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A escola em ciclos: fundamentos e debates

Jefferson Mainardes

Capítulo 1

A escola em ciclos e seus principais fundamentos

O termo “ciclos” vem sendo utilizado no Brasil e em outros países para designar uma forma de organização da
escolaridade que pretende superar o modelo da escola graduada, organizada em séries anuais e que classifica os
estudantes durante todo processo de escolarização. Com essa nova forma de organização, os anos da escolaridade
obrigatória são divididos em ciclos de 2, 3 ou 4 anos. A reprovação é possível apenas no final de cada ciclo e, em
algumas experiências, ela é totalmente eliminada e substituída por outras formas de progressão dos alunos. As
experiências e discussões sobre a escola em ciclos são encontradas em diferentes países, principalmente naqueles que,
historicamente, têm adotado o sistema seriado e a reprovação anual, como por exemplo Canadá (Québec), França,
Suíça, Bélgica (comunidade francesa), Portugal, Espanha, Brasil, Colômbia, entre outros.

Em alguns países como a Inglaterra, Escócia, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega, a escola graduada e as
práticas de reprovação há tempos não são empregadas. Nesses países, a ideia de que os alunos devem progredir
sucessivamente já foi praticamente consolidada. Embora o termo “ciclos” não seja utilizado nesses países, algumas
referências de idade são utilizadas para a formação dos agrupamentos. No caso da Inglaterra, a educação obrigatória é
dividida em quatro estágios-chave (key stages): de 5 a 7 anos (estágio 1), de 7 a 11 anos (estágio 2), de 11 a 14 anos
(estágio 3) e de 15 a 16 anos (estágio 4). Esses estágios são utilizados como referência tanto para os agrupamentos
quanto para a estruturação do currículo e da avaliação nacional (testes). Nesses países, os alunos são matriculados e
promovidos automaticamente por idade. Esse modelo de escolarização é considerado inclusivo e não-seletivo.
Independentemente da classe social, características ou dificuldades de aprendizagem, todos os alunos têm acesso à
escola e permanecem na escolarização obrigatória. A heterogeneidade das classes é atendida por meio de dispositivos
da pedagogia diferenciada e atendimento individualizado ou em pequenos grupos (dentro da sala de aula ou em classes
de atendimento mais especializado).

Atualmente, em alguns desses países, esse modelo de escolarização baseado em grupos de idade tem sido
questionado, principalmente por pais da classe média. De modo geral, as famílias dessa classe manifestam forte
preferência pela organização das classes de acordo com os níveis de aprendizagem e desempenho dos alunos,
acreditando que isso permitira maiores oportunidades de progresso da aprendizagem, principalmente em uma sociedade
competitiva e que valoriza o alto desempenho. Em alguns casos, a organização das classes de acordo com os níveis de
aprendizagem e desempenho dos alunos tem sido reintroduzida, com o consequente abandono da organização de grupos
de acordo com a idade dos alunos (Ball, 2003). A reintrodução da organização das classes com base em níveis de
aprendizagem e desempenho dos alunos indica a existência de um ponto de tensão entre diferentes possibilidades de
organização das classes e ainda a preferência de pais e professores pelas formas mais convencionais de organização da
escolaridade. Essas formas mais convencionais são vistas como a garantia de que os alunos progredirão em suas
aprendizagens sem serem prejudicados pela presença de alunos considerados “menos capazes” ou que necessitam de
maior apoio e atenção no cotidiano escolar.

Os ciclos e seus fundamentos

Em um sentido epistemológico geral, a proposta da escola em ciclos está comprometida com a transformação
do sistema educacional. A escola em ciclos questiona a lógica da escola graduada, sua estrutura, organização e
finalidades. As limitações mais visíveis da escola graduada são os elevados índices de reprovação, a evasão escolar e os
alunos em situação de destorção idade/série (em decorrência das reprovações, da evasão ou do ingresso tardio na
escola). Assim, a escola em ciclos propõe uma ruptura com o modelo da escola graduada (considerado excludente e
seletivo), com a reprovação e com o fracasso escolar e, por conseguinte, a sua transformação em um sistema
educacional não-excludente e não-seletivo. Para que essa transformação possa acontecer, o sistema educativo precisa de
uma base nova, mais rica e mais elevada em relação às bases e elementos que fundamentam a concepção de escola atual

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(majoritariamente seriada). Essa transformação, no entanto, precisa ser entendida como um processo longo, onde
estados qualitativos superiores desse sistema educativo vão sendo alcançados e ampliados ao longo do tempo.

Em termos gerais, a retórica da escola em ciclos é progressista, uma vez que a sua implementação tem sido
justificada como uma possibilidade real de criação de uma escola democrática, não-seletiva, não-excludente e que
poderia garantir a todos os alunos o direito de permanecer na escola e de aprender.

A escola em ciclos é uma política complexa, e diversas justificativas têm sido apontadas na constituição de
seus fundamentos principais. Estas justificativas podem ser enquadradas como filosóficas e políticas, psicológicas,
antropológicas e sociológicas.

As justificativas filosóficas e políticas indicam a organização da escolaridade em ciclos como uma modalidade
de organização que, potencialmente, permite a ampliação do direito à educação, contribui para a democratização da
educação e permite uma ruptura com as práticas de exclusão dentro da escola. Segundo Gomes (2004), a opção pela
reprovação escolar não é apenas um procedimento metodológico, mas expressa determinada visão de homem, mundo e
sociedade. Para a autora, um sistema educativo que se compromete com o um conceito amplo de democracia deve
utilizar todos os esforços individuais e coletivos para promover a aprendizagem significativa de todos os alunos, pois “a
aprendizagem significativa dos saberes difundidos pela escola é uma das condições necessárias para que os indivíduos
vivam bem individual e coletivamente” (Gomes, 2004, p.156).

Diversos aspectos psicológicos são evocados como fundamento para a escola em ciclos:

− a aprendizagem é um processo contínuo e progressivo que não se restringe ao tempo de um ano letivo
apenas;

− a escola precisa atender as diferenças individuais no processo de aprendizagem;

− a eliminação da reprovação e a possibilidade de progressão na aprendizagem contribuem para a


preservação da autoestima dos alunos;

− o fato de as classes tornarem-se mais heterogêneas (diversidade) permite a ampliação das possibilidades
de interação na sala de aula;

− a escola em ciclo permitiria alterar o foco da transmissão do conhecimento para a construção, na qual os
alunos poderiam assumir um papel mais ativo.

