Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Do Abrigo Ao Acolhimento Importância Do Vínculo Nos Cuidados Institucionais
Do Abrigo Ao Acolhimento Importância Do Vínculo Nos Cuidados Institucionais
institucionais
INTRODUÇÃO
1
implicações práticas poderão advir deste fato? Esta a reflexão que gostaria de
propor no presente texto.
Ao se utilizar o termo abrigo, a primeira noção que nos vêm à mente refere-se
à dimensão física deste espaço. De acordo com Antônio Houaiss, a primeira
acepção do termo é “local que serve para abrigar”. Apenas por extensão ou
figurativamente, o termo assume a acepção de “tudo aquilo que possa
significar amparo ou acolhimento”.
2
psíquico, os primeiros anos de vida são o fundamento para todo o
desenvolvimento posterior. Será pelas experiências nesses primeiros tempos e
em estreita relação com um adulto que a criança configurará uma auto-
imagem, estabelecerá as bases para futuras vinculações afetivas, definirá seus
mecanismos de defesa preferenciais, enfim se organizará psiquicamente.
Se temos a sorte de contar com esse forte vínculo nos primeiros tempos da
vida, isso nos capacita a suportar melhor as dificuldades e percalços que a vida
nos impõe. Tecnicamente denominamos essa capacidade de resiliência, ou
capacidade de resistir. Ora, a realidade das entidades de acolhimento nos
coloca a tarefa de lidarmos com crianças que, ou muito cedo perderam essa
vinculação primária, ou se tratava de vínculo marcado pela fragilidade ou
inadequação.
3
A CONTRIBUIÇÃO DE RENÉ SPITZ1
1
René Spitz (1887-1974), foi, talvez, o pioneiro na utilização da observação direta como modo de
investigação em psicanálise. Suas refinadas observações que se tornam sistemáticas a partir de 1935,
permitiram-lhe demonstrar “como o crescimento e o desenvolvimento do setor psicológico são
essencialmente dependentes do estabelecimento e progressivo desdodramento das relações objetais,
cada vez mais significativas, isto é das relações sociais” (O primeiro ano de vida, São Paulo- Martins
Fontes, 2ª Ed. 1998)
2
Spitz, R. op.cit- pg 109
4
“ Sem dúvida, o fator mais importante para tornar a criança capaz de construir
gradualmente uma imagem coerente de seu mundo advém da reciprocidade
entre mãe e filho. [..] Esta forma muito especial de interação cria para o bebê
um mundo exclusivo que é bem dele, com um clima emocional específico. É
este ciclo de ação e reação que torna o bebê capaz de transformar
gradualmente os estímulos sem significado em signos significativos” (Spitz, R.
op.cit- pg 43)
3
Para aprofundamento sobre o tema, imprescindível a leitura da obra básica de Spitz anteriormente
citada.
5
mais fácil ao adulto reagir de modo sensível às mudanças apresentadas pelo
bebê à medida de seu desenvolvimento. No ambiente de cuidados coletivos,
como é o caso das entidades de acolhimento, os profissionais deverão apoiar
sua sensibilidade no conhecimento sobre os diferentes estágios- levando em
conta não apenas as manifestações típicas dos mesmos- mas também os
desafios com os quais o bebê está lidando e as possíveis conseqüências
negativas que mudanças ambientais aleatórias e arbitrárias podem ter sobre o
bem-estar e desenvolvimento da criança. Por essa razão, é importante levar
em conta que:
4
Aqui temos em referência os trabalhos de Donald Winnicott sobre a experiência de si como um ser em
continuidade
6
Spitz foi o primeiro a dar importância aos efeitos, que podem ser desvastadores
e irreversíveis, da ausência ou insuficiência de cuidados de qualidade nos
primeiros anos de vida. No que se refere à inadequação da relação mãe-bebê,
ele distingue seis categorias:
5
O que nos permite colocar Spitz como um dos precursores da abordagem psicossomática. Para citar
apenas um dos autores contemporâneos mais destacados no campo das desordens psicossomáticas-
Léon Kreisler-, vemos em sua obra , a seguinte declaração ao falar das crianças mais afetadas por graves
distúrbios psicossomáticos: “ Essas personalidades mal-organizadas resultam quer de condições afetivas
defeituosas, contínuas e prolongadas- a permanência de uma relação vazia- quer de circunstâncias
marcadas pela descontinuidade. Esta remete às rupturas reiteradas da relação entre a criança e sua
família”- in A nova criança da desordem psicossomática , São Paulo, Casa do Psicólogo, 1999- (pg. 17),
7
bebê. Nessa instituição os bebês eram amamentados até o 3º mês de vida por
suas próprias mães ou, na impossibilidade destas, por mães substitutas. O
desenvolvimento físico e emocional desses bebês, até os 3 meses, era
