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INSUFICIÊNCIA OVARIANA PRIMÁRIA

Wallisson de Medeiros Sales Lins


R1 Endocrinologia HC FMUSP

Orientadora:
Dra. Berenice Bilharinho de Mendonça
Caso Clínico
“É que Pombinha, orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda
pago à natureza o cruento tributo da puberdade, apesar do zelo da velha
e dos sacrifícios que esta fazia para cumprir à risca as prescrições do
médico e não faltar à filha o menor desvelo"

"E não se passava um dia que não interrogassem duas e três vezes a
velha com estas frases:
- Então? Já veio?
- Por que não tenta os banhos de mar?
- Por que não chama outro médico?"

“Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou


sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E
feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o
grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda
vermelha e quente”
Definições
▫ Menopausa: perda de função folicular ovariana que
Prevalência IOP:
fisiologicamente ocorre entre 45-55 anos. 1/100 aos 40 anos
1/1.000 aos 30 anos
▫ Menopausa precoce: 40-45 anos 1/10.000 aos 20 anos

▫ Insuficiência ovariana primária (IOP): < 40 anos

40- 45ª
45-55
< 40 anos (FOP) Menopausa
(Menopausa)
Precoce

Menopause. WHO (2022)


S. Christin-Maitre et al. Annales d’Endocrinologie 82 (2021)
Definições
▫ Amenorreia primária:
- Ausência de menarca aos 13 anos + ausência dos caracteres 2ários
- Ausência de menarca aos 16 anos com desenvolvimento normal dos
caracteres 2ários
- Ausência de menarca após 5 anos do início da puberdade (se início <10
anos de idade)
▫ Amenorreia secundária:
- Ausência de menstruação por 3 meses se ciclo regular ou 6 meses se ciclo
irregular.
- Oligomenorreia
- Ciclo com duração >35 dias ou <10 ciclos por ano
Critérios IOP

Critério clínico:
• Amenorreia primária/secundária ou oligomenorreia por > 4 meses
(mulheres < 40 anos )

Critério laboratorial:
• Elevação de FSH > 25 UI/L

(em duas dosagens com intervalo de 4 semanas associado a hipoestrogenismo)


atresia

Persani L et al. J Mol Endocrinol (2010)


Causas IOP

CAUSAS PRIMÁRIAS CAUSAS SECUNDÁRIAS


• Genéticas • Iatrogênica (cirurgia, QT e RT)
• Cromossômicas • Ambientais (infecções, ftalatos,
• Autoimunes bisfenol A [BPA], hidrocarbonetos
• Idiopática (60%) aromáticos [poluente], tabagismo)

S. Christin-Maitre et al. Annales d’Endocrinologie 82 (2021)


Causas primárias de IOP
▫ GENÉTICA
• Alterações cromossômicas
• Deficiências enzimáticas
• Mutações genéticas associados à IOP
• Atualmente cerca de 100 genes já descritos
• Sindrômica: principal representante é a mutação do FMRP (síndrome
do X frágil)
• Não sindrômica (IOP isolada)
• Genes envolvidos no desenvolvimento ovariano
• Genes envolvidos na divisão celular e reparo de DNA
Causas primárias de IOP
▫ GENÉTICA: Alterações cromossômicas
•2-5% do total de casos de IOP
• Síndrome de Turner e variantes (80-90% de prevalência de IOP):
Variação fenotípica de acordo com o grau de comprometimento do X
45, XO: amenorreia primária e alterações fenotípicas clássicas
45,X/46,XX: podem se apresentar com amenorreia secundária
• Outras alterações do cromossomo X:
•Deleções, translocações e alterações numéricas afetando expressão de
genes importantes para o desenvolvimento ovariano
•Alterações estruturais no X que levem a alterações no pareamento dos
cromossomos durante a meiose precipitam atresia folicular acelerada

C.Astuenkel; A. Gompel. NEJM, 2023.