Aspectos de natureza antropológica também são mencionados por autores que têm fundamentado a escola em
ciclos. Ao referir-se à noção de temporalidade humana, Arroyo (2003) defende que a função da escola e de toda
instituição educativa é dar conta do desenvolvimento pleno dos estudantes. Para ele, o processo de formação humana
passa por tempos diferentes: tempo de infância, de adolescência, de juventude, de vida adulta. Assim, a ideia de ciclo é
“ciclo da vida, é tempo da vida, temporalidade da formação humana” (p.2). O autor defende ainda que para saber como
trabalhar com a lógica dos tempos da vida faz-se necessário compreender, primeiramente, a lógica temporal do sistema
escolar, pois esse é o meio de se entender os problemas que levam ao fracasso e à evasão escolar e, em consequência, à
não-democratização da escola. Ainda segundo Arroyo (2004), a lógica temporal institucionalizada é a lógica que
organiza o sistema seriado. Essa lógica se caracteriza por ser “transmissiva”, pois organiza os tempos e espaços dos
docentes e dos alunos em torno dos conteúdos que deverão ser transmitidos; possui um caráter “precedente” e
“acumulativo” dos conteúdos, isto é, encara que um conteúdo precede o outro, em determinada ordem, que estabelece a
organização dos bimestres e séries, acumulando-os em etapas subsequentes; organiza-se tendo por base “ritmos
médios” de aprendizagem, ou seja todos devem absorver os conteúdos transmitidos num mesmo tempo médio e os que
não se adequarem serão reprovados; por último, essa lógica trabalha com a “simultaneidade”, pois os alunos devem
aprender os conteúdos de todas as disciplinas ao mesmo tempo, caso contrário serão reprovados também. Essa lógica
determina tudo dentro da escola seriada e vem colada a uma concepção de currículo fragmentado, classificatório,
excludente e homogeneizador. Por meio da escola seriada institui-se uma sequência que fragmenta cada vez mais os
tempos escolares e, em decorrência disso, o conhecimento, limitando espaços e relações.

Outro aspecto de natureza antropológica é o fato de que a escola em ciclos reconhece a pluralidade e a
diversidade cultural como uma característica de qualquer escola e sala de aula e que ela precisa ser considerada e
incorporada na dinâmica pedagógica do cotidiano da escola, ou seja, nas propostas curriculares, na organização do
trabalho pedagógico, nas relações de ensino, enfim, em todas as dimensões de trabalho educativo. O atendimento a essa
diversidade indica que o currículo precisaria ser formulado e desenvolvido de maneira flexível para dar conta do
pluralismo social e cultural que caracteriza a comunidade escolar.

Em um sentido sociológico, os ciclos pretendem contribuir para tornar a escola menos seletiva, acolhendo os
mais diferentes grupos sociais. Para Gimeno Sacristán (2001), a escola pública é uma aposta histórica a favor da

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igualdade, pois possibilita o acesso à educação a toda diversidade de estudantes, independentemente da sua condição
social, gênero, capacidade, credo religioso etc. Assim, a chamada escola inclusiva ou não-seletiva pode ser considerada
como um “modelo historicamente mais integrador das diferenças”(p.95). Ao acolher esta diversidade, a escola e os
educadores são desafiados a identificar as possibilidades pedagógicas e políticas para garantir aos alunos a permanência
na escola, o desenvolvimento pleno de suas capacidades, a apropriação do conhecimento escolar e o alargamento
progressivo das perspectivas temporais (ou seja, traçar planos amplos para o futuro, conforme propõe o educador
George Snyders (1977) A ideia de que a escola em ciclos pode tornar-se menos seletiva é particularmente relevante para
as crianças e jovens das classes populares, que são os mais prejudicados pela seletividade da escola pela desigualdade e
exclusão social, bem como por todas as formas de dominação de classe.

Os fundamentos epistemológicos, bem como os fundamentos filosóficos e políticos, psicológicos,


antropológicos e sociológicos sintetizados acima são de ordem geral. Na prática, há uma série de modalidades de
organização da escola em ciclos (ciclos de formação, ciclos de aprendizagem, regime de progressão continuada, bloco
inicial de alfabetização etc). Nessas modalidades, os fundamentos dos ciclos são incorporados ou recontextualizados de
formas diferenciadas. Além das diversas modalidades existentes, é necessário destacar que as redes de ensino, ao
constituírem suas propostas de escola em ciclos, podem acentuar mais um ou outro aspecto.

Assim como qualquer outra política, a implantação dos ciclos é consubstanciada em textos políticos
(documentos oficiais) e em outras formas de divulgação (documentos orais, entrevistas, sites, folhetos etc). A
identificação dos fundamentos e das justificativas para os ciclos demanda a leitura desses textos, bom como a análise
dos encaminhamentos utilizados para a implementação dos ciclos. Muitas vezes, esses documentos apresentam
justificativas progressistas, utilizadas como elementos de retórica, com o objetivo de mostrar que a política de ciclos é
adequada. Apesar disso na prática, é possível que não haja um compromisso efetivo com tais justificativas.

A despeito de possíveis contradições entre os textos das políticas e os encaminhamentos dados pelos gestores
do sistema educacional, é importante destacar que é no contexto da prática, ou seja, nas escolas e nas salas de aula, que
as políticas de ciclos se efetivam. Ball (1994) explica que as políticas são sempre incompletas, simples e pouco
refinadas. Já a prática é sofisticada, contingente, complexa e pouco previsível. Assim as políticas oficiais são
reinterpretadas e recriadas no contexto da prática. Ele explica ainda que as políticas colocam problemas aos sujeitos,
problemas que precisam ser resolvidos no contexto (Ball, 1994). O contexto da prática, por sua vez, é influenciado por
múltiplos fatores, tais como: a infraestrutura disponível, condições objetivas de trabalho dos professores e demais
profissionais da educação, a gestão da escola, características da comunidade escolar, concepções dos profissionais da
educação e nível de domínio e conhecimentos que a equipe da escola como um todo possui sobre os ciclos. Desse
modo, e possível identificar diferentes níveis de adesão aos ciclos, de interpretações e de formas de lidar com os
problemas e desafios que os ciclos colocam para as escolas, professores e para o sistema educacional como um todo.
Em virtude dessas questões, nem sempre é possível fazer generalizações com relação às interpretações dadas aos ciclos,
sua implementação e seus resultados.

