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Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização

Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização


Bruna Ester Gomes Yamashita
Danilo do Amaral Santos Lagoeiro
Fabíola Ferro da Silva
Fagner Bruno de Souza
Lucas de Godoy Chicarelli
Sandra Regina Ferreira de Oliveira
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização

CANTO DO MARL:
narrativas de um lugar ocupado pela
esperança estudantil e artística

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2019
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação, Capa e Fotografia: Eluanna R. das N. Pereira
Revisão: Barbara B. Pozatto
Este livro foi impresso através do Programa Municipal de Incentivo à Cultura – PROMIC
18-016 – Lugar de Vivências: preservação das memórias e histórias de um prédio habitado
pela esperança estudantil e artística
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE

Y19

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Yamashita, Bruna Ester Gomes.
Canto do Marl: narrativas de um lugar ocupado pela esperança estudantil e artística
/ Bruna Ester Gomes Yamashita, Danilo do Amaral Santos Lagoeiro, Fabíola Ferro da Silva,
Fagner Bruno de Souza, Lucas de Godoy Chicarelli, Sandra Regina Ferreira de Oliveira,
Barbara B. Pozatto (revisora), Eluanna R. das N. Pereira (designer) – Curitiba : CRV, 2019.
116 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-444-3821-3
DOI 10.24824/978854443821.3

1. Patrimônio histórico 2. Memória 3. Movimentos sociais 4. Cidades I. Lagoeiro,


Danilo do A. Santos II. Silva, Fabiola F. III. Souza, Fagner Bruno de IV. Chicarelli, Lucas de
Godoy V. Oliveira, Sandra R. F. de VI. Pozatto, Barbara Blanco. rev. VII. Pereira, Eluanna R.
das N. des. VIII. Título IX. Série.

CDU 316.3 CDD 363.69


301.153
Índice para catálogo sistemático
1. Movimentos sociais 303.484
SEI nº 19.024.038982/2018-08

ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL


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2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Angelo Aparecido Priori (UEM)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Arnaldo Oliveira Souza Júnior (UFPI)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Carlos Ugo Santander Joo (UFG)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Dagmar Manieri (UFT)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Edison Bariani (FCLAR)
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Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional Fauston Negreiros (UFPI)
Três de Febrero – Argentina) Fernando Antonio Gonçalves Alcoforado
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) (Universitat de Barcelona, UB, Espanha)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Giovani José da Silva (UNIFAP)
Élsio José Corá (UFFS) José de Ribamar Sousa Pereira (Exército
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Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Brasileiro/Ministério da Defesa)


Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Kelly Cristina de Souza Prudencio (UFPR)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Liv Rebecca Sovik (UFRJ)
Gloria Fariñas León (Universidade Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
de La Havana – Cuba) Marcos Aurelio Guedes de Oliveira (UFPE)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Maria Schirley Luft (UFRR)
de La Havana – Cuba) Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Ricardo Ferreira Freitas (UERJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP) Renato Jose Pinto Ortiz (UNICAMP)
Josania Portela (UFPI) Rubens Elias da Silva (UFOPA)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS) Sergio Augusto Soares Mattos (UFRB)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO) Silvia Maria Favero Arend (UDESC)
Lourdes Helena da Silva (UFV) Sonia Maria Ferreira Koehler (UNISAL)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US) Suyanne Tolentino de Souza (PUC-PR)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.


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A todas e todos artistas de rua de Londrina.


A todas e todos artistas de rua.
A todas e todos artistas.

A André Gomes de Oliveira.


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SUMÁRIO

Apresentação Um prédio e muitas histórias 11


A pesquisa e seus desdobramentos na cidade 12
O livro 13

Capítulo 1 Um lugar para os estudantes: a construção do prédio da ULE 17


O cenário 19
O enredo 28
Uma personagem dentre tantas 35
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Capítulo 2 Experiências narradas: entrevistas 37


O Zé Lista 39
Otássio Pereira da Silva
Na militância estudantil, a descoberta da vocação 44
Leonardo Henrique dos Santos
A memória da antiga Ules e a felicidade no Canto do Marl 47
Célia Regina de Souza
Fogueira democrática 50
Nei Inácio
"Piquenique no front" – a Ules dos anos 69/70 51
Geraldo Gonçalves de Oliveira Filho, Renato Navarro e Ednéia Consolin Poli
Três dias de shows no HC Festival 61
Beta Liberato
Grêmio estudantil e o grito underground 62
Marcelo Domingues
Ules no Cine Vila Rica 64
Adriana Regina de Jesus
Mostra Zumbi do Palmares 66
Agenor Evangelista
Shows punk, skate, a união e a polícia 68
Luis Eduardo Cientista
Bailes Black e festas na Ules 71
Reinaldo Augusto Barbosa (MC Rei)
Rolando Ideias 73
Diogo Takeo Hendo

Capítulo 3 Da Okupação ao Canto: os tempos do Marl 77


Nas ondas do Marl: os movimentos na cidade de Londrina 78
Tempos da okupação 82
Tempo da fogueira: pertencimento 82
Tempo da água: florescer 91
Tempo do futuro: esperança 101

Sobre os Autores 113


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UM PRÉDIO E MUITAS HISTÓRIAS
Apresentação

Neste livro, contamos a história de um lugar. Um prédio encravado no quadri-


látero central da cidade de Londrina. É uma construção robusta, mas simples e
sem maiores atrativos estéticos. Porém, os estudantes que por lá passaram em
algum momento de suas vidas, ao retornarem, décadas depois, entendem-no de
outra forma e são tomados por um encantamento que provoca um certo mare-
jar no olhar, ora contido com o dorso da mão, ora transbordando em lágrimas
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que teimam em descer pela face, emoldurando um sorriso no qual se lê: voltei.
O olhar percorre cada canto e temos a certeza de que a pessoa não está a ver o
mesmo que nós. Quais são as imagens que ocupam a retina dos seus olhos e que
não nos é possível enxergar?
Os artistas que chegaram por agora também o entendem de outra forma, cui-
dam com esmero e chamam muita gente para vivenciar belos espetáculos com
músicas, pinturas, cantos e danças. Igualmente se identifica o encantamento que
provoca o marejar no olhar quando o ar que se respira está impregnado de arte
e emoldura um sorriso no qual se lê: conseguimos. O olhar percorre todos os
cantos e temos a certeza de que enxergam para muito além do que pode ser vis-
to hoje. Quais são as imagens que ocupam a retina dos olhos dos artistas quando
olham para esse espaço?
Fomos em busca de reconstruir essas cenas para contar a história de um lugar
marcado por muitas vivências e habitado pela esperança estudantil e artística.
Esperança é uma característica de quem tem coragem. Coragem tiveram os es-
tudantes secundaristas da década de 1950, os estudantes que os sucederam e
levaram adiante a bandeira do movimento estudantil em tempos de restrição à
liberdade e os artistas que, no dia 27 de junho de 2016, assopraram a fagulha
de esperança, a qual sempre se manteve acesa nesse lugar construído para ser
a sede da ULE – União Londrinense dos Estudantes – e que, hoje, é o espaço
cultural Canto do Marl – Movimento dos Artistas de Rua de Londrina. Dois
movimentos sociais que, em tempos distintos, habitam o mesmo espaço e im-
primem nele, cada qual a seu tempo e a seu modo, a marca da esperança, aqui
entendida como compromisso com o futuro, como desejo de ação responsável
para as futuras gerações.
Comprometimento com o futuro é uma característica do realista esperançoso,
como nos ensina o mestre Ariano Suassuna. Todas e todos que, de alguma for-
ma, envolveram-se com as ações realizadas nesse prédio ao longo de quase sete
décadas de existência não se confortaram com uma leitura pessimista de mun-
do, que nos paralisa, tampouco se inebriaram tolamente com o otimismo utópi-
co do verbo, que nos ilude. O que se fez foi a ação possível entre o real e o ideal.

11
E foram as ações realizadas no âmbito do que é possível que tornaram esse lugar
belo. Sua beleza não se apresenta a um transeunte desatento: para entendê-lo
belo é preciso parar, entrar e direcionar o olhar para além do que suas velhas
paredes podem mostrar.

A PESQUISA E SEUS DESDOBRAMENTOS NA CIDADE


O projeto Lugar de vivências: preservação das memórias e histórias de um prédio habi-
tado pela esperança estudantil e artística teve por finalidade última a valorização do
patrimônio material e imaterial de Londrina, por meio de uma ação de pesquisa
em torno do prédio situado na Avenida Duque de Caxias, número 3241. Finan-
ciado pelo Programa de Incentivo à Cultura – PROMIC, contou com o apoio
do Grupo de Pesquisa História e Ensino de História, da Universidade Estadual

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de Londrina. Durante o período de doze meses, a partir de investigações em
jornais, em atas da Câmara de Vereadores, de análise de fotografias e entrevistas
com líderes e participantes do movimento estudantil e do movimento artístico,
construímos uma história sobre o prédio pautada, principalmente, nas vivências
narradas pelas pessoas entrevistadas.
A valorização da memória histórica da cidade é, de largo, o ponto central a par-
tir do qual se descreve a importância deste livro. Como e por que preservar as
memórias de um lugar que abrigou e abriga coletivos altamente engajados na
formação histórica, política, social e cultural de nossa cidade? Como levar a his-
tória desse lugar e das pessoas que por ele transitaram e transitam para o maior
número de pessoas? Em que a preservação da memória de um povo pode auxiliar
na construção da identidade do prédio? Como ocupar e utilizar os lugares públi-
cos da cidade de forma a possibilitar o acesso de um maior número de pessoas a
eles? Quais são as memórias de estudantes e artistas sobre esse lugar? Ao escrever
a história do espaço, que desejamos que seja ampliada e/ou reescrita a partir de
outras pesquisas, tangenciamos respostas para essas e outras questões.
Trabalhamos com o conceito de lugar de memória e assumimos a prerrogativa de
que diferentes espaços da cidade considerados – oficialmente, ou não – patrimô-
nios históricos oferecem potencialidade para ampliar os suportes para a pesquisa
no campo cultural, estabelecendo relações entre a História, o Patrimônio, a Edu-
cação e o Turismo. Pesquisas que buscam conhecer esses espaços e criar sobre eles
narrativas a serem consideradas nas histórias contadas sobre os lugares podem
estabelecer vínculos entre os habitantes e a cidade, chamando a atenção para as
questões presentes.
Buscar e valorizar a experiência das pessoas que vivenciaram esse lugar e que, quan-
do não silenciadas, transmitem de boca em boca é uma forma de se trabalhar com
um espaço da cidade de Londrina, intentando conhecer como ocorriam os eventos
cotidianos que se traduziam em experiência comunicável e repassada. A experiência
transmitida de geração em geração nos vincula ao passado e a tudo que lhe perten-
ceu, é como fios na mão de um tecelão, que vão tomando forma conforme vai se
tecendo a história. As experiências trançadas nas convivências sociais assumem uma
12
forma definida e se tornam o patrimônio histórico e cultural de um povo à medida
que são reconhecidas e identificadas como parte do que nos constitui humanos.
Para além da pesquisa documental, saímos em busca de pessoas que vivenciaram
histórias no espaço enquanto era sede do movimento estudantil, a fim de que
compartilhassem suas experiências. Todo o material coletado gerou um acervo
que ficará disponibilizado no Canto do Marl para pesquisas futuras e foi base
para a construção dos seguintes produtos: este livro, um documentário, um cur-
so de formação para professores e uma mostra cultural.
Tais produtos, após o término do projeto, circularão por várias instituições da
cidade de Londrina por meio de oficinas formativas para professores, educado-
res sociais, empresas de turismo, congressos, entre outros, com o objetivo de
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ampliar e de socializar a importância de políticas públicas que valorizem a apro-


priação da cidade por seus habitantes. Ao entender a si mesmo como detentor
dessa memória, o sujeito redimensiona o seu conceito de história, de cidadania
e de cultura. Em última instância, assume o protagonismo dessa ação, o que
provoca um momento enriquecedor para o cenário cultural da cidade.
O investimento em projetos com a mesma tipologia do apresentado nesta obra
evidencia excelente relação custo-benefício em vários aspectos: ao divulgar e
promover a educação patrimonial, auxilia na diminuição de atos de vandalis-
mos contra os bens públicos; ao transformar um lugar abandonado em espaço
cultural, agrega valor imobiliário a seu entorno; ao produzir materiais que serão
utilizados na divulgação da cidade de Londrina, amplia as abordagens de estudo
da cidade no contexto escolar; ao incluir o prédio como lugar de memória da
cidade, expande o roteiro histórico possível sobre Londrina, visto que tem co-
mo característica fundante o aspecto organizacional e propositivo de seu povo.
Na pesquisa, que devolvemos à cidade em forma de livro, o prédio foi compre-
endido como um lugar no qual diferentes movimentos sociais, o estudantil e o
dos artistas, em diferentes tempos, utilizam-no tendo como horizonte de ex-
pectativa uma cidade com forte potência cultural. É sabido por todos, ainda que
não se tenha uma divulgação clara sobre esse tema, que o viés artístico sempre
foi muito importante no movimento estudantil londrinense, por meio dos bailes
de Carnaval, dos concursos literários e dos shows realizados no espaço. A sin-
gularidade de nosso trabalho foi trabalhar a preservação da memória do lugar a
partir do conceito de esperança, que gesta uma ideia de futuro para as pessoas
que se envolveram e se envolvem com o espaço.

O LIVRO
Em meio a processos de construção de “bolhas sociais” e de uma avassaladora
individualização dos espaços, das vidas, a ideia de público se reduz ao convívio
com pessoas que congregam os mesmos princípios, e isso gera a errônea con-
clusão de que somos detentores de verdades que devem ser impostas a todos os
outros. Não somos.
13
Vivenciar os lugares públicos nos possibilita constatar o quanto somos diver-
sos, diferentes e, na atualidade, ser cidadã ou cidadão de uma cidade passa por
aprender a respeitar a pluralidade. Por isso, objetivamos elaborar um livro que
colocasse as pessoas a pensarem sobre as responsabilidades que temos com os
espaços da cidade. Ao construir a narrativa sobre dois momentos distintos – a
construção do prédio e o processo de ocupação –, pensamos nas possibilidades
de articulação entre eles, o que, para nós, concretiza-se pelo desejo de agir em
prol dos aspectos públicos que compõem uma sociedade.
Organizar todos esses quereres na forma de um livro com autoria coletiva não
foi tarefa das mais simples. Vivenciar essa experiência durante todo o desen-
rolar da pesquisa e da feitura do livro alimentou ainda mais em nós a certeza
da necessidade de nos contaminarmos do outro para podermos falar de uma

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cidade de todas e todos. Após muitas reuniões, preferimos organizar o livro de
forma cronológica, mesmo sabendo que desejos e sonhos não se enquadram em
uma métrica temporal. Mas, ao decidirmos, consideramos que seria importante
para o leitor acompanhar os sujeitos e as ações que possibilitaram a perma-
nência e a resistência do prédio ao longo de quase sete décadas. Fizemo-lo de
uma forma que não se faz necessária uma leitura sequencial, então comece do
capítulo que desejar.
No primeiro capítulo, trazemos a história da construção do prédio, tendo por
fonte, principalmente, jornais, atas da Câmara Municipal de Londrina e entre-
vistas. Optamos por construir uma narrativa que mescla o desejo de se fazer
e o que efetivamente foi feito. Assim sendo, convidamos o leitor a visitar um
prédio que nunca foi construído, mas que foi avidamente vivenciado pelas pes-
soas que se envolveram no processo de edificação do que foi possível naquele
contexto. Agradecemos às pessoas que se dispuseram a colaborar com nossa
pesquisa, contando-nos sobre as delícias e as agruras de ser estudante na Lon-
drina das décadas de 1950 e 1960. Em especial, registramos aqui um agrade-
cimento ao Sr. Otássio Pereira da Silva e ao Sr. Leonardo Henrique dos Santos,
que não mediram esforços para nos auxiliarem e nos orientarem na pesquisa
por informações relacionadas ao período.
Na segunda parte do livro, a condução das narrativas fica por conta das 14
personagens entrevistadas. Somos presenteados com narrativas singulares que
traduzem as mais diversas experiências vivenciadas nesse lugar quando era sede
do movimento estudantil. Agradecemos a todas e a todos que aceitaram nosso
convite e revisitaram o prédio para concederem as entrevistas. Percorrer o lu-
gar por meio das memórias narradas propiciou momentos mágicos para todos
os envolvidos. Selecionamos trechos de cada entrevista nos quais se aborda a
importância que a Ules teve na vida do entrevistado: as vivências e os projetos
culturais, os eventos, as exposições, as festas, os shows, entre outros momentos
dos quais participaram, além de casos inusitados que gostariam de colocar em
destaque e como receberam a notícia da ocupação.

14
No terceiro capítulo, que encerra a obra e também é um marco de reinício para
o espaço cultural Canto do Marl, contamos como e por que o prédio foi ocu-
pado pelos artistas do Movimento de Artistas de Rua de Londrina e, a partir de
então, o que foi feito. Os fatos são narrados por tempos: do fogo, da água e do
futuro. Agradecemos a todas e a todos que colaboraram concedendo-nos entre-
vistas e por aceitarem a proposta da construção de uma escrita coletiva. Para
além dos nomes dos prefeitos, não há referência em específico a outros atores,
primeiramente, porque correríamos o risco de esquecer pessoas que foram fun-
damentais na construção desta história e, segundo, porque temos certeza de que
ela só se fez possível pela força do coletivo.
Optamos por escrever um livro com certa liberdade quanto a normas e padro-
nizações. Para facilitar a leitura, as notas e as referências foram colocadas no
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rodapé das páginas e minimizamos ao máximo a inserção de citações em meio


ao texto. Quanto ao uso de expressões, alguns esclarecimentos se fazem neces-
sários: o leitor encontrará as siglas ULE e Ules no texto pois, no início dos anos
1960, no lugar de União Londrinense de Estudantes passou-se a usar a nomen-
clatura União Londrinense de Estudantes Secundaristas. Em algumas passagens
do livro, a palavra “ocupação” é escrita com a letra “K” para chamar a atenção
para movimentos que lutam pela criação de espaços culturais e em referência
ao movimento sociocultural “Okupa”, que defende a utilização dos espaços pú-
blicos abandonados para fins sociais, culturais e políticos.
Acreditamos que as histórias contadas neste livro podem contribuir para a
construção de uma cidade mais humana, na qual todas e todos encontrem es-
paços em que as ações realizadas sejam convidativas para se exercitar o estar
juntos. Por fim, e para se ter um bom começo nesta história, é preciso ter es-
perança, transitar em direção ao futuro que queremos para esse espaço, conju-
gando o verbo “esperançar”.

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UM LUGAR PARA OS ESTUDANTES:
a construção do prédio da ULE
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Capítulo um

[...] a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que


não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva
e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam: ela se ali-
menta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou
simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções1.

Quando, próximo ao meio-dia de 27 de junho de 2016, o Movimento dos Ar-


tistas de Rua de Londrina (Marl) ocupa o prédio que durante anos abrigou a
União Londrinense de Estudantes Secundaristas (Ules). O espaço desse pré-
dio-patrimônio se ressignifica numa junção da memória e da história, seja dos
elementos que o constituem como também das vivências daqueles que por ali
transitaram. Juntar os fragmentos documentais e praticar uma reconstrução de
tempos que não existem mais é escrever uma história que traz à tona incomple-
tudes de momentos e de tensões, os quais serão sempre lacunares. Quando, ao
mesmo tempo, aos documentos se une a memória, a narrativa se complementa
e abre outras tantas relações a serem estabelecidas sobre a história do prédio
situado à Avenida Duque de Caxias, número 3241.
Ao serem estabelecidas essas relações, a teia de acontecimentos se desenha aos
poucos. Tempo, espaço, conquistas, direitos, anseios e atuações fornecem con-
tornos para um lugar de esperança, aqui compreendido no sentido de compro-
metimento com o futuro. Ter esperança é fazer uma aposta para o futuro, é “[...]
estar pronto a todo momento para aquilo que ainda não nasceu, todavia não se
desesperar se não ocorrer nascimento algum durante nossa existência”2. Estu-

1
NORA, Pierre. Entre memórias e his- 2
FROMM, Erich. A revolução da
tória: a problemática dos lugares. Proj. esperança. Rio de Janeiro: Zahar
História, São Paulo, v. 10, p. 9, 1993. Editores, 1975. p. 27.

17
dantes da década de 1950 e artistas do ano de 2016, cada um com as marcas
de seu tempo, demonstram possuir o que Erich Fromm define como “esperança
forte”, a qual se concretiza na capacidade daqueles que “[...] veem e apreciam
todos os sinais da nova vida e estão prontos a todo instante para ajudar no nas-
cimento daquilo que está pronto para nascer”3.
E o que está para nascer, para estudantes da década de 1950, é um lugar para
ser a Casa do Estudante de Londrina; para os artistas de 2016, um lugar para
ser um espaço cultural sede do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina. A
ideia de retomar o lugar para movimentação cultural permanece no tempo em
meio a tantas transformações, visto que a Londrina de 2016 se difere significa-
tivamente da cidade de 1950. O lugar é, conforme Yi-Fu Tuan, “[...] um mundo
de significado organizado. É essencialmente um conceito estático”4, visto que,

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em meio aos constantes processos de mudanças do mundo, é preciso ter can-
tos de parada para que os espaços vazios se constituam lugares. Esse processo
demora tempo e, ao considerar os ditames estabelecidos pelo modelo social e
econômico em vigor na maior parte dos países do mundo, está cada vez mais
difícil “criar raízes”, condição basilar para a constituição de um lugar5.
Em meio ao movimento da cidade, do passado e do presente, tem-se, em torno
do prédio, um cenário habitado por desejos e intencionalidades de se fazer um
lugar permanente no cenário social e cultural londrinense. Na década de 1950,
a luta se estruturava em torno da doação do terreno para os estudantes viabi-
lizarem a construção do prédio; em 2016, a luta permanece para que o prédio
prossiga com a função social plantada pelos seus idealizadores e bem definida
pelo Prefeito Hugo Cabral, na carta que envia à Câmara de Vereadores em maio
de 19516: “[...] ser um centro de irradiação cultural das gerações futuras de
nossa terra”. A robustez e a audácia identificadas no projeto inicial e, também,
no processo de ocupação fomentam a curiosidade de adentrar esse prédio com
o intento de reconhecer, de recolher e de interpretar os fragmentos para dar
sentido à continuidade da existência desse lugar de memória7, registro inques-
tionável da organização dos que têm esperança.
Neste capítulo, contamos a história da construção desse lugar habitado pela
esperança estudantil e artística. As linhas que tecem essa história foram encon-
tradas em meio a documentos institucionais, principalmente as atas e as Leis
da Câmara de Vereadores da cidade de Londrina; o jornal Folha de Londrina; o
impresso O Município; e as vozes das pessoas entrevistadas.

3
FROMM, op. cit., p. 27. 5
TUAN, op. cit., p. 199-205.
⁴ TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. A Perspectiva 6
Anexo à Lei nº 110 (1951).
da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. p. 198. 7
NORA, op. cit.

18
Escrever a história da construção e da ocupação desse prédio requer percorrer
duas décadas acompanhando os movimentos da cidade em torno das questões
relacionadas à cultura e à educação. Na década de 1950, Londrina contava com
milhares de estudantes, cerca de 6.000 (seis mil)8, muitos vinham de fora para
cursar Direito, Filosofia e Odontologia. Direta ou indiretamente, era para esses
estudantes que o espaço público se tornaria um lugar de acolhimento, de rela-
ções e, consequentemente, de construção de memórias, um lugar de vivências
da cidade, o que perdura em sua edificação desde então.
Em sua finalidade, o prédio passou por configurações diferentes, o que antes era
a Casa do Estudante é, hoje, um espaço cultural, o Canto do Marl, que, por um
contexto de muita luta e resistência, faz-se um dos braços que acolhem, com-
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partilham e produzem cultura na cidade. Trata-se de um cenário em que atuam


personagens que, em meio ao improviso, iluminam, focam, criam figurinos para
cada novo espetáculo, contam histórias, ministram oficinas para crianças e jo-
vens das escolas e fazem as mais diversas atividades para movimentar o cotidia-
no, restabelecendo essa boa casa em pé e em funcionamento.
São muitos ensaios e apuros guiados por uma gestão compartilhada entre seus
membros, que seguem por um mesmo roteiro, resistem e desejam a vivência e
a sensação de presenciarem um ato final a cada nova luta, com aplausos e espe-
rança para novas temporadas, nesse palco de partidas e, também, de chegadas.

O CENÁRIO
O período que abrange a construção da Casa do Estudante é marcado por di-
ferentes cenários quanto às histórias política e econômica, locais e nacionais.
Na década de 1950, são impostos à população períodos de Estado de Sítio no
país, que perduram até fevereiro de 1956. No governo do presidente Juscelino
Kubitschek (1956-1961), o aspecto desenvolvimentista assume o protagonis-
mo na pauta nacional. Em Londrina, registra-se o movimento crescente de
desembarques na plataforma ferroviária, a construção da fábrica de leite e de
outros produtos, a expansão da Ferrovia Central do Paraná9 e a ampliação do
aeroporto da cidade10. O viés educacional e cultural aparece, também, como um
indicativo do pensamento desenvolvimentista, visto que havia uma luta pela
ampliação das escolas básicas, pela instalação da Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras e pelo reconhecimento federal da Faculdade de Direito em 196011.

8
O número de estudantes é indicado no 9
Matéria da Folha de
documento anexo ao Projeto de Lei nº 7/51, Londrina, 26 jan. 1956.
correspondente à Lei nº 110, de 1951 – CML. 10
Matéria da Folha de
Assinado pelo então Prefeito de Londrina, Londrina, 1 abr. 1956.
Hugo Cabral, que solicita à Câmara mereci- 11
Matéria da Folha de
da atenção à causa dos estudantes. Londrina, 6 jan. 1956.

19
A história da construção do prédio remonta ao início da década de 1950. No
mês de maio de 1951, “[...] o terreno de 750 metros quadrados, de proprie-
dade do município de Londrina, constante na data nº 4, quadra 30, da planta
geral da cidade”12 foi doado para a ULE. Nesse mesmo ano, em dezembro, a
“simpática associação estudantil”, conforme palavras da imprensa municipal,
ganha também nova diretoria: Presidente Bolivar Aragão; Vice-presidente Rui
Silva; 1º Secretário Pedro Freitas; 1º Tesoureiro Waldir Canizin; 2º Tesou-
reiro Neyde de Toledo; Orador Paulo Pinheiro e 2º Orador Cacilda Passos;
Conselho Deliberativo: Farid Libos, Antenor Romanholo, Dinalva Scaff e Na-
dir Penteado. Pela “memória do papel”, o impresso O Município13 demonstra
que os estudantes recebiam da imprensa local palavras de incentivo quanto
a sua organização política. Observa-se, nessa configuração, a participação de

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homens e mulheres na diretoria. Uma grande festa no Grêmio Literário e Re-
creativo Londrinense ocorre para ser comemorada a posse.
Os jovens estudantes londrinenses almejavam ter um lugar muito semelhante
à Casa do Estudante de Curitiba. No texto da Lei nº 110, de 1951, registra-se
que já se considerava Londrina um grande centro educacional: “[...] eleva-se a
uns 6 mil o número de estudantes que, em nosso município, frequentam cursos
primários, secundários e especializados” e projeta-se que em “[...] um futuro
próximo haverão [sic] de transformar Londrina no segundo centro universi-
tário do Paraná”. Ao abordar esse período, Otássio Pereira da Silva, presidente
da ULE no final da década de 1950, relatou por meio de entrevista, em 2018,
que os jovens londrinenses ansiavam também pela universidade. Sendo assim,
os que viessem de fora para estudar precisariam de um lugar para se alojarem,
com condições de lazer e com espaços para estudo.
Ainda sem um lugar próprio, a União Londrinense dos Estudantes realizava
suas atividades reunindo-se pela cidade, muitas vezes no Grupo Escolar Hugo
Simas, movimentando o encontro de estudantes, promovendo eventos culturais
e lutando por um espaço que a representasse. Sempre em diálogo com a União
Paranaense dos Estudantes (UPE), o movimento estudantil londrinense mobili-
zava-se a fim de materializar o projeto idealizado. Subentende-se que, a princí-
pio, a construção da Casa do Estudante deveria ficar a cargo da própria entidade,
mediante subvenções do executivo municipal e de ações promovidas pela ULE.

12
Texto da Lei nº 110, de 19 de maio de 1951 – Doação do terre-
no destinado à construção da Casa do Estudante de Londrina.
13
O Município, n. 64, ano 2, 6 dez. 1951.

20
Em Curitiba, o movimento estudantil – via União Paranaense de Estudan-
tes Secundaristas (Upes) –, aparentemente, mantinha laços estreitos com a
política e conquistou seu espaço por ações diretas com o governo do estado,
na época, Moysés Lupion e sua esposa Hermínia. O grupo era presidido por
Oséas de Castro Neves, acadêmico de medicina que, pessoalmente, apresen-
tou seu desejo à primeira dama de que os estudantes que viessem de fora
tivessem um lugar de acolhimento.
Na capital, a princípio no ano de 1948, a casa localizava-se em um imóvel
alugado, a primeira Casa do Estudante Universitário (CEU). No entanto, foi a
segunda casa, com obra iniciada em 1949 e concluída em 1956, que inspirou
os estudantes londrinenses a idealizarem a sua própria Casa do Estudante. Na
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inauguração do CEU, o presidente Juscelino Kubitschek esteve presente, e a


casa passou a ser frequentada pela sociedade curitibana, o que demonstra qual
era o perfil dos estudantes e dos membros das Upes naquela época.
A Casa do Estudante do Estado do Paraná está em pleno funcionamento nos
dias atuais e em seu site apresenta-se um histórico sobre as ações realizadas
no local. As características da Casa na década de 1950 indicam que se tra-
tava de um lugar para abrigar estudantes homens14, fato importante de ser
registrado, para demonstrar que, também nos meios estudantis, a conquista
do espaço pelas mulheres demandou um movimento de luta organizado15.
A planta da Casa do Estudante de Londrina foi inspirada no modelo de Curi-
tiba, um convite para voltar no tempo e imaginar quais eram os sonhos e os
planos dos jovens membros da ULE. Com a doação do terreno efetivada no
ano de 1951, tem-se um lugar para a construção do prédio. Para a materia-
lização do espaço, ações ligadas ao Governo Municipal – via doações oficiais
em orçamentos da Prefeitura – são localizadas nos relatórios do executivo a
partir do ano de 1952, com valores equivalentes às doações feitas ao Colégio
Mãe de Deus e ao Conservatório Musical. Ao longo da década de 1950, o
imaginário de um lugar físico ia se aproximando. A planta tomou forma no
papel pelas mãos do engenheiro civil Newton Pietraroia16, em 1956, quando
estava na presidência da ULE Lincoln Taques Araújo17.

14
Atualmente, a Casa atende 16
Requerimento nº 6535/56 para a Prefeitura
estudantes que não residem em Municipal de Londrina, 7 nov. 1956.
Curitiba (ver: <www.ceupr.com.br>). 17
Segundo as reportagens da Folha de Londrina,
15
Em 1954, as mulheres criaram a CEUC de outubro de 1956, Lincoln aparece como presi-
– Casa da Estudante Universitária de dente da ULE e secretário da Comissão de Cons-
Curitiba (ver: <www.ceupr.com.br>). trução da Casa do Estudante.

