes.
Em seu atual espaço além de melhorias estruturais, há o acesso a faixa exclusiva de
transporte coletivo urbano local e metropolitano na Av. Imperador, proximidade com a
estação José de Alencar do Metrô de Fortaleza - METROFOR, sendo incluído na rota do
turismo da cidade.
Fixo ligado ao circuito inferior no Centro de Fortaleza, o Centro de Pequenos Negócios
de Fortaleza – (CPNF), também chamado de Novo Beco da Poeira, em sua essência possui
particular relação com fluxos populacionais proeminentes de bairros periféricos e de outras
localidades para além da capital cearense.

419 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Ademais, as linhas de ônibus da região metropolitana com paradas finais no centro
favorecem o Centro como um bairro importante para a compra de confecções e circulação
para população pobre de Fortaleza e RMF, pois disponibiliza linhas de ônibus, juntamente
com a linha do metrô que perpassa Fortaleza e parte de sua Região Metropolitana, ajuda
transportar essa população ao bairro e movimentar o comércio do circuito inferior da
economia na área central.
A nova localidade do atual Beco da Poeira exerce forte influência em seu entorno,
onde em sua entrada lateral na Rua Liberato Barroso e na Av. Imperador se desenvol-
vem pontos de comércios confeccionistas, de tecidos, alimentício e saúde, como tam-
bém em seu acesso a partir da rua Princesa Isabel o surgimento de estacionamentos
particulares.
Os permissionários do CPNF relataram em entrevistas que mesmo com as melhorias
estruturais e a proximidade com rotas de transportes públicos, o atual espaço carece de ser-
viço de estacionamento próprio e não se tem mais os lucros que existiam antes (Queiroz,
Muniz, 2020).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 419 20/06/2023 16:46:45


Em pesquisa de campo foi possível entrevistar vendedores de confecção, em que foi
relatado o fato de muitas mercadorias serem revenda da José Avelino, além de ser consta-
tado os impactos da pandemia na fala dos entrevistados que tiveram suas vendas presen-
ciais interrompidas, impulsionando o comércio virtual, por outro lado, com a retomada
das atividades produtivas as vendas caíram com a retirada da lotérica, redução de caixas
eletrônicos e concorrência com outros territórios do comércio confeccionista na cidade.
O CPNF faz parte do projeto de requalificação do Centro Histórico fortalezense e
resultou de longas negociações dos feirantes com a gestão municipal, o CPNF conhecido
como novo Beco da poeira inaugurado em 2010, compõe uma das expressões das espa-
cialidades do comércio popular do centro de Fortaleza. Foi qualificado como espaço de
atrativo turístico e está na rota turística da Capital.
Reforçando o papel da cidade de Fortaleza como um dos pólos têxtil e confeccionista
do Brasil, o comércio confeccionista atrai um grande contingente de compradores, princi-
palmente sacoleiras e turistas, provenientes da escala local, nacional, como também inter-
nacional que buscam os melhores preços e a maior variedade fora de seus países.
Conforme Silva (2013), o comércio de confecção é alimentado a partir da articulação
entre pequenas fábricas ligadas ao circuito inferior, no qual o abastecimento de matéria-
-prima é estabelecido pelo próprio centro, além da obtenção de equipamentos para a pro-
dução da mercadoria até o consumo e a utilização de serviços por meio de compradores de
outras cidades do interior do estado e de cidades de outros estados (até países), permitindo
uma proximidade do circuito inferior em relação ao superior.
Mesmo diante da grande diversidade de locais onde podemos encontrar o comércio
420 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

popular (Esqueleto da Moda, Centro Fashion, rua José Avelino, comercio popular no en-
torno da Catedral), o Beco da Poeira foi, por muito tempo, o mais importante centro de
comércio popular e varejista de Fortaleza, dinamizando a economia cearense e reforçando
o papel do espaço central como lugar do negócio voltado notadamente para consumo da
população de baixa renda.

Considerações finais

A cidade de Fortaleza cresceu e adquiriu feições de metrópole, assim foi necessário


compreender a nova configuração socioespacial do Centro e seu papel no cenário de
constituição das regiões metropolitanas e expansão dos fluxos comerciais para além do
intraurbano.
Diante do exposto, pode-se afirmar que mesmo com a perda da hegemonia de outrora
do centro da cidade, este expandiu-se, modificando os espaços, consolidando territórios,
estruturando relações que ultrapassaram os limites da área central. O centro permanece

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exercendo sua dinamicidade, voltando-se aos serviços de saúde e educação, bem como ao
comércio popular através de diversos fixos espaciais que proporciona grande fluxo com a
circulação de pessoas e mercadorias.
O comércio de confecção do Centro de Fortaleza ganhou força, tornando-se impor-
tante para a economia da metrópole, polarizando a RMF, diversos estados e países (pen-
sando numa escala global), de modo que, a sua atuação ultrapassa diversos níveis escalares,
possuindo relações comerciais independentemente da antiga hierarquia urbana.
Com o avanço da crise econômica, trabalhadores do circuito inferior se multipli-
cam no território, exigindo políticas que vão além do reordenamento urbano. É nesse
sentido que a requalificação da área central incorre como pauta amplamente difundidas na
sociedade contemporânea, enquanto questão de suma importância para o ordenamento
do comércio e dos serviços, a preservação do patrimônio histórico e cultural e a ocupação
de espaços públicos.

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livro - iberografias 45_20junho2023.indb 423 20/06/2023 16:46:45


livro - iberografias 45_20junho2023.indb 424 20/06/2023 16:46:45
Governança urbana: coalizões,
poder corporativo e planejamento
em Fortaleza, Brasil

Tiago Estevam Gonçalves1

Nas últimas décadas, as metrópoles brasileiras desenvolveram políticas de incentivo,


promoção e apoio às parcerias público-privadas por meio de operações de consórcios ur-
banos, concessões e regulamentações que as favoreceram (Ribeiro & Diniz, 2017). Essas
políticas urbanas trouxeram mudanças na governança e nos regimes urbanos por meio de
relações e interconexões sociais, políticas e espaciais que resultaram em impactos no terri-
tório (Lencioni, 2017; Brenner, 2018).
Nesse bojo, parte-se da ideia de que o momento atual da política urbana brasileira é
pautado na desregulação acelerada e no crescimento de projetos radicais de implementa-
ção das cidades competitivas. Assim, o novo modelo de governança e de transformação das
cidades em mercadorias estão sob pressões de atores predominantes.

425 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Deste modo, para ampliar o foco nos estudos de política urbana no Sul Global, par-
ticularmente em uma abordagem brasileira, temos a metrópole de Fortaleza como estu-
do de caso numa perspectiva analítica no que diz respeito às intervenções por parte do
Estado e do poder empresarial dada a consolidação de uma agenda urbana no âmbito da
neoliberalização.
No cerne do urbanismo neoliberal faz-se necessário refletir sobre o planejamento,
a gestão urbana e suas estratégias. Considera-se que tais reflexões são desafiantes frente
ao empreendedorismo urbano enquanto agenda de desenvolvimento das grandes cidades
tanto a nível nacional quanto a nível internacional.
Dito isso, o objetivo deste trabalho é refletir sobre a atuação do poder político de
Fortaleza e do poder empresarial na consolidação de uma agenda neoliberal e dos projetos
urbanos por meio de parcerias público-privadas, com destaque para a Operação Urbana
Consorciada (OUC) da Lagoa do Papicu.

1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará-IFCE

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 425 20/06/2023 16:46:45


Esta OUC foi estabelecida pela Lei nº 9857, de 22 de dezembro de 2011, e está re-
lacionada à instalação do Shopping RioMar Fortaleza. Além desse shopping center, do
grupo pernambucano João Carlos Pães de Mendonça (JCPM), foi também produzido
um complexo imobiliário com uma área total aproximada de 90.000m² - o Evolution
Central Park - com torres residenciais e comerciais, através da parceira do Grupo Otoch
Empreendimentos com a Construtora e Incorporadora Moura Dubeux.      
Em termos de metodologia, tem-se aqui um estudo de caso, de cunho qualitativo, no
qual vislumbra-se desvendar e avançar no entendimento do chamado empreendedorismo
urbano em Fortaleza. Estabeleceu-se como recorte temporal os anos 2011 até os anos 2020.
Em termos de análise conceitual-espacial, pode-se repensar como os processos de
urbanização em diferentes contextos contam com atores e territórios que adaptam suas
estratégias no quadro da globalização financeirizada (Sheppard, 2002; Harvey, 2008;
Robinson, 2018). Salienta-se que a economia urbana se apresenta como força atrativa de
concentração do capital. Assim, no entendimento da economia global, os fluxos de capital
possuem tanto uma capacidade de dispersão, de mobilidade geográfica quanto uma con-
centração territorial.
Neste contexto, Fortaleza é a quinta maior metrópole do Brasil com aproximadamente
2,7 milhões de habitantes e possui uma influência econômica relevante no Nordeste do
Brasil, sendo que gradativamente vem incorporando elementos que a colocam em uma
posição de interesse econômico e de competitividade no cenário global (IBGE, 2022;
Costa & Amora, 2015; Silva, 2019).
Pode-se reforçar também que, em 2019, Fortaleza era o único município do Nordeste
426 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

brasileiro que se encontrava entre as dez maiores economias do país, com uma participa-
ção de 0,91%, o que representava cerca de R$ 67,4 bilhões do total do Brasil. Fortaleza
enquanto Região de influência - desponta como metrópole de maior capilaridade no
Norte-Nordeste do Brasil - com alcance de 765 mil km², e de cerca de 20 milhões de pes-
soas, abrangendo 630 cidades, sendo duas capitais estaduais: Teresina (Piauí) e São Luís
(Maranhão) (Regic, 2020).
Daí, tem-se como questionamento central da pesquisa: Qual é o papel das transfor-
mações dos modelos políticos de governança urbana no desenvolvimento da Operação Urbana
Consorciada Lagoa do Papicu em Fortaleza? Concorda-se com McCann (2017) quando fala
que a governança tem sido um conceito-chave nos estudos urbanos desde o final dos anos
1980. Nesse sentido, quando pensamos na inserção de Fortaleza no contexto nacional e
internacional, observamos que a leitura desse conceito se intensifica nos anos 2000 dada
as alterações e implicações da economia e do planejamento urbano.
Daí, tem-se como base teórica o engajamento crítico com os desafios urbanos contem-
porâneos, a partir da inflexão ultraliberal e da financeirização urbana, cujas relações entre

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os processos de mercado e as políticas estaduais citadinas podem contribuir para a pro-
dução e reforço da desigualdade social e espacial nas metrópoles do Sul Global (Langley,
2020; De Mattos, 2010; Peck, 2017; Watson, 2019).
Neste sentido, o Estado desempenha importante papel no processo de alteração e de
adequação da legislação do uso do solo segundo seus interesses visando o aumento da
arrecadação de impostos. Portanto, ocorrem mudanças com a incorporação de áreas da
cidade, inclusive aquelas degradadas, localizadas nas imediações de importantes polos de
atividades e serviços.
A agenda do desenvolvimento das cidades tem uma ideia do empreendedorismo ur-
bano por meio das ações do capital financeiro com o apoio do Estado, da mídia e dos
movimentos políticos (Dardot & Laval, 2016). Por conseguinte, o Brasil é um exemplo de
como o capital de alto grau faz uso da governança dos territórios das cidades em seu pró-
prio benefício e, nessas questões, existem especificidades importantes para a formação de
coalizões políticas locais devido às características do federalismo brasileiro (Melo, 2021).

Materiais e Métodos

Para responder as questões de pesquisa e fazer inferências sobre nosso argumento,


utilizamos Fortaleza como estudo de caso. Na busca de iluminar uma reflexão sobre
a governança urbana, a escala metropolitana será estudada por meio de três dimen-
sões distintas, mas inter-relacionadas, econômica, espacial e política. (D’Albergo &
Lefèvre, 2018)

427 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Quanto às OUCs são um instrumento da política urbana que está tanto no Estatuto
da Cidade (Lei no 10.257/2001) como no Plano Diretor de Fortaleza. (Lei nº 62/2009).
Considera-se Operação Urbana Consorciada o conjunto de intervenções e me-
didas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprie-
tários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de
alcançar, em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a
valorização ambiental (Estatuto da Cidade, Seção X, Art. 32, § 1º).

Sobre a política urbana é importante ressaltar que o Estatuto da Cidade, Lei


Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183
da Constituição Federal do Brasil, cria instrumentos para que os municípios possam
intervir na gestão urbana e territorial e garantir o direito à cidade. Nesse âmbito, os
municípios acima de 20 mil habitantes foram direcionados a criar o Plano Diretor,
sendo esse um instrumento básico para orientar a política de desenvolvimento e de
ordenamento da expansão urbana.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 427 20/06/2023 16:46:45


O Estatuto da Cidade, nome como ficou conhecida a Lei 10.257/01, que esta-
belece diretrizes da política urbana e dá outras providências, fixa parâmetros para a
aplicação do capítulo da política urbana da Constituição Federal, definindo princí-
pios e objetivos, diretrizes de ação e instrumentos de gestão urbana a serem utiliza-
dos, principalmente, pelo Poder Público municipal. Envolve também, entre outros
assuntos, instrumentos jurídicos de controle da especulação imobiliária, capazes, ao
menos, de atenuar o caos generalizado que tem sido morar em nossas cidades. A
retomada da discussão em torno da Reforma Urbana traz à tona itens que compõem
a pauta de demandas sociais reprimidas, que evidenciam a necessidade de se realizar
uma releitura geográfica da cidade e do urbano, que permita sua redefinição, conce-
bendo-a enquanto ambiente e, buscando nela, um novo sentido para a vida gregária
(Silva, 2001, p. 1).

No que tange à governança urbana é necessário pensar a respeito dos agentes privados
e públicos, com suas formas de cooperação, de relacionamentos. Conseguinte, percebe-se
que as coalizões público-privadas nos conduzem ao entendimento do conceito de go-
vernança em meio a um novo quadro cujas decisões no âmbito da política urbana tem
um caráter consonante a atuação de grupos econômicos que fazem parte da globalização
financeirizada.
Neste contexto, há uma aproximação a respeito dos processos de reescalonamento
do Estado, pensado como referência a diversos domínios da política estatal, formas de
reorganização institucional, os locais das alterações regulamentares e as modalidades de
428 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

governabilidade.
Os vínculos entre as escalas geográficas e dos processos de urbanização estão
sendo estes entendidos em termos de estratégias políticas contextualmente específicas
que lhes engendrem. De acordo com Brenner (2004), o reescalonamento de Estado
representa um meio importante para explorar as amplas questões sobre o espaço es-
tatal com seus enfoques: teórico, metodológico, histórico, conjuntural e normativo
político. A questão de reescalonamento é uma dimensão-chave, em que escalas her-
dam atividades regulatórias que estão sendo profundamente (re) costuradas em grande
parte da economia mundial.
No cerne desta questão, o contorno conceitual da teoria urbana norteou uma análise
qualitativa de programas, planos urbanos que estão em pauta dos modelos de governança
implementados em Fortaleza. Com isso, podemos ter uma compreensão da política e das
instituições urbanas. Esta análise foi complementada com dados secundários quantitativos
de: (i) Instituto Brasileiro de Geografia, Estatística e Instituto de Pesquisa e Estratégia
Econômica do Ceará.

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A governança neoliberal: diálogos entre a financeirização e o empre-
endedorismo urbano

Percebe-se que o neoliberalismo articula etapas de desregulação dos marcos institucio-


nais da política urbana, principalmente, nas grandes cidades e metrópoles. Diante disso,
observa-se que os atores, os agentes e os territórios urbanos adaptam suas estratégias com-
petitivas, nos novos modos de governança neoliberal. De tal modo, conseguimos perceber
a inserção de Fortaleza no bojo da dinâmica econômica global. Portanto, com forte carac-
terística da financeirização em que o empreendedorismo urbano é pautado como agenda
orientadora da metrópole.
Concorda-se com Peters & Pierre (2010) quando falam que a governança urbana é um
modelo analítico que surgiu paralelamente à redefinição normativa do papel do governo
local e sugere que ela é mais adequada para descrever as relações entre as complexidades da
organização dessas governabilidades.
Neste contexto, Fortaleza entra no jogo das estratégias de negócios - o capital imobi-
liário - produzindo novos focos de investimentos de espaços de consumo e consumo de es-
paços. Concebe-se que apesar da hegemonia do capital financeiro há uma forte articulação
entre o capital comercial e imobiliário. O complexo imobiliário-financeiro é um processo
globalizado de transformação da moradia e do imobiliário em geral em um novo campo
de investimento, onde a construção da habitação é uma mercadoria, um ativo financeiro.
Numa concepção crítica, o Estado constrói uma relação mais próxima e de dependência
com o capital (Gonçalves et.al, 2020).

429 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Neste sentido, as intervenções no espaço urbano fazem parte, cada vez mais, das es-
tratégias prioritárias de atração desse capital. Tal abordagem nos remete a ideia de empre-
sarialismo ou o termo empregado por Harvey (1989) enterpreneurialism para se referir aos
novos modelos de planejamento e gestão urbana, sendo que esses assumem um caráter de
submissão aos interesses do mercado por uma competitividade para atrair investimentos.
A governança neoliberal, já potencializada com a presença de atores privados
tanto no sistema político como nas atividades-meio (gestão) e fim (políticas públi-
cas) da administração pública, reforça-se ainda mais com o novo universo aberto
pelas finanças especulativas que encontra no ambiente urbano, notadamente das
metrópoles, solo fértil para sua expansão e aprofundamento. Fecha-se, dessa forma,
o círculo privatista, gerencial, neoliberal de aprisionamento do espaço público pelas
lógicas, distintas, privadas (Fonseca, 2019, p. 409).

No mote da discussão, para percebemos o processo de transformação do espaço ur-


bano de Fortaleza é imprescindível analisar a ação do poder público municipal, que entra

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em cena como um grande articulador. A atuação do Estado é complexa e variável, uma vez
que ele tenta atender aos interesses de diversos atores urbanos. De acordo com Pequeno
(2009) em Fortaleza as parcerias público-privadas (PPP’s) é um instrumento utilizado com
o objetivo de viabilizar investimentos através da contratação de empresas privadas para a
prestação de serviços de interesse público.
Tratando mais especificamente a respeito das Operações Urbanas Consorciadas e as
alterações na legislação urbana em prol do urbanismo neoliberal. Evidencia-se que a polí-
tica urbana de Fortaleza está sendo conduzida e centrada nos interesses entre as esferas pú-
blica e privada. Por conseguinte, o desenvolvimento urbano da metrópole tem uma forte
expressão ao mesmo tempo segregacionista, fragmentador, diferenciador e especulatório.
No planejamento urbano-empreendedor, a incorporação de estratégias vem no intuito
de atender as próprias exigências do capital, por exemplo, os complexos imobiliários-fi-
nanceiros que geram um acréscimo de fluidez no circuito econômico global, com base na
financeirização do espaço urbano/metropolitano.
Nesse sentido, a financeirização é pensada por Aalbers (2015) como domínio crescente
de atores financeiros, mercados, práticas, meios e narrativas, em várias escalas, resultando
em uma transformação estrutural das economias, empresas (incluindo instituições finan-
ceiras), estados e famílias. Deste modo, pode ser um conceito muito vagamente definido
que cobre muitos processos, estruturas, práticas e resultados em diferentes escalas e em
diferentes intervalos de tempo. Com isso, o papel da financeirização do espaço, paralela-
mente à neoliberalização de ideologias, é evidenciado por fatores como política e gestão
urbana inovadoras. 
430 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Na tentativa de articular a relação entre teoria e produção espacial, poderemos ilustrar


nossas reflexões, por meio do bairro Papicu. Sendo que houve neste bairro a chegada de
novos empreendimentos e atividades das quais revelam um novo cenário de estratégia lo-
calizacional. Deste modo, neste bairro, os empreendimentos lançados possuíram um Valor
Geral de Vendas (VGV) previsto de R$ 600 milhões, com um total de 1.408 unidades
habitacionais, sem contar a implantação do Shopping Center RioMar Fortaleza.
Assim, em Fortaleza o fluxo do capital financeiro atrelado aos interesses imobiliários
pode ser averiguado nesta área da cidade– sendo lócus da OUC da Lagoa do Papicu. Esta
Operação Urbana Consorciada pautou-se em um planejamento urbano com bases em
projeto de regeneração urbana. Todavia, os instrumentos neoliberais apropriam-se dos
discursos e do desenvolvimento destas concepções. Longe de esgotar a analise, estes proje-
tos, também, devem ser enquadrados como parte de uma neoliberalização mais ampla da
governança urbana e da formulação de políticas.
Desse modo, as políticas urbanas de Fortaleza têm caminhado para atender os
grandes grupos econômicos que atuam na busca de uma rentabilidade financeira. “O

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empresarialismo, com seus clamores desregulacionistas e privatistas e sua ênfase real sobre
negociação na cúpula, ainda que sem esquecer de acenos cooptadores para a base, com o
fito de atrair investimentos, mercê de “parcerias público-privado” e coisas tais”. (Souza,
2006, p. 153).
Indubitavelmente, consideramos que a governança neoliberal derivada de complexas
forças de diferentes atores e agentes urbanos tem sido evidenciada por parcerias público-
-privadas em Fortaleza. De tal modo, esses novos arranjos do poder, da capacidade em-
presarial do governo e do empreendedorismo urbano tem beneficiado prioritariamente o
setor imobiliário.
Assim, concorda-se com Souza (2006) quando menciona que o Estado auxilia os in-
teresses empresarias por meio de uma política de “desburocratização” ou flexibilização
legais a incluir a legislação urbanística e leis de uso e ocupação do solo. Com isso, há um
privilegiamos de acordos e procedimentos legais e /ou ilegais cuja finalidade de acumula-
ção capitalista.

Governança empresarial: planejamento e o urbanismo neoliberal em


Fortaleza

McCann (2017) em seu artigo: “Governing urbanism: Urban governance studies 1.0,
2.0 and beyond”, nos fala a respeito da governança urbana e suas formas mais evidentes na
produção do urbano que são permeadas por:
i) Novas relações – ‘parcerias’ – entre instituições públicas e/ou organizações “quase

431 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
não-governamentais” envolvidas no (re) desenvolvimento das áreas urbanas;
ii) Uma reorganização escalar dos direitos e responsabilidades do Estado nacional e a
“redução de escala” paralela a outras regulamentações e distribuições de responsabi-
lidades para com as localidades;
iii) Relações entre o Estado e os cidadãos, cujas promessas foram de a democracia trazer
benefícios quanto ao aumento da participação direta das “partes interessadas”, da
sociedade civil, bem como reformulou entendimentos e noções tidas como certas,
como “público” e “privado”;
iv) Aumento da “governança empresarial”, com suas tentativas junto ao setor público
de subscrever e de estimular investimentos através de incentivos fiscais em grande
escala. Os programas urbanos têm ênfase na mercantilização e no rentismo das
cidades e metrópoles, em síntese, um conjunto de práticas inter-relacionadas cha-
mado de planejamento estratégico empresarial.
No cerne desta discussão sobre governança, coalizões e planejamento estratégico; novas
escalas espaciais de organização no mundo globalizado têm se revelado, principalmente

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nas principais metrópoles mundiais e do Brasil. “[...] O certo é que o sistema capitalista
aperfeiçoou seus instrumentos, inclusive o manejo mais ágil das escalas e a capacidade de
utilização do espaço construído [...]” (Brandão, 2007, p. 52). Com isso, é salutar destacar
que os mecanismos de desenvolvimento econômico de Fortaleza desempenham função a
partir da economia de aglomeração com influência da escala mundial à escala regional-lo-
cal. Tal característica da economia é intrínseca ao processo globalizado de internacionali-
zação das atividades econômicas dada as transformações do papel das finanças.
Nos últimos anos do século XX e início do século XXI, a Região Metropolitana de
Fortaleza, com destaque a metrópole cearense, passou por um constante processo de rees-
truturação produtiva e urbana que ganhou novas e diversas formas com a instauração de
políticas governamentais inseridas num espectro do neoliberalismo. Neste sentido, há a
constatação de que a política urbana e planejamento de Fortaleza autoriza a transposição
do modelo estratégico do mundo das empresas para o universo urbano.
Dito isso, tem-se visto que Fortaleza tem adotado ou utilizado de instrumentos ur-
banísticos que possuem um discurso e práxis questionadoras como a citar as Operações
Urbanas Consorciadas. Em Fortaleza, temos 7 OUCs aprovadas e 15 novas possibilidades
de OUC apontadas no Programa Fortaleza Competitiva, sem contar as OUC’s possíveis
no Plano Fortaleza 2040. Importante salientar que 6 destas são definidas como prioritárias
para implementação.
A respeito da OUC do Papicu, de modo mais específico, seus objetivos documentados são:
i) Dotar o Município de Fortaleza de alternativas de sustentabilidade ambiental, social
e econômica para aquela região, mediante construção de shopping center, edifícios
432 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de uso comercial e habitacional multifamiliar e de uso misto, com utilização da


mão-de-obra local;
ii) Realizar programa socioeducativo de capacitação profissional de 1.000 pessoas, ob-
jetivando a empregabilidade na indústria da construção civil;
iii) Manter e instalar unidade do Instituto João Carlos Paes Mendonça, pelo prazo de
10 anos, a contar após 20 meses da concessão da licença de construção do shopping
center, objetivando a empregabilidade e exercício da cidadania da população a ser
assistida;
iv) Realizar obras de interesse público, através do alargamento, urbanização e ilumina-
ção, às custas dos investidores privados, das Ruas Prisco Bezerra e Almeida Prado;
v) Construir 75 unidades habitacionais, de interesse social, bem como seu arruamen-
to, em área a ser cedida pelo Município de Fortaleza. Estas unidades habitacionais
serão destinadas aos atuais ocupantes do leito da Rua César Fonseca, entre o trecho
que compreende a Rua Lauro Nogueira e a Avenida Santos Dumont, com posterior
requalificação deste trecho com pavimentação devida.

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Torna-se importante salientar que no dia 06 de junho de 2011 foi assinado o Termo
de Convênio entre o Município de Fortaleza e as empresas MD CE Nova Aldeota
Empreendimentos LTDA e Rio Mar Shopping Fortaleza S.A. Com base nos parâmetros e
diretrizes para implantação da OUC, a prefeitura foi quem ficou responsável pelo destino
dos ocupantes e, ao invés da construção de habitações, a iniciativa privada depositaria
cerca de 3 milhões de reais relativos ao trecho do leito da Rua César Fonseca. A iniciativa
privada depositaria ainda 8 milhões de reais no Fundo Municipal de Desenvolvimento
Urbano (FUNDURB) para a Prefeitura realizar as desapropriações advindas das interven-
ções viárias.
Em relação ao sistema viário e alterações urbanas diretas e indiretamente resultantes da
OUC da Lagoa do Papicu podemos elencar:

a) Construção de novas vias e alargamento de vias existentes;


b) Obras de drenagem no entorno do Hospital Geral de Fortaleza-HGF e ruas próximas;
c) Requalificação da Av. Engenheiro Alberto Sá;
d) Construção de um túnel na Av. Santos Dumont com a Avenida Almirante Henrique
Saboia (Via Expressa);
e) Alargamentos das vias: Ari Barroso, Des. Lauro Nogueira, e Almeida Prado.

A OUC enquanto instrumento legal urbanístico veio consolidar uma agenda cujo
modelo de governança é pautado pelos interesses imobiliário-comercial-financeiro, sendo
ancorados pelo shopping center RioMar Fortaleza e o Evolution Central Park.

433 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
No que tange aos shopping centers, esses atraem urbanização/metropolização e po-
tencializam o desenvolvimento dos produtos imobiliários. Por isso, muitas incorporadoras
criam novas formas espaciais de morar e trabalhar próximas a esses equipamentos. Sobre
o mercado imobiliário há uma convicção de que espaços de consumo trazem um valor
agregado e de liquidez aos novos empreendimentos. Em entrevistas realizadas, pudemos
confirmar tal afirmativa. De acordo com um diretor regional de uma importante constru-
tora e incorporadora:
O shopping center é um polo de desenvolvimento, por exemplo, ele não é
nosso concorrente, mas ele soma força conosco. Quando você tem uma grande
área como esta daqui da Brahma, com um total de 220m², com pouca infraes-
trutura, acessos ruins, ocupações irregulares, resistência para o público ir. Aí me
questiono qual a demanda daquele local, muita baixa, ninguém que ir para lá
investir. Deste modo, foi pensado em investir, mas vamos chamar uma outra
empresa que vai trazer um polo de desenvolvimento que gere infraestrutura,
melhoramento dos acessos, com alargamento, túneis e viadutos. E isto vai gerar

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um atrativo para o cliente. A parceria ocorre de modo independente, a JCPM faz
o negócio dela, e a Moura Dubeux faz o negócio dela, não são sócios. Registros
são separados. Neste empreendimento quem é sócio é a Otoch na incorpora-
ção, e o JCPM é o dono do RioMar. Este modo de negócio foi repetido em
Fortaleza duas vezes, no RioMar-Fortaleza, no RioMar-Kennedy. E a incorpo-
radora Moura Dubeux tem o papel de identificar o terreno, a vocação da área,
depois fomos buscar parceiros, a princípio quem havia fechado a parceira era a
BR Malls (maior do Brasil), mas a BR Malls voltou atrás (2008), e o João Pães
de Mendonça entrou nesta parceria. A negociação ocorreu em 2009 e 2010.
O Evolution Central Park é resultado da Otoch Empreendimentos e Moura
Dubeux em parceria com a JCPM.

Diante dessa leitura, percebemos as novas articulações e intencionalidades na


produção do espaço urbano das grandes cidades brasileiras, em que empresas bus-
cam parcerias ou até mesmo sociedade para implementação de projetos de grande
acumulação e movimentação de capital imobiliário e financeiro. E vale salientar
que dentre as estratégias do capital uma é crucial, a relação cada vez mais dual do
poder público.
Sobre o papel do shopping center nesta Operação Urbana Consorciada, desta-
ca-se que o grupo JCPM do empresário João Carlos Pães de Mendonça atua nos
estados de Pernambuco, Ceará, Sergipe, Bahia e São Paulo, nos setores de shopping
434 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

centers, de empreendimentos imobiliários e de sistemas de comunicação. Antes de


enveredar por esses segmentos econômicos, esse empresário atuou no setor de varejo
alimentício, iniciando trabalhos com seu pai, depois abriu um armazém próprio em
Aracaju, capital de Sergipe, e na sequência instalou uma filial em Propriá, interior
de Sergipe. Nos anos 1960 esse empresário inaugurou, em Recife, o seu primeiro
supermercado com o nome de Bompreço, usando o slogan “Orgulho de ser nordesti-
no”. E desde 2004, a rede Bompreço é de propriedade da rede americana Wal-Mart.
A  Rede Bompreço  utiliza dois tipos básicos de lojas: Supermercado (Bompreço) e
Hipermercado (Hiper Bompreço).
Em termos de uso do solo da OUC Lagoa do Papicu, o terreno antes da instalação do
Shopping Center RioMar Fortaleza era de propriedade fundiária da família J. Macêdo,
onde havia funcionado a cervejaria Astra, e a cervejaria Brahma. Em 1999, pertencia à
Ambev (empresa resultado da fusão da Antarctica e Brahma). No ano de 2010 o prédio foi
implodido, em 10 segundos, tendo sido utilizados cerca de 250 kg de dinamite, de acordo
com jornais locais (Figura 1).

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Figura 01: Implosão do antigo prédio da Brahma para a construção do RioMar-Fortaleza
Fonte: Jornal O Povo, 2010.

Desde 2014, o grupo JCPM atua em Fortaleza por meio dos shopping centers: RioMar
Fortaleza (Figura 02), inaugurado em 2014 e RioMar Kennedy, inaugurado em 2016. A
chegada desse grupo na cidade causou uma reviravolta no setor de shopping center, já
que as localizações escolhidas geraram uma concorrência direta para com os dois maiores
shoppings da cidade, o Shopping Center Iguatemi e o North Shopping o que distam um
quilômetro de distância.

435 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 02: Fachada de Shopping Center RioMar Fortaleza


Fonte: Gonçalves, 2017

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Fortaleza ganha novos conteúdos sociais e espaciais “os shopping centers são expressão
material do processo de reestruturação metropolitana, face à concentração espacial do
comércio, entendida também como concentração de capitais e ultimamente associada ao
setor imobiliário-financeiro, o qual envolve algumas “parcelas” do espaço [...].” (Gonçalves,
2017, p. 32). Houve um alto volume de capital nesta área da cidade, somente o Shopping
Center RioMar Fortaleza movimentou cerca de 1,25 bilhão mais cerca de 40 milhões em
obras em seu entorno.
O momento atual é pautado em uma economia política neoliberal como poder
hegemônico com desdobramentos nas políticas públicas urbanas em escalas global,
nacional, regional e local (Peck & Theodore, 2012). Isto nos leva à reflexão no que
tange ao urbanismo neoliberal que tem se desenvolvido como um amplo projeto po-
lítico-econômico e que vem resposta à crise do capitalismo global. Diante disso, é
preciso pensar que:
A espacialidade da formulação de políticas não é achatada em algum plano
ou espaço de transação quase sem traços e inertes, marcado apenas com limites
jurisdicionais, através dos quais as transferências ocorrem, mas em termos de um
mosaico tridimensional de formas cada vez mais reflexivas de governança, mol-
dadas por formas direcionais de mobilidade política inter-escalar e interlocal.
Nesse contexto, as políticas não estão simplesmente transitando intactas entre
jurisdições, mas evoluem por meio da mobilidade, ao mesmo tempo em que (re)
fazem conexões relacionais entre os locais de formulação de políticas (Peck &
Theodore, 2010, p. 201).
436 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Diante disso, há uma tendência de pensar a respeito das imbricações das po-
líticas urbanas e suas territorializações nas diferentes parcelas de Fortaleza. Nesse
caminho, é preciso lidar com a complexidade associada à proliferação e velocidade
do processo de acumulação do capital que revela - o produto imobiliário - enquanto
mercadoria especial.
Com isso, os projetos de desenvolvimento acelerado construídos pelos governos lo-
cais, aliados aos agentes da esfera privada, passam a apresentar semelhanças consideráveis.
Consequentemente, as microrrealidades espacias desta OUC em questão são: a intensifi-
cação das segregação e a fragmentação socioespacial (Figura 03 e 04).

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Figura 03: Evolution Center Park
Fonte: Gonçalves, 2020

Desse modo, reconhecemos que há um caminho


de fragmentação socioespacial do bairro do Papicu.

437 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Isto nos leva à consonância do debate teórico-
-conceitual desenvolvido por Salgueiro (2001)
quando considera a fragmentação correspondendo
a uma estrutura socioespacial sem continuidade e
com destaque aos produtos imobiliários.
A constatação de que o espaço da cidade se exibe
fragmentado, ao longo do tempo. As paisagens ur-
banas que contêm os signos do cotidiano impõem
diferentes enfoques metodológicos e nova postura
científica, na medida em que emergem recentes
campos de investigação e novas bases conceituais.

Figura 04: Comunidade do Pau Fininho


Fonte: Gonçalves, 2020

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No bojo da crítica social, não há como não identificar questões latentes sobre as con-
sequências negativas da governança urbana de Fortaleza, com o seu lastro ideológico do
urbanismo neoliberal. Assim, temos como reflexos e materializações destas, o aumento da
fenda social que se abre entre os mais pobres e os mais ricos. Tal perspectiva da política
urbana da inflexão neoliberal e da produção do espaço ganha uma dimensão social, eco-
nômica e simbólica na medida em que os indivíduos mais ricos passam a viver, cada vez
mais, em condomínios fechados tanto verticais como horizontais.

Considerações Finais

Fortaleza encontra-se enquanto espaço urbano de interesse do que consideramos tría-


de do capital: financeiro, imobiliário e comercial. Sendo que há profundas alterações em
seus modelos de governança, de um lado, apresenta uma desregulamentação acelerada do
sistema social de proteção e do direito à cidade e; por outro lado, percebe-se um aumento
de políticas pró-crescimento alicerçadas em projetos, planos e regulamentações urbanís-
ticas com características de competitividade urbana, como: o Plano  Fortaleza 2040 e o
Programa Fortaleza Competitiva de 2017.
Concorda-se com Rolnik (2015) quando analisa que o Estado capitalista tem uma
forte relação com o desenvolvimento do urbanismo neoliberal mediante o aumento do
rentismo e financeirização, características estas da atual fase do capitalismo. Keil e Mahon
(2009) nos fala com propriedade a respeito da “nova economia política de escala”, do
reescalonamento espacial do Estado dentro da ampla constelação de processos de reesca-
438 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

lonamento que estão criando uma mudança político-institucional, destarte, nos conduz a
novos desafios epistemológicos, conceituais, reflexivos e empíricos.
Nesta perspectiva escalar, Fortaleza, nos revela recentes transformações econômi-
cas à luz dos processos globais, tendo como matiz o capitalismo desenvolvimentista
contemporâneo. Deste modo, as Operações Urbanas Consorciadas são manifestações
dessa “nova” capacidade de planejamento e gestão urbana atrelada aos novos proces-
sos de reescalonamento. Com efeito, as mudanças significativas do papel do Estado,
a destacar o poder municipal de Fortaleza, apresentou determinadas características de
governança pró-mercado na medida em que propiciou e propicia um arranjo espacial de
infraestrutura capazes de conceber e alargar os inúmeros artefatos urbanos no regime de
acumulação do capital.
Quanto à OUC Lagoa do Papicu, confirmou-se a presença de novos padrões espaciais
na metrópole. Consequentemente, a localização do RioMar Fortaleza foi escolhida, consi-
derando um bairro de classe média, todavia, que nos últimos anos não apresentava uma di-
nâmica imobiliária suficiente para potencializar a renda da terra. Com o Shopping Center

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RioMar Fortaleza e os empreendimentos imobiliários é evidente que o preço médio da
terra teve um aumento considerável.
No cerne desta discussão, avaliamos que nesta OUC os interesses econômicos se so-
brepõem às demandas sociais e ambientais. Esses empreendimentos de cunho imobiliá-
rio-financeiro-comercial foram construídos sobre a nascente do Rio Maceió. Além disso,
não foram respeitadas as Zonas de Interesse Social (Zeis), instituídas no Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano de Fortaleza (PDDU/FOR).
Com isso, além da atuação do capital privado é proeminente destacar que o poder público
municipal utilizou de discursos e projetos pautados na regeneração e/ou revitalização urbana.
No entanto, o que pudemos identificar foi a expansão do circuito e fluxos do capital do cha-
mado complexo imobiliário-comercial-financeiro. Deste modo, estas áreas do bairro Papicu
passaram por um processo de (re) valorização do solo urbano, ou seja, o preço médio do solo
urbano, após a chegada do shopping center e do Evolution Center Park, teve uma média acima
quando comparada com outras áreas de Fortaleza. Por isso, consideramos o papel categórico
do Estado na regulação e no regime de acumulação desenvolvimentista de Fortaleza.
Assim, concordamos com (McCann & Ward, 2011; Brenner & Schmid, 2015) quan-
do falam que a urbanização - e adicionaria a metropolização - não diz respeito a territórios
delimitados e homogêneos. Todavia é uma espacialidade complexa de extensão, concen-
trações fortemente em rede, assentamentos densos e extensos, paisagens operacionais e
práticas técnicas, sociais e culturais que se estendem a diferentes tipos de lugares, inovações
metodológicas que vão além de observações em um só lugar.
À guisa de considerações finais, ao correlacionamos governança e urbanismo neolibe-

439 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
ral, evidenciamos que a produção do espaço urbano de Fortaleza está em meio às novas
articulações do capital e às novas égides de relação com o Estado. Diante disso, requer um
olhar acurado dos rebatimentos desse novo modelo de governança urbana para aqueles que
vivem e fazem as metrópoles. Por isso, visualizamos Fortaleza nos circuitos financeiros e
informacionais que impulsionam a economia globalizada e seus ritmos no urbano/metro-
politano. Daí, concebemos que a justiça social e espacial em uma sociedade capitalista com
extrema desigualdade, não deve ser desprezada em seu discurso e práxis, mas sim, deve ser
perseguida, sabendo dos desafios a serem alcançados.

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442 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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IV. ARTE, CULTURA E LEITURAS
II. IIIIIIIIIIJJJJJJJD

DO TERRITÓRIO

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Toponímia e leitura da paisagem:
os nomes indígenas das cidades
e municípios do Rio Grande do Sul

Dirce Maria Antunes Suertegaray1


Rui Jacinto2
Inocencio de Oliveira Borges Neto3

Introdução

Os estudos relativos à toponímia no Brasil, como nos mostra Heberle e Machado


(2018), têm em Dick (1990) o registo e efetivação dum pesquisador pioneiro numa
temática que começa a assumir maior expressão, nacional e internacional, a partir dos
anos de 1980 e 1990, através de nomes como Rostaing (1985), Claval (1996), Fonseca
(1997) e Cowan (1996). O interesse em decifrar e decodificar os nomes de lugares

445 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
continuou sob diferentes possibilidades analíticas, tanto no campo da linguística, da
história, da geografia e da cartografia, como em outros domínios das ciências sociais.
Mais recentemente, o significado vernacular das palavras tem despertado interesse em
trabalhos relativos aos estudos da natureza, onde se busca o seu entendimento através
das denominações locais, como acontece com a etnogeomorfologia, de que são exemplos
os trabalhos de Alves (2014), Lopes (2016), Antunes e Ribeiro (2017) e Farias, Corrêa
e Ribeiro (2020).
A toponímia assume várias facetas e múltiplos prismas de análise, cada vez mais estu-
dados, como ficou demonstrado recentemente com a realização, em 2021, dum even-
to internacional, Simpósio Internacional Pan-americano de Toponímia, promovido pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Universidade Federal do Rio de

1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal da Paraíba (UFRGS/UFPB-BR)
2
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território e Centro de Estudos Ibéricos (CEGOT/
CEI-PT)
3
Universidade Federal do Paraná (UFPR-BR)

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Janeiro (UFRJ). Nos anais deste evento temos uma ampla amostra de trabalhos possíveis
e de várias proposições sobre o tema, trazidos de diferentes países de todos os continen-
tes. As múltiplas abordagens apresentadas vão desde as leituras classificatórias de lugares
à influência dos processos históricos na constituição dos seus nomes, das análises de
topónimos em cartas náuticas à toponímia urbana, sem esquecer, entre outros temas, os
topónimos vinculados as origens étnicas.
No caso específico do Rio Grande do Sul (RS-BR) têm sido publicados vários tra-
balhos relativos a estas matérias, desde os que explicitam a decifração dos topónimos aos
que consideram aspectos linguísticos, o vínculo cultural e o patrimônio associados aos
diferentes espaços regionais, seja o noroeste, o sudoeste ou o sul do estado. Surgiram, neste
âmbito, Toponimia da fronteira Oeste do Rio Grande do Sul; aspetos linguisticos-culturais
(Santos; Dal Corno, 2014), Topónimos do Noroeste do Rio Grande do Sul: uma relação sim-
bólica entre homem e lugar (Marcuz, 2016) e Toponímia: cultura e patrimônio do Rio Grande
do Sul (Diedrich; Machado, 2020). Observam-se ainda trabalhos vinculados à Geografia
quando associados à concepção de lugar na tentativa de decifrar aspetos da sua identidade
e dimensão telúrica na tentativa duma abordagem transversal e interdisciplinar visando
estabelecer uma relação com a geografia cultural (Nascimento et al., 2018; Bastiani et al.,
2018). Também se inscrevem neste espírito trabalhos anteriormente realizados sobre estas
matérias a que o presente texto dá continuidade (Suertegaray et al., 2021; Jacinto et al.,
2021; Borges Neto et al., 2022).
O atual ensaio, que terá como foco apenas os municípios do Rio Grande do Sul (RS-
BR) com nomes indígenas, tem como objetivo descrever os elementos fundamentais da
446 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

paisagem original dum estado que é coabitado por diferentes povos originários, sobretu-
do Tupi-Guarani, Gês–Kaingang, Pampianos-Charruas e Minuanos. A intensão é, a partir
da decifração dos topónimos, caracterizar o tipo de paisagem habitada relacionando-a
com seus habitantes, procurando captar sinais que particularizem, por exemplo, tanto
os Pampianos, fundamentalmente nômades/caçadores, como os Guaranis, predominante-
mente coletores/agricultores.
Para este efeito tomam-se como base os mapas do relevo (geomorfologia), da cobertu-
ra vegetal original e da hidrografia principal, importantes para a definição das regiões fisio-
gráficas e do macrozoneamento ambiental do estado do Rio Grande do Sul-BR. O mapa
de distribuição dos topónimos foi elaborado a partir da classificação previamente feita e
embasada em ensaio de classificação, anteriormente elaborada e, devidamente testada em
estudos anteriores, acima referidos, elaborados pelos signatários deste artigo.
Numa outra etapa estuda-se a distribuição dos topónimos a partir da superposição do
mapa de uso atual da terra do estado do Rio Grande do Sul-BR relativamente aos habitats
descritos pelos topónimos indígenas. Busca-se, assim, além de identificar e explicitar as

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condições paisagísticas que habitavam, detectar tanto as transformações registadas nos
usos da terra como possíveis permanências entre os diferentes elementos paisagísticos.
Complementa esta análise a indicação dos municípios que, porventura, tenham tido origi-
nalmente nomes indígenas e que, no processo de ocupação territorial, foram substituídos,
onde a ausência de tais denominações passa despercebido do ponto de vista do mapea-
mento atual.
Os procedimentos cartográficos foram realizados tomando a base cartográfica do
IBGE (2021), processada no software de licença livre QGis (versão Bialowieza 3.22.1),
desde a vetorização das bases ausentes até a composição dos mapas que expressam a
distribuição dos topónimos indígenas para os municípios do Rio Grande do Sul-BR. Os
resultados estão expressos por um conjunto de mapas vinculados aos aspectos naturais,
a cobertura vegetal original e o mapa de uso atual da terra para o estado. Apresenta-se
ainda a análise das mudanças, dos topónimos indígenas que foram substituídos por
outras denominações no decorrer do processo histórico de formação do estado do
Rio Grande do Sul-BR. A decifração dos topónimos indígenas foi obtida através da
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros4 de páginas oficiais dos municípios e de biblio-
grafia específica (Cherini, 2007).

Rio Grande do Sul: enquadramento, divisão municipal e distribuição


dos povos originários

A localização do Rio Grande do Sul no território brasileiro, a divisão municipal do

447 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
estado e a distribuição dos povos indígenas, como se pode observar na Figura 1, permite
destacar a sua diversidade bem como a posição no extremo sul do Brasil, fazendo fronteira
com o setor norte da República Oriental do Uruguai, ao sul, e a República Argentina,
ao oeste. Parece natural que permaneçam na toponímia local alguns nomes de lugares de
origem indígena, denominações que são o objeto central desta pesquisa, apesar de ser um
estado forjado em lutas de disputa territorial entre portugueses, espanhóis e as populações
originárias, conflitos em que houve a tentativa de apagar, sob várias formas, a memória
dos povos indígenas.

4
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=2100506&view=detalhes

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Figura 1 – Rio Grande do Sul: enquadramento da área de estudo e distribuição dos povos indígenas.
Fonte: CDC; IBGE. Elaboração própria (2022).

A distribuição dos municípios e a sua maior ou menor concentração (Figura 1), resulta
448 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

do processo histórico de ocupação deste estado. O número mais reduzido de cidades que
se verifica ao sul está associado à ocupação portuguesa, com a distribuição de sesmarias
e a consequente dispersão das cidades, enquanto ao norte ocorre uma concentração mais
significativa de municípios de pequena dimensão espacial, que expressam o processo de
colonização alemã e italiana, mais tardio, ocorrido no século XIX.
Os habitantes do atual Rio Grande do Sul, povos originários anteriores ao domínio
espanhol e português, mostram uma distribuição das populações indígenas cuja geografia
aponta para
[...] três grandes grupos étnicos pré-guaranis, distribuindo suas populações em
territórios diferenciados ao longo do espaço atual do Rio Grande do Sul: Os Jês
foram um grupo territorialmente atlântico com forte interiorização, com marcada
ocupação do Planalto, predominando ao longo da bacia do rio Uruguai e seus prin-
cipais mananciais formadores; praticavam a agricultura, armazenavam alimento e
conheciam a tecelagem. A etnia tape, praticantes de agricultura diversificada em uni-
dades de produção, ocupavam uma área que compreendia uma faixa que se estendia

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da região missioneira (noroeste) até as margens da Laguna dos Patos (sudeste). Por
último, posicionados na região sul–sudoeste rio-grandense, a etnia Chaná ou guai-
curus foi a que mais influenciou a formação do Rio Grande do Sul, principalmente
na tipologia do gaúcho (Suertegaray; PIRES, 2009, p. 21).

A página sobre a Saúde da População Indígena5 regista que a população indígena no Rio
Grande do Sul é de 32.989 habitantes, segundo o censo realizado pelo IBGE em 2010,
sendo, aproximadamente, 23.000 aldeados, divididos entre as etnias Guarani, Kaingang e
Charrua. Mostra ainda que a maior concentração populacional indígena ocorre no Norte
do estado, presença que é detectada em 65 municípios dos mais de quatrocentos que
compõem o Rio Grande do Sul. O número de terras indígenas regularizadas também é
muito baixo, constando apenas 20 registros de acordo com a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), corroborando a frequente presença de indígenas em acampamentos em condi-
ções precárias6.
A maior concentração populacional e de terras indígenas ocorre no norte, encontran-
do-se demarcadas ou em processo de reconhecimento Cacique Doble, Ligeiro, Nonoai e
Guarita, Serrinha, Vontouro, Monte Caseiros, Inhacorá e Borboleta. Os Kaingang (grupo
Gê ou Coroados) ocuparam extensas áreas do norte e noroeste do estado, encontrando-se
atualmente 4.100 índios distribuídos em alguns postos/ aldeias, comunidades que vivem
da agricultura de subsistência e do extrativismo. O direito à terra, na atualidade, continua
muito instável, existindo conflitos com agricultores e a expectativa, quase sempre adiada,
do efetivo reconhecimento de suas reservas pelos poderes do estado. A situação das de-

449 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
marcações também envolve a indenização de agricultores que foram assentados em terras
indígenas durante a década de 407.
Os Guarani,
[...] convivendo com os grupos humanos antecedentes, mas com ambiente e
tecnologias diferenciadas, ocupavam preferencialmente as regiões com cobertura
florestal, migrando sazonalmente para o litoral em busca de pescado e moluscos.
Iram contatar os grupos pampianos ao descerem o planalto e ocuparem áreas da sua
encosta e territórios limítrofes...isso se desenvolveu por volta de 3.000 A.P. Outras
ondas migratórias que chegam, ao que é hoje o Rio Grande do Sul, pelo norte per-
mitem a sobreposição de culturas e a miscigenação de diferentes Tradições ocorrendo
a [...] paulatina ocupação dos ambientes de florestas pelo Tupi-guarani a partir de
mais ou menos 1.500 A. P (Suertegaray; Pires, 2009, p. 53).

5
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6
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7
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Na atualidade é reconhecido que
[...] a maior concentração populacional Guarani (Mbyá, Ava-Katu-Eté ou
Nhandeva-Xiripa) ocorre em cidades ou região próximas de Porto Alegre, missões
e litoral. Nas missões, local em que se estruturou, até 1756, uma espécie de “cidade
guaranítica” planejada pelos missionários jesuítas, que pretendiam a catequização
deste povo, habitavam milhares de famílias e onde hoje vivem pouco mais de 37
famílias, ou uma população não muito superior a 200 pessoas, em uma área deno-
minada de Nhacapetum (Ko’eju), comprada pelo Estado do Rio Grande do Sul com
236,33 hectares8.

O mais emblemático aldeamento dos Guarani nos séculos XVII e XVIII, de acordo com
a divulgação na página Coletivos Guarani, ocorreu durante o domínio espanhol, quando
foram instaladas missões (ou reduções) jesuíticas ligadas a Companhia de Jesus. Os jesuítas
foram responsáveis, desde 1625, pelo estudo e abundante documentação da língua Guarani
(ou Guarani antigo). Nas Missões, de economia coletivista, os Guarani atingiram alto grau
de desenvolvimento e domínio de técnicas europeias, mas, os conflitos estabelecidos com o
Império Português e a expulsão dos jesuítas tornaram-nos alvo dos bandeirantes paulistas9.
Pampianos, os Charruas e os Minuanos eram nômades, cujo modo de vida girava em
torno de habitações construídas com material local, com coberturas feitas de junco ou de
palmas de caraguatá, denominadas de toldo, onde se abrigavam, aproximadamente, 50
famílias. Como caçadores percorriam os campos pampianos caçando, com utensílios feitos
de pontas de lança e de flecha, emas, veados, tatus, ratões do banhado e capivaras. Vivendo
450 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

em áreas de campo e sendo caçadores-coletores, a cultura dos Charruas e Minuanos, de-


pois de 1607, relaciona-se com a montaria e a introdução do gado bovino (1634). Os
Charrua rapidamente tornaram-se exímios cavaleiros10.
Da etnia Chaná ou guaicurus deriva o grupo charrua, estes tinham domínio do
Sul e do território do Uruguai; juntamente com os minuanos serão os senhores da
faixa que se estende da coxilha do Haedo, passando pela região sul do escudo até o
litoral (Vieira 1985). Os charruas, que ofereceram resistência à ocupação do coloni-
zador europeu, eram hábeis e destemidos, possuíam cultura neolítica, alimentando-
-se de carnes de caça assadas em espeto (e assim nasceu o [...] churrasco gaúcho), e
utilizavam indumentárias de couro. Esses nativos foram absorvidos pelo trabalho nas

8
http://www.al.rs.gov.br/download/ccdh/coletivos%20guarani%20no%20rs.pdf.
9
Estado do Rio Grande do Sul. Assembléia Legislativa, 2010.Comissão de Cidadania e Direitos Humanos.
Coletivos Guarani no Rio Grande do Sul Territorialidade, Interetnicidade, Sobreposições e Direitos. Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
10
https://websmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/montecristo/03almanq/estrs.htm.

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primeiras estâncias de espanhóis e lusos, estabelecidas na campanha gaúcha; hábeis
em montaria, o cavaleiro charrua passou a peão, o principal núcleo antropológico do
gaúcho (Vieira, 1985). Os antigos pampianos, falavam a língua quíchua, armavam
tendas ou toldos junto à margem de rios ou banhados, vagando em busca de caça,
usavam boleadeiras e flechas, essas últimas também na pesca, assim como redes. Os
toldos eram recobertos com junco, em contato com o gado europeu (introduzido a
partir de 1634) passam para a cobertura com o couro desses animais. A tolderia abri-
gava grupos familiares, sem a formação de aldeias ou comando de chefias... (Flores,
1993:14). Senhores das paisagens que compreendem as bacias dos rios Ibicuí (por
eles denominado – significa rio de areias brancas), Quaraí e Jaguarão, adentran-
do nas repúblicas fronteiriças, apropriando a diversidade do seu espaço geográfico,
foram autores e espectadores da cena que inicia com a chegada dos europeus e suas
culturas (Suertegaray; Pires, 2009, p. 52-53).

Breve Geografia da Toponímia Indígena do Rio Grande do Sul

Toponímia indígena: classificação e distribuição especial dos nomes


dos municípios

Apenas 113 municípios do número total que compõem o estado do Rio Grande do
Sul (497) continuam a manterem os nomes de origem indígena. Aquele número, que
corresponde a 22,7% do total, como decorre da Tabela 1, onde se comparam os nomes

451 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
indígenas, consoante uma das tipologias consagradas, relativamente ao conjunto total dos
topónimos das cidades que dão nome aos municípios.
A análise dos topónimos de origem indígena mostra que remetem, fundamentalmen-
te, para nomes de plantas (29,2%), animais (15,9%) e hidrotoponímia (19,5%), repre-
sentando estas três tipologias, aproximadamente, 65% do número total de nomes de base
indígena. Apresenta-se, título exemplificativo, um conjunto de alguns nomes de municí-
pios que expressam a representação de cobertura vegetal e/ou espécies vegetais específicas,
feições hidrológicas e morfológicas e, num único caso, um topônimo indígena com indi-
cativo de santo. Assim:
• Boa Vista do Buricá (tupi-guarani). Buri: uma espécie de palmeira e Caã = mato;
Buricá significa, pois, mato de palmeiras.
• Bossoroca (Guarani). Boçoroca: Barrocão, sangão fundo ou Bossoroca, de Iby-Soroc.
Iby = terra; Soroc = rasgão, chão rasgado; corresponde a um fenômeno que ocorre
por efeito das águas em terrenos arenosos. A palavra Bossoroca significa terra fendida.
• Guaíba (Gua-ybe; Tupi). Tem o sentido de baía de todas as águas.

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• Jaguari (Jaguar-hy; Guarani). Significa rio do jaguar (onça). O local onde atualmente
localiza-se o município de Jaguari teve como primeiros habitantes os índios guaranis.
• Jaquirana (Tupi – Guarani, origem do termo yaquirana). Sgnifica cigarra.
• Quaraí (Guarani). “Quará” = buraco, cova, refúgio + “i” = rio: rio dos buracos (pa-
nelinhas) ou rio das Garças.
• Tabaí (Guarani). “Taba” = aldeia, vilarejo + “i” = rio, arroio, água(s). Rio da aldeia.
• Uruguaiana (Guarani). “Uruguá” = caracol, molusco + “i” rio + Ana (Santana) hi-
bridismo, Santana do Uruguai.
• Itaara (Tupi-Guarani). Significa pedra alta ou altar de pedra.
• São Sepé (Guarani). “Sepé” (corruptela por aglutinação dos étimos “sapé” (gramí-
nea, em facho e floração) + “josé” (ph/f ): Jospe Tiarajú, facho luminoso (guia).

Tipologias Total Geral Toponímia indígena


  Nº % Nº %
       
1. Toponímia e matriz identitária  156 31,4 113 100
1.1. Nome Indígena  94 18,9 113 100
1.2. Missão  11 2,2  
1.3. Sul  49 9,9  
1.4. Estrela  2 0,4  
       
2. Rotas do povoamento primordial  270 54,2 20 17,6
452 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

2.1. Elementos fundamentais do povoamento primordial  39 7,8 7 6,2


2.2. O paraíso na terra  31 6,2 5 4,4
2.3. Nome de pessoas (Antroponímia)  99 19,9 4 3,5
2.4. Nome de santos  66 13,3 4 3,5
2.5. Nome de lugar portugueses  4 0,8  
2.6. Imigração  22 4,4  
2.7. Nome de data histórica  9 1,8  
       
3. Condições naturais locais  234 46,9 93 82,4
3.1. Biogeografia: animais  18 3,6 18 15,9
3.2. Biogeografia: plantas  41 8,2 33 29,2
3.3. Condições biogeográficas: mato  12 2,4 1 0,9
3.4. Condições biogeográficas: pinhal, coqueiral, mata  13 2,6 3 2,7
3.5. Condições biogeográficas: campina, sertão, gramado  16 3,2 2 1,8
3.6. Hidrotoponímia: Rio, Cachoeira, Arroio, Lagoa,…  62 12,5 22 19,5
3.7. Hidrotoponímia: Porto  1 0,2  
3.8. Hidrotoponímia: Barra  7 1,4  

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Tipologias Total Geral Toponímia indígena
  Nº % Nº %
3.9. Acidentes morfológicos: Monte, Vale, Serra  41 8,2 6 5,3
3.10. Geologia: Rocha, Lageado  23 4,6 7 6,2
3.11. Relativo a condições atmosféricas 0   1 0,9
       
0. sem atributo  4   0 -
Total Municípios  497 100,0 113 100,0

Tabela 1 – Os municípios do Rio Grande do Sul segundo as tipologias: número total e dos nomes de ascendência
indígena.
Nota: A primeira coluna corresponde a um primeiro apuramento publicado em estudo (SUERTEGARAY et al.,
2021). Os nomes indígenas compostos, com nome de santos, por exemplo, foram então considerados e incluí-
dos em nomes de santos; como agora foram autonomizados alcançou-se um número diferente, explicando os
atuais 113 contra os 94 municípios anteriores.

A classificação toponímica elaborada para os nomes das cidades do Rio Grande do


Sul com ascendência indígena (Tabela 2), mostra que estes municípios estão associados,
fundamentalmente, como já referimos, às condições locais, sejam bióticas, relacionadas
com plantas ou animais, ou associadas as condições abióticas, enquadrados sobretudo no
âmbito da hidrotoponímia. O maior percentual nessas três categorias permite perceber o
estreito vínculo que os topónimos de origem indígenas têm com constituintes naturais.

Tipologias presentes na toponímia indígena Municípios

453 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
2. Rotas do povoamento primordial  

2.1 Elementos fundamentais do povoamento primordial Caiçara; Charrua; Guarani das Missões; Maratá; Pelo-
tas; Tapera; e, Tapes
2.2 O paraíso na terra/Sentimento (espirito) do lugar Cotiporã; Nonoai; Paverama; Tapejara; e, Ubiretama

2.3 Nome de pessoas (Antroponímia) Ajuricaba; Bagé; Cacique Doble; e, São Sepé

2.4 Nome de santos Tupanciretã; Tupanci do Sul; Tupandi; e, Tuparendi

   
3. Condições naturais locais  
3.1 Biogeografia: Animais Aratiba; Canguçu; Chuí; Jacuizinho; Jacutinga; Jagua-
rão; Jaguari; Jaquirana; Miraguaí; Muçum; Panambi;
Pirapó; Piratini; Sapucaia do Sul; Sinimbu; Toropi;
Turuçu; e, Uruguaiana

3.2 Biogeografia: Plantas Araricá; Boa Vista do Buricá; Butiá; Cacequi; Cambará
do Sul; Caraá; Crissiumal; Giruá; Gravataí; Guabiju;
Ibarama; Ibirubá; Imbé; Inhacorá; Ipê; Ivoti; Jabutica-
ba; Maçambará; Marau; Muitos Capões; Nova Araçá;
Pejuçara; Salto do Jacuí; Sananduva; São José do Inha-
corá; São Sebastião do Caí; Sapiranga; Sarandi; Taqua-
ra; Taquari; Taquaruçu do Sul; Tucunduva; e, Tunas

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 453 20/06/2023 16:46:48


Tipologias presentes na toponímia indígena Municípios

3.3 Condições biogeográficas: Mato Ibiraiaras

3.4 Condições biogeográficas: Pinhal, Coqueiral, Mata,... Caçapava do Sul; Caibaté; e, Capão do Cipó

3.5 Condições biogeográficas: Campina, Sertão, Gramado,... Erebango; e, Erechim

3.6 Hidrotoponímia: Rio, Cachoeira, Arroio, Lagoa,… Bossoroca; Camaquã; Capivari do Sul; Carazinho;
Catuípe; Entre-Ijuís; Garruchos; Ibiaçá; Ibirapuitã;
Ijuí; Iraí; Ivorá; Jari; Mampituba; Novo Xingu; Paraí;
Parobé; Putinga; Quaraí; Seberi; Tabaí; e, Tramandaí
3.9 Acidentes morfológicos: Monte, Vale, Serra,... Aceguá; Guaíba; Guaporé; Itaara; Pareci Novo; e,
Viamão
3.10 Geologia: Rocha, Lajeado,... Gaurama; Humaitá; Itacurubi; Itapuca; Itaqui; Itati; e,
Itatiba do Sul
3.11 Relativo a condições atmosféricas Arambaré

Tabela 2 – Toponímia indígena: enquadramento dos nomes dos lugares na respectiva tipológica.

A distribuição espacial das categorias de topónimos nos três mapas (Figura 2 – A, B


e C) mostra uma maior concentração de nomes indígenas na metade norte do estado, si-
tuação comum nos três eixos utilizados na classificação: rotas de povoamento primordial,
condições naturais locais (bióticas) e condições naturais locais (abióticas). A maior con-
centração de nomes indígenas no norte do estado está associada a uma malha municipal
mais densa que se explica pelo processo de ocupação desta parcela do território, vinculada
à colonização alemã e italiana, iniciada em 1824 e 1875, respectivamente. Este processo
454 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

teve por base a pequena propriedade, originalmente em torno de 25 ha, que se foram
esgotando em decorrência da partilha (herança) na chamada Colônia Velha, a leste do es-
tado, e que foi adentrando no sentido Norte e Noroeste. A pressão sobre a terra nas regiões
das colônias velhas (Depressão central, Encosta Inferior do Nordeste e Encosta Superior
do Nordeste) acabou por promover um êxodo em direção ao norte e noroeste do Rio
Grande do Sul, nas regiões do Planalto Médio e Alto Uruguai, em busca de novas terras,
pelos colonos e/ou filhos de colonos, que aderiram aos novos projetos de colonização. Este
processo implicou a tomada de terras indígenas, a sua extinção e ou deslocamentos para
lugares mais distantes.
No Sul do estado verifica-se uma menor concentração de cidades que decorre do
processo de colonização Ibérica cuja espacialização assentou na distribuição de sesmarias.
Estas grandes propriedades associadas à criação do gado gerou municípos de maior exten-
são e uma concentração populacional menor que se reflete na existência de menos cidades
acompnhada de menor densidade populacional nessa parcela do território gaúcho.

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Figura 2 – Geografia da Toponímica Indígena do Rio Grande do Sul: os topónimos indígenas segundo as prin-
cipais tipologias. Rotas do povoamento primordial – A; Condições naturais locais (biótico) – B; e Condições
naturais locais (abiótico) – C.
Fonte: CDC; IBGE. Elaboração própria (2022).

O registo da paisagem segundo a toponímia indígena

A paisagem habitada pelos indígenas pode ser resgatada se levarmos em consideração as

455 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
características regionais e locais, sendo melhor explicitadas quando se começa a decifrar os
topónimos indíginas (Figura 3). A distribuição dos topónimos indíginas está correlacionada
com o relevo/ geomorfologia (Figura 3 – A, B e C), a cobertura vegetal original (Figura 3 –
D, E e F) e os principais cursos de água (Figura 3 – G, H e J), além das rotas de povoamen-
to. O número de cidades com toponímia indígina no estado do Rio Grande do Sul é mais
reduzido em domínios relacionados com as rotas de povoamento primordial relativamente à
denominações como as condições naturais, sobretudo o relevo, a vegetação e a água, confor-
me anteriormente referido, demonstrando a relação intrínseca dos indíginas com a natureza.
O mais expressivo destes constituintes corresponde, pois, à biogeografia – animais
e plantas – (Figura 3 - B). A distribuição destes topónimos predomina no centro e no
norte do estado, sendo de destacar que o relevo predomina entre os nomes na região (1),
que corresponde ao Planalto Meridional (basáltico-arenítico), a forma de relevo que ca-
racteriza o norte do estado. A cobertura vegetal mostra, da mesma forma, ser mais densa
e frequente entre os topónimos indíginas no centro norte do estado, na região Zona da
Mata (2) – Floresta Subcaducifólia – (Figura 3 - E), de que são exemplos, entre outras,
as cidades denominadas de Gravataí, Guabiju, Taquara, Tunas. Este padrão distributivo

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repete-se ainda relativamente à rede fluvial pois é observável a concentração de cidades nas
redes hidrográficas do centro norte do estado, dominantemente nas bacias dos rios Jacuí
(5), Ibicui (3), Ijuí (9) e Uruguai (1) (Figura 3 – H).
456 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 – Geografia Toponímica Indígena do Rio Grande do Sul: correlação da distribuição dos topónimos in-
dígenas com os mapas das condições naturais. Geomorfologia – A, B e C; Cobertura Vegetal Original – D, E e F;
Hidrografia Principal – G, H e I.
Fonte: CDC; IBGE. Elaboração própria (2022). Legenda das bases: Geomorfologia. 1 – Planalto Meridional, 2
– Cuesta do Haedo, 3 – Depressão Central, 4 – Escudo Sul-rio-grandense, 5 – Planície Costeira (Figuras A, B e
C); Cobertura Vegetal Original. 1 – Zona de Campo, 2 – Zona da Mata, 3 – Vegetação Litorânea (Figuras D, E
e F); Hidrografia Principal. 1 – Rio Uruguai, 2 – Rio Quaraí, 3 – Rio Ibicuí, 4 – Rio Santa Maria, 5 – Rio Jacuí,
6 – Rio Camaquã, 7 – Rio Sinos, 8 – Rio Taquari, 9 – Rio Ijuí, 10 – Rio Chuí (Figuras G, H e I).

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É ainda no norte do estado que se encontram denominações associadas à geologia,
sobretudo a presença de rochas, como acontece com as cidades (Ita + pedra), nos casos de
Itatiba do Sul , Itacuribi e Itati. No sul do estado é visível uma maior presença de topóni-
mos associados a biogeografia (animais), ocorrendo nomes como Canguçu, Chui, Piratini,
Jaguarão. Esta região compreende a área de dominância de campos recobrindo três unida-
des geomorfológicas do estado: a Cuesta de Haedo (2), a Depressão Central (2) e o Escudo
Sul-rio-grandense (3), que constituem a denominada região pampiana e é o habitat dos
povos Minuanos e Charruas. Destacam-se também nesta porção do território cidades com
topónimos relativos a acidentes morfológicos: Itaqui, Aceguá, Guaíba e Viamão.
Estes elementos naturais revelam também a existência dum forte vínculo com a evolu-
ção histórica da ocupação do território, mostrando a relação que sustentam com a divisão
regional denominada de Regiões Fisiográficas (Figura 4 - A, B e C), bem como com o atual
Macrozoneamento do estado (Figura 4 - D, E e F). A comparação entre esses dois tipos de
regionalizações, a que vamos recorrer, visam encontrar pistas e indicações da paisagem no-
minada localmente, pelos povos indígenas, com as transformações decorrentes do processo
histórico, ao nível do uso e da apropriação da terra.
As regiões fisiográficas subdividem o estado em 11 unidades: Litoral (1), Depressão
Central (2), Encosta de Sudeste (3), Serra do Sudeste (4), Campanha (5), Missões (6), Alto
Uruguai (7), Planalto Médio (8), Encosta Inferior do Nordeste (9), Encosta Superior do
Nordeste (10) e Campos de Cima da Serra (11) (Figura 4 - A, B e C). Dominantemente
definida por critérios naturais, fundamentalmente embasado na morfologia, esta divisão
destaca em termos de ocupação a região das Missões cuja história está vinculada ao al-

457 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
deamento dos povos Guarani pelos colonizadores espanhóis. Estes aldeamentos foram de
grande pungência e as marcas dessa ocupação está registrada nos sete povos das Missões,
hoje denominadas de cidades missioneiras. Estas cidades levam nomes de santos e foram
atribuídos pelos jesuítas. Os povos indígenas, particularmente do grupo Jê (Kaingang),
Guarani, tem sua região originária no Planalto Médio, enquanto as demais regiões, com
exceção da Campanha, Encosta de Sudeste e Serra do Sudeste, que compõe a que se deno-
mina Pampa, é habitado, primordialmente, por Charruas e Minuanos.
Ainda que predominem os topónimos indígenas das cidades no norte é importante
observar que acabam por estar presentes, com densidades diferentes, em todo território
gaúcho, associados aos mais variados elementos naturais, sejam rios (Jacuí, Ibicuí, Taquari,
Uruguai, Ijuí, Quaraí entre outros), cerros (Itacolomy, Jarau, etc.) ou expressando certas
características naturais locais ou regionais: Miraguaí e Muçum (espécie de peixe), Panambi
(borboleta), indicando a presença de animais; Butiá e Guabiju (frutas nativas), Taquara e
Ipê (espécies vegetais), ou indicadores de ambientes mais secos, como Gravataí (espécie
vegetal espinhosa) e Tunas (cactos). Os nomes de certos lugares expressam, pois, a presença

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no local de espécies diversas, de espécies frutíferas nativas ou de espécies que constituem
indicadores de certos ambientes naturais.
458 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4 – Geografia Toponímica Indígena do Rio Grande do Sul: correlação da distribuição dos topónimos indíge-
nas com os mapas das divisões regionais. Regiões Fisiográficas - A, B e C. Macrozoneamento Ambiental - D, E e F.
Fonte: CDC; IBGE. Elaboração própria (2022). Legenda das bases: Regiões Fisiográficas. 1 – Litoral, 2 –
Depressão Central, 3 – Encosta Sudeste, 4 – Serra do Sudeste, 5 – Campanha, 6 – Missões, 7 – Alto Uruguai, 8
– Planalto Médio, 9 – Encosta Inferior do Nordeste, 10 – Encosta Superior do Nordeste, 11 – Campo de Cima
da Serra (Figuras A, B e C); Macrozoneamento Ambiental. 1 – Florestas Remanescentes, 2 – Campos (limpos,
subarbustivos, mistos), 3 – Agricultura (verão e inverno/verão), 4 – Dunas (Figuras D, E e F).

Mostra-se, assim, que a nominação atribuída a certo lugar, originalmente, pelos indí-
genas, foi mantida em alguns casos pelos colonizadores, como atestam muitas referências
de algumas cidades localizadas ao norte do estado: no Noroeste, na região Missioneira,
temos como exemplos as cidades de Caibaté (mato alto com muitas frutas) e Boçoroca
(terra fendida); na região do Alto Uruguai, Iraí (rio do mel) e na campanha cidades como
Itaqui (pedra de areia), Uruguaiana (mexilhão ou caracol mais Santana), Quaraí (rio

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 458 20/06/2023 16:46:50


dos buracos); no litoral encontramos, por exemplo, Tramandaí (rio sinuoso, piscoso) e
Arambaré (bruma ou névoa).
O macrozoneamento ambiental, aqui apresentado de forma simplificada, permite ob-
servar as transformações da cobertura vegetal original e a ocupação e uso atual (Figura 4 - D,
E e F). As Florestas Remanescentes (1), que constituem atualmente área florestada ainda pre-
sente no estado, remetem para topónimos de cidades que sinalizam as características de co-
bertura vegetal e/ou morfologia local, de que são exemplos Caraá (espécie vegetal) e Capão
do Cipó (mato redondo). Uma segunda região denominada Campos, limpos, subarbustivos
ou mistos (2), apresenta um número ínfimo de cidades com denominações indígenas, onde
se expressam transformações, com a introdução da cultura do arroz e mais recentemente a
produção de soja e a silvicultura do eucalipto, embora mantenha uma forma de apropriação
vinculada a grande propriedade e a produção pastoril, originária do período de ocupação
colonial, exemplificadas por Cacequi (planta viva) e Jaguarão (campo de boa qualidade).
A macrorregião denominada Agrícola (3), onde predominam os cultivos de verão e in-
verno/verão, constitui a região onde são mais expressivas as transformações, por ser uma área
que era, originalmente, recoberta de floresta, que foi sujeita a um sucessivo desmatamento
para expansão da agricultura fruto do processo de colonização germânica e italiana vincu-
lada a produção agrícola. Diante disto, ao fazer uma correlação dos topónimos indígenas e
as características de uso atual, fica evidente a transformação de uma região originalmente
habitada por povos indígenas que, com o processo de ocupação, foram sendo exterminados
e/ou remetidos a lugares mais distantes, dando lugar a uma região agrícola expressiva tendo a
sua produção básica nas culturas de soja, trigo, uva, maçã, fumo, milho e horticultura. Nesta

459 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
região, são exemplos de topónimos que remetem para a condição original, Carazinho (riacho
na clareira do mato), Erechim (campo pequeno), Erebango (campo grande). Apontam para
áreas de campo presentes no Planalto Meridional (NE), denominados Campos de Cima da
Serra, Giruá (palmeira), Ibarama (terra das árvores) e Ibiriara (Senhores da Mata), referências
que remetem para a cobertura original de mato ou campo existente nessas áreas planaltinas.
A macrorregião de Dunas (4), dado as suas características, mantêm-se como área não
ocupada, embora faça parte do litoral, onde os registros toponímicos e arqueológicos in-
dicam que também foram espaços habitados por povos originários, de que são exemplos
Mampituba (rio de muitas curvas), Chuí (pássaro amarelo) e Imbé (planta enredadeira/cipó).

Presença e ausência de nomes indígenas: as novas denominações


das cidades e a ocultação da velha toponímia dos povos originários

A permanência e/ou ausência (por substituição) de nomes indígenas no estado do Rio


Grande do Sul é uma outra perspectiva de análise que nos propusemos realizar a partir da

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 459 20/06/2023 16:46:50


leitura cronológica das principais mudanças, ocorridas por substituição ou retorno ao nome
original (indígena) (Tabela 3). Verifica-se que entre 1890-1900, com base na leitura desta
tabela, ter surgido um número expressivo de cidades com o nome indígena acrescido de um
nome de santo. Este fato indica a permanência do topônimo indígena em associação com
uma santidade de origem católica, introduzido pelo colonizador espanhol ou português.
Entre 1890 e 1950, duas cidades tiveram seus nomes indígenas substituídos por outro,
mudança pouco expressiva no conjunto. Entre as décadas de 1950 e 1960, ocorre uma
expressiva mudança de outros nomes para denominações indígenas (20), tendência que
permaneceu nas décadas posteriores (1970-1980), onde se registam 15 cidades que subs-
tituem seus nomes por nomes indígenas. Entre 1987-1992, período de intenso processo
de emancipação municipal, muitas cidades com topónimos indígena substituíram-nos por
outros nomes que revelam ora a indicação de cidades de países de origem da população ora
a valorização de pessoas vinculadas à política ou, então, o nome de santos.

