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DISCIPLINA:
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE
PROFESSOR:
Profª. Vívian Nascimento
1. Vocação
Ao usarmos o termo 'vocação', evocamos uma gama de sentidos entrelaçados, que transcendem, porém, o
aspecto religioso de nosso interesse aqui, pois 'vocação' estaria ligado ao 'ato de chamar', à tendência ou ao
talento de alguém no exercício de uma atividade específica. Mas, neste nosso texto, 'vocação' assume um
sentido mais restrito e bem mais específico, pois pensamos em vocação religiosa. Quando falamos em vocação
1
Extraído de: SOUSA, Ágabo B. de. Vocação e Espiritualidade no Antigo Testamento: compreendendo a espiritualidade a partir das
narrativas de vocação. Rio de Janeiro: JUERP, 2003.
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.2
religiosa hoje, somos remetidos para um complexo de relações, o qual implica na pessoa do vocacionado, em sua
subjetividade, no contexto religioso em que está inserido e em suas exigências.
A tradição cristã ampliou a compreensão vocacional, entendendo ser todo cristão vocacionado e enviado,
em um sentido especial, como portador das Boas-Novas de Cristo.
A história da igreja vai nos mostrar que haverá uma diferenciação de 'vocação' dentro do contexto do
cristianismo, no qual podemos falar da vocação para o discipulado e da vocação "ministerial". Portanto, quando
falamos em vocação, pensamos - especialmente dentro do contexto do Antigo Testamento - no chamado de
Deus, no qual o ser humano é convocado a participar de seus planos e ações, e desafiado, a partir de sua
existência, a estar a serviço desse chamado.
Destacamos, então, alguns elementos importantes no contexto da vocação.
Primeiramente está a divindade. A divindade é quem chama, desafia o ser humano ao cumprimento de
sua vontade. Neste sentido podemos compreender o 'chamado' como aquilo que opera essa vontade na histó-
ria.
Outro elemento importante, aqui, é o ser humano no contexto de sua existência. Com isso, pensamos no
ser humano concreto, cuja existência é tocada pela presença da divindade, fazendo-o compreender sua
vontade e levando-o ao cumprimento de uma missão que a efetive na história. Assim, tocamos em um ponto de
extrema importância, mas, ao mesmo tempo, muito delicado, que é o subjetivismo do "chamado". O chamado
da divindade se dá na existência, no "ser aí", ou seja, no mais profundo do ser, enquanto ser histórico.
Quando falamos em vocação, nesse sentido, temos que nos limitar ao testemunho, pois só o testemunho
nos possibilita conhecer o chamado da divindade a alguém para o cumprimento de uma missão ou ministério.
Assim sendo, os relatos de vocação do Antigo Testamento se tornam de grande valor para
compreendermos o debruçar-se de Deus na história do povo de Israel, conseqüentemente da humanidade.
Dessa maneira, os relatos deixam de ser biografias particulares e passam a ter um sentido maior, pois
testemunham a vontade de Deus para a história da humanidade e da missão do chamado no cumprimento
dessa vontade.
Com isso, ressaltamos que a vocação - especialmente no Antigo Testamento - não tem sua origem na
motivação política, sociológica, ética ou psicológica, mesmo sendo a realidade histórica objeto da vocação. Ela
está fundamentada no mistério da livre ação de Deus em direção ao ser humano, por isso o testemunho se torna
um elemento indispensável para sua compreensão.
2. Espiritualidade
É importante termos em mente o que queremos destacar com o termo espiritualidade, considerando ser
ele muito usado no contexto teológico e que por isso traz consigo muitas implicações.
O termo no hebraico, bem como nas línguas semíticas de modo geral, tem como base de sentido, para o
que nós chamamos de espírito, a ideia de: "o ar em movimento". Mas essa ideia levada ao ser humano,
especialmente no que diz respeito ao Espírito de Deus no homem, está ligada à experiência de respirar, é o que
dá vida à vida. É o poder dinâmico da vida.
