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APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

Nos dias atuais, com um mundo tão globalizado e cheio de informações e tecnologias
cada vez mais sofisticadas, o mundo, cada vez mais exige, que as pessoas sejam obrigadas a
mudar seu comportamento e conduta, investir em ética, é investir em um mundo melhor, no qual,
vamos deixar de herança para nossos filhos.
A ética corresponde ao estudo dos fenômenos do comportamento moral. As
possibilidades de abordagem para estudo do que podemos designar por fenômenos éticos são
muito diversificadas.
Quando estudamos um fenômeno, seja ele ético, químico, físico ou biológico, procuramos
estabelecer as causas que o produziram e os efeitos que dele resultam. Fixamos nossas atenções
no contexto em que ocorrem, e procuramos enunciar as leis que regem esse fenômeno. Os corpos
caem - é a expressão de um enunciado físico. Os estudos efetuados em torno da ideia contida na
queda dos corpos levaram ao enunciado das leis gravitacionais e inúmeros outros resultados. Um
vaso foi atirado sobre minha cabeça - esta expressão se refere a um fenômeno físico - o vaso
deslocou-se - e a um fenômeno ético - foi lançado por alguém, atendeu a um impulso humano,
respondeu à vontade do agressor.
Posso observar que, na maioria das vezes, os fenômenos éticos ocorrem simultaneamente
a fenômenos de outra natureza, sejam abstratos ou concretos, morais, intelectuais, químicos,
biológicos ou físicos.
- Vou à igreja para comungar - é uma explicação de conteúdo ético religioso.
- Herdei de meu pai a honra e a coragem - é expressão que revela um fenômeno ético
moral, relacionado à transmissão do que me parecem ser virtudes.
- Casei-me segundo os costumes e as leis. - informa o fenômeno ético de natureza moral
(mos, moris = costumes) e jurídica (segundo as leis).
- O cientista trabalha em laboratório. - é uma afirmação que revela vários fenômenos
éticos pois, fala de alguém que estudou e realizou sua vontade de tornar-se cientista, ou seja,
cumpriu um processo ético de formação e preparação do intelecto; de alguém que trabalha e
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cumpre uma função social, ações que envolvem fenômenos éticos de natureza subjetiva e social.
E, ao esclarecer o local do trabalho, ou seja, o laboratório, pressupõe a conclusão de todo o
processo de localização, construção e utilização do contexto físico.
- A cigana, como de costume, leu-me a mão - é o relato abreviado de um fenômeno ético.
Relaciona, da parte do consulente, a expectativa de saber da sorte, de novidades sobre o futuro,
conhecimento do destino e outras que tais. Da parte da cigana, ocorre a materialização de uma
tradição das mulheres de seu povo, que é a adivinhação, associada à expectativa de remuneração.
Saber a sorte, adiantar novidades sobre o futuro e conhecimento do destino são posturas de
natureza ética, tradicionais e costumeiras, frequentes em todos os povos. Ocorrem como
fenômenos éticos morais.
A materialização de uma tradição corresponde à execução física de uma ideia, pois a
materialização integra um fenômeno físico e a tradição é uma ideia de natureza essencialmente
ética. As ações e procedimentos humanos, individuais ou coletivos, isolados, grupais, nacionais
ou internacionais, são fenômenos éticos.
Sendo um campo do conhecimento destinado ao estudo das relações éticas entre o homem
e tudo que integra o seu contexto, precisamos, em primeiro lugar, definir qual é o ponto de
referência em torno do qual situaremos nossos conceitos. A temperatura ambiental não é objeto
da ética. Mas o homem deixar-se queimar ou congelar é um fenômeno ético. Relaciona vontades
e ideias.
Há elementos éticos que se assemelham aos elementos geométricos. Enquanto o ponto, a
reta, o plano, servem à geometria, a ideia, a linha e a forma de pensar servem à ética. Quero
introduzir-me no mundo da ética. Percebo que devo usar ideias, palavras, frases, linhas e formas
de pensar. Vou servir-me da linguagem discursiva, embora não ignore as outras formas de
comunicação. Cada linguagem é, em si mesma, um fenômeno ético. Na vivência de cada minuto
ocorrem ao meu redor sequencias de fenômenos éticos. Mesmo se paro de pensar, os fenômenos
continuam acontecendo. Antes que eu nascesse e depois que vier a morrer, a ocorrência desses
fenômenos seguirá normalmente. Os fenômenos éticos podem ser interpretados de maneira
subjetivo, mas não posso negar que eles são objetivos, que independem de mim ou da minha
existência.
Percebo que tudo que acontece no mundo tem por elementos ideia, vontade, criação, arte,
construção, nascimento, desenvolvimento, religião, poesia, sentimento, paixão, conhecimento,
saudades, tristezas, amor, ódio, vícios e virtudes. Esse conjunto integra o rol dos fenômenos
éticos. Tem abstrato e concreto. Até a ficção integra o universo das ideias. O tempo corre, afeta
o homem em todas as suas relações. Em si mesmo, o tempo não é um fenômeno ético, mas a
compreensão do tempo é de natureza ética. Por que a compreensão é um ato de conhecer.
Conhecer é saber enunciar a relação causa-efeito que rege e define o fenômeno.
Para a iniciação que nos propomos devo partir de mim mesmo. Tenho, como ponto de
partida, a ideia do que vou fazer. Procuro estender a primeira linha de pensar até o principal apoio
do intelecto. Nele amarrarei a outra ponta desta linha. Entendo que a iniciação individual nas
trilhas do conhecimento é um processo pessoal. Deve ser desenvolvida através de abstrações e
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também nas relações materiais, pois através das experiências pessoais o indivíduo pode chegar a
perceber o que ocorre em seu contexto.
A ética abrange todas as relações entre o indivíduo e o universo. Ser-nos-á inadmissível
negar os progressos científicos, tanto na abordagem do microcosmos como do macrocosmos.
Esta é uma experiência extremamente pessoal, que cada um pode vivenciar com a
velocidade que sua individualidade permite, sem exaurir, de uma só vez, todas as suas
possibilidades. Cada passo pode ser de progresso ou retrocesso. Progresso e retrocesso são ideias
também ligadas às noções do tempo. Cada movimento pode ser propício a um avanço. A iniciação
intelectual pelo campo da Ética pode ser repetida quantas vezes convier ao estudioso e, em cada
vez, existe a possibilidade de fazê-lo por trilhas diferentes.
Nos dias atuais, com um mundo tão globalizado e cheio de informações e tecnologias
cada vez mais sofisticadas, o mundo, cada vez mais exige, que as pessoas sejam obrigadas a
mudar seu comportamento e conduta, investir em ética, é investir em um mundo melhor, no qual,
vamos deixar de herança para nossos filhos.
O agir com ética, neste contexto, significa agir com determinadas regras e preceitos.
Porém, muitas pessoas não seguem ou não tem conhecimento códigos de éticas e não as praticam
no seu dia-a-dia. Agindo assim, de maneiras antiéticas, desonestas e injustas. O que poucos sabem
é que os princípios e valores éticos fazem parte da nossa sociedade há mais de 2.500 anos. Sendo,
assim, sua presença nas sociedade se faz essencial e inquestionável, pois propicia a valorização
do ser humano tanto na vida em sociedade como na vida particular. “A ética é a teoria ou ciência
do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica
de comportamento humano”. Até hoje muitos filósofos e pesquisadores procuram descrever o
comportamento e os costumes do ser humano na sociedade. E se confrontam ao tentar disseminar
ética de moral. O que encontrarmos em diversas literaturas é que ética é sinônimo de moral.
Contudo, a ética é uma palavra que vem do grego ETHOS, que significa estudo de caráter, juízo
do ser humano e reflete sobre a situação vivida, para ele, “A ética não analisa o que o homem
faz, como a psicologia e a sociologia, mas o que ele deveria fazer. É um juízo de valores, como
virtude, justiça, felicidade, e não um julgamento da realidade”. Já a moral é normativa e, ainda
de acordo com este autor, teve origem na Idade Média, originou-se do latim MORES. E significa
o “conjunto de costumes, 12 normas e regras de uma sociedade”. Contudo, iremos abordar neste
ano que se inicia, a necessidade de ações éticas do sujeito em sociedade ou não.
É necessário que haja a compreensão do impacto na tomada de decisões de cada um e
ações podem provocar. De maneira que isso possa garantir que todos conheçam bem o
funcionamento da sociedade e das relações interpessoais.
Quando falamos em ética, estamos nos referindo aos bons costumes, bons valores, válidos
para todos os seres humanos, como amor, paz, bondade e tolerância, entre outros tantos. Costume
em grego é “Éthos” (ética) e em latim significa “mores” (moral). Talvez esteja aí a origem da
costumeira confusão que fazemos sobre moral e ética.
A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. A
capacidade ética tem por objetivo a reflexão crítica do ato moral, ou seja, sobre o que é (ou pode
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ser) errado. Assim a ética não é moral. Moral é o objeto de estudo da ética, diz respeito aos
costumes, valores e normas de conduta de cada sociedade.
A ética, então, pode ser o regimento, a lei do que seja ato moral, o controle de qualidade
da moral. Daí os códigos de ética que servem para as diferentes micro-sociedades dentro do
sistema maior. A moral por sua vez, de acordo com Kant, “é aquilo que precisa ser feito,
independentemente das vantagens ou prejuízos que possa trazer”. Assim, quando praticamos um
ato moral, poderemos até sofrer consequências negativas, pois o que é moral para uns pode ser
amoral ou imoral para outros. Veja o exemplo.
A família do Sr. João tem o costume de tomar banho junta. Pai, mãe e filhos (meninas e
meninos) sempre tomaram banho juntos. É cultural, dentro da casa, a exposição do corpo nu entre
eles sem que haja conotações de sexualidade ou de promiscuidade. No entanto, seus vizinhos,
regidos por uma cultura totalmente avessa a esse tipo de comportamento, quando ficaram sabendo
do banho coletivo familiar daquela família, passaram a denomina-la de imoral. Esse simples e
pequeno exemplo, pode justificar o que foi afirmado acima: que ações morais, para uns, podem
ser imorais para outros. Não há como definir quem está “certo” ou quem está “errado”, é uma
questão cultural familiar, de uma micro-sociedade. Duas pessoas podem ter valores diferenciados
a respeito do que seja ato moral ou imoral, é uma questão de consciência pessoal. Daí o conceito
do Kant sobre “aquilo que precisa ser feito”.
Para qualificar, ou seja, para normatizar o que é ou não moral em micro e macro-
sociedades, instituíram-se os códigos de ética. Todas as sociedades têm o seu. Pode ser
documentado com parágrafos e capítulos ou pode ser, no caso de algumas culturas, uma forma
de viver aceita pelos seus membros. Na Índia existem algumas aldeias em que os mais velhos
mutilam sexualmente as meninas ainda crianças. Não está escrito em lugar algum que isso deve
ser feito, mas todos, apesar da revolta do resto da humanidade, mantém essa atitude em nome de
um ato ético que diz que, naquela sociedade a mulher não pode sentir prazer.
Os códigos de ética, então, servem para definir o que é e o que não é ato moral. Em nossa
sociedade capitalista que valoriza a posse de bens materiais e do lucro em detrimento dos valores
morais, o que vale é não quebrar o código de ética estabelecido. Assim, quando um deputado,
senador, prefeito ou vereador aumenta o seu salário em 300%, argumenta sem constrangimento
que “a legislação nos permite essa manobra”, colocando a culpa num regimento, estará sendo
ético, mas, imoral ao mesmo tempo.
A democracia, mal interpretada no seu objetivo, autoriza a sociedade, de modo geral, a
usar de qualquer forma manipulativa, que não atente aos códigos de ética como os regimentos e
código penal, por exemplo, para o acúmulo de bens. A minoria apoiada pelos políticos, pelos
capitalistas, enfim, por quem detêm o poder, cada vez ganha mais e, consequentemente, acumula
mais. Por outro lado temos a maioria dessa sociedade que não possui essas habilidades e
oportunidades, ou não se interessa por elas. Representam o contraponto das diferenças sociais,
no qual algumas pessoas possuem o que não conseguiriam consumir em sua existência e por isso
esbanjam adquirindo carros de milhões e casas suntuosas, desvirtuando por completo o conceito
de ética representar bons costumes e bons valores, e por outro lado indivíduos mantendo suas
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famílias com salário mínimo e vivendo uma sub vida, na miséria. É ético? Sim! Pois não viola as
leis do sistema. É moral? Não! Pois viola os direitos humanos em toda a sua essência.
Consequências? Muitas! Principalmente no quesito, aumento do comportamento anti-social
como a corrupção, sonegação, agressividade e violência, o que resta a muitos como recurso para
demonstrar a sua indignação.
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A CONDIÇÃO HUMANA

Quando eu era pequena e meu pai queria reforçar algum comportamento de coragem e
enfrentamento de situações difíceis, costumava dizer: "Seja homem, minha filha!"
Evidentemente, isso era dito em tom de brincadeira, acentuando a contradição entre o masculino
e o feminino. Mas, na verdade, ele queria dizer que o homem (enquanto ser humano em geral)
deve ser capaz de enfrentar as dificuldades apesar do medo; ou, ainda, que, embora na sociedade
machista o papel da coragem seja reservado aos homens (sexo masculino), eu também deveria
ser forte, mesmo sendo mulher. Assim, ao mesmo tempo que meu pai se referia a um atributo
louvável do ser humano, criticava as concepções de feminilidade que de certa forma desculpam
e reforçam a "fraqueza" da mulher.
Se observarem com atenção, irão constatar que várias vezes por dia colocamos questões
como essas que, no fundo, no fundo, partem da pergunta fundamental: o que é o homem? Embora
não seja formulada de maneira tão explícita, essa questão se encontra subjacente na conversa
diária. Vejamos alguns exemplos:
• "Aquele lá? Não é gente, mais parece um bicho!" (Isso supõe que eu saiba qual é a
diferença entre homem e animal.)
• "Essas coisas acontecem desde que o homem é homem!" (A natureza humana é
imutável.)
• "O que seria de mim sem a graça de Deus?" (O ser do homem é explicado pelo divino,
e o homem não é nada sem a fé.)
• "Eu uso a cabeça e não me deixo arrastar pelas paixões." (O homem é um ser racional,
e as paixões são fraquezas.)
• "De que adianta o trabalho se não houver futebol e carnaval?" (O homem é um ser de
desejo, e o prazer é fundamental no mundo humano.)
• "Não adianta lutar contra o destino. O que tem de ser, será." (O homem não é livre, mas
predestinado.)
• "A ocasião faz o ladrão." (A natureza humana é má.)
A lista poderia não ter fim, pois há diversas situações de vida que exigem reflexão e
retomada de valores. Por exemplo, a perda de emprego, o rompimento de laços de amizade ou de
amor, o enfrentamento de risco de vida ou a morte de um conhecido, a comemoração de uma data
especial (18 anos de vida, ou 40 anos...). Em todos esses momentos é feito um balanço do já
vivido que leva à reafirmação de alguns valores, ou, dependendo do caso, a uma mudança radical
na forma de pensar e agir.

CULTURA

Os animais vivem em harmonia com sua própria natureza. Isso significa que todo animal
age de acordo com as características da sua espécie quando, por exemplo, se acasala, protege a
cria, caça e se defende. Os instintos animais são regidos por leis biológicas, de modo que podemos
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prever as reações típicas de cada espécie. A etologia se ocupa do estudo comparado do


comportamento dos animais, indicando a regularidade desse comportamento. É evidente que
existem grandes diferenças entre os animais conforme seu lugar na escala zoológica: enquanto
um inseto como a abelha constrói a colmeia e prepara o mel segundo padrões rígidos típicos das
ações instintivas, um mamífero, que é um animal superior, age também por instinto mas
desenvolve outros comportamentos mais flexíveis, e portanto menos previsíveis.
Diante de situações problemáticas, os animais superiores são capazes de encontrar
soluções criativas porque fazem uso da inteligência. Se um macaco está mobilizado pelo instinto
da fome, ao encontrar a fruta fora do alcance enfrenta uma situação problemática, que só pode
ser resolvida com a capacidade de se adaptar às novidades mediante recursos de improvisação.
Também o cachorro faz uso da inteligência quando aprende a obedecer ordens do seu dono e
enfrenta desafios para realizar certas tarefas, como, por exemplo, buscar a presa em uma caçada.
No entanto, a inteligência animal é concreta, porque, de certa maneira, acha-se presa à
experiência vivida. Por exemplo, se o macaco utilizar um bambu para alcançar a fruta, mesmo
assim não existirá esforço de aperfeiçoamento que se assemelhe ao processo cultural humano.
Recentemente, pesquisas realizadas no campo da etologia têm mostrado que alguns tipos
de chimpanzés conseguem fazer utensílios, e criam complexas organizações sociais baseadas em
formas elaboradas de comunicação. As conclusões dessas pesquisas tendem a atenuar a excessiva
rigidez das antigas concepções sobre a distinção entre instinto e inteligência e entre inteligência
animal e humana. Mas essas habilidades não levam os animais superiores a ultrapassar o mundo
natural, caminho esse exclusivo da aventura humana. Só o homem é transformador da natureza,
e o resultado dessa transformação se chama cultura.
Eis aí a diferença fundamental entre o homem e os animais. Mas, para produzir cultura,
o homem precisa da linguagem simbólica. Os símbolos são invenções humanas por meio das
quais o homem pode lidar abstratamente com o mundo que o cerca. Depois de criados, entretanto,
eles devem ser aceitos por todo o grupo e se tomam a convenção que permite o diálogo e o
entendimento do discurso do outro.
Os símbolos permitem o distanciamento do mundo concreto e a elaboração de ideias
abstratas: com o signo "casa", por exemplo, designamos não só determinada casa, mas qualquer
casa. Além disso, com a linguagem simbólica o homem não está apenas presente no mundo, mas
é capaz de representá-lo: isto é, o homem torna presente aquilo que está ausente. A linguagem
introduz o homem no tempo, porque permite que ele relembre o passado e antecipe o futuro pelo
pensamento. Ao fazer uso da linguagem simbólica, o homem torna possível o desenvolvimento
da técnica e, portanto, do trabalho humano, enquanto forma sempre renovada de intervenção na
natureza. Ao reproduzir as técnicas já utilizadas pelos ancestrais e ao inventar outras novas —
lembrando o passado e projetando o futuro-o homem trabalha.
Chamamos trabalho humano a ação dirigida por finalidades conscientes e pela qual o
homem se torna capaz de transformar a realidade em que vive.
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TORNAR-SE HOMEM