Causas primárias de IOP
▫ GENÉTICA: Deficiências enzimáticas da esteroidogênese
• Deficiências de colesterol desmolase (SCC), 17-alfa-hidroxilase, 17,20-liase e aromatase:
• Comprometimento na síntese de estrogênio levando a retardo puberal, amenorreia primária e
hipogonadismo hipergonadotrófico.
• Essas pacientes podem apresentar folículos primordiais normais.
• Deficiência de 17-alfa-hidroxilase:
• Hipertensão (acúmulo da DOCA), hipopotassemia, amenorreia primária, folículos ovarianos
aumentados, multicistos e ausência ou desenvolvimento das mamas.
• Progesterona basal elevada: marcador que deve ser solicitada em todos os casos de amenorreia
primária
• Deficiência da aromatase : atraso puberal, amenorreia, múltiplos cistos ovarianos e
elevação de LH, simulando um quadro de síndrome de ovários policísticos
Causas primárias de IOP
▫ GENÉTICA: Deficiências enzimáticas
• Galactosemia
• Doença autossomica recessiva rara 1/50000 causada por deficiência
da enzima GALT (galactose 1 fosfato uridil transferase) levando a
acumulo de galactose nas células
• 80% das mulheres desenvolvem IOP
Causas primárias de IOP
▫ GENÉTICA: Genes associados à IOP sindrômica
▫ Síndrome do X frágil
▫ Incidência de 1/4.000 em homens e 1/7.000 em mulheres
▪ Principal causa de distúrbio intelectual herdado e principal
forma monogênica de autismo
▪ Resulta da inativação do gene FMR1, que codifica a
proteína FMRP (principal proteína reguladora da tradução
de RNAs envolvidos na plasticidade sináptica) 🡪 herança
dominante ligada ao X, penetrância incompleta
▪ A proteína FMRP é altamente expressa em células
germinativas do ovário fetal e nas células da granulosa
adultas
Cordts EB et al. Genetic aspects of premature ovarian failure: a literature review. Arch Gynecol Obstet. 2011.
Status FMR1/no rep.
Transmissão Frequência Fenótipo
CGG
Normal Sexo Sexo
Estável Normal
6 a 52 masculino feminino

↑ risco de
IOP, tremor e
Pré-mutação
Instável 1/800 1/250 ataxia, alt.
55 a 200
Neuropsiquiátricas
HAS, dor crônica

Mutação completa XFS em 30 a 50%


Instável – –
> 200 das mulheres

Cordts EB et al. Genetic aspects of premature ovarian failure: a literature review. Arch Gynecol Obstet. 2011.
Mila M, Alvarez-Mora MI, Madrigal I, Rodriguez-Revenga L. Clin Genet 2018
▫ GENÉTICA: Genes associados à IOP isolada (não sindrômica)
Gene Localização cromossômica Função

FMR1 Xq27.3 Desenvolvimento e maturação do oócito


NR5A1 9q33.3 Esteroidogênese ovariana
NOBOX 7q25 Foliculogênese inicial
FIGLA 2p12 Regulação dos genes na zona pelúcida
FOXL2 3q23 Diferenciação das células da granulosa e desenvolvimento folicular
SOHLH 13q13.3 Foliculogênese inicial
1/2
BMP-15 Zq11.2 Maturação folicular
GDF-9 5q23.2 Maturação folicular
INHA 2q33-36 Regulação da foliculogênese por inibição do FSH
FSHR 2p21 Desenvolvimento e crescimento foliculares, esteroidogênese ovariana

LHR 2p21 Desenvolvimento e crescimento foliculares, esteroidogênese,


ovulação
ESR1 6q25.1 Maturação e crescimento foliculares
LOPES, Lorena Oliveira Silva. Síndrome da Blefarofimose : Relato de caso. 2020. São Paulo. Pôster. Disponível em
https://jde.iweventos.com.br/upload/trabalhos/j3YEpno8zEi649qMG0G2jF1P3FM8.pdf. Acessado 23/12/23 n-Maitre et al. Annales d’Endocrinologie 82 (2021)
Causas primárias de IOP
▫ GENÉTICA: Mutação no receptor de LHCG
• Manifestações clínicas:
– Telarca espontânea
– Amenorréia primária ou secundária
– Anovulação crônica e infertilidade
– Ovários aumentados (ausência de ovulação induzida pelo LH leva a aspecto
multicístico, entretanto sem hiperandrogenismo)
• Irmãs de pacientes com diferença do desenvolvimento sexual (DDS) 46,XY
• Níveis elevados de LH e níveis de FSH normais ou discretamente elevados (LH > FSH)
• Nível de estradiol normal para a fase folicular: (< 10 a 122 pg/mL)
• Concentrações de progesterona não atingem níveis pós-ovulatórios.

Latronico AC et al. N Engl J Med. 1996; 334(8):507-12.


Quando suspeitar de causas genéticas?