A tradição antiquotestamentária manteve a ideia de 'Espírito' e de 'Espiritual' ligada a Deus, ressaltando
os efeitos do seu poder dinâmico na vida do ser humano. Assim, a espiritualidade deixa de ser um aspecto da
vida, como se o espírito fosse um substrato inorgânico, que departamentaliza o ser, e passa a ser a vida da vida,
ou seja, o poder dinâmico que liga harmonicamente, unificando a essência com a existência.
A espiritualidade seria, portanto, viver no envolvimento com o mais profundo da vida. Então, a experiência
com o divino, enquanto criador da vida, se torna, na existência, o componente mais profundo da própria vida,
pois une os elementos da essência com os da existência. Dessa maneira, um encontro com Deus tem este
caráter eminentemente espiritual.
Antes de extrairmos os textos para nossa observação, gostaríamos de estabelecer alguns princípios
norteadores para que possamos ser mais claros em nossa intenção.
(1) Espiritualidade é algo do íntimo do ser de cada um, por isso, particular, próprio do 'indivíduo', mas, por outro
lado,
Capítulo I
Características das narrativas de vocação
Para estabelecer uma "espécie ou género" (Gattung) literário, devemos considerar as características
usadas no texto, uma vez que todo escritor, necessariamente, se serve de um "genero" literário para transmitir
seu pensamento. Devemos, contudo, ressaltar que o aspecto formal da linguagem, pura e simplesmente, não
estabelece o "genero"; para isto, é necessário observar, além dos elementos formais, todo um conteúdo de
pensamento e motivação. Assim, para identificarmos as "narrativas de vocação", deveremos considerar esses
dois aspectos.
Podemos determinar o que chamamos de "Narrativa de vocação", portanto, observando os textos sob o
aspecto da forma e o aspecto do conteúdo, ou temática.
O aspecto formal olha a estrutura do texto, procurando identificar elementos literários característicos, para
estabelecer uma classificação que nos possibilite denominar a narrativa como "narrativa de vocação". O aspecto
temático olha o conteúdo do texto, identificando o tema, como sendo uma convocação divina para o exercício de
uma missão específica, colocando o vocacionado a serviço da divindade, no cumprimento de sua palavra.
Podemos, então, dizer que, do ponto de vista temático, chamamos de narrativa de vocação, no Antigo
Testamento, aquelas que relatam um encontro único e pessoal entre Javé, ou um representante seu, e o próprio
vocacionado, estabelecendo um diálogo onde há lugar para hesitação, objeção por parte deste e argumento da
parte do divino, levando-o à aceitação da missão, ou, então, ao voluntariado para o cumprimento da mesma.
A missão estaria ligada à palavra de Javé dirigida a uma classe de endereçados, que estabelece a
abrangência da atuação do vocacionado. A motivação de uma narrativa como esta seria a legitimação da
autoridade histórica do vocacionado, no cumprimento de sua missão, atribuindo-lhe um valor divino que
envolveria a sua razão de ser.
Tendo isso como ponto de partida, podemos destacar alguns textos que atenderiam a esse pressuposto.
Esses seriam Êxodo 3; Juízes 6; Isaías 6; Jeremias l e Ezequiel 1-3.
Alguns exegetas já observaram que nesses textos temos, basicamente, dois tipos de narrativas de
vocação. De um lado, teríamos as narrativas de Moisés, Gideão e Jeremias, cuja estrutura pode ser colocada
em paralelo; e, do outro lado, teríamos Isaías e Ezequiel.
É necessário destacar, porém, que todas essas narrativas têm elementos comuns extremamente
importantes para a identificação do texto como "narrativa de vocação". Esses elementos são os verbos enviar e
ir, que regem as narrativas, estabelecendo a missão, dando ao comissionado um caráter especial que, nesse
contexto, chamamos de vocação, considerando ser a divindade o sujeito do verbo enviar, sendo, assim, aquele
que comissiona.
Observando os textos onde encontramos essas "narrativas", podemos perceber uma identidade regida
pelo uso desses verbos que denotam o comissionamento. Destacamos abaixo o uso destes verbos:
Verbo "Eu te enviarei" "não te envio eu" "A quem enviarei...?" "...eu te enviar" "eu te envio..."
