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Do Sujeito Do Inconsciente Ao Parletre
Do Sujeito Do Inconsciente Ao Parletre
Cartel: Monique Amirault, Serge Cottet, Claude Quénardel, Marie-Hélène Roch, Pascal Pernot (mais-
um).
Redator: Pascal Pernot
Isto confronta o século que começa com uma alternativa: nele o sujeito será
abordado a partir da singularidade de sua causa ou será rebaixado às manifestações de
seus comportamentos? Será o caso a caso ou a estatística, a particularidade de cada
um ou a padronização das massas, a ética da responsabilidade ou a coerção da
reeducação, a psicanálise ou cognitivo-comportamentalismo. Esclarecendo esses
pontos, antecipando essa escolha, o ensino de Lacan desenha um itinerário que, desde
a tomada em consideração da descoberta freudiana do sujeito do inconsciente até o
parlêtre, após 1975, abre a uma pragmática da psicanálise em sintonia com as
questões que se colocam ao sujeito do século XXI².
O inconsciente freudiano
Freud se vale da matéria verbal dos chistes mais inocentes, dos atos falhos, dos
lapsos e dos sonhos, mas também dos sintomas mais graves que lhe trazem seus
pacientes. Habitante da linguagem, o sujeito não é mestre em sua moradia. Quando
seu desejo insciente se exprime, suas associações verbais o fazem dizer mais, além ou
o contrário do que ele queria dizer. Como um rébus, elas cifram o saber inconsciente
de um ser assujeitado à linguagem, de um sujeito deslocado do [eu] do cogito, do ego
da psicologia, do organismo da biologia, do portador do cromossomo da genética, do
indivíduo do behaviorismo³.
Que todo o real do sujeito não seja simbolizável, formulável em palavras, não
proíbe, entretanto, que se reconsidere esse resto a partir de um inconsciente
reelaborado para incluir o fora de sentido, especificamente aquele do gozo do corpo,
heterogêneo ao significante, mas enodado com ele. É ao se opor a uma definição do
inconsciente como puro discurso a ser decifrado por uma máquina linguística que
Lacan emancipa o inconsciente da referência exclusiva ao significante ao expor como
se enodam os efeitos do real do gozo, o corpo e a estrutura do aparelho inconsciente 14.
Através de sua atividade de codificação*, à medida que a cadeia falada se
desenrola, o inconsciente produz sentido. Essa atividade é em si um exercício de um
gozo15. A singularidade dessa produção, seu caráter criacionista, devem ser destacados.
O tratamento analítico lacaniano é uma experiência rigorosamente singular colocando
em jogo as invenções excepcionais de um sujeito. Ele permite romper com a
representação imaginária de um aparelho psíquico onde um interior e um exterior se
oporiam, representação de intuição ingênua que ainda serve de modelo para certos
autores16.
É porque ele formalizou o inconsciente estruturado como uma linguagem que
Lacan, aplicando à linguagem todos os atributos da lógica moderna, pode, a partir de
sua incompletude e de sua inconsistência lógicas17, mostrar como, devido exatamente
a essas características, o gozo acompanha o sujeito do inconsciente. A questão que a
clínica impõe é saber como cada sujeito goza da atividade de codificação e como a
experiência analítica pode tocar o real da pulsão.
Em suas conferências em Sainte-Anne em 197218, Lacan inventa o conceito de
lalangue para designar aquilo que, sob a elucubração de saber que é a linguagem
articulada, constitui o "jato" da matéria sonora que não segue o recorte linguístico das
palavras e das leis da sintaxe. Lalangue "implica o gozo que aí se deposita" 19 mas por
outro lado não implica a comunicação com o outro. Ela pode ser material para uma
mensagem sem dialética, na verdade fora de sentido como na alucinação psicótica.
Nos anos setenta a primazia é dada ao corpo gozante falante de lalangue. O sujeito do
inconsciente, falta-a-ser articulada, falada na cadeia dos significantes é subjugado
demais "para poder estar propriamente no que se satisfaz do gozo pulsional" 20. Lacan
põe em ato aquilo de que se trata através de um uso de neologismos a serem
considerados como forçamentos da linguagem para fazer aparecer os efeitos da
lalangue. Assim ele introduz em 1974 esse termo neológico parlêtre21 para designar "o
ser carnal devastado pelo verbo", "que fala essa coisa (...) que estritamente depende
apenas de lalangue, a saber o ser". O parlêtre reintroduz a dimensão da pulsão no
verbo já que o sujeito do inconsciente e o gozo estão em exílio recíproco.
Lacan após Freud