Criação das
Mudanças de nome das cidades
cidades
1800-1900 - Cidades em que permanece o nome indígena acrescido de um Santo (16; alguns exemplos): São
Sebastião de Bagé (1846); São Batista do Camaquã (1864), São José do Taquari (1849 - origem
Açoriana); São João Batista de Quaraí (1875), São Patrício de Itaqui, entre outras. 
1890-1950 - Cidades que tiveram nomes indígenas substituídos por outros (2): Jacuhy (Jacuí) (1927) por
Sobradinho, Campo dos Bugres, por Caxias do Sul (1890). 
- Cidades com substituição de outros por nomes indígenas (2): Água do Mel (1933), por, atual-
mente, Iraí; Colônia Jaguari por Jaguarí (1920), Paiol Grande por Erechim (1918). 
460 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

1950-1960 - Cidades com substituição de outros nomes por nomes indígenas (20) ex.: Capão da União,
atualmente Boçoroca; Brochier do Maracatá atualmente Maracatá; Rio Branco por Catuipe
(1961), Barro por Garama (1954), Passo da Pedra por Giruá (1955), Varzinha por Guaporé
(1903), General Osório por Ibirubá,
1970-1980 - Cidades com substituição de outros nomes por nomes indígenas (15) ex.: Monte Vêneto por
Catiporã (1982), Três Forquilhas por Itatí (1996), Vista Alegre por Jaquirana (1987).  
1987-1992 - Cidades que tiveram nomes indígenas substituídos por outros (4): Guaiacurus (1941) por Novam
Roma (1987); Picada Capivara por Lindolfo Collor (1992); Ibiaça/Tapejara (origem aldeia indíge-
na) por Santa Cecília do Sul (1996), Inhuverá por Santa Clara do Sul (1992).

Tabela 3 – Cronologia das mudanças dos nomes indígenas nos municípios de Rio Grande do Sul.

Esta breve análise parece indicar que a probabilidade de permanência das deno-
minações indígenas é maior quando o topônimo é associado a uma entidade religiosa
colonial. A substituição significativa de outros nomes por nomes indígenas, verificada
em 35 cidades, ocorreu, fundamentalmente, entre 1950 e 1980, já que o número de ci-
dades que tiveram o nome indígena substituído no período, de 1987 a 1992, foi muito
reduzido (4).

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Observou-se, pois, uma significativa troca de nomes de municípios com outras de-
nominações para nomes indígenas sobretudo entre 1950-1960 e 1970-1980. Como se
sabe, com a instalação do Estado Novo, foram proibidos nomes de cidades com nomes
de origem estrangeira, legislação que poderá ser o possível caminho para interpretar essa
concentração de trocas de nomes para nome indígenas verificado nesse período. Cabe ainda
registrar que o colonizador, ou batizou o lugar dando o nome do lugar donde partiu, donde
é natural, ou de um lugar principal da colônia, como fez Pombal, no norte e nordeste do
Brasil, impondo nomes à colônia com base numa política ativa de colonização. No caso do
Rio Grande do Sul este tipo de intervenção Pombalina de substituição de nomes de cidades
não teve expressão (1750-1777), dado que a configuração do território português, no sul
do Brasil, é mais recente, por se tratar dum território cuja disputa com a coroa espanhola
se arrastou. Ainda que a sua política se tenha manifestado sob outros aspectos, como a ex-
pulsão dos jesuítas, a primeira divisão municipal, da então capitania de Rio Grande de São
Pedro do Sul, aconteceria em 1809, posterior as políticas de Marquês de Pombal.

Remate

Os estudos relativos à toponímia indígena no estado do Rio Grande do Sul revelam


que, através da decifração de seus significados, é profunda e telúrica a relação orgânica dos
povos indígenas com a natureza. Esta relação, que se observa para além do nome das ci-
dades, está bem presente no nome de rios e/ou formas de relevo e vegetação que se capta
na toponimia, sejam qual for a escala de análise, da regional à microtoponímia. Os rios

461 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Uruguai, Jacuí, Ibicuí, Taquari, Toropi, Ijui, Quaraí, entre tantos outros, a exemplo das
várias feições de relevo, que tomam designações como Morro Itacolomí ou Cerro do Jarau.
A análise da distribuição espacial mostra uma maior concentração de cidades com to-
pónimos indígenas no norte do estado (Planalto Meridional), originalmente recoberto por
vegetação de mato, ocupado por povos indígenas agricultores (Kaingang e Guarani). Nesta
parcela do espaço gaúcho foi dominante a colonização ítalo-germânica, caracterizada pela
estrutura fundiária constituída de pequenas propriedades, denominadas colônia, o que
favoreceu a constituição mais densa de povoados, vilas e cidades.
No centro-sul do estado, domínio da vegetação campestre e da ocupação indígena
nómada, posteriormente colonizada por espanhóis e portugueses, sob a forma de grandes
propriedades (sesmarias), deu origem a uma rede urbana muito mais dispersa. Ainda que
seja reduzido o nome de cidades com topónimos indígenas não deixam de ocorrer nomes
indígenas relacionados com diferentes constituintes do espaço, sobretudo ligados à natu-
reza, como bem indicam os rios Uruguai, Quaraí, Ibicuí, Jacuí, Chuí.

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Ao decifrar os significados dos nomes indígenas é possível reconstruir as característi-
cas vegetais originais e, em comparação com as regionalizações mais atuais, sobretudo o
macrozoneamento agrícola, revelar que áreas, anteriormente, de mata ou de presença de
vegetações específicas, sofreram um processo de ocupação e uso da terra que as transfor-
mou ou extinguiu. Os estudos relativos a toponímia constitui, por isso, uma possibilidade
de resgate da vegetação original em diferentes regiões do estado.
As denominações indígenas ainda continuam presentes na designação de algumas ci-
dades atuais, sobrevivendo a processos históricos e coloniais bastante tensos, permanência
que atesta a afirmação duma identidade territorial e comunitária. Tão ou mais importante
que sobreviver ao período colonial são os casos em que os seus nomes originais foram
restaurados, retoma significativa que acompanhou a mudança ocorrida na legislação no
período entre 1950 e 1980. A instalação do Estado Novo e a proibição de nomes de cida-
des com origem estrangeira pode explicar esta troca para a toponímia indígena original.
O colonizador que batizou o lugar, no caso das cidades de origem espanhola ou por-
tuguesa, recorreu fundamentalmente, a nomes de santos, que passou a utilizar a solo ou
de maneira composta (por ex.: São João Batista do Quaraí), simplificando ou deixando
inalterada, em alguns casos, a toponímia indígena. Nos casos em que isto não aconteceu,
entre os habitantes locais, a denominação ancestral dos lugares ainda permanecem e se pre-
serva em suas memórias. Além de nomes de santos, os colonizadores também batizavam os
lugares com nomes já existentes em Espanha, Portugal, Itália ou Alemanha, quase sempre
nomes dos lugares donde eram oriundos ou cidades importantes das regiões donde tinham
partido. Esta motivação de índole sentimental presente nos primeiros colonizadores ocu-
462 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

pantes do lugar é distinta da política implementada por Pombal, sobretudo no norte e


nordeste do Brasil, visando vincar com esta política, embora de forma subtil e intangível,
a soberania sobre a colônia. A intervenção Pombalina de substituição de nomes indígenas
por denominações portuguesas não é evidente no estado, uma vez que a constituição do
território português ao sul é mais recente, dada a disputa territorial mais tardia com a
coroa espanhola. A política Pombalina manifestou-se doutra forma, com a expulsão dos
jesuítas da região das Missões, anterior à primeira divisão municipal da então capitania de
Rio Grande de São Pedro do Sul (1809).
A presença indígena registrada nos topónimos de cidades perfaz um total de 113 num
conjunto de 497 municípios no estado do Rio Grande do Sul. Esse número mostra que
outras formas de nominação acabaram por prevalecer após a demarcação de fronteiras e a
ocupação pelos colonizadores obrigando um aprofundamento detalhado da história para
uma compreensão mais efetiva das presenças e/ou ausências das denominações indígenas
nas cidades do estado.

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464 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Contribuições da Revista do IAGA na
difusão de conhecimentos sobre o território
alagoano no Nordeste do Brasil na segunda
metade do século XIX

Renan Rubert Rosas Neto1


Antonio Alfredo Teles de Carvalho2

Nota introdutória

A difusão dos conhecimentos sociais no Brasil, sobretudo no século XIX, está estrei-
tamente ligado as revistas e periódicos que circulavam nos meios intelectuais, a exemplo
dos institutos congêneres da Europa, aponta Cardoso (2011). A Geografia, certamente
não constituiu uma exceção. Com efeito, a revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro – IHGB que tivera o seu primeiro número publicado em 1839, ilustra bem essa
realidade. Portanto, nunca será demais destacar a importância de tais periódicos, dessas

465 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
revistas, na divulgação dos conhecimentos geográficos desde então.
A propósito, após a instalação do IHGB em 21 de outubro de 1838, pouco antes de
completar o primeiro mês de existência, foi divulgado o seu estatuto e, o Artigo 3.° tratava
especificamente da criação de uma revista trimensal de historia e geographia, ou Jornal do
Instituto Historico e Geographico Brasileiro.
Esta publicação, segundo o referido artigo, “[...] publicarão, além das actas e trabalhos
do Instituto, as memorias de seus membros que forem interessantes á historia e geogra-
phia do Brazil” (Revista do IHGB, 1839, p. 18). Contudo, acrescentava que poderiam
publicar, “[...] tambem as noticias ou extractos de historia e geografia das obras publicadas
pelas outras sociedades e pessoas literatas, estrangeiras ou nacionais, precedendo a respeito

1
Bacharelando do Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade
Federal de Alagoas – Igdema/Ufal. Grupo Josué de Castro de Pesquisas Territoriais. E-mail:
renan.neto@igdema.ufal.br
2
Professor do Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal de
Alagoas – Igdema/Ufal, onde coordena o Grupo Josué de Castro de Pesquisas Territoriais. E-mail: acarva-
lho@igdema.ufal.br

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dellas o relatorio de uma commissão do seu seio, para esse effeito nomeada”. (Revista do
IHGB, 1839, p. 18).
Movido por um sentimento mais voltado aos valores regionais, em menos de um quar-
to de século depois (mais precisamente em 28 de janeiro de 1862), é criado na cidade de
Recife, o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (IAGP) e com, ele mais uma
publicação, mais uma revista a divulgar conhecimentos geográficos. E o mais importante,
retratando com maior ênfase as províncias do Nordeste/Norte do Brasil.
Na esteira desse processo, ao final do ano de 1869 foi instituído na cidade de Maceió,
o Instituto Archeologico e Geographico Alagoano (IAGA)3, seguindo o modelo implan-
tado em Pernambuco e que não obstante se voltar preferencialmente a realidade alagoa-
na, carregava imensas similaridades com o IAGP. O IAGA, assim como acontecera com
os seus antecessores, também teria a sua revista – a Revista do Instituto Archeologico e
Geographico Alagoano, publicada três anos depois (1872) e até hoje em circulação.
O IAGA passa a reunir importantes nomes da intelectualidade alagoana (residente e
fora da província), e através da sua revista, os conhecimentos sobre o seu território e a sua
geografia, tratando-os nas suas particularidades e com maior teor de detalhes. As diferentes
regiões alagoanas são analisadas, trazendo à luz aspectos geográficos, históricos, políticos,
econômicos e culturais, revelando assim, a trajetória da formação do território alagoano e a
sua conformação naquele período. Trata-se do início de um longo processo de construção
e acúmulo de conhecimentos, essenciais à compreensão e análise dessa importante parte
do Nordeste brasileiro. No presente texto nos detivemos aos primeiros números da revista,
por ter tornado-se padrão para os números seguintes, ao longo de todo o século XIX.
466 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A criação do IAGA no terceiro quartel do século XIX

Conforme destacado anteriormente, o Instituto Archeologico e Geographico Alagoano


– IAGA, foi o segundo da sua natureza a ser implantado no Brasil. Precedido apenas pelo
Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, a levar-se em consideração que o
Instituto Historico e Geographico Brasileiro – IHGB, consistia em uma instituição im-
perial. Ou seja,
[...] Localizada no Rio de Janeiro, sede da corte e portanto credenciada a repre-
sentar toda a nação, reuniu em seus quadros a nata da sociedade e da intelectualidade
da época, aglutinando membros locais – sócios efetivos – e de outras partes do País
e do mundo – sócios correspondentes. (CALLARI, 2001, p. 60).

3
Em 1932 passou a ser denominado Instituto Histórico de Alagoas e a partir de 1971, Instituto Histórico e
Geográfico de Alagoas. Sua denominação atual. Fonte: IHGAL. Dados Históricos. Maceió, 2008

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Contudo, a iniciativa do governador da Província das Alagoas, José Bento da Cunha
Figueiredo Júnior, seguindo o exemplo da intelectualidade pernambucana ligada a tradicio-
nal Faculdade de Direito de Recife (capital de Pernambuco), certamente contribuiu para a
criação de instituições congêneres em várias partes do Brasil. No fim do derradeiro decênio
do século XIX, já eram seis institutos estaduais implantados em diferentes regiões brasi-
leiras e com eles novas publicações, novas revistas, conforme mostra o Quadro 1 a seguir.

Instituto Fundação Revista


Instituto Historico e Geographico do Brazil – IHGB 1838 1839
Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano – IAGP 1863 1863
Instituto Archeologico e Geographico Alagoano – IAGA 1869 1872
Instituto do Ceará – IC 1887 1887
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – IGHB 1894 1894
Instituto Histórico Geográfico de São Paulo – IHGSP 1894 1895
Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina – IHGSC 1896 1902

Quadro 1 – Institutos Históricos e Geográficos no Brasil e suas revistas – 1838/1900


Fonte: Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – IHGB, 2021.
Organização: ROSAS NETO, R. R., CARVALHO, A. A. T., 2021.

É importante observar que dentre os institutos criados no século XIX, apenas o


Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina passou a publicar sua revista nos pri-
meiros anos do século XX, ou seja, em 1902. Portanto, seis anos após a sua implantação.
O IAGA, cumpriu papel basilar no que diz respeito as investigações e reflexões sobre o

467 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
território alagoano, desde a sua fundação, ao advento da institucionalização do ensino su-
perior em Alagoas, nos meados do século XX, com destaque para os seus primeiros tempos
ao longo de todo o século XIX. Período esse que compreende a sua criação e consolidação
no seio da sociedade alagoana.
Propôs-se a [...] congregar a intelectualidade nascente para pensar o futuro de
Alagoas [...] resgatando tradições e fomentando pesquisas históricas, geográficas e
antropológicas, antecipando-se muitos anos aos objetivos das faculdades, universida-
des e centros universitários que só surgiram em meados do século seguinte na capital
alagoana, (TENÓRIO; DANTAS, 2007, p. 6).

Portanto, constituindo-se em uma instituição de vanguarda na produção do saber


geográfico nas terras alagoanas, conforme ensejava o seu idealizador, Jose Bento da Cunha
Figueiredo Junior, um pernambucano que foi nomeado governador da província em 22
de agosto de 1868, tendo assumido dois meses depois e permanecido na função até julho
de 1891.

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O período em questão corresponde a pouco mais de meio século depois da emancipa-
ção da Comarca de Alagoas da então Capitania de Pernambuco, ao término da Revolução
Pernambucana de 1817 – movimento separatista republicano. É importante aqui des-
tacar que uma corrente da historiografia brasileira atribui esse processo emancipatório,
a fidelidade das oligarquias alagoanas à Corte Portuguesa durante o citado movimento
revolucionário.
Assim o IAGA surge dentro de um cenário de afirmação territorial e identitário da
nova província, e teria papel fundamental nesse processo. O governador da província,
reuniu no Palácio do Governo, uma plêiade de políticos, jornalistas, religiosos, escritores e
comerciantes e no seu discurso inicial destacou:
[...] a utilidade se não urgente reclamo de um sociedade que fitasse o restabele-
cimento e construção da história da província, pesquisando o passado e archivando
no presente, declarou que aquela reunião tinha por fim a creação de um - Instituto
Archeológico Alagoano. (REVISTA DO IAGA, 1872, p. 07).

Para tanto, utilizou-se dos estatutos do Instituto Archeologico e Geographico


Pernambucano, como orientação até a consolidação da entidade e a elaboração e aprova-
ção do seu estatuto próprio, conforme atesta a sua ata de fundação de 2 de dezembro de
1869. Segundo consta no primeiro número da revista, publicado três anos após, consti-
tuíam objetivos do IAGA:
1. Colligir, transladar, verificar e publicar os documentos e tradições historicas da
Provincia;
468 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

2. Descrever os monumentos antigos e esforçar-se por conserval-os;


3. Examinar e assignalar os vestigios existentes em lugares notaveis, promovendo a
collocação de monumentos e inscripções, que perpetuem a lembrança de factos ahi
acontecidos;
4. Obter e conservar photographias e desenhos de monumentos que possam ter qual-
quer valor histórico;
5. Estudar a geographia da Provincia, procurando accumular e classiscando mesmo os
dados fundamentaes de uma estatistica;
6. Auxiliar pelos meios a seu alcance as publicações literárias;
7. Procurar crear um museo de productos naturaes e artisticos afim de que se tornem
conhecidos a riqueza e adiantamento da Provincia (Revista do IAGA, 1872).

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Figura 1 – Instituto Archeológico e Geographico Alagoano – IAGA
Fonte: IHGAL. Dados Históricos. Maceió, 2008.

Com efeito, estes objetivos foram alcançados e fazem parte de um trabalho que pode
ser considerado incansável. Pois, não raramente, o número de reuniões ordinárias chega-
va a vinte por ano, como é possível constatar nas suas “actas” publicadas nos primeiros
números da revista. Nessa perspectiva, é possível acompanhar paralelamente a formação
do acervo do IAGA, a produção de conhecimentos sobre a província que avançava e se
aperfeiçoava. Para Vilar (2018, p. 36), “trata-se de um lugar de destaque da produção de

469 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
conhecimentos geográficos, principalmente por meio de recolha e produção de documen-
tos, discursos e registros de produtos vários, sendo alguns sistematizados e divulgados em
revistas, jornais, livros”.
Muitas das pioneiras referências geográficas mais detalhadas sobre o atual estado de
Alagoas, vêm desse período. Dessa forma, o percurso trilhado pelo IAGA consiste também
na construção de uma geografia sobre o território alagoano. De acordo com Tenório e
Dantas (2007, p. 11),
Sem nenhuma interrupção em suas atividades desde 1868, sua existência é mo-
tivo de orgulho para o povo, que desde cedo a batizou de “Casa das Alagoas”. Além
de semear ideias, de discutir grandes questões e guardar com zelo leonino peças,
livros e documentos raros referentes a episódios marcantes desta pequenina unidade
da federação brasileira e da própria região [...].

Trata-se, pois, de uma instituição que a despeito das adversidades, não apenas resistiu
ao tempo, mas se constituiu em um importante espaço de produção de conhecimentos

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geográficos, conforme destacado anteriormente. Basilar àqueles que se propõem estudar,
entender e analisar o processo de formação territorial e a geografia do atual estado de
Alagoas, localizado na porção oriental do Nordeste brasileiro, como mostra a Figura 2.

Figura 2 – Localização do estado de Alagoas no Brasil


Organização: ARAÚJO, P. H. S. B., FERREIRA, J. C., 2021.

Uma instituição que “desde a sua criação o lugar por excelência da Geografia, da rea-
470 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

firmação da relevância dos seus saberes e conhecimentos para a formação do estado-nação,


mas também do estado alagoano”, conforme indica Vilar (2018, p. 38). E nesse sentido, a
sua revista teria um papel crucial, pois consistia no principal meio de divulgação de tudo
aquilo que ali era produzido.

A criação da Revista do IAGA e o território alagoano no século XIX:


alguns apontamentos

A notícia de criação da Revista do IAGA foi divulgada na sessão do dia 26 de outubro


de 1872. O primeiro número seria publicado pela Typographia do Journal das Alagoas
em 02 de dezembro de 1872 como Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Alagoano, nas comemorações de três anos do Instituto (figura 3). Consiste na mais antiga
revista em circulação no estado. Conforme consta na sua apresentação:
Chegou a vez de cumprir o Instituto Archeologico e Geographico Alagoano a
promessa constitutiva de seo programa, o voto de sua fervorosa crença. Se tardío foi

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em mostrar aos exigentes os fructos de seo pesquisar é que, ao metter-se na alteroza
empresa, enamorou-se mais da gloria que da fortuna. Não lhe mentio, entretanto,
a consciencia: ter annos de trabalho tem produzido o que a obstinação da ventura
chamaria precocidade. [...] Entrega o Instituto Alagoano ao ruido do mundo sua
Revista, esperando que de todos lhe venha a justiça e da gente de sua terra aquelle
recebimento que é mais calor de amizade do que fumo de civilidade. (REVISTA do
IAGA, 1872, p. 1).

Esse primeiro número abre com um artigo de José Prospero Jeohovah da Silva Coroatá,
sobre a cidade colonial alagoana de Penedo, próxima a foz do Rio São Francisco, intitu-
lado “Chronica do Penedo”. A segunda parte da revista é composta por documentos que
correspondem a memória do IAGA, a exemplo da sua ata de fundação e das reuniões
ordinárias realizadas até aquele momento, mais alguns relatos das doações de peças, livros
e documentos de valor histórico que passarão a compor o seu acervo, afora pequenos
textos dos seus sócios. Esse formato se tornaria o padrão a ser adotado a para os números
subsequentes.

471 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 – Capa e índice do Número 1 da Revista do IAGA – 1872


Fonte: IHGAL.

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O historiador Luiz Sávio de Almeida (2004, p. 13), chama a atenção para o artigo de
Coroatá, “Chronica do Penedo”, que se estende pelos três primeiros números da revista.
Esse autor adverte à possibilidade do texto ter sido escolhido para inaugurar a historio-
grafia alagoana, um modelo a ser seguido no desenvolvimento dessa. Segundo ele, “uma
historiografia em um círculo, nascendo no poder e fechando-se no poder. [...] que toma o
local como base, justamente o elemento central da organização do poder”. Contudo, não
obstante o teor subjacente a abordagem adotada por Coroatá e as leituras e interpretações
que possam desdobrar, o referido artigo é valoroso do ponto de vista das exposições das
paisagens, de algumas bases do processo de povoamento e da vida da população em sen-
tido lato.
O autor inicia o seu artigo descrevendo a viagem do português Duarte Coelho Pereira,
donatário da Capitania de Pernambuco, com seus navios a percorrer a costa sul da mesma,
em meados do século XVI. Conforme Coroatá (1872, p. 2), o donatário,
[...] Entrando na barra de Porto Calvo, deixou colonos para darem começo a
um povoado. Seguindo mais para o Sul entrou no porto dos Francezes e em duas la-
goas que lhe ficam proximas e ahi a margem d’uma dellas estabeleceo outro povoado.
Satisfeito com estes lugares, continuou com a exploração para a costa do Sul e a 10
de outubro de 1555 entrou neste majestoso rio, limite da capitania, o qual os indi-
genas denominavam Opára – e que por ter sido descoberto a 4 de outubro de 1501,
dia em que a Santa Igreja celebra a festa de S. Francisco, teve o nome deste Santo.

Neste trecho o autor trata da fundação dos três núcleos iniciais de povoamento do
472 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

atual estado de Alagoas, as atuais cidades de Porto Calvo, Marechal Deodoro e Penedo
(figura 4). Em seguida, se volta de forma específica a tratar de Penedo, que segundo ele,
começou a ter esta denominação “nos fins do seculo dezesete; parece que este nome, na-
turalmente foi tomado do rochedo em ella assenta”. (COROATÁ, 1872, p. 4). Ao tempo
em que descreve o seu processo histórico, também trata da sua paisagem, quase sempre
associada ao Rio São Francisco.

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Figura 4 – Núcleos iniciais de povoamento do atual estado de Alagoas
Organização: ARAÚJO, P. H. S. B., ROSAS NETO, R. R., 2022.

Utilizando-se de conhecimentos geográficos e demonstrando-os na sua narrativa,


Coroatá trata da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro em 1637 e a sua contenção

473 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
sob a liderança de João Mauricio Nassau, que chega até Penedo e levanta monumentos que
mais adiante seriam determinantes na forma de organização da Vila. Elementos essenciais
à compreensão do processo de formação territorial de Alagoas.
Ao falar do Quilombo dos Palmares e a sua extinção, ele descreve a paisagem da Serra
da Barriga – onde o quilombo construiu a sua base – e também das áreas adjacentes.
Convém destacar o seu olhar avesso e taxativo em relação a este importante movimento de
resistência negra à escravidão colonial. Para Coroatá (1872, p. 5), “este quilombo, que já
em tempo dos hollandezes causava muitos damnos, augmentando com o correr dos annos
prodigiosamente o numero dos seus habitantes, chegou a constituir-se um inimigo terrível
nesta parte da capitania.”
Esta citação evidencia de forma clara o seu alinhamento com o pensamento das oligar-
quias locais e justifica a observação de Almeida (2004, p. 13), segundo a qual, “em Coroatá
[...] as gentes não existem: não são categorias trabalháveis na história. Por outro lado, tudo
surge a partir do senhorial e ele assume até mesmo a paisagem. [...] e daí prescindir-se de
elementos como escravos e índios.” Conclui este historiador, que a despeito desses agentes

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fazerem parte do cotidiano, sob esta ótica de Coroatá, eles podem ser ignorados, pois não
constituíam categorias políticas (ALMEIDA, 2004, p. 13). O que decerto, deve ser apon-
tado como um grande equívoco de Coroatá na sua interpretação.
Sempre pensando em Penedo e quando muito, as suas cercanias dentro do que atual-
mente corresponde ao território alagoano, o autor aborda a Revolução Pernambucana de
1817, seus efeitos e as expedições que a ela se opuseram. Portanto, a narrativa tem um foco
na comarca das Alagoas, mas é sobretudo, um olhar penedense, fiel a Portugal e anti-revo-
lucionário, o que lhe permite evidenciar alguns atos da Câmara do Penedo e os feitos dos
penedenses ilustres, segundo a sua perspectiva. Muitos dos quais, “têem occupado lugares
subidos no paíz” (COROATÀ, 1873, p. 8).
A última parte da “Chronica do Penedo”, consiste numa minuciosa descrição da sua
paisagem urbana. Afirma o autor, que “a mais antiga rua desta cidade é a do Sol, onde
se edificaram as primeiras casas por ordem de Duarte Coelho Pereira. O rio defronte
della tinha então bastante profundidade, e ahi ancoravam as embarcações; o commer-
cio estabeleceu-se na mesma rua e nas visinhas no bairro denominado – Rocheira”.
(COROATÁ, 1874, p. 33). É a partir daí que ele descreve as transformações na paisagem
da cidade e a construção de alguns monumentos, a exemplo da igreja matriz, o conven-
to franciscano de Nossa Senhora dos Anjos, as igrejas de Nossa Senhora da Corrente
e de Nossa Senhora do Rozario, Igrejas de São Gonçalo Garcia, e de São Gonçalo do
Amarante; a cadeia; a Casa da Camara e a Aposentadoria Nova. Sobre este último, des-
taca Coroatá (1874, p. 42):
Funcionou n’este edificio o collegio de Nossa Senhora da Conceição, sob nossa
474 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

direção de 1866 a 1870, ao qual se achava addidos em virtude da lei provincial n.


450 de 17 de junho de 1865, as quatro aulas de instrucção secundaria que n’aquelle
havia nesta cidade, a saber: grammatica latina, franceza, geographia e philosophia.

Todos esses monumentos, religiosos e civis (figuras 5 e 6), contribuíram à forma como
o sítio urbano da cidade foi se expandindo ao longo do tempo, mostrando-se essenciais
à compreensão da Penedo de hoje. Ao mesmo tempo, explica, em parte, a afirmação de
Almeida (2004), que “o Penedo de Coroatá é urbano, não rural”, e de uma abordagem
senhorial.
Um outro autor de grande importância, contemporâneo do anterior, é João Francisco
Dias Cabral. Ou simplesmente Dias Cabral, como ficou mais conhecido. No dizer de
Almeida (2004, p. 12), “Dias Cabral está ligado aos grandes rasgos da história alagoana,
[...] lida com a finalização do poder, muito similar à geografia praticada com as monogra-
fias sobre o local”. Mais erudito e com maior conhecimento teórico, ele ‘rompe’ de alguma
forma, com o estilo de crônica que se estabelece no IAGA e por conseguinte, na sua revista.

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Figura 5 – Centro de Penedo em 1922 Figura 06: Igreja de N. S. das Correntes
Fonte: históriadealagoas.com.br, 2021 Fonte: CARVALHO, A. A. T., 2019

Dias Cabral focaliza movimento, entende um processo em construção, uma evolução


dentro de “um sistema cuja matriz de organização não deve mudar [...], um aperfeiçoa-
mento senhorial, em busca de uma ideia vaga de chamada civilização” (ALMEIDA, 2004,
p. 15). Nessa perspectiva tratará dos temas também tratados por Coroatá, além de índios e
de forma explicita, de geografia. Também foi sócio fundador do IAGA e ainda,
[...] seu primeiro Secretário Perpétuo entre 2 de dezembro de 1869 a 19 de
julho de 1885. Em 1872, foi o responsável pelo lançamento da revista da institui-
ção, tendo nela publicado inúmeros trabalhos. De todos, porém, o maior foi Dias
Cabral, o maior pelo devotamento com que se consagrou à consolidação do Instituto
e pelo cabedal de ciência que possuía e que incorporou ao patrimônio da associação.

475 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
(IHGAL – DADOS HISTÓRICOS, 2008, p. 64).

O seu primeiro trabalho publicado na revista foi a dissertação “Qual a origem do


appellido de S. Bento porque é conhecido o outeiro sobranceiro a Villa de S. Luzia do
Norte?’, pequeno e rico texto emanado de uma pesquisa por ele realizada, descrevendo
as origens da atual cidade de Santa Luzia do Norte, na Região Metropolitana de Maceió,
trazendo à luz informações de natureza histórica e geográfica sobre a região lagunar, onde
está localizada.
A partir do quinto número da revista, em 1874, Dias Cabral voltaria a publicar os seus
artigos, e nesse em especial, traz “Esboço histórico àcerca da fundação e desenvolvimento
da imprensa nas Alagoas”, e a dissertação “Noticia ácerca4 da vida do fundador da Capella
do Coqueiro-Secco, padre Bernardo José Cabral”. Particularmente, nas denominadas dis-
sertações, o autor sempre demonstra conhecimentos históricos e geográficos a partir de
4
A título de esclarecimento, destacamos que em todas as transcrições oriundas da Revista do IAGA, foi
mantida a ortografia no seu formato original.

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experiências de pesquisa documental ou mesmo reconhecimento de campo nessa região
lagunar, nas imediações de Maceió. Ao comentar a importância e os avanços do IAGA no
primeiro quartel do século passado, Craveiro Costa (1931, p. 51) destacou a relevância
desse autor:
Vencendo todas as vicissitudes que assaltam as instituições dessa natureza e á
frente dela um homem abnegado, que foi também um verdadeiro sábio e uma gloria
alagoana, o Dr. João Francisco Dias Cabral, o Instituto Arqueologico chegou até
nós, solidamente firmado, prestigiado pela opinião pública, que deu a sua magnífica
sede o nome sugestivo de Casa das Alagoas.

Outros trabalhos de Dias Cabral consistem em verdadeiras reflexões geográficas e


foram publicados em números posteriores da Revista do IAGA. Em textos como “A uti-
lidade da geografia”, ou “Notícia ácerca de alguns trabalhos e explorações geográficas”, o
autor revela e discute conhecimentos teóricos de geografia ao analisar os seus avanços na
Europa e em outras partes da América, se mostrando á vanguarda do seu tempo.

Uma nota à guisa de considerações finais

O Instituto Archeologico e Geographico Alagoano, constitui-se numa verdadeira Casa


das Alagoas, como a classificou João Francisco Dias Cabral. Pois como tal, abriga impor-
tante acervo da memória desse estado do Nordeste brasileiro. Memória essa que é também
geográfica, visto que ali foram realizadas as primeiras reflexões geográficas sobre a então
476 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

capitania e depois província das Alagoas. E como bem lembra Almeida (2004), nesse
processo foi providencial, ou determinante a presença de José Bento da Cunha Figueiredo
Júnior, Presidente da província na condução dessa empreitada, visto que ele próprio con-
vocara um grupo visando formar um “corpo de intelectuais destinados a pensar Alagoas”.
Trata-se de um período da nossa história em que as instituições com objetivos afins
estavam muito lentamente começando a surgir. Portanto, o IAGA vai assumir um prota-
gonismo que vai se estender até os meados do século XX, seja pelo trabalho realizado, seja
pelo ato de resistir as adversidades em alguns momentos. Nas palavras de um importante
historiador alagoano, uma instituição “preocupada com estudos sérios e de interesse cole-
tivo ligados à história e a geografia em geral, e especialmente da Província (CRAVEIRO
COSTA, 1931, p. 50)
Observamos que ao longo do tempo, parte considerável dos objetivos propostos quan-
do da criação do Instituto, foram alcançados. Ou mesmo, foram além em alguns aspectos.
Especialmente a partir da criação da revista, em 1872. Hoje inquestionavelmente, um
importante repositório de conhecimentos sobre o território alagoano, sobre o Nordeste

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brasileiro. Ou seja, “foi se estabelecendo como uma instituição central no processo de
consolidação dos discursos geográficos”, conforme percebemos em Vilar (2018, p. 40).
Diríamos então, que revisitar o rico conteúdo guardado nas páginas dessa revista se-
cular, significa desvelar Alagoas sob diferentes perspectivas e mergulhar no universo de
autores como José Prospero Jeohovah da Silva Coroatá e João Francisco Dias Cabral.
Mas também outros tantos igualmente importantes, a exemplo de Manuel Claudino de
Arroxela Jayme, Themistocles Soares de Albuquerque Lage, João Severiano da Fonseca,
Olympio Euzebio de Arroxellas Galvão, afora muitos outros intelectuais da época, que
através da revista do IAGA, nos legaram bases à compreensão da Alagoas futura e da
Alagoas de hoje, alumiando caminhos e nos aproximando cada vez mais da geografia e da
história dessa terra.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, L. S. (2004). Dois textos alagoanos exemplares. (Org.), Arapiraca: Funesa.


CABRAL, J. F. D. (1873). Qual a origem do appellido de S. Bento porque é conhecido o outei-
ro sobranceiro a Villa de S. Luzia do Norte? Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Alagoano, n. 3, Maceió, Typ. do Jornal das Alagoas, p. 8-11.
CALLARI, C. R. (2001). Os Institutos históricos: do patronato de D. Pedro II à construção do
Tiradentes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, n. 40, p. 59-83.
COROATÁ, J. P. J. S. (1872). Chronica do Penedo. Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Alagoano, n. 1, Maceió, Typ. do Jornal das Alagoas, p. 1-7.
COROATÁ, J. P. J. S. (1873). Chronica do Penedo. Continuação do número antecedente. Revista

477 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
do Instituto Archeologico e Geographico Alagoano, n. 2, Maceió, Typ. do Jornal das Alagoas, p. 1-8.
COROATÁ, J. P. J. S. (1874). Chronica do Penedo. Continuação do número antecedente. Revista do
Instituto Archeologico e Geographico Alagoano, n. 3, Maceió, Typ. do Jornal das Alagoas, p. 33-42.
Craveiro Costa, J. (1931). Instrução pública e instituições culturais de alagoas. Maceió: Imprensa
Oficial.
IHGAL. (2008). Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas: dados históricos. Maceió: Imprensa
Oficial Graciliano Ramos.
IHGAL. (1972). Revista do Instituto Archeologico e Geographico Alagoano, n. 1, Maceió, Typ. do
Jornal das Alagoas, 32 p.
IHGB. (1839). Revista do Instituto Histórico e Geographico do Brazil. Alagoano, n. 1, Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 307 p.
TENÓRIO, D. A., Dantas, C. L. (2007). A Casa das Alagoas: Instituto Histórico e Geográfico de
Alagoas. Maceió: Edufal.
VILAR, E. T. F. S. (2018). A conformação da geografia escolar na província das Alagoas oitocentista
(1844-1890). Maceió: Fapeal/Imprensa Oficial Graciliano Ramos.

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Memórias Cerradeiras: O uso das plantas
para a cura no Município de Ouvidor
(GO), Brasil1

Nathanne Karita Gonçalves da Fonseca2

Introdução

Para iniciar é necessário compreender o que é o Bioma Cerrado, como é a sua forma-
ção e suas transformações desde os princípios de ocupação. A discussão do Bioma Cerrado
hoje é latente, visto que está localizado em sua maior parte em áreas planálticas, o que con-
figura como um berço hídrico para o país e outros país que fazem fronteira com o Brasil.
A região do Cerrado Goiano ganha espaço nesta discussão, pois é neste que se passa
a análise aqui elaborada, desde a expansão ferroviária em 1910, a criação de Goiânia em
1934, a expansão rodoviária, a criação de Brasília (DF) em 1950, e os projetos de ocupação

479 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
e tecnificação do campo como o “PROCEDER”, o programa Nipônico “PROJICA” e a
criação da EMBRAPA, assim alavancando as áreas agricultáveis.
Um relevante fator a ser considerado neste estudo, são as perdas da cultura tradicional
do Cerrado pela elevada expansão da fronteira agrícola, a ocupação de áreas antes preser-
vadas, e a urbanização do campo, alterando a cultura dos residentes, e perda das tradições,
como exemplo, o uso das ervas medicinais, e a produção agroextrativista.
Em face a extinção massificada de espécies, tanto da fauna, e principalmente, flora
em decorrência das ações antrópicas, propicia a redução da biodiversidade, e a perda de
potencialidades naturais, o que estinga a urgência de desenvolver pesquisas que busque
inventariar ou quantificar o patrimônio natural nacional que é o Bioma Cerrado, assim

1
Artigo elaborado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso em Geografia, ano 2021, adaptado em 2023,
no Programa pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Catalão - Goiás, Brasil.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia/UFCAT. fonsecank@gmail.com
Universidade Federal de Catalão – UFCAT / Instituto de Geografia - IGEO

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concomitantemente subsidiar o uso da biodiversidade com estratégias e manejos adequa-
dos, que concilie conservação e desenvolvimento econômico, e social.
Para responder a problemática, a pesquisa busca compreender o uso medicinal da ve-
getação do Cerrado no município de Ouvidor. A pesquisa baseia-se em analises bibliográ-
ficas em Ab’Sáber (1983, 2003), Ferreira (2003 e 2008), Freires (2019), obras de Ribeiro
e Walter (1998, 2008), Rodrigues (2020), juntamente com a apresentação da paisagem e
suas dinamicidades perante os potenciais naturais e os usos socioeconômicos abordados
por Bertrand (2004). No que tange a abordagem do herbalismo o autor Lorenzi (1992,
2002), faz suas contribuições para compreender as plantas e seus usos medicinais.
A pesquisa centraliza em Ouvidor que está localizado na região Centro-Oeste do
Brasil, porção Sudeste do Estado de Goiás, porção territorial de 413,78 km², no qual
faz divisa com municípios do Estado de Goiás e Minas Gerais. Com limites entre as 13
cidades de Catalão, Davinópolis e Três Ranchos, em Goiás, e Abadia dos Dourados, no
Estado de Minas Gerais, constituído em áreas de pediplanos intermontanos ao Sul da
região Sudeste do Estado, a comarca que inicialmente conhecida como Catuaba, planta
de uso medicinal que era abundante na vegetação, Catuaba que é comumente atribuída
qualidades afrodisíacas.
A análise compreende além das percas pertinentes de vegetação nativa, o uso e a ocu-
pação das Terras dentro da área estudada, outro ponto que chama atenção é a formação
cultural do município, principalmente no uso de plantas nativas com o objetivo de cuidar
da saúde e do espírito através dos benzedeiros, raizeiros e pessoas que buscam os meios
populares e naturais para inúmeros fins.
480 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Fisionomia do Bioma Cerrado

O mosaico de Biomas que abrangem o território brasileiro é de uma grande hetero-


geneidade, visto que um país com fronteiras continentais abarca uma grande diversidade.
Segundo Ribeiro e Walter (2008, p. 89) pode-se considerar a ocorrência de seis grandes
biomas: o Cerrado, os Campos e Florestas Meridionais, a Floresta Atlântica, a Caatinga, a
Floresta Amazônica e o Pantanal. No qual, as conformações estão subordinas pelos fatores
climáticos, geomorfológicos, entre outras.
As formações geomorfológicas que apresenta na constituição do Bioma Cerrado abar-
ca contraste entre as superfícies, ou seja, com variâncias inferiores a 300m, e esculturas
extensas de chapadas com discrepâncias entre 900 e 1.600 m, essas diferenças configura o
Cerrado com dissemelhança nas temperaturas, contudo, manifesta um mecanismo atmos-
férico que direciona uma semelhante precipitação, que gera uma tendência pluviométrica
como ressalta (Ribeiro e Walter, 2008, p. 89).

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Localizado em grande parte no Planalto Central, e é considerado o segundo maior
bioma em extensão, as relações ecológicas e fisionômicas associasse com outras zonas savâ-
nicas no continente americano, africano e australiano. Outras configurações que podemos
salientar são as características pedológicas, que contemplam as áreas do Cerrado, com gran-
de predominância de Latossolos, tanto solos sedimentares e terrenos cristalinos, juntamente
com solos concrecionários a longo de vastas extensões, como ressalta (AB ‘Saber, 1983).
A vegetação cerradeira apresenta-se em estados da região central do país como Goiás,
Tocantins e o Distrito Federal, em áreas da Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí, Rondônia e São Paulo e também ocorre em áreas ao
norte do Amapá, Amazonas, Pará e Roraima, e ao sul, em pequenas “ilhas” no Paraná,
logo observamos que o bioma Cerrado é uma configuração transição entre outros biomas.
A construção fisionômica da vegetação Cerrado é contemplada com formações
Campestres, Florestais e Savânicas. Logo, as Formações Campestres são áreas que predo-
mina uma vegetação herbácea e arbustiva, com pouca ou nenhuma árvore na sua com-
posição. As Formações Florestais apresentam espécies classificadas como arbóreas e como
consequência já formação de dossel, no qual pode ser continuo ou descontinuo. Outra
configuração presente é a Formação Savânica que dá espaço para uma vegetação com ár-
vores e arbustos espaçados, além da presença de graminosas.
As condições bióticas que fomenta a formação do Cerrado são suas variabilidades
temporais e espaciais, sou seja, as mudanças climáticas e geomorfológicas são responsáveis
pelos desenvolvimentos das formações. As metodologias que são utilizadas para classificar
os tipos fitofisiômicos são embasados na forma, estrutura e crescimentos predominan-

481 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
tes, além das modificais sazonais. Com isso, segundo Ribeiro e Walter, (2008) existem
“11 tipos de principais formações florestais (Mata Ciliar, Mata de Galeria, Mata Seca e
Cerradão), savânicas (Cerrado sentido restrito, Parque de Cerrado, Palmeiral e Vereda) e
campestres (Campo Sujo, Campo Limpo e Campo Rupestre) ”.

Memórias cerradeiras

No que tange a região central brasileira, a agricultura coronelista se entremeou nas


construções dos tipos familiares. As consequências dessa forma de organização e estrutu-
ralmente advém de um processo de povoamento e colonização, onde o apadrinhamento
torna-se necessário para obter terras.
No que se diz a respeito do território do Cerrado Goiano, não poderia ser distinto,
pois, a primeira fase de ocupação começou com sua incorporação do chamado sistema
colonial, com a migração da população mineira e nordestina, após a decadência da mi-
neração, o estabelecimento de uma infraestrutura de transporte, as mudanças políticas.

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Juntamente com a construção de duas capitais a integração da região de Goiás ao trânsito
rodoviário os programas e projetos de intervenção de ação direta na região, e por mais
recente expansão agrícola, concomitantemente com as relações sociais de trabalho.
O desenvolvimento do meio rural por meio da modernização da agricultura no estado
de Goiás, consequentemente tornando parte da história de uso e ocupação antrópica no
Brasil. Contudo, a concentração da propriedade da terra e da renda cria uma discrepância
que gera conflitos e problemáticas, pois, os resultados desse processo foram ainda mais
agravantes para os pequenos produtores estruturados no trabalho familiar.
Com a implementação das políticas de modernização agrícola, foi possibilitado a inte-
gração do território nacional, a agricultura do Estado de Goiás, no qual torna-se pioneiro
em produção e tecnologias de desenvolvimentos agrícolas, passando por transformações
significativas, com o objetivo principal de estreitar as relações entre o setor agrícola e o
setor urbano-industrial.
A exigência de legalizar a propriedade da terra era um obstáculo às práticas continua-
das de posse. A política fundiária goiana beneficiou os latifundiários, que em grande parte
adquiriram suas terras de forma ilegal. A venda das terras ocorreu para quem ofertava
maiores lances, prejudicando os lavradores - os chamados moradores. Nesse sentido, as
práticas definidas pela Lei de Terras impediam o acesso legal à terra para os pequenos
proprietários, geralmente produtores agroextrativistas e/ou produtores familiares. Como
resultado, destaca o desenvolvimento de um modelo centralizado de posse da terra, basea-
do na agricultura extensiva.
Após o aumento nos anos de 1930, nos anos de 1950, as alterações sucederam a partir
482 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

da construção ambiciosa de Brasília e o Distrito Federal, juntamente com a implementação


do Plano de Metas do Governo Federal, no qual, fomentava desenvolvimentos e iniciativas
para as explorações das áreas agricultáveis, e a partir de 1970 as políticas de desenvolvi-
mento do Cerrado implementaram projetos como, o Programa para o Desenvolvimento
do Cerrado, no qual ficou conhecido como “POLOCENTRO”, simultaneamente o pro-
jeto “PRODECER-JICA” (Programa Cooperativo Nipo-Brasileiro para o desenvolvimen-
to do Cerrado (Agência Japonesa de Cooperação e Desenvolvimento Internacional). O
PRODECER-JICA fornecia subsídios para combustíveis, e também tecnologias que auxi-
liava na exploração de áreas apropriadas para cultivos de monocultura.
Outra instituição que possibilitou a expansão agrícola, estudos e desenvolvimentos
tecnológico foi a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), empresa no
qual, ainda hoje fomenta maior parte de pesquisas do setor no mercado brasileiro, além de
fomentar pesquisas, a empresa também auxilia os produtos para aumentar suas produções
e reduzir danos e percas de solos, assoreamentos, entre outras problemáticas ambientais.

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Com os incentivos governamentais para a exploração e ocupação o Cerrado, visto
que a região possuía uma expressão na pecuária. E logo com o esgotamento de solos para
a produção no Sul e Sudeste, apenas fomentou a expansão agrícola, principalmente após
a possibilidade de manejo adequado para as cultivares selecionadas para produção, exem-
plos, como a monocultura da soja.
Entretanto, a percepção de solos considerados impróprios para as monoculturas, solos
com pedregulhos, e considerados ácidos, sofreram de forma violenta a exploração e a meca-
nização, as chamadas correções de solo são um marco na agricultura cerradeira. Já a pecuária
extensiva auxilia na perca da vegetação natural, vegetação que hoje, é sabido a importância
para a manutenção do sistema hídrico, visto que, o Cerrado é considerado o berço das águas
do país. Ferreira (2003) analisa as consequências desse movimento de expansão,
Sabe-se hoje que o Cerrado abriga inúmeras nascentes e rios, tendo papel impor-
tante como fornecedor de água para as principais bacias hidrográficas da América do
Sul. Sua diversidade é muito alta, tanto da flora quanto da fauna. Estudos revelam que
seus vegetais possuem potencial alimentício, medicinal e madeireiro, entre outros fins,
e sua fauna pode ser manejada e criada com fins econômicos, como no caso de emas,
porcos do mato, capivaras, pacas, codornas, entre outros. (FERREIRA, 2003, p. 145).

Buscando compreender o fenômeno que conduziu os planos de ocupação das áreas do


Cerrado, Ferreira (2003) apresenta uma reflexão que sintetiza o processo de forma linear,
As transformações da agricultura nas áreas de cerrado são caracterizadas por dois
processos, como reflexos da política de modernização proposta para o país. O primei-

483 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
ro, de expansão da fronteira das áreas efetivamente ocupadas com atividades agro-
pecuárias, vinculado a dois aspectos de ocupação da terra: um com base em grandes
empresas rurais, favorecidas pelos incentivos fiscais e outro, com base em colonização
oficial ou particular, ligado a pequenas propriedades. Quanto ao segundo processo, ou
seja, o de incorporação de nova tecnologia de produção na agricultura de áreas já efe-
tivamente ocupadas, tem como objetivo o aumento da produção e da produtividade e
a diversificação de cultivos. Esse segundo processo desempenha um papel importante
nas considerações acerca das mudanças agrárias dessa área [...] um fator que contribuiu
para a expansão do capitalismo na agricultura das áreas do cerrado foram suas caracte-
rísticas naturais. A topografia plana favoreceu a mecanização e os solos, considerados
improdutivos, tornaram-se produtivos com a aplicação de quantidades consideráveis
de corretivos e fertilizantes. (Ferreira, 2003, p. 147, apud Pessoa (1988, p. 48).

A ocupação antrópica da região do bioma Cerrado, é um reflexo das políticas públicas,


que por grande parte do tempo não se atentou as problemáticas ambientais, negligenciando

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a qualidade do uso do solo, a busca da produtividade excessiva a cada colheita, marcada
pela contaminação, poluição, desmatamentos, e descasos ambientais, o Cerrado ganha
novas paisagens, bem distintas daquelas citadas pelo escritor Guimarães Rosa, no qual,
em sua obra “Grande Sertão Veredas” (1986), exalta a exuberância e peculiaridades do
Cerrado, “Em que afundamos num cerrado [...] E as árvores iam se abaixando menorzi-
nhas, arregaçavam saia no chão [...] De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta
feito cabeleira sem cabeça.” Rosa, Guimarães (1986, p. 36-37).
Seguindo o histórico de ocupação do Cerrado, a região de Ouvidor (GO), tem seus
marcos frente as expedições dos bandeirantes, segundos primeiros relatos da região relatos
da hidrografia e relevo. Logo, com as explorações minerais. A comunidade aqui instalada
no decorrer da expansão das explorações aprimora a pecuária e agricultura. Ferreira (2003)
relata que,
A expansão da atividade agropecuária não se deu de forma dinâmica e igual por
todo o Cerrado. As formas de intervenções, com expansão mais significativa, têm
sido a formação de pastagens plantadas e de lavoura comercial. As lavouras mais
importantes da região são as de soja, milho, café, feijão, arroz e mandioca. A soja foi
a cultura que experimentou maior incremento. Praticamente inexistente na década
de 1960, hoje ela representa cerca de um quarto das culturas de grãos nacional. ”
(Ferreira, 2003, p. 144).

As atividades agrícolas em Ouvidor (GO) permitiram que a expansão e desenvolvi-


mento no município. Com o passar das décadas de antropização e o advento das tecno-
484 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

logias para a manutenção e manejo agrícola, aos poucos a agricultura comercial foram
ganhando mercado e expressão. Ouvidor, torna-se atrativas para áreas utilizadas para bovi-
nocultura extensiva e plantios de subsistência em planteis de solos mais férteis.

O município de Ouvidor (GO)

O município de Ouvidor, está localizado na região Sudeste do Estado de Goiás -


Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017),
Ouvidor possui atualmente uma área de 413,78 km² ou 41.378 hectares, estando a uma
altitude média de 825 metros.
Para uma maior percepção gráfica, a Figura 1 mostra a localização de Ouvidor em rela-
ção ao Estado de Goiás e ao Brasil. Percebe-se, também, a rede de drenagem no Município,
notadamente do tipo arborescente. A área urbana de Ouvidor está a Sudoeste da área mu-
nicipal, sendo que, na porção Sudeste, está o Rio Paranaíba, considerando-se que sua bacia
hidrográfica abrange 137 municípios no Estado de Goiás e Minas Gerais.

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Figura 1 – Localização Geográfica e limites do município de Ouvidor (GO)
Fonte.: Município de Ouvidor (2017). Org.: FREIRES, A. S. (2019). Adaptado por.: FONSECA. N.K.G. da (2022).

A partir dos estudos da áreas e uma compilação dos conteúdos, levando em conside-
ração o Mapa de Solos do município de Ouvidor, em colaboração com a obra de Reatto
et al. (2008), que levantou as classes de solo no Cerrado e sua vegetação natural, e com os
trabalhos de campo e seus respectivos relatórios fotográficos, afirma-se que as principais

485 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
fitofisionomias, em Ouvidor (GO), referem-se prioritariamente às Formações Florestais
Cerradão, Mata de Galeria e Mata Seca, e às Formações Típicas do Cerrado, Cerrado
Denso e Cerrado Típico, por estarem associadas principalmente ao Latossolo Vermelho,
predominante.
Além disso, o Cerradão e Mata Seca são associados ao Argissolo Vermelho Amarelo,
que se fazem presente na região estudada. Ainda, as Formações de Cerrado Típico,
Cerrado Ralo e Mata de Galeria, que são associadas aos Cambissolos também são presen-
tes. Segundo FREIRES (2019) “[...] o município não apresenta, atualmente a Mata Ciliar
(Formação Florestal), em detrimento da instalação de Reservatório de Hidrelétrica, altera-
ção provocada pelo fator antrópico, e Parque de Cerrado (Formação Típica de Cerrado). ”
Logo, é possível observar a redução de biodiversidade no município a partir da antropiza-
ção das áreas, suprimindo vegetações e suas heterogeneidade.
Numa análise histórica da formação do distrito de Catuaba e posteriormente a comar-
ca de Ouvidor, o recorte da construção do município (Ramos, 1988, p. 31), segundo esse
escritor regional, o povoado de Catuaba viviam na sua grande maioria na zona rural, assim

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como os demais goianos no século XX, como exemplifica o capítulo supracitado, assim
utilizavam como meio de transporte “[...] o lombo dos animais de sela [...]” e o carro de
boi, e nas estradas mais acidentadas ou montanhosas, os burros cargueiros.
Com a economia baseada em trocas de mercadorias nas cidades próximas, (RAMOS,
1988, p. 18). Fabricava-se açúcar, rapadura e aguardente em engenhos de madeira movidos
à tração animal. Do beneficiamento do milho, canjica, fubá e farinha de moinho. Os mon-
jolos descascavam o café, o arroz, e destinava-se também à produção de farinha.
Com a interiorização das linhas ferroviárias, ocorre a criação da Estrada de Ferro
de Goiás, que teve a instalação do início dos trilhos partindo do município mineiro de
Araguari (MG), com base no Decreto 7.562, datado em 20 de dezembro de 1909, tendo
chegado à Catalão (GO) em 1913, e para Catuaba (atualmente Ouvidor (GO) no ano de
1915. Então, inicia um povoado e pequenos comércios, conhecidos como “venda”. De
forma orgânica, os moradores já instalados na região, como fazendeiros, seus familiares e
agregados, que ajudavam na lavoura e na criação de gado bovino, começaram a fixar suas
residências na localidade e o povoado foi batizado de Catuaba.
A estação ferroviária inaugurada em 1922, ganhando importância regional, o povoado
Catuaba tomou o nome de Ouvidor, o mesmo da Estação, conforme relatos de Jacob (2016):
Com a chegada dos trilhos, o povoado de Catuaba foi modificado, a inaugu-
ração da estação ferroviária, em trinta de dezembro de 1922, além da mudança do
seu nome, provocou outras mudanças na região. A escolha do nome de “Ouvidor”
para a estação recém-inaugurada, que foi escolhido por causa do Ribeirão Ouvidor,
águas que cortam a planície, também se estabeleceu como nome do povoado e esse
486 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

se expandiu por conta da estrada de ferro. (Jacob, 2016, p. 111).

Com a moderna ferrovia, o desenvolvimento socioeconômico promoveu o incipiente


povoado. Casas foram construídas, não apenas por sitiantes e fazendeiros, mas também por
negociantes e pequenos comerciantes que depositavam na região possibilidades de prospe-
ridade. Foi quando chegaram o Tenente Teotônio Ayres da Silva, o Major Irineu Francisco
do Nascimento, o boticário João Vicente Mesquita, o Alferes Vigilato Evangelista Pereira,
o dentista Antônio Ferreira Goulart e o Agente Ferroviário José da Paixão e Mello, dentre
outras pessoas (Ramos, 1984), que passaram a atuar na localidade desenvolvendo suas
atividades.
Com base nos relatos documentados o município não tem um único fundador, visto
que, as famílias foram se aglomerando em torno da Estrada de Ferro de Goiás.Com o pas-
sar das décadas, o povoado começou a crescer de tal forma que se transformou em Distrito
de Catalão (GO), em 1948, através da Lei Municipal nº 24. E apenas cinco anos depois,
Distrito de Ouvidor chega à condição de município, através da Lei Estadual nº 824, de

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19 de outubro de 1953. Após Ouvidor ganhar sua emancipação os novos rumos de desen-
volvimento começam a ser traçados, visto que no final dos anos de 1960, foram iniciados
os estudos de prospecção do Domo Complexo Ultramáfico-Alcalino Ouvidor/Catalão.
Logo, desenvolvimento social do município perpassa os caminhos da instalação da
ferrovia (1922), décadas seguintes sua emancipação em 1953, no final da década de 1960
e meados da década de 1970 os estudos e o início das instalações das plantas de extração
mineral, que é atuante até os dias de hoje. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (2020), a estimativa da população humana em Ouvidor é de 6.782 pessoas, que
possui, sob o aspecto do desenvolvimento humano, elevada qualidade de vida, advinda da
dinâmica sócio espacial das atividades econômicas desenvolvidas, alavancada pelo setor
mineral e setor de serviços.

Uso e Ocupação da Terra no Município de Ouvidor (GO)

Com base nas ferramentas disponíveis no sistema Cerrado DPAT, no qual, possibilita
acesso as informações sobre o Bioma Cerrado, especialmente sobre as características do
desmatamento e as áreas naturais mais susceptíveis ao desmatamento. O Gráfico 1 abaixo
evidência os processos de antropização dentro no município, a partir de dados levantados
pelo sistema entre os anos de 2001 a 2020.

487 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Gráfico 1 – Áreas desmatadas em km² dentro do Município de Ouvidor (GO) nos anos de 2001 a 2020.
Fonte.: CERRADO DPAT, adaptado por.: FONSECA, N.K.G. da (2022).

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Diante do exposto acima, é notório que as áreas desmatadas nos últimos quatro anos,
chegou nos limites legais de antropização, as áreas que posteriormente eram pastagens,
ganham a presença da silvicultura e pastagem tipo campo sujo, alterando os dados de
vegetação remanescente.
Contudo, a partir do mapeamento elaborado de uso e ocupação de solos no muni-
cípio por Fonseca (2018), evidência as áreas de expansão de silvicultura na região como
demostra a Figura 2, que descreve esse aumento principalmente dentro da área que hoje
está dentro da APA do município.
488 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2 – Mapeamento Uso da Terra (2018)


Fonte.: IBGE/SIEG (2018). Elaborado por FONSECA, N.K.G. da. 2018.

Sabendo então da perca de área de vegetação nativa, a cada ano temos como conse-
quência a supressão de espécies com potencialidade medicinal. Essa modificação no am-
biente altamente antropizado gera inúmeras consequências para a região, como regimes
de chuva, alimentação para a fauna silvestre, assoreamento dos corpos hídricos da região.
Todo esse processo além de alterar a paisagem, também afeta o cotidiano dos moradores
local, já que inicialmente utilizavam os recursos do Bioma, e hoje tem decaído em desuso,
porém alguns poucos ainda perpetuam esses saberes, principalmente com o uso das plantas
para fins medicinais.

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O uso das plantas para a cura no Município de Ouvidor (GO)

A oralidade desde o princípio da humanidade foi uma das formas mais comuns de en-
sinar e aprender. Em diversos povos, as vegetações sempre trouxeram um questionamento
de seu uso e seus benefícios, de forma empírica os conhecimentos foram passados de ge-
ração a geração, conhecimentos que hoje a indústria farmacêutica também utiliza em seus
princípios de produção. Contudo, ainda existe um movimento de resgate de uso natural
das conhecidas ervas de cura, plantas medicinais, ou fitoterápicos.
Segundo a autora Carvalho (2001), pode ser classificado a fitoterapia como “[...]medi-
cina popular está presente no nosso dia-a-dia, aos nossos hábitos e tradições, nos âmbitos
familiares, no meio de pessoas simples que não precisaram passar por uma universidade
para terem o conhecimento do poder medicinal das plantas. ” Essa sabedoria advinda da
oralidade vem perdendo seus escritores com os avanços da tecnologia, do desenvolvimento
de áreas agropecuárias, e a saída do homem do campo.
Contudo, a catalogação das plantas medicinais tem princípios na botânica, que tinha
como visão nomear e categorizar os vegetais e como consequência obtendo plantas com
princípios fitoterápicos. Segundo Lorenzi e Matos (2002) “Uma das primeiras obras que
hoje temos acesso é a obra “De Matéria Medica” – Do grego Dioscórides, que ilustrava
mais de 600 itens com os fins medicinais. ”
No que podemos explorar das plantas medicinais no Brasil, os povos originais já ha-
viam catalogado diversas espécies e seus fins, e após a invasão portuguesa esses conheci-
mentos foram absorvidos pela academia tradicional, abrindo um leque de pesquisas mais

489 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
aprofundadas das espécies catalogadas e seus devidos fins. Com isso, a fusão dos conhe-
cimentos dos povos europeus e a sabedoria dos nativos permitiram a melhoria na quan-
tidade e qualidade de informações. Além dos saberes dos povos originais do Brasil, os
conhecimentos advindos dos povos africanos escravizados também formam incorporados
dentro das pesquisas de botânica.
Até meados do século XX, o país que em sua maioria era rural, como já foi citado nos
capítulos anteriores e mantinha o uso e os saberes das plantas medicinais. Porém, com a
industrialização, a tecnificação do campo, e a urbanização das áreas rurais, esses saberes
foram caindo em desusos. Logo, o acesso de medicamentos sintéticos tornou os saberes da
botânica ultrapassados, e até considerados charlatanismo, misticismo, pois a tendência era
o moderno, o urbano, o industrializado.
Após esses principais estudos, considerados clássicos dentro do herbalismo, hoje o res-
gate aos saberes ancestrais é crescente, obras como Plantas Medicinais no Brasil (LORENZI
e MATOS, 2002) são bibliotecas de saberes, desde a classificação botânica cientifica até as
nomenclaturas e usos para obter o caráter medicinal.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 489 20/06/2023 16:46:54


Sendo sabido, que o Cerrado é uma potência em plantas medicinais, e que cada ano perde-
mos espécies para hectares de monocultura e planteis de ruminantes, o município de Ouvidor
não é uma exceção, com cerca de 80% de sua vegetação nativa explorada, como consta as análi-
ses de usos de solo no capitulo supracitado. Segundo o Novo Código Florestal (Lei 12.651/12),
“No mínimo, 20% nas propriedades localizadas no Bioma Cerrado”. Logo, podemos ter como
resposta que o município cumpre suas porcentagens mínimas de preservação do Bioma.
Exemplos de plantas com fins medicinais e que pode ser utilizada de diversas formas,
como chás, xaropes, tinturas, além de outros métodos de extração das propriedades tera-
pêuticas. Partes como raízes, cascas, flores, folhas, frutos e seiva podem conter proprieda-
des medicinais.

Nome Popular / Usos populares Formas de Partes


Nome científico Preparo utilizadas

Arnica (Arnicamontana) Anti-inflamatório; cicatrizante, micoses de Chá, emplasto e Folhas, planta


pele, alergias, vermífugo. tintura. inteira.

Aroeira Antibiótico; cicatrizante; anti- inflamatório; Chá, sumo e tintura. Folhas e Caule.
(Schinus terebinthifolia) infecções gástricas; dores no corpo; inflama-
ções uterinas; catapora;
contra IST’s.

Camará Expetorante; contra gripe, bronquite; tosse Chá e xarope. Flor, Folhas,
(Lantana camara L.) e febre. planta inteira.

Cana-de-macaco Anti-inflamatório; contra dores na coluna, Chá e sumo. Caule


(Costus spiralis) corrimento vaginal, problemas de bexiga, nos (entrenós)
490 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

rins, no útero, usado no tratamento


de diabetes.

Canela de velho Anti-inflamatório; dores nas articulações; Chás e tinturas. Folhas e Caule.
(MiconiaAlbicans)
Carqueja Contra febre; problemas no estômago, fígado Chá. Planta inteira.
(Baccharistrimera) e intestino.

Catuaba Afrodisíaco, melhoria da Chá e tinturas. Folhas e flores.


(Anemopaegmamirandum) memória, antidepressivo, energético.

Copaíba Determatites, Úlceras no estômago; Umectação e oleação. Óleo.


(Copaifera langsdorffii) Caspa; Problemas respiratórios, como tosse,
excesso de secreção, bronquite; Gripes e
resfriados; Infecções urinárias; Hemorroida;
Doenças inflamatórias articulares, como
artrite; Prisão de ventre; Micoses.

Embaúba Roxa Contra problemas de próstata; pressão alta; Chá e xarope. Folhas e
(Cecropia purpurascens) tosse; coqueluche. Inflorescência.

Fedegoso Antibiótico; anti-inflamatório; expectorante; Chá, xarope, tintura e Raízes e


(Senna macranthera) usado contra febre; gripe; gases; má digestão; garrafada. sementes
prisão de ventre; regulador de ciclos menstruais.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 490 20/06/2023 16:46:54


Nome Popular / Usos populares Formas de Partes
Nome científico Preparo utilizadas

Murici Usado em tratamento contra diabetes. Chá. Casca do fruto.


(Byrsonima crassifólia)

Pequi (Caryocar brasilense) Asma, bronquite, coqueluche, gripe, tônico; Óleo e chás. Óleo e folhas.
afrodisíaco; infecções fúngicas, regulador de
fluxo menstrual.

Barbatimão (Stryphnoden- Cicatrizante; Anti-inflamatório; corrimentos Banhos de assento; Cascas


dron barbatiman) vaginais. tintura.
(Mart)
Sucupira Anti-inflamatório Tintura. Sementes.
(Pterodon emarginatus)

Assa-peixe Anti-inflamatório; expectorante; dores nas Chá. Folhas e raízes.


(Vernonia polysphaera) costas; cicatrizante.
Cagaita (Eugenia Diarreia, regulador menstrual. Chás e Folhas, flores
dysentertca) Tinturas. e cascas.
Mama-cadela (Brosimum Tratamento de vitiligo, doenças reumáticas, Deccoção. Raízes, cascas e
gaudichaudii) depuração do sangue, dermatoses, diuréticos, folhas.
contra gripe, resfriado e bronquite.

Quadro 1 – Plantas medicinais mais encontradas em Ouvidor (GO) em 2022,


Fonte: Trabalho de campo, 2021.

Essas são as plantas mais utilizadas pelas pessoas do município para tratamento fito-
terápicos, a lista de plantas medicinais a cada ano ganha novas páginas de pesquisa, assim
permitindo uma expansão nos conhecimentos de forma escrita, já que oralmente os co-

491 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
nhecimentos persistem.
Por fim, o observasse que Cerrado já não é tão exuberante e com diversidade no mu-
nicípio de Ouvidor, é necessário andar bastante dentro da mata para encontrar algumas
espécies, o que dificulta a manutenção das produções, já que quase todos os raizeiros do
município são idosos, e depende da ajuda para fazer as coletas no Cerrado.

Considerações finais

A carência que o município apresenta em programas de gestão pública reflete com o


descaso com o cuidado dentro da área de captação de abastecimento de água para a co-
munidade do município. Sobre a gestão é necessária ampliação de medidas mitigatórias
perante das dinâmicas de uso e ocupação que advém usos mal incorporados, resultando
em aceleração de processos de perca de solos, como assoreamentos, aberturas de sulcos,
ravinas e voçorocas. A redução da vegetação natural e as extensas áreas de pastagens altera

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a dinâmica do escoamento superficial do solo, reduzindo as taxas de percolamento no solo,
modificando o ciclo hidrológico da região.
Podemos refletir sobre a real atenção que temos diante dos recursos, pois as escolhas
das políticas públicas e seus meios de implantação devem estar coerentes com a real neces-
sidade do local. Recursos vitais para a manutenção da vida, seja ela qual for. A ação antró-
pica e o meio natural derivam de uma complexa dinamicidade, e o planejamento tornasse
cada vez mais necessário, pois descontroles e/ou negligências tem consequências que altera
todo corpo do ecossistema da localidade.
Portanto, esta pesquisa reforça a necessidade de chamar atenção do poder público, em
especial o municipal, para políticas públicas de preservação e ampliação da vegetação na-
tural local. As memórias do Cerrado vão sendo “apagadas e dando espaço para monocul-
turas e pastagens, perdendo sua heterogeneidade, aqueles que ainda preservam os saberes
tornando memórias, e a sabedoria cabe manter viva a história de luta e resistência daqueles
que por crendice foi benzido, daqueles que precisou usar uma planta do Cerrado para
fins medicinais ou até mesmo para alimentação. Aqui foi resgatado uma pequena parte da
sabedoria popular desse povo que atualmente tem dificuldades de encontrar as plantas em
função do desmatamento.

Resumo

Este presente artigo a visa corroborar com o resgate das memórias dos povos Cerradeiros e seus
saberes. As transformações das Paisagens do Cerrado, sobretudo com o início da tecnificação do
492 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

campo a partir de 1970, juntamente com os projetos de políticas públicas de expansão da fronteira
agrícola no país, condenou o Cerrado ao agronegócio, de forma predatório, no qual se preserva o
mínimo. Com o histórico de uso e ocupação das terras de forma extensivas que estão presente até
os dias de hoje, herança sesmarial, herança que ainda é inerente nos hábitos da população. Com
isso, este trabalho busca refletir sobre o uso antrópico no município de Ouvidor (GO); além de
pesquisar as memórias cerradeiras a partir dos usos de plantas nativas consideradas medicinais.
Assim, pode ser considerado as transformações da paisagem no município, exigindo planejamento
e adoção de práticas que possam mitigar as desordens de caráter ecossistêmico, assim visando a
busca da preservação da biodiversidade, dos recursos hídricos e qualidade de vida para população.
Palavras-chave: Uso e Ocupação do Solo; Plantas Medicinais; Cerrado.

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O patrimônio de palavras: poetas
e poemas no espaço da cidade1

Valéria Cristina Pereira da Silva2


Antonio Marcos Gomes da Silva3
Mozart de Sá Tavares Júnior4

Introdução

O tempo já não tem ontem nem amanhã.


Gaston Bachelard

A literatura e o patrimônio encontram-se na cidade forjando novos espaços de sentido


através do contato com a exposição de esculturas fotográficas de poetas, textos, poemas

495 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
impressos no chão e (ou) em murais, paredes, esculturas e monumentos diversos. Casas de
poetas, são patrimônios evocativos que celebram outras memórias, outras sensibilidades e
travam novos valores para a cidade. Se a literatura sempre foi um manancial para o ima-
ginário urbano e se o poeta, o escritor guardara nas páginas escritas, os sentidos das ruas,
dos nomes, dos lugares e se a própria cidade celebrada ou vivida está no livro, no poema,
a obra, portanto, contendo a cidade, consideramos a inflexão de uma outra manifestação;
quando a cidade é quem transforma em patrimônio autor e obra e agora é o poeta que está
na página da cidade, lida e relida e sempre em devir.
O objetivo deste trabalho é investigar a relação entre arte e patrimônio a partir das
sensibilidades dos monumentos escultóricos que lembram e celebram poetas, escritores e

1
Esta investigação conta com o apoio do CNPq e consiste em resultados parciais do projeto de internacio-
nalização intitulado: A cidade de todas as artes: a metrópole como local de cultura.
2
IESA – Instituto de Pesquisas Socioambientais/Universidade Federal de Goiás - vpcsilva@hotmail.com
3
Universidade Regional do Cariri-URCA - antoniomarcos.gomes@urca.br
4
Universidade Federal de Goiás- UFG - mtavares23@gmail.com

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obras literárias. Uma questão central que levantamos é como tais formas sensíveis do patri-
mônio transforma o espaço urbano, criando outras significações, novos usos e outros valo-
res? Buscamos colocar tal problema partindo da hipótese de que a metrópole e seus espaços
potenciais são hoje articuladores culturais, como espaço da visibilidade, da novidade, do
acontecimento e da sinergia criadora e inovadora na qual as artes integram-se. O problema
que buscamos elucidar consiste também em compreender como os sentidos advindo das
artes literárias e visuais articulam-se com o patrimônio e ressignificam os espaços urbanos
e seus usos e sentidos fazendo com que a escultura deixe de ser um “fantasma de pedra”
para ser um ente afetivo.
Desse modo, recortamos espaços-mundo que envolvem cidades, metrópoles no Brasil e
em Portugal tais como Lisboa, Oeiras, em Portugal; Juazeiro do Norte, Quixadá no Ceará;
São Luís no Maranhão, como um retrato no Nordeste Brasileiro que celebram autores
como a escritora Rachel de Queiroz e Seu Lunga na literatura de cordel. No centro de São
Luís, uma praça com diversos bustos de escritores e uma monumental estátua de Gonçalves
Dias. Em Lisboa e Oeiras Fernando Pessoa é celebrado no espaço através da memória e do
monumento. Assim, as personalidades e suas obras são evocadas no imaginário da cidade.

Fernando Pessoa: eterno encontro poético em Lisboa e Oeiras

Em Lisboa, no Chiado, encontramo-nos com Fernando Pessoa e é possível estabelecer


com ele um diálogo silencioso e poético. Ele está sentado quase em frente ao Café Brasil. Na
alta noite de lua azul, no milímetro de segundo que o Chiado se esvazia, imaginamos que
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ele se levanta e vai cumprimentar de chapéu o poeta Chiado, que fica logo em frente, do
outro lado da rua. O Chiado com seu ar de sátiro quase a saltar, agradece a Fernando Pessoa
e recita um poema de sua lavra. No instante seguinte tudo volta ao normal neste espaço que
se abre como janelas no sonho. A escultura do poeta evoca os seus sentidos, a sua obra, a
sua vida. Quem o leu profundamente, relembra e comemora com ele a lembrança de tantos
versos tão vivos e existenciais que depositam o seu vivido em nosso ser. Para aqueles que
apenas conhecem o poeta de longe, ainda assim, é uma alegria estar, se aproximar, fotografar
sua célebre figura, deixa-se fotografar com ele (monumento escultórico) pois trata-se para o
visitante em geral, viajante ou turista e mesmo para o habitante do lugar uma presença na
ausência. Assim, a escultura do poeta é evocação profunda que refaz em sentido os signos
do espaço. Cada memória no espaço tem um sentido, que amplia a citação de Baudelaire
no texto do salão de 1859, sobre o “divino papel da escultura”, onde aqueles que passam não
ficam imunes ao fantasma de pedra. Os lugares que celebram poetas, escritores, artistas,
porém, evocam não apenas uma lembrança, não, tão somente, um fantasma de pedra, ou
apenas um sentimento plástico, mas singularmente uma dinâmica imaginária. Conforme

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Fabris (2000) toda escultura comunica sentimentos de ordem geral, em sua variada tipolo-
gia, e desempenha sempre um uma função de memória, contudo o monumento, sobretu-
do, dos poetas traz uma memória da imagem, que não se separa da obra e de sua beleza, de
sua profundidade, de sua multiplicidade, de sua sapiência. Traz também uma afetividade, à
maneira de G. Bachelard (1993), torna-se um lugar de intimidade. E quão maior é a gran-
diosidade do poeta, maior será a poética do espaço presente.

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Figura 1 – Fenando Pessoa, escultura. Baixa do Chiado, Lisboa
Fonte: Acervo Particular de Valéria Cristina P. da Silva, Foto produzida por Valéria Cristina P. da Silva, 2019, Lisboa-PT.

De acordo com os seus biógrafos e estudiosos, Fernando Pessoa não teria tido nada
em sua vida nada surpreendente, exceto os seus poemas5 Mas mesmo uma vida modesta, é
como toda vida, sempre e visceralmente emocional. Todo vivido é feito de espaço, tempo
e sensibilidades e o ser em Fernando Pessoa gerou outros seres, heterônimos inteiros e co-
nectados. Pessoa era um e era vários, portanto rizomático6 em sim mesmo.
De acordo com Lopes (2004) para sobreviver Pessoa fazia traduções comerciais na
Baixa Lisboeta, esse mesmo lugar em que brilha o seu monumento, essa mesma cidade que
lhe foi mãe, paisagem e pátria de sua solidão criadora:

5
Paz, Octávio. (2012, p. 201-220).
6
Deleuze G. e Guattari (1995, vol 1) Introdução ao rizoma.

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A PRAÇA da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante


Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante...

Isto de sensações só vale a pena


Se a gente não se põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está


De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.

(Álvares de Campos in: LOPES, 2004, Melhores poemas, p.59)

A alma multiplicada de Fernando Pessoa em seus heterônimos Álvares de Campos,


Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, Antônio Mora, Vicente Guedes entres
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outros encarna Lisboa em sua sensibilidade, o vivido, a imagem e o afeto. Podemos aferir
quem em cada poema há um tanto da existência Pessoa-Lisboa. O seu eu é o seu espaço, o
seus vários espaços partilhados como um horizonte nos seus múltiplos.
Lisboa é também o encontro com Pessoa em suas várias criações, de maneira literal e
metafórica, de maneira imagética. Sua figura poética na Baixa do Chiado é evocadora do
seu ser, de sua poesia e prosa, de sua poética inteira. Sua poética inteira ecoa em Lisboa e
se nodifica no eterno encontro com o monumento. Vamos das ruas às páginas, vamos do
caminhar ao sentar -se, a beira do caminho, em sua cadeira, em sua mesa de lembrança e
existência. Estar em Lisboa, na Baixa do Chiado, é estar com Pessoa através também de
sua escultura fotográfica, efígie que simboliza o vivido, o sentido, o sensibilizado. Lugar
de afeto, de memória e de imagem que dá a cidade não apenas a inscrição de seu célebre
habitante, mas que pulsa no coração da poesia, no corpo das páginas, na alma do livro.
Pessoa e outros poetas faz de Lisboa uma cidade imaginária por excelência, suas pedras são
revestidas de beleza e sentimento. Segundo Lopes (2004, p.10) para Pessoa “todo estado
de alma é uma paisagem”. Se todo estado de alma é uma paisagem, a paisagem da Baixa

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do Chiado é evocadora da alma poética inteira de Pessoa. Pessoa vive em Lisboa, em sua
paisagem de fora, de aqui e agora, e Lisboa vive em Pessoa em sua paisagem de dentro, de
sonho, de pensamento, mas que se descortina em suas múltiplas realidades, em sua expe-
riência. Na praça, na tabacaria, na Baixa, no restaurante, na solidão em multidão metro-
politana, o poema é o palco do drama que o poeta, no vivido, inscreve-se, o seu ser, em si
mesmo. Numa paisagem de dentro e de fora, de vários, pois o real, não é real sem o sonho.
Lisboa nos espera em Pessoa. Pessoa nos espera em Lisboa para um eterno encontro,
doador de um legado vivido em poesia e, portanto, um encontro afeto-emotivo.
Como seus heterônimos, Pessoa multiplica-se em memória no espaço urbano. Sua
casa, seus lugares, o Cemitério dos Prazeres onde foi enterrado e nas extensões metropoli-
tanas, nos encontramos novamente, muitas vezes com Fernando Pessoa, por exemplo, em
Oeiras nos Parque dos Poetas.
Esse espaço celebrativo e mnemônico homenageia diversos poetas, não apenas portu-
gueses, mas poetas de língua portuguesa, de vários países e continentes.