Esses elementos não são suficientes para estabelecer um genero literário, mas, por certo, mostram uma
identidade literária formal, intimamente ligada ao conteúdo ou tema, que nos possibilita reconhecer uma classe
específica de narrativas.
Schmidt observa a identidade estrutural das "narrativas de vocação" de Moisés, Gideão e Jeremias,
procurando mostrar que a construção narrativa segue um sistema:
A "comissão" e o "sinal" são presentes, também, nas narrativas de vocação de Isaías e Ezequiel.
Em Ezequiel, ficam claros os aspectos genéricos e específicos da comissão, destacados por Schmidt na
narrativa da vocação de Moisés. Ele destaca que Moisés recebe um comissionamento geral, regido pêlos verbos
enviar e ir, ou vir,, e um comissionamento específico, regido por um imperativo, que indica a missão enquanto
tal; no caso de Moisés, temos o imperativo do verbo guiar. Um paralelo pode ser estabelecido com Ezequiel, que
recebe o comissionamento de maneira genérica em 2.3-4: "... eu te envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes
..." O "comissionamento específico" vem em 3.4: "vai, entra na casa de Israel". Também em Isaías podemos
perceber o mesmo paralelo, sendo o "comissionamento específico" regido pelo imperativo do verbo em 6.10 "...
engorda o coração deste povo..."
Existe, ainda, o elemento do sinal que, nas narrativas de vocação profética, ou seja, em Isaías, Jeremias
e Ezequiel, aparece relacionado com a boca. Isaías é tocado por uma brasa na boca', Jeremias recebe a palavra
na boca, colocada pela mão de Javé, e a Ezequiel é dado o livro na boca para comer. Esse elemento deve ser
considerado algo característico das narrativas de vocação profética, pois a boca pode ser vista como instrumento
imprescindível no cumprimento da missão profética.
Essas observações já nos possibilitam ver a proximidade formal entre as narrativas de vocação de Isaías
e Ezequiel, e as de Moisés e Jeremias, que formam, com a de Gideão, um tipo de narrativa de vocação.
Podemos observar a estrutura formal das narrativas de vocação de Isaías e Ezequiel, chamando a
atenção para os elementos distintos das anteriores, como a datação e visão, que precedem a vocação e
preparam o leitor para algo especial.
Em Isaías e Ezequiel, não temos o elemento da "objeção", e o "sinal" precede a comissão. Em Ezequiel,
a comissão é claramente dividida em dois momentos, como dissemos acima, ficando o sinal entre esses dois
momentos.
Capítulo II
A vocação de Moisés - (Ex 3.9-12)
O texto de Êxodo 3 é um texto de grande complexidade literária, impossibilitando-nos de tratar dos seus
problemas diversos. Temos, nesse texto, vários temas como:
a) a teofania da sarça;
b) vocacionamento de Moisés;
c) a promessa da libertação por parte do Egito;
d) a revelação do nome de Javé; e
e) a identificação de Javé com o Deus dos pais. Procuraremos nos limitar ao aspecto do
vocacionamento, só tratando de outros temas quando necessário para o esclarecimento de algo
ligado ao nosso interesse central.
O texto de nosso interesse particular se encontra em Êxodo 3.9 -12, que os exegetas colocam na
tradição Eloísta. Não podemos deixar de considerar o fato de que, no contexto da composição literária, a
narrativa de vocação de Moisés pressupõe a experiência teofânica da sarça, que interrompe seu cotidiano. Deus
é visto como o Deus que se manifesta na história; é o Deus do monte Horeb, é o Deus dos pais. A organização
literária de Êxodo 3.9 -12 estabelece esses pressupostos para a compreensão da narrativa de vocação, onde
Deus não é mais apresentado.
Êxodo 3.9-12 é aberto por uma palavra que, ao mesmo tempo, introduz um novo pensamento, mas o
mantém ligado ao anteriormente apresentado, "e agora...". Assim, temos um elemento literário que nos garante
acesso ao todo da narrativa. Dessa maneira, nos é proposta uma leitura que pode pressupor o anterior como
parte implícita na narrativa.