Princípios da organização da escolaridade em ciclos

Em decorrência dos fundamentos explicitados acima, em geral a organização da escolaridade em ciclos


defende os seguintes princípios:

a) a garantia da continuidade e progressão da aprendizagem, entendida como um processo contínuo que


dispensaria a reprovação ou interrupções desnecessárias;

b) a reprovação e os degraus anuais (séries convencionais) devem ser substituídos pela progressão contínua
dos alunos. Em alguns países, bem como em algum as redes de ensino, essa progressão é garantida pela
matrícula e promoção por idade; em outros, pela implantação de ciclos plurianuais, cuja duração pode
variar de um sistema de ensino para outro;

c) os objetivos a serem atingidos no final de cada ciclo precisam ser definidos, mas os alunos poderão seguir
trajetórias diferenciadas no decorrer do ciclo, pois os ritmos e as necessidades de aprendizagem são
diferentes para casa um ou para grupos de alunos;

d) a avaliação classificatória (baseada em notas, classificação, aprovação ou reprovação) precisa ser


substituída pela avaliação contínua e formativa. Os professores são orientados a utilizar as informações da
avaliação para acompanhar a aprendizagem dos alunos (regulação) e planejar as intervenções necessárias
(feedback);

e) além da avaliação formativa, propõe-se a pedagogia diferenciada (para atender os diferentes níveis de
aprendizagem dos alunos dentro de uma mesma classe), a mudança dos métodos de ensino e o trabalho

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coletivo dos professores de um mesmo ciclo.

No caso das experiências brasileiras de organização da escolaridade em ciclos, é importante destacar que:

a) os fundamentos e princípios dos ciclos são incorporados e recontextualizados de formas diferenciadas


pelas redes de ensino. Em algumas redes públicas (estaduais ou municipais), a implantação da escola em
ciclos ocorre como parte de um processo de reorganização mais ampla do sistema de ensino. Nesse caso,
são realizadas alterações substanciais no currículo, na avaliação, na organização da escola, na formação
permanente dos professores, nas condições de trabalho e na infraestrutura das escolas. Já em outras redes,
as mudanças propostas são mais limitadas e restringem-se apenas a alguns aspectos, tais como mudanças
no sistema de promoção dos alunos ou na sistemática de avaliação da aprendizagem. Em alguns casos, a
política de ciclos é proposta ou mantida como uma forma de diminuir ou eliminar a reprovação, sem que
haja um compromisso efetivo com alterações mais amplas e profundas no sistema educacional;

b) alguns estudiosos têm alertado sobre interpretações inadequadas dos ciclos. Por exemplo, Arroyo (2004)
diz que se costuma encarar que a política de ciclos significa dar mais tempo aos alunos mais lentos e aos
que possuem problemas de aprendizagem. Diferentemente disso, os ciclos trabalham com a adequação dos
tempos escolares aos tempos da vida. A esse respeito, Lima (2000) pondera que seria um equívoco
considerar o ciclo como uma proposta voltada àqueles que têm dificuldades de aprendizagem ou que
fracassem na escola ou que os ciclos têm apenas a finalidade de acabar com a repetência. Para ela, a
educação por ciclos de formação “é uma organização do tempo escolar de forma a se adequar melhor às
características biológicas e culturais do desenvolvimento de todos os alunos. Não significa, portanto, ‘dar
mais tempo para os mais fracos’, mas, antes disso, é dar o tempo adequado a todos” (p. 9-10). Uma escola
organizada em ciclos provavelmente produzirá classes bastante heterogêneas (formadas por alunos com
diferentes níveis de aprendizagem). No contexto da proposta da escola em ciclos, isso não é considerado
algo negativo, mas é algo próprio da dinâmica da vida humana.

Origens da escola em ciclos

A idéia de flexibilizar o tempo da instrução, bem como a de criar alternativas para superar a reprovação e o
fracasso escolar não é nova. Em uma breve síntese, pode-se dizer que a escola burguesa, desde o seu surgimento, já
possibilitava uma organização escolar por anos ou níveis (Silva, 2006). Uma retomada histórica sobre a escola burguesa
remete à transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista e, necessariamente, à Revolução
Francesa (1789), evidenciando que a educação (instrução) era entendida como fundamental não só para a formação de
trabalhadores hábeis para a implantação desse novo modo de produção, mas principalmente de um novo modo de
pensar, que consolidaria uma nova sociedade, pautada nos princípios democrático-liberais de oposição ao feudalismo: a
liberdade e a igualdade (Silva, 2006).

Os discursos e planos pedagógicos foram elaborados pelos filósofos iluministas, que pertenciam a diferentes
grupos, ora mais próximos dos interesses dos setores mais ricos da burguesia, ora dos operários e camponeses. Estes
documentos evidenciavam o quanto os princípios de liberdade, individualismo e igualdade jurídica eram fundamentais
para a visão de mundo da burguesia e a consolidação de seu projeto. Dos discursos à construção de um sistema de
instrução consoante com a nova ordem, destaca-se o relatório de Condorcet, de 1792 (Silva, 2006; Boto, 2003), pois
nele estão contidos, além de aspectos sobre a organização escolar, os princípios liberais até hoje defendidos para a
educação pública, entre estes a gratuidade, a laicidade e a obrigatoriedade.

Para a organização da instrução nacional, esse relatório propunha quatro graus: as escolas primárias, as escolas
secundárias, os institutos e os liceus. O grau primário seria composto de quatro níveis, cada nível correspondendo a um
ano de curso. Havia, no relatório de Condorcet, o pleno reconhecimento de que o nível primário de ensino seria o único,
nas condições então presentes, que poderia ser, de fato, estendido à totalidade dos cidadãos. Mas a ideia era justamente
a de que, gradativamente, essa oportunidade de acesso à escola fosse alargada, de maneira que, cada vez mais, um
contingente sempre mais amplo de crianças pudesse alçar um degrau a mais na instrução nacional. Por essa razão, “a
escola deveria ser gratuita em todos os graus, embora, no princípio, apenas a escola primária tivesse condições de ser
universalizada para todo solo francês” (Boto, 2003, p. 747).

Entretanto, no decorrer do relatório, há reiteradas justificativas para a limitação, tanto de duração quanto de
instrução oferecida no grau primário. Tanto a duração quanto a instrução estariam subordinadas às necessidades de
trabalho das crianças mais pobres, que não tinham condições de continuar seus estudos. Tratava-se, portanto, de uma
“igualdade” de acesso condicionada às condições de classe de cada um (Silva, 2006). A pouca possibilidade de
continuidade nos estudos, por parte das crianças mais pobres, era prevista no relatório. A duração e a sequência da

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instrução baseavam-se nas necessidades do trabalho e, portanto, dos proprietários. Nesse sentido, o pensamento burguês
possibilitava gradativamente o acesso à instrução, mas mantinha a elitização e os privilégios, por meio de mecanismos
de dosagem do conhecimento, conforme as necessidades dos proprietários e justificativas pautadas no mérito, em
virtude das capacidades inatas (Silva, 2006).

Essas evidências históricas são fundamentais para se compreender que a ideia de flexibilização da
escolarização, já na sua origem, estava estreitamente relacionada às determinações econômicas e de classe social. Esse
aspecto pode ser tomado como um dos principais determinantes na compreensão da origem dos ciclos (enquanto
flexibilização da escolarização) e da necessidade dos ciclos ainda nos dias de hoje. Como a sociedade continua calcada
na desigualdade e na exclusão social, há necessidade de criar alternativas que sejam mais adequadas às características
da população e ao período histórico em questão.