O homem não nasce homem, pois precisa da educação para se humanizar. Muitos são os
exemplos dados por antropólogos e psicólogos a respeito de crianças que, ao crescerem longe do
contato com seus semelhantes, permaneceram como se fossem animais.
Na Alemanha, no século passado, foi encontrado um rapaz que crescera absolutamente
isolado de todos. Kaspar Hauser, como ficou conhecido, permaneceu escondido por razões não
esclarecidas. Como ninguém o ensinara a falar, só se tornou propriamente humano quando sua
educação teve início. Nessa ocasião ficou constatado que possuía inteligência excepcional, até
então obscurecida pelo abandono a que fora relegado.
O caso da americana Helen Keller é similar, embora as circunstâncias sejam diferentes.
Nascida cega, surda e muda, mesmo vivendo entre seus familiares a menina permaneceu afastada
do mundo humano até os sete anos de idade, quando a professora Anne Sullivan lhe tornou
possível a compreensão dos símbolos, introduzindo-a no mundo propriamente humano.
Esses casos extremos servem para ilustrar o processo comum pelo qual cada criança
recebe a tradição cultural, sempre mediada pelos outros homens, com os quais aprende os
símbolos e torna-se capaz de agir e compreender a própria experiência.
A linguagem simbólica e o trabalho constituem, assim, os parâmetros mais importantes
para distinguir o homem dos animais. Vamos, então, reforçar algumas características desse "estar
no mundo" tão típico do ser humano.
Não se pode dizer que o homem tem instintos como os dos animais, pois a consciência
que tem de si próprio o orienta, por exemplo, para o controle da sexualidade e da agressividade,
submetidas de início a normas e sanções da coletividade e posteriormente assumidas pelo próprio
indivíduo. O homem foi "expulso do paraíso" a partir do momento em que deixou de se instalar
na natureza da mesma forma que os animais ou as coisas.
Assim, o comportamento humano passa a ser avaliado pela ética, pela estética, pela
religião ou pelo mito. Isso significa que os atos referentes à vida humana são avaliados como
bons ou maus, belos ou não, pecaminosos ou abençoados por Deus, e assim por diante.
Essa análise é válida para qualquer outra ação humana: andar, dormir, alimentar-se não
são atividades puramente naturais, pois estão marcadas pelas soluções dadas pela cultura e,
posteriormente, pela crítica que o homem faz à cultura.
Ao definir o trabalho humano, assinalamos um binômio inseparável: o pensar e o agir.
Toda ação humana procede do pensamento, e todo pensamento é construído a partir da ação. A
capacidade de alterar a natureza por meio da ação consciente torna a situação humana muito
específica, por estar marcada pela ambiguidade e instabilidade.
A condição humana é de ambiguidade porque o ser do homem não pode ser reduzido a
uma compreensão simples, como aquela que temos dos animais, sempre acomodados ao mundo
natural e, portanto, idênticos a si mesmos. O homem é o que a tradição cultural quer que ele seja
e também a constante tentativa de ruptura da tradição. Assim, a sociedade humana surge porque
o homem é um ser capaz de criar interdições, isto é, proibições, normas que definem o que pode
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e o que não pode ser feito. No entanto, o homem é também um ser capaz de transgressão.
Transgredir é desobedecer. Não nos referimos apenas à desobediência comum, mas àquela que
rejeita as fórmulas antigas e ultrapassadas para instalar novas normas, mais adequadas às
necessidades humanas diante dos problemas colocados pelo existir. A capacidade inventiva do
homem tende a desalojá-lo do "já feito", em busca daquilo que "ainda não é". Portanto, o homem
é um ser da ambiguidade em constante busca de si mesmo.
E é por isso que o homem é também um ser histórico, capaz de compreender o passado e
projetar o futuro. Saber aliar tradição e mudança, continuidade e ruptura, interdição e transgressão
é um desafio constante na construção de uma sociedade sadia.

CONCEPÇÕES DE HOMEM

A questão antropológica — o que é o homem? — é a primeira que se coloca em qualquer


situação vivida pelo homem. Quando dizemos que se trata de uma questão primeira, não nos
referimos à prioridade histórica, pois nem sempre esse questionamento ocorre de fato. Por
exemplo, nas sociedades tradicionalistas, como a China e o Egito da Antiguidade, ou ainda nas
tribos primitivas, a indagação sobre o que é o homem não chega a ser problemática, já que a
tradição define os modelos de ideias e condutas que serão transmitidos pelos depositários do
saber, tais como o sacerdote, o escriba e o mandarim.
Consideramos a prioridade da questão antropológica no sentido filosófico de princípio,
fundamento, ou seja, ao examinar a fundo qualquer teoria ou atividade humana, sempre podemos
descobrir a ideia de homem a ela subjacente. Assim, na longa caminhada da humanidade, o
homem fez de si próprio as mais diversas representações, dependendo das situações e
dificuldades enfrentadas na luta pela sobrevivência e na tentativa de explicar o mundo que o
cerca. Mesmo que não esteja claramente explícito, há um conceito de homem subjacente em cada
comportamento. Certamente, o conceito do que é ser homem varia em cada cultura, conforme
seja considerado o cidadão da pólis grega, ou o nobre medieval, ou o índio, ou o indivíduo das
megalópoles modernas.
Antropologia (gr. anthropos: homem, e logos: teoria, ciência): a) antropologia científica:
ciência humana que estuda as diferentes culturas quanto aos mais diversos aspectos (relações
familiares, estruturas de poder, costumes, tradições, linguagem etc.); engloba a etnografia e a
etnologia, b) Antropologia filosófica: questionamento filosófico a respeito do que é o homem;
investigação a propósito do conceito que o homem faz de si próprio.
Mas, quando a cultura sofre crises, como a ruptura de antigas certezas, surge o
questionamento, e o homem busca novas representações de si mesmo. Foi o que aconteceu, por
exemplo, na Grécia, onde o desenvolvimento da reflexão filosófica se deu após uma série de
transformações as mais diversas, tais como a formação das cidades e o desenvolvimento do
comércio. A busca, resultante da incerteza, se expressa bem nas máximas de Sócrates "Só sei que
nada sei" e "Conhece-te a ti mesmo", que, em última análise, representam o projeto da razão
nascente de estabelecer critérios não-religiosos para a compreensão do homem.
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As transformações das técnicas e das ciências também contribuem para modificar as


representações que o homem faz de si mesmo. Basta citar o que significou o advento da escrita,
da imprensa ou, no nosso século, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Não
constitui exagero, por exemplo, refletir sobre o impacto causado pela teoria heliocêntrica de
Copérnico, que, no século XVI, rompeu com a crença de que a Terra ocupava o lugar privilegiado
de centro do Universo.
Assim como podemos compreender as diversas concepções de homem a partir das
mudanças ocorridas nas formas do existir humano, também é importante entender como, por sua
vez, as concepções de homem influenciam outras teorias. A ação política, a ação pedagógica, a
ação moral, entre outras, assumem características diferentes conforme tenham por pressuposto
uma ou outra concepção de homem.
Por exemplo, se partirmos da concepção de que as paixões são distúrbios, perturbações
da alma, exigiremos normas de comportamento diferentes daquelas estabelecidas a partir de
teorias que concebem as paixões como forças vitais a serviço da humanização. Por isso são tão
opostas as concepções estóico-cristãs de ética — que se identificam com o primeiro exemplo —
e a filosofia de Nietzsche, que justamente critica essa forma de pensar e a prática dela decorrente.
Existe uma natureza humana universal? É possível admitir que existe uma natureza
humana universal, idêntica na sua essência em todos os tempos e lugares, explicando-se as
diferenças como simples acidentes ou desvios a serem corrigidos?
Se respondemos pela afirmativa — e é isso o que ocorre em grande parte das teorias
filosóficas desde a Antiguidade até nossos dias — estamos diante da concepção metafísica da
natureza humana.

A TRADIÇÃO OCIDENTAL

Para Platão, a verdadeira realidade se encontra no mundo das Ideias, lugar da essência
imutável de todas as coisas, dos verdadeiros modelos ou arquétipos. Todos os seres, inclusive o
homem, são apenas cópias imperfeitas de tais realidades eternas e se aperfeiçoam à medida que
se aproximam do modelo ideal.
Para Aristóteles, o ser é constituído de matéria e forma, e as transformações são
explicadas pelo argumento de que todo ser tende a tornar-se atual a forma que tem em potência.
Por exemplo, a semente quando enterrada tende a se transformar no carvalho que era em potência.
Transposta essa ideia para o homem, conclui-se que também os seres humanos têm formas em
potência a serem atualizadas, ou seja, têm uma natureza essencial que se realiza aos poucos, em
direção ao pleno desenvolvimento. E, tanto para Platão como para Aristóteles, a plenitude
humana coincide com o aperfeiçoamento da razão. Até hoje seguem essa tendência os que
definem a educação como sendo o desenvolvimento das "potencialidades do indivíduo", o que
supõe a aceitação da existência de um modelo abstrato de homem a ser alcançado. Chamamos
essencialista ao tipo de pedagogia que coloca como função da educação realizar o que o homem
deve vir-a-ser.
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ÉTHOS, ÉTICA E CULTURA

Na Grécia Antiga, muito antes de Aristóteles estruturar filosoficamente a Ética como uma
verdadeira “Ciência do éthos”, havia uma ética tradicional, narrada e divulgada nos versos épicos
de Homero, o educador da Grécia. Esses poemas enalteciam o heroísmo de Aquiles, a sabedoria
de Nestor, a coragem e a audácia de Ulisses, a fidelidade de Penélope e deles faziam verdadeiros
modelos paradigmáticos de conduta ética, que o povo grego procurava imitar.
O mesmo poder-se-ia dizer das lições de vida e de sabedoria que emanavam das máximas
dos Sete Sábios da Grécia, dentre as quais eu destacaria aquela que afirma: “ótima é a medida”,
e as que exortam: “não desejes o impossível” e “não enriqueças de modo desonesto”. Estas
máximas éticas fazem parte do patrimônio da sabedoria tradicional do povo helênico. Depois,
elas foram transformadas em uma verdadeira ciência da ética, quando foram articuladas aos
princípios metafísicos, nos quais encontraram o segredo da validade de suas exortações. Mas,
vejamos primeiro o que os gregos entendiam pelo termo éthos, pois é nele que a palavra Ética
tem sua raiz etimológica.
Etimologicamente, a palavra grega “éthos” tem uma polissemia muito significativa.
Quando escrito com a letra “ε” (épsilon), ela significa “costume”, vale dizer, aquela “disposição
interior”, que leva o indivíduo, com uma certa constância do agir, a compartilhar da comunidade
social a que pertence.
Porque desprovido da necessidade e do determinismo natural que regem o mundo da
Physis, vale dizer, o mundo da Natureza e garantem a sua ordem, o ser humano precisa de uma
certa “constância no agir” para conseguir um estilo de vida harmonioso com seus companheiros
de existência e para não se perder nos labirintos criados pela sua própria liberdade. Esta
“constância no agir”, significada pelo ethos-costume, justificava, para os gregos, a analogia entre
a ordem cósmica do universo e a ordem ética do agir humano.
Uma forma mais acabada deste éthos-costume é aquela expressa pelo “hábito”, que os
gregos designavam com a palavra “héxis” e que traduzia a maneira regular e constante de agir,
que só era capaz de possuir, aquele que tinha um certo domínio de si e de seus atos. Olhado, desse
modo, o éthos, seja na dimensão do “costume”, seja na dimensão do “hábito”, cria um espaço
para a realização individual e social do ser humano. Na constância do costume, as ações, na
medida em que são repetidas, formam os hábitos, e, desse modo, orientam o ser humano para a
conquista dos bens e dos valores, com os quais pode dar sentido à sua vida..
O conceito de virtude (areté) tinha um valor todo especial. Primeiramente, o homem
virtuoso era um homem “kósmios”, vale dizer, um homem sintonizado com a harmonia da ordem
cósmica. O seu oposto era o homem “hybristhos”, isto é, o homem transgressor da medida e
escravo da desmedida, em total oposição à noção de medida (métron), na qual Aristóteles via a
essência da virtude. Dizendo que a virtude era sempre o meio termo entre dois excessos,
Aristóteles não estava fazendo a apologia da mediocridade, mas o elogio do equilíbrio capaz de
harmonizar, no seu modo de agir, as tendências contrárias e contraditórias da natureza humana.
Assim sendo, o homem corajoso é aquele que consegue equilibrar, em uma conduta sensata e
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virtuosa, a pusilanimidade do medroso e a audácia do imprudente. O homem verdadeiramente


corajoso é aquele que, apesar de sentir medo, não deixa de enfrentar o perigo, não de qualquer
modo, mas de um modo sensato e racional. Este o segredo e esta a grandeza daquilo que os gregos
chamavam a virtude da coragem.
Para eles, pois, a virtude revelava a excelência no modo de ser e de agir dos homens.
Virtuoso era o homem que fazia, de modo excelente, o que precisava ser feito, fosse ele o general
planejando suas batalhas, ou o simples e humilde sapateiro fabricando seus sapatos.
Dando uma certa constância ao agir, o éthos-costume, aperfeiçoado pelo hábito,
proporciona ao homem, desprovido de um modo de agir pré-determinado pela natureza, a
condição de se tornar “responsável” pelos seus atos e o introduz, assim, no mundo da liberdade
e da responsabilidade.
Mas o termo ethos, quando escrito com a letra “η” (eta), tem também um outro sentido
igualmente muito significativo. Ele quer dizer “morada”. Para não se perder no ilimitado do
espaço que o circunda e envolve, o ser humano precisa construir uma morada, na qual possa
proteger-se tanto contra as intempéries da natureza, quanto contra as ameaças e hostilidades do
meio ambiente e dos outros homens com os quais partilha a aventura do existir.
Construir uma morada torna-se, assim, para o ser humano, uma sugestiva metáfora da
tarefa existencial que o define e constitui como um ser-no-mundo. Com efeito, a vida não lhe foi
dada realizada ou feita, mas, sim, como uma tarefa a ser feita, ou como uma missão a ser realizada
e cumprida. Se o ser humano, na sua essência, ou seja naquilo que define a sua natureza, recebeu
a dádiva da sua natureza humana, sem que dela tivesse podido fazer uma verdadeira escolha; a
existência, ou seja, a história de sua vida é de sua inteira responsabilidade. Cada um de nós será
aquilo que fizer de sua existência e a história de nossas vidas será aquela que cada um de nós
escrever na trajetória de sua existência.
Já se disse que o animal, quando entra no mundo, não precisa construir uma casa, porque
“sua casa é o Cosmos”. Seu aparato instintivo participa da lei universal que rege o maravilhoso
poema do acontecer cósmico, o qual se manifesta no balé dos astros e na dança do tempo que
rege a sucessão dos dias e das noites, bem como a mudança dos cenários, nos quais é representado
o espetáculo das estações do ano, vale dizer, a beleza da primavera com suas flores, a do verão
com a claridade transparente de seus dias, a tristeza do cair das folhas mortas que se desprendem
das árvores, e, finalmente, o inverno com o silêncio limpo de seus campos cobertos de neve.
Mas o homem, este deve construir uma morada e esta é, sobretudo, o lugar da intimidade
e do repouso, o lugar onde ele restaura as energias perdidas nas lutas do dia a dia. Se levarmos
em consideração a precocidade biológica da criancinha recém-nascida e o seu consequente estado
de desamparo, pois ao nascer ela é o mais desamparado de todos os animais e se encontra na total
impossibilidade de poder ajudar-se a si mesma, compreender-se-á que a psicanálise tenha feito
da fantasia do retorno ao útero materno, uma das “fantasias originárias”(Urphantasien como as
chamava Freud), que estão na base da estruturação e da organização de toda a nossa vida
fantasmática, particularmente quando nos colocamos diante dos grandes enigmas da existência
humana.
13