Veremos o texto, seguindo sua própria apresentação, dividindo-o em quatro partes, considerando a
palavra introdutória no verso 9, que fundamenta o mover de Deus em direção a Moisés, sua missão e sua
reação a esta, quando o diálogo é estabelecido, e a reação de Javé com a promessa de sua companhia.
Moisés é enviado a Faraó para tirar o seu povo, os filhos de Israel, do Egito. De certo modo, é uma
repetição da experiência particular do passado, em dimensões bem maiores. Já houve um preparo que justifica a
comissão. Afinal, eleja compreendeu o sofrimento do povo, a opressão dos egípcios e experimentou a rejeição
dessa realidade.
Há dois imperativos: um é "vai", o outro é "guia". A missão é dividida em duas partes; uma delas é ir a
Faraó como enviado de Deus. Faraó, que era a própria manifestação da divindade egípcia, agora deveria
receber um mensageiro do Deus dos oprimidos, daqueles que estavam debaixo de seu poder e força, tanto do
ponto de vista político quanto do sócio-econômico. Moisés está fora do Egito, que havia deixado por causa de
uma tentativa dessas - livrar um hebreu da opressão de um egípcio. Sua vida havia tomado novas dimensões,
ele fazia o trabalho que, outrora, fazia aquela que se tornara sua mulher: cuidar do rebanho do sacerdote de
Midiã. "Vai a Faraó" implica em um retorno; implica em voltar à sua história particular.
O outro aspecto da missão é guiar o povo, os "filhos de Israel", que Deus chama de meu povo, para fora
do Egito. Isso o remete à sua própria experiência, o que torna a missão ainda mais difícil, pois é o seu próprio
povo que o acusa de ter matado o egípcio (2,13-14). Ele fugira por causa das acusações dos hebreus, que o
rejeitaram como intermediário de um conflito. Assim, a missão representa, de certo modo, um reconstruir de sua
própria história. Se aqueles dois não o aceitaram como intermediário -o injustiçado mesmo se virara contra ele -
como irá o povo aceitá-lo como guia?
Moisés compreende esses dois aspectos da missão, bem como o seu sentido e, por isso, reage a esse
desafio olhando para si. Sua vivência e experiência anterior ficam compactadas em sua resposta.
5. Concluindo
A narrativa de vocação de Moisés nos propõe uma experiência de espiritualidade inteiramente arraigada
na história. A experiência com Deus, preestabelecida na narrativa, é a experiência do santuário; o Deus da mon-
tanha é também o Deus dos pais, ou seja, da história, e isso é assustador para Moisés, que esconde seu rosto
para não ver esse Deus.
"... e Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus." Ex 3.6b.
Sua missão é de caráter político, libertar um povo. Mas é também um desafio a sua própria existência,
pois representa um retorno em sua história pessoal. Ele deveria reescrever sua própria história em uma
dimensão incomparavelmente maior e com sucesso. Sua capacidade não é colocada em questão pela
divindade, a limitação de seu ser é vencida pela presença de Deus, e a afirmação dessa presença é o sucesso
da missão. Em outras palavras, a afirmação da companhia de Deus é a garantia do cumprimento; neste sentido,
a limitação do vocacionado não tem valor decisório.
Há um desvio na perspectiva da questão, pois o problema não é visto a partir da limitação do
vocacionado, mas a partir daquele que vocaciona. O Deus da experiência de Moisés, na narrativa da vocação, é
o Deus que se move pelo sofrimento do povo contra a opressão de Faraó. Não é o Deus que assiste à história,
mas participa dela, na companhia de quem age, buscando mudar a história de opressão em história de
liberdade. Liberdade de servir a Deus "neste monte", ou seja, ali, onde ele se manifesta.
Temos, aqui, uma espiritualidade vivenciada no dia-a-dia, pois Deus rompe o cotidiano de Moisés e o
leva a um compromisso com a história, vocacionando-o para ser agente de mudanças que efetuaria na vida de
seu povo.
Capítulo III
A vocação de Gideão Jz 6.11-24)
A narrativa de vocação de Gideão pressupõe uma situação especial na história do antigo Israel. Já no
diálogo entre Gideão e o "Mensageiro de Javé" há uma menção aos acontecimentos anteriormente narrados.