Atualmente, a flexibilização dos tempos escolares tem sido utilizada com intenção de se garantir uma
permanência mais longa e mais bem-sucedida dos alunos na escola, com vistas à ampliação do direito à educação
(perspectiva mais progressista); outras vezes, é empregada como forma de redução de custos ou sem um compromisso
efetivo com a democratização do acesso ao conhecimento (perspectiva mais conservadora). Em outros casos, é possível
que a adoção dos ciclos e a sua implementação possua traços de ambas as perspectivas. Essas intenções diferenciadas
estão relacionadas aos fatores econômicos, históricos e políticos que configuram os processos de reestruturação do
sistema educacional e as concepções que orientam as políticas educacionais implementadas pelos governos.

De uma forma mais específica, a noção de uma escola organizada em ciclos foi utilizada no Plano de Reforma
Langevin-Wallon, elaborado em 1946 e 1947 por uma comissão ministerial presidida por Paul Langevin e, após a sua
morte, por Henri Wallon. Apesar de não ter sido aplicado, este plano tornou-se um dos textos de referência na área de
educação. O referido plano defendia que o ensino deveria ser reorganizado (da escola maternal ao ensino superior) por
meio de uma reforma completa que se fazia necessária e urgente. Isso já havia sido constatado antes mesmo antes da
Segunda Guerra Mundial e foi reafirmado no pós-guerra. O plano traçava um conjunto de metas voltadas para a
construção da mais alta qualidade de ensino: preservação da dignidade dos professores, favorecimento do seu
aperfeiçoamento pessoal, gratuidade do ensino em todos os níveis, ampliação das escolas maternais, bolsas para alunos
do 3º ciclo (o estudante era considerado trabalhador), reconstrução dos prédios escolares destruídos pela guerra, redução
do número de alunos nas turmas, entre outras.

O texto do plano é composto dos seguintes itens: introdução; estrutura e organização do ensino; formação dos
professores; órgãos de controle e de aperfeiçoamento; programas, horários, método, aprovação nos estudos; educação
moral e cívica: formação do homem e do cidadão; educação popular. Os princípios gerais do plano eram os seguintes: o
princípio da justiça, a democratização do ensino, a valorização das aptidões individuais, o desenvolvimento de uma
cultura geral sólida e o aperfeiçoamento contínuo do cidadão e do trabalhador. A concretização do princípio de justiça
tinha como referência dois aspectos opostos e complementares: a igualdade e a diversidade: “todas as crianças,
quaisquer que sejam as usas origens familiares, sociais, étnica, têm igual direito ao desenvolvimento máximo que a sua
personalidade implica. […] O ensino deve, portanto, oferecer a todos possibilidades iguais de desenvolvimento, abrir
para todos o acesso à cultura (Wallon, 1977, p.178). Uma das consequências desses princípios gerais era a implantação
do ensino de primeiro grau dos 3 aos 18 anos e compreenderia ciclos sucessivos. O primeiro ciclo correspondia a todas
as crianças de 3 a 11 anos, sendo a idade da obrigatoriedade escolar fixada aos 6 anos de idade. Caso não houvesse
classes maternais, a criança deveria frequentar a escola desde os 6 anos de idade.

Segundo o Plano Langevin-Wallon, o ensino obrigatório seria dividido em três ciclos:

− 1º ciclo: dos 7 aos 11 anos;

− 2º ciclo escolar: dos 11 aos 15 anos (ciclos de orientação); e

− 3º ciclo escolar: 15 aos 18 anos (ciclo de determinação)

Na concepção do Plano Langevin-Wallon, esse modelo de organização permitiria o desenvolvimento máximo


de todos, independentemente da classe social e dos recursos financeiros das famílias. O ensino seria comum para todas
as crianças, mas os métodos pedagógicos variariam de acordo com as aptidões dos alunos. Nenhum exame ou concurso
deveria ter lugar antes do final dos anos de escolaridade obrigatória. Os professores deveriam servir-se de sondagens
múltiplas para explorar o conjunto das aquisições e aptidões e poderiam também decidir sobre como agrupar os alunos
do 2º e 3º ciclos (Wallon, 1977). Diversos pontos do Plano Langevin-Wallon aparecem nas justificativas das propostas
de ciclos existentes hoje, tanto nos países desenvolvidos (centrais) quanto nos países em desenvolvimento (periféricos)
e integram alguns dos seus pressupostos centrais.

Em 1989, no contexto da política de renovação da escola primária na França (chamada de Reforma Jospin), a
ideia da escola em ciclos foi retomada da seguinte forma: Ciclo 1: ciclo das primeiras aprendizagens (3 a 5 anos); Ciclo
2: ciclo das aprendizagens fundamentais (5 a 8 anos) e Ciclo 3: ciclos de aprofundamento (8 a 11 anos). A

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implementação dos ciclos plurianuais, a partir do final da década de 1980, na França, foi justificada como necessária
para assegurar a continuidade das aprendizagens, evitar a ruptura e a fragmentação dos percursos escolares e respeitar
os ritmos e especificidades dos alunos. No contexto dessa reforma, buscou-se dar maior flexibilidade ao sistema de
ensino para permitir o atendimento das diferenças individuais das crianças, que deveriam ser consideradas como o
“centro” do sistema educacional. As escolas passaram a ter maior flexibilidade para decidir como distribuir as 26 horas
semanais de ensino, e a “pedagogia individualizada” e o desenvolvimento da autonomia eram indicados como aspectos
metodológicos importantes. Em outros países, como Canadá e na Suíça, a implantação dos ciclos também foi justificada
pela necessidade de se respeitar os ritmos diferenciados e se evitar o fracasso escolar. No Brasil, as justificativas que
têm sido usadas para a escola em ciclos, desde a década de 1980, destacam os ciclos como uma alternativa para
diminuir a reprovação, garantir maior tempo para a aprendizagem, democratizar a escola. No entanto, a noção de ciclos
que conhecemos hoje foi sendo gestada ao longo do tempo, no contexto das discussões sobre a escolarização
obrigatória, altas taxas de reprovação e a falta de vagas na escola primária. Essas discussões impulsionaram para a
criação de experiências de eliminação da reprovação (políticas de não-reprovação), em diferentes estados e municípios,
a partir do final da década de 1950. Uma síntese da história dessas políticas será apresentada a seguir.

Breve histórico da política de ciclos no Brasil

Discussões do início do século XX

No contexto da educação brasileira, o termo “ciclo” já aparecia na Reforma Francisco Campos (década de
1930) e na Reforma Capanema (Leis Orgânicas do Ensino – 1942/1946) e era utilizado para designar o agrupamento
dos anos de estudo. Já o uso do termo “ciclo” – como forma de designar políticas de não-reprovação – surgiu em 1984,
com a implantação do Ciclo Básico de Alfabetização (CBA) na rede estadual de São Paulo. No entanto, a ideia de
eliminar a reprovação nos anos iniciais não é recente. Desde o início do século passado (década de 1910) já existia o
debate sobre a necessidade da criação de políticas de não-reprovação.

