Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A HISTÓRIA HOJE:
dúvidas, desafios, propostas
Roger Chartier
O que indicam esses diagnósticos, que parecem ter algo de paradoxal numa época em
que o movimento editorial na área de história demonstra uma vitalidade invejável e uma
inventividade renovada, traduzidas na continuidade das grandes obras coletivas, no
lançamento de coleções européias, no aumento do número de traduções, no eco intelectual de
algumas obras importantes? Eles denotam, creio, essa grande mutação que representa para a
história o desaparecimento dos modelos de compreensão, dos princípios de inteligibilidade
que foram de modo geral aceitos pelos historiadores (ou ao menos pela maior parte deles) a
partir dos anos 60.
A história dominante baseava-se então em dois projetos. Primeiro, a aplicação ao
estudo das sociedades antigas ou contemporâneas do paradigma estruturalista, abertamente
reivindicado ou implicitamente praticado. Tratava-se antes de mais nada de identificar as
estruturas e as relações que, independentemente das percepções e das intenções dos
indivíduos, comandam os mecanismos econômicos, organizam as relações sociais, engendram
1
"Histoire et sciences sociales. Un tournant critique?", Annales ESC, 1988, p. 291-293 (citação p. 291-292).
2
David Harlan, "Intellectual history and the return of literature", American Historical Review, 94, jun 1989, p.
879-907 (citação p. 881).
3
Carlo Ginzburg, "Spie. Radici di un paradigma indiziario", em Miti, emblemi, spie. Morfologia e storia (Turim,
Eunaudi, 1986), p. 158-209.
4
Giovanni Levi, L'éredità, immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del Seicento (Turim, Einaudi,
1985); Jaime Contreras, Sotos contra Riquelmes. Regidores, inquisidores y criptojudíos (Madri, Anaya/Mario
Muchnik, 1992).
classes, grupos), a história das sociedades atribuiu-se novos objetos, estudados em pequena
escala. É o caso da biografia ordinária, já que, como escreveu Giovanni Levi,
"nenhum sistema normativo é de fato suficientemente estruturado para eliminar
toda possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou interpretação das
regras, de negociação. Parece-me que a biografia constitui nesse sentido o
lugar ideal para se verificar o caráter intersticial - e ainda assim importante -da
liberdade de que as pessoas dispõem, assim como para se observar a maneira
como funcionam concretamente os sistemas normativos que nunca estão
isentos de contradições".5
construída a partir de fórmulas que governam a produção das narrativas. As entidades com
que os historiadores lidam (sociedade, classes, mentalidades etc.) são "quase personagens",
dotadas implicitamente das propriedades dos heróis singulares ou dos indivíduos ordinários
que compõem as coletividades que essas categorias abstratas designam. De outro lado, as
temporalidades históricas mantêm uma forte dependência em relação ao tempo subjetivo: em
páginas soberbas, Ricoeur mostra como o Méditerranée au temps de Philippe II, de Braudel,
no fundo se baseia numa analogia entre o tempo do mar e o tempo do rei, e como a longa
duração não passa aí de uma modalidade particular, derivada, do ato de colocar o
acontecimento dentro de um enredo. Enfim, os procedimentos explicativos da história
continuam solidamente ancorados na lógica da imputação causal singular, ou seja, no modelo
de compreensão que, no quotidiano ou na ficção, permite dar conta das decisões e das ações
dos indivíduos.
Semelhante análise, que inscreve a história na classe das narrativas e identifica os
parentescos fundamentais que unem todas as narrativas, sejam elas de história ou de ficção,
tem várias conseqüências. A primeira permite considerar como uma questão mal-colocada o
debate travado em torno do suposto `retorno da narrativa" que, para alguns, teria
caracterizado a história nesses últimos anos. Como, na verdade, poderia haver "retorno" ou
redescoberta onde não houve nem partida nem abandono? A mutação existe mas é de outra
ordem. Ela tem a ver com a preferência dada recentemente a algumas formas de narrativa em
detrimento de outras, mais clássicas. Por exemplo, as narrativas biográficas entrecruzadas da
micro-história não acionam nem as mesmas figuras nem as mesmas construções das grandes
"narrativas" estruturais da história global ou das "narrativas" estatísticas da história serial.
