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1) Qual seria a tripla falácia

acarretada pelo
reconhecimento da existência
de uma pluralidade de ordens
jurídicas sem a necessária
fundamentação teórica?
Segundo Boaventura de Souza Santos, há que se reconhecer, na
sociedade, há uma pluralidade de ordens jurídicas, de formas de
poder e de formas de conhecimento, ao contrário do paradigma
positivista moderno do direito e do poder, centrado no Estado,
bem como do paradigma positivista moderno do conhecimento,
centrado na ciência.
No entanto, reconhecer apenas a existência de uma pluralidade de
ordens jurídicas, sem a fundamentar teoricamente, acarreta uma
tripla falácia, a saber:
1) A falácia do descritivismo (tanto quanto se pode admitir, a lista
das pluralidades está completa, mas podia ser indefinidamente
aumentada sem qualquer perda de coerência);
2) A falácia da trivialidade (quanto mais completa for a lista, maior
será a probabilidade de falhar enquanto descrição da realidade: se
o direito, o poder e o conhecimento estão em toda a parte, não
estão em parte alguma); e
3) A falácia da serialidade (a lista é prático-inerte, não sendo a
relação entre os seus elementos – independentemente do número
– mais complexa do que a relação entre as pessoas que se
encontram numa fila).
2) O que é o poder disciplinar segundo Foucault?
 
É a forma mais importante de poder que circula na sociedade.
Produzida pela própria sociedade e não pelo Estado, segundo
regras, princípios e mecanismos totalmente autônomos do Estado.
Foucault considera que o poder disciplinar existe em total contraste
com o poder jurídico do Estado: o poder disciplinar não é um poder
de soma zero, não é exercido do topo para a base nem do centro
para a periferia. É uma forma de poder sem centro, exercida
horizontalmente através dos seus próprios sujeitos.
3) Quais são as críticas que Boaventura de Souza Santos a
Foucault quanto ao conceito de poder disciplinar exposto por
Foucault?
 
A primeira de que o poder disciplinar nunca é exercido numa forma
pura e exclusiva mas, ao contrário, como uma constelação de
diferentes formas de poder combinadas de maneiras mais
específicas.
Em segundo lugar, Foucault entende que conceder poder às
pessoas é sempre uma forma de intensificar a sua participação nos
mecanismos de subjetividade/sujeição que as subjugam. Assim,
para Foucault, dar poder significa, em última análise desarmar, o
que Boaventura entende errado, eis que toda a luta pela
emancipação é mais que uma afirmação de vontade de regulação.
Por fim, a terceira crítica onde argumenta que o poder jurídico
estatal, longe de ser monolítico, como acredita Foucault é
altamente heterogêneo e internamente diferenciado, sendo a sua
plasticidade o sintoma e a medida da sua articulação com outras
formas de poder que se disseminam na prática social e que a
constituem.
4) O que é poder para Boaventura de Souza Santos?
 
Para Boaventura de Souza Santos, a um nível muito geral, o poder
é qualquer relação social regulada por uma troca desigual. É uma
relação social porque a sua persistência reside na capacidade que
ela tem de reproduzir desigualdade mais através da troca interna
do que por determinação externa.
As trocas podem abranger virtualmente todas as condições que
determinam a ação e a vida, os projetos e as trajetórias pessoais e
sociais, tais como bens, serviços, meios, recursos, símbolos,
valores, identidades, capacidades, oportunidades, aptidões e
interesses.
No relativo às relações de poder, o que é mais característico das
nossas sociedades é o fato de a desigualdade material estar
profundamente entrelaçada com a desigualdade não material,
sobretudo com a educação desigual, a desigualdade das
capacidades representacionais/comunicativas e expressivas e ainda
a desigualdade de oportunidades e de capacidades para organizar
interesses e para participar autonomamente em processos de
tomada de decisões significativas.
5) Segundo Boaventura Souza Santos, quais são os espaços estruturais da sociedade?
 
