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CANTO DO MARL:
narrativas de um lugar ocupado pela
esperança estudantil e artística
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2019
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação, Capa e Fotografia: Eluanna R. das N. Pereira
Revisão: Barbara B. Pozatto
Este livro foi impresso através do Programa Municipal de Incentivo à Cultura – PROMIC
18-016 – Lugar de Vivências: preservação das memórias e histórias de um prédio habitado
pela esperança estudantil e artística
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Y19
Bibliografia
ISBN 978-85-444-3821-3
DOI 10.24824/978854443821.3
2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) André Luis de Carvalho (UFRRJ)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Angelo Aparecido Priori (UEM)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Arnaldo Oliveira Souza Júnior (UFPI)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Carlos Ugo Santander Joo (UFG)
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Três de Febrero – Argentina) Fernando Antonio Gonçalves Alcoforado
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) (Universitat de Barcelona, UB, Espanha)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Giovani José da Silva (UNIFAP)
Élsio José Corá (UFFS) José de Ribamar Sousa Pereira (Exército
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que teimam em descer pela face, emoldurando um sorriso no qual se lê: voltei.
O olhar percorre cada canto e temos a certeza de que a pessoa não está a ver o
mesmo que nós. Quais são as imagens que ocupam a retina dos seus olhos e que
não nos é possível enxergar?
Os artistas que chegaram por agora também o entendem de outra forma, cui-
dam com esmero e chamam muita gente para vivenciar belos espetáculos com
músicas, pinturas, cantos e danças. Igualmente se identifica o encantamento que
provoca o marejar no olhar quando o ar que se respira está impregnado de arte
e emoldura um sorriso no qual se lê: conseguimos. O olhar percorre todos os
cantos e temos a certeza de que enxergam para muito além do que pode ser vis-
to hoje. Quais são as imagens que ocupam a retina dos olhos dos artistas quando
olham para esse espaço?
Fomos em busca de reconstruir essas cenas para contar a história de um lugar
marcado por muitas vivências e habitado pela esperança estudantil e artística.
Esperança é uma característica de quem tem coragem. Coragem tiveram os es-
tudantes secundaristas da década de 1950, os estudantes que os sucederam e
levaram adiante a bandeira do movimento estudantil em tempos de restrição à
liberdade e os artistas que, no dia 27 de junho de 2016, assopraram a fagulha
de esperança, a qual sempre se manteve acesa nesse lugar construído para ser
a sede da ULE – União Londrinense dos Estudantes – e que, hoje, é o espaço
cultural Canto do Marl – Movimento dos Artistas de Rua de Londrina. Dois
movimentos sociais que, em tempos distintos, habitam o mesmo espaço e im-
primem nele, cada qual a seu tempo e a seu modo, a marca da esperança, aqui
entendida como compromisso com o futuro, como desejo de ação responsável
para as futuras gerações.
Comprometimento com o futuro é uma característica do realista esperançoso,
como nos ensina o mestre Ariano Suassuna. Todas e todos que, de alguma for-
ma, envolveram-se com as ações realizadas nesse prédio ao longo de quase sete
décadas de existência não se confortaram com uma leitura pessimista de mun-
do, que nos paralisa, tampouco se inebriaram tolamente com o otimismo utópi-
co do verbo, que nos ilude. O que se fez foi a ação possível entre o real e o ideal.
11
E foram as ações realizadas no âmbito do que é possível que tornaram esse lugar
belo. Sua beleza não se apresenta a um transeunte desatento: para entendê-lo
belo é preciso parar, entrar e direcionar o olhar para além do que suas velhas
paredes podem mostrar.
O LIVRO
Em meio a processos de construção de “bolhas sociais” e de uma avassaladora
individualização dos espaços, das vidas, a ideia de público se reduz ao convívio
com pessoas que congregam os mesmos princípios, e isso gera a errônea con-
clusão de que somos detentores de verdades que devem ser impostas a todos os
outros. Não somos.
13
Vivenciar os lugares públicos nos possibilita constatar o quanto somos diver-
sos, diferentes e, na atualidade, ser cidadã ou cidadão de uma cidade passa por
aprender a respeitar a pluralidade. Por isso, objetivamos elaborar um livro que
colocasse as pessoas a pensarem sobre as responsabilidades que temos com os
espaços da cidade. Ao construir a narrativa sobre dois momentos distintos – a
construção do prédio e o processo de ocupação –, pensamos nas possibilidades
de articulação entre eles, o que, para nós, concretiza-se pelo desejo de agir em
prol dos aspectos públicos que compõem uma sociedade.
Organizar todos esses quereres na forma de um livro com autoria coletiva não
foi tarefa das mais simples. Vivenciar essa experiência durante todo o desen-
rolar da pesquisa e da feitura do livro alimentou ainda mais em nós a certeza
da necessidade de nos contaminarmos do outro para podermos falar de uma
14
No terceiro capítulo, que encerra a obra e também é um marco de reinício para
o espaço cultural Canto do Marl, contamos como e por que o prédio foi ocu-
pado pelos artistas do Movimento de Artistas de Rua de Londrina e, a partir de
então, o que foi feito. Os fatos são narrados por tempos: do fogo, da água e do
futuro. Agradecemos a todas e a todos que colaboraram concedendo-nos entre-
vistas e por aceitarem a proposta da construção de uma escrita coletiva. Para
além dos nomes dos prefeitos, não há referência em específico a outros atores,
primeiramente, porque correríamos o risco de esquecer pessoas que foram fun-
damentais na construção desta história e, segundo, porque temos certeza de que
ela só se fez possível pela força do coletivo.
Optamos por escrever um livro com certa liberdade quanto a normas e padro-
nizações. Para facilitar a leitura, as notas e as referências foram colocadas no
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UM LUGAR PARA OS ESTUDANTES:
a construção do prédio da ULE
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Capítulo um
1
NORA, Pierre. Entre memórias e his- 2
FROMM, Erich. A revolução da
tória: a problemática dos lugares. Proj. esperança. Rio de Janeiro: Zahar
História, São Paulo, v. 10, p. 9, 1993. Editores, 1975. p. 27.
17
dantes da década de 1950 e artistas do ano de 2016, cada um com as marcas
de seu tempo, demonstram possuir o que Erich Fromm define como “esperança
forte”, a qual se concretiza na capacidade daqueles que “[...] veem e apreciam
todos os sinais da nova vida e estão prontos a todo instante para ajudar no nas-
cimento daquilo que está pronto para nascer”3.
E o que está para nascer, para estudantes da década de 1950, é um lugar para
ser a Casa do Estudante de Londrina; para os artistas de 2016, um lugar para
ser um espaço cultural sede do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina. A
ideia de retomar o lugar para movimentação cultural permanece no tempo em
meio a tantas transformações, visto que a Londrina de 2016 se difere significa-
tivamente da cidade de 1950. O lugar é, conforme Yi-Fu Tuan, “[...] um mundo
de significado organizado. É essencialmente um conceito estático”4, visto que,
3
FROMM, op. cit., p. 27. 5
TUAN, op. cit., p. 199-205.
⁴ TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. A Perspectiva 6
Anexo à Lei nº 110 (1951).
da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. p. 198. 7
NORA, op. cit.
18
Escrever a história da construção e da ocupação desse prédio requer percorrer
duas décadas acompanhando os movimentos da cidade em torno das questões
relacionadas à cultura e à educação. Na década de 1950, Londrina contava com
milhares de estudantes, cerca de 6.000 (seis mil)8, muitos vinham de fora para
cursar Direito, Filosofia e Odontologia. Direta ou indiretamente, era para esses
estudantes que o espaço público se tornaria um lugar de acolhimento, de rela-
ções e, consequentemente, de construção de memórias, um lugar de vivências
da cidade, o que perdura em sua edificação desde então.
Em sua finalidade, o prédio passou por configurações diferentes, o que antes era
a Casa do Estudante é, hoje, um espaço cultural, o Canto do Marl, que, por um
contexto de muita luta e resistência, faz-se um dos braços que acolhem, com-
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O CENÁRIO
O período que abrange a construção da Casa do Estudante é marcado por di-
ferentes cenários quanto às histórias política e econômica, locais e nacionais.
Na década de 1950, são impostos à população períodos de Estado de Sítio no
país, que perduram até fevereiro de 1956. No governo do presidente Juscelino
Kubitschek (1956-1961), o aspecto desenvolvimentista assume o protagonis-
mo na pauta nacional. Em Londrina, registra-se o movimento crescente de
desembarques na plataforma ferroviária, a construção da fábrica de leite e de
outros produtos, a expansão da Ferrovia Central do Paraná9 e a ampliação do
aeroporto da cidade10. O viés educacional e cultural aparece, também, como um
indicativo do pensamento desenvolvimentista, visto que havia uma luta pela
ampliação das escolas básicas, pela instalação da Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras e pelo reconhecimento federal da Faculdade de Direito em 196011.
8
O número de estudantes é indicado no 9
Matéria da Folha de
documento anexo ao Projeto de Lei nº 7/51, Londrina, 26 jan. 1956.
correspondente à Lei nº 110, de 1951 – CML. 10
Matéria da Folha de
Assinado pelo então Prefeito de Londrina, Londrina, 1 abr. 1956.
Hugo Cabral, que solicita à Câmara mereci- 11
Matéria da Folha de
da atenção à causa dos estudantes. Londrina, 6 jan. 1956.
19
A história da construção do prédio remonta ao início da década de 1950. No
mês de maio de 1951, “[...] o terreno de 750 metros quadrados, de proprie-
dade do município de Londrina, constante na data nº 4, quadra 30, da planta
geral da cidade”12 foi doado para a ULE. Nesse mesmo ano, em dezembro, a
“simpática associação estudantil”, conforme palavras da imprensa municipal,
ganha também nova diretoria: Presidente Bolivar Aragão; Vice-presidente Rui
Silva; 1º Secretário Pedro Freitas; 1º Tesoureiro Waldir Canizin; 2º Tesou-
reiro Neyde de Toledo; Orador Paulo Pinheiro e 2º Orador Cacilda Passos;
Conselho Deliberativo: Farid Libos, Antenor Romanholo, Dinalva Scaff e Na-
dir Penteado. Pela “memória do papel”, o impresso O Município13 demonstra
que os estudantes recebiam da imprensa local palavras de incentivo quanto
a sua organização política. Observa-se, nessa configuração, a participação de
12
Texto da Lei nº 110, de 19 de maio de 1951 – Doação do terre-
no destinado à construção da Casa do Estudante de Londrina.
13
O Município, n. 64, ano 2, 6 dez. 1951.
20
Em Curitiba, o movimento estudantil – via União Paranaense de Estudan-
tes Secundaristas (Upes) –, aparentemente, mantinha laços estreitos com a
política e conquistou seu espaço por ações diretas com o governo do estado,
na época, Moysés Lupion e sua esposa Hermínia. O grupo era presidido por
Oséas de Castro Neves, acadêmico de medicina que, pessoalmente, apresen-
tou seu desejo à primeira dama de que os estudantes que viessem de fora
tivessem um lugar de acolhimento.
