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BACHARELADO EM TEOLOGIA

DISCIPLINA:
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

PROFESSOR:
Profª. Vívian Nascimento

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.1


VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE1
INTRODUÇÃO
As narrativas de vocação do Antigo Testamento são desafiadoras, pois relatam experiências profundas
com Deus. Essas experiências direcionam a existência de homens que assumem uma postura, às vezes,
assustadora, diante da sua espiritualidade.
Falar de espiritualidade neste início de século não é tarefa fácil para ninguém, considerando ser um
momento na história no qual aflora, na humanidade, uma grande necessidade de compreensão mais clara de seu
sentido e uma busca efetiva dessa vivência.
Outro elemento, não muito fácil de ser trabalhado, é a vocação. Queremos pensar vocação, como vocação
religiosa, partindo da experiência pessoal com a divindade, sendo essa experiência desafiadora do cumprimento
de uma missão.
Assim, gostaríamos de ler cinco textos de momentos distintos da história da revelação, que testemunham
as experiências de cinco diferentes personagens de grande importância na tradição judaico-cristã.
Escrever sobre espiritualidade, no ambiente cristão, implica em retornar a uma leitura das Escrituras, da
Bíblia, pois essa é a base de toda a teologia cristã, como fonte de revelação. Podemos ir mais além e afirmar
que escrever sobre relatos de experiências de personagens bíblicos significa, basicamente, transcrevê-las e
comentá-las. Para tanto, devemos usar os instrumentos de que dispomos, ou seja, desenvolver uma leitura
exegética, uma visão teológica que assume uma postura hermenêutica implícita ou explícita. Os textos, as
narrativas devem ser nosso ponto de partida e, ao mesmo tempo, nosso porto seguro, lembrando, porém, que
eles são dinâmicos e, por isso, comunicam ainda hoje com grande força de presença e significado. Devemos,
entretanto, procurar deixar que o texto nos fale, como alguém que ouve um amigo.
Não queremos entrar na discussão da história da redação desses textos, pois eles foram escritos - bem
possivelmente - após o período neles narrados, por isso tratam de uma visão retrospectiva, logo, interpretativa,
o que é basilar para toda a literatura bíblica. Mas isso só enriquece o valor hermenêutico do texto, tornado-o
mais significativo para nós hoje.
Trata-se das experiências de cinco grandes figuras eternizadas na literatura e na tradição judaico-cristã.
Um é considerado o grande legislador, Moisés (Ex 3.9-12).
Outro é um juiz, Gideão (Jz 6.11-24).
Os outros são profetas:
Isaías (6.1-13);
Jeremias (1.4-10)
e por fim Ezequiel (1-3), 'profeta do Exílio'.
Veremos essas cinco narrativas, que tratam da vocação e crise desses líderes, refletindo a espiritualidade
de cada um.
"Seria um erro interpretar estes relatos sob uma ótica meramente autobiográfica."' Esses textos
condensam a identidade do vocacionado em suas diversas dimensões, incluindo a dimensão representativa
diante do povo. Dessa forma, ele se torna uma espécie de paradigma.
Para melhor compreensão daquilo a que nos propomos neste texto, devemos estabelecer os limites da
abrangência dos conceitos de vocação e espiritualidade, proporcionando, assim, uma clareza maior.

1. Vocação
Ao usarmos o termo 'vocação', evocamos uma gama de sentidos entrelaçados, que transcendem, porém, o
aspecto religioso de nosso interesse aqui, pois 'vocação' estaria ligado ao 'ato de chamar', à tendência ou ao
talento de alguém no exercício de uma atividade específica. Mas, neste nosso texto, 'vocação' assume um
sentido mais restrito e bem mais específico, pois pensamos em vocação religiosa. Quando falamos em vocação

1
Extraído de: SOUSA, Ágabo B. de. Vocação e Espiritualidade no Antigo Testamento: compreendendo a espiritualidade a partir das
narrativas de vocação. Rio de Janeiro: JUERP, 2003.
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religiosa hoje, somos remetidos para um complexo de relações, o qual implica na pessoa do vocacionado, em sua
subjetividade, no contexto religioso em que está inserido e em suas exigências.
A tradição cristã ampliou a compreensão vocacional, entendendo ser todo cristão vocacionado e enviado,
em um sentido especial, como portador das Boas-Novas de Cristo.
A história da igreja vai nos mostrar que haverá uma diferenciação de 'vocação' dentro do contexto do
cristianismo, no qual podemos falar da vocação para o discipulado e da vocação "ministerial". Portanto, quando
falamos em vocação, pensamos - especialmente dentro do contexto do Antigo Testamento - no chamado de
Deus, no qual o ser humano é convocado a participar de seus planos e ações, e desafiado, a partir de sua
existência, a estar a serviço desse chamado.
Destacamos, então, alguns elementos importantes no contexto da vocação.
Primeiramente está a divindade. A divindade é quem chama, desafia o ser humano ao cumprimento de
sua vontade. Neste sentido podemos compreender o 'chamado' como aquilo que opera essa vontade na histó-
ria.
Outro elemento importante, aqui, é o ser humano no contexto de sua existência. Com isso, pensamos no
ser humano concreto, cuja existência é tocada pela presença da divindade, fazendo-o compreender sua
vontade e levando-o ao cumprimento de uma missão que a efetive na história. Assim, tocamos em um ponto de
extrema importância, mas, ao mesmo tempo, muito delicado, que é o subjetivismo do "chamado". O chamado
da divindade se dá na existência, no "ser aí", ou seja, no mais profundo do ser, enquanto ser histórico.
Quando falamos em vocação, nesse sentido, temos que nos limitar ao testemunho, pois só o testemunho
nos possibilita conhecer o chamado da divindade a alguém para o cumprimento de uma missão ou ministério.
Assim sendo, os relatos de vocação do Antigo Testamento se tornam de grande valor para
compreendermos o debruçar-se de Deus na história do povo de Israel, conseqüentemente da humanidade.
Dessa maneira, os relatos deixam de ser biografias particulares e passam a ter um sentido maior, pois
testemunham a vontade de Deus para a história da humanidade e da missão do chamado no cumprimento
dessa vontade.
Com isso, ressaltamos que a vocação - especialmente no Antigo Testamento - não tem sua origem na
motivação política, sociológica, ética ou psicológica, mesmo sendo a realidade histórica objeto da vocação. Ela
está fundamentada no mistério da livre ação de Deus em direção ao ser humano, por isso o testemunho se torna
um elemento indispensável para sua compreensão.

2. Espiritualidade
É importante termos em mente o que queremos destacar com o termo espiritualidade, considerando ser
ele muito usado no contexto teológico e que por isso traz consigo muitas implicações.
O termo no hebraico, bem como nas línguas semíticas de modo geral, tem como base de sentido, para o
que nós chamamos de espírito, a ideia de: "o ar em movimento". Mas essa ideia levada ao ser humano,
especialmente no que diz respeito ao Espírito de Deus no homem, está ligada à experiência de respirar, é o que
dá vida à vida. É o poder dinâmico da vida.
A tradição antiquotestamentária manteve a ideia de 'Espírito' e de 'Espiritual' ligada a Deus, ressaltando
os efeitos do seu poder dinâmico na vida do ser humano. Assim, a espiritualidade deixa de ser um aspecto da
vida, como se o espírito fosse um substrato inorgânico, que departamentaliza o ser, e passa a ser a vida da vida,
ou seja, o poder dinâmico que liga harmonicamente, unificando a essência com a existência.
A espiritualidade seria, portanto, viver no envolvimento com o mais profundo da vida. Então, a experiência
com o divino, enquanto criador da vida, se torna, na existência, o componente mais profundo da própria vida,
pois une os elementos da essência com os da existência. Dessa maneira, um encontro com Deus tem este
caráter eminentemente espiritual.
Antes de extrairmos os textos para nossa observação, gostaríamos de estabelecer alguns princípios
norteadores para que possamos ser mais claros em nossa intenção.
(1) Espiritualidade é algo do íntimo do ser de cada um, por isso, particular, próprio do 'indivíduo', mas, por outro
lado,

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(2) ela é vivenciável, ou seja, se expressa na existência; assim, partilhamo-la no nosso dia-a-dia e, nesse caso,
ela deixa de ser intimista. Embora se mantendo particular, torna-se expressa e, por isso, transcende o nosso
íntimo. A espiritualidade tem também, portanto, um aspecto fenomenológico natural da existência, que se
concretiza nas formas de expressão religiosa, enquanto expressão da própria existência, que podem ser
institucionalizadas ou não.
Temos, então, que pensar na espiritualidade nessas duas perspectivas, lembrando que o caráter íntimo da
espiritualidade de outrem só nos chega ao conhecimento pelo testemunho enquanto que o aspecto
fenomenológico, pela experiência.
A relação com a divindade, como elemento fundamental da vocação, nos obriga, necessariamente, a olhá-
la no contexto da espiritualidade, destacando que ela, conforme temos nas narrativas do Antigo Testamento,
envolve toda a existência.
Nossa visão se voltará, portanto, para o testemunho da experiência profunda do "vocacionado" com a
divindade que o vocaciona, estabelecendo um rumo em sua existência.

Capítulo I
Características das narrativas de vocação
Para estabelecer uma "espécie ou género" (Gattung) literário, devemos considerar as características
usadas no texto, uma vez que todo escritor, necessariamente, se serve de um "genero" literário para transmitir
seu pensamento. Devemos, contudo, ressaltar que o aspecto formal da linguagem, pura e simplesmente, não
estabelece o "genero"; para isto, é necessário observar, além dos elementos formais, todo um conteúdo de
pensamento e motivação. Assim, para identificarmos as "narrativas de vocação", deveremos considerar esses
dois aspectos.
Podemos determinar o que chamamos de "Narrativa de vocação", portanto, observando os textos sob o
aspecto da forma e o aspecto do conteúdo, ou temática.
O aspecto formal olha a estrutura do texto, procurando identificar elementos literários característicos, para
estabelecer uma classificação que nos possibilite denominar a narrativa como "narrativa de vocação". O aspecto
temático olha o conteúdo do texto, identificando o tema, como sendo uma convocação divina para o exercício de
uma missão específica, colocando o vocacionado a serviço da divindade, no cumprimento de sua palavra.
Podemos, então, dizer que, do ponto de vista temático, chamamos de narrativa de vocação, no Antigo
Testamento, aquelas que relatam um encontro único e pessoal entre Javé, ou um representante seu, e o próprio
vocacionado, estabelecendo um diálogo onde há lugar para hesitação, objeção por parte deste e argumento da
parte do divino, levando-o à aceitação da missão, ou, então, ao voluntariado para o cumprimento da mesma.
A missão estaria ligada à palavra de Javé dirigida a uma classe de endereçados, que estabelece a
abrangência da atuação do vocacionado. A motivação de uma narrativa como esta seria a legitimação da
autoridade histórica do vocacionado, no cumprimento de sua missão, atribuindo-lhe um valor divino que
envolveria a sua razão de ser.
Tendo isso como ponto de partida, podemos destacar alguns textos que atenderiam a esse pressuposto.
Esses seriam Êxodo 3; Juízes 6; Isaías 6; Jeremias l e Ezequiel 1-3.
Alguns exegetas já observaram que nesses textos temos, basicamente, dois tipos de narrativas de
vocação. De um lado, teríamos as narrativas de Moisés, Gideão e Jeremias, cuja estrutura pode ser colocada
em paralelo; e, do outro lado, teríamos Isaías e Ezequiel.
É necessário destacar, porém, que todas essas narrativas têm elementos comuns extremamente
importantes para a identificação do texto como "narrativa de vocação". Esses elementos são os verbos enviar e
ir, que regem as narrativas, estabelecendo a missão, dando ao comissionado um caráter especial que, nesse
contexto, chamamos de vocação, considerando ser a divindade o sujeito do verbo enviar, sendo, assim, aquele
que comissiona.
Observando os textos onde encontramos essas "narrativas", podemos perceber uma identidade regida
pelo uso desses verbos que denotam o comissionamento. Destacamos abaixo o uso destes verbos:

Livro Êxodo Juizes Isaías Jeremias Ezequiel

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Personagens (Moisés) (Gideão) (Isaías) (Jeremias) (Ezequiel)

Texto bíblico 3.10-12 6.14b 6.8 1.7 2.3,4

Verbo "Eu te enviarei" "não te envio eu" "A quem enviarei...?" "...eu te enviar" "eu te envio..."

Texto bíblico 3.10 6.14a 6.9 1.7 3.1

Verbo "... vai..." "Vai..." "Vai..." "...irás" "e vai..."

Esses elementos não são suficientes para estabelecer um genero literário, mas, por certo, mostram uma
identidade literária formal, intimamente ligada ao conteúdo ou tema, que nos possibilita reconhecer uma classe
específica de narrativas.
Schmidt observa a identidade estrutural das "narrativas de vocação" de Moisés, Gideão e Jeremias,
procurando mostrar que a construção narrativa segue um sistema:

Comissão Êxodo 3. 10 Juizes 6.14 Jeremias 1.5

Objeção Êxodo 3. 10 Juizes 6.15 Jeremias 1.6

Réplica Êxodo 3 1.2 Juizes 6. 16 Jeremias 1.7-8

Sinal Êxodo 3. 12 Juizes 6. 17-22 Jeremias 1.9

A "comissão" e o "sinal" são presentes, também, nas narrativas de vocação de Isaías e Ezequiel.
Em Ezequiel, ficam claros os aspectos genéricos e específicos da comissão, destacados por Schmidt na
narrativa da vocação de Moisés. Ele destaca que Moisés recebe um comissionamento geral, regido pêlos verbos
enviar e ir, ou vir,, e um comissionamento específico, regido por um imperativo, que indica a missão enquanto
tal; no caso de Moisés, temos o imperativo do verbo guiar. Um paralelo pode ser estabelecido com Ezequiel, que
recebe o comissionamento de maneira genérica em 2.3-4: "... eu te envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes
..." O "comissionamento específico" vem em 3.4: "vai, entra na casa de Israel". Também em Isaías podemos
perceber o mesmo paralelo, sendo o "comissionamento específico" regido pelo imperativo do verbo em 6.10 "...
engorda o coração deste povo..."
Existe, ainda, o elemento do sinal que, nas narrativas de vocação profética, ou seja, em Isaías, Jeremias
e Ezequiel, aparece relacionado com a boca. Isaías é tocado por uma brasa na boca', Jeremias recebe a palavra
na boca, colocada pela mão de Javé, e a Ezequiel é dado o livro na boca para comer. Esse elemento deve ser
considerado algo característico das narrativas de vocação profética, pois a boca pode ser vista como instrumento
imprescindível no cumprimento da missão profética.
Essas observações já nos possibilitam ver a proximidade formal entre as narrativas de vocação de Isaías
e Ezequiel, e as de Moisés e Jeremias, que formam, com a de Gideão, um tipo de narrativa de vocação.
Podemos observar a estrutura formal das narrativas de vocação de Isaías e Ezequiel, chamando a
atenção para os elementos distintos das anteriores, como a datação e visão, que precedem a vocação e
preparam o leitor para algo especial.

Datação Isaías 6. I a Ezequiel 1.1-2


Visão Isaías 6.1b-4 Ezequiel 1.4-28
Sinal Isaías 6.6-7 Ezequiel 2.8 a 3.3
Comissão Isaías 6.8-10 Ezequiel 2.3-4 e 3.4-11

Em Isaías e Ezequiel, não temos o elemento da "objeção", e o "sinal" precede a comissão. Em Ezequiel,
a comissão é claramente dividida em dois momentos, como dissemos acima, ficando o sinal entre esses dois
momentos.

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Há condições, assim, de delimitar nossas observações aos textos que tratam da vocação de Moisés (Ex
3.9-11), Gideão (Jz 6.11-21), Isaías (Is 6), Jeremias (Jr 1.4-10) e Ezequiel (Ez 1-3), considerando serem esses
textos um gênero literário específico que cuidamos chamar de "narrativas de vocação".
Não podemos deixar de observar que temos uma identidade maior entre os profetas, considerando que
a vocação de Moisés e a de Gideão não são proféticas, mesmo que a tradição tenha atribuído àquele esse título
honorífico (Dt 34.10), o que não acontece com este.