a) O espaço doméstico é o conjunto de relações sociais de produção e reprodução da
domesticidade e do parentesco, entre marido e mulher (ou quaisquer parceiros em relações de
conjugalidade) e entre cada um deles e os filhos e entre outros parentes.
b) O espaço da produção é o conjunto de relações sociais desenvolvidas em torno da produção
de valores de troca econômicos e de processos de trabalho, de relações de produção em
sentido amplo (entre os produtores diretos e os que se apropriam da mais-valia, e entre ambos
e a natureza) e de relações na produção (entre trabalhadores e gestores, e entre os próprios
trabalhadores).
c) O espaço do mercado é o conjunto de relações sociais de distribuição e consumo de valores
de troca através das quais se produz e reproduz mercadorização das necessidades e dos meios
de satisfazê-las.
d) O espaço da comunidade é constituído pelas relações sociais desenvolvidas em torno da
produção e da reprodução de territórios físicos e simbólicos e de identidades e identificações
com referência a origens ou destinos comuns.
e) O espaço da cidadania é o conjunto de relações sociais que constituem a “esfera pública” e,
em particular, as relações de produção da obrigação política vertical entre os cidadãos e o
Estado.
f) O espaço mundial é a soma total dos efeitos pertinentes internos das relações sociais por
meio das quais se produz e reproduz uma divisão global do trabalho. A conceituação do espaço
mundial como estrutura interna de uma dada sociedade (nacional ou local) pretende
compatibilizar teoricamente as interações entre as dinâmicas globais do sistema mundial, por
um lado, e as condições, extremamente diversas e específicas, das sociedades nacionais ou
subnacionais que o integram, por outro.
O espaço mundial é, por conseguinte, a matriz organizadora dos efeitos pertinentes das
condições e das hierarquias mundiais sobre os espaços doméstico, da produção, do mercado, a
comunidade e da cidadania
6) A que se refere a dimensão institucional estrutural dos espaços
estruturais?
 
A dimensão institucional dos espaços estruturais refere-se à
organização da repetição na sociedade, isto é, a formas, padrões,
procedimentos, aparatos ou esquemas que organizam o constante
fluxo de relações sociais em sequências repetitivas, rotinizadas e
normalizadas, por meio das quais os padrões de interação são
desenvolvidos e "naturalizados" como normais, necessários,
insubstituíveis e de senso comum. As instituições são instrumentos
de controle do risco e da imprevisibilidade; é através delas que as
sociedades estabilizam as expectativas dos indivíduos e dos grupos
sociais.
7) Conceitue o patriarcado como forma de poder e em que espaço
ocorre de forma privilegiada.
 
O patriarcado é a forma de poder privilegiada no espaço
doméstico. A despeito de existirem sempre constelações de
poderes que envolvem o espaço doméstico, as relações sociais
agregadas a esse espaço (trabalho doméstico, reprodução,
cuidados mútuos, gestão dos bens do agregado doméstico,
educação dos filhos, lazer, prazer, etc) são geralmente organizadas
pelo patriarcado enquanto sistema de controle dos homens sobre a
reprodução social das mulheres.
É um lugar de opressão da mulher, mas não a única e, às vezes,
nem a mais forte. O patriarcado, aliás, está também presente nas
constelações de poder das relações sociais agregadas no espaço
da produção, no espaço do mercado, no espaço da comunidade,
no espaço da cidadania e no espaço mundial, e o seu impacto mais
forte nas experiências de vida dos membros do agregado
doméstico pode ocorrer, conforme as circunstâncias específicas,
em qualquer um destes espaços estruturais
8) Como Marx define a exploração ou “natureza capitalista” como
forma de poder?
 
A exploração, tal como Marx a definiu, é a forma de poder
privilegiada no espaço da produção. Contudo, para assinalar a
dupla contradição na produção capitalista (exploração do trabalho
e degradação da natureza), acrescenta-se à exploração a
“natureza capitalista”, ou seja, a natureza como construção
histórica e social “produzida”, conjuntamente, pela ciência
moderna e pelo capitalismo.
9) O que é fetichismo das mercadorias?
 
O fetichismo das mercadorias é a forma de poder do espaço do
mercado. O sentido adotado por Boaventura de Souza Santos é
semelhante ao de Marx. À medida que adquirem qualidades e
significados autônomos que vão para além da estrita esfera
econômica, as mercadorias tendem a negar os consumidores que,
enquanto trabalhadores, são também os seus criadores. Dado que
a autonomia das mercadorias é obtida à custa da autonomia do
consumidor enquanto ator social (como criador das mercadorias e
como consumidor livre), o consumidor transforma-se, através do
fetichismo das mercadorias, de sujeito de consumo, em objeto de
consumo, de criador, em criatura.
De outro lado, a criação de um espaço de consumo estetizado
converte as mercadorias numa configuração de mensagens
expressivas que fomentam uma concepção materialista da vida no
mesmo processo em que desmaterializam os produtos. A marca, o
logotipo, o mapa de cores, o traço do estilo, multiplicam os valores
de uso e, com isso, prolongam a eficácia dos produtos para além
daquela que pode decorrer do trabalho produtivo.
10) Conceitue diferenciação desigual.
 