21
Analisar essa planta por cada dobra do papel que se abre é um convite para ima-
ginar aquilo que está pronto para nascer, como sinais de vida nova alimentados
pela esperança forte de muitos sujeitos envolvidos na conquista desse espaço.
Entre, escolha seu lugar e seja bem-vindo!

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Fachada da ULE.
Planta de 1956.

Arquivo da Prefeitura Municipal de


Londrina/Secretaria de Obras

Os 750 metros localizados em meio à quadra 30 já não se tratavam apenas


de metros quadrados, a esperança projetada no papel formal da planta de
1956 abre alas para um bocado de sonhos. E para onde nos transportam?
Para um salão de baile, camarim, bar, hall para as moças, hall para os rapa-
zes, pista de dança, salão de leitura, salão nobre, biblioteca, sala de jogos,
restaurante, salas administrativas ou palco? Sim, há palco! Contracenar num
imaginário, noutro tempo histórico – pelos traços da engenharia –, pode
permitir, enquanto leitores/espectadores, sensações de dimensões espacial e
temporal que possibilitam estabelecer correspondências e identificar signi-
ficados ao que foi projetado.

22
Quem fala de um espaço, de um lugar de história e de memória escolhe e se-
leciona objetos de análise. Sejam quais forem, trarão à cena atos que serão um
convite ao imaginário do lugar, dos ruídos, dos tons de vozes e das relações
nesse mesmo espaço. Paredes, teto, chão e assentos existem para que as relações
habitem o lugar delimitado pelas normas arquitetônicas e, nesse quadrante, o
lugar se torna palco, em que atuam sujeitos sincronizados no movimento, no
teor da cena e na forma que o espaço os direciona.
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Planta da ULE. Autoria: Empresa Construtora


Mauá. Pietraroia e Souza Coelho LTDA. 1956.

Arquivo da Prefeitura Municipal de


Londrina/Secretaria de Obras

Pela planta, ao centro do terreno, há um corredor de proporção aproximada


a 1/4 de sua largura, ladeado por duas “lojas” de pouco mais de 60m² cada
uma e que, de acordo com a fala do Sr. Otássio, deveriam ser os dormitórios
dos estudantes. Em meio ao corredor, uma rampa leva ao primeiro pavimen-
to (térreo) e se depara com a porta principal, dando abertura para um lugar
de tantas relações que estariam por vir. Ao lado esquerdo, hall para moças
e hall para rapazes – separados, bem como os banheiros. Paralelamente, o
bar. Ao fundo, ocupando quase toda a largura do terreno, o salão de baile e
a pista de dança, com cerca de 300m² de um amplo cenário para os futuros
festejos, encontros e desencontros. O que não poderia faltar também estava

23
ao fundo, em formato de meia lua: o palco, como ponto central e possível de ser
visto desde a rampa de entrada, cercado em seus cantos posteriores pelo camarim
e pelo almoxarifado. O palco era um item obrigatório, pois, segundo as pessoas
entrevistadas, os jovens, estudantes-artistas, tocavam, representavam18, cantavam
nas festas e formavam as bandas.
Os sonhos não param no térreo. Ao subir os degraus, encontra-se um ambiente da
mesma largura do corredor na entrada do terreno, sendo parte dele circulação, a
outra, discoteca. Ao lado esquerdo, com vistas para a rua, uma ampla sala de leitura
com uma biblioteca aos fundos. Do outro lado, separados pela discoteca, o salão
nobre, o qual tem grande janela para a rua e proporções maiores que a própria sala
de leitura. O banheiro das moças faz parede com o salão nobre, enquanto o dos

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rapazes está na parte dos fundos desse pavimento, localizado entre as repartições da
Secretaria e da Tesouraria, tendo saída para uma área de circulação. O banheiro dos
rapazes, muito próximo à área administrativa, traz uma relação com o perfil mascu-
lino que ocupava os cargos da diretoria nesses primeiros anos. Ou seja, esse banhei-
ro era o mais próximo ao local de administração da casa, mais prático aos rapazes.
No terceiro pavimento, as escadas levam a um grande salão de jogos, com mais
de 80m², de frente para a rua. Ao lado e na largura de aproximadamente 1/3
de toda a frente, um restaurante um pouco mais fundo que o salão de jogos,
cerca de 60m². Ambos os espaços são ligados por uma área de circulação. Se-
guindo para o fundo, ao lado esquerdo, banheiros, agora um ao lado do outro
e menores que os demais. Aos fundos e na sequência da esquerda para a direi-
ta, formando um curto “L”: copa, cozinha e despensa em proporções menores.
Materializar o constante nessa planta impulsionou os estudantes a promoverem
ações, bailes, campanhas e listas para verem o sonho realizado.
Contudo, entre o que se sonhou ser a Casa do Estudante de Londrina e o que se
efetivou no plano material há significativa distância. O processo de construção
do prédio foi marcado pelas dificuldades de se conseguir os recursos financeiros
adequados para a envergadura do projeto. Como lembra Michel de Certeau19, a
cidade oferece capacidade de conceber, e não conceber, de construir, e não cons-
truir espaços, estabelecendo, a partir de um número finito de propriedades está-
veis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra, um lugar organizado e combinado
por gestão e eliminação. Logo, temos de constatar que: se, no discurso, a cidade
é baliza ou marco totalizador para as estratégias socioeconômicas e políticas, a
vida urbana traz à tona o que o projeto urbanístico exclui. A linguagem do poder

18
Informações sobre as atividades co-
letadas na entrevista com o Sr. Otássio
Pereira da Silva, em março de 2018.
19
CERTEAU, Michel. A invenção do
cotidiano: 1 Artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 2013.
24
“se urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios e, diver-
sas vezes, fora dos projetos “oficiais”, graças às astúcias de seus moradores: nas
práticas e nas vivências cotidianas, nas relações diárias com a cidade.
Ainda que não tenha existido, transitar pelo prédio projetado é uma forma de
deixar registrados o pensamento e a ousadia que marcaram o movimento estu-
dantil londrinense do período. A história da construção do prédio é composta
por vários episódios, um deles é a transferência legal do terreno para o Governo
do Estado do Paraná, que ocorreu pela Lei nº 362, de 1957. Essa transferência
fez-se necessária, pois, embora houvesse as subvenções anuais da Prefeitura e as
ações promovidas pelos estudantes, a ULE não possuía disponibilidade financei-
ra suficiente para iniciar as obras de construção do edifício.
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A partir de 1957, o auxílio para a concretização da Casa do Estudante de Lon-


drina deveria vir do Governo do Estado. Em ata registrada em 06 de março de
1957, o vereador Cláudio Curotto argumentou que o projeto em debate “[...] era
um daqueles que merece a aprovação da Casa, pois tem por fim a doação de um
terreno onde deverá ser construída, pelo Governo Estadual, a Sede da União Lon-
drinense dos Estudantes, que muito benefício trará aos estudantes londrinenses”.
Assim, o terreno que fora doado para a ULE no ano de 1951 passa para a esfera
estatal, com a condição de início das obras em 12 meses e de conclusão no prazo
de 30 meses. Caso contrário, “[...] o imóvel reverterá ao seu estado primitivo, in-
dependente de qualquer interpelação judicial”20.
No entanto, a construção do prédio via Governo do Estado não se efetivou. É
nesse contexto que os estudantes da época, liderados pelo jovem Otássio Pereira
da Silva, organizaram-se para concretizar a construção do lugar que viria a ser
a sede da ULE. Dessa forma, a União se fez ouvida na defesa de seus interesses,
bem como na defesa dos interesses coletivos, pois, nos registros encontrados
nas atas das sessões da Casa Legislativa, os representantes da ULE sempre fala-
ram em nome de um coletivo e se posicionaram sobre diversos problemas exis-
tentes na cidade, como, por exemplo, ao tratarem a questão do lixo, em 1957.
Esse estado constante de mobilização foi fundamental para a construção de uma
pronta resposta, quando, em 1959, foi colocada em votação na Assembleia Esta-
dual a liberação da verba para a construção da Casa do Estudante de Londrina.
Contudo, essa votação não obteve votos suficientes para a aprovação. Como o
deputado de Londrina Amauri Oliveira e Silva votou contra a liberação dos re-
cursos, a classe estudantil promoveu uma manifestação contrária ao deputado,

20
Lei nº 362, de 1957, Londrina-PR.

25
dramatizando um “enterro simbólico” dele. Em sessão da Câmara Municipal do
dia 05 de junho de 1959, tem-se, na ata, o registro da fala do vereador Claudio
Silva em defesa do deputado Amauri, explicando que a verba destinada à ULE
se trata de um “orçamento não coerente” e que o deputado viria pessoalmente
a Londrina explicar, junto aos estudantes, o seu posicionamento. Opositor ao
governador do estado da época, Moisés Lupion, Amauri relata que as condutas
administrativas do governante estavam dilapidando o patrimônio do estado e
que esse, sim, “[...] merecia ser enterrado, diariamente”. Fato posto é que ficaria
estabelecida a oposição entre o dirigente da ULE, Otássio Pereira, e o deputado
Amauri Oliveira e Silva, ainda que este último tenha assumido, posteriormente,
que tomaria atitudes legais para atender às necessidades da ULE.

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Estabelecida a oposição entre a ULE e parte do Governo do Estado, após o
enterro simbólico do deputado Amauri Silva, os estudantes prosseguiram pro-
movendo ações e negociações a fim de viabilizarem os recursos necessários à
construção do prédio. Leonardo Henrique dos Santos, secretário geral da ULE na
gestão de Otássio Pereira (1959 e 1960), conta que este passou a ser conhecido
na cidade como “Zé Lista”, apelido dado pelos companheiros por conta dos cons-
tantes pedidos e campanhas impetrados pelo dirigente estudantil na busca por
recursos. Ele não perdia uma oportunidade, nos eventos da cidade, para “passar
uma lista” pedindo apoio à construção da Casa do Estudante.
Aos poucos recursos arregimentados pelos estudantes junto à comunidade lon-
drinense somou-se a verba repassada pelo governo estadual, fruto das inter-
mediações realizadas entre Otássio Pereira e o governo estadual, via deputado
Zaqueu de Melo, opositor do deputado Amauri de Oliveira e Silva, viabilizando
o início da construção do prédio.
Dias antes do início da construção, a diretoria da ULE, em comitiva, fez uma
visita ao terreno. O evento foi registrado por um transeunte a pedido de Leo-
nardo Henrique dos Santos, que o chama e entrega-lhe sua câmera fotográfica.
A foto foi feita em frente ao terreno e, segundo Leonardo, estão na foto, “[...]
a partir da esquerda: meu irmão Lourival Henrique dos Santos, Délio Nunes
César21, Artur Luiz Coelho e, no centro, segurando a planta do prédio, o gran-
dalhão Otássio; à direita dele Natal Frasson, trajando farda do Tiro de Guerra,
Joaquim Garcia Campos, um rapaz cujo nome não me recordo e eu; em segundo
plano, entre Frasson e Campos, Américo Guelere; e ao lado de Campos o engra-
vatado William Oldemburgo”.

21
Em 1968, Délio César participou ativamente
da criação do Festival Universitário de Londri-
na, que se transformaria, posteriormente, no
Festival Internacional de Londrina (Filo).

26
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Diretoria da ULE em frente ao terreno na


então Rua Duque de Caxias no ano de 1959.

Acervo pessoal de Leonardo Henrique dos Santos

27
A construção do prédio iniciou-se, então, no ano de 1959 e, conforme relata
Otássio, no primeiro pavimento foi erguida rapidamente a parte referente ao
salão e ao refeitório. Ao término dessa etapa, o entrevistado registra que tudo
estava em perfeitas condições para uso: tinha energia elétrica, telefone, água e
banheiros funcionando. Não se tem uma data ou um evento definitório quan-
to à inauguração, pois conforme os espaços se erguiam iam sendo utilizados e
organizados, mas, a considerar a data de 1959, pode-se concluir que o prédio
tem, em 2019, 60 anos, o que o posiciona como um dos prédios públicos mais
antigos da cidade.
Quem sucedeu Otássio Pereira na presidência da ULE foi Ivair Lúcio Soares,
que foi reeleito, segundo Leonardo Henrique dos Santos, uma ou duas vezes.

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Respondem também pela entidade, nos anos 1960, João Marmo Martins, José
Antonio Del Ciel e Romeu Curi, ainda de acordo com Leonardo. Infere-se que,
devido às mudanças sociais e administrativas, mudaram também as necessida-
des quanto à sede da ULE. Uma nova planta do ano de 1964 mostra outra con-
figuração para o prédio, a partir do que já estava construído. Dessa vez, a ideia
eram os pavimentos térreos e o pavimento superior com um número maior de
salas isoladas a serem implantadas, diminuindo consideravelmente as áreas de
convívio social, incluindo o grande salão projetado a princípio, que daria lugar
a salas para fins como: departamento de esporte e outros departamentos, di-
retoria, reuniões e secretaria. O pavimento superior seguiria o mesmo padrão.
Um perfil mais administrativo seria implantado no prédio. A permanência entre
uma planta e outra se dava pela sala de estudos e pela biblioteca. No entanto,
nem todas essas alterações foram realizadas.

O ENREDO
Apresentar em sucessão os acontecimentos que vêm dando corpo a essa his-
tória é, também, deixar à mostra uma cadeia de estratégias e de peças de um
quebra-cabeça que, aos poucos, vai se montando. Elementos do passado são
reunidos no presente e representam os caminhos percorridos, os alcances, as
derrotas e, sobretudo, possibilitam identificar as marcas que as vivências de
cada grupo deixou impressas no prédio. Todos os que voltaram a ele para con-
ceder a entrevista – após longos minutos olhando para o teto, para os lados,
adentrando calmamente, passo a passo, o que outrora fora a sede da ULE –
verbalizaram sobre o quanto o que viveram naquele lugar marcou para sempre
as suas trajetórias de vida. Compor esse espetáculo em forma de livro é dia-
logar com o que os arquivos nos apresentam por meio de atas, leis, relatórios,
reportagens e entrevistas.
Ao entrelaçar as memórias de alguns personagens entrevistados, foi possível
conhecer o que viveram no espaço do prédio, tornando-o um lugar de memória

28
que, segundo Nora22, emerge quando um grupo, com suas próprias histórias, se-
leciona o que quer narrar, conferindo significância aos elementos e às lembranças
e selecionando o legado a ser passado para gerações futuras. A história apresenta
fatos documentados, ora desconcertantes, ora libertadores, reconstruindo o que
é parte de uma experiência coletiva. Memória e história dialogam nessa trama.
A municipalidade, em seus discursos registrados nos documentos, sempre re-
conheceu a importância de garantir um lugar aos estudantes, ainda que nem
sempre se dispusesse a atuar efetivamente em prol de tais lugares. Olhando para
o contexto dos anos de 1950 e de 1960, os estudantes aos quais nos referimos
eram aqueles que representavam, em grande parte, a elite londrinense, frequen-
tadores dos grupos escolares da cidade. No contexto de meados do século XX,
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a classe estudantil a qual se referiam as falas do prefeito Hugo Cabral e dos de-
mais representantes na Câmara diz respeito a um grupo de jovens que é parte
de uma cidade com cerca de 90 mil habitantes, sendo que pouco mais de sua
metade encontra-se na zona urbana.
O ano da construção do prédio da ULE, 1959, foi também o ano no qual Lon-
drina comemorou o seu Jubileu de Prata. Segundo Arias Neto, tratava-se de um
momento de passagem, no qual se identificou a necessidade de inventar tradi-
ções. “Nesse sentido, os homens buscaram na história da cidade os elementos
que cunhassem sua própria identidade”23. As festividades se desenrolavam em
meio à crise da cafeicultura, atividade econômica que possibilitou o rápido cres-
cimento da cidade de Londrina. Com o declínio da cultura cafeeira, o êxodo rural
foi impactante para a organização da cidade e gerou muitos problemas urbanos24.
A favelização, o aumento populacional, a inversão do plano urbanístico da cidade
no que se refere à população fizeram com que o perfil dos estudantes a compor
a ULE também se alterasse ao longo das décadas de 1950 e 1960.
As leis orçamentárias de cada ano, localizadas nos arquivos da Câmara Munici-
pal, apontam que as instituições particulares que tinham auxílio financeiro mu-
nicipal – como o Colégio Londrinense, o Colégio Nossa Senhora de Fátima, o
Colégio Coração de Jesus, o Seminário Vicente Palotti, o Colégio Mãe de Deus e
o Instituto Filadélfia – eram subvencionadas pelo município mediante o ofereci-
mento de 10 bolsas de estudos a alunos pobres, que eram então distribuídas pe-
la municipalidade. O próprio município tinha uma verba específica para bolsas
de estudo para o curso secundário, visto que os grupos escolares não atendiam
toda a população em idade escolar.
22
NORA, op. cit.
23
ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: repre-
sentações da política em Londrina, 1930/1975.
2. ed. Londrina: EDUEL, 2008. p. 155.
24
ARIAS NETO, op. cit.

29
Os alunos que adentravam os colégios particulares via concessão de bolsas de
estudos inseriam-se no movimento estudantil, ocasionando mudanças quanto à
inserção social do movimento na cidade e, além disso, em relação às pautas rei-
vindicatórias. As lutas desse grupo de jovens, possivelmente, fomentaram outras
conquistas para a juventude estudantil. Um exemplo da ampliação da pauta e do
envolvimento da ULE com os interesses coletivos se deu no dia 14 de março de
1960, quando reclamaram em protesto na Câmara sobre a localização da usi-
na de reaproveitamento de lixo, a qual estava prejudicando toda a comunidade
com maus odores. Era um grupo ativo, que representava seus interesses e os da
comunidade em geral. Jovens que se apresentavam envolvidos política, social e
culturalmente no contexto da cidade e que, aos poucos, conquistaram seu espa-
ço e seu lugar ao longo dos anos seguintes. A representatividade dos estudantes

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e do movimento estudantil ganhou formas diferentes, em consonância com as
circunstâncias da cidade, do estado e do país.
No que tange ao prédio da Casa do Estudante, entende-se que cumpriu, durante
as suas seis décadas de existência, finalidades muito distintas. Fato posto é que o
prédio resistiu junto ao movimento acelerado da modificação da paisagem urba-
na, o que o torna um patrimônio material da cidade de Londrina. Lugar repleto
de memórias, de lutas, de cenas diversas da manifestação estudantil que inter-
feriram nos contornos sociais e culturais da cidade. Estudantes de ontem que,
por meio de uma ponte no tempo, unem-se aos estudantes e artistas de hoje
para prosseguirem, conferindo significados e ocupando o prédio com memórias,
fazendo história entrelaçados pela esperança, pela arte e pela luta.
A preservação de lugares de memória possibilita convidar os sujeitos a refleti-
rem sobre eles mesmos a partir do lugar que cada um habita e em que transita
dentro do espaço da cidade. “Os lugares de memória só vivem de sua aptidão
para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado
imprevisível de suas ramificações”25. Esse exercício de olhar ao seu redor possi-
bilita compreender as razões que cada habitante da cidade tem para se inserir,
ou não, nos espaços de convívio, principalmente, nos espaços públicos de con-
vívio. Em última instância, cada um de nós é a cidade. Assim, o contato com os
patrimônios materiais da cidade permite adentrar a história e desencadeia no
sujeito reações de significâncias diversas. Foi o que ocorreu quando os sujeitos
convidados para serem entrevistados adentraram o prédio muitos anos depois.
Sem essa experiência de estar, ver ou perceber o lugar e o espaço de memória
em questão, os gatilhos acionados seriam menos potentes e muitos significados
ficariam perdidos no tempo.

25
NORA, op. cit., p. 22.

30
A preservação dos patrimônios materiais históricos das cidades acontece, tam-
bém, quando um olhar investigativo surge em suas direções, caso desta pesqui-
sa, cujos resultados se apresentam em forma de livro. Uma narrativa histórica
seleciona fatos, evidencia-os e, mesmo que de forma parcelar, faz conhecido
um fator que significou a cidade. Sem esse exercício de olhar além do tempo,
os lugares de memória (como o prédio da Ules) se perdem na deterioração da
matéria e no esquecimento, características comuns ao tempo veloz a partir do
qual se organiza a sociedade contemporânea.
Ao voltarmos no tempo, identificou-se que grande parte do que foi idealizado
na planta de 1956 não foi edificada. Era um sonho ousado, muito semelhante às
edificações da Londrina progressista. Dos três pavimentos projetados, construiu-
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-se parte do primeiro: palco e salão de baile. O viés cultural sempre foi um braço
forte da ULE. No ano de 1952, houve uma de suas atividades intituladas no jornal
como “reunião cultural e artística”, realizada no colégio Hugo Simas, uma institui-
ção de ensino da cidade. Nessa ocasião, “números musicais” foram apresentados.
No mesmo ano, o orçamento oficial do executivo que passa pela Câmara Muni-
cipal mostrou, pela primeira vez, um valor para despesas para a construção da
Casa do Estudante, no item denominado “Educação Pública”, com o subtítulo
“Órgãos Culturais”. Essa dotação orçamentária continuou acontecendo pelo res-
tante dessa mesma década, sempre relacionada a “Instituições de Educação Pú-
blica”, conforme linguagem oficial dos documentos e com valor equivalente às
demais instituições de educação de grande importância para a cidade na época.
Fragmentos juntados via documentos e entrevistas sobre a história do prédio
mostram que a relação dos estudantes londrinenses com a cultura sempre foi
muito estreita, a ponto de não se diferenciar, muitas vezes, da educação. Identi-
ficam-se vivências culturais e artísticas em paralelo com outras ações. O espaço
destinado ao palco e ao salão de baile, na planta de 1956, corrobora a tese de
que educação e cultura caminhavam lado a lado.
Quase uma década após a primeira documentação apresentada à Câmara Muni-
cipal, a Casa do Estudante ganhou paredes e luzes, o que possibilitou o seu uso
e, em decorrência, a apropriação do espaço por meio de sujeitos envolvidos. Um
novo espaço na cidade surgiu para um grupo que já se organizava por outros
cantos em reuniões formais, apresentações artísticas e culturais diversas.
Segundo Leonardo Henrique dos Santos, os estudantes opinavam, mesmo que
ingenuamente, sobre todos os tipos de assuntos em suas assembleias. Para inter-
virem em algumas causas, que hoje são vistas por Leonardo como inatingíveis,
os estudantes não hesitavam em se organizar na tentativa de influir e conseguir
algumas mudanças. O entrevistado relata que eram um grupo ativo e envolvi-
do com muitos assuntos da cidade: obrigavam os bares do centro a fecharem

31
as portas e impediam a exibição de filmes, lutando para que os ingressos não
sofressem aumento. Em uma ocasião, segundo Leonardo, após o barulho feito
pelos estudantes na cidade sobre a carestia em torno dos alimentos, o prefeito
Milton Menezes compareceu à sede da ULE acompanhado do então coorde-
nador da Comap (Comissão Municipal de Abastecimento e Preços), Julito
Coelho, para explicar o que a prefeitura estava fazendo em relação aos preços
de gêneros de primeira necessidade26.
Os estudantes da ULE, já com sede própria, promoviam, além das reuniões
administrativas, momentos de interação social e cultural, como era o caso
das famosas “brincadeiras dançantes”, encontros característicos dos anos de
1960, com música para dançar e se divertir. Entre muitos episódios alocados

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no passado e que elevam o prédio à categoria de patrimônio material da cida-
de de Londrina, registra-se a realização do I Congresso Estadual dos Traba-
lhadores Rurais, no ano de 1960. O evento, segundo o jornal carioca Novos
Rumos, contou com a presença de cerca de 300 delegados representantes de
trabalhadores rurais: posseiros, meeiros, porcenteiros, colonos e formadores
de 35 municípios do interior do estado. Muitos viajaram no lombo de ani-
mais mais de dois dias para chegarem até Londrina, “[...] animados pela es-
perança de encontrar em Londrina, com a realização do Congresso, a solução
para o problema da terra”27.
Além deles, sujeitos das diversas camadas da sociedade estiveram presentes
na sede da ULE para esse evento: juízes de direito, promotores, uma delega-
ção da Câmara dos Deputados e da Assembleia Legislativa e o líder das Ligas
Camponesas de Pernambuco, Francisco Julião, o qual foi eleito presidente do
Congresso pelos lavradores paranaenses. Entre líderes locais, a reportagem
destaca a presença do prefeito de Londrina, Milton Ribeiro de Menezes, do
presidente da Câmara Municipal, do presidente da Associação Rural de Lon-
drina, do presidente da Associação dos Cafeicultores Paranaenses e dos estu-
dantes, que colaboraram ativamente na organização do conclave.

[...] constituiu um dos mais importantes acontecimentos em favor da re-


forma agrária em nosso país. O que se assistiu em Londrina foi um espe-
táculo característico da época em que vivemos: proletariado, homem do
campo e cidadãos progressistas de todas as camadas sociais se unem para
quebrar os obstáculos (entre eles o monopólio da terra) que se opõem ao
desenvolvimento econômico, político e social do Brasil27.

26
Relato de Leonardo Henrique dos
Santos – Secretário geral da ULE na
gestão de Otássio Pereira (1959/1960).
27
Jornal carioca Novos Rumos, Repor-
tagem de Nilson Azevedo. Ano 1960/
Edição 00076.

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I Congresso dos Trabalhado-


res Rurais 1960 – ULE
Jornal Novos Rumos. Ano 1960/Edição 00076

Pela demonstração de adesão e de participação de classes tão distintas em um


evento como esse, é possível refletir sobre como consideravam as questões da
terra naquele momento histórico e sobre como se relacionavam ativamente os
participantes e os estudantes em meio a tais discussões. Pelos anos seguintes,
até o ano de 1964, as gestões permaneceram ativas em sua sede na Duque de
Caxias, sem mais reformas ou ampliações, segundo Leonardo, “[...] depois do
golpe militar de 1964, entrou em decadência, chegando o prédio a ficar aban-
donado por longos períodos”.
Pós 1964, o prédio passou por várias fases. Conforme reportagem da Folha
de Londrina, ele ficou desativado no período compreendido entre 1968 e
1969; no início da década de 1980, sofreu incêndio; de 1980 a 1989, foi sede
de um estabelecimento comercial, o Palácio da Borracha, e ainda foi alugado
para uma associação de skatistas, até ser retomado em 1993 pela Ules. Foi
novamente abandonado por volta de 2006 e, dez anos depois, ocupado pelo
Marl – até os dias atuais.
O lugar que nunca foi inaugurado reinaugura-se todos os dias. Depois de
mais de uma década do último abandono, muitos o viam como silencia-
do, condenado ao esquecimento de um desabar iminente do teto. Mas, as
memórias dos que por lá passaram ficaram impregnadas em suas paredes,
conferindo um sentido que ultrapassa o tempo e criando uma cadeira in-
tergeracional de responsabilidade pelo futuro. De esperança. Em 2018, uma

33
criança, ao descrever a fotografia do prédio28, agora Canto do Marl, um
lugar totalmente desconhecido por ela, falou: “Várias pessoas em roda pa-
ra falar sobre coisas boas”. É fato que a roda e as pessoas estão explícitas
na imagem. “As coisas boas” é inferência da criança, que compreende à sua
maneira que o que motiva as pessoas naquele local é, de certa forma, uma
reunião para promover algo novo, algo bom. Algo que está sempre pronto
para nascer. Se olhar historicamente as raízes desse espaço, notar-se-á que
o prédio situado na avenida Duque de Caxias, na cidade de Londrina, teve
em suas diversas configurações momentos de reunião de pessoas que, em
cada tempo, discutiram e promoveram muitas ações, as quais não podemos
narrar, mas que, possivelmente, almejaram “coisas boas” para quem no es-
paço se inseria e atuava. O palco sempre esteve lá! De concreto, de taco, de

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madeira ou do chão raspado pelo tempo.

"Várias pessoas em roda para


falar sobre coisas boas"

Acervo pessoal – Canto do Marl

Atividade realizada como parte


28

do projeto Lugar de Vivências.

34
UMA PERSONAGEM DENTRE TANTAS
Até aqui o intento foi contar a história da construção do prédio que, hoje, é o
Canto do Marl. Para tanto, fez-se necessário adentrar na história do movimen-
to estudantil londrinense. Identificam-se muitas permanências e várias trans-
formações entre os dois movimentos que se dispõem a conferir existência ao
prédio como lugar de ação em prol da cidade de Londrina. Por ele passaram
diversas pessoas e foram possíveis vários encontros. Todos esses encontros e
pessoas, cada qual a seu modo, são importantes nesta história, mas uma delas
merece uma abordagem especial: o Zé Lista.
A opção por finalizar este capítulo tratando de uma personagem em especial
se justifica pelo fato de que, de fato, a construção do prédio viabilizou-se em
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grande parte pela sua persistência e, é claro, pela sua capacidade de articulação
política. Otássio Pereira da Silva, hoje com 83 anos e residente na cidade de
Curitiba, era uma figura muito conhecida na cidade de Londrina nas décadas
de 1950 e 1960, cidade na qual, em meio a lutas, resistências, conquistas e
desafetos, constituiu-se radialista, líder estudantil e político.
No final da década de 1950, Sr. Otássio esteve à frente de um grupo de estu-
dantes secundaristas que vivenciou, no dia a dia, a construção desse prédio.
Seis décadas depois, Otássio voltou ao prédio atendendo ao pedido da equipe
de pesquisadores e reencontrou-se com suas memórias e experiências em meio
às nossas, no mesmo espaço, mas em tempos e lugares diferentes.
Em busca de informações oficiais na documentação legal dos arquivos da Câ-
mara Municipal de Londrina (CML), buscava-se configurar um conjunto do-
cumental que fornecesse dados para se escrever a história do prédio na Duque
de Caxias. Estava-se diante de atos legais, de memórias documentais e de uma
história alocada entre as linhas das letras da lei, direta, ordenada e cheia de
interpretações. Na leitura das atas das sessões da CML, no ano de 1959, um
nome aparecia com frequência: o do líder estudantil, assim tratado, Otássio
Pereira da Silva. Tinha nome citado e presente nas sessões e, por ser denomi-
nado líder desse movimento pela ata do dia 05 de junho de 1959, optou-se
por localizá-lo, a fim de colher narrativas do período de construção do pré-
dio e conhecer, via oralidade, um pouco das tramas que envolveram todo esse
processo. É com esse personagem que se inicia a segunda parte deste livro,
que objetiva apresentar algumas personagens que se dispuseram a contar suas
vivências no prédio.

35
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EXPERIÊNCIAS NARRADAS:
entrevistas
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Capítulo dois

Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência


não mais o vincula a nós?29

O questionamento acima parte do interdisciplinar, diria, hoje, Walter Benjamin.