Capítulo II
A vocação de Moisés - (Ex 3.9-12)
O texto de Êxodo 3 é um texto de grande complexidade literária, impossibilitando-nos de tratar dos seus
problemas diversos. Temos, nesse texto, vários temas como:
a) a teofania da sarça;
b) vocacionamento de Moisés;
c) a promessa da libertação por parte do Egito;
d) a revelação do nome de Javé; e
e) a identificação de Javé com o Deus dos pais. Procuraremos nos limitar ao aspecto do
vocacionamento, só tratando de outros temas quando necessário para o esclarecimento de algo
ligado ao nosso interesse central.
O texto de nosso interesse particular se encontra em Êxodo 3.9 -12, que os exegetas colocam na
tradição Eloísta. Não podemos deixar de considerar o fato de que, no contexto da composição literária, a
narrativa de vocação de Moisés pressupõe a experiência teofânica da sarça, que interrompe seu cotidiano. Deus
é visto como o Deus que se manifesta na história; é o Deus do monte Horeb, é o Deus dos pais. A organização
literária de Êxodo 3.9 -12 estabelece esses pressupostos para a compreensão da narrativa de vocação, onde
Deus não é mais apresentado.
Êxodo 3.9-12 é aberto por uma palavra que, ao mesmo tempo, introduz um novo pensamento, mas o
mantém ligado ao anteriormente apresentado, "e agora...". Assim, temos um elemento literário que nos garante
acesso ao todo da narrativa. Dessa maneira, nos é proposta uma leitura que pode pressupor o anterior como
parte implícita na narrativa.
Veremos o texto, seguindo sua própria apresentação, dividindo-o em quatro partes, considerando a
palavra introdutória no verso 9, que fundamenta o mover de Deus em direção a Moisés, sua missão e sua
reação a esta, quando o diálogo é estabelecido, e a reação de Javé com a promessa de sua companhia.

1. Palavra introdutória (Ex 3.9)


“E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim; e também tenho visto
a opressão com que os egípcios os oprimem. "
Como dissemos acima, a palavra do verso 9 pressupõe que Deus já seja conhecido. Mesmo uma leitura
com base na teoria das fontes não terá dificuldades com isso, pois em 3.1b temos a expressão "...o monte de
Deus"; em 4b, temos o chamado e a resposta de Moisés e, no verso 6, a apresentação de Deus como o Deus
dos pais.
A palavra introdutória apresenta a Deus comovido pelo sofrimento dos 'filhos de Israel'. Essa afirmação
lembra a experiência de Moisés que, vendo o egípcio "ferir" um hebreu, parte em defesa deste (Ex 2.11). Agora,
o sofrimento do povo chega até a Deus em forma de clamor; esse sofrimento é consequência da opressão dos
egípcios, que é vista por ele.
Esta introdução apresenta a motivação para o vocacionamento. A motivação é histórica: há um
incómodo com o clamor e com a opressão, pois estão em uma relação direta. Moisés deveria ser capaz de

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compreender aquela motivação, primeiro, por causa de sua própria experiência, ao ver-se incomodado com o
sofrimento real de um dos hebreus, e, também, pelo fato de ser Deus quem fala, o Deus dos pais (3.6). Não se
trata de um Deus estranho, uma vez que Moisés morava com um sacerdote de Midiã, que, por certo, vivenciava
sua religiosidade de maneira intensa. Mas esse Deus era identificado como Deus dos pais. O Deus do monte era
o Deus dos pais. Assim, nessa experiência, a história de sua vida não é negada, mas afirmada. O que o
incomodou e, como consequência, o levou ao deserto, incomoda a Deus, que se move em direção a ele.

2. A missão (Ex 3.10)


"Agora, pois, vai e eu te enviarei a Faraó, para que tires do Egito o meu povo, os filhos de Israel. "
Considerando que a história de opressão e sofrimento é clara e tem determinado a existência desse
personagem, Deus agora lhe dá uma missão. Mudar a história é sua missão.

Moisés é enviado a Faraó para tirar o seu povo, os filhos de Israel, do Egito. De certo modo, é uma
repetição da experiência particular do passado, em dimensões bem maiores. Já houve um preparo que justifica a
comissão. Afinal, eleja compreendeu o sofrimento do povo, a opressão dos egípcios e experimentou a rejeição
dessa realidade.
Há dois imperativos: um é "vai", o outro é "guia". A missão é dividida em duas partes; uma delas é ir a
Faraó como enviado de Deus. Faraó, que era a própria manifestação da divindade egípcia, agora deveria
receber um mensageiro do Deus dos oprimidos, daqueles que estavam debaixo de seu poder e força, tanto do
ponto de vista político quanto do sócio-econômico. Moisés está fora do Egito, que havia deixado por causa de
uma tentativa dessas - livrar um hebreu da opressão de um egípcio. Sua vida havia tomado novas dimensões,
ele fazia o trabalho que, outrora, fazia aquela que se tornara sua mulher: cuidar do rebanho do sacerdote de
Midiã. "Vai a Faraó" implica em um retorno; implica em voltar à sua história particular.
O outro aspecto da missão é guiar o povo, os "filhos de Israel", que Deus chama de meu povo, para fora
do Egito. Isso o remete à sua própria experiência, o que torna a missão ainda mais difícil, pois é o seu próprio
povo que o acusa de ter matado o egípcio (2,13-14). Ele fugira por causa das acusações dos hebreus, que o
rejeitaram como intermediário de um conflito. Assim, a missão representa, de certo modo, um reconstruir de sua
própria história. Se aqueles dois não o aceitaram como intermediário -o injustiçado mesmo se virara contra ele -
como irá o povo aceitá-lo como guia?
Moisés compreende esses dois aspectos da missão, bem como o seu sentido e, por isso, reage a esse
desafio olhando para si. Sua vivência e experiência anterior ficam compactadas em sua resposta.

3. A objeção (Ex 3.11)


"Então Moisés disse a Deus: Quem sou eu, para que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?"
Moisés relaciona a missão recebida com sua compreensão de si mesmo e rejeita, argumentando com
sua própria incapacidade.
A objeção de Moisés é dividida em duas partes. A primeira parece uma rejeição genérica - "quem sou
eu...". E como se ele não se compreendesse como o endereçado. A outra é mais específica "para que vá..."
cumprir estas duas ordens, ir a Faraó e tirar os filhos de Israel do Egito. Há uma compreensão de um despreparo
em sua própria existência. O vocacionado protesta contra Deus, procurando se livrar da missão que lhe é
apresentada. Nesse caso, temos um argumento que está baseado na compreensão de si mesmo como incapaz,
enquanto pessoa.
O desafio é bem maior do que ele poderia imaginar-se capaz de cumprir; está completamente fora de
suas forças e capacidade. Ele não havia sido incapaz de enfrentar a rejeição de dois hebreus e, por isso, fugira
para onde estava. Como poderia, agora, retornar de onde viera e refazer a história já vivida, que era marcada
pelo fracasso, em dimensões tão amplas, e torná-la uma história de sucesso? Isso seria completamente fora de
sentido. A pergunta "quem sou eu...?" tem um caráter retórico e é, claramente, negativa. De certo modo, esse
protesto é quase uma acusação, pois não cabe na sua vida um elemento como esse.
Os dois aspectos da missão, ir a Faraó e guiar o povo para fora do Egito, são destacados e negados.
Moisés não se vê capaz de nenhuma das duas atividades.

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4. A promessa (Ex 3.12)
"Respondeu-lhe Deus: Certamente eu serei contigo; e isso te será por sinal de que eu te enviei: Quando
houveres tirado do Egito meu povo, servireis a Deus neste monte. "
Seu protesto não fica sem resposta. Há um contra-argumento que não considera o protesto de Moisés.
Não há uma aceitação do protesto que possibilite o vocacionado a se livrar da missão. Afinal, não houve uma
consulta da parte de Deus a Moisés, mas um imperativo, uma ordem. Ele, tão somente, deveria cumprir sua
missão, e Deus seria com ele. Essa é sua garantia, sua segurança. O sinal consiste no cumprimento da missão.
O sinal não é uma garantia prévia, mas o próprio sucesso da missão.
A promessa, "eu serei contigo", é apresentada como pressuposto fundamental para o sucesso da
missão. O sucesso do empreendimento não estava na pessoa de Moisés, por isso seu argumento não foi aceito
como válido, uma vez que ele não estaria só, mas Deus mesmo estaria com ele, e isso seria a garantia do
cumprimento da ordem divina. Assim, é estabelecido um novo elemento na missão, uma vez que é mencionado
um lugar para o encontro de Deus com o povo, usando-se uma fala que se refere a Deus na terceira pessoa, e
não mais na primeira, ou seja, essa referência ao local de encontro não pertence à fala de Deus, mas à de outro
sobre ele. Há, ainda, uma mudança da segunda pessoa do singular para a segunda pessoa do plural. Mas, seja
como for, esse lugar do encontro com Deus é o "monte", o que nos remete para 3.1, onde é apresentado o
Horeb como "monte de Deus". Assim, Moisés refaria sua caminhada, voltando do Egito para o lugar onde estava,
mas, agora, como intermediário de sucesso, que venceria a opressão egípcia, não fugiria, mas traria seu próprio
povo consigo.

5. Concluindo
A narrativa de vocação de Moisés nos propõe uma experiência de espiritualidade inteiramente arraigada
na história. A experiência com Deus, preestabelecida na narrativa, é a experiência do santuário; o Deus da mon-
tanha é também o Deus dos pais, ou seja, da história, e isso é assustador para Moisés, que esconde seu rosto
para não ver esse Deus.
"... e Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus." Ex 3.6b.
Sua missão é de caráter político, libertar um povo. Mas é também um desafio a sua própria existência,
pois representa um retorno em sua história pessoal. Ele deveria reescrever sua própria história em uma
dimensão incomparavelmente maior e com sucesso. Sua capacidade não é colocada em questão pela
divindade, a limitação de seu ser é vencida pela presença de Deus, e a afirmação dessa presença é o sucesso
da missão. Em outras palavras, a afirmação da companhia de Deus é a garantia do cumprimento; neste sentido,
a limitação do vocacionado não tem valor decisório.
Há um desvio na perspectiva da questão, pois o problema não é visto a partir da limitação do
vocacionado, mas a partir daquele que vocaciona. O Deus da experiência de Moisés, na narrativa da vocação, é
o Deus que se move pelo sofrimento do povo contra a opressão de Faraó. Não é o Deus que assiste à história,
mas participa dela, na companhia de quem age, buscando mudar a história de opressão em história de
liberdade. Liberdade de servir a Deus "neste monte", ou seja, ali, onde ele se manifesta.
Temos, aqui, uma espiritualidade vivenciada no dia-a-dia, pois Deus rompe o cotidiano de Moisés e o
leva a um compromisso com a história, vocacionando-o para ser agente de mudanças que efetuaria na vida de
seu povo.

Capítulo III
A vocação de Gideão Jz 6.11-24)
A narrativa de vocação de Gideão pressupõe uma situação especial na história do antigo Israel. Já no
diálogo entre Gideão e o "Mensageiro de Javé" há uma menção aos acontecimentos anteriormente narrados.
Gideão responde: "Ai, senhor meu, se Javé é conosco, por que tudo nos sobreveio?" Esse "tudo" que
"sobreveio" é apresentado no início do capítulo. Há uma referência a ataques contínuos, especialmente no perío-
do da colheita, por parte de grupos nómades do deserto – midianitas, amalequitas e os filhos do oriente –, que já
haviam domesticado camelos, tornando-se velozes, e andavam em grandes bandos. Os saques contínuos

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contra os israelitas tinham levado Israel a uma grande crise económica e enfraquecido o poder de reação,
deixando-os praticamente entregues às forças desses nômades do deserto.
A situação tornou-se desesperadora, especialmente para a tribo de Manassés, em função da
localização, que possibilitava a esses saqueadores uma fuga rápida. A ameaça constante e a pobreza crescente
levaram os manassitas a usar de diversos artifícios para se livrar da ação devastadora dos nómades, uma vez
que, não somente atacavam as plantações para alimentar seus animais, mas também as reservas da colheita
para manutenção da tribo.
Estamos diante de um texto que localiza o personagem da narrativa de vocação no contexto do
sofrimento do povo ao qual ele pertence. Isso nos lembra a narrativa de Moisés, em cuja palavra introdutória
temos, também, como fundamento, o sofrimento do povo, e isso se torna ponto de partida para a sua vocação.
Próximo da narrativa da vocação de Moisés, esse texto relata a vocação de Gideão como um líder
militar, com a função de vencer a força de Midiã, livrando os israelitas dos constantes ataques.
O texto pode ser dividido em seis partes: o encontro com o mensageiro de Deus (Jz 6.11-12a); um
discurso introdutório (Jz 6.12b-13); a ordem (Jz 6.14), que apresenta sua missão; a objeção (Jz 6.15), ou seja,
sua resposta à ordem da missão; a promessa (Jz 6.16), onde há a réplica de Javé à objeção de Gideão e o sinal
(Jz 6.17-24), que leva ao reconhecimento do mensageiro de Javé e serve de elemento encorajador para o
cumprimento da missão.

1. Encontro com o mensageiro de Deus (Jz 6.11-12a)


"Então o mensageiro de Javé veio e sentou-se debaixo do carvalho que estava em Ofra
e que pertencia a Joás, abiezrita, cujo filho Gideão estava malhando o trigo
no lagar para o esconder dos midianitas. Apareceu-lhe então o mensageiro de Javé... "
Há alguns elementos, no início da narrativa, que nos chamam a atenção e que, mais tarde, no contexto
da história de Gideão, se tornam mais claros. Temos uma figura, que é chamada de "mensageiro de Javé" -
3
algumas traduções preferem "anjo de Javé" - e um santuário marcado, como era comum, por uma árvore. Esse
santuário ficava em Ofra, onde morava Gideão, portanto, no território de Manassés, não muito longe, ao sul de
Siquém. O Mensageiro de Javé se senta debaixo da árvore, o que legitimaria o santuário, uma vez que se trata
de manifestação teofânica. Não apenas o fato de sentar-se, mas o fato de ser apresentado no texto como
mensageiro de Javé, bem como o tipo de árvore - carvalho - é que denotam ser o lugar um santuário.
É apresentado então o outro personagem deste primeiro ato, Gideão, que está exercendo sua atividade
doméstica, normal para um jovem de sua época. É, porém, destacado o lugar do exercício dessa atividade. Ele
está batendo o trigo no lugar onde deveriam ser espremidas as uvas para a fabricação do vinho. Isso é um
artifício para esconder a produção, em caso de ataques, uma vez que os nómades não veriam restos de grãos
na pedra usada para bater o trigo, e a colheita de uva não coincidia com a colheita do trigo.
Temos, então, dois personagens devidamente apresentados, que agora se encontram. "Apareceu-lhe
então o mensageiro de Javé..." (6.12).
O leitor conhece o estranho que se dirige a Gideão como "mensageiro de Javé", mas a narrativa deixará
claro que Gideão não o reconhecerá como tal, até que tenha sido dado o sinal. Não é apresentado nada de
especial nesse encontro, muito pelo contrário, tudo parece seguir sua rotina de acontecimentos, completamente
comuns à época (+ l .200 a.C.). O "mensageiro de Javé" pode ser compreendido como um peregrino que pára
debaixo da árvore. De qualquer forma, ele é um desconhecido paraGideão. Este exerce sua atividade no
cuidado de proteger-se do perigo constante e iminente dos ataques que faziam parte de seu dia-a-dia.
Mesmo mencionando o santuário, o encontro se dá no trabalho, na busca pela manutenção. O encontro
acontece no contexto do cotidiano de Gideão.

2. Discurso introdutório (Jz 6.12b-13)


"E lhe disse: Javé é contigo, ó bravo guerreiro. Gideão respondeu: Ai,senhor meu, se Javé é conosco, por que
tudo nos sobreveio? E onde estão todas as suas maravilhas que nossos pais nos contaram dizendo: Não nos fez
Javé subir do Egito? Agora, porém, Javé nos desamparou e nos entregou na mão de Midiã."
O "estranho" se dirige a Gideão com um cumprimento, que não é aceito por ele, pois sua atividade,
naquele momento, negava a verdade expressa naquela saudação.
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.9
A saudação feita pelo "mensageiro de Javé", bem como o uso do cajado (v.21) denotam ser ele um
4
viajante, por isso um desconhecido. A teofania não o apresenta como um ser especial, mas uma figura comum
de um homem.
Ele trata Gideão por "forte, bravo guerreiro", expressão que poderia ser usada para todo aquele que
tivesse direito à guerra. Trata-se de uma expressão que denota o status social de um jovem. Podemos ver essa
palavra de duas maneiras; primeiramente, como uma saudação comum, usada em um contexto de viagem e (ou)
como uma forma de desafiar a situação concreta de Gideão, levando-o a uma mudança de postura.
Assim, a expressão "bravo guerreiro" denuncia sua atividade camuflada para esconder sua colheita dos
ataques dos midianitas. A saudação traz consigo um desafio e uma denúncia ao mesmo tempo. Ela denuncia a
falta de reação aos ataques e desafia Gideão a uma nova postura. Isso justifica a sua maneira de reagir a essa
saudação.
Havia , por parte de Gideão, um conhecimento da tradição. Ele conhecia os feitos de Javé no passado,
mas o seu conhecimento da tradição contradizia seu momento histórico. A leitura da história contemporânea de
Gideão demonstra um sentimento de abandono, devido às constantes derrotas e à força demonstrada pêlos
midianitas. Javé não podia estar (ser) com eles, pois isso negaria o conhecimento da tradição que falava do seu
grande feito libertador, ao tirar o povo do Egito, estabelecendo uma incompatibilidade entre a tradição e a história
vivida por Gideão.
Naquele momento, não caberia o Javé da tradição, a não ser como aquele que entrega o povo nas mãos
dos midianitas. Portanto, se Javé está na história, na leitura de Gideão, ele está do lado dos midianitas e não do
lado de seu povo.
Esse diálogo mostra o peso do momento e a profunda crise vivida por Gideão, que está, aqui, como
representante do povo. Esse peso fica claro, no contexto, com a interrupção do diálogo de Gideão com o
mensageiro de Javé. Pois, no verso 14, já não há mais a menção do mensageiro, mas é o próprio Javé que se
dirige a ele.