Na capital, a princípio no ano de 1948, a casa localizava-se em um imóvel
alugado, a primeira Casa do Estudante Universitário (CEU). No entanto, foi a
segunda casa, com obra iniciada em 1949 e concluída em 1956, que inspirou
os estudantes londrinenses a idealizarem a sua própria Casa do Estudante. Na
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Atualmente, a Casa atende 16
Requerimento nº 6535/56 para a Prefeitura
estudantes que não residem em Municipal de Londrina, 7 nov. 1956.
Curitiba (ver: <www.ceupr.com.br>). 17
Segundo as reportagens da Folha de Londrina,
15
Em 1954, as mulheres criaram a CEUC de outubro de 1956, Lincoln aparece como presi-
– Casa da Estudante Universitária de dente da ULE e secretário da Comissão de Cons-
Curitiba (ver: <www.ceupr.com.br>). trução da Casa do Estudante.
21
Analisar essa planta por cada dobra do papel que se abre é um convite para ima-
ginar aquilo que está pronto para nascer, como sinais de vida nova alimentados
pela esperança forte de muitos sujeitos envolvidos na conquista desse espaço.
Entre, escolha seu lugar e seja bem-vindo!
22
Quem fala de um espaço, de um lugar de história e de memória escolhe e se-
leciona objetos de análise. Sejam quais forem, trarão à cena atos que serão um
convite ao imaginário do lugar, dos ruídos, dos tons de vozes e das relações
nesse mesmo espaço. Paredes, teto, chão e assentos existem para que as relações
habitem o lugar delimitado pelas normas arquitetônicas e, nesse quadrante, o
lugar se torna palco, em que atuam sujeitos sincronizados no movimento, no
teor da cena e na forma que o espaço os direciona.
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ao fundo, em formato de meia lua: o palco, como ponto central e possível de ser
visto desde a rampa de entrada, cercado em seus cantos posteriores pelo camarim
e pelo almoxarifado. O palco era um item obrigatório, pois, segundo as pessoas
entrevistadas, os jovens, estudantes-artistas, tocavam, representavam18, cantavam
nas festas e formavam as bandas.
Os sonhos não param no térreo. Ao subir os degraus, encontra-se um ambiente da
mesma largura do corredor na entrada do terreno, sendo parte dele circulação, a
outra, discoteca. Ao lado esquerdo, com vistas para a rua, uma ampla sala de leitura
com uma biblioteca aos fundos. Do outro lado, separados pela discoteca, o salão
nobre, o qual tem grande janela para a rua e proporções maiores que a própria sala
de leitura. O banheiro das moças faz parede com o salão nobre, enquanto o dos
18
Informações sobre as atividades co-
letadas na entrevista com o Sr. Otássio
Pereira da Silva, em março de 2018.
19
CERTEAU, Michel. A invenção do
cotidiano: 1 Artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 2013.
24
“se urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios e, diver-
sas vezes, fora dos projetos “oficiais”, graças às astúcias de seus moradores: nas
práticas e nas vivências cotidianas, nas relações diárias com a cidade.
Ainda que não tenha existido, transitar pelo prédio projetado é uma forma de
deixar registrados o pensamento e a ousadia que marcaram o movimento estu-
dantil londrinense do período. A história da construção do prédio é composta
por vários episódios, um deles é a transferência legal do terreno para o Governo
do Estado do Paraná, que ocorreu pela Lei nº 362, de 1957. Essa transferência
fez-se necessária, pois, embora houvesse as subvenções anuais da Prefeitura e as
ações promovidas pelos estudantes, a ULE não possuía disponibilidade financei-
ra suficiente para iniciar as obras de construção do edifício.
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20
Lei nº 362, de 1957, Londrina-PR.
25
dramatizando um “enterro simbólico” dele. Em sessão da Câmara Municipal do
dia 05 de junho de 1959, tem-se, na ata, o registro da fala do vereador Claudio
Silva em defesa do deputado Amauri, explicando que a verba destinada à ULE
se trata de um “orçamento não coerente” e que o deputado viria pessoalmente
a Londrina explicar, junto aos estudantes, o seu posicionamento. Opositor ao
governador do estado da época, Moisés Lupion, Amauri relata que as condutas
administrativas do governante estavam dilapidando o patrimônio do estado e
que esse, sim, “[...] merecia ser enterrado, diariamente”. Fato posto é que ficaria
estabelecida a oposição entre o dirigente da ULE, Otássio Pereira, e o deputado
Amauri Oliveira e Silva, ainda que este último tenha assumido, posteriormente,
que tomaria atitudes legais para atender às necessidades da ULE.
21
Em 1968, Délio César participou ativamente
da criação do Festival Universitário de Londri-
na, que se transformaria, posteriormente, no
Festival Internacional de Londrina (Filo).
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A construção do prédio iniciou-se, então, no ano de 1959 e, conforme relata
Otássio, no primeiro pavimento foi erguida rapidamente a parte referente ao
salão e ao refeitório. Ao término dessa etapa, o entrevistado registra que tudo
estava em perfeitas condições para uso: tinha energia elétrica, telefone, água e
banheiros funcionando. Não se tem uma data ou um evento definitório quan-
to à inauguração, pois conforme os espaços se erguiam iam sendo utilizados e
organizados, mas, a considerar a data de 1959, pode-se concluir que o prédio
tem, em 2019, 60 anos, o que o posiciona como um dos prédios públicos mais
antigos da cidade.
Quem sucedeu Otássio Pereira na presidência da ULE foi Ivair Lúcio Soares,
que foi reeleito, segundo Leonardo Henrique dos Santos, uma ou duas vezes.
O ENREDO
Apresentar em sucessão os acontecimentos que vêm dando corpo a essa his-
tória é, também, deixar à mostra uma cadeia de estratégias e de peças de um
quebra-cabeça que, aos poucos, vai se montando. Elementos do passado são
reunidos no presente e representam os caminhos percorridos, os alcances, as
derrotas e, sobretudo, possibilitam identificar as marcas que as vivências de
cada grupo deixou impressas no prédio. Todos os que voltaram a ele para con-
ceder a entrevista – após longos minutos olhando para o teto, para os lados,
adentrando calmamente, passo a passo, o que outrora fora a sede da ULE –
verbalizaram sobre o quanto o que viveram naquele lugar marcou para sempre
as suas trajetórias de vida. Compor esse espetáculo em forma de livro é dia-
logar com o que os arquivos nos apresentam por meio de atas, leis, relatórios,
reportagens e entrevistas.
Ao entrelaçar as memórias de alguns personagens entrevistados, foi possível
conhecer o que viveram no espaço do prédio, tornando-o um lugar de memória
28
que, segundo Nora22, emerge quando um grupo, com suas próprias histórias, se-
leciona o que quer narrar, conferindo significância aos elementos e às lembranças
e selecionando o legado a ser passado para gerações futuras. A história apresenta
fatos documentados, ora desconcertantes, ora libertadores, reconstruindo o que
é parte de uma experiência coletiva. Memória e história dialogam nessa trama.
A municipalidade, em seus discursos registrados nos documentos, sempre re-
conheceu a importância de garantir um lugar aos estudantes, ainda que nem
sempre se dispusesse a atuar efetivamente em prol de tais lugares. Olhando para
o contexto dos anos de 1950 e de 1960, os estudantes aos quais nos referimos
eram aqueles que representavam, em grande parte, a elite londrinense, frequen-
tadores dos grupos escolares da cidade. No contexto de meados do século XX,
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a classe estudantil a qual se referiam as falas do prefeito Hugo Cabral e dos de-
mais representantes na Câmara diz respeito a um grupo de jovens que é parte
de uma cidade com cerca de 90 mil habitantes, sendo que pouco mais de sua
metade encontra-se na zona urbana.
O ano da construção do prédio da ULE, 1959, foi também o ano no qual Lon-
drina comemorou o seu Jubileu de Prata. Segundo Arias Neto, tratava-se de um
momento de passagem, no qual se identificou a necessidade de inventar tradi-
ções. “Nesse sentido, os homens buscaram na história da cidade os elementos
que cunhassem sua própria identidade”23. As festividades se desenrolavam em
meio à crise da cafeicultura, atividade econômica que possibilitou o rápido cres-
cimento da cidade de Londrina. Com o declínio da cultura cafeeira, o êxodo rural
foi impactante para a organização da cidade e gerou muitos problemas urbanos24.
A favelização, o aumento populacional, a inversão do plano urbanístico da cidade
no que se refere à população fizeram com que o perfil dos estudantes a compor
a ULE também se alterasse ao longo das décadas de 1950 e 1960.
As leis orçamentárias de cada ano, localizadas nos arquivos da Câmara Munici-
pal, apontam que as instituições particulares que tinham auxílio financeiro mu-
nicipal – como o Colégio Londrinense, o Colégio Nossa Senhora de Fátima, o
Colégio Coração de Jesus, o Seminário Vicente Palotti, o Colégio Mãe de Deus e
o Instituto Filadélfia – eram subvencionadas pelo município mediante o ofereci-
mento de 10 bolsas de estudos a alunos pobres, que eram então distribuídas pe-
la municipalidade. O próprio município tinha uma verba específica para bolsas
de estudo para o curso secundário, visto que os grupos escolares não atendiam
toda a população em idade escolar.
22
NORA, op. cit.
23
ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: repre-
sentações da política em Londrina, 1930/1975.
2. ed. Londrina: EDUEL, 2008. p. 155.
24
ARIAS NETO, op. cit.
29
Os alunos que adentravam os colégios particulares via concessão de bolsas de
estudos inseriam-se no movimento estudantil, ocasionando mudanças quanto à
inserção social do movimento na cidade e, além disso, em relação às pautas rei-
vindicatórias. As lutas desse grupo de jovens, possivelmente, fomentaram outras
conquistas para a juventude estudantil. Um exemplo da ampliação da pauta e do
envolvimento da ULE com os interesses coletivos se deu no dia 14 de março de
1960, quando reclamaram em protesto na Câmara sobre a localização da usi-
na de reaproveitamento de lixo, a qual estava prejudicando toda a comunidade
com maus odores. Era um grupo ativo, que representava seus interesses e os da
comunidade em geral. Jovens que se apresentavam envolvidos política, social e
culturalmente no contexto da cidade e que, aos poucos, conquistaram seu espa-
ço e seu lugar ao longo dos anos seguintes. A representatividade dos estudantes
25
NORA, op. cit., p. 22.
30
A preservação dos patrimônios materiais históricos das cidades acontece, tam-
bém, quando um olhar investigativo surge em suas direções, caso desta pesqui-
sa, cujos resultados se apresentam em forma de livro. Uma narrativa histórica
seleciona fatos, evidencia-os e, mesmo que de forma parcelar, faz conhecido
um fator que significou a cidade. Sem esse exercício de olhar além do tempo,
os lugares de memória (como o prédio da Ules) se perdem na deterioração da
matéria e no esquecimento, características comuns ao tempo veloz a partir do
qual se organiza a sociedade contemporânea.