499 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2 – Fernando Pessoa – Monumento no Parque dos Poetas


Escultura e Poema de Fernando Pessoa, Parque dos Poetas-Oieras-Portugal. Acervo Particular da Autora. Fotos
produzidas por Valéria C. Silva, 2019.

Nada mais justo e luminoso este monumento para um poeta que fez da “sua pá-
tria sua língua”, mesmo tendo profundos conhecimentos em língua inglesa e outros idio-
mas Pessoa fez da língua portuguesa o espaço sagrado de sua poesia. E nesta língua tão

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sentimental de sonho e saudade que consolida o seu ser. Nesta língua o seu original é lido,
e, principalmente, nesta língua o poeta é celebrado e amado. O Parque dos Poetas é um es-
paço urbano dedicado à memória, à poesia, à homenagem-lembrança e à leitura. Fernando
Pessoa, como muitos outros poetas, tem seu lugar-referência com placa biográfica, uma
escultura-fotográfica e um poema gravado no chão.
Pessoa está em sua figura esguia, elegante e emblemática, sempre jovem. O monu-
mento fixa sua imagem, já gravada na memória coletiva, nas capas dos livros, na caricatura
personificante, em gestos, acessórios e expressões que evocam o seu ser em vida e obra,
em espaço e tempo. O poema que podemos percorrer e ler é a estrofe XI do Guardador de
Rebanhos, longo poema de Alberto Caeiro do qual segue alguns fragmentos:

VII
Da minha aldeia, vejo o quanto se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena


Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo
o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos
500 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. [....]

XI
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter piano?


O melhor é ter ouvidos
E amar a natureza.
[...]

(Alberto Caeiro in: LOPES, 2004, Melhores poemas, p.150-169)

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Se a língua é Pátria, língua é também espaço, um espaço identitário e territorial. Desse
modo, a cada poema se sobrepões muitos sentidos de espaço, que aqui se tornam espaço
habitável, localizável, espaço de referência e citação, espaço vivido. Espaço que tocamos
como a página de um livro, espaço que caminhamos por entre árvores e pedras, espaço que
literalmente pisamos em poesia, espaço tridimensional povoado de estátuas e gentes, de
cheios e de vazios, espaço sonoro de pássaros. Pássaros que não recitam, mas que cantam
enquanto os homens podem recitar. As palavras são o próprio percurso no Parque dos
Poetas no interior da cidade, como uma inscrição dentro da outra e com elas, as ruas, os
circuitos e a paisagem e no espaço da memória onde os poetas ativam nossa imaginação,
convidando a ler e escrever a cidade em outras palavras.

A poesia encantadora das praças

Benjamin (1995, p.274) enfatiza que o bom escritor não diz mais do que pensa, Assim,
o pensamento é o dizer do poeta, no teatro da palavra, das inúmeras cenas. O dizer, no
sentido do verso, na literatura é a realização e expressão do pensamento, do poeta que, de
algum modo encarna na combinação das sílabas, orações e frases as diversas personagens. É
como se o poeta apostasse nos versos o espaço vivido, porque em muitos livros, esse vivido
faz a experiência do escritor presente no corpo da prosa e do verso e, de tão arrebatador,
este vivido acomete o leitor que, pelo exercício da imaginação põe-se de modo singular
nas cenas. Aos maus escritores o inverso também é verdadeiro, isto é, quando os versos
não têm tanta harmonia, contexto etc., o leitor o estranha. Assim, os livros traduzem uma

501 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
imagem com sintonia poética.
A escultura, nasce da paixão reprimida de uma jovem, onde, saudosa desenha na pare-
de, o contorno do amado. Assim, a escultura parte da questão humana.
A escultura como objeto de estudo só vai merecer a atenção crítica cerca de
um século depois, com o trabalho de Plínio, o velho [...], ao ensinar que a primeira
escultura surgiu quando uma jovem apaixonada desenhou na parede o contorno da
sombra do seu amado, que a abandonara. Seu pai, um ceramista, para aliviar o sofri-
mento da filha, fez uma escultura a partir dos traços desenhados. (Faria, 2018, s/p)

Na origem da escultura, dessa forma, está plasmado os laços afetivos que se erigem
à lembrança. A fábula de Plínio articula este imaginário. A escultura, então, que traz a
imagem do poeta que foi, em projeção no espaço, em relação temporal através da du-
ração do monumento e em constante visibilidade faz com que, de algum modo, poeta
torna-se nossa companhia na cidade. Dubois (2012) sobre essa temática afirma que a
pura presença referencial desloca o “isso esteve ali” para “o isso está ali” convocando o

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aqui e agora pelo signo, através do qual o autor e sua obra tem seus significados multi-
plicados no espaço.

Estátua de Rachel de Queiroz: memórias

É comum nas cidades, pequenas, médias ou grandes, na realidade do estado do


Ceará, Nordeste do Brasil, nas ruas, praças e coretos, esculturas, monumentos e pinturas
dedicadas a poetas, romancistas, cordelistas, abolicionistas. Na cidade de Quixadá-Ce,
no Sertão, por exemplo, tem-se na área central uma casa e estatueta dedicada a escritora
cearense Rachel de Queiroz. Ao ver o monumento e o enredo de vida da poeta, o
apreciador é lançado pela imaginação às páginas do Romance O Quinze, porque, uma
força catalizadora promove a simbiose entre a página lida e a estatueta em tamanho
real da escritora. Na obra O Quinze, por exemplo, Raquel traduz a fitofisionomia da
caatinga e a convivência dos seres humanos no habitat semiárido, no romance, é como
se o leitor sentisse as aflições da família de retirantes. O que Rachel disse, no romance,
foi a dor do homem da caatinga que, assim como os cactos, marmeleiros, umburanas
e tantas outras espécies de árvores tinham o anseio por chuva, no semiárido. Rachel,
traduziu o flagelo de outrora, denunciou, de forma elegante as agruras da sequidão, o
trabalho quase sem remuneração do homem e mulher sertão adentro nas fazendas sob
a égide dos coronéis e, assim, a obra aguça o imaginário, que agindo no pano de fundo
põe este romance a modificar o leitor em sua essência porque contempla, minimamente,
aspectos do cotidiano.
502 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A cidade de Quixadá é encravada no embasamento cristalino. De muito longe se avista


os inselbergs, formações monolíticas escuras. Essa cidade, quando a família real veio de
Portugal, recebeu o primeiro açude, o açude Cedro, considerada a primeira obra hídrica
do Brasil. O argumento era que, essa construção amenizasse as angústias de meses e meses
sem água, no sertão. A bem da verdade é que, o imaginário sobre a questão hídrica tão
bem experimentado, dedilhado como se fosse uma confissão põe a escritora, por meio da
fazenda “Não me deixes” em contato direto com o solo, com o torrão natal, tais elementos
traduzem a importância de Rachel de Queiroz para a urbanidade de Quixadá-Ce. Para
quem a leu, permite que se experimente do real e da ficção atravessados pelo imaginário.
A estátua colocada num banco (Figura 3), é um convite para uma fotografia com a autora,
porque o ângulo favorece a quem a observa uma lembrança da afetividade, não com o
objeto da estátua, mas, com o afeto do que a poeta escreveu e que mobiliza as pessoas a
conhecerem este monumento.

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Figura 3 – Rachel de Queiroz - Escultura
Fonte: Escultura em praça púbica da escritora cearense Rachel de Queiroz, na cidade de Quixadá-Ceará.
Fotografia do acervo particular do Padre José Claudiano Ferreira da Silva. Foto produzida por José C. Ferreira da
Silva, 2018.

Assim, o objeto da estátua pode angariar sentidos diversos, como apontam os estudos
de Chevalier e Gheerbrant (2020). As estátuas traduzem a espacialidade da cidade, os

503 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
modos de vida, são, por assim dizer: ‘espaços da memória’. Lunga e Rachel em formas de
estátuas.

Estátua de Senhor Lunga: memórias

Lunga, seu Lunga, um homem que levou a fama de ignorante, grosso, ganhou desta-
que na imprensa em diversas reportagens como o homem mais ignorante do mundo7. Essa
personagem compõe diversos folhetos de cordel com causos e mais causos. Lunga é o ape-
lido de Joaquim dos Santos Rodrigues. Este homem, nascido no munícipio de Caririaçu,
Sul do Estado do Ceará, viveu em Juazeiro do Norte onde atuou como comerciante de
cereais e sucata. Lunga que tem até uma escultura dedicada a ele na praça, também está
nos versos do cordel.

7
https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2019/09/13/homem-mais-ignorante-do-mundo-seu-lunga-ganh
acessado em 08 de setembro de 2022.

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O assunto do momento
É esse senhor de idade
Seu Lunga do Juazeiro
Mangaieiro da cidade
Um pacato cidadão
Só um pouco de resmungão
contra qualquer leviandade
(As perguntas idiotas e as respostas de seu Lunga, v.1 -José Medeiros de Lacerda, s/d)

Esta personagem folclórica de Juazeiro recebeu vários cordéis escritos por Lacerda que
narra sua irreverência e os casos que se desenrolam no lugar, Juazeiro é celebrada no Cordel
através de Sr. Lunga, seus trajetos e sua fala e seus desditos. Assinado por Jackson, Jadson
e Fabiano 2020 (Figura 4), com o título “Seu Lunga”, o grafite estampado num muro
de uma casa antiga, mostra a quem visita o Memorial Padre Cícero e aos romeiros que
assistem à missa do Padre Cícero aos 20 dias de cada mês, o rosto do personagem que não
tolerava perguntas redundantes, tampouco sem um mínimo de inteligência.
504 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4 – Lunga de braços abertos à cidade


Fonte: Grafite e estátua de Seu Lunga. Largo do Socorro, cidade de Juazeiro do Norte-Ceará. Fotografia de
Antonio Marcos G. da Silva, 2021 e 2022, respectivamente.

É Lunga, no imaginário, o rude, arquétipo do sertanejo da caatinga. Embora numa


das áreas centrais de Juazeiro do Norte, esta obra de arte em grafite, passa desapercebida,
escapando aos detalhes, no agitar da cidade, no entanto, como se portasse uma lupa nos
moldes de Bachelard, pusemo-nos a olhar, ver e perceber este grafite, porque, no dizer
do filósofo: “[...] o homem com a lupa exprime uma grande lei psicológica. Coloca-nos
num ponto sensível da objetividade, no momento em que é preciso colher o detalhe

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despercebido e dominá-lo. A lupa condiciona, nessa experiência, uma entrada no mundo.”
(BACHELARD, 1984, p.298). No grafite a mão esquerda aponta em direção, na qual o
indicador de Lunga leva a quem aprecia o quadro a ler os seguintes versos:

No Sertão a morte tem semblante


Mas a arte dita a todo instante
E a vida reina abundante
JRS #O poeta urbano

Ao ler esse poema que envolve aspectos do vivido nos aproximamos da afirmação ba-
chelardiana sobre a ‘consciência criante do poeta’, porque, a análise decorre de um proces-
so de ‘retorno sistemático a nós mesmos’, isto é: “Obrigando-nos a um retorno sistemático
a nós mesmos, a um esforço de clareza na tomada de consciência a propósito de uma ima-
gem dada por um poeta, o método fenomenológico leva-nos a tentar a comunicação com
a consciência criante do poeta.” (Bachelard, 2018, p.01). Esse encontro com seu Lunga
deu-se dá nova relação com a cidade. A praça é imensa, compõe o largo do Socorro, uma
igrejinha pequena homônima ao largo onde celebra-se missa em alusão ao dia de faleci-
mento do Padre Cícero. Na praça contém outro monumento a Seu Lunga, uma estátua
(Figura 5)8. Em grandes extensões, sem árvores ao centro, exceto às bordas. Do memorial
avista-se a capela. O grafite alusivo a Lunga fica entre a Igreja e o Memorial, com as cores
quebra a frieza e monotonia de uma cor acre, meio de alumínio.
É como se essas duas imagens de Lunga em extremidades seja um lugar que se expressa,

505 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
pelos versos de cordel, põe a cidade neste ponto entre fé, arte e memória, por meio de
personagens como Seu Lunga. Quem circula por essa área da cidade testemunha pelos
prédios e monumentos, estátuas, grafites, a arte. Flertar com a obra de arte literária é andar
pela cidade e enamorar-se em conexão aos versos do cordel com esculturas a céu aberto,
em homenagem a Lunga. A cidade é levada ao mundo pelas características dessa perso-
nagem. Assim, a fantasia sobre a cidade é composição espacial e nesta composição estão
centralizados personagens imaginários.

Todos cantam sua terra: o patrimônio dos poetas

O título dessa seção foi inspirado na música escrita e cantada pelo grande maranhense
João do Vale (Pedreiras, 11 de outubro de 1934 — São Luís, 6 de dezembro de 1996), que

8
Essa estátua foi danificada como aponta a reportagem: https://g1.globo.com/ce/ceara/cariri/noti-
cia/2022/09/08/estatua-do-seu-lunga-e-danificada-em-juazeiro-do-norte-no-ceara-vandalismo-e-investiga-
do.ghtml acessado em 14 de outubro de 2022.

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a eternizou com sua voz cantando sobre sua terra natal de maneira única, bela e magistral.
Eric Dardel, geógrafo francês e autor do clássico O Homem e a Terra, nos diz em seu livro
que um dos dramas do mundo contemporâneo é que “a terra foi ‘desnaturada’, e o homem
só pode vê-la através de suas medidas e de seus cálculos, em lugar de deixar-se decifrar
sua escrita sóbria e vívida” (Dardel, 2011, p. 96). Tal trecho é revelador no sentido que os
homens têm perdido gradativamente a relação de cumplicidade afetiva com a sua terra,
procurando apenas relacionar-se com esse espaço de uma maneira objetiva, redutora ou
mesmo funcional.
Um dos pilares da resistência, fortalecimento e oxigenação da cultura das cidades é a
herança que os pais legam aos seus filhos e assim de geração em geração perpetuam suas
especificidades. Dito isso, é preciso entender que, aos poucos, tem havido uma perda sig-
nificativa desse legado em relação ao seu espaço. As crianças pouco ou quase nada sabem
sobre a sua cidade; não tem conhecimento sobre a importância cultural; não sabem a
origem do nome, dos fundadores, dos primeiros habitantes e do seu surgimento; desco-
nhecem lugares afetivos.
Um dos aspectos primordiais da Geografia contemporânea é resgatar, dentro e fora
da disciplina questões como: pertencimento, afetividade, espaço vivido, identidade. Esse
papel tem sido feito pela Geografia Cultural-Humanista, que através, do diálogo com
escritores da Literatura – romances, poemas, crônicas, da Música – letras e melodias – e
da Arte, no sentindo mais amplo do termo, tem tido um papel importante no resgate da
cumplicidade do homem com a terra.
A importância de trazer esses aspectos às crianças, enquanto função pedagógica, tem
506 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

uma questão fundamental: é nesta idade que os vínculos podem ser gerados de maneira
mais natural e profícua. O geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan (2013) sugere que:
O horizonte geográfico de uma criança expande à medida que ela cresce, mas
não necessariamente passo a passo em direção à escala maior. Seu interesse e conhe-
cimento se fixam primeiro na pequena comunidade local, depois na cidade, saltando
o bairro; e da cidade seu interesse pode pular para a nação e para lugares estrangeiros,
saltando a região. Na idade de cinco ou seis anos, a criança pode demonstrar curio-
sidade sobre a geografia de lugares remotos. Como pode apreciar locais exóticos se
não tem experiência direta? (TUAN, 2013, p. 45, grifos nossos).

Portanto, trazer de volta ou mesmo plantar as raízes dos valores ambientais, culturais
e sociais, fortificar os vínculos com a sua cidade, exaltar e solidificar o patrimônio cultural
e arquitetônico é de uma importância que não pode ser quantificada, mas que é necessária
no mundo contemporâneo, vejamos a Praça do Pantheon. (Figura 1).

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Figura 5 – Praça do Pantheon
Fonte: Acervo Particular de Mozart de Sá Tavares Júnior. Foto produzida por Mozart de Sá Tavares Júnior, 2020,
São Luís-BR.

Hoje, onde está localizada a praça, era um imenso prédio colonial do século XVIII no
qual ficava o quartel do exército em São Luís. Com a sua demolição foi proposta e poste-

507 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
riormente criada essa praça, portanto, se comparada com outras praças do centro de São
Luís ela é relativamente nova. A ideia é homenagear com bustos personalidades da cultura
maranhense que contribuíram de maneira singular para o crescimento, valorização e pro-
dução com relevância nacional para a cultura das artes no estado.
José Chagas, poeta paraibano de nascimento, mas ludovicense de coração, corpo e le-
tras, que tem seu busto não na Praça do Pantheon, mas que tem também um na Academia
Maranhense de Letras e mais outro na Praça dos Poetas, escreveu um soneto em que, mais
uma vez, mostra toda sua genialidade em palavras dispersas para compor uma imagem
poética única, crítica, atenta para as sensibilidades sociais, como de fato, é toda sua poesia:

Alguns dos imortais, famosos vultos,


Ali se alteiam sobre pedestais,
Assistindo aos inúmeros tumultos
Do extenso largo, em dias infernais,
Quando pivetes e também adultos

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Agem perversamente como iguais,
Dentro daquele espaço de homens cultos,
Em meio a camelôs e marginais,
Como se fossem deuses para indultos
De todas misérias sociais (Chagas, José, 1999, p. 105).

Outro escritor maranhense, dessa vez o romancista Josué Montello, também nos
oferece um relato, escrito em seu diário, sobre um monumento de um escritor muito
importante para a cultura de língua portuguesa: o poeta Gonçalves Dias. (Figura 2). O
Maranhão é conhecido e exaltado pelos versos do imortal poeta Gonçalves Dias, que numa
espécie de saudades da terra amada, compôs em sua poesia alguns versos que relembram
a cidade querida que ficara para trás, usando a imagem de outro pássaro, o sabiá: Minha
terra tem palmeiras, /Onde canta o sabiá;/As aves que aqui gorjeiam, /Não gorjeiam como
lá. Vejamos o relato escrito em seu diário, em 15 de outubro de 1991:
Desde ontem, em São Luís, a convite da Universidade Federal do Maranhão. E
como o hotel que nos hospedamos fica no novo bairro da cidade, defronte da cidade
velha, é daqui, agora, que a admiro, na foz do rio Anil, podendo ver, de um lado, o
Baluarte, com as palmeiras do Palácio do Governo, e do outro, o poeta Gonçalves
Dias, encarapitado no topo de um estipe de mármore, de costas para a fachada bran-
ca da ermita dos Remédio, voltado para o mar, na manhã de muita luz. Acenei daqui
para o meu poeta (Montello, 1998, p. 218).
508 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Na sua obra prima romanesca, Os Tambores de São Luís, Josué Montello também faz
referência a estátua de Gonçalves Dias.
A massa compacta do quartel do 5º Batalhão de Infantaria ficou para trás, com
sua sentinela perfilada no portão central, entre as luzes de dois lampiões. Na avenida
Silva Maia, que Damião atravessa no seu passo lento, ainda com o cigarro apagado
no canto da boca, corre uma aragem macia, que vem do escampado verde do Campo
do Ourique. Em frente, em linha reta, alonga-se a rua dos Remédios, pontilhada de
lampiões. Lá ao fim, depois de um aclive suave, abre-se o largo dos Amores, com a
estátua de Gonçalves Dias voltada para o mar (Montello, 2005, p. 234).

Há um amálgama entre personagem e cenário, entre Damião e a cidade de São Luís,


entre ser e estar no mundo. São elementos aparentemente diferentes, mas complementa-
res. Quando Damião se põe em movimento e suas botinas rangem pelas ruas e calçadas
de São Luís, ele “vai seguindo sem pressa, com a brisa da noite a lhe resvalar pelo rosto
pensativo, que o tempo levemente desbotou” (Montello, 2005, p. 236).

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Figura 6 – Estátua de Gonçalves Dias.
Fonte: https://pt.foursquare.com/v/pra%-
C3%A7a-gon%C3%A7alves-dias/4e1b61c3b0fb59954d402fd1?openPhotoId=51bb0ed8498ef4a19429acd3

A cidade de São Luís em que vive e se perpetua sua cultura através do patrimônio his-
tórico e cultural, e que, portanto, apenas nestes dois exemplos de monumentos, puderam

509 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
gerar para além do concreto, criaram a partir de bustos e estátuas, poesia e prosa, entrela-
çando o real ao imaginário.

Considerações Finais

Este trabalho busca através das relações entre espaço e arte compreender de forma
transdisciplinar e transcultural a pulsação criadora e os impactos das atividades artísticas
na metrópole e em espaços com funções metropolitanas e em processo de metropoliza-
ção. Tendo como lócus da observação e as cidades Lisboa, Juazeiro do Norte, Quixdá-CE
e São Luiz-MA, como referência do papel das artes na conceituação do próprio espaço e
fixação do seu reflexo na cultura, no imaginário e na sensibilidade. Tais cidades, no que
corresponde a relação e a influência das artes no lugar, o impacto das artes na paisagem e
como a cidade também se torna um lugar imaginário, um espaço de criação. Da literatura
à escultura, a xilogravura, os painéis de azulejo e as mais variadas performances poéticas
que revelam o espaço, a perspectiva é não fixar a análise em apenas uma arte, mas no feixe

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luminoso da relação entres as artes e o espaço vivido que reatualiza a cidade e para o qual
a combinação de duas ou mais manifestações artísticas tais como a literatura e escultura
constituem o imaginário da cidade e as suas possibilidades de ação transformadora no
pêndulo que vai da identidade, da apropriação ao patrimônio. Cidade de pedras e de
letras, de palavras que se cruza as outras artes e a suas imagens. Partimos da premissa
que a metrópole é geradora da condição artística na atualidade, espaço de visibilidade da
ação e, portanto, potencial fomentadora também da relação cidade e cidadania e nova
compreensão de cidadania cultural. O papel da cidade há muito transformou-se e junto
com ela também o das artes, tornou-se um campo ampliado de ações, imagens, ideias e
intervenções. No espaço também ampliado da metrópole, as artes criam locais de iden-
tidade, de memória, de imagem. Fornecem impulso dinamizador, cultural, econômico
e simbólico, incorporam-se ao Patrimônio tanto material como imaterial. Permite aos
seres vincular-se de outro modo com o espaço, como buscamos apresentar nos exemplos
trazidos neste texto, e que favorecem novas relações qualitativas. Desse modo, pergunta-
mos a metrópole transforma sua paisagem por meio do feixe pulsante de imagens com-
preendido por arte? A metrópole, nesse sentido, tem possibilidade de ser permeada pela
cidadania cultural, tal como formulou Bonduki (2010)? Consideramos que o caráter
fundamentalmente relacional entre o espaço e as artes faz da metrópole a grande cidade
cultural, o local de sinergia e acontecimento. A metrópole cada vez mais, continua a ser
lugar de sentidos, de gestos, de manifestações de novidade, processo infinito, instaurado
pelo olhar do outro e do nosso, quando já não somos mais os mesmos, acrescidos de
nossas experiências e percepções.
510 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Os signos culturais, artísticos-patrimoniais sublinha a importância da leitura simbó-


lica e sensível do espaço vivido por meio da criação, manifestação e recepção. Assim, os
sentidos das artes plasmadas aos espaços e envolvidos na teia de relações entre a cidade, os
sujeitos e suas obras são entes fundamentais. Perguntamo-nos como a literatura participa
dos lugares de sentido da cidade e, portanto, fundem-se a sua paisagem arquitetônica. De
outro modo, como através de um monumento celebrativo reúne esse potencial literário e
paisagístico-arquitetônico numa outra linguagem a reorganizar esse feixe de imagens quee
amplia o imaginário da cidade e o convite a vivê-la e visitá-la, seus sentidos e signos, suas
buscas e seus valores, suas atrações. O conteúdo estético desloca-se do campo das artes para
a vida e interfere nas formas de comportamento e na construção sociocultural dos lugares e
isto está também ligado ao aparato tecnológico como intermezzo das relações. O contem-
porâneo da metrópole é um espaço-tempo em transformação que abarca a multiplicidade
e a vivência imaginária que amplia sua relevância. A experiência, poder e a ação imaginária
na cidade, ao pulsar a força cultural, identitária, daqueles que protagonizam com outros e
encontram outras alternativas por meio das artes que fazem reanimar a estética no espaço

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vivido tão fundamentais para pensa pensar, hoje, as ações e políticas culturais no espaço
urbano. Sujeitos que produzem emoções como bens e que se transformam valores.
A observação das cidades apresentadas e a obras de arte que nelas intervêm, neste caso
escultura e literatura fundamentalmente, convergem como ação imaginária a combinar-
-se-á com o exercício de ver a cidade e suas espacialidades também em tais obras. A cidade
está no livro, está nas artes visuais e o exame do ponto de intersecção entre a arte e o espaço
figura aqui como modelo em construção e como ensaio para pensar outros espaços urba-
nos, outras metrópoles e ainda uma fusão mais ampla das manifestações artísticas, suas
conexões e potencialidades no espaço urbano
Neste primeiro esboço, as palavras auxiliam o percurso do passeio na urbe e com elas,
as ruas sem saídas esguicham-se para serem inclusas no espaço da memória. Poetas brincam
com a imaginação inscrita e lembrada no espaço urbano. Quantas vezes a cidade empres-
tou suas palavras-imagens ao poeta, e num outro tempo, por meio de um monumento,
uma inscrição-lembrança, a cidade passa a conter a poesia e o vivido em a ressonância de
sentidos que ecoam pelo espaço, ainda que no mesmo chão, essa cidade poético-artística,
sensível já é outra cidade e merecemos conhecê-la.

Referências Bibliográficas

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BACHELARD, G. (2018).A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.
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511 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
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512 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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A pedra, a concha e o homem: os sons
que emergem de uma prática musical
em territórios de fronteira

Helena Santana1
Rosário Santana2

Introdução

A região da raia portuguesa, pela sua localização geográfica e espacial, surge bastante
rica no que às componentes geográficas e geomorfológicas diz respeito, mas também a
nível cultural, social e artístico. Sabendo que “o carácter único de cada lugar é o reflexo
da disponibilidade de recursos materiais e imateriais e da integração em sistemas e redes,
aos níveis global, regional e local, como, entre outros, os ciclos naturais e os sistemas
sociais, os recursos naturais e humanos, o capital físico e social e, necessariamente, os

513 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
modos de vida que caracterizam cada unidade de paisagem. [E que,] As paisagens são
fundamentais para o reconhecimento dessas identidades, através das suas características,
tanto naturais como culturais, que se constituem como os ingredientes essenciais que
emergem nas formas de registos baseados na observação e nos procedimentos analíticos”
(Roca & Oliveira as cited in Castro, Cunha & Santos, 2008, p. 144), pretendemos
perceber de uma sua influência, a nível vivencial, cultural e artístico na região da raia.
Fruto das condições ambientais e materiais geradas ao longo das diferentes eras e perío-
dos geológicos, esta região surge particular no que aos elementos geomorfológicos diz
respeito. De acordo com Cunha (cited in Castro, Cunha & Santos, 2008, p. 140), e no
que à Raia Central Portuguesa diz respeito, inferimos que esta “constitui um território
complexo em nível social, económico e demográfico, mas com um carácter da paisagem
bem vincado, na qual se evidenciam os elementos naturais que a constituem. De facto,
[segundo os autores,] destaca-se nesse território a riqueza e a variedade da paisagem,

1
DeCA, Universidade de Aveiro - hsantana@ua.pt
2
ESECD/Instituto Politécnico Guarda - rosariosantana@ipg.pt

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entendida sobretudo como um complexo sistema de factos e de valores, originados es-
sencialmente pelo contexto evolutivo desses territórios. Apesar de não se poder falar,
exclusivamente, em paisagens naturais, são os elementos da natureza (morfologia, água,
vegetação) aqueles que mais valorizam essa paisagem (Cunha, 1995)”, e que no contexto
do nosso trabalho surgem essenciais3.
Nesta nossa pesquisa pretendemos então relevar aspetos de ordem geológica e
geográfica, investigando sobre o uso de materiais geomorfológicos na construção de
instrumentos musicais, mormente da pedra e das conchas, em uma região específica
do território. Simultaneamente, e atendendo a que pretendemos destacar a região da
raia no que aos seus costumes e práticas diz respeito, percebemos, desde a primeira
inquirição, que seja do lado português, seja do lado espanhol, existem algumas simili-
tudes no modo de viver e fazer música, usando os recursos do território4. Observando
a prática musical, especificamente aquela produzida a nível popular e tradicional ao
longo desta região, confirmamos o uso de diversos instrumentos musicais de constru-
ção mais grosseira, mas igualmente válida, eficaz e genuína, no que às componentes
sonoras produzidas diz respeito. A evidenciação do uso de instrumentos musicais
classificados como de litofones5 e idiofones6 ao longo da região de fronteira, por
territórios da Beira Alta e da Beira Baixa, bem como do Alto Alentejo, levou-nos a
olhar o uso da pedra e das conchas, nomeadamente das Conchas de Santiago, como
um recurso material que poderia ser estudado e avaliado, de modo a perceber da
sua importância e relevância ao nível da prática musical. Depois de investigar os
costumes e algumas práticas musicais disseminadas na região, encontramos no dis-
514 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

trito de Portalegre, na freguesia de Arronches, uma forma singular de usar os seixos


do rio como instrumento musical, e na comarca de Aliste, região de Castela e Leão
em Espanha, o uso das conchas como instrumento musical, em particular o uso das

3
E que se pode, no nosso entender, estender a toda a raia portuguesa salvaguardando as suas especificidades.
4
De facto, ao questionar diferentes práticas musicais ao longo desta região, deduzimos um intercâmbio e
influenciação recíprocos, que se traduz em modos semelhantes de atuação a nível matricial, vivencial e cul-
tural. A fronteira assoma como limite administrativo que em nada espelha a realidade vivida nesses espaços
territoriais quer a nível cultural e artístico, quer a nível geomorfológico, zoomórfico, geográfico e ambiental.
Surgem, dum e doutro lado da fronteira, modos de viver as artes e as tradições, de fazer a arte e a música
utilizando os recursos do território, cujos detalhes merecem, por isso, a nossa atenção. De referir neste
contexto o caso do tamborileiro e da gaita-de-foles, ou do uso da máscara, associados a práticas culturais de
relevo na região e anteriormente alvo do nosso interesse e investigação (Santana & Santana, 2019; Santana
& Santana, 2021).
5
O litofone é um idiofone lítico. Na classificação de instrumentos musicais de Hornbostel-Sachs, estabeleci-
da em 1914 por Erich von Hornbostel e Curt Sachs , o litofone é um idiofone de percussão direta composto
por placas de percussão agrupadas.
6
Idiofone é um termo aplicado a todos os instrumentos musicais capazes de produzirem som a partir da sua
própria substância.

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Conchas de Santiago7. Seja percutindo, seja deslizando a sua parte convexa de forma
a produzir som, este objeto, a concha, agora instrumento musical, pode ser compara-
do com os seixos de rio e as pedras utilizadas na região de Arronches, cuja finalidade é
acompanhar, com o som característico que deriva do seu entrechoque entre os dedos,
as canções tradicionais desta região.
Apurando um uso diverso nos elementos identificados em relação à sua função ori-
ginal, pretendemos apresentar ao longo deste trabalho dados que evidenciem como nesta
região, o homem os identifica, contextualiza e utiliza na sua prática musical, demonstran-
do que um elemento material de origem geomorfológica, como são as pedras e as conchas,
pode ser utilizado como recurso material e musical. Analisando a sua utilização ao nível de
uma prática musical subsequente, pretendemos perceber ainda de que modo os materiais
e as formas são entendidas pelo habitante local, integrando e valorizando os recursos do
território em que habita, e que, quantas vezes ignora, inserindo-os num contexto matricial
diverso do original. O uso da concha, sobretudo a de vieira8, elemento incaracterístico da
região da raia, faz-nos questionar sobre a sua presença nesta região. Transformando o nosso
olhar em relação ao modo como alguns elementos geomorfológicos, geográficos, zoológi-
cos, biológicos e ambientais se exteriorizam em territórios de holografia agreste como são
os territórios da raia, identificaremos a sua colocação em práticas instrumentais e musicais
de cariz popular e tradicional, mas também cultural, social e artístico, de primaz impor-
tância para a vivência e permanência do homem nestas regiões de fronteira.

Instrumentos Musicais – As Pedras e as Conchas

515 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
As rochas são usadas como instrumento musical de percussão desde tempos remotos.
Em Inglaterra, encontramos a referência a instrumentos musicais feitos a partir destes ma-
teriais, já no século XVIII (Bastos, 2010)9. O uso da pedra como instrumento, ou enquan-
to elemento base constituinte de um instrumento musical, surge numa primeira fase um
pouco por toda a Europa, inserindo-se no contexto da prática da música essencialmente
popular e tradicional. Os elementos sonoros produzidos neste contexto, e inseridos na

7
O uso particular das conchas como instrumento musical de percussão por terras do interior do território
português e espanhol levou-nos a questionar o modo como elas por lá se encontram, dado ser uma região
longínqua do mar, pesquisando ainda sobre de que modo são englobadas na prática musical, bem como nos
rituais, nos ritos e tradições. Averiguando sobre o assunto, percebemos que por esta região passa um dos ca-
minhos mais importantes e antigos das Rotas de Santiago, o Vía de la Plata (Caminho da Prata), sendo que
a Concha constitui um dos elementos fundamentais da simbologia associada à conclusão de um qualquer
destes caminhos.
8
A sua origem é marinha.
9
Existem referências a instrumentos musicais feitos com placas de pedra (hornfels) já neste período (Bastos,
2010).

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referida prática, resultam, as mais das vezes, e por via do modo de execução, da vibração
das placas rochosas por golpe ou batida direta. Nesta ação o homem facilmente percebe
o potencial do recurso geológico que encontra disponível no espaço do território, analisa
as suas características físicas e consequentes componentes sonoras, em função da minera-
lização e dimensão de cada elemento geológico que recolhe, identificando os que melhor
convêm às suas necessidades, funções e práticas. No caso particular do instrumento que
agora identificamos, e que pretendemos relevar, as pedras e seixos de rio, e da prática mu-
sical a eles associada, o som produzido advém do entrechoque de duas, ou mais pequenas
rochas (seixos), colocadas nas mãos do executante. Esta colocação faz-se de um modo
particular, ou seja, entre os dedos polegar, indicador, médio e anelar (conforme o seu nú-
mero e dimensão), da mão esquerda do seu tocador (Lopes & Quintas, 2020)10. Podemos
questionar se o uso de materiais tão primitivos e inusitados na construção de instrumentos
musicais como são a pedra e a concha, possui algum interesse em pleno século XX ou XXI.
Podemos questionar acerca do interesse da sua identificação e contextualização matricial.
Podemos tentar verificar das condições da sua utilização em contexto de prática musical.
Podemos intentar perceber se ainda hoje se verifica o seu uso, e em que moldes este se
processa. Podemos indagar se ocorre, por parte das entidades competentes, uma valori-
zação deste recurso e património. Podemos tentar perceber e identificar o seu potencial.
Podemos questionar se um recurso material que se mostra acessível a todos, e de prática
performativa tão particular como esta, se mostra acessível e ambicionada pelas gerações
mais jovens. Podemos tentar perceber se existem condições para uma sua continuidade,
bem como de uma sua inserção numa prática musical que se realize em contexto formal,
516 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

nomeadamente quando realizada ao nível da música tradicional. Todas estas questões nos
conduzem a elementos que nos permitirão perceber sobre a valorização de um recurso e
de um património material. Se não o identificarmos e valorizarmos, o conhecimento que
possuímos sobre ele pode perder-se. Assim, denotando a sua importância na região da raia,
é nossa intenção valorizá-lo de modo a que um registo da sua presença se faça.
Em outro, e atendendo a que o homem sempre se utiliza dos recursos materiais da
região que habita, valorizando-os e inserindo-os em contextos distintos dos originais, por-
que não perceber a origem da solução matricial e musical que agora identificamos. Desde
tempos adâmicos que o homem se socorre do som, nomeadamente do som proveniente
do uso de elementos geológicos, e da sua colocação em vibração, assim como de diferentes
materiais e corpos, para produzir som, identificar e compor uma simbologia e linguagem,
de modo a comunicar com os pares. Desde cedo se apercebeu que o som surge, e é audível,

10
Salvaguardamos aqui o facto de o intérprete ser, ou não, destro. No caso de um intérprete canhoto, as
pedras e os seixos são colocados na mão direita e acionados com a esquerda.

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quando produzido a partir de corpos vibrantes, a longas distâncias. Percebeu que o som
criado pelo bater de fragmentos de rochas umas contra as outras, ou do seu raspar ou
friccionar, apresentava características e sonoridades diferenciadas, em função do tipo e di-
mensão da rocha, das suas características geomorfológicas, assim como dos objetos usados,
construindo um acervo de possibilidades sonoras e comunicacionais. Esta pode ter sido,
sem dúvida, uma das primeiras manifestações comunicacionais, criativas e musicais do ser
humano que, mesmo que de forma inconsciente, e no uso que fez do corpo, assim como
de objetos e materiais retirados dos espaços geográficos, geomorfológicos e vivenciais que
habitava, intentava não só comunicar, como também, e mais tarde, criar11.

No século XX, o uso que se fez da pedra ao nível da construção de instrumentos musicais
torna-se técnica e musicalmente muito mais elaborada, pois os instrumentos musicais ora
propostos mostram-se mecânica e musicalmente mais avançados. Este facto surge do desen-
volvimento da inteligência humana, mas também das necessidades criativas e musicais dos
compositores e criadores contemporâneos, bem como da tecnologia e da técnica que à sua
manufatura e uso se encontram associadas. Contudo, analisando o seu modo de atuação ve-
rificamos que, na sua essência matricial, possuem um modo de atuação em tudo semelhante
aos seus congéneres ditos mais primitivos. Mais recentemente, tornou-se um instrumento
musical com capacidades sonoras e musicais que se integra facilmente na prática musical
associada à música tradicional, mas também em contexto erudito, sendo utilizado tanto no
registo de instrumento solístico, como igualmente camerístico ou a nível orquestral12.

517 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Litofone

O termo litofone provém do grego λιϑος (pedra) e φωνή (som). Os litofones, tam-
bém designados de pedras sonoras, serão assim instrumentos musicais cujos corpos sonoros

11
Necessitando comunicar, o ser humano diligencia produzir som a partir de corpos vibrantes. Através do
uso de elementos geológicos adequados à função, comunica entre o grupo e as comunidades mais distan-
tes, desde a Idade da Pedra. Neste contexto o homem usou não só as pedras, mas também outro tipo de
materiais, nomeadamente peles e ossos, produzindo para além de sons de altura indefinida, sons de altura
definida como são exemplo os provenientes das flautas de osso.
12
Recentemente, foram feitas marimbas de pedra, cujas lajes, afinadas, são dispostas de maneira a serem toca-
das como se de uma marimba se tratasse. Existem numerosos exemplos de obras musicais que usam o som
do litofone, sendo que Carl Orff (1895-1982), o usa pela primeira vez, como parte integrante do sonoro
das suas obras Antigonae (1949), Astutuli (1953) e Édipo (1959). Milko Kelemen (1924-2018) também o
emprega na sua obra Ekvilibri (1961), uma obra para duas orquestras. Integrando o conjunto das percus-
sões, o litofone é um instrumento de percussão tocado por percussionistas, sendo semelhante em forma e
manuseio aos instrumentos de percussão onde são usadas baquetas como meio de ativação vibracional tais
que o xilofone, a marimba e o vibrafone, ou ainda os crótalos. Podemos ainda afirmar que o uso do litofone
é extensível a inúmeras culturas e formas musicais, sendo que na Europa, o uso da pedra ao nível do fabrico
e uso dos instrumentos musicais só foi encontrado numa época mais recente da história da música.

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são feitos de pedra que vibram, mecanicamente, por impacto ou fricção. Enquanto ins-
trumento musical, o material de que é feito revela-se essencial. As suas características
geomorfológicas influenciam as características vibracionais, agógicas, sonoras, e con-
sequentemente, a natureza, os parâmetros e as características do seu som. Torna-se ne-
cessário, senão evidente, proceder a uma análise dos padrões geomorfológicos de uma
região de modo a perceber das suas características e influência nos materiais rochosos nela
identificados e, em seguida, perceber, da sua pertinência e relevância, no que concerne o
seu uso e aplicação em contexto musical. Sabemos que os litofones são construídos, de
preferência, a partir de fonólito, uma rocha vulcânica, conhecida pelas suas caracterís-
ticas mineralógicas, sonoras e vibracionais. O litofone é um instrumento de percussão
constituído, normalmente, por uma sequência de pedras sonoras de diferentes formas e
tamanhos, dispostas como as dos xilofones, ou, em forma de placas suspensas, de modo a
produzir diferentes alturas frequenciais13. Pelas características morfológicas que apresenta,
pelos elementos iconográficos que nos vão sendo revelados, podemos afirmar que é um
instrumento pré-histórico. As informações recolhidas em diferentes pontos do globo per-
mitem afirmar que possui mais de sete mil anos (Sturrock, 1976). Os mesmos elementos
permitem-nos assegurar que se encontra disseminado em inúmeros países, nomeadamente
no continente africano, assim como na América do Sul, Austrália, continente europeu e,
mais a oriente, no Azerbaijão e na Índia. Podemos encontrá-lo ainda na região da Núbia,
uma região do planeta compreendida entre o Egito e o Sudão. Presentes no Paleolítico
Superior e Mesolítico, os litofones surgem devido à necessidade de criar instrumentos
mais controláveis no que concerne o resultado sonoro. Feitos de pedra, mas também de
518 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

madeira e osso, a sua manufatura deu origem aos litofones mas igualmente aos xilofones,
tambores de tronco, e ainda, a diversas flautas, permitindo a emissão de uma altura sonora
precisa e bem definida (Sturrock, 1976). Neste período percebemos já a distinção entre o
canto e a fala, e entre a dança e a música, nomeadamente a música instrumental, no que
concerne a expressão gestual sonorizada14. Em contraste com o metalofone e o xilofone, nos
quais as lâminas de metal ou madeira usadas para produzir o som têm uma forma regular
e estandardizada, os litofones não têm uma forma regular e definida. A circunstância
advém do facto de que a sua manufatura compreende o uso de pedras escolhidas pelas suas

13
Estes instrumentos musicais, encontram-se referenciados no sistema Hornbostel-Sachs de classificação de
instrumentos musicais como referido. Outros minerais podem ser encontrados nos elementos que com-
põem estes instrumentos, nomeadamente aqueles que têm na sua composição o jade, o granito ou a serpen-
tina. A sua composição e natureza sonora será diferente de acordo com a dimensão e forma das lâminas neles
identificadas (Sturrock, 1976).
14
Assim como o litofone, que produz sons com frequência identificável (notas) a partir do contato com as
rochas, existem instrumentos que funcionam da mesma forma, nomeadamente o xilofone, a marimba, o
glockenspiel, o gamelão e o vibrafone.

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características e particularidades sonoras, ajustadas entre si por forma a produzir uma se-
quência de sons com características semelhantes e harmoniosa, originando o instrumento
musical15.

Idiofone – Conchas de Santiago

Idiofone é um termo que provém do grego antigo ἴδιος (ídios) e φωνεῖν (phōneĭn).
O termo significa corpo vibrante e descreve um instrumento musical que vibra como um
todo e se torna, neste contexto, um meio de produção de som e um instrumento musi-
cal. Os idiofones estão conotados com os instrumentos de percussão. No entanto, são
também usados como instrumentos melódicos ou harmónicos, quando é possível obter
sons de altura definida como é o caso dos idiofones em madeira (xilofone), metal (me-
talofone), pedra (litofone) ou vidro (harpa de vidro). A distinção que se efetuou entre os
instrumentos de percussão no que concerne o material que origina o som, nomeadamente
os idiofones e os membranofones, vem do facto de nos primeiros o som ressaltar da vi-
bração do próprio corpo e, nos segundos, o som provir da vibração de uma membrana
que se encontra presa e retesada de modo a produzir som mediante a percussão da pele16.
A família dos idiofones contempla uma panóplia muita vasta de instrumentos em que o
som que produzem, as suas características e natureza, dependem, não só do material de
que são feitos, como da forma como são interpretados. Existem diferentes formas de ativar
estes instrumentos, por agitação, impacto ou por fricção. Os idiofones ativados por agita-
ção do seu corpo são bastante numerosos e comuns. No seu conjunto encontramos, por

519 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
exemplo, aqueles que designados de chocalhos17. No caso de um idiofone de impacto, o
instrumento é atingido com a mão ou com um objeto de modo a que entre em vibração
produzindo o seu som (Sturrock, 1976). Neste conjunto, encontram-se a maior parte dos
instrumentos de percussão conhecidos pelo público de um modo geral, nomeadamente o
triângulo, o gongo, o sino, o prato, o vibrafone, o metalofone, a panela de aço, o tambor
15
Se nos socorrermos da capacidade de identificação e classificação dos instrumentos musicais por parte da
civilização chinesa, podemos admitir oito grandes categorias de instrumentos musicais, conforme o material
usado na sua fabricação: metal (sinos e jogos de sinos; gongos e jogos de gongos; metalofones de lâmina;
berimbaus), pedra (the-k’ing, lâmina de jade suspensa; pyen-k’ing, jogo de 16 lâminas de jade suspensas, ou
litofone, usado em templos; flauta de jade) (Sturrock, 1976).
16
Encontramos pela primeira vez esta classificação na antiga teoria musical indiana. Esta distinção não foi
considerada na música ocidental, pelo que, na Idade Média, e na Europa, esta classificação não era usada.
Podemos encontrar na classificação dos instrumentos musicais de Victor Charles Mahillon, de 1880, a refe-
rência aos instrumentos auto-ressoadores, esta classificação remetendo pela primeira vez, após longo período,
para o modelo indiano atrás referenciado. Em 1914, este grupo de instrumentos, agora denominados de idio-
fones, foi classificado numa das quatro principais categorias do sistema Hornbostel-Sachs (Sturrock, 1976).
17
Neste caso, o tocador sacode o instrumento, um instrumento que ao possuir várias partes móveis que batem
umas nas outras, produz um som que resulta desse processo de agitação e entrechoque das partes.

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de fenda, o tambor de água, o bloco de templo, entre outros. Encontramos este grupo de
instrumentos no elenco de instrumentos de percussão de numerosas obras pertencentes à
música erudita europeia e mundial, bem como ao nível da música popular e tradicional.
Usados na música tradicional encontramos ainda os idiofones de impacto constituídos
por várias barras produtoras de som (mormente os paus), onde duas ou mais peças sonoras
chocam entre si, produzindo som. Em exemplo, podemos referir os címbalos, as clavas,
as castanholas, as colheres, etc. As conchas pertencem aos idiofones de fricção. Neles, um
objeto é colocado em vibração por fricção com um outro produzindo um som sustentado
de altura definível e que varia conforme o tipo e dimensão do objeto friccionado e que
fricciona, do género, direção e energia investida na ação produtora do som (Sturrock,
1976). A composição mineral, a dimensão, a rugosidade, o relevo, a geometria, a forma e
o modo como são utilizadas as conchas, age diretamente sobre a natureza e as componen-
tes do som produzido aquando da sua ativação, facto que as torna assim, e também, em
instrumentos musicais.

Da sua aplicação

Em Portugal e Espanha, o uso dos idiofones na prática da música tradicional,


nomeadamente aquele que resulta do uso dos seixos e das pedras de rio e do uso das con-
chas, encontra-se disseminado por toda a península ibérica desde tempos remotos (Bastos,
2010). As pedras, facilmente conseguidas por identificação, escolha e recolha no espaço
do território a partir dos constituintes geomorfológicos da região, fazem parte do acervo
520 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de elementos alvo do manuseio humano desde a mais alta antiguidade. A sabedoria e a


perspicácia próprias ao homem cedo o levam a perceber da sua capacidade e funcionalida-
de a nível musical. Quando manipuladas pela mão humana adquirem formatos e formas
compatíveis com a ação criativa e musical pretendidas. Contudo, não lhe ficou indiferente
a ação dos agentes da natureza, bem como dos elementos de uma geografia territorial. No
que concerne a ação da água sobre os elementos geomorfológicos, seja no seu estado sólido
ou líquido, percebemos que rapidamente, e nos elementos geológicos e geográficos evi-
denciados, as consequências da sua ação ao nível dos territórios da raia. Nos vales causados
pela ação dos rios e dos glaciares identificamos conteúdos elementares e formas diversas
passíveis de ser utilizados como elementos produtores de som. Contudo, sabemos que de
acordo com as características geomorfológicas da região, os minerais e os constituintes
da paisagem diferem, diferindo também as suas formas e possibilidades de utilização em
contexto de uma prática artística e musical.
Pesquisando no leito dos rios, nas encostas, o homem recolhe aquilo de que necessita
para a sua subsistência física, mas também emocional, social e cultural. Nesta recolha

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encontramos os seixos e as pedras dos rios que, num processo de erosão constante produ-
zida pela água que corre, mais ou menos célere, ao longo de séculos, nos concede formas
particulares, mais ou menos alongadas e/ou arredondadas que encontramos naquelas iden-
tificadas pelos tocadores de pedras. Em outro, possuindo constituição mineral adequada a
uma produção sonora capaz, são escolhidas e integradas numa prática musical em contex-
to, neste caso aquela dos grupos populares identificados na região e que contém os toca-
dores de pedras. A identificação, escolha e recolha das pedras não é tarefa fácil. Contempla
um conjunto de passos que, quando ultrapassados com sucesso, permitem a recolha de
pedras e seixos passíveis de serem utilizados pelos tocadores. Conseguimos encontrar um
conjunto de diretrizes matriciais de modo a que sejam identificadas e recolhidas as melho-
res peças. Nem todos os seixos são considerados bons como instrumentos musicais, pois
nem todos são capazes de produzir um bom som, e assim, serem apelidados de musicais.
Podemos questionar o que os seus recolectores identificam como um bom som.
As conchas, nomeadamente aquelas que aqui identificamos, e que são conhecidas
como conchas de santiago, por ligação intrínseca com os Caminhos de Santiago, símbolo
de uma prática encetada pelos peregrinos destes caminhos, serão por nós também visadas.
Tanto na província espanhola de Galícia, como naquela que nos interessa aqui estudar,
Castilha e Leão, ou mesmo na Extremadura espanhola pela proximidade com o distrito
de Portalegre, e no qual se insere a localidade de Arronches onde encontramos diver-
sos ranchos folclóricos, mormente aquele conhecido pela designação de As Pedrinhas de
Arronches, onde se usam pedras e seixos recolhidos no rio Caia para a prática musical,
encontramos estes artefactos, as conchas, direcionados para uma prática musical (Lopes

521 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
& Quintas, 2020). A natureza particular dos sons produzidos, bem como o contexto e
as características desta prática, levaram-nos a ponderar sobre o seu estudo. Em outro, a
sua relação com a família dos idiofones, e a sua presença nos dois lados da fronteira, na
região da raia, na prática de um acompanhamento rítmico realizado em numerosas peças
da música tradicional, incita-nos igualmente a vontade de as investigar, bem como a nossa
astúcia e curiosidade. De modo a responder a todas estas questões, e de forma a perceber
o seu enquadramento social, cultural, geográfico e territorial, aprofundaremos agora os
elementos de uma prática musical em contexto, seja na vila de Arronches em Portugal,
seja na comarca de Aliste, do outro lado da fronteira, na região de Zamora, província de
Castela e Leão, na vizinha Espanha.

As Pedras de Arronches

A vila de Arronches, situada no distrito de Portalegre possui um legado histórico muito


rico, fazendo parte da história da península ibérica. Neste contexto assume-se a presença,

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desde os séculos II e I A.C. de Romanos nesta região. “Nos séculos II e I AC, esta área
geográfica terá sido povoada pelos Romanos, sendo reconhecida como um lugar privilegia-
do por estar situada nas margens da ribeira do rio Caia” (Lopes & Quintas, 2020, p. 88).
Dada a sua localização geográfica junto às margens da ribeira do rio Caia, facilmente per-
cebemos a existência de um local propício à escolha e recolha de pedras e seixos do rio, de
modo a proceder à sua inclusão e uso a nível da prática musical. “À semelhança de muitas
povoações históricas situadas nesta zona do país, sendo pontos avançados para expansão e
delimitação de reinos e nacionalidades, a existência de fortificações e muralhas medievais
faz parte da paisagem arquitetónica desta típica vila Portuguesa. Para além das imagens de
pedra nos postais turísticos e culturais, que de algum modo definem Arronches dos dias de
hoje, a vivência diária e a contínua consciência da imponência da pedra, faz seguramente
parte do imaginário dos seus habitantes. É interessante refletir, que será na confluência de
identidades socioculturais e de origem geográfica (pedra e rio) que observamos uma pos-
sível génese de contexto para o surgimento da prática das Pedrinhas de Arronches” (Lopes
& Quintas, 2020, p. 89).
Ora, sendo que o rio Caia atravessa a Vila de Arronches em direção ao rio Guadiana
em Elvas, e sendo o rio rico em componentes geomorfológicos, o facto permitiu o nasci-
mento, nesta vila, de uma prática musical que revela características peculiares. Esta prática
parte do toque, por entrechoque continuado, de pedras escolhidas entre os seixos do rio.
Esta ação é realizada por parte dos tocadores de pedras. Estes tocadores possuem um con-
junto de seixos numa bolsa que transportam aquando das suas atuações. A diversidade do
conjunto permite-lhes realizar uma segunda escolha em função das necessidades artísticas
522 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

e musicais. Esta prática é comum, sendo recorrente em diversos grupos folclóricos desta
vila, pois o som produzido deve acompanhar as características da prática musical a efetuar
e assim melhor corresponder às espectativas sonoras, musicais e interpretativas da obra e
do grupo musical. “Nos dias de hoje as pedras são recolhidas nas margens do rio Caia, mais
propriamente na ribeira de Arronches. Os tocadores de pedrinhas escolhem as de maior
dureza, lisas e finas, e em forma de seixo. [...], os tocadores procuram uma sonoridade
semelhante à de uma bigorna de ferro. Para se obter este tipo de sonoridade, a dureza da
pedra terá que ser efetivamente bastante elevada” (Lopes & Quintas, 2020, p. 90).
O rio Caia, cuja nascente se situa na Serra de S. Mamede em região fronteiriça com a
vizinha Espanha, permite, pelos elementos geológicos que possui, a formação de seixos do
rio com as características que consentem o seu uso como instrumentos musicais, na cate-
goria de idiofones de percussão, satisfazendo as necessidades dos agrupamentos musicais
da região, bem como das peças interpretadas. De acordo com Lopes e Quintas (2020, p.
89) “a prática de tocar pedras nesta região terá começado com Joaquim Miranda (...) [que]
era pastor nas margens do Rio Xévora na localidade de Ouguela, concelho de Campo

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Maior. Enquanto acompanhava o seu rebanho, seria usual o jovem recolher da margem
do rio as pedras que lhe pareciam produzir melhor som. Percutindo estas pedras, fazia
ritmos em conjunto com os sons realizados pelos chocalhos do seu rebanho, criando assim
o suporte musical para cantar, ajudando a passar o tempo solitário da profissão de pastor”.
As pedras, recolhidas nas margens do rio Caia, devem obedecer a um conjunto de especi-
ficidades que são do conhecimento dos seus tocadores. Devem ser lisas e finas, de maior
dureza e possuir ainda as características geomorfológicas que permitam a obtenção de um
som que se aproxime daquele produzido pela bigorna de ferro, como referido. Assim, os
tocadores de pedras, escolhem das margens as pedras em forma de seixo, de maior dureza,
procurando através da sua ativação vibracional, escolher aquelas cuja sonoridade se mostre
mais adequada à sua utilização em contexto.
Geologicamente, os seixos resultantes da erosão produzida pela água do rio sobre a
rocha grauvaque, comum na zona de Arronches, possuem então as características que os
tocadores procuram. As pedras, cujas dimensões são bastante precisas (9x7x1cms), são
em número de três e são posicionadas entre os dedos polegar/indicador, indicador/médio
e médio/anelar e percutidas pela mão oposta. De acordo com Lopes e Quintas (2020, p.
93), “Apesar da razão apontada para a introdução de uma terceira pedra pelos tocadores
das Pedrinhas de Arronches ter sido alguma facilidade no seu manuseamento (técnica),
a inclusão desta pedra e respetivo ajuste na sua técnica, permite uma melhor realização
da sonoridade de “rufo”, mantendo ao mesmo tempo a possibilidade do som percussivo.
Deste modo, e já com as três pedrinhas como um único “instrumento”, o arrastar dos
dedos pelas três pedras realiza um som de expressão contínua, enquanto os ataques indi-

523 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
viduais na pedrinha superior produzem sons percussivos”18. Esta forma de tocar permitiu
produzir sonoridades que se aproximam daquelas que habitualmente são efetuadas pelo
naipe de percussão usado na música de raiz popular, constituindo um recurso sonoro de
relevo na região. Relevamos de acordo com o expresso por Lopes e Quintas (2020, p. 92-
93), uma música em específico: a Moda de Saias que, de acordo com alguns historiadores
pode ter uma origem bastante antiga. “A origem do estilo Moda de Saias poder-se-á situar
no século XVI como forma de dança palaciana, tendo no século XIX transformando-se em
dança folclórica. Nos dias de hoje, a Moda de Saias é referida sob várias perspetivas: como
um tipo de canção regional portuguesa; uma dança tradicional; uma forma de canto; ou
até uma mistura das anteriores expressões. Para Giacometti e Lopes Graça, a Moda de

18
“No Rancho Folclórico de Arronches, refere-se Carlos do Carmo Maurício como a segunda pessoa a apren-
der a tocar pedrinhas. Tendo acrescentado uma terceira pedra que lhe facilitava o manuseamento e toque,
Carlos Maurício reajustou também a técnica para melhor manusear este novo conjunto de 3 pedras. A partir
desse momento a utilização das 3 pedras foi adotada por todos os tocadores de pedrinhas de Arronches”
(Lopes & Quintas, 2020, p. 91).

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Saias estava associada a despiques que aconteciam durante os trabalhos no campo aquando
das colheitas, bem como em rituais de romance, podendo também ser dançadas em forma
de roda em ocasiões de festa e descontração popular” (Lopes & Quintas, 2020, p. 92)

As Conchas de Vieira símbolo dos Caminhos de Santiago

As conchas são um instrumento musical de percussão pertença da classe dos idiofones,


encontrando-se amplamente documentado do ponto de vista geológico e geográfico, mas
também cultural. O som que se obtém através das diferentes formas de as ativar, seja per-
cutindo, seja friccionando as conchas uma na outra, serve de acompanhamento a diversas
canções e melodias da música tradicional, sendo frequentemente usado para acompanhar
o canto juntamente com pandeiretas, ou mesmo a gaita de foles. As conchas de vieira
utilizadas nesta prática, sendo de origem marítima, são inusitadas quando a sua presença
se verifica no interior do país, ou na região de Castilha e Leão na vizinha Espanha. Não
podendo, à primeira vista, ser identificada uma origem espacial, dado na região não exis-
tirem mares, questionamos imediatamente, o porquê da sua existência por terras do inte-
rior ibérico, bem como da sua aplicação neste contexto: a prática da música tradicional.
Contudo, e se pensarmos que na região da raia, seja do lado português, seja do lado espa-
nhol, se encontram dois dos mais antigos percursos dos Caminhos de Santiago, rapida-
mente conseguimos justificar a sua presença ao longo deste território. Contextualizando a
sua presença nos elementos conseguidos aquando da finalização do Caminho de Santiago,
o pergaminho e a conha, e depois de analisarmos as rotas ibéricas presentes por toda a
524 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

península, mormente por regiões da raia portuguesa e espanhola, facilmente conseguimos


introduzir este elemento neste espaço territorial19.
Existe uma grande diversidade de opiniões no que concerne a integração da concha
como símbolo das peregrinações a Santiago20. No entanto, a concha passou a chamar-se
de Concha de Santiago porque os peregrinos ao chegarem a Santiago de Compostela,
recebiam como prova de terem terminado a jornada e o caminho, um pergaminho e uma

19
No seu itinerário, a Vía de la Plata, ou Via de Prata, um dos mais antigos percursos dos Caminhos de Santiago,
é um percurso que passa por Mérida, Alcuéscar, Valdesalor, Cáceres seguindo depois em direção a Salamanca
e Zamora. O Caminho do Interior Português, é um percurso que passa por Monforte, Portalegre, Alpalhão
e Nisa, e poderá, no nosso entender, justificar a presença das Conchas de Vieira nesta região do interior da
Península Ibérica de um e outro lado da fronteira. As conchas são obtidas no final do percurso, quando o
peregrino finalmente atinge o objetivo, a chegada à Catedral de Santiago de Compostela, e realiza o mergulho
nas águas do Oceano Atlântico, como sinal de purificação e renovação, tanto física, como espiritual.
20
A concha de vieira mostra-se, e por excelência, um dos símbolos do Caminho de Santiago. Aliada ao bastão, à
cabaça, ao chapéu, à escarcela, ao turíbulo, à seta amarela, à cruz de Santiago e à vieira estilizada, é um dos sím-
bolos que indicam a realização e finalização do caminho. De notar ainda os elementos do abraço ao apóstolo,
ao Santo dos Croques e à Porta Santa, passos essenciais concretizados já na cidade e na basílica de Santiago.

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concha, colocada sobre o chapéu ou sobre a sua capa. A concha, entre outras coisas, de-
monstrava a sua presença em Santiago de Compostela, servindo também de amuleto e
como justificação da sua chegada a Santiago de Compostela, no regresso dos peregrinos à
sua terra de origem.

As origens de uma tradição jacobeia: a História do Caminho de Santiago

Os Caminhos de Santiago são vários tendo como objetivo primeiro permitir a concre-
tização de uma viagem, acima de tudo, espiritual, uma peregrinação que se mostra também
de natureza cultural, económica e turística. A jornada, realizada ao longo dos territórios por
onde se inserem, permite um espaço de reflexão e uma exposição das nossas possibilidades
e fraquezas de modo a permitir um desabrochar e um evoluir. Com início em diferentes
pontos do continente europeu, os trajetos delineados, serão efetuados em função da sua
origem e términus, mas também da experiência que queremos usufruir (Gomes, 2017). A
origem do Caminho de Santiago remonta ao século IX, embora se encontrem relatos da
sua existência já na época pré-cristã. A partir do ano de 812, o Caminho a Santiago toma o
rumo do culto ao Apóstolo Santiago ou São Tiago Maior. Alguns autores fazem referência à
existência de uma peregrinação pagã anterior que terminava no cabo Fisterra, durante largo
período considerado o ponto conhecido que se encontrava mais a ocidente do mundo. No
entanto, existem menções a que o Caminho de Santiago já era realizado pelos povos pré-
-cristãos, nomeadamente os Celtas. De acordo com alguns achados arqueológicos, crê-se
que a cidade de Santiago de Compostela era já uma necrópole pré-cristã, com dólmens

525 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
e outros elementos funerários, cuja idade remonta a tempos anteriores ao nascimento de
Cristo. No ano de 812 encontram-se os supostos restos mortais do Apóstolo Santiago,
motivo pelo qual muitos indicam este ano para o início das peregrinações e o delinear do
Caminho de Santiago. Neste sentido, e no final do século IX, as culturas cristãs da Europa
fazem burburinho em torno deste achado histórico, e como muitos devotos começam a
interessar-se pelas relíquias de Santiago, o Maior, os povos, movidos pela religião, começam
a efetuar peregrinações de modo regular e recorrente (Gomes, 2017). As peregrinações
seguiam percursos diversos, provindo de diferentes pontos da Europa Cristã. O Caminho
a Santiago foi-se convertendo, aos poucos, num cruzamento de culturas, aumentando os
contatos culturais entre os diferentes povos e entre diferentes pontos da Europa Ocidental e
Meridional. Neste ínterim vão-se delineando diversos percursos, alguns deles sobre vias que
procedem desde os tempos dos Romanos (Gomes, 2017). De entre eles salientamos os da
Via Nascente, do Caminho de Prata e do Caminho de Torres, por se situarem na zona da
raia incluindo a passagem pelas regiões onde identificamos a presença e o uso das conchas
de vieira enquanto instrumentos musicais.

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Via Nascente Portugal

O caminho denominado de Via Nascente é um dos mais recentes caminhos desenha-


dos em território português21. Iniciando em Tavira, termina em Trancoso. Este caminho
tem um total de 645 quilómetros e divide-se por 32 Etapas, pelo interior de Portugal. Em
Trancoso, quem percorre esse caminho terá de seguir pelo Caminho de Torres ou pelo
Caminho do Interior para chegar a Santiago de Compostela. O trajeto respeita a História
dos Caminhos de Santiago, pois que o seu traçado é marcado quase sempre por caminhos
de campo, em contacto com a natureza, onde o caminheiro poderá encontrar o envolvi-
mento espiritual próprio dos Caminhos de Santiago.

O Caminho da Prata ou Via da Prata

O Caminho da Prata ou Via da Prata é uma das rotas mais compridas do Caminho de
Santiago. Composto por 38 etapas através da histórica Via da Prata, rota comercial resta-
belecida pelos romanos no final do século I de modo a conseguirem chegar à Galiza, este
caminho permite percorrer o oeste da Península Ibérica de sul para norte, passando por
algumas das localidades tais que Sevilha, Zafra, Mérida, Cáceres, Salamanca ou Zamora,
as quais se encontram numa região de proximidade com a raia portuguesa. A Via da
Prata segue a rota histórica da calçada romana que conecta Mérida com Astorga. Esta via
atravessa boa parte do território, de sul para norte, e foi aproveitada pelos peregrinos na
sua deslocação para Compostela. A origem histórica da Via da Prata é incerta, mas após a
526 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

dominação romana, a via manteve-se como uma das principais rotas de comunicação dos
povos ibéricos alongando-se, após a cristianização, até a cidade de Sevilha.

Caminho de Torres

O Caminho de Torres deve o nome ao seu peregrino mais famoso o escritor Salmantino
Diego de Torres Villarroel. Com início em Salamanca, entra em território português pelo

Neste contexto não podemos deixar de referir o surgimento de um novo percurso em 2022, denominado de
21

“Caminho Marítimo de Santiago”. O projeto pretende recriar, na costa portuguesa, a viagem da “Barca de
Pedra” que, segundo reza a lenda, no ano 40 do primeiro milénio, transportou o corpo do Santo peregrino
desde Jaffa, na Palestina, até ao Campus Stella, na Galiza. Apesar dos perigos de naufrágio, pestes e ataque
de piratas, acontecimentos que ocorriam frequentemente no período medieval, podemos assumir que, nesta
época, o meio mais seguro para chegar a Santiago, seria por via marítima. O Cruzeiro Inaugural desta nova
rota, realizado em 2022, teve início em Vila Real de Santo António, a 28 de maio e terminou a 13 de junho
em Santiago de Compostela. O percurso compreendeu a realização de aproximadamente 500 milhas náuticas,
e cerca de 12 quilómetros a pé, até alcançar finalmente a basílica de Santiago, dando por finda a peregrinação.

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distrito da Guarda, mais propriamente em Almeida. Composto por 18 etapas, tem uma
extensão de 447 quilómetros contabilizados a partir de Almeida.

Conclusões

“As expressões artístico-musicais que fazem uso de objetos do dia a dia para práticas
musicais, tendem a ser desvalorizadas, atribuindo-lhes pouco significado para o contínuo
processo sociológico de gerar cultura” (Lopes & Quintas, 2020, p. 87). No decorrer desta
nossa investigação fomos confrontadas com uma prática musical que contraria esta afirma-
ção, pois utiliza tanto as pedras e os seixos de rio, como as conchas, mormente as de vieira,
enquanto instrumentos musicais. O facto de os instrumentos musicais nelas presentes
serem de origem mais arcaica e primitiva, neste caso os litofones e idiofones, foi igualmen-
te motivo para encetarmos uma pesquisa mais detalhada sobre a sua origem e sonoridade,
bem como da sua integração ao nível da prática musical tanto individual como de música
de conjunto, seja ela integrante de uma componente vocal, ou não. O facto de serem usa-
dos na música tradicional portuguesa e espanhola com uma presença maior do que aquela
que estávamos, numa primeira abordagem, à espera, foi igualmente determinante para o
encetar desta nossa pesquisa22. Ao longo da investigação, percebemos que não só os idio-
fones, como os litofones estão presentes nas manifestações culturais ao longo da fronteira.
Presentes em Portugal, no distrito de Portalegre nas proximidades do rio Caia, os usos de
seixos do rio têm paralelo no lado espanhol, com o uso das conchas, nomeadamente as
Conchas de Santiago. Na prática a elas associada adquirem a mesma função que as pedras

527 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
usadas do lado português. Empregues de forma diversa, as conchas são utilizadas não só
como idiofone de choque, mas também como idiofones de fricção dado que, e pelas suas
características morfológicas, as suas ranhuras permitem o seu uso por fricção23.
Ao longo deste trabalho, mostramos assim, como nesta região de fronteira, e à seme-
lhança de todos os eventos culturais da Raia Portuguesa e Espanhola, aparecem elementos

22
Não podemos deixar de referir que a sonoridade conseguida pela execução destes elementos materiais é
deveras singular, genuína e rudimentar. Contudo, e corroborando o expresso por Lopes e Quintas (2020, p.
88), no que à busca de sonoridades mais distintas, e no caso da percussão: “Por diversas razões relacionadas
à especificidade histórica dos instrumentos [...], certa rudimentaridade é por vezes artisticamente privilegia-
da, pois tende a inferir a cada exemplar uma sonoridade verdadeiramente distinta.” É a sonoridade distinta
produzida pela ação das pedras e das conchas que faz desta prática musical, e do sonoro a ela associado, um
tão distinto e original produto.
23
A ação por fricção faz-se do lado português com as pinhas. A sua morfologia permite o raspar das pinhas
uma na outra produzindo um som característico e muito diverso do produzido pelas conchas. O som das
pedras é diferente, não só pelo tipo de material que se usa (pedra em vez de madeira), mas, também, pela
dureza e constituição do material, um material que nos transmite um tipo de som (timbre) próximo do da
bigorna de ferro, aquilo que move os tocadores de pedra na vila de Arronches aquando da identificação,
recolha e escolha, no rio Caia, dos seixos aí presentes (Lopes & Quintas, 2020).

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diversos e inusuais de outras regiões do território, consubstanciados pelos elementos geo-
lógicos, geográficos, zoológicos e culturais presentes nestes territórios, de holografia agreste
e particular que molda a matéria e o homem, descerrando elementos novos na sua cultura,
gastronomia, personalidade, formas de ser e estar no mundo e na vida. O relevar desta prá-
tica musical mostra-nos uma forma de potenciar os elementos da natureza e o desenvolver
de uma cultura e de um património histórico e cultural próprios que urge identificar, pre-
servar e promover24. Segundo Gomes (2017, p. 87), “O património histórico-cultural, seja
ele material ou imaterial, constrói-se de elementos que compõem o passado da história do
homem, que são símbolos representativos da cultura e que possibilitam o entendimento
sobre o seu passado, as suas raízes e os elementos naturais e construídos à sua volta, seja de
um povo, região ou nação. Assim, este pode ser compreendido como um elemento para a
compreensão e consciência de si mesmo, assim como, do meio onde está inserido, sendo
que a medida de importância desse bem cultural está relacionada com a sua capacidade em
estimular a memória”. [...] “O património consiste num processo de utilização de locais,
práticas e objetos como um veículo de transmissão de ideias e valores, cuja aplicação atual
é satisfazer as necessidades e, com isso, transforma-se num produto do presente, valen-
do-se do passado e projetando para o futuro”. Neste processo de transmissão emerge um
interesse maior por algumas práticas culturais e artísticas, sendo que a sua valorização por
parte das entidades competentes, pode levar a um melhor aproveitamento e aprimoramen-
to da sua prática, consubstanciando-se em produtos de desenvolvimento tanto cultural,
como social, educativo e artístico.
528 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Resumo

No interior de Portugal muitas são as práticas musicais que, no conjunto das suas componentes
musicais e discursivas, nos informam do contexto geomorfológico e geográfico em que se inscre-
vem. Em muitos casos, interrogando os seus componentes, percebemos a sua origem, bem como do
modo como se enquadram ao nível dos aspetos sociais e culturais do território onde se inserem. A
sua apreciação detalhada permite que fruamos as suas componentes sonoras, mas também aquelas
de natureza formal e discursiva. Juntando as integrantes rituais, indagaremos sobre os recursos que
nessa prática se inscrevem, de modo a perceber o seu ritual. Provenientes do espaço físico e geográ-
fico e morfológico da paisagem, alguns dos elementos materiais presentes nestas práticas musicais
e ritualísticas abarcam recursos oriundos de uma geologia e geomorfologia particulares, usufruindo
do que das suas características geofísicas sobressai. Analisando-as e descrevendo-as, compreendemos

24
De acordo com Gomes (2017, p. 98), e o expresso na “Convenção para Salvaguarda para o Património
Imaterial” (UNESCO, 2006): “O “património cultural imaterial”, [...], se manifesta em particular nos
seguintes campos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do património cultural
imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas rela-
cionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais”.

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os recursos, as práticas e as técnicas de que se socorrem para evidenciar as suas caraterísticas sonoras
e de vibração, bem como as suas particularidades interpretativas, mormente aquelas em que veri-
ficamos o uso das pedras e das conchas como instrumento musical, denunciando modos de fazer
música, de ser e viver, genuínos.

Referências Bibliográficas

Bastos P.L. (2010). Small holes of wonder. In: Second Vienna Talk, Sept. 19-21, 2010.
Castro, Emanuel, Cunha, Lúcio & Santos, Norberto Pinto (2008). Análise integrada da
Paisagem da raia central portuguesa. Revista Minerva – Pesquisa e Tecnologia, 5(2). pp. 139-147.
http://www.fipai.org.br/revista_minerva_eletro_v05n02.html (acedido a 26 de setembro de
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Gomes, L. E. (2017). Os Caminhos Portugueses a Santiago de Compostela. O Património em
Processo. Tese de Doutoramento em Antropologia. Universidade de Coimbra.
Lopes, E. & Quintas, R. (2020). Reciclagem na Música como Ferramenta para a Criatividade:
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Santana, H. & Santana, R. (2019). Do território e da paisagem – a máscara elemento de exteriorização
de um imaginário real. Iberografias 35. Centro de estudos ibéricos. Lisboa: Âncora Editora. pp.
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Santana, H. & Santana, R. (2021). A Flauta de Tamborileiro no interior alentejano
Uma paisagem sonora em contínua atualização. Paisagens sonoras históricas – Anatomia dos sons
nas cidades. Publicações do Cidehus. Coleção Biblioteca- Estudos & Colóquios 26. EAN elec-
trónique: 9791036584572. https://books.openedition.org/cidehus/17635
Sturrock, Susan (1976). Musical Instruments of the World. England: Paddington Press.

529 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
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“Convenção para Salvaguarda para o Património Imaterial”. https://unesdoc.unesco.org/
ark:/48223/pf0000132540_por (acedido a 28 de setembro de 2022)

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Modelos de gestão dos bens Património
Mundial: O caso da Universidade
de Coimbra – Alta e Sofia

Joana Cristina Capela de Campos1

A consciência crítica é o móbil fundamental da praxis que antecipa o futuro.2


Tomás Maldonado, 1970.

Introdução

Partindo da premissa de que o património deve ser gerido como um recurso não reno-
vável do território, torna-se expectável que a sua gestão deva ser feita de forma a permitir
a sua própria sustentabilidade. Deste modo, é desejável que, por princípio, uma candida-
tura, para efeitos de inscrição de um bem na Lista do Património Mundial da UNESCO
(LPM), pode – e deve – ser um ativo para a gestão e para o desenvolvimento urbano do

531 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
território, numa escala mais abrangente, ou de uma cidade, numa escala mais delimitada.
Nesse sentido, torna-se fundamental compreender a praxis que sustenta os protoco-
los e os compromissos assumidos por quem tem essas responsabilidades e competências,
tendo em conta os valores que são reconhecidos e pertencentes de toda uma comunidade,
quer esta se determine como local, nacional ou, até mesmo, mundial.
É reconhecido que o desenvolvimento e a promoção de reflexões sobre a proteção e
salvaguarda do património constitui-se como um vetor estratégico fundamental da atuação
da UNESCO, para a criação dos discursos de paz, em torno de três pilares fundamentais:
a educação, a ciência e a cultura. Para tal, a UNESCO tem investido, desde a sua génese3,
em diversas iniciativas de promoção de eventos, ações e instrumentos políticos, junto da

1
Universidade de Coimbra, CEGOT; HTC-CFE NOVA FCSH
2
Tradução livre de “() la coscienza critica è il movente fondamentale della praxis avvenirista ()” (Maldonado,
1970, p. 132).
3
Cf. Candidatura a Património Mundial como operador de desenvolvimento urbano: O caso da Universidade de
Coimbra – Alta e Sofia (Capela de Campos, 2019).