A diferenciação desigual é a forma de poder privilegiada no espaço da comunidade e, provavelmente, a mais
complexa e ambígua de todas. Opera mediante a criação da alteridade, da agregação da identidade e do
exercício da diferença na base de critérios mais ou menos deterministas. Para esta forma de poder, é essencial
o dualismo da inclusão (daquilo que pertence) e exclusão (daquilo que é estranho) e, por isso, o seu exercício é
como a face de Janus: um poder de borracha (poder flexível, partilhado, quase não poder) relativamente aos
que pertencem; um poder de ferro (poder nu e cru, terror) relativamente aos estranhos. Esta forma de poder
centra-se em torno do privilégio de definir o outro.
Como Edward Said (1985) mostrou eloquentemente, os que são definidos como o outro são também definidos
como incapazes de se definirem e representarem a si próprios. Para os que são supostamente incapazes de se
definirem a si próprios, a questão da identidade é, portanto, uma questão de resistência cultural, de fazer com
que o subalterno fale.
Na sua forma mais difundida, a diferenciação desigual envolve a atribuição de significado social a padrões
particulares de diferença étnica e a avaliação negativa de características reais ou imputadas, que são
deterministicamente conferidas aos grupos definidos como diferentes e estranhos. Esta forma de poder é
racismo no sentido mais lato e é exercida na sociedade de variadíssimas formas, como discriminação,
etnocentrismo, preconceito, xenofobia, estereotipização, a invenção de bodes expiatórios, etc.
Atualmente, porém, a reestruturação da acumulação de capital à escala mundial está obriga a refinar os
instrumentos analíticos e a reinventar a história moderna, a fim de compreender as novas (e velhas)
constelações de poder, tais como: a reetnicização da força de trabalho como meio de a desvalorizar para
patamares inferiores aos níveis capitalistas “normais”; a sobre-exploração dos trabalhadores migrantes
clandestinos; a distribuição social de grupos minoritários por mercados de trabalho especialmente degradados
(trabalho sazonal, trabalho precário, trabalho remunerado abaixo do salário mínimo); critérios e decisões
etnicamente enviesados, respeitantes aos refugiados; a mercadorização dos recursos naturais dos povos
indígenas promovida pelas empresas multinacionais que exploram a biodiversidade.
11) O que é dominação?
 
A dominação é a forma de poder privilegiada no espaço da cidadania. É a única
forma de poder que tanto a teoria política liberal como a teoria marxista clássica
consideram poder político, isto é, poder gerado no sistema político e centrado no
Estado. De todas as formas de poder, a dominação é a mais institucionalizada, a
mais autorreflexiva — “vê-se a si mesma” como forma de poder — e também a
mais amplamente difundida, pelo menos nas sociedades do centro do sistema
mundial.
A dominação é um poder cósmico, e todas as outras formas poder, poderes
caósmicos. Por poder cósmico, a dominação centraliza, é exercida a partir do Estado
e dentro de limites formalmente estabelecidos através de sequências e cadeias
institucionalizadas intermediação burocrática. Em contrapartida, o poder caósmico é
o poder descentralizado e informal, exercido por múltiplos microcentros de poder
em sequência caótica sem limites pré-definidos.
E essa forma de dominação gera uma hierarquia centro-periferia do sistema mundial
que resulta de uma troca desigual, um mecanismo de imperialismo comercial
mediante o qual a mais-valia produzida é transferida da periferia para o centro. Isso
acontece não só porque a produção do centro tem, em média uma composição
orgânica mais elevada (uma maior incorporação de capital do que de trabalho
produtivo), mas também, e acima de tudo, porque os trabalhadores da periferia
recebem, em média, salários inferiores aos do centro por trabalhos do mesmo tipo.
12) A forma de poder troca desigual (prevalente no espaço
estrutural mundial) se constela com outras formas de poder? E
quais são as consequências dessa constelação?
 
A forma de poder denominada troca desigual se constela-se com
outras formas de poder, designadamente com a exploração e o
fetichismo das mercadorias. Mas também se constela
decisivamente com a dominação, como resulta evidente das
relações entre a transnacionalização da economia e os Estados
Nação. Para os Estados periféricos e semiperiféricos, uma das
dimensões mais cruciais desta constelação reside na maneira como
esses Estados impõem aos cidadãos as políticas de ajustamento
estrutural impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI, as instituições
do espaço mundial que estão sob o controle dos Estados centrais.
Assim, quanto menor a troca desigual, menor a espoliação.
13) Como Boaventura de Souza Santos conceitua direito?
 