Embora a noção de seriação já estivesse presente, por exemplo, no Colégio Pedro II, em 1837, os estudos
históricos indicam que foi a partir do inicio da década de 1980, com a criação dos grupos escolares, inicialmente em
São Paulo (Souza, 1998), que o sistema seriado e o sistema de promoção dos alunos de uma série para outra de acordo
com o nível de desempenho se consolidaram no Brasil. Os prédios dos grupos escolares eram construídos de acordo
com modernos preceitos pedagógicos e de higiene e ofereciam a educação primária completa (quatro anos) e um
currículo enciclopédico enriquecido. A implementação dos grupos escolares era uma questão central do período
republicano que estava em seu estágio inicial. Dentro do discurso daqueles que implementaram o novo regime, depois
da Proclamação da República, era necessário construir uma nação baseada nos valores relacionados ao mundo moderno
daquele período. Ao adotar o sistema seriado, o Brasil seguia as tendências de países mais avançados e implementava
um modelo que estava sendo disseminado ao redor do mundo (Souza, 1998).

O novo modelo de organização escolar, por meio da implementação dos grupos escolares,foi rapidamente
difundido para outros estados brasileiros. Políticos e autoridades educacionais defendiam a criação dos grupos escolares
como uma estratégia para organizar o ensino de forma mais homogênea, padronizada e uniforme (Souza, 1998). Além
disso, os grupos escolares eram considerados adequados para organizar a educação pública de massa no contexto da
expansão do acesso da população à escola.

O regime seriado e o sistema de promoção baseado no desempenho dos alunos rapidamente produziram novos
problemas: as taxas de reprovação e evasão. Ao longo do tempo estas questões tornaram-se graves no sistema
educacional brasileiro que, historicamente, tem acumulado altos índices de aprovação e evasão.

De acordo com Almeida Junior (1957), os inconvenientes das reprovações no curso primário levaram
autoridades educacionais paulistas a preconizar, nas décadas de 1910 e 1920, a promoção de todos os alunos. Em 1918,
Sampaio Dória aconselhou o seguinte: “promover do primeiro para o segundo período todos os alunos que tivessem
tido o benefício de um ano escolar, só podendo os atrasados repetir o ano, se não houver candidatos aos lugares que
ficariam ocupados” (apud Almeida Júnior, 1957, p.9). Em 1921, Oscar Thompson, diretor-geral do ensino, recomendou
a “promoção em massa”. Assim, o discurso inicial em favor da eliminação da reprovação nos anos iniciais do ensino
primário foi proposto por autoridades educacionais do Estado, em virtude, principalmente, dos elevados índices de
reprovação e falta de vagas nas escolas. Nas décadas de 30 e 40 não há evidências de que este tenha sido um tema
debatido. A partir da década de 1950, essa discussão foi retomada por políticos e educadores, no contexto das
discussões sobre a chamada “promoção automática”.

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Discussões sobre promoção automática nas décadas de 1950 e 1960

Na década de 1950 e início dos anos 1960 a promoção automática foi um tema bastante debatido. Enquanto
alguns políticos e intelectuais apresentavam argumentos favoráveis à promoção automática (Anísio Teixeira, Juscelino
Kubitschek, Dante Moreira Leite, Lauro de Oliveira Lima), outros eram favoráveis mas alertavam quanto a possíveis
limitações (Almeida Júnior, Carlos de Morais) e outros manifestavam sua oposição à promoção automática ( Luís
Pereira, Renato Jardim Moreira).

Para Teixeira (1954), a implementação da promoção automática era uma necessidade devido aos altos índices
de reprovação. Ele acreditava que a promoção automática reduziria as taxas de reprovação e evasão e garantiria mais
vagas para as novas gerações. Para ele, o sistema de ensino, desde o primeiro ano primário, funcionava e maneira
altamente seletiva. O presidente Kubitschek (1957) destacava o sucesso da promoção automática em outros países,
estabelecendo a relação entre promoção automática e progresso. Para ele, a adoção da promoção automática reduziria a
seletividade da escola e o desperdício de recursos financeiros.

Vemos, assim, que a promoção automática era justificada como necessária pelos governantes e autoridades
educacionais, pois resultaria em uma economia de recursos financeiros (desperdiçados pela reprovação) e a
possibilidade de obtenção de maior eficiência do sistema educacional que era considerado altamente seletivo e ineficaz.
Ao defenderem a promoção automática, os governantes e intelectuais baseavam-se nas ideias de países desenvolvidos e,
ao mesmo tempo, procuravam adaptar à realidade brasileira as recomendações de órgãos como Unesco que, na década
de 1950, recomendava a implantação da promoção automática como forma de diminuir a reprovação (Almeida Júnior,
1957).

Almeida Júnior (1957) e Dante Moreira Leite (1959), embora favoráveis à promoção automática, apontaram
potenciais problemas e cuidados que deveriam ser tomados, caso ele fosse adotada, como a preparação de professores e
a melhoria da infraestrutura das escolas. Almeida Júnior (1957), de forma mais explícita, temia que a medida fosse
implementada sem a necessária melhoria da infraestrutura das escolas e sem investimentos na formação dos
professores. Esse autor considerava ainda que nem a promoção em massa nem a promoção por idade cronológica
seriam satisfatórias para o caso brasileiro. Para ele, antes de implantar a promoção automática, algumas ações de
melhoria da escola primária faziam-se necessárias: implementar a obrigatoriedade escolar, o aperfeiçoamento de
professores e a revisão do conceito de educação primária. A promoção deveria ser o resultado da “excelência da
escola”. Leite (1959) argumentava que a reprovação é inútil e produz consequências desastrosas. Ele defendia a
organização de um currículo adequado ao desenvolvimento do aluno e a promoção automática, entendida por ele como
promoção por idade. A introdução da promoção automática implicava uma transformação radical da escola, “na medida
em que se transformam os seus objetivos básicos, na medida em que os professores e alunos passarão a viver em torno
de outros valores e aspirações” (p. 29).

Para Pereira (1958), o sucesso da promoção automática nos Estados Unidos e na Inglaterra foi possível em
virtude da infraestrutura já disponível nas escolas. Ele considerava que os elevados índices de reprovação refletiam as
condições precárias de funcionamento das escolas primárias (condições materiais, organização, currículo, pessoal
docente, situação socioeconômica dos alunos etc.). Deste modo, a introdução da promoção automática seria uma
tentativa precária de solucionar os problemas do ensino. A opinião de Pereira (1958) conflitava com o discurso oficial
que defendia a implementação da promoção automática como uma medida ideal para superar os índices de reprovação e
o desperdício de recursos financeiros.