Ao voltarmos no tempo, identificou-se que grande parte do que foi idealizado
na planta de 1956 não foi edificada. Era um sonho ousado, muito semelhante às
edificações da Londrina progressista. Dos três pavimentos projetados, construiu-
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-se parte do primeiro: palco e salão de baile. O viés cultural sempre foi um braço
forte da ULE. No ano de 1952, houve uma de suas atividades intituladas no jornal
como “reunião cultural e artística”, realizada no colégio Hugo Simas, uma institui-
ção de ensino da cidade. Nessa ocasião, “números musicais” foram apresentados.
No mesmo ano, o orçamento oficial do executivo que passa pela Câmara Muni-
cipal mostrou, pela primeira vez, um valor para despesas para a construção da
Casa do Estudante, no item denominado “Educação Pública”, com o subtítulo
“Órgãos Culturais”. Essa dotação orçamentária continuou acontecendo pelo res-
tante dessa mesma década, sempre relacionada a “Instituições de Educação Pú-
blica”, conforme linguagem oficial dos documentos e com valor equivalente às
demais instituições de educação de grande importância para a cidade na época.
Fragmentos juntados via documentos e entrevistas sobre a história do prédio
mostram que a relação dos estudantes londrinenses com a cultura sempre foi
muito estreita, a ponto de não se diferenciar, muitas vezes, da educação. Identi-
ficam-se vivências culturais e artísticas em paralelo com outras ações. O espaço
destinado ao palco e ao salão de baile, na planta de 1956, corrobora a tese de
que educação e cultura caminhavam lado a lado.
Quase uma década após a primeira documentação apresentada à Câmara Muni-
cipal, a Casa do Estudante ganhou paredes e luzes, o que possibilitou o seu uso
e, em decorrência, a apropriação do espaço por meio de sujeitos envolvidos. Um
novo espaço na cidade surgiu para um grupo que já se organizava por outros
cantos em reuniões formais, apresentações artísticas e culturais diversas.
Segundo Leonardo Henrique dos Santos, os estudantes opinavam, mesmo que
ingenuamente, sobre todos os tipos de assuntos em suas assembleias. Para inter-
virem em algumas causas, que hoje são vistas por Leonardo como inatingíveis,
os estudantes não hesitavam em se organizar na tentativa de influir e conseguir
algumas mudanças. O entrevistado relata que eram um grupo ativo e envolvi-
do com muitos assuntos da cidade: obrigavam os bares do centro a fecharem
31
as portas e impediam a exibição de filmes, lutando para que os ingressos não
sofressem aumento. Em uma ocasião, segundo Leonardo, após o barulho feito
pelos estudantes na cidade sobre a carestia em torno dos alimentos, o prefeito
Milton Menezes compareceu à sede da ULE acompanhado do então coorde-
nador da Comap (Comissão Municipal de Abastecimento e Preços), Julito
Coelho, para explicar o que a prefeitura estava fazendo em relação aos preços
de gêneros de primeira necessidade26.
Os estudantes da ULE, já com sede própria, promoviam, além das reuniões
administrativas, momentos de interação social e cultural, como era o caso
das famosas “brincadeiras dançantes”, encontros característicos dos anos de
1960, com música para dançar e se divertir. Entre muitos episódios alocados
26
Relato de Leonardo Henrique dos
Santos – Secretário geral da ULE na
gestão de Otássio Pereira (1959/1960).
27
Jornal carioca Novos Rumos, Repor-
tagem de Nilson Azevedo. Ano 1960/
Edição 00076.
32
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criança, ao descrever a fotografia do prédio28, agora Canto do Marl, um
lugar totalmente desconhecido por ela, falou: “Várias pessoas em roda pa-
ra falar sobre coisas boas”. É fato que a roda e as pessoas estão explícitas
na imagem. “As coisas boas” é inferência da criança, que compreende à sua
maneira que o que motiva as pessoas naquele local é, de certa forma, uma
reunião para promover algo novo, algo bom. Algo que está sempre pronto
para nascer. Se olhar historicamente as raízes desse espaço, notar-se-á que
o prédio situado na avenida Duque de Caxias, na cidade de Londrina, teve
em suas diversas configurações momentos de reunião de pessoas que, em
cada tempo, discutiram e promoveram muitas ações, as quais não podemos
narrar, mas que, possivelmente, almejaram “coisas boas” para quem no es-
paço se inseria e atuava. O palco sempre esteve lá! De concreto, de taco, de
34
UMA PERSONAGEM DENTRE TANTAS
Até aqui o intento foi contar a história da construção do prédio que, hoje, é o
Canto do Marl. Para tanto, fez-se necessário adentrar na história do movimen-
to estudantil londrinense. Identificam-se muitas permanências e várias trans-
formações entre os dois movimentos que se dispõem a conferir existência ao
prédio como lugar de ação em prol da cidade de Londrina. Por ele passaram
diversas pessoas e foram possíveis vários encontros. Todos esses encontros e
pessoas, cada qual a seu modo, são importantes nesta história, mas uma delas
merece uma abordagem especial: o Zé Lista.
A opção por finalizar este capítulo tratando de uma personagem em especial
se justifica pelo fato de que, de fato, a construção do prédio viabilizou-se em
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grande parte pela sua persistência e, é claro, pela sua capacidade de articulação
política. Otássio Pereira da Silva, hoje com 83 anos e residente na cidade de
Curitiba, era uma figura muito conhecida na cidade de Londrina nas décadas
de 1950 e 1960, cidade na qual, em meio a lutas, resistências, conquistas e
desafetos, constituiu-se radialista, líder estudantil e político.
No final da década de 1950, Sr. Otássio esteve à frente de um grupo de estu-
dantes secundaristas que vivenciou, no dia a dia, a construção desse prédio.
Seis décadas depois, Otássio voltou ao prédio atendendo ao pedido da equipe
de pesquisadores e reencontrou-se com suas memórias e experiências em meio
às nossas, no mesmo espaço, mas em tempos e lugares diferentes.
Em busca de informações oficiais na documentação legal dos arquivos da Câ-
mara Municipal de Londrina (CML), buscava-se configurar um conjunto do-
cumental que fornecesse dados para se escrever a história do prédio na Duque
de Caxias. Estava-se diante de atos legais, de memórias documentais e de uma
história alocada entre as linhas das letras da lei, direta, ordenada e cheia de
interpretações. Na leitura das atas das sessões da CML, no ano de 1959, um
nome aparecia com frequência: o do líder estudantil, assim tratado, Otássio
Pereira da Silva. Tinha nome citado e presente nas sessões e, por ser denomi-
nado líder desse movimento pela ata do dia 05 de junho de 1959, optou-se
por localizá-lo, a fim de colher narrativas do período de construção do pré-
dio e conhecer, via oralidade, um pouco das tramas que envolveram todo esse
processo. É com esse personagem que se inicia a segunda parte deste livro,
que objetiva apresentar algumas personagens que se dispuseram a contar suas
vivências no prédio.
35
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EXPERIÊNCIAS NARRADAS:
entrevistas
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Capítulo dois
29
BENJAMIN, Walter. Experiência e po-
breza. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cul-
tura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
30
A entrevista com o Leonardo foi a
única não realizada presencialmente.
37
tecimentos são sucessivamente reavaliados para ceder espaços a novas in-
terpretações e configurações, dando voz e visibilidade a atores e lugares31.
31
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis,
cidades imaginárias. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 27, n. 53, p. 16, jan./
jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-01882007000100002>. Acesso em: 8 out. 2019.
38
determinante dentro de um contexto. Existiram com ele diversos corpos e cul-
turas e se trata, portanto, de um “espaço vivido”, como diria Milton Santos. Esse
espaço sempre permite renovações, novas formas de usos, práticas, saberes, con-
flitos. Está constantemente pautado em questionamentos do passado-presente,
para agir em um futuro que é presente também. Por isso, seguem, nas próximas
páginas, alguns relatos desses corpos que, sem dúvidas, dialogam e ressoam no
espaço que hoje acolhe o Canto do Marl.
Boa viagem!
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O ZÉ LISTA
Otássio Pereira da Silva33
32
Renata Maria Caobianco, em seu livro Movimento Estudantil na
UEL 1971-1984, coloca as organizações políticas de esquerda do
período ditatorial em um anexo, totalizando 54 organizações dis-
tintas. Algumas delas identificamos na fala da militância da Ules
nos mais variados períodos históricos que a entidade viveu.
33
Otássio Pereira da Silva foi presidente da ULE nos anos 60,
integrou a gestão que começou a construção do prédio da
Casa do Estudante, conforme colocamos no capítulo 1.
Entrevista concedida em março de 2018.
39
Eu era repórter da rádio, muito embora eu não fosse jornalista, mas radialista, e fazia
parte da companhia do Mayrink Goes, que já faleceu. Então eu tinha facilidade de en-
trar em contato com todas as autoridades. Chegava no governador do estado e dizia: “Eu
tenho um problema assim, o senhor pode resolver esse problema, o que o senhor acha?”.
Quando terminava a reunião, o papo, eu dizia: “Governador, eu sou presidente dos estu-
dantes e preciso construir a sede”. Ele respondia: “Você que é o Otássio Pereira? Já che-
garam algumas informações suas lá no palácio. Vou arranjar um dinheiro para vocês!”.
Mas ele só fez isso porque eu me tornei conhecido.
Existia um deputado chamado Zaqueu de Melo, ele era diretor do Colégio Londrinense.
Ele disse: “Foi para a Assembleia Legislativa uma verba grande. Essa verba estava incluí-
da para a construção da Casa do Estudante, dois milhões de reais. E o deputado Amaury
de Oliveira e Silva, que era da oposição, votou contra e vocês não vão receber a verba”.
40
Protesto dos produtores de café
Existia um movimento paranaense, brasileiro, dos produtores de café. Existia o con-
fisco cambial: de cada saca de café que era exportada, retirava-se aproximadamente
15%. Era um fundo, o fundo do IBC (Instituto Brasileiro do Café). Os lavradores,
os cafeicultores dessa região se insurgiram contra isso. Como os filhos desses lavrado-
res eram estudantes aqui, nós, então, abraçamos a ideia de defender a retirada desse
confisco cambial. E os lavradores prometeram sair daqui em marcha e ir ao Palácio do
Catete, no Rio de Janeiro, com jipe, com coyote, fazer uma passeata. E esse movimento
veio nos convidar para participar da marcha. Nós aceitamos. Fizemos um comício na
Concha Acústica. Um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) fez “vrum” em cima
da Concha. E nós: “Defendemos os lavradores, porque somos filhos de lavradores, não é
justo que 15% da produção de café seja desviada”. Quem parou com o movimento foi o
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Henrique Batista Lott, que foi ministro da guerra. Mas, devia ter pouca gente também.
Nesses movimentos em prol de Londrina, nós sempre estivemos juntos.
41
Papel artístico da Ules
Nós dávamos apoio aos estudantes, a parte artística dos estudantes.
Enquanto não ficasse pronta esta obra aqui, a gente usava o auditó-
rio da Rádio Londrina. E eu criei, na Rádio Londrina, um programa
chamado “Escolinha no Ar”, onde nós entrevistávamos diretores de
escolas, professores e alunos. Estes aqui [mostrando a foto] eram
os artistas que se apresentavam.