3. A ordem (Jz 6.14)


Virou-se Javé para ele e lhe disse: Vai nesta tua força, e livra a Israel da mão de Midiã;
porventura não te envio eu?"
A resposta que Gideão recebe não é mais do mensageiro, mas do próprio Javé, que surge na narrativa
sem um preparo prévio. De um modoinesperado, o intelocutor de Gideão deixa de ser o "mensageiro" e passa a
ser o próprio Javé.
Essa reposta propõe a negação daquilo que fora apresentado por Gideão quando fez sua análise da
história e do envolvimento de Javé nessa história. A acusação de Gideão é sobre o fato de Javé ter entregado o
povo "na mão de Midiã" e, a agora, ordena que ele o liberte "da mão de Midiã".
A palavra de Javé estabelece alguns elementos que não são muito claros, pois ele envia Gideão em sua
6
própria força (ró) , possivelmente a força natural de sua condição de guerreiro. Não é estabelecido algo de novo
para Gideão, a não ser a própria ordem para mudar o curso da história. Sua atuação estaria limitada a Israel,
que ele deveria livrar.
Essa ordem vai de encontro a toda a circunstância, pois se trata de um jovem que está driblando seus
inimigos, mas não os enfrentando. Ele se sente entregue, logo, sem força para uma reação que lhe proporcione
sucesso. E essa ordem parece desconsiderar tudo isso e envia esse mesmo jovem, em sua própria força, para
livrar o povo, sem lhe dar um poder especial, ou mesmo uma estratégia que viesse a dar resultados.
O único elemento adicional a essa ordem é o fato de Gideão ser enviado, como fica claro na pergunta
retórica. Assim, ele é enviado em sua própria força, mas sob a autoridade de outro, e não sob sua própria. Mas
isso não parece impressionar Gideão, pois ele não compreende ser essa ordem a autoridade de Javé, como fica
expresso em sua resposta.

4. A objeção (Jz 6.15)


"E replicou-lhe: Ai, senhor meu, com que livrarei Israel? eis que minha família
é a mais pobre em Manassés, e eu o menor na casa de meu pai. "

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.10


Essa palavra de Gideão é bastante esclarecedora para o texto. Primeiro, ele não reconhece o que foi
dito anteriormente como sendo de Javé. Ele usa exatamente o mesmo tratamento que usou no v. 13, na
resposta ao "estranho" que lhe dirige a palavra. O texto muda de interlocutor, mas Gideão não.
Outro elemento esclarecedor é sua pergunta, pois, se a força na qual ele fora enviado para libertar Israel
fosse algo especial, essa pergunta perderia completamente seu sentido, e a objeção seria ilógica. Mas, já que
não havia nada de especial, como poderia libertar, se ele se sentia entregue e não via, em si, nenhuma força
capaz de reagir? Exatamente por isso camuflava suas ações, para se livrar dos possíveis ataques.
É importante ressaltar que a palavra de Gideão aborda dois aspectos da força. O primeiro é a força
económica. Se o poder para a libertação fosse sua própria força, e essa estivesse fundamentada em sua casa,
ele não seria capaz de cumprir a missão, pois sua família era a mais pobre de Manassés. Lembremos que a
questão econômica é regente na problemática de todo o texto.
O segundo aspecto da argumentação também está ligado à compreensão de que a força, mencionada
no verso 14, é algo inerente ao próprio Gideão e sua capacidade de guerreiro. Pois ele diz ser o mais novo, ou
menor, de sua família. Haveria, portanto, outros mais fortes e mais capazes para o cumprimento da missão, uma
vez que essa estaria sendo cumprida pela força inerente ao próprio executor.
Gideão tem uma visão claramente histórica da vida e sua análise do problema é social. Não há nenhum
elemento espetacular ou mesmo romântico em suas palavras. Ele vê objetivamente o problema e sua condição
de mudar o curso da história, como estava sendo ordenado.
O texto nos deixa a impressão de que Gideão considera o "estranho", com quem ele fala, alguém
desinformado da situação social de Manassés, da tradição dos pais e de sua vida particular. Suas palavras
demonstram um conhecimento amplo e bastante lúcido desses três elementos importantes para uma leitura da
realidade.
Como Moisés, Gideão se compreende incapaz para o cumprimento da missão; sua incapacidade é
social, pela condição de suas origens, e pessoal, pois não é o mais forte de sua família.
Sua rejeição tem por base a ordem – "vai nesta tua força" –, seu conhecimento da história – "entregue
na mão de Midiã"–; a sua situação social – "família pobre" – e a consciência de sua condição pessoal – "o menor
da casa do pai". Juntando esses elementos não havia como aceitar a missão que lhe estava sendo imposta.

5. A promessa (Jz 6.16)


"Tornou-lhe Javé: Pois eu serei contigo, e tu ferirás a Midiã como a um só homem"
Mais uma vez o interlocutor de Gideão é Javé e não o mensageiro, como tínhamos no início do texto.
A resposta de Javé toca exatamente no problema da força, que se tornou tema central no diálogo. Não
há um contra argumento, ou mesmo uma negação do que Gideão colocou, pois seus argumentos estão corre-
tos, sua visão da história e da própria condição é correta.
Há, contudo, nesse ponto, algo novo, que é a promessa do "eu serei contigo". Nessa promessa é
fundamentada toda a mudança, pois será a base da força de Gideão. O texto faz questão de ressaltar que será
Gideão mesmo o agente que ferirá Midiã, mas seu ser, ou sua condição, será determinada pelo "Ser" de Javé
com ele.
Não se trata de uma negação da pessoa de Gideão; muito pelo contrário, trata-se de uma afirmação,
pois ele mesmo ferirá, mas sendo Javé com ele; portanto, o seu ser, que estava sendo negado pela sua
condição de pobre e pequeno, será afirmado pelo Ser de Deus. A promessa, então, muda comple-tamente a
condição, sem, necessariamente, mudar a circunstância.
Essa promessa muda a postura de Gideão, considerando a possibilidade de ser aceito por aquele com
quem fala e de cumprir, com sucesso, sua missão.
Esse mesmo princípio encontramos na narrativa de vocação de Moisés (Ex 3.12), onde a promessa do
"eu serei contigo" é o pressuposto fundamental para o sucesso da missão, e não a condição própria do
comissionado.

6. O sinal (Jz 6.17-22)

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.11


(17) "Prosseguiu Gideão: Se agora tenho achado graça aos teus olhos, dá-me um sinal
de que és tu que falas comigo
(18) Rogo-te que não te apartes daqui até que eu volte trazendo a minha oferta e a
ponha diante de ti. Respondeu ele: Esperarei até que voltes.
(19) Entrou, pois, Gideão, preparou um cabrito e fez, com uma efa de farinha, bolos
ázimos; pôs a carne num cesto e o caldo numa panela e, trazendo para debaixo do
carvalho, lho apresentou.
(20) Mas o mensageiro de Deus lhe disse: Toma a carne e os bolos ázimos e põe-nos
sobre esta rocha e derrama-lhes por cima o caldo. E assim fez.
(21) E o mensageiro de Javé estendeu a ponta do cajado que tinha na mão e tocou a
carne e os bolos ázimos; então subiu o fogo da rocha e consumiu a carne e os bolos
ázimos; e o mensageiro de Javé desapareceu-lhe da vista.
(22) Vendo Gideão que era o mensageiro de Javé, disse: Ai de mim, Senhor Javé! Pois
eu vi o mensageiro de Javé face a face.
(23) Porém Javé lhe disse: Paz seja contigo, não temas; não morrerás.
Após a palavra da promessa do 'eu serei contigo', a figura do "mensageiro", como interlocutor de Gideão,
se torna forte no texto, aparecendo quatro vezes como "mensageiro de Javé" e uma vez como "mensageiro de
Deus".
A primeira palavra de Gideão deixa ainda dúbio se ele compreende estar falando com Javé ou com seu
mensageiro, mas a continuidade do texto deixa claro que Gideão não está ainda compreendendo que se trata de
um mensageiro de Javé, e não de um viajante comum. A compreensão vem só no v. 22, após o sacrifício
ofertado e aceito.
Gideão pede um sinal, uma espécie de garantia para o desafio que lhe fora colocado à frente e, logo em
seguida, propõe a preparação de um sacrifício. Isso nos mostra que o texto trata também da legitimidade de um
santuário, como é expresso no verso 24: "Então Gideão edificou ali um altar a Javé e lhe chamou Javé-Shalom;
e ainda até o dia de hoje está o altar em Ofra dos abiezritas."
Temos aqui uma oferta de cereais, como expressa a própria palavra (ripa - compare Lv 2.11), mas que,
como um todo, lembra a festa das primícias (Ex 23.14-19), em função da presença do cabrito, que não é comum
no holocausto.
Isso faz sentido no contexto, pois encontramos o jovem Gideão cuidando dos grãos da colheita. Assim, o
convite para a participação da oferta não pressupõe, necessariamente, o reconhecimento de Javé do seu
interlocutor, mas o cumprimento de um ato cúltico, uma vez que estava em um santuário. O mensageiro de Deus
participa da preparação da oferta, dando a Gideão as orientações quanto à colocação dos seus elementos sobre
o altar.
O elemento mais espetacular de toda a narrativa se encontra no verso 21, quando o "mensageiro" toca
na oferta com seu cajado, e essa é consumida pelo fogo. Isso indica a aceitação da oferta por parte de Javé,
como conhecemos de Levítico 9.24. Depois disso o "mensageiro" some.
Com esse acontecimento, Gideão compreende o que estava acontecendo e reconhece aquele que
estava com ele como "mensageiro de Javé". Sua exclamação lembra Isaías em sua experiência de vocação.
Mas, a questão é que Gideão teme por sua própria vida, pois a tradição ensinava que ninguém poderia ver a
face de Javé e viver (Ex 33.20). Assim, faz sentido a palavra do verso 23, que lhe garante a vida.
É na experiência da oferta, do culto que Gideão compreende sua missão como uma vocação divina, e o
ato da revelação é, ao mesmo tempo, o ocultar-se de Javé, pois o seu interlocutor some no momento em que ele
o reconhece como "mensageiro de Javé". Temos o clássico paradoxo do Deus que, em se revelando, se oculta.
Esse momento de Gideão nos lembra a experiência dos discípulos de Jesus, a caminho de Emaús: quando
compreendem ser sua companhia o Cristo ressurreto, no partir do pão -no ato cúltico da comunhão -, ele
desaparece (Lc 24.31).
As palavras dadas a Gideão garantem uma mudança em sua situação, relatada no início do texto. Ele
viverá o shalom, a paz, o bem estar. Midiã não representará mais a ameaça constante, e sua vida será
preservada.

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.12


7. Concluindo
O texto confunde um pouco o leitor, deixando uma identidade implícita entre o mensageiro de Javé e o
7
próprio Javé. Há uma troca de fala, que dificulta, em alguns momentos, identificar o interlocutor de Gideão.
A experiência de Gideão com a divindade é confusa, mesmo na hora do reconhecimento: ele diz ter visto
a face do "mensageiro", mas é Javé que lhe afirma a paz. Essa falta de clareza se mantém para Gideão, mesmo
depois de assumir a missão que lhe fora outorgada.
Essa experiência de Gideão o encontra no cotidiano, em meio a suas atividades normais, que era uma
forma de se esconder dos perigos da história.
A lucidez da leitura da história, sempre presente e destacada, especialmente por Gideão, é algo que
salta aos olhos, fazendo com que seja parte inseparável de seu diálogo com o representante de Deus. Seu
cotidiano é uma síntese do momento histórico vivido por seu povo, motivando seus argumentos, como reação às
palavras do "mensageiro de Javé".
O desafio apresentado na ordem da missão é, inicialmente, rejeitado com argumentos de caráter
histórico-social que marcam sua vida, enquanto pessoa.
Há, porém, o elemento da religiosidade, bastante evidenciada no texto, mesmo porque ele pretende
legitimar um santuário. Esse elemento da religiosidade é vivenciado por Gideão e lhe proporciona a possibilidade
de reconhecer a manifestação de Javé.
Temos uma espiritualidade fortemente arraigada na história e nas formas cúlticas da tradição. Nesse
contexto, encontramos um homem recebendo a revelação de Deus e o desafio para uma missão de caráter emi-
nentemente político. Como Moisés, a vocação de Gideão é para tornar-se um libertador que operaria a libertação
do seu povo, na afirmação de ser o Ser de Javé com o seu ser. A promessa do "eu serei contigo" expressa - a
nosso ver - algo mais que "eu irei (subirei) contigo". Pois é a companhia do ser mais que a companhia do
caminhar. O Ser de Javé determinaria o ser de Gideão na missão, pois ele não era capaz, em si mesmo, de
cumpri-la, mas assim se tornaria, se Javé fosse com ele.
Capítulo IV
A vocação de Isaías (Is 6.1-13)
Como não poderia deixar de ser, a narrativa da vocação de Isaías reflete não somente uma experiência
de um homem, mas concentra o modo de Deus atuar na história e na teologia do livro. Assim, a narrativa de
vocação assume uma posição de grande importância no contexto de todo o livro.
O texto é arrumado de maneira tal que destaca realidades e experiências paradoxais. O texto começa
com a morte ("No ano em que morreu o rei Uzias..." v. 1) e termina com a vida, que brota afirmando a santidade,
tema central do capítulo ("A santa semente é o seu tronco" -v. 13). O profeta vê ("vi o Senhor assentado..." - v.l),
o povo deve ter os olhos fechados ("e fecha-lhe os olhos" - v. 10), pois vêem e não compreendem ("e vedes, em
verdade, mas não percebeis" - v.9). O profeta ouve os sarafins (v. 3 e 4), ouve a voz do Senhor ("Depois disto
ouvi a voz doSenhor..." - v.8), enquanto o povo deve ter os ouvidos incapacitados de ouvir ("endurece-lhe os
ouvidos" - v. 10), pois ouvem, mas não entendem (v. 9)).
Três elementos devem ser destacados no texto, pois englobam a vocação do profeta: ele, Deus e o
povo. Vocação, no contexto do profetismo do Antigo Testamento, não pode prescindir desses três elementos. A
narrativa de vocação, em Isaías, estabelece a relação entre essas partes como sendo fundamental para a
vivência profética, considerando que esta só é possível nesse contexto.
Vamos olhar o texto da maneira como ele é apresentado, dividindo-o em três partes, ou seja: visão,
purificação e missão.

1. Visão (Is 6.1-5)


(1) "No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e
as orlas do seu manto enchiam o templo.
(2) Ao seu redor, havia serafins; cada um tinha seis asas; com duas cobria o rosto, e com duas
cobria os pés e com duas voava.

