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FCT. Ciências Biológicas. 4º Ano, 2019-2020. Ética e Deontologia Profissional.

Sobre
o Naturalismo Ético: Dificuldades e Méritos da Ética Evolucionista

1. “Na natureza não há bem nem mal”. (Baruch Espinosa)


2. “Toda a moral... é por essência biológica”. (Henri Bergson)
3. «À máxima dos antigos: «seguir a natureza», Mill opõe a regra «não seguir a natureza, mas melhorá-la» (Anne Fagot-
Largeault).

Texto 1: Das Normas Éticas como vestígios de adaptações a situações evolutivas/ aos processos
naturais da evolução/ à história natural: “A Natureza é da ordem do facto, dela não podemos
descrever senão o que é. Mas a ética postula valores, é normativa, refere-se ao que se deve fazer. É
preciso, portanto, que se fundamente noutra coisa que não seja da ordem dos factos. Necessita de
uma autoridade incontestável: a da vontade divina, por exemplo, ou da razão. Como poderia a
Natureza ser normativa? (...) Nós não somos autómatos geneticamente programados: somos,
simultaneamente, o produto da hereditariedade e do nosso meio cultural. No entanto, segundo a tese
evolucionista, um número significativo de fenómenos e comportamentos sociais...têm de facto,
fundamentos biológicos e genéticos (...) A função da ética será...uma função adaptativa: é a
maneira como os organismos de uma dada espécie viva organizam as modalidades da sua existência
a fim de, no mínimo, assegurarem a sua sobrevivência e a sua adequação adaptativa (...) A ética
serve a vida através de nós (...) Na realidade, a nossa conduta, nossas sociedades, a nossa cultura e
a nossa ética são a resposta que elaborámos, com os meios específicos de que dispúnhamos – ou que
criámos -, para responder às exigências da sobrevivência (...) Se no homem a ética é um fenómeno
natural indissociável da sociabilidade, sendo esta concebida como um facto da evolução, então
deverá ter a regularidade de um fenómeno natural e devemos poder descobrir nela os motivos e o
significado adaptativo (...) Os factos são moralmente neutros... Mas, parece claro que já não
podemos desprezar a ideia de que o surgimento da socialidade e das normas éticas de
comportamento é um processo inscrito numa história, a qual é uma história natural”. (KIRSCH,
Marc in CHANGEAUX, Jean-Pierre. (1996). Fundamentos Naturais da Ética, trad. de Vasco
Casimiro. Lisboa: I. Piaget, pp. 13-27).

Texto 2: Será a dicotomia entre o ser e o dever ser universalmente insuperável como defendem
os acusadores da falácia naturalista? Será que o comportamento social está difundido no
mundo orgânico? São as normas morais produtos da evolução biológica?: “Mas penso que
existe uma espécie de ética evolucionista, fundada na teoria contemporânea de evolução e sensível
às teses da filosofia contemporânea (contratualista), que podemos organizar e defender (...) A
minha tese é...a de que qualquer teoria ética adequada deve responder tanto às questões que se
levantam ao nível normativo (formas de criação daquilo que se deve fazer) como ao nível meta-
ético (sobre os fundamentos, i.e, saber por que razão nos devemos conformar com o que devemos
fazer/ porque razão deveríamos fazer o que devemos) (...) Se queremos criticar a ética evolucionista
tradicional (conhecida como darwinismo social desde Herbert Spencer, que sustenta a ideia de que
os fundamentos da ética se justificam pela evolução ou progresso evolutivo que se dirige para nós e
termina connosco na luta pela existência – tese da evolução como ascensão para o progresso que
Michael Ruse recusa), em particular ao nível dos fundamentos, temos de fazer algo mais do que
simplesmente exprimir a nossa oposição às conclusões normativas de que esse fundamento é
suposto constituir o alicerce (...) A crítica tradicionalmente expressa pelos filósofos é mais profunda.
No seguimento de Georg E. Moore (1903), afirma-se que a ética evolucionista tradicional efetua um
salto que é uma simples ilusão, partindo do que é o mundo, i.e, de enunciados de factos, para ir até
ao que o mundo deveria ser, i.e, até aos enunciados de moral. Segundo Moore (e David Hume) não
podemos obter enunciados de obrigação a partir de simples descrições da realidade empírica (...)
Pude, no entanto, constatar que os teóricos da ética evolucionista... concordam que, em certas
circunstâncias normais, talvez seja ilícito passar de um enunciado de facto para um enunciado de
obrigação. Todavia, sustentam que existem casos, ou que pelo menos há uma ocasião específica, em
que se justifica uma tal transição. Além disso, é no caso da evolução que ela se justifica. Certamente