42
Década de 1960 e início da repressão
Entrou o Del Ciel e ele e uns três ou quatro dirigiram bem a Ules,
até a chegada da “revolução”. Aí veio a ditadura e a ditadura che-
gou e começou a caça às bruxas. Então nós éramos caçados por
sermos puristas, por sermos presidentes de entidades beneficentes
– uma entidade como esta –, éramos caçados por sermos colegas
do sindicato dos trabalhadores. Começou a “revolução” e eu não
acompanhei mais.
43
NA MILITÂNCIA ESTUDANTIL, A DESCOBERTA DA VOCAÇÃO
Leonardo Henrique dos Santos34
34
Como jornalista, Leonardo atuou na imprensa e no
telejornalismo paranaense e nacional. Atuou na chefia do
escritório paranaense da antiga EBN – Empresa Brasileira
de Notícias –, vinculada ao ministério da Justiça, na asses-
soria de imprensa de gestões de governos do estado do
Paraná. Entrevista concedida por e-mail em abril de 2018.
44
primeiro, implantar um restaurante estudantil, que viria a beneficiar principalmente os
jovens de outras cidades da região que se mudavam para Londrina em busca de cursos
colegiais e já de olho nos cursos superiores que começavam a surgir. Numa segunda eta-
pa, alojamentos. Por isso, ele construiu primeiro o amplo salão, que equipou com mesas e
cadeiras, já com vistas ao restaurante. E chegou a viajar a Porto Alegre para sondagens
com uma empresa que produzia cozinhas industriais. O projeto, infelizmente, não foi
adiante. Otássio não conseguiu instalar a cozinha e seus sucessores não se animaram a
tentar levar o projeto adiante. Mas, o prédio converteu-se em centro da então agitada
vida estudantil londrinense. Começamos um trabalho integrado com os grêmios de todos
os colégios e tornamos a entidade reconhecida e respeitada estadualmente. Todo ano, a
partir da primeira gestão encabeçada pelo Otássio, os estudantes de Londrina passaram
a participar do congresso estadual promovido em Curitiba pela União Paranaense dos
Estudantes Secundaristas. Fretávamos um ônibus para levar até lá a bancada londri-
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45
O caso do livro
Todos cuidavam dos mínimos detalhes para um bom funcionamento. Inclusive, me
lembro de uma situação inusitada na biblioteca da ULE. Não era grande coisa, ape-
nas uma estante de tamanho razoável cheia de livros. Já existia na sede anterior, que
funcionava no edifício Vittori. Também ficava na Duque de Caxias, no outro lado da
rua, algumas quadras antes. Era apenas uma sala no primeiro andar. Lembro-me de
que um dia, já na nova sede, encontrei esquecido entre papéis numa gaveta o registro
do empréstimo de um livro, feito na administração anterior à do Otássio, para um
funcionário de uma farmácia que funcionava nas vizinhanças da antiga sede. Como
tinha assinatura, nome e telefone, não pensei duas vezes: liguei para o fulano e pedi a
devolução. Momentos depois ele chegou, de bicicleta, todo constrangido, para devolver o
livro. Não me pergunte que fim levaram aqueles livros. Não faço a menor ideia.
As muitas fases
A entidade viveu seu apogeu nas administrações do Otássio e do seu sucessor, Ivair;
ainda tiveram alguma expressão nas gestões imediatamente posteriores João Marmo
Martins, José Antonio Del Ciel e Romeu Curi, mas depois do golpe militar de 64 entrou
em decadência, chegando o prédio a ficar abandonado por longos períodos. Lembro-me
de que, em uma ocasião, na segunda metade dos anos 70, provavelmente 77, eu mesmo,
que atuava na Folha de Londrina, fui lá e fiz uma reportagem sobre o estado de aban-
dono em que se encontrava o imóvel. De vez em quando, algum prefeito, como ocorreu
com o Wilson Moreira, cogitava retomar o prédio, porque o terreno havia sido doado
pelo município e deixara de cumprir a finalidade a qual se destinava; aí estudantes se
mexiam, improvisavam uma diretoria, reativavam a entidade, mas em pouco tempo
ela estava de novo em estado de coma. Definitivamente, não havia mais clima, sob os
governos militares, para a existência de uma entidade como a Ules.
46
O olhar para o passado e a permanência do lugar no presente
Tenho certeza de que, da mesma forma como eu, todos os que participaram daquele belo
momento da vida estudantil londrinense se entristeciam ao ver o estado de abandono a
que foi relegado durante tantos anos este prédio de tão boas recordações. Por isso, ima-
gino que, tal como eu, sentem-se felizes hoje ao vê-lo restaurado, e o que é mais impor-
tante: desempenhando uma função útil à sociedade, ao abrigar nossos artistas de rua.
Toda vez que eu estou aqui em Londrina, eu passo por aqui, pela
Rua Duque de Caxias... E ficava assim, meio triste, de ver o pré-
dio meio abandonado, né? Numa das vezes que eu vim, daí, em
2016, eu fiquei sabendo por amigos que têm mais ligação com o
movimento cultural na cidade que tinha essa iniciativa de oku-
pação pelo Movimento dos Artistas de Rua daqui de Londrina,
que era uma coisa que precisava ser legitimada, que ainda não
tinha uma resposta positiva, da prefeitura, não sei se era da pre-
feitura, para o uso do prédio, né?
Vim falar da importância deste prédio ser bem ocupado, apoiar
as pessoas que estavam aqui ocupando, que eu já conhecia algu-
mas delas de atividades, e eu também sempre fui ligada ao mo-
vimento cultural, né, muito mais como fã e amiga do que como
artista, mas eu sempre fui muito ligada. Então, por isso, eu vim,
como diz o outro, “de livre e instantânea vontade”, né?!
35
Célia Regina de Souza é economista e jor-
nalista. Foi vice-presidente da Ules, integrante
dos movimentos estudantis da UEL e inte-
grante do Jornal Poeira, na década de 70.
47
A Ules e o conhecimento
No fim dos anos 60, eu era secundarista e já conhecia a Ules, mas porque promovia os
bailes de formatura, era mais um espaço dançante que eu não frequentava.
No fim dos anos 60 e início dos 70, eu estudava no Instituto de Educação, o IEEL,
conhecia o pessoal que estava fazendo teatro na rua e foram lá no Vicente Rijo. Por
coincidência, era um ex-colega do IEEL. Aí ele falou: “Ah, vai lá na Ules que a gente
vai ter um ciclo de palestras no próximo fim de semana”.
Eu vim, né, cheguei no fim de semana aqui e era uma palestra sobre a guerra do café
solúvel, sobre a questão da indústria nacional, e eu já saí daqui completamente nacio-
nalista. Logo na sequência, na outra semana, teve uma outra palestra, sobre a guerra
48
Espaço histórico e público
Eu faço parte daquela geração de Londrina que não era “ri-
quinha”. Aqui, para mim, foi um espaço, o espaço cultural da
minha formação. Então, eu acho que é legal que vocês estejam
aqui ocupando este espaço, porque eu acho que ele é um espaço
histórico da cidade, como eu acho que a Rua Duque de Caxias
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é, né? Ela é uma rua que não entende os espigões que já estão
surgindo ao lado, que tem uma arquitetura... O próprio pessoal
da UEL sabe disso, que é uma trajetória, tem as construções da
minha infância, que eu sou londrinense “pé vermelho” e morava
por aqui, né, e este espaço é para isso. E ele sempre foi muito rico
culturalmente... É, teve um período de vazio, mas deveria voltar a
ter esse destino de ser administrado para a gente ter mais acesso
à cultura numa área mais central.
Eu acho que isso que vocês estão fazendo aqui, de valorizar este
espaço, também não é uma coisa só de Londrina, todo mundo vem
fazendo em outros lugares. Porque é resgate histórico, é a gente
ocupar mais o centro da cidade com atividades interessantes, usar
os prédios semipúblicos, porque aqui é público e não é público, foi
por pressão do movimento estudantil. É um aprendizado, também,
a gente saber cuidar e tomar conta da cidade. Fiquei muito feliz
depois de saber que já estavam tendo várias iniciativas.
49
FOGUEIRA DEMOCRÁTICA
Nei Inácio36
36
Nei Inácio é jornalista (formado na pri-
meira turma da UEL) e participante das
atividades e dos festejos da Ules. Entre-
vista concedida em junho de 2016.
50
durante essa peça de teatro, realizar assembleias para reivindicar o que nós queríamos,
então, aqui, no prédio, fora do prédio, nós fazíamos esse movimento.
O bloco era todo mundo de idade da pedra, chamado “É de arrepiar”... O nome do bloco.
Todo o pessoal da periferia, Jardim do Sol, Jardim Igapó, Vila Nova, Vila Recreio, Vila
Brasil... Nós nos juntávamos no Lago Igapó e ensaiávamos todo o roteiro e texto, e a gente
entrava. Aqui era o único espaço em que nós tínhamos manifestação popular, todo pessoal
pobre, que não tinha grana para ir ao baile do rico. Então, era aqui que a gente vinha.
37
Integraram a diretoria da Ules nos anos
1969-70, como presidente, vice-presidente
e secretária, respectivamente. Entrevista
conjunta concedida em julho de 2019.
51
Depois disso, quando o Del Ciel saiu, entrou um outro rapaz na presidência, que eu
não lembro o nome, e esse rapaz, por alguma razão, foi deposto. E aí entrou uma
junta interventora presidida pelo Carlos Manuel Ascênsio Mendes Pimenta, que as-
sumiu e, depois disso, entrou o Geraldo na presidência, eu fui vice, e Ednéia foi a
secretária dessa gestão, em 69-70.
O movimento estudantil era muito visado, mas a gente conseguia construir viés para
trabalhar um pouco essa coisa toda. E conseguimos, sim. Trabalhamos bem. Algumas
vezes fomos chamados para conversar com pessoal da Federal. Normal isso, né, volta e
meia tinha uma solicitação de bate-papo, mas estávamos indo bem. A gente trabalhava
muito bem! Eu esqueci de dizer, meu nome é Geraldo Gonçalves de Oliveira Filho.
Meu nome é Ednéia Consolin Poli, sou já professora aposentada do Estado, como profes-
Ednéia Poli
O que aconteceu muito forte na Universidade e influenciou no movimento secundá-
rio foi que, até então, os cursos eram anuais, e as pessoas se conheciam, os estudantes
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conheciam os colegas do primeiro ano, eu chegava no quarto ano... Então o que que
acontecia? Você formava grupos, você começava a ir além da matéria. Eu, da mate-
mática, por exemplo, algo tão seco, a gente começava a discutir outras coisas, entre
elas as questões políticas, sociais, enfim, de vida. Aí, quando veio os seriados, veio forte
para mim: acabou! Então, aquele estudante não encontrava com a mesma turma já no
segundo semestre do seu primeiro ou segundo ano. Eu não lembro a Lei que era, mas
foi uma estratégia do governo militar, isso quebrou o movimento estudantil.