▫ Ausência de história de causas orgânicas


▫ História familiar positiva de IOP
▫ Procurar sinais sindrômicos:
▪ Estigmas de Turner
▪ Retardo mental
▪ Defeitos faciais, alterações palpebrais
▪ Associação com doenças autoimunes
Causas primárias IOP
▫ AUTOIMUNE
▫ Aproximadamente 5-30% dos casos
▫ Ausência de um marcador ovariano específico: usamos anti TPO e anti 21OH
▫ Níveis de FSH menos elevados
▫ Maior flutuação na função ovariana
▫ Maior reserva ovariana (AMH pode ser normal)
▫ Associação com outras doenças autoimunes: doença autoimune tireoidiana (14-27%),
anticorpos anti-células parietais (4%), diabetes mellitus tipo 1 (1%) e miastenia gravis
• SPA1 – gene AIRE ( candidíase mucocutânea, insuf adrenal, hipoparatireoidismo)
Prevalência de IOP - 17 a 50% dos casos
• SPA2 – poligênica. Mais comum que tipo 1.
Prevalência de IOP: 4 a 7% dos casos.
Causas secundárias IOP: Iatrogênicas
▫ CIRURGIA
Ooforectomia
Embolização arterial

▫ QUIMIOTERAPIA
Alto risco – AAs (ciclofosfamida, bussulfano, clorambucil, etc.)
Moderado – cisplatina e doxorubicina
Baixo – antraciclinas e taxanos (docetaxel)

▫ RADIOTERAPIA (abdome, pelve e coluna)


Ovário tem alta sensibilidade à radiação.
Maior risco: pré-puberes (maior sensibilidade dos folículos imaturos) e idade avançada (menor
reserva).

S. Christin-Maitre et al. Annales d’Endocrinologie 82 (2021)


Causas secundárias IOP
•Tabagismo: prejuízo de função ovariana (maior freqüência de
menopausa precoce)
•Ftalatos, bisphenol-A: reduz ligação do estrogênio com receptores,
aceleram atresia folicular e, através de mecanismos epigenéticos,
podem até mesmo reduzir reserva folicular nas gerações seguintes
• Metais pesados, pesticidas, químicos industriais
•Infecções virais
• Caxumba
• HIV
Manifestações clínicas IOP (curto prazo)

• Ausência de desenvolvimento puberal


• Amenorreia primária ou secundária
• Sintomas vasomotores (flushes, sudorese)
• Vaginite atrófica
• Redução da libido
• Infertilidade
Gravidez espontânea em até 10% dessas pacientes
• Distúrbio do sono e humor
É comum a dificuldade de aceitar o diagnóstico, a principal angústia parece ser devido a
infertilidade. Há maior prevalência de depressão.
Manifestações clínicas IOP (longo prazo)
• Osteopenia / Osteoporose
- Pacientes mais jovens ainda não terão atingido pico de massa óssea na IOP, portanto, maior risco
de osteoporose.
• Aumento do risco cardiovascular
- Disfunção endotelial, disautonomia, piora de perfil lipídico, redução de sensibilidade insulínica.
- Risco de doença cardiovascular 50% maior em mulheres com IOP em relação a mulheres que
chegaram na menopausa em torno dos 50 anos
- Risco de IAM é maior em IOP cirúrgico e TRH mostrou benefício.
- Dados sobre risco de AVC são contraditórios.
- A TRH restabelece função endotelial, mas ainda sem comprovação de ↓mortalidade CV (existem
dados observacionais mostrando benefício para menopausa precoce, mas não para IOP)
• Redução de expectativa de vida
- ↑mortalidade por todas as causas e ↓expectativa de vida em 2 anos.
- Pior se ooforectomia bilateral <45 anos.
• Declínio cognitivo
- Maior risco se IOP cirúrgica.
Roteiro
investigativo
da IOP

- LH: mutação no
receptor
- Progesterona:
descartar deficiência
de 17 alfa hidroxilase
- (AMH): não Stuenkel, Cynthia A., and Anne
Gompel. "Primary ovarian
mandatório; insufficiency." New England Journal of
Medicine 388.2 (2023): 154-163.
marcador da NBR 6023

reserva folicular
(pode estar normal
em etiologia
autoimune)
Stuenkel, Cynthia A., and Anne Gompel.
"Primary ovarian insufficiency." New
England Journal of Medicine 388.2 (2023):
154-163
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Outros
exames
▫ Autoimunidade
Anti-TPO e Anti-21hidroxilase (IOP pode preceder IA em até 50% dos casos).

▫ Avaliação óssea
DXA basal no diagnóstico.

▫ USG transvaginal
∙ Não obrigatório.
∙ Contagem de folículos antrais pode auxiliar na avaliação de reserva ovariana (>8-12 folículos).
∙ IOP pode apresentar ovários pequenos sem folículos. Assim como 50% pode ter folículos >2mm ou
corpo lúteo.
∙ Pequenos folículos em grande quantidade no contexto de IOP podem sugerir etiologia autoimune.

