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Boécio: providência divina e o livre-arbítrio

Obra clássica de pensador medieval questiona se nós somos


realmente livres e responsáveis por nossas ações ou não

Redrock Junction / Flickr: walk away / CC BY 2.0


O conhecimento do futuro é o amuleto contra a incerteza. Com base nesse princípio,
diferentes predições foram realizadas na história da humanidade, erguendo o véu que
encobria os acontecimentos vindouros. Apesar de ser mencionado somente duas vezes no
Velho Testamento, o retorno de um messias, descendente do rei Davi, que seria
responsável por reconstruir a nação de Israel, foi anunciado pelas profecias judaicas. A
segunda vinda de Jesus, considerado o próprio messias pela maioria dos cristãos, também
é anunciado em outras passagens da Bíblia, quando a Terra alcançaria o momento do
Juízo Final.

A presciência não foi um privilégio somente do judaísmo e do cristianismo. De acordo com


algumas tradições budistas, Sidarta Gautama recebeu a visita do vidente Asita logo depois
de ter nascido. O vidente estava curioso e queria conhecê-lo, pois havia notado muito
entusiasmo ao redor do bebê. Quando se aproximou, Asita anunciou que Sidarta Gautama
seria ou um grande rei ou um homem santo. Sidarta, o Buda, percorreu o segundo
caminho.
As profecias também eram comuns entre os gregos. Em sua obra Histórias, o historiador
grego Heródoto (485 a.C.-420 a.C.) relatou que o Oráculo de Delfos, situado na ilha grega
de mesmo nome, havia sido consultado pelos espartanos a respeito do avanço do exército
persa em direção ao desfiladeiro das Termópilas. A resposta oracular profetizou que ou a
cidade de Esparta seria conquistada pelos guerreiros de Xerxes ou o rei espartano
Leônidas morreria. Ao conduzir seu exército de encontro aos persas, Leônidas sabia que
não retornaria para sua cidade.
Todos esses exemplos foram extraídos de fontes históricas da Antiguidade. Entretanto, ao
contrário do que se possa imaginar, o desenvolvimento científico dos últimos dois séculos
não impediu que o interesse pelo conhecimento de eventos futuros continuasse ardendo
no coração de muitas pessoas. Médiuns videntes são procurados por mulheres e homens
solteiros que buscam saber previamente quem será seu parceiro e quando será
conhecido, assim como comerciantes são frequentemente aconselhados por um orientador
espiritual sobre como proceder mais acertadamente em seus negócios.
Até aqui, apresentamos exemplos de práticas religiosas de conhecimento dos eventos
futuros. No entanto, esse interesse já extrapolou os domínios do sobrenatural e alcançou
as análises econômicas. Embora não exerçam a mesma função e importância que são
assumidas nas religiões, análises econômicas realizam prognósticos sobre as condições
futuras dos mercados financeiros. Investidores raramente dão um passo decisivo sem
consultar essas análises.

