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A cena toda
Aprendi que o nosso calão, o nosso sotaque, a nossa linguagem quotidiana, as nossas
referências locais e as nossas vivências individuais podiam ser matéria-prima para a
criação artística.
Nasci no Porto em 1982 e o meu primeiro contacto com a música foi através dos discos
que os meus pais ouviam. José Afonso, Fausto, Zé Mário Branco, Sérgio Godinho
fizeram com que, na minha conceção de música, a palavra fosse sempre indissociável.
Não só do ponto de vista estético (no seu protagonismo e inventividade), mas
sobretudo enquanto veículo de mensagem, enquanto discurso e (porque não?)
enquanto posicionamento. Talvez, por isso, tenha encontrado no Hip Hop (anos mais
tarde) um sentido de identificação, uma familiaridade.
Era adolescente no Porto em 1997 e o meu primeiro contacto com a cultura Hip
Hop foi através do Graffiti. Comecei a prestar atenção aos rabiscos nas paredes e
procurei saber mais sobre aquele misterioso código estético. Fui investigando,
experimentando no caderno e na parede e conhecendo cada vez mais gente com o
mesmo interesse.
Foi assim que cheguei a um pequeno bar na Rua de Cedofeita, em que todas as
quintas-feiras havia noite de Hip Hop. Todos os writers, mc’s, b-boys e dj’s da cidade
cabiam ali. Era um lugar de partilha de informação, num tempo em que era preciso
trocar cassetes, revistas, desenhos e dicas presencialmente e em que a
comunidade Hip Hop do Porto começava a consolidar-se numa cena.
Foi uma pequena e poderosa revolução e, nessa legitimação identitária, abriu-se
diante de mim a possibilidade de escrever as minhas próprias letras. Tinha encontrado
a minha tribo. […]
O Hip Hop ensinou-me muita coisa e foi a ele que dediquei quase todo o meu tempo
livre. Foi com ele que escolhi rotular-me nos anos da minha adolescência, sobrepondo-
me às classificações que externamente se impunham. Foi com ele que criei uma
relação estreita com a minha cidade e com a língua portuguesa. Foi com ele que
aprendi a ética da autossuperação e que estimulei o espírito de iniciativa, numa
espécie de DIY militante que me anima até hoje. E foi ele que deu sentido à minha
escrita, que me impeliu a desenvolver a minha vocação e que (ultimamente) me tem
permitido ganhar a vida. [...]
Digo e repito sempre que posso, perguntada ou não, que tenho nos Dealema um
exemplo e uma inspiração. Não apenas por terem sido fundadores da cena portuense,
mas por terem ajudado a consolidá-la ano após ano, “incentivando os putos como
mandam as leis”. Na perspetiva de que o mc é também um mentor, servindo de fio de
prumo para o crescer do movimento, alimentando o espírito de coletivo, mantendo
uma ética de trabalho, eles têm estado sempre lá e a tribo mostra reverência.
No palco do Rivoli tocaram na íntegra o seu primeiro álbum e lembrei-me de mim,
de discman na mão e phones nos ouvidos, ouvindo-o pela primeira vez, impressionada.
Dei por mim, de novo com 20 anos, sendo fã como só um adolescente consegue,
entoando os refrões em coletivo, de braços no ar e sentindo cada rima como se nos
definisse.
in Visão,
https://visao.sapo.pt/opiniao/2016-06-06- -A-cena-toda (consultado em 24-03-2017)
Estrutura
• Título: sugestivo – “A cena toda”, que remete para uma música dos Dealema, com o
mesmo título.
Discurso valorativo
• Manifestação de um juízo de valor explícito sobre a importância do contacto, no
Porto, com o hip hop.
• o recurso a uma linguagem valorativa, marcada por recursos com acentuado valor
expressivo, como a metáfora (“servindo de fio de prumo para o crescer do
movimento”); e por uma adjetivação apreciativa (“Foi uma pequena e poderosa
revolução”);
• o recurso, geralmente, à primeira pessoa (“Digo e repito sempre que posso,
perguntada ou não, que tenho nos Dealema um exemplo e uma inspiração”).
► Texto de opinião
Etapa 1: Planificação
Etapa 2: Textualização
Etapa 3: Revisão
Era um nome na corrida desde finais do século passado. Mas a atribuição do Nobel
da Literatura de 2016 a Bob Dylan surpreendeu toda a gente... Em 2001, aqui
na Visão, já se falava nessa real possibilidade. Os prémios têm sido uma constante na
vida do músico.
Os prémios não são uma novidade para ele. Incluindo com a marca do país que agora
lhe deu o mais prestigiado prémio literário do mundo. No ano 2000, a Real Academia
Sueca de Música distinguiu-o pela “influência indiscutível no desenvolvimento da
música popular, no século XX, como cantor e escritor de canções”. “Esse pode muito
bem ser um degrau a caminho do Nobel”, escrevíamos nós, em 2001, num texto que
assinalava a chegada de um dos nomes mais icónicos dos anos 60 aos… 60 anos. Afinal,
desde 1997 que um grupo sediado na Noruega, mas com fortes ligações ao meio
académico norte-americano, trabalhava para promover o nome de Dylan ao Olimpo do
Nobel da Literatura. A vitória, precisamente em 1997, de Dario Fo deu-lhes força.
Afinal, nas palavras do professor Gordon Bali, era “um distinto criador, cujas peças, tal
como as letras e canções de Dylan, dependem da performance para a sua realização
completa”.
Quando o presidente Bill Clinton lhe entregou, em 1997, o Prémio Kennedy (Kennedy
Center Honors Lifetime Achievement Award), disse dele: “Teve provavelmente mais
impacto nas pessoas da minha geração do que qualquer outro artista criativo”. Um
Grammy por toda a carreira foi-lhe dado, precocemente (ainda faltavam tantos
discos...), em 1991, por Jack Nicholson. No currículo de prémios, o cada vez mais
discreto e silencioso Bob Dylan tem também um Oscar (o de melhor canção original
por Things Have Changed, do filme Wonder Boys, de Curtis Hanson).
Aparentemente, mais do que um prémio com conotações políticas (nos últimos anos a
participação pública de Bob Dylan tem sido escassa), este Nobel da Literatura é
um statement da Academia Sueca: toda a palavra escrita num contexto artístico é
literatura e digna das mais altas distinções.
Em termos puramente literários a sua carreira começou bem sintonizada com a beat
generation com Tarantula (publicado em 1971 mas escrito nos anos 60), num registo
de prosa poética experimental. E a sua autobiografia em curso (Chronicles, com edição
portuguesa do primeiro volume na Ulisseia) é o mais próximo que nos podemos
aproximar do homem por detrás da máscara.
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