Para ele “o direito é um corpo de procedimentos regularizados e de
padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo
social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a
sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado
com a ameaça de força. Dizem-se justificáveis os procedimentos e
os padrões normativos com base nos quais se fundamentam
pretensões contraditórias e se geram litígios suscetíveis de serem
resolvidos por terceiras partes não diretamente envolvidas neles
(juízes, árbitros, mediadores, negociadores, facilitadores, etc.)”.
14) Quais as particularidades na constituição das formas de direito
e na forma como funcionam em conjunto com outras dimensões
dos espaços estruturais?
 
Em primeiro lugar, ao contrário das formas de poder e das formas
epistemológicas, cujo funcionamento tende a ser mais difuso e
flutuante, as formas de direito funcionam quase sempre dentro dos
limites das instituições centrais de um determinado espaço
estrutural. Em segundo lugar, a forma de direito é um terreno
duplamente contestado porque, ao mesmo tempo em que
enquadra os litígios surgidos das relações sociais, é também
reenquadrado por eles através de interpretações rivais do que está
em litígio. Em terceiro lugar, embora todas as formas de direito
integrem constelações de juridicidades, o direito territorial do
Estado é a única forma de direito que se vê a si mesma como
direito, o direito territorial do Estado tende a considerar o campo
jurídico como exclusivamente seu, recusando-se a reconhecer que
o seu funcionamento se integra em constelações de direitos mais
vastas.
15) Conceitue o direito doméstico.
 
O direito doméstico é o direito dos espaços domésticos, o conjunto
de regras, de padrões normativos e de mecanismos de resolução
de litígios que resultam da e na, sedimentação das relações sociais
do agregado doméstico. O direito doméstico é, em geral, muito
informal, não escrito e tão profundamente enraizado nas relações
familiares que dificilmente se pode conceber como uma dimensão
autônoma delas.
Como todas as outras dimensões dos espaços estruturais, o direito
doméstico opera, nos campos sociais concretos, em constelações
com outras formas de direito. Nos campos sociais que se
constituem à volta do espaço doméstico, a constelação de
juridicidades é quase sempre dominada pelo direito doméstico e
pelo direito territorial do Estado, combinados em diferentes formas
e graus.
16) Conceitue o direito da produção.
 
O direito da produção é o direito da fábrica ou da empresa, o conjunto de
regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do
trabalho assalariado (relações de produção e relações na produção): códigos de
fábrica, regulamentos das linhas de produção, códigos de conduta dos empregados,
etc, O direito da produção pode ser imposto unilateralmente pelo patrão ou pela
administração, e também pode resultar de negociações com os sindicatos ou outros
representantes dos trabalhadores. Em qualquer dos casos, porém, é marcado pelas
prerrogativas de poder inerentes a quem detém a propriedade dos meios de
produção. Esta forma de direito varia consideravelmente, quer no centro, quer na
periferia e na semiperiferia do sistema mundial, de acordo com o setor produtivo, a
dimensão da empresa, o ciclo econômico, o ambiente político, a força das
organizações dos trabalhadores, a cultura empresarial, etc.
O direito da produção pode ou não ser escrito e pode ser formal ou informal, mas,
ao contrário do direito doméstico, a sua artificialidade, arbitrariedade e imposição
externa são, geralmente, reconhecidas como tal nas experiências quotidianas da
vida dos que são regulados por ele.
17) Conceitue o direito da troca.
 
O Direito da Troca é o direito do espaço do mercado, os costumes
do comércio, as regras e padrões normativos que regulam as
trocas comerciais entre produtores, entre produtores e
comerciantes, entre comerciantes, e também entre produtores e
comerciantes, por um lado, e consumidores, por outro. Por ter sido
o primeiro campo jurídico a romper com a juridicidade estatal
medieval e a desenvolver-se autonomamente, esta forma de
direito foi pioneira na emergência da juridicidade moderna. Na
esteira desta tradição, a lex mercatoria está hoje bem florescente
na economia mundial, regulando as trocas comerciais com grande
autonomia relativamente aos Estados Nação.
O direito da troca é, em geral, muito informal, muito flexível e está
perfeitamente sintonizado com os interesses e necessidades dos
intervenientes e com as relações de poder entre eles. Enquanto
direito informal, tem geralmente um baixo grau de burocracia e um
elevado grau de retórica e de violência.
18) Conceitue o direito da comunidade.
 