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.13


(3) E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; a terra
toda está cheia da sua glória.
(4) E as bases dos limiares moveram-se à voz do que clamava, e a casa se enchia de fumaça.
(5) Então disse eu: Ai de mim! Pois estou perdido; porque sou homem de lábios impuros, e habito
no meio dum povo de lábios impuros; e os meus olhos viram o rei, J ave dos exércitos!"
A visão de Isaías destaca a magnitude de Deus em sua majestade e soberania, pois o apresenta como
rei, sentado no trono. Não podemos entrar em detalhes quanto ao estado do profeta, uma vez que o texto não
nos informa sobre isto, mas podemos dizer que se trata de um êxtase, no qual o profeta é confrontado com a
"santidade" de Javé. Não devemos compreendê-la simplesmente como uma visão extra-terrestre, mas como
uma profunda experiência, na qual as realidades divina e humana se confundem, e terra e céu se misturam,
formando uma unidade inseparável.
Uzias estava morto, mas o Senhor sentava-se em um alto e sublime trono. A afirmação de que ele vira o
Senhor não o habilita a descrevê-lo. O texto relata, apenas, que as orlas de seus vestidos enchiam o espaço no
qual o profeta se encontrava. Sua grandeza continua imensurável. Sua santidade denuncia a impureza do
profeta e do povo. Três binómios sublinham a soberania de Deus (morte-vida, invisibilidade-visibilidade, santi-
dade-impureza). A visão de Isaías é teofânica, espetacular, apoteótica. Tem a presença de seres estranhos
(v.2): (serafim, compare: 14.29; Nm 21.6;Dt8.15), tem terremoto e tem fumaça (v.4). Esses elementos nos
lembram Êxodo 19.16-19 e a manifestação teofânica do Sinai; o monte treme, há uma espessa nuvem de
fumaça e "Deus respondia por uma voz". Em ambos os textos, temos a manifestação teofânica, que traz o
elemento da santidade como tema central.
Há ainda o cântico do triplo "santo", que pertence à liturgia do culto jerusalêmico, bem como a expressão
Javé Zebaot, que é o nome cúltico do Deus de Israel, na tradição do templo de Jerusalém.
Santidade, aqui, não está ligada a elementos do comportamento moral, mas à atividade divina, que age
em direção ao mundo, à história, manifestando-se no temporal. Assim, a santidade não é um elemento estático,
da qualidade do "santo", que normalmente nós entendemos pela negação.
Santidade, ao contrário - na experiência de Isaías - é dinâmica, é a açao de Deus na história, por isso
causa o fascínio, a admiração.
A experiência com a santidade proporcionou ao profeta compreender a condição de sua dimensão de
vida e qualificá-la no mundo. Essa qualificação é, ao mesmo tempo, um condicionamento individual e coletivo. O
profeta, além de ser parte da comunidade, se torna seu representante.

2. Purificação (Is 6.6-7)


(6) "Então voou para mim um dos serafins, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar
com uma tenaz;
(7) e com a brasa tocou-me a boca, e disse: Eis que isto tocou teus lábios; e a tua iniquidade foi
tirada e perdoado o teu pecado. "
Isaías percebe que, diante de sua visão do divino, ele pode compreender melhor sua condição humana.
Ele se encontra preso à solidariedade da culpa coletiva. Não se trata de atos pecaminosos ou pecados específi-
cos. O uso do singular de "iniquidade" (pu) e "pecado" (n«on) deixa claro que a ideia é de uma atitude
pecaminosa de vida que leva a uma culpa, que põe em risco a existência do homem, sobretudo quando esse é
confrontado com a santidade de Deus.
O ato da purificação é bastante significativo, pois é feito por um dos seres de difícil descrição, cujas
extremidades estão cobertas, voam e proclamam a santidade de Deus, os serafins. Toma do incensário uma
brasa, usando uma tenaz, e toca nos lábios de Isaías. Com essa atitude, toda a sua vida é purificada.
Não podemos deixar de chamar a atenção ao fato de que o ato é descrito, destacando os instrumentos. A
última frase do verso 6 destaca os instrumentos usados para a purificação, que fazem parte dos utensílios do
templo (IRs 7.49-50). Assim, o templo, a religiosidade, ou seja, a vivência concreta da espiritualidade toma parte
nesse processo da graça purificadora de Deus.
Podemos conjecturar muito em tomo desse ato - o tocar nos lábios -, mas, possivelmente, trata-se de um
elemento da tradição profética, pois conhecemos, na experiência jeremiânica, que Deus coloca suas palavras
em sua boca (Jr l .9). Também Ezequiel receberá na boca o livro da mão de Javé (Ez 2.8-9).
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.14
A purificação é, indiscutivelmente, a efetivação da graça de Deus. Pois a experiência da visão abalou
profundamente o profeta, pela consciência de sua situação, e também foi libertadora, pela efetivação da graça
que o purificou, possibilitando-o de colocar-se a serviço de Javé.
Após a purificação, Isaías "pôde se tornar instrumento de Javé, proclamador e executor de sua vontade;
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depois da visão, a missão." Esta é, para o profeta, uma consequência natural de sua experiência de purificação.
O texto, contudo, deixa a impressão de que, para a divindade, não é algo tão natural, de consequência tão clara,
do contrário, a pergunta não teria o menor sentido no contexto.

3. A missão (Is 6.8-13)


(8) "Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem irá por nós? Então
disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim.
(9) Disse, pois, ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis de fato, e não entendeis e vedes, em verdade,
mas não percebeis.
(10) Engorda o coração deste povo, e endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que
ele não veja com os olhos, ouça com os ouvidos, e entenda com o coração, e se converta, e seja
sarado.
(11) Então, disse eu: Até quando, Senhor? E respondeu: Até que sejam assoladas as cidades, e
fiquem sem habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo assolada,
(12) e Javé tenha removido para longe dela os homens, e sejam muitos os lugares abandonados
no meio da terra
(13) Mas, se ainda ficar nela a décima parte, tornará a ser consumida, como o terebinto, e como
o carvalho, dos quais, depois de derrubado, ainda f iça o toco. A santa semente é o seu toco."
Isaías não é chamado, convocado; ele se oferece em uma situação atípica na literatura do Antigo
Testamento. O plural usado aqui na primeira pessoa tem causado muitas discussões entre os exegetas.
Particulamente, vemos seu uso como opluralis deliberationis, apesar da idéia de uma "corte celeste" ser possível
nesse contexto, o que não é o caso de Génesis 1.26, onde também temos o uso dopluralis deliberationis. Mas,
independentemente de como compreendemos o plural usado na pergunta, ela é vaga, pois não diz para que ou
para onde.
A experiência fizera Isaías livre desses medos. Após a purificação e o que vira, seus questionamentos se
tornaram secundários, desde que estivesse a serviço da divindade, pois ele tem uma experiência que os outros
de "lábios impuros" não têm. Isaías se apresenta como voluntário; essa atitude volitiva, porém, encontra seu
sentido na experiência teofânica, que o torna absolutamente disponível.
Há, contudo, uma consciência de que o importante é a ligação, a relação com o divino. Ele não responde
com o verbo ir, mas o verbo enviar. Ele não diz: "eu irei", mas se oferece: "envia-me". Ele "reconhece a neces-
sidade de ser enviado."
Deus aceita o oferecimento de Isaías, e em uma fórmula curta ("vai e dize a este povo"), o envia a uma
missão, no mínimo estranha. O v. 9b descreve o estado do povo e sua falta de disposição em compreender e
perceber. Assim, o v. 10 é uma consequência do estado descrito no v. 9b. "O endurecimento já está latente, e a
palavra profética o explicita, o faz vir à tona, ao gesto de recusa. Sem aquela palavra, a atitude de rejeição não
aparece, e a consciência fica tranqüila no plano do 'parecer' sem ser. Com ela, se desmascara e aparece a
verdade, o plano do 'ser' inautêntico."
O profeta, que se oferecera sem maiores questionamentos, agora compreendendo o peso de sua
missão, pergunta: "até quando... ?" (v. 11). A resposta obtida, mesmo não sendo das mais agradáveis, afirma a
esperança da efetivação da graça, pois o resto é a santa semente, que tem em si todo o potencial da vida.

4. Concluindo
Evidentemente, deixamos de tocar em muitos pontos importantes desse capítulo, mas nos interessa
fazer destaques em relação à vocação do profeta. Primeiramente, devemos destacar que uma experiência nova
com Deus provoca uma forma nova de ver a si mesmo. No caso de Isaías, temos uma espiritualidade

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.15


espetacular, apoteótica, teofânica, mas também presa às tradições do culto em sua liturgia ("santo, santo, san-
to") e em seus instrumentos (brasa, tenaz).
Essa experiência tão pessoal, contudo, não exclui o outro, muito pelo contrário, faz compreender a
solidariedade na comunidade do ser humano. Vendo a si mesmo como impuro, compreende a situação do povo
em relação a Deus, pois se compreende como parte dele.
A missão se torna, nesse caso, a expressão do desejo da continuidade de vivência dessa nova realidade
que se estabelece em sua vida. A vocação de Isaías, diferente das de Jeremias e Ezequiel, que veremos ainda,
é transformadora e, por isso, importante para a continuidade da caminhada com o Deus da missão.

Capítulo V
A vocação de Jeremias (Jr 1.4-10)
Estamos diante de um texto bem diferente do texto de Isaías 6, apesar de se tratar de um relato de
vocação. Já na sua forma percebemos grandes diferenças. Jr. 4-10 traz características literárias bem específicas
de ato de vocação, que lembram Gideão (Jz 6.11-17) e Moisés (Ex 3.9-12).
Diferente do de Isaías, o relato de vocação de Jeremias é apresentado sem colorido, sem apoteose, sem
visão. As partes são quase estanques, diretas. O diálogo mais parece uma discussão. Cada parte é rica de
significado, mas pesada e compacta.
Esse capítulo é especial para a compreensão de todo o livro, pois é uma introdução, onde temos uma
espécie de resumo, ou, pelo menos, os elementos norteadores para uma leitura proveitosa do livro. O relato da
vocação traz, portanto, elementos importantes para entendermos o profeta em seus conflitos consigo, com Deus
e com o povo.
Vamos dividir o texto em seis partes: a Palavra (v.4); comunicação divina (v.5); objeção (v.6); ordem
(v.7); promessa (v.8) e missão (v.9-10).

1. A Palavra (Jr 1.4)


"E aconteceu a mim a palavra de Javé, dizendo:"
A expressão "aconteceu a mim a palavra de Javé" traz a consciência do profeta a respeito de sua
experiência com Deus. É importante destacar que essa expressão indica ser a palavra de Javé mais que mera
verbalização. Não há, necessariamente, o elemento auditivo, como estamos acostumados a pensar a palavra
dita. A palavra aqui é acontecimento; nesse caso, um acontecimento particular para o profeta, que desencadeia
vários efeitos, como deixa claro o verbo ser, acontecer. A palavra acontece simplesmente, sem um preparo
prévio, sem possibilidade de evitar. Esse acontecimento exige do profeta ação, ou melhor, reação. Nesse caso
específico, é estabelecida uma condição de diálogo.
Não há apoteose, não há teofania, não há templo, não há culto; há apenas a história; há um homem,
então a palavra acontece. Como se fosse um grande acidente, que traz consequências e modifica,
completamente, a vida dos envolvidos. O peso de toda a narrativa, e isso é próprio de Jeremias, recai sobre a
palavra que acontece ao homem; sua forma e lugar são secundários e, para a narrativa, sem importância.
O encontro de Jeremias com Deus é o acontecimento da palavra.
Podemos entender que o que segue, na narrativa, é o conteúdo da palavra. Tudo, do v.4 ao v. 10, é o
acontecimento da palavra.

2. A comunicação divina (Jr 1.5)


"Antes que eu te formasse no ventre, te conheci, e, antes que saísses da madre, te santifiquei;
às nações te dei por profeta. "
O v.5 traz uma comunicação; não há perguntas, apenas uma comunicação de algo previamente
determinado, do qual o profeta não tinha conhecimento. Há uma invasão de Deus na intimidade da existência do
profeta.
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.16
Compreendemos o paralelismo do v.5 como um paralelismo escalonado, quando o autor repete algumas
palavras decisivas para avançar o pensamento.
"Antes que eu te formasse no ventre, te conheci
Antes que tu saísses da madre, te santifiquei,
Às nações te dei por profeta. "
A existência do profeta é marcada, desde sempre, pelo conhecimento de Javé e condicionada pela
santificação. Queremos ver dois momentos, mesmo que intimamente ligados. O primeiro, o conhecimento de
Deus, cujo verbo está em sua forma intensiva ativa (piei), que expressa uma relação de profundo contato no
sentido físico e espiritual. Um conhecimento que está para além do intelecto, mas que invade o ser pela
experiência. O profeta era conhecido antes de ter consciência de si mesmo.
O segundo momento é o da santificação, que parece ser mais que uma separação; trata-se de posse no
sentido de consagração. O verbo está em uma forma causativa ativa (hiphil), ao pé da letra: "eu causei a ti ser
santo", eu te santifiquei, no sentido de consagrar. Isso fica mais claro com a segunda parte do verso, quando é
dito para quê ele foi colocado no mundo: para ser profeta entre as nações; não apenas uma nação, ou "este
POVO", mas em uma dimensão universal.

Todo o verso é só comunicação para o profeta. Ele foi determinado para algo que envolve sua
existência.

3. A objeção (Jr 16)


"Então disse eu: Ah, Senhor Javé! Eis que não sei falar; porque sou um menino."
Diante dessa comunicação, completamente diferente de Isaías, Jeremias reage mostrando o "terrível
engano" de Javé.
O autor usa uma terminologia muito interessante, pois o mesmo verbo usado para dizer que Deus
conhecia Jeremias antes que ele se formasse é usado para este dizer que não sabe falar. Jeremias não conhece
a arte de falar porque não é um cidadão completo, ele ainda está em processo de formação. Sua falta de
conhecimento não estava em sua incapacidadede folar, mas em sua falta de experiência e autoridade. O
argumento de Jeremias é lógico, pois é sua existência, sua formação que estão em pauta. O termo "rnenino"
denota alguém sem uma responsabilidade social completa; só os cidadãos completos tinham direito a voz no
culto e no portão. Jeremias se compreende, aqui, como alguém cuja voz não tem peso, nem encontra
ressonância na comunidade. Não se trata de ser tímido, ou de natureza retraída, mas do medo do insucesso por
causa da falta de autoridade social.
O profeta se vê incompleto e, por isso, incapaz de seguir a determinação divina a ele estabelecida. Mas,
já havia uma determinação, e a completude, ou não, do profeta estava no acontecimento da palavra, e não em
sua existência.
A reação do profeta não fica sem resposta. Sua maneira de ver a si mesmo, diante da grandeza da
missão, e a falta de escolha, que o leva a um argumento fundamentado em sua própria formação, encontram a
palavra de Javé, que desconsidera seu argumento, mesmo sem negar a veracidade de suas afirmações. O
problema fica claro na resposta de Javé, pois ele não irá ensinar Jeremias a falar, mas irá lhe dar a autoridade
necessária.

4. A ordem (Jr 1.7)


"Mas Javé me respondeu: Não digas: Eu sou um menino;
porque a todos a quem eu te enviar, irás;e tudo quanto te mandar dirás. "
A resposta de Javé vem com uma sucessão de ordens, sem estabelecer mais discussão, encerrando, de
uma vez, o questionamento.
É importante ressaltar que, na palavra de Deus, não há uma negação da condição de "menino". Javé
não diz que Jeremias não é "menino", porque, na verdade, ele é. Ele diz: "não digas: eu sou um menino". Ele
não deve dizer, mesmo sendo, porque a autoridade de sua palavra não está em sua condição diante da
sociedade, mas na ordem de Javé. O que determina o "ir" e o "falar" de Jeremias é pura e simplesmente a
autoridade da ordem divina, não importa aonde ou a quem. As respon-sabilidades foram estabelecidas com

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.17


clareza. Deus "envia" e "manda"; Jeremias "vai" e "fala". Assim é estabelecida a relação que justifica a vocação:
eu-tu-eles, Deus, o profeta e o povo.
A atividade do profeta é colocada aqui sem um limite para ele:
"a quem eu te enviar irás e tudo quanto eu te mandar dirás "
O limite está na vontade de Deus; é sua vontade que determina a esfera de ação do profeta, por isso a
missão só estará completa quando essa vontade for satisfeita. Não há determinante histórico que delimite o ir e o
falar do profeta.

5. A promessa (Jr. 1.8)


"Não temas; pois eu sou contigo para te livrar, oráculo de Javé"
Mais uma vez fica claro o elemento medo no contexto da vocação de Jeremias. Nesse verso os
argumentos de não saber falar e ser menino não são considerados. "Não temas... " é a resposta de Javé. A
fórmula de companhia, de auxílio é uma das mais belas compreensções de realão com a divindade – a nosso
ver – no Antigo Testamento. A fórmula usada aqui é diferente de Êxodo 3:12 e Juízes 6:16, onde o destaque,
como já observamos, está no verbo "ser" (eu serei contigo). Aqui, o destaque não está no verbo, mesmo porque
no hebraico a frase é nominal – ou seja, não tem verbo conjugado; destaca-se o pronome "eu" (eu estarei
contigo). Esta expressão parece denotar mais a idéia de companhia.
Nós vamos encontrar essa idéia muito forte na formação do povo em sua saída do Egito, no diálogo de
Moisés com Deus, sendo que no texto de Êxodo 33.13,14, o autor fala em companhia da face de Javé, da
presença de Javé. Aqui, em Jeremias, é usado o pronome pessoal, ou seja, a fórmula de companhia com uma
forte evidência da pessoa de Deus.
Para o profeta, sua autoridade consiste, pura e simplesmente, na companhia de Javé. Essa idéia é, mais
tarde, trabalhada na literatura paulina, quando, em 2 Coríntios 12.9, é dito: "e ele me disse: a minha graça te
basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza."
A promessa da companhia vai ser extremamente importante para o profeta Jeremias, pois o seu conflito
com Javé será intenso e repetido. Portanto, o que garante a atividade profética de Jeremias, é a presença de
Javé que será, algumas vezes, conflituosa na existência do profeta.