Reconhecido historiador do século passado. A introdução deste capítulo é a ques-
tão. Em tempos como este, a experiência é vistosamente renegada e destruída.
Absorver a experiência transmitida nas seguintes conversas com alguns dos ato-
res da Ules é o propósito, visto que os saberes do corpo e os reflexos da memó-
ria deles são, dentre tantas, uma possibilidade de entender a cidade e o espaço;
por meio da oralidade de cada ator, compreender o emaranhado simbólico que
é incorporado, novamente, aos saberes do corpo.
Compreender os símbolos do espaço que construímos é a arquitetura das
várias narrativas.
Nas entrevistas, realizadas entre 2016 e 2019 no prédio da Ules30, o que intenta-
mos com alguns participantes foi disparar o gatilho da memória para que falassem
sobre a Ules, perpassando um passado que se faz presente. O passado é sempre re-
construído pelos atores, pois a experiência, o tempo e a cidade são indissociáveis.
Assim, cada cidade é um palimpsesto de histórias contadas sobre si mes-
ma, que revelam algo sobre o tempo de sua construção e quais as razões
e as sensibilidades que mobilizaram a construção daquela narrativa. Nesse
curioso processo de superposição de tramas e enredos, as narrativas são
dinâmicas e desfazem a suposta imobilidade dos fatos. Personagens e acon-

29
BENJAMIN, Walter. Experiência e po-
breza. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cul-
tura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
30
A entrevista com o Leonardo foi a
única não realizada presencialmente.

37
tecimentos são sucessivamente reavaliados para ceder espaços a novas in-
terpretações e configurações, dando voz e visibilidade a atores e lugares31.

Neste capítulo, apresentamos 14 entrevistados(as) que vivenciaram experiên-


cias culturais, políticas e afetivas na antiga sede da Ules e atual Canto do Marl.
Sob esse duplo espaço-temporal, os textos são apresentados de um modo entre-
cortado, com subtítulos temáticos que localizam personagem/pessoa e o con-
texto para o leitor.
Nosso interesse foi iniciar a sistematização de memórias e de lembranças de um
prédio que fora guiado em tempos distintos pela esperança, como compromis-
so com o futuro. Nesse aspecto, não há a pretensão de esgotar os importantes
livros e pesquisas que virão ainda sobre o movimento estudantil secundarista

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da cidade. Espera-se, no entanto, contribuir para essas investigações, repre-
sentando uma organização primeira de documentos históricos, relatos orais e
pesquisa fotográfica.
As entrevistas abarcam 62 anos de história, de 1956 a 2018. Nesse sentido, é
somente um primeiro material. A saber, buscou-se agrupar de modo temporal
os 14 entrevistados: alguns panoramas das décadas 1950/60 foram apresenta-
dos pelos pioneiros Otássio Pereira e Leonardo Henrique dos Santos; as décadas
de 1960/70 ficaram representadas pelos entrevistados Geraldo Gonçalves de
Oliveira Filho, Renato Navarro, Ednéia Consolin Poli, Célia Regina de Souza e
Nei Inácio; já as décadas de 1980/90 têm as narrativas de Beta Liberato, Luis
Eduardo Cientista, Marcelo Domingues, MC Rei, Adriana Regina de Jesus e
Agenor Evangelista; referente aos anos 2000, temos o último presidente formal
da Ules, Diogo Takeo.
Nesse fluxo histórico da cidade, a Ules e as nossas pesquisas acerca da entidade
demonstram que o prédio conviveu com alguns períodos de despejo dos estu-
dantes. A luta muda de cores, bandeiras, períodos históricos e amores, mas se
expressa por meio da okupação do prédio e do seu despejo/abandono. Abando-
nado. Okupado. Por essa ótica diversa, intentamos não conversar apenas com
dirigentes da Ules, mas também com parceiros, buscando, principalmente, as
conexões da cultura com o movimento estudantil, além de fluxos de experimen-
tação do lugar para além da gestão/organização.
Nas falas, percebemos uma tendência comum de boa parte dos(as) entrevista-
dos(as): a participação em organizações políticas de esquerda durante as vivên-
cias junto à Ules, que são, por exemplo, partidos políticos, grupos anarquistas,
movimentos culturais, entre outras32. Assim, o prédio da antiga Ules tem papel

31
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis,
cidades imaginárias. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 27, n. 53, p. 16, jan./
jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-01882007000100002>. Acesso em: 8 out. 2019.

38
determinante dentro de um contexto. Existiram com ele diversos corpos e cul-
turas e se trata, portanto, de um “espaço vivido”, como diria Milton Santos. Esse
espaço sempre permite renovações, novas formas de usos, práticas, saberes, con-
flitos. Está constantemente pautado em questionamentos do passado-presente,
para agir em um futuro que é presente também. Por isso, seguem, nas próximas
páginas, alguns relatos desses corpos que, sem dúvidas, dialogam e ressoam no
espaço que hoje acolhe o Canto do Marl.

Boa viagem!
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O ZÉ LISTA
Otássio Pereira da Silva33

Nós queríamos construir a Casa do Estudante. Para tanto, nós


teríamos que arranjar dinheiro. O dinheiro que vinha das brin-
cadeiras dançantes, que não eram realizadas aqui e, sim, no Grê-
mio, era insuficiente para atender às necessidades. Nós fazíamos
rifa de tudo, tanto é que, quando eu estava fazendo Tiro de
Guerra, me apelidaram de Zé Lista: lista para isso, lista para
aquilo, lista para Sete de Setembro.

32
Renata Maria Caobianco, em seu livro Movimento Estudantil na
UEL 1971-1984, coloca as organizações políticas de esquerda do
período ditatorial em um anexo, totalizando 54 organizações dis-
tintas. Algumas delas identificamos na fala da militância da Ules
nos mais variados períodos históricos que a entidade viveu.
33
Otássio Pereira da Silva foi presidente da ULE nos anos 60,
integrou a gestão que começou a construção do prédio da
Casa do Estudante, conforme colocamos no capítulo 1.
Entrevista concedida em março de 2018.
39
Eu era repórter da rádio, muito embora eu não fosse jornalista, mas radialista, e fazia
parte da companhia do Mayrink Goes, que já faleceu. Então eu tinha facilidade de en-
trar em contato com todas as autoridades. Chegava no governador do estado e dizia: “Eu
tenho um problema assim, o senhor pode resolver esse problema, o que o senhor acha?”.
Quando terminava a reunião, o papo, eu dizia: “Governador, eu sou presidente dos estu-
dantes e preciso construir a sede”. Ele respondia: “Você que é o Otássio Pereira? Já che-
garam algumas informações suas lá no palácio. Vou arranjar um dinheiro para vocês!”.
Mas ele só fez isso porque eu me tornei conhecido.
Existia um deputado chamado Zaqueu de Melo, ele era diretor do Colégio Londrinense.
Ele disse: “Foi para a Assembleia Legislativa uma verba grande. Essa verba estava incluí-
da para a construção da Casa do Estudante, dois milhões de reais. E o deputado Amaury
de Oliveira e Silva, que era da oposição, votou contra e vocês não vão receber a verba”.

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Nós não estávamos aqui, a nossa sede, nós alugávamos aqui na Rua Duque de Caxias,
esquina com a Santa Catarina. Eu levei ao conhecimento dos estudantes e falei: “O que
nós vamos fazer com o Amaury de Oliveira e Silva?”. Responderam: “Nós vamos enter-
rar o Amaury!”. O Amaury era uma pessoa muito bem quista em Londrina, com muitos
familiares aqui. Aí preparamos o enterro [simbólico]. Ali perto da Rádio Londrina tem
um hotel, na Praça Getúlio Vargas. Em frente ao [Hotel] Cristal tinha um terreno vazio,
e ali naquele terreno vazio nós resolvemos fazer quermesse. Fazer quermesse toda semana.
Era quermesse o tempo todo, era festa, brincadeira. O enterro foi organizado nesse local da
quermesse. Marcamos para uma sexta-feira o enterro do Amaury. O enterro do Amaury é
importante porque, graças ao enterro do Amaury, foi construída essa casa, este prédio aqui.
Como eu era funcionário da rádio, eu era bom funcionário, a imprensa toda noticiou e
as autoridades constituídas do município (delegado de polícia, juiz de direito, promotor)
formaram uma comissão para falar comigo na rádio. Olha o respeito que eles tinham
conosco. Juntou esse pessoal todo para ir falar comigo na Rádio Londrina para evitar
o enterro do deputado Amaury de Oliveira e Silva. O dono da Rádio falou assim: “O
Otássio Pereira, aqui, ele é funcionário. Se fosse assunto da Rádio eu resolvia, mas esse
problema é dos estudantes”. Lavou as mãos. E os estudantes estavam a par de tudo, por-
que todo esse material era publicado pela Folha de Londrina. A Folha de Londrina tinha
uma coluna chamada Escola & Estudantes. E quem levava material para lá era o meu
secretário, o Leonardo. E o Leonardo acabou sendo jornalista.
Eu levei ao conhecimento da diretoria. A diretoria disse: “O enterro tem que sair. Se não
for para enterrar o Amaury Oliveira e Silva, nós vamos enterrar você”. O pessoal saiu
de frente ao Hotel Cristal e veio até a Concha Acústica. Carro, caminhonete. Tinha um
monte de gente. Rojões e mais isso e mais aquilo. Foi uma festa muito bonita. Isso deu pres-
tígio a Otássio Pereira junto ao governo do estado, porque nós enterramos não um líder da
situação, mas um líder da oposição. Então, o que eu pedia para o governador ele atendia.
Nós conseguimos essa verba de dois milhões, que hoje eu não sei quanto é que vale.

40
Protesto dos produtores de café
Existia um movimento paranaense, brasileiro, dos produtores de café. Existia o con-
fisco cambial: de cada saca de café que era exportada, retirava-se aproximadamente
15%. Era um fundo, o fundo do IBC (Instituto Brasileiro do Café). Os lavradores,
os cafeicultores dessa região se insurgiram contra isso. Como os filhos desses lavrado-
res eram estudantes aqui, nós, então, abraçamos a ideia de defender a retirada desse
confisco cambial. E os lavradores prometeram sair daqui em marcha e ir ao Palácio do
Catete, no Rio de Janeiro, com jipe, com coyote, fazer uma passeata. E esse movimento
veio nos convidar para participar da marcha. Nós aceitamos. Fizemos um comício na
Concha Acústica. Um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) fez “vrum” em cima
da Concha. E nós: “Defendemos os lavradores, porque somos filhos de lavradores, não é
justo que 15% da produção de café seja desviada”. Quem parou com o movimento foi o
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Henrique Batista Lott, que foi ministro da guerra. Mas, devia ter pouca gente também.
Nesses movimentos em prol de Londrina, nós sempre estivemos juntos.

Participação das mulheres na Ules em 1960


Tinha o Natal da Criança Pobre aqui. A mulherada toda ajudava. Eu era solteiro e
tinha um respeito muito grande pelas mulheres. Eu fazia questão de nem namorar uma
delas para não dar o que falar. Enchia com dez ou vinte mulheres ajudando a preparar
o Natal da Criança Pobre. Tinha a Páscoa dos Estudantes, as mulheres participavam.
Na União Londrinense dos Estudantes, as mulheres colaboravam. As mulheres par-
ticipavam da diretoria. A filha do Fuganti, eu me lembro, participava. É que nestas
fotografias não aparece ela. Eu não me lembro mais, 60 anos depois, eu não me lembro
mais o nome delas. Eu me lembro que tinha uma mulher, muito simpática, que só me
chamava de presidente, ela era frequentadora... As mulheres participavam porque nós
as “botávamos” para dançar. As mulheres participavam, todas elas. Mulheres bonitas
ainda. Fizemos vários concursos de beleza. As mulheres mais bonitas iriam desfilar no
Comissária Curitiba. Aí entrou uma mulher muito bonita chamada Maria do Imacu-
lado. Ela foi disputar o concurso e foi o primeiro lugar.

Proibido dançar coladinho


Alguns pais achavam que as nossas brincadeiras eram muito promíscuas. Muita gente
até não queria que as filhas fossem lá dançar com os estudantes. Mas, é claro, tem
estudantes bons e tem estudantes malandros. Aí eu baixei uma portaria, coloquei ao
conhecimento dos pais: “É proibida a dança de rosto colado”. Você já viu uma coisa
dessa? E colocava os fiscais. Deu certo. Tinha o maior respeito. Os pais ficaram saben-
do. Eles traziam as filhas, chegavam na porta e diziam: “Minha filha está aí. Otássio
Pereira, cuida bem dela”.

41
Papel artístico da Ules
Nós dávamos apoio aos estudantes, a parte artística dos estudantes.
Enquanto não ficasse pronta esta obra aqui, a gente usava o auditó-
rio da Rádio Londrina. E eu criei, na Rádio Londrina, um programa
chamado “Escolinha no Ar”, onde nós entrevistávamos diretores de
escolas, professores e alunos. Estes aqui [mostrando a foto] eram
os artistas que se apresentavam.

Projeto do Marl de okupar o prédio


Sempre me preocupou o abandono deste prédio. Eu ia propor, se
vocês não tivessem tomado a frente, estudar uma fórmula de ter um
cantinho dos estudantes, para que... Se eles quisessem debater um
problema dos estudantes, das universidades, problemas existem todos
os dias. Eu não queria me excluir dos problemas locais... Porque eu
não sou mais daqui, eu sou de fora. A gente, quando está de fora,
não pode dar muito palpite. O projeto de vocês é muito bom. O mais
importante de tudo é o aproveitamento do prédio para uma coisa
útil. Vocês poderão sofrer também críticas, mas muitas vezes críticas
infundadas. Mas, tem que ter coragem.
Eu achei até que poderia estar em situação pior, esse material é novo
[apontando para o teto], parece que eu coloquei isso ontem.

42
Década de 1960 e início da repressão
Entrou o Del Ciel e ele e uns três ou quatro dirigiram bem a Ules,
até a chegada da “revolução”. Aí veio a ditadura e a ditadura che-
gou e começou a caça às bruxas. Então nós éramos caçados por
sermos puristas, por sermos presidentes de entidades beneficentes
– uma entidade como esta –, éramos caçados por sermos colegas
do sindicato dos trabalhadores. Começou a “revolução” e eu não
acompanhei mais.

43
NA MILITÂNCIA ESTUDANTIL, A DESCOBERTA DA VOCAÇÃO
Leonardo Henrique dos Santos34

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Tive uma longa e ampla atuação no jornalismo, no telejornalismo
e em assessorias de imprensa do Paraná, descobri minha vocação
participando do movimento estudantil secundarista de Londrina.
No final dos anos 1950 e início da década seguinte, fui secretário
geral e depois vice-presidente da então ULE, depois Ules, nas gestões
de Otássio Pereira da Silva e de seu sucessor, Ivair Lúcio Soares.
Lembro que, já cursando o colegial, ainda não tinha bem definido
que rumo iria seguir. Nas reuniões da diretoria da antiga ULE,
como gostava e tinha facilidade para escrever, as atas era eu quem
redigia; os manifestos expressando a opinião da entidade sobre
qualquer assunto sempre sobravam para mim, e eu fazia com gosto.
No jornal estudantil, lá estava eu participando. Qualquer coisa que
merecesse divulgação era eu quem ia até a redação da Folha levar
a informação ao Walmor Macarini, que, na época, era o titular da
coluna Escolas & Estudantes, que existiu por muitos anos.

Um prédio que faz parte da vida política de Londrina


Na então ULE, acompanhei de perto, desde a elaboração do pro-
jeto à construção do prédio sonhado e tornado parcialmente rea-
lidade pelo Otássio e seus companheiros de diretoria. O prédio foi
um avanço que deixou a Ules na condição de primeira entidade
estudantil secundarista do Paraná a ter sede própria, coisa com a
qual nem a Upes – União Paranaense dos Estudantes Secundaris-
tas – ainda contava. O sonho do Otássio, no entanto, era maior:

34
Como jornalista, Leonardo atuou na imprensa e no
telejornalismo paranaense e nacional. Atuou na chefia do
escritório paranaense da antiga EBN – Empresa Brasileira
de Notícias –, vinculada ao ministério da Justiça, na asses-
soria de imprensa de gestões de governos do estado do
Paraná. Entrevista concedida por e-mail em abril de 2018.

44
primeiro, implantar um restaurante estudantil, que viria a beneficiar principalmente os
jovens de outras cidades da região que se mudavam para Londrina em busca de cursos
colegiais e já de olho nos cursos superiores que começavam a surgir. Numa segunda eta-
pa, alojamentos. Por isso, ele construiu primeiro o amplo salão, que equipou com mesas e
cadeiras, já com vistas ao restaurante. E chegou a viajar a Porto Alegre para sondagens
com uma empresa que produzia cozinhas industriais. O projeto, infelizmente, não foi
adiante. Otássio não conseguiu instalar a cozinha e seus sucessores não se animaram a
tentar levar o projeto adiante. Mas, o prédio converteu-se em centro da então agitada
vida estudantil londrinense. Começamos um trabalho integrado com os grêmios de todos
os colégios e tornamos a entidade reconhecida e respeitada estadualmente. Todo ano, a
partir da primeira gestão encabeçada pelo Otássio, os estudantes de Londrina passaram
a participar do congresso estadual promovido em Curitiba pela União Paranaense dos
Estudantes Secundaristas. Fretávamos um ônibus para levar até lá a bancada londri-
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nense, integrada por dirigentes da Ules e dos grêmios estudantis.

As paredes erguidas: a inauguração para muitos encontros


Não houve inauguração oficial, pelo menos eu também não tenho a menor lembrança de
nenhum ato inaugural, nem do prédio nem de algum espaço específico – simplesmente o
prédio ficou pronto e instalamos nele a sede da então ULE. Ele estava em perfeitas condi-
ções para uso: tinha energia elétrica, telefone, água, banheiros funcionando... Promovíamos
ali reuniões da diretoria, encontros com representantes de grêmios, assembleias de estu-
dantes e atividades sociais, como “brincadeiras dançantes” e, se não me falha a memória,
também alguns bailes; pelo menos uma “Rainha dos Estudantes”, Iracema de Mello, que
representou Londrina no concurso estadual que a Upes promovia em Curitiba, foi coroada
em festa lá no prédio. Houve um ano, creio que 1960, em que cedemos o salão para a
realização de um congresso estadual de trabalhadores rurais, que contou com a presença
do então mítico líder das Ligas Camponesas, o advogado pernambucano Francisco Julião.

A garra dos estudantes e a inquietude pelo agir


Tornamos a Ules conhecida como uma entidade que não defendia apenas os interesses
dos estudantes, mas de toda a sociedade. Recordo-me de que, numa época, começamos
a acreditar que poderíamos influir no controle de preços e chegamos, ingenuamente, a
organizar protestos até contra o aumento no preço do cafezinho. Saíamos à noite em
ruidosas passeatas obrigando os bares do centro a fecharem as portas. A repercussão foi
tanta que espalhou-se um rumor de que comerciantes pretendiam, na madrugada, atear
fogo no nosso prédio. Não tivemos dúvidas e um grupo de nós passou a noite lá em vigí-
lia, armado com fogos de artifício e alguns estilingues, com os quais pretendíamos assus-
tar os atacantes, caso realmente aparecessem. Também chegamos a deixar Londrina sem
cinema por uma semana, porque prometíamos bloquear o acesso aos que insistissem em
aumentar o preço do ingresso, e seus responsáveis temiam que ocorresse depredação. Fa-
zíamos tanto barulho que, em uma ocasião, o então prefeito Milton Menezes compareceu
a uma reunião nossa, lá no prédio, levando junto o então coordenador da antiga Comap
(Comissão Municipal de Abastecimento e Preços), Julito Coelho, para explicar o que
a prefeitura estava fazendo em relação aos preços de gêneros de primeira necessidade.

45
O caso do livro
Todos cuidavam dos mínimos detalhes para um bom funcionamento. Inclusive, me
lembro de uma situação inusitada na biblioteca da ULE. Não era grande coisa, ape-
nas uma estante de tamanho razoável cheia de livros. Já existia na sede anterior, que
funcionava no edifício Vittori. Também ficava na Duque de Caxias, no outro lado da
rua, algumas quadras antes. Era apenas uma sala no primeiro andar. Lembro-me de
que um dia, já na nova sede, encontrei esquecido entre papéis numa gaveta o registro
do empréstimo de um livro, feito na administração anterior à do Otássio, para um
funcionário de uma farmácia que funcionava nas vizinhanças da antiga sede. Como
tinha assinatura, nome e telefone, não pensei duas vezes: liguei para o fulano e pedi a
devolução. Momentos depois ele chegou, de bicicleta, todo constrangido, para devolver o
livro. Não me pergunte que fim levaram aqueles livros. Não faço a menor ideia.

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As marcas políticas de um tempo na vida de muitos
Muito mais importante do que tudo isso, no entanto, na minha opinião, foi o fato
de a Ules ter se tornado um ninho de lideranças. Muitos jovens que ingressavam no
movimento estudantil, integrando a diretoria da Ules ou dos grêmios a ela ligados,
participando de assembleias, reuniões e outros eventos na Casa do Estudante, sentiram
despertar ali o gosto pela política e por aquele caminho enveredaram. O próprio Otás-
sio elegeu-se vereador e depois deputado estadual, da mesma forma como José Antonio
Del Ciel, que também se elegeu vice-prefeito e acabou assumindo a prefeitura quando
o titular, Antonio Belinati, foi cassado; Délio Cesar, que integrou a primeira gestão de
Otássio, se elegeu vereador e, depois, vice do prefeito Wilson Moreira, a quem subs-
tituiu em várias ocasiões; Osvaldo Evangelista de Macedo, que presidia o grêmio do
antigo Colégio Londrinense e ia conosco aos congressos da Upes, foi deputado estadual
e, por duas vezes, deputado federal, inclusive constituinte; Romeu Curi, que presidiu a
entidade, e José de Alencar Soares Cordeiro, que fez parte de uma diretoria, são outros
que saíram da Casa do Estudante para a Câmara Municipal.

As muitas fases
A entidade viveu seu apogeu nas administrações do Otássio e do seu sucessor, Ivair;
ainda tiveram alguma expressão nas gestões imediatamente posteriores João Marmo
Martins, José Antonio Del Ciel e Romeu Curi, mas depois do golpe militar de 64 entrou
em decadência, chegando o prédio a ficar abandonado por longos períodos. Lembro-me
de que, em uma ocasião, na segunda metade dos anos 70, provavelmente 77, eu mesmo,
que atuava na Folha de Londrina, fui lá e fiz uma reportagem sobre o estado de aban-
dono em que se encontrava o imóvel. De vez em quando, algum prefeito, como ocorreu
com o Wilson Moreira, cogitava retomar o prédio, porque o terreno havia sido doado
pelo município e deixara de cumprir a finalidade a qual se destinava; aí estudantes se
mexiam, improvisavam uma diretoria, reativavam a entidade, mas em pouco tempo
ela estava de novo em estado de coma. Definitivamente, não havia mais clima, sob os
governos militares, para a existência de uma entidade como a Ules.

46
O olhar para o passado e a permanência do lugar no presente
Tenho certeza de que, da mesma forma como eu, todos os que participaram daquele belo
momento da vida estudantil londrinense se entristeciam ao ver o estado de abandono a
que foi relegado durante tantos anos este prédio de tão boas recordações. Por isso, ima-
gino que, tal como eu, sentem-se felizes hoje ao vê-lo restaurado, e o que é mais impor-
tante: desempenhando uma função útil à sociedade, ao abrigar nossos artistas de rua.

A MEMÓRIA DA ANTIGA ULES E A FELICIDADE NO CANTO DO MARL


Célia Regina de Souza35
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização

Toda vez que eu estou aqui em Londrina, eu passo por aqui, pela
Rua Duque de Caxias... E ficava assim, meio triste, de ver o pré-
dio meio abandonado, né? Numa das vezes que eu vim, daí, em
2016, eu fiquei sabendo por amigos que têm mais ligação com o
movimento cultural na cidade que tinha essa iniciativa de oku-
pação pelo Movimento dos Artistas de Rua daqui de Londrina,
que era uma coisa que precisava ser legitimada, que ainda não
tinha uma resposta positiva, da prefeitura, não sei se era da pre-
feitura, para o uso do prédio, né?
Vim falar da importância deste prédio ser bem ocupado, apoiar
as pessoas que estavam aqui ocupando, que eu já conhecia algu-
mas delas de atividades, e eu também sempre fui ligada ao mo-
vimento cultural, né, muito mais como fã e amiga do que como
artista, mas eu sempre fui muito ligada. Então, por isso, eu vim,
como diz o outro, “de livre e instantânea vontade”, né?!

35
Célia Regina de Souza é economista e jor-
nalista. Foi vice-presidente da Ules, integrante
dos movimentos estudantis da UEL e inte-
grante do Jornal Poeira, na década de 70.

47
A Ules e o conhecimento
No fim dos anos 60, eu era secundarista e já conhecia a Ules, mas porque promovia os
bailes de formatura, era mais um espaço dançante que eu não frequentava.
No fim dos anos 60 e início dos 70, eu estudava no Instituto de Educação, o IEEL,
conhecia o pessoal que estava fazendo teatro na rua e foram lá no Vicente Rijo. Por
coincidência, era um ex-colega do IEEL. Aí ele falou: “Ah, vai lá na Ules que a gente
vai ter um ciclo de palestras no próximo fim de semana”.
Eu vim, né, cheguei no fim de semana aqui e era uma palestra sobre a guerra do café
solúvel, sobre a questão da indústria nacional, e eu já saí daqui completamente nacio-
nalista. Logo na sequência, na outra semana, teve uma outra palestra, sobre a guerra

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do Vietnã. Também saí quase Vietcong, porque era muito interessante. Eram pessoas
como o professor Hélio Dutra e o jornalista Edilson Leão que davam as palestras aqui.
Então, era um grupo de jovens secundaristas, mas fazendo um movimento cultural,
aqui, de palestras, de poesia e de teatro.

Os grupos de teatro e o bandejão


Aqui funcionaram alguns grupos de teatro, como o Cubículo, que tinha o Roldão Arruda,
aquele jornalista... Quem dirigia era o Dinho Domingos Pellegrini Júnior. Teve um outro
grupo, Senzala, que tinha o Nilson Monteiro, que é jornalista, que teve Marcelo, que hoje
é jornalista, teve a Cleusinha. Teve o Geraldo, que era presidente daqui, abria este espaço.
Nesse período, início dos anos 1970, Elza Correa participava, o irmão dela, o Edimilson,
que desenha legal... Aqui tinha um restaurante, restaurante estudantil, que era barato,
na linha bandejão. Era o único que tinha na cidade, que era razoavelmente frequentado.

A ditadura civil-militar e a Ules


Em setembro de 1970, teve uma prisão muito séria na Operação Marumbi, que pren-
deu o Manuel Jacinto, que era pai da Elza... E prendeu um bando de gente e algumas
pessoas que estavam nesse círculo cultural. Então foi um “baque” grande, algumas
pessoas daqui sumiram, foram para exílio, saíram. Tinha gente tipo o Beluci. Juntava
o pessoal da Filosofia, Letras, da UEL, que nem existia ainda. Com o pessoal aqui era
um apoiando o outro.
Aí deu um “vazião”, tinha tido uma eleição, eu estava na chapa, daí muita gente foi
saindo e, quando vi, eu era vice-presidente. Acho que eu tinha 15 anos, meu pai teve
que autorizar no banco para eu poder assinar cheque e coisa assim, né? E o presidente
naquela época era um “cara” assim, que também não tinha nada a ver com política.
Mas, ele fazia poesia, gostava de música. Então, aqui a gente tinha Woodstock, os dis-
cos, a gente tinha... Qualquer coisa que saía tinha no acervo da Ules, né? Inclusive o
“Apesar de Você”, do Chico [Chico Buarque], quando foi lançado, no pouco tempo
que ficou liberado. E aqui comecei a fazer, a organizar ciclos de palestras também, fiz
algumas coisas, mas foi um período assim... Muito rico.

48
Espaço histórico e público
Eu faço parte daquela geração de Londrina que não era “ri-
quinha”. Aqui, para mim, foi um espaço, o espaço cultural da
minha formação. Então, eu acho que é legal que vocês estejam
aqui ocupando este espaço, porque eu acho que ele é um espaço
histórico da cidade, como eu acho que a Rua Duque de Caxias
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é, né? Ela é uma rua que não entende os espigões que já estão
surgindo ao lado, que tem uma arquitetura... O próprio pessoal
da UEL sabe disso, que é uma trajetória, tem as construções da
minha infância, que eu sou londrinense “pé vermelho” e morava
por aqui, né, e este espaço é para isso. E ele sempre foi muito rico
culturalmente... É, teve um período de vazio, mas deveria voltar a
ter esse destino de ser administrado para a gente ter mais acesso
à cultura numa área mais central.
Eu acho que isso que vocês estão fazendo aqui, de valorizar este
espaço, também não é uma coisa só de Londrina, todo mundo vem
fazendo em outros lugares. Porque é resgate histórico, é a gente
ocupar mais o centro da cidade com atividades interessantes, usar
os prédios semipúblicos, porque aqui é público e não é público, foi
por pressão do movimento estudantil. É um aprendizado, também,
a gente saber cuidar e tomar conta da cidade. Fiquei muito feliz
depois de saber que já estavam tendo várias iniciativas.

As reverberações familiares e o Canto do MARL


Nunca mais deu certo de eu voltar, mas eu sempre vejo que tem
atividade, almoço, coisas para levantar dinheiro. Quando começou
o Feirão da Resistência e da Reforma Agrária, eu fiquei muito con-
tente também, de ele acontecer aqui. Tem uma prima, que é a Ce-
res Hadich, integrante do MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra), que vem para cá. Foi uma coincidência boa,
uma prima bem mais jovem do que eu, hoje, está tendo a possibili-
dade de dar uma vida mais legal para este espaço aqui. Então, por
isso que eu vim para cá, na verdade, a Ules para mim era entidade!

49
FOGUEIRA DEMOCRÁTICA
Nei Inácio36

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Estou a passeio em Londrina, quer dizer, a passeio é um pretexto; na ver-
dade, eu vim tentar carregar a tocha olímpica na abertura do... Passou por
Londrina e não me deixaram, só que eu achei uma tocha muito mais im-
portante, que é essa tocha aqui, ó, que é a tocha mais democrática que eu
já vi. Que é a tocha que vai dar luz à cabeça de quem manda ou acha que
manda na cidade para poder liberar e fazer deste espaço que é tão democrá-
tico... Foi tão democrático no meu tempo de mocidade, vamos dizer assim...
Que eu estou aqui solidário com tudo isso.
Então, a minha felicidade é de estar hoje aqui solidário e fazer um grande
apelo: que a prefeitura e as autoridades competentes deem vez à okupação
deste espaço pelos artistas de rua da cidade, que a gente sabe, é a cultura local,
e isso tem que ser preservado sempre e precisa de um espaço. Que tal fechar
o seu mandato com um laço de ouro, fechar com chave de ouro, cedendo o
espaço, tornando o espaço de utilidade pública, não sei se é esse o termo de
“utilidade pública” ou não, mas cedendo espaço para os artistas de rua. Fe-
charia a administração com laço de ouro, é o apelo que eu faço!