compatível com o da população em geral. Mas, após esses 3 meses, o cenário
de cuidados mudava dramaticamente. A descrição que nos faz Spitz é
desoladora:
8
As observações de Spitz constituíram-se em base firme sobre a qual outros
pesquisadores puderam prosseguir e aprofundar nossa compreensão sobre os
efeitos da qualidade da vinculação. Dentre esses autores, destaca-se John
Bowlby, do qual falaremos a seguir
6
Bowlby, J. – Apego e perda: vol 1- A natureza do vínculo; vol 2: Angústia e raiva; vol 3: luto – São Paulo-
Ed.Martins Fontes, 3ª Ed. 2002
9
Diversos países participaram da pesquisa: França, Holanda, Suécia, Suiça,
Reino Unido e os Estados Unidos. A despeito da ampla variedade de
pesquisadores e da independência com que conduziam suas pesquisas, foi
notável o grau de concordância em seus resultados que deixaram claro que,
“quando uma criança é privada dos cuidados maternos, seu desenvolvimento
sempre é retardado- física, intelectual e socialmente- e podem aparecer
sintomas de doença física e mental”7 E, ainda mais grave, os estudos de
acompanhamento longitudinal demonstraram que em alguns casos os danos
mostraram-se irreversíveis. Fatores como a idade da criança, a duração da
separação e, especialmente, o grau de privação, são determinantes nos efeitos
sobre a criança, tanto em grau, quanto em sua persistência. Como regra geral,
Bowlby nos adverte que “em primeiro lugar, temos que reconhecer que separar
da mãe uma criança de menos de três anos é coisa muito séria, que só deve
ser empreendida por boas e sólidas razões e, quando realizada, deve ser
planejada com grande cuidado” (op.cit pp 8).
7
Bowlby, J.- Cuidados maternos e saúde mental- São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2002, pg. 12
10
uma grave cisão nas relações mãe-filho durante os primeiros três anos de vida,
e esta tinha se tornado um ladrão contumaz (op. cit p. 31)
Toda a literatura científica sobre o tema nos leva a concluir, sem qualquer
dúvida, sobre os efeitos negativos de longa duração, talvez mesmo
irreversíveis, da privação ou carência em relação aos cuidados maternos.
Contudo, o que fazer naqueles casos em que, precisamente aquela ou aqueles
que deveriam ser fonte de segurança se tornam o principal fator de ameaça à
criança? Como suprir a função estruturante que, em geral, se encontra
associada à mãe? Essa resposta, será no modelo de atendimento promovido
pelo Instituto Lóczy, em Budapeste, que a encontraremos.
8
Em 1968 a OMS realizou pesquisa com 100 jovens (entre 13 e 22 anos) que foram acolhidos em Lóczy
no primeiro ano de vida. Em nenhum dos indicadores (nível de escolaridade; sucesso profissional;
autonomia; capacidade de estabelecer relações afetivas duradouras; capacidade de exercerem papéis
parentais) esses adultos tiveram resultados significativamente diferentes que adultos criados
exclusivamente em suas famílias. No Brasil, não temos pesquisa com este escopo. As trajetórias de vida
que temos acompanhado nos levariam a arriscar que os resultados dos ex-abrigados mostrariam
dramáticas diferenças. Essa a dura realidade que cabe a todos nós procurar modificar!
11
As condições essenciais ao bom desenvolvimento da criança são (1)
estabelecimento de uma relação afetiva de qualidade com a criança e (2)
propiciar-lhe as condições para explorar livremente, tanto o mundo como a si
mesmo, de acordo com seus interesses e seu ritmo. Essas duas condições se
conjugam e se complementam. A criança, para poder explorar o mundo de
forma criativa e autônoma, deve experimentar uma relação afetiva com um
adulto de referência. É isso que lhe possibilitará uma disponibilidade interna
para explorar o mundo. Havendo atenção para essas condições, as chances de
que a criança venha a se organizar de forma autônoma, confiante e saudável
são maiores.
12
uma relação na qual a educadora se encontre psiquicamente disponível à
criança da qual cuida.
Com os bebês, por exemplo, deve-se reconhecer que os momentos das trocas
de fralda, banho e alimentação são especialmente propícios para o
estabelecimento de um vínculo caloroso e singularizado. Nesses momentos, a
profissional deve envolver o bebê com sua voz, seu olhar, suas mãos. Deve
descrever para a criança tudo o que lhe é feito. Da mesma forma, tudo que a
própria criança faz, qualquer gesto, sorriso ou olhar, deve ser valorizado pela
educadora. Ao tocar a criança, deve fazê-lo de modo delicado e suave criando
um ambiente estável, tranqüilo, pacificador. Nesses momentos, o que importa
não é o ritmo do adulto, mas sim o ritmo da criança.