6. A missão (Jr. 1.9,10)


(9) "então, estendeu Javé a mão, e tocou-me na boca; e disse-me Javé:
eis que ponho as minhas palavras na tua boca.
(10) Olha, ponho-te, neste dia, sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares e derribares,
para destruires e arruinares; e para edificares e plantares."
A apresenstação da missão propriamente dita é precedida de uma ação, que lembra a narrativa de
Isaías (a mesma palavra encontramos em Is. 6:9). Javé coloca a sua palavra na boca do profeta sem um preparo
prévio. Há uma ação do mundo divino sobre o mundo do profeta, que afeta a sua existência.
Mais uma vez, a centralidade está na palavra. Agora, a discussão em torno do falar e do não saber falar
se encerra, pois a palavra de Javé foi colocada por Ele mesmo na boca do profeta, sem licença.
Vemos o significado disso nos conflitos do profeta.
"Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir; mais forte foste do que eu e prevaleceste; sirvo de
escárnio o dia todo; cada um deles zomba de mim. Pois sempre que falo, grito, clamo: 'violência e destruição',
porque se tornou a palavra do Senhor uma vergonha para mim, e um ludíbrio o dia todo. Se eu disser: 'não farei
menção dele, e não falarei mais o seu nome', então há no meu coração como fogo ardente, encerrado nos meus
ossos, e estou fatigado de contê-lo, e não posso mais." (Jr.19.7-9)
A palavra colocada na boca do profeta não pode ser simplesmente engolida, pois arde na sua existência,
no seu ser, como fogo. Essas palavras deixam claro como a existência do profeta e as palavras de Javé se
misturam.
Sua missão específica é ampla e revolucionária. Não se trata simplesmente de um retorno, de um
arrependimento, mas de destruição e reconstrução de um novum. Sua missão é expressa no v. 10, em seis
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.18
verbos: arrancar, derribar, destruir, arruinar, edificar e plantar reinos e nações. O profeta é colocado como
revolucionário e será tratado como tal.
Sua missão é direcionada a reinos e nações. Sua forma plural e sua indeterminação mantém a
compreensão universal da atividade do profeta. O limite de sua ação profética é dependente da vontade
autônoma de Javé, que não considera os limites de sua existência.

7. Concluindo
Trata-se, por certo, de um texto rico no contexto do livro, que poderia ser visto com as implicações
internas da narrativa em relação a todo o livro. Mas essa visão geral do texto nos possibilita compreender um
pouco da espiritualidade na vocação profética de Jeremias.
Gostaríamos de destacar a experiência de Jeremias com Deus. Ela reflete um profundo conflito
existencial. Deus não se apresenta a Jeremias convidando-o para a vivência de sua vocação, mas invade, sem
licença, o mais profundo de sua existência. Javé penetra o lugar mais íntimo da existência humana, o útero
materno. Jeremias se sente, assim, violentado e argumenta, com sua própria condição, a recusa à missão. Mas
nada é considerado no diálogo, só a vontade de Javé.
Não há visão, teofania, ou qualquer coisa do gênero na narrativa de vocação de Jeremias; há apenas
uma história acidentada pela palavra de Javé.
Temos uma espiritualidade do conflito existencial. Não há elementos cúlticos, para o exercício da
espiritualidade. Há, sim, uma rejeição da comissão, da vocação. Completamente diferente de Isaías, que se
oferece para a missão, Jeremias não tem a oportunidade nem de rejeitar. A palavra é colocada de tal maneira
em sua boca que ele não consegue se manter calado, pois esta queima no interior do seu ser.
Na espiritualidade de Jeremias, segundo o relato de vocação no capítulo l, é a espiritualidade da solidão,
marcada não só pelo desejo da união com Javé e aceitação do seu povo, mas, ao mesmo tempo, pela hostilida-
de da rejeição desse desejo, que lhe causa sofrimento. Isaías se sente identificado com o povo. Jeremias não
discute sua identidade, mas sua individualidade existencial. Sua relação com o outro é a relação do conflito pelo
cumprimento da sua missão: destruir, derribar, arruinar, arrancar, construir e plantar
É, também, a espiritualidade do "eu serei contigo". Do profundo sentimento da companhia de Javé como
única garantia da vivência dessa espiritualidade. Por essa razão, o conflito entre o profeta e Javé será constante,
pois é uma relação de existência profunda.

Capítulo VI
A vocação de Ezequiel (Ez 1-3)
O texto de Ezequiel que traz sua experiência de vocação é bastante complexo, do ponto de vista
literário. Se, nos textos de Isaías e Jeremias, não entramos em detalhes literários, nesse passaremos mais longe
ainda.
Há várias maneiras de dividirmos o texto, mas usaremos uma divisão própria do nosso interesse, com
base na estruturação dos relatos de vocação, pois já conhecemos um pouco mais da estrutura através das
leituras de Êxodo 3.9-12, Juizes 6.11-24, Isaías 6 e Jeremias 1.
Dividiremos o texto em quatro partes, destacando, em cada uma delas, alguns elementos que
consideramos importantes para a compreensão da espiritualidade do profeta, no contexto do relato de vocação.
Essas partes são: Experiência com Deus; Vocacionamento; Sinal e Missão.

1. Experiência com Deus (Ez 1)

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.19


(1) "Ora, aconteceu no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto do mês, que, estando eu no
meio dos cativos, junto ao rio Quebar, se abriram os céus, e eu tive visões de Deus.
(2) No quinto dia do mês, já no quinto ano do cativeiro do rei Joaquim,
(3) aconteceu expressamente a palavra de Javé a Ezequiel, filho de Buzi, o sacerdote, na terra
dos caldeus, junto ao rio Quedar; e ali esteve sobre ele a mão de Javé.
(4) Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo que
emitia de contínuo labaredas, e um esplendor ao redor dela; e do meio do fogo saía uma coisa
como um brilho de âmbar.
(5) E do meio dela saía a semelhança de quatro seres viventes. E esta era a sua aparência;
tinham a semelhança de ser humano;
(6) cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles quatro asas.
(7) E as suas pernas eram retas; e as plantas dos seus pés como a planta do pé dum bezerro; e
luziam como brilho de bronze polido.
(8) E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados, e todos quatro tinham
seus rostos e suas asas assim:
(9) Uniam-se as suas asas uma à outra; eles não se viravam quando andavam; cada qual andava
para diante de si;
(10) e a semelhança dos seus rostos era como o rosto de homem; e à mão direita todos os quatro
tinham o rosto de leão, e à mão esquerda todos os quatro tinham o rosto de boi; e também tinham
todos os quatro o rosto de águia;...
(12) E cada qual andava para diante de si; para onde o vento (espírito) havia de ir, iam; não
viravam quando andavam...
(20) para onde o vento (espírito) queria ir, iam eles, mesmo para onde o vento (espírito) tinha de
ir; e as rodas se elevavam ao lado deles; porque o espírito (vento) do ser vivente estava nas
rodas....
(26) E sobre o firmamento, que estava por cima das suas cabeças,havia uma semelhança de
trono, como a aparência duma safira; e sobre a semelhança do trono havia como que a
semelhança de um ser humano, no alto, sobre ele...
(28) Como o aspecto do arco que aparece na nuvem no dia da chuva, assim era o aspecto do
resplendor em redor. Este era o aspecto da semelhança da glória de Javé; e, vendo isto, caí com
rosto em terra, e ouvi uma voz de quem falava."
O texto de Ez l começa com uma datação de grande precisão, incomum aos textos proféticos ou à
literatura antiquotestamentária como um todo. Mas, a insistência parece tentar convencer os leitores da ne-
cessidade de compreender o momento histórico do acontecimento, que se dá no período do cativeiro babilónico,
em meio à grande crise na história do povo de Judá, especialmente para os deportados. A localização do
acontecimento "junto ao rio Quedar" pode denotar mais que a simples participação do profeta no exílio. Isso
pode denotar - especialmente neste contexto - um momento de contemplação. A mão de Jave é que o arrebata,
fazendo-o ver ou participar da visão que se abre diante de seus olhos naquele momento. Lembremo-nos de Atos
16.13, quando os apóstolos buscam, à beira do rio, um lugar de oração. A beira do rio se torna um lugar de
contemplação, no qual o profeta é tomado pela visão espetacular da manifestação da Glória de Javé.
Há um forte interesse em afirmar, veementemente, os acontecimentos, que nos saltam aos olhos com a
expressão hajoh hajah debar JHWH - acontecendo aconteceu a palavra de Javé. Mais uma vez, temos a fórmula
profética da palavra que acontece, mas, agora, com uma ênfase muito grande ao acontecimento. Não é de estra-
nhar, pois a narrativa que se segue é mais que espetacular. Talvez, por isso, haja necessidade de afirmar, com
veemência, o narrado como acontecimento da palavra de Javé.
São apresentados os elementos de uma tempestade: vento, nuvens e fogo - raios - (v.4). Isso nos faz
lembrar as manifestações teofânicas de Êxodo 19.8 e de Isaías 6.4. Acompanhando essa terrível tempestade,
surgem "seres viventes" (v.5) difíceis de classificar pela sua poliformidade: pareciam seres humanos, mas tinham
quatro rostos (homem, leão, boi, águia, v. 10), quatro asas e pés de boi. Eles eram transportados pelo vento (v.
12). Aqui, já encontramos um problema para a compreensão do texto, pois no v. 4 o termo ruah é traduzido por
vento, porém em Ezequiel 1.12-20; 2.2; 3.12 e 14 temos o mesmo termo traduzido por espírito, considerando
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.20
que tal vocábulo pode significar tanto vento quanto espírito. Contudo, essa mudança se torna um pouco arbitrária
nesse contexto.
A visão é um tanto quanto espetacular, extremamente apoteótica e | teofânica, pois o autor compara o
ruído das asas desses seres com a voz do 'Onipotente' (v. 24). A "voz do Onipotente" é elemento de
comparação, não que ele esteja ouvindo.
O v. 28 faz um resumo de tudo quanto o autor queria apresentar, afirmando o aspecto teofânico dessa
visão. Trata-se da aparência visível da glória de Deus. Não era Deus mesmo, mas a sua glória que se
manifestava.
Essa compreensão derruba o profeta, que desfalece; sua força vital não o capacita a resistir à visão da
glória de Deus. A expressão "caí com o rosto em terra" pode deixar a ideia de que se trata de um ato de reverên-
cia à majestade, inclinar-se diante de um rei ou autoridade, mas o texto seguinte diz que ele é erguido pelo
"espírito" (ruah), força vital, o que denota desfalecimento, pois é o ''ruah" que o põe de pé.

2. Vocacionamento (Ez 2.1-7)


(l) "E disse-me: Filho do homem, põe-te em pé, e falarei contigo.
(2) Então, quando ele falava comigo, entrou em mim o vento (espírito), e me pôs em pé, e ouvi
aquele que me falava.
(3) E disse-me ele: Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes que se
rebelaram contra mim: eles e seus pais têm transgredido contra mim até o dia de hoje.
(4) E os filhos são de semblante duro e obstinados de coração. Eu te envio a eles e lhes dirás;
Assim diz o Senhor Javé.
(5) E eles, quer ouçam quer deixem de ouvir (porque eles são casa rebelde), hão de saber que
esteve no meio deles um profeta.
(6) E tu, afilho do homem, não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que estejam contigo
sarças e espinhos, e tu habites entre escorpiões; não temas as suas palavras nem te assustes
com os seus semblantes, ainda que são casa rebelde.
(7) Mas tu lhes dirás as minhas palavras, quer ouçam quer deixem de ouvir, pois são rebeldes."
É no momento de sua falibilidade, apresentada em forma de desfalecimento, que se dá o vocacionamento.
Lembramo-nos de Isaías com a expressão "ai de mim" (Is. 6.5).
A ordem divina é que Ezequiel se ponha de pé, pois Deus falará com ele. Enquanto Deus fala com ele, o
poder dinâmico, que possibilita o movimento, se apodera dele e o levanta. Movido pelo ruah - espírito, vento - o
profeta tem condições de se manter de pé diante "do que fala" (v.2). O destaque, diferente de Jeremias, é o "ar
em movimento", o "espírito", e não o profeta como tal.
A vocação do profeta é marcada pelo uso do verbo "enviar". De maneira genérica, esse envio será "às
nações rebeldes". Aqui, mais uma vez, se estabelece a relação das três partes que justificam a vocação: Deus, o
eleito e o povo (eu-tu-eles).
Há, ainda, dois destaques importantes nesses versos. O primeiro deles é o aspecto da rebeldia do povo, a
quem o profeta fora enviado. Sua missão independe do sucesso. A palavra deve ser dirigida "quer ouçam, quer
deixem de ouvir", pois, para a missão, o importante não era o retorno do povo, não era a aceitação da palavra. O
importante para a missão era a presença do profeta: "... hão de saber que esteve no meio deles um profeta."
(v.5). A vocação de Ezequiel era simplesmente ser profeta. Diferente de Isaías e, especialmente, de Jeremias,
cuja vocação era revolucionária.
O segundo destaque é a coragem, ou seja, vencer o medo. A expressão "não temas" aparece três vezes
no v.6. A sua palavra profética deverá suscitar hostilidade, que o levará ao sofrimento, mas ele não deve temer
aqueles a quem ela é proclamada. Possivelmente, o fundamento dessa coragem está na força dinâmica que o
pôs de pé, ao ouvir a palavra de Deus. A coragem, aqui, é a da resistência e não do rompimento. Essa coragem
é diferente da do profeta Jeremias, pois lá ela significava romper, agir em direção do novo; aqui, é a coragem de
resistir, de suportar o sofrimento, sem se deixar vencer pela rebeldia, tornando-se rebelde.
A preocupação do profeta não deveria ser com o povo e sua rebeldia, mas consigo mesmo:

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.21


"Mas tu, ó filho do homem, ouve o que te digo; não sejas rebelde como a casa rebelde... " (v.8).

3. Sinal (Ez 2.8 - 3.3)


(2.8) "Mas tu, ó filho do homem, ouve o que te digo; não sejas rebelde como a casa rebelde; abre
a tua boca, e come o que eu te dou.
(9) E quando olhei, eis que u 'a mão se estendia para num,e eis que nela estava um rolo de livro.
(10) E abriu-o diante de mim; e o rolo estava escrito por dentro e por fora; e nele se achavam
escrituras, lamentos e ais.
(3.1) Depois me disse: Filho do homem, come o que achares; come este rolo, e vai, fala à casa de
Israel.
(2) Então abri minha boca, e ele me deu de comer o rolo.
(3) E disse-me: Filho do homem, dá de comer ao teu ventre, e enche as tuas entranhas deste rolo
que eu te dou. Então o comi, e era na minha boca doce como o mel. "
A maneira de se prevenir contra a rebeldia é colocar dentro de si a palavra. Isso é apresentado na forma
da ação do mundo divino sobre o mundo do profeta. Mais uma vez há uma transposição de dimensões, per-
mitindo uma ação direta da divindade sobre o mundo histórico, confundindo duas realidades.
Ao profeta é dado comer o livro com o conteúdo de sua profecia (lamentações, suspiros e ais). Esse é o
sinal da vocação do profeta; aqui, ele se torna especial, recebe, como alimento, o livro das mãos de Javé. Sua
obediência denota aceitação da missão e interesse de ser elemento diferenciador, ou seja, não ser rebelde. Esse
sinal nos lembra Isaías e Jeremias. Um tem sua boca tocada por uma brasa; o outro recebe as palavras
colocadas pela mão de Javé em sua boca, e aqui, com Ezequiel, o livro é-lhe dado para comer.
Esse livro lhe é doce como o mel. As palavras do livro deveriam ser digeridas pelo profeta, a ponto de
fazer parte de sua existência, ou estrutura física. Isso significava decorar as palavras, como fica claro com a
expressão: "recebe no teu coração todas as minhas palavras."(3.10).
A realidade da vida do profeta se mistura com a realidade do mundo divino, no momento em que recebe o
livro como alimento das mãos da divindade.
Há um equilíbrio nas ações nesse ponto da narrativa: Javé e o profeta interagem; o diálogo é estabelecido
de maneira quase completa; não há invasão, como na experiência de Jeremias. Ezequiel parece, mais que o
próprio Isaías, preparado para interagir. Ele mesmo abre a boca para receber o livro e o come, participando
assim, ativamente, da recepção da palavra.

