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O mundo em que vivemos, entretanto, não é eterno e está sujeito às variações do tempo.
Os acontecimentos se sucedem uns aos outros: a fecundação do óvulo pelo
espermatozoide é seguida pelo nascimento do feto, a flexão e o impulso das pernas são
seguidos pelo movimento do corpo, o aquecimento progressivo da água em estado líquido
é seguido pela sua passagem ao estado gasoso etc.
Contudo, as coisas não se sucedem casualmente umas às outras. O fluxo de eventos que
podemos atestar todos os dias não é caótico, mas obedece a uma lei que determina a
sucessão das coisas. Essa lei nada mais é que o próprio destino. Assim, enquanto a
providência unifica as coisas na eternidade, o destino organiza a sucessão das coisas no
tempo. O destino é a própria realização da providência divina no mundo.
As coisas se sucedem no mundo obedecendo ao destino, que é a lei que organiza o que é
anterior, simultâneo e posterior entre as mais variadas coisas. Portanto, respondendo
àquela primeira pergunta, que questionava se havia sorte ou acaso no mundo, Boécio
afirma que todas as coisas estão encadeadas em uma série de causas, o que impede que
um evento possa ocorrer sem nenhuma causa.
Entendida desse modo, a previdência divina, segundo Boécio, não existe. Deus não prevê
os acontecimentos futuros, mas vê todos os acontecimentos (passados, presentes,
futuros) como simultâneos. Essa distinção é fundamental, pois diz respeito à natureza
divina. Quando afirmamos que Deus é eterno, não estamos dizendo que Deus está
localizado no passado, no presente e no futuro, e sim que não está em nenhum desses
momentos, justamente pelo fato de que Ele não se encontra no tempo, e sim na
eternidade. Deus não é temporal, mas sim eterno.
O segundo caso não é impossível somente para o ser humano, mas também para Deus.
Todas as coisas são vistas por Deus simultaneamente, estejam eles, em relação a nós, no
momento passado, presente ou futuro. Desse modo, Deus vê que a morte de um
determinado ser humano será o resultado de um câncer terminal. A morte desse ser
humano pode não ter ainda acontecido, mas Deus a vê como o resultado obrigatório e
necessário da metástase em seu corpo.
Por outro lado, o pedestre anônimo que voluntariamente salvará a vida de uma criança
que seria atropelada também é visto por Deus, mas não como um evento obrigatório, em
que o pedestre se veria constrangido a realizar uma ação que não escolheu, e sim porque
o pedestre utilizou seu livre-arbítrio para tomar essa decisão. Os acontecimentos
necessários são vistos pela providência (e não previdência) divina como acontecimentos
necessários, enquanto os acontecimentos livres, frutos de decisões baseadas no uso do
livre-arbítrio, são visto como acontecimentos livres. Com essa argumentação, Boécio
conseguiu demonstrar que as coisas não são movidas pelo acaso ao mesmo tempo em
que sustentou que o uso do livre-arbítrio está garantido por Deus.
A argumentação de Boécio nos indica uma das características da condição humana: a
incerteza a respeito do futuro. Aquele que não crê ou que duvida da existência de Deus é
consciente dessa incerteza. E mesmo quando despende altas somas de dinheiro para
conseguir orientações com analistas de riscos, o investidor que não é temente a Deus
jamais encontrará plenas garantias de retorno para o emprego de seu capital ou para sua
aplicação financeira.
O crente, no entanto, não está livre dessa incerteza. A angústia sobre o futuro é um afeto
que também lhe é comum. Se Deus não prevê, mas vê todos os acontecimentos
(passados, presentes, futuros) como simultâneos e, por esse motivo, não subtrai o livre-
arbítrio do ser humano, então cada ser humano não só é responsável por suas decisões,
como também é incapaz de saber com plena certeza como vai reagir em virtude da
imprevisibilidade dos acontecimentos futuros.