Daí decorre uma segunda proposta: a necessidade de recuperar as propriedades
específicas da narrativa histórica em relação a todas as outras. Elas estão ligadas, em primeiro
lugar, à organização "em camadas" ou "folheada" (como escrevia Michel Certeau) de um
discurso que compreende em si mesmo, sob a forma de citações que constituem efeitos da
realidade, os materiais que o fundamentam e cuja compreensão ele pretende produzir. Elas
estão ligadas, igualmente, aos procedimentos de acreditação específicos graças aos quais a
história mostra e proclama seu estatuto de conhecimento verdadeiro. Todo um conjunto de
trabalhos, inscritos no literary criticism à americana, dedicou-se assim a recuperar as formas
através das quais se dá o discurso da história. A empreitada pôde abarcar projetos diferentes,
uns empenhados em estabelecer taxinomias e tipologias universais, outros desejosos de
reconhecer as diferenças localizadas e singulares.
No primeiro caso pode-se incluir a tentativa de Hayden White, que visa a identificar as
figuras retóricas que comandam e constrangem todos os modos possíveis da narração e da
explicação históricas - a saber, os quatro tropos clássicos, metáfora, metonímia, sinédoque e,
com um estatuto particular, "metatropológico", ironia.10 E uma mesma busca de constantes
-constantes antropológicas (que constituem as estruturas temporais da experiência) e
constantes formais (que governam os modos de representação e de narração das experiências
históricas) - que conduz Reinhart Koselleck a distinguir três tipos de história: a
história-notação (Aufschreiben), a história cumulativa (Fortschreiben), a história-reescritura
(Umschreiben).11
10
Hayden White, Metahistory: the historical imagination in the ninteenth-century (Baltimore e Londres, The
Johns Hopkins University Press, 1973); The tropics of discourse: essays in cultural criticisrn (Baltimore e
Londres, The Johns Hopkins University Press, 1978), e The content of the form: narrative discourse and
historical imagination (Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1986).
11
Reinhart Koselleck, "Erfahrungswandel und Methodenwechsel. Eine historisch-anthropologische Skizze", em
Historische Methode, sob a direção de C. Meier e J. Rüsen (Munique, 1988), p.13-16.
Do lado francês, o desafio, tal como o vimos se cristalizar nos debates travados em
torno da interpretação da Revolução Francesa, assumiu o aspecto inverso. Longe de postular a
automaticidade da produção do sentido, além ou aquém das vontades individuais, enfatiza-se
ao contrário a liberdade do sujeito, a parte refletida da ação, as construções conceituais. A um
só tempo são recusados os procedimentos clássicos da história social que visavam a
12
Philippe Carrard, Poetics of the new history: French historical discourse from Braudel to Chartier (Baltimore
e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1992).
13
John E. Toews, "Intellectual history after the linguistic turn: the sutonomy of meaning and the irreductibility
of experience"; American Historical Review, 92, out 1987, p. 879-907 (citação p. 882).
14
Keith Michael Baker, Inventing the French Revolution: essays on French political culture in the eighteenth
century. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990), p. 9 e p. 5.
15
Marcel Gauchet, "Changement de paradigme en sciences sociales?", Le Débat, 50, 1988, p. 165-170 (citação
p. 169).
16
Gabrielle M. Spiegel, "History, historicism, and the social logic of the text in the Middle Ages", Speculum. A
Journal of Medieval Studies, vol. 65, nº 1, jan. 1990, p. 59-86 (citação p. 60).
17
Pierre Bourdieu, Choses dites (Paris, Les Editions de Minuit, 1987), p. 76.
criadores e as instituições e práticas da sociedade".18 Mas vale igualmente para uma história
das práticas ordinárias que são, também elas, invenções de sentido limitadas pelas
determinações múltiplas que definem, para cada comunidade, os comportamentos legítimos e
as normas incorporadas.
Contra o "retorno ao político", pensado dentro de uma autonomia radical, é preciso,
parece-me, colocar no centro do trabalho do historiador as relações, complexas e variáveis,
estabelecidas entre os modos da organização e do exercício do poder em uma dada sociedade
e, de outro lado, as configurações sociais que tornam possível essa forma política e que são
por ela engendradas. Assim, a construção do Estado absolutista pressupõe uma diferenciação
forte e prévia das funções sociais, ao mesmo tempo que exige a perpetuação (graças a
diversos dispositivos dos quais o mais importante é a sociedade da corte) do equilíbrio das
tensões existentes entre os grupos sociais dominantes e rivais.