Teatro improvisado e políticas cotidianas


Só para lembrar, aqui, na Ules, a gente tinha, na época de estudante, uma
importância até que legal... A gente batalhava por tudo aquilo que a gente
pensava e acreditava. Aqui, nós fazíamos o chamado teatro de guerrilha,
nós tínhamos grupos de teatro aqui, na universidade. Em formação ainda
nos anos 70. E a gente trazia o pessoal todo para cá para poder fazer as
nossas peças de teatro improvisadas e sob pretexto de juntar pessoas para ir,

36
Nei Inácio é jornalista (formado na pri-
meira turma da UEL) e participante das
atividades e dos festejos da Ules. Entre-
vista concedida em junho de 2016.

50
durante essa peça de teatro, realizar assembleias para reivindicar o que nós queríamos,
então, aqui, no prédio, fora do prédio, nós fazíamos esse movimento.

Carnaval e protesto contra a ditadura


Os blocos de Carnaval não eram blocos comuns, só para “oba, oba”, não. Os blocos de
Carnaval tinham toda uma leitura política. A gente assava, nos caldeirões, os generais,
os ministros do tempo da ditadura, tudo num ritual dos blocos de Carnaval.
Nós não tínhamos espaços para isso. O Iate Clube não deixava entrar de graça os blo-
cos de Carnaval, Country nem pensar, Grêmio nem pensar. O único local que nós tí-
nhamos era aqui, a Ules. Podíamos entrar os blocos de Carnaval, o pessoal da periferia
podia entrar, fazer a manifestação, deixar a mensagem política, sempre de contestação,
ou seja lá o que for, mas era uma mensagem política e divertida ao mesmo tempo.
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O bloco era todo mundo de idade da pedra, chamado “É de arrepiar”... O nome do bloco.
Todo o pessoal da periferia, Jardim do Sol, Jardim Igapó, Vila Nova, Vila Recreio, Vila
Brasil... Nós nos juntávamos no Lago Igapó e ensaiávamos todo o roteiro e texto, e a gente
entrava. Aqui era o único espaço em que nós tínhamos manifestação popular, todo pessoal
pobre, que não tinha grana para ir ao baile do rico. Então, era aqui que a gente vinha.

"PIQUENIQUE NO FRONT" – A ULES DOS ANOS 69/70


Geraldo Gonçalves de Oliveira Filho,
Renato Navarro e Ednéia Consolin Poli37

Eu Sou o Renato Navarro, hoje estou aposentado. E eu comecei a


participar da Ules em 67, 68, na gestão do José Antonio Del Ciel,
que chegou a ser deputado estadual e, depois, prefeito de Londrina.

37
Integraram a diretoria da Ules nos anos
1969-70, como presidente, vice-presidente
e secretária, respectivamente. Entrevista
conjunta concedida em julho de 2019.

51
Depois disso, quando o Del Ciel saiu, entrou um outro rapaz na presidência, que eu
não lembro o nome, e esse rapaz, por alguma razão, foi deposto. E aí entrou uma
junta interventora presidida pelo Carlos Manuel Ascênsio Mendes Pimenta, que as-
sumiu e, depois disso, entrou o Geraldo na presidência, eu fui vice, e Ednéia foi a
secretária dessa gestão, em 69-70.
O movimento estudantil era muito visado, mas a gente conseguia construir viés para
trabalhar um pouco essa coisa toda. E conseguimos, sim. Trabalhamos bem. Algumas
vezes fomos chamados para conversar com pessoal da Federal. Normal isso, né, volta e
meia tinha uma solicitação de bate-papo, mas estávamos indo bem. A gente trabalhava
muito bem! Eu esqueci de dizer, meu nome é Geraldo Gonçalves de Oliveira Filho.
Meu nome é Ednéia Consolin Poli, sou já professora aposentada do Estado, como profes-

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sora fui do 1º ao 5º ano há 18 anos. Dez anos de Marista, foi meu primeiro emprego. Sai
do IEEL como professora do Marista. E agora, como professora da Universidade Estadual
de Londrina (UEL), sou matemática, e dou aula ainda, de ensino/metodologia para disci-
plinas de matemática. Como que a gente chegou a formar essa equipe? Vou falar um pouco
da minha trajetória, da família, senão não consigo falar da Ules. Como eu falo, eu vivi
numa bolha, até a oitava série, que é o Colégio Mãe de Deus, estudava piano. Então eu
vivi naquela bolha. Não vi a revolução de 68 começar. Mas, eu tive um problema na nossa
família e minha mãe falou: “Você não pode mais estudar no Mãe de Deus, que é muito
caro, você vai para o IEEL”. Eu fui fazer magistério e, quando eu cheguei, que eu comecei
a ver que tinha uma coisa diferente, conheci o Renato, e foram me passando. Quando eu
saí daquela minha bolha, aí eu entrei para o Marista, e lá começou uma discussão muito
intensa, também com o Teófilo Baixa, muito intensamente, uma conversa sobre a Teologia
da Libertação, Leonardo Boff e todo o pessoal, e isso foi me fazendo politicamente, e muito
rápido. A evolução era muito rápida... Social, cultural e tudo acontecendo.

Renato Navarro e lembranças do prédio


O prédio, a entrada, é praticamente a mesma. Quando se entrava ao lado direito, nós
tínhamos a sala da diretoria e uma escada que levava para o mezanino; do lado es-
querdo de quem entrava era a cozinha do restaurante. E, no salão, nós tínhamos as
mesas. Ao lado direito, o banheiro feminino e, ao lado esquerdo, o banheiro masculino.
E aqui nós tínhamos um palco de concreto, esse palco foi desmanchado, e construído
um de madeira, pela professora Linda Bulik, que queria apresentar aqui algumas peças
de teatro. O mezanino, que funcionava lá em cima, como eu falei. Naquela época, nós
tínhamos um forro, salvo engano era de madeira, não havia goteira, não havia nada,
funcionava direitinho a estrutura do prédio.

Ditadura, memórias, tutelas e lutas – Vivências singulares


Renato Navarro
O impacto do regime era aquilo que a gente conhece hoje. A gente era muito fiscalizado,
você tinha uma fiscalização constante. Eu contei agora há pouco... Teve uma assembleia
que fizemos aqui, foi presidida por um estudante que era militar, eu não sei como ele
veio, mas se candidatou a presidente. E ficou um soldado à paisana da polícia militar
durante toda a assembleia. E a gente tomava todo o cuidado com que fazia. Nós procu-
52
rávamos mais envolver os grêmios estudantis, na política estudantil, na negociação da
meia-entrada do cinema. Nós mantínhamos contato com os diretores das escolas.
[...] E nós tínhamos um problema muito sério com o vice-diretor do colégio Marcelino
Champagnat, que era o inesquecível professor Armando, de português, linha dura. Eu,
particularmente, fui diretor do grêmio estudantil do Marcelino Champagnat e existia uma
luta muito grande com ele, pois ele fechava os portões no intervalo. E os estudantes não
gostavam disso, achavam que tinha que ter uma liberdade para ir e vir, para assistir à aula
quem quisesse assistir. Só que o homem era linha dura e ganhava mais do que a gente...

Ednéia Poli
O que aconteceu muito forte na Universidade e influenciou no movimento secundá-
rio foi que, até então, os cursos eram anuais, e as pessoas se conheciam, os estudantes
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conheciam os colegas do primeiro ano, eu chegava no quarto ano... Então o que que
acontecia? Você formava grupos, você começava a ir além da matéria. Eu, da mate-
mática, por exemplo, algo tão seco, a gente começava a discutir outras coisas, entre
elas as questões políticas, sociais, enfim, de vida. Aí, quando veio os seriados, veio forte
para mim: acabou! Então, aquele estudante não encontrava com a mesma turma já no
segundo semestre do seu primeiro ou segundo ano. Eu não lembro a Lei que era, mas
foi uma estratégia do governo militar, isso quebrou o movimento estudantil.
[...] A diretora de uma escola que eu trabalhava chegou ali no recreio da escola e entre-
gou umas fichas da Arena. “Eu quero que todo mundo assine a ficha”. Eu falei assim:
“Eu não vou assinar”. Ela me olhou, eu nem sei como eu não fui tirada daquela escola
na época, porque era assim, normalmente, eles te tiram e te mandam para uma escola
rural na época, alguma coisa assim. Você tinha obrigação de assinar as coisas, mesmo
na época como professora já. Eu comecei cedo, em 70, 71 eu já estava trabalhando, eu
tinha 17 anos, tinha magistério e já estava trabalhando. E isso aí me impactou muito.
Todo mundo, na verdade. E aquela escola era Arena, poucas, duas ou três não eram.
Então, todo esse movimento que é. A escola é um viés político, era, sim, um viés político.
E as diretoras tinham cargo por causa da política.

Geraldo Oliveira
Nós estivemos em Guarapuava presidindo a reunião do Conselho da Upes e che-
gou um determinado momento... Eu pedi uma contagem de votos, os estudan-
tes levantaram as mãos. E nós tínhamos exatamente metade de estudantes e me-
tade de agentes do DOPs. Era uma loucura uma coisa dessas. Você tem meio a
meio. Aí eles até se sentiram mal e foram saindo, porque já estava demais. De-
pois disso, tinha mais algumas coisas interessantes que a gente era capaz de con-
textualizar as coisas, driblar um pouco as situações, nós conseguimos, em plena
ditadura, para um congresso de estudantes em Foz do Iguaçu, um avião da FAB
(Força Aérea Brasileira). Você imagina, em plena Ditadura...
Ednéia (categórica): Quer dizer, isso era uma tutela do regime militar.
Geraldo: O Delegado da Federal me chamou e disse: “Como assim?”.

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Caso Zé Dirceu, Ules e tiro de guerra
Geraldo Oliveira
Você nunca sabia ao certo quem chamava, mas me parece que foi um membro de uma igre-
ja episcopal, chamado Alfredo, e disse: “Olha, eu preciso de você”. E eu disse: “É pelo meu
cabelo? Eu era do exército, estava com o cabelo cortadinho, e estava no tiro de guerra. “O
que você precisa de mim?”, “Eu preciso que você acolha pessoas que passam por aqui, que
estão sendo perseguidas, podem ser mortas, precisaria que vocês acolhessem”. Era uma coisa
muito secreta. Você recebia um telefonema, nós tínhamos um telefone público, vocês lem-
bram disso? Aqui na frente. Aí ele chamava, você atendia a primeira vez, nada; atendia a
segunda vez, nada; atendia a terceira, nada. Na quarta vez, ele falava e emitia um comando
assim: “Olha, às 22 horas alguém chega aí, por favor, acolha”. E um belo dia apareceu aqui
um cidadão alto, eu não sabia nome, ele chegou à noite, assustado, muito assustado, nós
tínhamos o Restaurante e sempre sobrava algum coisa, ele comeu e foi dormir, lá em cima.
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Lembra? Tinha aquele sofá, e ele dormiu no sofá. No dia seguinte, eu cheguei de manhã, e
ele estava envolto na bandeira do Brasil, que era a única coberta que tinha na sala [risos].
E ainda eu falei com ele: “Você toma café?”. E ele disse “Não, eu fico aqui”. Eu insisti: “Des-
ce, não tem problema”. Ele desceu e o pessoal todo viu, mas o pessoal estava acostumado
com a gente receber as pessoas nessa situação. Não eram muitas não, mas algumas pessoas
passaram por aqui. E, logo em seguida, de novo, eu recebi um outro telefonema, dizendo
que era a hora, e ele foi embora. Eu não sabia quem era. Depois de algum tempo, eu fiquei
sabendo que era o Zé Dirceu, passou por aqui, foi levado para Umuarama. E de lá ele foi
levado para Cruzeiro do Oeste. Lá, ele ficou escondido ainda, casou, teve filho, o Zeca, filho
dele. E depois disso passou um tempo. A gente tinha esse tipo de papel...
[...] um belo dia, um sargento me chamou lá no Tiro de Guerra: “Preciso falar com você
e urgente”. E não dava nem para eu ligar para o meu povo e falar “Desmonta o negócio
aí e some todo mundo que o lance vai ferver”, não tinha como eu ligar. E ele disse: “Olha,
essa guarda que você comanda está chegando tarde, você deixa esse pessoal sair!!!”. Graças
a Deus que não tinha nada a ver com meu esquema lá. Então tinha essas coisas assim.

Geraldo Oliveira e concurso na polícia


Mas, antes disso, nós fizemos um concurso na polícia... Polícia técnica, criminalista lançava
um concurso em Londrina, e eu fui fazer por causa do Renato, ele me convenceu. Aí eu fui,
era interessante isso. Eu fui fazer o concurso, fui com ele, e acabamos passando os dois, en-
fim. Comecei a trabalhar com isso. Um belo tempo, eu fundei um sindicato, o sindicato dos
policiais civis. O delegado civil na época me chamou e falou: "Mas não é possível uma coisa
dessas, até na polícia você quer sindicato, essa forma sua eu não vejo aqui. Eu vejo na sua fi-
cha que você foi presidente da Ules, agora você quer fazer da polícia um movimento” [risos].

Carteirinhas, grêmios e articulação política


Geraldo Oliveira
Tinha noite na Ules, no tempo do Del Ciel, que todos nós nos conhecemos, porque
foi exatamente por isso. A gente trazia as carteirinhas aqui, trazia as fotografias dos
grêmios e passava quase a noite inteira fazendo carteirinhas, pondo, imprimindo,
plastificando, para depois devolver para os estudantes. Isso foi formando um grupo. A

55
união por um único serviço vai formando um grupo, lutas essas que o Renato lembra,
essas lutas começaram a surgir. Porque, efetivamente, as coisas não andavam bem,
os grêmios usufruíam da Ules somente quando tinham bailes, mas não tinha uma
assistência da Ules com relação aos grêmios, que ficavam um pouco sem governo.
E a gente, apesar dos tempos difíceis, fomos trabalhar com isso, fomos trabalhando,
visitamos todos os grêmios estudantis, buscando saber as suas dificuldades.
[...] E a gente ia intervir em colégios, escolas, a gente era sempre muito respeitado,
porque a gente tinha liderança sobre a classe. Eu me lembro, algumas vezes, fazendo
os enterros dos diretores das escolas, a gente movia isso juntamente com os grêmios
estudantis. Eu fundei o grêmio estudantil lá no Colégio José de Anchieta, quando eu
comecei a conhecer a Ules, morava aqui no Centro Comercial e descia para cá, por-
que vinha para o centro, trazia as carteiras. E aí eu comecei a me apaixonar por isso.

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Restaurante estudantil
Geraldo Oliveira
Nós conseguimos que o Arlindo Fuganti, que na época era um político em Londrina,
e que o José Richa, que na época era senador... Era uma liderança muito grande entre
nós. Conseguimos trabalhar com a ideia do restaurante, ganhamos um fogão industrial
do Arlindo, que era uma maravilha, ganhamos também um balcão frigorífico, enfim,
toda a estrutura para que nós tivéssemos um restaurante estudantil verdadeiramente.
Foi o primeiro restaurante estudantil secundarista no interior do estado, depois Marin-
gá teve. Nós, a partir daí, começamos a servir refeições diárias para esses estudantes.
[...] mas os preços da alimentação tinham que ser subsidiados, não podíamos pagar o preço
de um restaurante normal. A gente tinha algum apoio do Richa, que nos ajudou muito. O
nome do restaurante era Professor João Olivir Gabardo (MDB), que nos ajudou muito.

56
Renato: Tínhamos dois deputados federais que, nessa época, eram atuantes, Olavo Fer-
reira (Arena) e o professor Gabardo (MDB), e nós conseguimos com os dois verbas
para o restaurante, para as necessidades do restaurante, para além do fogão que já
tínhamos ganhado... Geladeira e uma série de outras coisas.
Geraldo: E precisa carne, arroz, feijão...
Renato: Até no dia de inauguração do restaurante nós ficamos com uma situação deli-
cada aqui, no salão, os estudantes todos de terninhos e escrito acima do restaurante o
nome “Restaurante Estudantil Prof. João Olivir Gabardo”.
Geraldo: E tinha outra coisa, tinha o doador de vários itens do restaurante, o Fuganti,
que era da Arena, imagina só, então...
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Renato: E junto com ele estava o Olavo Ferreira, que também tinha contribuído, en-
tão ficou um clima para a gente... E agora? Todo mundo ajudou, mas só pode um dos
nomes ser homenageado. E eu lembro que o orador abriu com o discurso de que a Ules
era um entidade estudantil, apolítica, que não interferia no modo de votar ou agir de
cada um dos associados.
Geraldo: [...] Nós abrimos ele [o restaurante] em 1969. E aí ficou aberto até 71, 72,
que fechou. A manutenção era muito complicada. Muito jogo de cintura para conse-
guir as coisas. Nós íamos recolher os donativos, pegávamos o carro e nós íamos buscar
arroz, e a maioria das coisas que nós conseguíamos nas buscas que a gente fazia era
na zona rural.

Foto do Restaurante Estudantil da antiga Ules nos anos 70. Da esquerda


para a direita: Nelsione Biendo/Subsede Upes; Carlos Pimenta/Ules;
Leopoldo Apuma/Subsede Upes; Geraldo de Oliveira/Ules; Alexandre/
Subsede Upes; Renato Navarro/Ules; Arlete/Ules; Bonfilho Xavier/Ules.

Acervo Geraldo de Oliveira

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Secundaristas e cultura – Senzules
Geraldo Oliveira
Nesse meio tempo, nós começamos a receber o pessoal da cultura, os secundaristas faziam
cultura, e começamos a receber o Roldão Arruda, o Marcelo Oikawa, o Paulo Nassar, a
Celinha, a Celeste, né?! A Lúcia, enfim, o Nilson Monteiro, esse monte de gente trabalhando
com cultura, e a Ules tomou ares culturais, ela começou a se envolver muito com cultura e
isso nos transformou. Como o Renato falou, a Bulik tinha construído o palco e depois dei-
xou o palco, evidente. E a gente transformou o palco realmente, começamos a participar com
jograis, depois criamos algumas peças, tinha o grupo Senzala, que era um grupo de teatro.

Renato Navarro
O Senzala era formado pelo pessoal que veio da cultura. O Senzala ensaiava seu jogral,

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que era o jogral "O dia", tinha parte do navio negreiro, tinha um monte de coisas. E
nisso a gente assistindo. E nessa de assistir a gente se juntou para fazer algo. A gente até
apelidava de Senzules, que juntou o grupo Senzala e a Ules. E aí foi criada a peça “Dr.
Esperança”, que era uma peça que satirizava a política, o Dr. Esperança era o homem que
vinha revolucionar a Vila Mais ou Menos, que era o nome da vila em que ele havia sido
eleito. Depois dessa peça, que foi apresentada em todas as escolas de Londrina... Depois
disso nós conseguimos autorização para participar do Festival Universitário de Londrina.
E quando montamos a peça com o Roldão, “Piquenique no front”, do Fernando Arrabal,
que era a história de fazer um piquenique no meio da guerra, e lá o pai encontra uma
criança inimiga que passa a interagir com seu filho. No final, todos acabam metralhados.

Grêmios estudantis, carteirinha e meia-entrada


Ednéia Poli
Então, eu fiz parte do jogral, que eu frequentava aqui, não sei se tinha coral, era mais jogral
aqui... Tinham textos, e já textos mais políticos, então, por conta disso, eu vim me agregar
ao grupo. E assim, uma efervescência muito grande. Eu não lembro dos diretores das esco-
las virarem para os alunos e dizerem assim: “Oh, formem um grêmio estudantil”. Não, era
o contrário. Não as escolas pedindo para formar grêmios como tem hoje, não, os próprios
alunos tinham essa iniciativa, para formar os grupos. A gente vinha para o prédio e come-
çou a discutir. Eu lembro muito claramente essa questão. Depois a gente viveu um vácuo,
onde nem se tinha essa movimentação estudantil. E agora os alunos, meio sem saber como
é, tentam se organizar novamente. Eu acho que agora está mais forte um pouquinho do que
na década passada, nas duas décadas passadas. Mas, no nosso tempo, partia dos estudantes
todas as questões de formar um grêmio estudantil. E a gente ia para as escolas mesmo, ia
conversar, e o que queremos, brigávamos muito... A questão do cinema é porque tinha que
ter a carteirinha para entrar no cinema, senão você não entrava e não pagava meia.

A questão de gênero no movimento estudantil – um olhar


Ednéia Poli
Quando eu fui para o IEEL, e nisso eu comecei a me interessar por tudo, e os colegas e
minha família, minha mãe, no caso, pois meu pai já havia falecido, não se opunham.
Ela sempre foi trabalhadora também. Então o que aconteceu? O homem tinha que ser
58
presidente, não era assim, era uma questão política, mas que a gente não discutia muito
para abrir espaço. A gente estava ali. Então “ah, eu quero”. As mulheres trabalhavam,
por sinal, eu fui a primeira mulher da minha família a fazer uma faculdade, eu recebi
até uma carta de um primo dizendo que absurdo que eu estava fazendo com minha
vida, “você tem que casar, ter filhos”. E eu resolvi fazer faculdade. Eu recebi uma carta
sobre isso. Para mim, foi, com essas leituras que eu fui fazendo no Marista, da teologia
da libertação, o Teófilo Bastos foi uma pessoa importantíssima na minha formação pós
Mãe de Deus. E mostrou que existia outro mundo, existiam outras ideias, eu fui me
abrindo. Me abrindo para questão de participar. Tanto que eu sou uma das fundado-
ras da Sociedade Brasileira das Professoras de Matemática, trabalhei dez anos com os
Kaingang, a gente ia de kombi da Funai, coisas assim. Eu me via fazendo parte, não
abrindo espaço porque eu sou mulher.
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Casamentos e Ules
Renato Navarro
Só uma coisinha, só interessante. Tanto o Geraldo como eu... Nós casamos com a Ules.
O Geraldo casou com a Celeste, e eu com a Maria Cândida Santos, e as duas nós co-
nhecemos aqui na Ules.

Músicas e cantorias
Renato Navarro
E você falou “música” e eu lembrei de uma história com o Chocolate, o Noel, ele ado-
rava o samba da Benção, e às vezes ficava eu e ele ali embaixo da escada, perto da sala
da reunião, ele declamava Samba da Benção. E para cantar a gente cantava junto. E
uma outra foi a música dos Beatles, “Yellow Submarine”. A gente não falava nada de
inglês e cantava a música toda [risos]. Trazíamos uma cervejinha e ficávamos can-
tando aqui, esperando o professor Romeu vir... A história do professor Romeu era a
seguinte: a gente ficava cantando e tocando violão, e passava o tempo, a gente estava
cantando mais alto e incomodando os vizinhos, e o professor Romeu morava no fundo,
na casa ao lado, e lá de cima (a gente ficava em cima no mezanino), da janela, dava
certinho para a casa dele. Então a gente percebia a luz acender e o professor saindo
com o roupão dele, e a gente se preparava para ele pedir para a gente parar. “Poxa, já
está tarde, vocês não vão parar de cantar?”, “Vamos, sim, professor”. Mas, esse violão
está desafinado, você não dá uma “afinadinha” para a gente? “Eu vou afinar, sim”.
E essa afinada dava mais uma hora e meia, duas horas de música com ele tocando.

Geraldo Oliveira
Você perguntou a respeito de uma música, né? Tinha uma música que dizia [canta-
rolando]: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. E nós estamos vivendo um
outro dia, apesar de tudo que está acontecendo, a gente tem que lembrar disso, a gente
fez parte de uma luta e continuamos fazendo parte de uma luta. Ninguém encerrou a
vida, a luta não se encerra. Isso está dentro da alma, de quem gosta de trabalhar isso.

59
Ules e Canto do Marl hoje
Renato Navarro
Então, quando eu vejo a Ules desmobilizada, me dá uma tristeza danada. Eu muito
tempo passava aqui na frente e via aquele mato crescendo... Me dava uma dor, uma
frustração mesmo. A gente cuidou disso aí. E hoje, quando eu passo, eu vejo que Marl
está aqui. Eu, em partes, fiquei triste e, ao mesmo tempo, contente. Triste de ver o
desprezo e a falta de interesse dos estudantes, porque eles podiam estar cuidando disso
já há muito tempo. Mas, por alguma razão, dificuldades, os estudantes abandonaram.
E alegre, embora não fosse mais dos estudantes secundários de Londrina, agora tem
alguém para cuidar desse patrimônio físico, incluindo coisas intelectuais na cabeça da
gente que possa desenvolver, então é um misto de tristeza e alegria.

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Ednéia Poli
A memória aqui... Eu também me vi no palco, no jogral, era uma das coisas que mais
frequentava, nossa, era muito jogral, onde estão esses textos dos jograis? Eram uns textos
bonitos. E por muito tempo eu passava aqui em frente ao prédio e via este prédio fechado, e
eu ficava triste, mas eu não entendia por que eu ficava triste. É uma rua que a gente pas-
sa bastante. “Nossa, está fechado...”, “Nossa, está fechado”. “Cadê as pessoas desse lugar?”
Quando abriu esse movimento do Marl, eu fiquei extremamente feliz. Não tinha consegui-
do entrar aqui ainda, mas fiquei extremamente feliz de este espaço poder ser convivência
de pessoas, que têm objetivos, vontades, ideais de mostrar e assumir alguma questão para
este espaço. Ele não se perdeu, ele reviveu. Acho que não é nem reviveu, ele renasceu.

Geraldo Oliveira
É a primeira vez que eu entro aqui depois dos anos 70. Nunca mais tive vontade de entrar.
Senti que perdemos muito, a gente deixou uma parte da vida, vivemos momentos difíceis
aqui. Mas, tivemos muitos momentos satisfatórios que nos trazem boas recordações sempre.
[...] E me sinto muito bem. Voltando agora, não é o piso raspado, não é a parede mal feita,
não é o teto, é o que vocês trazem de vida aqui para dentro. E que vocês continuem com força
para conseguir realizar suas ações, como a gente realizou as nossas. Estivemos aqui, vivemos
aqui, casamos aqui, continuamos. É muito agradável voltar aqui. Vocês estão de parabéns!

Renato Navarro declamando texto do personagem Dr. Esperança


Dr. Esperança: Meus amigos da Vila Mais ou Menos, quando me dirijo a este povo la-
borioso, eu não uso palavras que ninguém entenda, pois não pretendo iludir ninguém,
comigo é na batata. Eu não vim pedir votos e nem fazer promessas, eu falo pouco, mas
vim trabalhar muito, eu conto apenas com as necessidades do povo, com a certeza de que
minha vitória e que o povo, com tantas necessidades, certamente votará em um homem
que atenda a todas elas. Eu! Eu sei perfeitamente quais são as necessidades do povo, por-
que eu fui, eu sou, e serei um homem do povo. Apesar de morar na cidade grande, o meu
coração nunca se afastou das vilas, e se delas me distanciei foi para me preparar, foi para
me educar, voltar Doutor, não para enriquecer e esquecer de minha gente, mas para vol-
tar capacitado para representar o povo e satisfazer os anseios da nação, muito obrigado!

60
TRÊS DIAS DE SHOWS NO HC FESTIVAL
Beta Liberato38
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Ah, eu lembro que, em 1992, mais ou menos, comecei a sair em


Londrina. Sou de Cambé. E aí comecei a ir nos bares, tinham
vários shows. E mais em especial, eu lembro, em 199�, que eu
vim aqui e teve o HC Festival, três dias de shows [risos].
Nossa, foi muito legal. Muitas bandas, muitas bandas de São
Paulo, Rio, Curitiba, nem sei, é... Interior de São Paulo, eu co-
nheci muitas pessoas. Tinha os amigos e era uma galera bem
união mesmo. Tinha uns amigos da galera punk, tinha o pessoal
skatista, tinha roqueiro, tinha de tudo. Então, a gente vinha em
“altos” shows aqui. Mas esse, o HC Festival de 199�, eu acho que
foi feriado de Proclamação da República, em novembro, não é? E
nossa, foi muito legal.

A nostalgia e o sentido de okupar


Entrando ali, nossa, volta tudo no tempo. Uma época gostosa.
Você lembra. É bom essa nostalgia. Eu fiquei bem emocionada,
gostei bastante. E fiquei muito feliz também quando eu soube que
okuparam aqui. Na hora eu falei: “Nossa, vou lá, vou ajudar, vou
fazer alguma coisa”. Então, sei lá, trouxe uns livros, umas coisas
ali, roupa. Vou ver, o que eu puder trazer, o que eu puder ajudar
vocês, isso aqui tem que voltar. É cultura, é arte, então é muito
bom. Porque quando eu lembro daqui, dos shows, do que tinha
de movimento, todo o movimento cultural é válido, né? Eu acho

38
Integrante do movimento punk em
Londrina na década de 1990. Entrevista
concedida três dias após a okupa, em
29 jun. 2016, em visita ao Brasil.

61
que traz coisas boas para a gente e estar aqui só traz coisa boa, sabe? Um tempo bom.
Que pode voltar aqui se vocês conseguirem, né? Tomara, eu apoio. Okupa Ules! [risos]
E aqui estava abandonado [...], então mostrar que tem gente que é a fim de okupar
para a cultura, para a arte, para coisas do bem...

Bandas históricas do Punk no Brasil


Eu confundo aqui com o Gran Mausoléu também, né? Tinha muito show. Então, tinha
muita banda, mas acho que DZK é uma banda do interior de São Paulo que existe até
hoje, e os “caras” estão na ativa ainda e tocaram aqui. O Cólera tocou aqui, né? Foi,
sim. Mas, a lembrança dos amigos, das festas, de andar de skate, sabe? De encontrar
a galera... É muito legal.

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GRÊMIO ESTUDANTIL E O GRITO UNDERGROUND
Marcelo Domingues39

Na adolescência, eu sempre fiz parte de grêmio estudantil nos


colégios. E às vezes a gente tinha reuniões aqui, então eu co-
nheci através dos grêmios que eu participava nessa época, em
1991, 92. A partir disso, comecei a frequentar alguns eventos
que aconteciam aqui através das associações e dos grêmios. Às
vezes, as bandas da cidade organizavam os eventos aqui. Em
96, o “boom” dos festivais nacionais, a gente teve uma ideia
de realizar um festival de bandas independentes em Londrina.
E realizamos esse festival aqui. Inclusive, eu vi alguns vídeos
desse festival.

39
Marcelo Domingues é músico e produ-
tor-fundador do Festival Demosul. Foi fun-
dador da ABRAFIN – Associação Brasileira
de Festivais Independentes e da ALONA –
Associação Cultural Acena Londrina. Entre-
vista concedida em julho de 2016.

62
Londrina Underground Scream
com lotação máxima na Ules
O festival chamava “Londrina Underground Scream”, foi o primeiro
grito da cena independente da cidade. Tocou Convulsão, tocou Ani-
mal de Teta, o Cyclone Pill, o Cherry Bomb, o GAF e o Golgota. Essas
seis bandas tocaram aqui, “cara”, e aí a gente esperava que tivesse
uma repercussão nacional, tinha convidado uns produtores de São
Paulo e do Rio de Janeiro, aí a gente ficou meio frustrado, né, “meu”?!
Porque essa galera, “tipo assim”, respondeu às cartas. Na época, não
tinha tanto e-mail, a internet não era tão popular quanto é hoje, mas
não vieram, acabaram não vindo para o evento.
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E a gente ficou frustrado por causa disso. Mas, ao mesmo tempo,


“cara”, a gente teve uma resposta tão grande do público que a gente
viu essa Ules lotada, tinha gente saindo pelo portão assim, estava
lotado isso aqui. “Cara”, deu tanta gente, tanta gente para ver mú-
sica autoral e música feita em Londrina que a gente falou: “Pô, é
possível fazer um festival na cidade”.