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comunidade global por todo o mundo. A saber, um dos principais instrumentos políticos
desenvolvidos pela UNESCO e que, possivelmente, se tornou num dos instrumentos po-
líticos mais bem-sucedidos da história4, comemora 50 anos, em 2022.
A Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, de 19725,
adotada em Paris, tem vindo a constituir-se como uma oportunidade de democratização
do património, assumindo toda a sua diversidade como uma qualidade e riqueza da his-
tória da humanidade. O sucesso deste instrumento político tem vindo a ser, desde 1978,
paulatinamente, concretizado e verificado com as sucessivas inscrições anuais de bens na
LPM com um Valor Universal Excecional (VUE) reconhecido, incluindo a sua autentici-
dade e integridade.
Não é desprovido de interesse e pertinência o foco sobre a urgência em compreender
de que modo é que todo este VUE está a ser gerido e articulado com todas as exigências
impostas à vida atual, nas distintas latitudes e longitudes. A consciência de que o papel
do património cultural sai reforçado, ao se afirmar como um recurso no desenvolvimento
de uma comunidade global de paz, construindo e reconstruindo pontes de diálogo que
promovam a tolerância e a diversidade dos patrimónios do mundo, pode tornar-se, assim,
um motor para estabelecer relações interculturais.
O investimento nos valores humanos, de liberdade e de paz, coexiste com a profunda
convicção de que a educação é essencial e, “no sentido mais vasto do termo, é o caminho óbvio
a seguir” (Damásio, 2017, p. 306).
No entanto, e enquanto recurso não renovável do território, o património classificado
permite que o tema da sua sustentabilidade assuma algum relevo nas investigações e estu-
532 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

dos que vão sendo desenvolvidos a nível global, designadamente, no âmbito da gestão e do
planeamento do património cultural, para futuro.
Por tais argumentos se entende que, a proteção e a salvaguarda do património tam-
bém saem reforçadas, enquanto eixo estratégico fundamental para o desenvolvimento
das comunidades e dos seus territórios. Nesse sentido, verifica-se que os sistemas de
governança locais desempenham um papel central, enquanto agentes mais bem infor-
mados e privilegiados para estudarem, desenvolverem, promoverem e implementarem
ações, desde a prevenção até à proteção dos bens e dos valores que lhes estão associados
culturalmente.
Adicionalmente e de modo consequente, a escolha dos modelos de gestão aplicados a
estes bens patrimoniais deve refletir, assim, cada vez mais, a capacidade de adequação ou

4
Cf. Património Mundial: democracia e diversidade, in (Capela de Campos, 2019).
5
Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural adotada pela Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, em Paris, em 16 de novembro de 1972
(UNESCO World Heritage Centre, 2017).

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de adaptação dos mesmos às circunstâncias e especificidades de cada lugar, por um lado,
mas também aos usos e necessidades de uma vida contemporânea, por outro.
Posto isto, este trabalho pretende refletir sobre esta capacidade desejável dos mo-
delos de gestão de bens Património Mundial, a partir do caso do sistema de gestão da
Universidade de Coimbra – Alta e Sofia (UC-AS) apresentado à UNESCO e cujo VUE
foi reconhecido, através da sua inscrição na LPM em 22 de junho de 2013.
Conhecer algumas possibilidades de abordagem para um desenho de gestão de pa-
trimónio, tendo por base a exigência da UNESCO direcionada ao Património Mundial,
pode tornar-se num exercício pertinente, no sentido de lançar pistas para outras realidades
que queiram repensar a sua condição e dinâmica glocal.

533 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Figura 1 – Vista da colina da Alta Universitária sobre o Rio Mondego.
Fotografia Joana Capela de Campos, 2019.

A implementação da Convenção do Património Mundial e as suas


orientações técnicas

Nos últimos dias de setembro de 2022, foi realizada a MONDIACULT 20226, a


maior conferência mundial dedicada à cultura dos últimos 40 anos e, adicionalmente, 50
anos após a redação da Convenção do Património Mundial de 16 de novembro de 1972.
A partir do México, na sessão de abertura da MONDIACULT 2022, a Diretora-Geral da

6
Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável da UNESCO –
MONDIACULT 2022, realizada entre 28 e 30 de setembro de 2022, na Cidade do México. Cf. https://
www.unesco.org/en/mondiacult2022, acedido em 01/10/2022.

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UNESCO, Audrey Azoulay, expressou que a cultura é um bem público mundial, tendo um
papel fundamental na nossa sociedade7.
Efetivamente, os esforços comuns de luta pelo património cultural enquanto valor hu-
mano, como referia Guilherme d’Oliveira Martins (2011), e pela diversidade da expressão
de cultura das comunidades, ao longo destes cinquenta anos, têm contribuído para que
diálogos de paz e de cooperação possam ser (re)estabelecidos e semeados nas mentes do
Homem, muitas vezes sem mais nenhuma base estável para um desejável entendimento.
Assim, e em retrospetiva, verifica-se que a evolução do pensamento teórico sobre o
património cultural tem vindo a debruçar-se sobre as transformações e variações impostas
à sociedade contemporânea, num ritmo muito acelerado, desde o fim da Segunda Grande
Guerra, desencadeadas pelo grande impacte do avanço científico-tecnológico. Com efeito,
desde a transição do milénio que uma maior perceção para a necessidade de uma quali-
ficação da gestão, das práticas e das estratégias sobre o património cultural tem vindo a
ser despertada, sobretudo e com especial atenção em relação ao património nas cidades,
constituintes de paisagens urbanas e culturais, altamente sensíveis a essas transformações e
variações impostas (Capela de Campos, 2019, 2020a).
Refletir sobre o modo como até agora se tem encarado a problemática da gestão de
bens culturais e naturais, tanto ao nível da sua proteção como ao nível do seu uso, permite
contribuir para uma perspetiva mais abrangente na busca das respostas necessárias às mu-
danças que se verificam nestes territórios e que o mundo vai conhecendo, tanto ao nível
social, cultural, político-económico (com maior evidência e de forma acelerada depois de
um crescimento fulgurante da visitação turística), ou até natural.
534 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Subordinado à lógica ‘conhecer para compreender’, mote que tem acompanhado a


nossa investigação (Capela de Campos, 2019), o estudo desta temática específica contri-
bui, ou pelo menos deveria contribuir, para que seja promovida uma maior consciência
cívica e conhecimento crítico, sobre as dimensões de abrangência e de especificidade que
determinam estes casos com reconhecido VUE junto das comunidades, para que estas
possam participar mais ativamente nas decisões que afetam todos.

7
“() A cultura é um bem público mundial; é um elemento fundamental da dignidade de cada pessoa. Porque,
através da cultura, cada um de nós pode descobrir a humanidade que partilhamos e converter-se, a si próprio,
num cidadão livre e elucidado. A cultura é, além disso, a coluna vertebral que serve para se fazer ‘sociedade’,
em momentos de comoção, de conflito, ou de crise sanitária, como aquela que temos vivido; é uma linguagem
universal, em que toda a sua diversidade nos une na nossa humanidade mais fundamental. No entanto, apesar
dos nossos esforços e dos progressos reais alcançados, a cultura, suas implicações e seu potencial, face aos desafios
contemporâneos, não ocupa o lugar que merece nas agendas nacionais e internacionais. E essa é a nossa luta
comum, aqui. ()”, tradução livre do discurso da Diretora-Geral da UNESCO, durante sessão de abertura da
MONDIACULT 2022, em 28 de setembro de 2022, na Cidade do México. Cf. https://mondiacult2022.
cultura.gob.mx/evento/ceremonia-de-apertura, acedido em 01/10/2022.

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Não obstante, no âmbito desta temática, a sistematização de dados e conteúdos permi-
te também a promoção dos próprios bens culturais e naturais de uma forma ampla e geral,
pressupondo uma dinâmica nas práticas e ações direcionadas para esse efeito. Com ações
educativas, a título de exemplo, ganham-se maiores níveis de compreensão e de interesse
sobre o próprio bem cultural, ao haver uma maior inter-relação entre o património e as
‘suas’ comunidades – que, depois, serão aquelas que melhores condições possuem para
reivindicar a proteção dos “seus” bens.
Estas práticas têm vindo a ser replicadas através de programas educativos ou de im-
plementação de modelos de gestão inovadores8 por todo o mundo, evidenciando uma
sintonia com os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável e com os seus desígnios
ambientais e de resiliência, de prosperidade e de meios de subsistência, de conhecimento
e de capacidades de inclusão e de participação (UNESCO, 2017; UNESCO-Sustainable
Development Goals & Hosagrahar, 2019).

A partir desta contextualização sumária e imprescindível, reequacionamos que, desde


2005, cada Estado-parte passou a incluir nas suas candidaturas formais de inscrição de
bens na LPM, um plano de gestão ou documentação relativa ao sistema de gestão, con-
forme passaram a ditar as orientações técnicas para a implementação da Convenção do
Património Mundial (CPM1972), ao ser incluído um tópico específico sobre a proteção e
gestão9 do bem no texto.
De acordo com as orientações técnicas, cada bem, para o qual se pretenda apresentar uma
candidatura para inscrição na LPM, “deverá ter um plano de gestão adequado, ou outro sistema

535 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de gestão documentado” (parágrafo 108, World Heritage Committee, 2022, p. 37), cujo con-
teúdo deve especificar o modo de preservação do VUE desse bem candidato, sendo assumida a
“preferência por meios participativos” (parágrafo 108, World Heritage Committee, 2022, p. 37).
O objetivo deste documento estabelece-se no âmbito da prevenção em função das
necessárias definições estratégicas para desenhar ações eficazes de proteção e salvaguar-
da do sítio, em benefício das gerações atuais e futuras (parágrafo 109, World Heritage
Committee, 2022, p. 37).
Nesse sentido, o documento esclarece que todos os bens candidatos e inscritos na
LPM “devem usufruir de uma proteção legislativa, regulamentar, institucional ou tradicio-
nal adequada que garanta a sua salvaguarda a longo prazo” (parágrafo 97, World Heritage
Committee, 2022, p. 35). Mais reforça o texto sobre a necessidade de que esta proteção

8
Como por exemplo a implementação da metodologia da Recomendação da Paisagem Urbana Histórica em
diversas cidades mundiais (Capela de Campos, 2020a).
9
Cf. WHC. 05/2 2 February 2005 - Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage
Convention, disponível em https://whc.unesco.org/archive/opguide05-en.pdf, acedido em 01/10/2022.

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“deve incluir limites delineados de forma adequada”, devendo os Estado-parte “fazer prova
de uma proteção legislativa adequada aos níveis nacional, regional, municipal e/ou tradicional
de um bem.” (parágrafo 97, World Heritage Committee, 2022, p. 35).
O parágrafo 110 das orientações técnicas para a implementação da CPM1972 reforça,
ainda, a ideia da adaptabilidade das ações desenhadas para a proteção do bem, face ao
contexto e perspetivas culturais, aos recursos disponíveis e outros fatores, podendo ser
equacionado a integração de “práticas tradicionais, instrumentos de planeamento urbano ou
regional em vigor, e outros mecanismos de controlo de planeamento, formais e informais” (pa-
rágrafo 110, World Heritage Committee, 2022, p. 37). Contudo, alerta para que qualquer
intervenção em bens inscritos na LPM deva ser “precedida de uma avaliação de impacto”
(parágrafo 110, World Heritage Committee, 2022, p. 37).
As orientações técnicas referem que “uma gestão eficaz deve incluir um ciclo de medidas
de curto, médio e longo prazo destinadas a proteger, conservar e apresentar o bem proposto para
inscrição” (parágrafo 112, World Heritage Committee, 2022, p. 38). Esta tónica quanto à
necessidade de ser desenhado um planeamento integrado, “a fim de acompanhar a evolução
dos bens ao longo do tempo e de assegurar a preservação de todos os aspetos que contribuem para
o seu Valor Universal Excecional”, conforme estabelece o parágrafo 112 das orientações
técnicas, consubstancia a importância da definição dos limites do bem, reforçando o que
já havia sido explanado no parágrafo 97.
Sem prejuízo do referido quanto ao nível da delimitação da área abrangida, o parágra-
fo 112 do documento em análise refere que a abordagem do plano pode extravasar o limite
do bem, “para incluir a(s) sua(s) zona(s) tampão, bem como o espaço envolvente mais amplo”.
536 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Este entendimento configura-se na lógica do lugar, sendo que esta maior abrangência
ou amplitude do espaço envolvente “pode estar relacionado com a topografia do bem, com o
ambiente natural e o construído e com outros elementos tais como a infraestrutura, os padrões
de utilização do solo, organização espacial e relações visuais” (parágrafo 112, World Heritage
Committee, 2022, p. 38). Adicionalmente, a delimitação do bem pode contribuir para a
leitura de autenticidade e/ou de integridade do sítio, à luz de uma inclusão de “práticas so-
ciais e culturais relacionadas, processos económicos e outras dimensões imateriais do património,
tais como perceções e associações” (parágrafo 112, World Heritage Committee, 2022, p. 38),
e assim desempenhar um papel de suporte ao VUE declarado.
Com o reconhecimento e a inclusão das diversas valências da abrangência territorial
do bem, a gestão do bem pode ser um ativo para “o desenvolvimento sustentável, através
do aproveitamento dos benefícios recíprocos para o património e a sociedade” (parágrafo 112,
World Heritage Committee, 2022, p. 38).
Nesta importância dedicada à delimitação da área do bem, as orientações técnicas
esclarecem, também, que uma zona tampão tem o objetivo de “proteger eficazmente o

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bem proposto para inscrição”, sendo “uma área circundante do bem proposto para inscrição,
cujo uso e exploração estão sujeitos a restrições jurídicas e/ou consuetudinárias, de forma a
reforçar a proteção do bem em causa” (parágrafo 104, World Heritage Committee, 2022,
pp. 36-37). Por sua vez, a delimitação da zona tampão deve considerar “a envolvente
imediata do bem proposto para inscrição, as perspetivas visuais importantes e outras áreas ou
atributos que desempenhem um papel funcional importante no apoio dado ao bem e à sua
proteção” (parágrafo 104, World Heritage Committee, 2022, pp. 36-37). Deste modo,
cada zona tampão deverá ser definida caso a caso, “através de mecanismos apropriados”,
devendo “ser incluídos no dossiê de proposta de inscrição os pormenores relativos à extensão,
características e usos autorizados na zona tampão, bem como um mapa em que se indi-
quem as delimitações exatas do bem e da zona tampão” (parágrafo 104, World Heritage
Committee, 2022, pp. 36-37).
Sobre a responsabilidade da execução do plano de gestão e das suas medidas e ações para
a eficaz proteção do bem inscrito, as orientações técnicas são muito precisas e atribuem-na
aos Estados-parte em colaboração com os gestores definidos do bem, designadamente,
a(s) entidade(s) encarregue(s) da gestão e os outros parceiros, tais como “as comunidades
locais e povos indígenas/populações autóctones, os titulares de direitos e partes interessadas na
gestão do bem, através do desenvolvimento, sempre que apropriado, de modelos de governação
equitativos, sistemas de gestão colaborativa e mecanismos de reparação” (parágrafo 117, World
Heritage Committee, 2022, p. 39).
Verifica-se, assim, que o texto das orientações técnicas atribui uma importância a esta
questão da gestão do bem, não só ao nível dos meios, instrumentos legais e ferramentas de

537 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
ação, como também ao nível dos agentes que terão a responsabilidade para a execução do
plano, aclarando que as candidaturas “deverão anexar à proposta de inscrição os textos apro-
priados, bem como uma explicação clara sobre a forma como essa proteção jurídica é aplicada
para proteger o bem proposto para inscrição”, desde a fase da análise preliminar das mesmas
(parágrafo 97, World Heritage Committee, 2022, p. 35).
Deste modo, o modelo de gestão escolhido e adequado a cada bem, deve apresentar
um desenho elucidativo para garantir a proteção e salvaguarda do VUE do bem, que
permitam responder a algumas questões: Qual o modelo de gestão mais adequado e a
sua estratégia? Quem determina a governância? Quem é a entidade gestora? Quais os
instrumentos de gestão disponíveis ou necessários? Quem determina as ações? Quem faz a
monitorização do estado de conservação e das ações a implementar?
Com esta perspetiva, tendo por base a exigência da UNESCO direcionada ao
Património Mundial, e no sentido de lançar pistas para outras realidades que queiram
repensar a sua condição e dinâmica glocal, o exercício deste trabalho vai centrar-se no caso
do modelo de gestão da UC-AS, bem inscrito na LPM em 2013.

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A candidatura da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia à Lista do
Património Mundial10

Fazendo parte do grupo restrito das Universidades Património Mundial, a UC-AS11


constitui-se como um património cultural, material e imaterial, inscrito na LPM em 22
de junho de 2013, ao qual foi reconhecido o seu VUE12, a sua autenticidade e integridade.
A oficialização da intenção de uma candidatura da Universidade a Património Mundial13
ocorreu no ano de 2003, por algumas iniciativas que foram realizadas pela Reitoria, sendo
que, em maio de 2004, a Comissão Nacional da UNESCO incluía a Universidade de
Coimbra na Lista Indicativa dos Bens Portugueses ao Património Mundial, Cultural e Natural
da UNESCO. Assim, a oficialização da candidatura à UNESCO foi concretizada em 2005,
pelo Reitor Fernando Seabra Santos, numa cerimónia pública realizada na Biblioteca Joanina.
Em 30 de janeiro de 2012, foi apresentado formalmente o dossiê de candidatura
da UC-AS, ao Centro do Património Mundial em Paris, pelo Embaixador Delegado-
permanente de Portugal na UNESCO Francisco Seixas da Costa. Na sua versão final, o
dossiê constitui-se em oito volumes, sendo sete livros mais um sumário executivo, onde
está plasmado um processo de intensa produção de conteúdos e de investigação sobre os
valores da universidade e da cidade, sobretudo na relação espacial entre a Alta e a Baixa.
O volume do Sumário Executivo apresenta a ‘ficha técnica’ do bem candidato à inscri-
ção na LPM, apresentando as justificações sumárias da declaração do VUE da UC-AS e a
proposta dos respetivos critérios (ii), (iii)14, (iv) e (vi).
O livro 1, intitulado Candidatura a Património Mundial, desenvolve a contextualiza-
538 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ção abrangente do objeto a avaliar, com a identificação do bem, a sua descrição, as justifi-
cações e as principais razões da candidatura, aclarando, ainda, o estado de conservação do
bem e as orientações para a sua proteção e gestão futuras, bem como, os agentes respon-
sáveis pelas mesmas.
10
Para mais informações sobre o processo de candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial,
cf. (Capela de Campos, 2019).
11
Cf. Alcalá de Henares e Coimbra, Universidades Património Mundial: responsabilidade e compromisso
de futuro em dois contextos ibéricos, in (Capela de Campos, 2019) e A classificação da Universidade de
Coimbra – Alta e Sofia como Património Mundial UNESCO: balanço e perspetivas (Capela de Campos et
al., 2022).
12
A justificação do VUE teve por base os critérios (ii), (iv) e (vi), sendo também justificadas a sua autentici-
dade e a sua integridade (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012; World
Heritage Committee, 2013, pp. 208-9).
13
Para mais informações sobre o processo, os protagonistas e os princípios da candidatura da UC-AS à
LPM, ver Candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial: Processo, protagonistas e princípios
(Capela de Campos, 2020b).
14
Com efeito, o critério (iii) não foi reconhecido pelo Comité do PM. Assim, a UC-AS foi inscrita na LPM
pelo reconhecimento do seu VUE, sob os critérios (ii), (iv) e (vi). Ver nota 11.

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O livro 2 é dedicado ao Plano de Gestão, apresentando a metodologia do Instituto
Getty de Conservação, referenciada para estes documentos.
O livro 3 articula os Textos Gerais, produzidos e supervisionados pela Comissão
Científica da candidatura, contribuindo com conteúdos e investigação científica para uma
contextualização detalhada da UC e da sua história, desde as origens até à contemporanei-
dade, sob quatro eixos temáticos, designadamente, a história da UC, a cidade da UC, as
tradições académicas e a produção e expansão científica, cultural e da língua.
O livro 4 assinala as Influências, demonstrando a influência da UC no mundo, pelo reco-
nhecimento da sua dimensão universal através da língua, da arquitetura e engenharia militar, da
formação e contributo sociocultural, realçando o papel da UC na criação do espaço da lusofo-
nia e os apoios e relacionamentos privilegiados com diversas universidades desde o Brasil à Ásia.
O livro 5 determina os Planos Directores, evidenciando levantamentos, planos de estudos
e propostas de intervenção para os edifícios incluídos na área candidata – a Alta e a Sofia –,
registando a arquitetura do conhecimento da UC, metodologia proposta por Nuno Ribeiro
Lopes, coordenador executivo da candidatura, baseada na produção de conhecimento técni-
co sobre cada edifício, tendo em vista permitir a adequação das ações de gestão e intervenção.
O livro 6 dedicado à Execução aborda a transformação verificada na Alta Universitária,
tendo como base o Plano de Pormenor da Alta Universitária de Coimbra de 2001, da au-
toria do arquiteto Gonçalo Byrne, a partir das necessárias intervenções sobre o património
universitário e espaço público e da reorganização dos espaços universitários, que foram
libertados com a abertura dos Polos II e III, para a Ciência e Tecnologia e para as Ciências
da Saúde, respetivamente.

539 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Por fim, o livro 7 explora a Área de Protecção, evidenciando a relevância histórica que
a implementação espacial da UC tem desempenhado no desenvolvimento do desenho da
cidade e evolução urbana, sobretudo, no seu Centro Histórico, onde o bem estabelecera
uma influência urbana direta.
Estes volumes consubstanciam-se na compilação dos conteúdos e investigação cien-
tífica realizados durante o processo de candidatura da UC-AS à inscrição na LPM da
UNESCO. Para além do mais, estes volumes traduzem também os desígnios, os compro-
missos e as responsabilidades na proteção e salvaguarda do património universitário, que a
UC e o Estado Português assumiam perante a comunidade internacional.
Ou seja, de um modo concreto, o dossiê de candidatura reporta e explana o âmbito
do que está em causa em termos patrimoniais e como se perspetiva a sua proteção e salva-
guarda, tendo em conta que a área candidata da UC-AS15, tem um total de 36,2 hectares,

15
Na 43.ª sessão do Comité do Património Mundial, realizada em Baku (Azerbaijão), em 07/07/2019, foi
anunciada a decisão de inscrever o Museu Nacional de Machado de Castro na área inscrita do bem UC-AS,
sendo que, anteriormente, estava localizado na área de proteção do mesmo.

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abrangendo duas áreas históricas urbanas: a Alta, com 29,7 hectares, que, essencialmente, se
assume de gestão da Universidade de Coimbra e Museu Nacional de Machado de Castro; e, a
Baixa, com 6,5 hectares, que assumindo uma variedade ao nível da propriedade, concretiza o
regresso simbólico e material da UC à Rua da Sofia. Esta delimitação espacial urbana é ainda
circundada por uma zona tampão, com 80,8 hectares, perfazendo um total de 117 hectares
de área da cidade de Coimbra.
Concludentemente, a dimensão desta área urbana pressupõe uma atenção e dedicação
continuada ao longo do tempo, tendo em conta o objeto da pretensão – a proteção e sal-
vaguarda do VUE da UC-AS, bem inscrito na LPM da UNESCO – importando, assim,
questionar qual o modelo de gestão implementado, face à complexidade e especificidade
deste sítio Património Mundial.
540 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 2 – Limites da área inscrita Universidade de Coimbra – Alta e Sofia e sua zona de proteção,
na Lista do Património Mundial, 2019.

O modelo de gestão da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia

Da análise do dossiê de candidatura da UC-AS à LPM e da documentação de arquivo16


que sustentou a concretização do mesmo, verifica-se que o modelo de gestão delineado
16
Cf. PT/UC/GNI/AGCU/UC-ASPM: [digital] Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, Candidatura a
Património Mundial.

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teve como base um sistema de dinâmica triangular entre plano, agente e instrumentos, as-
sente em três proposições: 1) Como se define a estratégia de gestão? 2) Quem define e im-
plementa essa estratégia? 3) E quais os instrumentos disponíveis para cumprir a estratégia?
Estes três vetores deviam estabelecer protocolos entre si para alcançar o maior propó-
sito da candidatura: proteger e salvaguardar o VUE reconhecido à UC-AS e ainda a sua
integridade e a sua autenticidade.
Além deste objetivo principal, devia ser assumida a sua necessária ação continuada
para a sustentabilidade do desenvolvimento do seu contexto urbano, devendo ser assu-
mida uma necessária ação continuada capaz de promover um novo modo de considerar o
projeto urbano de cidade.
Posto isto, interessa perceber como se caracterizam estes três vetores do sistema de
gestão e qual a sua articulação.

O plano de gestão

Refletido no livro 2 do dossiê de candidatura, o plano de gestão da UC-AS foi estrutu-


rado para apresentar uma abordagem múltipla às problemáticas previstas sobre a proteção
do seu VUE, sua autenticidade e sua integridade, tendo em conta, a dimensão do bem – as
áreas da Alta, da Sofia e da sua zona de proteção.
O documento reflete os Princípios de La Valletta17, ao assumir a “mudança” e a “trans-
formação” como características contextuais inerentes da sociedade contemporânea. Por sua
vez, esta “mudança” e esta “transformação” deveriam ser consideradas como uma oportu-

541 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
nidade para a gestão do património em espaço urbano, a partir de uma visão multidimen-
sional e com uma maior consciência sobre vários parâmetros – tanto do ponto de vista
territorial a várias escalas, tanto valores de identidade e socioculturais, ou considerando
valores tradicionais de uso de espaços ou ainda fatores económicos e ambientais, com
reconhecimento do valor da paisagem urbana.
Adicionalmente, o plano de gestão define-se como “instrumento fundamental para
atingir o objectivo final de superar a sempre difícil equação entre o respeito e valorização da
herança cultural, por um lado, e o desenvolvimento sustentável do património arquitectónico
e cultural, por outro” (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO,
2012b, p. 9).

17
O Comité Internacional sobre Cidades Históricas do ICOMOS (ICOMOS-CIVVIH) redefiniu os obje-
tivos, atitudes e ferramentas necessárias à intervenção e gestão para a proteção e salvaguarda de património,
bem como sobre a gestão de cidades e áreas urbanas com uma forte componente patrimonial e histórica, no
documento Princípios de La Valletta para a Salvaguarda e Gestão de Cidades e Conjuntos Urbanos Históricos
(ICOMOS - CIVVIH, 2012), cujos princípios foram adotados pelo ICOMOS, em 2011, na sua 17.ª
Assembleia Geral, realizada em Paris.

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Nesse sentido, e de acordo com os Princípios de La Valletta, o plano estabelece-se como
sendo um documento que especifica ao detalhe todas as estratégias e instrumentos a serem
usados na proteção do património, bem como, aquele que equaciona as necessidades da
vida contemporânea, contendo legislação em vigor e aplicável e outros documentos neces-
sários à gestão do património, nomeadamente, documentos financeiros, administrativos e
de conservação, bem como planos de monitorização e de conservação18.
Para além de fazer a apresentação do próprio plano e estabelecer a sua meta, o livro
2 apresenta estudos e investigações realizadas, uma análise do valor existente, procede ao
diagnóstico das condições físicas e à análise do seu contexto.
Em consequência, estipula respostas para a gestão, a partir dos estudos, análises e
diagnósticos prévios, assentes na definição de princípios e políticas, em objetivos espe-
cíficos, estratégias e responsabilidades, antes e depois da inscrição da UC-AS na LPM,
com o propósito de garantir múltiplas abordagens, direcionadas tanto com as questões
de intervenção no património arquitetónico, como de relação entre a UC-AS e a cidade,
designadamente, pela sua área de inserção com o total de 117 hectares.
Adicionalmente, determinava os planos de ação estipulados para o período 2009-2016,
sob vários temas: ordenamento; investigação; intervenção física; Repúblicas; e, eventos; e
ainda ações de monitorização e revisão19.
Assumindo uma lógica de abrangência, a expectativa do plano seria tornar-se, ele pró-
prio, num instrumento essencial à gestão do bem, uma vez que se enquadra numa con-
cordância de prevenção, sendo capaz, por princípio e por antecipação, evitar ou controlar
qualquer ameaça que concorra contra a proteção do bem.
542 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Deste modo, o documento seria considerado uma orientação para o trabalho de gestão
e, nessa condição, deveria ser atualizado e monitorizado constantemente e, para além de
propostas apresentadas para resolução de problemas existentes, seriam também contem-
pladas propostas metodológicas de atuação para os eventuais problemas previstos para o
futuro, designadamente, sobre o previsível acréscimo de afluência e do número de visitan-
tes dos espaços universitários, promovendo um “turismo de qualidade” (Universidade de
Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012b, p. 133).

Cf. (ICOMOS - CIVVIH, 2012, p. 4; Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012b, p. 9).
18

Designadamente, “(…) estabelecer prioridades e calendarização para 5 anos no âmbito das acções; rever e aferir
19

no fim do prazo estabelecido a execução dos planos de acção; executar os planos de pormenor e ordenamento até
2014 e proceder à sua revisão 10 anos após a data da sua aprovação; aferir o impacto dos turistas e visitantes;
aferir o grau de execução dos programas de reabilitação; verificar e analisar o desenvolvimento da rede de museus
implementada; trabalhar directamente com a população/cidade, promovendo o sucesso dos objectivos, acções e
gestão; actualizar continuamente a base de dados existente; avaliar e aferir a gestão no cumprimento das metas
previstas a 30 anos (preservação do Bem)” (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO,
2012b, p. 165).

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O agente de gestão

Se a sustentabilidade da proteção e do desenvolvimento de um património arquite-


tónico cultural torna-se no objetivo comum de todos os planos de gestão no âmbito do
Património Mundial da UNESCO, a necessidade de haver agentes com responsabilidade
na implementação dessas medidas e orientações, para uma efetiva gestão do VUE do pa-
trimónio, não deixa de ser considerado e avaliado durante o procedimento de candidatura
de inscrição um bem na LPM. É sobre esses agentes que, teoricamente, recai o papel e a
responsabilidade da implementação das medidas e orientações desenhadas para a gestão
do bem.
No entanto, para o caso da Universidade de Coimbra, devem ser acauteladas, em
ponto prévio, as questões levantadas pelo direito de propriedade afetas à área candidata,
uma vez que há uma combinação de propriedade pública e propriedade privada. Em rigor,
para a área candidata concorriam quatro tipos de propriedade: propriedade pública da
UC, propriedade de outras entidades públicas, propriedade privada de fruição pela UC e
propriedade privada, conforme o próprio dossiê de candidatura reporta (Universidade de
Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012a, p. 210).
Esta problemática equacionava a impossibilidade do exercício de gestão do bem, de
um modo efetivo, por apenas um só agente.

543 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3 – Levantamento da propriedade, na área afeta à candidatura à UNESCO, feito pelo Gabinete de
Candidatura à UNESCO (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012a, p. 210).

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Perante esta problemática prévia, através de uma parceria de cooperação entre a UC
e a Câmara Municipal de Coimbra (CMC), foi possível articular um papel “privilegiado
na definição de metodologias e critérios de intervenção e apoio financeiro, garantindo o desejá-
vel enquadramento institucional” (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à
UNESCO, 2012b, p. 7).
Esta parceria com a CMC permitia convocar, para o núcleo de decisão da gestão do
bem, a entidade com competências de planeamento, de investimento, de gestão, de licen-
ciamento e controlo prévio e de fiscalização atribuídas aos domínios do ordenamento do
território e urbanismo (entre outros), para o território do município, dentro do enquadra-
mento legal20.
A CMC é a entidade que estabelece, através de instrumento próprio para o efeito - o
Plano Diretor Municipal (PDM) –, a “estratégia de desenvolvimento territorial e as regras de
ocupação, uso e transformação do solo”21, ou seja, é a entidade que tem competência relativa
à implementação das medidas e opções políticas estipuladas para a cidade, podendo ser
coadjuvado por outros instrumentos legais.
Em 2005, foi criado um grupo de trabalho, a partir da assinatura dos protocolos com
várias instituições, designado por Comissão Técnica Mista22, no sentido de serem articula-
dos os vários saberes técnicos e científicos, de modo a responder às exigências processuais
estabelecidas nas orientações técnicas e, assim, alcançar o objetivo da candidatura e inscre-
ver o bem na LPM.
Com todos os estudos e investigações científicos em curso sobre o bem, o processo
de candidatura da UC-AS à UNESCO estava a gerar novas considerações sobre a especi-
544 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ficidade desta área mais antiga da cidade e, consequentemente, sobre as metodologias de


intervenção para a sua proteção.
Em 2010, foi aprovado o Plano Estratégico para a Cidade de Coimbra, pela CMC,
observando que um dos seus principais objetivos compreendia ser um contributo válido
para o processo de candidatura à LPM. Além desse objetivo, o Plano Estratégico esperava
e incentivava o desenvolvimento de operações de reabilitação urbana, entendidas como

20
Cf. Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o
estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do
Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associati-
vismo autárquico.
21
Nos termos do artigo 1.º do Aviso n.º 7635/2014, de 1 de julho, que aprova a 1.º revisão do PDM de
Coimbra.
22
A Comissão Técnica Mista convocou técnicos do Gabinete de Candidatura à Unesco da UC, do Gabinete
para o Centro Histórico e do Gabinete Técnico Local da CMC, da Direção Regional de Cultura do Centro
e da Sociedade de Reabilitação Urbana – Coimbra Viva (SRU).

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sendo ações de interesse público urgente, a efetuar nas zonas históricas e nas áreas críticas
de recuperação e reconversão urbanística da cidade 23.
A administração e gestão deste processo foram atribuídas à SRU – Sociedade de
Reabilitação Urbana Coimbra Viva (SRU)24, que passava a ter competência de gestão e
de parecer vinculativo nas operações urbanísticas realizadas nas 3 Áreas de Reabilitação
Urbanas (ARUs) delimitadas, a Alta, a Baixa e a Beira-Rio.
Observando a operativa cumplicidade entre a UC e a CMC é de realçar que, du-
rante o período de desenvolvimento da candidatura à UNESCO, o PDM encontrava-se
em fase de revisão25, sendo ainda desenvolvido um regulamento próprio, aprovado pela
CMC em 2011, o Regulamento Municipal de Edificação, Recuperação e Reconversão
Urbanística da Área Inscrita na Lista de Património Mundial da UNESCO, incluindo
Zona de Proteção26, prevendo a compatibilização entre as necessidades de gestão do bem
para as áreas urbanas da Alta, da Sofia e da área de proteção, com as disposições legais que
permitiriam enquadrar, para essa delimitação, as operações urbanísticas sujeitas a controlo
prévio, nos termos do regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE) estabelecido
pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro na sua atual redação.
A partir deste trabalho de cooperação institucional, foi estabelecido um modelo de as-
sociação entre a UC, o Município de Coimbra representado pela CMC, a Direção Regional
de Cultura do Centro (DRCN) e a Coimbra Viva, SRU – Sociedade de Reabilitação
Urbana, S.A. (SRU) para que, em parceria, pudessem gerir e desenvolver uma coorde-
nação administrativa sobre todo o território delimitado do bem, de forma integrada e
conjunta, tendo em conta as competências inerentes de cada um, uma vez que as mesmas

545 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
eram os agentes com maior relevância para a gestão e administração do bem UC-AS e da
respetiva área de proteção, constituindo-se a Fundação Univer(sc)idade27.
Todavia, ao longo do processo de candidatura, a aplicação e a articulação do plano
de gestão, pela Fundação Univer(sc)idade, revelavam carências ao nível da sua execu-
ção, sendo que a geometria triangular – plano, agente e instrumentos – adensava-se mais

23
Nos termos do n.º 6, do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de maio, “As operações de reabilitação
a efectuar nas zonas históricas e nas áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística revestem-se, para todos
os efeitos, de interesse público urgente”.
24
As Sociedades de Reabilitação Urbana são empresas municipais, sobre as quais o Município detém a tota-
lidade do capital social, criadas para promover a reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas
de recuperação e reconversão urbanística, conforme estabelece o n.º 1, do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º
104/2004, de 7 de maio.
25
A 1.ª revisão do Plano Diretor Municipal de Coimbra foi aprovada em 13 de maio de 2014, já depois da
inscrição da UC-AS na LPM da UNESCO.
26
Cf. Aviso n.º 2129/2012, de 10 de fevereiro.
27
Cf. Estatutos da Fundação Univer(sc)idade (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à
UNESCO, 2012a, pp. 260-267).

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complexa e de maior abrangência. Concludentemente, foi verificado que seria necessário
incorporar novos instrumentos legais mais especializados, para além daqueles já existentes
de afetação ao território definido pelo limite do bem candidato.
Tomando os estatutos da Fundação Univer(sc)idade como base, no final de 2011,
constituía-se a RUAS - Associação Univer(s)cidade, também designada como Associação
RUAS (RUAS), cujo acrónimo pressupõe Recriar a Universidade, Alta e Sofia. A RUAS
adotava uma solução inovadora para a concretização da gestão do bem UC-AS, tendo
também como associados fundadores os mesmos agentes implicados na responsabilidade
e competência da gestão da área delimitada do bem – a UC, a CMC, a DRCC e a SRU.
Compete à RUAS, nos termos do artigo 3.º dos seus Estatutos28: a) salvaguardar e pro-
mover o conjunto UC-AS, inscrito na LPM da UNESCO, “sem prejuízo das competências
próprias atribuídas pela lei às diversas entidades”; b) promover, apoiar e dinamizar iniciativas
de atividade científica, cultural e social, tendo em vista a preservação e beneficiação do
património afeto; c) disponibilizar aos associados e demais interessados informação atuali-
zada sobre linhas de financiamento para projetos específicos que se integrem nos objetivos;
d) representar o bem UC-AS Património Mundial da UNESCO, junto das instituições
nacionais e internacionais (RUAS - Associação Univer(s)cidade, 2011, p. 1).
A partir deste momento havia um único interlocutor, a RUAS, responsável pela gestão
do bem e pela representação do mesmo a nível local, nacional e internacional, tanto no
âmbito e período da candidatura, como para o futuro.
A RUAS era (e é) constituída por três órgãos sociais – a Assembleia Geral, a Direção
e o Conselho Fiscal29.
546 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A Assembleia Geral da RUAS constitui-se por todos os seus associados (sócios fundado-
res e sócios institucionais) e é liderada por um presidente e um vice-presidente, funções exer-
cidas rotativamente pelo período de um ano, pelo Reitor da UC e pelo Presidente da CMC.
A Direção, com poder executivo, é composta por um presidente, um vice-presidente
e três vogais; a presidência e vice-presidência é exercida rotativamente por um Vereador da
28
Confrontando o texto apresentado na candidatura da UC-AS à LPM, aposto no dossiê de candidatura
– ainda intitulado como Estatutos da Fundação Univer(sc)idade (Universidade de Coimbra - Gabinete de
Candidatura à UNESCO, 2012a, p. 260) – com o texto dos Estatutos da Associação RUAS, disponível em
https://www.uc.pt/ruas/info/estatutos, verifica-se que os estatutos da RUAS foram revistos e atualizados
após a inscrição da UC-AS na LPM, designadamente no âmbito do artigo 3.º, relativo aos Fins e Atividade.
Constata-se que das 5 alíneas do artigo 3.º dos Estatutos da Fundação Univer(sc)idade, a alínea b) – a saber,
“b) salvaguardar, promover e gerir o território afeto ao Bem designado por Universidade de Coimbra - Alta e
Sofia, nos termos de classificação de Património Mundial que venha a ser atribuída pela UNESCO e sem prejuí-
zo das competências próprias atribuídas pela lei às diversas entidades” (Universidade de Coimbra - Gabinete
de Candidatura à UNESCO, 2012a, p. 260) – não foi transposta para a versão do texto dos Estatutos da
RUAS, cujo artigo 3.º contempla as demais 4 alíneas dos Estatutos da Fundação, com os ajustes de redação
afetos à efetiva inscrição da UC-AS na LPM em 22 de junho de 2013.
29
Cf. Nos termos do artigo 9.º dos seus Estatutos (RUAS - Associação Univer(s)cidade, 2011, p. 4).

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CMC e por um Vice-reitor da UC (de modo alternado à presidência da Assembleia Geral),
e as funções dos vogais são desempenhadas por um representante da UC, um da CMC e um
da DRCC, com a ressalva de que, ao sócio fundador SRU não é atribuído poder executivo.
A RUAS previa, ainda, a constituição de um Gabinete Técnico para trabalhar di-
retamente com a Direção, subdividido em três especialidades30: o Gabinete Técnico
de Estruturação Urbana (GTEU); o Gabinete Técnico de Acompanhamento do Plano
(GTAP); e o Gabinete Técnico de Informação, Valorização e Salvaguarda (GTIVS).
Conforme era esclarecido no primeiro e único Relatório Anual de 2012 (datado de
maio de 2013) tornado público, os três gabinetes seriam “(…) constituídos por técnicos das
quatro instituições (…), provenientes de diversas áreas profissionais e, ainda, por outros técnicos
e individualidades de reconhecido mérito, convidados pela RUAS” (Gabinete Técnico para o
Acompanhamento do Plano et al., 2013, p. 3).
O GTEU foi uma solução implementada em outubro de 201231, ou seja, durante a
fase de avaliação da candidatura da UC-AS à LPM.
Ao GTEU competia “a análise técnica e regulamentar de todas as operações urbanísti-
cas a realizar nas áreas candidatas e na respetiva zona de proteção” (Gabinete Técnico para
o Acompanhamento do Plano et al., 2013, p. 3), compreendendo os limites da UC-AS
como parte integrante do seu território mais abrangente e respondendo à necessidade de
garantia das condições de integridade do bem para o futuro – enquanto condição necessária
para inscrição do bem na LPM, pese embora o dossiê de candidatura tivesse sido entregue
anteriormente à constituição do gabinete técnico. Adicionalmente, o GTEU assumia como
propósito supervisionar as intervenções urbanas externas à RUAS, dentro da área candidata

547 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
e emitindo parecer informativo de avaliação. Esta equipa seria coordenada pela CMC e
composta por arquitetos, arqueólogos e administrativos da CMC, da SRU e da DRCC32.
O GTAP também foi uma solução definida durante a fase de candidatura da UC-AS
à LPM, competindo-lhe assegurar “o acompanhamento, o controlo e a implementação do
Plano de Gestão e tarefas com ele relacionadas” (Gabinete Técnico para o Acompanhamento
30
Cf. “Universidade de Coimbra - Alta e Sofia: Relatório Anual de Acompanhamento do Plano de Gestão e
Monitorização do Bem – 2012”, datado de maio de 2013, disponível em https://www.uc.pt/ruas/monito-
ring/reports/relatorio_2012.pdf, acedido em 29/12/2022.
31
Nos termos do primeiro Relatório Anual da RUAS, datado de maio de 2013, sobre a implementação da
estrutura gestora, a RUAS reportava que “registam-se as seguintes etapas etapas formais de implementação da
RUAS: (…) Início de funcionamento do GTEU – outubro 2012” (Gabinete Técnico para o Acompanhamento
do Plano et al., 2013, p. 16).
32
Cf. Ofício de resposta da Associação RUAS ao ICOMOS, datado de 18/10/2012, sob o título “University
of Coimbra – Alta and Sofia, World Heritage Nomination: Additional Information (requested by ICOMOS):
October 2012” e ofício de resposta da Associação RUAS ao ICOMOS, datado de 25/02/2013, sob o título
“University of Coimbra – Alta and Sofia, World Heritage List 2013: Additional Information (II) requested by
ICOMOS: February 2013”, em PT/UC/GNI/AGCU/UC-ASPM: [digital] Universidade de Coimbra – Alta
e Sofia, Candidatura a Património Mundial.

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do Plano et al., 2013, p. 3). Previa duas articulações necessárias: sobre o domínio dos fun-
dos financeiros e estratégicos disponíveis para as atividades de intervenção sobre o bem e,
a outra, sobre a relação entre a RUAS e o PM, para o período posterior à inscrição do bem
na LPM, tendo em conta a prestação de informação periódica que os gestores dos bens
inscritos devem apresentar à UNESCO. Em complementaridade, assumia ainda como
propósito o desenvolvimento do plano de gestão, através de estratégias de monitorização,
de verificação e de coordenação das ações e atividades previstas para execução sobre a área
candidata. Esta equipa seria coordenada pela RUAS e composta por engenheiros civis, um
técnico de relações internacionais, outro de gestão da administração pública e um econo-
mista, da CMC, da DRCC e da UC33.
Também o GTIVS foi uma solução definida para ser “responsável pelo apoio aos proje-
tistas no que respeita a soluções construtivas e materiais para uma adequada reabilitação, pela
divulgação de boas práticas e pela publicação de orientações científicas e técnicas” (Gabinete
Técnico para o Acompanhamento do Plano et al., 2013, p. 3). Promovia uma oportunidade
de levantamento e divulgação sobre o desenvolvimento cultural relacionado com os parâ-
metros de proteção e salvaguarda do bem, para a sua futura gestão e possibilitava a concre-
tização de uma ação pedagógica e educativa sobre o bem, para a comunidade em geral. Para
tal, assumia como propósito a investigação e a informação sobre metodologias e técnicas de
boas práticas na intervenção em património arquitetónico, dando um contributo e apoio
técnico à planificação e projeto das obras previstas pelo plano de gestão. Esta equipa seria
coordenada pela UC e pela CMC, sendo composta por engenheiros civis e arquitetos34.
Se dúvidas subsistissem quanto à constituição e tempo de atuação do Gabinete Técnico
548 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

– se era apenas uma solução para a fase da candidatura ou se seria uma solução para im-
plementar e trabalhar em estreita colaboração com o gestor do bem para futuro –, o Plano
de Gestão apresentado no dossiê de candidatura à UNESCO declarava ser uma estratégia
e uma responsabilidade “manter em funcionamento o Gabinete Técnico de apoio à Associação
Univer(sc)idade” (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO,
2012b, p. 137). Também o Relatório Anual de 2012, da RUAS, datado de maio de 2013,
esclarecia cabalmente todas as questões, explanado que “os órgãos desta Associação são a
Assembleia Geral – que integra a componente de Forum Consultivo – o Conselho Fiscal, o
Gabinete Executivo e três gabinetes com competências técnicas específicas. São eles o Gabinete
Técnico de Estruturação Urbana (GTEU), o Gabinete Técnico de Acompanhamento do Plano
(GTAP) e o Gabinete Técnico de Informação, Valorização e Salvaguarda (GTIVS).” (Gabinete
Técnico para o Acompanhamento do Plano et al., 2013, p. 15).

Ibidem.
33

Ibidem.
34

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Por conseguinte, um dos aspetos mais inovadores desta estrutura desenhada para a
gestão do bem constituía-se na disponibilidade de entidades públicas ou privadas pode-
rem integrar o Fórum Consultivo, face às especificidade e complexidade da candidatura,
para garantir o apoio possível e essencial à Direção, cooperando com a tríade de gabinetes
técnicos, desde que convidados pela Direção ou que manifestem interesse em participar
das atividades da Associação. Do apoio técnico e científico, conforme plasmado no ar-
tigo 20.º dos Estatutos, a Direção da RUAS pode recorrer aos técnicos da UC, CMC e
DRCC, assim como a peritos externos, sem vínculo a nenhuma destas entidades (RUAS
- Associação Univer(s)cidade, 2011, p. 8).
Um outro aspeto inovador era esclarecido na referida resposta da RUAS de 25/02/201335
ao ICOMOS sobre o desempenho operativo da RUAS, uma vez que estava estabelecido
que a própria era responsável por emitir parecer vinculativo sobre a proteção visual do bem
UC-AS e, por consequência, teria que ser forçosamente ultrapassado os limites estabeleci-
dos para a zona de proteção do bem, para uma área ao redor da zona de proteção.

549 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 4 – Organograma da RUAS (adaptado pela autora). A base do mesmo foi apresentado em ofício de
resposta da RUAS ao ICOMOS, de 25/02/2013, página 8 (Cf. PT/UC/GNI/AGCU/UC-ASPM: [digital]
Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, Candidatura a Património Mundial).

35
Cf. Ofício de resposta de 25/02/2013, da Associação RUAS – Universidade de Coimbra supra menciona-
do, em PT/UC/GNI/AGCU/UC-ASPM: [digital] Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, Candidatura a
Património Mundial.

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Os instrumentos de gestão

Os instrumentos legais de proteção e valorização necessários para a gestão da área can-


didata da UC-AS basearam-se e geraram uma geometria legal, regulamentar e normativa,
tanto nacional como municipal, para serem garantidas e estipuladas as estratégias e medi-
das sobre a proteção do bem em si próprio, mas também para garantir a redação necessária
à gestão do bem, dentro da compreensão espacial do seu contexto urbano.
Na legislação nacional, a candidatura apoiava-se em três diplomas fundamentais:
na Lei de Bases do Património Cultural36 – Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro –, que
estabelece o regime de proteção e salvaguarda do património cultural; no Anúncio n.º
5286/2011, de 20 de abril 37, que publicitava a abertura do procedimento de classificação
da UC-AS, no grau de interesse nacional, com a fixação da respetiva Zona Especial de
Proteção (ZEP) provisória38; e no Anúncio n.º 175/2013, de 15 de maio, que determi-
na o projeto de decisão relativo à classificação como conjunto de interesse nacional, ou
seja, como Monumento Nacional39, do conjunto da UC-AS, localizado nas freguesias de
Almedina, Santa Cruz e Sé Nova, em Coimbra.
Estes diplomas são essenciais tendo em conta que, em Portugal, qualquer abertura de
procedimento de classificação de um bem como imóvel de interesse cultural, o mesmo
assume o estatuto ‘em vias de classificação’ e beneficia, automaticamente, de uma Zona de
Proteção provisória definida pela imposição de um limite de 50 metros, contados a partir
do limite exterior do bem. Quando o bem em causa assume características e condicio-
nantes que extrapolam esse limite dos 50 metros circundantes, em alternativa e mediante
550 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

avaliação técnica, o bem em vias de classificação pode beneficiar de uma Zona Especial de
Proteção (ZEP) provisória, se se considerar e avaliar que a primeira se revela insuficiente ou
desadequada para os seus propósitos, nomeadamente, em função das referências topográfi-
cas, paisagísticas e do contexto urbano do bem em vias de classificação, situação verificada
para o caso do bem em vias de classificação da UC-AS.

36
Cf. Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, que estabelece as bases da política e do regime de proteção e valo-
rização do património cultural e que é regulamentada pelo Decreto-lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, na
sua redação atual.
37
Cf. Anúncio n.º 5286/2011, de 20 de abril e Anúncio n.º 175/2013, de 15 de maio.
38
Em Portugal, a Lei de Bases do Património Cultural, embora com outros parâmetros mais incisivos, con-
tinua a prever a imposição de Zonas de Proteção ou Zona Especial de Proteção, com as devidas restrições
impostas e adequadas em função da valorização e da proteção do património, em áreas classificadas ou em
vias de classificação, enquanto áreas de servidão administrativa que acautelam um interesse público.
39
Cf. “Para os bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sí-
tios, adoptar-se-á a designação «monumento nacional» ()”, nos termos do n.º 3, do artigo 15.º da Lei n.º
107/2001, de 8 de setembro.

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Tendo em conta a diversidade dos bens classificados40 como Monumento Nacional e
Imóveis de Interesse Público existentes na Alta e na Baixa da cidade, a definição do limite
da zona tampão do bem UC-AS considerava a sobreposição de todas as áreas classificadas
ou em vias de classificação e suas respetivas áreas de proteção, aglutinando todos esses
limites existentes na extensão da área candidata à LPM da UNESCO. Deste modo, a
área desenhada e proposta agregava todos os valores patrimoniais classificados existentes,
enaltecendo uma visão da continuidade espacial urbana como leitura de cidade e que, no
fundo, permitia enquadrar e justificar a integridade e autenticidade da UC-AS.
Ao nível municipal, o desenho da geometria legal apoiava-se no já referido Plano
Diretor Municipal (que se encontrava em revisão durante o período de candidatura), que
estabelecia as estratégias de desenvolvimento territorial e de ocupação do solo para a cida-
de e, sobretudo, definia o Centro Histórico de Coimbra, onde se enquadrava a área candi-
data. Também ao nível municipal, o Regulamento Municipal de Edificação, Recuperação
e Reconversão Urbanística da Área Inscrita na Lista de Património Mundial da UNESCO,
incluindo Zona de Proteção estabelecia as regras e procedimentos para valorizar, manter e
reforçar a função residencial e a qualidade ambiental; salvaguardar e reabilitar os conjuntos
urbanos, tanto nas suas características morfológicas urbanas, como também nas tipológi-
cas do edificado; consoante a definição de três áreas consideradas, sendo que, a Zona 1
compreendia a área candidata, a Alta Universitária e a Rua da Sofia.
Ainda ao nível municipal, era delineado o Plano Estratégico para a Cidade de Coimbra,
que, como já se reportou, definia a regulação de Áreas de Reabilitação Urbana, cuja rele-
vância assentava na definição de áreas prioritárias para a reabilitação urbana, como a Alta,

551 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
a Baixa e a Baixa-Rio.
Depois de 22 de junho de 2013, ou seja, depois da inscrição da Universidade de
Coimbra - Alta e Sofia na LPM, mais dois instrumentos seriam determinantes: o Anúncio
n.º 14917/2013, de 5 de dezembro, que publicitava a inscrição do bem UC-AS na LPM
e que, consequentemente, determinava a sua classificação como Monumento Nacional,
com a respetiva ZEP; bem como a publicação da 1.ª revisão do PDM de Coimbra, no já
mencionado Anúncio n.º 7635/2014, de 1 de junho.

Inscrição na Lista do Património Mundial: verificação de premissas

O caso da UC-AS expõe, a partir do desenho da sua candidatura à LPM, um modelo de


gestão baseado num sistema de conceção triangular assente em plano-agente-instrumento.
40
Na área candidata à LPM, da Alta e da Baixa, contavam-se 14 bens classificados como Monumento
Nacional e 3 bens classificados como Imóveis de Interesse Público. Na zona de proteção são englobados
7 bens Monumento Nacional, 4 bens Imóvel de Interesse Público e 4 bens em vias de classificação. Cf.
(Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012a, p. 213).

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O desenho deste sistema, pensado pelo Gabinete de Candidatura à UNESCO, foi delineado
para que a evolução destes três vetores componentes pudesse ser refletida e acondicionada,
no sentido de se ir adaptando ao longo do tempo às necessidades decorrentes da continuada
atividade e exercício de proteção e salvaguarda do bem candidato (e depois inscrito) na LPM.
Deste modo, a adaptabilidade do sistema de gestão permitia gerir o VUE do bem, a
partir do trabalho articulado e direto entre a Direção e as três especialidades do Gabinete
Técnico. Por um lado, seria garantido o dinamismo entre a valorização e a proteção do pa-
trimónio existente, tal que arquitetónico, urbano, histórico e/ou sociocultural. Por outro
lado, permitia que o próprio sistema se fosse autocorrigindo, a partir da experiência e
dos resultados verificados sobre os atos próprios, tal como é sublinhado e recomendado
pelas orientações técnicas para a implementação da Convenção do Património Mundial de
1972, que referem a importância da adaptabilidade do desenho do plano de gestão tendo
em conta o tipo do bem proposto para inscrição, as suas características e necessidades e,
ainda, o seu contexto cultural e natural.
Nesse sentido, entende-se que a proximidade dos agentes de gestão dos sítios Património
Mundial com o bem deve ser uma premissa-chave para o sucesso da gestão. Para além da
proximidade no conhecimento do bem a gerir, os agentes implicados na gestão deste tipo
de bens devem ser aqueles que dominam as características e especificidades próprias dos
respetivos espaços físicos – ou seja, as áreas urbanas ou o património arquitetónico – sob
pena de ser invertida a hierarquia de valores que devem estar presentes nestes casos.
Pese embora este sistema gizado para a gestão da UC-AS tenha recolhido elogios aquan-
do a avaliação da candidatura, nomeadamente pela quadratura das entidades com compe-
552 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

tência tutelar sobre o território candidato através de um ator responsável – a Associação


RUAS –, dúvidas subsistem quanto à implementação do sistema de gestão apresentado à
UNESCO na sua plenitude.
Alguns exemplos concretos podem ilustrar esta constatação.
Em 13 de outubro de 2014, foi enviado pelo Estado-parte, Portugal, ao Centro do
Património Mundial o Relatório Periódico41 onde era reconhecido que deveria ser melho-
rado o nível de coordenação entre as diferentes entidades e/ou os diferentes níveis42.

41
O Relatório Periódico é um dos principais mecanismos de autoavaliação, que os Estados-parte e os agentes de
gestão dos bens inscritos na LPM submetem para análise do Comité do Património Mundial, em cada ciclo
de avaliação de nível global. Nestes mecanismos, cada Estado-parte deve refletir “sobre as disposições legislativas
e sobre os regulamentos administrativos e demais medidas que tenham sido adotadas para aplicação da Convenção,
incluindo o estado de conservação dos bens do Património Mundial situados no seu território”, conforme o parágra-
fo 199 das Orientações Técnicas para a Implementação da Convenção do Património Mundial, devendo ser
apresentado uma autoavaliação por cada bem inscrito (parágrafo 199 e ss. World Heritage Committee, 2022).
42
“4.3.3 - How well do the various levels of administration (i.e. national / federal; regional / provincial
/ state; local / municipal etc.) coordinate in the management of the World Heritage Property ? There is
coordination between the range of administrative bodies / levels involved in the management of the property but
it could be improved” (Direção-Geral do Património & Universidade de Coimbra, 2014, p. 5).

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Na esfera do âmbito do agente de gestão, é reconhecido que a atividade da RUAS
tem sido resumida a ações de representação protocolar, em representação do bem UC-AS,
sobretudo em eventos culturais.
As ações de intervenção qualificada sobre o património universitário tem sido assu-
midas pela Universidade de Coimbra43, ao longo dos anos, como se verifica com as in-
tervenções na Alta, sobre a Porta Férrea e o seu Largo (2014), o Jardim Botânico (2015),
o Colégio da Trindade (2017), o complexo do Paço das Escolas (várias intervenções ao
longo dos anos e com novos trabalhos a decorrer), e na Baixa, sobre o Colégio da Graça na
Rua da Sofia, para acolher o Centro de Documentação 25 de Abril e parte do Centro de
Estudos Sociais (2017). Outras ações de intervenção têm sido assumidas pela CMC44, es-
pecialmente nos espaços públicos da área inscrita, tais como no Terreiro da Erva, no Largo
da Trindade, no Largo de S. Salvador, e mais recentemente no Largo da Sé Velha e na Rua
Larga. Assim se depreende que, a proteção e salvaguarda do património arquitetónico e
urbano está a ser garantido face ao esforço e à execução das atividades normais de gestão
de espaço físico próprio e/ou público, da proprietária UC e da entidade garante da gestão
urbanística da cidade, a CMC.
Constata-se, ainda, que não foi divulgado qualquer produção de mais exemplos de
“relatório anual”, para além daquele primeiro datado de maio de 2013 e já mencionado.
Apesar da validade do exercício teórico concretizado no desenho do organograma
da RUAS, nomeadamente na definição de gabinete técnico com três especialidades de
apoio à Direção da RUAS, constata-se que, na transposição para a prática, a aplicação
dos pressupostos técnicos pensados não foi executada. Ou seja, o Gabinete Técnico, foi

553 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
previsto para dar apoio técnico e especializado, subdividido na tríade de especialidades
delineadas (GTEU, GTAP e GTIVS), em estreita e direta colaboração com a direção da
RUAS, não foi assegurado ou continuado como estava previsto. Certamente, que téc-
nicos qualificados da UC, da CMC e/ou da DRCC tentam, em tempo dispensado para
o efeito e dentro das suas competências, dar resposta a alguns tópicos, mas dificilmente
dando resposta à totalidade do que foi pensado e assumido que previa uma ação técnica
continuada.
Em 2014, era assumido, no Relatório Periódico entregue ao Centro do Património
Mundial, que o sistema de gestão apenas tinha sido implementado parcialmente, sem mais
detalhes e que a monitorização dos indicadores estabelecidos para aferir o estado de con-
servação do VUE do bem poderia ser aperfeiçoada, sendo reforçado ainda que a maior

43
Para mais informações sobre esta temática, consultar (Capela de Campos, 2019; Capela de Campos et al.,
2022).
44
Ibidem.

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parte do trabalho técnico era provido por pessoal externo45. Não sendo conhecidos mais dados
sobre estes tópicos, aguarda-se a publicação e/ou divulgação de mais relatórios, quer pe-
riódicos quer anuais, expectando que a articulação e a implementação das ações previstas
e delineadas no plano de gestão para concretizar a preponderante atividade de proteção e
salvaguarda do VUE da UC-AS, não estejam a carecer de execução, por não ter sido as-
segurado a continuação do Gabinete Técnico, como foi assumido no dossiê de candidatura
apresentado em 2012.
Não obstante esta situação, e à semelhança do que foi realizado em 2014, a revisão e a
avaliação da eficácia do sistema de gestão deverá ser realizada, em primeiro lugar, pelo ges-
tor do bem – a RUAS – tendo em vista a (re)análise da necessidade de serem promovidas
correções e ajustes ou reforço e manutenção das ações e atividades previstas na dinâmica
temporal do desenho do plano, fazendo jus à adaptabilidade do sistema.

Considerações finais

Não obstante se entender que o património deve ser gerido como um recurso não re-
novável do território, espera-se que, por princípio, uma candidatura para inscrição de um
bem na LPM pode – e deve – ser um ativo para a gestão e para o desenvolvimento urbano
do território ou de uma cidade.
Nesse sentido, torna-se expectável que a sua gestão deva ser feita de forma a permitir
a sua própria sustentabilidade, sendo assim, importante e necessário que se possa refle-
tir sobre a capacidade de adaptação dos modelos de gestão escolhidos para cada bem a
554 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

inscrever ou já inscrito na LPM da UNESCO e a sua implementação face à necessidade


operativa de cada caso.
Este trabalho, na tentativa de lançar o tema da gestão do património cultural para
debate, parte do caso do modelo de gestão apresentado pela UC-AS, que viu o reconheci-
mento do seu VUE e consequente inscrição na LPM, em 22 de junho de 2013.
Em 28 de setembro de 2022, a Diretora-Geral da UNESCO, Audrey Azoulay, de-
clarou que a cultura é um bem público mundial, tendo um papel fundamental na nossa

45
“4.3.5 - Is the management system being implemented? The management system is only partially being
implemented” (Direção-Geral do Património & Universidade de Coimbra, 2014, p. 6); “4.4.15 - Do the
management and conservation programmes at the World Heritage property help develop local exper-
tise? A capacity development plan or programme is in place and partially implemented; some technical skills
are being transferred to those managing the property locally but most of the technical work is carried out by
external staff” (Direção-Geral do Património & Universidade de Coimbra, 2014, p. 7); “4.8.2 - Are key in-
dicators for measuring the state of conservation used to monitor how the Outstanding Universal Value
of the property is maintained? Information on the values of the World Heritage property is sufficient and key
indicators have been defined but monitoring the status of indicators could be improved” (Direção-Geral do
Património & Universidade de Coimbra, 2014, p. 8).

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sociedade. Todos os esforços imprimidos, com papel de destaque para a UNESCO, para
que este bem público mundial assuma um papel de relevo, não só na vida das pessoas mas
também no âmbito das decisões políticas, tornam-se escassos quando nos confrontamos
com muitos aspetos da realidade. O património arquitetónico e urbano e a sua gestão
podem ser exemplos dessa observação.
Posto isto, compreender a praxis que sustenta os protocolos e os compromissos assu-
midos por quem tem as responsabilidades e as competências da gestão destes sítios clas-
sificados, tendo em conta os valores que são reconhecidos e pertencentes de toda uma
comunidade, apresenta-se com atual interesse científico.
Promover uma reflexão sobre o modo como se tem encarado a problemática da gestão de
bens culturais e naturais, será capaz de melhor informar a comunidade, que com maior cons-
ciência crítica e ação cívica e conhecimento, poderá participar mais ativamente nas decisões
que afetam todos. A urgência de se proporcionar este debate torna-se evidente quando todos
os dias, são impostos desafios ao sistema de gestão dos bens patrimoniais – tanto ao nível da
sua proteção, como ao nível do uso, ou da reabilitação, do desenvolvimento e/ou do turismo.
No entanto, tais desafios não devem ser descurados desse exercício diário, de modo
a que não fique comprometido o reconhecido valor patrimonial e a sustentabilidade do
próprio sítio. Uma profunda convicção de que a educação é o caminho óbvio a seguir,
como expressava António Damásio, coexiste com a tentativa – que este artigo assume –
em investir no conhecimento deste tópico, que claramente se ergue a partir dos valores
humanos, de liberdade e de paz, também partilhados pela UNESCO.
Concluímos, assim, com a oportunidade do pensamento de Tomás Maldonado, tendo

555 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
em conta que a consciência crítica é efetivamente o móbil fundamental da praxis que antecipa
o futuro; objetivando na expectativa de que esse futuro será melhor do que o presente que
conhecemos hoje.

Resumo

O propósito deste trabalho salienta a reflexão sobre a capacidade de adaptação dos mo-
delos de gestão escolhidos para cada bem a inscrever, ou já inscrito, na Lista do Património
Mundial da UNESCO (LPM) e a sua implementação tendo em conta a necessidade ope-
rativa de cada caso.
Desde 2005 que as orientações técnicas para a implementação da Convenção do
Património Mundial determinam que cada Estado-parte deve incluir um plano de gestão
nas suas candidaturas formais de inscrição de bens na Lista do Património Mundial.
A partir do caso da Universidade de Coimbra - Alta e Sofia (UC-AS), é analisado o
modelo de gestão que foi apresentado ao Comité do Património Mundial da UNESCO,

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validado com o reconhecimento do Valor Universal Excecional (VUE) e consequente ins-
crição da UC-AS na LPM, em 22 de junho de 2013.

Palavras-chave: Lista do Património Mundial da UNESCO (LPM); sistema de gestão; agen-


tes; plano de gestão; instrumentos de gestão; Universidade de Coimbra - Alta e Sofia (UC-AS).

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Anúncio n.º 14917/2013, de 5 de dezembro - Torna pública a inscrição da Universidade de


Coimbra - Alta e Sofia - na Lista do Património Mundial da UNESCO, publicado em Diário
da República n.º 236/2013, Série II de 05/12/2013, p. 35172-35173. In https://dre.pt/dre/
detalhe/aviso/14917-2013-1016268
Anúncio n.º 175/2013, de 15 de maio - Projeto de Decisão relativo à classificação como conjunto de
interesse nacional (MN) do conjunto da Universidade de Coimbra - Alta e Sofia, em Coimbra, fre-
guesias de Almedina, Santa Cruz e Sé Nova, concelho e distrito de Coimbra, publicado em Diário
da República n.º 93/2013, Série II de 15/05/2013, p. 15403-15404. In https://dre.pt/dre/
detalhe/anuncio/175-2013-2889718

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Anúncio n.º 5286/2011, de 20 de abril - Abertura do procedimento de classificação, no grau de inte-
resse nacional, da Universidade de Coimbra Alta e Sofia, cidade, concelho e distrito de Coimbra,
e fixação da respectiva zona especial de protecção provisória, publicado em Diário da República
n.º 78/2011, Série II de 20/04/2011, p. 17887-17887. In https://dre.pt/dre/detalhe/
anuncio/5286-2011-869872
Aviso n.º 2129/2012, de 10 de fevereiro - Regulamento Municipal de Edificação, Recuperação
e Reconversão Urbanística da Área afeta à candidatura da Universidade de Coimbra a
Património Mundial da UNESCO, incluindo a Zona de Proteção, publicado em Diário
da República n.º 30, II série, de 10/02/2012, p. 5089-5096. In https://dre.pt/dre/detalhe/
aviso/2129-2012-1336343
Aviso n.o 7635/2014, de 1 de julho - 1.a Revisão do Plano Diretor Municipal de Coimbra, publicado
em Diário da República n.º 124/2014, Série II de 01/07/2014, p. 17016-17040. In https://
dre.pt/dre/detalhe/aviso/7635-2014-25682422
Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de maio - Regime excepcional de reabilitação urbana para as zonas his-
tóricas e áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, publicado em Diário da República
n.º 107/2004, Série I-A de 07/05/2004, páginas 2920- 2929. In https://dre.pt/dre/detalhe/
decreto-lei/104-2004-301786
Decreto-lei n.º 309/2009, de 23 de outubro – Estabelece o procedimento de classificação dos bens
imóveis de interesse cultural, bem como o regime das zonas de proteção e do plano de pormenor de
salvaguarda, publicado em Diário da República n.º 206/2009, Série I de 23/10/2009, p. 7975-
7987. In https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-lei/2009-75525223
Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro - Lei de Bases do Património Cultural, publicada em Diário da
República n.º 209/2001, Série I-A de 08/09/2001, p. 5808-5829. In https://dre.pt/dre/
legislacao-consolidada/lei/2001-72871514
Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro - Regime jurídico das autarquias locais, publicada em
558 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Diário da República n.º 176, I série, de 12/09/2013, p. 5688-5724. In https://dre.pt/dre/


legislacao-consolidada/lei/2013-56366098

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V. SOCIEDADE E TERRITÓRIO
II. II

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Homenagem à supremacia branca na
Região da Guerra do Contestado: uma
análise dos monumentos da Praça do
Conhecimento, em Videira/SC/Brasil

Nilson Cesar Fraga1


Angela Zatta2
Diego da Luz Rocha3

Introdução: o Contestado Caboclo que vem sendo obliterado

Emoldurada nas janelas, estende-se até onde o olhar alcança, a paisagem. Inscrita no
espaço com a intencionalidade característica das ações humanas e sociais, paisagens são
percebidas de diferentes formas, dado que podem ser objeto de um investimento afetivo
mais ou menos profundo (Claval, 2012). Ao se questionar sobre a afetividade inscrita
e percebida nas paisagens, Claval (2012) aponta que as motivações para construção de

561 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
monumentos na paisagem são variadas, tais como: “o fato de eles serem lugares de culto,
de simbolizarem o poder que neles está instalado, de lembrarem momentos gloriosos ou
dolorosos da história de uma coletividade” (Claval, 2012, p. 265). Logo, entende-se que as
paisagens não foram construídas cegamente, mas planejadas para o futuro. 
Levar em consideração os planejamentos é indispensável para a compreensão
das paisagens. Pouco importa que a organização resultante seja permanente ou tran-
sitória: o que importa é o que essa organização evidencia quanto às preocupações que
a motivam e às aspirações às quais ela responde (Claval, 2012, p. 266).

1
Pesquisador do CNPq, Universidade Estadual de Londrina - DGEO/UEL, Universidade Federal de
Rondônia - PPGG/UNIR, Coordenador do Observatório da Região e da Guerra do Contestado - ORGC/
UEL, Coordenador do Laboratório de Geografia, Território, Meio Ambiente e Conflito, Doutor em Meio
Ambiente e Desenvolvimento. E-mail: ncfraga@uel.br
2
Escritora e Editora, Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC, Bacharela em Administração,
Pós-Graduanda em Letras e Letramento – FAVENI. E-mail: angela@editoraexito.com.br
3
Doutorando em Geografia, Bolsista do CNPq, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail:
rochageologia@gmail.com

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Ao considerar as preocupações e motivações impressas na paisagem urbana de Videira/
SC, chamam a atenção os monumentos localizados na Praça do Conhecimento, especial-
mente as estátuas dedicadas aos colonizadores e aos povos originários. A cidade, localizada
na região do Contestado, em Santa Catarina, tem sua área central cortada pelo Rio do
Peixe, ao lado do qual foi construída a Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande no início
do século XX. A ferrovia em questão se mostra como um dos principais motivos para a
exploração e expropriação de terras na década de 1910 ou para a apropriação capitalista
do Contestado, culminando com um conflito armado de mais de quatro anos de duração,
ceifando milhares de vidas, e que se estende simbolicamente até o presente.
Os monumentos aos povos indígena e caboclo possuem diferenças significativas diante
dos demais. Para Correa (2007, p.15) os monumentos e sua localização podem dar visibili-
dade às oposições e conflitos sociais, “seja marcando posição de supremacia racial e social,
seja porque traduzem a contestação de um grupo face a outro”.

A praça do conhecimento: projeto e monumentos

As relações de poder expressas pela colonização persistem, se expressam e moldam as


representações sociais sob o viés da elite burguesa local. Silva et al (2021) indicam que nar-
rativas, discursos políticos, projetos de poder e ideologias são alguns dos fatores que estão
por trás dos arranjos espaciais cotidianos, assim os discursos heróicos a partir de imagens
triunfais ganham destaque. Veschambre (2008) explica que estas imagens remontam à
ideia de um discurso oficial que ascende personagens, grupos ou acontecimentos à uma
562 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

centralidade simbólica que os espacializam através de monumentos e rituais. Os discursos


oficiais se constroem através de políticas públicas, da relação entre o público e o privado
que cria a paisagem, e marcam uma retórica imagética a partir de moldes referenciados
ao heroísmo (Silva et al, 2021). Em Videira, as referências ao herói colonizador podem
ser identificadas em numerosos pontos da paisagem urbana, especialmente na Praça do
Conhecimento.
Às margens da EFSPRG, estende-se em Videira/SC, o Parque do Rio do Peixe, projeto
arquitetônico e paisagístico que planeja interligar todos os municípios cortados pelo referi-
do Rio através de parques, praças e ciclovias. A obra faraônica teve seu pontapé inicial em
Videira/SC, em 2012, com a aprovação do projeto executivo pela Prefeitura Municipal, e
teve sua primeira etapa inaugurada em março de 2014: a Praça do Lazer, que substituiu a
linha férrea na área de manobras dos trens, localizada no Bairro Farroupilha. Desde então,
as obras do parque se estenderam por aproximadamente 1,5 km com pista de caminhada,
ciclovia, playgrounds, espaços de lazer, lanchonetes, cafés, lojas de artesanato, adega e
praças. 

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A última etapa construída, chamada de Praça do Conhecimento, está localizada no
Bairro Centro, nas proximidades da antiga ponte férrea. Segundo o projeto,
Ideia - Praça voltada à educação, à ciência e à história de Videira. Situada
entre dois símbolos históricos do crescimento econômico da cidade - frigorífico,
berço da Perdigão, hoje BRF e a antiga cantina (Vinícolas) - a praça fortalece a
identidade cultural herdada dos povos nativos indígenas e caboclos bem como os
imigrantes italianos e alemães que fundaram a cidade. (Projeto Parque Do Rio Do
Peixe, s/d)

Para dar conta de unir o conhecimento e a cultura herdada pelos povos que formaram
a cidade, o projeto da praça previu oito espaços: (1) um monumento, (2) uma homenagem
aos imigrantes, (3) uma rosa dos ventos, (4) brinquedos educativos, (5) um espaço poesia,
(6) lanchonete, (7) local para educação ambiental e (8) mirante. O projeto pode ser visto
na Figura 1.

563 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1 – Projeto da Praça do Conhecimento em Videira/SC


Fonte: Parque do Rio do Peixe (site). Reprodução

Ainda segundo o projeto, seria criado um local de homenagem aos imigrantes. Em


seu site, lê-se que “o espaço simbolicamente dividido pelo espelho d’água, que representa
o Rio do Peixe, homenageia na margem esquerda os italianos que construíram a Vila de
Perdizes e na margem direita os alemães que formaram a Vila de Victória”, conforme se
observa na figura 2. 

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Figura 2 – Vista da Praça do Conhecimento em Videira/SC com destaque aos monumentos aos imigrantes
Fonte: Diego Rocha, 2022

Para Rowntree e Conley (1980) os monumentos são criados com intencional sentido
político, capazes de sintetizar significados complexos em torno de valores e práticas, ao
mesmo tempo em que atuam como mecanismos regulatórios de informações e significa-
dos. São formas simbólicas dotadas de funções descritas por Correa como:
i - Perpetuar antigas tradições consideradas positivas, tanto para o presente
como para o futuro;
564 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ii - Fazer parecer antigo aquilo que é novo e considerado necessário para o pre-
sente e o futuro. A força da tradição, mesmo inventada, asseguraria alcançar os
objetivos desejados.
iii - Transmitir valores de um dado grupo como se fossem de todos. Esses
grupos podem ser religiosos, étnicos, raciais e sociais.
iv - Afirmar a identidade de um grupo religioso, racial ou social. Neste
caso, como no anterior, relações de poder estão presentes na concepção e
construção de monumentos.
v - Glorificar o passado, acentuando os seus valores, pensando no presen-
te e mesmo no futuro.
vi- Sugerir que o futuro já chegou, sendo portador de novos sentidos,
vinculados, via de regra, ao progresso e à harmonia social, construídos
pelos grupos socialmente poderosos do presente.
vii - Criar “lugares de memória”, cuja função é a de coesão social em torno de
eventos de um passado comum (CORREA, 2007, p. 26).