Gideão responde: "Ai, senhor meu, se Javé é conosco, por que tudo nos sobreveio?" Esse "tudo" que
"sobreveio" é apresentado no início do capítulo. Há uma referência a ataques contínuos, especialmente no perío-
do da colheita, por parte de grupos nómades do deserto – midianitas, amalequitas e os filhos do oriente –, que já
haviam domesticado camelos, tornando-se velozes, e andavam em grandes bandos. Os saques contínuos
4. Concluindo
Evidentemente, deixamos de tocar em muitos pontos importantes desse capítulo, mas nos interessa
fazer destaques em relação à vocação do profeta. Primeiramente, devemos destacar que uma experiência nova
com Deus provoca uma forma nova de ver a si mesmo. No caso de Isaías, temos uma espiritualidade
Capítulo V
A vocação de Jeremias (Jr 1.4-10)
Estamos diante de um texto bem diferente do texto de Isaías 6, apesar de se tratar de um relato de
vocação. Já na sua forma percebemos grandes diferenças. Jr. 4-10 traz características literárias bem específicas
de ato de vocação, que lembram Gideão (Jz 6.11-17) e Moisés (Ex 3.9-12).
Diferente do de Isaías, o relato de vocação de Jeremias é apresentado sem colorido, sem apoteose, sem
visão. As partes são quase estanques, diretas. O diálogo mais parece uma discussão. Cada parte é rica de
significado, mas pesada e compacta.
Esse capítulo é especial para a compreensão de todo o livro, pois é uma introdução, onde temos uma
espécie de resumo, ou, pelo menos, os elementos norteadores para uma leitura proveitosa do livro. O relato da
vocação traz, portanto, elementos importantes para entendermos o profeta em seus conflitos consigo, com Deus
e com o povo.
Vamos dividir o texto em seis partes: a Palavra (v.4); comunicação divina (v.5); objeção (v.6); ordem
(v.7); promessa (v.8) e missão (v.9-10).
Todo o verso é só comunicação para o profeta. Ele foi determinado para algo que envolve sua
existência.
7. Concluindo
Trata-se, por certo, de um texto rico no contexto do livro, que poderia ser visto com as implicações
internas da narrativa em relação a todo o livro. Mas essa visão geral do texto nos possibilita compreender um
pouco da espiritualidade na vocação profética de Jeremias.
Gostaríamos de destacar a experiência de Jeremias com Deus. Ela reflete um profundo conflito
existencial. Deus não se apresenta a Jeremias convidando-o para a vivência de sua vocação, mas invade, sem
licença, o mais profundo de sua existência. Javé penetra o lugar mais íntimo da existência humana, o útero
materno. Jeremias se sente, assim, violentado e argumenta, com sua própria condição, a recusa à missão. Mas
nada é considerado no diálogo, só a vontade de Javé.
Não há visão, teofania, ou qualquer coisa do gênero na narrativa de vocação de Jeremias; há apenas
uma história acidentada pela palavra de Javé.
Temos uma espiritualidade do conflito existencial. Não há elementos cúlticos, para o exercício da
espiritualidade. Há, sim, uma rejeição da comissão, da vocação. Completamente diferente de Isaías, que se
oferece para a missão, Jeremias não tem a oportunidade nem de rejeitar. A palavra é colocada de tal maneira
em sua boca que ele não consegue se manter calado, pois esta queima no interior do seu ser.
Na espiritualidade de Jeremias, segundo o relato de vocação no capítulo l, é a espiritualidade da solidão,
marcada não só pelo desejo da união com Javé e aceitação do seu povo, mas, ao mesmo tempo, pela hostilida-
de da rejeição desse desejo, que lhe causa sofrimento. Isaías se sente identificado com o povo. Jeremias não
discute sua identidade, mas sua individualidade existencial. Sua relação com o outro é a relação do conflito pelo
cumprimento da sua missão: destruir, derribar, arruinar, arrancar, construir e plantar
É, também, a espiritualidade do "eu serei contigo". Do profundo sentimento da companhia de Javé como
única garantia da vivência dessa espiritualidade. Por essa razão, o conflito entre o profeta e Javé será constante,
pois é uma relação de existência profunda.