Winnicott dizia que uma das sensações mais angustiantes para um bebê se
traduz pela sensação de estar caindo. Para dar à criança a sensação de
segurança e continência, nunca deve deixá-la “solta”. Pode-se evitar isso
mantendo sempre pelo menos uma das mãos apoiando o corpo do bebê.
Agindo assim, favorece-se que o bebê fique alerta, atento, ativo, pronto para a
interação.
O banho não é apenas uma limpeza do corpo. Deve ser também um banho de
linguagem e uma experiência de prazer. Os bebês vivem, aprendem, sentem e
se expressam, por meio de seus corpos. Nos primeiros anos de vida, as
necessidades fisiológicas e psicológicas não estão separadas. Guiar-se por
essa compreensão nos cuidados diários com a criança faz uma profunda
diferença na qualidade da relação e previne que essa relação venha a ficar
automatizada.
13
Uma função, para além da higienização corporal, está presente no momento do
banho: este pode ser uma oportunidade para o desenvolvimento de operações
psíquicas que permitirão a previsão e a organização dos estímulos. E como a
educadora participa desse processo tão fundamental? De modo tão banal, que
precisamente por essa banalidade, corre o risco de não ser suficientemente
valorizado: em primeiro lugar, a educadora deve permitir que a criança registre
o que vai acontecer no momento seguinte, mostrando-lhe os utensílios de que
se vale para banhar a criança, (sabonete, shampoo, etc); em segundo lugar,
descrevendo o que está fazendo naquele momento e que diz respeito à
criança. É a repetição desses gestos que irá possibilitar à criança fazer o
registro do que lhe ocorre e se organizar a partir disso. É preciso regularidade
nos cuidados para que se criem ritmos de funcionamento, se eles forem
aleatórios dificultarão para a criança a sua organização interna. Por isso a
importância de pouco a pouco se estabelecerem rotinas nos cuidados (hora do
banho, hora da papinha, etc) É assim que o bebê vai gradualmente
diferenciando os momentos do dia e à essa organização externa vai se
configurando igualmente uma organização interna, vale dizer, uma organização
psíquica.
14
Ao se apontar a necessidade de regularidade, constância e previsibilidade nos
cuidados, não se pretende defender a noção de que o ideal será que a criança
fique com apenas um único profissional, no sistema do educador residente (ou,
em uma denominação que, felizmente, encontra-se quase que abolida, mães
sociais). É que a essas necessidades de regularidade e previsibilidade deve-se
adicionar outra: a disponibilidade psíquica e emocional por parte do educador.
A capacidade de manter essa disponibilidade, mesmo residindo no local de
trabalho, é para bem poucos. Não se deve tomar a exceção pela regra.
15
graus de autonomia são amplamente variados em função do ponto de
desenvolvimento em que a criança se encontra, mas em qualquer tempo da
vida a atitude do adulto poderá favorecer ou, ao contrário, inibir esse processo.
16
que, historicamente, era guiado apenas pelo senso humanitário, em uma
perspectiva assistencialista.
17
Ainda na perspectiva de valorização das relações humanas no âmbito da
entidade, as “Orientações...” enfatizam a importância do momento de chegada,
indicando algumas atitudes por parte da equipe: o respeito, o acolhimento
afetuoso, etc. Dessa forma, desde o primeiro momento deve-se procurar tornar
o ambiente institucional um ambiente de acolhimento no qual a
criança/adolescente possa se sentir seguro e confiante.
SOBRE A AUTORA:
18
famílias por determinação judicial e vivem em entidades de acolhimento. Em
muitos casos, intervenções preventivas no âmbito familiar poderiam ter evitado
esse afastamento. Berço da Cidadania, em sua atuação articulada com a rede
de proteção social e de garantia de direitos, tem contribuído para modificar
essa dramática realidade em duas frentes principais: na prevenção do
abrigamento e na melhoria dos cuidados de atendimento nos abrigos. Nesse
sentido, a instituição é representante do Distrito Federal no principal fórum de
discussão nacional sobre o tema, o GRUPO DE TRABALHO NACIONAL PRO-
CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA, no âmbito do qual tem proferido
palestras e capacitações em diversas cidades do Brasil, sempre procurando
demonstrar que os cuidados nos abrigos devem ser reparadores da violência
sofrida pela criança e, não, uma repetição desta. No campo especifico da
primeira infância, integra a Rede Nacional Primeira Infância, tendo elaborado o
capítulo referente aos cuidados especiais nos abrigos para o Plano Nacional da
Primeira Infância.
19