Festival Demosul, fanzines e o movimento-fluxo


E aí, cinco anos depois, eu fui pensar no Demosul, mas começou lá
atrás, começou neste lugar aqui. Inclusive, no mesmo dia, eu quase
“fui em cana”, porque, na realidade, era um dos primeiros eventos
que eu estava fazendo na minha vida, entrou um monte de menor
[de idade], aí chegou juizado de menor, chegou a polícia... Mas o
festival rolou, a galera curtiu. E isso fica na memória, “cara”, es-
sas coisas ficam na história, essas coisas ficam na memória. Várias
bandas daquela época ainda estão na atualidade fazendo música,
vários artistas daquela época.
A gente tinha um fanzine que contava a história do festival, con-
tava a história das bandas, o “cara” que fez a capa do fanzine é
um ilustrador hoje e é professor de artes, o “cara” que escreveu o
fanzine hoje é professor de literatura. Então as coisas evoluíram,
isso aí... 96, “cara”, 20 anos, nós estamos falando de 20 anos, né?!

Nós por nós e a importância da Ules


Então, a Ules é um espaço legal, é um espaço que está na história
da cultura de Londrina, é um espaço que está na história dos jovens
de Londrina, da juventude de Londrina. E eu acho que é um espaço
super, super adequeado para ser okupado e ser realizado movimentos
sociais, culturais, ambientais, tudo que o poder público nos “deixa na
mão”. Então, se eles não fazem, que façamos nós mesmos. É isso aí!

63
ULES NO CINE VILA RICA
Adriana Regina de Jesus40

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É em 1987, na época eu estava com 14 anos, e eu estudava num colégio
público que fica na Zona Norte, que é o Colégio Estadual Olympia de
Morais Tormenta, um colégio assim. Como ficava na Zona Norte, mui-
tas pessoas nem davam muita atenção, então nós não tínhamos muita
estrutura, e isso me incomodava muito, nós não tínhamos estrutura,
professores para poder assumir disciplinas... Então, às vezes a gente ia
embora por causa da falta de professores, e aquilo foi me angustiando, eu
e um grupo de pessoas. Nós ficamos sabendo da Ules, e aí nós resolvemos
procurar a Ules, para saber como, de alguma forma, a gente poderia se
engajar no movimento, para defender a questão da qualidade e do direito
à educação, porque naquele momento... Como uma estudante de perife-
ria, que sempre foi vista assim: “Ah, olha lá, não precisa de muita coisa,
vamos dar qualquer coisinha que eles já gostam”. E, na verdade, a ju-
ventude estava querendo muito mais... Foi que eu encontrei jovens com o
mesmo pensamento, numa possibilidade de pensar uma formação cidadã,
pensar numa formação que trabalhasse com equidade, com diversidade.

Despejo, abandono e militância política


Quando eu cheguei na Ules, o nosso prédio ficava lá no Cine Vila Ri-
ca, nós dividíamos o espaço com o Sindicato, que era a CUT [Central
Única dos Trabalhadores], e ela que sedia o espaço para a gente. Na
verdade, a gente não tinha um espaço próprio. A gente tentava fazer
um movimento, mas a gente não tinha estrutura, primeiro a gente se
reunia na rua, depois conseguimos esse espaço cedido pela CUT, e eles

40
Professora universitária. Estudante secun-
darista que integrou a Ules na década de 90.
Entrevista concedida em maio de 2019.

64
cederam aos sábados. Todo sábado à tarde nós tínhamos reuniões, grupo de estudos.
Nós líamos muita coisa, para você ter uma ideia, eu, com os meus 14 anos, já estava
lendo “O Capital”, de Karl Marx. Nós lemos a Olga Benário, começamos a ler para
entender esse contexto. Era uma reunião com pauta e nós tínhamos um momento
de formação. Nesse grupo de pessoas, nós tínhamos gente de todo tipo de região,
faixas etárias e estilos, nós tínhamos os artistas, tínhamos pessoas que já estavam
na universidade, tínhamos secundaristas e tínhamos pessoas, também, filiadas a al-
guns partidos que participavam dessa discussão. A gente mesmo pertencia à União
da Juventude Socialista (UJS). Só que, naquele momento, era muito tenso, pois nós
trazíamos um resquício da ditadura, aquela sombra da ditadura, daquele regime to-
talitário... Assombrava muito. E a gente queria pensar em uma forma de liberdade,
na luta por direitos. E eu fiz parte da diretoria da Ules como secretária, isso mais ou
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menos na década de 90, eu já tinha assumido a secretaria e, na época, o presidente


era o Márcio Sanches.

Violência institucional, Fora Collor e manifestação pública


[...] foi um momento muito terrível, quando nós fomos à rua, nós sofremos uma
pressão gigantesca, pois tinham muitos policiais que bateram nos estudantes, eu
mesmo fui agredida, o presidente da Ules foi preso. Aí, para não apanhar mais, o
pessoal gritou para deitar no chão, todo mundo deitou no chão para não apanhar
mais, muitas pessoas se machucaram naquele momento. E foi uma coisa assim ter-
rível, pois a gente ficava falando da ditadura e, naquela época, 92, nós achávamos
que estávamos numa democracia, que garante o direito à manifestação pública, mas,
não, foi horrível. Os jovens saíram frustrados e perdidos. E a gente nessa angústia
de ver companheiros indo presos, e a gente falava “e agora? O que a gente vai fazer
diante dessa situação?”. Por outro lado, foi positivo, pois os jovens perceberam que a
gente não tinha uma democracia, que nós estávamos lutando por uma democracia.
Então, o movimento estudantil nessa época era muito forte. Após o Fora Collor, a
gente começou a lutar pela meia-entrada para estudantes, a questão das carteiri-
nhas, que foi um movimento não só de Londrina... Com a Upes (União Paranaense
de Estudantes Secundaristas), a UNE (União Nacional dos Estudantes), a Ules até
chegar aos grêmios estudantis. Nós tínhamos contato direto com essas entidades, nós
fazíamos congressos, seminários.

Música, memória e militância


Nós ouvíamos muito Raul Seixas, era uma coisa que não podia faltar, o “Toca, Raul”
começou com a gente [risos]. E também Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não
falei das flores”, esse era o nosso hino, fortíssimo, era uma coisa muito interessante. E
tinham muitas peças apresentadas aqui, tinha muita gente do teatro, da música, que
participava nesse processo. Eu lembro disso, das festas... Nós fazíamos muitas festas,
a festa tem tudo a ver, a gente tem que ser feliz. A gente acreditava que a felicidade
tem que perpassar pelos caminhos da resistência. Janis Joplin, Raul Seixas...

65
Anos 2000, retomada do lugar e sentidos do okupar
Quando eu entrei aqui, foi fascinante, até quero agradecer pelo presente, a vida passa e
são tantos problemas que a gente se esquece de momentos... Eu já não lembrava mais, é
lógico que talvez muitas coisas que aconteceram lá eu não consegui trazer na memória,
mas este espaço me traz uma energia, assim: “Oh, mesmo que esteja tudo complicado,
mas continuar a sermos resistentes...”. Mudou muita coisa, o espaço da Ules aqui não
era assim, vocês reorganizaram, “deram a cara” do Movimento de vocês, mas eu sinto
a mesma energia, eu sinto uma energia de coletividade, eu sinto uma energia de com-
panheirismo e uma energia de pensar no humano. Queria agradecer. Eu vou chorar...

MOSTRA ZUMBI DO PALMARES

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Agenor Evangelista41

Eu era sempre envolvido com o movimento estudantil... A gente se encontra-


va nos mesmos bares, se encontrava no calçadão. E eu sempre fui interagir
com jovens, para saber o que eles estão pensando, estão fazendo, e foi nessas
conversas... Eu não lembro todo mundo, que surgiu a proposta... Eu não tinha
dinheiro, não tinha espaço e eles estavam reativando... A Ules estava num
drama, também, de fazer carteirinha de estudante, eles estavam numa briga
política ferrenha, que eu também não entendia muito. Eu estava preocupado
era em usar o espaço para fazer a Mostra. Tanto é que, volto a dizer, chega-
mos aqui e tivemos que fazer um gato para ligar a luz, banheiro não tinha...
Então foi a Mostra mais hilária. Pena que naquele tempo poucas pessoas ti-
nham celular para filmar, para ficar as imagens. Mas, foi uma Mostra, assim,
que marcou mesmo. Marcou com uma apresentação do Batuque na Caixa,
um show francês, com as negras reclamando, com briga, com batida de carro.
“Meu”, foi uma Mostra perfeita para mim, no meu ponto de vista, né?
41
Artista plástico e organizador da
Mostra Zumbi dos Palmares. Entre-
vista concedida em abril de 2019.

66
A Mostra Zumbi dos Palmares na Ules
O meu primeiro contato com a Ules foi em 1975. Em 1975, aqui rolava uma disco-
tecagem e, no réveillon de 1975, eu vim curtir aqui... Foi meu primeiro contato com
a juventude da Ules aqui, isso em 1975. Aí se passaram os anos, eu me afastei do
movimento estudantil e a Mostra Zumbi, que iniciou em 1986, ela sempre foi feita
assim, com pouco dinheiro, sem nenhum dinheiro, com ajuda dos órgãos públicos e
das empresas privadas. Mas, em 1996, quando se deu a 18ª Mostra, tinha entrado
o governo do PT e aí a gente estava sem grana para fazer, porque ela aconteceu na
Secretaria, na 16ª, foi a última vez que rolou na Secretaria da Cultura, porque ela foi
da primeira à 16ª na Secretaria da Cultura, a 17ª foi no Museu de Arte de Londrina
e, eu não sei por que cargas d'água, a 18ª a gente... Eu fui meio que relapso, não corri
atrás, corri atrás só dos artistas, e nós não tínhamos dinheiro para fazer a Mostra. Se
não me falha a memória, em contato com o Stanley e mais alguns “caras” do pessoal
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que era presidente aqui da Ules, tinha um rapaz moreno que eu esqueci o nome, que
parece que ele era o presidente na época. "Vamos fazer a Mostra na Ules". E é o único
espaço que a gente tem para fazer, sem dinheiro e no lugar aqui, na Ules. Aí chegamos
aqui, fizemos contato com os artistas. A gente estava sem verba para nada, daí chegou
um amigo meu, italiano, da Itália, e ele bancou caldinho de feijão, bancou vinho.
Então, foi uma Mostra bem hilária. Teve a participação de vários artistas, eu acho, uns
20 artistas participaram da Mostra, eu não me lembro o nome dos artistas. Eu, andan-
do pela cidade num “corre” para comprar as coisas, encontrei um grupo, o Vento Sul,
um grupo de músicos, que tinha músicos de vários países, da Argentina, do Chile, do
Uruguai, e eles estavam de passagem por Londrina e eu convidei eles para tocarem na
Mostra. Eles tinham agenda aberta, estavam passando, e eles toparam. No mesmo dia,
já fui na Folha de Londrina para eles fazerem uma matéria. E, nessa época, esse pessoal
não cobrou cachê nenhum, porque a gente não tinha dinheiro mesmo, a Ules entrou com
800 reais, que o pessoal tinha no caixa, deram 800 reais, que deu para pagar só o segu-
rança, algumas coisinhas que faltavam para o coquetel e um pessoal que trabalhou na
produção, com 800 reais. Eu lembro bem isso daí. É importante falar isso. Mas, quem
bancou mesmo esse coquetel para que a Mostra acontecesse, além do espaço da Ules, foi
o italiano, que chegou, bancou caldinho de feijão, bancou o vinho, bancou os “corres” de
tudo, bancou o cozinheiro para fazer o caldinho, foi na adega, comprou os vinhos, tudo.
E aí veio esse grupo Vento Sul para tocar, não cobrou nada, e teve também a participa-
ção do Batuque na Caixa, do Aldo Moraes. O Aldo Moraes trouxe o Batuque na Caixa
sem cachê também, dentro do projeto dele, ele veio participar, e eu tinha uma amizade
de um recém-chegado em Londrina, Daniel Bussi. O Daniel Bussi, um francês, de Paris,
que adotou Londrina. O Daniel Bussi, ele veio tocar samba, ele fez a tradução do samba
para o francês e hoje o grupo dele chama Zazou Bluz, né? E o Daniel veio tocar. En-
tão, a Mostra, sem nenhuma verba, rolou aqui na Ules, a apresentação do Batuque na
Caixa, com o Zazou Bluz, do Daniel Bussi. E eu até me lembro que a negrada chegou
toda impecável, fraque, de smoking, e as mulheres com aqueles vestidos de baile, de noite.
A Mostra foi interessante, né? O curador da mostra era o Fernando Martinez, fun-
cionário da Secretaria de Cultura. Contratamos o Eduardão para a segurança, porque
nunca houve briga na Mostra, contratamos o Eduardo para cuidar.

67
SHOWS PUNK, SKATE, A UNIÃO E A POLÍCIA
Luis Eduardo Cientista42

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A gente participou de vários shows, eventos. Em vários locais,
espaços de Londrina e outras regiões. E aqui, este espaço traz um
saudosismo muito grande. Porque aqui era a Ules e, em 199�,
o Coletivo Cancrocítrico e o Gralha Negra organizaram o HC
Festival, que contou com a presença de várias bandas de São
Paulo, interior de São Paulo, interior do Paraná e a Hard Mo-
ney, de Londrina, que era a banda que eu fazia parte. E foi mui-
to legal que juntou muitas pessoas, foi um espaço bem grande,
a gente não estava acostumado, assim, com o espaço tão grande,
porque nós utilizávamos antes o DCE da UEL, e conseguir jun-
tar todas essas pessoas foi um grande evento.

Skate e shows
Entrar aqui me traz muita nostalgia. Aqui também foi a sede
do skate park que o Norio organizou. Ele fez a parceria com o
pessoal da Ules. Nós tocamos também várias vezes aqui nesse
período e foi muito legal. Isso em 1995, 1994. Depois, em 1997,
eu me recordo que o Rei, que hoje ele está no Rap, mas antes
ele estava no Rock com a gente, organizou um festival de Rock
aqui. Foi o primeiro show da minha outra banda, a Surface. Foi
o despertar da banda e a gente conseguiu começar aqui. Daqui
saíram várias coisas e a gente está ativo até hoje. E é muita his-
tória que tem este espaço.
O skate park começou em 26 de novembro de 1994. Era a Net
West, foi o Norio que organizou, né? E foi um evento bem legal.

42
Da primeira leva de punks de Londrina,
por volta de 1986. É sociólogo e baterista
das bandas Hard Money e Surface. Entre-
vista concedida em maio de 2019.

68
Tocou várias bandas, misturou Punk Rock, misturou Rap, misturou várias coisas. E foi
uma coisa muito boa de participar. Várias tribos reunidas.
Funcionava durante o dia com a molecada andando. E, às vezes, à noite, eles organiza-
vam alguns eventos. Aí tinha que tirar os obstáculos. Eles tiravam os obstáculos e rolava
show, rolava outras coisas. Apesar de que eu já toquei aqui com algumas rampas e o pes-
soal andando também. Foi legal. Era algo bem interessante para a cidade, porque skate
park era algo necessário. E esse foi um dos primeiros, acredito, criados aqui na região.

A força do underground
A cena underground de Londrina já foi muito forte, né, “meu”? Antes de ter a inter-
net, antes dessa linguagem digital, a gente já fez várias coisas acontecerem. E através
do Coletivo Cancrocítrico, através da banda Hard Money, a gente conseguiu criar um
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público fiel, né? E nos lugares que a gente tocava, mesmo com a divulgação precária,
através de cartazes físicos e com boca a boca mesmo, de um contando para o outro,
a gente conseguia lotar os lugares. E a gente já lotou aqui, a Ules, várias vezes, com
pessoas que vinham de Londrina, de outras cidades da região e também de São Paulo,
porque eram eventos que traziam várias pessoas e chamavam muita atenção no un-
derground nacional.

Hardmoney
Quando a gente montou Hardmoney, a gente já tinha experiência nas bandas Desor-
dem e Regresso e Nem Heróis Nem Covardes, Apenas Adeptos. Então, a gente já entrou
na cena com uma certa bagagem. E tinha uma responsabilidade de fazer um projeto
mais audacioso. E fizemos uma estrutura legal para a banda, com muito trabalho. E
isso teve um resultado. O resultado foi que a gente conseguiu divulgar muito o Punk
Rock aqui em Londrina, inclusive a gente começou tocando alguns covers e depois
começou a fazer nossas músicas. E foi uma referência, várias pessoas começaram a
conhecer as músicas do underground graças à banda Hardmoney.
E isso nos levou a tocar em vários lugares e a organizar os próprios shows. A gente
começou a organizar e a convidar outras bandas, nisso foram surgindo bandas, foram
acontecendo vários eventos, e hoje tem muitas pessoas que têm uma vida diferente, são
professores ou são autônomos, fazem coisas diferentes, graças a ter vivido esse tempo,
conhecido novas possibilidades para as suas vidas, em vez de ter aquela vida quadrada,
rotineira, que o sistema espera de você.
Então, este lugar aqui, quando eu venho aqui, para mim... Eu relembro dos tempos da
Ules, né? Relembro dos tempos do Hardmoney. Porque foi marcante assim. O Hardmo-
ney marcou não só a minha vida, como a vida de muita gente. E o fato de a gente ter
um reconhecimento de público, isso daí nos fez tocar em vários lugares, ficar conhe-
cidos, participar de vários festivais, fazer várias gravações e eu lembro essa fase que
a gente estava fazendo nossas fitas demo e realizando várias coisas ao mesmo tempo.
Quando eu venho aqui, eu lembro dessas fitas demo que a gente estava lançando nessa
época, que foi uma fase muito boa para a banda.

69
União
Para organizar os nossos eventos, para fazer as coisas acontecerem, a gente fez várias
parcerias. Quando a gente ficou sabendo que o espaço da Ules estava rolando, nós viemos
aqui conversar com o pessoal e tentar um canal para um evento. O pessoal até ficou meio
receoso por causa da vizinhança, por causa do som. E a gente era meio doido, assim,
não tinha preocupação, não. A gente faz, se chegar polícia, que “se lasque”, né? A gente
queria fazer o evento. E de tanto a gente conversar com esse pessoal que estava na
diretoria da Ules, eles abriram este espaço para a gente. Vamos arriscar, vamos fazer...
O pessoal da Ules disse que não tínhamos estrutura para isso. A gente falou: “Não, a
gente se vira, faz o melhor possível, ajudamos vocês e vamos fazer do jeito que der”.
Isso foi legal, porque foi uma parceria que começou e deu frutos. A gente participou
de manifestação juntos depois, foi uma coisa que gerou uma união de vários esforços.

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Levaram minha moto presa novinha
Teve um fato que me marcou que foi bem negativo assim, a gente estava num evento
aqui. De repente, teve a informação dos vizinhos e chegou a polícia, e a polícia chegou
entrando, eu lembro que eu tinha acabado de comprar uma moto, na época estava sem
placa ainda, aí eu fui sair, encostei na minha moto, o “cara” puxou a chave da minha
mão. Eu disse para o policial: “Primeiro, o senhor não poderia nem estar entrando aqui”.
Eu entrei, peguei não sei o quê, aí eu tive que buscar documentos comprovando que eu ti-
nha acabado de comprar a moto, aí levaram minha moto presa novinha, colocaram num
guincho. E isso mostra que a sociedade londrinense sempre foi muito conservadora. Ficou
com “pé atrás” com os movimentos culturais, políticos, sociais que aconteciam aqui e a
gente teve uma luta muito grande para conseguir fazer as coisas. Sempre teve esse lado
meio reacionário. Mas, eu acho que foi interessante a gente fazer a diferença. Em vários
aspectos, tanto nos grupos que se uniam quanto nos espaços onde aconteciam as coisas.

Os sentidos do okupar
Eu acho muito importante reativar um espaço legal como este. Ele ficou parado vários
anos aqui, juntando poeira, um empurrando para o outro. Parado mesmo. Totalmente
inativo. E é a okupação de um espaço público que vai fazer muita valia para o ce-
nário político, cultural, da cidade de Londrina. E a gente precisa de muitos espaços,
a cultura precisa falar, ela precisa se expressar, precisa de lugares. E cada vez mais
tentam reduzir esse lugar, então você tem que okupar e tomar esses lugares. Eles não
vão ser dados de bom grado, você tem que fazer acontecer. E o pessoal do Marl está de
parabéns por essa iniciativa, ter colocado o lugar para funcionar de novo.

Os aprendizados do Punk
Quando começou o Punk, a gente estava aprendendo. Você vem de uma sociedade reacio-
nária, uma família patriarcal, em uma cidade que é pequena, que é a cidade de Londrina.
Você começa a aprender as coisas. No começo, a gente tinha muitos preconceitos dentro
de nós. Buscava conhecer esses preconceitos e combater eles. Cada vez que a gente par-
ticipava de um evento, líamos fanzines, fazíamos contato com outros grupos que tinham

70
na cidade. Era muito legal. Assim conhecemos pessoas do movimento homossexual, do
movimento cultural de Londrina, do movimento político. E isso foi tornando a gente cada
vez mais curioso de ver as várias coisas que tínhamos em comum. E começamos a fazer
reuniões no DCE e sempre chamávamos os convidados para falar, pessoas de diversas
tendências, de diversas ideias, inclusive divergentes da nossa. Eu me recordo de uma vez
que a gente fez um debate sobre religião entre diversas tendências [...]. No começo, um
tentava convencer o outro... Mas, a gente começou a questionar... “Quais as premissas
da sua religião? O que une? O que traz você?” No final, descobrimos que o que unia a
todos, até quem não acreditava em religião, era o amor, era o respeito ao outro, então, por
mais que você tivesse a sua religião e ele tivesse a dele, tinham vários pontos que uniam.
E é isso. A gente buscava pontos que nos uniam, mais do que aqueles que nos dividiam.
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BAILES BLACK E FESTAS NA ULES


Reinaldo Augusto Barbosa (MC Rei)43

Eu tinha um amigo que estava comigo, de São Paulo, falei maravilhas


para ele deste lugar. Um “cara” branco, parecia aquele cantor, o Márcio
Greyck, e trouxe ele para o Baile Black. Justo naquela noite, a polícia
resolveu “dar uma batida” no lugar. Os policiais entraram aqui, acen-
deram todas as luzes, as mulheres ficaram deste lado e os homens desse.
Todo mundo passando por revista. Nesse momento, eu tinha ido no
banheiro. Eu não usava nada, não uso até hoje, mas eu apanhei porque
eles acharam que eu tivesse com alguma coisa, escondendo alguma coisa
dentro do banheiro. Eu apanhei da polícia dentro do banheiro. Voltan-
do para o salão, os policiais estavam revistando o pessoal aqui e tinha
um cidadão com um copo de Cuba-libre, que era a bebida da época, e

43
MC Rei (Mister Rei) é produ-
tor cultural. Entrevista concedi-
da em setembro de 2019.

71
o policial “dando geral” nele, na parte de baixo. Ele foi virando e virou o copo nas
costas do policial. Você pode imaginar o que aconteceu, né? O pescoço do “cara” subiu
“dessa altura” de porrada que ele levou. Foi inusitado, mas o restante era muita mú-
sica, muita dança, muita gata. A periferia aqui comandava e era muito legal.

Bandas e música jovem na Ules


E a gente montou o Perímetro Urbano, já era uma mistura de Rap com instrumentos
junto. André Marques era DJ, tocava guitarra, tinha o tecladista e dois vocalistas, e
tinha os dois b-boys que dançavam. Na época, as bandas de Rap tinham os b-boys
que acompanhavam. “Cara”, nossa estreia foi aqui. Não me recordo a banda que era
a banda principal, de fora. Eu não me recordo o nome, foi um “cara” que convidou
a gente para tocar com ele fora de Londrina também... Quem fez show aqui foi o

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Abelha, que tinha o Mausoléu Bar. Aqui eu conheci o “Punk”, o Cientista. Tive uma
banda com o Cientista e com o Rei Santos: Nem Heróis Nem Covardes, Apenas Adep-
tos. E a gente também misturava Rap com Rock’n Roll. A cena do Punk rolava legal
aqui. E eu estava presente em todas, apesar de gostar do Hip Hop, gostar de Black, eu
estava junto nos eventos de metal, eu estava em todos.

Skate Park na Ules


Aqui tinha uma pista de skate que era da Net West, aí o Norio, que tinha uma loja
de skate, roupa para skatista, montou um skate park aqui dentro e, no fundo, tinha
um grafite que era aquela máscara japonesa, parecia um samurai. Estava escrito
“Net West” e, na época, não era grafite, no caso, os “caras” faziam com um aerógrafo.
Tinha um desenho do Celsinho, o Celsinho Tattoo, que tocava numa banda que cha-
mava Cabides, ele se vestia de freira. Ele e o Robson, o filho da finada Dona Vilma.
“Cara”, aqui, de dia, rolava o skate, na noite, aconteciam os shows, encostávamos os
obstáculos de lado, montava um palco aqui e o “pau moía, cara”. Banda de Punk
Rock, de Rap e era isso.

Como era o espaço?


Tinha um palco de concreto, grande mesmo, ele pegava quase todo este fundo. Ti-
nha duas portinhas nas laterais. O palco era meio redondo e as caixas de som eram
montadas nas laterais. Isso aqui lotava. E misturado: polícia, ladrão, as prostitutas
da Vila Matos, elas vinham e eram bem recebidas, ninguém tirava ninguém. O bar
tinha uma janelinha. Tinha banheiro, tinha o de mulher de um lado e o de homem do
outro. Um dia, eu apanhei da polícia dentro do banheiro, mas tudo bem. A gente tinha
uma equipe de som, que às vezes tocava aqui também, e vinha todo mundo da nossa
equipe para dançar junto. A turma do passinho, hoje, tem vários bailes do passinho
e tal... É daquela época. E as festas aconteciam no sábado à noite, não tinha matinê.

72
ROLANDO IDEIAS
Diogo Takeo Hendo44
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A ideia, que eu acho que já vem bem antes de nossa gestão, ob-
viamente, era ligada no que é hoje a casa do professor da APP
Sindicato, você tem lá a instituição, mas tem como se fosse um
"hotel" ali para quem está de passagem. A ideia dessa reforma... A
reforma que nós aprovamos na Câmara, ela tinha três etapas. A
primeira etapa era consertar o telhado, que, aliás, em dias como
hoje de chuva isso aqui virava uma lagoa, virava uma cachoei-
ra. Chovia muito aqui... Foi feita toda uma reforma, isso foi em
2005, final de 2005 ou começo de 2006... Estava condenado [o
teto], mas antes da reforma. Tanto é que foi o primeiro passo da
reforma. "Primeiro temos que consertar o teto, porque senão esse
teto vai cair". Ele realmente estava condenado. Tivemos que trocar
todo o madeiramento, a gente teve que... Ali [apontando para
o teto]... Não, não foi trocado o... Mas foi corrigido... Os pontos
que estavam condenados. E aí, todas as telhas foram trocadas, o
sistema de calha, tudo foi trocado. E aí foi essa a primeira etapa.
Algumas pessoas entravam pelo teto. Eu não sei como eles entra-
vam, mas entravam pelo teto. Era bem mais fácil entrar pela por-
tinha ali, mas eles entravam pelo teto. Então estragou... Algumas
telhas também, aí teve que ser corrigido. Ali na frente, também, ali,
hoje tá fechado, mas antigamente nós fizemos uma cobertura, era
como se fosse um... Uma varanda. A ideia era fazer ali, por exem-
plo... Tem um evento... Ali ficava a parte de caixa ou de bar, o que

44
Presidente da Ules no período
de 2005 a 2006. Entrevista con-
cedida em março de 2019.

73
fosse, e aqui deste lado a pessoa podia receber. Mas, essa era a primeira etapa, que era a
menor de todas, e a segunda etapa seria o fechamento com forro disso tudo, aqui viraria
um auditório. Ali teria um mezanino e teria uma parte aqui que seria colocada, aqui em
cima, no caso, uns dois ou três quartos, dormitórios, com beliche para as pessoas ficarem.
Ali seria como se fosse uma lan house, disponível para o estudante que está aqui no cen-
tro e precisar fazer alguma coisa, ele poderia vir aqui e utilizar os computadores, tudo,
e embaixo seria a parte administrativa, né? Em cima teria uma sala que é da executiva,
da direção, e embaixo seria a parte operacional mesmo. Então teria essa terceira etapa,
que seria essa parte de acabamento e tudo mais da nova sede da Ules. Na frente teria o
estacionamento... Aí parou, congelou, né, nessa troca de prefeito, que aconteceu durante
esse período... Nedson, até 2006. Aí 2008, e trocou, 2005 a gente aprovou a reforma da
Ules como um todo, as três etapas, só que foi liberada primeiro a primeira etapa. Como a
prefeitura quis fazer em três etapas, liberaram a primeira etapa, a segunda etapa nunca

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mais foi liberada. Aí, foi só a primeira, e aí essas duas etapas nunca mais aconteceram,
né? Tanto que a gente tinha uma parceria bem grande com a Secretaria de Cultura,
trazia alguns eventos. Teve um evento, agora eu não lembro o nome, tenho que resgatar
lá, que era com painéis, que foram colocados aqui no fundo, que o pessoal vinha fazer
uma visitação, era uma exposição do movimento, logo que foi aprovada a questão da
Consciência Negra, o Dia da Consciência Negra. Às vésperas, na verdade, de aprovar...
O feriado em si. Durante toda essa discussão, teve um evento grande que foi feito aqui
na Ules também. Nesse período. Tenho que resgatar o nome do evento certinho e as datas.

A okupação do espaço pela juventude


Falando minha opinião sobre o processo de okupação, porque justamente ter um prédio
central deste tamanho desocupado é um desperdício muito grande para juventude, inde-
pendente de qual vai ser a utilidade dele, desde que seja para a juventude, porque até se
tinha uma discussão anterior de que seria aqui um ponto da Guarda Municipal, e isso me
doía muito, né? Então, no momento que eu vi que estava sendo para dar uma utilidade
cultural para o prédio, eu fiquei muito feliz, de fato, e muitas pessoas vieram até conver-
sar comigo perguntando: “Ué, você não acha que ali deveria ser da Ules?". Daí eu falei:
"Se, por ventura, amanhã ou depois, se quiser, a Ules ir conversar com eles... Eu acho que
a Ules não está no prédio, ela está na organização estudantil, independente de onde ela
se localize". O prédio... Ele tem que ser um ponto de referência para as pessoas, para a
juventude. E, se for por meio da cultura, melhor ainda. Porque você consegue agregar...
Fazer essa transversalidade entre, não só a juventude, como também todo mundo que
tem algo para contribuir com a cultura, né? Mesmo não sendo mais jovem de idade, mas
sendo jovem de espírito, ou mesmo não sendo jovem de forma nenhuma, mas tendo algo
para acrescentar. É legal a gente trazer essa troca de experiência e acho fundamental. O
importante é que o prédio, o espaço, seja ocupado para a convivência do jovem.