4. Missão (Ez 3.4-15)


(4) "Disse-me ainda: Filho do homem, vai, entra na casa de Israel, e dize-lhe as minhas palavras.
(5) pois tu não és enviado a um povo de estranha fala, nem de língua difícil, mas à casa de Israel;
(6) nem a muitos povos de estranha fala, e de língua difícil, cujas palavras não possas entender;
se eu aos tais te enviara, certamente te dariam ouvidos.
(7) Mas a casa de Israel não te quererá ouvir, pois eles não me querem escutar a mim; porque
toda a casa de Israel é defronte obstinada e dura de coração...
(10) Disse-me mais: Filho do homem, recebe no teu coração todas as minhas palavras que te hei
de dizer, e ouve-as com teus ouvidos...
(12) Então o vento (espírito) me levantou, e ouvi por trás de mim uma voz de grande estrondo, que
dizia: Bendita seja a glória de Javé, desde o seu lugar...
(14) Então o vento (espírito) me levantou, e me levou; e eu me fui, amargurado, na indignação do
meu espírito (vento); e a mão de J ave era forte sobre mim.
(15) E vim ter com os do cativeiro, a Tel-Abibe, que moravam junto ao rio Quedar, e eu morava
onde eles moravam; e por sete dias sentei-me ali, pasmado no meio deles. "

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.22


A missão do profeta, propriamente dita, vem a partir do v. 4. É uma missão bem específica e delimitada.
Ezequiel é enviando à casa de Israel, não a um povo estrangeiro. Essa observação se torna importante no con-
texto, pois o texto pressupõe a presença do profeta na Babilónia, mas sua. missão não estava dirigida aos
babilônios ou a outros povos de outras línguas, e sim, a seu povo.
Sua missão não estabelece esperança, ao menos nesse texto, pois não haveria uma resposta positiva. O
profeta não deveria esperar uma aceitação de sua palavra: "... a casa de Israel não te quererá ouvir..." (v.7). Aqui
não temos nem a pergunta "até quando", que encontramos em Isaías, mas a força e a coragem do profeta são a
força e a coragem da resistência (v.9); seu papel é falar, "quer ouçam quer deixem de ouvir".
Mais uma vez, é a força dinâmica do movimento que leva o profeta para o cumprimento de sua missão.
Como aqueles seres da visão, o profeta agora era levado pelo vento (ruah).
Os v. 14 e 15 são importantes para a compreensão da condição do profeta, do qual pouco é falado. Isaías
se oferece, Jeremias rejeita, mas Ezequiel é levado sem uma reação em relação a Javé; sua condição pessoal,
porém, é descrita como amarga e com um sentimento de alvoroço de espírito. A força dinâmica de seu ser está
em desarmonia. Ele vai dominado pela mão de Javé e não luta contra isso. Esse sentimento está em oposição
ao sabor do livro, pois esse é doce como mel, mas a experiência, em si, é amarga para o profeta.
Seu sentimento negativo, possivelmente, está ligado à missão, que pressupõe o povo como rebelde e não
lhe apresenta chance de mudança. Isto se torna mais evidente com a descrição de sua postura quando vai para
o meio do povo: "Por sete dias, sentei-me ali, pasmado no meio deles" (v. 15). Há um sentimento negativo de um
espírito amargurado e abatido diante da missão que recebera.

5. Concluindo
O texto de Ezequiel 1-3 é um texto realmente complexo e rico de sentido no contexto do livro. O relato da
vocação de Ezequiel é, dentre os profetas literários, o mais cheio de detalhes, demonstrando um outro momento
da história da literatura bíblica. A visão é tão espetacular que lembra as visões apocalípticas.
O texto narra a experiência do profeta com Deus, apresentando uma visão, acompanhada por uma
descrição teofânica de uma tempestade terrível. É a presença da glória de Deus diante do profeta. A narrativa
lembra Isaías, mas Ezequiel é ainda mais espetacular, muito distante de Jeremias.
O profeta experimenta isso tudo em uma entrega, sem uma reação de luta. Ele desfalece e é vencido pela
"forte mão de Javé". Seu sentimento interior é descrito de maneira negativa, mas sem uma tentativa de afirma-
ção diante do que estava vivenciando. Recebe o livro para comer, este é doce, mas sua vida fica amarga
(lembra Ap 19.9).
Temos uma espiritualidade especial: a espiritualidade da entrega, onde o sofrimento interior não
corresponde à proposta do doce e da coragem. Mas o profeta se deixa levar; há uma entrega passiva.
Ele termina entre o povo, no relato da vocação, mas com um sentimento de separação construído no
processo da experiência vocacional.
A espiritualidade de Ezequiel é a espiritualidade do "não temas", da coragem, da resistência, da
experiência espetacular e conflitante, que rompe os elementos clássicos da tradição, inovando as visões que se
tornarão comuns na literatura posterior, na literatura apocalíptica.

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.23


Capítulo VII
Espiritualidade nas experiências de vocação
Considerando a identidade literária das narrativas de vocação, sentimo-nos à vontade para fazer uma
leitura desses textos sob o ponto de vista da experiência espiritual neles expressa. Mesmo se tratando de diver-
sas vocações e diversos períodos, há elementos identificadores, como já observamos, que justificam essa
leitura. Além da forma, o conteúdo também aos possibilita ver os textos sob a mesma perspectiva, pois tratam de
experiências análogas, uma vez que são todas experiências de vocação.
Em outras palavras, vimos textos idênticos, do ponto de vista do gênero literário, e não textos de
categorias distintas, com relatos de momentos e vivências de experiências diversas. A identidade literária -
relatos de vocação - nos deixa à vontade para fazer comparações.
Assim sendo, procuraremos compreender a espiritualidade expressa nas narrativas, baseada nas
experiências de cada um dos envolvidos, observando especialmente as características dos relatos.

1. Natureza das experiências


Augusto Guerra, falando sobre a natureza das experiências espirituais, chama a atenção para três
aspectos que, a seu ver, abrem uma porta para a compreensão destas: complexidade, atualidade e
perplexidade. Esses aspectos se tornam extremamente importantes na experiência por ser ela mística, ou seja,
ter, em si mesma, o elemento do "mistério". "Mistério designa a dimensão de profundidade que se inscreve em
cada pessoa, em cada ser e no todo da realidade, e que possui um caráter definitivamente indecifrável." Com
isso, já estabelecemos limites para nossa compreensão, mas não significa que seja impossível a aproximação.
A espiritualidade tem, em si, esse paradoxo, pois sua incompreensão não está ligada à falta de
entendimento, porque ela não se deixa encerrar no âmbito da razão, mas à falta de experiência mesmo,
considerando que ela abre uma dimensão especial do conhecimento humano. "Aureolada de temor é a realidade
secreta do mistério, que constitui também a religião. Homens reconhecem então algo impenetrável a suas
inteligências, conhecem porém as manifestações desta ordem suprema e da Beleza inalterável. Homens se
confessam limitados, e seu espírito não pode apreender esta perfeição. E este conhecimento e esta confissão
tomam nome de religião." (Einstein, A. Como Vejo o Mundo, 4' edição. Editora Nova fronteira: Rio de Janeir
1981. p. 12-13.)
A experiência espiritual não é antagônica ao conhecimento; ela é, em si mesma, uma forma de
conhecimento. Já podemos perceber aqui a complexidade desse tipo de experiência.

1.1 - Complexidade
A forma como essas experiências são narradas nos textos acima apresentados já nos faz perceber que se
trata de algo especial. Não se estabelecem com clareza as dimensões dos acontecimentos. O limite entre o
humano e o divino não é rigorosamente mantido, as fronteiras não são respeitadas. Há uma invasão de limites,
como se não existissem barreiras entre a realidade histórico-existencial e o divino, os "mundos" do divino e do
humano interagem.
Na experiência de Moisés, isso é expresso na palavra introdutória, pois Deus ouve o clamor e vê o
sofrimento do povo oprimido. Já a narrativa de Gideão apresenta esta participação das dimensões humana e
divina na pessoa do "mensageiro de Javé", que ora é visto como estrangeiro peregrino, ora como o próprio Javé.
De qualquer forma, a palavra de autoridade na boca do "mensageiro" é a palavra de Javé. Nas narrativas dos
profetas, fica claro que as fronteiras são uma linha muito ténue, praticamente imperceptível. Especialmente nas
narrativas de Isaías eEzequiel, que apresentam sua visão da glória de Deus (kabod). Eles contemplam a
dimensão do divino. Difícil é descrever o indescritível, daí o uso das imagens espetaculares, com seres e
experiências incomparáveis. Jeremias expressa isso falando do conhecimento de Javé, quando o profeta ainda
estava no útero de sua mãe. Para os três profetas, há uma ação direta da dimensão do divino sobre a realidade
da experiência humana, quando falam do toque na boca. Javé coloca as palavras na boca de Jeremias, um ser
da "corte de Javé" pega uma brasa do altar do templo e toca na boca de Isaías, e Javé coloca o livro a boca de
Ezequiel.
Há o perigo de querermos reduzir essas experiências a efeitos do êxtase psicológico. Devemos dizer que
o êxtase é um elemento comum na experiência religiosa e pode ter diversas causas. Dessa maneira, teríamos
"explicação racional" para a experiência espiritual. Mas, quando fala-desse tipo de experiência, referimo-nos a
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um encontro com o infinitamente complexo e, por essa razão, somos, muitas vezes, forçados a usar uma
linguagem de caráter eminentemente alegórico para expressar a complexidade que arrebata a totalidade do ser,
daquele que a experimenta, levando-o, assim, a uma experiência de êxtase.
Por outro lado, olhar as experiências apresentadas nas narrativas de vocação do ponto de vista da história
das religiões, fazendo uma leitura eminentemente sociológica, prendendo-se ao fenómeno apenas, é - a nosso
ver - um empobrecimento da realidade religiosa e uma desconsideração ao caráter intimista da existência
humana. Assim, podemos dizer que reduzir toda experiência espiritual, extática (de êxtase) ou não, a uma pers-
pectiva psicológica ou sociológica é deixar de ver que há uma complexidade no universo, que é maior que o
próprio ser humano.
Portanto, entendemos que as narrativas de vocação que lemos pretendem apresentar mais que
experiências individualizadas de fenómenos psicológicos ou sociológicos, pois esses textos não são puramente
biográficos; eles transcendem o limite da vida particular dos vocacionados, revelam algo mais, que os torna
valiosos para a tradição.
Essas narrativas são de caráter eminentemente teológico: elas interpretam a atuação da divindade na
realidade dos vocacionados. Assim, a experiência deles deixa de ser algo preso no tempo e no espaço, deixa de
ser uma lembrança na história e passa a ser uma espécie de protótipo da existência humana.
A tradição não manteve essas narrativas preservadas até os nossos dias por causa de Moisés, Gideão,
Isaías, Jeremias ou Ezequiel, mas por causa de Javé. Não foram os homens que determinaram sua preservação
e sua importância para nossa experiência religiosa, mas a divindade. O determinante do sentido das narrativas é
o divino. Assim, elas são sempre atuais, pois se desprendem do limite da existência dos personagens humanos
e se tornam presentes na essência do ser divino, que não tem passado nem futuro. Ou seja, o seu sentido não é
limitado ao tempo, mas encontra um lugar vivo em toda a existência.

1.2 - Atualidade
Falar da atualidade da experiência espiritual, com base nas narrativas, não é muito confortável,
especialmente se essas podem ter até três mil anos e passaram por um longo processo de estruturação. Mas, a
narrativa, em si, estabelece a atualidade, pois ela dá vida, e vida histórica, ao acontecimento. Assim, falo da
atualidade da narrativa que faz viva uma história.
As narrativas de vocação localizam o momento a que se referem, como elemento significativo na
experiência. Em Êxodo - na narrativa de Moisés - há uma clara localização no sofrimento do povo: esse é o ele-
mento de regência da atualidade da experiência; a narrativa de Gideão descreve a situação de Israel, colocando
o próprio Gideão como um representante, no qual todo o temor e proceder da nação estão concentrados. A
importância de Gideão na narrativa, está, especialmente, no fato de ser ele um representante típico da nação
oprimida, aquele que se esconde no temor do ataque inimigo; já na experiência de Jeremias, a atualidade da
narrativa não está necessariamente ligada à história da nação, enquanto tal, mas à de sua própria existência; o
problema está no ser menino; como existência, não é um elemento limitado a Judá, universaliza-se em sua
atuação de destruir - eliminar a existência - e contruir - estabelecer a existência. As narrativas de Isaías e
Ezequiel são localizadas com datações específicas, mostrando que as experiências narradas estão ligadas ao
tempo e se fazem atual naquele tempo, mas não absolutamente limitadas a ele. Para Isaías, é a identidade na
impureza e, para Ezequiel, é a diferença na obstinação que regem a apresentação das experiências
espetaculares desses dois profetas. Essas narrativas trazem as experiências para um tempo, expresso por
acontecimentos e circunstâncias; um tempo histórico, portanto.
Isso é importante por ser teológico o interesse precípuo dessas narrativas. As experiências são com o
divino, ou seja, são experiências que não se deixam prender no tempo e no espaço, mas que não podem
prescindir dessa dimensão, pois só encontramos o ser humano vinculado ao tempo e ao espaço. Só existe
homem na história.
As experiências espirituais expressas nas narrativas são, portanto, históricas, mas não limitadas ao
passado. A narrativa tem esse papel: não fechar no passado suas afirmações teológicas. Ela mesma atualiza,
para quem lê e para quem ouve, as experiências, dando-lhes um valor teológico no presente. Podemos chamar
a isso de teologia narrativa. Não há uma prisão do narrado ao acontecimento histórico, pois ela não fala
simplesmente de fatos, mas de homens - seres humanos - em suas relações com o divino. Elas falam de
sofrimento, temor, existência, impureza, obstinação, que são elementos vivenciáveis apenas na história, porém,
em qualquer momento dela. Esses elementos são sempre atuais na existência humana. Por isso, as narrativas

VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.25


de vocação, que trazem consigo profundas experiências espirituais, tornam-se vivas na vida de quem as lê e de
quem as ouve.
A espiritualidade apresentada nessas narrativas não abstrai o ser humano da história, não o aliena, muito
pelo contrário, lança-o para a história como flechas que vão em direção a um alvo. Esse alvo, porém, não está
completamente fora do homem, porque a história não está completamente fora dele. Ele mesmo é participante
dela. A experiência espiritual, como temos nas narrativas de vocação, faz do homem flecha e alvo ao mesmo
tempo. Ele é lançado para uma história da qual é parte representativa. O sofrimento do povo é seu sofrimento, o
medo do povo é seu medo, a impureza do povo é sua impureza etc. Isso não constitui um paradoxo, pois a
vivência da espiritualidade, mesmo em se tratando de experiências específicas, faz daquele que a experimenta
um participante efetivo do présente, e não um mero espectador da história.
A experiência é também atual porque marca a existência e, basicamente, a determina. A experiência
espiritual da narrativa de vocação não é narrada apenas como lembrança de momentos do passado, mas ela
explica a história toda dos envolvidos. A experiência espiritual marca a história - toda a história - de quem a
vivência.
Esse é um outro aspecto da atualidade da experiência espiritual, pois ela não é um momento apenas, mas
é um ponto de partida para toda a história daquele que a experiência e para aqueles que estão em torno dele.
No caso de nossas narrativas, as experiências de vocação dos personagens apresentados deram um novo
direcionamento a suas vidas e à vida de seu povo, o que torna tais experiências sempre presentes como uma
marca indelével na sua história.
Podemos, portanto, compreender a atualidade da experiência espiritual apresentada nas narrativas de
vocação de três maneiras diferentes:
1. A atualidade ligada à história de quem vivência aquele momento.
2. A atualidade na continuidade da história, como seu elemento con-dicionador.
3. A atualidade proporcionada pela própria narrativa, que nos faz, como seres humanos, participantes da
experiência.