Destacamos alguns exemplos de previsão desses acontecimentos. Em alguns deles,


vimos que as previsões parecem ter sido parcial ou integralmente confirmadas. Mas essas
confirmações podem não passar de mera coincidência. Por isso, apesar do que foi dito,
não podemos deixar de enfrentar uma questão decisiva: a previsão do futuro é possível?
Em caso negativo, o que foi mencionado anteriormente não passaria de fraude ou mera
coincidência. Em caso afirmativo, resta ainda uma questão ética fundamental: a previsão
do futuro compromete a liberdade humana? Dito de outra forma: se os eventos futuros
podem ser conhecidos, então eles já estão previamente determinados. Nesse caso, e
independentemente do que eu faça, o futuro não seria alterado. Um importante filósofo que
enfrentou essas questões foi Boécio.
Nascido no seio de uma família rica de Roma, Boécio (470-525) estudou em Atenas e
tornou-se protegido do rei Teodorico, assumindo durante o seu reinado a função de
ministro. Não acumulava apenas vastos conhecimentos filosóficos, mas também
havia abraçado a fé cristã. Apesar da origem social privilegiada e da proteção que gozava
junto ao rei, Boécio foi acusado de conspiração em Constantinopla, sendo condenado e
preso.
Antes de ser brutalmente torturado e morto, ele escreveu, durante o período em que
esteve na prisão, sua obra mais importante: A consolação da filosofia. Essa obra é o
testemunho de alguém que, não podendo contar com a intervenção favorável de nenhum
amigo ou familiar, encontrou na no pensamento filosófico seu consolo, sua paz e
felicidade. E foi justamente nessa obra que ele abordou o tema da previsão do futuro.
Boécio formulou a questão nos seguintes termos: em um mundo governado pela
providência divina, pode existir a sorte ou o acaso? O assunto é delicado. A providência é
o pensamento divino que estabelece a ordem das coisas. Por se encontrar na eternidade,
é imóvel e não sofre nenhuma transformação. Portanto, sendo um pensamento eterno que
estabelece a ordem das coisas, a providência não estabelece a lei de sucessão das coisas
no tempo, ou seja, não determina quais devem se seguir a essas ou àquelas coisas. A
providência divina é o pensamento que unifica as coisas.

O mundo em que vivemos, entretanto, não é eterno e está sujeito às variações do tempo.
Os acontecimentos se sucedem uns aos outros: a fecundação do óvulo pelo
espermatozoide é seguida pelo nascimento do feto, a flexão e o impulso das pernas são
seguidos pelo movimento do corpo, o aquecimento progressivo da água em estado líquido
é seguido pela sua passagem ao estado gasoso etc.

Contudo, as coisas não se sucedem casualmente umas às outras. O fluxo de eventos que
podemos atestar todos os dias não é caótico, mas obedece a uma lei que determina a
sucessão das coisas. Essa lei nada mais é que o próprio destino. Assim, enquanto a
providência unifica as coisas na eternidade, o destino organiza a sucessão das coisas no
tempo. O destino é a própria realização da providência divina no mundo.
As coisas se sucedem no mundo obedecendo ao destino, que é a lei que organiza o que é
anterior, simultâneo e posterior entre as mais variadas coisas. Portanto, respondendo
àquela primeira pergunta, que questionava se havia sorte ou acaso no mundo, Boécio
afirma que todas as coisas estão encadeadas em uma série de causas, o que impede que
um evento possa ocorrer sem nenhuma causa.

O questionamento de Boécio prossegue: se a providência divina governa todas as coisas


do mundo, podendo prever a ordem em que elas devem aparecer no tempo (previdência
divina), qual é a garantia de que a liberdade humana esteja preservada? Se a previdência
divina determina o que acontecerá no futuro, então o livre-arbítrio é negado, o que retira do
ser humano qualquer responsabilização pela sua condição futura. Dito de outro modo: a
queda ou a salvação da criatura seriam indiferentes às suas decisões morais. Ao contrário,
se o ser humano é capaz de redefinir seu futuro com base em suas decisões presentes,
então a previdência divina é falha e, portanto, imperfeita, o que é inadmissível, pois
contradiz com a perfeição de Deus.
Para solucionar esse dilema, Boécio enfatizou a distinção entre providência e previdência.
A previdência ou previsão de acontecimentos futuros pressupõe um observador, localizado
no tempo presente, que prevê acontecimentos ou eventos que não ocorrem
simultaneamente no momento em que são previstos, e sim posteriormente, ou seja,
ocorrerão quando o presente se tornar passado e o futuro se tornar presente. Duas
etapas, portanto, são fundamentais para a ocorrência da previsão: 1º ver acontecimentos
que não ocorrem no momento, ou seja, prever acontecimentos que ocorrerão
posteriormente; 2º com a passagem do tempo, o momento da previsão se torna passado,
enquanto os acontecimentos previstos se tornam presentes, podendo, finalmente, serem
vistos.