A partir de 1960 a discussão em torno da promoção automática tornou-se menos frequente. Lima (1965)
defendia radicalmente a eliminação dos exames e do sistema seriado. Morais (1962) era favorável à promoção
automática, mas destacava que ela precisava ser implantada de forma cuidadosa. Moreira (1960), em vez de defender a
promoção automática, sugeria o desenvolvimento de um conjunto de inovações, tais como, a criação de escolas-modelo
que funcionariam como “centro de difusão das conquistas mais recentes da pedagogia” (p. 227), a revisão dos currículo
da escola primária, a preparação de materiais pedagógicos, um intensivo programa de formação de professores e
inovações nas técnicas pedagógicas. Para ele, a reprovação era um dos sustentáculos do sistema educacional e não
poderia ser suprimida.

Experiências pioneiras de políticas de não-reprovação (1958 – 1984)

7  
 
Embora as discussões da década de 1950 tenham sido sobre promoção automática, este conceito não foi usado
nas experiências pioneiras de não-reprovação, as quais receberam diferentes designações, tais como: avanços
pregressivos, organização em níveis e promoção por rendimentos efetivo. Em algumas experiências o temo promoção
automática foi deliberadamente evitado (Antunha, 1962). A literatura mostra que, desde a emergência das discussões
sobre promoção automática, muitos professores têm rejeitado esta proposta e atribuído ao temo um significado negativo
(Antunha, 1962; Ambrosetti, 1989).

De 1958 a 1984, várias experiências de não-retenção foram desenvolvidas no Brasil. A tabela abaixo mostra as
principais e mais abrangentes:

A primeira experiência de política de não-reprovação de que se tem notícia foi a Reforma da Educação
Primária implementada no estado do Rio Grande do Sul, a partir de 1958 (Barreto e Mitrulis, 1999). A organização das
classes regulares (alunos ingressantes) obedecia a um critério misto no qual eram considerados a idade cronológica do
aluno e seu grau de maturidade (por meio do teste ABC). Para os alunos que já se encontram na escola, a organização
das classes considerava a idade cronológica e o rendimento escolar. Os alunos acima de 8 anos que ingressavam na
escola eram colocados em classes de recuperação que eram também organizadas por idade. Nesta experiência, o sistema
de reprovação foi substituído por um sistema de classificação do aluno de acordo com a idade cronológica e o
rendimento escolar. Em vez de serem reprovados, eram promovidos e freqüentavam as chamadas classes de
recuperação. Há evidências de que até 1960 esta experiência ainda estava sendo desenvolvida (Revista do Ensino,
1960).

A segunda experiência foi a “promoção por rendimento efetivo”, implementada a partir de 1959, apenas no
grupo Escolar Experimental, mantido pela Secretaria de Educação de Estado de São Paulo. De acordo com Antunha
(1962), o interesse da Secretaria em aplicar esta política emergiu da conferência proferida pelo professor Almeida
Júnior no I Congresso Estadual de Educação, realizado em Ribeirão Preto (1956). Naquela ocasião, Almeida Júnior
discutiu a viabilidade da promoção automática para a escola paulista, tendo publicado o texto utilizado na conferência,
em 1957, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – RBEP (Almeida Júnior, 1957). Antunha (1962) explica que,
em vez de promoção automática optou-se por utilizar a expressão “promoção por rendimento efetivo”. Nesse contexto,
a passagem da criança de um ano para o outro se fazia pelo critério de idade cronológica e a localização da criança no
grupo-classe se realizava de acordo com o rendimento apresentado. Desta forma, as provas e exames eram meios de
verificação da aprendizagem, revisão dos conteúdos curriculares ou de reagrupamento e reorganização das classes, mas
nunca critérios de promoção ou reprovação dos alunos. Durante o ano letivo, os alunos podiam ser remanejados para
classes mais adiantadas, de acordo com o seu progresso. A autora considerava que essa política aumentaria as vagas na
escola, mas não levaria a uma diminuição dos gastos (construções, material escolar, salários etc.)

No Distrito Federal, na década de 1960 (a partir de 1963), o ensino primário foi dividido em três fases. A

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primeira abrangia a 1ª e 2ª séries; a segunda, a 3ª, 4ª e 5ª, e a terceira fase, a 6ª série. A primeira fase era dividida em
quatro etapas que se referiam ao processo de alfabetização (estudo do pré-livro, livro de leitura intermediária, primeiro
livro e segundo livro). A promoção do aluno da primeira fase para a segunda ocorria quando o aluno tivesse completado
o processo de alfabetização. Tal política foi implementada em virtude do alto índice de reprovação nas duas séries
iniciais.

Em 1968 a “Organização em níveis” foi adotada em Pernambuco (Britto, 1993; Barreto e Mitrulis, 1999,
2001). Neste programa, a reprovação foi eliminada nas séries iniciais do ensino primário, que foram organizadas em
seis níveis. Em quatro anos, os alunos deveriam atingir, pelo menos, os quatro primeiros níveis. Foi um programa de
ampliação do tempo para aprendizagem por meio da reestruturação do currículo e eliminação da reprovação.

De 1969 a 1971, a “Organização em níveis” foi implementada no estado de São Paulo como parte de reforma
do ensino primário. A retenção foi eliminada na 1ª e 3ª séries do curso primário (Arelaro, 1988; Ambrosetti, 1989). De
acordo com Ambrosetti (1989), muitos professores discordavam dessa política e a consideravam uma estratégia de
promoção automática. A mesma autora ainda explica que essa tentativa resultou no aumento do número de classes nas
quais a reprovação era permitida (2ª e 4ª) e a concentração de alunos com maiores dificuldades de aprendizagem nas
classes chamadas “classes lentas” ou 2º ano de “mentira”. (pag. 29)

A experiência mais longa de não-retenção foi o “Sistema de Avanços Progressivos”, implantado no estado de
Santa Catarina, de 1970 a 1984. Foi implementado em todas as escolas na 1ª e 5ª séries, a partir de 1970 e,
gradativamente atingiu todas as séries do então chamado ensino de 1 º grau. A reprovação era prevista apenas no final
da 4ª e da 8ª séries, e os alunos reprovados eram colocados em classes de recuperação, somente um ano. De acordo com
Auras (1988), esse programa foi implantado sem a adequada infraestrutura, resultando na deterioração do ensino nas
escolas públicas. Segundo esta autora, na prática, os alunos eram promovidos, automaticamente, para as séries
seguintes. Deste modo, “alunos praticamente não-alfabetizados concluíam o 1º grau” (p. 165). De acordo com Pereira et
al. (1984), esse programa não resolveu o problema da retenção e evasão e diminuiu a qualidade do ensino. Confirmando
outros estudos, Koch (1995) aponta que os resultados dessa política foram limitados. Segundo Grunwaldt e Silva
(1985), programas semelhantes foram implantados em Juiz de Fora (1970 – 74), em Belo Horizonte (1976-79) e no
Distrito Federal (1978-80)

De 1979 a 1984 o “Bloco Único” foi implementado no estado do Rio de Janeiro. Nesse programa, a retenção
foi eliminada na 1ª série com o objetivo de assegurar a continuidade dos alunos no processo de alfaberização.