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Como componentes do espaço urbano, monumentos e a paisagem são carregados de
elementos que ultrapassam a percepção sensorial para atingir camadas mais intensas da
subjetividade (Andreotti, 2013). Todos os elementos que formam a paisagem carregam
intencionalidades e componentes capazes de produzir a paisagem de modo que convergem
para formar o território como elementos geossimbólicos (Costa, 2010) formulados a partir
das narrativas oficiais ou populares disseminadas no tempo, na memória e na identidade
local. Assim, emergem na paisagem imagens de modelos a serem seguidos, em que a ima-
gem do herói, salvador da pátria ou santo simboliza a força, a coragem e a esperança por
sua história de aventura, enfrentamentos e superação (Silva et al, 2021). Previstos na etapa
inicial, os monumentos aos colonizadores sintetizam a ideia da imagem heróica calcada na
história oficial local, em que o colonizador (branco e europeu) seria o responsável por tra-
zer o progresso ao sertão inóspito e inculto onde habitavam secularmente povos indígenas,
caboclos e quilombolas.
Para Gross (2017) o caboclo do Contestado resulta da mistura étnica entre indígenas,
negros e brancos que aportaram na região Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná
por diferentes motivos, construindo um modo de vida rico e diverso. A região considerada
“oficialmente despovoada” pela Coroa no século XVIII, abrigava muitas etnias, a exemplo
dos povos Kaingang (Goularti Filho, 2002) que, ao resistir à captura pelos bandeirantes se
tornaram mão de obra aos primeiros fazendeiros da região e tropeiros. Para Gross (2017,
p. 55) “pelo fato de terem um contingente maior de indígenas nessa região, o processo de
miscigenação e/ou branqueamento também foi maior e mais contundente, dando início a
outra formação étnica que é o povo caboclo”.

565 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Até um século atrás, a identidade cabocla do Contestado ia sendo estruturada
fundamentalmente a partir de uma experiência de vida comunitária e numa relação ín-
tima com a natureza. Desconsiderando o processo de colonização baseado na violência
promovida a partir das grandes fazendas de criação de gado e da cultura liberal capi-
talista, o povo do Contestado formava pequenas comunidades e vivia segundo valores
herdados das culturas indígenas, africanas e europeia-cristã (Tomazi, 2005, p. 98).

Apesar do discurso oficial de que a construção da EFSPRG iria “trazer desenvolvimen-


to ao sertão”, a população cabocla se viu sumariamente ignorada. Com a República im-
pulsionando o desenvolvimento regional através de acordos e investimentos estrangeiros, o
caboclo do Contestado foi desconsiderado legalmente, forçado a abandonar seu território
ocupado há décadas (do qual não havia posse legal) e desumanizado pela mídia ao ser re-
tratado como uma figura ora preguiçosa e pouco afeita ao trabalho, ora violenta e fanática.
A ideia do fanatismo é atribuída à devoção aos Monges que peregrinavam pelo sertão,
levando ao povo caboclo o alento e a orientação negados pela Igreja Católica, à serviço das

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elites. João Maria, o monge, o santo, “surpreende todos quantos estudam ou procuram
entender a vida de São João Maria: esse ‘santo’ não foi um homem, foram dois que con-
fundiram e entrelaçaram suas vidas para se tornarem apenas um santo” (Fraga, 2017, p.
57). Os Monges atuavam como curandeiros através de chás e remédios retirados da flores-
ta, batizavam, benziam, oravam e aconselhavam a população cumprindo o papel de guia
espiritual (Gross, 2019). Entretanto, de acordo com Welter (2007) supor que a Guerra do
Contestado tenha cunho religioso é um recurso para escamotear os verdadeiros interesses
por trás do conflito - interesses econômicos.
Uma vez que a Southern Brazil Lumber and Colonization Company tinha interesses em
explorar a área de floresta que lhe coube como pagamento pela construção da ferrovia, tratou
de expulsar de seus domínios os moradores locais que não tivessem em mãos um título de
propriedade, ignorando a Lei de Terras de 1850, com aval do Estado. Para tanto, criou seu
próprio corpo de segurança, formado por 200 homens armados (Fraga, 2010). Esta milícia
formada por jagunços, começou a “limpeza da terra” para fins de exploração e colonização.
Para fugir da morte, centenas de caboclos passaram a viver sob os cuidados de José
Maria, homem que deu continuidade ao papel de João Maria na região através de curas e
orientações. Nos redutos formados mata adentro, a população encontrou abrigo e apoio
de José Maria para resistir e se defender dos ataques promovidos pela Companhia, além de
viver em comunidade de forma igualitária e compartilhada.
Não duvidamos que os ensinamentos dos monges, sobretudo do Zé Maria,
que diz, quem tem mói, quem não tem mói também e no fim todos ficam iguais,
566 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

seja a frase que melhor explicita o mundo e a índole cabocla, pois os caboclos e
as caboclas do Contestado eram bons e queriam o bem, pois suas casas tinham
portas, mas não tinham tramelas – esse é um traço de permanência da cultura ca-
bocla, que vivenciamos todas as vezes que estamos pelo Contestado (Fraga, 2012,
p. 11-12).

Depois de quatro anos de guerra civil e mais de 20.000 mortos (Fraga, 2006), as
terras do Contestado caminhavam para sua completa “limpeza”, permitindo o início
da colonização. A legislação previu o privilégio de colônias mistas e do povoamento
por meio da ação empresarial, um modelo característico da ocupação do planalto ca-
tarinense e paranaense. Mas mesmo que a legislação e os debates nacionais elencassem
a importância do modelo misto, que incluiria a participação de nacionais, na prática,
o povoamento destas áreas reuniu descendentes de imigrantes europeus oriundos de
colônias mais antigas em colônias onde inexistia a presença dos nacionais, supostos
como elemento fundamental para uma rápida assimilação dos colonos e ao mesmo
tempo “os alvos de um imaginado processo civilizatório conduzido pelos europeus”

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(Seyferth, 2002, p.138). Assim, não é difícil compreender que a população cabocla
pré-existente na região fosse alvo dos mesmos princípios civilizatórios e discursos ra-
ciais que instruíra os postulados sobre a imigração europeia: a desqualificação do ca-
boclo por intermédio de estigmas relacionados à mestiçagem, mantendo-os à parte do
processo colonizador, em posição de inferioridade pelo sangue indígena e tendência
ao nomadismo (Seyferth, 2002).
A desqualificação do caboclo, como será vista adiante, está intimamente ligada ao he-
roísmo impresso aos monumentos dedicados aos colonizadores. Concluídos em fevereiro
e maio de 2021, os monumentos aos colonizadores italianos e alemães, respectivamente,
já se encontravam instalados quando da inauguração oficial da Praça do Conhecimento,
conforme se observa na figura 3.

567 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Figura 3 – Vista dos monumentos aos colonizadores na Praça do Conhecimento em Videira/SC
Fonte: Diego Rocha, 2022

O monumento aos imigrantes italianos é formado por quatro pessoas (figura 4), sendo
dois adultos e duas crianças, dois elementos do gênero masculino e duas do feminino,
todos em pé e em posições de movimento. Três deles carregam nos braços insumos agrí-
colas (uva e trigo) e o último, menor, segura um objeto que lembra um livro ou caderno
escolar enquanto segura a manga da mulher adulta em uma demonstração de familiari-
dade. A obra, que facilmente é reconhecida como uma família composta por pai, mãe e
um casal de filhos, está situada em uma elevação de 1,30 metro de altura, com seu maior
personagem (o homem adulto) com altura de 2,40 metros.

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Figura 4 – Monumento ao imigrante italiano em Videira/SC 
Fonte: Diego Rocha, 2022

Enquanto o monumento ao imigrante italiano faz alusão ao trabalho agrícola, o mo-


numento dedicado ao imigrante alemão faz alusão ao comércio, à educação e às artes. A
obra é composta, novamente, por quatro indivíduos: dois adultos e duas crianças, dois
representantes do gênero masculino e duas do feminino. Embora não estejam todos em
pé, os quatro elementos estão em ação, seja o homem adulto executando um trabalho de
carpintaria, seja a mulher adulta representando uma professora que ensina a menina, seja
no menino tocando bandoneón. Tal como o anterior, este monumento está situado em
568 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

um terreno elevado (figura 5), com altura de cerca de 1,5 metro e tem seu maior elemento
(o homem adulto) com 2,44 metros de altura. 

Figura 5 – Monumento aos imigrantes alemães em Videira/SC


Fonte: Diego Rocha, 2022

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Seja em função da altura, seja em função da elevação do terreno, qualquer observa-
dor que estiver caminhando na Praça do Conhecimento observará os monumentos aos
colonizadores de baixo para cima, uma estratégia que simboliza a grandeza do povo re-
presentado e da colonização. Ambos os monumentos estão situados em uma área livre de
outros elementos da paisagem, em um local projetado para sua colocação, para que não
haja interferências na visualização. Desta forma, são visíveis por todos os ângulos da Praça.
Muito diferente é a representação dos outros monumentos, denominados pelo Poder
Público como “povos originários”, que representam os povos indígenas e caboclos que
vivem na cidade e na região. Como pode ser visto na figura 6, nenhum destes monu-
mentos fazia parte do projeto original. Inseridos depois de um intenso debate acerca da
mudança do nome da Região Turística do Vale do Contestado para Vale dos Imigrantes,
os monumentos foram inaugurados em março de 2022, ocupando o espaço indicado na
figura 7 como Espaço Poesia, onde nada foi construído anteriormente. 
O monumento dedicado aos povos indígenas apresenta uma única personagem: uma
mulher indígena estereotipada e sexualizada. A representante dos povos indígenas se encontra
de joelhos, trabalhando no soque do pilão, com os seios ultrapassando o tecido que lhe cobre
a região íntima. Localizada em um terreno plano, a mulher indígena de etnia indeterminada
possui 1,47 metro de altura e o maior elemento da obra (o socador) atinge 1,60 metro.

569 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figuras 6 e 7 – Monumento aos povos indígenas em Videira/SC


Fonte: Diego Rocha, 2022

O último monumento, referente ao povo caboclo, apresenta um homem sentado em


um tronco de árvore, tomando chimarrão enquanto um cachorro descansa aos seus pés. O

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 569 20/06/2023 16:47:04


animal e a posição do caboclo, com pernas cruzadas e uma mão apoiada na chaleira, indi-
cam um momento de relaxamento. Localizado em um terreno levemente elevado em rela-
ção à calçada, o caboclo tem uma altura de 1,62 metros, como se observa nas figuras 8 e 9.

Figuras 8 e 9 – Monumento ao povo caboclo em Videira/SC


Fonte: Diego Rocha, 2022

Os monumentos aos povos indígena e caboclo possuem diferenças significativas diante


dos demais. Para Correa (2007, p.15) os monumentos e sua localização podem dar visibili-
570 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

dade às oposições e conflitos sociais, “seja marcando posição de supremacia racial e social,
seja porque traduzem a contestação de um grupo face a outro”.
Alguns pontos devem ser agora sistematizados. O primeiro refere-se à localiza-
ção dos monumentos. A despeito dos templos terem a visibilidade e a acessibilidade
garantidas em virtude de suas dimensões e do poder de atração que exercem sobre
os fiéis, a localização, especialmente para os demais monumentos, é de fundamental
importância, pois a visibilidade e a acessibilidade maximizadas garantem a maximi-
zação da capacidade de comunicarem aquilo que deles se espera. (...) Além do seu
caráter absoluto, referente ao sítio do monumento, e de seu caráter relativo, referente
à acessibilidade face aos espaços sociais e econômicos da cidade, a localização apre-
senta um caráter relacional que inclui os significados que foram construídos a seu
respeito pelos diversos grupos sociais (Correa, 2007, p. 19).

Em termos de localização, vê-se que os monumentos dedicados aos colonizadores


ocupam a porção frontal da Praça, visíveis aos cidadãos que circulam por dentro ou por

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fora do espaço. Na perspectiva de quem está na Praça, os elementos paisagísticos pre-
sentes na calçada conduzem o olhar e a circulação para sua admiração, visto que estão
imediatamente ao lado dos espaços de passeio. Estes monumentos estão em sinergia aos
demais elementos da praça, a exemplo da rosa dos ventos que aponta para o Norte em
uma linha reta para coincidir com o espelho d’água que divide as duas obras. Enquanto
isto, os monumentos aos povos caboclo e indígena se localizam fora da área de circula-
ção, sem calçada ou elementos que conduzam os observadores até eles ou direcionem
sua admiração. O caboclo, mais próximo ao passeio, visto da rosa dos ventos, se localiza
em uma posição entre o Oeste e o Nordeste, ou seja, em um local para onde nenhuma
linha reta o conduz ou conecta com os demais elementos. Já a indígena se localiza em
um afastamento ainda maior, há cerca de três metros da calçada principal, sem que
haja novas áreas para pisar ao se aproximar. Para atingir o monumento aos indígenas, o
observador literalmente pisa na grama, um ato não recomendado em muitas praças ao
redor do mundo. Além disso, enquanto os monumentos aos colonizadores se localizam
em campo aberto, o caboclo e a indígena se confundem à paisagem natural, já que estão
imediatamente à frente ou abaixo das árvores.
O segundo ponto sistematizado por Correa (2007) diz respeito à escala, entendida
tanto como a dimensão absoluta (área, volume, altura do monumento), como à dimensão
relacional em comparação com monumentos da mesma natureza. “A escala, assim quali-
ficada, expressa poder e, mais do que isto, pode expressar supremacia” (Correa, 2017, p.
20). Em termos de escala, vê-se que o monumento aos colonizadores possui dimensões
absolutas maiores do que os demais, devendo-se ainda somar ao fato de sua localização

571 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
contar com uma elevação no terreno. Enquanto o monumento dedicado aos povos indí-
genas é menor que seu instrumento de trabalho e possui a altura total equivalente a média
de um adulto (1,60 m), e o monumento aos caboclos não lhe ultrapassa tanto (1,62 m),
aqueles dedicados aos colonizadores chegam a atingir uma altura total de 3,70 m (italia-
nos) e 3,94 m (alemães). Como se a expressão de poder não fosse o suficiente, os referidos
povos originários são facilmente alcançáveis, enquanto os colonizadores só podem ser al-
cançados depois de superar o obstáculo da íngreme subida de cerca de 1,5 metro que os
elevam do solo.
Para melhor visualização à distância, foram circulados os monumentos aos povos in-
dígenas e caboclos na figura 10.

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Figura 10 – Vista da Praça do Conhecimento em Videira/SC com destaque aos monumentos aos indígenas e caboclos
Fonte: Diego Rocha, 2022

O terceiro ponto sistematizado por Correa (2007) refere-se à interconexão entre prá-
ticas de afirmação ou contestação política. Os monumentos discutidos neste artigo foram
criados em um ambiente em que prevalece, na história oficial e no entendimento do Poder
572 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Público, o culto aos colonizadores e o apagamento aos povos tradicionais. Logo, não causa
espanto notar que as obras que adornam a Praça do Conhecimento simbolizam o isola-
mento social indígena e incutem valores relativos à preguiça e pobreza do povo caboclo,
enquanto os colonizadores interagem em família, executam trabalhos com importância
econômica local e representam, desde sua concepção, elementos ligados à civilização e
erudição da burguesia local formada após a colonização. Próximos ao monumento que
representa um átomo, os colonizadores estão mais perto do futuro, enquanto o indígena
está fora do caminho, próximo ao Rio do Peixe, e o caboclo se esconde sob as árvores.
Sozinhos, caboclo e indígena negam simbolicamente sua vivência, uma vez que ambos,
como povos tradicionais, têm seu modo de vida fundamentado nas práticas coletivas.

Romper o apagamento para ser apagado outra vez

A construção de patrimônios históricos nacionais é, segundo Fonseca (2005), uma ca-


racterística dos Estados modernos, capazes de gerar uma demanda por políticas oficiais de

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preservação e de atuar no nível simbólico como reforço às identidades coletivas e formação
cidadã ao eleger as narrativas oficiais como celeiro das projeções heróicas.
No espaço cada vez mais artificial, povoado por sistemas de ações também imbuídos de
artificialidade com tendência a fins estranhos ao lugar e seus habitantes, o mundo humano
se estabelece e interagem com uma natureza cada vez mais desnaturalizada (SANTOS,
2013). Objetos contemporâneos, a exemplo destes monumentos aparecem dotados de in-
tencionalidade (mercantil ou simbólica) e representam sistemas técnicos dotados de uma
força “capaz de invadir qualquer outro sistema já instalado, estabelecendo sobre a face da
terra uma área de combate que é, ao mesmo tempo, a base da dinâmica e o substrato da
dialética do espaço” (Santos, 2013, p. 87).
Objetos e ações contemporâneos são, ambos, necessitados de discursos. Não há
objeto que se use hoje sem discurso, da mesma maneira que as próprias ações tam-
pouco se dão sem discurso. O discurso como base das coisas, nas suas propriedades
escondidas, e o discurso como base da ação comandada de fora impelem os homens
a construir a sua história através de práxis invertidas (Santos, 2013, p. 87).

O discurso contemporâneo que perpassa a burguesia local acerca de temas como a co-
lonização e o Contestado, ou ainda, a colonização e os povos tradicionais, não é de difí-
cil identificação. Em 2019, a Secretaria de Cultura de Videira não apenas esteve envolvida
como ainda mediou a escolha do novo nome do grupo turístico Vale do Contestado, para
atualização do Mapa Turístico Brasileiro de 2019/2021. A Assembleia Geral Extraordinária
da Instância de Governança Regional do Vale do Contestado, realizada em 04 de julho de

573 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
2019, votou favorável à eliminação da Região Turística Vale do Contestado e aprovou o novo
nome: Região Turística Vale dos Imigrantes (Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Igr
Do Vale Do Contestado, 2019, p. 03) consagrando, literalmente, a figura dos colonizadores
na promoção da região. Vê-se, portanto, a mobilização do Poder Público para consagração
destas figuras heróicas, representantes das elites, em detrimento dos povos tradicionais.
O embate ao apagamento da Região do Contestado contribuiu para despertar no
Poder Público a necessidade de uma revisão. Pode-se sugerir que a inclusão dos monu-
mentos que homenageiam os povos tradicionais é uma resposta às críticas sucessivas em
âmbitos público e acadêmico? Supõe-se que sim, a julgar por sua ausência no projeto ori-
ginal. Pode-se indagar que a presença dos dois monumentos contribui para o rompimento
da barreira entre colonizadores e povos tradicionais? Não. Apesar de ocupar o mesmo
espaço, os monumentos não coexistem. Não há elementos arquitetônicos e paisagísticos o
suficiente para conectar o indígena ao caboclo, o indígena aos colonizadores, o caboclo ao
indígena ou o caboclo aos colonizadores. Através da posição e da representação do espelho
d’água, apenas os colonizadores apresentam uma relação entre si. A composição criada

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pelo escultor Werner Thaler indica que, apesar de existirem, os povos retratados estão em
posição de inferioridade diante dos colonizadores, especialmente do elemento alemão, que
é o maior entre todos; isolados enquanto os outros estão em grupo; fora do eixo principal,
mesclando-se à vegetação, contra o que está visível para assimilação. Não há rompimento
de qualquer barreira, não há correção a qualquer apagamento porque não há igualdade.
No mundo dividido, o colono continuará sempre um estrangeiro no território e ainda
que seu discurso seja identificado como universal, trata-se de uma “afirmação desenfreada
de uma singularidade admitida como absoluta” (Fanon, 1968, p.30) que, em última ins-
tância, desumaniza o colonizado para torná-lo um animal. Para o autor, o colonialismo
produziu a inferioridade do colonizado que, derrotado e dominado, acabou internalizan-
do e aceitando a ideia (Fanon, 2008). Desta forma, o colonizador estrutura a colonização
e justifica sua intervenção sustentado pelo racismo ao fazer ver sua ação colonizadora como
um benefício e não como violência através da difusão ideológica da tal superioridade do
colonizador. Como resultado estão a alienação colonial, a construção mítica da relação
entre colonizador e colonizado em que o primeiro é o herdeiro legítimo dos valores civili-
zatórios universais e o segundo é um selvagem primitivo (Cardoso, 2014).
As ideias de assimilação e alienação fundamentam a teórica democracia racial brasileira
vista por Gonzalez (1988a, p. 137) como “um dos mais eficazes mitos de dominação”. É
a partir dela que o racismo disfarçado se manifesta no Brasil, impedindo a criação de uma
consciência objetiva de seus males e implicações. Para Gonzalez (1988b, p.73), no racismo
latino-americano, a alienação é alimentada pela ideologia do branqueamento e produz “o
desejo de embranquecer (de ‘limpar o sangue’, como se diz no Brasil)” que é “internalizado
574 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura”.

Considerações finais: apagamento que seguem por meio das ações


da supremacia branca no Contestado

Homenagens às avessas marcam os monumentos presentes na Praça do Conhecimento,


em Videira/SC. Homenagens carregadas de ideologias de superioridade e remendos a um
projeto com diversos aspectos questionáveis estão dispostas no gramado de uma Praça que
recebe centenas de famílias ao longo das semanas, seja para praticar um exercício físico,
seja para levar as crianças brincar. Monumentos podem ser objetos de disputa entre grupos
distintos, submetidos a interpretações que revelam sua natureza política (Correa, 2007).
Criados em um contexto social e político que floresce com manifestações de valo-
rização à cultura cabocla, aos agentes sociais envolvidos no processo de contratação e
criação dos monumentos cabe uma reflexão aprofundada sobre a simbologia presente na
Praça do Conhecimento. Aos militantes da cultura cabocla e indígena e de todos os povos

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tradicionais retratados ou não em monumentos, cabe continuar a luta, a maior destes
tempos, contra o apagamento. Afinal, como afirmava Santos (2013, p. 87), nunca, como
agora, “houve necessidade de mais e mais saber competente, graças à ignorância a que nos
induzem os objetos que nos cercam e as ações de que não podemos escapar”.
A pressão da sociedade regional, principalmente das pessoas que lutam pela reinclusão
da sociedade cabocla e indígena no conjunto regional do Contestado, conseguiu incluir a
representação dos povos originários e tradicionais na dita Praça do Conhecimento, mesmo
que a indígena e o caboclo estejam à margem da praça, nas sombras das árvores que
margeiam o rio do Peixe, isso representa, de fato, uma vitória, afinal, ambos não estavam
representados no projeto original, apenas os grupos étnicos italianos e alemães que ocu-
param as terras caboclo-sertaneja-indígena nos pós-Guerra do Contestado. Mas, isso não
significa que o apagamento histórico tenha sido vencido, afinal, as ações da supremacia
branca no Contestado, ainda segue no seio da sociedade regional reterritorializada a partir,
sobretudo, de 1916.
Ao se analisar os monumentos em questão, tais assertivas sobre a homenagem à supre-
macia branca fica evidente na região da Guerra do Contestado, quando tentou se implan-
tar uma Praça do Conhecimento, desconsiderando os saberes-conhecimentos seculares
caboclo-sertanejos e milenares dos indígenas.
Há, no futuro, que se ampliar tais debates, aprofundando tais questões sobre o apa-
gamento, a invisibilidade e o silenciamento imposto aos povos originários e tradicionais
desta região do estado de Santa Catarina, mais precisamente, no Contestado.

575 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Resumo

Ao considerar as preocupações e motivações impressas na paisagem urbana de Videira/SC, cha-


mam a atenção os monumentos localizados na Praça do Conhecimento, especialmente as estátuas
dedicadas aos colonizadores e aos povos originários. O município, localizado na Região da Guerra
do Contestado, no estado de Santa Catarina, recolonizado no pós-guerra por imigrantes alemães e
italianos, tem sua área central cortada pelo Rio do Peixe, ao lado do qual foi construída a Estrada de
Ferro São Paulo - Rio Grande (EFSPRG) no início do século XX. A ferrovia em questão se mostra
como um dos principais motivos para a exploração e expropriação de terras na década de 1910
ou para a apropriação capitalista do Contestado, culminando em um conflito armado de mais de
quatro anos de duração, ceifando milhares de vidas, e que se estende simbolicamente até o presente.
Às margens da EFSPRG, estende-se em Videira, o Parque do Rio do Peixe, projeto arquitetônico
e paisagístico que planeja interligar todos os municípios cortados pelo referido Rio por meio de
parques, praças e ciclovias. A obra faraônica teve seu pontapé inicial em Videira, em 2012 – ano
do centenário do início da Guerra do Contestado –, com a aprovação do projeto executivo pela
Prefeitura Municipal, e teve sua primeira etapa inaugurada em março de 2014: a Praça do Lazer,
que substituiu a linha férrea na área de manobras dos trens, localizada no Bairro Farroupilha. Desde

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então, as obras do parque se estenderam por aproximadamente 1,5 km com pista de caminhada,
ciclovia, playgrounds, espaços de lazer, lanchonetes, cafés, lojas de artesanato, adega e praças. A úl-
tima etapa construída, chamada de Praça do Conhecimento, está localizada no Bairro Centro, nas
proximidades da antiga ponte férrea. Segundo o projeto, é uma Praça voltada à educação, à ciência
e à história de Videira. “Situada entre dois símbolos históricos do crescimento econômico da cidade
– o frigorífico, berço da Perdigão, hoje BRF, e a antiga cantina (Vinícolas) – a praça fortalece a iden-
tidade cultural herdada dos povos nativos indígenas e caboclos bem como os imigrantes italianos e
alemães que fundaram a cidade” (PROJETO PARQUE DO RIO DO PEIXE, s/d). Para dar conta
de unir o conhecimento e a cultura herdada pelos povos que formaram o município, o projeto
da praça previu oito espaços: (1) um monumento, (2) uma homenagem aos imigrantes, (3) uma
rosa dos ventos, (4) brinquedos educativos, (5) um espaço poesia, (6) lanchonete, (7) local para
educação ambiental e (8) mirante. Ainda segundo o projeto, seria criado um local de homenagem
aos imigrantes. Em seu site, lê-se que “o espaço simbolicamente dividido pelo espelho d’água, que
representa o Rio do Peixe, homenageia na margem esquerda os italianos que construíram a Vila de
Perdizes e na margem direita os alemães que formaram a Vila de Victória”. Daqui nasce a pergunta
central desta pesquisa: se a recolonização alemã e italiana possui 100 anos, como podem os poderes
públicos anularem a existência de grupo sociais que viviam na região secularmente – índigenas com
10 mil anos e caboclos com 260 anos de territorialização? Criados em um contexto social e político
que floresce com manifestações de valorização à cultura cabocla, aos agentes sociais envolvidos no
processo de contratação e criação dos monumentos cabe uma reflexão aprofundada sobre a simbo-
logia presente na Praça do Conhecimento. Aos militantes da cultura cabocla e indígena e de todos
os povos tradicionais retratados ou não em monumentos, cabe continuar a luta, a maior destes tem-
pos, contra o apagamento. Depois de relativa pressão dos movimentos sociais, os grupos indígenas e
caboclos foram incluídos na paisagem da Praça do Conhecimento. Mesmo assim, previstos na etapa
inicial, os monumentos aos colonizadores sintetizam a ideia da imagem heróica calcada na história
oficial local, em que o colonizador (branco e europeu) seria o responsável por trazer o progresso ao
576 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sertão inóspito e inculto onde habitavam secularmente povos indígenas, caboclos e quilombolas.
Os monumentos aos povos indígena e caboclo possuem diferenças significativas diante dos demais,
pois os monumentos e sua localização podem dar visibilidade às oposições e conflitos sociais, “seja
marcando posição de supremacia racial e social, seja porque traduzem a contestação de um grupo
face a outro” (CORREA, 2007, p. 19). Nunca, como agora, “houve necessidade de mais e mais
saber competente, graças à ignorância a que nos induzem os objetos que nos cercam e as ações de
que não podemos escapar” (SANTOS, 2013, p. 87).
Palavras-chave: Guerra do Contestado; Cultura Cabocla; Povos Originários; Supremacia;
Monumentos.

Abstract

When considering the concerns and motivations imprinted in the urban landscape of Videira/
SC, the monuments located in the Praça do Conhecimento stand out, especially the statues dedica-
ted to the colonizers and native peoples. The city, located in the Guerra do Contestado Region, in
the state of Santa Catarina, recolonized in the post-war period by german and italian immigrants,
has its central area crossed by the Rio do Peixe, next to which the São Paulo - Rio Grande Railroad
(EFSPRG) was built in the beginning of the 20th century. The railroad in question is one of the

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main reasons for the exploitation and expropriation of land in the 1910s or for the capitalist appro-
priation of the Contestado, culminating in an armed conflict that lasted more than four years,
claiming thousands of lives, and which extends symbolically into the present. On the banks of the
EFSPRG, the Parque do Rio do Peixe ectends into Videira, an architectural and landscape project
that plans to interconnect all the cities cur by the aforementioned river through parks, squares and
cycle paths. The pharaonic work kicked off in Videira in 2012 − the centenary year of the beginning
of the Guerra do Contestado −, with the approval of the executive project by the City Hall, and
had its first stage inaugurated in March 2014: the Praça do Lazer, which replaced the railway line
in the train maneuveting area, located in Bairro Farroupilha. Since the, the work on the park has
extended over approximately 1.5 km with a walking track, bike path, playgrounds, leisure spaces,
snack bars, coffee shop, handicraft stores, wine cellar and squares. The last stage built, called Praça
do Conhecimento, is located in Bairro Centro, close to the old railroad bridge. According to the
project, it is a square dedicated to education, science and history of Videira. “Located between two
historic symbols of the city’s economic growth − the meat industry, birthplace of Perdigão, today
BRF, and the old cantina (Wineries) − the square strengthens the dultural identity inherited from
the native indinegous peoples and caboclos as well as italian immigrants and germans who founded
the city” (PROJETO PARQUE DO RIO DO PEIXE, s/d). In order to unite the knowledge and
culture inherited by the people who formed the city, the square project included eight spaces: (1)
a monument, (2) a tribute to immigrants, (3) a compass card, (4) educational toys, (5) a poetry
space, (6) cafeteria, (7) place for environmental education and (8) gazebo. Also according to the
project, a place of homage to immigrants would be created. On its website, one reads that “the
space sumbolically divided by the water mirror, witch represents the Rio do Peixe, pays tribute on
the left bank to the italians who built the Vila de Perdizes and on the right bank to the germans who
formed the Vila de Victoria”. From here arises the central question of this research: if the german
and italian recolonization is 100 years old, how can the public authorities annul the existence of
social groups that lived in the region secularly − indigenous people with 10 thousand years and

577 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
caboclos with 260 years of territoralization? Raised in a social and political context that flourishes
with manifestations of valorization of cabocla coulture, the social agents involved in the process of
contracting and creating monuments are responsible for an in-depth reflection on the symbology
present in the Praça do Conhecimento. It is up to the activists of cabocla and indigenous culture
and of all traditional people portrayed or not in monuments to continue the fight, the greatest of
these times, against erasure. After some pressure from social movements, indigenous and caboclos
groups where included in the landscape of the Praça do Conhecimento. Even so, doreseen in the
initial stage, the monuments to the colonizers synthesize the idea of the heroic image based on the
official local history, in wich the colonizer (white and european) would be responsible for bringing
progress to the inhospitable and uncultivated hinterland where indigenous peoples, caboclos and
quilombolas lived for centuries. The monuments to the indigenous and caboclos peoples have sig-
nificant differences compared to the others, as the monuments and their location can give visibility
to oppositions and social conflicts, “whether marking a position of racial and social supremacy,
or because they reflect the contestation of one group against another” (CORREA, 2007, p. 19).
Never, as now, “has there been a need for more and more competent knowledge, thanks to the
ignorance that the objects that sorround us and the actions that we cannot escape induce us”
(SANTOS, 2013, p. 87).
Keywords: Contestado War; Cabocla Culture; Indigenous Peoples; Supremacy; Monuments.

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O silenciamento do escravo Prudêncio:
um artifício narrativo de denúncia social
e resistência negra

Marianna França Monteiro1

Introdução

O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado pelo autor realista Machado de
Assis, em 1881, narra as memórias do defunto Brás Cubas. As memórias são escritas em
primeira pessoa revelam a mediocridade da vida do narrador personagem enquanto ainda
vivo. O personagem Brás, é um homem branco, representante da classe dominante da
cultura elitista do Brasil no século XIX.
Ele, inquieto na vida após a morte, sente a necessidade de justificar a sua existência
escrevendo as suas memórias. Memórias essas inseridas em um contexto escravocrata, la-
tifundiário, monárquico e com profundas fissuras entre a elite dominante, classe pobre e

581 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
escravizados (Bosi, 2006).
Brás Cubas, pelo fato de estar morto, já não está mais inserido dentro do contexto da
elite e se sente confortável o suficiente para contar a história de sua vida sem máscaras so-
ciais. Ele descreve todos os seus pensamentos mesquinhos, frustrações amorosas, jogos de
sociabilidade, traições, prazer em fazer maldades e o uso e o abuso da hierarquia senhorial.
Ao longo do enredo conhecemos personagens apagados por esse contexto desigual, mas
que ilustram o dia-a-dia do aristocrata brasileira. Esses personagens representam a “minoria”
reprimida pela sociedade. Entre eles gostaria de chamar a atenção para o escravo de Brás
Cubas, Prudêncio. Prudêncio é apresentado no capítulo XI da obra como o cavalinho de
todos os dias do Brás Cubas de seis anos. O escravo é vítima de violência física e simbólica
do Brás criança. Um pouco antes do defunto apresentar o personagem escravo, ele faz ques-
tão de contar ao leitor que quando criança, era apelidado carinhosamente como “menino

1
Aluna do doutoramento em Discursos Cultura História e Sociedade da Universidade de Coimbra - marianna.
franca.monteiro@gmail.com

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diabo”, acompanhado de uma narrativa voluntariosa, Brás afirma que era uma das crianças
mais malignas de seu tempo, “arguto, indiscreto e traquinas” (Assis, 1994). Normalizando o
comportamento sem limites quando o assunto era maldade direcionada ao subalterno.
Não satisfeito, Brás descreve detalhadamente como ele montava em cima de Prudêncio,
trazendo a tona mais requintes de maldade e violência na narrativa:
Prudência, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixas, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com
uma varinha na mão, fustigava-o , dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia,
– algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um
– “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia – “Cala a boca, besta!” – (Assis, 1994)

Muitos significados podem ser retirados desse trecho específico, entre eles o da censura
da palavra - ordenada por uma criança - do oprimido estruturalmente. Além do significa-
do silencioso da narrativa machadiana, que tem como bases sólidas a ironia e a dissimula-
ção como artifício elegante de denúncia social. A crítica no trecho acima está pautada nas
várias dimensões do silêncio, da política do silêncio e do “não dito” visível por daqueles
que observam a narrativa e se deslocam até o lugar do oprimido, percebendo a brutalidade
da ação do Brás Cubas criança.
A descrição do ocorrido com o escravo é a visão do personagem branco, dentro da so-
ciedade escravocrata, onde existia normalização da violência e a desumanização do homem
negro. Apesar do negro (e outros personagens a margem da sociedade) aparecerem como
pano de fundo, dentro de uma narrativa maior no romance, onde o protagonista é o
582 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

repressor da população marginalizada. O escravo Prudêncio é um dos principais elemen-


tos da obra. Ele é a denúncia social, um artifício narrativo de resistência negra do autor
Machado de Assis. A palavra resistência negra é utilizada aqui, pois a narrativa parte da
visão do autor Machado de Assis, homem negro, representante da classe oprimida margi-
nalizadam, mas também intelectual renomado inserido dentro da elite brasileira.
Sendo assim, pretendo explorar a partir do capítulo XI, retirado da obra Memórias
Póstumas de Brás Cubas, a força do sentido do silêncio a partir da dimensão do “não dito”
(Orlandi, 2007) na narrativa machadiana, exemplificado no silenciamento do personagem
Prudêncio por Brás Cubas.
Conforme a linguista, Eni Orlandi (2007), há várias formas de significar silêncio.
Contudo, entender o silêncio vai além das dimensões políticas, é uma reflexão de linguagem.
Logo, a censura da fala de Prudêncio, no momento em que ele manifestava dor por ser galo-
pado, tem a intenção de não deixar o sentido da dor ser elaborado. O silêncio apreendido por
meio da ordem dada por Brás Cubas, “Cala a boca, besta!”, cena orquestrada narrativamente

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por Machado de Assis, é um artifício usado para elaborar o sentido negativo da violência feita
ao subalterno e denunciar a repressão sofrida pelo escravo.
O caso do silenciamento do escravo mostra que é possível traduzir o silêncio em pala-
vras e que é preciso “não dizer” para significar. O que gera um sentido de incompletude na
narrativa, dando espaço para a significação:
A incompletude é fundamental no dizer. É a incompletude que produz a possi-
bilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilida-
de. A linguagem empurra o que ela não é para o nada. Mas o silêncio significa esse
nada se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais
possibilidades de sentidos se apresentam. (Orlandi, 2007).

Eduardo de Assis (2020), no livro ‘Machado de Assis Afroascendente’, parte da pre-


missa que existe um pertencimento étnico do autor Machado de Assis traduzido em sua
literatura e inscrito na abordagem de temas envolvendo o retrato social do século XIX
no Brasil, “A obra machadiana expressa compromisso com o processo histórico e com as
questões que lhe eram contemporâneas”. De acordo com o estudioso, a ficção do autor é
a alegoria da história do Brasil.
Levando em consideração a premissa de Eduardo de Assis mais as questões do silêncio
e da incompletude necessário no dizer para significar, a hipótese desse trabalho é baseia-se
na ideia de que Machado de Assis utilizou os sentidos do “não dito” para significar e dar
voz um grupo marginalizado da sociedade brasileira do século XIX (escravos) através de
Prudêncio. Os deslizamentos do sentido do silêncio são produzidos nas relações entre

583 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
os personagens (Brás Cubas e Prudêncio) e tomam proporções maiores quando furam a
bolha do enredo do livro e procuram justificativas na origem do autor.
Machado mostra as dinâmicas de poder dentro da aristocracia e a violência da hie-
rarquização de detentores de patamares hierárquicos maiores. Usando como artifício a
narrativa de resistência, permeado de com referências cifradas e imagens veladas espe-
rando serem significadas pelo leitor. Há um processo de produção de sentidos dentro
da narrativa que apontam para a dimensão do “não dito”. Sendo que o “não dito” é o
movimento de ocultação e insinuação direcionando ao pertencimento afrodescendente
do autor “por entre as frestas de uma linguagem marcada por um processo dissimulador”
(Duarte, 2020).

Contexto Histórico

Da união do homem negro Franciso José de Assis e da portuguesa açoriana Maria


Leopoldina Machado da Câmara, nasceu, no dia 21 de julho de 1839, no Rio de Janeiro,

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Joaquim Maria Machado de Assis. Exatamente 31 anos após a chegada da corte portugue-
sa no Brasil (Bosi, 2006).
A realocação da corte portuguesa para o Brasil trouxe influências vindas diretamente da
Europa. Uma modernização imposta pela corte, baseada na medicina higienista (Muricy,
1988) novos costumes, vestimentas e arquitetura adentraram as casas dos aristocratas bra-
sileiros e os espaços públicos.
Para a aristocracia portuguesa e a burguesia industrial europeia, os senhores rurais
brasileiros igualavam-se à população em geral pela rudeza de seus hábitos e por seus
limites culturais. A condição para introduzir-se junto à aristocracia era aristocratizar-
-se, isto é, elevar o modus vivendi da família pela adoção dos costumes e dos valores
europeus, exigência indispensável para se obter um título nobiliárquico. Para as elites
brasileiras, enobrecer-se era imperativo. Questão de poderio político e econômico, a in-
trodução na aristocracia abria-lhes a máquina dos privilégios do Estado (Muricy, 1988).

Os hábitos arcaicos dos senhores rurais transformam-se em comportamentos com re-


quintes europeus. Não só por causa da medicina social, mas também devido à abertura dos
portos brasileiros para comércio e o intercâmbio cultural que a família real proporcionou.
Ademais, algumas das correntes teóricas importadas da Europa que visavam o “pro-
gresso”, pautavam a desigualdade e a hierarquização das raças, como, por exemplo, o
Darwinismo Social. Arthur Gobineau, defensor dessas teorias, diplomata e filósofo fran-
cês, foi um o responsável por escrever o ensaio sobre a desigualdade das raças humanas de
1855 e um dos disseminadores de teorias racistas no século XIX (Duarte, 2021)
584 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Sendo assim, graças a influência da corte portuguesa, as ideias de desigualdade de raças


mais a escravidão eram a base econômica e política da elite imperial brasileira:
A escravatura alicerça a ordem imperial, e a forma envergonhada com que é
admitida pelos setores pensantes – adeptos do liberalismo de fachada com que se
traveste, desde a Independência, a defesa do regime –, bem demonstrada o quanto
de hipocrisia de insere no discurso das elites. (Duarte, 2020)

Havia também uma pressão da Inglaterra para a libertação escrava e promessas de


Dom João VI, desde 1808, em prol da abolição. Contudo o processo em direção a liberta-
ção da escrava no Brasil foi lento, já que na visão da elite latifundiária, o fim da escravidão
significava uma ameaça a sua estrutura. O autor Machado de Assis cresce nesse contexto,
“[...] ambiente de flagrante rebaixamento da afrodescendência que o autor mulato neto de
escravizados e nascido no Morro da Providência, irá aos poucos se firmando como grande
voz da literatura de seu tempo” (Duarte, 2020).

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Autodidata e trabalhador, o romancista começou a trabalhar muito cedo como tipó-
grafo aprendiz na Imprensa Nacional (Bosi, 2006). Cresceu dentro desse meio e mais tarde
passou a atuar como funcionário público do império, trabalhou como primeiro oficial da
Secretaria de Estado no Ministério da Agricultura em duas seções: a da escravidão na apli-
cação de leis e no direito de terras. Machado lidava diretamente com as leis responsáveis
pela libertação gradual da escravatura no Brasil, como, por exemplo, a lei do ventre livre
(1871), Lei dos Sexagenários (1885) e por fim a Lei Áurea (1888).
A obra Machadiana nasce do terreno fértil desses acontecimentos do século retrasado
no Brasil. Levando esses aspectos em consideração, é possível afirmar que a obra machadia-
na é resultado da essência desse contexto e das relações entre elite e subalterno. Colocando
em xeque as condutas morais da elite por meio da perspectiva de alguém que veio de baixo
para cima (da margem sociedade para a elite), convivendo e observando as relações como
um outsider, um homem de origem pobre, “[...] descendentes de africanos que supera a
condição de origem e se faz aceito na sociedade letrada” (Duarte, 2020)

Os sentidos do silêncio e os silêncios que falam

Eni Orlandi (2007), no livro As formas do Silêncio, explica que qualquer coisa serve
para significar, “[...] qualquer matéria significante explode os limites do sentido. Um pro-
cesso de significação, uma vez posto em circulação, pega tudo”. É graças ao processo de
significação que os sentidos das palavras são múltiplos e os silêncios também. Já a lingua-
gem, “organiza” o silêncio traduzindo-o em palavras.

585 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
A autora afirma, que a relação entre os processos discursivos e a língua está na base da com-
preensão do imaginário - já que os processos discursivos se desenvolvem na estrutura da língua,
“Sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção dos efeitos de sentidos,
não é impossível compreender o silêncio” (Orlandi, 2007). Por isso a necessidade de entender
o contexto no qual a obra Machadiana foi escrita, para mapear os processos de construção dos
sentidos no capítulo XI de Memórias Póstumas de Brás Cubas. As significações do silêncio
abordadas a seguir estão ligadas a dimensão do “não dito”. O episódio em que Prudêncio serve
de cavalinho ao seu senhor e a questão do silenciamento do escravo dentro da narrativa.
Para dar significado ao silêncio, Orlandi afirma que existem alguns tipos de silêncios.
Entre eles: o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não dito e dá
espaço para recuo significante, a política do silenciamento que silenciar algo, o silêncio cons-
trutivo que indica que para dizer é preciso não dizer e o silêncio local, aquilo que é proibido
dizer em uma certa conjuntura (Orlandi, 2007).

O silenciamento de Prudêncio e seu significado

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Quando o personagem Brás Cubas cria uma atmosfera narrativa justificando os seus
atos graças a uma posição social e em seguida prática violenta contra o personagem escra-
vo, que é abaixo na hierarquia, o silêncio de Prudêncio é a consequência da opressão sofri-
da. Pois o ato de censura sublinha a dimensão dos sentidos silenciados. O silenciamento
discursivo proíbe o sujeito de ocupar certos lugares de poder e certas posições do sujeito,
“Censura são processos mais ou menos conscientes e que reportam a diferentes ordens:
política, moral, estética [...] dependendo da ordem do discurso” (Orlandi, 2007). Sendo
assim, tomar a palavra ou obrigar a não dizer são formas de censura e sublinha posições
de poder.
Logo, se o poder discursivo exercido resulta em silêncio esse silêncio é opressão. O
processo de sentido descrito na narrativa do capítulo XI é a mais literal até então, tomando
a omissão da fala do escravo como uma ação hierárquica, de poder.

A dimensão do “não dito” no episódio de Prudêncio os seus


significados em Memórias Póstumas de Brás Cubas

A partir da reconstrução histórica e da análise discursiva com o embasamento teórico


apresentado, reafirmo que Machado de Assis mostra a perspectiva do oprimido através do
personagem Prudêncio. Dentro da narrativa, o que é desumanizado nas elites é ressignifi-
cado a partir do silêncio narrativo que evoca as origens do autor da obra. Resultando nas
palavras que denunciam o absurdo e a violência. A retórica narrativa utilizada é a ironia.
586 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

E o personagem principal está morto para mostrar a sua real face, sem as amarras das
máscaras sociais.
Estar morto é a característica fundamental para o personagem principal enunciar o
verdadeiro pensamento daquela parcela da sociedade. O personagem defunto autor, livre
das amarras sociais, foi a forma encontrada por Machado de Assis para fazer crítica social.
Já os personagens de classe baixa, “inferiores” socialmente, aparecem no cotidiano da his-
tória. Contudo eles não são mera ilustração das políticas de silenciamento da época, mas
sim a base que ajuda o desvelamento do comportamento nocivo da aristocracia dentro da
história ficcional.
Essa perspectiva é única porque é do autor Machado de Assis, um homem autor que
transitava pelos dois mundos, o da herança negra em suas origens e a do meio aristocrata,
onde observava esses comportamentos de perto. Conforme Edgar Morin (2009) a in-
fluência dos meios comunicacionais no dia-a-dia afeta a vida do sujeito. Sendo assim, as
influências comunicacionais que moldaram a personalidade de Machado. Essa personali-
dade, o “eu interior”, é a união entre o imaginário e o real; e o imaginário da modernidade

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“não se projeta no céu e sim na terra” (Morin, 2009). Logo, as narrações de Memórias
Póstumas são inspiradas no cotidiano e interpretadas pelas vivências do Machado de Assis
afrodescente.
O silêncio não é ausência de palavras. Impor o silêncio não é calar o interlocu-
tor, mas impedi-lo de sustentar outro discurso. Em condições dadas, fala-se para não
dizer (ou não permitir que digam) coisas que podem causar rupturas significativas
na relação dos sentidos” (Orlandi, 2007)

O subjetivo do autor tem ligação direta com o real, essa proximidade realizada pelo
imaginário do sujeito é um processo de projeção e identificação. Logo, aprofundamento
de todas as esferas de existência de Machado de Assis revela o significado do “não dito”
enunciado na significação de suas camadas narrativas, contexto histórico e reconstrução
da vida privada.

Conclusão

Conforme Michael Pollak (1968) para o sujeito relatar os seus sofrimentos, ele precisa
encontrar uma escuta. Em memórias Póstumas de Brás Cubas o sujeito que sofre opressão
é representado pelos personagens que estão à margem da sociedade, como escravos, mu-
lheres, pobres, emigrantes, etc. Eles formam um tipo de memória clandestina do subalter-
no reprimido do Brasil no século XIX.
Então, colocar a escravidão como memória clandestina dentro da narrativa macha-

587 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
diana é um ponto fora da curva quando pensamos na memória coletiva, pois o discurso
de poder é sempre instaurado por uma elite dominante (Pollak, 1968). De acordo com
Pollak, é a Memória coletiva que estrutura hierarquias e classificações, “uma memória que
também ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamen-
ta e reforça os sentidos de pertencimento e as fronteiras sócio culturais”.
Pollak afirma que memórias subterrâneas quando emergem da superfície subvertem
o silêncio daqueles que estão à margem. Então, quando Machado de Assis inseriu em sua
obra a reprodução de uma violência corriqueira vinculada a uma memória subterrânea
ligada à escravatura, Machado coloca, de certa forma, em evidência a minoria social, e
chama a atenção para aquela cena. Logo, a memória subterrânea confronta a memória
coletiva criada pela elite, permanece viva e evidencia os abusos da classe oprimida.
Quando ocorre esse canal de escuta, talvez as memórias subterrâneas só sejam com-
preendidas a longo prazo. Contudo a sua transmissão fica intacta até o dia em que elas
possam aproveitar para invadir o espaço público e passar do não dito, do silêncio à contes-
tação e a reivindicação (Pollak, 1968)

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Sendo assim, após uma longa reflexão dos sentidos múltiplos evocados pela censura
explicitada no capítulo XI, a hipótese inicial se confirma. A narrativa machadiana sublinha
a dimensão política do sentido do “não dito” – trazendo à tona memórias subterrâneas de
uma minoria discursiva. Machado de Assis chama a atenção para a opressão do silencia-
mento de Prudêncio, através da linguagem escrita e o retrato de uma época, que reconstrói
personalidades e denuncia desigualdades sociais.

Resumo

O autor Machado de Assis, representa na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, um grupo
de escravos marginalizados e silenciados pela sociedade brasileira do século XIX, no Rio de Janeiro,
através do personagem Prudêncio. Machado de Assis mostra as dinâmicas de poder dentro da aris-
tocracia brasileira e a violência da hierarquização contida no discurso da elite. O presente ensaio
analisa o silenciamento do personagem Prudêncio, descrito no capítulo XI – O Menino é Pai do
Homem, do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, como artifício narrativo de denúncia
social e resistência negra.

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588 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

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Pollack, M. (1989) Memória, esquecimento, silêncio, Estudos Históricos, Rio de Janeiro.

Anexo

CAPÍTULO XI “O Menino é Pai do Homem”

Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as
magnólias e os gatos. Talvez os gatos sejam menos matreiros, e, com certeza, as magnólias
são menos inquietas do que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai
do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino. Desde os cinco anos

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merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos
mais malígnos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo,
um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco
que estava fazendo, e, não contente com o malefício , deitei um punhado de cinza ao
tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mães que a escrava é que estragara
o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um moleque de casa, era o
meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixas, à
guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o , dava mil
voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem
dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia – “Cala a boca,
besta!” – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo
rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas
deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões
de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me
repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.
www.nead.unama.br 15 Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida
a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opinático, egoísta e
algo contemptor dos homens, isto fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus,
alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. Outrossim, afeiçoei-me à contemplação
da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a en-
tendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha
mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia

589 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o
espírito, que faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de
noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus
devedores; mas entre a manhã e a noite, fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o
alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir. Ah! Brejeiro! Ah! Brejeiro! Sim,
meu pai adorava-me. Tinha-me esse amor sem mérito, que é um simples e forte impulso
da carne; amor que a razão não contrasta nem rege. Minha mãe era uma senhora fraca, de
pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, – caseira, apesar de
bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às duas trovoadas e ao mando. O marido
era na Terra, o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação,
que, se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa.
Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liber-
dade do que ensino a mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na
minha educação um sistema inteiramente superior ao sistema usado; e por este modo, sem
confundir o irmão, iludisse a si próprio. Havia em minha mãe uma sombra de melancolia,

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que eu herdei, como herdei de meu pai a fatuidade. Os aspectos da vida acrescentavam-
-lhe a natural tendência. Tinha coração demais, uma sensibilidade melindrosa, exigente,
doentia. De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo estranho,
o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem de
vida solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às
anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundice. Não me respeitava a
adolescência, como não respeitava a batina do irmão; com a diferença que este fugia logo
que ele enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada,
a princípio, depois entendendo e enfim achando graça-lhe graça. No fim de certo tempo,
quem o procurava era eu: e ele gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio.
Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo
da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; e aí é que era um
desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que podia ouvir porque
o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a regaçar-lhes
um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de
roupa, batê-las, a ensaboá-las de quando em quando com esta palavra: – Cruz, diabo!...
Este sinhô João é o diabo! Bem diferente era o tio Cônego. Esse tinha muita austeridade e
pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um
espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da igreja; via o ladowww.
nead.unama.br 16 externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunfle-
xões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância não estou certo se ele
590 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história
do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e caso
das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia
de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes,
minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas vir-
tudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor
aos outros. Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a pessoa
que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferenciava-se grandemente dos outros; mas
viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos
não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com
grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa
aí fica indicada – vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído,
frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que
nasceu esta flor.

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Guerra na Ucrânia, antiglobalismo como
política de Estado e retração Política
e democrática global

Francisco José Araujo1

“Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo?2”

O presente trabalho é uma análise preliminar sobre a interferência dos Estados Unidos
da América (EUA) e da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) na Guerra
da Ucrânia, iniciada com a invasão russa no território ucraniano em 24 de fevereiro de
2022. Tem como objetivo evidenciar as principais ambições das partes envolvidas, as
consequências já produzidas nas diversas esferas da vida societal/política e suas prováveis
conexões com outros fenômenos em curso de escala global. Portanto, o presente artigo
abordará a guerra na Ucrânia também como um marco da retração político/democráti-

591 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
ca experimentada globalmente, da desconstituição da Nova Ordem Mundial/Consenso
Washington/Globalização, que emergiram após a queda do Muro de Berlim e a dissolução
da União Soviética. Desta forma, a guerra da Ucrânia é posta em um processo global de
retração política, de retração democrática e antiglobalização.
Neste trabalho, (i) será apresentado um painel da Guerra da Ucrânia, iniciada com um
movimento de invasão do território ucraniano pela Rússia, destacando suas consequências
e as respostas dadas pelos Estados Unidos da América, OTAN e União Europeia a esta
crise; (ii) a questão será analisada sob ótica de uma crise da Nova Ordem Mundial e da
falência do globalização econômica (globalismo), a emergência de um processo de retração
política que tem afetado diversos regimes políticos e a retração democrática, com o avanço
crescente dos extremismos em diversos tipos de Estado.

1
Professor Adjunto da Cadeira de Ciência Política da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. E-mail:
franciscoearaujo@gmail.com
2
Lewis Carroll. Alice no país das maravilhas.

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Os fatos

A atual guerra da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, sabidamente re-


mete a diversos dilemas e problemas que remontam à dissolução da União Soviética; à
Independência da Ucrânia em 1991 - seguida do Memorando de Budapeste3 e da adesão
da Ucrânia ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1994, quando
abriu mão de manter sob seu controle 3mil ogivas nucleares.
“Alice: Quanto tempo dura o que é eterno? Coelho Branco: Às vezes, apenas
um segundo”4.

A crise da Crimeia, em 2014 – com o refendo de anexação promovido pela Rússia e os


conflitos armados em Donetsk e Luhansk envolvendo separatistas pró-Rússia, que geraram
o protocolo de Minsk em 2014 e 2015 completam os fatos que constituem o arco histórico
da abordagem proposta neste texto. Sendo assim, não faz parte do propósito deste trabalho
uma exaustiva arqueologia de todos os dilemas envolvendo esses povos ao longo da história.
Sabe-se que a Crimeia foi e é, ao longo dos séculos, um ponto de encruzilhada dos interesses
de países ocidentais europeus e da Rússia, vide a Guerra da Crimeia de 1853-1856.

Euromaidan, Crimeia, o rei do chocolate e o comediante

A crise da Crimeia envolvendo Rússia e Ucrânia, em 2014, é antecedida por um con-


junto de conflitos na Ucrânia, a exemplo da Revolução Laranja, de 2004 e mais recen-
592 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

temente as manifestações populares de rua, conhecidas como Euromaidan, de 2013, na


capital Kiev. Momento em que os interesses pró-Rússia, representados pelo governo, foram
confrontados por movimentos populares pró-União Europeia e anti-Rússia. As manifes-
tações eclodiram quando o então presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich, em 2013,
suspendeu o diálogo que preparava para assinar um acordo de associação política e de livre
comércio com o bloco econômico da União Europeia que, na prática, era uma desistência
de maior aproximação com o Ocidente em prol de uma maior integração com a Federação
Russa, de Vladimir Putin.
O Euromaidan sofreu forte repressão policial e centenas de mortes foram registradas
ao longo dos conflitos entre civis e policiais leais ao governo. Por outro lado, os conflitos
políticos e sociais revelaram ao mundo que a sociedade ucraniana é extremamente desigual
e cheia de clivagens ideológicas, muitas delas radicalizadas e extremistas.
3
Assinado pela Ucrânia, Reino Unido, EUA e Rússia, estabelecendo os limites territoriais, a segurança da
Ucrânia. Além da permanência da Crimeia com parte da Ucrânia.
4
Lewis Carroll. Alice no país das maravilhas.

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A resistência popular foi minando a legitimidade e apoio ao governo. Em 28 de janei-
ro de 2014, o primeiro ministro Mykola Azarov renunciou, mas isso foi entendido como
uma manobra política do presidente Viktor Yanukovich, que permaneceu no cargo até 22
de fevereiro de 2014, quando foi finalmente deposto pelo Parlamento, após assinatura de
um acordo com os líderes do movimento e ter fugido do país.
Ressalta-se também que antes de ser deposto e abandonar o país, o presidente
Yanukovich celebrou acordo com Putin, no qual foi firmado o controle da Rússia sobre a
base naval de Sevatopol até 2042. Em contrapartida a Rússia ofereceu 40 bilhões de dóla-
res em redução do preço do gás fornecido por ela à Ucrânia. Sevatopol é um ponto estraté-
gico para Rússia, pois a partir do Mar Negro (águas quentes) tem acesso ao Mediterrâneo,
sendo de grande importância para suas transações comerciais e para sua defesa com a
Esquadra do Mar Negro.
No Euromaidan os grupos pró-Europa e Anti-Rússia que foram mais ativos ao longo
das manifestações (2013 – 2014) e que merecem destaque são:
• Svoboda, tendo como líder Oleh Tyahnybok, esse grupo é de inspiração nacionalis-
ta/fascista; Bratstvo e Setor Direto, este último tendo como líder Dmytron Yarosh,
são extremistas da extrema direita;
• Pátria, líder Arseniy Yatsenyuk (ex-Primeiro-Ministro), ligada a Yulia Tymoshenko
- ex-Primeira-Ministra, que ajudou a liderar a Revolução Laranja de 2004, foi presa
em 2009 sob acusação de abuso de poder, é um grupo de centro direita/conservador;
• Esquerdistas e anarquistas (minoritários) mais focados em combater a desigualdade
social e a pobreza.

593 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Na eleição presidencial de 25 de maio de 2014, o bilionário Petro Poroshenko, o rei
do chocolate, foi eleito presidente, sendo candidato independente. Durante o seu man-
dato foram assinados os protocolos de Minsk 2014 e 2015, pondo um breve cessar-fogo
na Guerra em Donbas, que envolvia a Ucrânia e os separatistas (pró-Rússia) de Donetsk
e Lugansk. Mas, seu governo não respondeu satisfatoriamente aos anseios de mudança
política e de reforma no judiciário5, as velhas práticas políticas e a corrupção nas empresas
estatais permaneceram.
Em termos de desempenho na eleição presidencial de 25 de maio de 20146, os grupos
que mais atuaram no Euromaidan obtiveram a seguinte votação:
• Yulia Tymoshenko, partido Pátria (centro direita/conservador): 12,81% dos votos;
• Oleh Lyashko, partido Radical (centro democrata/nacionalista): 8,32% dos votos;

5
Fonte: DW. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/cinco-anos-ap%C3%B3s-maidan-reformas-a-
van%C3%A7am-devagar-na-ucr%C3%A2nia/a-46396680
6
Fonte: IFES. Disponível em: https://www.electionguide.org/elections/id/2338/

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• Oleh Tyahnybok, partido Svoboda (extrema-direita/ultranacionalista neonazista):
1,16% dos votos;
• Dmytro Yarosh, partido Setor Direto (extrema-direita/ultranacionalista neonazista):
0,70% dos votos.
Nessa eleição presidencial 12 candidaturas foram registradas como independentes
(sem partido), incluindo o vencedor.
Esse quadro de acontecimentos é importante para uma reflexão sobre os possíveis
desdobramentos após o término da guerra contra a Rússia.
O atual presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, eleito na eleição presidencial
2019, em segundo turno com 73% dos votos, é um novato na política e levou para o campo
político a ficção que vivia na série de televisão com o seriado Servo do Povo. O programa
humorístico satirizava e criticava os políticos tradicionais. A personagem principal do pro-
grama era um professor de História que acidentalmente chegou à presidência do país.
Zelensky, um comediante, aproveitou a popularidade alcançada através do programa
humorístico de televisão e fez registro de um partido político com o nome do programa que
participava: Servo do Povo. Essa foi sua primeira grande jogada de marketing pessoal e de
influencer digital. Em termos gerais, sua campanha foi feita através das redes sociais com um
discurso de crítica aos políticos tradicionais e a promessa de combater a corrupção política7.
Concomitante a todos esses fatos experimentados na Ucrânia, a Rússia mantinha seu
apoio aos separatistas do leste da Ucrânia e começou a movimentar seu aparato bélico-mi-
litar para perto desta fronteira.
Zelensky, diante das ações separatista no leste do país, da sua popularidade em queda
594 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

e ciente da anexação ocorrida na Crimeia, buscou um maior alinhamento da Ucrânia


com a União Europeia e o ingresso do país na OTAN. Notadamente estava revelando sua
preocupação com possíveis operações militares russas no território ucraniano e seu próprio
destino político. Nesse momento Zelensky - o comediante, que venceu o rei do chocolate
de forma esmagadora - já estava com a popularidade em apenas 20%. O comediante estava
entrando na real comédia humana.
A Rússia começou a concentrar tropas e material bélico na fronteira leste da Ucrânia
desde janeiro de 2021. No dia 17 de dezembro de 2021 a Rússia lançou um documento
de acordo para garantir a segurança da Federação Russa8 e tendo como destinatários a
OTAN e os Estados Unidos da América. Tal condições de segurança foram postas como
condição para pôr fim à tensão e aos conflitos com a Ucrânia, de onde é possível destacar
a exigência de neutralidade da Ucrânia e seu não ingresso na OTAN; não instalação de

7
Fonte: BBC. Disponível: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49845510
8
Texto integral está disponível em: https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en

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mísseis de curto e médio alcance no território ucraniano; limitação de exercícios com tropas
e reconhecimento, por parte da Ucrânia, da anexação da Crimeia. No dia 24 de fevereiro
de 2022, a Rússia invadiu o território ucraniano e deu início ao atual conflito na Ucrânia.
Antes, no dia 21 de fevereiro de 2022, V. Putin reconheceu a independência de Donetsk e
Lugansk e prometeu o envio de tropas para fazer o “trabalho de manutenção de paz”.
A Rússia buscando uma justificara sua ação, afirmou que estava reagindo a uma amea-
ça a sua segurança: a expansão da OTAN. Esse mote foi igualmente usado na anexação da
Crimeia, particularmente por conta da base naval de Sevatopol no Mar Negro e também
na ocupação da Georgia, em 2008.

595 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1 – Expansão da OTAN.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 595 20/06/2023 16:47:07


A expansão da União Europeia, mesmo que não recorrentemente posta pela Rússia,
certamente é uma das preocupações de Moscou, pois aumenta o cerco econômico imposto
pelos países ocidentais que compõem o G7. Tal expansão tende a enfraquecer e reduzir o
campo de influência econômica do CEI (Comunidade dos Estados Independentes), bloco
econômico estruturado pela Rússia.
A política de expansão da União Europeia, tem agraciado majoritariamente os países
do Leste, do extinto bloco soviético e particularmente aos ingressos ocorridos a partir de
2004. A saber, 2004: Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia,
Lituânia, Malta, Polónia e República Checa; 2007: Bulgária e Roménia; 2013: Croácia.9
O alargamento da União agora aponta para os Balcãs Ocidentais. Já são países oficialmente
candidatos Montenegro, a Sérvia, a República da Macedônia do Norte e a Albânia.
Merece ser citada o documento da UE, especialmente o tópico “A” das condições de
adesão, a fim de servir de base para reflexão sobre o alargamento da União:
“A Condições de adesão
Qualquer Estado europeu pode pedir para se tornar membro da União, desde
que respeite os seus valores comuns e esteja empenhado em promovê-los (arti-
go 49.o do TUE). Os critérios de Copenhaga, estabelecidos pelo Conselho Europeu
de Copenhaga de 1993, são essenciais no processo de integração na UE de qualquer
país candidato ou potencial candidato. Pressupõem:
• instituições estáveis que garantam a democracia, o Estado de direito, os
direitos humanos, o respeito pelas minorias e a respetiva proteção;
• uma economia de mercado em funcionamento e capacidade para respon-
596 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

der à pressão da concorrência e às forças de mercado dentro da União;


• a capacidade para assumir as obrigações decorrentes da adesão, incluindo a
adesão aos objetivos da união política, económica e monetária e a adoção
das regras, normas e políticas comuns que constituem o corpo do direito
da UE (o acervo comunitário)10.”

Questão muito crucial para a Rússia que, após a queda do muro de Berlim e a emer-
gência da Nova Ordem Mundial com o Globalismo/Consenso de Washington, sofreu
uma verdadeira falência, com recessão e inflação que atingiu 245%. A Rússia, após a extin-
ção da União Soviética, adotou o modelo econômico generalizado nos países periféricos,
com ampla desregulamentação financeira. Além de ter sido relegada a uma posição menor
no cenário mundial, só lhe restando como diferencial um arsenal nuclear e nessa condição

Fonte: Conselho da União Europeia. Disponível: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/enlargement/


9

Fonte: Parlamento Europeu. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/


10

sheet/167/o-alargamento-da-uniao

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permaneceu até o final do século XX. Porém, a partir do ano 1999 a Rússia começa a ex-
perimentar uma recuperação econômica sob o comando de Vladimir Putin.
A taxa média de crescimento do PIB da Federação Russa foi de 6,6% ao ano (a.a), de
1992-1998; 6,9% (a.a), de 1991-2008, ficando em 1,1%, entre 2009 e 2014 (Serrano e
Mazat, 2017).

Figura 2 – PIB da Federação Russa:

A recuperação econômica da Rússia foi lenta e deve-se a exportação de gás e petróleo

597 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
(energia), alimentos (grãos) e fertilizantes (insumos agrícolas). Mas, principalmente pela
implementação de um novo regime político econômico. A Rússia se recuperou a partir
de uma combinação de fatores que articulou seletividade estratégica na adoção de medi-
das e intervenção estatal em alguns setores, afastando-se do receituário do Consenso de
Washington, mas com o aprofundamento de um regime autocrático. Fortalecimento au-
tocrático da Rússia combinado com sua melhora econômica resultou em uma significativa
modernização do seu arsenal tecnológico bélico.
Que protagonismo a Rússia atualmente quer? O que a Rússia realmente quer a partir
da guerra na Ucrânia? São as perguntas que a União Europeia, vizinha da guerra e da
Rússia precisam saber das respostas.

III – A antiglobalização, retração política e democrática

Para fins da análise aqui proposta e melhor possibilitar debates e reflexões sobre o tema
em tela, o conceito globalismo será usado para a globalização econômica assimétrica, com

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 597 20/06/2023 16:47:07


núcleos de maior influência e deliberação junto às agencias e aos órgãos internacionais,
aos conglomerados empresariais e financeiros e aos países ocidentais mais ricos. Define-se
a Globalização como um conjunto de processos de trocas e compartilhamentos de valores,
de ideias e de bens para além do estritamente econômico, que tem um viés civilizacional de
aproximação e instantaneidade dos contatos culturais (para o bem ou para o mal).
A antiglobalização compreende as reações de países de ricos, no interior de suas economias,
visando mitigar os efeitos da falência do Consenso de Washington/hiperglobalismo, a crise vi-
gente na Nova Ordem Mundial - inaugurada com a queda do Muro de Berlim e a dissolução
da União Soviética, e que, em termos gerais, tentam frear a Globalização (como aqui posta).
Paradoxalmente, nos últimos anos, os países mais ricos do mundo ocidental adota-
ram medidas protetivas para suas economias que reativam o protecionismo, com taxações
excessivas e condicionantes (padrões) que na prática desfavorecem a exportação para os
“países de economia emergentes”. Tem-se como exemplo dessa política contrária ao glo-
balismo as medidas adotadas pelos Estados Unidos durante o governo Trump. Com já é
visível, essas medidas não estavam restritas à personalidade de Trump, mas é uma política
de Estado que segue com Biden.
Os Estados Unidos da América passaram a atuar contrário ao hiperglobalismo, como
defesa de sua economia, mesmo ainda defendendo tal receituário para os países fora do
G7 e os quais quer manter sob sua zona de influência. O antiglobalismo adotado pelos
Estados Unidos: guerra comercial com sobretaxa de produtos importados, reshoring (repa-
triamento), friendshoring (compra em país amigo ou aliado) e eleger a China e também a
aproximação da China com a Rússia como ameaças principais. (Carmona, 2022).
598 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A Nova Ordem Mundial e o globalismo geraram elementos que parecerem ter fugido
do cálculo. Enquanto diversos países da América Latina e a Rússia (da década de 1990) se-
guiram o receituário econômico de primeira e até de segunda geração não experimentaram
desenvolvimento ou um crescimento significativo, uns até amargaram fortes recessões, a
exemplo da Rússia. A China e um pouco a Índia, apareceram como um ponto fora da
curva. Sendo que a China se firmou de forma isolada como a segunda maior economia do
mundo e não seguindo as regras do Consenso de Washington. A Índia também consegui
significativo crescimento econômico com uma estratégia parecida com a da China.
As sucessivas crises financeiras, particularmente as de 2007/2008 surgidas com a vi-
gência do Consenso de Washington criaram uma crise de legitimidade para o próprio
consenso. Momento em que Wall Street ficou cambaleante e os Estados Unidos, de uma
certa maneira, ridicularizados.
Desde o Consenso de Washington o Globalismo, a soberania do Estado Nação e a
Democracia formaram a tríade desafiadora para a estabilidade e o crescimento econômico
dos diversos tipos de países pelo mundo.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 598 20/06/2023 16:47:07


“The menu captures the fundamental political trilemma of the world economy:
we cannot have hyperglobalization, democracy, and national self-determination all
at once. We can have at most two out of three. If we want hyperglobalization and
democracy, we need to give up on the nation state. If we must keep the nation state
and want hyperglobalization too, then we must forget about democracy. And if we
want to combine democracy with the nation state, then it is bye-bye deep globaliza-
tion. The figure below depicts these choices”. (Rodrik,s/d, p.123).

A hiperglobalização econômica trouxe mais instabilidade ao invés de mais investimen-


to e crescimento. Mas, produziu mais desigualdade e insegurança. (RODRIK, 2000). Ao
lado disso, nota-se um agravamento da retração Política, configurada pelo aumento do
comportamento e das mentalidades extremistas/radicalizadas, conflitos internos, crise de
governança, corrosão das instituições políticas e o surgimento ou recrudescimento regimes
autocráticos. Venezuela, Nicarágua, na América Latina e a Hungria, no Leste Europeu
acaba sendo uma exemplificação simplória, porque o recente processo de retração política
e democrática já está visivelmente presente nos países mais ricos da esfera Ocidental libe-
ral/democrática. Torna-se icônico a situação interna dos Estados Unidos da América, não
só pela atual crise econômica, mas pela crescente mobilização da extrema-direita e cisões
no âmbito da sociedade civil, o que tem levado alguns analistas sinalizarem para o poten-
cial de uma guerra civil.
A América testemunha uma forte ampliação da extrema-direita, pois muitos grupos ex-
tremistas surgiram depois do reavivamento da Ku Klux Klan na década 1960. Organizações

599 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
como a Aryan Nation, Vanguard America, Alt Right, Oath Keeprs11 etc. colocaram os EUA
como um dos principais polos de disseminação e formação desse tipo de extremismo.
Mas, a extrema-direita tem também assumido um lugar cada vez mais de destaque
na arena política europeia, berço da ideologia fascista/nazista. Na França, a candidata da
extrema-direita Marine Le Pen, na eleição de 24 de abril de 2022, obteve 41 % dos votos.
Na Itália, o partido de extrema-direita Irmãos da Itália conquistou 26% dos votos e levou
Giorgia Meloni ao posto de Primeira Ministra da Itália. Apesar de não chefiar o governo da
Alemanha, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha se firmou no espaço
político alemão obtendo 10,3% na eleição de 26 de setembro de 202112.
A invasão da Capitólio dos Estados Unidos da América, em 06 de janeiro de 2021, é
emblemático quanto aos dilemas vividos por diversas sociedades, mesmo nos países mais

11
O Oath Keeprs participou ativamente da invasão do Capitólio em Washigton – USA.
12
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/mais-radical-ultradireita-se-consolida-na-paisagem-pol%C3%ADtica-
-alem%C3%A3/a-59315898

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ricos do mundo ocidental, com tradição liberal/capitalista. O que evidencia as questões da
retração política/democrática e a falência do hiperglobalismo centrado no neoliberalismo.
Importante frisar que essas organizações extremistas de direita apontam para um
movimento da sociedade em direção ao Estado. Organizam-se fora de partidos, mas vão
usando os partidos para, através de eleições, ocuparem espaço na estrutura do poder ins-
titucional (o Estado). Atuam sistematicamente nas redes sociais e efetivam um verdadeiro
networking. O fato é que os países ocidentais mais ricos estão testemunhando um consis-
tente crescimento do ativismo de extrema-direita13.

As vozes e os efeitos da guerra

“Grandes conflitos podem ser reduzidos em suas dimensões, diminuindo a per-


cepção dos participantes para diferenciar interesses ou mutilando a importância per-
cebida daquilo que está em jogo. A rigidez e a centralidade do problema também são
críticos para a resolução de disputas.” (GURR, 1985, p.503)

A atual guerra da Ucrânia é um dos melhores exemplos dessa crise multifacetada


trazida com a falência e perda de legitimidade do globalismo neoliberal, firmado pelo
Consenso de Washington e pelas fraturas e disfuncionalidade da Nova Ordem Mundial
implantada com a queda do Muro de Berlim, quando foi dissolvida uma bipolaridade e
não foi firmado um multilateralismo com novos arranjos de consensos e cooperação. O
chamado pós Muro de Berlim não foi uma vitória definitiva da democracia e nem uma
600 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

totalização equilibrada da economia de mercado/liberal.


Unipolaridade tem sido intensificada através dos EUA, que tem atuado em grande
medida como uma polícia do mundo. Esteve presente em todos os grandes conflitos do
século XXI, com a doutrina antiterror. Isso corrobora para necessidade de se refletir sobre
os desdobramentos da Guerra na Ucrânia particularmente com a posição que os países
ricos da União Europeia adotaram no conflito: deixando os EUA e a OTAN assumirem
complemente respostas dadas à Rússia.
A postura dos EUA (e OTAN) diante da Guerra da Ucrânia foi de apoio financeiro,
bélico e de inteligência à Ucrânia, o que frustrou uma vitória imediata da Rússia. Além
disso, foram sucessivamente impostas sanções econômicas, sendo a mais emblemática a
retirada da Rússia do sistema global de pagamento (Swift).

13
Para maior aprofundamento sobre a extrema direita na Europa e na América ver: Allchorn, W. & Dafnos,
A. (2020) “Far-Right Mobilisations in Great Britain: 2009-2019” London, UK: Centre for Analysis of the
Radical Right).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 600 20/06/2023 16:47:08


Nitidamente os EUA apostaram em prolongar a guerra e produzir desgaste a Putin,
visando criar condições internas na Rússia para uma troca de comando e de regime.
A cada dia que passa, torna-se imperativo para a União Europeia equacionar as con-
sequências da guerra prolongada diante de dois fatores: a) proximidade territorial com a
Rússia; b) a dependência ainda siginificativa da Rússia no setor energético.
Mais que pensar as causas da guerra é hora de equacionar as consequências.
O prolongamento desta guerra (no modo baixa intensidade e constante) vai ser extre-
mamente trágico do ponto de vista humanitário e provocará mais instabilidade e danos
econômicos para a região.
Após a guerra a Ucrânia sairá mais fortalecida e vocacionada para ser uma democracia
ou vai ser rapidamente convertida em uma autocracia pelos extremistas totalmente militari-
zados? O grau de proximidade e o potencial de coalizão dos grupos políticos ucranianos que
estão atuando na guerra contra a Rússia serão decisivos para o futuro político da Ucrânia.
Como a Rússia vai sair da guerra depende da capacidade do sistema internacional de
responder à Rússia.
A Rússia ser posta em uma condição similar à Venezuela ou Cuba, mas com armas
nucleares não é um fator de maior ameaça para a Europa e para o resto do mundo?
Cabe destaque sobre a Guerra na Ucrânia:
• É uma guerra híbrida com ataques remotos, ataques cibernéticos e desestabilização
interna de governo com manipulação de questões identitárias etc., mas no tocante
à questão tomada e ocupação do território, ele literalmente tradicional. Tem que
tropa no solo;

601 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
• As armas hipersônicas utilizadas pela Rússia, certamente vão impulsionar uma cor-
rida armamentista tecnológica;
• O uso de drones em guerra não é novidade, mas os dois lados usando esse equipa-
mento em ataques põe em questão o futuro das naves tripuladas para o controle do
“céu”. As modernas aeronaves tripuladas russas encontraram a barreira das baterias
antiaéreas doadas por países da OTAN à Ucrânia e não conseguiram o mesmo êxito
que tiveram na Síria;
• Enquanto guerra híbrida é também uma guerra de versões, de narrativas e ocultação
de dados e esforço de desinformação. A falta de dados sobre o montante de óbitos por
órgãos independentes deixa totalmente obscuro o grau de letalidade e, obviamente,
o custo humano. Ao contrário da guerra do Iraque, não há transmissões ao vivo dos
combates e dos bombardeios por canais de televisão. A maioria das imagens e infor-
mações que são divulgadas são produzidas pelas próprias partes em confronto.
• É uma guerra que tem potencializado processos inflacionários, de escassez e de
segurança alimentar global;

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• Provocou um dos maiores movimento humano de saída de um país. Até 07 de
junho de 2022 saíram da Ucrânia 7,3 milhões pessoas em busca de refúgio14.