S. Christin-Maitre et al. Annales d’Endocrinologie 82 (2021)


Tratamento
INDUÇÃO DA PUBERDADE
• Estrogênio isolado com início aos 10~14 anos
• Iniciar com doses baixas que são paulatinamente aumentadas em intervalos
semestrais ao longo de um tempo médio de 2 anos até a dose de reposição da
mulher adulta.
• Após 2 anos de estrógeno isolado OU após menarca inicia progesterona cíclica
(1°até 12° dia do mês)
• Preferência via transdérmica - evitar 1ª passagem hepática e redução do IGF1.
• Dose inicial:
• Gel 0,125mg\dia:
○ Oestrogel 0,6 mg/g (1 puff = 1,25g de gel = 0,75mg estradiol)
○ Sandrena 0,5mg e 1mg (sachê 1g = 1mg estradiol)
• Adesivo - 6,25 mcg overnight ou 2x por semana (1/4 ou 1/8 do adesivo)
• VO – Valerato de estradiol 0,25mg/dia ou 17Beta estradiol 5 mcg\kg\dia
• Progesterona micronizada 200 mg\dia
LATRONICO, Ana Claudia, et al. "Endocrinologia e Metabologia." (2022).
Tratamento
REPOSIÇÃO HORMONAL MULHER ADULTA
• Estrogênio ( 17 beta estradiol, valerato de estradiol )
•Adesivo = 100 -200 ug/dia
•Gel = 1,5-2 mg/dia
•Via oral = 2-4 mg

• Se tiver útero (ou endometriose): associar progesterona pelo menos 12 dias do ciclo (iniciar
no primeiro dia de cada mês). Em caso de desejo de gestar priorizar uso de progesterona
micronizada
• TRH em geral não tem função contraceptiva
• Estrogênio em IOP espontânea NÃO aumenta risco de câncer de mama, e o rastreio não
precisa ser iniciado antes da população geral.
• Segundo ACOG o tratamento deve ser mantido até idade de menopausa fisiológica (51
anos).
FEBRASGO 2020. Insuficiência Ovariana Prematura: foco no tratamento hormonal.
Tratamento

REPOSIÇÃO HORMONAL MULHER ADULTA


17b-estradiol ADESIVO (100 -200ug/dia)
Systen 50ug || Estradot 25,5ug e 100ug

17b-estradiol GEL (1,5-2mg/dia)


Oestrogel 0,6 mg/g (1 puff = 1,25g de gel =
0,75mg estradiol) || Sandrena 0,5mg e 1mg
(sachê 1g = 1mg estradiol)

Estradiol micronizado ORAL (2-4mg/dia)


Natifa 1mg

Valerato de estradiol ORAL (2-3mg/dia)


Primogyna 1mg e 2mg

FEBRASGO 2020. Insuficiência Ovariana Prematura: foco no tratamento hormonal.


Papel dos Andrógenos no tratamento
•Não se faz reposição de rotina.
•Existe uma deficiência de andrógenos em relação às mulheres sem IOP (mas
não de DHEAS)
•Estudos randomizados não evidenciaram melhora de parâmetros como
humor, autoestima ou qualidade de vida em mulheres que fizeram uso de
patch de testosterona por 1 ano
•Possível benefícios em mulheres com Transtorno do Desejo Sexual
Hipoativo
•Alguns autores advogam que mulheres com IOP de etiologia autoimune
com IA associada poderiam se beneficiar com terapia com DHEA

FEBRASGO 2020. Insuficiência Ovariana Prematura: foco no tratamento hormonal.


Welt, C. (2023). Management of primary ovarian insufficiency (premature ovarian failure). UpToDate. Retrieved december 31, 2023, from
https://www.uptodate.com/contents/management-of-primary-ovarian-insufficiency-premature-ovarian-failure
Fertilidade

• Fertilização in vitro com oócitos doados (40-50% de sucesso)


• Criopreservação de embriões ou oócitos: aplicável para mulheres com
reserva ovariana para as quais a falência é prevista (ex: FOP iatrogênica)
• Criopreservação de tecido ovariano (crianças pré-púberes)

Terapias controversas
•Clomifeno
•Inibidor de aromatase
• Corticoide para FOP autoimune
•Terapia com gonadotrofinas

Welt, C. (2023). Management of primary ovarian insufficiency (premature ovarian failure). UpToDate. Retrieved december 31, 2023,
from https://www.uptodate.com/contents/management-of-primary-ovarian-insufficiency-premature-ovarian-failure
Resumo
o O diagnóstico precoce é importante para minimizar complicações e
realizar aconselhamento genético se for o caso.
o Explicar o diagnóstico com clareza e fornecer suporte psicológico é
importante para qualidade de vida das pacientes.
o Causas genéticas de IOP tem sido identificadas em grande quantidade de
casos e estudos nessa área pode proporcionar alvos para tratamentos no
futuro.
o Tratamento hormonal é essencial, deve ser prontamente instituído e
NÃO aumenta risco de câncer.

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