O homem, cada noite, retorna temporariamente ao aconchego desta “morada originária”,


quando dorme e sonha. De fato, o sono é, provavelmente, o protótipo mais expressivo do útero,
que todas as noites novamente nos acolhe. E esta volta ao aconchego do silencioso útero da mãe-
noite, nos faz viver, em todo amanhecer, a poesia de um verdadeiro renascer.
O ethos-morada é também um símbolo da realidade do mundo em que o homem se situa
como um ser-no-mundo, estruturalmente constituído pelas categorias do corpo, da realidade
psíquica e da realidade espiritual. Constituído pelo corpo, o homem não apenas tem um corpo
como os demais animais, mas é o seu corpo. Pela sua mediação, ele se exterioriza e se situa no
mundo como uma realidade dada, como um “ente” entre os demais. Todavia, pela sua estrutura
psíquica, ele interioriza o mundo, no qual foi exteriorizado pelo corpo, e, mediante seus desejos,
fantasias, conceitos e representações, torna o mundo uma realidade significada, construindo
assim a realidade de seu mundo interior.
Na passagem do mundo exterior das coisas materiais – o mundo da natureza - para a
realidade significada que é o mundo da cultura, abre-se o espaço, no qual vão se inscrever as
normas, os ideais e o tesouro de inúmeras formas simbólicas, tais como: o saber, a arte, a religião,
a ciência, a técnica, formas simbólicas estas que tornam o mundo-morada do homem um mundo
habitável. Resumindo, o homem é o único animal que cria seu mundo-morada como um universo
simbólico de normas e de ideais, e isto é justamente o que eu entendo por cultura.
Portanto, a dupla significação da palavra ethos, vale dizer, o éthos-costume e o éthos-
morada, abre um espaço, no qual o ser humano, para tornar seu mundo mais habitável, cria as
formas simbólicas, através das quais as “coisas materiais”, ou as realidades da natureza, são
integradas ao sistema simbólico da cultura. A realidade material (res) transforma-se, então, em
uma verdadeira “obra” cultural (opus). E quando as coisas da natureza transformam-se em obras
humanas, a Natureza se faz Cultura, da qual o homem é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito.
Causa porque é ele quem transforma a Natureza em Cultura, e, ao mesmo tempo, efeito, porque
todo homem é homem de seu tempo e traz as marcas da cultura em que se insere e da qual recebe
as influências.
Pois bem, na medida em que o homem, como criador de símbolos, revela o significado
dos objetos materiais que transforma em objetos de cultura, ele diz, ao mesmo tempo, o que esses
objetos são, o que significam e o que devem-ser para atingir sua finalidade no mundo simbólico
da cultura. Neste mundo, o indivíduo não encontra apenas o que precisa para sua sobrevivência,
mas também descobre um sistema de normas e de valores de que precisa para sua realização,
tanto individual quanto comunitária. Por isso, o éthos é co-extensivo à cultura e a cultura, por sua
vez, adquire uma dimensão axiológica, vale dizer, uma dimensão ética e valorativa, que é
constitutiva daquilo que a define como cultura. Esta a razão pela qual se diz que não existe cultura
sem ética, da mesma forma que não pode existir ética sem cultura.
Na Grécia antiga, o que possibilitou a passagem da ética tradicional, regida pelo respeito
tradicional dos mitos e dos ritos sagrados, para a Ciência da Ética, regida pela “razão”, foi o
trabalho de Sócrates, quando relacionou as máximas éticas tradicionais a uma visão mais
profunda da psyché humana, vendo, nela, o princípio fundamental do ser e do agir do homem.
14

Se na Grécia Antiga, os homens não se sentiam responsáveis pelos seus próprios atos,
porque viviam inteiramente submissos aos caprichos e ao destino estabelecido pelos deuses, com
Sócrates, o homem passou a ter uma outra concepção de si e foi no interior de sua alma, que ele
foi buscar as razões do seu viver. Para Sócrates, o importante, na vida, não era apenas o fato de
viver, mas as razões pelas quais o homem vive. Daí porque todo seu filosofar teve como objetivo
cuidar da alma dos homens seus concidadãos, a fim de torná-los melhores. Platão afirma que foi
o deus Apolo quem confiou a Sócrates esta missão, fazendo dele um terapeuta da alma humana.
Integrando à sua filosofia o “conhece-te a ti mesmo” do Oráculo de Delfos, ele preparou o terreno
para Platão e Aristóteles estruturarem depois as bases metafísicas da ciência e da consciência
ética.
Não seria este o momento oportuno para analisar como nasceu, desenvolveu-se e se
estruturou a ciência da ética na tradição socrático-platônica e na tradição aristotélica. Direi apenas
como a Ética, regida pela Razão prática, surgiu nas origens da cultura ocidental, dando início ao
ciclo civilizatório no qual ainda hoje nos movemos.
O Lógos, ou a Razão, que substituiu o mito na explicação filosófica da ordem da
Natureza, tornou-se também a Razão que rege e orienta a conduta dos homens. Se, como vimos,
o éthos-costume já sustentava uma certa “constância no agir”, isto era feito precisamente porque
o homem podia ser dirigido no seu agir pelos ditames de sua Razão. A Razão, que dirige o agir
ético, é a Razão prática, que Aristóteles distinguiu tanto da razão teórica, destinada à
representação dos conceitos e à contemplação da verdade, quanto da razão poética, ou técnica,
destinada a dirigir o trabalho produtivo do homem no campo do fazer. A razão teórica dirige o
pensar, a razão prática o agir e a razão técnica o fazer do homem como ser no mundo. Enquanto
a razão técnica destina-se ao aperfeiçoamento dos objetos, que o homem trabalha para
transformá-los em obras humanas e inseri-las no universo simbólico da cultura, a finalidade da
razão prática é o autoaperfeiçoamento do ser humano, mediante a consecução dos bens e dos
valores, desde os materiais até os espirituais, nos quais se escondem as razões do viver e o sentido
da vida.
Para os gregos, a Razão prática tinha uma abertura metafísica para o horizonte universal
do Bem, e isto fundamentava a prática ética no princípio ontológico que assim se enunciava: o
Bem deve ser feito − Bonum est faciendum. Daí eles concluíam que há um dever-ser que é
imanente à prática ética, que dá ao éthos uma valoração universal, a qual antecede e transcende
a particularidade dos costumes das diversas culturas humanas em que ele se manifesta.
Em qualquer que seja a cultura, quaisquer que sejam seus costumes e hábitos, por mais
diferentes que estes possam ser nos diferentes povos em que vigoram, esses hábitos e costumes
só serão dignos de uma cultura verdadeiramente humana, se forem dirigidos por este princípio
ontológico da prática ética: Bonum est faciendum, vale dizer, o bem deve ser feito.
Quando não perde de vista esta dimensão universal, o éthos ao se inscrever na
particularidade das diversas culturas, ao invés de se fragmentar em valores particulares regidos
unicamente pelos caprichos e interesses dos indivíduos, ele “suprassume” (no sentido da
Aufhebung hegeliana), na sua particularidade cultural, o valor de seus princípios universais e
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temos, assim, a constituição do sujeito ético, que, embora seja particular na medida em que é
inserido em uma cultura particular, nem por isso deixa de ser um sujeito de direitos e de deveres
universais.
Nesta tendência ontológica da Razão prática para o Bem, estaria, pois, o segredo do valor
ético universal da conduta humana, que embora perca esta universalidade ao se particularizar na
variedade das diversas culturas, é ao mesmo tempo conservado, quando, no dinamismo de seu
movimento dialético, “suprassume” (para continuar falando como Hegel) na singularidade do
sujeito ético, tanto a particularidade da cultura em que se insere, quanto a universalidade de seus
princípios.
Isso concretamente significa que as leis mudam e devem mudar através da História e os
costumes, eles também, mudam e devem mudar nas diversas culturas e nas diversas épocas do
devir histórico; mas, se as novas leis e os novos costumes deixarem de procurar o Bem da
comunidade humana, a ética entrará em crise por maior que seja o progresso sócio-econômico
das culturas particulares.
Para Aristóteles, o homem é essencialmente não só um animal racional, mas também um
animal político (Zóon politikón). Isto quer dizer que, para os gregos, os homens não podiam
encontrar uma verdadeira auto-realização sem levar em consideração o bem estar da pólis ou da
comunidade política a que pertenciam. Político era o homem que primordialmente pensava nos
interesses e no bem da comunidade a que pertencia!
Não obstante tudo isso, a Grécia do século V a.C. viveu, ela também, uma crise ética, que
tem muitos traços semelhantes à crise ética que estamos vivendo atualmente. É esta crise ética de
nossos dias, suas causas e consequências que passarei a analisar, em seguida, na segunda parte
deste ensaio.

DEFINIÇÃO DE ÉTICA

Do ponto de vista etimológico, a palavra ética vem do grego "ethos", que significa "modo
de ser", "caráter", enquanto forma de vida adquirida ou conquistada pelo homem.
Por sua vez, moral vem do latim "mos" ou "mores", que quer dizer "costume" ou
"costumes", no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. A moral se refere,
assim, ao comportamento adquirido ou modo de ser conquistado pelo homem.
Tem-se, então, que, na origem, "ethos" e "mos", caráter e costume, fundamentam-se num
modo de comportamento que não corresponde a uma disposição natural, mas que é adquirido ou
conquistado por hábito. Uma das possíveis definições de ética seria a de que é uma parte da
filosofia (e também pertinente às ciências sociais) que lida com a compreensão das noções e dos
princípios que sustentam as bases da moralidade social e da vida individual. Em outras palavras,
trata-se de uma reflexão sobre o valor das ações sociais consideradas tanto no âmbito coletivo
como no âmbito individual. Ética é o nome dado ao ramo da filosofia dedicado aos assuntos
morais. A palavra ética é derivada do grego, e significa aquilo que pertence ao caráter. Diferencia-
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se da moral, pois, enquanto esta se fundamenta na obediência a costumes e hábitos recebidos, a


ética, ao contrário, busca fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão.
A ética também não deve ser confundida com a lei, embora com certa frequência a lei
tenha como base princípios éticos. Ao contrário do que ocorre com a lei, nenhum indivíduo pode
ser compelido, pelo Estado ou por outros indivíduos, a cumprir as normas éticas, nem sofrer
qualquer sanção pela desobediência a estas; por outro lado, a lei pode ser omissa quanto a
questões abrangidas no escopo da ética.
Segundo o dicionário Aurélio, a ética é o “estudo dos juízos de apreciação referentes à
conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente
a determinada sociedade, seja de modo absoluto”. Para alguns autores, a Ética é o conjunto de
valores na concepção de um indivíduo, ou seja, a maneira como os seres humanos vivem e se
relacionam, e dessa forma buscam justificar seus costumes e preceitos perante uma determinada
sociedade. Ainda seguindo o pensamento desses autores, encontramos a definição de moral como
sendo o conjunto de regras que fixam condições equitativas de convivência com respeito e
liberdade, onde indivíduos se relacionam, e se respeitam, de forma que os valores morais
norteiam o comportamento humano diante da sociedade em que vivemos. A ética e a moral
historicamente são constituídas pelo processo de mudança entre as sociedades e as épocas, “as
doutrinas éticas fundamentais nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como
respostas aos problemas básicos apresentados pelas relações entre os homens, e, em particular
pelo seu comportamento moral efetivo”. Ética e moral são expressões, que por muitas vezes
chegam a nos confundir, todavia se analisarmos com maior atenção pode-se fazer uma distinção
entre as duas. A ética é sinônimo da moral, porém, a ética é reflexiva e analisa não o que o ser
humano faz, mas o que ele deveria fazer. Já a moral é normativa e fixa regras e costumes
adquiridos ao longo da vida.
A priori, podemos dizer que a ética se dá pela educação da vontade, a filosofia moral ou
a disciplina denominada ética nasce quando se passa a indagar o que são, de onde vêm e o que
valem os costumes. Isto é, nasce quando também se busca compreender o caráter de cada pessoa,
isto é, o senso moral e consciência moral individuais. Nessas condições, podemos definir a “ética
como sendo a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Assim, a
ética não cria moral, uma vez que seu objeto de estudo é formado por determinado tipo de atos
humanos: os atos conscientes e voluntários.
17

Por outro lado, temos que a moral é um conjunto de normas, princípios e valores, segundo
o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade,
de tal maneira que essas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e
conscientemente, por uma convicção íntima e não de uma maneira mecânica, externa ou
impessoal.
Isso significa dizer que a moral possui um caráter social porque:
a) os indivíduos se sujeitam a princípios, normas ou valores socialmente estabelecidos.
b) regula somente atos e relações que acarretam consequências para outros e exigem
necessariamente a sanção dos demais.
c) cumpre a função social de "induzir" os indivíduos a aceitarem livre e conscientemente
determinados princípios, valores ou interesses.
d) é válida de modo absoluto, para qualquer tempo ou lugar.
Como decorrência, todo homem que não pautar sua conduta pelo comportamento moral
é julgado, discriminado, diferenciado, a ponto de, eventualmente, ser até enclausurado, não
importando se suas atitudes lhe pareçam corretas. O que importa, para aquela sociedade, é que
seus procedimentos não coincidem com o conceito histórico e social. É o grito de guerra contra
aquela não-convicção íntima de que as coisas são como são, porque assim deve ser.
“A moral, como sinônimo de ética, pode ser conceituada como o conjunto das normas
que, em determinado meio, granjeiam a aprovação para o comportamento dos homens”. Assim,
ainda, podemos dizer que “A ética, como expressão única do pensamento correto, conduz a ideia
da universalidade moral”.
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OBJETIVO DA ÉTICA

- Deve-se dizer sempre a verdade ou há ocasiões em que se pode mentir?


- O Ministro da Economia deve autorizar a divulgação do índice correto da inflação ou
deve manipular os dados, objetivando ganhos políticos (ou até econômicos) para o governo,
sabendo que, por consequência, os repassará posteriormente a toda a nação?
Tratam-se, nestes casos, de situações práticas que, dependendo do caso, são vivenciadas
intensamente, isto é, são problemas reais que se apresentam nas relações entre indivíduos ou
quando os fatos são colocados para o julgamento dos outros ou da Comunidade.
Todas essas situações, tão diferentes entre si, possuem algo em comum: são problemas
cuja solução envolve a participação de mais de uma pessoa, que certamente sofre as
consequências das decisões tomadas. Tais consequências podem afetar somente um indivíduo
ou, em outros casos, um grupo de indivíduos ou até, toda a Sociedade.
Os indivíduos que participam de situações como as que acabamos de citar devem pautar
seu comportamento por normas próprias ou não, que julgam ser dignas ou mais adequadas de
serem cumpridas. Essas normas, aceitas intimamente, induzem a que o indivíduo aja desta ou
daquela maneira.
Assim, esse comportamento é o resultado de uma decisão refletida, pensada, raciocinada.
Não se trata de uma ação espontânea nem natural ou instintiva.
O comportamento ético não é um comportamento inato, primitivo. Antes, reflete o grau
de amadurecimento de um indivíduo, de uma família, de uma Comunidade, de um Estado ou de
uma Nação.
Da mesma forma, o julgamento que os outros fazem dessas ações também é pautado por
normas já estabelecidas, que podem concluir com juízos como: "Fulano agiu bem mentindo
naquelas circunstâncias" ou "o iraquiano devia ter denunciado seu amigo traidor" e assim por
diante.
Temos, ainda, de um lado, atos praticados, que chamamos morais, e, de outro lado, juízos
emitidos que aprovam ou desaprovam, também moralmente, os mesmos atos.
O problema do que fazer ou deixar de fazer, em cada situação, é um problema
prático-moral. Ao contrário, definir o que é bom não é problema moral cuja solução pertence ao
indivíduo em cada caso particular. Antes, é um problema teórico, de competência da ética, uma
vez que geral.
Pode-se dizer que a essência do ato moral está diretamente vinculada à questão da
responsabilidade, isto é, o comportamento é moral quando o sujeito que o pratica é responsável
pelos seus atos. Isso quer dizer que o indivíduo pode fazer o que queria fazer, ou, dito de outra
forma, o sujeito teve a possibilidade de escolha entre duas ou mais alternativas e agiu de acordo
com a decisão tomada.
Conclui-se daí que a responsabilidade é inseparável da liberdade da vontade, ou melhor,
a liberdade traz consigo a responsabilidade.
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No dizer de Aristóteles "cada homem julga corretamente os assuntos que conhece, e é um


bom juiz de tais assuntos. Assim, o homem instruído a respeito de um assunto é um bom juiz em
relação ao mesmo e o homem que recebeu uma instrução global é um bom juiz em geral".
Para Aristóteles, então, a ética tem por objetivo determinar qual é o bem supremo para as
criaturas humanas (a felicidade) e qual é a finalidade da vida humana (fruir esta felicidade da
maneira mais elevada - a contemplação).
Não há como negar que o campo de ação da ética sofreu profundas modificações com
relação ao conceito aristotélico. Nem poderia deixar de ser diferente, pois as ações e relações
humanas, embora mantenham uma certa identidade com as dos tempos dos gregos, hoje são muito
mais complexas, mais vulneráveis em alguns sentidos, mais esguias em relação aos outros, etc.
Os costumes, os princípios e, acima de tudo, os valores atuais, em nada se parecem com
os dos antigos, como consequência, estamos presenciando uma nova formulação da moral
comportamental.
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O MUNDO DOS VALORES

Todo mundo já ouviu falar no "jeitinho brasileiro": poder, não pode, mas sempre dá-se
um jeito... Muitos até chegam a achar que se trata de virtude a complacência com a qual as pessoas
"fecham os olhos" para certas irregularidades e ainda favorecem outras tantas.
Certos "jeitinhos" parecem inocentes ou engraçados, e às vezes até são vistos como sinal
de vivacidade e esperteza: por exemplo, quando se fura a fila do ônibus ou do cinema. Ou, então,
para pegar o filho na escola, que mal há em parar em fila dupla?
Outros "jeitinhos" não aparecem tão às claras, mas nem por isso são menos tolerados:
notas fiscais com valor declarado acima do preço para o comprador levar sua comissão, compras
sem emissão de nota fiscal para sonegar impostos, concorrências públicas com "cartas marcadas".
O que intriga nessa história toda é que as pessoas que estão sempre "dando um jeitinho"
sabem, na maioria das vezes, que transgridem padrões de comportamento. Mas raciocinam como
se isso fosse absolutamente normal, visto que é comum: só eu? e os outros? todo mundo age
assim, quem não fizer o mesmo é trouxa; quem não gosta de levar vantagem em tudo?
Os exemplos dados ora são transgressões medianamente graves (como interromper o
trânsito na rua), ora são ações claramente imorais (como o roubo do dinheiro público nas
concorrências fraudulentas). Em todos esses casos, o "jeitinho" surge como forma autoritária e
individualista de desconsiderar as normas da vivência em coletividade.
Não mais considerando apenas o famigerado "jeitinho", ações de outro tipo também
podem ser consideradas reprováveis, como mentir, roubar, matar, explorar o trabalho alheio e
assim por diante.
Estamos diante dos fatos que pretendemos analisar. Certas ações são objeto de valoração:
podemos considerá-las justas ou injustas, certas ou erradas, boas ou más. E, em função de tais
avaliações, são dignas de admiração ou desprezo. Porém o que é valorar? O que são valores?