Com exceção da experiência desenvolvida em Santa Catarina, as demais tiveram curta duração. As pesquisas
sobre tais programas oferecem elementos para concluir que os resultados obtidos foram pouco satisfatórios,
principalmente porque as taxas de reprovação eram altas nos anos ou séries em que era possível (adiamento da
reprovação); as classes tornavam-se bastante heterogêneas e os professores encontravam dificuldades para trabalhar
com tal realidade. Além disso, muitos professores desconheciam os fundamentos dessas reformas, tiveram pouca
participação durante os processos de sua formulação e implementação e as estratégias de formação continuada foram
insuficientes e descontínuas. Apesar dessas limitações, pode-se dizer que essas experiências pioneiras ofereceram
alguns elementos balizadores para a proposição de políticas de ciclos, a partir dos anos 1980).

A emergência da escola em ciclos nos anos 1980: O Ciclo Básico de Alfabetização

O Ciclo Básico de Alfabetização – CBA foi uma das políticas implementadas a partir de meados da década de
1980, no contexto da redemocratização do país. Nas eleições para governos estaduais, realizadas em 1982, os partidos
de orientação socialdemocrata ou trabalhista (que eram então considerados de oposição) foram vencedores em 10 dos
26 estados brasileiros (incluindo, por exemplo, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Goiás, Pará, Amazonas e Acre). Este
fato permitiu que políticas inovadoras fossem implementadas nesses estados, tais como: a ampliação da participação
dos professores na elaboração de políticas, maior investimento na formação continuada de professores e políticas
voltadas à redução da reprovação e da evasão escolar.

O CBA foi implantado, em 1984, na rede estadual de São Paulo. Em sua fase inicial, reuniu os dois primeiros
anos de escolaridade (que integravam o que , na época, era chamado de ensino de 1º grau), eliminando a reprovação na
passagem do 1º para o 2º ano, com o objetivo de proporcionar aos alunos mais tempo para a aprendizagem e ainda
reduzir as taxas de reprovação e evasão. Segundo várias características da proposta de São Paulo, o Ciclo Básico foi
implementado em outras redes, tais como as redes estaduais de Minas Gerais (1985), Paraná (1988), Goiás (1988) e Rio
de Janeiro (1993) e também em algumas redes municipais. Na maioria das experiências, o termo série foi substituído
por outros termos, tais como: 1ª e 2ª etapas, Ciclo Básico Inicial e Ciclo Básico em Continuidade etc. A implantação do
CBA geralmente envolvia a adoção de uma série de medidas complementares: estudos adicionais para crianças com

9  
 
dificuldades de aprendizagem (ou que precisam de maior tempo e apoio para a aprendizagem), reestruturação
curricular, formação continuada dos professores e melhoria das condições de trabalho nas escolas. Em alguns casos,
como foi o do Paraná, o CBA foi estendido de dois para quatro anos. Em algumas as redes citadas, a implantação foi
gradativa. Em um sentido histórico, pode-se considerar que a implantação do CBA não foi algo totalmente novo, pois
algumas políticas de não-reprovação nos anos iniciais já haviam sido experimentadas.

Há um número bastante significativo de pesquisas sobre o CBA. Em geral, elas indicam que o CBA contribuiu
para um redimensionamento do processo de alfabetização (que era fortemente baseado em métodos mecanicistas e
tradicionais, uso de cartilhas etc), impulsionou um forte investimento na capacitação de professores dos anos inicias e
acarretou mudanças positivas nas práticas avaliativas (que eram fortemente classificatórias, baseadas em exames e
notas). O CBA levou a uma redução significativa das taxas de reprovação, principalmente no 1º ano de escolaridade, o
que é um fato positivo. Por exemplo: no estado do Paraná, na rede estadual, a reprovação da 1ª série, no período
anterior ao CBA, era 22,7% e baixou para 0,4%. Por outro lado, em muitos casos, a reprovação no final do 2º ano era
mais alta que no período anterior ao CBA (por exemplo, no estado do Paraná, passou de 16,6% para 22,7%). Foi
observado que algumas escolas adotavam práticas de remanejamento de alunos no decorrer do ano letivo ou colocavam
em turmas de 1ª etapa alunos que deveriam estar na 2ª. Além disso, havia alunos que permaneciam um ou mais anos na
2ª etapa (Mainardes, 1995). Essas dificuldades mencionadas, no entanto, foram sendo superadas ao longo tempo nas
redes de ensino. A experiência do CBA contribuiu para que a reprovação (cultura da repetência) e a seriação fossem
desafiadas e, ao mesmo tempo, ofereceu muitos elementos para a implantação de políticas de ciclos mais complexas,
formadas por ciclos mais longos. O fato de o CBA ter sido implantado em larga escala (ou seja, em todas as escolas de
redes estaduais) fez com que ele se tornasse uma referência muito importante para o desenvolvimento da concepção de
ciclos no Brasil, bem como para a implementação das políticas de ciclos nos anos 1990.

A escola em ciclos a partir dos anos 1990

A partir dos anos 1990, diferentes modalidades de escola em ciclos foram implantadas em redes estaduais e
municipais: ciclos inicial, intermediário e final, Ciclos de Aprendizagem, Ciclos de Formação, Regime de Progressão
Continuada, entre outras. Uma análise mais detalhada de cada uma dessas modalidades indica que há diferenças entre
elas.

Em 1992, foi implantada na rede municipal de São Paulo uma experiência de ciclos. Os oito anos do
ensino de 1º grau (hoje Ensino Fundamental) foram estruturados em três ciclos:

a) Ciclo inicial (antigas 1ª, 2ª e 3ª séries);

b) Ciclo intermediário (antigas 4ª, 5ª e 6ª séries) e

c) Ciclo final (antigas 7ª e 8ª séries).

A implementação desse projeto foi precedida de uma série de outras mudanças no sistema educacional,
realizadas por uma administração do Partido dos Trabalhadores (1989-92)1 . Nessa experiência, a retenção poderia
ocorrer apenas no final de cada ciclo e, caso retido, o aluno refazia somente o último ano do ciclo correspondente. A
avaliação da aprendizagem passou a ser contínua e qualitativa, com relatórios semestrais que deveriam ser discutidos
com os educandos e seus pais ou responsáveis. As notas foram substituídas por três conceitos (plenamente satisfatório,
satisfatório, insatisfatório).