Capítulo VI
A vocação de Ezequiel (Ez 1-3)
O texto de Ezequiel que traz sua experiência de vocação é bastante complexo, do ponto de vista
literário. Se, nos textos de Isaías e Jeremias, não entramos em detalhes literários, nesse passaremos mais longe
ainda.
Há várias maneiras de dividirmos o texto, mas usaremos uma divisão própria do nosso interesse, com
base na estruturação dos relatos de vocação, pois já conhecemos um pouco mais da estrutura através das
leituras de Êxodo 3.9-12, Juizes 6.11-24, Isaías 6 e Jeremias 1.
Dividiremos o texto em quatro partes, destacando, em cada uma delas, alguns elementos que
consideramos importantes para a compreensão da espiritualidade do profeta, no contexto do relato de vocação.
Essas partes são: Experiência com Deus; Vocacionamento; Sinal e Missão.
5. Concluindo
O texto de Ezequiel 1-3 é um texto realmente complexo e rico de sentido no contexto do livro. O relato da
vocação de Ezequiel é, dentre os profetas literários, o mais cheio de detalhes, demonstrando um outro momento
da história da literatura bíblica. A visão é tão espetacular que lembra as visões apocalípticas.
O texto narra a experiência do profeta com Deus, apresentando uma visão, acompanhada por uma
descrição teofânica de uma tempestade terrível. É a presença da glória de Deus diante do profeta. A narrativa
lembra Isaías, mas Ezequiel é ainda mais espetacular, muito distante de Jeremias.
O profeta experimenta isso tudo em uma entrega, sem uma reação de luta. Ele desfalece e é vencido pela
"forte mão de Javé". Seu sentimento interior é descrito de maneira negativa, mas sem uma tentativa de afirma-
ção diante do que estava vivenciando. Recebe o livro para comer, este é doce, mas sua vida fica amarga
(lembra Ap 19.9).
Temos uma espiritualidade especial: a espiritualidade da entrega, onde o sofrimento interior não
corresponde à proposta do doce e da coragem. Mas o profeta se deixa levar; há uma entrega passiva.
Ele termina entre o povo, no relato da vocação, mas com um sentimento de separação construído no
processo da experiência vocacional.
A espiritualidade de Ezequiel é a espiritualidade do "não temas", da coragem, da resistência, da
experiência espetacular e conflitante, que rompe os elementos clássicos da tradição, inovando as visões que se
tornarão comuns na literatura posterior, na literatura apocalíptica.
1.1 - Complexidade
A forma como essas experiências são narradas nos textos acima apresentados já nos faz perceber que se
trata de algo especial. Não se estabelecem com clareza as dimensões dos acontecimentos. O limite entre o
humano e o divino não é rigorosamente mantido, as fronteiras não são respeitadas. Há uma invasão de limites,
como se não existissem barreiras entre a realidade histórico-existencial e o divino, os "mundos" do divino e do
humano interagem.
Na experiência de Moisés, isso é expresso na palavra introdutória, pois Deus ouve o clamor e vê o
sofrimento do povo oprimido. Já a narrativa de Gideão apresenta esta participação das dimensões humana e
divina na pessoa do "mensageiro de Javé", que ora é visto como estrangeiro peregrino, ora como o próprio Javé.
De qualquer forma, a palavra de autoridade na boca do "mensageiro" é a palavra de Javé. Nas narrativas dos
profetas, fica claro que as fronteiras são uma linha muito ténue, praticamente imperceptível. Especialmente nas
narrativas de Isaías eEzequiel, que apresentam sua visão da glória de Deus (kabod). Eles contemplam a
dimensão do divino. Difícil é descrever o indescritível, daí o uso das imagens espetaculares, com seres e
experiências incomparáveis. Jeremias expressa isso falando do conhecimento de Javé, quando o profeta ainda
estava no útero de sua mãe. Para os três profetas, há uma ação direta da dimensão do divino sobre a realidade
da experiência humana, quando falam do toque na boca. Javé coloca as palavras na boca de Jeremias, um ser
da "corte de Javé" pega uma brasa do altar do templo e toca na boca de Isaías, e Javé coloca o livro a boca de
Ezequiel.