O QUE É VALOR

Olhe à sua volta. Escolha um objeto ou pessoa e faça um juízo de realidade: a) esta caneta
é azul; b) esta caneta é nova; c) Maria saiu por aquela porta; d) a barraca está cheia de frutas; e)
João foi à igreja.
Observe também que, ao mesmo tempo, é inevitável fazer juízos de valor: a) esta caneta
azul não é tão bonita quanto a vermelha; b) a caneta antiga escrevia melhor que esta; c) Maria
não deveria ter saído antes de terminar o trabalho; d) as frutas fazem bem à saúde; e) orar
reconforta o espírito.
No primeiro caso trata-se de avaliação estética, no segundo considera-se o valor de
utilidade, no terceiro parece ocorrer a transgressão de um valor moral, no quarto há referência ao
valor vital e, no último, ao valor religioso.
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Há, portanto, o mundo das coisas e o mundo dos valores. Mas não podemos dizer que os
valores são da mesma maneira que as coisas são. Isto é, não existe o valor em si enquanto coisa,
mas o valor é sempre uma relação entre o sujeito que valora e o objeto valorado.
Atribuir um valor a alguma coisa é não ficar indiferente a ela. Portanto, a não-indiferença
é a principal característica do valor.
Isso significa que os valores existem na ordem da afetividade, ou seja, não ficamos
indiferentes diante de alguma coisa ou pessoa, pois somos sempre afetados por elas de alguma
forma. Reclamamos da caneta que não escreve bem, ouvimos várias vezes com prazer a música
de nossa preferência, recriminamos quem usa de violência e assim por diante.
Valorar é uma experiência fundamentalmente humana que se encontra no centro de toda
escolha de vida. Fazer um plano de ação nada mais é do que dar prioridade a certos valores, ou
seja, escolher o que é melhor (seja do ponto de vista moral, utilitário etc.) e evitar o que é
prejudicial para se atingir os fins propostos.
A consequência de qualquer valoração é, sem dúvida, dar regras para a ação prática.
Assim, se o ar é um valor para o ser vivo, é preciso evitar que a poluição atmosférica prejudique
a qualidade desse bem indispensável. Se a credibilidade é um valor, não posso estar o tempo todo
mentindo, caso contrário as relações humanas ficariam prejudicadas. Portanto, diante daquilo que
é, a experiência dos valores orienta para o que deve ser.
Neste capítulo, dentre os mais diversos valores possíveis, escolhemos analisar os valores
morais. Moral é o conjunto de regras de conduta consideradas válidas para um grupo ou para uma
pessoa.
Veremos, a seguir, qual é a origem desses valores e o que caracteriza o ato propriamente
moral.

DE ONDE VÊM OS VALORES?

Se os valores não são coisas, pois resultam da experiência vivida pelo homem ao se
relacionar com o mundo e os outros homens, talvez pudéssemos concluir que tais experiências
variam conforme o povo e a época. É o que parece nos sugerir a diversidade de costumes: para
algumas tribos, é indispensável matar os velhos e as crianças que nascem com algum defeito, o
que para nós pode parecer incrível crueldade. Na Idade Média era proibido dissecar cadáveres, e
no entanto as instituições de justiça tinham o direito de torturar seres vivos. Nosso costume de
comer bife escandaliza o hindu, para quem a vaca é animal sagrado.
Isso significa que os valores são em parte herdados da cultura. Aliás, a primeira
compreensão que temos do mundo é fundada no solo dos valores da comunidade a que
pertencemos.
Em tese, tais valores existem para que a sociedade subsista, mantenha a integridade e
possa se desenvolver. Ou seja, a moral existe para se viver melhor. Talvez essa afirmação cause
espanto, se considerarmos que as regras morais são concebidas como condição de repressão
humana, sendo, assim, geradoras de infelicidade. Isso também é verdadeiro, mas só enquanto
22

deformação da moral autêntica e em contexto diferente daquele que estamos considerando aqui.
O que nos interessa enfatizar, em um primeiro momento, é que os grupos humanos precisam de
regras para viver bem.
Por isso é possível entender como, em certas tribos, onde há escassez de alimentação, há
o costume de matar crianças defeituosas e velhos incapazes de produzir, uma vez que se tornam
peso prejudicial à sobrevivência do grupo.
Dito de outra forma, mesmo que varie o conteúdo das regras morais, conforme a época
ou lugar, todas as comunidades têm a necessidade formal de regras morais. É formalmente correto
que a coragem é melhor que a covardia, que a amizade é um valor desejável entre os membros
de um grupo. No entanto, a coragem é um valor formal cujo conteúdo varia. Tomemos um
exemplo corriqueiro, ainda que não referente à moral propriamente dita: se alguns riem do caipira
com medo de atravessar a avenida na grande cidade, certamente será ele que rirá do citadino
assustado com sapos e cobras na fazenda. Transportando o exemplo para o campo da moral, a
coragem do guerreiro da tribo é certamente diferente da coragem do homem urbano desafiado,
por exemplo, pelos riscos da corrupção. Se a amizade é um valor universal, a sua expressão varia
conforme os costumes. Na sociedade patriarcal, em que a mulher se encontra confinada ao lar e
subordinada ao homem, é impensável que ela tenha amigos do sexo masculino fora do círculo de
amizades do seu próprio marido ou distante do seu olhar benevolente. Isso muda nos núcleos
urbanos, após a liberação da mulher para o trabalho fora do lar.

SOCIAL E PESSOAL

Voltemos à objeção ensaiada alguns parágrafos atrás: nem sempre as regras morais visam
ao bem da comunidade enquanto um todo. Sendo inúmeros os exemplos, vamos selecionar
apenas alguns deles.
Por mais estável que seja a sociedade, sempre há mudança das relações entre as pessoas
e grupos, na luta pela subsistência. Então, certas regras valem em determinadas circunstâncias e
deixam de valer quando ocorrem alterações nas relações humanas. No entanto, existe a tendência
de se resistir às mudanças, e, quando as regras permanecem inflexíveis, sedimentadas, acabam
sendo esvaziadas de seu conteúdo vital e ficam caducas e sem sentido. A sociedade passa, então,
por um momento de crise moral para cuja superação são exigidas inventividade e coragem, a fim
de ser recriada uma moral verdadeiramente dinâmica e comprometida com a vida.
Geralmente as morais conservadoras se petrificam quando a sociedade se divide em
grupos antagônicos nos quais certos setores desejam manter privilégios. Nesses casos, o que é
mostrado como bom para todos na verdade só é bom para os que se acham no poder.
Para manter o status quo, isto é, a situação vigente de forma inalterada, predominam a
intolerância e a negação do pensamento divergente. Por exemplo, o fanatismo religioso considera
herético todo pensamento que se distancia da ortodoxia. Nas sociedades escravistas, muito tempo
após a abolição da escravatura, persistem os preconceitos relativos à raça escravizada. Cem anos
após a Lei Áurea, os negros brasileiros ainda têm de lutar não só contra os julgamentos
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depreciativos que os brancos fazem deles, mas também contra a própria auto-imagem mutilada
pela herança de submissão.
A experiência efetiva da vida moral supõe, portanto, o confronto contínuo entre a moral
constituída {isto é, os valores herdados) e a moral constituinte, representada pela crítica aos
valores ultrapassados. O esforço de construção da vida moral exige a discussão constante dos
valores vigentes, a fim de verificar em que medida sua realização se faz em favor da vida ou da
alienação.

O SUJEITO MORAL

Seriam então os valores, além de relativos ao lugar e ao tempo, também subjetivos, isto
é, dependentes das avaliações de cada indivíduo?
Se cada um pudesse fazer o que bem entendesse, não haveria moral propriamente dita. O
sujeito moral tem a intuição dos valores como resultado da intersubjetividade, ou seja, da relação
com os outros. Não é o sujeito solitário que se toma moral, pois a moral se funda na solidariedade:
é pela descoberta e pelo reconhecimento do outro que cada homem se descobre a si mesmo. Intuir
o valor é descobrir aquele que convém à sobrevivência e felicidade do sujeito enquanto
pertencente a um grupo.
O que acontece com frequência é que, em certas épocas, não há condições de se perceber
alguns valores — por exemplo, que a escravidão é desprezível —, e outras épocas em que valores
fundamentais são esquecidos: na cidade grande, o individualismo exacerbado torna as pessoas
menos generosas e mais desconfiadas.
O sujeito moral surge quando, ao responder à pergunta "como devo viver?", o faz com
pretensão de validade universal. Ou seja, o sujeito moral não é o eu empírico, individual, egoísta,
mas é o eu enquanto capaz de reconhecer o Outro como sendo um Outro-Eu: o Outro é tão
importante quanto eu sou.
Ninguém nasce moral, mas torna-se moral. Há uma longa caminhada a ser percorrida para
a aprendizagem de descentralização do eu subjetivo, a fim de superar o egocentrismo infantil e
tornar-se capaz de "conviver".

O HOMEM VIRTUOSO

Quando nos referimos ao homem virtuoso, a imagem que nos vem é de alguém amável,
dócil, cordato, capaz de renúncia e pronto para servir aos outros. Trata-se de uma representação
inadequada e muitas vezes perigosa. Nietzsche referia-se à "moral de escravos" como sendo
aquela em que as falsas virtudes se fundam na fraqueza, no servilismo, na renúncia do amor de
si e, portanto, na negação dos valores vitais.
A palavra virtude vem do latim vir, que designa "o homem", "o varão" (daí o adjetivo
viril). Virtus é "poder", "força", "capacidade". O termo grego areté significa "qualidade da
excelência", "mérito". Portanto, o homem virtuoso nada tem de frágil; ao contrário, virtude é
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capacidade de ação, é potência. Para Kant, a "virtude é a força de resolução que o homem revela
na realização do seu dever".
A virtude, enquanto disposição para querer o bem, supõe a coragem de assumir os valores
escolhidos e enfrentar os obstáculos que dificultam a ação.
Por isso a noção de virtude não se restringe a apenas um ato moral, mas consiste na
repetição e continuidade do agir morai. Aristóteles já afirmava que "uma andorinha, só, não faz
verão", para dizer que a virtude não se resume no ato ocasional e fortuito, mas precisa se tornar
um hábito.

ÉTICA E MORAL: CONFUSÃO CONCEITUAL

Ainda que não faça parte dos nossos objetivos a análise das definições registradas nos
dicionários, optamos por apresentar as definições expressas no Dicionário Escolar da Língua
Portuguesa, para que o leitor possa, antes de entrarmos na perspectiva dos autores selecionados
para compor nossa base teórica, observar a proximidade entre os dois termos, ainda que tenhamos
grifado os trechos que melhor se encaixam na nossa discussão: Ética. s.f. 1. (Fil.) Estudo dos
valores e normas que permeiam a conduta humana dentro da vida prática. 2. (Fil.) Conjunto
desses valores e normas. Moral. adj.1.Relativo aos bons costumes: valores morais. 2. Pertencente
ao domínio do espírito, da consciência, por oposição ao físico e material: sofrimento moral. 3.
Que segue as regras de conduta socialmente aceitas, correto, austero, ético: atitude moral. 4. Que
encerra uma lição, que ensina e educa; edificante: fábula moral. S.m. 5. Conjunto dos valores
morais de uma pessoa ou grupo: Aquela gente preza o moral mais que tudo. 6. Disposição de
espírito, de ânimo: O médico procurou levantar o moral do paciente. 7. Espírito de luta diante de
dificuldades e perigos; brio, energia, coragem: O comandante exaltou o moral da tropa antes do
combate. Sf. 8. (Fil.) Parte da filosofia que estabelece as regras de conduta, fundadas na noção
do bem e do mal. 9. Conjunto dos princípios normativos do comportamento de um grupo social
ou de uma sociedade: moral burguesa, moral cristã. 10. Ensinamento ou lição que e tira de um
fato real ou de uma obra de ficção: E esta é a moral da história. 11. Pretensão de importância ou
prestígio diante de outro(s): Achou-se cheio de moral por ter sido promovido.
Em sua etimologia, o termo moral, deriva-se do latim moralis e quer dizer “relativo aos
costumes”. Surgiu, na verdade, na tentativa de tradução da palavra grega ethos, que significa
hábito, motivo inicial pelo qual são consideradas sinônimos. Ética, portanto, é um conjunto de
valores e princípios que, usamos para decidir as três grandes questões da vida: “Quero?, Devo?,
Posso?”, ainda que, existem coisas que queremos, mas não devemos, outras que devemos, mas
não podemos e ainda as que podemos, mas não queremos. De acordo com tal perspectiva, faz-se
possível o alcance da paz interior, também conhecida como paz de espírito, quando o que
queremos é o que podemos e devemos
Essas questões são definidas por nós através de ensinamentos e também das
normatizações sociais, que, mesmo que mudem, deixam os costumes; como exemplo podemos
citar a postura que, geralmente, temos em ambientes fechados como auditórios, locais estes onde,
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antigamente, era fundamental que houvesse uma placa com o aviso “não fumar” e hoje em dia já
não é tão necessário, uma vez que essa postura já foi introjetada por nós, enquanto sociedade.
Ética vem a ser, desta forma, a teoria que dá sustentação às nossas ações, enquanto moral vem a
ser a prática desta teoria, ou seja, nessa concepção, moral pode ser compreendida como o
conjunto de nossas ações, baseado no conjunto de nossas crenças e valores.
Então, “Como devo agir?”; “Que vida eu quero viver?”. A pergunta a ser feita para a
compreensão de moral é a primeira: “Como devo agir?”, pelo fato de que moral está diretamente
relacionada aos deveres. Ele afirma que a moralidade se expressa no ser humano a partir do
sentimento que este tem de obrigatoriedade, mesmo quando não há leis que o obriguem a agir.
Outrossim, nos lembra ainda que há grande variação entre o que é aceito ou não em uma
sociedade, visto que a moral atinge a grupos específicos, enquanto a ética atinge todos, em sentido
mais universal.
Ademais, o sentimento de obrigatoriedade é fundamental para a conduta ética do ser
humano, como forma de garantia pessoal da moralidade, para que este não aja de forma ética
somente quando há risco de punição. Este sentimento funciona como uma autoimposição, na
tentativa de agradar ou atender o que as pessoas, enquanto integrantes de uma sociedade, esperam
umas das outras. Todavia, o fato de sentir-se obrigado a algo não garante ao indivíduo saber qual
a melhor decisão a tomar, a melhor forma de agir, logo, o mesmo é “moralmente mais sofisticado”
quando permite-se questionar de onde vêm as regras que está seguindo, em vez de, simplesmente,
segui-las cegamente, por sentir-se preso a um dever que se autoimpôs, no ímpeto de ser bem
visto. Para além dessas questões morais, portanto, é necessário proceder eticamente.
Por sua vez, também podemos perguntar “Que vida eu quero viver?” para explicar a ética.
A escolha por esta pergunta deve-se ao fato da ética estar relacionada à busca da felicidade, à
busca do tipo de vida ideal, capaz de ter sentido, que valha a pena ser vivida. Todavia, afirma o
autor, pelo fato de a felicidade estar ligada às interpretações pessoais de cada ser humano, assim
como aos diferentes sentidos que estes dão às suas vidas, surge uma outra pergunta: “Para que
viver?”, cuja busca é bem mais difícil e conflituosa, pelo fato de que, na contemporaneidade,
muitas são as notícias de pessoas que desistem da vida por não conseguirem se desviar do vazio
existencial que as acometem, independente de sua condição social. Ademais, pode-se dizer que
os dois planos [moral e ético] são inseparáveis e complementares, porque é difícil falar de vida
boa sem falar dos deveres em relação a isso.
Sobre essa complementaridade, gostaríamos de ressaltar, a importância da ética para
entendermos a nossa postura frente às regras morais. Para entendermos o processo que leva uma
pessoa a respeitar determinados princípios e regras morais, é preciso conhecer sua perspectiva
ética. Portanto, a questão ética é crucial, e quando há uma falta de sentido para a vida, a dimensão
moral e, portanto, as ações morais também entram em crise.
Neste sentido, alguns autores entendem que a preferência pelo termo ética, ainda quando
melhor se adequaria o termo moral. Trata-se do fato de que falar em ética é, para a sociedade,
sinal de cultura, de intelectualidade, passando a ideia de elegância. A palavra ética tem um sentido
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mais corrente, ‘pega’ melhor do que a palavra moral, dentro da educação. Moral tem um sentido
normativo que a demanda do público é por normas.
Entre outros motivos, pelo fato dos seguimentos políticos e educacionais do país terem
se referido ao termo moral, ao longo dos anos, como sendo sinônimo de moralismo (no sentido
depreciativo, referindo-se ao tipo de pessoa que sempre vigia os passos dos outros e os crítica de
forma pesada e inflexível), toda a distorção existente acerca dos dois termos, obscurece o real
sentido de seus significados e os benefícios que cada um pode trazer à formação do aluno.
Outra confusão semântica que constantemente observa-se ocorre entre as palavras amoral
e imoral, as quais têm sido erroneamente utilizadas para designar uma pessoa que não tem moral
ou ética. Na verdade, os dois termos estão relacionados a questões morais, porém em muito
diferem entre si, uma vez que amoral refere-se a uma pessoa que não tem senso moral, não
apresenta capacidade de escolher ou julgar o que é certo ou errado, como, por exemplo, uma
criança pequena ou alguém que sofre de insanidade mental. Por sua vez, imoral diz respeito ao
indivíduo que vai de encontro à moral, lembrando que esta, diferente da ética (que tem a tentativa
de ser universal), é relativa, pois varia de cultura para cultura. Um exemplo simples é o fato da
moral da cultura católica defender a monogamia, de forma que ser poligâmico é tido como
completamente imoral, quando, em contrapartida, é algo perfeitamente moral para os
muçulmanos, adeptos do islamismo.
Por fim, ressalta-se ainda, que não existe ninguém sem ética, o que existe são pessoas
antiéticas, aquelas que vão de encontro à ética socialmente considerada “válida”, como
facilmente encontramos na política e em outras instâncias, diariamente. Por outro lado, para além
do receio de ser mal entendido ao se utilizar da palavra moral, há ainda o uso errôneo dos dois
termos por desconhecimento de seu real significado, em relação a educação, o que podemos
observar é que existe uma preocupação com valores derivada, na verdade, de uma queixa de
comportamento, ou seja, geralmente ligada a aspectos disciplinares e de respeito. Não se trata da
preocupação ética com a formação do cidadão, mas de resolver problemas objetivos, concretos
(em realidade, talvez muitas vezes fantasiados, mas que são considerados ‘objetivos’ por parte
dos professores)
Destaca-se porque nele vemos claramente o comum equívoco que circunda a utilização
dessas, não só no contexto educacional. Há um mal comportamento das pessoas, que é visível,
devido a problemas objetivos ou não, mas que nada têm a ver com a formação da cidadania, com
a dimensão ética do processo de aprendizagem e convívio social.
Consideramos que esse tipo de equívoco, apesar de parecer trivial, contribui
negativamente para o avanço da formação cidadã na escola, nas igrejas ou no mercado de
trabalho, na medida em que limita as ações da crítica e do próprio ensino como instrumento de
autonomia do sujeito.
Há que se levar em conta o processo de desinformação no qual somos submetidos todos
os dias, processo este de alienação contínuo, não há um processo de formação ética do sujeito. A
própria moral, ainda que se aproxime mais das regras de conduta, deve ser entendida e trabalhada
numa conjuntura para além das relações sociais e culturais. Ambas as dimensões englobam
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questões maiores e mais fundamentais do que a resolução imediata de problemas concretos,


muitas vezes inerentes ao ambiente ao próprio lar, ou seja, abrangem questões que vão além de
lamúrias alusivas a comportamentos que não atendem às expectativas do que, comumente, se tem
como bom filho, boa mãe ou bom pai e marido.