Entendida desse modo, a previdência divina, segundo Boécio, não existe. Deus não prevê
os acontecimentos futuros, mas vê todos os acontecimentos (passados, presentes,
futuros) como simultâneos. Essa distinção é fundamental, pois diz respeito à natureza
divina. Quando afirmamos que Deus é eterno, não estamos dizendo que Deus está
localizado no passado, no presente e no futuro, e sim que não está em nenhum desses
momentos, justamente pelo fato de que Ele não se encontra no tempo, e sim na
eternidade. Deus não é temporal, mas sim eterno.

Presenciar um acontecimento não torna esse acontecimento necessário ou obrigatório.


Ver a morte de um parente não é o mesmo que afirmar que um parente morreu porque
alguém viu sua morte. No primeiro caso, ver a morte de um parente é o efeito da
ocorrência da própria morte desse parente. Já no segundo caso, ao contrário, a morte de
um parente ocorreu em virtude de alguém ter visto sua morte.

O segundo caso não é impossível somente para o ser humano, mas também para Deus.
Todas as coisas são vistas por Deus simultaneamente, estejam eles, em relação a nós, no
momento passado, presente ou futuro. Desse modo, Deus vê que a morte de um
determinado ser humano será o resultado de um câncer terminal. A morte desse ser
humano pode não ter ainda acontecido, mas Deus a vê como o resultado obrigatório e
necessário da metástase em seu corpo.

Por outro lado, o pedestre anônimo que voluntariamente salvará a vida de uma criança
que seria atropelada também é visto por Deus, mas não como um evento obrigatório, em
que o pedestre se veria constrangido a realizar uma ação que não escolheu, e sim porque
o pedestre utilizou seu livre-arbítrio para tomar essa decisão. Os acontecimentos
necessários são vistos pela providência (e não previdência) divina como acontecimentos
necessários, enquanto os acontecimentos livres, frutos de decisões baseadas no uso do
livre-arbítrio, são visto como acontecimentos livres. Com essa argumentação, Boécio
conseguiu demonstrar que as coisas não são movidas pelo acaso ao mesmo tempo em
que sustentou que o uso do livre-arbítrio está garantido por Deus.
A argumentação de Boécio nos indica uma das características da condição humana: a
incerteza a respeito do futuro. Aquele que não crê ou que duvida da existência de Deus é
consciente dessa incerteza. E mesmo quando despende altas somas de dinheiro para
conseguir orientações com analistas de riscos, o investidor que não é temente a Deus
jamais encontrará plenas garantias de retorno para o emprego de seu capital ou para sua
aplicação financeira.

O crente, no entanto, não está livre dessa incerteza. A angústia sobre o futuro é um afeto
que também lhe é comum. Se Deus não prevê, mas vê todos os acontecimentos
(passados, presentes, futuros) como simultâneos e, por esse motivo, não subtrai o livre-
arbítrio do ser humano, então cada ser humano não só é responsável por suas decisões,
como também é incapaz de saber com plena certeza como vai reagir em virtude da
imprevisibilidade dos acontecimentos futuros.

O futuro permanece desconhecido mesmo para o crente. Nem mesmo a fé é suficiente


para iluminar sua visão e mostrar quais acontecimentos se encontram no porvir. A suposta
certeza de como os eventos humanos vão se desenrolar no tempo futuro, sustentada por
um padre, por um pastor ou por um médium, deixa de se apresentar como fé para se
mostrar como autoengano, como ilusão e, algumas vezes, como fanatismo.
Os crentes podem argumentar que se Deus iluminar a alma de uma de suas criaturas por
meio do Espírito Santo então o véu que encobre o futuro pode ser parcialmente revelado.
Nesse caso, precisaríamos enfrentar uma questão capital: como saber se Deus realmente
abriu as portas da percepção para esse padre, esse pastor ou esse médium? Mas essa já
é outra questão.

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