Há o perigo de querermos reduzir essas experiências a efeitos do êxtase psicológico. Devemos dizer que
o êxtase é um elemento comum na experiência religiosa e pode ter diversas causas. Dessa maneira, teríamos
"explicação racional" para a experiência espiritual. Mas, quando fala-desse tipo de experiência, referimo-nos a
VOCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE – p.24
um encontro com o infinitamente complexo e, por essa razão, somos, muitas vezes, forçados a usar uma
linguagem de caráter eminentemente alegórico para expressar a complexidade que arrebata a totalidade do ser,
daquele que a experimenta, levando-o, assim, a uma experiência de êxtase.
Por outro lado, olhar as experiências apresentadas nas narrativas de vocação do ponto de vista da história
das religiões, fazendo uma leitura eminentemente sociológica, prendendo-se ao fenómeno apenas, é - a nosso
ver - um empobrecimento da realidade religiosa e uma desconsideração ao caráter intimista da existência
humana. Assim, podemos dizer que reduzir toda experiência espiritual, extática (de êxtase) ou não, a uma pers-
pectiva psicológica ou sociológica é deixar de ver que há uma complexidade no universo, que é maior que o
próprio ser humano.
Portanto, entendemos que as narrativas de vocação que lemos pretendem apresentar mais que
experiências individualizadas de fenómenos psicológicos ou sociológicos, pois esses textos não são puramente
biográficos; eles transcendem o limite da vida particular dos vocacionados, revelam algo mais, que os torna
valiosos para a tradição.
Essas narrativas são de caráter eminentemente teológico: elas interpretam a atuação da divindade na
realidade dos vocacionados. Assim, a experiência deles deixa de ser algo preso no tempo e no espaço, deixa de
ser uma lembrança na história e passa a ser uma espécie de protótipo da existência humana.
A tradição não manteve essas narrativas preservadas até os nossos dias por causa de Moisés, Gideão,
Isaías, Jeremias ou Ezequiel, mas por causa de Javé. Não foram os homens que determinaram sua preservação
e sua importância para nossa experiência religiosa, mas a divindade. O determinante do sentido das narrativas é
o divino. Assim, elas são sempre atuais, pois se desprendem do limite da existência dos personagens humanos
e se tornam presentes na essência do ser divino, que não tem passado nem futuro. Ou seja, o seu sentido não é
limitado ao tempo, mas encontra um lugar vivo em toda a existência.
1.2 - Atualidade
Falar da atualidade da experiência espiritual, com base nas narrativas, não é muito confortável,
especialmente se essas podem ter até três mil anos e passaram por um longo processo de estruturação. Mas, a
narrativa, em si, estabelece a atualidade, pois ela dá vida, e vida histórica, ao acontecimento. Assim, falo da
atualidade da narrativa que faz viva uma história.
As narrativas de vocação localizam o momento a que se referem, como elemento significativo na
experiência. Em Êxodo - na narrativa de Moisés - há uma clara localização no sofrimento do povo: esse é o ele-
mento de regência da atualidade da experiência; a narrativa de Gideão descreve a situação de Israel, colocando
o próprio Gideão como um representante, no qual todo o temor e proceder da nação estão concentrados. A
importância de Gideão na narrativa, está, especialmente, no fato de ser ele um representante típico da nação
oprimida, aquele que se esconde no temor do ataque inimigo; já na experiência de Jeremias, a atualidade da
narrativa não está necessariamente ligada à história da nação, enquanto tal, mas à de sua própria existência; o
problema está no ser menino; como existência, não é um elemento limitado a Judá, universaliza-se em sua
atuação de destruir - eliminar a existência - e contruir - estabelecer a existência. As narrativas de Isaías e
Ezequiel são localizadas com datações específicas, mostrando que as experiências narradas estão ligadas ao
tempo e se fazem atual naquele tempo, mas não absolutamente limitadas a ele. Para Isaías, é a identidade na
impureza e, para Ezequiel, é a diferença na obstinação que regem a apresentação das experiências
espetaculares desses dois profetas. Essas narrativas trazem as experiências para um tempo, expresso por
acontecimentos e circunstâncias; um tempo histórico, portanto.