DEVER MORAL

Tanto no estudo da ética, quanto da moral por sua referência teórica há aproximação da
metafísica. Na definição inicial podemos afirmar que a metafísica em questão não é mais o
sistema utópico de ideias aludido pelos filósofos antigos, e sim um estudo das leis que regulam a
conduta humana sobre um ponto de vista meramente racional. Embasando-se prioritariamente da
exatidão e precisão fornecida pela razão para tal fim. Sem sombra de dúvidas, a moral em si tem
como fundamento a liberdade do pensamento, algo que transcrito em termos filosóficos é
representado pela autonomia da razão no aspecto da liberdade. A tal evocada liberdade tem
ligação direta com a faculdade do desejo denominando a vontade. Há uma ligação dessa
faculdade com a consciência do indivíduo em agir, isso será denominada sua escolha, caso não
haja tal liame, será considerada como mera aspiração.
Isso tudo é deveras importante para a compreensão do fundamento determinante
encontrado na razão do sujeito nomeado como vontade. Esse é o real fundamento da razão prática,
não por determinar a ação do sujeito em si, mas por se basilar na orientação das escolhas do
sujeito. A vontade é a constituinte básica para o sistema do dever moral, dentre todas as outras
regras de estabelecimento moral. Pois, tem como base a liberdade e a autonomia da vontade
enquanto predicado moral e não como dever.
A lei moral propriamente dita é o enquadramento de alguns dos pontos da ética e da moral.
Dentre esses pontos convém comentar acerca de três deles: a vontade, as máximas e os
imperativos. A única vontade que basta para um comportamento moral adequado é a boa vontade.
Isso porque com o intuito da prática dos atos corretos, a boa vontade é a medida absoluta e
intrínseca que satisfaz plenamente ao agir ético humano. Obviamente, outras nuanças podem
facilitar esse processo de adequação moral, tais quais o caráter, a firmeza, a coragem dentre
outros. Como bem disposto na Fundamentação, a boa vontade não é boa apenas para a realização
do seu fim, não coaduna com a consecução teleológica. Tal vontade é uma boa vontade pelo
querer, isto é, em si mesma ela se basta. Ela é boa pela formalidade de servir em ser o correto
agir.
A conceituação acerca da (boa) vontade é que dá vazão ao prosseguimento do elenco
acerca da construção do sistema das leis morais. Seguindo a formalidade do agir em
conformidade para com o dever (no caso da boa ação que em si basta), temos que as ações assim
correspondentes são livres de qualquer inclinação, e, subjetivamente ao puro dever de coerência
à lei moral, o entendimento humano é guiado pela máxima orientadora dessas leis, mesmo que
internamente haja déficit em considerações das inclinações. A máxima é definida como o
princípio subjetivo do querer. De maneira que, apenas com a conjunção do princípio intrínseco
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ao sujeito (a máxima), para com a continuidade do dever expressa na boa vontade. A partir de tal
coadunação que se expressa a possibilidade de haver uma regência interna de uma legislação
moral posta em regra por imperativos, que pelo próprio nome já remetem ao dever interno do ser.
É nesta perspectiva de uma lei moral formal, calcada nesses três elementos básicos, que emerge
o sistema de imperativos. Sendo eles, pois, considerados como ordenamentos de determinação
de todas as ações dos indivíduos sob a ação da boa forma orientada da vontade.
Em síntese, para uma compreensão mais resumida do tema, teríamos acertadamente que:
o dever moral é, pois, um querer próprio necessário seu como membro de um mundo inteligível,
só sendo pensado por ele como dever à medida que ele se considera, simultaneamente, membro
de um mundo sensível. Traçando a característica do pensamento humano em sua raiz teórica para
com a sua ação no mundo, efetivamente falando.

CONSCIÊNCIA MORAL

Numa abordagem mais moderna dos assuntos que envolvem uma dicotomização entre
consciência e dever moral se tem que qualquer desencadeamento acerca de temas de cunho moral
tende a ter uma expressão social forte. Essa é também uma característica própria das obrigações
morais. Tal obrigação (ou dever) como já explanado anteriormente não se liga a nenhum tipo de
coação, e nem a ele pode estar adstrito, pois assim perderia ser caráter de múltipla possibilidade
de rumo. Tolhendo o conceito de liberdade e autonomia da vontade tão evocados no pretérito.
Como já suscitado o envolvimento das relações sociais possuem certa influência na condição
moral do indivíduo, mesmo que o fator pessoal seja determinante para a consecução das
obrigações morais (subjetividade), e entrelace do caráter social da ação é algo deveras importante
(objeto da obrigação moral).
Ao considerarmos esse fator social como necessário para a compreensão geral das
obrigações morais, existem três outros pontos de grande relevância para a abrangência total do
tema: a influência das ações sobre os outros indivíduos, a obrigatoriedade moral e a sua função
social e a consciência moral do indivíduo. Em primeiro lugar, trata-se de considerar o espectro
de atuação e efeito dos atos praticados pelo indivíduo para com os outros indivíduos, bem como
para a coletividade da sociedade. Se não houvesse o agrupamento social constituído, não haveria
como se cogitar a norma moral em si, pois cada ato praticado nada atingiria, o objeto da ação
seria nulo.
O segundo ponto a ser considerado é a adequação entre a norma moral que funda em si
um dever como já visto, a aceitação interna do indivíduo, e sua função social. Levando em conta
o agir de acordo com a sua livre escolha e sua consciência do dever, que orbitam sempre no
universo social no qual ele coexiste, afinal, tais obrigações não operam num vácuo social, ou até
como postulavam os autores antigos (leia-se Platão) num mundo ideal, meramente figurativo.
O último ponto, e com certeza o de maior interesse para o escopo do presente trabalho se
refere à consciência do indivíduo, mais especificamente à consciência moral do mesmo. O
indivíduo certamente opera secundum intra legem, isto é, se orienta de acordo com os ditames de
29

sua consciência (moral). Esta dita de acordo com os princípios, os valores e normas morais para
ele vigentes. A precisão conclusiva de tais axiomas não se perde numa análise meramente
sociológico, de influência do meio, homem como produto do seu tempo, nem outras
características empíricas. A razão é o liame de conduta de tais formalizações, e como orientadora
não se perde num conceito vago e inexato como podem evocar os críticos. De certo que se trata
de um conceito teórico, mas por fundar-se na liberdade do ser, essa liberdade é sim o único
conceito inato.
Na sua acepção genérica temos que a consciência é o ato de tomar conhecimento ou
reconhecimento de qualquer fato, e ser consciente de algo significa compreender que isto está a
acontecer, ou também registrar a sua existência e situar-se na distância adequada do
acontecimento em real. E a consciência por vezes contém em si a possibilidade de antecipar ou
antever a forma ideal e projetar, finalizar ou planejar o que irá acontecer. Resumidamente
presume-se que a consciência trabalhe estritamente com fatos, que são essencialmente seu
propulsor de atuação.
A consciência moral, assim como sua ascendente da derivada, conserva a característica
de se referir a percepção acerca dos fatos, todavia, a distinção básica é o ângulo de vista de tais
fatos. A consciência moral como o próprio nome já diz, tem uma visão acerca da moralidade dos
atos e dos fatos a ela correlatos. Ao mesmo tempo, essa modalidade da consciência encerra em
si uma avaliação e um julgamento de nosso comportamento de acordo com as normas que ela
conhece, e reconhece como obrigatórias.
Diretamente deste ponto advém a ligação entre a consciência e a obrigatoriedade das
normas, e até propriamente com o dever moral. A sua diferenciação existe basicamente quanto à
referência indicativa de cada uma e às situações em que cada uma opera. O dever moral contido
de obrigatoriedade se ocupa da universalidade das normas, ou seja, cuida em formular um sistema
amplo, que atenda na generalidade as ações do agente. Já a consciência moral se ocupa em tratar
da especificidade de situações, os casos concretos e como certas ações devem ou não devem ser
tidas como concernentes ao sistema moral adotado.
É competência da moral aderir, internalizar e rejeitar as normas de conduta do ser
humano. Tem-se como enunciado figurativo que: a consciência moral assume a função de uma
instância ineludível, ou de um juiz diante do qual todo ato moral deve apresentar os seus títulos.
O homem de forma alguma passivamente acata toda e qualquer determinação de ordem moral
como normatização de seu comportamento ou conduta social. Quando a sua consciência moral
não agrega o valor moral de certas condutas tidas como pacíficas na ordem social vigente, elas
de nada adiantam, pois não foram ratificadas no foro interno do ser, e, portanto, não possuem
validade moral alguma. O que se põe em confronto no campo filosófico acerca da consciência
em sua vertente moral é o fato de tentar enquadrá-la como autônoma ou heterônoma.
Os autores de vertente histórica definem que a consciência moral é essencialmente
heterônoma, principalmente pela influência dos fatos sociais como determinantes do fenômeno
da interiorização das normas. De maneira que é como se a “voz da experiência” toma-se forma a
cada evento da vida do indivíduo, e fizesse com que ele apreende-se normas a cada nova
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descoberta empírica. Algo bastante criticado, principalmente por ser algo bastante volúvel frente
às obrigações morais, que apesar das diferentes situações de admissibilidade, guardam a
necessidade de uma postulação e uma devida aplicação concreta, sem essas vicissitudes nem
transições a cada momento do “estado de espírito” do agente.

COSTUMES

Os costumes são formas de pensar e de viver partilhadas por um grupo. Assentam em


regras informais e não escritas que regem as práticas do grupo e que traduzem as suas
expectativas de comportamento. Referem-se a valores partilhados, a usos comuns a um grupo ou
uma época e que resultam da experiência e da história. Muitas vezes atualizam os valores sociais.
É uma forma de regulação implícita que existe desde que os indivíduos vivem em
sociedade. Não existe uma autoridade que deliberadamente favoreça a interiorização dos valores
do grupo pelo indivíduo; esse processo é realizado pela tradição, pela pressão social na
conformidade com uma determinada forma de agir, e pela ameaça de marginalização pelo grupo
em caso de não conformidade. As regras informais transmitem-se oralmente ou por mimetismo,
através da socialização pela educação e por diversas instituições sociais.
A motivação para adaptar os costumes é o desejo de pertença a um grupo, o conformismo,
o hábito e o medo de rejeição. Os dispositivos de regulação são variados. Os que favorecem a
transmissão dos costumes são o sistema cultural, os usos (atitudes próprias da tradição de um
grupo que geram obrigações), os rituais. Os que asseguram a conformidade são as pressões do
grupo e os costumes organizacionais.
Designam-se como costumes as regras sociais resultantes de uma prática reiterada de
forma generalizada e prolongada, o que resulta numa certa convicção de obrigatoriedade, de
acordo com cada sociedade e cultura específica, "a lei é Direito que aspira a efetividade e o
Costume a norma efetiva que aspira a validade".

LIBERDADE E RESPONSABILIDADE

Vimos anteriormente que a responsabilidade moral exige a liberdade de opção e de


decisão, isto é, a ausência de coação interna ou externa, ou então, a possibilidade de resistir a
essas coações em maior ou menor grau.
De fato, para que lhe seja imputada responsabilidade moral sobre algo praticado, há
necessidade de o agente ter liberdade de escolha entre as alternativas que se lhe oferecem, bem
como ter o poder de decidir e agir sobre a alternativa escolhida.
O julgamento dos homens é feito sobre fatos, ações praticadas, algo concreto, não sobre
pensamentos. Estes pertencem a um Nível Superior, que foge aos objetivos da nossa abordagem.
A responsabilidade moral pressupõe, portanto, liberdade para decidir e agir, vencendo
coações externas e/ou internas.
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É certo que o homem pode resistir, dentro de certos limites, à coação. Possui liberdade
para tal. Sempre existem, no entanto, causas que determinam as ações praticadas. A questão é
compatibilizar a determinação de nosso comportamento com a liberdade de nossa vontade. O
mundo que nos cerca impõe condições de contorno que, frequentemente, restringem a gama de
soluções disponíveis para uma determinada situação. E, como se constata, o mundo é algo
determinado, isto é, sujeito a relações de causa e efeito. Como, então, dispor de liberdade?
Eis aí a questão, à qual respondem três posições filosóficas fundamentais: a primeira,
representada pelo determinismo em sentido absoluto; a segunda por um libertarismo, concebido
também de maneira absoluta; a terceira, por uma forma de determinismo que admite, com certa
liberdade ou é compatível com ela. A abordagem dessas correntes filosóficas foge ao escopo de
nossa discussão e pode ser desenvolvida consultando a farta bibliografia existente sobre o
assunto.
No entanto, podemos sublinhar que responsabilidade moral, liberdade e necessidade estão
entrelaçadas indissoluvelmente no ato moral.
É relativamente fácil observar que o homem é livre para decidir e agir, sem que a sua
decisão e a sua ação deixem de ser causadas. Mas o grau de liberdade está determinado histórica
e socialmente, pois se decide e se age numa determinada comunidade. Essa sociedade oferece
aos indivíduos determinados padrões de comportamento, dos quais eles não podem se afastar,
sob pena de forte discriminação. Ao mesmo tempo, essa sociedade limita as possibilidades de
ação dos seus componentes.
Nesse sentido, "ninguém pode se livrar do ético, isto é, da constante necessidade de
escolher, de decidir, do "dever ser", do agir ético ou do saber prudencial".
Quando alguém se livra de uma situação constrangedora e desabafa, "Sinto-me livre como
um pássaro", sem dúvida está apenas se referindo àquilo que tal expressão simboliza: parece que
a imensidão do céu aí está para ser livremente "conquistada", sem obstáculos de nenhuma
espécie.
Bem sabemos que se trata de uma metáfora. O pássaro não é um ser livre, mas se encontra
determinado pelo instinto de sobrevivência típico de sua espécie. Não vai "para onde quer", mas
para onde precisa ir, a fim de continuar existindo. Seu próprio voo está sujeito às leis da física.
O filósofo alemão Kant brinca com essa ideia, imaginando uma pomba ágil, indignada
contra a resistência do ar que a impediria de voar mais depressa. Na verdade, argumenta, é
justamente essa resistência que lhe serve de suporte, pois seria impossível voar no vácuo.

O HOMEM É DETERMINADO?

Se o voo livre do pássaro é uma ilusão, da mesma forma podemos dizer que incorremos
em engano semelhante ao considerarmos o homem capaz de liberdade absoluta.
Comecemos refletindo sobre as conquistas do método científico. A construção do conhe-
cimento científico se faz a partir do princípio do determinismo, segundo o qual tudo que existe
no mundo está sujeito à rígida relação entre causa e efeito. E a ciência só se toma possível porque
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o conhecimento da relação necessária entre causa e efeito — isto é, o conhecimento dos


determinismos naturais — permite a descoberta das leis da natureza, a partir das quais são feitas
previsões e desenvolvidas as técnicas.
Transpondo tais considerações do campo da ciência da natureza para o nível humano, não
há como negar que também o homem se acha preso a determinismos: tem um corpo sujeito às
leis da física e da química, é um ser vivo que pode ser compreendido pela biologia. Por isso, já
no século XVIII, os materialistas franceses D'Holbach e La Mettrie reduziam os atos humanos a
elos de uma cadeia causai universal.
Temos de admitir inclusive a existência de determinismos psicológicos na atividade
psíquica normal e cotidiana, pela qual o homem entra em contato com o mundo para conhecê-lo
e reagir afetivamente a ele. Por exemplo, se nos preocupamos com métodos de ensino, é preciso
antes compreender os mecanismos da inteligência humana tais como memória, invenção,
intuição, abstração e assim por diante. Por isso, a aprendizagem da aritmética era tão penosa
antigamente: desconhecendo-se que o pensamento infantil ainda é concreto, exigia-se da criança
o uso do raciocínio abstrato, cujo desenvolvimento só acontece a partir da adolescência.
Watson e Skinner, psicólogos contemporâneos pertencentes à corrente
comportamentalista, consideram que o homem tem a ilusão de que é livre, quando na verdade
apenas desconhece as causas que agem sobre ele. Com o desenvolvimento da ciência do
comportamento seria possível conhecer de tal forma as motivações que daria para prever e
portanto planejar o comportamento humano. Aliás, é esse o tema de um romance de Skinner,
Walden II, onde uma equipe de cientistas do comportamento dirige uma cidade utópica.
Além de todos esses aspectos determinantes, podemos acrescentar os determinismos
culturais: ao nascer, o homem se encontra em um mundo já constituído, recebendo como herança
a moral, a religião, a organização social e política, a língua, enfim os costumes que não escolheu
e que de certa forma determinam sua maneira de sentir e pensar.
No século XIX, o filósofo francês Tai-ne, discípulo de Augusto Comte, considerava que
o homem não é livre, mas determinado pelo momento, pelo meio e pela raça. Essa concepção
influenciou bastante os intelectuais do século XIX, e a literatura naturalista é uma expressão de
tal concepção. Basta lermos O cortiço e O mulato, de Aluísio de Azevedo, para identificarmos as
"forças incontroláveis" do meio e da raça agindo de forma inexorável no comportamento das
pessoas.