Considerações de encerramento

A Ucrânia ganhou sua independência no contexto do rescaldo da Guerra Fria, quando


adere ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares – TNP. Era a terceira potência
nuclear do planeta e possuía nada menos que 3 mil ogivas nucleares, isso era uma preocu-
pação para os europeus e a desnuclearização foi uma condição de reconhecimento inter-
nacional da independência do país. A contra partida oferecida foi a não ameaça e não uso
da força contra a Ucrânia. A Ucrânia esqueceu de fazer a pergunta básica: quem vai me
defender se eu for atacada? A Ucrânia assinou um papel quase em branco. Sem garantias
reais de segurança e em uma situação de grande pobreza da maior parte de sua população.
A continuada expansão da OTAN após a Guerra Fria ficou cada vez mais próximas
das maiores fronteiras contiguas da Rússia, também seu melhor meio de navegabilida-
de, ponto estratégico de comercial e de defesa: o Mar Morto. Assim, a Crimeia fica no
meio dessa tensão da Rússia com os países ocidentais da OTAN. Tensão que ganhou mais
força quando a Ucrânia, na primeira década do ano 2000, negociou sua entrada na União
Europeia.
É de ressaltar que a expansão da OTAN e da União Europeia passaram a ser uma
preocupação militar e comercial para a Rússia, que desde os anos 1990 vem tentando se
recolocar no primeiro plano dos países de maior influência no cenário internacional e
602 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

apagar a imagem de uma potência sucateada.


Ressalta-se que a Rússia, após o desmonte da União Soviética não encontrou os auxílios
e a inserção pujante na economia de mercado internacional. Ao contrário disso, assistiu a
perda de diversos parceiros comerciais e caiu em recessão e tensões internas. Além disso, a
China foi gradativamente ocupando o status de segunda maior economia do planeta (a fá-
brica do Mundo). Qualquer conflito em si, não é fácil equacionar legitimidade. Do ponto
de vista do direto, pode-se tentar uma justificativa, esse tem sido o esforço da Rússia. Mas
essa invasão do território ucraniano é condenável. Por mais que seja condenável e injusto
pelo direito, não quer dizer que seja totalmente destituído de motivações reais.
A Guerra atual está dando mais visibilidade, produzindo maior dano às vidas hu-
manas de imediato. No entanto, é a persistência do entulho diplomático da época da
Guerra Fria, que acabou alimentando novas ondas de retrações políticas e democráticas,

14
Fonte: ACNUR. Disponível: https://www.acnur.org/portugues/2022/06/10/acnur-atualiza-dados-sobre-
-pessoas-refugiadas-na-ucrania-para-refletir-movimentos-recentes/#:~:text=De%20acordo%20com%20
novos%20dados,e%20depois%20seguiram%20em%20frente.

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do revigoramento de nacionalismos, das questões identitárias e das pressões das crises
financeiras e econômicas constantes. Enquanto guerra híbrida está em curso há duas dé-
cadas, no mínimo, acumulando ações de sabotagens, atentados, ataques cibernéticos, de-
sestabilização de governos, desinformação etc. A Ucrânia está perdendo ao longo dos anos
para os dois lados.
É muito provável que alargamento da União Europeia rumo ao Leste venha a ser um
agravante na sua sobrevivência, quanto à acomodação de países que já guinaram para regi-
mes autocráticos e da escalada consistente do extremismo de direita nos país mais ricos e
influentes do bloco. O prolongamento da Guerra na Ucrânia tende a aumentar o dilema
do papel da comunidade no sistema internacional, tendo em vista que o curso do conflito
tem seguido uma lógica da expansão de poder, de influência e de comércio dos Estados
Unidos como uma superpotência do Mundo, bloqueando a existência minimamente con-
sistente do multilateralismo.
Ao cabo, em um exercício de suposição, para finalizar, o povo ucraniano em algum
momento no futuro vai dizer: por que consumiram tantas de nossas vidas naquela guerra
que era em torno dos interesses de vocês?

Referências Bibliográficas

CARMONA, Ronaldo (2022). A guerra na Ucrânica: uma análise geopolítica. Revista


CEBRI, ano 1, º 3, jul-set 2022. Disponível em: https://cebri.org/revista/br/
artigo/46/a-guerra-na-ucrania-uma-analise-geopolitica

603 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
GURR, Ted Robert (1985). Manual do político. Brasília: Ed. UnB.
RODRIK, Dani (s/d). The globalization paradox, Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/4126392/mod_resource/content/0/RODRIK%20The%20Globalization%20
Paradox.pdf .
SERRANO, Franklin e MAZAT, Numa (2017). A macroeconomia da Federação Russa: do tra-
tamento de choque à recuperação nacionalista – uma interpretação heterodoxa. In.: Revista
Tempo do Mundo, v.3, nº 1, jan. 2017.

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O Enfermeiro Especialista promotor da
qualidade dos cuidados na ERPI S. Silvestre,
ADM Estrela, Guarda

Bárbara Inês Monteiro1


Isabel Cristina Afonso Lopes2

Introdução

Os enfermeiros, enquanto técnicos especialistas que acompanham a vida da comunidade e


das pessoas, desde a preparação para a conceção até ao luto, lideram, entre muitas outras com-
petências, o desenvolvimento, aplicação e monitorização de intervenções do domínio da me-
lhoria contínua da qualidade e da gestão de cuidados. Desempenham papeis verdadeiramente
dinamizadores no desenvolvimento e suporte das iniciativas estratégicas institucionais na área
da governação clínica, concebendo, gerindo e colaborando em programas de melhoria contí-

605 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
nua da qualidade dentro e fora do Serviço Nacional de Saúde. Adaptam a liderança e a gestão
dos recursos às situações e ao contexto visando a otimização da qualidade dos cuidados, com
resultados de inequívoca saúde para as instituições (Ordem dos Enfermeiros, 2012; 2019).
O presente artigo surge no âmbito da aplicação de modelos de melhoria da ges-
tão dos cuidados e da promoção da qualidade na oferta de cuidados pela equipa da
Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) São Silvestre, valência integrada numa
Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), a Associação de Desenvolvimento e
Melhoramentos Estrela, doravante designada por ADM Estrela.
A ERPI está localizada no meio rural, numa aldeia do concelho da Guarda, denomi-
nada de Vale de Estrela. Acolhe 20 utentes (ADM Estrela, 2022).
Neste sentido, surge como objetivo geral deste trabalho a aplicação de metodologias de
Gestão da Qualidade, pela equipa de saúde da ADM Estrela, liderada pelos Enfermeiros

1
Enf.ª Especialista em Enfermagem Médico-cirúrgica, ADM Estrela - ba_monteiro12@hotmail.com
2
Enf.ª Especialista em Enfermagem Médico-cirúrgica, detentora de competência avançada em gestão, Vice-
presidente da ADM Estrela - icalopes@hotmail.com

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Especialistas, para otimização dos cuidados, diminuição de perdas, obtenção de ganhos na
efetividade da resposta aos utentes e famílias do Lar de São Silvestre.
Aplicando conhecidos instrumentos de avaliação da qualidade, o tipo de estudo do
presente artigo, insere-se na tipologia de estudo de caso, porquanto se pretendeu com-
preender um sistema delimitado, enfatizando-se na célula estudada e a globalidade do
sistema. O suporte à elaboração deste trabalho foi, assim, baseado numa metodologia
descritiva.

Definições

Competências acrescidas: os conhecimentos, as habilidades e as atitudes que permitem


o exercício profissional a um nível de progressiva complexidade, nos diversos domínios de
intervenção do enfermeiro e ao desenvolvimento técnico-científico da profissão, poten-
ciando novos campos de atuação do exercício profissional autónomo.
Competências acrescidas avançadas: os conhecimentos, habilidades, e atitudes que
dão resposta às necessidades, nos diversos domínios de intervenção, acrescentando, às
competências de enfermeiro especialista, a perícia fruto da complexidade permanente dos
conhecimentos, práticas e contextos numa área de intervenção avançada, potenciando
a promoção da qualidade da intervenção do enfermeiro especialista (Regulamento n.º
76/2018).

Estilos de Liderança
606 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

A liderança é um tópico fundamental nas questões laborais pois está na base do sucesso
ou insucesso das equipas, dos organismos, das instituições (Melo et al., 2017). A liderança
está intimamente relacionada com as competências de comunicação e de transmissão de
ideias. Agir é comunicar. E, fazê‐lo de forma eficaz, implica atender aos diferentes interes-
ses da equação e não perder de vista os diferentes destinatários da comunicação.
Pode considerar-se que antes da intervenção dos Enfermeiros Especialistas na ERPI –
Lar de S. Silvestre, a liderança preponderante era tendencialmente liberal, tendo em conta
as experiências dos recursos humanos que ali trabalhavam e a tipologia de cuidados pres-
tados, contudo a estratégia dos Enfermeiros Especialistas foi conduzi-la a que fosse o mais
emocional possível, não perdendo os traços vantajosos da liderança autocrática, tornando
o dia-a-dia da ERPI, mais humanizado, operacional, justo, transparente e dinâmico.
Até aqui, a equipa não tinha um modelo de líder assumido, sendo que cada elemento
agia de acordo com a sua opinião. Estava circunscrita a chefia, mas não a liderança. A mo-
tivação encontrava-se amplamente afetada pois os níveis de desorganização eram elevados.

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Propôs-se, ou antes, conduziu-se, a uma mudança no tipo de liderança, onde a prio-
ridade fosse, estabelecer objetivos orientados para a organização, mostrando aos subordi-
nados o que se esperava deles. Ouviram-se os elementos através das suas opiniões, o que
também motivou, quer emissores, quer ouvintes, a perceber os diferentes pontos de vista.
No final, foi praticamente unânime de que a mudança na liderança só traria eficácia ao
grupo e consequente, melhoria na prestação de cuidados aos utentes e família.
Assim o tipo de liderança proposto passou por um misto entre a liderança democrática
e autocrática: a liderança emocional, baseada a inteligência da aplicação da melhor tática à
situação, levando os outros a fazer “o que quero, como quero, pensando eles que foi ideia
deles”, superando as próprias expetativas da equipa.
O ambiente de trabalho na ERPI tem exigido dos líderes uma melhor gestão das exi-
gências organizacionais e ocupacionais. Isso tem implicado uma melhor gestão das com-
petências socio-emocionais para lidar, de forma efetiva, com as dificuldades do quotidiano
do trabalho e da equipa, mantendo a saúde e bem-estar pessoal.
As duas formas conhecidas de gestão emocional estão relacionadas com a liderança:
a regulação das emoções e a inteligência emocional (Melo et al., 2017). Apesar das duas
formas de gestão serem essenciais ao líder, nem sempre o repertório de competências so-
cioemocionais do líder é suficiente para lidar com as exigências do trabalho. Há processos
de aprendizagem individual que podem ajudar o líder a ampliar o seu desempenho atitu-
dinal e comportamental.
Apesar de o novo líder ter pouca experiência “em anos”, possui caraterísticas de lide-
rança capazes de influenciar socialmente a equipa, principalmente nas interações entre

607 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
colaboradores (equipa) e entre utentes. Algumas diretrizes foram apontadas para orientar
e treinar o novo líder ao nível das competências socio-emocionais com foco na inteligên-
cia emocional e na regulação das emoções. Contudo, a principal tónica, recai, ainda no
problema comunicacional. As experiências vividas durante quase trinta anos de algumas
colaboradoras na ERPI, apesar de alternância na liderança, sedimentaram uma tipologia
de comunicação vertical e horizontal nem sempre producente, correta, afetiva, o que difi-
culta qualquer intervenção e estratégia de melhoria.
Contudo, é fulcral incutir a ideia de que a produtividade passa pela qualidade dos
cuidados prestados e esta tem de ser objetiva.

Material e Métodos

O presente estudo de caso suporta-se na análise e compreensão dos fenómenos (o


enfermeirro especialiasta como promotor da qualidade na ERPI S. Silvestre) conferindo
particularidade ao assunto, porquando se mantêm indefinidas as fronteiras do contexto.

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A metodologia adotada incluiu a pesquisa documental (essencialmente do âmbito
legal), a observação participante dos investigadores e a aplicação dos instrumentos de avalia-
ção da qualidade SWOT, BSC, Mapa estratégico), com apoio de enfermeiros especialistas.
Para tratamento dos dados recorreu-se à revisão integrativa da informação recolhida
em publicações científicas nacionais e internacionais, bem como à análise dos domínios
dos resultados dos instrumentos de avaliação da qualidade (SWOT, BSC, Mapa estratégi-
co) da organização, realizados em exercícios da gestão relativos ao ano 2019.

Objetivos

• Aplicação de metodologias de Gestão da Qualidade e consequente análise da qua-


lidade dos cuidados, com identificação de pontos fortes, diminuição de perdas e
obtenção de ganhos na efetividade da resposta aos utentes e famílias do Lar de São
Silvestre.
• Melhoria da gestão dos cuidados e da promoção da qualidade na oferta de cuidados
na ERPI São Silvestre, ADM Estrela.
• Otimização da satisfação profissional entre os cuidadores, pela participação ativa na
análise do serviço prestado.
• Identificação de áreas de melhoria, necessidades de formação e de programas de
qualidade para a unidade.

Aplicação de Instrumentos de Avaliação de Qualidade


608 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

O objetivo de qualquer organização é a produção de bens ou serviços, centrando as


suas preocupações na melhoria dos processos e na satisfação das pessoas, no aumento da
eficácia e da produtividade. Desejam-se os melhores sistemas e processos para se conseguir
um serviço de qualidade, envolvendo a participação de quem trabalha e de quem adquire
ou recebe o resultado efetivado.

Balanced Scorecard

O Balanced Scorecard (BSC) é uma ferramenta que traduz a visão e a estratégia de uma
empresa num conjunto coerente de objetivos e medidas de desempenho, organizados se-
gundo quatro perspetivas diferentes: financeira, do cliente, processos internos e de apren-
dizagem/crescimento. Traduz a estratégia em objetivos e medidas através de um conjunto
equilibrado de perspetivas. O BSC inclui medidas dos resultados desejados e dos processos
capazes de assegurar a obtenção desses resultados desejados no futuro.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 608 20/06/2023 16:47:08


Os três passos essenciais do BSC são a formulação estratégica, a implementação estra-
tégica e o acompanhamento da estratégia.

Formulação Estratégica

A formulação estratégica implica a determinação de cursos de ação apropriados para


alcançar objetivos. Inclui atividades como análise, planeamento e seleção de estratégias
que aumentem a probabilidade de a organização atingir os seus objetivos. De forma a ser
possível assistir-se a um desenvolvimento correto das estratégias organizacionais, é fulcral
que a organização analise os seus ambientes internos e externos, o que faz com que sejam
transmitidas informações estratégicas para a tomada de decisão.

Caracterização da Unidade

A ADM Estrela – Associação Social e Desenvolvimento é uma IPSS fundada em de-


zembro de 1989, com sede em Vale de Estrela – Guarda, reconhecida como pessoa coletiva
de utilidade pública e ONG PD – Organização Não Governamental para Pessoas com
Deficiência.
De acordo com o 2º Artigo dos seus Estatutos, a ADM Estrela tem por objetivos a
promoção, desenvolvimento, participação e gestão de atividades sociais, culturais, des-
portivas, recreativas, de beneficência, formação e aperfeiçoamento profissional e, ainda,
atividades ecológicas e de preservação do meio ambiente e de ações de desenvolvimento

609 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
que contribuam para o bem-estar das populações, organização de colóquios, conferências
e seminários, assim como apoio na organização de processos e prestação de serviços para a
execução dos objetivos anteriormente referidos.
A ADM Estrela pretende assumir um papel social de reconhecido valor no que res-
peita ao apoio junto das populações que apresentam maior vulnerabilidade social e tem
vindo a aumentar a sua oferta no que respeita ao apoio social e intervenção junto das
populações.
Sediada em Vale de Estrela, a sua intervenção abrange também Guarda, Pinhel,
Manteigas, Belmonte, Castelo Branco e Lisboa. Trabalha com entidades parceiras interna-
cionais, nomeadamente com instituições espanholas, cabo-verdianas e santomenses.
De forma a dar resposta às diferentes necessidades da população em geral, a ADM
Estrela dispõe das seguintes respostas sociais:
• Infância e Juventude: Jardim-de-Infância; Centro de Atividades e Tempos Livres;
Creche e Jardim de Infância Favo de Mel; Centro Juvenil Grémio;
• Infância e Juventude Especializada: Casa de acolhimento de Jovens e Crianças;

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• Pessoas Idosas: Estrutura Residencial para Idosos; Centro de Dia; Serviço de Apoio
Domiciliário; Centro de Convívio, Espaço Nov’Idade;
• Pessoas Adultas com Deficiência e Incapacidade: Residência e Centro de Atividades
Ocupacionais Pinhel; Centro de Atividades Ocupacionais Vale de Estrela;
• Educação, Formação Profissional e Empreendedorismo social: Centro de Formação
Estrela;
• Família, Comunidade e Intervenção social: MAVI; BIPZIP; CLDS 4G; POAPMC;
• Cooperação Internacional e Desenvolvimento: ONEP; Delyramus; Mais Voz
Violência Zero!
• Quinta Pedagógica: Quinta Pedagógica de Caria.

Tendo por base o modelo assertivo de uma organização aprendente (visão e gestão
estratégica, empreendedora, mobilizadora de parcerias e de empowerment, inovadora, valo-
rizadora, tolerante e articuladora de recursos e meios) à ADM Estrela tem acrescido uma
responsabilidade, cada vez maior, na tomada de atitudes e medidas de implementação de
boas práticas de solidariedade social, as quais se transformam e se transformarão, por certo,
em importantes mais-valias de desenvolvimento dos territórios e de afirmação das comuni-
dades. Todas as atividades que desenvolve e o modo como funciona têm um único sentido:
desenvolver respostas adequadas ao tecido populacional que abrange, conferindo-lhes uma
vivência com mais qualidade.
Da mesma forma e a par da dimensão transnacional, fruto de uma rede sólida de par-
ceiros, belgas, franceses, alemãs, espanhóis irlandeses, italianos, gregos, e holandeses criada
610 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

e solidificada em fortes relações de trabalho e confiança tem potenciado, per si, excelentes
resultados.

Missão

Depois de ponderado, o objetivo é “Contribuir para o desenvolvimento social das


populações, de forma global, integrada e inclusiva.”

Visão

A declaração da visão de futuro estabelece sentido e foco para as ações da organização


e inspira as ações que a organização deve tomar no presente, para conquistar o futuro al-
mejado. Na entidade estudada o futuro imaginado é:
“Sustentabilidade na gestão, crescimento e otimização da sua atividade.”

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Valores

A intervenção da ADM Estrela destina-se aos indivíduos, famílias, comunidades, e


sociedade em geral. Pugna pela dignidade a que cada cidadão tem direito. Tem a “res-
ponsabilidade de intervir no sentido de modificar os fatores de risco social que influem
desfavoravelmente nos indivíduos, famílias e grupos, incluindo a prevenção de “situações
de risco, marginalização, discriminação ou exclusão social” - Combate ao Risco.
A ADM Estrela fomenta a igualdade de oportunidades e promove a justiça social assente
em duas regras básicas: igualdade na avaliação das necessidades e dos recursos, e ajuda de
acordo com as necessidades. Combate qualquer forma de discriminação baseada na deficiên-
cia, cor, raça, classe social, religião, língua, convicções políticas ou opções sexuais.
Para a efetiva realização dos princípios enunciados, todos os intervenientes ADM
Estrela devem assumir, na sua conduta diária, comportamentos vinculados aos seguin-
tes valores incontornáveis: Respeito pela confidencialidade; Respeito pela privacidade;
Honestidade; Seriedade; Rigor; Humildade; Dignidade; Justiça; Esforço; Dedicação;
Iniciativa; Humanidade; Afetividade; Disponibilidade e Participação; Respeito e abertura
ao outro; Espírito de equipa e Integridade.

Vetores Estratégicos

Os vetores estratégicos são o que a estratégia define para ser alcançado em cada pers-
petiva, ou seja, são os caminhos a seguir para atingir a visão delineada.

611 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Vetores estratégicos para a unidade:
• Excelência dos cuidados e
• Promoção da satisfação.

Análise SWOT

Uma das ferramentas mais frequentemente utilizada na gestão é a matriz SWOT


sigla que se refere ao conjunto de quatro expressões, em inglês, Strenghts, Weaknesses,
Opportunities e Threats. O termo traduz-se, por vezes para português pelo anagrama FOFA:
Forças, Fraquezas, Oportunidades e Ameaças (Lopes, 2022).
A análise de SWOT pode exercer um papel fundamental contribuindo para o desen-
volvimento de um conjunto de estratégias que fazem sentido, servindo como uma grande
ferramenta para facilitar a implementação do Balanced Scorecard.
Devido às peculiaridades de cada fator há muita confusão ao tentar descrever que itens
devem compor cada um dos quatro quadrantes de uma matriz SWOT ou FOFA. Geralmente

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 611 20/06/2023 16:47:08


as pessoas confundem oportunidades com pontos fortes e ameaças com pontos fracos. A
melhor forma de se entender o que entra em cada item é se fazer a pergunta: a empresa tem
controlo sobre o fator? Se a resposta for sim é um ponto forte (ou força) ou um ponto fraco
(ou fraqueza). Se a empresa não tiver controlo será uma ameaça ou oportunidade.
Realizaram.se reuniões de equipa em que os colaboradores analisaram a sua prestação,
as suas relações, áreas de melhoria e de gestão do risco. No final de 2019 o resultado das
reuniões transpôs-se para uma análise SWOT. De referir que se finalizou o exercício de
gestão pela visão dos enfermeiros especialistas, nas questões onde não se obteve consenso.
Aplicando-se o pensamento que norteia este instrumento, esquematiza-se o exercício
resultante das reuniões no Quadro I.

Forças/ Pontos Fortes Fraquezas/ Pontos Fracos

– Referência Regional da Instituição e da sua ERPI – Práticas instituídas, qualidade dos processos e dos
– Estilo de liderança praticado procedimentos
– Estrutura física relativamente nova e foco na modernização – Conhecimentos em práticas de cuidado ao utente
e adaptação dos espaços pela direção (aplicabilidade de cuidados específicos)
– Disponibilidade para aquisição de materiais – Inexistência de horas adequadas para cuidados
– Know-how dos Recursos Humanos (potencial motivação
das equipas)
– Multiatividades e multiprojetos da instituição

Oportunidades Ameaças

– Possibilidade de incluir em “carteira” outros clientes, novas – Número de Assistentes Operacionais/Enfermeiros


áreas de mercado e, consequentemente, lucros da equipa e não adaptação de um AO na dinâmica
– Competição no mercado local e regional enquanto do serviço
referência – Canais de informação existentes/disponíveis
612 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

– Disponibilização de informação em suporte informático atualmente


– Melhoria na prestação de cuidados acompanhando a – Preço dos consumíveis e de sistema informático de
evolução na saúde rastreabilidade de qualidade
– Existência de outras unidades de saúde com um
modelo de gestão de saúde operacional

Quadro I – Aplicação da Matriz SWOT à unidade


Fonte: Elaboração própria.

O grande valor da análise SWOT é ser fonte de informações para o desenvolvimento


de cenários e de estratégias. Através da análise feita para a unidade de saúde pode-se con-
cluir que existe predominância de Pontos Fortes, Oportunidades e Ameaças.
Desta forma e a partir da análise SWOT, estabeleceram-se as seguintes metas:
1. Melhoria dos itens que tenham sido considerados prioritários e de baixo desempenho:
a. Práticas instituídas, qualidade dos processos e dos procedimentos;
b. Conhecimentos em práticas de cuidado ao utente (aplicabilidade de cuidados
específicos).

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2. Aproveitamento de oportunidades:
a. Possibilidade de incluir em “carteira” outros clientes, novas áreas de mercado e,
consequentemente, lucros;
b. Competição no mercado local e regional;
c. Disponibilização de informação em suporte informático.
3. Estabelecer quais as ações que serão importantes para evitar os efeitos de eventuais
ameaças:
a. Verificar as necessidades de recursos humanos em termos de assistentes operacio-
nais e assegurar uma correta formação e integração na equipa;
b. Melhorar os canais de informação;
c. Introduzir um sistema informático que permita uma fácil e rápida integração de
dados para a melhoria na prestação de cuidados ao utente; procurar informação
no mercado sobre consumíveis tendo em conta a relação qualidade/preço.

O primeiro passo para a implementação do BSC é esclarecer e traduzir a visão e a


estratégia da companhia. Neste sentido a análise de SWOT pode exercer um papel fun-
damental contribuindo para o desenvolvimento de um conjunto de estratégias que fazem
sentido, servindo como uma grande ferramenta para facilitar a implementação do BSC
(exercício referente a 2019).

STRENGHTS WEAKNESSES
– Estrutura física relativamente nova – Práticas instituídas, qualidade dos

613 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Matriz SWOT no (S1) processos e dos procedimentos (W1)
Balanced Scorecard – Disponibilidade para aquisição de – Conhecimentos em práticas de
(F) FINANCEIRA materiais (S2) cuidado ao utente (aplicabilidade de
(C) CLIENTES – Recursos Humanos (potencial motiva- cuidados específicos) (W2)
(P) PROCESSOS ção das equipas) (S3) – Inexistência de horas adequadas para
(A) APREND. & CRESC. – Multiatividades e multiprojetos da cuidados (W3)
instituição (S4) – Inadequação da articulação médico-
-enfermeiro (W4)
OPORTUNITIES MAXI-MAXI MINI-MAXI
– Possibilidade de incluir em – F) Estratégia: utilizar a estrutura física – (F) Estratégia: aplicabilidade de
“carteira” outros clientes, para atrair novos clientes cuidados específicos ao utente
novas áreas de mercado e, – (C) Estratégia: Usar a aquisição de para competir no mercado local e
consequentemente, lucros materiais inovadores para demonstrar regional
(O1) mudança e consequente satisfação dos – (C) Estratégia: Aumentar a qualida-
– Competição no mercado clientes de das práticas e procedimentos para
local e regional enquanto – (P) Estratégia: Usar a disponibilidade atrair e satisfazer novos clientes
referência (O2) para aquisição de materiais de forma – (P) Estratégia: Disponibilizar a
– Disponibilização de infor- a tornar possível a informatização da informação em suporte informático
mação em suporte infor- informação para adequar a articulação médico-
mático (O3) – (A) Estratégia: Aproveitar a existência -enfermeiro
– Melhoria na prestação de de várias atividades da empresa para – (A) Estratégia: Adequação da ar-
cuidados acompanhando a melhorar e evoluir na prestação de ticulação médico-enfermeiro para
evolução na saúde (O4) cuidados acompanhar a melhoria da prestação
de cuidados e evolução na saúde

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 613 20/06/2023 16:47:09


TRHEATS MAXI-MINI MINI-MINI
– Número de Assistentes – (F) Estratégia: Usar a disponibilização – (F) Estratégia: Evitar que as práticas
Operacionais/Enfermeiros para a aquisição de materiais para instituídas, qualidade dos processos
da equipa e não adaptação ultrapassar o preço dos consumíveis e dos procedimentos seja influencia-
de um AO na dinâmica do – (C) Estratégia: Recorrer às multiac- da pelo preço dos consumíveis
serviço tividades para competir com outras – (C) Estratégia: Adequar as horas para
– Canais de informação unidades de saúde cuidados para competir com outras
existentes/disponíveis – (P) Estratégia: Aproveitar a motivação unidades de saúde e gerar satisfação
atualmente dos recursos humanos para promover – (P) Estratégia: Evitar que a inade-
– Preço dos consumíveis e de a adaptação quação da articulação médico-enfer-
sistema informático de ras- – (A) Estratégia: Usar a estrutura física meiro seja potenciada pelos canais
treabilidade de qualidade para criar novos canais de comuni- de informação inexistente.
– Existência de outras uni- cação – (A) Estratégia: Impedir que os co-
dades de saúde com um nhecimentos em práticas de cuidado
modelo de gestão de saúde ao utente (aplicabilidade de cuida-
operacional dos específicos) sejam condicionan-
tes do número de profissionais ou da
sua não adaptação

Quadro II – Matriz SWOT no Balanced Scorecard


Fonte: Elaboração própria.

Implementação Estratégica

Uma organização, para atingir os seus objetivos, deve não só formular, mas também
implementar de forma eficaz as estratégias formuladas.

Mapa Estratégico

O mapa estratégico fornece uma representação visual dos objetivos estratégicos da


empresa, bem como as suas relações de causa e efeito entre eles, que conduziriam ao de-
614 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sempenho desejado. As perspetivas são organizadas, intencionalmente, em camadas hierar-


quizadas, sendo que a dimensão financeira é situada na parte superior.

Contribuir para o desenvolvimento social das populações, de forma global, integrada e


Missão
inclusiva.

Valores Sustentabilidade na gestão, crescimento e otimização da sua atividade.

Vetores Estratégicos Excelência dos cuidados Promoção da satisfação.

Perspetiva Financeira Otimizar a utilização e gestão dos recursos

Perspetiva do Cliente Excelência do cuidado Satisfação pelos serviços prestados

Perspetiva dos Potenciar a motivação através da


Melhorar a prestação dos cuidados
Processos Internos Adaptação

Perspetiva de
Formação para melhorar as
Aprendizagem e Melhorar a articulação/transmissão de informação
práticas e procedimentos
Crescimento

Quadro III – Mapa estratégico


Fonte: Elaboração própria.

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Programas de qualidade

A vertiginosa e constante mutação social e tecnológica que caracteriza a sociedade


atual, bem como a complexidade crescente das estruturas organizacionais, conduziram à
necessidade de adoção de um conceito denominado “qualidade”. A qualidade dos serviços
prestados aos clientes em saúde é um dos aspetos fundamentais no século XXI. O processo
da qualidade, nos dias de hoje, passa a ser centrado nas pessoas. O papel do enfermeiro é
decisivo para a qualidade dos cuidados.
Foi publicado, no Diário da República, 2.ª série, n.º 200, de 17 de outubro de 2017,
o Regulamento n.º 555/2017, de 20 de setembro, que estabelece o regime da certificação
individual de competências, no âmbito dos procedimentos de atribuição de competên-
cia acrescida diferenciada ou avançada e do título de enfermeiro especialista, bem como
o Regulamento n.º 556/2017, também de 20 de setembro, que definiu o regime geral
das áreas de competência acrescida, regendo o processo de reconhecimento das mesmas.
Referem estes diplomas que o exercício de funções de gestão por enfermeiros é determi-
nante para assegurar a qualidade e a segurança do exercício profissional, constituindo-se
como componente efetiva para a obtenção de ganhos em saúde, pelo que necessita de ser
reconhecido, validado e certificado pela Ordem, numa perspetiva integrada e integradora,
inserida no processo de desenvolvimento e valorização profissional.
Ao proceder à análise de possíveis Programas de Qualidade existentes na unidade de
saúde, verifica-se que não existem programas instituídos. Um fato lamentável, pois os

615 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
serviços de saúde necessitam de criar e garantir a qualidade a partir da existência de uma
cultura de mudança na organização.
Só se atinge o grau de excelência dos cuidados se tivermos bons processos de formação pro-
fissional e indiscutíveis mecanismos de avaliação dos serviços. Em sua opinião são estes os dois
pilares que garantem a qualidade dos serviços e a capacidade de desenvolvimento dos mesmos.
A qualidade total, em termos internos é algo que apela à rentabilidade da organização
e à utilização correta dos seus recursos humanos e materiais, apelando para a perfeição, em
termos externos procura a satisfação do consumidor e a concorrência competitiva.
A gestão da qualidade total é um esforço totalmente integrado e é total quando cada
pessoa da organização estiver envolvida, as exigências dos clientes forem satisfeitas e os
gestores do topo estiverem totalmente comprometidos.
É necessário que a qualidade seja considerada atingível e que os profissionais atendam,
reflitam e avaliem os custos da não qualidade. É igualmente importante avaliar os riscos e
conhecer os pontos fortes e fracos da gestão da qualidade total. Os pontos fortes são:
• Colocar o cliente em primeiro lugar e a sua satisfação como objetivo principal;
• Fornecer um conjunto de técnicas de gestão baseadas em instrumentos de medição;

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 615 20/06/2023 16:47:09


• Encorajar a participação e o trabalho em equipa no diagnóstico e resolução de pro-
blemas da organização;
• Poder ser utilizada em organizações culturalmente distintas.

Melhoria contínua da qualidade

Sabemos que não pode haver qualidade sem pessoas motivadas e treinadas para essa
mesma qualidade. A qualidade não é uma questão de moda, mas sim a evolução normal
das metodologias de bem gerir pessoas com a visão de obter melhores resultados como
meio de estimular o desenvolvimento acelerado de novos sectores, ou seja, a nova forma
de visão da gestão nas nossas organizações.

Indicadores de qualidade

Os critérios ou indicadores de qualidade devem estar centrados nas necessidades dos


consumidores e devem permitir precisar em que medida essa necessidade é satisfeita. São
dados observáveis e mensuráveis que permitem verificar se a norma é ou não respeitada
constituindo-se como a sua unidade de medida.
A definição de padrões e critérios permite verificar se o que se faz está de acordo com
aquilo que se pretende como desejável. Enquanto que os padrões de qualidade represen-
tam os compromissos para com os consumidores/comunidade, os critérios de qualidade
medem a satisfação do cliente. Qualquer serviço de qualidade tem que procurar equilibrar
616 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

os interesses dos utentes, da comunidade e dos funcionários.


Para a unidade propôs-se:
• Potenciar o conhecimento e a habilidade dos funcionários que contactam com
o cliente de forma a aumentar a competência inerente à Melhoria Contínua da
Qualidade. É fundamental pesquisar, atualizar conhecimentos e treinar.
A instituição auscultou a equipa, realizando plano de formação e programas adaptados
às necessidades, com base nos seus valores (inclusão, conciliação da vida pessoal e profissio-
nal das colaboradoras, excelência dos cuidados e satisfação do cliente).
Os indicadores de qualidade analisados incluiram:
• Índice de satisfação de familiares/visitas e acompanhantes, nas diferentes dimensões
de questionário anónimo;
• Taxa de incumprimento de registos nos planos de cuidados personalizados (apura-
dos em impresso de observação);
• Taxa de cumprimento do plano de formação de 2019 (formações executadas/for-
mações planeadas x 100%);

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 616 20/06/2023 16:47:09


• Índice de satisfação das formandas (inquérito de satisfação);
• Resultados da avaliação das sessões de formação (avaliação dos formadores no pro-
cesso pedagógico).

Padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem

A definição de qualidade quando aplicada aos cuidados de enfermagem é complexa e


multidimensional.
Segundo a Ordem dos Enfermeiros (2012), os padrões assentam em enunciados des-
critivos de qualidade do exercício profissional dos enfermeiros. Estes visam explicitar a
natureza e englobar os diferentes aspetos do mandato social da profissão de enfermagem.
Deseja-se que constituam um instrumento importante que ajude a precisar o papel do
enfermeiro junto dos clientes, dos outros profissionais, do público e dos políticos. Trata-se
de uma representação dos cuidados que deve ser conhecida por todos os clientes.
A Ordem dos Enfermeiros (2019) definiu seis categorias de enunciados descritivos,
sendo eles relativos a:
• Satisfação dos clientes;
• Promoção da saúde;
• Prevenção de complicações;
• Bem-estar e ao autocuidado dos clientes;
• Readaptação funcional;
• Organização dos cuidados de enfermagem.

617 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Na procura permanente da excelência no exercício profissional, o enfermeiro persegue
os mais elevados níveis de satisfação dos clientes e ajuda os clientes a alcançarem o máximo
potencial de saúde. O enfermeiro previne complicações para a saúde dos clientes e maximi-
za o bem-estar dos clientes e suplementa / complementa as atividades de vida relativamente
às quais o cliente é dependente. Conjuntamente com o cliente, o enfermeiro desenvolve
processos eficazes de adaptação aos problemas de saúde e contribui para a máxima eficácia
na organização dos cuidados de enfermagem (Ordem dos Enfermeiros, 2012; 2019).

Áreas de formação para um cuidado de excelência

O n.º 2 do artigo 9.º do Regulamento do Exercício Profissional do Enfermeiro,


adiante REPE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 161/96, de 4 de setembro, e alterado pelo
Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de abril, determina que são “autónomas as ações realizadas
pelos enfermeiros, sob sua única e exclusiva iniciativa e responsabilidade, de acordo com as
respetivas qualificações profissionais, seja na prestação de cuidados, na gestão, no ensino,
na formação ou na assessoria, com os contributos na investigação em enfermagem”.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 617 20/06/2023 16:47:09


O n.º 6 do artigo 9.º do REPE estatui que “os enfermeiros contribuem no exercício
da sua atividade na área da gestão, investigação, docência, formação e assessoria, para a
melhoria e evolução da prestação dos cuidados de enfermagem”;
Todas as áreas são importantes para um cuidado de excelência, contudo faremos ape-
nas referência aquelas que se apresentam mais deficitárias na instituição.
• Posicionamentos: um bom posicionamento e uma mobilidade adequada irá faci-
litar a manutenção da integridade da pele, tal como das amplitudes articulares, da
força muscular e do movimento. Ao nível desta unidade de saúde, os posiciona-
mentos nem sempre são feitos de forma correta, pois o aparecimento de lesões por
pressão são um reflexo da falta de qualidade nesta área. A formação com certeza
colmatará esta falha.
• Higienização das mãos: A higienização das mãos sempre foi considerada uma me-
dida básica para o cuidado ao paciente. Atualmente, os profissionais que trabalham
nas instituições de saúde necessitam ter conhecimento sobre a verdadeira impor-
tância da lavagem das mãos e sua correta higienização. Essa medida está relacionada
às boas práticas de higiene do ambiente e possibilita ao utente proteção contra as
infeções. Apesar de haver uma preocupação na lavagem das mãos, nem sempre esta
é feita de forma correta. O objetivo principal ao formar nesta área recai em melho-
rar a higiene das mãos e proteger o utente de infeções.
• Transferência de doentes: Ao longo do dia o profissional deverá auxiliar pacientes
com as mais variadas condições físicas a realizar transferências posturais. Caso não
sejam tomadas algumas precauções para mover o paciente de forma correta e segu-
618 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ra, o profissional pode acabar desenvolvendo lesões devido ao esforço exagerado e


à má postura durante estas manobras. É notório que os profissionais da instituição
carecem de formação neste âmbito. É importante transferir os doentes com segu-
rança, mas também proteger os profissionais de possíveis lesões posturais.

Conclusões e propostas para a continuidade dos estudos

Envolvidos no processo de melhoria da qualidade dos cuidados prestados, estão os


utentes enquanto consumidores ou potenciais consumidores, as organizações, os gestores
das organizações, prestadores de cuidados enquanto responsáveis pela correta aplicação
dos recursos e pela avaliação da qualidade do serviço prestado e os profissionais de saúde
que, com o seu desempenho, animam o sistema em direção à qualidade.
A liderança numa organização tem sido foco de atenção desde há longos anos. Pode ter
várias definições, mas em todas elas há ênfase no influenciar o outro, em conseguir levar
o outro a fazer algo de forma empenhada e satisfatória, logo influenciando a qualidade.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 618 20/06/2023 16:47:09


A “qualidade” é assim multidimensional e para ela contribuem múltiplos fatores a
considerar na medida em que é necessário dar-lhe aplicabilidade.
Os Instrumentos de Avaliação da Qualidade permitem avaliar a atuação de uma em-
presa, instituição ou serviço, equilibrando caraterísticas próprias das organizações (cul-
tura), e planificando estratégias de potenciação do seu rendimento, não descurando os
aspetos qualitativos da sua intervenção.
Cada enfermeiro deve promover a melhoria da qualidade dentro da sua instituição, ter
em conta os padrões e indicadores de qualidade e contribuir desse modo para o cuidado
de excelência. Só assim se poderá perceber que a qualidade não é apenas mais um desafio
e muito menos uma etapa com meta à vista, mas essencialmente uma forma de estar na
profissão, de posicionamento em relação ao doente, aos recursos humanos e materiais dis-
poníveis utilizados no dia-a-dia da nossa atividade profissional.
Estes estudos, quer se caraterizem de tipologia de estudos de caso ou de oura natureza
científica, são essenciais para a sedimentação do conhecimento e da prática da enfermagem
nas organizações. A continuidade da investigação em enfermagem, no vasto corpo de co-
nhecimentos que integra, mas de forma específica na avaliação da qualidade e do impacto
dos cuidados prestados nas comunidades, contribui e continuará a contribuir não só para
a disciplina, como para a vida e nos Ambientes.
Recomenda-se a continuidade dos estudos, reforçando a ciência, na aplicação dos con-
ceitos dos padrões de qualidade da Ordem dos Enfermeiros na IPSS, na análise dos estilos
de liderança e do seu impacto nos cuidados, na aplicação dos instrumentos de avaliação
de qualidade ou na assunção de novas metodologias (lean, 5W2h, outras), na definição

619 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de efetivos programas de qualidade, aduzidos também à avaliação da melhoria continua.

Resumo

Os enfermeiros contribuem, no exercício da sua atividade na área de gestão, investigação, do-


cência, formação e assessoria, para a melhoria e evolução da prestação dos cuidados de enfermagem.
Faz parte das suas competências organizar, coordenar, executar, supervisionar e avaliar a formação
dos enfermeiros (Ordem dos Enfermeiros, 2019).
O presente estudo de caso versa nos estilos de liderança, na aplicação de Instrumentos de
Avaliação da Qualidade, na identificação de Programas de Qualidade, na definição de Indicadores
e Padrões de Qualidade em Enfermagem para a promoção da melhoria contínua dos cuidados, na
perceção das áreas de formação determinantes para um Cuidado de Excelência e no controlo da
gestão e do planeamento ERPI, valência IPSS ADM Estrela, o Lar de S. Silvestre.
Os resultados encontrados, ainda que limitados no tempo e no espaço pela natureza do estu-
do, somados da análise bibliográfica à aplicação de instrumentos de avaliação da qualidade, pelos
enfermeiros especialistas promotores do estudo e participantes dos cuidados, no ano de 2019, con-
feriram uma visão mais clara do fenómeno de investigação, quer pela concentração no foco da

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 619 20/06/2023 16:47:09


gestão da qualidade na cultura da entidade estudada, quer no detalhe da análise da liderança e do
impacto desta nos cuidados prestados. Para além disso, os ganhos podem também ser medidos pela
assunção das estratégias e programas de melhoria outorgados pela investigação, desde logo para a
instituição e seus valores (mapa estratégico), para a satisfação dos seus profissionais pela inclusão
da sua opinião nos instrumentos de gestão (áreas de formação, SWOT), mas especialmente para o
bem-estar dos seus utentes e comunidade, através do recurso ao pensamento estruturado e baseado
no pensamento científico (BSC, programas de qualidade).
Palavras-chave: Enfermeiro Especialista, Qualidade dos Cuidados de Enfermagem,
Instrumentos de Avaliação da Qualidade, IPSS.

Referência Bibliográfica

Carrapeto, C.; Fonseca, F. (2014). Administração Pública: modernização, qualidade e inovação.


Lisboa: Edições Sílabo, 3.ª ed.
Decreto-Lei n.º 161/96, de 4 de setembro. Regulamento do Exercício Profissional do Enfermeiro
(REPE). (com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de abril).
Despacho n.º 9390/2021. Plano Nacional para a Segurança dos Doentes 2021 -2026 (PNSD 2021
-2026). Ministério da Saúde e Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde. DR, 2.ª
Série, N.º 187 de 24 de setembro de 2021. Pág. 96-103.
Lopes, I. (2021). Intervenções Promotoras de e-Government e e-Health numa Organização de Saúde:
o caso da Unidade Local de Saúde da Guarda. URI: Editora: Instituto Politécnico da Guarda.
Consultado em 10/01/2022 no URI http://hdl.handle.net/10314/5311
Melo, R., Mónico, L., Carvalho, C., Pereira, P., Rezende, H., Duarte, A., … Lousã, E. (2017). Liderança
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Monteiro, B. (2020). Políticas de Saúde nos Programas eleitorais: estudo das propostas nas elei-
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net/10314/5200. Editora: Instituto Politécnico da Guarda. Consultado em 10/01/2022.
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Enquadramento conceptual. Enunciados descritivos. Consultado em https://divulgar-padroes-
-de-qualidade-dos-cuidados.pdf (ordemenfermeiros.pt) em 10/01/2022.
Ordem dos Enfermeiros (2019). Regulamento das Competências Comuns do Enfermeiro Especialista.
Publicado em DR 2.º Série, Regulamento n.º 140/2019, de 6 de fevereiro. Cosultado em
03/01/2021 em https://www.ordemenfermeiros.pt/media/10778/0474404750.pdf.
Regulamento n.º 555/2017, de 20 de setembro. Regulamento de certificação individual de compe-
tências, no âmbito dos procedimentos de atribuição de competência acrescida diferenciada ou
avançada e do título de enfermeiro especialista.
Regulamento n.º 556/2017, de 20 de setembro. Regulamento geral das áreas de competência acres-
cida dos enfermeiros.
Regulamento n.º 76/2018, de 30 de janeiro. Regulamento da Competência Acrescida Avançada
em Gestão.
Website da ADM Estrela, consultado em 09/01/2022 em https://www.admestrela.pt/
adm-estrela-apresentacao/.

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El escenario demográfico de la frontera
castellano-leonesa con Portugal:
una perspectiva temporal

Lía Fernández Sangrador1

Introducción

El concepto de Raya hispano-lusa o Raya ibérica evoca a un espacio geográfico con una
dilatada trayectoria histórica y una marcada personalidad basada en su riqueza patrimo-
nial (tanto cultural como natural). Es la frontera más antigua de Europa (Cabero, 1997)
y su formación se remonta a los tratados de Badajoz (1267) y Alcañices (1297) (Medina,
2006). La delimitación vigente en la actualidad se acordó en el Tratado de Lisboa, firmado
en 1864. Sus 1.234 km de longitud hacen que sea la frontera más larga entre los estados
miembros de la Unión Europea (v. figuras 1 y 2).

621 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 1 – Hito (mojón) 494 junto al río Turones, en las Figura 2 – Señalización fronteriza sobre el puen-
proximidades de la carretera DSA-478 que une Aldea te internacional entre San Martín del Pedroso
del Obispo (Salamanca, España) con Vale da Mula (Zamora, España) y Quintanilha (Bragança,
(Almeida, Portugal). Portugal). N-122-A y N218-1.

Fotografías de Lía Fernández Sangrador, 2022.

1
Personal Investigador en Formación, Departamento de Geografía. Universidad de Salamanca. Esta pu-
blicación se inscribe en el proyecto “CEI: Plataforma Transfronteiriça para a Difusão do Conhecimento”
(referencia 0505_CEI_PT_3_P), en el marco del programa INTERREG V-A España-Portugal (POCTEP).
Investigadora principal: Dra. Dña. María Isabel Martín Jiménez (USAL). Colaboré recabando estadísticas
de la frontera, realizando bases de datos y confeccionando cartografía temática.

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 621 20/06/2023 16:47:13


La región fronteriza ha sido calificada con diversos adjetivos referidos a su lejanía de
los centros de decisión y poder, subrayando el sentido de periferia; se considera un espa-
cio de borde, marginal, una “terra nullius” (Cabero, 2008, p. 178). Se caracteriza por ser
eminente e históricamente rural, y el aislamiento geográfico, los déficits en las infraestruc-
turas, el retroceso poblacional y las fracturas sociales han marcado en los últimos tiem-
pos su identidad. Por ello, desde hace décadas pensar en la frontera hispano-portuguesa
implica también una reflexión sobre la despoblación. La Raya de Portugal se ha asociado
con un espacio de subdesarrollo2 (Pintado y Barrenechea, 1972) intensamente deprimido
(Sánchez y Cabero, 1994). La situación demográfica que atraviesan estos territorios se ha
vuelto cada vez más desfavorable y el deterioro demográfico amenaza con liquidar la vita-
lidad humana de estos lugares. La falta de habitantes hace inviable la sostenibilidad, y la
gestión de los recursos se torna inasumible.
La regresión demográfica no ha cesado y los indicadores vaticinan un oscuro por-
venir. En estos últimos años, el cierre de algunos servicios (como, por ejemplo, las ofi-
cinas bancarias) y las dificultades para el acceso a determinadas prestaciones básicas
(Hortelano y Fernández, 2022) ha supuesto una acumulación de desventajas, reflejando
la adversa realidad a la que se enfrentan los habitantes. Para abordar el problema de la
despoblación, desde la esfera institucional se han puesto en marcha una serie de líneas de
acción y políticas públicas, pero no están siendo lo suficientemente activas para lograr la
reversión de los procesos. También desde el ámbito académico se han buscado solucio-
nes (Hortelano y Martín, 2022).
Teniendo en cuenta todas estas cuestiones, el objetivo principal de la presente inves-
622 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

tigación es estudiar los cambios demográficos que han tenido lugar en la franja rayana de
Castilla y León con Portugal con la finalidad de identificar las zonas más afectadas por
procesos de regresión poblacional y de envejecimiento. Para ello se analizan las principales
variables con el objeto de obtener una visión de conjunto y conocer la situación con la
que este territorio se enfrentará a los retos de futuro, marcados por una lucha frente a la
despoblación y la búsqueda de la vertebración y cohesión regional. Asimismo, se esbozarán
someramente algunas de las iniciativas y estrategias que se han llevado a cabo para dina-
mizar estos espacios.

2
Precisamente, Pintado y Barrenechea (1972) pusieron en evidencia la precariedad de los servicios y las
brechas socioeconómicas.

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La frontera Castellano-Leonesa con Portugal: marco geográfico

La ausencia de unidades territoriales comparables o asimilables entre la adminis-


tración portuguesa y la española dificulta el estudio del espacio fronterizo (Sánchez y
Cabero, 1994; Campesino, 2013). A pesar de que la Oficina Europea de Estadística
(EUROSTAT) definió una división regional jerárquica entre los países de la Unión
Europea con el objetivo de que las series de datos mantuvieran una homogeneidad3, lo
cierto es que sigue sin existir un consenso único a la hora de determinar la franja rayana
hispano-portuguesa4. Tampoco hay acuerdo acerca del alcance del denominado “efecto
frontera”.
Dada la heterogeneidad del espacio transfronterizo respecto a la división adminis-
trativa, el área de análisis se ha centrado en la franja rayana de Castilla y León. De los
1.234 km de la frontera hispano-lusa, 349 forman parte del límite con esta comunidad
autónoma. La zona de estudio seleccionada se circunscribe a las cinco comarcas agrarias
castellano-leonesas que comparten frontera con Portugal: Sanabria, Aliste y Sayago en la
provincia de Zamora, y Vitigudino y Ciudad Rodrigo en la provincia de Salamanca (v.
figura 3). Su superficie (10.204,32 km2) representa el 10,8% de la extensión de Castilla y
León (94.224,03 km2) y los 64.005 habitantes de 2021 apenas constituían el 2,7% de la
población de la comunidad, que ascendía a 2.383.139 habitantes (v. tabla 1).

623 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
3
En 2003 se establecieron, con carácter legal, tres niveles de unidades territoriales estadísticas (NUTS)
(Reglamento (CE) n° 1059/2003). También se acordó un sistema de Unidades Administrativas Locales
(LAU) compuesto por dos niveles hasta 2016 y desde 2017 por un solo nivel.
4
Las diferentes investigaciones científicas e informes técnicos han empleado distintas delimitaciones en fun-
ción de su objetivo. Tomando como ejemplo la Raya de Castilla y León, algunos trabajos académicos han
considerado la división comarcal agraria para concretar el ámbito de estudio, bien centrados en las pertene-
cientes a una de las dos provincias (Sánchez y Cabero, 1994) o bien a lo largo de la frontera de la comunidad
con las regiones Centro y Norte de Portugal (Caramelo, 2007, p. 44 y pp. 385-452; Martín y Hortelano,
2017; Hortelano y Fernández, 2022). En otros casos, como en el Programa de Cooperación Transfronteriza
España-Portugal (POCTEP) 2021-2027 (en el marco de INTERREG), el desglose del espacio que abarca
se basa en las NUT III, un total de 36, pertenecientes a ambos países (para Castilla y León se incluyen, por
ejemplo, las provincias limítrofes de Zamora y Salamanca, y las adyacentes de León, Valladolid y Ávila con
menor participación en los fondos comunitarios transfronterizos).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 623 20/06/2023 16:47:13


624 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 3. Raya de Castilla y León con Portugal: zona de estudio.


Fuente: Instituto Geográfico Nacional y Direcão-Geral do Território. Elaboración propia.

Comarca Número de Superficie Habitantes en Densidad de población


agraria municipios (km2) 2021 en 2021 (hab/km2)

Sanabria 28 1.996,01 8.271 4,14


Aliste 30 1.945,00 11.082 5,70
Sayago 24 1.484,60 7.490 5,05
Vitigudino 56 2.362,33 15.160 6,42
Ciudad Rodrigo 44 2.416,38 22.002 9,11
Raya luso-castellana 182 10.204,32 64.005 6,27
Castilla y León 2.248 94.224,03 2.383.139 25,29

Tabla 1. Estadísticas básicas de las comarcas fronterizas (2021).


Fuente: Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes y Registro de Entidades Locales. Elaboración propia.

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Se caracteriza por una marcada ruralidad5 y una débil ocupación humana del territorio,
aunque en el plano de los recursos constituye un espacio diverso con una gran riqueza natu-
ral6 y cultural. El fuerte episodio migratorio que tuvo lugar en la década de 1960 dio lugar a
una serie de fracturas sociales, entre las que destacan el descenso de la población residente y
el desequilibrio de la estructura etaria. En la actualidad sufre un intenso proceso de enveje-
cimiento y despoblación. De hecho, la densidad demográfica para el conjunto rayano es de
6,27 hab/km2, una cifra inferior a los 10 hab/km2 que marcan el umbral por debajo del cual
se considera que una zona es un desierto demográfico; también es inferior a los 8 hab/km2
que definen las áreas muy escasamente pobladas (Gómez-Villarino y Gómez-Orea, 2021, p.
908). Esta circunstancia pone en riesgo la viabilidad en la gestión de los espacios. Además,
las débiles conexiones viarias intrarregionales y transfronterizas, la falta de vertebración ter-
ritorial y la posición periférica –en el extremo de Europa, en el margen de Castilla y León,
en el borde provincial de Zamora y Salamanca– han colocado a la franja fronteriza en un
escenario de elevada fragilidad (Cabero, 2004). A esta perspectiva hay que añadir que el
espacio fronterizo castellano-leonés que limita con las regiones Norte y Centro de Portugal
está incluido dentro de los “territorios en desventaja geográfica y con dificultades especí-
ficas” (Hortelano y Martín, 2022) según los informes de cohesión territorial de la Unión
Europea (Comisión Europea, 2004; Reglamento (UE) n ° 1303/2013).

Métodos y fuentes

El estudio de la Raya hispano-portuguesa en el sector de Castilla y León ha suscitado

625 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
la atención desde distintos ámbitos y las publicaciones sobre esta temática han tenido cierta
continuidad en el tiempo (Cabero y Plaza, 1987; Sánchez y Cabero, 1994; Baraja, 2003;
Cabero, 2008; Díez y Pardo, 2020). La lejanía y posición de borde en los márgenes de los
territorios soberanos motivó, en los últimos años del siglo XX y comienzos del XXI, la preo-
cupación por diagnosticar sus debilidades y potencialidades7. En los últimos años, debido a
la intensidad de la despoblación que amenaza los espacios rurales rayanos, ha adquirido
un nuevo impulso; algunas investigaciones se han orientado a abordar las dinámicas y la

5
El municipio de Ciudad Rodrigo, con 12.065 habitantes es el único que supera los 10.000; el siguiente con más
población es Vitigudino, con 2.410. El resto no superan los 2.000 habitantes y el 53% tienen menos de 500.
6
Este aspecto debe ser tenido en cuenta bajo una doble vertiente: por un lado, desde la óptica del valor eco-
lógico de sus paisajes, muchos de los cuales cuentan con figuras de protección y han sido empleados como
reclamo turístico; por otro lado, desde la orientación a la producción de energía a través del aprovechamien-
to hidroeléctrico.
7
Conviene señalar, por ejemplo, que, en 1999, la Junta de Castilla y León encargó a las cuatro universidades
públicas la elaboración de una investigación sobre las áreas periféricas de la comunidad, fruto de la preocu-
pación política (Cabero, 2004, pp. 81-83).

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evolución (Plaza, 2020; Fernández, 2022; Martín y Fernández, 2022), otras se han centra-
do en evaluar la accesibilidad a los servicios básicos (Hortelano y Fernández, 2022); y otras
han revisado cuestiones relacionadas con las políticas públicas (Molina, 2020; Domínguez,
2021).
Para acometer el análisis del escenario demográfico de la frontera castellano-leone-
sa limítrofe con los territorios portugueses a lo largo de Trás-os-Montes, Douro y Beira
Interior Norte, se ha partido, por tanto, de la revisión de la literatura académica y cientí-
fica. Paralelamente, se han consultado diferentes estrategias, informes de programas insti-
tucionales e iniciativas comunitarias relacionadas con el denominado reto demográfico y
con la cooperación transfronteriza a distintas escalas (europea, nacional y autonómica) con
el objetivo de recoger distintas acciones propuestas.
También se ha realizado una búsqueda y una selección de estadísticas. Con los datos y
cifras facilitadas por el Instituto Nacional de Estadística (INE), procedentes de los Padrones
de Habitantes, los Censos de Población y de las Estadísticas del Movimiento Natural de la
Población, se ha creado una base de datos. A partir de ella se han calculado distintas tasas
e índices con la finalidad de cuantificar la intensidad de la atonía demográfica, observar los
cambios en la estructura poblacional y determinar las principales consecuencias.
Para sintetizar la información, atendiendo a la dimensión espacial y a su variación, se han
elaborado una serie de mapas temáticos de naturaleza cuantitativa (a excepción del mapa ge-
neral de situación) en los que se han integrado los diferentes datos y tasas que apoyan el análi-
sis. De esta forma se ha enfatizado la distribución espacial de los indicadores demográficos. La
herramienta utilizada para el tratamiento y la representación cartográfica ha sido el Sistema
626 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de Información Geográfica ArcGIS 10.5 (ESRI) y las capas de referencia con las distintas
geometrías territoriales –producidas por el Instituto Geográfico Nacional (IGN) – se han
obtenido a través del Centro de Descargas del Centro Nacional de Información Geográfica
(CNIG). Por otra parte, se han confeccionado diversos gráficos para presentar los resultados.
Con todo ello se ofrece una panorámica de conjunto acerca de la dimensión y evolu-
ción de la despoblación de la Raya castellano-leonesa con Portugal y de la incidencia de las
distintas líneas de intervención para la urgente dinamización demográfica.

Evolución demográfica de la Raya de Castilla y León

Desde hace décadas, la Raya castellano-leonesa se halla inmersa en un proceso de


regresión demográfica que parece no tener freno, al igual que sucede en otros territorios
rurales de la comunidad. El germen de la intensa depresión que atraviesan buena parte de
los municipios se encuentra en la fuerte emigración que tuvo lugar a partir de la década
de 1950. Este éxodo rural generalizado vino motivado por el bajo nivel de desarrollo

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económico y las escasas oportunidades de empleo. La población joven con capacidad la-
boral se desplazó hacia las áreas urbanas, legando a sus lugares de origen un descenso
poblacional que no ha cesado con el paso de los años, consecuencia del estancamiento de
la natalidad y el envejecimiento de los habitantes. Los territorios fronterizos entraron, de
esta forma, en una espiral de declive.
Entre 1950 y 2021 la población en la Raya de Castilla y León ha pasado de 193.384
habitantes a 64.005, lo que supone una pérdida de más de la mitad de sus efectivos (con-
cretamente un 67%). Las comarcas más afectadas han sido Aliste y Sanabria, cuyo padrón
se ha reducido a más de una tercera parte; actualmente cuentan con un 70% menos de
vecinos que en 1950. Por el contrario, Ciudad Rodrigo, gracias a poseer una cabecera
comarcal más dinámica y con una función de centralidad más marcada, ha sufrido un
descenso algo menor, próximo al 60%.
En las décadas de 1960 y 1970 la merma fue mucho más intensa que en los años
posteriores (v. figuras 4 y 5). A pesar de que la tendencia negativa ha permanecido ininter-
rumpida, es cierto que se ha suavizado (v. figura 4). La evolución seguida por las cinco co-
marcas ha sido, en general, similar. Si atendemos a la dinámica de los últimos treinta años,
la comarca más afectada por la involución demográfica es la de Sayago. Ha perdido el 40%
de sus habitantes, pasando de 12.578 en 1991 a tan solo 7.490 en 2021, por lo que ac-
tualmente es la menos poblada de la frontera de Castilla y León con Portugal (v. figura 5).
Aliste se aproxima, con una merma del 37%, seguida por Sanabria y Vitigudino, con un
descenso del 35%. En Ciudad Rodrigo el número de habitantes ha disminuido un 30%.
Las fracturas espaciales más directas se han manifestado en la desarticulación de la

627 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
trama municipal. En la últimas dos décadas se han incrementado un 12% los municipios
que poseen entre 101 y 200 habitantes y se ha triplicado el número de los que cuentan con
menos de 100 habitantes, acentuándose así los espacios de abandono humano (v. tabla 2).

Figura 4. Evolución demográfica en las comarcas fron- Figura 5. Evolución de la población en las comarcas
terizas (índice 1950=100). rayanas (1960, 1991, 2021).

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Fuente: Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.

Municipios Municipios Municipios


Tamaño de los municipios
2001 2011 2021
(habitantes)
Nº % Nº % Nº %
< 100 12 6,59 22 12,09 33 18,13
101 - 200 41 22,53 50 27,47 63 34,62
201 - 500 82 45,05 74 40,66 64 35,16
501 - 1.000 32 17,58 25 13,74 13 7,14
1.001 - 2.000 12 6,59 9 4,95 7 3,85
2.001 - 5.000 2 1,10 1 0,55 1 0,55
5.001 - 10.000 0 0,00 0 0,00 0 0,00
> 10.000 1 0,55 1 0,55 1 0,55
Total 182 100 182 100 182 100

Tabla 2. Tamaño de los municipios por habitantes en la Raya de Castilla y León (2001, 2011, 2021).
Fuente: Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.

El declive demográfico ha repercutido sobre la débil ocupación del territorio, que se


ha agravado con el paso de los años. La densidad de población en la Raya de Castilla y
León ascendía a 17,8 hab/km2 en 1960 mientras que en 1991 ya se encontraba por de-
bajo de 10 hab/km2, concretamente en 9,6. Los 6,3 hab/km2 actuales están lejos de los
parámetros viables para una adecuada gestión de los recursos, y constituye una cifra por
debajo del umbral que señala la Unión Europea como indicativo de zonas muy escasa-
628 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

mente pobladas. A esta situación se añade que, a escala local, el número de municipios
con una densidad inferior a los 3 hab/km2 se ha incrementado en los últimos 20 años;
representan en la actualidad una cuarta parte, lo que implica serias dificultades para la
sostenibilidad territorial (v. tabla 3). También han aumentado los municipios con una
densidad entre 3 y 5 hab/km2. Por el contrario, se han reducido casi a la mitad aquellos
con densidades superiores a 12,5 hab/km2 (de los 17 que había en 2001 solo quedan
10), por lo que únicamente el 5,5% de los municipios se hallan fuera del riesgo de des-
población. Estas zonas menos afectadas coinciden con las cabeceras comarcales y con los
núcleos que tienen alguna función de centralidad y oferta de servicios, como Aldeadávila
de la Ribera, Lumbrales, Fuentes de Oñoro, Fermoselle, Villavieja de Yeltes o Masueco.
Los espacios con menores densidades de población (donde se concentran buena parte de
los municipios con menos de 3 hab/km2) y una mayor brecha demográfica se localizan,
sobre todo, en las comarcas de Sanabria y Alto Aliste, así como en la franja oriental de
Vitigudino (v. figura 6).

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Municipios Municipios Municipios
 Densidad de población 2001 2011 2021
Nº  % Nº  % Nº  %
Menos de 3 hab/km 2
19 10,44 29 15,93 46 25,27
De 3 a 5 hab/km2 33 18,13 39 21,43 60 32,97
De 5 a 8 hab/km 2
59 32,42 70 38,46 54 29,67
De 8 a 10 hab/km2 34 18,68 24 13,19 7 3,85
De 10 a 12 hab/km2 20 10,99 5 2,75 5 2,75
Más de 12 hab/km 2
17 9,34 15 8,24 10 5,49
Total 182 100 182 100 182 100

Tabla 3. Evolución de la densidad demográfica en la Raya de Castilla y León.


Fuente: Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.

629 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 6. Densidad de población en los municipios de la Raya castellano-leonesa (2001-2021).


Fuente: Instituto Geográfico Nacional e Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.

La reducción de las cohortes jóvenes a causa de la emigración llevó aparejada una


disminución drástica de las tasas de fecundidad y de natalidad, con una incidencia
significativa en las estructuras demográficas y socioeconómicas de la región fronteriza

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castellano-leonesa. Así pues, si en la década de 1950 presentaba un perfil piramidal
caracterizado por una base ancha frente a una cúspide reducida, expresiva de unas altas
tasas de natalidad y una mortalidad descendente, en 2001 ya se había tornado a un
perfil rectangular, en el que intuía la tendencia al envejecimiento; el estrechamiento o
incisión en las cohortes centrales de la población adulta reflejaba el éxodo rural acaecido
en las décadas precedentes8. La pirámide correspondiente a 2021 se encuentra comple-
tamente invertida y muestra el desequilibrio en la estructura por edad, con un fuerte
contraste entre la población joven, que representa solamente el 6,2% de los habitantes,
y los mayores de 65 años, que constituyen el 39,4%, es decir, más de un tercio9 (v. fi-
gura 7). El elevado peso de las personas mayores evidencia el profundo envejecimiento
que sufre la Raya de Castilla y León con Portugal, con un índice de más de 6 ancianos
por cada joven con menos de 15 años (v. tabla 4). Todo ello se traduce en unas tasas de
dependencia muy altas, bastante por encima de las medias provinciales, sobre todo en la
comarca de Aliste (101%).
630 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

8
En esta fecha, el 8,8% de la población tenía menos de 15 años, el 55,6% poseía una edad comprendida
entre 15 y 64 años y el 35,6% eran mayores de 65.
9
En dos décadas, los habitantes con más de 65 años se han incrementado un 3,8%, mientras que los jóvenes
se han reducido un 2,6%, acentuándose aún más el proceso de envejecimiento.

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Figura 7. Estructura de la población por sexo y edad de la frontera de Castilla y León con Portugal (2001, 2021).
Fuente: Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.
Habitantes de Habitantes entre Habitantes con 65
Comarcas menos de 15 años 15 y 64 años y más años Habitantes Índice Tasa de
agrarias en 2021 de vejez dependencia
Total % Total % Total %

Sanabria 452 5,46 4.542 54,91 3.277 39,62 8.271 7,25 82,10

Aliste 476 4,30 5.495 49,58 5.111 46,12 11.082 10,74 101,67

Sayago 388 5,18 4.017 53,63 3.085 41,19 7.490 7,95 86,46

Vitigudino 827 5,46 8.165 53,86 6.168 40,69 15.160 7,46 85,67

Ciudad
1.824 8,29 12.633 57,42 7.545 34,29 22.002 4,14 74,16
Rodrigo

Raya de
3.967 6,20 34.852 54,45 25.186 39,35 64.005 6,35 83,65
Castilla y León

Provincia de
15.489 9,18 100.582 59,61 52.654 31,21 168.725 3,40 67,75
Zamora

Provincia de
36.389 11,12 203.133 62,06 87.816 26,83 327.338 2,41 61,14
Salamanca

Castilla y León 276.004 11,58 1.493.624 62,67 613.511 25,74 2.383.139 2,22 59,55

Tabla 4. Estructura por edad en las comarcas de la Raya de Castilla y León en 2021.
Fuente: Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes (2021).

631 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
La configuración de la pirámide para el conjunto fronterizo en 2021 revela el au-
mento en la esperanza de vida y la mayor longevidad de la mujer. Por otra parte, la
presencia de cohortes huecas en varias pirámides municipales, especialmente entre la
población joven, pone de manifiesto la desestructuración demográfica de los núcleos
pertenecientes a lo que diferentes geógrafos europeos e ibéricos han denominado “espa-
cios rurales profundos”.

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Figura 8. Población con menos de 15 años en los Figura 9. Población con más de 65 años en los
municipios de la Raya de Castilla y León en 2021 municipios de la Raya de Castilla y León en 2021
(porcentaje). (porcentaje).

Fuente: Instituto Geográfico Nacional e Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.
632 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

La estructura por edades y sexo tiene una repercusión directa sobre el comporta-
miento futuro de la población. En consecuencia, la situación para los años venideros se
presenta bastante oscura y desfavorable debido a la escasa representación de los jóvenes,
la elevada edad media de los pobladores y la ausencia de nacimientos en la mayor parte
de los municipios. Los valores medios encubren las diferencias existentes a nivel local.
En 2021, 12 municipios carecían de habitantes con menos de 15 años y en otros 20,
concentrados sobre todo en La Ribera y La Ramajería pero también distribuidos por
Sanabria y Aliste, no llegaban al 2% (v. figura 8). Con valores por encima de la media
del espacio rayano se encontraban 32 municipios, de los cuales solo 5 poseían más de un
10% de población joven. Por otra parte, los habitantes mayores de 65 años constituían
más de la mitad de la población en 42 municipios, localizados especialmente en la zona
de Sanabria y Alto Aliste y el sector central de la comarca de Vitigudino, y superaban el
60% en 7 de ellos (Otero de las Bodas, Figueruela de Arriba, Cerralbo, La Alameda de
Gardón, Mieza, Cerezal de Peñahorcada y Molezuelas de la Carballeda) (v. figura 9). A
esta situación se suma la alta edad media de los residentes; en 2021 era superior a los 60

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 632 20/06/2023 16:47:19


años en el 43% de los municipios10 (78), cifra que refleja el intenso carácter envejecido
de los pueblos (v. figura 10). Únicamente en La Bouza, Vitigudino, Fuentes de Oñoro,
Puebla de Sanabria, Ciudad Rodrigo y Saelices el Chico la edad media de los pobladores
era inferior a los 50 años.
Como consecuencia de la estructura envejecida, las tasas de natalidad son especial-
mente bajas (inferiores al 3 por mil); en 2020, 108 municipios (es decir, el 60%) no tu-
vieron ningún nacimiento y en 47, solo nació un bebé (v. figura 11). Además, entre 2011
y 2020 no se registraron nacimientos en 15 municipios. Entre 2016 y 2020 fueron 40 los
municipios con una tasa de natalidad cero.

633 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Figura 10. Edad media de la población en los munici- Figura 11. Tasa Bruta de Natalidad en los municipios
pios de la Raya de Castilla y León (2021). de la Raya de Castilla y León (2020).

Fuente: Instituto Geográfico Nacional e Instituto Nacional de Estadística, Padrón de habitantes. Elaboración propia.

El retorno de algunos pobladores y el asentamiento de nuevos habitantes no ha logra-


do compensar las elevadas pérdidas. A modo de resumen, conviene señalar que Aliste pre-
senta un envejecimiento disparado, tanto por la elevada representación de los habitantes

10
En Molezuelas de la Carballeda (Sanabria) la edad media de los habitantes era de 71 años, constituyendo la
más elevada de toda la Raya de Castilla y León.

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con más de 65 años como por la baja proporción de jóvenes, que es la menor entre todas
las comarcas. En el lado opuesto se nos muestra Ciudad Rodrigo donde, gracias a la fun-
ción de centralidad de su cabecera junto a su mayor base económica, las cifras son menos
severas y se alejan de la media de la franja fronteriza.

Acciones frente al reto de la despoblación

Los efectos de la despoblación han ocupado el centro del debate en diagnósticos e inves-
tigaciones realizadas desde distintas escalas institucionales. Se ha tratado de ofrecer posibles
soluciones y líneas de intervención desde diferentes niveles destinadas a revertir la desfavora-
ble tendencia demográfica que afecta a la frontera luso-castellana. La situación de fragilidad
social y vacío poblacional es común al res​to de territorios rayanos y por ello desde la Unión
Europea se han desarrollado planes de acción concretos con el objetivo de fijar habitantes a
uno y otro lado de la Raya y mejorar la permeabilidad transfronteriza corrigiendo deficiencias
en la infraestructura viaria gracias a distintos Fondos Estructurales y de Inversión Europeos.
Desde el marco comunitario se impulsa el desarrollo y la cooperación transfronteriza a través
de los programas INTERREG-A11. En la nueva programación de los fondos europeos, el
Programa de Cooperación Transfronteriza España – Portugal (POCTEP) 2021-2027 contem-
pla, dentro del objetivo político 4, una prioridad –la número 5– destinada íntegramente a
“potenciar la cooperación para afrontar el reto demográfico en el espacio fron-
terizo, creando condiciones de vida atractivas basadas en el acceso al mercado de
trabajo, servicios públicos esenciales, accesibilidad y aplicando principios de inclu-
634 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

sión social e igualdad de oportunidades y trato” (Comisión Europea, 2022, p. 71).

Se pretende, de esta forma, detener el retroceso poblacional fijando habitantes me-


diante la dinamización empresarial y el aprovechamiento de los recursos endógenos (a
través su explotación para la producción o por medio de la puesta en valor del patrimonio
como foco de atracción de turismo) (Ibidem, p. 15).
Los municipios rayanos, entre otros, se han beneficiado también de las ayudas vin-
culadas a la iniciativa comunitaria LEADER y a los Programas Operativos de Desarrollo
y Diversificación Económica de Zonas Rurales PRODER, gestionadas por los distintos
Grupos de Acción Local (Hortelano, 2015; Hortelano y Mansvelt, 2017).
A nivel estatal destacan varios instrumentos. En 2017 el Consejo de Ministros aprobó
la creación del Comisionado del Gobierno frente al Reto Demográfico, al que se asignó,

11
Esta iniciativa lleva en activo más de tres décadas; comenzó con el periodo de programación INTERREG
I (1990-1993) y el último que está previsto es INTERREG VI (2021-2027).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 634 20/06/2023 16:47:21


entre otras funciones, el desarrollo de una Estrategia Nacional para abordar dicha proble-
mática. En 2019 se aprobaron las Directrices Generales de la Estrategia Nacional frente al
Reto Demográfico, donde se diagnosticaron los efectos del envejecimiento y la involución
demográfica y se fijaron los objetivos y líneas de acción a seguir12. En 2020 se presentó
la Estrategia Común de Desarrollo Transfronterizo, en la que están implicadas la República
Portuguesa y el Ministerio para la Transición Ecológica y el Reto Demográfico (MITECO).
Entre sus metas se encuentra dinamizar la Raya para asegurar su sostenibilidad y garantizar
la cohesión territorial amenazada por la despoblación y el envejecimiento. De esta manera,
el quinto objetivo estratégico se centra en “favorecer la fijación de población en las zonas
transfronterizas […]” (República Portuguesa y MITECO, 2020, p. 3). Además, en 2021
el MITECO lanzó el Plan de Recuperación: 130 medidas ante el Reto Demográfico, articu-
lado en 10 ejes de actuación centrados en impulsar las competencias digitales, el turismo
sostenible o la actividad empresarial, ofrecer mayores oportunidades a mujeres y jóvenes o
fortalecer los servicios públicos.
En Castilla y León se han aprobado distintos planes, entre los que cabe mencionar la
Estrategia de Lucha contra la Despoblación (2005-2009) y la Agenda para la Población de
Castilla y León 2010-202013. En 2021 se firmó un convenio entre la Administración General
de la Junta de Castilla y León y la Universidad de Burgos para la “realización de actuaciones
en materia de dinamización demográfica”, entre las que se encuentra la elaboración de la
Estrategia autonómica frente al reto demográfico de Castilla y León (2021-2027) (Hortelano,
2022). En ella están colaborando también las universidades de León, Salamanca y Valladolid.
Desde el ámbito académico han emanado iniciativas, propuestas y estudios ligados

635 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
especialmente al turismo como incentivo para dinamizar el espacio rayano, en línea con las
acciones marcadas desde la esfera institucional (v. supra). Varios de ellos se han focalizado
en la puesta en valor del patrimonio territorial (Plaza, 2002; Hortelano, 2015b; Hortelano
y Martín, 2017). Otros se han centrado en identificar los problemas a escala local y propo-
ner soluciones vinculadas con la mejora y el mantenimiento de los servicios públicos o la
dinamización de la economía para crear oportunidades de empleo que sirvan para atraer a
nuevos pobladores (Hortelano y Martín, 2022).
Por último, debe subrayarse que, tal y como demuestran las estadísticas socioeconó-
micas, los esfuerzos no están siendo suficientes para revertir el proceso de abandono que
afecta a la frontera luso-castellana. Conviene realizar una evaluación de las políticas que se
han desarrollado en el marco de los programas de cooperación (Caramelo, 2007, p. 14).

12
En Portugal se pusieron en marcha la Estratégia para la Coesão Territorial y el Programa de Valorizaçao do
Interior en Portugal.
13
Acuerdo 44/2010, de 14 de mayo, la Junta de Castilla y León por el que se aprueba la Agenda para la
Población de Castilla y León 2010-2020. BOCyL, núm. 92, de 17 de mayo de 2010.

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Aunque han reportado beneficios a estas zonas de borde, lo cierto es que los resultados no
han sido lo suficientemente sólidos y, como indica Cabero (2008, p. 190), “no han logrado
corregir a escala local y regional los efectos negativos del vaciamiento social y económico,
ni han contribuido de momento a una mejora sustancial y equitativa de los servicios pú-
blicos en el medio rural fronterizo”.