Contra o retorno à filosofia do sujeito que acompanha ou fundamenta o retorno ao
político, a "história ciência social" lembra que os indivíduos estão sempre ligados por
dependências recíprocas, percebidas ou invisíveis, que moldam e estruturam sua
personalidade e definem, em suas modalidades sucessivas, as formas da afetividade e da
nacionalidade. Compreende-se então a importância atribuída por muitos historiadores a uma
obra por muito tempo não-reconhecida, cujo projeto fundamental é justamente articular, na
longa duração, construção do Estado moderno, modalidades da interdependência social e
figuras da economia psíquica: a obra de Norbert Elias.19
O trabalho de Elias permite, em especial, articular as duas significações que sempre se
embaralham no uso do termo cultura tal como o manejam os historiadores. A primeira
designa as obras e os gestos que, em uma sociedade, estão ligados ao julgamento estético ou
intelectual. A segunda refere-se às práticas ordinárias, "sem qualidades", que tecem a trama
das relações quotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade, em um determinado
tempo e lugar, vive e reflete sua relação com o mundo e a história. Pensar historicamente as
formas e as práticas culturais é portanto necessariamente elucidar as relações alimentadas por
essas duas definições.
As obras não têm sentido estável, universal, congelado. Elas são investidas de
significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição e uma
recepção, no encontro entre as formas e motivos que lhes dão sua estrutura e as competências
ou expectativas dos públicos que delas se apoderam. Por certo, os criadores, ou as
autoridades, ou os "clérigos" (pertençam eles ou não à Igreja) sempre aspiram a fixar o
sentido e a enunciar a interpretação correta que deve constranger a leitura (ou o olhar). Mas
sempre, também, a recepção inventa, desloca, distorce. Produzidas em uma esfera específica,
em um campo que tem suas regras, suas convenções, suas hierarquias, as obras se evadem e
ganham densidade peregrinando, às vezes na longuíssima duração, através do mundo social.
Decifradas a partir de esquemas mentais e afetivos que constituem a cultura própria (no
sentido antropológico) das comunidades que as recebem, elas se tornam em troca um recurso
18
Stephen Greenblatt, "Towards a poetics of culture", em The new historicism, sob a direção de H. A. Veeser
(Nova York e Londres, Routledge, 1989), p. 1-14 (citação p. 12).
19
Sobre a obra de Norbert Elias, ver Materialen zu Norbert Elias'Zivilisationstheorie, sob a direção de P.
Gleichmann, J. Goudsblom e H. Korte (Frankfurt-am-Main, Surkamp, 2 vol., 1977 e 1984); Hermann Korte,
Uber Norhert Elias. Das Werden eines Menschenwissenschaftlers (Frankfurt-am-Main, Surkamp, 1988);
Stephen Menell, Norbert Elias. Civilization and the human self-image (Oxford, Basil Blackwell,1989), e Roger
Chartier, "Formation sociale et économie psychique: la société de cour dans les procès de civilisation", prefácio
a Norbert Elias, La société de cour (Paris, Flammarion, 1985, p. I-XXVIII), e "Conscience de soi e lien social",
prefácio a Norbert Elias, La société des individus (Paris, Fayard, 1991, p. 7-29).
para se pensar o essencial: a construção do laço social, a consciência de si, a relação com o
sagrado.
Inversamente, todo gesto criador inscreve em suas formas e seus temas uma relação
com as estruturas fundamentais que em um determinado momento e lugar moldam a
distribuição do poder, a organização da sociedade ou a economia da personalidade. Pensado
(e pensando-se) como um demiurgo, o artista, o filósofo ou o sábio inventa contudo em meio
ao constrangimento. Constrangimento das regras (da patronagem, do mecenato, do mercado
etc.) que definem sua condição. Constrangimento mais fundamental ainda das determinações
ignoradas que habitam cada obra e fazem que ela seja concebível, transmissível,
compreensível. O que toda história cultural deve pensar é portanto, indissociavelmente, a
diferença pela qual todas as sociedades, por meio de figuras variáveis, separaram. do
quotidiano um domínio particular da atividade humana, e as dependências que inscrevem de
múltiplas maneiras a invenção estética e intelectual em suas condições de possibilidade.