Essa experiência de organização da escolaridade em ciclos do município de São Paulo pode ser considerada
um ponto de partida para a construção de uma visão mais ampla, abrangente e radical da organização da escolaridade
em ciclos que se fortaleceu nos aos 1990, principalmente por ter atingido todos os alunos do Ensino Fundamental.
Segundo Alavarse (2002), a implantação desse projeto foi influenciada pelas discussões sobre a reforma do sistema
educacional francês, iniciada em 1989 (Les cycles à l’école primaire) explicitava que a organização em ciclos tem por
finalidade assegurar a continuidade das aprendizagens; os grupos-classe deveriam ser organizados por idade; nas
escolas deveriam ser criados os conselhos de professores do ciclo (coletivo do ciclo). Além disso, o citado documento
empregava os termos “ciclos de aprendizagem iniciais” e “ciclos de aprendizagens fundamentais”.

Em 1995, as redes municipais de Porto Alegre (Escola Cidadã) e Belo Horizonte (Escola Plural) iniciaram a
implantação dos Ciclos de Formação. Essa modalidade de ciclos passou a ser bastante disseminada e discutida e foi
implantada em outras redes de ensino.

A partir do final dos anos 1990, os programas de organização da escola em ciclos, principalmente aqueles
                                                                                                                       
1
A respeito das mudanças introduzidas na Rede Municipal de São Paulo, ver Freire (1991) e Cortella (1992).

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designados como “Ciclos de Aprendizagem”, passaram a tomar como uma referência importante as ideias do suíço
Phillipe Perrenoud, quando seus textos sobre “Ciclos de Aprendizagem” começaram a ser publicados no Brasil. A partir
de um conjunto de influências, tais como a experiência da rede municipal de São Paulo (1992), dos textos de Perrenoud
e de outras experiências que se encontravam em curso no Brasil naquela época, algumas redes de ensino iniciaram
programas de organização da escolaridade em ciclos plurianuais, utilizando a designação “Ciclos de Aprendizagem”.
Embora as ideias de Perrenoud tenham influenciado a criação desses programas, as ideias de outros autores também
foram empregadas para justificar e fundamentar tais propostas.

A partir de 1998, algumas redes de ensino implantaram o Regime de Progressão Continuada, que fora indicado
na Lei n. 9.394/96 (LDB). Este é o caso da Rede Estadual de São Paulo, por exemplo. O artigo 23 da referida lei diz que
a Educação Básica poderá ser organizada em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos
de estudo, grupos não-seriados, entre outras modalidades. O regime de progressão continuada foi incluído no parágrafo
2º do artigo 32: “Os estabelecimentos que utilizam a progressão regular por série podem adotar no ensino fundamental
o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensino aprendizagem, observadas as
normas do respectivo sistema de ensino” (Brasil, 1996). Nesse regime, geralmente, os 8 ou 9 anos do Ensino
Fundamental são divididos em dois ou mais ciclos e a reprovação é possível apenas no final de cada ciclo. No entanto, a
duração dos ciclos pode variar de uma rede para outra. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados e distribuídos
em 1997 e 1998 pelo Ministério da Educação, por exemplo, sugeriam a divisão dos 8 anos do Ensino Fundamental em
quatro ciclos de dois anos cada. Este documento, na verdade, não rompeu com a ideia de seriação.

Escola em ciclos: alguns números

De acordo com dados do MEC/Inep, apresentados nas Tabelas 2, 3 e 4, a maior parte das escolas brasileiras
encontra-se organizada em séries (83,11% em 2006), enquanto 9,72% das escolas estavam organizadas em ciclos e
outras 7,16% adotavam mais de uma forma de organização (ciclos nos anos iniciais do Ensino Fundamental e séries nos
anos finais, por exemplo). Em termos do número de alunos no Ensino Fundamental, observa-se que o percentual de
alunos matriculados em escolas que adotam exclusivamente o sistema de ciclos vem diminuindo progressivamente (de
22,92% em 1999 para 18,17% em 2006).2

                                                                                                                       
2
   A partir do ano de 2007, o Censo Escolar passou a ser realizado com nova metodologia. Infelizmente, a partir disso,
as informações sobre a forma de organização do Ensino Fundamental não foram mais levantadas, dificultando que se
tenha dados sobre esse aspecto.

11  
 
É interessante destacar também que a rede estadual responde pelo percentual mais alto de matrículas em
escolas organizadas em ciclos, seguido das redes municipais. Isso se deve ao fato de que redes estaduais com número
elevado de alunos (por exemplo, as redes estaduais de São Paulo e Minas Gerais) adotavam os ciclos em todas ou na
maioria das escolas. A Tabela 4 mostra que apenas uma minoria das escolas particulares (2,14%) adota os ciclos, o
mesmo ocorrendo com as escolas federais.

Negreiros (2005) mostra que enquanto a rede pública movimenta-se mais rapidamente para uma organização
em ciclos, a rede privada de ensino mostra-se mais propensa à continuidade da organização seriada. Para ele, as
propostas de educação das escolas privadas estão articuladas em um duplo movimento. Por um lado, procuram
responder a uma prática coerente com os desafios teórico-metodológicos de uma educação atual e inserida na realidade.
Por outro, respondem às pressões das raízes culturais de uma sociedade conservadora e elitista. As escolas privadas,
por razões econômicas e pressão dos pais, precisam conseguir bons resultados e fazem isso articulando instrumentos
que representam avanços nas práticas pedagógicas com mecanismos que refletem certos traços de uma prática educativa
considerada tradicional, tal como o sistema de provas e exames. Além disso, as escolas privadas servem-se de uma série
de estratégias para ajudar os alunos com dificuldades na aprendizagem (Negreiros, 2005). Em virtude desse conjunto de
fatores, associados ao capital dos alunos, o índice de reprovação no Ensino Fundamental é baixíssimo. Tanto em virtude
dos resultados obtidos, quanto pelo projeto educacional subjacente à rede privada, os ciclos não interessam ou não são
considerados necessários à maioria das escolas dessa rede.

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As experiências de ciclo estão presentes em todas as regiões do país, sendo que as regiões Sudeste, Centro-
Oeste e Sul concentram o maior percentual de escolas e matrículas de escolas nessa forma de organização (Tabela 5).
A forte presença dos ciclos na região Sudeste deve-se ao fato de que programas de ciclos estão implantados nas redes
estaduais e algumas redes municipais dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No Espírito Santo, o
percentual de escolas que adotam ciclos é relativamente pequeno (9,71%).

MAINARDES, J. Escola em ciclos: fundamentos e debates. São Paulo: Cortez, 2009.

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