Consideraciones finales

La fuerte emigración acaecida a mediados del siglo pasado ha debilitado el espacio


rayano, repercutiendo de forma directa sobre las estructuras socioeconómicas. El drástico
retroceso demográfico unido a la disminución de las tasas de fecundidad y natalidad y al
aumento de la esperanza de vida de la población mayor ha provocado un intenso enveje-
cimiento y, por consiguiente, un incremento de las tasas de dependencia (superando las
medias provinciales). Paralelamente, en el medio rural fronterizo se ha producido un vacío
en la ocupación humana, registrando en la actualidad unas exiguas densidades de pobla-
ción que no alcanzan el umbral mínimo para una viabilidad en la gestión de los recursos
naturales y que hacen que la Raya de Castilla y León esté incluida entre las zonas menos
pobladas de la Unión Europea. Además, la reducción del tamaño de los municipios ha
acentuado las fracturas espaciales y la desvertebración territorial.
Los adversos indicadores ponen en riesgo la sostenibilidad demográfica de la franja
fronteriza. Las comarcas zamoranas están siendo las más afectadas. La bajísima ocupación
no alcanza la media rayana, sobre todo en Sanabria, y la desequilibrada estructura etaria se
636 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

traduce en índices de vejez muy elevados y altísimas tasas de dependencia, especialmente


en Aliste. Las comarcas salmantinas presentan una brecha menor, aunque solo Ciudad
Rodrigo escapa a los desfavorables valores medios de las tasas del conjunto fronterizo.
A pesar de que las investigaciones e informes reflejan la dura realidad demográfica
que atraviesa la frontera castellano-leonesa con Portugal, lo cierto es que solo es posible
percibir la verdadera dimensión del reto recorriendo los parajes por las carreteras locales
que han perdido el asfalto y que demuestran el abandono al que han quedado relegados
algunos de estos municipios. Desde ellas se contempla la riqueza natural, pero también se
ponen de manifiesto las dificultades a las que se enfrentan los pobladores para acceder a los
servicios esenciales14 (v. figura 12).
La lucha contra la despoblación y la búsqueda de la vertebración territorial consti-
tuyen, por tanto, los desafíos del futuro. La desequilibrada composición por sexo y edad,

14
Uno de los ejemplos concretos que merece ser citado es el de la carretera ZA-L-2674, que atraviesa la Sierra
de la Culebra en las cercanías de Peña Mira, uniendo Linarejos y Villarino de Manzanas. El asfalto degrada-
do, los baches y la vegetación que la invade refleja el olvido en el que se encuentran estos núcleos.

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caracterizada por el acusado envejecimiento y la escasa presencia de grupos jóvenes, la
ausencia de vitalidad y dinamismo y el vacío demográfico no invitan al optimismo y au-
guran un oscuro porvenir si no se toman las medidas y decisiones oportunas. Las distintas
iniciativas y estrategias que se han puesto en marcha no han sido suficientes para revertir
la tendencia negativa y frenar el proceso regresivo, como revelan las estadísticas analizadas.
Su éxito ha sido relativo. Resulta evidente, por ello, la necesidad de mantener líneas de
acción e intervención, pero también se debe reflexionar acerca de su eficacia, puesto que
no se aprecian cambios significativos de recuperación.
Aunque desde la administración se han buscado soluciones para dar respuesta a la
despoblación, a la vista de la evolución de las cifras, tanto de pérdida poblacional como
de envejecimiento y falta de vitalidad, parece que los informes oficiales son pura retórica
tecnocrática. No obstante, ya nos advertía Campesino (1994) del tiempo que se tardaría
en rehabilitar el territorio transfronterizo. Esto pone de manifiesto la relevancia de seguir
incidiendo en el gran reto que plantea la despoblación, apoyando nuevas líneas estratégicas
que movilicen sinergias y traspasen el ámbito local.
Para finalizar, terminaremos con una metáfora fruto de la lectura poética del paisaje
transfronterizo: el relieve que se divisa desde el Miradouro Natural do Alto da Sapinha
(situado en la carretera N221 que une Barca d’Alva y Escalhão), presidido por el arribe
portugués (con el transcurso del río Águeda separando el territorio luso del salmantino),
nos revela de forma topográfica y simbólica la gráfica de la caída demográfica que atraviesa
la frontera (v. figura 13).

637 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Figura 12. Carretera ZA-L-2674 que une las localida- Figura 13. Vista del arribe portugués y del río
des de Linarejos (Manzanal de Arriba) y Villarino de Águeda desde el Miradouro Natural do Alto da
Manzanas (Figueruela de Arriba). Al fondo está Peña Sapinha (Mogadouro).
Mira.

Fotografías de Lía Fernández Sangrador, 2022.

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Figura 14. Esquema interpretativo de la vista del arribe portugués desde el Miradouro Natural do Alto da
Sapinha (cf. Figura 13).
Idea original: Lía Fernández Sangrador, 2022. Dibujo: Valentín Cabero Diéguez, 2022.

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Emigración y población vinculada entre la
península y América: el caso de Zamora
y Salamanca

José Delgado Álvarez1


Rubén Sánchez Domínguez2
Juan Andrés Blanco Rodríguez3

Introducción

La dinámica demográfica de las provincias de Zamora y Salamanca, en concreto su


evolución desde mediados del siglo XIX hasta la actualidad, ha estado condicionada por el
fenómeno de la emigración, jugando esta un papel determinante.
A mediados del XIX Zamora contabilizaba un total de 180.000 habitantes y
Salamanca, por su parte, en torno a 240.000 (Madoz, 1845-50). Cabe señalar que las

641 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
estadísticas oficiales no cuentan con una verdadera credibilidad hasta los años ochenta,
a lo que habría que añadir la no disposición de datos censales oficiales hasta 1900. Estas
últimas bases demográficas aportan información relevante, como así puede observarse en
la Figura 1 y Figura 2, donde se muestra el proceso evolutivo de la población de cada una
de las provincias señaladas desde inicios del siglo XX hasta el momento actual. En ambos
casos la línea seguida es muy similar. Esta se caracteriza por el crecimiento paulatino hasta
la década de 1950. Los inicios del proceso de industrialización fomentan la reducción de la
tasa de mortalidad como consecuencia de los avances alimenticios, sanitarios y de higiene
asociados al mismo, al tiempo que la tasa de natalidad se mantiene aún con índices eleva-
dos. Esta circunstancia motiva el crecimiento cuantificado hasta el momento. A partir de

1
Profesor Asociado de Geografía en Universidad de Salamanca. Secretario General Técnico de la Cátedra de
Población, Vinculación y Desarrollo de la UNED.
2
Investigador de la Cátedra de Población Vinculación y Desarrollo de la UNED.
3
Catedrático de Historia Contemporánea en la Universidad de Salamanca. Director de la Cátedra de Población,
Vinculación y Desarrollo del Centro de la UNED.

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entonces, e impulsados por la atracción que ejercen los polos de desarrollo industriales y
urbanos, junto al exceso de mano de obra agraria como consecuencia de la mecanización,
hechos que se tratarán con mayor detenimiento en próximas líneas, la población abandona
el mundo rural, algo que motiva el descenso demográfico en las provincias de Salamanca
y Zamora a partir de mediados del siglo XX. Los mayores índices de movilización demo-
gráfica se cuantifican en la primera etapa, entre las décadas de 1950 y 1980, si bien conti-
nua hasta hoy día esa tendencia decreciente. El mayor contraste entre lo registrado en las
provincias de Salamanca y Zamora se refleja en la incidencia del cambio. Hasta 1950 el
crecimiento demográfico que caracteriza a ambos territorios muestra un mayor grado en la
provincia de Salamanca. Este hecho, sumado al menor decrecimiento poblacional sufrido
desde entonces, ha motivado un cambio menos acusado que el cuantificado en Zamora. Si
en Salamanca las cifras de población de 1900 y 2021 prácticamente son similares (320.765
y 327.338 respectivamente), a pesar de las fluctuaciones señaladas entre estas, en Zamora
esto no ha sucedido. En este caso los valores del descenso poblacional son muy superiores
a aquellos de crecimiento registrados con anterioridad, circunstancia por la cual en el año
2021 se cuantifican 168.725 habitantes, frente a los 275.545 del año 1900.
A pesar de lo señalado, y aun existiendo notables contrastes entre ambas provincias,
las diferenciaciones se acrecientan si se comparan los datos con la evolución registrada en
la provincia de Valladolid, que a mediados del XIX apenas supera los 200.000 habitantes,
algo que es manifiesto. Como puede observarse al comparar con la Figura 3, las líneas
de tendencia son muy contrastadas desde comienzos del siglo XX. En los tres casos se
cuantifica crecimiento hasta la década de 1950. Desde entonces en Valladolid tiene lugar
642 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

uno de sus mayores cambios demográficos acaecidos hasta el momento en su territorio.


Principalmente a partir de la década de los años 60, esta provincia se establece como
centro de desarrollo regional, área de atracción poblacional de las áreas más próximas.
Debido a ello, el crecimiento también ha dominado en la segunda mitad del siglo XX,
confrontando con lo expuesto en las provincias de Salamanca y Zamora, si bien en la
etapa más actual, principalmente en la última década, no solo se ha ralentizado este pro-
ceso, sino que en gran medida se ha invertido.

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Fig. 1. Evolución demográfica de la provincia de Zamora de 1900 a 2021
Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Instituto Nacional de Estadística (INE).

643 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Fig. 2. Evolución demográfica de la provincia de Salamanca desde 1900


Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Instituto Nacional de Estadística (INE).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 643 20/06/2023 16:47:25


Fig. 3. Evolución demográfica de la provincia de Valladolid desde 1900
Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Instituto Nacional de Estadística (INE).

Incidiendo aún más en los datos, en concreto para el año 2021, cerca de la mitad de
los nacidos en la provincia de Zamora vivían fuera de la misma, destacando de entre estos
los residentes en Madrid y Cataluña (ver Figura 4). El caso de Salamanca es similar. De
los 419.284 nacidos en dicha provincia solo 250.078 vivían en ella, destacando del mismo
modo los residentes en Madrid y en Cataluña (ver Figura 5).
De lo señalado hasta el momento pueden extraerse varias conclusiones relevantes.
644 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Actualmente en ambas provincias la población cuantifica valores muy reducidos, domina-


dos por el continuo descenso, y un excesivo envejecimiento, características que dificultan
el desarrollo.
Uno de los principales motivos que explica lo señalado se vincula a la notable presen-
cia de un gran contingente de población en el conjunto de las tres grandes oleadas migra-
torias que tienen lugar desde el último tercio del XIX.

  España Castilla y León Zamora Madrid Cataluña

Zamora 261.069 163.172 132.786 35.666 11.993

Fig. 4. Población nacida en Zamora según el lugar de residencia


Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Instituto Nacional de Estadística (INE).

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  España Castilla y León Salamanca Madrid Cataluña

Salamanca 419.284 273.731 250.078 52.249 17.405

Fig. 5. Población nacida en Salamanca según el lugar de residencia


Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Instituto Nacional de Estadística (INE).

Causas de la emigración y “emigración en masa”

Durante el siglo XIX la emigración se asocia en gran medida a las regiones costeras,
si bien la incorporación de otras provincias, como Zamora, Salamanca o León, hizo que
los flujos migratorios alcanzaran niveles inéditos entre 1880 y 1930, vinculados a la etapa
llamada de la “emigración en masa” (Sánchez, 1995).
Entre las causas que explican el éxodo migratorio debemos considerar los factores clásicos
de expulsión y atracción, cuya sola presencia -o en combinación con otros-, se suelen tomar
en consideración en la decisión de emigrar. Algunos han tenido relevancia en todas las etapas
migratorias registradas, sin embargo, otros -de menor calado-, aparecen solo en momentos o
etapas. Además, debemos señalar aquellos a los que últimamente se le ha prestado una justa
atención, como el papel de las cadenas migratorias, de las redes microsociales de relación fami-
liar o vecinal, de las estrategias de reproducción de la economía familiar o del comercio como
medio de elevación social (Robledo y Blanco, 2005; Fernández, 2010). Detrás de la decisión de
emigrar, ya sea ésta de forma individual o familiar, están las expectativas de éxito del futuro emi-

645 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
grante. Estas se convierten en un aliciente que ayudan a superar las incertidumbres conectadas
al nuevo proyecto de movilización y cambio del lugar de residencia y de los hábitos cotidianos.
En provincias como Salamanca y Zamora, en las cuales más de dos terceras partes de
los activos se dedican al sector primario, es lógico que se busque en lo agrario una parte
importante de la explicación de las causas de esta emigración. Algunas de estas reflexiones
al respecto eran tomadas en consideración por quienes tenían la responsabilidad de conta-
bilizar y controlar el contingente migratorio a principios del XX. Así, el Consejo Superior
de Emigración ya comentaba a la altura de 1916 que “el éxodo de Castilla la Vieja se dis-
tinguió por estar formado en gran parte por colonos, pequeños propietarios y cultivadores
aguerridos” (Consejo Superior de Emigración, 1916).
La Reforma Agraria Liberal fomentó desde los últimos años del siglo XIX la salida
de la población, como así hacía referencia Unamuno en la prensa en 1907, al hablar de
la “emigración de labradores, pequeños propietarios que realizando en dinero sus fin-
quillas, vendiendo sus pegujares, se van llevando un capitalillo4”. Tras la coyuntura de la

4
El Adelanto, 4 de enero de 1907.

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crisis agraria finisecular la imposibilidad de aumentar la productividad y la ausencia de un
mercado de crédito estable y no usurario hacia atractiva la posibilidad de emigrar.
En las provincias de Salamanca y Zamora el impacto de la coyuntura internacional
actuó sobre un espacio físico caracterizado, a nivel general, por su hostilidad. Domina una
altitud media elevada, ejemplo de la submeseta norte, singularizada por la continentalidad
ejercida por las barreras montañosas que las flanquean. Este hecho condiciona la presencia
de un clima extremo, con una etapa estival prolongada en el tiempo. Estos factores deben
complementarse con la presencia de materiales geológicos antiguos, paleozoicos, entre los
que destacan mayoritariamente los granitos y los gneis, circunstancias que limitan la impo-
sición tecnológica aplicables a la agricultura. Como consecuencia, se establece un techo al
sector agrario, mucho más determinante que las actitudes de atraso o resistencia al cambio.
El marco geográfico impone sus condiciones, pero no impiden cierta adaptación. La expan-
sión cerealista del periodo desamortizador (1860-1890), que afecta también a las tierras de
estas provincias, se llevó a cabo por mecanismos puramente extensivos: el arado va conquis-
tando el monte. Cuando llega la crisis finisecular se impone el abandono de tierras margi-
nales y, por tanto, disminuye la capacidad de absorber empleo. En consecuencia, parte de la
emigración registrada en los años finiseculares debe atribuirse a estos reajustes productivos.
También hay que tener en cuenta que la estructura de la propiedad en estas áreas,
caracterizada por la progresiva reducción y subdivisión asociada al reparto de la herencia,
condiciona significativamente el sector agrario. En estas provincias coexisten realidades
muy variadas. Los “pequeños propietarios” dominan las explotaciones agrarias, base de
la economía de subsistencia que caracteriza al sector primario, si bien conviven con la
646 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

propiedad media en algunas zonas. Las pequeñas dimensiones convierten a la propiedad


familiar en un elemento que imposibilita la manutención de sus miembros, agravando la
miseria y favoreciendo la emigración, lo que afecta de manera notable a la región occiden-
tal de la provincia de Zamora. El 83,5% de los tres millones de parcelas contabilizadas en
esta provincia a finales de la década de 1920 no supera la media hectárea. Los pequeños
propietarios y arrendatarios, cuya área cultivada es inferior a las 10 hectáreas, representan
más del 90% del total, destacando la zona oeste, condicionando el futuro de su población
hacia la movilización (Mateos, 1995).
De igual modo, destaca la presencia del espacio adehesado, estableciéndose este como
barrera frente a los procesos de intensificación. A modo de pequeña conclusión, y debido
a lo señalado hasta el momento, la falta de intensificación agraria y la imposibilidad de
mecanizar el campo parecen promover indistintamente la emigración, ya sea por el exceso
de mano de obra sobrante o por la reducida productividad. Como puede verse, el esquema
explicativo es más dinámico y complejo que el centrado únicamente en el inmovilismo
agrario y la gran extensión dedicada al barbecho, ignorando la reducción sufrida por éste.

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La competitividad internacional asociada a la globalización también tuvo su relevancia
en el viñedo, al tiempo que este sufría los estragos asociados a la plaga filoxérica. El sector
vitivinícola se había expandido de forma relevante en Zamora desde mediados del siglo
XIX. En respuesta, en el año 1857 se contabilizaba un total de 33.357 hectáreas, siendo
estas incrementadas a 48.885 en 1879, y llegando a alcanzar las 64.492 en 1888 (Huertz
de Lemps, 2001). La filoxera termina con gran parte de los cultivos de viñedos de las zonas
salmantina y zamorana de Arribes, la Guareña, Sayago, Tierra de Campos y Tierra del
Vino, entre otras, afectando también, aunque en un nivel inferior, al área de Toro5. En el
año 1920 ha desaparecido prácticamente la mitad del viñedo de la provincia zamorana, si
bien su relevancia va más allá. El viñedo se adaptaba bien a las reducidas explotaciones, al
tiempo que ofrecía empleo por el trabajo intensivo que exigía su labor. Como consecuen-
cia, la plaga desencadenó el fenómeno de la emigración, tanto exterior como interior, algo
que en algunos casos ha recogido la prensa. Esta ha relacionado la emigración de algunos
territorios, en especial de Los Arribes, destacando dentro de este el caso de Fermoselle, con
las consecuencias de la filoxera, algo que se repite en el arribe salmantino y en la Sierra,
hecho definido como la “desbandada” (Senador, 1915).
Estos fenómenos de expulsión relacionados con las vicisitudes económicas que afecta-
ban al sector agrario deben completarse con otros de índole más institucional que afecta-
ban tanto al sector público (desamortizaciones de montes) como al privado (mercado de
arrendamientos). La desamortización de bienes comunales y la consecuente privatización
de estos tiene algunos efectos muy llamativos, caso del pueblo salmantino de Boada, que
llegó a solicitar a la Presidencia argentina tierras en las que asentarse para emigrar de forma

647 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
masiva6. En Zamora esta circunstancia afecta menos y, de hecho, los montes y zonas de
pastos comunales todavía están vigentes en muchos pueblos. Aun así, también hay casos
de petición de tierras y oferta de emigración colectiva, lo que sucede pocos años después en
Santa Cristina de la Polvorosa, a consecuencia de la riada que sufre en diciembre de 1909,
que deja sin hogar y tierras de labor a las 200 familias de la localidad7.
Respecto a los arrendamientos, el ordenamiento liberal en relación a lo que suelen
llamarse derechos de propiedad facilitó las cosas a los propietarios. Después de 1813 se
redujo sensiblemente cualquier tipo de protección jurídica a favor del colono, y en este
sentido la inseguridad institucional en la que se movía la explotación indirecta debe figurar
como posible causa de la emigración. En esa línea se pronunciaba Díaz Caneja (1912):

5
En El Correo de Zamora aparecen frecuentes noticias, especialmente en los últimos años del XIX.
6
El “Caso Boada” dio lugar a una encendida polémica en la que participaron intelectuales como Ramiro de
Maeztu y Unamuno. Nuevo Mundo, 21 de diciembre de 1905, pp. 20-21. El Adelanto, 11 de diciembre
de 1905.
7
Véase el Heraldo de Zamora, 21 de febrero de 1910.

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“Castilla es pobre y, además, Castilla es patrimonio del señor del suelo; las modificaciones
contractuales que en otras regiones ocasionan regímenes económicos que permiten vivir
con derecho al poseedor temporal de la tierra, aquí no se dan. El dominio es fiero, de fér-
rea arquitectura legal; en esa relación de dominio y pobreza está, sin duda alguna, la causa
generadora del hambre, o sea, la causa primera del éxodo migratorio”.
Las coyunturas de la Primera Guerra Mundial y las de los años 20 no hicieron sino
aumentar los precios de los arrendamientos, una queja general vertida por el campesina-
do durante la II República. En esas circunstancias era muy probable el estar abocados al
crédito usurario. En ese sentido, la emigración se convertía en una forma de salir de ese
circuito o de que algún miembro de la familia, con el envío de remesas, contribuyera a su
amortización (Carasa, 1991).
El Estado y los gobernantes tardaron en darse cuenta de la importancia del fenómeno.
Será ya en la década de los ochenta del XIX cuando algunos políticos empiecen a hablar de
la emigración como “problema”. El viraje proteccionista a partir del arancel de 1891 habría
servido para resguardar momentáneamente a nuestros labradores de la competencia del grano
o la lana de ultramar, lo que podía haber ralentizado el proceso migratorio, pero al mismo
tiempo proporcionar el capital imprescindible para emigrar. El Estado, en 1907, hace por fin
explícito el derecho a emigrar, hecho reconocido de forma implícita en órdenes y decretos
anteriores. Hasta el momento su preocupación radicaba en poner trabas a la salida de ciertos
colectivos persiguiendo garantizar el cumplimiento del denostado servicio de quintas, evitar la
prostitución femenina y en menor medida algunos de los frecuentes abusos que se cometían
con los emigrantes en el sistema de contratas. Se pueden considerar también otros efectos de la
648 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

intervención del Estado como los monetarios que acaban influyendo en el coste de los pasajes.
En cualquier caso, los efectos de la crisis de la filoxera a partir de 1890 y la del mercado
de cereales desde principios del XX, asociada también a cambios en la política monetaria que
hacen más asequibles los pasajes, favorecen la emigración. Existía un excedente de mano de
obra en el campo y también de efectivos que estaban dispuestos a cambiar de formas de vida.
Las ciudades e industrias, tanto de estas provincias como de la región, apenas paliaron esa
debilidad. El éxodo, pues, tendía a engrosar los centros urbanos más dinámicos del capitalis-
mo industrial español o escogía la vía de la emigración exterior. Relacionar las migraciones
exteriores con las vicisitudes de los distintos sectores industriales es algo complicado, pero
sin duda la desindustrialización prepara el éxodo a corto o a medio plazo y en este sentido la
ruina de la ya limitada industria tradicional o el fracaso de las industrias harineras del sueño
castellano de mediados del siglo XIX debieron funcionar como viveros de emigrantes.
No debemos olvidar que las cifras conocidas de la emigración oficial hasta finales de
los años veinte del pasado siglo no contabilizan la abundante emigración ilegal, cuantifi-
cada por el propio Estado en 1916 en aproximadamente un 25% (Consejo Superior de

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Emigración, 1916). Este recurso a la ilegalidad –siendo especialmente significativo en este
apartado la emigración clandestina que se produjo desde las provincias más próximas a los
puertos portugueses (Salamanca y Zamora) se asocia en España a la vieja querella de las
quintas: “hijo quinto y sorteao, hijo muerto y no enterrao” rezaba el dicho popular. Como
ha señalado Ricardo Robledo (1988), “tal y como se planteaba la ley de reclutamiento, la
emigración exterior era más barata y seguramente menos arriesgada que el servicio militar
colonial”. No olvidemos que antes de acabar el siglo XIX hubo dos guerras en Cuba y, co-
menzado el XX, las tropas en África sufrieron derrotas sangrientas, lo que sin duda fomen-
ta la preventiva emigración para evitar el servicio militar. Librarse de la contribución al
Ejército no era una mera cuestión patriótica. Era un problema de medios económicos: iba
quien no se podía librar de ir, quien no podía costear la redención en metálico o el pago de
la sustitución, ni un seguro contra la “quinta”, ni endeudarse con alguna de las numerosas
sociedades de préstamo de las que fueron víctimas muchas familias de pequeños propie-
tarios y arrendatarios zamoranos. Durante las primeras décadas del siglo XX se acentuó el
influjo del temor al servicio militar y el número de desertores creció de modo que hubo
años en que uno de cada cinco mozos (alistados) fue declarado prófugo.
Junto a las causas señaladas hay que tener en cuenta “la llamada” de América, atrac-
ción que remonta sus inicios a los tiempos coloniales y que generó una poderosa influen-
cia en los futuros emigrantes, canalizada por el espejismo de algunos casos de éxito que
alimentaban las esperanzas por una vida mejor. También contribuyeron las medidas de
liberalización de ciertos países respecto del ingreso de extranjeros. En algunos de ellos,
como Argentina, los españoles empezaron a ser considerados a fines del XIX “emigrantes

649 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
deseables” debido a la similitud de sus rasgos étnicos y culturales. Aunque la gran mayoría
serán atraídos por las oportunidades de empleo y la existencia de colectividades de las que
formaban parte parientes y paisanos que habían emigrado antes las cadenas y redes mi-
gratorias de parentesco y vecindad a las que los investigadores han comenzado a prestarles
atención en los últimos años. Redes que junto con la prensa influían en la decisión de
emigrar y condicionaban el destino elegido, ofrecen apoyo a los recién llegados respecto a
la consecución de trabajo, vivienda e integración social.
La atracción se refuerza en las épocas de prosperidad de algunos países que posibilitan
muchas opciones de empleo –muchos no cualificados-, como son el último tercio del XIX
en Chile, el primero del XX en Argentina, en México durante el Porfiriato, en Brasil du-
rante la etapa de expansión del cultivo del café, o en Cuba con el auge del azúcar de caña
y en Venezuela durante el boom petrolero tras la Segunda Guerra Mundial. Los emigran-
tes se beneficiaron del diferencial de salarios entre sus aldeas de origen y las ciudades de
destino, lo que favoreció el ahorro, invertido en parte en financiar la emigración de otros
miembros de la familia.

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Argentina, que recibe el mayor contingente de emigrantes procedentes de estas pro-
vincias, se incorpora en estos momentos al comercio internacional, con la puesta en culti-
vo de nuevas tierras a partir de lo que se ha llamado la “conquista del desierto”, la mejora
de los transportes y el impulso de nuevas actividades productivas y el desarrollo de una
gran urbe como es Buenos Aires, de otras ciudades y también de ciertos enclaves en medio
de las nuevas tierras en producción (Marenghi, 2003; Fernández, 2005; Fernández, 2010).
En las dos últimas décadas del XIX y tres primeras del XX, en Argentina, a pesar de no
faltar algunas crisis, se registró un crecimiento anual significativo, reflejado en el aumento
de sus exportaciones, de su población, de sus ciudades, de las líneas férreas, del incremento
en la explotación de sus tierras y de la subida del nivel de vida y cultura de sus gentes.
La promesa de concesión de tierras no es un factor significativo pues la política
concreta no facilitaba el acceso a la propiedad, aunque algunos lo lograrán. Pero en ese
contexto de ocupación y puesta en explotación de nuevas tierras, se da un amplio pro-
ceso de expansión de la actividad hacia la provincia de la Pampa, y también hacia el sur
de la de Buenos Aires, con la creación de numerosos pueblos en los nudos de ferrocarril,
desde los que saldrán productos y llegarán emigrantes. La mayoría de los salmantinos
y zamoranos se asentarán en ocupaciones urbanas: comercio, artesanos, transportistas,
pequeños industriales, servicios, construcción o industria manufacturera. La seguridad
de poder encontrar empleo con rapidez -y bien remunerado-, permitía afrontar las difi-
cultades monetarias que ocasionaba el viaje e incluso compensar las afectivas. A medio
plazo había expectativas de conseguir otras metas, como el acceso a la actividad por
cuenta propia, contando con una característica muy generalizada: su enorme capacidad
650 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de trabajo y de ahorro.
Así, Argentina se había convertido a fines del XIX y primeros del XX en el segundo
mercado de trabajo para los emigrantes europeos, y el primero para los españoles. Las pro-
vincias del antiguo reino de León (León, Zamora y Salamanca) aparecían en las estadísticas
entre las 10 españolas de mayor tasa de emigración. Si la Primera Guerra mundial limitó
este proceso, la emigración se reanudó con fuerza en la posguerra, aunque fuera menor
que en el trienio 1911-1913. Desde 1921 se redujo de forma notable, y prácticamente en
su totalidad tras la crisis del 29.
Efectivamente, la presencia de salmantinos o zamoranos en países como Argentina o
Cuba no era ni mucho menos nueva. Hay que tener en cuenta que una parte de la emigra-
ción de esos años es temporal -a menudo una salida de los circuitos crediticios usurarios-,
y esta emigración de retorno tiene que haber actuado, al igual que la correspondencia,
como un eficiente vehículo de información. Las provincias de Salamanca y Zamora están
conectadas con la amplia región atlántica (desde Cantabria al Norte de Portugal) en la que
hay una persistente cultura emigratoria.

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Pero la “emigración en masa” hubiera sido impensable sin la revolución de los trans-
portes, en particular del ferrocarril y la navegación a vapor que se había generalizado
desde la década de los setenta del siglo XIX. Esta supuso un progresivo abaratamiento,
regularidad, seguridad, reducción del tiempo de travesía y modernización de los transpor-
tes (Juana, 2011)8. En cuanto a los costes, habría que considerar, además del pasaje, otros
gastos: viaje desde el pueblo al puerto y estancia de espera en alguna de las numerosas
fondas especializadas en atender (y en ocasiones esquilmar) a los emigrantes, el precio del
pasaje y de la documentación necesaria, el equipo de viaje, los costes complementarios en
la travesía, el desplazamiento hasta el lugar de residencia y trabajo en el destino, la subsis-
tencia hasta empezar a cobrar, etc.9 Cuando no existían otro tipo de subvenciones, como
ocurrió a veces en los años ochenta y noventa, la clave estaba en los adelantos familiares y
las iniciativas de particulares de aquí o de allí que hacían negocio con las aspiraciones de
los candidatos a emigrar.
Además de los costes había que considerar otras dificultades, comenzando por las pro-
pias regulaciones de los lugares de salida y de llegada. La legalidad restrictiva del Antiguo
Régimen fue dando paso en España a mayores facilidades con el sistema liberal, respondien-
do al incremento creciente de las necesidades de movilidad entre las vigorosas repúblicas
americanas -que se incorporan al mercado internacional capitalista-, necesitadas y ansiosas
de mano de obra europea. Esto coincide con el desarrollo demográfico europeo -y también
español-, y las crisis agrícolas como la de finales de siglo XIX en España. La legislación se fue
adaptando a la creciente demanda de aspiración a emigrar, y a ello responde la Ley española
de 1907, aunque se promulgan antes diversas leyes, órdenes y decretos, especialmente desde

651 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
1835. Las limitaciones que contempla la de 1907 se centran en evitar los peligros para las
mujeres emigrantes de caer en la prostitución, por lo que se prohibía la salida de solteras
de menos de 23 años que no fueran con sus padres o personas que las representaran legal-
mente. También se limitaba la salida de las casadas acompañadas de hijos menores de edad.
Especialmente se centraba en perseguir a quienes pretendían librarse del servicio militar en
el contexto de la continua guerra de África, fomentando la clandestinidad.
En 1916 se promulgará un nuevo decreto que trata de limitar el fraude, los abusos y las
ganancias ilegales en la tramitación de documentos. Finalmente, en 1924, poco antes de
terminar la guerra de Marruecos, se publica una nueva ley de emigración que garantizaba

8
Si un barco a vela podía tardar entre 20 y 90 días, dependiendo de las condiciones, la travesía a vapor en
1870 a Buenos Aires duraba de media unos 21 días, que desde los noventa se había reducido a 15-17 (con
escalas intermedias en los puertos de Brasil e Uruguay).
9
Se conoce bien el coste del pasaje en tercera clase, el más económico y el más utilizado. Si a mediados del
XIX costaba casi 400 pesetas de la época el ir a Buenos Aires, en algunos años antes de la Primera Guerra
Mundial bajó de las 100. Pero no siempre fue tan reducido. Entre 1910-1919 podía costar de 170 a 250
pesetas, pero al final de los años veinte superaba las 350 y variaba según circunstancias.

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la libertad de emigrar con algunas de las limitaciones expuestas, como la prohibición de las
mujeres menores de 25 años si viajaban solas y las casadas sin autorización de su marido.
También hay que tener en cuenta la legislación de los países de llegada. En el caso
de Argentina, la inmigración estaba regulada por la llamada Ley 817 de Inmigración y
Colonización de 1876 promulgada por el Presidente Nicolás Avellaneda. Según ella, se
permitía y facilitaba la inmigración de extranjeros, fundamentalmente europeos menores
de 60 años que hubieran acreditado su moralidad y sus aptitudes. La ley contemplaba el
nombramiento de agentes del Gobierno que impulsarían y controlarían la emigración
desde Europa. Los inmigrantes tenían el derecho a ser alojados y mantenidos a expensas
del Gobierno durante los cinco días posteriores a su desembarco. El Estado se hacía cargo
de su traslado al lugar que el inmigrante hubiera elegido como residencia. Si se dirigía al
interior, y si en el destino había Comisión de Inmigración, ésta proporcionaría al inmi-
grante alojamiento y manutención durante 10 días (Fernández, 2017).
Para los emigrantes el proceso en su conjunto no solo era incierto, sino caro y sujeto
en algunos casos a múltiples y graves inconvenientes. Para los procedentes de Zamora o
Salamanca los lugares de embarque legal fundamentales serán los puertos gallegos - es-
pecialmente Vigo, pero también La Coruña y, en menor medida, Villagarcía de Arousa-.
Estos absorbían entre 1919 y 1930 el 50,4% del conjunto de la emigración española a
América, destacando Vigo, de donde salieron la gran mayoría de los procedentes de estas
dos provincias (Juana, 2011).
En torno al negocio de la emigración masiva había una amplia red de agentes que em-
pezaba en los consignatarios de las grandes navieras, españolas y especialmente extranjeras.
652 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Red que ponía en contacto demanda y oferta de trabajo, pero en ocasiones con un alto
coste material y humano. Los mencionados consignatarios, muy presentes en Galicia y en
el oeste de la actual Castilla y León, contaban con corresponsales y sucursales en pueblos
importantes y cabeceras de comarcas10. También existían las agencias de la emigración,
vinculadas a las navieras y conectadas con numerosos agentes locales de reclutamiento,
los “ganchos” o enganchadores”, que juegan un papel clave en la facilitación y orientación
de las estrategias migratorias. Su cercanía y conocimiento del medio rural, así como su
relación con las autoridades locales y los párrocos les permite jugar un papel fundamental
en la emigración a América11.

10
La prensa de estas zonas daba cuenta de estos agentes de emigración, junto a otros como los “fondistas, que
daban toda clase de facilidades y sobre la red sobre la que actuaban las navieras, integrada por el consigna-
tario, el hospedero, el cocinero del barco, etc.”. Véase El Adelanto, 3 de noviembre de 1912.
11
Un buen relato sobre este panorama lo encontramos en las memorias del leonés Bernardo Alonso González
editadas este año en Coronel Dorrego.

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Año Origen Año Origen
España CyL Za España CyL Za
1885 40.316 373 18 1911 164.759 21.321 4.283
1886 62.025 825 47 1912 241.464 34.694 6.672
1887 66.979 963 80 1913 203.354 27.006 5.069
1888 76.398 1.878 99 1914 110.287 8.723 1.660
1889 125.807 4.392 326 1915 84.646 6.556 1.709
1890 65.860 1.696 125 1916 90.249 7.551 2.389
1891 68.037 1.409 169 1917 58.094 4.227 1.068
1892 66.406 1.275 115 1918 31.111 2.218 598
1893 76.526 1.561 169 1919 92.269 7.827 2.204
1894 81.189 2.084 282 1920 176.639 17.179 4.987
1895 121.166 4.335 138 1921 85.220 7.368 1.513
1896 166.269 2.784 494 1922 81.050 7.265 1.396
1897 73.535 1.542 237 1923 113.798 11.244 2.827
1898 59.543 1.819 593 1924 109.245 10.621 2.583
*1899 53.862 1.631 298 1925 81.972 7.007 1.584
*1900 63.020 2.170 392 1926 69.667 5.913 1.299
*1901 56.906 2.007 411 1927 69.965 5.757 1.185
*1902 51.593 1.867 432 1928 73.986 6.046 1.426
*1903 57.261 2.306 542 1929 82.327 6.278 1.478
*1904 87.291 4.449 895 1930 72.251 4.920 1.197
*1905 126.067 7.956 1.409
*1910 191.761 19.854 4.002 TOTAL 4.489.435 322.684 67.228

653 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Fig. 6. Emigración Exterior de España, Castilla y León y Zamora (1885-1930).
* Los datos referidos a Castilla y León y a Zamora se consideran estimaciones ajustadas.
Fuente: Dirección General del Instituto Geográfico y Estadístico, 1882-1911: Estadística de emigración e inmi-
gración de España. Boletines del consejo Superior de Emigración, 1911-1930.

Para posibilitar la salida a América de campesinos que apenas sabían leer y escribir, se
precisaba una red de personas que gestionara la documentación policial y administrativa
necesaria para el viaje. Estos ganchos no solo aportaban documentación y pasaje, sino que en
ocasiones financiaban el mismo, a veces de forma usuraria o mediante costosas hipotecas. Se
hacían cargo de la falsificación de la documentación cuando era necesario e incluso asumían
la coordinación de la emigración clandestina. En la gestión de todo este proceso también
jugaban un papel los dueños de fondas, que contaban con amplia información y cobraban
finalmente un elevado precio en muchos casos. Y en la cúspide, como hemos señalado, se en-
contraban los consignatarios de las grandes navieras transatlánticas, la mayoría no españolas,
integrantes de la burguesía comercial e industrial. Consignatarios relacionados con la prensa,

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que veía en las navieras un importante inversor en publicidad, por lo que todos estaban inte-
resados en conformar una opinión pública favorable de la emigración.
Si las condiciones en la que se viajaba en los barcos a vela hasta 1870 eran lamentables,
con poco espacio, promiscuidad y falta de higiene, con los trasatlánticos a vapor no solo
aumentó la velocidad, la regularidad y la seguridad, sino que la habitabilidad y los servicios
a los pasajeros mejoraron, si bien muy poco a poco, aunque solo fuera por la fuerte com-
petencia entre las navieras. En algunos casos de forma insuficientemente, acumulándose
la gente en las cubiertas, sollados y camarotes, buscando las navieras el máximo beneficio.
La escasa ventilación, la reducida higiene en general, la falta de costumbre de navegar y el
calor de los trópicos convertía la travesía para muchos en un mareo continuo.
Debido a todo lo expuesto asistiremos a un creciente volumen de emigración española
masculina, y de las provincias de Salamanca y Zamora-, que será muy significativo en
las primeras décadas del XX. Hay que señalar también la progresiva incorporación de
mujeres adultas que viajaban solas o acompañadas por paisanos o paisanas. Esta realidad
puede tener que ver con las facilidades que proporcionan las redes, y también con pro-
cesos de reunificación matrimonial, o bien de concreción de matrimonios entre paisanos
(Fernández, 2010). Hay que tener en cuenta que, a medida que la permanencia de emi-
grantes varones se haría más larga, no solo sus esposas, sino también sus hijos, hermanos,
sobrinos u otros parientes y paisanos, podían inclinarse a emigrar.

Emigración tras la Guerra Civil Española y la Segunda Guerra Mundial


654 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Durante los años 30 y la posguerra, los índices migratorios se reducen de forma drás-
tica destacando los que retornan frente a los que salen. La coyuntura internacional desa-
tada por la crisis del 29 funcionará como factor disuasorio y el cierre de fronteras –y de
mercados-, así como las circunstancias políticas de la España de la Segunda República y la
Segunda Guerra Mundial harán el resto.
Por su parte el exilio en las provincias de Zamora y Salamanca -en manos de los su-
blevados desde el primer momento-, no es significativo -tampoco el de la región- si bien
debemos destacar algunas figuras significativas que abandonan España, casos del poeta
León Felipe, o del jurista Manuel García Pelayo, que será el primer presidente del Tribunal
Constitucional.
Durante los primeros años de la autarquía franquista se produce en nuestra región un
espejismo derivado de la industria harinera, la textil y el sector energético -además de otros
sectores muy localizados-, que se van a desarrollar a raíz de las necesidades estratégicas
de la II Guerra Mundial, “pero la evolución de la inversión y de los beneficios pone de
manifiesto que los hipotéticos efectos de la política económica del primer franquismo en

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Castilla y en León, de los que tanto alardeaba el Régimen, no se prolongaron mucho más
allá del fin de la guerra en Europa” (Moreno, 2001, 200).
Efectivamente, más allá de la retórica ruralista del franquismo -en especial del falangis-
mo -, Castilla y León -al igual que otras regiones de España-, no se libraron durante la década
12

de los 50 de un duro reajuste, que puso fin al clásico modelo de capitalismo agrario. La polí-
tica agraria autárquica del franquismo, caracterizada por un fuerte intervencionismo a favor
de la industria y por la defensa a ultranza de la propiedad privada de la tierra que incrementó
el margen del proteccionismo, imposibilitó la modernización del mundo rural, al tiempo que
favorecía a los grandes propietarios, beneficiarios del mercado negro de los años cuarenta.
El modelo de desarrollo económico franquista que pretendía convertir a España en
una potencia industrial, perjudicó seriamente a estas provincias, marginadas de las grandes
inversiones estatales para infraestructuras, y expoliada de sus ahorros y energía eléctrica
que beneficiaría a otras regiones, tal como imponían las decisiones de la administración
central y de las oligarquías dirigentes.

AÑO AV BU LE PA SA SG SO VA ZA
1931 49 198 721 82 275 11 83 78 470
1932 31 126 562 68 211 9 20 61 315
1933 15 115 393 51 163 20 43 63 208
1934 37 99 421 71 150 12 53 80 231
1935 47 119 616 63 181 21 26 73 230
1936 38 86 277 25 182 16 21 50 148

655 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
1937 - - 8 - 6 - - - 1
1938 - 2 - - - 1 - - -
1939 1 25 3 1 3 - - 1 4
1940 3 11 28 35 7 1 2 11 9
1931-1940 221 781 3.029 396 1.178 91 248 417 1.616
1941 19 29 92 41 49 11 12 22 18
1942 1 16 56 28 26 5 1 6 45
1943 7 11 12 9 20 - 1 5 24
1944 5 12 21 31 26 - 1 20 18
1945 2 7 44 16 20 5 9 4 13
1946 13 53 151 17 150 5 7 40 41
1947 28 166 410 32 152 16 29 42 112
1948 16 108 516 41 296 16 43 50 256
1949 112 260 1.231 65 649 10 166 97 422

12
Las élites políticas falangistas y católicas poco favorecieron la modernización de la agricultura extensiva y
poco capitalizada de Castilla.

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AÑO AV BU LE PA SA SG SO VA ZA
1950 129 267 1.301 96 522 11 132 114 618
1941-1950 332 929 3.834 376 1.910 79 401 400 1.567
1951 119 204 1.103 116 391 19 100 132 391
1952 137 241 1.479 62 418 10 87 121 461
1953 63 211 793 60 395 28 70 128 410
1954 47 173 766 67 382 25 44 101 338
1955 31 588 1.271 99 255 37 104 173 427
1956 82 164 1.050 86 275 9 44 139 344

Fig. 7. Emigración transoceánica desde Castilla y León 1931-1956


Fuente: Ministerio de Trabajo: Estadísticas de emigración exterior.

Entre las razones que justifican la emigración campesina y el éxodo rural encontramos las
diferencias de renta entre los sectores agrícola e industrial o servicios; las diferencias estructu-
rales entre las zonas más pobladas y el medio rural carente de servicios adecuados (sanitarios,
culturales o recreativos); la modificación de las condiciones del mercado agrario y por último la
decisiva capacidad de atracción de lo urbano frente a lo rural, alentado por los medios de comu-
nicación que generan la ruptura del estilo de vida campesino y aceleran la crisis de la sociedad
rural. A pesar de los esfuerzos del régimen por mantener unas arcaicas estructuras de produc-
ción, miles de salmantinos y zamoranos recurrieron de nuevo a la emigración hasta ajustarse
lo suficiente como para producir la “históricamente insólita modernización rural” (Moreno,
2001, 202), que la región castellana y leonesa alcanzó en la década de los 70 del pasado siglo.
A consecuencia de este deprimido capitalismo agrario continuará el proceso migratorio,
656 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

ahora en una triple dirección: a América, Europa y algunas regiones españolas. La emigra-
ción a América se dirigirá en principio fundamentalmente hacia Argentina y posteriormente
hacia Brasil y Venezuela (especialmente intensa de 1949 a 1959), hasta comienzos de los
años sesenta debido a los procesos de reunificación familiar. Según estadísticas oficiales del
Ministerio de Trabajo, de 1931 a 1962, salieron hacia América 4.420 salmantinos y 5.016
zamorano, cifras solo superadas en esta región por las correspondientes a León13.
Desde finales de los 50 hasta la crisis del petróleo de los 70, el flujo migratorio se
dirigirá también a Europa (Alemania, Suiza, Francia y Reino Unido fundamentalmente),
así como a las regiones más industrializadas de España (Madrid, País Vasco y Cataluña)
en el llamado “éxodo rural”. Esta nueva sangría migratoria motivó que estas provincias
perdieran “el basamento más sólido que pueda cimentar su futuro: su población” (Vallejo,
1983), en un proceso reactivado a comienzos del siglo XXI, asociado principalmente a la
crisis económica registrada en su primera década (Fernández, 2020).
13
Redondeando datos, desde el comienzo de la llamada “emigración en masa”, en torno a ochenta mil zamo-
ranos -y otros tantos salmantinos-, emigrarían a América, de ellos más del 75% a Argentina.

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A./P. AUS RD ARG PER BRS CUB VEN MEX CHI PAR COL URU USA PAN ECU OTRS. TOT

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 657


AV 22 2 66 2 19 3 25 11 4 1 1 156 156

BU 148 5 239 16 111 12 160 22 9 11 27 6 1 767

LE 24 2 1.778 2 1.141 31 611 95 11 23 143 32 1 1 2 3.897

PA 110 66 3 85 8 92 2 9 6 18 10 1 410

SA 6 6 474 8 278 24 198 16 1 10 13 15 1 7 1.057

SG 11 1 18 16 3 25 1 5 3 83

SO 2 3 99 6 15 2 11 3 10 3 5 1 160

VA 31 5 89 229 9 163 10 7 8 551

ZA 7 7 761 2 199 49 306 53 7 1 9 36 52 1.489

TOT 361 31 3.590 39 2.093 136 1.591 201 54 1 74 246 127 3 14 160 8.570

Fuente: Ministerio de Trabajo: Estadísticas de emigración exterior.


Total de salidas de Castilla y León (1957-1962), según provincias y países de destino

657 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

20/06/2023 16:47:27
No contamos con datos fiables de retornos, pero es muy posible que entre la mitad y
los dos tercios de los que emigraron, retornaran después -si bien no siempre a sus lugares
de origen-, y no debemos dejar de lado la emigración clandestina, de compleja cuantifica-
ción. También hay que tener en cuenta que los datos de las estadísticas españolas no son
nominales y habría no pocos que emigran varias veces, especialmente con la llamada emi-
gración “golondrina”, muy frecuente a Cuba y entre algunos colectivos concretos como
los sorianos.

Emigración y vinculación

La consecuencia de este proceso será el progresivo despoblamiento y el agudizado en-


vejecimiento de estas provincias. Pero la emigración no supone en la mayoría de los casos
desvinculación (ni si quiera para el caso de América cuyos flujos se cortan desde principio
de los años sesenta del siglo pasado -Blanco, 2018, 13-33-), antes, al contrario, generarán
vínculos fuertes -y duraderos en el tiempo-, que se van a materializar a través de distintas
expresiones y realidades.
Una de ellas está constituida por los testimonios de los propios emigrantes, tanto los
que están presentes en la intensa correspondencia familiar que se cruzaba –a pesar de las
dificultades-, como en las historias de vida relatadas por ellos14, en los que se puede cons-
tatar esa vinculación persistente realimentada en la actualidad con las nuevas posibilidades
de comunicación. Estos documentos testimonian como la experiencia migratoria es una
empresa que se gesta muchas veces como estrategia temporal de supervivencia familiar,
658 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

que los avatares de la España de la que salieron y las raíces y relaciones tejidas en los países
de acogida en América, convierten, en definitiva.
Otra expresión de esta vinculación la encontramos en las numerosas asociaciones
constituidas por los emigrantes en los lugares de acogida, que constituyen además de la
memoria institucional de la emigración, un privilegiado vehículo de esa vinculación a la
que nos estamos refiriendo. Las asociaciones conformadas por los emigrantes zamoranos y
salmantinos en América responden fundamentalmente a la necesidad de conseguir protec-
ción en la adversidad, así como una atención sanitaria que los sistemas públicos de salud
no ofrecerán hasta bien entrado el siglo XX (Fernández y Blanco, 2005, 117-135 y Blanco,

14
Podemos destacar las memorias de quien fuera destacado dirigente de los castellanos en Cuba, el zamorano
Francisco Sánchez Tamame (Blanco, Dacosta y Sánchez -eds.-, 2016), o la historia de vida del salmantino
emigrado a Brasil, Pedro Blanco Sánchez, hilado a partir de los recuerdos de su hija (Blanco y Canovas -eds.-
, 2019). A estos debemos sumar las casi 400 historias de vida de emigrantes castellanos y leoneses recogidos
en las diferentes ediciones de los premios Memoria de la Emigración Zamorana y Memoria de la Emigración
Castellana y Leonesa, puesta en marcha por el Centro de Estudios de la Emigración Castellana y Leonesa
adscrito al Centro de la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED) en Zamora.

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2010, 363-389). Pero junto a esos factores de ayuda mutua existen desde el principio los
impulsos a reunirse con los coterráneos para suavizar el desarraigo y para recrear elemen-
tos de identidad propios de los lugares de los que proceden. Los emigrantes zamoranos y
salmantinos conformaron numerosas asociaciones que en algunos casos han cumplido –o
están a punto de cumplir-, un siglo de vida15.
Emigrantes salmantinos y zamoranos formaron parte de la Sociedad de Socorros
Mutuos de Luján, fundada en 1877, mientras que algunos zamoranos tuvieron relevancia
en la sociedad de Socorros Mutuos de Miramar, cerca de Mar del Plata, así como en la
Sociedad Hispano Argentina Mutual, Social y Cultural de Santa Rosa de la Pampa, en la
que también encontramos un buen número de salmantinos.
Oriundos de ambas provincias participaron en la creación, en 1878, de la Sociedad de
Beneficencia de ambas Castillas, León y Extremadura, con el objetivo de crear una escuela
para que los inmigrantes pudieran obtener gratuitamente la enseñanza primaria. No tuvo
una vida larga y en 1885 fue sustituida por la Sociedad Castellana de Beneficencia, que
tenía, entre otras finalidades, la de contribuir a las víctimas de las calamidades públicas,
tanto, en Cuba como en los lugares de procedencia de estos emigrantes.
Junto a los leoneses, serán los de origen zamorano los emigrantes que tendrán más
relevancia en el Centro Castellano de México existente en los años veinte del pasado siglo.
En 1909 se fundará la asociación regional castellana más destacada, el Centro Castellano
de La Habana, que en su última etapa estará presidida por el zamorano Francisco
Sánchez Tamame, que también presidirá durante muchos años la Sociedad Castellana de
Beneficencia. En la Unión Castellana de Cuba -que también existe en los años veinte y

659 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
acaba uniéndose al Centro Castellano-, también tienen relevancia algunos zamoranos. El
Centro Castellano desarrollará una extraordinaria labor educativa a través de su plantel
Cervantes, también sanitaria con la quinta de salud Santa Teresa de Jesús. En su órgano
de expresión, la revista Castilla, se refleja constantemente la preocupación por la vincula-
ción con las tierras de origen de sus asociados, defendiendo las señas de identidad de “lo
castellano”, comenzando por el idioma, y siguiendo por las iniciativas que, en favor de
las provincias de origen, se van articulando a lo largo de los años (Blanco, 2014, 5-44).
Los zamoranos también tendrán un destacado papel en la constitución, de la Agrupación
de Sociedades Castellanas -ahora Castellanas y Leonesas-, que mantiene la pervivencia
del asociacionismo regional y provincial castellano leonés, tras la incautación del Centro
Castellano en 1961 (Blanco, Dacosta y Sánchez -eds.-, 2016, 9-17).

15
Sobre esto pueden verse las numerosas publicaciones del Centro de Estudios de la Emigración Castellana
y Leonesa (entre ellas Blanco, 2005 y Blanco, 2008), cuyo archivo está conformado en un porcentaje muy
amplio por fondos de estas asociaciones (sobre los fondos del centro ver Álvarez, 2020, 441-464 y Sánchez,
Álvarez y Fernández, 2020, 237-256).

livro - iberografias 45_20junho2023.indb 659 20/06/2023 16:47:27


En México existió a finales de los años veinte una Agrupación Castellana de México y
paralelamente el Centro Castellano, con una destacable presencia de emigrantes zamora-
nos, junto a leoneses y sorianos.
En 1920 se funda el Centro Castilla de Rosario. A pesar de que en un primer mo-
mento tenía un carácter meramente recreativo, posteriormente incluirá entre sus fines
los mutuales y filantrópicos, no olvidando las tierras de origen de sus asociados. Un año
más tarde se fundó el Centro Castellano en la ciudad vecina Santa Fé, que trataba de
mantener “frescos” los recuerdos y añoranzas de la “patria ausente”. En esta misma década
documentamos varios Centro Castilla en ciudades como Córdoba y Mendoza, pero de
los que tenemos noticias escasas. Y en los años treinta existió una Unión de Sociedades
Castellana, Casa de Castilla, de la que formaron parte el Centro Salmantino y el Círculo
de Salamanca. Encontraremos emigrantes zamoranos y salmantinos en el Centro Región
Leonesa de Mar del Plata, fundado en 1950, y que sigue existiendo en la actualidad con
el Centro Castilla y León.
En el contexto de la nueva organización autonómica del Estado español, entre los
emigrantes y descendientes castellanos y leoneses van a surgir en Argentina distintas aso-
ciaciones castellanas y leonesas en Argentina, como las de Miramar, Bolívar, Coronel
Dorrego, La Plata, Tres Lomas y Casbas. En este mismo marco se formarán asociaciones en
Guatemala - Asociación Castellano-Leonesa de Guatemala-, Uruguay -Unión Castellano-
Leonesa de Uruguay- y Chile - Colectividad Castellano-Leonesa de Chile-, en la que tam-
bién se integraran emigrantes de Zamora y Salamanca.
En cualquier caso, la identidad que predomina en Castilla y León es la provincial,
660 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

por lo que es provincial el factor básico de conformación de la sociabilidad entre la emi-


gración de este origen. En ocasiones, como ocurre en Argentina, asociaciones previas de
ámbito comarcal o local acabaron uniéndose en entidades provinciales. Esto sucede con
los zamoranos, cuyo Centro en Buenos Aires es producto de la fusión, en 1956, del Centro
Fermosellano -1953-, y Sociedad Sanabresa de Ayuda Mutua y Recreativa -1923- (con an-
terioridad se documenta la existencia de otro centro zamorano, el Centro Viriato, fundado
en 1915, del que tenemos pocas noticias y que tuvo una existencia muy corta). Los fines
del Centro Zamorano de Buenos Aires pretenden recrear y reforzar su identidad zamora-
na, que se pone de manifiesto en la fuerte orientación crítica -de carácter regeneracionista-,
sobre la situación de la provincia, que se refleja en su revista Zamora.
En Argentina los salmantinos constituyeron varios centros, en buena medida debido a
las rencillas entre élites de la comunidad. En 1922 se fundó el Centro Salmantino, Mutual,
Recreativo, Cultural y Social. Vinculadas a esta asociación de Buenos Aires se crearon
otras similares en Tucumán, Salta y El Chaco. Por las mencionadas divergencias en 1928
un grupo de socios creó el Círculo de Salamanca, Social, Cultural y Deportivo que contó

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con la revista Helmántica, con abundantes referencias a la provincia charra. En 1937 se
disolvió el Centro Salmantino y se aprobó la fusión de las dos entidades, surgiendo así el
Centro Salamanca, que en 1957 incorporó a la Unión Mutua de Vilvestre. Su actividad
recreativa siempre ha estado muy vinculada al recuerdo de la realidad salmantina, en la que
la Universidad ha jugado hasta hoy un papel importante.
En la segunda década del XX se conformaron, en el seno del Centro Castellano de La
Habana –y con estrecha relación con las diputaciones-, asociaciones provinciales denomi-
nadas clubes o colonias. El Club Zamorano, del que nace la Colonia Zamorana de Cuba,
se funda en 1916. Mantiene una estrecha relación con su provincia de referencia de la que
recibía los periódicos El Heraldo de Zamora y El Correo de Zamora (San Juan y Blanco,
1994, 172). Se mantiene vigente en la actualidad siendo una de las sociedades con un
mayor índice de crecimiento desde principios de los noventa, en parte por su vinculación
con la Diputación Provincial, con la que organiza las operaciones “Añoranza” y Raíces”.
Se mantiene así la vinculación que, a pesar de haberse perdido durante algunos años, se
ha recuperado con fuerza tal y como siempre pretendió su dirigencia (Blanco, Dacosta y
Sánchez -eds.-, 2016 y Fernández, Rabanillo y Blanco -eds.-2015).
En 1915 se fundó la Unión Salmantina con una finalidad fundamentalmente recrea-
tiva y de acercamiento entre los salmantinos, así como de vinculación con su tierra de
origen. Desaparece en 1920 y dos años después algunos antiguos socios fundan la colonia
Salmantina de Cuba, que sigue existiendo en la actualidad. En línea con las rivalidades ya
mencionadas entre los salmantinos en Argentina, en 1925 se constituyó en el barrio haba-
nero de Marianao el Club Salmantino, que no duró mucho y cuyos asociados acabarán

661 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
integrándose en la Colonia Salmantina (Blanco, 1996, 131-169).
Como se ha señalado, las redes de parentesco y de vecindad determinan que los emi-
grantes procedentes de los lugares de los que salen contingentes significativos acaben con-
centrándose muchas veces en un mismo destino. Esto origina la creación de asociaciones
que, además de su finalidad de recreación de su identidad “paesana” y actividades de ayuda
mutua, se preocupan por la mejora de las condiciones de vida de sus lugares de origen,
manteniendo así más viva la vinculación de los emigrantes con una tierra a la que pensa-
ban volver. En 1895 se funda en Veracruz, México, la pionera de todas ellas Sociedad de
Socorros Mutuos La Visontina, que abre un proceso asociacionista que será especialmente
intenso entre los emigrantes sorianos (Sánchez, 2021).
Los emigrantes zamoranos y salmantinos seguirán esta estela. Así, en 1923 se fundó en
Buenos Aires la Sociedad Sanabresa de Ayuda Mutua y Recreativa. Dispuso de una revista
propia mediante la que pretendía difundir aspectos de la cultura sanabresa y también ex-
poner y alentar propuestas de renovación cultural y política para la comarca. En la década
de los años veinte existe también en la capital bonaerense la Sociedad de Beneficencia del

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Partido de Alcañices. En 1953 se funda en esa ciudad el Centro Fermosellano, que acaba
uniéndose con la sociedad sanabresa en el Centro Zamorano, si bien algunos socios man-
tendrán durante unos años una entidad propia, Unión Hijos de la Villa de Fermoselle. A
su vez, un breve tiempo también existirá la Junta de Fermosellanos en La Argentina. Los
emigrantes de esta localidad constituirán también la Colonia Fermosellana de Santiago
de Cuba que contará con el apoyo de la familia Bacardí y será el precedente de la actual
Colonia Zamorana de Santiago de Cuba.
En 1923 se constituyó en Buenos Aires la Unión Mutua de Vilvestre, que luego se
integrará en el Centro Salamanca. Los emigrantes de la sierra de Béjar constituirán en
Buenos Aires el Círculo Colonia Bejarana que existirá un tiempo en las décadas de los años
veinte y treinta del siglo pasado.
Especial significación tiene el Club Villarino de La Habana que se funda en 1919
con la intención de mantener el recuerdo del pueblo de Villarino de los Aires. Además
de los villarinienses se aglutinan en el mismo otros emigrantes de la comarca de Arribes,
como los de la vecina Fermoselle. Cuenta con sede propia desde 1928 -que mantiene en
la actualidad-, y con panteón en el cementerio de La Habana desde 1938. Dos años antes
había fundado el centro de enseñanza “Gabriel y Galán” que impartió estudios de acceso a
secundaria y a la carrera de comercio, además de música y corte y costura. La vinculación
con su pueblo de origen es estrecha al que remitirán diversas ayudas a las que haremos
referencia (Blanco, Dacosta y Sánchez, 2020).
Las remesas de los emigrantes apuntalaron en variable medida las pobres economías
familiares que dejaron atrás (García, 1992), y de forma individual -y colectiva-, contri-
662 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

buyeron a dotar a sus pueblos de ciertas infraestructuras y equipamientos materiales, cul-


turales y religiosos. Sin tener la relevancia del mecenazgo llevado a cabo por leoneses,
sorianos e incluso los burgaleses, los zamoranos y salmantinos, también se preocuparon
por la situación de sus pueblos de origen16, dejando una memoria persistente en muchos
de nuestros pueblos (Sánchez, 2017). Como en otros casos, dicha preocupación empieza
por la crítica de la situación que les empuja a viajar a América en busca de mejores pers-
pectivas de vida, exigiendo a las administraciones del momento dedicación a remediar el
atraso de esos enclaves. Ejemplo de esta actitud regeneracionista es la revista Zamora, del
Centro Zamorano Sanabrés de Buenos Aires.
En este sentido, los emigrados mostrarán especial educación por la promoción educativa
contribuyendo, en mayor o menor medida, a la construcción de escuelas que remediaran

16
En este sentido está en curso -y a punto de culminarse-, la tesis doctoral Emigración y mecenazgo. La labor
filantrópica de “los americanos” en Castilla y León (1880-1972), de Rubén Sánchez Domínguez, dirigida por
Juan Andrés Blanco en la Universidad de Salamanca, que trata con detalle este aspecto tan desconocido para
el caso de los procesos migratorios de Castilla y León.

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el analfabetismo, cosa que documentamos en las localidades zamoranas de Villanueva de
Valrojo, Fresno de la Carballeda o Gema del Vino. Se trataba de o bien evitar la emigración,
o si esto no era posible, al menos que los jóvenes emigraran lo mejor preparados que les fuera
posible (Blanco y Sánchez, 2012). También desde el Club Villarino de La Habana, mediante
una cuestación en la que participan numerosos socios, se sufragó un módulo de las escuelas
del pueblo salmantino de Villarino de los Aires (Blanco, Dacosta y Sánchez, 2020, 51-52.).
Otra de las preocupaciones constantes será el dotar a los pueblos de infraestructuras
adecuadas. Los emigrantes de Fermoselle en La Habana, Santiago de Cuba, Guantánamo
y Buenos Aires, además de los residentes en otros países –entre ellos la familia Regojo-,
realizaron una amplia suscripción para financiar la acometida de aguas desde el río Tormes
a su pueblo. En esta tarea se implicaron las elites económicas de esa emigración, pero
también muchos modestos emigrantes y asociaciones como la Colonia Fermosellana de
Santiago de Cuba y el Centro Fermosellano, de Buenos Aires. Esta obra fue inaugurada en
1953 y en parte –si bien actualizada a partir de la construcción del embalse de Almendra-,
sigue operativa17. La acometida de teléfono de la localidad zamorana de Viñas de Aliste, así
como una torre para el reloj adosada a su casa consistorial, fue costeada por un emigrante.
A su vez, desde el Club Villarino se aportaron fondos para ampliar y mejorar el cementerio
de esta localidad salmantina en el que financiaron un osario (Blanco, Dacosta y Sánchez,
2020, 22 y ss.). No era infrecuente la canalización de fondos para mejoras relacionadas
con el aspecto funerario. En este sentido tenemos constancia también de la donación, en
1920, de un carro fúnebre que facilitara el transporte de los féretros al cementerio, por
los emigrados de Hinojosa de Duero (Salamanca), en la localidad argentina de Tucumán.

663 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Los emigrantes demostraron especial sensibilidad ante las calamidades que podían
azotar a sus pueblos. La Colonia Zamorana de Cuba aportó donativos en varias ocasiones,
siendo la más significativa en la que aportó casi diez mil pesetas de la época para los damni-
ficados de la riada que se llevó el pueblo de Ribadelago en 1959 (San Juan y Blanco, 1994,
184). Durante la Guerra Civil Española destacados fermosellanos de Buenos Aires aporta-
ron dinero a entregar a los heridos y caídos del llamado bando “nacional”18. Esta faceta de
la vinculación, aunque con menos intensidad sigue estando presente. Baste como ejemplo
como tras los recientes incendios de la sierra de la Culebra y la Tierra de Alba de Zamora,
los emigrantes y descendientes residentes en La Habana y Buenos Aires -muy activos éstos
en la utilización de las nuevas tecnologías-, volvieron a rememorar sus demandas a los
poderes públicos de atención y protección a sus lugares de origen.

17
Abastecimiento de aguas de Fermoselle. Memoria. (1953). Ayuntamiento de Fermoselle. En el pueblo
siguen en pie las cinco fuentes construidas, tres de ellas rotuladas como Cuba, Argentina y Portugal.
18
Centro de Estudios de la Emigración Castellana y Leonesa, Argentina, Asociaciones, Junta de Fermosellanos
en la Argentina, papeles sueltos.

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En el ámbito religioso y festivo también se manifiesta la vinculación de estos emi-
grantes con sus lugares de origen se hace presente. Numerosas serán las acciones en favor
de ermitas caso de las localidades zamoranas de Guarrate -donde se levanta una de nueva
planta-, o de Lubián, donde se regala una campana para la torre del santuario de La Tuiza.
Se han constatado numerosos ejemplos de emigrantes que costeaban las fiestas patronales
de sus localidades de origen. En Otero de Bodas, por poner tan solo un ejemplo, Elvira
Vara, la emigrante en La Habana, durante muchos años sufragó la fiesta del 13 de mayo
en honor de la virgen de Fátima del pueblo19.
Las dificultades económicas -y los avatares políticos de algunos de los países-, deter-
minaron la reducción -y práctica desaparición-, de estos apoyos. A pesar de esto desde las
asociaciones vigentes se ha seguido dando impulso a una relación con las instituciones
públicas, interrumpida tan solo unas décadas, canalizando iniciativas como los programas
“añoranza” y “raíces” lideradas por diputaciones y ayuntamientos. La colaboración de estas
entidades, bajo el asesoramiento de las asociaciones en América, ha facilitado la búsqueda
de raíces identitarias -y la recuperación de la memoria migratoria- de no pocos de los des-
cendientes de zamoranos y salmantinos.
Iniciativas colectivas e individuales que reflejan una realidad que el embajador de
España en Cuba constataba, en 1931, cuando afirmaba que emigrantes españoles man-
tenían una actitud aparentemente contradictoria: al tiempo que se integraban de forma
estrecha en la nueva sociedad, mostraban un interés creciente por reconocerse y ser reco-
nocidos en las asociaciones étnicas. Con este mismo espíritu buscaron la integración plena
de sus hijos en los países de acogida, sin descuidar por ello la vinculación con las patrias
664 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

grandes y chicas de sus ancestros en una corriente que aún permanece bajo el Atlántico.

Conclusiones

La emigración es la principal responsable de la actual situación de despoblamiento y


envejecimiento de las zonas rurales de Zamora y Salamanca, con especial incidencia en
la zona de “la raya”. La vinculación de los emigrantes y de las asociaciones en América,
ejercida a través de las remesas a las familias y las acciones de mecenazgo, representa un
importante legado de la memoria construida e histórica de numerosos municipios en estas
provincias.
Las asociaciones, en algunos casos vigentes actualmente, en otros extintas o incorpora-
das a aquellas de mayor entidad como consecuencia de la disminución del flujo migrato-
rio, conforman unas interesantes plataformas de relación con los lugares de origen. Estas

19
Entrevista a Francisco Diego Vara, 20 de agosto de 2018.

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han ejercido un papel relevante en el sostenimiento socioeconómico de unos territorios
que añoraban. Ambas realidades, asociacionismo y mecenazgo, se establecen de alguna
manera como precedentes de las actuales formas de sociabilidad virtual y del complejo
proceso de asociacionismo cultural, estrechamente relacionado con la emigración interior.
También éstas, aunque el contexto haya cambiado, contribuyen de manera significativa
al desarrollo de sus pueblos y a la puesta en valor de sus activos a través de iniciativas de
índole diversa. Y al mismo tiempo, ejercen una labor-función de denuncia de la actual
situación de abandono, asunto complejo y no exento, en muchas ocasiones, de contra-
dicciones. Acciones, en definitiva, que buscan fomentar la supervivencia de unos pueblos
de los que, a pesar de las circunstancias y de que vivan alejados de ellos, forman parte, y
una parte muy importante. Sin ninguna duda, el futuro de estos territorios pasa por tener
en cuenta, practicando una “geografía de las ausencias” (Cabero, 2005), a esta población
vinculada a ellos con lazos profundos y persistentes.

Resumen

La situación demográfica que viven las provincias de Salamanca y Zamora, con especial in-
cidencia en su área fronteriza con respecto a Portugal, registran unos valores muy preocupantes,
dominados por la escasa población y el envejecimiento de la misma, características que ponen en
dificultades su desarrollo socio-económico. El fenómeno que lo ha condicionado en gran medida es
la emigración, la presencia de un contingente considerable de población de ambas provincias en las
tres grandes oleadas emigratorias que tienen lugar desde el último tercio del XIX, y en la considera-
da actualmente nueva emigración del siglo XXI20. Entre otros factores, la crisis agraria, el problema

665 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de la filoxera, la tragedia de las quintas en un contexto de guerra, así como la atracción americana y
la presión de las navieras, motivaron que muchos habitantes de estas provincias se embarcasen hacia
América. A pesar de ello, esta movilización no ha supuesto una desvinculación, al contrario, existe
una fuerte conexión que se manifiesta de distintas maneras. Un intenso asociacionismo y coopera-
tivismo microterritorial, provincial y regional que representa una extensa red de apoyo, manifestada
tanto de forma individual como colectiva en favor del desarrollo y la mejora de las condiciones de
vida de los territorios de origen.

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20
Este trabajo forma parte de los resultados del proyecto El asociacionismo de la emigración española en
América a partir de la década de 1960: los casos de La Habana, Buenos Aires y Caracas. Proyecto PID2021-
123160NB-I00 financiado por la MCIN / AEI y por FEDER Una manera de hacer Europa.

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Los Consejos Económicos y Sociales de las
Comunidades Autónomas en España

Enrique Cabero Morán1

La institucionalización del diálogo social permanente en las


Comunidades Autónomas españolas

El fundamento constitucional de los sistemas


de diálogo social permanente

En el comienzo del preámbulo de la Constitución Española de 1978 (CE) se proclama


la voluntad de “Garantizar la convivencia democrática dentro de la Constitución y de las
leyes conforme a un orden económico y social justo”. La definición de los parámetros que

669 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
determinan y miden el contenido y el alcance de la justicia económica y social que preside
el orden buscado encuentran su principal marco conceptual en el artículo 1.1 CE: “España
se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores
superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo
político”. Los instrumentos institucionales para la consecución de tal orden se compen-
dian en el artículo 9.2 CE: “Corresponde a los poderes públicos promover las condiciones
para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean
reales y efectivas; remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud y facilitar
la participación de todos los ciudadanos en la vida política, económica, cultural y social”.
Estas proclamaciones y mandatos a los poderes públicos hallan en la alta función consti-
tucional de las organizaciones sindicales y empresariales, que “contribuyen a la defensa y
promoción de los intereses económicos y sociales que les son propios” (artículo 7 CE), el
complemento necesario en este modelo para el adecuado gobierno.

1
Presidente del Consejo Económico y Social de Castilla y León
Profesor Titular de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social (Universidad de Salamanca)

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El diálogo y la concertación social dotan de legitimación adicional a las decisiones
gubernamentales, tanto en el Estado, como en las Comunidades Autónomas, para la apro-
bación de normas legales y reglamentarias, desde la determinación de su oportunidad y
acotación temática, hasta la redacción concreta de los contenidos de los proyectos. Se
aconseja, en consecuencia, la promoción de los procesos de diálogo social, alcanzándose
acuerdos, preferentemente, entre los gobiernos (estatales o autonómicos, según el reparto
competencial, y también ahora de las entidades locales) y las organizaciones sindicales
y empresariales más representativas, combinándose el ejercicio de la función ejecutiva
(artículo 97 CE) y de la función constitucional atribuida a los sindicatos y asociaciones
empresariales (artículo 7 CE, recién citado). Sobresale la asunción de este sistema por los
Estados más avanzados, que inspiró, por cierto, el carácter tripartito de la estructura de la
Organización Internacional del Trabajo (OIT).
La función constitucional de las organizaciones sindicales y empresariales excede el
ámbito de las relaciones laborales, pues les otorga una dimensión política, distinta natu-
ralmente de la propia de los partidos políticos, “instrumento fundamental para la partici-
pación política” (artículo 6 CE), que se manifiesta de manera expresa en el diálogo social,
así como en otra figura distinta, nacida igualmente del Estado social y democrático de
Derecho, la participación institucional (artículo 129.1 CE), construida también sobre la
mayor representatividad sindical (artículos 6 y 7 de la Ley Orgánica 11/1985, de 2 de agos-
to, de Libertad Sindical) y empresarial (disposición adicional sexta del texto refundido de
la Ley del Estatuto de los Trabajadores, TRLET, aprobado por el Real Decreto Legislativo
2/2015, de 23 de octubre). Adviértase, por cierto, cómo el diálogo social y la participación
670 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

institucional difieren de la negociación colectiva, cuya naturaleza responde a una finalidad


distinta, bien que necesaria en un sistema democrático de relaciones laborales, fundada en
el derecho “a la negociación colectiva laboral entre los representantes de los trabajadores
y empresarios”, que la ley garantizará, del mismo modo que “la fuerza vinculante de los
convenios” (artículo 37.1 CE; véanse los artículos 82 a 92 TRLET).
La concertación social tripartita (Gobiernos, sindicatos y asociaciones empresariales)
ha ido adquiriendo prestigio en la ciudadanía, principalmente desde la transición política
a la democracia y la etapa posconstitucional de consolidación del Estado social y demo-
crático y las profundas reformas políticas, económicas y sociales que se aprobaron con tal
fin. La legitimación social que otorga el origen pactado de las normas legales y reglamen-
tarias reguladoras de los asuntos mencionados, muy especialmente en materia de trabajo y
protección social, les dota indudablemente de una eficacia mayor. Existe una presunción
ciudadana acerca de la idoneidad, más allá de los contenidos concretos, que pueden hasta
desconocerse en su plasmación normativa precisa, de las medidas nacidas de la concerta-
ción social. Lejos de desviarse o contaminarse el procedimiento legislativo o reglamentario,

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la concertación social amplía y enriquece el sustento democrático en una sociedad tan com-
pleja y cambiante como la contemporánea. También se ha convertido en una herramienta
útil y socialmente demandada para el diseño de políticas públicas. Continúan siendo es-
perados en la actualidad los procesos de consulta, negociación y, en su caso, acuerdo entre
el Gobierno de España o los de las Comunidades Autónomas, en sus marcos territoriales
y competenciales, extendidos a las Entidades Locales, y las organizaciones sindicales y em-
presariales más representativas. Con todo, no existe, ni se ha llegado a tramitar, una ley
estatal ordenadora del diálogo social. Ni siquiera se menciona expresamente como tal en la
Constitución. Los procesos surgen de la iniciativa política y, por supuesto, de la proactivi-
dad o la receptividad de las organizaciones sindicales y empresariales más representativas.
Son la propia negociación tripartita y el acuerdo resultante los que dan forma al diálogo
social, mediante la selección de los contextos, los objetivos, las materias y las fechas.
La Constitución contempla, junto a los sindicatos, nacidos del ejercicio del derecho
fundamental de libertad sindical (artículo 28.1 CE), y a las asociaciones profesionales, ba-
sadas en el derecho fundamental de asociación (artículo 22.1 CE), incluidos en el artículo
7 CE, como ya se ha mencionado, otros sujetos colectivos, construidos sobre el derecho
fundamental de asociación y centrados en la defensa de derechos e intereses económicos
singulares. Recuérdense, en este sentido, las organizaciones profesionales (artículo 52 CE)
y las organizaciones de consumidores y usuarios (artículo 51.2 CE), así como los firmes
mandatos constitucionales de fomento de la economía social (artículo 129.2 CE) y de la
modernización y desarrollo de todos los sectores económicos y, en particular, de la agricul-
tura, de la ganadería, de la pesca y de la artesanía (artículo 130.1 CE).