Ações culturais: Rolando Ideias e Hip Hop


Eu acho que um dos pontos fortes da Ules sempre foi essa “pegada” cultural. Não sei
se justamente pelo fato de tratar com a juventude, você tem essa questão cultural muito
forte. E, eu me lembro, antes mesmo de fazer parte como associado, eu passava aqui

74
em frente, sempre que eu ia para Tamarana, e era o caminho vir
aqui, e eu via o prédio e falava "porra, quero ir ali. Eu quero ir ali
um dia para ver, porque eu sei que rola muita coisa lá, tem show
de Rock que acontece lá até". Teve uma ocasião que veio até o Ira!
trazido pela entidade aqui para fazer um show e sempre foi... A Ules
ficou conhecida com isso. Tanto que um dos primeiros eventos que
eu fui, logo que eu comecei a participar da Ules, foi o aniversário
da Ules, que foi lá no Zerão e teve show de várias bandas lá e aí
foi bem bacana assim, e a galera da cidade conhece muito a Ules
por isso. A Ules ajudou a formar muitas bandas. Durante a minha
gestão, até teve um projeto que levava as bandas para as escolas
para “trocar uma ideia” com os estudantes, explicar como é que foi
a montagem da banda, o que levou a galera a querer fazer uma
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banda, quais eram as dificuldades que eles tinham até chegar a...
Não como profissional, mas começar a fazer shows com públicos
grandes, e isso incentivava também a molecada a querer formar
uma banda, a querer participar mais desses... Desses eventos aí,
né? É... O projeto era “Rolando Ideias”. O projeto, na verdade, ele
começa anterior à minha gestão, e nossa gestão deu continuidade
a esse projeto. Primeiramente, foi um projeto aprovado pela Lei de
Incentivo à Cultura e, na sequência, foi feito basicamente com re-
cursos próprios da entidade, a entidade mesmo que movimentava as
bandas até as escolas. Em uma parceria que a entidade tinha com
algumas bandas de renome na cidade, como Primos da Cida, Banda
GAF, e aí a gente levava as bandas para as escolas e a banda fazia
o show e “trocava uma ideia” com os estudantes também a respeito
de como foi a montagem da banda, né, então foi um projeto que a
gente viu que deu certo com a Lei de Incentivo à Cultura e, depois,
a gente continuou mesmo sem os recursos públicos, né, mas com os
recursos da própria entidade.
Nós tínhamos também um contato grande com o pessoal do Hip
Hop, o pessoal do Rap, até o Rei, MC Rei, tinha um projeto, que a
gente apoiava bastante, que era levar a cultura do Hip Hop para
dentro das escolas, a cultura do MC, a cultura do grafite, da dança,
do break, e ele fazia esses projetos junto com as escolas. Mas, eu me
lembro bastante de um projeto que dava bastante certo, que era no
Heber Soares Vargas, nós fomos lá junto com o grêmio e o pessoal
do projeto Hip Hop – agora não me lembro certo, mas acredito que
também era pela Lei de Incentivo à Cultura, pelo Promic. O Rei era
uma pessoa que coordenava isso e tinha bastante contato com a Ules
nesse sentido, porque estava dentro das escolas, também, levando
esse projeto. Então, teve um projeto bem bacana, que acontecia nas
escolas, que era do movimento Hip Hop. A cena Rock era forte, mas
tinha outras expressões artísticas aí, envolvidas no processo.

75
76
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DA OKUPAÇÃO AO CANTO:
os tempos do Marl
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Capítulo três

Segunda-feira. Dia 27 de junho de 2016. O dia amanhece e as pessoas se orga-


nizam para a labuta cotidiana. Para algumas, o amanhecer foi aguardado com
mais desejo do que se espera para um dia de semana comum. Seria uma quin-
ta-feira singular. Muito do que viria a acontecer nas próximas horas foi cari-
nhosamente preparado pelo Movimento que colocou como meta a importância
de cuidar e de usar os espaços públicos da cidade, principalmente os que se
encontram em estado de abandono. Para tanto era preciso okupar um espaço
com os corpos, com arte, com delicadeza, com vontade e o mais importante:
com esperança. E assim foi. Artistas de rua de Londrina okuparam, neste dia45,
poética, artística e politicamente, o prédio da Avenida Duque de Caxias, 3241.
O cortejo saiu por volta das 11 horas da Concha Acústica, seguiu pelas ruas do
centro da cidade, ganhou ouvidos, levantou vozes e atraiu olhares. Instrumen-
tos, figurinos, pinturas e pernas de pau se misturaram ao cotidiano citadino e o
fizeram parar por alguns instantes. A ação do cortejo foi um ato cultural e con-
tou com uma apresentação coletiva de integrantes do Marl em frente ao Cine
Teatro Ouro Verde, para manifestações sobre o Dia Nacional de Luta pelo Te-
atro de Rua. Porém, o movimento de artistas havia se organizado para efetivar
a ação de entrada no prédio ao término do cortejo. Na mesma proporção que
aumentava o número de participantes no ato, crescia a tensão entre as pessoas
que almejavam a okupação, pois não se sabia qual seria a reação. A cidade vivia
um período de questionamento em torno da questão “quem matou os 20?”46 e
essa questão estava presente nos atos públicos. Após a apresentação, o cortejo
prosseguiu pela Rua Maranhão e pela Avenida Duque de Caxias. Durante o ato,
espalhou-se a ideia entre os participantes da okupação e o que veio depois da

45
A escolha do 27 de junho foi inten- 46
O movimento se refere às 20 pessoas
cional, pois se trata da data eleita co- mortas em janeiro de 2016, na maior cha-
mo o Dia Nacional de Luta pelo Tea- cina registrada na história do município.
tro de Rua. Nesse dia, no ano de 2014, No mês de abril, a pergunta foi pichada no
na cidade de Presidente Prudente, a Edifício Palácio do Comércio e na Concha
atriz e produtora cultural Luana Carla- Acústica (ver: <https://paranaportal.uol.
na de Almeida Barbosa foi assassina- com.br/sem-categoria/policiais-sao-
da em uma blitz de trânsito. presos-por-chacina-em-londrina>).
77
abertura do portão da antiga sede da Ules foi uma grande roda, formada em
meio ao mato que cobria a entrada do prédio. Ao ver as pessoas arrancando o
mato com as próprias mãos, a roda se ampliando cada vez mais, os cantares e
os olhares de entendimento e de aceitação, uma integrante47 do movimento ex-
pressou que, nesse momento, teve a certeza de que não seria fácil.
A dinâmica do movimento urbano, artístico e cultural entrou em cena para
okupar uma territorialidade e para produzir novos significados ao “prédio da
Ules”, bem como para firmar ponto no roteiro histórico-cultural da cidade de
Londrina. Novas oportunidades de vivências e de intercâmbios da arte se con-
figuraram em um novo palco, em um lugar de encontro e fazendo história pela
participação direta e pela ação dos indivíduos na legitimidade da defesa do uso

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do espaço público. Na tarde do dia 27 de junho de 2016 já foi possível “passar
um café”, e essa foi a bebida servida a todos os que ali estavam. À noite, os ín-
dios Kaingang presentes no ato acenderam a primeira fogueira da “okupa”. Nos
interstícios dos tempos que o presente possibilita, formamos rodas e mais rodas
em torno do fogo e tomamos muito café. A okupação se iniciou.

NAS ONDAS DO MARL:


os movimentos na cidade de Londrina
Para compreender o processo da okupação que culminou no que hoje é o
Canto do Marl, faz-se necessário explicar a criação do Movimento dos Ar-
tistas de Rua de Londrina, coletivo que reúne outros tantos coletivos e que
foi o articulador das ações em torno do prédio em foco. Londrina tem forte
“veio” para as artes. No início do século XXI, registra-se no país uma am-
pliação no fomento para o campo artístico e, na cidade, efetivou-se, no ano
de 2003, o Programa de Incentivo à Cultura (PROMIC)48, o qual se tra-
ta de uma política pública que objetiva ampliar a produção cultural em to-
das as áreas por meio de editais que selecionam propostas para receberem
apoio financeiro. Os resultados obtidos pelo PROMIC são reconhecidos mun-
dialmente e provocam alterações valorosas na sociedade para além do cam-
po da cultura, haja vista a circulação dos artistas em vários meios como, por
exemplo, o meio escolar. São vários os projetos, espetáculos, materiais que
redimensionam e ampliam a concepção de ensino e aprendizagem.
Mas, é a rua o espaço mais democrático e no qual uma intervenção provoca mo-
vimentos de interação e/ou rejeição inusitados entre os transeuntes e os artistas.

47
O capítulo foi construído a partir de depoimentos cole- 48
O PROMIC é criado via Lei
tados junto aos integrantes que participam/participaram Municipal nº 8.984, de 6 de
do Movimento. Na construção do texto, optou-se por não dezembro de 2002.
citar nomes, a fim de colocar em destaque o coletivo. As-
sim, a narrativa de cada um se tornou a de todos. Por isso,
as falas foram incluídas no corpo do texto. Trata-se de um
texto escrito a muitas mãos.

78
A realização de uma ação artística na rua redesenha o cotidiano, cria pausas e
respiros em pessoas que por ali passam. Torna a cidade mais humana.
Aliado ao cenário já propício da cidade para as artes, o fomento para a constitui-
ção de um movimento organizado adveio, também, das vinculações estabelecidas
entre os grupos de artistas londrinenses e outros grupos do país que, princi-
palmente por meio de grupos virtuais, construíram uma rede de comunicação
nacional, que tem como resultado a criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua
(RBTR), no ano de 200749. A troca de experiências e os debates em torno das
realidades encontradas nas diferentes cidades para a efetivação de uma política
cultural ativaram a participação política dos participantes. É esse contexto de
aprendizagens mútuas que possibilitou que os laços entre os artistas de rua da
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cidade fossem estreitados. Ao relatar sobre o processo de criação do Marl, um


integrante do movimento indicou que, no ano de 2010, iniciou-se uma mobili-
zação entre os artistas de rua da cidade de Londrina e no Festival de Teatro Po-
pular, promovido pela Fábrica do Teatro do Oprimido – FTO. Realizou-se uma
roda de conversa para discutir a realidade das artes de rua na cidade e vislum-
brou-se a possibilidade de construção de uma organização que pensasse e atuasse
a favor de políticas públicas para as artes de rua na cidade. Tais ações culmina-
ram com a criação, em 2012, do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina, o
Marl, coletivo organizado a partir de muitas mãos.
A fundação do Marl, movimento que objetiva criar um ambiente de discussão
sobre temas relacionados à arte, alavanca a organização da classe artística da ci-
dade que, historicamente, tem dificuldade de promover intercâmbios entre seus
agentes. As ações artísticas, planejadas e organizadas pelo coletivo, espalharam-
-se com mais intensidade por diversos bairros da cidade, ampliando o diálogo
com a comunidade e, com a chegada de outros coletivos que se somaram às lu-
tas do Movimento, o Marl foi se consolidando como espaço de discussão sobre
as políticas públicas para a arte na cidade.
Em 2012, duas demandas se apresentavam como prioridades para os artistas de
rua: primeiro, as dificuldades para exercer a livre manifestação artística pelas ruas
da cidade, visto que era necessário o pedido de autorização junto à Companhia
Municipal de Trânsito e Urbanização – CMTU e à Secretaria Municipal do Am-
biente – SEMA, mediante o pagamento de uma taxa; segundo, sobre a ausência
de espaços públicos para a realização de atividades artísticas e culturais e a neces-
sidade de ocupar os prédios públicos em estado de abandono com tais atividades.

49
TURLE, Lick; TRINDADE, Jussara (Orgs.). Tea-
tro de rua no Brasil: a primeira década do terceiro
milênio. Rio de Janeiro: E-papers, 2010, p. 171.

79
Para entender o engajamento do Marl em torno dessa segunda questão é pre-
ciso situar a realidade das políticas públicas do município de Londrina para a
cultura. Uma das frentes da política pública cultural londrinense são as Vilas
Culturais, locais que abrigam boa parte dos projetos e das produções artísticas
da cidade. Em sua maioria, essas Vilas são alocadas em prédios privados e boa
parte do financiamento público, disponibilizado pelo PROMIC, que poderia
ser utilizado para o fomento de mais atividades artísticas, acaba sendo dire-
cionado para pagamento do aluguel de tais espaços. Foi nesse contexto que o
foco das ações do Marl voltou-se para o estudo dos imóveis públicos em de-
suso que pudessem ser ocupados para realização de atividades culturais junto
à comunidade. Uma sede fixa para o Marl representaria a possibilidade de
organização e de ampliação da formação de seus articuladores na preparação

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de ações na cidade. Tais demandas, debatidas em eventos anteriores, como o
já citado Festival de Teatro Popular, realizado no ano de 2010, constituíram
a primeira pauta do Movimento.
Em 2014, o Marl sediou – ainda sem sede – o 14º Encontro da RBTR e
intensificou a discussão sobre a demanda de ocupação de imóveis públicos
ociosos na cidade e sobre a necessidade de aprovação da Lei Municipal do Ar-
tista de Rua. Uma das ações do encontro foi o ato de okupação da Secretaria
de Cultura para ampliar o diálogo com Solange Batigliana, então Secretária
Municipal de Cultura, na gestão do Prefeito Alexandre Kireeff, a fim de ques-
tionar sobre a aprovação da Lei do Artista de Rua – que já estava na Câmara
havia algum tempo – e, também, para levantar a demanda da ocupação de um
espaço público que não estivesse cumprindo sua função social para se tornar
a sede do Marl. Nessa ocasião, Solange assinou um documento no qual o Mo-
vimento explicava essa demanda e expressava o interesse no prédio da antiga
Ules como potencial para tal ação. No dia 29 de novembro do mesmo ano,
após intensa mobilização junto ao Conselho Municipal de Políticas Culturais,
foi aprovada a Lei nº 12.23050, que garantiu o direito de manifestação dos ar-
tistas em espaços públicos da cidade sem a necessidade prévia de autorização
e sem pagamento de taxas.
Após a aprovação da lei, acentuou-se a organização em torno da necessidade
de colocar em uso os prédios públicos em situação de abandono na cidade e,
em simultâneo, de solicitar uma sede para o Marl. No que se refere ao prédio
situado na Avenida Duque de Caxias, a população, por diversas vezes, expres-
sou o seu incômodo com a situação de abandono, visto que abrigou, durante

50
Disponível em: <http://www.londrina.pr.gov.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=21104:lei-municipal-
regulamenta-apresentacao-de-artistas-de-rua-em-logra
douros-publicos&catid=98:outros&Itemid=985>.

80
anos, o movimento estudantil da cidade, e essas marcas não foram apagadas da
memória dos londrinenses. Que destino dar ao prédio? Será que o teto iria de-
sabar? Essas questões, vez ou outra, entravam na pauta da administração local
e eram divulgadas nas mídias.
Em 2012, ano da criação do Marl e dois anos antes do ato junto à Secretaria
de Cultura, em que o Movimento explicitou o seu projeto de ter o prédio para
sede, a Folha de Londrina publicou uma reportagem – no dia 01/11/2012 –
em que afirma que o então prefeito Gerson Araújo enviou à Câmara dos Vere-
adores, no dia 15/10/2012, o projeto de lei com a “determinação de retomar
o prédio”51. Manifestava-se em tal reportagem a intenção do poder público de
transformar o local em parte da administração pública, abrigando uma reparti-
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ção. O projeto foi aprovado pelos vereadores e revogou-se, assim, a concessão


de uso do terreno e do prédio franqueado até então à Ules. Portanto, quando,
em 2014, o Marl indicou à Secretaria de Cultura a intenção de utilizar o pré-
dio, este era propriedade da Prefeitura.
Em 2016, quatro anos após a decisão da Câmara de Vereadores, o imóvel
continuava em situação de abandono e o Marl não havia recebido nenhuma
resposta para a solicitação encaminhada no ano de 2014. No mês de junho,
começaram a surgir comentários na cidade de que o prédio seria cedido para a
Guarda Municipal, para a instalação de um sistema de segurança privada a ser
implantado pelo Conselho de Condomínios Residenciais da Gleba Palhano. Se-
gundo constante no Jornal da Gleba, “[...] as imagens seriam enviadas à Guarda
Municipal, no GGIM, Gabinete de Gestão Integrada Municipal, localizado na
Avenida Duque de Caxias, antiga sede da União Londrinense dos Estudantes
Secundaristas – ULES”52. Meses depois, em reportagem divulgada pelo Bon-
deNews, tem-se a confirmação de que havia mesmo a intenção de demolir o
prédio “para abrigar a central de monitoramento da Guarda Municipal”53.
É nesse contexto que artistas de rua e outros londrinenses se apresentaram
para exercer o seu direito à cidade54 e okupar poética, artística e politicamente
o prédio da Avenida Duque de Caxias, nº 3241, com a certeza de que o local
deveria seguir cumprindo a sua função social: um espaço público destinado às
práticas culturais. Assim, o resistente prédio, o qual abriga em suas paredes as
marcas do movimento estudantil de várias décadas, abre-se para uma nova re-
presentação: 27 de junho de 2016, dia de esperança.

51
Folha de Londrina. Reportagem de Lúcio Flávio Moura.
Prefeitura tenta retomar terreno doado à ULES. 01 nov. 2012.
52
Jornal da Gleba. 18 jul. 2016. Disponível em: <http://www.
jornaldagleba.com.br/noticias/144/Bairro%20vigiado>.
53
Disponível em: <https://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/prefeitura-
renova-uso-do-antigo-predio-da-ules-para-atividades-culturais-430972.html>
54
LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2009.
81
TEMPOS DA OKUPAÇÃO
"O prédio pertencia à prefeitura e está condenado”55
a ser um lugar de intensas e constantes manifestações culturais56.

Foi-se o tempo de pensar e o tempo de apenas sonhar. O tempo de esperar


agora se transforma em ação. Naquele 27 de junho, os desdobramentos de
um coletivo possibilitaram os diversos tempos de okupar. Depois de inúmeras
tentativas de diálogo com o poder público, essa demanda do Movimento dos
Artistas de Rua por um espaço para trabalhar, compartilhar e conviver foi
atendida, suprindo grandes expectativas. O encontro de tantos artistas e gru-
pos que a cidade abriga está, enfim, próximo. Eis que, nos tempos de okupar, o

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espaço vai se constituindo um lugar prenhe de desejos que, simultaneamente,
transitam entre as necessidades de preservar e de experimentar o novo.
A história de como o prédio foi okupado pela esperança dos artistas será con-
tada por meio de tempos57: tempo da fogueira, tempo da água, tempo do fu-
turo. É um convite ao leitor, para que exercite a imaginação e vivencie muito
do que ocorreu no espaço desde o dia 27 de junho de 2016 até o dia 05 de
dezembro de 2018, quando foi assinada a Lei nº 12.802. Ela conferiu à As-
sociação do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina, Amarl, a permissão
de uso para instalação e manutenção do centro cultural – aberto, gratuito e
de formação artística – no imóvel da Data nº 04, Quadra nº 30, na Avenida
Duque de Caxias, nº 3241.

TEMPO DA FOGUEIRA:
pertencimento
A fogueira aquece, ilumina, agrega, protege. O tempo da fogueira, no processo
de okupação do prédio, foi marcado pela tensão frente ao que poderia aconte-
cer e pela empolgação de se ver efetivando um sonho acalentado durante anos
de haver um canto para as ações culturais do Movimento dos Artistas de Rua
da cidade. Cronologicamente, podemos identificar o tempo da fogueira como
o primeiro mês de trabalho, ainda que essa datação seja insuficiente para com-
preendermos o que se estrutura nesse período, pois as vivências se prolongam
pelos demais tempos e se fazem presente no cotidiano do Canto do Marl: nos
laços entre as pessoas e os coletivos envolvidos; no comprometimento do po-

55
Fala de um jornalista da cidade
ao noticiar a okupação (28 jun. 2016).
56
Complementação por parte dos autores desta obra.
57
Narrativa inspirada na forma como está organizado o
Museu da Maré, no Rio de Janeiro, e que pode ser co-
nhecida na Série Conhecendo Museus. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=TVHrrtM9UD0>.

82
der público em encaminhar as questões e os envolvimentos de pessoas de ou-
tros setores da sociedade que se aliaram ao Marl na empreitada de criarem um
espaço cultural para Londrina. A palavra eleita para representar o tempo do
fogo é “pertencimento”. De diferentes formas, pessoas diversas se agruparam
em torno do prédio, estabelecendo com ele uma relação de pertencimento, a
qual se expressa quando cuidamos do espaço transformando-o em um lugar58.
Um lugar para muitos.
O cortejo entrou pelo terreno que se interpõe entre o muro e o prédio e
estabeleceu uma via de comunicação, convidando as pessoas – tanto do Mo-
vimento como as que observavam de fora – a se indagarem sobre o que esta-
va ocorrendo. Segundo relatos de pessoas que participaram do cortejo, após
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adentrarem o prédio abandonado, formaram a roda e cantaram. Minha Ciran-


da59 entoada ainda em meio ao mato:

Essa Ciranda não é minha só Pra se dançar ciranda


Ela é de todos nós Juntamos mão com mão
A melodia principal quem Guia é Formando uma roda
a primeira voz Cantando uma canção

Se essa rua fosse nossa! Outra canção que ecoou e deu cadência aos passos e
ao bailar das enxadas e das vassouras que, comandadas por muitas mãos, foram
as ferramentas usadas para arrancar o mato e remover o lixo. Esse ato ocorreu
logo após a primeira roda e, em meio aos gritos Okupa eu! Okupa tu! Okupa to-
do o mundo!, agregaram-se as ações de agir e de transformar a partir do que se
tem. Essa marca permanece em todos os eventos realizados no Canto do Marl,
pois okupar significar agir com os corpos e as mentes em um projeto coletivo,
significa trabalho, muito trabalho, em condições nem sempre adequadas para o
desenvolvimento dele. Assim foi.
A okupação ocorreu ao meio-dia aproximadamente e várias pessoas circula-
vam pela calçada. Algumas se achegaram ao muro para saberem o que estava
acontecendo. As duas primeiras horas foram as mais tensas e imprevisíveis,
pois, apesar de todo o planejamento realizado nos dias anteriores, tudo era
muito incerto. O que estávamos vivenciando era um misto de empolgação e
de tensão. A resposta do poder público veio nesse período de tempo: a Guar-
da Municipal compareceu ao local para averiguar o ocorrido e, logo depois,
o prefeito Alexandre Kireeff ligou para um integrante do Movimento questio-

58
TUAN, op. cit.
59
Sobre a autoria de Minha Ciranda, há duas versões entre os ciran-
deiros do Recife. Uma credita a autoria à Lia de Itamaracá; outra, ao
mestre cirandeiro Antônio Baracho. A canção foi gravada por Teca
Calazans. Sobre o assunto, consultar artigo de Déborah G. Callender
França, disponível em: <https://www.encontro2010.historiaoral.org.br/
resources/anais/2/1270040269_ARQUIVO_ArtigodeHistorialOral.pdf>.

83
nando sobre o ato. O pessoal do setor de patrimônio da prefeitura dirigiu-
-se para o local para solicitar informações e pressionar os integrantes para
que se retirassem. A imprensa também se fez presente para registrar a ação.
Para atender a essas demandas, efetuou-se a divisão de trabalho e foram compos-
tas comissões. Houve significativa colaboração do pessoal da permacultura, que
iniciou as bases para uma cozinha e um banheiro provisórios. As doações come-
çaram a chegar e pessoas importantes nos cenários cultural, político e educacio-
nal da cidade se dirigiram ao local para saberem o que estava acontecendo. Para
todos, eram explicados a razão do ato e os desdobramentos a serem realizados.
As primeiras reações vindas da população chegaram via transeuntes que, ao
passarem pelo local e se depararem com a movimentação atípica, expressavam

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reações com frases do tipo: “ainda bem que será feito algo com esse prédio”.
Alguns prosseguiram justificando a fala a partir da insegurança causada pelo
abandono, outros pela aparência “feia” que o prédio conferia à rua. Um fato
em especial daquele dia desencadeou a realização do Projeto Lugar de Vivên-
cias. Uma integrante do Movimento que se encontrava próxima ao portão foi
abordada por um cidadão bem simples, que perguntou alegremente: “o que está
acontecendo na Ules?”. Recebeu a explicação e, ao escutá-la, lançou um olhar
esperançoso para dentro do terreno e disse: “Eu vivi tantas coisas boas aí den-
tro. Tomara que volte”. Essas frases funcionaram como um gatilho para indicar
a importância de se coletar as memórias das pessoas em relação às vivências
naquele prédio e, em pouco menos de uma hora, foi providenciada uma mesa,
uma cadeira, um guarda-sol e umas folhas de papel com a frase: “Conte aqui
suas memórias sobre o prédio”. Em um caderno, fomos anotando o nome e o
telefone de todas as pessoas que indicavam que tinham histórias para contar60.
No entardecer daquele dia já foi possível passar e tomar um café na cozinha
improvisada com o auxílio do pessoal da permacultura. O cheiro do café pro-
voca inter-relações e aguça o sentido de pertencimento e, em Londrina, prin-
cipalmente, depois que se toma um café, tudo se apresenta de um modo mais
potente. Ao anoitecer, a fogueira foi acesa pelas mãos dos índios Kaingang que
estavam presentes no Movimento. Não houve um planejamento prévio para que
isso ocorresse. Alguém precisava fazer a fogueira e quem tinha esse saber eram
os Kaingang. Porém, como nada é por acaso, quando todos estavam na mes-
ma ciranda, nossa ancestralidade se fez presente nesse ritual. Esse fato tem um
significado especial para o Canto do Marl e será contado e recontado para as
futuras gerações que por lá estiverem. Foi em volta dessa fogueira que, na ma-
drugada do dia 28, o prefeito apareceu para conversar com todos os presentes.

60
O caderno com os nomes é posse do gru-
po de pesquisadores. Algumas pessoas fo-
ram entrevistadas para essa fase do projeto,
a qual compreende este livro. Pretende-se
avançar com outras ações e ouvir todas as
pessoas que deixaram seus dados.

84
O tempo da fogueira foi marcado pela ausência de água e de luz elétrica, mas
teve muita presença de pessoas que foram chegando e colocando a serviço
do coletivo os seus saberes para os tantos fazeres necessários. Uma okupação
funciona de um jeito muito mágico, sem ninguém falar nada, sem ninguém
mandar fazer nada, sem ter um plano, sem ter uma ordem... As pessoas che-
gando, cantando, entrando, fazendo, trabalhando e capinando, criando móveis
com restos de madeira e compondo um campo de energia muito potente, que
impele para o ato de construir algo, de cuidar de algo. Nas primeiras semanas,
a organização coletiva e horizontalizada, que já era vivenciada no Marl, foi
o tipo de gestão a partir da qual as ações foram realizadas. Com o passar do
tempo e com a necessidade de criação da Amarl, que será tratada no Tempo
do Futuro, manteve-se o formato coletivo, contudo se tornou necessário ins-
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titucionalizar os procedimentos para prestar contas à população e ao poder


público quanto ao uso do prédio.
O tempo da fogueira foi marcado, também, pelo posicionamento de diver-
sos setores da sociedade em relação ao ato. Os contrários em transformar
o prédio abandonado em um espaço cultural expuseram seus argumentos, e
os favoráveis se aliaram na empreitada das negociações junto ao poder pú-
blico municipal. De nossa parte, por meio dos grupos de trabalho formados,
recorremos à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para estudar sobre as
possibilidades legais de encaminhar a cessão do prédio para o Marl e busca-
mos a Universidade Estadual de Londrina para saber sobre a real condição
da estrutura física do prédio. Laudos técnicos foram elaborados e auxiliaram
muito nos encaminhamentos das tratativas junto à Prefeitura de Londrina e,
em especial, junto à Secretaria de Cultura. O prefeito Alexandre Kireeff con-
firmou sua participação na plenária do dia 05 de julho e, nessa data, apresen-
tamos nossa proposta de utilização do prédio. A conversa com o então pre-
feito aconteceu durante a noite devido à disponibilidade na sua agenda. Foi
nesse dia e novamente em volta da fogueira que o poder público reconheceu
os significados que o povo do Marl almejava dar àquele lugar.
Muitos se fizeram presentes no evento. Por meio da análise do vídeo e das
fotos tiradas no dia, calcula-se que havia em torno de 100 pessoas – entre
jornalistas, professores, Kaingangs, artistas, artesãos, profissionais de diver-
sas áreas, estudantes, curiosos. Na reunião, entre as luzes das estrelas e do
fogo, foi lido o manifesto do Marl com a apresentação pública do compro-
misso do Movimento para com o passado que o prédio da Ules representa,
entendendo-o como patrimônio para a cidade, assim como do comprome-
timento com o futuro, transformando o prédio em um potente espaço cul-
tural. Reproduzimos na íntegra o manifesto de autoria coletiva por consi-
derarmos que se trata de um marco no que viria a se transformar, meses
depois, no Canto do MARL.

85
O MARL (Movimento dos Artistas de Rua de Londrina), cuja organização é
horizontal e suprapartidária, foi criado em fevereiro de 2012 com o objetivo
de reunir artistas de todas as áreas que desenvolvem o seu trabalho em espaços
públicos. O Movimento, que é um braço da RBTR (Rede Brasileira de Teatro de
Rua), criada em março de 2007, visa estimular discussões artísticas e políticas
referentes, principalmente, à cidade de Londrina, possibilitar a troca de informa-
ções e experiências, solidificar parcerias a fim de promover ações político-cul-
turais e garantir o intercâmbio entre os artistas londrinenses e os movimentos
culturais brasileiros.

Desde o período de sua fundação, o Movimento tem realizado ações no sentido


de possibilitar o avanço das questões relacionadas ao fazer da arte pública, co-
mo a utilização dos espaços públicos pelos artistas. Em dezembro de 2014, foi

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aprovada a Lei do Artista de Rua na cidade de Londrina (Lei nº 12.230), que
regulamenta a utilização dos logradouros públicos pelos artistas de rua, para
que estes não mais tivessem que pegar taxas ao realizar suas atividades nas vias
públicas e pudessem, assim, ter o direito constitucional de livre expressão as-
segurado. Ainda que haja uma dificuldade no sentido da falta de conhecimento
e de preparo em relação à implementação dessa lei por parte de alguns órgãos,
como a CMTU (Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização de Londrina)
e a Guarda Municipal, trata-se de uma importante conquista do Movimento, que
agora luta pelo reconhecimento dela.