AS CONDIÇÕES DA LIBERDADE

Para os deterministas, tudo tem uma causa, inclusive a ação humana. Podemos até não
conhecer tais causas, mas elas existem. Levar essas conclusões até as últimas consequências é
admitir que o homem não é livre.
Afinal, o homem é livre ou é determinado? Não há como negar os determinismos que
agem sobre o homem, já que ele se encontra situado no tempo e no espaço, tendo recebido uma
herança cultural específica. Mas o homem não é apenas essa situação dada, é também a
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consciência dos determinismos. Isso significa que, ao tomar conhecimento das causas que agem
sobre ele, é capaz de realizar uma ação transformadora, a partir de um projeto de ação. Deixa de
ser passivo e passa a ser atuante.
Estamos rejeitando qualquer discussão puramente teórica a respeito da liberdade, o que
nos levaria a abstrações atemporais. É na ação, é na prática que se constrói a liberdade, a partir
dos desafios que os problemas do seu existir apresentam ao homem. Tais soluções não resultam
de alternativas dadas para serem escolhidas, mas supõem imaginação criadora, invenção, "ardis
da razão". Há um velho ditado indiano que diz "Onde quer que o homem ponha o pé, pisa sempre
cem caminhos".
O homem, enquanto ser consciente, é capaz de reconhecer as forças que agem sobre ele.
Esse conhecimento torna-lhe possível o exercício da vontade, presente em sua ação
transformadora sobre a natureza.
O filósofo francês Alain dá o exemplo do barco a vela: "Quando eu era pequeno, e antes
que tivesse visto o mar, acreditava que os barcos iam sempre para onde o vento os empurrava".
Mas, na verdade, o velejador usa o barco de acordo com leis invariáveis, isto é, usa a força do
vento para ir para onde quiser: "Orienta sua vela pelo mastro, vergas e cordames, apoia seu leme
na onda corrente, corta caminho com sua marcha oblíqua, vira e recomeça. Avançando contra o
vento pela própria força do vento".
O velejador aprendeu a conhecer o mar, o vento, a vela, o casco, para saber como aplicar
a inteligência e dirigir o barco para a direção escolhida. Outros exemplos: só podemos curar a
doença ao conhecer suas causas; só construímos um prédio se respeitamos as leis da física; só
fabricamos um avião se conhecemos as leis da aerodinâmica.
Da mesma forma, o conhecimento das paixões humanas é condição para que o homem se
torne mais livre e se desenvolva como pessoa integral.
Se em um primeiro momento a criança é levada pela preponderância do desejo, ao mesmo
tempo que é constrangida pelas normas que lhe são exteriores, a educação consiste no esforço de
superação de tal estádio. O universo infantil é marcado pela heteronomia, em que as ações são
comandadas "de fora", pelos valores herdados dos pais e da sociedade em que ela vive. Quando
a educação é boa, a criança deve caminhar em direção à autonomia, à deliberação, à capacidade
de organização autônoma das regras.
Bem sabemos que nem sempre é isso que ocorre de fato...

LIBERDADES

Quando nos referimos à liberdade de maneira geral, é preciso admitir que são vários os
enfoques pelos quais podemos compreendê-la. Se ninguém é solitário, pois convive na
comunidade dos homens, a liberdade é um desafio que permeia todos os campos da atividade
humana.
Assim, podemos falar em liberdade ética quando nos referimos ao sujeito moral, capaz
de decidir com autonomia a respeito de como deve se conduzir em relação a si mesmo e aos
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outros. Kant dizia que a liberdade consiste na obediência às leis que o próprio sujeito moral se
impõe.
No entanto, ser autônomo é um desafio que muitas pessoas não conseguem suportar. Os
riscos de enganos, a intranquilidade, a angústia da decisão e a responsabilidade que o ato livre
acarreta fazem com que a liberdade seja considerada antes um pesado encargo do que privilégio.
Por isso há tantos que a ela renunciam, para se acomodarem na segurança das verdades dadas.
A liberdade econômica não deve ser confundida com a liberdade absoluta nos negócios.
Por um lado, porque toda atividade produtiva supõe relações de dependência entre as pessoas, e,
por outro, porque convém precaver-se contra as aparências da liberdade. A livre iniciativa,
fundada na ideia de que "deve vencer o melhor", muitas vezes nos faz esquecer de que em uma
competição esportiva, por exemplo, os concorrentes sempre a iniciam em pé de igualdade:
mesmo quando os talentos são diferentes, todos começam juntos na linha de partida.
O mesmo não ocorre no sistema econômico fortemente marcado por privilégios e disputas
desiguais. Por exemplo, o parque industrial de um país subdesenvolvido não pode disputar sem
prejuízos com poderosas multinacionais. Da mesma forma, o contrato "livre" que o operário
assina esconde a assimetria das relações, pois, em situações em que há grande oferta de mão-de-
obra, recusar um baixo salário significa muitas vezes "optar" pelo desemprego.
A liberdade jurídica é uma das conquistas das modernas sociedades democráticas que
defendem a igualdade perante a lei. Ninguém pode ser submetido à servidão e à escravidão;
qualquer um tem (ou deveria ter...) a garantia da liberdade de locomoção, pensamento,
agremiação e ação, nos limites estabelecidos pela lei.
A aristocracia supõe a existência de indivíduos "especiais" (aristos, "ótimo") que teriam
privilégios. Foi contra as vantagens da nobreza que a burguesia se insurgiu no século XVIII,
implantando os ideais contidos na Declaração dos Direitos que serviram de inspiração para a
construção da nova ordem jurídica daí em diante.
No entanto, nem todos têm acesso à lei de igual maneira. A justiça é lenta e cara e o poder
econômico interfere sempre que pode. Ao se fazer as leis de um país, é quase impossível evitar a
interferência daqueles que detêm algum poder e desejam manter privilégios. Por ocasião da
Constituinte de 1988, a discussão a respeito dos mais diversos assuntos, como reforma agrária,
aposentadoria e verbas para educação pública, foi alvo de pressões as mais diversas, não podendo
ser subestimadas as forças decorrentes do poder econômico.
Até aqui nos referimos ao homem enquanto participante da sociedade civil, isto é,
enquanto pai, filho, trabalhador, empresário, estudante e assim por diante. Os espaços da casa, da
fábrica, da escola são caminhos possíveis da liberdade (ou não!...).
A liberdade política se coloca no espaço público, no espaço do cidadão, isto é, do homem
enquanto participante dos destinos da cidade.
Há liberdade política quando o cidadão tem conhecimento do que acontece nas diversas
instâncias do poder público. Além do conhecimento, é preciso que exista a liberdade de opinião,
de voto, de associação, enfim do livre exercício da cidadania, com suas múltiplas características.
35

Ser livre em política é amadurecer o suficiente para aceitar o pluralismo, e portanto


conviver com a diferença e os inevitáveis confrontos dela decorrentes. É amadurecer para superar
os interesses pessoais quando isso for exigido pelo interesse coletivo.
La Boétie, filósofo do século XVI, perguntava-se, um tanto perplexo, por que o homem
troca a liberdade pela "servidão voluntária", essa estranha expressão aparentemente inconcebível:
como é possível que o homem, sendo essencialmente liberdade, deseje se submeter a outro?
Não precisamos ir longe para confirmar isso: quando vivemos situações de relativa
intranqüilidade, com muitas greves, inflação ou alto índice de criminalidade, sempre surgem
pessoas que anseiam por um "braço forte" que "ponha ordem na casa". Pede-se a volta do "pai
onipotente", quer seja Hitler na Alemanha nazista, quer sejam os generais do golpe militar no
Brasil.
Podemos concluir que a liberdade não é alguma coisa que é dada, mas resulta de um
projeto de ação. É uma árdua tarefa cujos desafios nem sempre são suportados pelo homem, daí
resultando os riscos de perda da liberdade. Como vimos, os descaminhos da liberdade surgem
quando ela é sufocada à revelia do sujeito — no caso da escravidão, da prisão injusta, da
exploração do trabalho, do governo autoritário — ou quando o próprio homem a ela abdica, seja
por comodismo, medo ou insegurança.
Cabe à reflexão filosófica o olhar atento para denunciar os atos de prepotência bem como
a ação silenciosa da alienação e da ideologia.

PROGRESSO MORAL

Nem sempre a mudança moral equivale a progresso moral. Existe progresso quando se
dá um avanço com melhoria de qualidade. Isso significa que certos valores antigos não precisam
ser considerados necessariamente ultrapassados, da mesma forma que valores dos "novos
tempos" algumas vezes podem não indicar progresso.
Quais seriam então os critérios para avaliar o progresso moral? Examinemos alguns deles.
• Ampliação da esfera moral: certos atos, cujo cumprimento antes era garantido por força
legal (direito), por constrangimento social (costumes) ou por imposição religiosa, passam a ser
cumpridos por exclusiva obrigação moral. Por exemplo, um pai divorciado não precisaria da lei
para reconhecer a obrigação de continuar sustentando seus filhos menores de idade. Por outro
lado, certas situações em que as pessoas fazem o bem tendo em vista a recompensa divina são
indicações de diminuição da esfera moral, porque, nesse caso, o estímulo para a ação não é a
obrigação moral, mas uma certa "barganha" visando recompensa.
• Caráter consciente e livre da ação: a responsabilidade moral está na exigência de um
compromisso livremente assumido. Responsável é a pessoa que reconhece seus atos como
resultantes da vontade e responde pelas consequências deles. Quando adultos, como mulheres e
escravos, permanecem tutelados, o resultado é o empobrecimento moral das relações humanas.
• Grau de articulação entre interesses coletivos e pessoais: enquanto nas tribos primitivas
o coletivo predomina sobre o pessoal, nas sociedades contemporâneas o individualismo
36

exacerbado tende a desconsiderar os interesses da coletividade. É importante que o


desenvolvimento de cada um não seja feito à revelia do desenvolvimento dos demais.
O último item nos faz refletir sobre as relações entre política e moral. Embora sejam
campos de ação diferentes e sem dúvida autônomos, política e moral estão estreitamente
relacionadas.
A política diz respeito às ações relativas ao poder e à administração dos assuntos públicos.
Quando há desequilíbrio de poder na sociedade, e a maior parte das pessoas não atinge a cidadania
plena, isto é, não tem formas de atuação política, isso repercute na moral individual de inúmeras
maneiras: as exigências de competição para manter ou alcançar privilégios e a luta pela
sobrevivência na sociedade desigual elevam a níveis intoleráveis o egoísmo e o individualismo,
geradores de violência dos mais diversos tipos. É assim que se pode falar em falta de ética tanto
diante da malversação de verbas públicas, provocando, por exemplo, o colapso da rede de
hospitais (quem há de negar que se trata de violência?), como também é imoral sequestrar ou
assaltar a mão armada.
Mas os problemas decorrentes da decadência ética que presenciamos não podem ser
resolvidos a partir de tentativas isoladas de educação moral do indivíduo. E preciso que exista a
vontade política de alterar as condições patogênicas, isto é, as condições geradoras da doença
social, para que se possa dar possibilidade de superação da pobreza moral.
Dito de outra forma, não basta "reformar o indivíduo para reformar a sociedade". Um
projeto moral desligado do projeto político está destinado ao fracasso. Os dois processos devem
caminhar juntos, pois formar o homem plenamente moral só é possível na sociedade que também
se esforça para ser justa.

OS CLÁSSICOS

A ética como ciência nasceu com o advento das cidades gregas, no "Século de Péricles"
(século V a.C.), primeiro com os sofistas, depois com Platão e Aristóteles, autor das três obras
básicas da ética no Ocidente: Ética a Nicómaco, A grande moral e a Ética a Eudemio.
Comecemos pelo "idealismo platônico". Para Platão (427-347 a.C.), agir eticamente é
agir com retidão de consciência. A inteligência, quando bem utilizada, conduz ao Bem, ao Belo,
ao Justo. Ao comportar-se de forma ética, o homem aproxima-se do verdadeiro mundo, o mundo
das Ideias, do qual o mundo em que vivemos é uma mera cópia. O verdadeiro sábio procura atuar
em busca do ideal e corrigir-se quando se engana. Através da sua inteligência e virtude, o homem
regressa ao mundo das ideias.
Também de particular importância se revestiu o "realismo aristotélico". Aristóteles (384-
322 a.C.) defendia que a ética é a ciência prática do bem. E Bem é aquilo que todos desejam. Não
existe um único bem, este é relativo, é um modo de existência determinado pela natureza das
diferentes criaturas - por isso, ao agir, cada um deve tratar de forma igual o que é igual e de forma
desigual o que é desigual. Cada um procura alcançar o bem ao atuar, pelo que do bem depende a
autorrealização do homem, a sua felicidade. O bem próprio do homem é a inteligência: o homem
37

é um animal racional. Por isso, o homem deve viver segundo a razão, de forma a alcançar as
virtudes, nomeadamente a sabedoria. E Aristóteles define a virtude, por oposição à mediocridade,
como um hábito que torna bom quem o pratica. As virtudes são ideais que o homem procura
alcançar e que proporcionam o completo desenvolvimento da humanidade, como, por exemplo,
honestidade, coragem, generosidade, justiça e prudência. Esses ideais são descobertos através da
reflexão.
De destacar igualmente a escola estoica (que sobrevive até hoje), fundada por Zenão de
Cício (por volta de 300 a.C.) e que dominou parte significativa da cultura greco-romana. Afirma
o primado do problema moral sobre os problemas teóricos. Os estóicos defendiam que a ética
decorre de uma lei natural universal. Para os estóicos, a vida feliz é a vida virtuosa, conforme
com a Natureza, conforme a razão. Defende que o fundamental é viver com retidão, lutando
contra as paixões. Aspetos fundamentais da doutrina estóica são também a compreensão, o
cosmopolitismo (o homem como cidadão do mundo) e a igualdade de todos os homens.
Inimiga da escola estóica, o epicurismo (fundado por Epicuro de Samos, 341 -270)
perdura ainda hoje, sob a designação de hedonismo ou utilitarismo. Basicamente, defende que o
homem deve fazer o que gosta mais, o que lhe dá prazer, do corpo e da alma. Esta busca do prazer
deve ser regida pela prudência: o homem deve diminuir os desejos, para ser auto-suficiente,
despreocupado e tranquilo: "não ter dor no corpo nem perturbação na alma". Todavia, as
interpretações simplistas desta doutrina levaram quase sempre à conclusão de que, em termos
éticos, é lícito tudo o que produz prazer, desde que se faça com domínio de si mesmo, sem
perturbação. Por outro lado, contrariamente ao estoicismo, o epicurismo defende uma vida
associal, sem participação do filósofo na vida da cidade.
As doutrinas clássicas foram fonte de inspiração para muitos filósofos modernos e
contemporâneos.
As doutrinas éticas fundamentais nasceram e desenvolveram em diferentes épocas e
sociedades como respostas aos problemas apresentados pelas relações entre os indivíduos. Por
conseguinte, estas doutrinas não podem ser consideradas de forma isolada, mas dentro de um
processo de mudança contínua da vida social, responsável por exigir nova reflexão de seus
conceitos, bem como a sua substituição por outros, mais adequados à conjuntura vigente em cada
época. É isso o que explica a sucessão destas doutrinas.