Reancorada assim firmemente nas ciências sociais, a história nem por isso pode evitar
um desafio: superar o confronto, no fim estéril, entre, de um lado, o estudo das posições e das
relações e, de outro, a análise das ações e das interações. Ultrapassar essa oposição entre
"física social" e "fenomenologia social" exige a construção de novos espaços de pesquisa
onde a própria definição das questões obriga a inscrever os pensamentos claros, as intenções
individuais, as vontades particulares, nos sistemas de constrangimentos coletivos que, ao
mesmo tempo, os tornam possíveis e lhes põem freios. Seriam múltiplos os exemplos desses
novos recortes em que são necessariamente articuladas estruturas objetivas e representações
subjetivas. Um deles é o espaço de trabalho que liga crítica textual, história do livro e
sociologia cultural. Esse cruzamento inédito de tradições disciplinares e nacionais bastante
diversas (a história literária em suas diferentes definições, a bibliography à maneira
anglo-saxônica, a história social da escrita tal como a praticam os paleógrafos italianos, a
história sócio-cultural na tradição dos Annales) tem um retorno fundamental: compreender
como a leitura particular e inventiva de um leitor singular está contida em uma série de
determinações, sejam elas os efeitos de sentido visados pelos textos através dos próprios
dispositivos de sua escrita, os cerceamentos impostos pelas formas que transmitem esses
textos a seus leitores (ou a seus ouvintes) ou as competências ou convenções de leitura
próprias de cada "comunidade de interpretação".
Tal abordagem, cuja primeira característica é desalinhar as fronteiras canônicas, é
encontrada em muitos outros campos de pesquisa: por exemplo, nos estudos sobre cidade,
sobre os processos educativos, sobre a construção dos conhecimentos científicos. Ela lembra
que as produções intelectuais e estéticas, as representações mentais, as práticas sociais, são
sempre governadas por mecanismos e dependências desconhecidos dos próprios sujeitos. É a
partir de uma tal perspectiva que se deve compreender a releitura histórica dos clássicos das
ciências sociais (Elias, mas também Weber, Durkheim, Mauss, Halbwachs) e a importância
reconquistada, em detrimento das noções habituais à história das mentalidades, de um
conceito como o de representação. De fato, ele permite designar e ligar três realidades
maiores: primeiro, as representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do
mundo social e estruturam os esquemas de percepção e de apreciação a partir dos quais estes
classificam, julgam e agem; em seguida, as formas de exibição do ser social ou do poder
político tais como as revelam signos e "performances" simbólicas através da imagem, do rito
ou daquilo que Weber chamava de "estilização da vida"; finalmente, a "presentificação" em
um representante (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de uma identidade ou de um
poder, dotado assim de continuidade e estabilidade.
São numerosos os trabalhos de história que recentemente lidaram com essa tripla
definição da representação. Há duas razões para isso. De um lado, o recuo da violência que
caracteriza as sociedades ocidentais entre a Idade Média e o século XVIII e que decorre do
confisco pelo Estado do monopólio sobre o emprego legítimo da força faz com que os
enfrentamentos sociais baseados nas confrontações diretas, brutais, sangrentas, cedam cada
vez mais lugar a lutas que têm por armas e por objetos as representações. De outro lado, é do
crédito concedido (ou recusado) às representações que eles próprios propõem que depende a
autoridade de um poder ou a força de um grupo. Na área das representações do poder, com
Louis Marin,20 ou da construção das identidades sociais ou culturais, com Bronislaw
Geremek21 e Carlo Ginzburg,22 definiu-se assim uma história das modalidades do fazer-crer e
das formas da crença que é antes de tudo uma história das relações de força simbólicas, uma
história da aceitação ou da rejeição pelos dominados dos princípios inculcados, das
identidades impostas que visam a assegurar e perpetuar sua dominação.