Esta abertura de diálogo com o poder público e a sociedade em relação à re-


gulamentação das atividades realizadas pelos artistas de rua possibilitou que o
Movimento colocasse em pauta outra questão que já se apresentava como uma
de suas demandas no período de sua criação: o conhecimento acerca da quan-
tidade e situação dos espaços públicos em desuso, em estado de abandono pelo
poder público, bem como a possível transformação de alguns deles em espaços
de fomento artístico, geridos por artistas e coletivos de arte da cidade. Essa ideia
surge como alternativa para a resolução de uma problemática presente na reali-
dade cultural da cidade, que diz respeito ao fato de as vilas culturais, financiadas
em sua maioria por verba pública por meio do PROMIC (Programa Municipal
de Incentivo à Cultura de Londrina), funcionarem em espaços privados. As vilas
culturais são espaços destinados ao fazer artístico em suas mais variadas ver-
tentes, portanto desempenham uma importante função de formação cultural da
cidade. Uma significativa parcela do orçamento disponibilizado anualmente para
cada vila que tem o seu projeto aprovado pelo PROMIC é destinada para o pa-
gamento dos aluguéis desses espaços, impossibilitando que boa parte dos recur-
sos seja efetivamente usada em prol da manutenção e da construção de projetos
culturais nas vilas. Dessa forma, o Movimento acredita que haja uma deficiência
na articulação dessa política cultural, que deveria possibilitar o financiamento de
projetos culturais para a cidade, mas que, ao invés disso, contempla a iniciativa
privada, fazendo com que uma verba pública seja injetada diretamente no merca-
do imobiliário. Esse mapeamento dos imóveis públicos em desuso, solicitado via
Secretaria de Cultura, via Conselho de Cultura, via Marl, nunca foi cedido. No
ano de 2014, durante o XIV Encontro da RBTR, sediado na cidade de Londrina,

86
86
o Movimento promoveu uma reunião com a Secretária de Cultura, na qual ela
forneceu um documento ciente da demanda dos espaços públicos inutilizados e
do interesse do Movimento na utilização desses espaços.

No dia 27 de junho de 2016, o Movimento, em diálogo com uma mobilização


nacional em favor da arte pública promovida pelos articuladores da RBTR, deu
início ao processo de ocupação do barracão localizado na Avenida Duque de
Caxias, no centro da cidade, que se encontrava em estado de abandono há mais
de dez anos. A escolha por ocupar este espaço se deu em razão da importância
histórica dele, que desde o início dos anos 60 foi sede da Ules (União Lon-
drinense dos Estudantes Secundaristas), sendo construído como um lugar de
efervescência política e cultural significativo para a cidade de Londrina. Uma
das preocupações do Movimento em relação à ocupação deste espaço era pos-
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sibilitar o estudo da memória dele. A fim de realizar essa tarefa, o Marl estabe-
leceu parcerias com pesquisadores que pudessem auxiliar no levantamento da
história do local e contou com o suporte do Grupo de Pesquisa de História e
Ensino de História da UEL, bem como com o apoio inicial do NDPH (Núcleo
de Pesquisa e Documentação Histórica da UEL). O processo de pesquisa dos
dados históricos começou a ser realizado já na primeira semana da ocupação,
por meio do mapeamento das reportagens em estado de arquivo na Biblioteca
Municipal de Londrina e da coleta dos relatos de pessoas que possuem memórias
em relação ao espaço. Esse estudo, ainda em sua etapa inicial, retrata os dife-
rentes momentos vivenciados pela Ules, fases de intensa mobilização política e
cultural e outras de desarticulação da organização e consequente abandono do
espaço. O Movimento acredita que a decisão de preservar e de como preservar
este espaço está muito além de manter as paredes de concreto em pé, trata-se da
possibilidade de manter vivo o espírito do lugar, representado pelas pessoas que
ali viveram anteriormente.

Nesse sentido, o projeto do Movimento é que este lugar continue sendo um es-
paço de luta e resistência política e artística, gerido pelo Marl em diálogo com
a Ules, para que sua sede permaneça no local e também para que um memorial
da história dessa organização possa ser construído no espaço, a fim de garan-
tir sua importância simbólica na construção da cidade de Londrina. O projeto
contempla também a utilização do espaço pelo Movimento como sua sede, que
funcionará como lugar de trocas artísticas, ensaios e encontros, e também como
local de armazenamento do material de trabalho dos coletivos. A ideia é que o
espaço também tenha a característica de um centro de formação artística, po-
dendo, dessa maneira, estabelecer parcerias com as escolas municipais e estadu-
ais na realização de atividades formativas com as crianças e os adolescentes. O
projeto prevê a reforma do local, que será custeada por um financiamento cole-
tivo e também pela realização de eventos, festas, mostras e festivais. A reforma
e os laudos técnicos preliminares estão sendo preparados e estudados por meio
de parcerias com o projeto OCAS, da UEL, o Sindicato da Construção Civil e
outros profissionais autônomos favoráveis à causa. Esses laudos preveem um or-
çamento aproximado de 30.000,00 (trinta mil reais) e contemplam a primeira
fase da reforma do espaço, na qual serão realizados os seguintes trabalhos: de-

87
detização, reforma das calhas, resolução da infiltração das paredes, reforma dos
banheiros, das janelas e das portas, e reforma da parte elétrica e hidráulica do
espaço. Essa reestruturação inicial viabilizará a entrada do Movimento no prédio
e a continuidade das etapas seguintes. Parte do recurso necessário à reforma já
está sendo angariado através de doações espontâneas da comunidade e também
por meio de ações e eventos que estão sendo promovidos pelo Movimento e por
outros coletivos parceiros. O objetivo é que seja possível concretizar essa refor-
ma inicial até o mês de novembro deste ano, para que o espaço possa sediar o
XIX Encontro da RBTR, que acontecerá em diálogo com A MARÉ – Festival de
Arte em Movimento, ambos articulados pelo Marl.

O Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (Marl) acredita que seu projeto
de utilização do espaço, que nesta primeira semana de ocupação já acontece por

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meio de uma intensa programação cultural no local, é uma proposta que dialoga
com a história do lugar e que proporciona o surgimento de novas possibilidades
para ele através de um viés artístico e criador. Dessa forma, o Movimento se
coloca contrário à proposta de utilização deste espaço como posto da Guarda
Municipal de Londrina, projeto que vem sendo articulado nos últimos anos
pela Prefeitura, por acreditar que o funcionamento de um órgão de controle e
segurança da cidade em nada dialogará com o valor histórico e simbólico do
prédio. A proposta do Movimento é que este espaço seja um ambiente que fa-
voreça a construção de um olhar mais sensível e humano para o mundo e que,
em vez do estabelecimento de um local que visa controlar, vigiar e punir, possa
ser construído um espaço criador de novas alternativas através do poder trans-
formador da arte.

Londrina, 04 de julho de 2016.


Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL)

O manifesto foi assinado por 15 coletivos: Cia. Boi Voador; Cia. Curumim Açu;
Cia. Palhaços de Rua; Cia. Teatro de Garagem; Clã Pé Vermelho – Permacultura
e Bio-construção; Coletivo Cão sem Plumas; Comitê do Passe Livre de Londrina;
Comunidade Kaingang; Frente Antifascista; MACUL – Movimento Artesanato é
Cultura; Maracatu Semente de Angola; Movimento Cultura Londrina contra o
Retrocesso; Movimento Punk; Núcleo Ás de Paus e Teatro Kaos. Assim, por meio
de seus coletivos, a cidade manifesta a necessidade de exercer o direito à cidade.
Em volta da fogueira, representantes de todos os coletivos citados se fizeram
presentes para dialogar com o prefeito sobre as intenções do Movimento. Fo-
ram apresentados alguns pareceres técnicos sobre a viabilidade e a importância
da transformação do prédio em um espaço cultural. Sobre as condições estru-
turais do prédio, após uma análise prévia, que seria depois pormenorizada, foi
dito que se trata de uma construção sem muito concreto, mas com muito tijolo
maciço, pois as paredes externas são todas de tijolo maciço e construídas com
um tijolo e meio, totalizando quase 50 centímetros de espessura, e se encontram
muito bem conservadas.

88
As intervenções que precisavam ser feitas quanto à segurança estrutural se-
riam mínimas. A respeito dos encaminhamentos relacionados à parte jurídica
para viabilizar a cessão do prédio, foram explicitados os encaminhamentos e
as possibilidades a serem feitos. Argumentou-se, ainda, sobre a importância e
o significado do ato de doação do terreno na década de 1950 para os estudan-
tes e sobre a luta deles para construírem o prédio e as marcas que esses fatos
imprimiram na história da cidade, o que eleva a necessidade de preservação do
prédio. Informamos ao prefeito e aos demais presentes em torno da roda que,
desde o primeiro dia da ocupação, houve a preocupação em chamar historiado-
res para que analisassem os materiais encontrados no prédio. Contamos tam-
bém que foram fotografadas todas as imagens constantes em seu interior, como
adesivos, pichações, grafites e mensagens, para a organização de um acervo para
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estudos futuros. Ao longo das falas, que recebiam apoio das diversas camadas
da sociedade, o grupo comemorava com música.
O prefeito dialogou com os presentes respondendo às questões, posicionando-se
favoravelmente quanto ao uso do prédio enquanto um espaço cultural, sede do
Movimento dos Artistas de Rua de Londrina: “o que eu falei que poderia ser um
obstáculo é se já tivesse tido gastos públicos no desenvolvimento deste projeto,
referente à Guarda Municipal, mas isso não existe. Considerando que a utilização
deste imóvel pela Secretaria de Segurança, de Defesa Social, exigiria investimen-
tos na reforma do imóvel, investimento em tecnologia, que também não temos a
verba necessária, e considerando que vocês têm já disposição da utilização ime-
diata do imóvel, não me parece inadequado que este imóvel seja cedido à prática
cultural”. No evento, não foi assinado nenhum documento formal, pois, segundo
informações de assessores que acompanhavam o prefeito, ele já estava impedido
de fazê-lo, considerando o prazo de três meses para as eleições municipais.
Naquele momento, em roda e em volta da fogueira acesa pelos nossos ances-
trais, os presentes comemoraram entre aplausos, danças, abraços e olhares es-
perançosos. E cantaram:

Sou legal, eu sei Mas isso não sei


Agora só falta convencer a lei Se vão deixar dizer
Sou real, eu sei Eu sei que tudo o mais
Agora só falta convencer o rei Vai pro beleléu
Eu sei que sou legal A terra, o mar, o céu
O duro é provar Mas nessa hora eu quero mais é estar
Que sou legal, eu sei Com a turma do pinel61

Música cantada em roda pelos pre-


61

sentes na noite da fogueira: Sou Legal,


Eu Sei. Composição: Ivo Rodrigues e
Paulo Leminski. Grupo Blindagem.

89
Nessa noite, o universo nos presenteou com uma estrela cadente, que foi vista
por alguns de nós já no adentrar da madrugada. No entrecruzamento dos olha-
res, sem falas, realizamos o pedido: vida longa ao espaço cultural!
Após a reunião com o prefeito, prosseguimos discutindo junto ao poder pú-
blico as possibilidades de regularizar a okupação. O caminho que viria pela
frente não seria nada fácil, mas, assim como na história da humanidade, o
domínio do fogo tem um significado ímpar, o tempo da fogueira também
imprimiu uma marca singular no povo do Marl e em todos os que vieram (e
virão) fazer parte dessa experiência, que é dar um novo significado ao lugar.
Acendemos o fogo, formamos a roda, cantamos, dançamos, tomamos café,
trabalhamos, negociamos, ouvimos, falamos, fizemos a roda da ciranda girar.

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Criamos laços entre as pessoas e com o lugar: pertencimento.

Registro feito na madrugada do dia 28/06/2016 após a reunião


em que o Marl apresentou o manifesto para o poder público

Fotografia: Lucas Godoy

90
Roda de capoeira realizada nas primeiras noites da okupa-
ção. A cozinha improvisada é vista ao lado direito (2016)
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Fotografia: Lucas Godoy

TEMPO DA ÁGUA:
florescer
A água limpa, refresca, inunda, transborda. O tempo da água no processo de
utilização do lugar foi marcado pela feitura de muitas ações que, em meio ao
inacabamento de um prédio sem vidros, sem banheiro e tantos outros “sem”,
completou-se com encontros, mostras culturais, peças de teatro, shows, oficinas,
cursos, feirões... Foi – e continua sendo – o tempo do fazer acontecer o melhor
possível e nas condições que se tem para construir em conjunto as condições
que seriam ideais. De maneira cronológica, podemos marcar como início do
tempo da água o dia em que foi possível fazer a lavagem interna do prédio, e
prossegue como um curso de rio que leva as águas recebidas na nascente em
direção ao mar. No nosso caso, é em direção ao Canto do Marl. No tempo da
água, a semente de esperança lançada no lugar germinou. Por isso, a palavra
eleita para representar esse tempo é: florescer.
O pacto selado com o poder público em torno da fogueira nos trouxe alívio
quanto aos encaminhamentos das negociações no âmbito do diálogo e da ci-
vilidade. Ainda assim, passar as noites nas barracas não era tarefa simples.
Montamos um sistema de revezamento para cuidar do prédio dia e noite e,
também, grupos para estabelecer contato com os vizinhos para explicar a cada
um o que era o Movimento, o que se pretendia em relação ao espaço e a fim
de convidar para um café.

91
Visitamos os estabelecimentos comerciais situados na Avenida Duque de Caxias,
entre a Avenida Juscelino Kubitschek e a Rua Benjamim Constant. De forma ge-
ral, os relatos dos grupos nas plenárias, realizadas diariamente no início da noite,
mostravam a aceitação das pessoas em relação ao ato. A iniciativa de fazer a vi-
sita e convidar para um café foi fundamental para se criar uma rede de relações
que fez diferença quando, no ano de 2018, um pequeno grupo contrário à cessão
do prédio para a Amarl apresentou-se como uma Associação dos Comerciantes
da Duque de Caxias. Não era. E o acontecido fortaleceu ainda mais os laços entre
o Canto do Marl e a vizinhança.
No tempo da água, já se ouviam suspiros mais aliviados entre os integrantes
do Movimento. Tempo de lavar a alma, tempo de lavar o chão, as paredes, de

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refrescar as esperanças e sentir a potência de realização que cada coletivo trazia
para o grande coletivo que é o Marl. A água foi chegando por meio da partilha
dos comerciantes próximos. Baldes e mais baldes... No dia 10 de julho, o dono
do estabelecimento que conserta máquinas de lavar roupas cedeu a água com a
qual foi possível fazer a lavagem do chão e das paredes. A lavagem foi um ato
que contou com a participação de muitas pessoas, e a cantoria marcou o ritmo
do trabalho. O ar se encheu de esperança no que estaria por vir.
O Marl, ao desencadear o ato de okupação, provocou movimentos diversos na
cidade de Londrina. O grupo, que se articulou para garantir o seu lugar, ala-
vancou a discussão sobre o uso dos espaços “vazios de significados”62. Os mo-
vimentos provocados pela okupação convidaram os moradores a conhecerem
outras possibilidades de transformar velhos espaços, e o que “estava feio, cheio
de mato e com uma pintura horrível”63 passou a ser preenchido de cor, melodia
e poesia. A cidade, aqui retratada pela voz de um trabalhador que passava no
momento da okupação, ressignifica-se. Em meio a todo esse processo, um se-
nhorzinho chegou, entrou e perguntou o que estávamos fazendo ali. Explicamos
o nosso projeto para o prédio, o que iríamos fazer, o que já estávamos fazendo
e que estava acontecendo a okupação cultural. Então, ele falou algo que nos to-
cou muito: “Nossa, vocês foram muito bem-educados, eu imagino que os pais
de vocês tenham muito orgulho de vocês, porque vocês não desistem dos seus
sonhos, vocês lutam por eles”. Para nós, foi muito significativa a fala dele, pois
era um sonho pelo qual estávamos batalhando e que, cada vez mais, tornava-se
palpável. A cidade educa por meio das escolhas que faz em todos os campos, por
meio das políticas públicas que define como prioritárias e, cotidianamente, por
meio dos caminhos que elege para resolver os problemas citadinos.

62
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 120.
63
Fala de um transeunte no dia da okupação.

92
Administrar coletivamente uma okupação e, no nosso caso, transformá-la ao
longo do tempo em um espaço cultural vinculado ao poder público não é tarefa
simples. As plenárias realizadas diariamente no tempo da fogueira passaram
a acontecer uma vez por semana no tempo da água. Planejadas para durarem
duas horas, alongavam-se para quatro, cinco horas. É fato a dificuldade de
planejar as ações em um coletivo tão grande como é a união dos coletivos que
compõem o Marl, pois somos pessoas muito diferentes, que trabalham em ni-
chos muito diversos, e algumas demandas pedem um tempo mais ágil. Por isso,
fez-se necessário que algumas pessoas tomassem a frente em campos mais es-
tratégicos. Aprender a delegar e a agir dentro de um coletivo é um processo de
aprendizagem lento e complexo, mas também é uma forma de unir as pessoas,
de estabelecer trocas e de aprender a lidar com os conflitos. Nós okupamos o
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espaço e fomos sendo okupados pelas inúmeras aprendizagens decorrentes de


tal ato.
Ao recordar tudo o que foi vivido no tempo da água, podemos concluir que foi
um intenso processo de trabalho, o qual pode ser apresentado em três etapas:
primeiramente, a travessia que teve como ponto de partida a ocupação e co-
mo ponto de chegada o Canto do Marl; segundo, a necessidade de implantar
uma agenda com ações que imprimissem no local uma identidade de espaço
cultural; terceiro, conseguir recursos financeiros para as alterações mais emer-
genciais no prédio.
Para regularizar o prédio como um espaço cultural, fazia-se necessário atender
ao solicitado na legislação. Nas primeiras semanas da ocupação, a referência ao
lugar se dava por dois nomes: “okupa” e “antiga sede da Ules”, mas, para que
fossem dados os encaminhamentos quanto à elaboração de um novo projeto
arquitetônico para o prédio e para iniciar a tramitação junto aos setores da
prefeitura, era necessário um nome. Em uma plenária realizada, provavelmente
no mês de outubro de 2016, a demanda foi pautada e o que se seguiu foi um
lento e caloroso debate: por que não continuar com o nome Okupa ou Oku-
pação Marl? Foram horas e horas de debate e muito suor até que se elegeu o
nome “Canto do Marl”. Hoje, ao escrevermos sobre o assunto, fica evidente que
os ideais da okupação estão enraizados no Canto, pois okupar não é somente
um ato, é uma forma de estar e de agir no mundo, e os que se aproximam de
um projeto como o nosso são okupantes que se unem a outros okupantes e,
coletivamente, colocam-se presentes quando se identifica a negligência com
o público e com o que é de todos. Ao relatar as experiências vivenciadas no
tempo da água, recorremos às palavras “okupa" ou “okupação” e, também, à
terminologia “Canto do Marl”, quando nos referirmos ao espaço. Para nós, a
okupa estará sempre presente no Canto do Marl.

93
Desde a primeira semana de ocupação, divulgamos para a população a agenda
das ações a serem realizadas. Tínhamos plena consciência de que, para conse-
guirmos regularizar a okupação do prédio, fazia-se imprescindível criar e man-
ter constante uma pauta de ações junto à comunidade. Nos primeiros tempos, a
agenda era semanal e com ações para se pensar os encaminhamentos do processo
de okupação. A composição de tais agendas só foi possível devido à intensa mo-
bilização junto aos diversos coletivos, artistas e outros profissionais que se deslo-
caram para trazerem os seus trabalhos para o Canto do Marl. Depois de alguns
meses, a divulgação passou a ser mensal e assim se mantém até os dias de hoje.

Reprodução da agenda da segunda semana


da okupação; não se tem registro da primeira

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Arte: Lucas Godoy e Fagner Bruno

94
Nos meses vindouros, as ações do Marl na “antiga sede da Ules” já compunham
a agenda cultural da cidade e imprimia-se uma cara nova para aquele endereço.
A população identificou essa mudança e começou a frequentar o lugar: “alunos
de escolas públicas, oficinandos, público de fruição, multiplicadores, profissio-
nais das áreas afins, acadêmicos, comerciários do entorno, moradores do entor-
no e público em geral”64. Mesmo em tempos de muita escassez quanto aos re-
cursos financeiros, o primeiro ano da okupação foi marcado pelo florescimento
e pela consolidação de importantes projetos, como A Maré – Festival de Arte
em Movimento, que levou diversos espetáculos à periferia de Londrina e teve o
Marl como sede para a preparação de todo o evento. No dia 14 de dezembro de
2016, o espaço foi inundado por crianças de diferentes lugares da cidade, que
participaram do cortejo apresentando para a população um pouco das vivências
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no projeto. Foi lindo de viver!


Alguns meses após a ocupação, vários grupos de outras cidades e estados se
apresentaram no espaço, como a Cia. Canina de Teatro de Rua e Sem Dono, de
São Paulo, com o espetáculo “O vendedor de verdades”; o Projeto “Folias do Di-
vino”, do Litoral do Paraná (Paranaguá e Matinhos); houve o intercâmbio com
o Grupo Esquadrão da Vida, de Brasília, entre outras participações, as quais con-
tribuíram para a consolidação da identidade do local como um espaço cultural.
Nas fotografias que registram os eventos realizados nos primeiros meses de
ocupação, chama a atenção a “tenda” improvisada sobre a qual as pessoas dan-
çavam, cantavam e ouviam histórias. Presa sobre uma das portas de entrada, ela
se estendia por uns seis metros e abrigava várias ações. Uma delas tem especial
encantamento, pois torna possível compreender que o cuidado pelos espaços
públicos da cidade pode ser ensinado para as crianças, convidando-as a contar
a história desse lugar. A cena ocorreu como parte do 6º ECOH – Encontro de
Contadores de Histórias de Londrina, que, no ano de 2016, selecionou a oku-
pação como um dos locais de realização do evento.
Imaginem a cena: muitas crianças sentadas em frente à excelente contadora de
histórias Kiara Terra, que, lindamente, convidou as crianças a participarem ativa-
mente da construção das narrativas. Escutem atentamente parte da história que
vai sendo construída por muitas vozes: Esse prédio, gente, ficou largado e abandona-
do por 16 anos. Alguém avisa: “10!”. Corrige: 10 anos. Uma criança pergunta: Por
isso está com os vidros quebrados? A contadora responde: Por isso está com os vidros
quebrados. O vidro quebrou e o pessoal que cuida do prédio sabe o que fez? – com voz
mole, insinuando desprezo – ah, não sei, não foi comigo, não vou fazer nada. Aí o

Relatório de atividades anuais do Amarl


64

no ano de 2017. Londrina, 26 abr. 2018.

95
pessoal que passava aqui na frente falava: poxa, se eu tivesse um prédio... Se eu tivesse
um prédio eu ia fazer um teatro; se eu tivesse um prédio eu ia fazer uma sala para
ensaiar os espetáculos; se eu tivesse um prédio eu ia fazer um lugar para a gente se en-
contrar... Aí uma pessoa – ou duas, ou três – falou assim: Ah! Mas tem um prédio! Ah!
Mas aquele prédio não, ele está muito in... – com movimentos, convida as crianças
a complementarem a palavra. Em menos de uma fração de segundos: “Indesejá-
vel!”. A contadora: indesejável, inacabável... Prossegue: Aquele prédio está muito in...
Uma criança: “Íngreme!”. A contadora: Íngreme, ai, meu Deus – assustada com a
palavra – inútil! Aquele prédio é inútil. Falaram isso. Mas ele também pode ficar in...
Uma criança: “Infeitado”. Outra, já deixando o “in” de lado, talvez por ter compre-
endido a essência da história narrada: “Forte”. E mais uma: “Bonito”. A contadora:
Forte... Ele também pode ficar “imbonito”, que é quando a beleza nasce do corpo... E esse

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prédio está em processo de “imbonitação”. E o que vai fazer ele ficar forte é o fato de que
as pessoas vêm para cá e constroem um novo sentido para ele.
Um evento que contribuiu significativamente para a consolidação da identida-
de cultural para o espaço foi a Mostra Marl. A proposta era oferecer à cidade
um final de semana com intensa e diversificada programação cultural voltada
para todos os públicos. A primeira edição foi realizada no período de 23 a 26
de março de 2017 e contou com a participação de aproximadamente 500 pes-
soas, que se alternaram assistindo aos espetáculos, participando das ações ou,
simplesmente, passando por lá para conferir o evento. Para tornar possível a
realização da Mostra, os artistas participantes do Movimento apresentavam os
seus trabalhos e, além disso, foram convidados outros grupos para levarem e
apresentarem suas ações.
Ao analisarmos os registros fotográficos desse evento, é possível identificar que
ocorreram espetáculos dentro e fora do prédio, de dia, de noite, e pessoas das
mais diferentes idades compunham a plateia. Em uma das fotos, um grupo de
alunos de uma escola municipal da cidade está atento ouvindo a contação de his-
tória. Ao localizar, na página do Facebook do Movimento, o agradecimento aos
grupos e às pessoas que contribuíram para a realização da I Mostra do Marl, po-
demos conferir que participaram dela: grupos teatrais ligados ao curso de Artes
Cênicas da UEL, SESI Cultura, Sindicato dos Palhaços, Núcleo Ás de Paus, Exér-
cito Contra Nada, Triolé, Cozinha Natural Cheiro Verde, Grupo de Bumba-Meu-
-Boi Estrela da Vila, Cia. Teatro de Garagem, Ecoh – Encontro de Contadores
de Histórias de Londrina, a Cia. Cascalhos, Risoflora, de Edna Aguiar, contadora
de histórias Dani Fioruci, AfroAto, grupo ÔDCASA, Mel Campus e Jean Fer-
reira, Grupo de Malabaristas do Marl, Pedro José, Carolina Sanches, Ana Paula
Berehulka, Dayane Anhaia, Família do Circo, Palhaço Ritalino e OCAS, da UEL.

96
A partir de sua terceira edição, realizada em junho de 2017, à Mostra Marl
somou-se o evento Feirão da Resistência e da Reforma Agrária uma ação re-
alizada em parceria com os agricultores dos assentamentos do Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra – MST. Assim, no sábado, o público passou a
se dividir entre as apresentações artísticas e a compra de produtos agrícolas
cultivados sem veneno. Com o passar dos meses, foi se consolidando o se-
gundo sábado do mês como a data de realização do Feirão no Marl, que se
transformou em um evento na cidade de Londrina. O Feirão é, por si só, um
espetáculo de diversidade. Embaixo do mesmo texto pessoas que dificilmente
se encontrariam em outro espaço da cidade trocam animadas conversas: o
casal de idosos moradores de um prédio próximo dialoga com a agricultora
de um dos acampamentos que participa da feira, e ela ensina como fazer a
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conserva de Pimenta-biquinho; o agricultor que soube por alguém que por


ali encontraria um Kaingang que vende cabo de enxada procura-o pelo salão;
crianças correm entre as bancas; no início da manhã, realiza-se o café comu-
nitário para o qual todos contribuem; próximo ao horário do almoço, o cheiro
da comida de santo invade o ar e cada qual a seu gosto vai se preparando para
escolher entre empanadas, sanduíches, pastéis. Em pequenos grupos, muito se
conversa durante o Feirão sobre os assuntos em pauta no campo da arte, da
política, da educação. É um espaço democrático.
A consolidação do Feirão no Canto do Marl e na agenda cultural da cidade
possibilitou que o evento, após um ano de existência, concorresse ao Edital do
Promic – Projetos Independentes – 02/2018. A proposta foi aprovada e, con-
forme divulgado no Portal da Prefeitura65, assumiu-se a “produção de 6 edições
(de julho a dezembro de 2018) de um evento cultural que se caracteriza como
uma Feira Livre realizada no Canto do MARL (Av. Duque de Caxias, 3241) e
que reúne produtos da agroecologia e programação cultural diversificada. Sua
programação será composta sempre por duas apresentações culturais e uma
oficina formativa a cada edição, totalizando dezoito atividades culturais, as
quais serão selecionadas por meio de edital público (em anexo) a ser divulgado
previamente pelo projeto junto à imprensa em geral e nas redes sociais”.
O Feirão da Resistência e da Reforma Agrária, como já dito, é realizado no
segundo sábado de cada mês. Trata-se de um espaço de articulação entre a cul-
tura camponesa e a cultura urbana e se caracteriza, hoje, como uma Feira Livre
com entrada gratuita, contendo a venda de produtos da agroecologia, de pro-
dutos artesanais e apresentações e oficinas artístico-culturais variadas. O pro-

65
Disponível em: <http://www1.londrina.
pr.gov.br/index.php?option=com_content
&view=article&id=21172&Itemid=2036>.

97
cesso de articulação entre a cultura camponesa e a cultura integrada e popular
se constitui em um campo de pesquisa e estudo, a considerar as representações
que se materializam na Feira Livre entre os saberes e os sabores da cultura cam-
ponesa, bem como os saberes populares diversos da cultura urbana de Londrina
e região66. Nesse sentido, foi muito importante a aprovação da proposta no Edi-
tal do Promic, porque se tornou possível democratizar o circuito cultural inde-
pendente da cidade, promovendo apresentações culturais e oficinas formativas
que foram selecionadas por meio de chamamento público, o que ampliou a rede
de colaboradores do Canto para além dos parceiros já integrados na organiza-
ção do evento desde seu início e, além disso, ampliou-se o público-participante.
E assim foi. No tempo da água, o prédio se fez bonito pela ação de todos e todas,

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não de qualquer beleza. Trata-se do belo que só pode ser identificado por meio
da potência, pois está para além da aparência, como nos ensina João Cabral de
Melo Neto ao apontar que na criança franzina está toda a “marca de homem,
marca de humana oficina”67. O povo do Marl tem essa marca.
É importante considerar que durante todo o tempo em que o Movimento lu-
tou pela cessão do prédio, paralelamente, ele já funcionava como um espaço
cultural. Nos relatórios apresentados à Secretaria Municipal de Cultura, tem-se
a informação de que, nos anos de 2017 e 2018, o espaço promoveu em suas
atividades a circulação de 14155 pessoas, em encontros como: oficinas formati-
vas; mostras; apresentações artísticas; biblioteca comunitária; ensaios de música;
ensaios de teatro; ensaios de circo; feiras de produtos agroecológicos; feiras de
artesanato; feiras de comidas típicas; aulas públicas; exibições de filmes; grupos
de estudo; atividades de estágio (cursos de Psicologia e de Pedagogia da UEL e
da UNOPAR, com projetos de extensão; Comunicação Popular e Comunitária
da UEL, com projeto de pesquisa Lugar de Vivências); assembleias de coletivos;
plenárias; mutirões de limpeza e embelezamento; e aulas de dança68.
Todas as ações estão em consonância com o perfil da arte pública que embasa a
política do Marl, com a proposta de direito à cidade por meio da política cultu-
ral. Nesse sentido, faz-se importante pensar sobre os espaços públicos ociosos
na cidade com o objetivo de recuperá-los e de dar-lhes função social e cultural.
O que acontece no prédio da Duque de Caxias apresenta-se positivamente para
a cidade, para os produtores culturais e para a população usuária da política
pública de cultura como um modelo possível de gestão participativa a fim de
revitalizar espaços públicos inutilizados.

66
Disponível em: <http://londrinacultura.
londrina.pr.gov.br/projeto/131/#/tab=sobre>.
67
Poema Morte e Vida Severina,
de João Cabral de Melo Neto.
68
Relatório de atividades anuais
do Amarl nos anos 2017 e 2018.