[...] A diretora de uma escola que eu trabalhava chegou ali no recreio da escola e entre-
gou umas fichas da Arena. “Eu quero que todo mundo assine a ficha”. Eu falei assim:
“Eu não vou assinar”. Ela me olhou, eu nem sei como eu não fui tirada daquela escola
na época, porque era assim, normalmente, eles te tiram e te mandam para uma escola
rural na época, alguma coisa assim. Você tinha obrigação de assinar as coisas, mesmo
na época como professora já. Eu comecei cedo, em 70, 71 eu já estava trabalhando, eu
tinha 17 anos, tinha magistério e já estava trabalhando. E isso aí me impactou muito.
Todo mundo, na verdade. E aquela escola era Arena, poucas, duas ou três não eram.
Então, todo esse movimento que é. A escola é um viés político, era, sim, um viés político.
E as diretoras tinham cargo por causa da política.
Geraldo Oliveira
Nós estivemos em Guarapuava presidindo a reunião do Conselho da Upes e che-
gou um determinado momento... Eu pedi uma contagem de votos, os estudan-
tes levantaram as mãos. E nós tínhamos exatamente metade de estudantes e me-
tade de agentes do DOPs. Era uma loucura uma coisa dessas. Você tem meio a
meio. Aí eles até se sentiram mal e foram saindo, porque já estava demais. De-
pois disso, tinha mais algumas coisas interessantes que a gente era capaz de con-
textualizar as coisas, driblar um pouco as situações, nós conseguimos, em plena
ditadura, para um congresso de estudantes em Foz do Iguaçu, um avião da FAB
(Força Aérea Brasileira). Você imagina, em plena Ditadura...
Ednéia (categórica): Quer dizer, isso era uma tutela do regime militar.
Geraldo: O Delegado da Federal me chamou e disse: “Como assim?”.
53
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Caso Zé Dirceu, Ules e tiro de guerra
Geraldo Oliveira
Você nunca sabia ao certo quem chamava, mas me parece que foi um membro de uma igre-
ja episcopal, chamado Alfredo, e disse: “Olha, eu preciso de você”. E eu disse: “É pelo meu
cabelo? Eu era do exército, estava com o cabelo cortadinho, e estava no tiro de guerra. “O
que você precisa de mim?”, “Eu preciso que você acolha pessoas que passam por aqui, que
estão sendo perseguidas, podem ser mortas, precisaria que vocês acolhessem”. Era uma coisa
muito secreta. Você recebia um telefonema, nós tínhamos um telefone público, vocês lem-
bram disso? Aqui na frente. Aí ele chamava, você atendia a primeira vez, nada; atendia a
segunda vez, nada; atendia a terceira, nada. Na quarta vez, ele falava e emitia um comando
assim: “Olha, às 22 horas alguém chega aí, por favor, acolha”. E um belo dia apareceu aqui
um cidadão alto, eu não sabia nome, ele chegou à noite, assustado, muito assustado, nós
tínhamos o Restaurante e sempre sobrava algum coisa, ele comeu e foi dormir, lá em cima.
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Lembra? Tinha aquele sofá, e ele dormiu no sofá. No dia seguinte, eu cheguei de manhã, e
ele estava envolto na bandeira do Brasil, que era a única coberta que tinha na sala [risos].
E ainda eu falei com ele: “Você toma café?”. E ele disse “Não, eu fico aqui”. Eu insisti: “Des-
ce, não tem problema”. Ele desceu e o pessoal todo viu, mas o pessoal estava acostumado
com a gente receber as pessoas nessa situação. Não eram muitas não, mas algumas pessoas
passaram por aqui. E, logo em seguida, de novo, eu recebi um outro telefonema, dizendo
que era a hora, e ele foi embora. Eu não sabia quem era. Depois de algum tempo, eu fiquei
sabendo que era o Zé Dirceu, passou por aqui, foi levado para Umuarama. E de lá ele foi
levado para Cruzeiro do Oeste. Lá, ele ficou escondido ainda, casou, teve filho, o Zeca, filho
dele. E depois disso passou um tempo. A gente tinha esse tipo de papel...
[...] um belo dia, um sargento me chamou lá no Tiro de Guerra: “Preciso falar com você
e urgente”. E não dava nem para eu ligar para o meu povo e falar “Desmonta o negócio
aí e some todo mundo que o lance vai ferver”, não tinha como eu ligar. E ele disse: “Olha,
essa guarda que você comanda está chegando tarde, você deixa esse pessoal sair!!!”. Graças
a Deus que não tinha nada a ver com meu esquema lá. Então tinha essas coisas assim.
55
união por um único serviço vai formando um grupo, lutas essas que o Renato lembra,
essas lutas começaram a surgir. Porque, efetivamente, as coisas não andavam bem,
os grêmios usufruíam da Ules somente quando tinham bailes, mas não tinha uma
assistência da Ules com relação aos grêmios, que ficavam um pouco sem governo.
E a gente, apesar dos tempos difíceis, fomos trabalhar com isso, fomos trabalhando,
visitamos todos os grêmios estudantis, buscando saber as suas dificuldades.
[...] E a gente ia intervir em colégios, escolas, a gente era sempre muito respeitado,
porque a gente tinha liderança sobre a classe. Eu me lembro, algumas vezes, fazendo
os enterros dos diretores das escolas, a gente movia isso juntamente com os grêmios
estudantis. Eu fundei o grêmio estudantil lá no Colégio José de Anchieta, quando eu
comecei a conhecer a Ules, morava aqui no Centro Comercial e descia para cá, por-
que vinha para o centro, trazia as carteiras. E aí eu comecei a me apaixonar por isso.
Restaurante estudantil
Geraldo Oliveira
Nós conseguimos que o Arlindo Fuganti, que na época era um político em Londrina,
e que o José Richa, que na época era senador... Era uma liderança muito grande entre
nós. Conseguimos trabalhar com a ideia do restaurante, ganhamos um fogão industrial
do Arlindo, que era uma maravilha, ganhamos também um balcão frigorífico, enfim,
toda a estrutura para que nós tivéssemos um restaurante estudantil verdadeiramente.
Foi o primeiro restaurante estudantil secundarista no interior do estado, depois Marin-
gá teve. Nós, a partir daí, começamos a servir refeições diárias para esses estudantes.
[...] mas os preços da alimentação tinham que ser subsidiados, não podíamos pagar o preço
de um restaurante normal. A gente tinha algum apoio do Richa, que nos ajudou muito. O
nome do restaurante era Professor João Olivir Gabardo (MDB), que nos ajudou muito.
56
Renato: Tínhamos dois deputados federais que, nessa época, eram atuantes, Olavo Fer-
reira (Arena) e o professor Gabardo (MDB), e nós conseguimos com os dois verbas
para o restaurante, para as necessidades do restaurante, para além do fogão que já
tínhamos ganhado... Geladeira e uma série de outras coisas.
Geraldo: E precisa carne, arroz, feijão...
Renato: Até no dia de inauguração do restaurante nós ficamos com uma situação deli-
cada aqui, no salão, os estudantes todos de terninhos e escrito acima do restaurante o
nome “Restaurante Estudantil Prof. João Olivir Gabardo”.
Geraldo: E tinha outra coisa, tinha o doador de vários itens do restaurante, o Fuganti,
que era da Arena, imagina só, então...
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Renato: E junto com ele estava o Olavo Ferreira, que também tinha contribuído, en-
tão ficou um clima para a gente... E agora? Todo mundo ajudou, mas só pode um dos
nomes ser homenageado. E eu lembro que o orador abriu com o discurso de que a Ules
era um entidade estudantil, apolítica, que não interferia no modo de votar ou agir de
cada um dos associados.
Geraldo: [...] Nós abrimos ele [o restaurante] em 1969. E aí ficou aberto até 71, 72,
que fechou. A manutenção era muito complicada. Muito jogo de cintura para conse-
guir as coisas. Nós íamos recolher os donativos, pegávamos o carro e nós íamos buscar
arroz, e a maioria das coisas que nós conseguíamos nas buscas que a gente fazia era
na zona rural.
57
Secundaristas e cultura – Senzules
Geraldo Oliveira
Nesse meio tempo, nós começamos a receber o pessoal da cultura, os secundaristas faziam
cultura, e começamos a receber o Roldão Arruda, o Marcelo Oikawa, o Paulo Nassar, a
Celinha, a Celeste, né?! A Lúcia, enfim, o Nilson Monteiro, esse monte de gente trabalhando
com cultura, e a Ules tomou ares culturais, ela começou a se envolver muito com cultura e
isso nos transformou. Como o Renato falou, a Bulik tinha construído o palco e depois dei-
xou o palco, evidente. E a gente transformou o palco realmente, começamos a participar com
jograis, depois criamos algumas peças, tinha o grupo Senzala, que era um grupo de teatro.
Renato Navarro
O Senzala era formado pelo pessoal que veio da cultura. O Senzala ensaiava seu jogral,
Casamentos e Ules
Renato Navarro
Só uma coisinha, só interessante. Tanto o Geraldo como eu... Nós casamos com a Ules.
O Geraldo casou com a Celeste, e eu com a Maria Cândida Santos, e as duas nós co-
nhecemos aqui na Ules.
Músicas e cantorias
Renato Navarro
E você falou “música” e eu lembrei de uma história com o Chocolate, o Noel, ele ado-
rava o samba da Benção, e às vezes ficava eu e ele ali embaixo da escada, perto da sala
da reunião, ele declamava Samba da Benção. E para cantar a gente cantava junto. E
uma outra foi a música dos Beatles, “Yellow Submarine”. A gente não falava nada de
inglês e cantava a música toda [risos]. Trazíamos uma cervejinha e ficávamos can-
tando aqui, esperando o professor Romeu vir... A história do professor Romeu era a
seguinte: a gente ficava cantando e tocando violão, e passava o tempo, a gente estava
cantando mais alto e incomodando os vizinhos, e o professor Romeu morava no fundo,
na casa ao lado, e lá de cima (a gente ficava em cima no mezanino), da janela, dava
certinho para a casa dele. Então a gente percebia a luz acender e o professor saindo
com o roupão dele, e a gente se preparava para ele pedir para a gente parar. “Poxa, já
está tarde, vocês não vão parar de cantar?”, “Vamos, sim, professor”. Mas, esse violão
está desafinado, você não dá uma “afinadinha” para a gente? “Eu vou afinar, sim”.
E essa afinada dava mais uma hora e meia, duas horas de música com ele tocando.
Geraldo Oliveira
Você perguntou a respeito de uma música, né? Tinha uma música que dizia [canta-
rolando]: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. E nós estamos vivendo um
outro dia, apesar de tudo que está acontecendo, a gente tem que lembrar disso, a gente
fez parte de uma luta e continuamos fazendo parte de uma luta. Ninguém encerrou a
vida, a luta não se encerra. Isso está dentro da alma, de quem gosta de trabalhar isso.