ÉTICA GREGA

As questões éticas foram objeto de especial atenção na filosofia grega quando houve a
democratização de sua vida política, sobretudo em Atenas. O naturalismo dos filósofos do
primeiro período foi sucedido por uma acentuada preocupação com os problemas humanos,
políticos e morais.Assim, as novas condições apresentadas no século V a.C. em muitas cidades
gregas, com o triunfo da democracia escravista sobre o domínio da velha aristocracia, com a
democratização da vida política, com a criação de novas instituições eletivas e com o
desenvolvimento de uma intensa vida pública, originaram a filosofia política e a moral.
38

OS SOFISTAS

Os sofistas constituíram um movimento intelectual na Grécia do século V a.C. Estes


filósofos reagiram contra o saber a respeito do mundo porque o consideravam estéril e, assim,
passaram a ponderar um saber voltado para o homem político e jurídico.
Contudo, não ambicionaram um conhecimento gratuito especulativo, mas prático,
tendente a influir na vida pública. Por esta razão, os sofistas transformaram-se em mestres na arte
de convencer, na retórica.
Mas, se estas ideias afastaram as concepções dos pré-socráticos acerca da natureza e do
universo para ocuparem-se mais das questões humanas e esta arte de persuadir colocou em dúvida
não apenas a tradição grega dos deuses, como também a existência de verdades e normas
universalmente válidas.
Devido a isso, Protágoras caiu no relativismo subjetivo, em que tudo era relativo ao
sujeito e Górgias passou a sustentar a impossibilidade de saber o que existe e o que não existe.
Os sofistas eram considerados mestres da retórica e da oratória, acreditavam que a
verdade é múltipla, relativa e mutável. Protágoras foi um dos mais importantes sofistas.
Professores itinerantes que percorriam as cidades ensinando, mediante pagamento, a arte
da retórica às pessoas interessadas. A principal finalidade de seus ensinamentos era introduzir o
cidadão na vida política. Tudo o que temos desses professores são fragmentos e citações e, por
isso, não podemos saber profundamente sobre o que eles pensavam. Aquilo que temos de mais
importante a respeito deles foi aquilo que disseram seus principais adversários teóricos, Platão e
Aristóteles.
Eles eram chamados de sofistas, termo que originalmente significaria “sábios”, mas que
adquiriu o sentido de desonestidade intelectual, principalmente por conta das definições de
Aristóteles e Platão. Aristóteles, por exemplo, definiu a sofística como "a sabedoria (sapientia)
aparente mas não real”. Para ele, os sofistas ensinavam a argumentação a respeito de qualquer
tema, mesmo que os argumentos não fossem válidos, ou seja, não estavam interessados pela
procura da verdade e sim pelo refinamento da arte de vencer discussões, pois para eles a verdade
é relativa de acordo com o lugar e o tempo em que o homem está inserido.
O contexto histórico e sociopolítico é importante para que se compreenda o papel e o
pensamento dos sofistas para a sociedade grega. Embora Anaxágoras tenha sido o filósofo oficial
de Atenas na época do regime de Péricles, não havia um sistema público de ensino superior, então
jovens que podiam pagar por instrução recorriam aos sofistas a fim de se prepararem para as
dificuldades que enfrentariam na vida adulta. Uma delas, imposta pelo exercício da democracia,
era a dificuldade de resolver divergências pelo diálogo tendo em vista um interesse comum. O
termo “sofista” não corresponde, portanto, a uma escola filosófica e sim a uma prática. Mesmo
assim, podemos elencar algumas caracterizações comuns aos sofistas:
a) Oposição entre natureza (phýsis) e cultura (nómos): Pelo que sabemos, podemos dizer
que a maior parte dos sofistas tinha seu interesse filosófico concentrado nos problemas
do homem e da natureza. Isso significa que aquilo que é dado por natureza não pode ser mudado,
39

como a necessidade que os homens têm de se alimentar. O que é dado por cultura pode ser
mudado, como, por exemplo, aquilo que os homens escolhem como alimento. Ou seja, todos nós
precisamos da alimentação para continuarmos vivos, mas na China, a carne dos cães pode fazer
parte do cardápio e, na Índia, o homem não pode se alimentar da carne bovina, pois a vaca é
considerada um animal sagrado.
b) Relativismo. Para os sofistas, tudo o que se refere à vida prática, como a religião e a
política, era considerado fatores culturais, logo podiam ser modificados. Dessa forma, colocavam
as normas e hábitos em dúvida quanto à sua pertinência e legitimidade. Como eles eram
relativistas, suas questões podiam ser levadas para o seguinte sentido: as leis estabelecidas são
pertinentes para essa cidade ou precisam ser mudadas?
c) A existência dos deuses. Para os sofistas, é mais provável que os deuses não existam,
mas eles não rejeitam completamente a existência, como Platão, por exemplo. Portanto, eles são
mais próximos do agnosticismo do que do ateísmo. A diferença entre os sofistas e aqueles que
acreditavam nos deuses – e a educação grega esteve, no início, ligada à existência e interferência
dos deuses nos destinos da humanidade – é que eles preferiam não se pronunciar a respeito. Mas,
se os deuses existissem, eles não teriam formas e pensamentos humanos.
d) A natureza da alma. A definição de alma para os sofistas é de uma natureza passiva e
podia ser modelada pelo conhecimento que vem do exterior. Isso é muito importante para a
prática que eles exerciam, pois, se as pessoas possuem almas passivas, elas podem ser
convencidas de qualquer discurso proferido de forma encantadora. Por isso, era preciso lapidar a
técnica a fim de levar as pessoas a pensarem de um modo que favoreça o orador, ou seja, aquele
que está falando para o público. A resistência que alguma pessoa oferece a algo que é dito não
seria proveniente da capacidade de refletir ou questionar e sim era decorrência da inabilidade
discursiva do orador.
e) Rejeitam questões metafísicas. Os sofistas estavam bastante empenhados em resolver
questões da vida prática da pólis. Aquilo que contribuiria para uma vida melhor com os outros
ou para atender às necessidades imediatas era o centro de suas preocupações. Por concentrarem
seus esforços para pensar naquilo que consideravam útil, questões como a origem dos seres, a
vida após a morte e a existência dos deuses, ou seja, questões de ordem metafísica, eram
rejeitadas.
f) A habilidade de argumentar, mesmo se as teses fossem contraditórias, também era um
de seus fundamentos. Apesar da dura crítica feita a eles, o trabalho dos sofistas respondia a uma
necessidade da época: com o desenvolvimento e a consolidação da democracia na Atenas do
século V a.C., era imprescindível desenvolver a habilidade de argumentar em público, defender
suas próprias ideias e convencer a maior parte da assembleia a concordar com aquilo que os
beneficiaria individualmente.
Um momento mais decisivo na trajetória humanista acontece no século V a.C., em
Atenas, já que aí a liberdade de expressão e a democracia atingiram um esplendor singular entre
as cidades gregas. Nossos personagens agora serão os sofistas, particularmente aqueles que são
considerados seus primeiros grandes representantes: Protágoras e Górgias. Quem são eles?
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Basicamente estrangeiros e professores de novas disciplinas, todas ligadas ao discurso, como


oratória, gramática e teoria da argumentação. Essa era a formação complementar, o que
equivaleria hoje a uma pós-graduação, necessária para quem queria se dedicar à política. Sua
chegada a Atenas se explica porque aí havia uma carência pelo trabalho desenvolvido por eles.
Agora tão importante quanto saber é saber se expressar.
Ao falar de humanismo aí, o conceito ganha cores mais fortes, pois no âmbito da pólis, o
campo das decisões sobre o futuro cabe única e exclusivamente à dimensão humana. Os sofistas
são aqueles que anunciam, talvez de modo inédito, que seja impossível afirmar com plena
convicção se os deuses existem ou não existem, na medida em que, tal como todo o restante do
real, são fruto apenas da convenção. Ou, em sentido mais geral, que sobre o invisível e o
misterioso nada se pode dizer, não se pode opinar. Segundo os historiadores, Protágoras chegou
inclusive a passar por um julgamento público, sendo acusado de impiedade. Dessa forma, os
sofistas estão definindo o campo possível do que pode ser conhecido pelo homem. Pois se tudo
a respeito dos deuses é duvidoso, restam as ações humanas na cidade como certeza. E completam
que, de todo modo, mesmo que os deuses existam, não tem poder de intervir de maneira direta
nas situações vividas por certa comunidade ou nas decisões referentes à vida pública. Protágoras
prepara assim por negação de todo recurso ao absoluto, um humanismo radical. São os homens
em conjunto que decidem por si mesmos como se processará o futuro.
Com uma audácia extrema, que poderíamos chamar de um agnosticismo avant la lettre,
os sofistas chegam a especular que os deuses podem habitar apenas nossas mentes ou que sua
missão principal é a de atender a carências sociais, sendo seres imaginados, não reais. O ceticismo
reinante no pensamento sofista vai levar a um ponto culminante a noção de autonomia humana,
na medida em que as convicções do sujeito vêm dos seus pensamentos e percepções. O que
interessa nesse momento é o que cada homem, com a competência advinda de um conhecimento
adquirido com esforço, pode fazer. Os novos tempos anunciam a ideia de que os cidadãos são
iguais e rivais, não sendo mais decisiva, como antes, a questão sanguínea, critério típico do
regime anterior aristocrático. Na democracia, a avaliação é por competência. Todos que tem
direitos políticos são colocados agora na condição de pretendentes. É nessa conjuntura igualitária
que a especialidade sofística, ensinar a melhor forma de pronunciar um discurso em defesa de
uma ideia, ganha relevo. Eles tornam-se fundamentais, pois fornecem técnicas para o acesso ao
poder, que na Atenas do século V é pavimentado pela expressividade oral.
Por terem trazido para a educação grega a importância da aquisição de saberes variados
e o maneira de transmiti-los, os sofistas ficaram conhecidos como os enciclopedistas da Grécia e
o período nomeado como Iluminismo Grego. É a partir deles, portanto, que podemos falar do que
foi também tremendamente estimulado na Renascença e que hoje é conhecido como cultura geral.
A referência aqui não é a um saber superficial em diferentes temas, como está vulgarizada essa
expressão hoje, mas, a exemplo do que representou a figura multifacetada de Leonardo da Vinci
para a sua época, de um amplo e profundo conhecimento de diversas áreas. Não é coincidência
que esses dois períodos sejam também considerados humanistas, no sentido de posicionar o
homem como referência central do saber que queremos dar nesse momento da tese.
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Argumenta-se que os sofistas não eram filósofos. Partindo de um certo entendimento do


que seja filosofia, isso está correto, pois não foram homens que teorizaram sistematicamente,
elaboraram tratados ou anunciaram publicamente conceitos e visões gerais sobre o Cosmos ou as
ações humanas. Como remanescentes da tradição oral iniciada com os pensadores pré-socráticos,
efetivam as novidades de suas ideias na ação política. É menos especulação e mais prática. O que
há de inovador se apresenta em praça pública, no calor dos posicionamentos contraditórios em
debate. É por isso, que mesmo sem uma intenção clara, suas práticas no campo da linguagem e
da política incitaram questionamentos que são filosóficos por excelência: o que é o real? E a
verdade? Qual é o papel do homem em relação ao que o rodeia? Que relação pode existir entre
verdade e palavra, tema que aliás atravessa toda a filosofia grega posterior? Podemos com
tranquilidade dizer que os primeiros passos em filosofia política e ética estão sendo dados por
eles. Também é possível afirmar com segurança que grande parte da problemática conceitual e
da reforma educativa proposta posteriormente por Sócrates e Platão tem total dependência em
relação às afirmações sofísticas. É nesse sentido.
Há inclusive autores que teorizam que essas duas filosofias seriam impossíveis sem os
sofistas. Com eles, os dados deixam, como antes, de existir por si e o homem passa a só confiar
naquilo que ele mesmo tiver proposto e aprovado, ou seja, a dimensão do verdadeiro ganha planos
terrenos e relativos. Em sua vertente absoluta, ela é simplesmente descartada. A realidade passa
a absorver intrinsecamente a contradição e a multiplicidade. No campo jurídico, por exemplo, a
única lei que conta é a criada pelo homem e apoiada pela comunidade. Opiniões contrárias são
igualmente legítimas, a verdade se torna uma armadilha enganadora, as tentativas de alcançá-la,
loucura. A verdade é relativa a quem a pronuncia e a crença em algo se dá no âmbito do
provisório. Uma das técnicas argumentativas, retóricas, tratam do que Protágoras nomeia de
antilogia. O ponto de partida é que sobre qualquer assunto há mais de um modo de se posicionar.
Isso faz com que dois discursos possam ser coerentes e incompatíveis ao mesmo tempo. Além
disso, seria próprio do antilógos que o orador conhecesse os argumentos do inimigo e já os
desmontasse usando os seus. Que o seu lógos traga o oposto com o fim de derrubá-lo. Tirar
quantas réplicas do adversário, se for possível todas. Se o inimigo ficar sem palavras, ganhou-se
a batalha. Uma noção de combate, agón, é inerente à cultura grega. Se antes o cenário era o
próprio campo de guerra, agora houve uma transferência para o âmbito da linguagem.
Isso faz com que todo orador digno desse nome seja capaz de elaborar um discurso de
defesa e de ataque sobre o mesmo tema. Estamos falando especificamente de estratégia. Não é
que não exista um ponto de vista defendido em relação a algo, mas, pelo contrário, você defende
melhor algo se conhecer os argumentos daqueles que pensam o oposto. Como as verdades
aparecem, sempre construídas e em caráter provisório, no calor dos discursos, opinião e verdade
não se distinguem. Não por coincidência uma noção de tempo que surge aí é da kairós, expressão
normalmente traduzida por momento oportuno, pois dependendo da situação que se apresenta e
da audiência será dada a importância adequada ao que você está defendendo ou atacando.
Existe uma autêntica revolução de costumes em andamento na Grécia. Há todo um
estímulo para que o valor dos homens seja definido não mais pela referência sanguínea, mas pela
42

capacidade individual. E ao falar disso na Grécia desse período, falamos ao mesmo tempo de
facilidade de se expressar. É nesse sentido que os sofistas, que são literalmente professores de
oratória e de argumentação (retórica), tornam-se peças fundamentais na formação educacional
complementar, que acaba por constituir uma nova e necessária Paidéia. A tradição educativa
anterior condicionava como objetivo a preparação dos homens para a guerra. Esses novos
educadores são causa e consequência da abertura política que está acontecendo em Atenas.
Aproveitam-se dos novos tempos democráticos e, ao mesmo tempo, os estimulam. Quando nos
perguntarmos porque os sofistas afluíram a Atenas nesse período, vemos claramente como houve
uma forte conjugação de interesses:Não foi por acaso que sofistas de todo canto do mundo grego
vieram para Atenas (...) Primeiro porque Atenas oferecia excelentes oportunidades para um
sofista ganhar muito dinheiro e, segundo, em nível mais elevado, porque, sob muitos aspectos,
ela estava em processo de se tornar um verdadeiro centro intelectual e artístico em toda a Grécia.
Sem exagero, Atenas, muito em função do comando político de Péricles, conquistou a
maior liberdade de expressão que o mundo antigo já conheceu. Em nenhum outro local, à época
e por muitos séculos, tantos homens, cerca de seis mil cidadãos (20% da população da cidade),
tinham a oportunidade de se candidatar ao cargo máximo de comandante da cidade. Toda essa
conjuntura produzia todo tipo de reação, menos emoções medianas. Os sofistas atraíam o
entusiasmo e o ódio que regularmente advém àqueles que estão envolvidos num processo de
fundamental mudança social.
Não é possível falar dos sofistas sem apontar um dos seus grandes representantes:
Protágoras. Em particular, um ponto que nos interessa é a ideia do homem-medida. A sua frase
mais conhecida é esclarecedora: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são
e das que não são como não são.” A frase traz ao mesmo tempo a questão do homem como polo
definidor do que é e do que não é, abrindo um ponto central de discordância em relação à noção
que vem de Parmênides e de todo o eleatismo de que a verdade existe, é absoluta e externa ao
homem. Isso não quer dizer que Protágoras desconsidere o problema da verdade. O que ele está
dizendo é que ela agora é relativa às produções mentais humanas, ou seja, ela é múltipla e
variável. Ele não está dizendo que ela é individual ou absolutamente fluida. O que está sendo
dito, ao nosso ver, é que a postura do livre pensador é a de abertura a novas reflexões, ou melhor,
à aquisição de novas verdades, conforme essas últimas pareçam mais coerentes e adequadas que
as anteriores.
Por não haver lugar a chegar, não há problema em mudar de modo de enxergar o mundo
que nos envolve. Protágoras também não está levando o relativismo a extremos, indicando que
as verdades são referentes a cada indivíduo isoladamente. Sim, as proposições são individuais,
mas não se esgotam com ele, já que política propriamente dita o que acontece no âmbito coletivo.
É exatamente por isso que podemos falar em ética sofística quando lidamos com Protágoras. Ela
pode ser exercida quando um sofista escolhe seus alunos ou quando os estimula a produzir
discursos mais consistentes sustentados por ideias que eles já possuíam. Há uma falsa e muito
comum associação entre o ato de persuadir e o de enganar. Temos que lembrar que toda vez que
estamos falando com alguém estamos manipulando, convencendo e persuadindo. Persuadir
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enganando é uma pequena parcela desse grande conjunto, pois depende diretamente de intenções
egoístas de quem fala. O engano aí está em tomar a parte pelo todo.
Podemos afirmar hoje que grandes sofistas, Protágoras certamente está entre eles, por
inaugurarem a dimensão política no palco da reflexão filosófica, foram os primeiros a questionar
como o homem deve agir em relação ao conjunto dos outros homens. Não é preciso ir longe para
lembrar que a resposta à pergunta como devo agir?, serve de base a qualquer debate ético. Sua
proposta de formar políticos, logicamente sem levar em conta as interpretações muito
tendenciosas de Platão, era unir o que eles já pensavam, que vinha da educação grega de base na
Grécia (é só lembrar que o ponto máximo da educação do grego iria até um certo momento até
da formação guerreira e da importância da honra nesse âmbito), com técnicas linguísticas ligadas
à oratória e à retórica que serviriam para produzir um discurso bem-sucedido. A ideia aí seria
unir saber e discurso bem articulado, reflexão e técnica em um sistema. Mas mais que tudo isso,
os primeiros sofistas ajudaram a promover uma amplitude inigualável para a liberdade de
expressão, que revela-se como humanista. Durante esse período áureo da democracia grega, que
virou referência de liberdade política para todo o Ocidente, houve um grande conjunto criado
entre as produções técnicas da linguagem, que certamente é considerada uma concretização
objetiva, integrada aos avanços da autonomia e da liberdade. Agora é hora de falar um pouco de
um segundo grande sofista: Górgias