1.3 - Perplexidade
A perplexidade é característica de quem duvida, hesita. É importante destacar que a dúvida, na
experiência espiritual, especialmente no caso das narrativas bíblicas de vocação, não é um elemento negativo,
muito pelo contrário, ela é um elemento positivo. Tillich, falando sobre a relação entre fé e dúvida, observa que
"dúvida existencial e fé são os pólos que determinam o estado interior da pessoa possuída pelo incondicional."
"A dúvida séria, porém, éuma confirmação da fé. Ela prova a seriedade e a incondicionalidade da sua perple-
xidade." A dúvida e a hesitação, ou seja, a perplexidade, nas experiências de vocação narradas nos textos
acima apresentados são elementos propulsores em direção ao compromisso do vocacionado com a divindade
que o vocaciona A razão da perplexidade é compreensível, pois se trata da experiência do finito com o infinito,
do imanente com o transcendente. A experiência com o divino é sempre maior que a capacidade de
compreensão de quem a vivência, por isso a hesitação é a primeira reação do ser humano.
Se olharmos para a reação de Moisés em sua narrativa de vocação, perceberemos que há uma
perplexidade clara: "Quem sou eu, para que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?" (Ex 3.11); a narrativa
de Gideão deixa esse elemento mais claro ainda quando ele responde à saudação do "mensageiro de Javé": "Ai,
senhor meu, se Javé é conosco, por que tudo nos sobreveio?" (Jz 6.13). Há também uma réplica à ordem: "Ai,
senhor meu, com que livrarei Israel? eis que minha família é a mais pobre em Manassés, e eu o menor na casa
de meu pai" (Jz 6.15); a narrativa de Isaías expressa isso em dois momentos: primeiro, quando reconhece sua
condição com o "ai de mim!" (Is 6.5), e outro quando, ao receber a ordem, a questiona: "Até quando Senhor?" O
texto de Jeremias expõe essa perplexidade com a expressão: "Ah, Senhor Javé! Eis que não sei falar; porque
sou um menino" (Jr l .6). A narrativa de Ezequiel coloca a perplexidade do profeta no "cair com o rosto em terra"
(Ez l .28) e no testemunho da própria condição do profeta, amargurado e pasmado (Ez 3.14-15). Devemos
observar que estes questionamentos ficam sem resposta direta e satisfatória - com exceção de Isaías. Mas, a
despeito dessa dúvida, e até mesmo da negatividade, ansiedade e hesitação diante da experiência, o poder da
auto-afirmação, conseqüentemente a aceitação do vocacionamento, deriva da confiança na divindade que
vocaciona e possibilita a experiência espiritual, como um encontro pessoal entre o homem vocacionado e o Deus
vocacionador. Não podemos deixar de perceber que esta perplexidade está diretamente ligada a uma
introspecção, a uma visão de si mesmo diante da grandeza de Deus, sua glória e missão.

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As experiências apresentadas nas narrativas de vocação arrebatam os vocacionados da banalidade do
cotidiano e os deixam perplexos diante da divindade, e de si mesmos. Por um momento, são tirados de seu dia-
a-dia para mudarem sua perspectiva da história, partindo de uma nova perspectiva de si mesmos. Cada um dos
vocacionados é encontrado em seu momento histórico, no contexto de seu cotidiano, que é rompido por uma
presença inesperada, que se apresenta de maneira diversa, tão diversa quanto o momento vivido por cada um e
quanto cada um deles. A experiência os sobressalta rompendo o curso da história individual e estabelecendo um
novo rumo para eles.
É importante ressaltar que a força que os arrebata e estabelece essa nova perspectiva é estranha a seu
próprio ser, mas se torna participante dele. Podemos reconhecer esse elemento na promessa do "eu serei conti-
go", feita a Moisés, Gideão e Jeremias; para Isaías, esse elemento se faz presente no pedido "envia-me a mim",
quando ele reconhece a necessidade de ser enviado, mantendo assim a relação com o divino; já Ezequiel
expressa isso, quando afirma ser levado pelo "vento, espírito", de um lado para o outro; ele passa a ser
conduzido pelo espírito.
A perplexidade faz parte da natureza da experiência espiritual como consequência de sua complexidade,
mas não deve ser vista de maneira negativa, pois ela possibilita o exercício da confiança incondicional, baseada
no reconhecimento do poder do Deus que efetiva a experiência, em nosso caso, do Deus que vocaciona. A
despeito de toda hesitação, existe a confiança na promessa da companhia, que estabelece um diferencial
qualitativo entre a perplexidade da experiência espiritual e a de qualquer outro tipo.

2. Protagonistas da experiência de vocação


Já observamos diversas vezes que, na experiência de vocação, temos dois lados distintos; de um lado, o
vocacionado - um ser humano - e do outro, o vocacionador - a divindade. A grande questão é como localizar
esses protagonistas no contexto das narrativas, considerando que são apresentados de maneira diversa, sem
uma identidade entre si. Temos cinco personagens diferentes, e a apresentação da divindade é igualmente dife-
rente; por isso nos deteremos, neste ponto, na identificação dos personagens que protagonizam as experiências.

2.1 - O vocacionado - o ser humano


As narrativas fazem questão de apresentar o vocacionado no seu contexto histórico, afirmando sua
humanidade, evidenciando sua circunstância.
Há uma localização de cada um dos vocacionados no tempo, no espaço e até mesmo na atividade.
Moisés é localizado no tempo da opressão do "povo" debaixo do poder egípcio, mas foi encontrado "atrás do
deserto" - esse é seu espaço geográfico -, onde apascentava o rebanho de seu sogro, Jetro. O início de Êxodo 3
nos proporciona essas informações, mostrando o ambiente que reflete o cotidiano do personagem. Não há um
momento especial, previamente preparado para o acontecimento; a experiência vem de assalto,
inesperadamente, e encontra Moisés em seu mundo significativo.
Devemos ressaltar, já neste ponto, que o tempo e o espaço, na compreensão das narrativas, não devem
ser pensados abstratamente, pois é sempre destacado o seu conteúdo, que é o acontecimento. O homem é visto
como parte desse conteúdo, ou seja, como participante do acontecimento.
Vamos encontrar isso mais claramente apresentado na narrativa de Gideão, pois, além do contexto
histórico, da datação, encontramos Gideão no exercício de uma atividade comum, no seu cotidiano, marcado
pelo temor. Ele é encontrado malhando o trigo no lagar, o que demostra o esconder-se e reflete o medo histórico
dos ataques midianitas. Ali, temos o vocacionado completamente localizado em sua humanidade, marcada não
somente pelo acontecimento, mas pelos sentimentos de medo, dúvida e até mesmo decepção pela falta de ação
de Javé na história de seu povo.
Isaías já tem seu encontro em um lugar de caráter eminentemente religioso, o templo; há elementos
típicos do culto no contexto da experiência do profeta, que difere das narrativas de Moisés e Gideão. A datação é
marcada pela morte do rei Uzias, deixando o destaque para a fmitude, que se afirma na própria exclamação do
profeta (Ai de mini! Pois estou reduzido ao silêncio, ou estou perdido; porque sou homem - macho - Is 6.5). Sua
visão teofânica evidenciava sua fmitude - pasmado diante do acontecimento - e sua condição de homem -
macho -, que era um condicionamento natural. Essa condição natural vem acompanhada pelo aspecto cultural,
ressaltado pela afirmação de que ele habitava no meio do povo. Assim, a humanidade do profeta é colocada, de
maneira bastante clara, na sua finitude de ser humano, na condição natural e cultural como participante "macho"
do povo, e que tem uma experiência em um ambiente religioso, com uma forte presença cúltica.
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.27
A narrativa de Jeremias começa falando de ventre, de formação, de crescimento. A experiência em si é
marcada pelo condicionamento humano do profeta, que é sua própria existência. Existe ainda o condicionamento
cultural, o "ser menino". Isso vem localizado em um momento histórico específico, que é apresentado nos versos
anteriores à narrativa em si; a localização geográfica é Judá. Não descreve uma circunstância do cotidiano,
como vimos nas narrativas de Moisés e Gideão, nem uma localização tão limitada como na narrativa de Isaías,
mas o próprio formar-se, o vir a ser, enquanto ser humano, é a base da afirmação da humanidade de Jeremias.
Seu contexto é sua existência, como elemento primordial da experiência de vocação.
A experiência de vocação de Ezequiel não foge à regra. Além de uma localização histórica clara, ele é
colocado no contexto do cativeiro, junto ao rio Quebar. Assim, temos o aspecto temporal, geográfico e
circunstancial da narrativa, que localiza o personagem no tempo e no espaço, estabelecendo sua humanidade.
Essa narrativa vai mais além quando apresenta o estado de espírito do profeta – "... por sete dias, sentei-me ali,
pasmado no meio deles." (Ez 3.15) – demostrando o resultado da experiência no seu ser.
Podemos fazer algumas observações com base nessas apresentações das narrativas. Devemos
destacar, primeiramente, que há um interesse de apresentar o vocacionado como um ser histórico. Os
personagens são apresentados como no contexto de uma existência concreta, histórica. A importância desse
aspecto é que o vocacionado é visto como homem - ser humano - e apresentado em sua vivência real,
contextualizado pelas circunstâncias concretas de seu momento histórico. Ele não é abstraído de sua realidade,
mas experimenta a vocação em sua própria realidade e, mais ainda, por causa dela. O vocacionado é
encontrado em seu locus existentie.
Estas experiências de vocação são experiências espirituais eminentemente humanas, não apenas
porque são vividas por seres humanos, mas porque passam pelo crivo da consciência humana. Elas questionam
e ao mesmo tempo respondem a interrogações que dizem respeito à existência humana, tanto do ponto de vista
histórico como no mais profundo do ser, daquele que vive a experiência.
Devemos ainda destacar que as narrativas de vocação não estão interessadas em uma
"espiritualização" da experiência. Na espiritualidade das narrativas, a presença e participação do corpo não é
negativa; participa dela o homem todo. Nas narrativas dos profetas - Isaías, Jeremias e Ezequiel - essa
participação do corpo vem especialmente colocada com a menção da boca. No caso de Gideão, sua força, seu
medo de morte são elementos que mostram a participação do vocacionado em sua completude do ser, o ser
como realidade histórica e física. A narrativa de Moisés pressupõe isso quando localiza o vocacionamento no
contexto da teofania da "sarça ardente", pois ali é solicitado que ele retire a sandália de seus pés. O corpo
possibilita a percepção da realidade, do desejo, da consciência viva e, ao mesmo tempo, da força que se dirige a
essa realidade, ou seja, é através do corpo que o ser humano interage na realidade.
É o ser humano todo que experimenta sua historicidade, sua corporalidade e sua consciência - o
elemento da perplexão - participa da experiência de vocação, ao passo que essa experiência o arrebata, não o
abstrai, não o aliena, muito pelo contrário, localiza-o e o desafia a assumir sua própria historicidade, sua própria
humanidade, mas em uma nova perspectiva, na perspectiva da vocação.

2.2 - O vocacionador – a divindade


As narrativas apresentam a divindade como sujeito da experiência de vocação. Há, portanto, dois lados
das experiências relatadas nas narrativas: um, eminentemente humano, e outro, divino. Mas essa figura divina
não é igual em todos os textos, ou seja, o divino não é experienciado da mesma forma em todos os relatos de
vocação.
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O texto da narrativa de Moisés é bastante complexo - como já observamos acima - por isso não
podemos discutir os detalhes que envolvem a apresentação da divindade em Êxodo 3, como um todo. Há uma
discussão ainda insolúvel em torno das fontes de que dispomos hoje e que originaram o texto. Porém, podemos
compreender a apresentação da divindade, com base em Êxodo 3. Ib, 4b. e 6, pela identidade literária com o
texto da narrativa de vocação de Moisés propriamente. Temos a localização da divindade no monte Horeb e a
identificação com o Deus dos pais, Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Esta localização de um santuário legitima ou
é legitimada pela manifestação da divindade e seu dirigir-se a Moisés. Há uma localização espacial para a
manifestação de Deus, o "Monte de Deus", o "Horeb". Quando lemos Êxodo 3, percebemos que o texto, como
um todo, pretende apresentar a manifestação de Deus como um elemento surpresa no cotidiano de Moisés,
sendo acompanhada por uma revelação natural da teofania do pequeno arbusto pegando fogo. Mas o v. 6
destaca um outro elemento importante no contexto dessa manifestação, a identidade da Divindade, que se
revela como o "Deus dos pais". Nesse ponto, temos dois aspectos, que consideramos importantes: 1.0 fato de a

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divindade ter uma história de manifestação, ou seja, o seu reconhecimento não é privilégio único de Moisés;
outros, no passado, já o haviam tido mesmo de maneira indireta, através de mensageiros ou, à noite, em sonhos
(Gn 21.17; 22.11; 20.3s; 46.2 e outros). 2. A divindade dirige-se diretamente a Moisés; não há um intermediário,
e sim, uma relação direta. Êxodo 3.6 diz: "... E Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus." A
narrativa denota uma presença quase física da divindade. Assim percebemos a intensidade dessa experiência
na compreensão de quem narra. Há um interesse de demonstrar uma vivência real da presença de Deus no
processo de vocação.
Em Juizes, temos a apresentação da divindade de maneira um pouco confusa, pois a narrativa deixa
clara a presença física de uma figura que Gideão confunde com um 'forasteiro'. Entretanto, esse é apresentado
como 'mensageiro de Javé' e, no transcurso da narração, é identificado com o próprio Javé. O leitor acompanha
a identidade do 'forasteiro' como o 'mensageiro de Javé', mas Gideão não. Porém, a identidade do 'mensageiro'
com o próprio Javé não é tão clara. Enquanto Juizes 6. 11 e 12 falam de 'mensageiro de Javé', o v. 14 diz:
"Virou-seJavéparaele...",eo v. 16 manterá essa identidade: "Tornou-lhe Javé..." Já no v. 20, aparece a expressão
'mensageiro de Deus', e, no v. 21, 'mensageiro de Javé', outra vez; o v. 23 fecha a sequência, voltando a
identidade do interlocutor de Gideão para Javé: "Porém, Javé lhe disse:..." É importante ainda destacar a palavra
de Gideão no v. 22: "Vendo Gideão que era o mensageiro de Javé, disse: Ai de mim, Senhor Javé! Pois eu vi o
mensageiro de Javé face a face."
Há uma experiência claramente sensitiva nessa narrativa de Gideão. Enquanto a narrativa de Moisés se
limita ao 'ouvir' - que não deixa de denotar o elemento sensitivo - a narrativa de Gidão se estende ao 'ver', além
de ser rica em ações, esclarecimentos históricos e diálogos. Há uma manifestação histórico-física que é
compreendida como revelação do divino. Não podemos deixar de perceber que Gideão não afirma ter visto Javé
face a face, mas seu 'mensageiro'. Chama-nos a atenção o fato de que a narrativa não apresenta nada de
espetacular, até a aceitação da oferta consumida pelo fogo.
A manifestação da divindade, na experiência de Isaías, é completamente diferente dessa que acabamos
de observar. Mas há uma forte presença de elementos sensitivos na narrativa, incluindo elementos físicos, como
o toque na boca.
Na narrativa de Isaías, a manifestação da divindade é "supranatural" e se dá em um local de culto, no
templo, portanto em um lugar próprio para tal. A narrativa a apresenta como uma visão de seres celestiais, mas
há uma descrição de reações físicas da manifestação como um todo; os umbrais que sustentavam as portas
começam a se mover, como em um terremoto; havia um som, uma voz que gritava, como um trovão, que, em
Isaías 6.4, é apresentado como causa do tremor do prédio, e uma nuvem de fumaça que tomava todo o espaço.
É uma ação no mundo físico que está sendo apresentada e que requer o sentir, o ver e o ouvir daquele que
participa da experiência. A divindade é apresentada em sua majestade, e não há dúvida de que é algo divino.
Bem diferente da narrativa de Gideão, que não percebe tratar-se da manifestação de Javé, até quer aceita a
oferta de sacrifício.
A divindade, na narrativa de Isaías, é majestática e age sobre o mundo do natural; há uma corte celestial
em torno da divindade, mas não está limitada ao mundo sobrenatural; ela age no mundo físico. Há uma vivência
sensitiva da presença da divindade. Essa vivência vai além do mundo em redor, mas inclui o próprio corpo
daquele que experiência. Há um toque na boca de Isaías, não feito pela divindade, mas por um dos seres
'celestiais', que pertencem a sua corte. Essa ação supranatural inclui o corpo do profeta na experiência, de
maneira muito direta. A espiritualidade da experiência não nega os sentidos e o corpo, muito pelo contrário,
afirma-os de maneira contundente.
A divindade na narrativa de Isaías, apresentada como estando para além da realidade física do profeta,
interage com ele em seu contexto e em seu próprio corpo. Há uma experiência arrebatadora e espetacular, que
leva o profeta a um êxtase, mas não a um transe. A presença da divindade não lhe tira a consciência, muito pelo
contrário, ilumina-a, a fim de compreender seu contexto e sua própria vida neste contexto.
A narrativa de Jeremias - em comparação com a de Isaías - é extremamente pobre de manifestações. A
manifestação da divindade se resume ao acontecimento da palavra. Nesse caso, nem o elemento auditivo é evi-
denciado. Verbos como 'ver' ou 'ouvir' não são usados, e o diálogo tem como base o acontecimento da palavra.
Trata-se de uma experiência do "ser". A divindade interfere no ser de Jeremias; podemos até dizer que se trata
de uma experiência existencial. O diálogo é o da existência e não o de um momento fechado no tempo (cronós)
e no espaço, mas fechado na existência e aberto ao momento. No entanto, não é negado o elemento sensitivo: o
toque na boca torna o corpo participante da experiência. Isso não nega o aspecto existencial da experiência: em
vez disso, o afirma, pois a existência só é possível, para o homem, no corpo. A corporalidade se torna um
elemento importante na manifestação da divindade na experiência da narrativa de Jeremias. A divindade, aqui,