98
Relatório de atividades anuais do Amarl nos anos 2017 e
2018, entregue à Secretaria Municipal de Cultura
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Acervo pessoal

Mas, como conseguir recursos para adaptar o prédio para todas as ações? No
tempo da água, promovemos a campanha via site Benfeitoria69 para investir em
melhorias e reparos nas instalações elétricas e hidráulicas, nas estruturas do te-
lhado, das janelas e das portas, entre outros ajustes técnicos que viabilizassem a
realização das atividades programadas. A campanha foi lançada no mês de agos-
to de 2016 no contexto das comemorações de um mês da okupação e contou
com a colaboração de diversos coletivos culturais envolvidos no projeto da ade-
quação do prédio, para que ele se transformasse em espaço cultural da cidade.
No dia 15 de setembro de 2016, finalizou-se a campanha com satisfatória ade-
são da população, que demostrou acreditar no potencial transformador que já
se fazia visível em um mês de trabalhos realizados na okupação do prédio, e que
contribuiu com R$ 24.759,00, recurso totalmente investido em infraestrutura.
O gerenciamento criterioso da verba foi aliado às parcerias estabelecidas com
diversos profissionais da cidade, os quais, para além de realizarem seu trabalho
no Canto, também auxiliaram no sentido de tomar as decisões possíveis, con-

Disponível em: <https://


69

benfeitoria.com/okupamarl>.

99
siderando que estávamos a tratar de um prédio que há mais de dez anos
não recebia nenhum investimento quanto a sua manutenção. Optamos por
investir na revitalização estrutural e na adaptação da segurança do espaço,
na dedetização, na readequação das estruturas hidráulica e elétrica, na troca
de portas e na estruturação dos banheiros.
No mês de dezembro do mesmo ano, o prédio já estava em condições de
abrigar os coletivos culturais da cidade para receberem os encontros da
Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e da Rede Paranaense de Teatro
de Rua (RPTR). Assim foi. Tais encontros deixaram marcas na história do
Canto do Marl, principalmente quanto a sua potência para ser um espaço
de encontros, de incentivo à arte e de possibilidade, firme e forte, de trans-

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formação da realidade.
O tempo da água foi farto em colheitas. Muito se produziu, muito se trans-
formou. Já não era mais uma okupação, apesar de o espírito do okupar
continuar impregnado em toda essa feitura. Era preciso criar raízes, seden-
tarizar e fazer do espaço um ponto fixo no roteiro da cultura em Londrina.
Era preciso pensar no futuro: com o florescimento veio a necessidade de
cuidar dos brotos!

6º ECOH – Encontro de Contadores


de Histórias de Londrina, 2016

Fotografia: Leonardo Neri

100
TEMPO DO FUTURO:
esperança
Quando o futuro chega? Uma resposta plausível é que ele chega sempre que
a ação no presente, a experiência, alarga-se em expectativa. Assim, “experi-
ência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com
o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro”70. O futuro é o
tempo no qual tudo pode ser, por isso a palavra eleita para representar esse
tempo é “esperança”, sentimento do qual se alimentam todos os que viven-
ciam as ações realizadas no Canto do Marl. Não há um marco cronológico
para definirmos o início deste tempo: o futuro esteve presente no ato da
okupação, no tempo da fogueira, no tempo da água e está presente sempre
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quando a esperança não é pautada na espera, mas na luta cotidiana de fei-


tura do lugar.
Para serem estabelecidos laços de pertencimento com o espaço, é preci-
so permanecer a ponto de esse espaço se transformar em lugar. Por conta
disso, aliamo-nos àqueles que compreendem que o lugar é uma construção
social e somente se efetiva por meio das relações cotidianas. Considerando
os tempos fluidos nos quais estamos imersos71 na atualidade, constituir um
lugar é, por si só, um ato de resistência, pois se faz necessário, o tempo todo,
equilibrar-se entre a cooperação e o conflito, ambos os atos inerentes a todo
lugar que se deseja democrático. O lugar é terra fértil para aprender sobre
gerenciamento de conflitos.
No nosso caso, como nos dispomos a transformar a antiga sede da Ules em
um espaço cultural – talvez a melhor expressão seja “lugar cultural” –, os
conflitos são compreendidos como alavancas para se exercitar a compreen-
são que cada um tem do lugar do outro na sociedade e, por fim, como agir
da melhor forma para garantir o lugar de todos. Desde o dia 26 de junho
de 2016, o ato de okupação do espaço foi adjetivado com as expressões:
cultural, poético e pacífico, e isso não foram por acaso. A cultura, a poesia e
a paz são elementos estruturantes no processo de reconhecimento e de con-
vivência com o outro, movimento que ocorre em meio a conflitos. A cultura
promove a aprendizagem de convivermos com conflitos e nos alavanca para
buscar as possíveis soluções sem o estabelecimento de confrontos. O con-
fronto é a guerra e o fim da poesia. O conflito nos leva a olhar para o outro;
o confronto, a aniquilar o outro.

70
KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado – contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006. p. 308.
71
BAUMAN, op. cit.

101
Os acontecimentos que se sucederam desde o dia da okupação até a assinatura
da Lei nº 12.802/2018, que concede a cessão de uso do imóvel localizado na
Avenida Duque de Caxias, 3241 para a Amarl, podem ser compreendidos co-
mo um grande processo de resolução de conflitos, nos quais atuaram diferentes
sujeitos. Durante esses três anos de negociações, é fato que também se intentou
levar o problema para o campo do confronto, com tentativas de aniquilamentos,
mas, tais adversidades, que ainda se fazem presentes nas relações estabelecidas
entre o Marl e os vários setores da sociedade, foram, uma a uma, colocadas na
mesa, negociadas e resolvidas.
Uma cidade disponibiliza várias possibilidades aos seus cidadãos e um lugar
promove a ocasião para a realização das ações. Um lugar tem força72 e é com
essa força que imaginamos o futuro que, para nós, concretiza-se na vida longa

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que desejamos para o Canto do Marl como lugar de cultura. Por isso, o que
vamos narrar aqui são os acontecimentos que se sucederam junto ao poder pú-
blico após a okupação, com vistas à obtenção da cessão de uso.
O desejo pelo futuro se materializou pelas mãos de um grupo de arquitetos e
arquitetas vinculado ao Escritório Modelo OCAS, da UEL, que elaborou, ainda
no ano de 2016, um novo projeto para o prédio. Nele, preservam-se as carac-
terísticas arquitetônicas do projeto da Ules, principalmente em sua fachada e
estrutura, e são agregados aspectos que conferem a identidade cultural desejada
para que o espaço seja a sede do Marl e possa sediar e promover os mais diver-
sos espetáculos e ações.
O espaço contará com um palco alocado aos fundos e ao nível do chão, com du-
as arquibancadas opostas no formato arena, favorecendo, assim, a realização de
espetáculos, oficinas, cursos e outras atividades com os mais variados formatos.
Na parte da frente, será construído, no térreo, o espaço de convivência, com a
biblioteca e a cozinha.

Perspectiva do interior do prédio, fundos


Espaço para o palco e para as arquibancadas

72
SANTOS, Milton. Da totalidade
ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005.

102
O espaço do mezanino contará com alojamento para hospedar artistas em pas-
sagem pela cidade, sala de reunião e um espaço aberto do qual será possível
visualizar o palco e que também pode ser usado para exposições.
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Perspectiva da parte interna, frente. À direta, a cozinha;


ao fundo, o espaço de convivência e o mezanino

Perspectiva da parte interna, frente, mezanino


À esquerda, o alojamento e a sala de reunião

Arquitetos: Rovenir Bertola Duarte e Eduardo Suzuki


Estudantes: Daniele R. Marques, Eugênia M. de Castro e Ligia Akemi Oride

Para dar andamento à reforma do prédio, era necessário regular a situação dele
e, no esforço para tal intento, os integrantes do Movimento intensificaram as
visitas aos vereadores da cidade em busca de apoio e orientações quanto aos
procedimentos legais a serem colocados em prática. Logo após as primeiras reu-
niões com o pessoal da prefeitura, soube-se da necessidade de criar uma pessoa
jurídica e de utilidade pública para ser a responsável pelo espaço, pois não é
permitida por Lei a cedência para pessoa física. Foi esse o contexto de criação
da Associação do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina, que passou a
representar o Marl juridicamente.

103
A saber, não houve consenso com a decisão e a ação de criar a Amarl. Para
muitos, o atendimento das questões administrativas e jurídicas afetava as carac-
terísticas anarquistas do Marl, sem hierarquia, sem um representante formal e
com revezamentos para o diálogo com o poder público. Após intensos debates
realizados diariamente nas plenárias, optou-se pela criação da Amarl e, assim, o
Movimento ampliou-se em duas frentes: o Marl, que prossegue sendo um cole-
tivo sem uma estrutura organizacional institucionalizada e por meio do qual os
artistas de rua continuam a promover seus trabalhos em todos os cantos da ci-
dade; e a Amarl, associação que pleitearia junto ao poder público a permissão do
uso do prédio. Em meio a esse embate foi preciso criar um nome para o espaço
e se optou, também em plenária, por “Canto do Marl”, como já contamos no
tempo da água. A assembleia de fundação da Amarl ocorreu em 18 de outubro
de 2016 e ela foi declarada de utilidade pública pela Câmara Municipal de Lon-

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drina na seção realizada no dia 13 de dezembro de 2016, o que a credenciou
para pleitear legalmente a cessão do Canto do Marl.
O processo de criação, regulamentação e reconhecimento da Amarl como uti-
lidade pública demorou três meses, mas já era sabido que assim seria devido à
tramitação junto aos órgãos competentes e, considerando que as ações na oku-
pação já estavam sendo realizadas, com efetiva participação da população desde
o mês de julho de 2016, a solução encontrada para regularizar a situação con-
tou com importante parceria estabelecida com a Alma (Associação Intercultural
de Projetos Sociais).
A Alma é uma organização não governamental sem fins lucrativos e de utilidade
pública municipal, fundada em 21 de setembro de 2004. Como o posiciona-
mento do executivo era favorável para que o prédio fosse cedido para abrigar
ações culturais vinculadas ao Marl – mas não era possível a assinatura de qual-
quer termo de cessão, dada a proximidade das eleições municipais e as restri-
ções impostas por lei –, a alternativa encontrada foi incluir um termo aditivo
em um convênio já assinado pelo prefeito. Foi nesse cenário que a Alma cedeu
espaço e ampliou o seu Projeto de Vila Cultural, englobando as ações a serem
realizadas no Canto do Marl.
Os sujeitos participantes da Alma eram também atuantes no Marl, o que corro-
borou o desfecho do estabelecimento da parceria. A primeira cessão temporária
do Canto saiu no nome da Alma; com posse dela, foi possível a realização do
XIV Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e da Rede Parana-
ense de Teatro de Rua (RPTR), em dezembro de 2016.
Em paralelo ao processo de criação e de regulamentação da Amarl, organizamos
uma intensa mobilização junto ao poder público municipal. Ao executivo foi
exposto o projeto, o qual desencadeou uma consulta formal junto a todas as se-
cretarias de governo, a fim de que indicassem se haveria, por parte delas, algum
projeto em elaboração e/ou alguma intenção em relação ao prédio. Em peque-
nos grupos, visitamos todos os vereadores e todas as vereadoras para explicar o

104
projeto da Amarl, tendo em mãos um dossiê com as ações em desenvolvimento
no Canto, que o caracterizavam como de utilidade pública e que foram iniciadas
logo após a okupação ocorrida em junho de 2016.
Com as eleições de 2016, Marcelo Belinati assumiu a Prefeitura de Londrina e
prosseguiu com os encaminhamentos do prefeito anterior quanto à questão da
cessão do prédio para a efetivação de um centro cultural. Houve, também, signi-
ficativa mudança na composição da casa legislativa, o que fez com que os parti-
cipantes do Movimento intensificassem as visitas aos gabinetes.
O perfil mais conservador da Câmara, após as eleições de 2016, aliado a um
contexto nacional de acirramento político partidário – que disseminou no país
um estado de confronto constante entre grupos que apresentavam leituras so-
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ciais diversas –, propôs debates em torno da questão do prédio, indicando que


não poderia ser cedido à Amarl e reafirmando a intenção de entregá-lo à Guarda
Municipal. Esse foi um processo muito lento e, somente frente ao término das
consultas e com posicionamento explícito de não interesse das demais secreta-
rias, o imóvel foi vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e, a partir desse
ponto, novas tratativas se iniciaram quanto à cessão do prédio para a Amarl.
As negociações junto ao poder público, no adentrar do ano de 2017, ocorreram
sob o impacto dos resultados dos intensos movimentos que, no segundo semes-
tre de 2016, culminaram em ações de okupação por todo o país. Destacamos
dois em específico: a mobilização estudantil e a okupação do Conjunto Flores
do Campo73, este último na cidade de Londrina.
Tais movimentos tiveram influência na história de consolidação do prédio co-
mo espaço cultural na cidade, pois, ao exporem para a sociedade as razões que
levaram a tomarem para si a responsabilidade dos espaços públicos, escancara-
ram questões em torno de problemas complexos e estruturais de uma sociedade,
para os quais se requer uma política de ações inclusivas em longo prazo. Uma
okupação ocorre quando um grupo não se sente representado e precisa criar o
fato para que a sociedade volte os olhos para um problema que, na maioria das
vezes, refere-se a todos, como a educação, a moradia e a preservação do pa-
trimônio. Londrina, assim como inúmeras cidades brasileiras, apresenta a cena
desafiadora para preservar e cuidar dos prédios antigos, muitos abandonados,
como um ponto frágil e sensível para os gestores públicos. São nesses terrenos
que as ocupações acontecem, pois a lógica com a qual operam os integrantes de-
las é que não se trata de esperar o local ficar pronto para uso, mas de agir cole-
tivamente em torno de pautas possíveis, articulando o uso ao processo de trans-
formação e de adequação do espaço para as finalidades definidas nos projetos.

73
Conjunto residencial em construção pela Caixa Econômica Federal, localizado na re-
gião norte da cidade. A construção foi paralisada por problemas junto aos empreiteiros
e, em outubro de 2016, foi ocupado por famílias sem condições de pagar aluguéis e que
aguardam casas via sistema da Companhia de Habitação de Londrina. Disponível em:
<https://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/residencial-flores-do-campo-na-zona-
-norte-de-londrina-ja-tem-cara-de-cidade-427708.html>.

105
Trata-se de chamar para o grupo e para a população a responsabilidade sobre
certas questões, as quais são dirigidas a lugares para os quais o Estado não está
conferindo respostas profícuas quanto ao papel público deles74. A maioria dos
movimentos de ocupação no âmbito da cultura se assenta na preocupação em
relação ao bom uso do bem público, impedindo que a memória presente no es-
paço se apague e transformando-o em lugar para sediar outras interações com
o patrimônio e novos questionamentos sobre a cidade75.
Esses novos questionamentos que os movimentos de ocupações provocam são,
por vezes, indesejados por parte de alguns que optam por tratar tais ações
pautando-se exclusivamente no aspecto errante do ato, tido à luz da legislação
vigente. É muito mais fácil indicar o fato como problema que voltar o olhar

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para todo o contexto social que o produziu e o alimenta. Fato posto é que as
negociações junto ao poder público se arrastaram por dois anos e meio após o
dia 27 de junho de 2016.
No aniversário de um ano da okupação, em 2017, realizamos um cortejo junta-
mente com o pessoal do Flores do Campo, que culminou com apresentações em
frente à Prefeitura. Os objetivos eram chamar a atenção do poder executivo para a
situação dos movimentos ali representados e cobrar os encaminhamentos devidos.
No ano de 2018, tendo o executivo encaminhado o projeto de cessão para o
legislativo, intensificamos as visitas junto aos vereadores e às vereadoras para
expormos, novamente, o projeto para o prédio. Essas visitas aos gabinetes possi-
bilitaram romper barreiras e alguns vereadores aceitaram o convite de conhecer
o Canto do Marl para decidirem sobre o voto. Foi um árduo processo de conven-
cimento, mas o resultado foi positivo, pois, no dia 25 de outubro de 2018, o pro-
jeto foi aprovado em primeira discussão, com 18 votos favoráveis e 1 contrário.
No dia 13 de novembro, quando o projeto seria votado em segunda discussão, foi
protocolado na Câmara um abaixo-assinado com 62 assinaturas de pessoas que
se declaravam contrárias à “doação do imóvel para a Marl”. Frente a esse fato, o
projeto foi retirado de pauta. Esse episódio foi de fundamental importância para
a história do Canto do Marl, tendo em vista que, por um lado, desencadeou ações
de parceria com pessoas que ainda não conheciam o Movimento e que, a partir
de então, foram convidadas para conhecer e participar; por outro, fortaleceu em
nós ainda mais a convicção de que o diálogo é sempre o melhor caminho para
se resolver um conflito. Tínhamos um conflito e nos dispusemos a entendê-lo.

74
BERNARDO, Paula. Ocupa colaborativa: a luta popular pela cultura e pela preserva-
ção do patrimônio histórico. Revista Cidade, Patrimônio e Memória, 1. ed., dez. 2016.
75
SANTOS, Tiago Moreira. As ocupações culturais como estratégias de luta: a luta
popular pela cultura na Ocupa Colaborativa na cidade de Jundiaí. Trabalho de Con-
clusão de Curso. São Paulo: USP, 2017. p. 18.

106
É inegável que fomos à Câmara no dia 13 de novembro contando com a
aprovação do projeto em segunda discussão e que a retirada do projeto nos
afetou. Era preciso compreender o que ocorreu para podermos elaborar
uma estratégia de ação. Em linhas gerais, após conversa com um e outro nos
bastidores da Câmara, descobrimos que o abaixo-assinado foi elaborado às
pressas, ao final de uma reunião realizada no Sindicato do Comércio Vare-
jista de Londrina. Entre os presentes, alguns adentraram no assunto posi-
cionando-se contrários à cessão do prédio e, por persuasão, formulou-se a
ideia de um abaixo-assinado, o qual foi compreendido como formulado por
uma associação de pessoas envolvidas com a Avenida Duque de Caxias, já
que a instituição está inexistente. Não se descarta que houve uma incitação a
respeito e que a chegada do documento à Câmara no dia da segunda votação
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interferiu no posicionamento de vários vereadores. Desse modo, a estraté-


gia encontrada pelo líder do governo na Câmara foi solicitar a retirada do
projeto da pauta.
Após esse fato e com as certezas de que nosso Movimento era uma verdade
que precisava ser esclarecida aos cidadãos que assinaram o abaixo-assinado
e de que todos os dias vivenciados no Canto do Marl estavam repletos da
potente intenção de revitalizar o prédio abandonado – e esse desejo era e é
compartilhado por muitos que vivem e transitam pela Duque de Caxias –,
empenhamo-nos em fazer o dever de casa e convidamos as pessoas que se
posicionaram contrárias à cessão do prédio para tomarem um bom café em
meio a uma roda de conversa.
Então, no dia 17 de novembro de 2018, um grupo de empresários e de co-
merciantes da avenida Duque de Caxias participou do Café Público do Marl.
Eles se identificaram como representantes da “Caxias da Duque”, associação
que integra os comerciantes e os empresários que atuam na Avenida Duque de
Caxias. A reunião também contou com um assessor do presidente da Câmara.
No encontro, integrantes da Amarl apresentaram aos integrantes da “Caxias
da Duque” as instalações do atual Canto do Marl, bem como as benfeitorias
realizadas nos últimos dois anos, assim como destacaram brevemente os pro-
jetos culturais realizados no espaço.
No encontro, os representantes da “Caxias da Duque” esclareceram que seu
foco de atuação é cobrar o município para viabilizar as melhorias da infraes-
trutura viária para avenida, além de pensar em ideias para resolver o abando-
no e/ou a locação vaga de muitos prédios na região. Nesse sentido, trataram
possíveis projetos que, futuramente, as duas associações poderiam desenvolver
em conjunto, no que tange a estimular o comércio local e a economia criativa
regional por meio da arte e da cultura.

107
Como resultado do encontro, a associação se comprometeu a reavaliar seu
posicionamento contrário ao projeto de Lei de permissão de uso do Canto
do Marl. No encontro, um dos representantes dos comerciantes afirmou:
“É bem melhor com vocês aqui do que com isso abandonado como estava”.
Como se nota, os conflitos estão presentes em toda sociedade democrática
e podem ser resolvidos com diálogo. Temos imensa gratidão por termos vi-
venciado esse episódio, o qual nos levou de volta às visitas junto aos comer-
ciantes da Duque para coletar suas assinaturas, expressando-se favoráveis
à cessão do prédio à Amarl. Assinaram o abaixo-assinado 1.506 pessoas76.
No dia 04 de dezembro de 2018, o projeto foi pautado em segunda dis-
cussão e aprovado por com 15 votos a favor, 2 ausências e 2 não votantes.

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Podemos, assim, concluir que não houve nenhum voto contrário. Após mais
de seis anos, se considerarmos que data do ano de 2012 as primeiras mo-
bilizações para a formação do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina,
o coletivo tem um canto para plantar boas e frutíferas sementes. Foi uma
conquista de toda a comunidade londrinense, que se tornou possível graças
a um longo e intenso processo de lutas. Ligado à Rede Paranaense de Teatro
de Rua e à Rede Brasileira de Teatro de Rua, o Marl lutou por esse espaço
público para a arte e para a cultura. Com a permissão, começou uma nova
fase e foi possível dar continuidade ao trabalho já iniciado de preservação,
adequação e intensificação dos projetos artísticos, culturais, sociais, de pes-
quisa e de geração de renda.
O dia 08 de dezembro de 2018 foi dia de festa e o Movimento convidou
todos e todas para o cerimonial de assinatura da permissão de uso do Canto
do Marl. A assinatura foi realizada em uma sexta-feira, às oito horas, em um
ambiente que foi colorido (mais do que já é), enfeitado e preparado para
receber os convidados. Em meio a cantorias e à declamação de poesias, o
prefeito Marcelo Belinati77 destacou a importância da cultura e que “Londri-
na se destaca por ser muito rica culturalmente”. Também enfatizou a ação
dos “produtores culturais que levam a cultura até o bairro, mudando a vida
de muitas crianças”.
Além disso, o prefeito destacou que: “É importante que o poder público
tenha este olhar sensível e trabalhe em parceria com esse tipo de Movimen-
to, para que possamos construir uma cidade melhor. O Movimento está de
parabéns e este é um ato de gratidão, da cidade, por tudo que ele tem de-

76
A documentação referente à tramitação do processo de cessão do
prédio para a Amarl, inclusive as cópias dos relatórios, pode ser acessada em
<https://www.cml.pr.gov.br/cml/site/leidetalhe.xhtml?leicodigo=LE128022018>.
77
Informações disponíveis no site: <http://www1.londrina.pr.gov.br/index.php?option=
com_content&view=article&id=31249%3Aprefeitura-cede-espaco-para-o-movimento-
de-artistas-de-rua-de-londrina&catid=108%3Adestaques&Itemid=1078>.

108
senvolvido aqui”. O secretário de cultura em exercício também falou sobre a
importância do ato da assinatura da cessão: “Um município que tem a cultu-
ra como marca precisa ocupar, cada vez mais, espaços como este. O trabalho
do Movimento dos Artistas de Rua, de reivindicar o uso de um espaço que
historicamente pertenceu ao Movimento dos Estudantes Secundaristas de
Londrina, também tem um peso histórico muito importante”.
A cessão de uso do prédio concedida à Amarl converteu-se na Lei nº 12.802,
de 05/12/2018. O tempo do futuro se abrirá para muitos outros tempos.
Novos tempos. O Marl e a Amarl comprovaram durante todo o processo a
eficácia, não sem dificuldades, de uma gestão coletiva que conta com par-
ticipação de dezenas de pessoas envolvidas diretamente na administração,
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organização e manutenção do lugar. Em seus relatórios oficiais, entregues ao


poder público, observamos que o coletivo passou de trinta pessoas atuantes
na equipe, no ano de 2017, para cinquenta, em 2018. As decisões sobre o
Canto do Marl, de forma geral, são tomadas durante plenárias mensais aber-
tas a toda a comunidade interessada em somar nas atividades do Canto, e a
divulgação ocorre por meios digitais.
Atualmente, o Plano Diretor de Patrimônio histórico-cultural do município
de Londrina inclui o "Galpão da Ules/Canto do Marl” como Patrimônio His-
tórico-cultural78. Ter o Canto do Marl no corredor cultural de Londrina se
deve às tantas ações e reações na cidade provocadas pela okupação em 2016.
A significância que esse documento/inventário proporciona ao prédio apre-
senta a descrição do espaço como “formador de identidade local pelos mo-
vimentos que utilizavam o barracão como sede...”79. Dessa forma, é possível
identificar a força da contribuição do Canto para a formação da identidade
local e o impulso que o coletivo tem provocado nos eventos produzidos e
oferecidos nesse espaço cultural em constante construção.
A cidade é um ambiente marcado por relações que, a considerar a velocida-
de com a qual nos movemos rumo à sobrevivência diária, são fluidas. Tudo
ao nosso redor é dinâmico e acelerado. O indivíduo, imerso na cidade do
século XXI, não tem tempo para parar, cuidar, pensar sobre o quanto pode
fazer se redescobrir os espaços públicos de convivência. As histórias que
contamos neste livro tratam de um projeto de humanização da cidade por
meio da arte. É tempo de okupar as ruas, de okupar o pensamento distraído,
de okupar o vazio e, também, de okupar o espaço... Fazer dele um lugar.

78
Disponível em: <http://siglon.londrina.pr.gov.br>.
79
Significância é um item de descrição do imóvel no documento Inventário
Arquitetônico do Plano Diretor de Patrimônio Histórico-Cultural. Secretaria
da Cultura de Londrina. Lei Municipal de Incentivo à Cultura.

109
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Dia da assinatura da Lei de Per-
missão de uso do Canto do Marl

Fotografia: Lucas Godoy

Foto do dia da aprovação do Projeto de Cessão do


prédio para a Amarl. Câmara Municipal de Londrina.

Fotografia: Lucas Godoy

Encerramos aqui convidando a todas e a todos para desejarem e construírem


um futuro longo ao Canto do Marl. Que as crianças de Londrina – filhos,
netos, bisnetos de todos os que hoje se comprometem com a construção
desse lugar – por aqui passem, cantem, dancem, representem, debatam, re-
solvam os conflitos e, quando não for possível, que aprendam a conviver
respeitosamente entre diferenças. Que elas recebam a nossa história e a re-
escrevam com as cores e os traços do seu tempo, assim como recebemos a
história dos estudantes das décadas de 1950 e 1960, responsáveis pela edi-

110
ficação do prédio, e dos demais, responsáveis pela sua permanência, e nos
sentimos honrados em prossegui-la.
A marca que representa o Canto do Marl é uma mão que sai do asfalto e
está rodeada de lírios. O espaço cultural Canto do Marl é isso: uma flor que
brotou e resistiu ao tempo. Por isso,

Uma flor nasceu na rua.


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
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Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.80

Evoé!

80
Trecho do poema A Flor e a Náusea,
de Carlos Drummond de Andrade

111
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SOBRE OS AUTORES

Bruna Ester Gomes Yamashita


Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina (2004). Mes-
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tre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (2019). Professora


com experiência de atuação na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Co-
ordenação Pedagógica. Professora de Ensino Fundamental I na Prefeitura Mu-
nicipal de Londrina. Pesquisadora da área de História da Educação e ensino
de História. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação.
Autora de livros infantis. Conselheira Municipal de Educação e e membro do
Comitê de Ética em pesquisa KROTON – UNOPAR.

Danilo do Amaral Santos Lagoeiro


Possui graduação em Comunicação Social – habilitação Relações Públicas pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005); pós-graduação
em Comunicação Popular e Comunitária pela Universidade Estadual de Londri-
na-UEL (2008) e é Mestre em Comunicação Visual também pela UEL (2011).
Foi docente da área de Teoria da Comunicação pelo Departamento de Comu-
nicação da UEL, atuando nos cursos de Jornalismo, Relações Públicas, Serviço
Social e Artes Cênicas (julho 2011-agosto 2013). É pesquisador do Núcleo de
Pesquisa em Comunicação Popular (NCP) e professor convidado da Especiali-
zação em Comunicação Popular e Comunitária (UEL) desde 2011. É produtor
e ator da Cia. Teatro de Garagem. Atualmente é professor colaborador da UEL
pelo Departamento de Comunicação na área de Relações Públicas (2016-2020).
A atuação pedagógica e de pesquisa interdisciplinar abrange as seguintes áreas:
relações públicas, ética e cultura organizacional, cultura visual, produção e críti-
ca cultural, artes cênicas, memória e história, comunicação e educação popular.

Fabíola Ferro da Silva


Historiadora, artista e produtora cultural. Graduada em História pela Universi-
dade Estadual de Londrina (2010-2015). Foi produtora cultural e pesquisado-
ra da mostra Lugar de Vivências – Canto do Marl (Movimento dos Artistas de
Rua de Londrina), em 2016). Pesquisadora interdisciplinar do corpo – Perfor-
mance, Dança Contemporânea e suas tecnologias (2016-presente). Artista no
Coletivo das Liliths (2019-presente).

113
Fagner Bruno de Souza
Jornalista formado pela Universidade Estadual de Londrina (2012), especialis-
ta em Criação e Produção em Rádio e TV pela Faculdade Pitágoras Londrina
(2014). É estudante de mestrado em Cinema e Audiovisual pela Universidade
Federal Fluminense. Atua como cineclubista desde 2013.

Lucas de Godoy Chicarelli


Jornalista formado na Universidade Estadual de Londrina, com trabalho de con-
clusão de curso sobre fanzines punks na cidade de Londrina. Especializado em
Comunicação Popular e Comunitária na UEL, elaborando um trabalho de história
oral sobre a semana do dia 29 de abril de 2015 (2016). Mestre em Comunicação

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pela UEL (2019). Trabalhou como jornalista e assessor de comunicação volun-
tário no Parque Nacional Marinho Fernando de Noronha por 6 meses. Atuou
como redator publicitário por 8 meses. Atualmente trabalha como assessor de
comunicação e jornalista em projetos culturais. Participou do projeto de pesquisa
Imagens e mensagens do Primeiro de Maio: disputas e transformações nas re-
presentações da data ao longo do período republicano brasileiro, orientado pela
Prof.ª Dr.ª em História Isabel Bilhão. Possui formação superior incompleta em
Informática pela Universidade Estadual Oeste do Paraná, onde chegou a minis-
trar palestras nos seguintes temas: software livre, propriedade intelectual e linux.

Sandra Regina Ferreira de Oliveira


Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Londrina, mestra-
do em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Pós-Douto-
rado em Educação, Conhecimento e Sociedade pela Facultad Latinoamericana
de Ciencias Sociales – FLACSO, Buenos Aires. Professora associada da Univer-
sidade Estadual de Londrina. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UEL. Membro do grupo de pesquisa História e Ensino de História.
Atua como colaboradora do Programa LAI – Laboratório dos Anos Iniciais da
UEL. Participou do Programa Nacional do Livro Didático em várias funções no
período de 2003 a 2018. Coordenou o PIBID/Pedagogia (2011-2013). Atuou
na equipe de gestão do PIBID da UEL no período de 2014-2018. Trabalha com
o Ensino de História e Educação com experiência, especialmente nos temas:
ensino de História nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; formação de pro-
fessores; livro didático, ensino e aprendizagem sobre as cidades.

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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 11,6 x 19 cm
Tipografia: Red Hat Display 8 | 9 | 11 | 12
Amiri 9 | 9,5 | 10 | 10,5 | 12
Times New Roman 9 | 10 | 14
Papel: Pólen 80 g/m² (miolo)
Royal Supremo 250 g/m² (capa)

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