SÓCRATES

Sócrates considerava como fundamental o saber a respeito do homem, caracterizado por


três elementos:
(I) é um conhecimento universalmente válido;
(II) é um conhecimento moral;
(III) é um conhecimento prático, uma vez que é preciso conhecer para agir retamente.
A ética socrática, portanto, era racionalista, respaldada por três aspectos:
(I) concepção do bem para a felicidade da alma e do bom como útil para a felicidade;
(II) tese da virtude (aretê) como conhecimento e do vício como ignorância;
(III) tese, segundo a qual a virtude pode ser transmitida ou ensinada.
Assim, para este filósofo, bondade, conhecimento e felicidade são conceitos que se
interagem. O homem, então, age de forma correta quando conhece o bem e, ao conhecê-lo, não
pode deixar de praticá-lo. Por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, em
decorrência, torna-se feliz.
Dessa forma, com Sócrates, as questões morais deixam de ser tratadas como convenções
baseadas nos costumes, as quais se modificam conforme as circunstâncias e os interesses, para
se tornarem problemas que exigem do pensamento uma elucidação racional. Nesse sentido,
Sócrates é considerado o fundador da Ética.
A liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua atitude crítica, irônica
e a consequente educação por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade
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popular, inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como de
certos elementos racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse
estado de ânimo hostil a Sócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida
contra ele por Mileto, Anito e Licon: de corromper a mocidade e negar os deuses da pátria
introduzindo outros. Sócrates desdenhou defender-se diante dos juízes e da justiça humana,
humilhando-se e desculpando-se mais ou menos. Tinha ele diante dos olhos da alma não uma
solução empírica para a vida terrena, e sim o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E preferiu
a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se com indômita fortaleza de
ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena capital com o voto da maioria.
Tendo que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as execuções
capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos - o discípulo Criton preparou e propôs a
fuga ao Mestre. Sócrates, porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às
leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com
os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado
pouco antes da morte e foi descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas
palavras dirigidas aos discípulos, depois de ter sorvido tranquilamente a cicuta, foram: "Devemos
um galo a Esculápio". É que o deus da medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da
morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos de idade.
O Método de Sócrates é a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na
variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo
se transformam, concluíram os sofistas pela impossibilidade absoluta e objetiva do saber.
Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência.
O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que passa; é o inteligível,
oconceitoque se exprime pela definição. Este conceito ou ideia geral obtém-se por um processo
dialético por ele chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma
espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento
comum, estável, permanente, a natureza, a essência da coisa. Por onde se vê que a indução
socrática não tem o caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à
lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção universal.
Praticamente, na exposição polêmica e didática destas ideias, Sócrates adotava sempre o
diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de
um discípulo a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia
multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e
constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso,
tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda
as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos particulares e concretos,
um conceito, uma definição geral do objeto em questão. A este processo pedagógico, em memória
da profissão materna, denominava ele maiêutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que
facilitava a parturição das ideias.
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A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema


conhece-te a ti mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da
sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e
profundidade tais, que se concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou
demônio.
Como é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de sua vida e de
seu pensamento, devemo-las especialmente aos seus dois discípulos Xenofonte e Platão, de feição
intelectual muito diferente. Xenofonte, autor de Anábase, em seus Ditos Memoráveis, legou-nos
de preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte, de estilo simples e
harmonioso, mas sem profundidade, não obstante a sua devoção para com o mestre e a exatidão
das notícias, não entendeu o pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação
do que um pensador. Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos dar o preciso
retrato histórico de Sócrates; nem sempre é fácil discernir o fundo socrático das especulações
acrescentadas por ele. Seja como for, cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande
historiador do pensamento de Sócrates, bem como o seu biógrafo genial. Com efeito, pode-se
dizer que Sócrates é o protagonista de todas as obras platônicas embora Platão conhecesse
Sócrates já com mais de sessenta anos de idade.
"Conhece-te a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O
perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro
para o qual convergem todas as partes da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a
teodicéia de estímulo à virtude e de natural complemento da ética.
Em teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento teológico, formulando
claramente o princípio: tudo o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência; b) com o
argumento, apenas esboçado, da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente
deve ser a causa que o produziu; c) com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior
ao homem, um legislador, que a promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas é também
Providência, governa o mundo com sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e
orações. Apesar destas doutrinas elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da
mitologia corrente que ele aspira reformar.
A moral, é a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar para bem
viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem,
é a prática da virtude. A virtude adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta
doutrina, uma das mais características da moral socrática, é consequência natural do erro
psicológico de não distinguir a vontade da inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração
especulativa, virtude e ciência, ignorância e vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música,
pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".
Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei
natural - independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo direito positivo,
expressão da vontade divina promulgada pela voz interna da consciência.
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Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase sempre a
utilidade como motivo e estímulo da virtude. Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral
do sistema
O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, com finalidades
práticas, morais.
A única ciência possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os valores
universais, não particulares. Vale dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se
baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral; no
entanto, para realizar o próprio fim, é mister conhecê-lo; para construir uma ética é necessário
uma teoria; no dizer de Sócrates, a gnosiologia deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim
da filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente, do teorético, no sentido de que
o homem tanto opera quanto conhece: virtuoso é o sábio, malvado, o ignorante. O moralismo
socrático é equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está contra todo
voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo.
Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do conceito, assim é o
fundador, em particular da ciência moral, mediante a doutrina de que eticidade significa
racionalidade, ação racional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina,
costume, tradição, lei positiva, opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado, superado,
subindo até à razão, não descendo até à animalidade - como ensinavam os sofistas. É sabido que
Sócrates levava a importância da razão para a ação moral até àquele intelectualismo que,
identificando conhecimento e virtude - bem como ignorância e vício - tornava impossível o livre
arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática carece de uma especificação lógica, precisa -
afora a teoria geral de que a ciência está nos conceitos - assim a ética socrática carece de um
conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem for o bem - realizando-
se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante o conhecimento - Sócrates não sabe, nem pode
precisar este bem, esta felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica. Traçou, todavia,
o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim, por Aristóteles. Estes dois filósofos,
partindo dos pressupostos socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande
metafísica e, logo, uma moral.
A filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética.

PLATÃO

A ética de Platão relaciona-se de maneira íntima com a sua filosofia política porque, para
ele, a cidade é o terreno próprio da vida moral. Esta ética depende, sobretudo, de dois fatores: (i)
concepção metafísica, isto é, dualismo do mundo sensível e do mundo das ideias permanentes,
que constituem a verdadeira realidade e têm como cume a ideia do bem do mundo; (ii) doutrina
da alma, ou seja, do princípio que move o homem e consta de três partes: razão, vontade ou ânimo
e apetite.
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Nesse sentido, pela razão a alma eleva-se ao mundo das ideias. Seu fim último é libertar-
se da matéria para contemplar a ideia do bem. Para alcançar esta libertação é preciso praticar
várias virtudes, que correspondem a cada uma das partes da alma e consistem em seu
funcionamento perfeito: a virtude da razão é a prudência; a da vontade ou ânimo, a fortaleza; a
do apetite, a temperança. Estas virtudes guiam uma parte da alma e a harmonia entre as diversas
partes constitui a quarta virtude, que é a justiça.
Mas, como o indivíduo não pode aproximar-se sozinho da perfeição, torna-se necessário
o Estado ou a comunidade política. Assim, o homem é bom enquanto cidadão. Esta concepção
de ética lança-se, necessariamente, na política.
Além disso, na ética platônica transparece o desprezo, característico da Antiguidade, pelo
trabalho físico e, devido a isso, os artesãos ocupavam uma escala social inferior, enquanto as
classes dedicadas às atividades superiores, contemplação, política e guerra, eram exaltadas. De
outro lado, conforme as ideias dominantes e a realidade política e social daquele tempo, não havia
lugar no Estado ideal para os escravos, já que eram desprovidos de virtudes morais e de direitos
cívicos.
Frente a estas limitações da classe, encontra-se na ética de Platão a estreita unidade da
moral e da política, uma vez que, para ele, o homem forma-se somente no Estado e mediante a
subordinação do indivíduo à comunidade.
A Política: "... os males não cessarão para os humanos antes que a raça dos puros e
autênticos filósofos chegue ao poder, ou antes, que os chefes das cidades, por uma divina graça,
ponham-se a filosofar verdadeiramente".
- A) Os Livros de Platão sobre política:
▪ Republica.
▪ Política,
▪ Leis.
- B) O Modelo Político em Platão:
o O modelo político de Platão tem origem na decepção como sua Atenas foi governada
durante o tempo em que ele viveu, bem como com a forma injusta como se deu o
julgamento e a condenação de seu mestre, Sócrates.
o Platão concebeu um modelo aristocrático de poder. Não a aristocracia da riqueza, mas da
inteligência.
o O poder será dos melhores. O governo será administrado por uma:
▪ Sofocracia
• Governo dos sábios.
• Governo dos reis-filósofos.
o Os homens comuns são de insuficiente conhecimento, não passam da opinião, doxa, por
isso devem ser governados por quem se distingue pelo saber.
o Só quando os chefes da cidade começarem a filosofar, ou os verdadeiros filósofos
alcançarem o poder, cessarão os males que afligem a humanidade.
o Um Estado que aspira ser perfeitamente governado terá de reconhecer como governantes
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os cidadãos que se mostrem superiores tanto na filosofia quanto na arte da guerra.


- C) A Origem e a função do Estado:
o 1. Origem:
▪ O Estado origina-se e justifica-se pelo fato de sozinho ninguém ser suficiente ou bastar-
se.
▪ Não se pode ser artesão, alfaiate, camponês, soldado, professor, sapateiro, etc. ao mesmo
tempo.
▪ Satisfazer todas as necessidades é associar-se e co-dividir as várias ocupações e
habilidades.
o 2. Funções:
▪ O Estado deveria cuidar da:
• Eugenia
o Bom nascimento.
o Boa origem.
• O Estado permitiria que somente os que se distinguissem pela saúde, inteligência e beleza
pudessem procriar.
• O Estado deve dar educação, garantindo que todos crescessem isentos de fraquezas, mau
exemplo ou costumes debilitantes.
• O Estado exerceria uma forma de “Comunismo”.
- D) Os três Tipos de Almas:
o Do resultado da educação, igual para todos até os 20 anos, começariam a surgir os três
tipos de Almas:
o A educação é de responsabilidade do Estado.
▪ Almas de Bronze (Artesãos e camponeses):
• Os homens que tivessem o menor aproveitamento nos estudos seriam os trabalhadores
braçais.
• Cuidariam da subsistência dos demais.
• Como são dotados de pouca sensibilidade, seriam agricultores, artesãos, servidores do
comércio, empregados domésticos, construtores, marinheiros, etc...
▪ Almas de Prata (soldados):
• Os homens que restassem, após os 20 anos de idade, estudariam por mais 10 anos.
• Essa é a classe dos guerreiros.
• Sua função é a defesa da Pólis.
• Espiritual e fisicamente mais hábeis que os trabalhadores braçais, dominariam a ginástica,
música, aritmética, geometria e astronomia.
▪ Almas de Ouro (filósofos/governantes):
• Os homens que passassem pela segunda fase seriam instruídos na arte de pensar, dialogar,
argumentar.
• Se dedicariam os estudo da filosofia, fonte de todo conhecimento e da verdade.
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• Quando chegassem aos 50 anos seriam admitidos na magistratura.


• A eles somente caberia o governo da cidade.
• Por serem sábios, seriam justos, teriam a ciência da política.
o A posição social que cada indivíduo ocupa dentro da estrutura do Estado platônico
depende das aptidões naturais de cada alma, por isso a posição alcançada pelos cidadãos
não é injusta, pois dependeu da vocação natural de cada um.
- E) As Leis em Platão:
o Para que o Estado exista em plenitude e o cidadão seja feliz é preciso que haja obediência
às leis.
o Obedecer à lei é inabalável, inexorável: se a obediência não for possível pela persuasão e
pelo consentimento livre e racional, que sejam usados métodos de força: prisão, exílio e
mesmo a morte.
o A integridade do Estado é que deve ser mantida.
- F) As Virtudes em Platão:
o Para Platão, a justiça, Dike em grego, é a principal virtude na polis, a condição primeira
das demais virtudes.
o O poder é encerado como um serviço, sem qualquer outra ambição a não ser a promoção
da justiça e a consequente criação de um estado que permite aos seus cidadãos
desenvolverem os caminhos que os levem ao sumo bem.
o Para Platão o funcionamento correto da cidade ideal, depende de quatro virtudes
essenciais:
▪ Justiça.
▪ Sabedoria.
▪ Coragem.
▪ Temperança.
o A posição social que cada indivíduo ocupa dentro da estrutura do Estado depende de suas
aptidões naturais, por isso ela não é injusta.
- G) Os Maus Governos:
▪ Democracia.
• As massas não tem educação.
• O povo é eivado pelas paixões.
• As massas são facilmente influenciáveis pela doxa.
• A democracia conduz à tirania e fomenta a imoralidade e a corrupção.
• Na democracia é muito fácil confundir o povo sem educação crítica, pois estas pessoas se
deslumbram com a oratória e a retórica dos candidatos e lhes atribuem, por isso,
capacidades e competências políticas que normalmente não possuem, apenas aparentam
em seus discursos carregados de floreios e palavras ambíguas possuírem.
▪ Oligarquia.
• Regime de governo de uns poucos.
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• Governam para seu grupo, em prejuízo da maioria.


▪ Tirania.
• Regime de governo de um opressor.
• Governa conforme suas paixões.
• Governa para si.
▪ Timocracia.
• Regime de governo onde predominam os ricos e os ambiciosos.
• Governam pensando em si mesmos

ARISTÓTELES

Aristóteles de Estagira, 384 a.C. – 322 a.C. filósofo grego, um dos maiores pensadores
de todos os tempos e considerado o criador do pensamento lógico.
Suas reflexões filosóficas — por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição
grega — acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos.
Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética,
política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural
e outras áreas de conhecimento humano. É considerado por muitos o filósofo que mais
influenciou o pensamento ocidental.
Por ter estudado uma variada gama de assuntos, e também por ter sido um discípulo que
em muitos sentidos ultrapassou seu mestre, Platão, é conhecido também como o Filósofo.
A ética de Aristóteles, como a de Platão, também está unida à sua filosofia política, já
que, para ele, a comunidade social e a política são os meios necessários da moral. Somente nelas
é que se pode realizar o ideal da vida teórica na qual está baseada a felicidade.
Assim, o homem apenas pode viver na cidade, pois é um animal político e, por isso, não
pode levar uma vida moral como indivíduo isolado, mas como membro da comunidade. Por sua
vez, esta vida moral não pode ser entendida como um fim em si mesma, mas como condição para
uma vida verdadeiramente humana: a vida teórica na qual consiste a felicidade.
No sistema aristotélico, a ética é uma ciência menos exata na medida em que se ocupa
com assuntos passíveis de modificação. Ela não se ocupa com aquilo que no homem é essencial
e imutável, mas daquilo que pode ser obtido por ações repetidas, disposições adquiridas ou de
hábitos que constituem as virtudes e os vícios. Seu objetivo último é garantir ou possibilitar a
conquista da felicidade.
Partindo das disposições naturais do homem (disposições particulares a cada um e que
constituem o caráter), a moral mostra como essas disposições devem ser modificadas para que se
ajustem à razão. Estas disposições costumam estar afastadas do meio-termo, estado que
Aristóteles considera o ideal. Assim, algumas pessoas são muito tímidas, outras muito
audaciosas. A virtude é o meio-termo e o vício se dá ou na falta ou no excesso. Por exemplo:
coragem é uma virtude e seus contrários são a temeridade (excesso de coragem) e a covardia
(ausência de coragem).
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As virtudes se realizam sempre no âmbito humano e não têm mais sentido quando as
relações humanas desaparecem, como, por exemplo, em relação a Deus. Totalmente diferente é
a virtude especulativa ou intelectual, que pertence apenas a alguns (geralmente os filósofos) que,
fora da vida moral, buscam o conhecimento pelo conhecimento. É assim que a contemplação
aproxima o homem de Deus.
A política é o desdobramento natural da ética. Ambas, na verdade, compõem a unidade
do que Aristóteles chamava de filosofia prática.
Se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se preocupa
com a felicidade coletiva da pólis. Desse modo, é tarefa da política investigar e descobrir quais
são as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva. Trata-se,
portanto, de investigar a constituição do estado.
Acredita-se que as reflexões aristotélicas sobre a política originam-se da época em que
ele era preceptor de Alexandre.
Para Aristóteles a ética vem iniciando com a noção de felicidade, buscando no âmbito do
indivíduo em si, pois é necessária a excelência, neste instante se tornar uma pessoa virtuosa. No
entanto essa noção de felicidade visa a considerar uma ética eudaumônica, pois aquilo que você
está fazendo para si pode resultar a felicidade e o bem agir, sendo assim o agir humano, nascendo
à virtude.
A política é a ciência são advindas á suprema, a qual todas as outras estão subordinadas,
sendo sua tarefa investigar o que diz respeito às coisas públicas para garantir a felicidade coletiva,
tal como a melhor forma de governo e instituições capazes de gerenciar o conjunto de indivíduos.
No entanto para o filósofo a noção de felicidade naquela época era definida como as
atividades da alma do ser humano, que embora possa vir de acordo com uma "perfeição" daquilo
que os vê ser virtuoso. Porém a felicidade vem sendo o centro da ética Aristotélica. A felicidade
enquanto tarefa de auto-realização do homem como humano compreende-se no horizonte da
phronesis, horizonte este partilhado com as virtudes éticas.
A felicidade é o meio da ética, em que os seres humanos devem procurar o seu lugar para
serem felizes, pois essa felicidade não fará o bem em si, mas aquilo que você está fazendo para
o bem no caso isso seria a felicidade.
Tanto a maioria como os mais sofisticados dizem ser a felicidade, porque supõem que ser
feliz é o mesmo que viver bem e passar bem. Contudo, acerca do que possa ser a felicidade estão
em desacordo e a maioria não compreendem o seu sentido do mesmo modo que o compreendem
os sábios.
Aristóteles deixa claro que a felicidade deve gerar o bem em si, sendo assim a felicidade
seria o bem supremo de todas as coisas.
A felicidade é então o bem supremo, o que há de mais esplendoroso e o que dá um prazer
extremo; estas qualidades não podem ser dissociadas, tal como as encontrou no epigrama de
Delos: O mais nobre é a justiça e o mais desejável a saúde.

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