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age na existência do profeta e dialoga com ele nesse contexto. Não temos dados sobre a divindade, além da
afirmação de ter acesso ao mais íntimo da existência humana
A narrativa de Ezequiel apresenta a divindade sendo experienciada de maneira bastante completa.
Ezequiel vê, ouve, sente, à medida que a palavra acontece. A narrativa começa remetendo-nos a Isaías, quando
fala de visões (Ez 1.1), lembra-nos Jeremias, quando fala da palavra que acontece (Ez 1.3), mas é bem mais
rica de elementos de manifestação do que essas outras narrativas proféticas.
É interessante perceber que a narrativa começa dizendo que a mão de Javé estava sobre Ezequiel
(usando a terceira pessoa, Ez 1.3) e termina com a afirmação do próprio Ezequiel de que a mão de Javé estava
sobre ele (usando a primeira pessoa, Ez 3.14). A experiência de Ezequiel é a experiência da mão de Javé. Essa
atribuição corpórea a Javé, que chamamos de antropomorfismo, denota a proximidade da divindade.
"Antropomorfismos sublinham o caráter pessoal do Deus do Antigo Testamento e o faz acessível ao homem, e é
essa mesmo sua intenção." Assim como nas outras narrativas, o relato de vocação de Ezequiel apresenta a
Divindade próxima, agindo no mundo do vocacionado. Devemos, porém, ressaltar que, para o texto de Ezequiel,
são estabelecidas claramente duas dimensões, uma abaixo do firmamento e outra acima. Abaixo do firmamento,
estava o mundo do profeta, e os seres celestes se moviam entre a terra - o mundo do profeta - e o firmamento;
enquanto que, acima do firmamento, estava um trono onde se assentava a divindade, "como a semelhança de
um homem" (Ez l .25,26). A divindade se encontra em uma outra dimensão, mas age no mundo do vocacionado.
Olhando os elementos apresentados por Ezequiel, percebemos a riqueza da compreensão da divindade.
Mesmo sendo introduzido como visão, há uma necessidade de se destacar um do outro, o elemento e o
acontecimento. Trata-se, portanto, da palavra que acontece. Ou seja, há um interesse em afirmar os elementos
da narrativa no contexto da história, e não os limitar a "sonho e visões de sua cabeça" (compare Dn 7.1), como
temos na literatura apocalíptica. A palavra de Javé invade a história como um acontecimento. Elementos
teofânicos acompanham a descrição, como vento, nuvem, fogo, brilho (Ez 1.4). Assim, como em Isaías, são
apresentados seres celestes, cuja forma é difícil de descrever; o destaque é que são "seres viventes", um tipo de
mistura de ser humano e animais, que são uma espécie de representantes de Deus abaixo do firmamento. O
"Onipotente", cuja majestade é afirmada com a imagem do trono, lança sua voz, faz-se ouvir e assim pode
dialogar com o profeta.
Outro elemento importante na narrativa de Ezequiel é a força vital que emana da divindade. A sua fala
proporciona a força para o profeta se erguer: "Então, quando ele falava comigo, entrou em mim o Espírito, e me
pôs em pé,..." (Ez 2.2). O vento da teofania (Ez l .4) estabelece os movimentos dos seres viventes abaixo do
firmamento, e isto inclui o movimento do profeta. Essa é uma ação da divindade sobre o mundo do vocacionado.
O dínamo, força operadora e vital, procede da manifestação de Javé na realidade do mundo natural e do
contexto histórico, no qual se encontra o profeta, que experiência esta manifestação.
Olhando para a apresentação da divindade nas diversas narrativas, podemos perceber que ela não é
experienciada da mesma maneira pêlos diversos protagonistas de nossos relatos. Há diferenças, embora seja a
mesma divindade que se manifesta. A maneira como o relato apresenta a experiência de Moisés é
substancialmente diferente da de Gideão; se compararmos a manifestação da divindade, na narrativa de
Jeremias, com a de Ezequiel, então essa diferença fica ainda mais clara.
Podemos, contudo, assegurar que a manifestação da divindade, nas narrativas de vocação do Antigo
Testamento, é eminentemente dialogai, por isso não há um único modelo de percepção. Essa percepção está
diretamente ligada ao vocacionado. Em outras palavras, considerando ser de caráter dialogai a experiência
espiritual de vocação, ela se torna tão variável quanto os que dialogam.
A manifestação do divino está diretamente ligada à percepção daquele com quem é estabelecido o
diálogo, daí a razão de tão grande diferença de manifestações nas narrativas.

3. A força desafiadora da experiência


Considerando os aspectos antropológico e teológico que destacamos acima, podemos afirmar que a
experiência espiritual de vocação traz consigo um elemento determinante na existência do vocacionado, pois se
trata de um conhecer a partir de si mesmo.
Percebemos que todos os personagens das narrativas de vocação questionam a si mesmos diante da
experiência. Moisés pergunta: "Quem sou eu...?"(Ex 1.11); Gideão, na mesma ideia, questiona: "...com que
livrarei a Israel?"(Jz 6.15), considerando sua condição de pobre e, pequeno, ou seja, o que ele era; Isaías
reconhece sua própria condição e a identifica com a do seu povo; Jeremias tem sua existência diretamente

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envolvida na experiência; assim, a afirmação "eu sou um menino" (Jr l .6) é sua auto-avaliação; a narrativa de
Ezequiel coloca esse elemento da introspecção, do questionar-se, quando diz:"... eu me fui amargurado, na
indignação de meu espírito." (Ez 3.14). O encontro com o divino desafia o vocacionado no mais profundo de sua
existência e direciona a compreensão de si mesmo, lançando-o para fora.
A experiência espiritual de vocação estabelece o conhecimento de uma nova dimensão do ser, a partir
de dentro. É importante perceber que toda as manifestações da divindade, mesmo as mais espetaculares e
apoteóticas - como as de Isaías e Ezequiel - encontram seu lugar na vida do vocacionado quando este questiona
seu próprio eu diante do experienciado. Não se trata de um conhecimento externo, adquirido, mas internalizado,
forjado no íntimo daquele que experimenta o desafio da vocação divina.
Isso nos possibilita compreender os elernentos que envolvem todo o ser do vocacionado e sua vivência
íntima. Ternos a insegurança de Moisés, que é respondida pela companhia de Javé. O medo de Gideão,
aplacado pela palavra de Javé: "não temas". Já Isaías se destaca pela coragem e disponibilidade em responder
positivamente ao questionamentoda corte celeste, enquanto Jeremias vivência o conflito de sua existência, como
que invadida. Ezequiel, por outro lado, vive a insegurança, a depressão e a tristeza que lhe arrebatam o ser. É
nesse contexto de vivência íntima que os vocacionados assumem a missão.
Por ser um conhecimento a partir de dentro, não se deve entendê-lo como uma experiência puramente
intimista, já que lança o vocacionado para fora de si mesmo, pois, apesar de impor tal interioridade, tem como
conteúdo realidades exteriores, ou seja: a opressão e o sofrimento do povo debaixo do poder egípcio; o perigo
dos ataques midianitas; a 'impureza' e a 'iniquidade' do povo; a injustiça dos reinos; um povo obstinado, mesmo
exilado, ou outras realidades. Esses elementos são objetos motivadores da experiência de vocação.
"A experiência exerce seu poder sobre a pessoa, fazendo-a e desfazendo-a com surpreendente
facilidade, suscitando nela, não apenas estados de ânimo, mas também passos importantes na direção da
humanização ou dadesumanização." As narrativas de vocação do Antigo Testamento nos mostram que a
experiência com o divino desconstrói o elemento negativo na consciência do vocacionado e o leva a um desafio,
cuja força está na prórpia experiência, marcada pela presença divina, lançando-o para uma responsabilidade
histórica, considerando ser essa realidade o objeto da vivência vocacional.
A experiência de vocação, nas narrativas do Antigo Testamento, encontram seu sentido na história, na
realidade exterior, mas esse sentido é enriquecido com a relação dialogai do ser humano com a divindade. Am-
bos se tornam sujeito da experiência, cujo objeto é a realidade histórica. Assim, desafia-se o vocacionado em
sua existência, a uma vivência concreta de sua vocação, na força dessa experiência, que afirma nele a presença
da divindade.
4. A vocação: espiritualidade da ação
Já observamos que a espiritualidade do vocacionado, nas narrativas de vocação do Antigo Testamento,
não é "atemporal", desvinculada dos acontecimentos da história. A experiência não o retira dos condiciona-
mentos históricos, muito pelo contrário, encontra-o na história e o lança em direção a ela mesma, como
motivadora externa da vocação.
Assim, a missão, que justifica a vocação, é de caráter histórico e circunstancial. Os vocacionados são
desafiados a uma ação histórica transformadora.
Moisés é convocado a transformar a realidade histórica de seu povo. A história de opressão deverá
tornar-se história de libertação. Esse mesmo elemento vamos encontrar nas outras narrativas de vocação.
Gideão deve livrar Israel da mão de Midiã; Isaías, no exercício de sua missão, revela o endurecimento
de seu povo, que rejeita a Javé; Jeremias é convocado para transformar a realidade em um processo de
desconstrução e nova construção; já Ezequiel será um denunciador no meio do povo.
Não temos uma espiritualidade' 'em si e para si", mas uma espiritualidade "para os outros". As ações
desafiadas no vocacionamento são exercidas na autoridade da divindade que vocaciona, mas são ações
políticas, ou seja, sócio-históricas. A espiritualidade da vocação consiste, portanto, na vivência da vontade de
Deus, para transformar uma realidade ou marcar sua presença por meio da 'palavra reveladora' na história.
A vivência dessa espiritualidade pressupõe um envolvimento direto com a realidade social do
vocacionado nas mais diversas dimensões, levando-o a uma ação política. Evidentemente, como toda ação
política, é uma ação partidária, uma ação que se coloca ao lado do povo oprimido, ao lado da justiça, ao lado da
verdade, mas, sobretudo, ao lado da vontade do Deus, que confronta o locus existentie do próprio vocacionado.

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Esse aspecto da espiritualidade, nas narrativas de vocação, pode parecer estranho, se é que se tem
dela uma compreensão que negue os condicionamentos históricos, vendo-os como elementos periféricos na
relação com Deus. A contemplação do divino impulsiona o vocacionado, não a uma abstração do ser, mas a
uma afirmação da existência como local de encontro do homem - como ser condicionado - com Deus. Esse
encontro não nega o condicionamento do homem, mas o afirma, sem, contudo, aceitá-lo como dado imutável,
levando-o a acomodar sua situação. Há uma rejeição dos elementos históricos que negam a dignidade do
homem e a autoridade de Deus sobre a história; por isso, a ação se faz necessária, pois ela é um elemento
transformador da realidade, segundo a vontade divina. Assim, o condicionamento deixa de ser um elemento
negativo, uma vez que passa a sofrer a ação transformadora ou reveladora da espiritualidade do vocacionado.
Podemos, portanto, afirmar que a espiritualidade da vocação não pode prescindir da dimensão sócio-
histórica, onde ela é vivenciada, uma vez que a missão é o elemento que a distingue. Mas essa ação deve ser
compreendida a partir de uma comissão divina. Dessa maneira, a ação se torna a própria vivência da
espiritualidade. Assim sendo, o exercício da vocação pode - e, a nosso ver, deve - ser compreendido como a
espiritualidade da ação, distinta de uma espiritualidade da contemplação.
5. Palavra de abertura
Neste ponto, espera-se uma palavra de conclusão, mas aquilo a que nos propomos é a abertura de uma
discussão, e não a atitude do ensino pronto e acabado. Trilhamos o caminho do discípulo, do que ouve e procura
aprender. Tentamos ouvir o texto, conhecer sua forma e separá-lo, em busca do aprendizado.
A riqueza da literatura do Antigo Testamento nos possibilita separar textos de identidade formal e lê-los
com um questionamento específico. Assim fizemos com as narrativas de vocação.
O tema da espiritualidade, bem como o tema da vocação, é bastante atual em nosso dias, mas visto,
muitas vezes, como categorias fechadas, que rejeitam a todos, que não atendem a seus requisitos. Mas a
espiritualidade é, em si mesma, rica e aberta, pois traz consigo a relação do Divino com o humano de maneira
dialogai.
Não há uma regra especial para se viver da experiência com o divino. Enquanto Moisés se vislumbra
com a teofania, Gideão sequer entende seu interlocutor como mensageiro de Javé. Mesmo os profetas da
tradição literária antiquotestamentária terão experiências radicalmente diferentes, que, contudo, convivem dentro
desta mesma tradição.
As reações à experiência com o divino também não comportam modelos herméticos, modelos
previamente estabelecidos. Já mencionamos Moisés e Gideão, quase opostos em suas reações, mesmo tendo
aspectos formais de identidade em suas narrativas. Quanto aos profetas, temos um Isaías, que se dispõe,
alegremente, ao serviço, quase para manter a magnífica experiência da glória de Javé e da purificação. Mas
temos também um Jeremias, que se opõe, veementemente, à vocação, que se sente violado e violentado em
sua existência e particularidade, que olha sua vocação como um pesado jugo, um profundo sentimento de dor e
sofrimento. E, portanto, um insatisfeito, um revoltado com Deus, com o mundo e consigo mesmo, a ponto de
amaldiçoar o dia de seu nascimento, pois ali foi feito profeta (Jr 20.15-18). Temos, ainda, um Ezequiel, que,
quase em êxtase, pela visão, cai desfalecido por terra, mas, tomado pela força dinâmica da experiência, pela
palavra do Divino, coloca-se de pé e, no contexto dessa experiência, é arrebatado de um lado para o outro,
como alguém que não encontra forças para reagir; depois cai em depressão, com um amargor profundo no ser,
e é tomado pelo tremor de espírito, como o sentimento de um fraco.
Mas, todos eles cumprem suas missões, que também não são iguais. A identidade das experiências de
vocação está na fonte. Os endereçados e o conteúdo de cada uma são diferentes. Não podemos dizer, contudo,
que uma foi mais importante que a outra, mas cada qual teve e tem sua importância no contexto de sua história
e da vontade de Deus.
O que caracteriza a espiritualidade, no contexto, da vocação do Antigo Testamento é a intensidade com
que cada um vive sua experiência com o Deus Altíssimo. E isso não se deixa colocar em modelos fechados.
Uma coisa é certa em todas as narrativas: o compromisso com a autoridade do Deus que vocaciona e desafia a
agir em direção a uma nova realidade.
Um retorno às tradições bíblicas e sua diversidade, no contexto do Antigo Testamento, pode nos ajudar
a compreender nossa diversidade no respeito com a espiritualidade do outro e, ao mesmo tempo, ter algum
parâmetro de análise que nos possibilite entender a nossa espiritualidade e a do outro. Esses critérios de
compreensão não fecham, necessariamente, a nossa visão da espiritualidade, muito pelo contrário, pode ser
elemento de abertura para vermos nas ações e na história elementos dessa vivência espiritual.

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Podemos ressaltar, mais uma vez, a origem da experiência de vocação, que é a manifestação do divino.
Mesmo não tendo um modelo fechado, nossas narrativas trazem propostas de manifestações que podem ser
vistas de maneira paradigmática.
Temos a teofânica, na experiência de Moisés; a cúltica, na experiência de Gideão, que é diferente da
cúltica na de Isaías, pois, aqui, temos uma manifestação cúltico/apoteótica. Já a experiência de Jeremias é
marcada por uma revelação existencial da divindade, enquanto que na de Ezequiel é mística. Essa diversidade
enriquece a relação do divino com o humano, estabelecendo um novo conhecimento, mas deixando elementos
para identificação de uma experiência como "experiência espiritual".
Existe, ainda, outros aspectos importantes para a compreensão desse tipo de experiência,
especialmente a de vocação. Um desses aspectos é a dimensão histórica da experiência, pois ela se dá na
história, ou seja, ela é condicionada pelo tempo, espaço e acontecimentos da vida, de quem a experiência. Um
outro aspecto importante é a dimensão da linguagem, que não somente traduz a experiência, mas, também,
participa dela; a própria linguagem se torna um elemento de construção, à medida que se expressa. Um terceiro
aspecto é o significado, pois a experiência espiritual não se deixa isolar no passado, mas se mantém presente,
pelo significado que assume na existência de quem a vivencia.
O encontro do homem com Deus na história determina a sua existência, que o leva a mudar a história.
Já vimos que todas as narrativas de vocação do Antigo Testamento destacam está ideia: o encontro vocacional
de Deus impulsiona o homem em direção da história, para escrevê-la nova. Isso nos permite concluir essa
reflexão abrindo-nos para a experiência de vocação, desafiados pela história, conscientes de nossa fragilidade,
mas fortalecidos pela presença do Deus, vocacionador.

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