O direito da comunidade, como sucede com o próprio espaço da
comunidade, é uma das formas de direito mais complexas, na
medida em que cobre situações extremamente diversas. Pode ser
invocado tanto pelos grupos hegemônicos como pelos grupos
oprimidos, pode legitimar e reforçar identidades imperiais
agressivas ou, pelo contrário, identidades defensivas subalternas,
pode surgir de assimetrias de poder fixas e irreconciliáveis ou, pelo
contrário, regular campos sociais em que essas assimetrias quase
não existem ou são meramente circunstanciais. As constelações de
direito para as quais ele contribui são, por isso, muito
diversificadas. As que envolvem o direito estatal têm, geralmente,
um grande impacto na vida das pessoas, sobretudo nas que
pertencem a grupos de excluídos. Em algumas sociedades - muitas
vezes (mas nem sempre) sociedades periféricas saídas da
dominação colonial —, os grupos de identidade hegemônica
conseguiram converter o direito da sua comunidade em direito
nacional estatal. Os Estados islâmicos são um exemplo evidente
desse processo.
19) Conceitue o direito territorial ou direito estatal.
 
O direito territorial ou direito estatal é o direito do espaço da cidadania e, nas sociedades
modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens jurídicas. Ao longo dos
últimos duzentos anos, ele foi construído pelo liberalismo político e pela ciência jurídica como a
única forma de direito existente na sociedade. Apesar do seu caráter arbitrário inicial, esta
concepção, com o decorrer do tempo, foi invadindo o conhecimento de senso comum e
instalou-se nos costumes jurídicos dos indivíduos e dos grupos sociais. Concebido nestes
termos, o direito estatal é autorreflexivo; é, por outras palavras, a única forma de direito que
“se vê a si mesma” como direito.
O valor estratégico do direito estatal reside também no poder do Estado que o sustenta. Em
contraste com as outras formas de poder, a dominação é um poder cósmico, um poder
altamente organizado e especializado, movido por uma pretensão de monopólio e comandando
vastos recursos em todos os componentes estruturais do direito (violência, burocracia e
retórica). Embora firmemente enraizado nas relações sociais concentradas à volta do espaço da
cidadania, funciona, ao contrário de outras formas de poder, como se estivesse desincorporado
de qualquer contexto específico, com uma mobilidade potencialmente infinita e uma enorme
capacidade de disseminação nos mais diversos campos sociais. Apoiado por uma forma de
poder com tais características, o direito estatal tende a superestimar as suas capacidades
regulatórias e a prometer mais do que aquilo que pode oferecer. Mas, por outro lado, e pela
mesma razão, tem também assegurada uma prioridade organizativa nas constelações de
direitos, dado que todas as outras formas de direito tendem a tomar a sua presença por
garantida e a organizarem e maximizarem a sua própria intervenção e eficácia regulatória em
redor dos limites, falhas e fraquezas do direito estatal. Como a dominação é uma forma
cósmica de poder, o direito estatal é um direito cósmico: funciona cosmicamente, formando
constelações com todos os direitos caósmicos.
20) Conceitue o direito sistêmico.
 
O direito sistêmico é a forma de direito do espaço mundial, o conjunto das
regras e padrões normativos que organizam a hierarquia centro/periferia e
as relações entre os Estados Nação no sistema interestatal. Seria o direito
que garantiria o papel da integração normativa como argamassa que dá
coesão ao sistema mundial. Mesmo que se admita, “como Chase-Dunn,
que esse papel é relativamente secundário em comparação com a
interdependência dos mercados e com o poder político-militar, o fato é
que, enquanto relações sociais, estes últimos geram a sua própria
normatividade, conjuntos de regras e padrões normativos que fundam a
distinção entre expectativas legítimas e ilegítimas e assim, disciplinam os
comportamentos”.
O direito sistêmico está para o direito internacional como o direito
doméstico, o direito da produção, o direito da troca e o direito da
comunidade estão para o direito territorial do Estado; existe no reverso da
juridicidade oficial que governa as relações entre Estados Nação, umas
vezes complementando-a, outras, contradizendo-a e minando-a. As lutas
emancipatórias transnacionais pelos direitos dos grupos sociais oprimidos
de todo o mundo tendem a desafiar a forma de poder que sustenta o
direito sistêmico (a troca desigual em sentido estrito). Nesta medida, o
direito cosmopolita é um direito antissistêmico.
21) Qual é a especificidade que marca a ciência como forma
hegemônica de conhecimento quando em contraste com a formas
hegemônicas de poder e de direito?
 