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que em tempo normal não deveremos tentar separar questões de obrigação de questões de facto.
Porém, se se trata de passar de uma maneira como o mundo evolui para a maneira como deve
evoluir, então uma tal transição é não simplesmente admissível mas, num sentido importante,
obrigatória (...) O que pretendo essencialmente defender é que temos doravante boas razões para
sugerir que a moral humana é um produto da evolução... Quero com isto dizer que ela é um
produto final da seleção natural e da sua ação sobre as mutações aleatórias... Que género de
exigências ou de regras de ação moral cria a minha ética evolucionista (questão normativa)? (...)
Que justificação podemos dar para as diretivas normativas da ética evolucionista (questão meta-
ética) ”. No que diz respeito às questões normativas...a minha argumentação baseia-se,
essencialmente, na ideia de que a moralidade humana advém como uma espécie de contrato (que
nos é imposto pelos nossos genes - que nos ensinam que a cooperação é melhor que o conflito, e com
isso, que temos um sentido diferenciado da moralidade por sermos seres evoluídos) (...) Direi que
uma vez que se veja a ética normativa é simplesmente uma adaptação levada a cabo pela seleção
natural para fazer de nós seres sociais (conclui-se que a moral normativa não possui um
fundamento, mas que). A moral é antes uma ilusão coletiva dos genes produzidas para nos tornar
«altruístas». A moralidade, enquanto tal, não tem um estatuto mais justificador do que qualquer
outra adaptação, como os olhos, as mãos ou os dentes. Trata-se simplesmente de qualquer coisa
que tem um valor biológico e nada mais”. (RUSE, Michael, in CHANGEUX, Jean-Pierre (1996).
Fundamentos Naturais da Ética, introdução, trad. de Vasco Casimiro. Lisboa: I. Piaget, pp. 33-60).

Texto 3: Se algum elemento do naturalismo moral tempera as atitudes morais mais


responsáveis e dão indicações daquilo que é necessário fazer? “Existem numerosas variantes do
naturalismo moral. Na época moderna, o naturalismo moral é menos uma filosofia do que uma
posição polémica. Trata-se de recordar ao homem a modéstia da sua condição (no conjunto da
natureza, a sua ascendência comum com os restantes vertebrados) (...) O naturalismo recusa,
simultaneamente, a estreiteza de um humanismo antropocêntrico e a presunção de uma suposta
transcendência das intuições morais. Somos seres naturais... Para o naturalista há algo escrito em
algum lugar (genes e ou natureza viva). Encontramos na natureza indícios ou orientações para
aquilo que devemos fazer ou considerar aceitável?” (Ibidem, p. 182).
Segundo Anne Fagot-Largeault, há indicações medicamente aceitáveis
associadas, por exemplo, aos exames do diagnóstico pré-natal (doenças que
limitam a esperança de vida e/ ou dão uma qualidade de vida miserável), à
engenharia genética humana, que sugerem a prudência para evitar o
desequilíbrio da ordem natural e uso desse conhecimento em benefício da
humanidade, manter a distância entre o natural e o artificial como o
reconhecimento da fragilidade impõe o dever/obrigação de proteção no caso da
responsabilidade parental.
Assim, a autora inspira-se no imperativo da responsabilidade do filósofo Hans
Jonas, que advogava a passagem do «é» (vulnerável) para o «devemos»...
como o «caminho do ser para o dever», ou da metafísica para a moral
quando reconhecemos a fragilidade em que colocamos o planeta Terra, hoje, na
nossa saga tecnológica de domínio da Natureza através de um saber científico,
que se tornou destrutivo. É neste sentido, que a autora fala de indicações
naturais, que fundam a Deontologia Médica e a Deontologia Científica, e
conclui com a ideia do “enraizamento biológico da normatividade social”
(Ibidem: 198), que aceita a “ação retractiva dos factos sobre a norma”,
sobretudo, quando há riscos naturais, anomalias, etc.
Por isso, conclui que “a variabilidade da natureza viva faz com as ciências
biológicas e médicas não dominem os seus objetos senão de forma
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probabilística. Quando as decisões, tanto teóricas como técnicas, são tomadas
em climas de incerteza, as estratégias de investigação e de intervenção
incluem, pela força das coisas, uma arte de negociar os riscos, de ter em conta
o valor das consequências possíveis e de tomar partidos razoáveis (uma
sabedoria prudencial) ”. FAGOT-LARGEAULT, Anne in CHANGEUX, Jean-Pierre
(1996). Fundamentos Naturais da Ética, introdução, trad. de Vasco Casimiro. Lisboa: I. Piaget, pp.
179-211).

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