59
Ules e Canto do Marl hoje
Renato Navarro
Então, quando eu vejo a Ules desmobilizada, me dá uma tristeza danada. Eu muito
tempo passava aqui na frente e via aquele mato crescendo... Me dava uma dor, uma
frustração mesmo. A gente cuidou disso aí. E hoje, quando eu passo, eu vejo que Marl
está aqui. Eu, em partes, fiquei triste e, ao mesmo tempo, contente. Triste de ver o
desprezo e a falta de interesse dos estudantes, porque eles podiam estar cuidando disso
já há muito tempo. Mas, por alguma razão, dificuldades, os estudantes abandonaram.
E alegre, embora não fosse mais dos estudantes secundários de Londrina, agora tem
alguém para cuidar desse patrimônio físico, incluindo coisas intelectuais na cabeça da
gente que possa desenvolver, então é um misto de tristeza e alegria.
Geraldo Oliveira
É a primeira vez que eu entro aqui depois dos anos 70. Nunca mais tive vontade de entrar.
Senti que perdemos muito, a gente deixou uma parte da vida, vivemos momentos difíceis
aqui. Mas, tivemos muitos momentos satisfatórios que nos trazem boas recordações sempre.
[...] E me sinto muito bem. Voltando agora, não é o piso raspado, não é a parede mal feita,
não é o teto, é o que vocês trazem de vida aqui para dentro. E que vocês continuem com força
para conseguir realizar suas ações, como a gente realizou as nossas. Estivemos aqui, vivemos
aqui, casamos aqui, continuamos. É muito agradável voltar aqui. Vocês estão de parabéns!
60
TRÊS DIAS DE SHOWS NO HC FESTIVAL
Beta Liberato38
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38
Integrante do movimento punk em
Londrina na década de 1990. Entrevista
concedida três dias após a okupa, em
29 jun. 2016, em visita ao Brasil.
61
que traz coisas boas para a gente e estar aqui só traz coisa boa, sabe? Um tempo bom.
Que pode voltar aqui se vocês conseguirem, né? Tomara, eu apoio. Okupa Ules! [risos]
E aqui estava abandonado [...], então mostrar que tem gente que é a fim de okupar
para a cultura, para a arte, para coisas do bem...
39
Marcelo Domingues é músico e produ-
tor-fundador do Festival Demosul. Foi fun-
dador da ABRAFIN – Associação Brasileira
de Festivais Independentes e da ALONA –
Associação Cultural Acena Londrina. Entre-
vista concedida em julho de 2016.
62
Londrina Underground Scream
com lotação máxima na Ules
O festival chamava “Londrina Underground Scream”, foi o primeiro
grito da cena independente da cidade. Tocou Convulsão, tocou Ani-
mal de Teta, o Cyclone Pill, o Cherry Bomb, o GAF e o Golgota. Essas
seis bandas tocaram aqui, “cara”, e aí a gente esperava que tivesse
uma repercussão nacional, tinha convidado uns produtores de São
Paulo e do Rio de Janeiro, aí a gente ficou meio frustrado, né, “meu”?!
Porque essa galera, “tipo assim”, respondeu às cartas. Na época, não
tinha tanto e-mail, a internet não era tão popular quanto é hoje, mas
não vieram, acabaram não vindo para o evento.
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização
63
ULES NO CINE VILA RICA
Adriana Regina de Jesus40
40
Professora universitária. Estudante secun-
darista que integrou a Ules na década de 90.
Entrevista concedida em maio de 2019.
64
cederam aos sábados. Todo sábado à tarde nós tínhamos reuniões, grupo de estudos.
Nós líamos muita coisa, para você ter uma ideia, eu, com os meus 14 anos, já estava
lendo “O Capital”, de Karl Marx. Nós lemos a Olga Benário, começamos a ler para
entender esse contexto. Era uma reunião com pauta e nós tínhamos um momento
de formação. Nesse grupo de pessoas, nós tínhamos gente de todo tipo de região,
faixas etárias e estilos, nós tínhamos os artistas, tínhamos pessoas que já estavam
na universidade, tínhamos secundaristas e tínhamos pessoas, também, filiadas a al-
guns partidos que participavam dessa discussão. A gente mesmo pertencia à União
da Juventude Socialista (UJS). Só que, naquele momento, era muito tenso, pois nós
trazíamos um resquício da ditadura, aquela sombra da ditadura, daquele regime to-
talitário... Assombrava muito. E a gente queria pensar em uma forma de liberdade,
na luta por direitos. E eu fiz parte da diretoria da Ules como secretária, isso mais ou
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização
65
Anos 2000, retomada do lugar e sentidos do okupar
Quando eu entrei aqui, foi fascinante, até quero agradecer pelo presente, a vida passa e
são tantos problemas que a gente se esquece de momentos... Eu já não lembrava mais, é
lógico que talvez muitas coisas que aconteceram lá eu não consegui trazer na memória,
mas este espaço me traz uma energia, assim: “Oh, mesmo que esteja tudo complicado,
mas continuar a sermos resistentes...”. Mudou muita coisa, o espaço da Ules aqui não
era assim, vocês reorganizaram, “deram a cara” do Movimento de vocês, mas eu sinto
a mesma energia, eu sinto uma energia de coletividade, eu sinto uma energia de com-
panheirismo e uma energia de pensar no humano. Queria agradecer. Eu vou chorar...
66
A Mostra Zumbi dos Palmares na Ules
O meu primeiro contato com a Ules foi em 1975. Em 1975, aqui rolava uma disco-
tecagem e, no réveillon de 1975, eu vim curtir aqui... Foi meu primeiro contato com
a juventude da Ules aqui, isso em 1975. Aí se passaram os anos, eu me afastei do
movimento estudantil e a Mostra Zumbi, que iniciou em 1986, ela sempre foi feita
assim, com pouco dinheiro, sem nenhum dinheiro, com ajuda dos órgãos públicos e
das empresas privadas. Mas, em 1996, quando se deu a 18ª Mostra, tinha entrado
o governo do PT e aí a gente estava sem grana para fazer, porque ela aconteceu na
Secretaria, na 16ª, foi a última vez que rolou na Secretaria da Cultura, porque ela foi
da primeira à 16ª na Secretaria da Cultura, a 17ª foi no Museu de Arte de Londrina
e, eu não sei por que cargas d'água, a 18ª a gente... Eu fui meio que relapso, não corri
atrás, corri atrás só dos artistas, e nós não tínhamos dinheiro para fazer a Mostra. Se
não me falha a memória, em contato com o Stanley e mais alguns “caras” do pessoal
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização
que era presidente aqui da Ules, tinha um rapaz moreno que eu esqueci o nome, que
parece que ele era o presidente na época. "Vamos fazer a Mostra na Ules". E é o único
espaço que a gente tem para fazer, sem dinheiro e no lugar aqui, na Ules. Aí chegamos
aqui, fizemos contato com os artistas. A gente estava sem verba para nada, daí chegou
um amigo meu, italiano, da Itália, e ele bancou caldinho de feijão, bancou vinho.
Então, foi uma Mostra bem hilária. Teve a participação de vários artistas, eu acho, uns
20 artistas participaram da Mostra, eu não me lembro o nome dos artistas. Eu, andan-
do pela cidade num “corre” para comprar as coisas, encontrei um grupo, o Vento Sul,
um grupo de músicos, que tinha músicos de vários países, da Argentina, do Chile, do
Uruguai, e eles estavam de passagem por Londrina e eu convidei eles para tocarem na
Mostra. Eles tinham agenda aberta, estavam passando, e eles toparam. No mesmo dia,
já fui na Folha de Londrina para eles fazerem uma matéria. E, nessa época, esse pessoal
não cobrou cachê nenhum, porque a gente não tinha dinheiro mesmo, a Ules entrou com
800 reais, que o pessoal tinha no caixa, deram 800 reais, que deu para pagar só o segu-
rança, algumas coisinhas que faltavam para o coquetel e um pessoal que trabalhou na
produção, com 800 reais. Eu lembro bem isso daí. É importante falar isso. Mas, quem
bancou mesmo esse coquetel para que a Mostra acontecesse, além do espaço da Ules, foi
o italiano, que chegou, bancou caldinho de feijão, bancou o vinho, bancou os “corres” de
tudo, bancou o cozinheiro para fazer o caldinho, foi na adega, comprou os vinhos, tudo.
E aí veio esse grupo Vento Sul para tocar, não cobrou nada, e teve também a participa-
ção do Batuque na Caixa, do Aldo Moraes. O Aldo Moraes trouxe o Batuque na Caixa
sem cachê também, dentro do projeto dele, ele veio participar, e eu tinha uma amizade
de um recém-chegado em Londrina, Daniel Bussi. O Daniel Bussi, um francês, de Paris,
que adotou Londrina. O Daniel Bussi, ele veio tocar samba, ele fez a tradução do samba
para o francês e hoje o grupo dele chama Zazou Bluz, né? E o Daniel veio tocar. En-
tão, a Mostra, sem nenhuma verba, rolou aqui na Ules, a apresentação do Batuque na
Caixa, com o Zazou Bluz, do Daniel Bussi. E eu até me lembro que a negrada chegou
toda impecável, fraque, de smoking, e as mulheres com aqueles vestidos de baile, de noite.
A Mostra foi interessante, né? O curador da mostra era o Fernando Martinez, fun-
cionário da Secretaria de Cultura. Contratamos o Eduardão para a segurança, porque
nunca houve briga na Mostra, contratamos o Eduardo para cuidar.
67
SHOWS PUNK, SKATE, A UNIÃO E A POLÍCIA
Luis Eduardo Cientista42
Skate e shows
Entrar aqui me traz muita nostalgia. Aqui também foi a sede
do skate park que o Norio organizou. Ele fez a parceria com o
pessoal da Ules. Nós tocamos também várias vezes aqui nesse
período e foi muito legal. Isso em 1995, 1994. Depois, em 1997,
eu me recordo que o Rei, que hoje ele está no Rap, mas antes
ele estava no Rock com a gente, organizou um festival de Rock
aqui. Foi o primeiro show da minha outra banda, a Surface. Foi
o despertar da banda e a gente conseguiu começar aqui. Daqui
saíram várias coisas e a gente está ativo até hoje. E é muita his-
tória que tem este espaço.
O skate park começou em 26 de novembro de 1994. Era a Net
West, foi o Norio que organizou, né? E foi um evento bem legal.
42
Da primeira leva de punks de Londrina,
por volta de 1986. É sociólogo e baterista
das bandas Hard Money e Surface. Entre-
vista concedida em maio de 2019.
68
Tocou várias bandas, misturou Punk Rock, misturou Rap, misturou várias coisas. E foi
uma coisa muito boa de participar. Várias tribos reunidas.
Funcionava durante o dia com a molecada andando. E, às vezes, à noite, eles organiza-
vam alguns eventos. Aí tinha que tirar os obstáculos. Eles tiravam os obstáculos e rolava
show, rolava outras coisas. Apesar de que eu já toquei aqui com algumas rampas e o pes-
soal andando também. Foi legal. Era algo bem interessante para a cidade, porque skate
park era algo necessário. E esse foi um dos primeiros, acredito, criados aqui na região.