Esta questão está no centro de uma história das mulheres que abre amplo espaço aos
dispositivos da violência simbólica, a qual, como escreve Pierre Bourdieu, "só tem êxito na
medida em que aquele que a sofre contribui para a sua eficácia; só o constrange na medida em
que ele está predisposto por uma aprendizagem prévia a reconhecê-la".23 De maneira durável,
a construção da identidade feminina tem-se enraizado na interiorização pelas mulheres de
normas enunciadas pelos discursos masculinos. Um objeto importante da história das
mulheres é assim o estudo dos dispositivos, desdobrados em múltiplos registros, que
garantem (ou devem garantir) que as mulheres consintam nas representações dominantes da
diferença entre os dois sexos: por exemplo, a inferioridade jurídica, a inculcação escolar dos
papéis sexuais, a divisão das tarefas e dos espaços, a exclusão da esfera pública etc. Longe de
afastar do real e de indicar apenas as figuras do imaginário masculino, as representações da
inferioridade feminina, incansavelmente repetidas e mostradas, se inscrevem nos pensamentos
e nos corpos de homens e mulheres. Mas uma tal incorporação da dominação não exclui,
muito ao contrário, possíveis desvios e manipulações que, pela apropriação feminina de
modelos e de normas masculinas, transformam em instrumento de resistência e em afirmação
de identidade as representações forjadas para assegurar a dependência e a submissão.
Reconhecer assim os mecanismos, os limites e, sobretudo, os empregos do
consentimento é uma boa estratégia para corrigir o privilégio durante muito tempo concedido
pela história às mulheres "vítimas ou rebeldes", "ativas ou atrizes de seu destino", em
detrimento "das mulheres passivas, vistas muito facilmente como consentidoras de sua
condição, ainda que a questão do consentimento seja absolutamente central no funcionamento
de um sistema de poder, seja ele social ou/e sexual".24 As fissuras que racham a dominação
masculina não assumem todas a forma de dilacerações espetaculares nem se exprimem
sempre pela irrupção de um discurso de recusa e de rebelião. Muitas vezes elas nascem dentro
20
Louis Marin, Le portrait du roi (Paris, Les Editions de Minuit, 1981) e Des pouvoirs de l'image. Gloses
(Paris, Editions du Seuil, 1993).
21
Bronislaw Geremek, Inutiles au monde. Truands et misérables dans l'Europe moderne (1350-1600) (Paris,
Editions Gallimard/Julliard, 1980) e La potence ou la pitié. L'Europe et les pauvres du Moyen Age à nos jours
(Paris, Gallimard, 1987).
22
Carlo Ginzburg, I Benandanti. Stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento (Turim, Einaudi, 1966).
23
Pierre Bourdieu, La noblesse d'Etat. Grandes écoles et esprit de corps (Paris, Les Editions de Minuit, 1989),
p. 10.
24
Arlette Farge et Michelle Perrot, "Au-delà du regard des hommes", Le Monde des Débats, nº 2, nov 1992, p.
20-21.
Existe ainda outro desafio que não é o menos temível. A partir da afirmação,
absolutamente fundamentada, de que toda história, qualquer que seja ela, é sempre uma
narrativa organizada com base em figuras e fórmulas que as narrações imaginárias mobilizam,
alguns concluíram pela anulação de qualquer distinção possível entre ficção e história, já que
esta é, e não passa de, uma "fiction-making operation", segundo a expressão de Hayden
White. A história não traz mais (nem menos) um conhecimento verdadeiro do real do que o
faz um romance, é absolutamente ilusório querer classificar e hierarquizar as obras dos
historiadores em função de critérios epistemológicos indicando sua maior ou menor
pertinência para dar conta da realidade passada que é seu objeto:
"Tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como o que
elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão
inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas
contrapartidas na literatura do que na ciência."26
Os únicos critérios que permitem uma diferenciação dos discursos históricos provêm
de suas propriedades formais:
"Uma abordagem semiológica do estudo de textos permite-nos deixar de lado a
questão da confiabilidade do texto como testemunha de eventos ou fenômenos
extrínsecos a ele, passar ao largo da questão da `honestidade' do texto e sua
objetividade, e ver seu aspecto ideológico mais como um produto (seja de
interesse próprio ou de interesse do grupo, seja de impulsos conscientes ou
inconscientes) do que como um processo (...) Isto significa deslocar o interesse
hermenêutico do conteúdo dos textos sob investigação para suas propriedades
25
Thomas Laqueur, Making sex: body and gender from the Greeks to Freud (Cambridge, Mass., Harvard
University Press, 1990).