671 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
La inexistencia de experiencias previas en España sobre la institucionalización del diá-
logo social, así como las previsiones del título VIII de la Constitución sobre la organización
territorial del Estado, propiciaron la introducción en el artículo 131.2 CE de un consejo
pensado para articular, con diálogo y participación social, el proceso para hacer posible
que el Estado, mediante ley, planifique “la actividad económica general para atender a las
necesidades colectivas, equilibrar y armonizar el desarrollo regional y sectorial y estimular
el crecimiento de la renta y de la riqueza y su más justa distribución” (artículo 131.1 CE).
La Constitución piensa en la creación de un consejo, “cuya composición y funciones se
desarrollarán por ley”, para facilitar la elaboración por el Gobierno de España de tales
“proyectos de planificación, de acuerdo con las previsiones que le sean suministradas por
las Comunidades Autónomas y el asesoramiento y colaboración de los sindicatos y otras
organizaciones profesionales, empresariales y económicas”. Sin embargo, su finalidad pare-
ce distanciarlo de la opción finalmente seguida por la Ley 21/1991, de 17 de junio, por la
que se crea el Consejo Económico y Social, aunque se debate este extremo en profundidad
durante su tramitación parlamentaria, eludiendo su exposición de motivos pronunciarse

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al respecto. Se prefiere, por consiguiente, acudir al mandato constitucional, “dirigido a los
poderes públicos, de promover y facilitar la participación de los ciudadanos, directamente
o a través de organizaciones o asociaciones, en la vida económica y social”.
Se optó entonces a nivel estatal, como se había hecho ya en varias Comunidades, por
la denominación “consejo económico y social”, pues sus objetivos consisten en reforzar
“la participación de los agentes económicos y sociales en la vida económica y social, rea-
firmando su papel en el desarrollo del Estado Social y Democrático de Derecho” y, a su
vez, funcionar como “plataforma institucional permanente de diálogo y deliberación, en la
medida en que constituye el único órgano donde están representados un amplio conjunto
de organizaciones socio-profesionales”, y de medio de comunicación “permanente entre
los agentes económicos y sociales y el Gobierno”, haciendo “más fluida la relación y cola-
boración entre aquellos y el Gobierno”. En definitiva, el CES “responde a la legítima aspi-
ración de los agentes económicos y sociales de que sus opiniones y planteamientos se oigan
a la hora de adoptar el Gobierno decisiones que puedan afectar a los intereses que les son
propios”, por lo que se define como órgano consultivo que ejercerá su función también “en
relación con la actividad normativa del Gobierno en materia socioeconómica y laboral”.
Pronto pudo comprobarse que esa función consultiva y de informe y propuesta, de
naturaleza participativa, del CES no debía confundir su espacio, aun coincidiendo en su
composición parte de los actores protagonistas, con el diálogo social tripartito. La rotundi-
dad de los hechos situó al CES de España en un contexto complicado para ubicarse en el
organigrama institucional de más alto nivel: empezó su actividad ordinaria en el marco del
duro y difícil debate de las reformas de la legislación laboral y de seguridad social aprobadas
672 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

en los años 1993 y 1994, que supusieron la ruptura de la concertación social en el último
periodo del Gobierno presidido por Felipe González, así como una pugna irresoluble entre
las organizaciones empresariales y sindicales más representativas. El CES encontró su espacio
real y devino reforzado, porque, aunque no pudo alcanzarse el consenso en la valoración del
proyecto de reforma (se desestimó el 4 de noviembre de 1993, después de doce horas de de-
bate, la propuesta de dictamen, reelaborada por los expertos, al emitirse treinta y ocho votos
en contra, once a favor y dos abstenciones), sí lo hubo en la contribución de todas las orga-
nizaciones y personas expertas para consolidar una institución que prometía éxitos notables.
Debe recordarse, con todo, que la creación y puesta en funcionamiento en España de los
CES se dieron en el ámbito de las Comunidades Autónomas. El título VIII, dedicado a la or-
ganización territorial del Estado, concreta y desarrolla, especialmente en sus capítulos prime-
ro, “Principios generales” (artículos 137 a 139), y tercero, “De las Comunidades Autónomas”
(artículos 143 a 158), la proclamación por el artículo 2 CE de que “La Constitución se fun-
damenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos
los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones

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que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. El ejercicio de este derecho a la autonomía,
bien de acuerdo con lo previsto en el artículo 143, o bien conforme a lo establecido en el ar-
tículo 151, dio lugar a la creación de las actuales Comunidades Autónomas y a la aprobación
entre 1979 y 1983 de sus primeros estatutos de autonomía de esta etapa constitucional: País
Vasco (Ley Orgánica 3/1979, de 18 de diciembre), Cataluña (Ley Orgánica 4/1979, de 18
de diciembre; el vigente fue aprobado por la Ley Orgánica 6/2006, de 19 de julio), Galicia
(Ley Orgánica 1/1981, de 6 de abril), Andalucía (Ley Orgánica 6/1981, de 30 de diciem-
bre; el vigente fue aprobado por la Ley Orgánica 2/2007, de 19 de marzo), Principado de
Asturias (Ley Orgánica 7/1981, de 30 de diciembre), Cantabria (Ley Orgánica 8/1981, de
30 de diciembre), La Rioja (Ley Orgánica 3/1982, de 9 de junio), Región de Murcia (Ley
Orgánica 4/1982, de 9 de junio), Comunidad Valenciana (Ley Orgánica 5/1982, de 1 de
julio; el vigente fue aprobado por la Ley Orgánica 1/2006, de 10 de abril), Aragón (Ley
Orgánica 8/1982, de 10 de agosto; el vigente fue aprobado por la Ley Orgánica 5/2007, de
20 de abril), Castilla-La Mancha (Ley Orgánica 9/1982, de 10 de agosto), Canarias (Ley
Orgánica 10/1982, de 10 de agosto; el vigente fue aprobado por la Ley Orgánica 1/2018, de
5 de noviembre), Comunidad Foral de Navarra (Ley Orgánica 13/1982, de 10 de agosto, de
reintegración y amejoramiento del Régimen Foral de Navarra), Extremadura (Ley Orgánica
1/1983, de 25 de febrero; el vigente fue aprobado por la Ley Orgánica 1/2011, de 28 de
enero), Islas Baleares (Ley Orgánica 2/1983, de 25 de febrero; el vigente fue aprobado por
la Ley Orgánica 1/2007, de 28 de febrero), Comunidad de Madrid (Ley Orgánica 3/1983,
de 25 de febrero) y Castilla y León (Ley Orgánica 4/1983, de 25 de febrero; el vigente fue
aprobado por la Ley Orgánica 14/2007, de 30 de noviembre).

673 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
El origen y el marco normativo de los consejos económicos y sociales
de las Comunidad Autónomas

La asunción de competencias por las Comunidades Autónomas, sin perjuicio de los dis-
tintos ritmos y calendarios, provocó la traslación de las dinámicas propias del diálogo social
a las relaciones entre los gobiernos autonómicos y las organizaciones sindicales y empresa-
riales más representativas. Los procesos de concertación social autonómicos, desarrollados
con características semejantes a los de ámbito estatal, al haber sido asumidas competencias
constitucionales propias del ejecutivo en el ámbito territorial de cada Comunidad, tampoco
fueron institucionalizados en la primera generación de estatutos de autonomía. Ni siquiera
se previeron como instituciones estatutarias los consejos económicos y sociales. Pronto, no
obstante, los parlamentos autonómicos empezaron a legislar sobre estas materias, abriéndose
una etapa en la que comienza el diseño legal de los CES, compatibilizándose con la crea-
ción, también por ley, de los consejos de relaciones laborales, cuya “función primordial”, en

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palabras de la ya derogada Ley 9/1981, de 30 de septiembre [del País Vasco], consiste en
“posibilitar un diálogo permanente entre las organizaciones sindicales y asociaciones empre-
sariales que permita la adopción de acuerdos en materia de relaciones laborales”, actuando,
además, como “órgano consultivo en las materias relativas a la política laboral y social de la
Comunidad Autónoma” (artículo 2). A aquel momento pertenecen, amén de la Ley 9/1981,
de 30 de septiembre, sobre el Consejo de Relaciones Laborales [del País Vasco] (derogada
y sustituida por la Ley 11/1997, de 27 de junio, del Consejo de Relaciones Laborales/Lan
Harremanen Kontseilua, derogada y sustituida por su homónima Ley 4/2012, de 23 de fe-
brero), la Ley 4/1983 de 27 de junio, del Consejo Andaluz de Relaciones Laborales, y la Ley
7/1988, de 12 de julio, de creación del Consejo Gallego de Relaciones Laborales (derogada
y sustituida por la Ley 5/2008, de 23 de mayo, por la que se regula el Consejo Gallego de
Relaciones Laborales). Continuaron su estela, unos años después, la Ley 2/1995, de 30 de
enero, de creación del Consejo Canario de Relaciones Laborales, o la Ley 9/2002, de 6 de
junio, de creación del Consejo de Relaciones Laborales de Castilla-La Mancha.
La institucionalización del diálogo social permanente mediante la creación de los CES
supone una innovación generada en el ámbito autonómico, sin una referencia en el estatal,
por no contemplarse esta figura ni en la Constitución, ni en la legislación posconstitucional
inicial. El modelo se encuentra en otros Estados de la Unión Europea. Así lo indica en su
preámbulo la Ley 4/1984, de 15 de noviembre, sobre Consejo Económico y Social Vasco-
Euskadiko Ekonomia eta Gizarte Arazoetarako Batzordea, que señala como antecedentes,
en “los años inmediatos al fin de la primera guerra mundial”, la OIT (1919) y los prime-
ros CES que surgieron “en Francia en 1925 [se refiere al Consejo Nacional Económico
674 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

de la República Francesa, aprobado por Decreto de 16 de enero de 1925], creándose más


tarde otras similares en otros países europeos, particularmente a partir de la conclusión
de la Segunda Guerra Mundial”, así como, naturalmente, el Comité Económico y Social
Europeo, que integra la arquitectura institucional, al más alto nivel, de la hoy Unión
Europea. Explica la Ley 4/1984 que la fórmula elegida, en relación con su naturaleza y
funciones, parte de una coincidencia sustancial con ellos, como “órgano consultivo que
pretende hacer posible la participación de representantes de diversos intereses sociales y
económicos en la política económica de los gobiernos, permitiendo a la vez el diálogo y
colaboración entre los mismos”. Asimismo, el CES “no adopta una actitud pasiva, sino
que posee iniciativa propia para plantear sugerencias o resoluciones a tener en cuenta
por los Gobiernos correspondientes”. Se define, además, como un órgano “autónomo e
independiente del Gobierno y sus informes, aunque no son vinculantes, son preceptivos
en buen número de supuestos” y representan, en todo caso, “una opinión considerable”.
Reconoce, sin embargo, que la inexistencia de coincidencias sustanciales a nivel in-
ternacional en la composición de estas instituciones (si ha de estar o no representado

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directamente el Gobierno, qué organizaciones y con qué peso han de formar parte, etc.) ha
originado un esfuerzo político adicional para llegar a una propuesta compartida. Acabará
siendo habitual en las Comunidades Autónomas, al igual que en la posterior configu-
ración del CES de España, la estructuración de los CES, aunque con matices en su di-
mensión, en tres grupos (el CES de Cantabria tiene cuatro y el de Navarra cinco, como
se verá): sindical, empresarial y mixto, con otras organizaciones de base constitucional y
expertos. La presidencia será nombrada habitualmente por el Gobierno autonómico, a
propuesta del pleno del CES, las vicepresidencias suelen desempeñarse por representantes
de las organizaciones con mayor presencia (sindicatos y asociaciones empresariales) y se
prevé la existencia de una secretaría general, concebida como cargo de confianza de la
presidencia. Otras leyes iniciales, que se comentan más abajo, como las del Principado de
Asturias (1988), La Rioja (1989), Aragón (1990) y Extremadura (1991), y el decreto de
la Comunidad Valenciana (1991), parten, bien que con mayor o menor entusiasmo en la
pormenorización de los argumentos en su exposición de motivos, de las aspiraciones de
las organizaciones sindicales y empresariales y de los planteamientos derivados del Estado
social y democrático de Derecho (con cita o no del artículo 1 de la Constitución) y sus
consiguientes mandatos constitucionales, así como de los preceptos estatutarios sobre el
progreso económico y social, la participación social y el bienestar y la calidad de vida.
Solamente tres, las leyes de Canarias y de Castilla y León, ambas de 1990, y la de Madrid
(1991) mencionan en sus preámbulos artículos concretos de la Constitución: la ley de
Canarias el 131.2, la de Castilla y León el 9.2 y la de Madrid el 7.
En definitiva, en la legislación autonómica de creación de los CES no se produjo,

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por lo expuesto, una interacción real entre el Estado y las Comunidades Autónomas, ni
siquiera tal vez entre estas. Se han dado procesos paralelos, aunque parecidos por las cir-
cunstancias, claramente inspirados, en el modelo comunitario (artículos 193 a 198 del
Tratado de Roma de 1957, constitutivo de la Comunidad Económica Europea) y otros
europeos, como el CES de la República Portuguesa2. La influencia del CES de Naciones
Unidas ha sido menor por la distinta naturaleza de su composición y la dimensión de sus

2
El Consejo Económico y Social de Portugal se creó por la Lei n.° 108/91, de 17 de agosto (Lei do Conselho
Económico e Social): “O Conselho Económico e Social, previsto no artigo 95.°4 da Constituição, é o órgão de
consulta e concertação no domínio das políticas económica e social e participa na elaboração dos planos de desen-
volvimento económico e social” (artículo 1). Véase, además, el Decreto-lei n.° 90/92, de 21 de maio, dictado
en su desarrollo. Adviértase que, aunque los consejeros y consejeras “não estejam formalmente integrados em
categorias, é possível considerar seis grupos que se distinguem pela natureza dos interesses que representam: 1.
Governo. 2. Organizações empresariais. 3. Organizações representativas dos trabalhadores e das trabalhadoras. 4.
Representantes dos governos regionais e autarquias locais. 5. Interesses diversos. 6. Personalidades de reconhecido
mérito” (artículo 3 de la Lei n.° 108/91). Por cierto, el artículo 18 de la Lei n.° 108/91, dedicado a la repre-
sentación de las regiones administrativas, establece que “A lei que criar as regiões administrativas, na sequência
da lei quadro respetiva, instituirá o seu modo de representação no Conselho Económico e Social”.

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competencias (artículos 61 a 72 de la Carta de las Naciones Unidas). En todo caso, los
CES autonómicos han ido adquiriendo mayor peso gracias a reformas estatutarias, así
como a su consolidación como instituciones en la segunda generación de los estatutos de
autonomía (2006-2011), como se analiza en el apartado siguiente.
Llama la atención que la mayoría de las Comunidades Autónomas crearan sus CES
en el periodo de quiebra de los procesos de concertación social general que se dio a nivel
estatal a finales de los ochenta y principios de los noventa. La crisis económica iniciada
en 1993 y la amplia asunción de competencias en materia laboral, económica y social por
todas las Comunidades condujo a la necesidad de institucionalizar nuevos espacios de diá-
logo social. Sin perjuicio de su plena independencia, los CES autonómicos se vincularon
a los Gobiernos (lo mismo sucedió con el CES de España), aunque en su composición no
contaran con representantes suyos3, salvo el CES de Castilla y León, que se adscribe a las
Cortes por obra de la Ley 4/2013, de 19 de junio, por la que se modifica la organización
y el funcionamiento de las instituciones propias de la Comunidad de Castilla y León4.
La segunda generación de estatutos de autonomía (2006-2011) optaron por detallar,
tras más de veinte años de evolución de las dinámicas del funcionamiento institucional,
sobre todo como consecuencia de la grave crisis económico-financiera internacional desa-
tada en 2008, las declaraciones de derechos y por introducir referencias expresas al diálogo
social y su importancia en el contexto territorial propio, tanto en la enumeración de los ob-
jetivos básicos de la acción de gobierno, como en la de los principios rectores de la misma.
Atienden a este fin, por ejemplo, los artículos 10.3.20.º, 37.1.12.º y 159 del Estatuto de
Autonomía de Andalucía, 27.2 del de las Islas Baleares, 23.4 y 37.27 del de Canarias, 16.4
676 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

del de Castilla y León, 25.5 y 45.4 y 6 del de Cataluña, 7.4 del de Extremadura y 9.4 del
de la Comunidad Valenciana.
Merece una mención especial, por el acierto en su diseño, el modelo previsto por la
Ley Orgánica 14/2007, de 30 de noviembre, de reforma del Estatuto de Autonomía de
Castilla y León. Introduce entre los “Principios rectores de las políticas públicas”, en su
artículo 16.4, “El fomento del diálogo social como factor de cohesión social y progreso
económico, reconociendo el papel de los sindicatos y organizaciones empresariales como
representantes de los intereses económicos y sociales que les son propios, a través de los

3
Supone una excepción la composición vigente del CES de la Comunidad Foral de Navarra, que cuen-
ta con cinco grupos desde la modificación introducida por la Ley Foral 20/2013, de 20 de junio: “El
Consejo Económico y Social de Navarra estará integrado por treinta miembros, incluido su presidente. a)
De ellos, siete conformarán el Grupo Primero que integrará a los representantes de la Administración de la
Comunidad Foral, de entre los cuales, al menos uno, corresponderá al ámbito de la Administración Local
de Navarra (…)”; la presidenta actual es la consejera de Economía y Hacienda del Gobierno Foral.
4
Véase, en este sentido, que el presidente del Consejo Económico y Social de Portugal es “eleito pela
Assembleia da República nos termos da alínea h) do artigo 166.°2 da Constituição”.

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marcos institucionales permanentes de encuentro entre la Junta de Castilla y León y di-
chos agentes sociales. Para ello podrá regularse un Consejo del Diálogo Social en Castilla
y León”. Al amparo de este último inciso, se aprobó la Ley 8/2008, de 16 de octubre, para
la creación del Consejo del Diálogo Social y regulación de la participación institucional,
que crea este Consejo y lo define “como máximo órgano de encuentro y participación ins-
titucional de los Agentes Económicos y Sociales y la Junta de Castilla y León, de carácter
tripartito y adscrito a la Consejería competente en materia de ejecución de la legislación
laboral” (artículo 1.1).
Se ofrece incluso una noción legal de diálogo social, aseverando que por el mismo se
entiende, “a los efectos de esta ley, el proceso de negociación y concertación en materias
económicas y sociales, así como en otras de interés general, desarrollado entre la Junta
de Castilla y León y los sindicatos y las organizaciones empresariales más representati-
vos de la Comunidad Autónoma, conforme a lo regulado por los artículos 6 y 7.1 de
la Ley Orgánica 11/1985, de 2 de agosto, de Libertad Sindical, y por la disposición
adicional sexta del texto refundido del Estatuto de los Trabajadores, aprobado por Real
Decreto Legislativo 1/1995, de 24 de marzo [que se corresponde, como se sabe, con
la vigente disposición adicional sexta del texto refundido de la Ley del Estatuto de los
Trabajadores, aprobado por el Real Decreto Legislativo 2/2015, de 23 de octubre]”
(artículo 1.2). Correlativamente, la Ley 4/2013, de 19 de junio, por la que se modifica
la organización y el funcionamiento de las instituciones propias de la Comunidad de
Castilla y León, matizó el artículo 2.2, “Naturaleza”, de la Ley 13/1990, de 28 de no-
viembre, del Consejo Económico y Social [de Castilla y León], que pasó a tener esta

677 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
redacción, que es la vigente: “El Consejo se configura como un órgano permanente de
comunicación entre los distintos intereses económicos y sociales de la Comunidad y
de asesoramiento de estos a la Administración Autonómica” (establecía antes que “El
Consejo se configura como un órgano permanente de comunicación entre los distintos
intereses económicos y sociales de la Comunidad y de asesoramiento y diálogo entre
éstos y la Administración Autonómica”). Queda inalterada, por supuesto, la naturaleza
estatutaria del CES como “órgano colegiado de carácter consultivo y asesor en materia
socioeconómica de la Comunidad Autónoma de Castilla y León” (artículo 81.1 de la
Ley Orgánica 14/2007, de 30 de noviembre, de reforma del Estatuto de Autonomía de
Castilla y León).
Empezó así en la mayor parte de las Comunidades Autónomas una nueva relación
entre el diálogo social ampliado y permanente, representado por los CES, y este nuevo
diálogo social tripartito institucionalizado en Consejos o Mesas de Diálogo Social, que
responden a principios, funciones, enfoques y dimensiones notablemente diferentes.
Estas figuras se complementan sin dificultad, y hasta se pueden potenciar en el ejercicio

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de sus competencias. Este impulso se ha traducido también, a raíz de la crisis iniciada
en 2008, en una reordenación y mejora de la legislación autonómica sobre participación
institucional5.
En estos más de tres decenios los CES se han convertido en un marco óptimo para la
institucionalización de un diálogo social ampliado y permanente, que se ha manifestado
especialmente útil en la promoción de los valores y principios propios del Estado social y
democrático de Derecho. Cierto es que, por fortuna, han proliferado, en cumplimiento
del artículo 129.1 de la Constitución y de los estatutos de autonomía, órganos de parti-
cipación institucional en el ámbito competencial de las consejerías de los gobiernos auto-
nómicos. Mas su naturaleza dista mucho, por su origen, composición y funciones, de los
CES. No existe ningún otro órgano o institución, de carácter participativo y sin presencia
de los partidos políticos, que pueda actuar como atalaya de la realidad social y económica,
desde una perspectiva global y transversal, así como posibilitar con más eficiencia la parti-
cipación real, tanto en la elaboración de informes y la emisión de dictámenes previos a la
aprobación de normas legales y reglamentarias, como en la formulación de propuestas y
recomendaciones, de todas las organizaciones sociales de defensa y promoción de derechos
e intereses previstas constitucionalmente.
No puede olvidarse, con todo, que los debates generados con motivo de los efectos
de la crisis económico-financiera de 2008 sobre la estructura del sector público conduje-
ron a la supresión o suspensión del CES en seis Comunidades Autónomas (Principado
de Asturias, Islas Baleares, Cantabria, Castilla-La Mancha, Madrid y La Rioja). Parece
evidente que no se valoró convenientemente la relevancia de esta institución precisamente
678 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

en las coyunturas más difíciles, en orden a dotar de mayor eficacia y legitimación social las
5
Véanse, en esta línea, la Ley 3/2003, de 13 de marzo, sobre participación institucional de los agentes sociales
más representativos [de Extremadura], la Ley 8/2008, de 16 de octubre, para la creación del Consejo del
Diálogo Social y regulación de la participación institucional [de Castilla y León], la Ley 17/2008, de 29
de diciembre, de participación institucional de las organizaciones sindicales y empresariales más represen-
tativas de Galicia, la Ley 4/2009, de 1 de diciembre, de participación institucional de los agentes sociales
en el ámbito de la Comunidad Autónoma [de Cantabria], la Ley 2/2011, de 22 de marzo, por la que se
regula la participación institucional de las organizaciones empresariales y sindicales más representativas de
la Comunidad Autónoma de las Illes Balears, la Ley Foral 22/2014, de 12 de noviembre, por la que se crea
el Consejo Navarro del Diálogo Social en Navarra, la Ley 10/2014, de 18 de diciembre, de participación
institucional de las organizaciones sindicales y empresariales más representativas de Canarias, la Ley 7/2015,
de 2 de abril, de participación y colaboración institucional de las organizaciones sindicales y empresariales
representativas en la Comunidad Valenciana, la Ley 1/2016, de 4 de abril, de impulso y consolidación del
diálogo social en La Rioja, el Decreto 21/2017, de 28 de febrero, del Consejo de Gobierno, por el que se
crea el Consejo para el Diálogo Social de la Comunidad de Madrid y se establece su composición, organi-
zación y funcionamiento, la Ley 5/2017, de 5 de julio, de participación institucional de las organizaciones
sindicales y empresariales más representativas en el ámbito de la Región de Murcia, la Ley 1/2018, de 8 de
febrero, de diálogo social y participación institucional en Aragón, y el Decreto-ley 9/2020, de 24 de marzo,
por el que se regula la participación institucional, el diálogo social permanente y la concertación social de
las organizaciones sindicales y empresariales más representativas en Cataluña.

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medidas adoptadas para la superación de la crisis, la evitación de la pobreza y la exclusión
social y la reactivación de la actividad económico-productiva y de la creación de empleo.
No es sustituible el CES autonómico por el CES de España, dado que, aunque cumplen
funciones semejantes, lo hacen, naturalmente, en marcos competenciales distintos. La ini-
ciativa legislativa y reglamentaria, así como la aprobación de planes y medidas propios de
las políticas públicas, corresponde al Gobierno autonómico en el ámbito de sus compe-
tencias, sin posibilidad de confusión o intercambio, so pena de menoscabo constitucional,
con el Gobierno de España. Supone una buena noticia el replanteamiento de aquellas
decisiones en tres de las Comunidades:
• Disposición final séptima de la Ley 12/2015, de 29 de diciembre, de Presupuestos
Generales de la Comunidad Autónoma de las Illes Balears para el año 2016, y
Acuerdo del Consejo de Gobierno de 29 de abril de 2016, por el que se levantan
las suspensiones de la Ley 16/2012, de 27 de diciembre, por la que se suspenden la
vigencia de la Ley 10/2000, de 30 de noviembre, del Consejo Económico y Social
de las Illes Balears, y su funcionamiento.
• Ley 8/2018, de 11 de diciembre, del Consejo Económico y Social de Cantabria
(véase el Decreto 5/2022, de 3 de febrero, de nombramiento de los miembros del
Consejo Económico y Social de Cantabria).
• Ley 4/2022, de 29 de marzo, por la que se alza la suspensión del funcionamiento
del Consejo Económico y Social de La Rioja. Su disposición transitoria única esta-
blece que “El inicio del funcionamiento del Consejo Económico y Social quedará
condicionado a la aprobación de un decreto que regule los efectos del alzamiento

679 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de la suspensión de su actividad. Hasta tanto no se publique este desarrollo quedan
sin efecto todas aquellas referencias legales al carácter preceptivo de los dictámenes
del Consejo, en todo tipo de procedimientos de cualquier naturaleza” (véase el
Decreto 34/2022, de 22 de junio, por el que se nombra a los miembros del Consejo
Económico y Social de La Rioja y se regulan los efectos del alzamiento de la suspen-
sión de su actividad, BOR 24 de junio de 2022).

Los consejos económicos y sociales de las comunidades autónomas:


creación, evolución y características

Las leyes autonómicas de creación de los consejos


económicos y sociales

En la década de los noventa se generalizó la existencia de CES en las Comunidades


autónomas. Se crearon por ley, sin modificación, al menos inicialmente, del estatuto de

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autonomía, normalmente a propuesta pactada de las organizaciones sindicales y empre-
sariales más representativas, en el marco de procesos de diálogo social con el Gobierno
autonómico correspondiente. Fue también en el inicio de aquella década cuando se creó
el CES de España (Ley 21/1991, de 17 de junio), cuya primera reunión ordinaria tuvo
lugar el 25 de febrero de 1993 para la aprobación de su Reglamento de Organización y
Funcionamiento Interno. De los diecisiete que se crearon, son catorce en la actualidad los
CES autonómicos que están en funcionamiento. Los otros tres (Principado de Asturias,
Castilla-La Mancha y Madrid) no se han recuperado.
Se enumeran seguidamente, por orden cronológico, las normas que aprobaron la crea-
ción de los CES autonómicos y procedieron a su regulación, con una somera indicación
de los principales cambios producidos (figura en negrita la Comunidad Autónoma, con el
año de creación del CES, y la ley ahora vigente):
• País Vasco (1984, CES-EGAB). Ley 4/1984, de 15 de noviembre, sobre el
Consejo Económico y Social Vasco-Euskadiko Ekonomia eta Gizarte Arazoetarako
Batzordea, derogada y sustituida por la Ley 9/1997, de 27 de junio, derogada y
sustituida, a su vez, por la Ley 8/2012, de 17 de mayo.
• Principado de Asturias (1988, suprimido en 2017). Ley 10/1988, de 31 de di-
ciembre, de creación del Consejo Económico y Social del Principado de Asturias,
derogada y sustituida por la Ley 2/2001, de 27 de marzo, del Consejo Económico y
Social, que se deroga por la Ley 8/2017, de 27 de octubre, de supresión del Consejo
Económico y Social del Principado de Asturias.
• La Rioja (1989, suspendida su vigencia de 2012 a 2022). Ley 3/1989, de 23 de
680 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

junio, por la que se crea el Consejo Económico y Social de La Rioja, derogada y


sustituida por la Ley 6/1997, de 18 de julio6, reguladora del Consejo Económico y
Social de La Rioja, cuya vigencia se suspende por la Ley 3/2012, de 20 de julio, por
la que se suspende el funcionamiento del Consejo Económico y Social de La Rioja.
Por la Ley 4/2022, de 29 de marzo, se alza la suspensión del funcionamiento del
Consejo Económico y Social de La Rioja y se modifica la Ley 6/1997.

6
Modificada por la Ley 10/2005, de 30 de septiembre, por la que se modifica parcialmente la Ley 6/1997,
de 18 de julio, reguladora del Consejo Económico y Social de La Rioja (competencias del Pleno, secre-
tario y personal del Consejo) y por el artículo 2 de la Ley 4/2022, de 29 de marzo, por la que se alza
la suspensión del funcionamiento del Consejo Económico y Social de La Rioja (composición, mandato,
incompatibilidades).

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• Canarias (1990). Ley 8/1990, de 14 de mayo, del Consejo Económico y Social de
Canarias, derogada y sustituida por la Ley 1/1992, de 27 de abril7.
• Aragón (1990). Ley 9/1990, de 9 de noviembre8, del Consejo Económico y Social
de Aragón.
• Castilla y León (1990). Ley 13/1990, de 28 de noviembre9, del Consejo Económico
y Social de Castilla y León, modificada de forma relevante por la Ley 4/2013, de 19
de junio, por la que se modifica la organización y el funcionamiento de las institu-
ciones propias de la Comunidad de Castilla y León.
• Comunidad Valenciana (1991, Comité Económico y Social). Decreto 8/1991, de
10 de enero, del Consell de la Generalitat Valenciana, por el que se crea el Comité
Económico y Social de la Comunidad Valenciana, derogado por la Ley 1/1993,
de 7 de julio, de la Generalidad Valenciana, de creación del Comité Económico y
Social de la Comunidad Valenciana, derogada y sustituida por la Ley 1/2014, de
28 de febrero10.
• Madrid (1991, suprimido en 2013). Ley 6/1991, de 4 de abril, de creación del
Consejo Económico y Social, derogada por la Ley 8/2012, de 28 de diciembre, de
Medidas Fiscales y Administrativas.

7
Modificada por el artículo 13 de la Ley 4/2001, de 6 de julio, de medidas tributarias, financieras, de or-
ganización y relativas al personal de la Administración Pública de la Comunidad Autónoma de Canarias
(procedimientos), por la disposición final segunda de la Ley 9/2014, de 6 de noviembre, de medidas tributa-
rias, administrativas y sociales de Canarias (representantes de las Cámaras Oficiales de Comercio, Industria,

681 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
Servicios y Navegación, nombramiento del secretario general, mayoría para la aprobación de informes y
dictámenes), por el artículo 11 de la Ley 7/2019, de 9 de abril, de modificación de la Ley 1/2010, de 26
de febrero, Canaria de Igualdad entre Mujeres y Hombres, y de modificación de las leyes reguladoras de los
órganos de relevancia estatutaria para garantizar la representación equilibrada entre mujeres y hombres en
su composición (composición con representación equilibrada entre mujeres y hombres), y por la disposición
final primera de la Ley 10/2019, de 25 de abril, de Cámaras Oficiales de Comercio, Industria, Servicios
y Navegación de Canarias (representantes de las Cámaras Oficiales de Comercio, Industria, Servicios y
Navegación de Canarias, duración de mandatos de los miembros).
8
Modificada por el artículo 29 de la Ley 3/2012, de 8 de marzo, de Medidas Fiscales y Administrativas de la
Comunidad Autónoma de Aragón (nombramiento de presidente, vicepresidentes y secretario general).
9
Modificada por el artículo 2 de la Ley 8/1996, de 27 de diciembre, de Medidas Financieras, Presupuestarias
y Económicas (financiación y medios), por el artículo 53 de la Ley 9/2004, de 28 de diciembre, de medidas
económicas, fiscales y administrativas (elaboración y aprobación del anteproyecto de presupuesto), y por el
artículo 2 de la Ley 4/2013, de 19 de junio, por la que se modifica la organización y el funcionamiento de
las instituciones propias de la Comunidad de Castilla y León (vinculación de las Cortes de Castilla y León,
creación del Grupo de Enlace con la sociedad civil organizada, supresión de la Secretaría General y creación
de la Secretaría General de Apoyo a las Instituciones Propias, funciones, nombramiento del presidente, pér-
dida de la condición de miembro, mandato, incompatibilidades, funciones de las Vicepresidencias, personal
del Consejo, financiación y medios).
10
Modificada por el artículo 5 de la Ley 12/2017, de 2 de noviembre, de modificación de las leyes reguladoras
de las instituciones de la Generalitat para garantizar la igualdad entre mujeres y hombres en sus órganos
(composición equilibrada de mujeres y hombres).

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• Extremadura (1991). Ley 3/1991, de 25 de abril11, de creación del Consejo
Económico y Social de Extremadura.
• Cantabria (1992, se suprime en 2012 y se vuelve a crear en 2018). Ley 6/1992,
de 26 de junio, de Creación del Consejo Económico y Social, derogada por la Ley
2/2012, de 30 de mayo, de Medidas Administrativas, Económicas y Financieras para
la ejecución del Plan de Sostenibilidad de los Servicios Públicos de la Comunidad
Autónoma de Cantabria. Se crea de nuevo por la Ley 8/2018, de 11 de diciembre12,
del Consejo Económico y Social de Cantabria.
• Región de Murcia (1993). Ley 3/1993, de 16 de julio13, del Consejo Económico y
Social de la Región de Murcia.
• Castilla-La Mancha (1994, suprimido en 2012). Ley 2/1994, de 26 de julio, del
Consejo Económico y Social de Castilla-La Mancha, derogada por la Ley 13/2011,
de 3 de noviembre, de supresión del Consejo Económico y Social de Castilla-La
Mancha.
• Comunidad Foral de Navarra (1995). Ley Foral 8/1995, de 4 de abril, reguladora
del Consejo Económico y Social de Navarra, derogada y sustituida por la Ley Foral
2/2006, de 9 de marzo14.
• Galicia (1995). Ley 6/1995, de 28 de junio15, por la que se crea el Consejo
Económico y Social de Galicia.
682 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

11
Modificada por el artículo único de la Ley 7/1996, de 24 de octubre, de modificación del artículo 3.1 de
la Ley 3/1991 de 25 de abril, de Creación del Consejo Económico y Social de Extremadura (composición),
por la Ley 10/1998, de 26 de junio, de modificación del artículo 3.1 de la Ley 3/1991, de 25 de abril,
en la redacción dada por la Ley 7/1996, de 24 de octubre, de creación del Consejo Económico y Social
de Extremadura (composición), y por la disposición final segunda de la Ley 3/2018, de 21 de febrero,
de Cámaras Oficiales de Comercio, Industria y Servicios de la Comunidad Autónoma de Extremadura
(composición).
12
Modificada por el artículo 9 de la Ley 5/2019, de 23 de diciembre, de Medidas Fiscales y Administrativas
(Secretaría del Consejo) y por el artículo 4 de la Ley 12/2020, de 28 de diciembre, de Medidas Fiscales y
Administrativas (composición, Presidencia).
13
Modificada por la disposición adicional decimonovena de la Ley 13/1995, de 26 de diciembre, de
Presupuestos Generales de la Región de Murcia para 1996 (cambio de adscripción de la Consejería de
Fomento y Trabajo a la Consejería de Economía y Hacienda), por el artículo 8 de la Ley 3/2012, de 24 de
mayo, de medidas urgentes para el reequilibrio presupuestario (procedimiento para la emisión de dictáme-
nes), y por el artículo único de la Ley 4/2014, de 22 de septiembre, de modificación de la Ley 3/1993, de
16 de julio, del Consejo Económico y Social de la Región de Murcia (composición).
14
Modificada por el artículo 2 de la Ley Foral 20/2013, de 20 de junio, de modificación de la Ley Foral
2/2006, de 9 de marzo, del Consejo Económico y Social de Navarra (composición, representantes del sector
de la Economía Alternativa y Solidaria de la Comunidad Foral).
15
Modificada por el artículo 33 de la Ley 3/2018, de 26 de diciembre, de medidas fiscales y administrativas
(composición).

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• Cataluña (1997, Consejo de Trabajo, Económico y Social, CTES). Ley 3/1997, de
16 de mayo, de creación del Consejo de Trabajo, Económico y Social de Cataluña,
derogada y sustituida por la Ley 7/2005, de 8 de junio16.
• Andalucía (1997). Ley 5/1997, de 26 de noviembre17, del Consejo Económico y
Social de Andalucía.
• Islas Baleares (2000, suspendida su vigencia de 2013 a 2015). Ley 10/2000, de
30 de noviembre18, del Consejo Económico y Social de las Illes Balears (la Ley
16/2012, de 27 de diciembre, suspendió la vigencia de la Ley 10/2000 y la dis-
posición final séptima de la Ley 12/2015, de 29 de diciembre, de Presupuestos
Generales de la Comunidad Autónoma de las Illes Balears para el año 2016, habili-
tó la recuperación de su vigencia).

La introducción de los consejos económicos y sociales


en los estatutos de autonomía

Los CES se han ido introduciendo en los estatutos de autonomía como órganos o
instituciones de existencia necesaria en la estructura institucional de las Comunidades
Autónomas (ocho en la actualidad). Su primera incorporación resultó de modificaciones
aprobadas en estatutos de autonomía de la primera generación (Islas Baleares, Canarias y
Castilla y León). En la mayor parte de los casos, los CES se han contemplado, reforzando
su posición institucional, en los estatutos de autonomía de la segunda generación. De esta
última etapa proceden los artículos 132 y 160 de la Ley Orgánica 2/2007, de 19 de marzo,

683 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
de reforma del Estatuto de Autonomía para Andalucía, 102 de la Ley Orgánica 5/2007,
de 20 de abril, de reforma del Estatuto de Autonomía de Aragón, 78 de la Ley Orgánica
1/2007, de 28 de febrero, de reforma del Estatuto de Autonomía de las Illes Balears, 179
de la Ley Orgánica 1/2018, de 5 de noviembre, de reforma del Estatuto de Autonomía
de Canarias, 19 y 81 de la Ley Orgánica 14/2007, de 30 de noviembre, de reforma del
Estatuto de Autonomía de Castilla y León, 72.2 de la Ley Orgánica 6/2006, de 19 de julio,

16
Modificada por el artículo 69 de la Ley 5/2012, de 20 de marzo, de medidas fiscales, financieras y admi-
nistrativas y de creación del Impuesto sobre las Estancias en Establecimientos Turísticos (anteproyecto de
presupuestos del Consejo).
17
Modificada por el artículo 3 del Decreto-ley 1/2009, de 24 de febrero, por el que adoptan medidas urgentes
de carácter administrativo (plazo para la emisión urgente de informes), y por la disposición final primera
del Decreto-ley 4/2012, de 16 de octubre, de medidas extraordinarias y urgentes en materia de protección
sociolaboral a extrabajadores y extrabajadoras andaluces afectados por procesos de reestructuración de em-
presas y sectores en crisis (incompatibilidades de los miembros del Consejo).
18
Modificada por la Ley 5/2009, de 17 de junio, de modificación de la Ley 10/2000, de 30 de noviembre,
del Consejo Económico y Social (funciones, ámbito temático de los dictámenes preceptivos, composición,
nombramiento de la Presidencia y la Secretaría General).

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de reforma del Estatuto de Autonomía de Cataluña, 15 y 47 de la Ley Orgánica 1/2011,
de 28 de enero, de reforma del Estatuto de Autonomía de la Comunidad Autónoma
de Extremadura, y 20 y 42 de la Ley Orgánica 5/1982, de 1 de julio, de Estatuto de
Autonomía de la Comunidad Valenciana (en su redacción dada a estos por los artículos 24
y 47 de la Ley Orgánica 1/2006, de 10 de abril). Se pasa revista seguidamente a la evolu-
ción de la consideración estatutaria de los CES autonómicos:
• Andalucía (Ley Orgánica 2/2007). El artículo 132 del Estatuto de Autonomía (EA)
afirma que “El Consejo Económico y Social de Andalucía es el órgano colegiado de
carácter consultivo del Gobierno de la Comunidad Autónoma en materia económica
y social, cuya finalidad primordial es servir de cauce de participación y diálogo per-
manente en los asuntos socioeconómicos” (apartado 1). “Una ley del Parlamento re-
gulará su composición, competencia y funcionamiento” (apartado 2). El artículo 160
EA añade que “Corresponde al Consejo Económico y Social la función consultiva en
materia económica y social en los términos que desarrolla el artículo 132”.
• Aragón (Ley Orgánica 5/2007). El artículo 102 EA establece que “El Consejo
Económico y Social de Aragón es el órgano consultivo en que se materializa la
colaboración e intervención de todos los agentes sociales en la actividad económica
y social de la Comunidad Autónoma” (apartado 1). “Una ley de Cortes de Aragón
regulará su organización, composición y funciones” (apartado 2).
• Islas Baleares (Ley Orgánica 1/2007). El artículo 78 EA señala que “El Consejo
Económico y Social de las Illes Balears es el órgano colegiado de participación,
estudio, deliberación, asesoramiento y propuesta en materia económica y social”
684 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(apartado 1). “Una ley del Parlamento regulará su composición, la designación de


sus miembros, su organización y sus funciones” (apartado 2). El CES se introdujo
previamente en el artículo 42 EA anterior (Ley Orgánica 2/1983) por obra de la
reforma aprobada por la Ley Orgánica 3/1999, de 8 de enero (artículo 3).
• Canarias (Ley Orgánica 1/2018). El artículo 179 EA prevé que “El Gobierno de
Canarias elaborará, en el ámbito de sus competencias, los proyectos de planificación,
de acuerdo con las previsiones de la propia Comunidad Autónoma y de las adminis-
traciones territoriales y el asesoramiento y colaboración de los sindicatos y otras orga-
nizaciones profesionales y empresariales a través del Consejo Económico y Social de
Canarias, órgano de carácter consultivo en materia económica y social, cuya finalidad
primordial es la de servir de cauce de participación y diálogo en los asuntos socioeco-
nómicos. Su composición y funcionamiento se regulará por ley”. El CES se introdujo
previamente en el artículo 36 EA anterior (Ley Orgánica 10/1982) por obra de la
reforma aprobada por la Ley Orgánica 4/1996, de 30 de diciembre (artículo 1.27).
• Castilla y León (Ley Orgánica 14/2007). El artículo 19 EA ordena las instituciones
autonómicas de la forma siguiente: “1. Las instituciones básicas de la Comunidad

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de Castilla y León son: a) Las Cortes de Castilla y León. b) El Presidente de la Junta
de Castilla y León. c) La Junta de Castilla y León. 2. Son instituciones propias de
la Comunidad de Castilla y León el Consejo Económico y Social, el Procurador
del Común, el Consejo Consultivo, el Consejo de Cuentas, y las que determinen
el presente Estatuto o las leyes aprobadas por las Cortes de Castilla y León”. Y el
artículo 81 EA establece que “El Consejo Económico y Social es un órgano cole-
giado de carácter consultivo y asesor en materia socioeconómica de la Comunidad
Autónoma de Castilla y León” (apartado 1). “Una ley de la Comunidad regulará su
composición, organización y funcionamiento” (apartado 2). El CES se introdujo
previamente en el artículo 54 EA anterior (Ley Orgánica 4/1983) por obra de la
reforma aprobada por la Ley Orgánica 4/1999, de 8 de enero (artículo único.52).
• Cataluña (Ley Orgánica 6/2006). El artículo 72.2 EA establece que “El Consejo de
Trabajo, Económico y Social de Cataluña es el órgano consultivo y de asesoramien-
to del Gobierno en materias socioeconómicas, laborales y ocupacionales. Una ley
del Parlamento regula su composición y funciones”.
• Extremadura (Ley Orgánica 1/2011). El artículo 15 EA, “Instituciones de auto-
gobierno y otras instituciones estatutarias”, indica en sus dos primeros apartados
que “La Comunidad Autónoma ejercerá sus poderes a través de la Asamblea, del
Presidente y de la Junta de Extremadura” (apartado 1), así como que, “Además,
son instituciones estatutarias, dotadas de autonomía orgánica, funcional y presu-
puestaria, el Consejo Consultivo, el Consejo de Cuentas, el Consejo Económico y
Social y el Personero del Común” (apartado 2). Y el artículo 47 EA previene que

685 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
“Una ley de la Asamblea regulará la composición, las competencias, el régimen
jurídico, la organización y el funcionamiento del Consejo Económico y Social de
Extremadura, con sede en la ciudad de Mérida, como órgano colegiado consultivo
de la Junta en materias socioeconómicas”.
• Comunidad Valenciana (Ley Orgánica 5/1982, modificada ampliamente por la Ley
Orgánica 1/2006). El artículo 20 EA (su contenido procede del artículo 24 de la Ley
Orgánica 1/2006) enumera “El conjunto de las instituciones de autogobierno de la
Comunitat Valenciana constituye la Generalitat” (apartado 1): “Forman parte de la
Generalitat les Corts Valencianes o les Corts, el President y el Consell” (apartado 2).
“Son también instituciones de la Generalitat la Sindicatura de Comptes, el Síndic
de Greuges, el Consell Valenciá de Cultura, l’Acadèmia Valenciana de la Llengua,
el Consell Jurídic Consultiu y el Comité Econòmic i Social” (apartado 3). Y el
artículo 42 (redactado conforme al artículo 47 de la Ley Orgánica 1/2006) señala
que “El Comité Econòmic i Social es el órgano consultivo del Consell y, en general,
de las instituciones públicas de la Comunitat Valenciana, en materias económicas,
sociolaborales y de empleo. En cuanto al procedimiento del nombramiento de sus

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miembros, funciones, facultades, estatuto y duración del mandato, habrá que ajus-
tarse a lo que disponga la Ley de Les Corts que lo regule”.
Los CES autonómicos que continúan con fundamento solamente legal se definen en
los términos siguientes:
a. Cantabria. “El Consejo es un órgano colegiado de participación y consulta en
materia socioeconómica y laboral, en el ámbito de la Comunidad Autónoma de
Cantabria” (artículo 1.2 de la Ley 8/2018, de 11 de diciembre).
b. Galicia. “La finalidad del Consejo es hacer efectiva la participación de los agentes
económicos y sociales en la política socioeconómica de Galicia” (artículo 2 de la Ley
6/1995, de 28 de junio).
c. Región de Murcia. “1. El Consejo Económico y Social es un órgano colegiado de
carácter consultivo del Consejo de Gobierno de la Región de Murcia, en materia
socioeconómica y laboral. 2. El Consejo se constituye como cauce de participación
de los agentes sociales y económicos en la planificación y realización de la política
económica regional” (artículo 2 de la Ley 3/1993, de 16 de julio).
d. Comunidad Foral de Navarra. “El Consejo Económico y Social de Navarra es un
órgano consultivo de la Administración de la Comunidad Foral en materia socioe-
conómica y laboral” (artículo 1.1 de la Ley Foral 2/2006, de 9 de marzo).
e. La Rioja. “La finalidad del Consejo Económico y Social de La Rioja es hacer efec-
tiva la participación socioeconómica de los agentes sociales en el ámbito de la
Comunidad Autónoma de La Rioja” (artículo 1.1 de la Ley 6/1997, de 18 de julio).
f. País Vasco. “El Consejo constituye el ente consultivo del Gobierno Vasco y del
686 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Parlamento Vasco, a fin de hacer efectiva la participación de los distintos intereses


económicos y sociales en la política económica y social del País Vasco” (artículo 2.1
de la Ley 8/2012, de 17 de mayo).
Los CES autonómicos suprimidos se definían así en el momento de su supresión:
a. Principado de Asturias. “El Consejo Económico y Social es un ente público del
Principado de Asturias de carácter consultivo para la Comunidad Autónoma en ma-
teria socioeconómica y laboral, que se configura como órgano de participación, estu-
dio, deliberación, asesoramiento y propuesta, pudiendo pronunciarse, además, sobre
cuantos asuntos le planteen tanto el Consejo de Gobierno como la Junta General del
Principado en los términos que ésta prevea en su Reglamento” (artículo 2.1 de la Ley
2/2001, de 27 de marzo). La definición ofrecida en la Ley 10/1988, de 31 de diciem-
bre, de creación del Consejo Económico y Social del Principado de Asturias, añadía
que “El Consejo se configura como un órgano de participación, estudio, deliberación,
asesoramiento y propuesta, pudiendo pronunciarse, además, sobre cuantos asuntos le
planteen tanto el Gobierno regional como la Junta General del Principado, de quienes
será totalmente autónomo en su funcionamiento” (artículo 2.2).

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b. Castilla-La Mancha. “Se crea el Consejo Económico y Social de Castilla-La Mancha,
como órgano consultivo y asesor de la Comunidad Autónoma, cuyo fin es hacer
efectiva la participación de los sectores interesados en la política económica y social
de Castilla-La Mancha” (artículo 1 de la Ley 2/1994, de 26 de julio).
c. Madrid. “El Consejo Económico y Social es un órgano de participación tripartito y
carácter consultivo en materias económica y social de la Comunidad de Madrid en el
ámbito de su competencia, del que formarán parte tanto interlocutores sociales como
expertos designados por el Gobierno” (artículo 2 de la Ley 6/1991, de 4 de abril).
Con la finalidad de comparar estas definiciones estatutarias y legales, se reproduce a
continuación la ofrecida para el CES de España en el artículo 1.2 de la Ley 21/1991, de
17 de junio, por la que se crea el Consejo Económico y Social19: “El Consejo es un órgano
consultivo del Gobierno en materia socioeconómica y laboral”.

Estructura, composición y funciones

Las composiciones de los CES autonómicos responden, con carácter general, a los
mismos criterios, aunque existen matices que datan del momento de la creación o se han
incluido en modificaciones. El actual número de miembros de los CES es el siguiente:
País Vasco (32, de los que ocho son expertos que no tienen voto; pueden ser 33 si la
persona titular de la Presidencia no es miembro previamente)20, La Rioja (19)21, Canarias
(18)22, Aragón (27)23, Castilla y León (36)24, Comunidad Valenciana (18)25, Extremadura

687 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
19
La Ley 21/1991, de 17 de junio, por la que se crea el Consejo Económico y Social, se mantiene prácticamente
inalterada desde su aprobación. Tan solo se ha modificado una vez, muy pronto, para corregir un olvido ini-
cial: la definición de su “Régimen presupuestario de control y contabilidad” (artículo 10, introducido por el
artículo 109 de la Ley 31/1991, de 30 de diciembre, de Presupuestos Generales del Estado para 1992).
20
Artículo 4 de la Ley 8/2012, de 17 de mayo, del Consejo Económico y Social Vasco/Euskadiko Ekonomia
eta Gizarte Arazoetarako Batzordea (CES-EGAB).
21
Artículo 5 de la Ley 6/1997, de 18 de julio, reguladora del Consejo Económico y Social de La Rioja, modi-
ficado por la Ley 4/2022, de 29 de marzo, por la que se alza la suspensión del funcionamiento del Consejo
Económico y Social de La Rioja. En el momento de cierre de este texto todavía no han sido nombrados.
22
Artículo 6 de la Ley 1/1992, de 27 de abril, del Consejo Económico y Social de Canarias, modificada por
la Ley 7/2019, de 9 de abril, de modificación de la Ley 1/2010, de 26 de febrero, Canaria de Igualdad entre
Mujeres y Hombres, y de modificación de las leyes reguladoras de los órganos de relevancia estatutaria para
garantizar la representación equilibrada entre mujeres y hombres en su composición, y la Ley 10/2019, de
25 de abril, de Cámaras Oficiales de Comercio, Industria, Servicios y Navegación de Canarias.
23
Artículo 5 de la Ley 9/1990, de 9 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Aragón.
24
Artículo 4 de la Ley 13/1990, de 28 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Castilla y León,
modificado por la Ley 4/2013, de 19 de junio, por la que se modifica la organización y el funcionamiento
de las instituciones propias de la Comunidad de Castilla y León.
25
Artículo 7 de la Ley 1/2014, de 28 de febrero, de la Generalitat, del Comité Econòmic i Social de la Comunitat
Valenciana, modificado por la Ley 12/2017, de 2 de noviembre, de modificación de las leyes reguladoras de las
instituciones de la Generalitat para garantizar la igualdad entre mujeres y hombres en sus órganos.

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(25)26, Cantabria (28 o 29, incluido en ambos casos la persona titular de la Presidencia;
dependerá de que haya uno o más sindicatos “que no reúnan los requisitos establecidos
en la legislación estatal en materia de libertad sindical, referido a la condición de repre-
sentatividad, y que hayan superado el 5 % de delegados de personal y miembros del co-
mité de empresa y de los correspondientes órganos de las Administraciones públicas en
la Comunidad Autónoma de Cantabria”)27, Región de Murcia (24)28, Comunidad Foral
de Navarra (30)29, Galicia (37)30, Cataluña (37)31, Andalucía (37)32 e Islas Baleares (37)33.
Por su naturaleza, los miembros se integran en grupos, con o sin tal denominación,
que se corresponden con los intereses que son propios a las distintas organizaciones34.
Dos de los grupos coinciden en todos los CES autonómicos: el sindical y el empresarial,
conformados por las organizaciones sindicales y empresariales más representativas. El
tercero se caracteriza por ser un grupo misceláneo, que suele disponer de un número

26
Artículo 3 de la Ley 3/1991, de 25 de abril, de creación del Consejo Económico y Social de Extremadura,
modificado por la Ley 7/1996, de 24 de octubre, de modificación del artículo 3.1 de la Ley 3/1991 de 25
de abril, de creación del Consejo Económico y Social de Extremadura, la Ley 10/1998, de 26 de junio, de
modificación del artículo 3.1 de la Ley 3/1991, de 25 de abril, en la redacción dada por la Ley 7/1996, de 24
de octubre, de creación del Consejo Económico y Social de Extremadura, y la Ley 3/2018, de 21 de febrero,
de Cámaras Oficiales de Comercio, Industria y Servicios de la Comunidad Autónoma de Extremadura.
27
Artículo 2 de la Ley 8/2018, de 11 de diciembre, del Consejo Económico y Social de Cantabria (CESCAN),
modificado por la Ley 12/2020, de 28 de diciembre, de Medidas Fiscales y Administrativas. Mediante el Decreto
5/2022, de 3 de febrero, se procedió al nombramiento de los miembros del Consejo Económico y Social de
Cantabria. En él se indica que CCOO y UGT “renuncian a designar representantes del grupo segundo y han
688 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

declinado ratificar los designados en el año 2019” (apartado primero.4), por estar en desacuerdo con la regulación
de la composición. Posteriormente renunciaron a su nombramiento los representantes de CEOE-CEPYME de
Cantabria. Se constituyó el nuevo CESCAN, solo con el grupo tercero, el día 8 de marzo de 2022.
28
Artículo 3 de la Ley 3/1993, de 16 de julio, del Consejo Económico y Social de la Región de Murcia.
29
Artículo 2 de la Ley Foral 2/2006, de 9 de marzo, del Consejo Económico y Social de Navarra, modifica-
do por la Ley Foral 20/2013, de 20 de junio, de modificación de la Ley Foral 2/2006, de 9 de marzo, del
Consejo Económico y Social de Navarra.
30
Artículo 7 de la Ley 6/1995, de 28 de junio, por la que se crea el Consejo Económico y Social de Galicia,
modificado por la Ley 3/2018, de 26 de diciembre, de medidas fiscales y administrativas.
31
Artículo 3 de la Ley 7/2005, de 8 de junio, del Consejo de Trabajo, Económico y Social de Cataluña.
32
Artículo 8 de la Ley 5/1997, de 26 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Andalucía.
33
Artículo 4 de la Ley 10/2000, de 30 de noviembre, del Consejo Económico y Social de las Illes Balears,
modificado por la Ley 5/2009, de 17 de junio, de modificación de la Ley 10/2000, de 30 de noviembre, del
Consejo Económico y Social.
34
El CES de la Comunidad Foral de Navarra se estructura en cinco grupos. Junto a los tres grupos existentes
en los demás CES autonómicos, se han sumado otros dos: “el Grupo Primero que integrará a los represen-
tantes de la Administración de la Comunidad Foral, de entre los cuales, al menos uno, corresponderá al
ámbito de la Administración Local de Navarra”, y el Grupo Quinto, que “contará con dos miembros del
sector de la Economía Alternativa y Solidaria de la Comunidad Foral”. El CES de Cantabria dispone de
cuatro grupos. Además de los tres habituales, cuenta con otro, considera el Primero, que estará formado
por seis “personas de reconocido prestigio en materia socioeconómica y laboral, de los que al menos uno
representará a la Universidad de Cantabria y otro a la Federación de Municipios de Cantabria”.

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variable de representantes de organizaciones (de los sectores agrario35 y pesquero36, de
los consumidores y usuarios37, de la economía social38, de protección medioambiental39,
del tercer sector de acción social40, de las personas con discapacidad41, de trabajado-
res autónomos42, sindicales que no tienen la consideración de más representativos43,
de la economía alternativa y solidaria44 y vecinales45), así como de personas expertas46

35
CES de las Islas Baleares, CES de Cantabria, CES de Castilla y León, CTES de Cataluña, CES de
Extremadura, CES de Galicia, CES de La Rioja, CES de la Región de Murcia, CES de Navarra, CES-EGAB
del País Vasco y CES de la Comunidad Valenciana (“Una persona en representación del sector primario de
la economía valenciana”).
36
CES de las Islas Baleares, CTES de Cataluña, CES de Galicia, CES-EGAB del País Vasco y CES de la
Comunidad Valenciana (“Una persona en representación del sector primario de la economía valenciana”).
37
CES de Andalucía, CES de las Islas Baleares, CES de Canarias, CES de Castilla y León, CES de Extremadura,
CES de Galicia, CES de la Región de Murcia, CES de Navarra, CES-EGAB del País Vasco y CES de la
Comunidad Valenciana (“Una persona en representación de las organizaciones de consumidores, usuarios y
vecinos, o consumidoras, usuarias y vecinas”).
38
CES de Andalucía, CES de las Islas Baleares, CES de Castilla y León (cooperativas y sociedades laborales),
CTES de Cataluña, CES de Extremadura, CES de Galicia, CES de la Región de Murcia, CES de Navarra,
CES-EGAB del País Vasco (cooperativas y sociedades laborales con representación diferenciada) y CES de
la Comunidad Valenciana.
39
CES de las Islas Baleares y CES de Navarra.
40
CES de Extremadura y CES-EGAB del País Vasco.
41
CES de la Región de Murcia.
42
CES de Cantabria.

689 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
43
En el CES de Cantabria se ha introducido en el grupo misceláneo, con una notable controversia, a “Las orga-
nizaciones sindicales que, no teniendo la consideración legal de más representativas, reúnan los requisitos con-
templados en el artículo 2.4.d) de esta Ley” (artículo 2.1.d de la Ley 8/2018, de 11 de diciembre, del Consejo
Económico y Social de Cantabria). El artículo 2.4.d), redactado por la Ley 12/2020, de 28 de diciembre, de
Medidas Fiscales y Administrativas, establece lo siguiente: “Dos personas representantes de las organizaciones
sindicales a que se refiere el artículo 2.1.d) 4.º de esta Ley, que no reúnan los requisitos establecidos en la
legislación estatal en materia de libertad sindical, referido a la condición de representatividad y que hayan su-
perado el 5 % de delegados de personal y miembros del comité de empresa y de los correspondientes órganos
de las Administraciones públicas en la Comunidad Autónoma de Cantabria. Se asignará un representante a
cada una de las organizaciones sindicales que cumplan estos requisitos, dentro del límite máximo asignado en
este apartado d). En el caso de que estas organizaciones sindicales fueran menos de dos, se reducirá el número
total de miembros del Consejo Económico y Social de Cantabria en la misma proporción. Si fueran más de
dos, la asignación del número máximo de representantes seguirá el orden de mayor representatividad en el
conjunto de delegados de personal y miembros del comité de empresa y de los correspondientes órganos de las
Administraciones Públicas, en caso de empate se resolverá por sorteo”.
44
CES de Navarra.
45
CES de la Comunidad Valenciana (“Una persona en representación de las organizaciones de consumidores,
usuarios y vecinos, o consumidoras, usuarias y vecinas”).
46
CES de Andalucía (designados por el Consejo de Gobierno), CES de Canarias (Gobierno), CES de Cantabria
(Gobierno, Universidad de Cantabria y Federación de Municipios), CES de Castilla y León (Gobierno y
Cortes), CTES de Cataluña (Gobierno), CES de Extremadura (Gobierno), CES de la Región de Murcia
(Gobierno, uno de ellos entre profesores de la Universidad de Murcia) y CES-EGAB del País Vasco (Gobierno,
tres de ellos entre profesores de la Universidad del País Vasco; los expertos tienen voz, pero no voto).

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y representantes del gobierno47, de la administración autonómica48 y de otras institu-
ciones y entidades (ayuntamientos y diputaciones provinciales49 o federaciones auto-
nómicas de municipios y provincias50, universidades51, cámaras de comercio, industria
y navegación52, colegios profesionales53, consejos de la juventud54 y cajas o entidades
financieras55).
El CES de Castilla y León dispone, además, de un Grupo de Enlace con la sociedad
civil organizada, “integrado por representantes de asociaciones e instituciones con acti-
vidad económica y social en la Comunidad de Castilla y León. Las organizaciones que
formen parte de este Grupo de Enlace han de tener ámbito autonómico y no pertenecer
a ninguno de los grupos a que se refiere el artículo 4 de esta ley. Entre otras, al menos,
han de estar representadas organizaciones de los siguientes sectores sociales: infancia, fa-
milia, juventud, mujer, personas mayores, personas con discapacidad, salud, protección
social, minorías, inmigrantes, colectivos en riesgo de exclusión social, educación y de-
sarrollo rural”. La persona titular de la Presidencia del CES de Castilla y León preside el
Grupo de Enlace. También son miembros las personas titulares de las Vicepresidencias.
Constituye su objeto “canalizar las demandas y propuestas de carácter socioeconómico
procedentes de las organizaciones que formen parte del mismo. Igualmente desarrolla-
rá funciones de asesoramiento, colaboración y apoyo en aquellas cuestiones que sean
requeridas por el Consejo” (artículo 4 bis de la Ley 13/1990, de 28 de noviembre, del
Consejo Económico y Social de Castilla y León, añadido por la Ley 4/2013, de 19 de
junio, por la que se modifica la organización y el funcionamiento de las instituciones
propias de la Comunidad de Castilla y León).
690 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

Los CES autonómicos se adscriben, sin perjuicio de su independencia, a los gobiernos


autonómicos, excepto el de Castilla y León, que lo está a las Cortes de Castilla y León desde

47
CES de Aragón (Diputación General de Aragón), CES de las Islas Baleares (Consejos Insulares y Gobierno),
CES de Cantabria (Gobierno), CES de La Rioja (Gobierno), CES de Navarra (Gobierno) y CES de la
Comunidad Valenciana (Gobierno).
48
CES de Navarra.
49
CES de Andalucía y CES de la Comunidad Valenciana.
50
CES de las Islas Baleares, CES de Cantabria, CES de la Región de Murcia y CES de Navarra.
51
CES de Andalucía, CES de las Islas Baleares, CES de Cantabria, CES de Extremadura, CES de Galicia,
CES de Navarra y CES de La Rioja.
52
CES de Canarias, CES de la Región de Murcia, CES-EGAB del País Vasco y CES de la Comunidad
Valenciana.
53
CES de Cantabria.
54
CES de Extremadura.
55
CES-EGAB del País Vasco.

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201356. En consecuencia, la persona titular de la Presidencia es nombrada por el Gobierno
autonómico, salvo en Castilla y León, por lo expuesto, que es elegida por mayoría absoluta
del Pleno de las Cortes y nombrada por su Presidencia. En cualquier caso, las leyes regu-
ladoras de los CES contemplan la propuesta del Pleno de la propia institución, normal-
mente57 con una mayoría cualificada (absoluta58 o dos tercios59) o, al menos, la emisión de
su parecer sobre la candidatura60. En algunos CES la persona titular de la Presidencia ha
de ser previamente miembro del Pleno (Aragón, Canarias, Castilla y León, Extremadura,
Región de Murcia, Navarra y Comunidad Valenciana), mientras que en otros se incorpora
después de su nombramiento (Andalucía, Islas Baleares, Cantabria, Cataluña, Galicia y La
Rioja). En el CES-EGAB del País Vasco puede darse cualquiera de las dos posibilidades
(“El Consejo tendrá un presidente o una presidenta. Si no fuera una de las personas a que
se refiere el párrafo anterior, el número de miembros del Consejo se elevará a treinta y tres

56
Afirma la exposición de motivos de la Ley 4/2013, de 19 de junio, por la que se modifica la organización y el
funcionamiento de las instituciones propias de la Comunidad de Castilla y León, que “se procede a la adscrip-
ción presupuestaria del Consejo Económico y Social y del Consejo Consultivo a las Cortes de Castilla y León,
siguiendo el modelo de lo que ya ocurre con el Procurador del Común y el Consejo de Cuentas, modelo que
como ya se ha demostrado en ningún caso afecta a la independencia que debe presidir el funcionamiento de
estas instituciones. Siguiendo esta referencia, la presente Ley atribuye a las Cortes, entre otras, funciones en
relación con los nombramientos y aprobación de sus Reglamentos de Organización y Funcionamiento, que
hasta ahora estaban atribuidas a la Junta de Castilla y León, con lo que la reforma refuerza aún más la inde-
pendencia de estas dos instituciones propias”. Recuérdese que el presidente del Consejo Económico y Social de
Portugal es “eleito pela Assembleia da República nos termos da alínea h) do artigo 166.°2 da Constituição”.
57
El CES de la Comunidad Valenciana utiliza una fórmula diferente: “(…), previa consulta al Comité, cuyo

691 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
parecer se entenderá favorable salvo que voten en contra tres cuartas partes de sus miembros” (artículo
9.1 de la Ley 1/2014, de 28 de febrero, de la Generalitat, del Comité Econòmic i Social de la Comunitat
Valenciana). Para el CES-EGAB del País Vasco se contempla la posibilidad de dos vueltas, combinando
dos modelos: “Para su elección, el candidato o la candidata deberá ser votado o votada, al menos, por las
dos terceras partes de las personas que integran el Consejo, debiendo tener algún voto de cada uno de esos
grupos. Caso de no reunir en primera votación dicha mayoría, el presidente o la presidenta será designado
o designada por el lehendakari o la lehendakari, previa audiencia de las personas miembros del Consejo. En
ambos casos, tal designación se podrá realizar entre las personas de los grupos del artículo 4.1 de esta ley o
entre personas que no provengan de aquéllos. También en ambos casos, el nombramiento se realizará por
el lehendakari o la lehendakari” (artículo 6.1 de la Ley 8/2012, de 17 de mayo, del Consejo Económico y
Social Vasco/Euskadiko Ekonomia eta Gizarte Arazoetarako Batzordea).
58
CES de Aragón, CES de Canarias y CES de Navarra.
59
CES de las Islas Baleares, CTES de Cataluña, CES de Castilla y León, CES de Extremadura, CES de la
Región de Murcia y CES de La Rioja.
60
CES de Andalucía y CES de Galicia. En el CES de Cantabria se prevé la “consulta al Pleno del Consejo”
(artículo 12 de la Ley 8/2018, de 11 de diciembre, del Consejo Económico y Social de Cantabria, proceden-
te de la Ley 12/2020, de 28 de diciembre, de Medidas Fiscales y Administrativas; en la primera versión de
este artículo se decía lo siguiente: “1. La designación de quien ostente la Presidencia del Consejo se efectuará
en el propio nombramiento previa consulta al Pleno. (…) 2. Podrá ser destituida por Decreto del Consejo
de Gobierno, salvo acuerdo en contra adoptado por mayoría absoluta del Pleno del Consejo, (…). También
podrá ser destituida por Decreto de Consejo de Gobierno, a propuesta del Pleno del Consejo previo acuerdo
por mayoría de dos tercios de sus miembros”).

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personas”, artículo 4.2 de la Ley 8/2012, de 17 de mayo, del Consejo Económico y Social
Vasco/Euskadiko Ekonomia eta Gizarte Arazoetarako Batzordea).
Las Vicepresidencias suelen ser desempeñadas, previa elección o mediante aplicación
directa del reglamento de funcionamiento y organización, por representantes de los grupos
sindical y empresarial. Se prevé la existencia de una Secretaría General, definida habitual-
mente como órgano de asistencia técnica, dirección administrativa y apoyo al ejercicio de
las funciones por la Presidencia)61. Con la reforma del CES de Castilla y León aprobada
en 2013, antes citada, se procedió a la supresión de la Secretaría General y a la creación de
la Secretaría General de Apoyo a las Instituciones Propias de la Comunidad de Castilla y
León, “para prestar asistencia a las cuatro instituciones62, bajo la dependencia directa de la
Presidencia de las Cortes de Castilla y León”. Su titular se nombra por la Presidencia de las
Cortes de Castilla y León entre funcionarios de cualquier Administración, entidad, insti-
tución u organismo público comprendidos en el grupo A y que tengan como mínimo diez
años de antigüedad en dicho grupo. Esta Secretaría General desarrolla las funciones de
“gestión material necesarias para el funcionamiento ordinario de las cuatro instituciones,
en aquellos ámbitos que no estén directamente relacionados con las funciones específicas
de cada institución”. Se relacionan las gestiones siguientes: personal, régimen interior,
contratación, gestión económica y presupuestaria, asesoramiento jurídico y representación
y defensa en juicio, intervención, fiscalización y contabilización, así como cualquier otra
que se le encomiende para el funcionamiento ordinario de las instituciones (artículo 6 de
la Ley 4/2013, de 19 de junio).
692 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

61
Artículos 16 de la Ley 5/1997, de 26 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Andalucía, 10 de
la Ley 9/1990, de 9 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Aragón, 2 de la Ley 10/2000, de 30
de noviembre, del Consejo Económico y Social de las Illes Balears, 14 de la Ley 1/1992, de 27 de abril, del
Consejo Económico y Social de Canarias, 16 de la Ley 8/2018, de 11 de diciembre, del Consejo Económico
y Social de Cantabria, 12 de la Ley 7/2005, de 8 de junio, del Consejo de Trabajo, Económico y Social de
Cataluña (se denomina Secretaría Ejecutiva), 11 de la Ley 3/1991, de 25 de abril, de creación del Consejo
Económico y Social de Extremadura, 17 de la Ley 6/1995, de 28 de junio, por la que se crea el Consejo
Económico y Social de Galicia, 14 de la Ley 6/1997, de 18 de julio, reguladora del Consejo Económico y
Social de La Rioja (se denomina Secretaría), 14 de la Ley 3/1993, de 16 de julio, del Consejo Económico
y Social de la Región de Murcia, 14 de la Ley Foral 2/2006, de 9 de marzo, del Consejo Económico y
Social de Navarra, 20 de la Ley 1/2014, de 28 de febrero, de la Generalitat, del Comité Econòmic i Social
de la Comunitat Valenciana (se denomina Secretaría), y 17 de la Ley 8/2012, de 17 de mayo, del Consejo
Económico y Social Vasco/Euskadiko Ekonomia eta Gizarte Arazoetarako Batzordea.
62
Consejo Económico y Social, Procurador del Común, Consejo Consultivo y Consejo de Cuentas.

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Coinciden básicamente las competencias que atribuyen a los CES autonómicos sus
leyes reguladoras63. Destaca su función consultiva del gobierno y la administración, así
como su capacidad de formular propuestas y recomendaciones, lo que conduce a la ela-
boración de dictámenes y estudios. Debe citarse, asimismo, la emisión preceptiva de in-
formes previos, a solicitud del gobierno, sobre proyectos de decreto y anteproyectos de ley
de contenido económico y social. La preparación de una memoria o informe anual sobre
la situación económica y social de la Comunidad Autónoma, con una notable fundamen-
tación técnica y la participación que se halla en la naturaleza de estas instituciones, se ha
convertido en una aportación muy relevante de los CES, pues el tratamiento de los datos
estadísticos, unido a la presentación de un diagnóstico acompañado de recomendaciones,
devienen especialmente útiles para el conocimiento de la realidad y la justificación de
planes, medidas y propuestas normativas, a la vez que contribuyen a enriquecer el debate
político, económico y social.

Conclusión

Estos más de treinta años de existencia en España de los CES autonómicos demues-
tran que su creación, consolidación y actualización han sido un acierto en la construcción
y el desarrollo del sistema institucional del Estado social y democrático de Derecho. No
se discute la relevancia de su existencia, pero sí se cuestionan las seis supresiones que se
aprobaron con la excusa de la crisis económico-financiera desatada en 2008. De aquellos
se han recuperado ya los CES de las Islas Baleares, Cantabria y La Rioja. Se han convertido

693 // Novas fronteiras, outros diálogos: as Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
en instituciones imprescindibles, percibidas con gran fuerza en aquellas coyunturas que
requieren mayores esfuerzos colectivos, como la actual. Recuérdese que los CES emergie-
ron en la Europa occidental, y no fue casual, para la mejor y más rápida reconstrucción
después de la Segunda Guerra Mundial.

63
Artículos 4 de la Ley 5/1997, de 26 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Andalucía, 11 de la
Ley 9/1990, de 9 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Aragón, 12 de la Ley 10/2000, de 30
de noviembre, del Consejo Económico y Social de las Illes Balears, 4 de la Ley 1/1992, de 27 de abril, del
Consejo Económico y Social de Canarias, 10 de la Ley 8/2018, de 11 de diciembre, del Consejo Económico
y Social de Cantabria, 3 de la Ley 13/1990, de 28 de noviembre, del Consejo Económico y Social de Castilla
y León, 2 de la Ley 7/2005, de 8 de junio, del Consejo de Trabajo, Económico y Social de Cataluña, 5 de
la Ley 3/1991, de 25 de abril, de creación del Consejo Económico y Social de Extremadura, 5 de la Ley
6/1995, de 28 de junio, por la que se crea el Consejo Económico y Social de Galicia, 3 de la Ley 6/1997,
de 18 de julio, reguladora del Consejo Económico y Social de La Rioja, 5 a 7 de la Ley 3/1993, de 16 de
julio, del Consejo Económico y Social de la Región de Murcia, 7 de la Ley Foral 2/2006, de 9 de marzo,
del Consejo Económico y Social de Navarra, 4 de la Ley 1/2014, de 28 de febrero, de la Generalitat, del
Comité Econòmic i Social de la Comunitat Valenciana, y 3 de la Ley 8/2012, de 17 de mayo, del Consejo
Económico y Social Vasco/Euskadiko Ekonomia eta Gizarte Arazoetarako Batzordea.

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45

Rui Jacinto (coordenação)


Colecção

45
1. Iberismo e Cooperação – Passado e Futuro da Península Ibérica
2. O Direito e a Cooperação Ibérica
3. O Outro Lado da Lua – Inéditos de Eduardo Lourenço
4. Entre Margens e Fronteiras – Para uma Geografia das Ausências e Centro de Estudos Ibéricos
das Identidades Raianas
5. Territórios e Culturas Ibéricas
6. Saúde sem Fronteiras O Centro de Estudos Ibéricos é uma asso-
7. O Direito e a Cooperação Ibérica II
ciação transfronteiriça sem fins lucrativos,
8. O Interior Raiano do Centro de Portugal – Outras Fronteiras, Novos
Intercâmbios constituído pela Câmara Municipal da
9. Um Cruzamento de Fronteiras – O Discurso dos Concelhos da Guarda
em Cortes Guarda, Universidade de Coimbra, Universi-
10. Territórios e Culturas lbéricas II dade de Salamanca e Instituto Politécnico
11. União Europeia, Fronteira e Território
12. Existência e Filosofia – O Ensaísmo de Eduardo Lourenço da Guarda.
13. Abandono do Espaço Agrícola na “Beira Transmontana”

NOVAS FRONTEIRAS,
14. Educação – Reconfiguração e Limites das Suas Fronteiras
15. Escola – Problemas e Desafios A ideia partiu do ensaísta Eduardo Lourenço
16. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa – Paisagens, na sessão solene comemorativa do Oitavo
Territórios, Políticas no Brasil e em Portugal
17. Interioridade / Insularidade – Despovoamento / Desertificação Centenário do Foral da Guarda, em 1999,

OUTROS DIÁLOGOS
18. Efeito Barreira e Cooperação Transfronteiriça na Raia Ibérica
tendo em vista a criação de um Centro de
19. Patrimónios, Territórios e Turismo Cultural
20. A Cidade e os Novos Desafios Urbanos Estudos que contribuísse para um renovado
21. Vida Partilhada – Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação Cultural
conhecimento das diversas culturas da
22. Falar Sempre de Outra Coisa – Ensaios Sobre Eduardo Lourenço
23. Metafísica da Revolução – Poética e Política no Ensaísmo de Península e para o estudo da Civilização
Eduardo Lourenço AS NOVAS GEOGRAFIAS Ibérica como um todo.
24. Paisagens, Patrimónios e Turismo Cultural
25. Condições de Vida, Coesão Social e Cooperação Territorial DOS PAÍSES DE LÍNGUA
26. Paisagens e Dinâmicas Territoriais em Portugal e no Brasil – As
Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
PORTUGUESA Criado formalmente em Maio de 2001, o
27. Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança – Das Vulnerabilidades
às Dinâmicas de Desenvolvimento
CEI tem vindo a afirmar-se como pólo privi-
28. Paisagens, Patrimónios, Turismos legiado de encontro, reflexão, estudo e
29. Educação e Cultura Mediática – Análise de Implicações Deseducativas
30. Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança – Paisagens e
divulgação de temas comuns e afins a
Patrimónios, Permanências e Mobilidades Portugal e Espanha, com especial incidência
31. Diálogos (Trans)fronteiriços – Patrimónios, Territórios, Culturas RUI JACINTO
32. Outras Fronteiras, Novas Geografias - Intercâmbios e Diálogos (coordenação) na região transfronteiriça.
Territoriais
33. Lugares e Territórios – Património, Turismo Sustentável, Coesão Territorial
34. Andanças e Reflexões Transfronteiriças – Roteiro Miguel de Unamuno
– Eduardo Lourenço
35. Novas Fronteiras, Outros Diálogos – Paisagens, Patrimónios, Cultura
36. Novas Fronteiras, Outros diálogos: Cooperação e Desenvolvimento
Territorial
37. Pontes entre Agricultura Familiar e Agricultura Biológica
38. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa: Cooperação
e Desenvolvimento
39. Geografias e Poéticas da Fronteira - Leituras do Território
40. Dinâmicas Socioeconómicas - Em Diferentes contextos territoriais
41. Geografia sem Fronteiras - Diálogos entre Portugal e o Brasil
42. Paisagens e Desevolvimento Rural
43. Sociedade e memória os territórios
44. Vida Partilhada – Todos Nos Ibéricos – Eduardo Lourenço

Capa_Iberografias45_16jun2023_lombada335mm.indd Todas as páginas 21/06/2023 11:59:20

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