A força do underground
A cena underground de Londrina já foi muito forte, né, “meu”? Antes de ter a inter-
net, antes dessa linguagem digital, a gente já fez várias coisas acontecerem. E através
do Coletivo Cancrocítrico, através da banda Hard Money, a gente conseguiu criar um
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização
público fiel, né? E nos lugares que a gente tocava, mesmo com a divulgação precária,
através de cartazes físicos e com boca a boca mesmo, de um contando para o outro,
a gente conseguia lotar os lugares. E a gente já lotou aqui, a Ules, várias vezes, com
pessoas que vinham de Londrina, de outras cidades da região e também de São Paulo,
porque eram eventos que traziam várias pessoas e chamavam muita atenção no un-
derground nacional.
Hardmoney
Quando a gente montou Hardmoney, a gente já tinha experiência nas bandas Desor-
dem e Regresso e Nem Heróis Nem Covardes, Apenas Adeptos. Então, a gente já entrou
na cena com uma certa bagagem. E tinha uma responsabilidade de fazer um projeto
mais audacioso. E fizemos uma estrutura legal para a banda, com muito trabalho. E
isso teve um resultado. O resultado foi que a gente conseguiu divulgar muito o Punk
Rock aqui em Londrina, inclusive a gente começou tocando alguns covers e depois
começou a fazer nossas músicas. E foi uma referência, várias pessoas começaram a
conhecer as músicas do underground graças à banda Hardmoney.
E isso nos levou a tocar em vários lugares e a organizar os próprios shows. A gente
começou a organizar e a convidar outras bandas, nisso foram surgindo bandas, foram
acontecendo vários eventos, e hoje tem muitas pessoas que têm uma vida diferente, são
professores ou são autônomos, fazem coisas diferentes, graças a ter vivido esse tempo,
conhecido novas possibilidades para as suas vidas, em vez de ter aquela vida quadrada,
rotineira, que o sistema espera de você.
Então, este lugar aqui, quando eu venho aqui, para mim... Eu relembro dos tempos da
Ules, né? Relembro dos tempos do Hardmoney. Porque foi marcante assim. O Hardmo-
ney marcou não só a minha vida, como a vida de muita gente. E o fato de a gente ter
um reconhecimento de público, isso daí nos fez tocar em vários lugares, ficar conhe-
cidos, participar de vários festivais, fazer várias gravações e eu lembro essa fase que
a gente estava fazendo nossas fitas demo e realizando várias coisas ao mesmo tempo.
Quando eu venho aqui, eu lembro dessas fitas demo que a gente estava lançando nessa
época, que foi uma fase muito boa para a banda.
69
União
Para organizar os nossos eventos, para fazer as coisas acontecerem, a gente fez várias
parcerias. Quando a gente ficou sabendo que o espaço da Ules estava rolando, nós viemos
aqui conversar com o pessoal e tentar um canal para um evento. O pessoal até ficou meio
receoso por causa da vizinhança, por causa do som. E a gente era meio doido, assim,
não tinha preocupação, não. A gente faz, se chegar polícia, que “se lasque”, né? A gente
queria fazer o evento. E de tanto a gente conversar com esse pessoal que estava na
diretoria da Ules, eles abriram este espaço para a gente. Vamos arriscar, vamos fazer...
O pessoal da Ules disse que não tínhamos estrutura para isso. A gente falou: “Não, a
gente se vira, faz o melhor possível, ajudamos vocês e vamos fazer do jeito que der”.
Isso foi legal, porque foi uma parceria que começou e deu frutos. A gente participou
de manifestação juntos depois, foi uma coisa que gerou uma união de vários esforços.
Os sentidos do okupar
Eu acho muito importante reativar um espaço legal como este. Ele ficou parado vários
anos aqui, juntando poeira, um empurrando para o outro. Parado mesmo. Totalmente
inativo. E é a okupação de um espaço público que vai fazer muita valia para o ce-
nário político, cultural, da cidade de Londrina. E a gente precisa de muitos espaços,
a cultura precisa falar, ela precisa se expressar, precisa de lugares. E cada vez mais
tentam reduzir esse lugar, então você tem que okupar e tomar esses lugares. Eles não
vão ser dados de bom grado, você tem que fazer acontecer. E o pessoal do Marl está de
parabéns por essa iniciativa, ter colocado o lugar para funcionar de novo.
Os aprendizados do Punk
Quando começou o Punk, a gente estava aprendendo. Você vem de uma sociedade reacio-
nária, uma família patriarcal, em uma cidade que é pequena, que é a cidade de Londrina.
Você começa a aprender as coisas. No começo, a gente tinha muitos preconceitos dentro
de nós. Buscava conhecer esses preconceitos e combater eles. Cada vez que a gente par-
ticipava de um evento, líamos fanzines, fazíamos contato com outros grupos que tinham
70
na cidade. Era muito legal. Assim conhecemos pessoas do movimento homossexual, do
movimento cultural de Londrina, do movimento político. E isso foi tornando a gente cada
vez mais curioso de ver as várias coisas que tínhamos em comum. E começamos a fazer
reuniões no DCE e sempre chamávamos os convidados para falar, pessoas de diversas
tendências, de diversas ideias, inclusive divergentes da nossa. Eu me recordo de uma vez
que a gente fez um debate sobre religião entre diversas tendências [...]. No começo, um
tentava convencer o outro... Mas, a gente começou a questionar... “Quais as premissas
da sua religião? O que une? O que traz você?” No final, descobrimos que o que unia a
todos, até quem não acreditava em religião, era o amor, era o respeito ao outro, então, por
mais que você tivesse a sua religião e ele tivesse a dele, tinham vários pontos que uniam.
E é isso. A gente buscava pontos que nos uniam, mais do que aqueles que nos dividiam.
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização
43
MC Rei (Mister Rei) é produ-
tor cultural. Entrevista concedi-
da em setembro de 2019.
71
o policial “dando geral” nele, na parte de baixo. Ele foi virando e virou o copo nas
costas do policial. Você pode imaginar o que aconteceu, né? O pescoço do “cara” subiu
“dessa altura” de porrada que ele levou. Foi inusitado, mas o restante era muita mú-
sica, muita dança, muita gata. A periferia aqui comandava e era muito legal.
72
ROLANDO IDEIAS
Diogo Takeo Hendo44
Editora CRV - versão final do autor - Proibida a impressão e/ou comercialização
A ideia, que eu acho que já vem bem antes de nossa gestão, ob-
viamente, era ligada no que é hoje a casa do professor da APP
Sindicato, você tem lá a instituição, mas tem como se fosse um
"hotel" ali para quem está de passagem. A ideia dessa reforma... A
reforma que nós aprovamos na Câmara, ela tinha três etapas. A
primeira etapa era consertar o telhado, que, aliás, em dias como
hoje de chuva isso aqui virava uma lagoa, virava uma cachoei-
ra. Chovia muito aqui... Foi feita toda uma reforma, isso foi em
2005, final de 2005 ou começo de 2006... Estava condenado [o
teto], mas antes da reforma. Tanto é que foi o primeiro passo da
reforma. "Primeiro temos que consertar o teto, porque senão esse
teto vai cair". Ele realmente estava condenado. Tivemos que trocar
todo o madeiramento, a gente teve que... Ali [apontando para
o teto]... Não, não foi trocado o... Mas foi corrigido... Os pontos
que estavam condenados. E aí, todas as telhas foram trocadas, o
sistema de calha, tudo foi trocado. E aí foi essa a primeira etapa.
Algumas pessoas entravam pelo teto. Eu não sei como eles entra-
vam, mas entravam pelo teto. Era bem mais fácil entrar pela por-
tinha ali, mas eles entravam pelo teto. Então estragou... Algumas
telhas também, aí teve que ser corrigido. Ali na frente, também, ali,
hoje tá fechado, mas antigamente nós fizemos uma cobertura, era
como se fosse um... Uma varanda. A ideia era fazer ali, por exem-
plo... Tem um evento... Ali ficava a parte de caixa ou de bar, o que
44
Presidente da Ules no período
de 2005 a 2006. Entrevista con-
cedida em março de 2019.
73
fosse, e aqui deste lado a pessoa podia receber. Mas, essa era a primeira etapa, que era a
menor de todas, e a segunda etapa seria o fechamento com forro disso tudo, aqui viraria
um auditório. Ali teria um mezanino e teria uma parte aqui que seria colocada, aqui em
cima, no caso, uns dois ou três quartos, dormitórios, com beliche para as pessoas ficarem.
Ali seria como se fosse uma lan house, disponível para o estudante que está aqui no cen-
tro e precisar fazer alguma coisa, ele poderia vir aqui e utilizar os computadores, tudo,
e embaixo seria a parte administrativa, né? Em cima teria uma sala que é da executiva,
da direção, e embaixo seria a parte operacional mesmo. Então teria essa terceira etapa,
que seria essa parte de acabamento e tudo mais da nova sede da Ules. Na frente teria o
estacionamento... Aí parou, congelou, né, nessa troca de prefeito, que aconteceu durante
esse período... Nedson, até 2006. Aí 2008, e trocou, 2005 a gente aprovou a reforma da
Ules como um todo, as três etapas, só que foi liberada primeiro a primeira etapa. Como a
prefeitura quis fazer em três etapas, liberaram a primeira etapa, a segunda etapa nunca
74
em frente, sempre que eu ia para Tamarana, e era o caminho vir
aqui, e eu via o prédio e falava "porra, quero ir ali. Eu quero ir ali
um dia para ver, porque eu sei que rola muita coisa lá, tem show
de Rock que acontece lá até". Teve uma ocasião que veio até o Ira!
trazido pela entidade aqui para fazer um show e sempre foi... A Ules
ficou conhecida com isso. Tanto que um dos primeiros eventos que
eu fui, logo que eu comecei a participar da Ules, foi o aniversário
da Ules, que foi lá no Zerão e teve show de várias bandas lá e aí
foi bem bacana assim, e a galera da cidade conhece muito a Ules
por isso. A Ules ajudou a formar muitas bandas. Durante a minha
gestão, até teve um projeto que levava as bandas para as escolas
para “trocar uma ideia” com os estudantes, explicar como é que foi
a montagem da banda, o que levou a galera a querer fazer uma
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banda, quais eram as dificuldades que eles tinham até chegar a...
Não como profissional, mas começar a fazer shows com públicos
grandes, e isso incentivava também a molecada a querer formar
uma banda, a querer participar mais desses... Desses eventos aí,
né? É... O projeto era “Rolando Ideias”. O projeto, na verdade, ele
começa anterior à minha gestão, e nossa gestão deu continuidade
a esse projeto. Primeiramente, foi um projeto aprovado pela Lei de
Incentivo à Cultura e, na sequência, foi feito basicamente com re-
cursos próprios da entidade, a entidade mesmo que movimentava as
bandas até as escolas. Em uma parceria que a entidade tinha com
algumas bandas de renome na cidade, como Primos da Cida, Banda
GAF, e aí a gente levava as bandas para as escolas e a banda fazia
o show e “trocava uma ideia” com os estudantes também a respeito
de como foi a montagem da banda, né, então foi um projeto que a
gente viu que deu certo com a Lei de Incentivo à Cultura e, depois,
a gente continuou mesmo sem os recursos públicos, né, mas com os
recursos da própria entidade.