Isso é importante por ser teológico o interesse precípuo dessas narrativas. As experiências são com o
divino, ou seja, são experiências que não se deixam prender no tempo e no espaço, mas que não podem
prescindir dessa dimensão, pois só encontramos o ser humano vinculado ao tempo e ao espaço. Só existe
homem na história.
As experiências espirituais expressas nas narrativas são, portanto, históricas, mas não limitadas ao
passado. A narrativa tem esse papel: não fechar no passado suas afirmações teológicas. Ela mesma atualiza,
para quem lê e para quem ouve, as experiências, dando-lhes um valor teológico no presente. Podemos chamar
a isso de teologia narrativa. Não há uma prisão do narrado ao acontecimento histórico, pois ela não fala
simplesmente de fatos, mas de homens - seres humanos - em suas relações com o divino. Elas falam de
sofrimento, temor, existência, impureza, obstinação, que são elementos vivenciáveis apenas na história, porém,
em qualquer momento dela. Esses elementos são sempre atuais na existência humana. Por isso, as narrativas
1.3 - Perplexidade
A perplexidade é característica de quem duvida, hesita. É importante destacar que a dúvida, na
experiência espiritual, especialmente no caso das narrativas bíblicas de vocação, não é um elemento negativo,
muito pelo contrário, ela é um elemento positivo. Tillich, falando sobre a relação entre fé e dúvida, observa que
"dúvida existencial e fé são os pólos que determinam o estado interior da pessoa possuída pelo incondicional."
"A dúvida séria, porém, éuma confirmação da fé. Ela prova a seriedade e a incondicionalidade da sua perple-
xidade." A dúvida e a hesitação, ou seja, a perplexidade, nas experiências de vocação narradas nos textos
acima apresentados são elementos propulsores em direção ao compromisso do vocacionado com a divindade
que o vocaciona A razão da perplexidade é compreensível, pois se trata da experiência do finito com o infinito,
do imanente com o transcendente. A experiência com o divino é sempre maior que a capacidade de
compreensão de quem a vivência, por isso a hesitação é a primeira reação do ser humano.
Se olharmos para a reação de Moisés em sua narrativa de vocação, perceberemos que há uma
perplexidade clara: "Quem sou eu, para que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?" (Ex 3.11); a narrativa
de Gideão deixa esse elemento mais claro ainda quando ele responde à saudação do "mensageiro de Javé": "Ai,
senhor meu, se Javé é conosco, por que tudo nos sobreveio?" (Jz 6.13). Há também uma réplica à ordem: "Ai,
senhor meu, com que livrarei Israel? eis que minha família é a mais pobre em Manassés, e eu o menor na casa
de meu pai" (Jz 6.15); a narrativa de Isaías expressa isso em dois momentos: primeiro, quando reconhece sua
condição com o "ai de mim!" (Is 6.5), e outro quando, ao receber a ordem, a questiona: "Até quando Senhor?" O
texto de Jeremias expõe essa perplexidade com a expressão: "Ah, Senhor Javé! Eis que não sei falar; porque
sou um menino" (Jr l .6). A narrativa de Ezequiel coloca a perplexidade do profeta no "cair com o rosto em terra"
(Ez l .28) e no testemunho da própria condição do profeta, amargurado e pasmado (Ez 3.14-15). Devemos
observar que estes questionamentos ficam sem resposta direta e satisfatória - com exceção de Isaías. Mas, a
despeito dessa dúvida, e até mesmo da negatividade, ansiedade e hesitação diante da experiência, o poder da
auto-afirmação, conseqüentemente a aceitação do vocacionamento, deriva da confiança na divindade que
vocaciona e possibilita a experiência espiritual, como um encontro pessoal entre o homem vocacionado e o Deus
vocacionador. Não podemos deixar de perceber que esta perplexidade está diretamente ligada a uma
introspecção, a uma visão de si mesmo diante da grandeza de Deus, sua glória e missão.