A ciência é a forma hegemônica de conhecimento nas sociedades
contemporâneas, por tratar-se de uma forma extremamente
disseminada, uma forma cósmica de conhecimento. Contudo, ao
contrário da forma cósmica de poder (a dominação) e da forma
cósmica de direito (o direito estatal), a ciência não depende
exclusivamente de uma instituição nacional, centralizada e
burocrática (o Estado), para exercer o seu funcionamento cósmico.
Embora o Estado seja um facilitador essencial, através de políticas
de investigação científica e desenvolvimento, a ciência funciona
cosmicamente por ser um conhecimento organizado, especializado
e profissionalizado, suscetível de ser produzido ad infinitum em
ambientes aparentemente alheios ao contexto, de acordo com
metodologias formalizadas e reproduzíveis.
Apesar do seu caráter cósmico, e de modo muito semelhante à
dominação e ao direito estatal, a ciência moderna só funciona em
constelação com outras formas caósmicas de conhecimento.
22) Do que depende o êxito das lutas anticapitalistas e
antissistêmicas?
 
O êxito das lutas anticapitalistas e antissistêmicas depende da
capacidade que tenham de se organizar em constelações de
práticas sociais emancipatórias, isto é, em constelações de trocas
iguais contra constelações de poder, em constelações de
juridicidades democráticas radicais contra constelações de
juridicidades autoritárias, em constelações de conhecimentos
emancipatórios contra constelações de conhecimentos regulatórios.
Para fazer jus a tal programa, as reconstruções teóricas devem ser
muito mais exigentes e inovadoras, e a prática social a que fazem
apelo deverá ser muito mais criativa e complexa (tão consciente
dos limites como das possibilidades), menos dogmática, dada a
natureza parcial de todas as formas relevantes de ação,
predisposta a alianças para superar a incompletude e, por último,
epistemologicamente mais tolerante face aos vários conhecimentos
parciais e locais e aos vários sensos comuns nela investidos.
23) Segundo Boaventura de Souza Santos, dentre as seis formas
de poder que propõe, qual a menos despótica?
 
A dominação é, nas sociedades democráticas liberais, a menos
despótica pelo fato de ser uma forma de poder cujo exercício se
encontra limitado por certas regras e controles democráticos, e de
permitir um certo grau de participação dos cidadãos à luz dos
direitos cívicos, políticos e socioeconômicos garantidos pela
Constituição Política do Estado
24) Segundo Boaventura de Souza Santos, dentre as seis formas
de direito que propõe, qual a menos despótica?
 
Das seis formas de direito, o direito estatal, nas sociedades
democráticas liberais, é o menos despótico, já que é promulgado
por processos democráticos, e exercido no quadro do Estado de
direito. O princípio do primado do direito permite proteger a parte
mais fraca contra decisões arbitrárias, sendo as normas que dele
decorrem aplicadas por agentes profissionalizados, preparados
para separar o que é político do que é jurídico e decidir com
imparcialidade.
25) Quais são as características estruturais das sociedades capitalistas?
 
As sociedades capitalistas caracterizam-se por uma supressão ideológica
hegemônica do caráter político de todas as formas de poder, excetuando a
dominação, do caráter jurídico de todas as formas de direito, excetuando o
direito estatal, e do caráter epistemológico de todas as formas de
conhecimento, excetuando a ciência.
A segunda característica estrutural das sociedades capitalistas é que a
existência das constelações de poder, de direito e de conhecimento que
não as hegemônicas é ignorada, ocultada ou suprimida por toda uma série
de estratégias que convertem a redução da política ao espaço da
cidadania em senso comum político, a redução do direito ao direito estatal
em senso comum jurídico e a redução do conhecimento ao conhecimento
científico em senso comum epistemológico. Estas múltiplas reduções
hegemônicas não são simplesmente ilusões ou manipulações que são
fáceis de lançar no descrédito ou rejeitar. Depois de convertidas em senso
comum, não são apenas necessariamente ilusórias, tornam-se também
necessárias enquanto ilusões. Implantam-se nos hábitos sociais, políticos e
culturais das pessoas, incluindo dos cientistas sociais, e orientam a prática
social, criam uma ordem reconfortante e produzem rótulos
tranquilizadores para espaços autossituados (a política aqui, o direito ali, a
ciência acolá). A reprodução política, jurídica e epistemológica das
sociedades capitalistas depende largamente destas evidências
hegemônicas.

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