26
Hayden White, Tropics of discourse, op. cit., p. 82.
Contra uma tal abordagem ou um tal shift, é preciso lembrar que a ambição de
conhecimento é constitutiva da própria intencionalidade histórica. Ela funda as operações
específicas da disciplina: construção e tratamento dos dados, produção de hipóteses, crítica e
verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu
objeto. Mesmo que escreva de uma forma `literária", o historiador não faz literatura, e isto
pelo fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em relação
ao passado do qual ele é vestígio. Como escreve Pierre Vidal-Naquet,
"O historiador escreve, e essa escrita não é nem neutra nem transparente. Ela se
molda sobre as formas literárias, até mesmo sobre as figuras de retórica. (...)
Que o historiador tenha perdido sua inocência, que ele se deixe tomar como
objeto, que se tome ele próprio como objeto, quem o lamentará? Resta que se o
discurso histórico não se ligasse, através de quantos intermediários se queira,
ao que chamaremos, na falta de nome melhor, de real, estaríamos sempre
dentro do discurso, mas este discurso deixaria de ser histórico."28
27
Hayden White, The content of form, op. cit., p. 192-193.
28
Pierre Vidal-Naquet, Les assassins de la mémoire. Un Eichamann de papier et autres études sur le
révisionisme (Paris, La Découverte, 1987), p. 148-149.
29
Anthony Grafton, Forgers and critics: creativity and duplicity in Western scholarship (Princeton, Princeton
University Press, 1990).
30
Julio Caro Baroja, Las falsificaciones de la historia (en relación con la de España) (Barcelona, Saix Barral,
1992).
guerra céptica" que recusa à história toda possibilidade de dizer a realidade que foi e de
separar o verdadeiro do falso.31
Entretanto, não é, ou não é mais, possível pensar o conhecimento histórico, instalado
na ordem do verdadeiro, nas categorias do "paradigma galileano", matemático e dedutivo. O
caminho é portanto forçosamente estreito para quem pretende recusar, ao mesmo tempo, a
redução da história a uma atividade literária de simples curiosidade, livre e aleatória, e a
definição de sua cientificidade a partir unicamente do modelo do conhecimento do mundo
físico. Em um texto ao qual é sempre preciso voltar, Michel de Certeau formulou esta tensão
fundamental da história. Ela é uma prática "científica", produtora de conhecimentos, mas uma
prática cujas modalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos
constrangimentos que lhe impõem o lugar social e a instituição de saber onde ela é exercida,
ou ainda das regras que necessariamente comandam sua escrita. O que também pode ser dito
de maneira inversa: a história é um discurso que aciona construções, composições e figuras
que são as mesmas da escrita narrativa, portanto da ficção, mas é um discurso que, ao mesmo
tempo, produz um corpo de enunciados "científicos", se entendemos por isso "a possibilidade
de estabelecer um conjunto de regras que permitem `controlar' operações proporcionais à
produção de objetos determinados".32
O que Michel de Certeau nos convida a fazer aqui é pensar no específico da
compreensão histórica. Em que condições se pode considerar coerentes, plausíveis,
explicativas, as relações instituídas entre os índices, as séries e os enunciados que a operação
historiográfica constrói, e, de outro lado, a realidade referencial que eles pretendem
`representar "adequadamente? A resposta não é fácil, mas é certo que o hisforiador tem por
tarefa oferecer um conhecimento apropriado, controlado, sobre a "população de mortos
-personagens, mentalidades, preços" que são seu objeto. Abandonar essa intenção de verdade,
talvez desmesurada mas certamente fundadora, seria deixar o campo livre a todas as
falsificações, a todas as falsidades que, por traírem o conhecimento, ferem a memória. No
exercício de seu ofício, cabe aos historiadores serem vigilantes.
Nota: Este texto foi lido por Roger Chartier no Seminário "CPDOC 20 Anos". A tradução é
de Dora Rocha.
31
Carlo Ginzburg,"Prefácio" a Lorenzo Valla, La donation de Constantin, texto traduzido e comentado por J. B.
Giard (Paris, Les Belles Lettres,1993), p. IX-XXI (citação p. XI).
32
Michel de Certeau, "L'opération historiographique", em L'Ecriture de I'histoire, op. cit., p.63-120.