Nós tínhamos também um contato grande com o pessoal do Hip
Hop, o pessoal do Rap, até o Rei, MC Rei, tinha um projeto, que a
gente apoiava bastante, que era levar a cultura do Hip Hop para
dentro das escolas, a cultura do MC, a cultura do grafite, da dança,
do break, e ele fazia esses projetos junto com as escolas. Mas, eu me
lembro bastante de um projeto que dava bastante certo, que era no
Heber Soares Vargas, nós fomos lá junto com o grêmio e o pessoal
do projeto Hip Hop – agora não me lembro certo, mas acredito que
também era pela Lei de Incentivo à Cultura, pelo Promic. O Rei era
uma pessoa que coordenava isso e tinha bastante contato com a Ules
nesse sentido, porque estava dentro das escolas, também, levando
esse projeto. Então, teve um projeto bem bacana, que acontecia nas
escolas, que era do movimento Hip Hop. A cena Rock era forte, mas
tinha outras expressões artísticas aí, envolvidas no processo.
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DA OKUPAÇÃO AO CANTO:
os tempos do Marl
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Capítulo três
45
A escolha do 27 de junho foi inten- 46
O movimento se refere às 20 pessoas
cional, pois se trata da data eleita co- mortas em janeiro de 2016, na maior cha-
mo o Dia Nacional de Luta pelo Tea- cina registrada na história do município.
tro de Rua. Nesse dia, no ano de 2014, No mês de abril, a pergunta foi pichada no
na cidade de Presidente Prudente, a Edifício Palácio do Comércio e na Concha
atriz e produtora cultural Luana Carla- Acústica (ver: <https://paranaportal.uol.
na de Almeida Barbosa foi assassina- com.br/sem-categoria/policiais-sao-
da em uma blitz de trânsito. presos-por-chacina-em-londrina>).
77
abertura do portão da antiga sede da Ules foi uma grande roda, formada em
meio ao mato que cobria a entrada do prédio. Ao ver as pessoas arrancando o
mato com as próprias mãos, a roda se ampliando cada vez mais, os cantares e
os olhares de entendimento e de aceitação, uma integrante47 do movimento ex-
pressou que, nesse momento, teve a certeza de que não seria fácil.
A dinâmica do movimento urbano, artístico e cultural entrou em cena para
okupar uma territorialidade e para produzir novos significados ao “prédio da
Ules”, bem como para firmar ponto no roteiro histórico-cultural da cidade de
Londrina. Novas oportunidades de vivências e de intercâmbios da arte se con-
figuraram em um novo palco, em um lugar de encontro e fazendo história pela
participação direta e pela ação dos indivíduos na legitimidade da defesa do uso
47
O capítulo foi construído a partir de depoimentos cole- 48
O PROMIC é criado via Lei
tados junto aos integrantes que participam/participaram Municipal nº 8.984, de 6 de
do Movimento. Na construção do texto, optou-se por não dezembro de 2002.
citar nomes, a fim de colocar em destaque o coletivo. As-
sim, a narrativa de cada um se tornou a de todos. Por isso,
as falas foram incluídas no corpo do texto. Trata-se de um
texto escrito a muitas mãos.
78
A realização de uma ação artística na rua redesenha o cotidiano, cria pausas e
respiros em pessoas que por ali passam. Torna a cidade mais humana.
Aliado ao cenário já propício da cidade para as artes, o fomento para a constitui-
ção de um movimento organizado adveio, também, das vinculações estabelecidas
entre os grupos de artistas londrinenses e outros grupos do país que, princi-
palmente por meio de grupos virtuais, construíram uma rede de comunicação
nacional, que tem como resultado a criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua
(RBTR), no ano de 200749. A troca de experiências e os debates em torno das
realidades encontradas nas diferentes cidades para a efetivação de uma política
cultural ativaram a participação política dos participantes. É esse contexto de
aprendizagens mútuas que possibilitou que os laços entre os artistas de rua da
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49
TURLE, Lick; TRINDADE, Jussara (Orgs.). Tea-
tro de rua no Brasil: a primeira década do terceiro
milênio. Rio de Janeiro: E-papers, 2010, p. 171.
79
Para entender o engajamento do Marl em torno dessa segunda questão é pre-
ciso situar a realidade das políticas públicas do município de Londrina para a
cultura. Uma das frentes da política pública cultural londrinense são as Vilas
Culturais, locais que abrigam boa parte dos projetos e das produções artísticas
da cidade. Em sua maioria, essas Vilas são alocadas em prédios privados e boa
parte do financiamento público, disponibilizado pelo PROMIC, que poderia
ser utilizado para o fomento de mais atividades artísticas, acaba sendo dire-
cionado para pagamento do aluguel de tais espaços. Foi nesse contexto que o
foco das ações do Marl voltou-se para o estudo dos imóveis públicos em de-
suso que pudessem ser ocupados para realização de atividades culturais junto
à comunidade. Uma sede fixa para o Marl representaria a possibilidade de
organização e de ampliação da formação de seus articuladores na preparação
50
Disponível em: <http://www.londrina.pr.gov.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=21104:lei-municipal-
regulamenta-apresentacao-de-artistas-de-rua-em-logra
douros-publicos&catid=98:outros&Itemid=985>.
80
anos, o movimento estudantil da cidade, e essas marcas não foram apagadas da
memória dos londrinenses. Que destino dar ao prédio? Será que o teto iria de-
sabar? Essas questões, vez ou outra, entravam na pauta da administração local
e eram divulgadas nas mídias.
Em 2012, ano da criação do Marl e dois anos antes do ato junto à Secretaria
de Cultura, em que o Movimento explicitou o seu projeto de ter o prédio para
sede, a Folha de Londrina publicou uma reportagem – no dia 01/11/2012 –
em que afirma que o então prefeito Gerson Araújo enviou à Câmara dos Vere-
adores, no dia 15/10/2012, o projeto de lei com a “determinação de retomar
o prédio”51. Manifestava-se em tal reportagem a intenção do poder público de
transformar o local em parte da administração pública, abrigando uma reparti-
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51
Folha de Londrina. Reportagem de Lúcio Flávio Moura.
Prefeitura tenta retomar terreno doado à ULES. 01 nov. 2012.
52
Jornal da Gleba. 18 jul. 2016. Disponível em: <http://www.
jornaldagleba.com.br/noticias/144/Bairro%20vigiado>.
53
Disponível em: <https://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/prefeitura-
renova-uso-do-antigo-predio-da-ules-para-atividades-culturais-430972.html>
54
LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2009.
81
TEMPOS DA OKUPAÇÃO
"O prédio pertencia à prefeitura e está condenado”55
a ser um lugar de intensas e constantes manifestações culturais56.
TEMPO DA FOGUEIRA:
pertencimento
A fogueira aquece, ilumina, agrega, protege. O tempo da fogueira, no processo
de okupação do prédio, foi marcado pela tensão frente ao que poderia aconte-
cer e pela empolgação de se ver efetivando um sonho acalentado durante anos
de haver um canto para as ações culturais do Movimento dos Artistas de Rua
da cidade. Cronologicamente, podemos identificar o tempo da fogueira como
o primeiro mês de trabalho, ainda que essa datação seja insuficiente para com-
preendermos o que se estrutura nesse período, pois as vivências se prolongam
pelos demais tempos e se fazem presente no cotidiano do Canto do Marl: nos
laços entre as pessoas e os coletivos envolvidos; no comprometimento do po-
55
Fala de um jornalista da cidade
ao noticiar a okupação (28 jun. 2016).
56
Complementação por parte dos autores desta obra.
57
Narrativa inspirada na forma como está organizado o
Museu da Maré, no Rio de Janeiro, e que pode ser co-
nhecida na Série Conhecendo Museus. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=TVHrrtM9UD0>.
82
der público em encaminhar as questões e os envolvimentos de pessoas de ou-
tros setores da sociedade que se aliaram ao Marl na empreitada de criarem um
espaço cultural para Londrina. A palavra eleita para representar o tempo do
fogo é “pertencimento”. De diferentes formas, pessoas diversas se agruparam
em torno do prédio, estabelecendo com ele uma relação de pertencimento, a
qual se expressa quando cuidamos do espaço transformando-o em um lugar58.
Um lugar para muitos.
O cortejo entrou pelo terreno que se interpõe entre o muro e o prédio e
estabeleceu uma via de comunicação, convidando as pessoas – tanto do Mo-
vimento como as que observavam de fora – a se indagarem sobre o que esta-
va ocorrendo. Segundo relatos de pessoas que participaram do cortejo, após
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Se essa rua fosse nossa! Outra canção que ecoou e deu cadência aos passos e
ao bailar das enxadas e das vassouras que, comandadas por muitas mãos, foram
as ferramentas usadas para arrancar o mato e remover o lixo. Esse ato ocorreu
logo após a primeira roda e, em meio aos gritos Okupa eu! Okupa tu! Okupa to-
do o mundo!, agregaram-se as ações de agir e de transformar a partir do que se
tem. Essa marca permanece em todos os eventos realizados no Canto do Marl,
pois okupar significar agir com os corpos e as mentes em um projeto coletivo,
significa trabalho, muito trabalho, em condições nem sempre adequadas para o
desenvolvimento dele. Assim foi.
A okupação ocorreu ao meio-dia aproximadamente e várias pessoas circula-
vam pela calçada. Algumas se achegaram ao muro para saberem o que estava
acontecendo. As duas primeiras horas foram as mais tensas e imprevisíveis,
pois, apesar de todo o planejamento realizado nos dias anteriores, tudo era
muito incerto. O que estávamos vivenciando era um misto de empolgação e
de tensão. A resposta do poder público veio nesse período de tempo: a Guar-
da Municipal compareceu ao local para averiguar o ocorrido e, logo depois,
o prefeito Alexandre Kireeff ligou para um integrante do Movimento questio-
58
TUAN, op. cit.
59
Sobre a autoria de Minha Ciranda, há duas versões entre os ciran-
deiros do Recife. Uma credita a autoria à Lia de Itamaracá; outra, ao
mestre cirandeiro Antônio Baracho. A canção foi gravada por Teca
Calazans. Sobre o assunto, consultar artigo de Déborah G. Callender
França, disponível em: <https://www.encontro2010.historiaoral.org.br/
resources/anais/2/1270040269_ARQUIVO_ArtigodeHistorialOral.pdf>.
83
nando sobre o ato. O pessoal do setor de patrimônio da prefeitura dirigiu-
-se para o local para solicitar informações e pressionar os integrantes para
que se retirassem. A imprensa também se fez presente para registrar a ação.
Para atender a essas demandas, efetuou-se a divisão de trabalho e foram compos-
tas comissões. Houve significativa colaboração do pessoal da permacultura, que
iniciou as bases para uma cozinha e um banheiro provisórios. As doações come-
çaram a chegar e pessoas importantes nos cenários cultural, político e educacio-
nal da cidade se dirigiram ao local para saberem o que estava acontecendo. Para
todos, eram explicados a razão do ato e os desdobramentos a serem realizados.
As primeiras reações vindas da população chegaram via transeuntes que, ao
passarem pelo local e se depararem com a movimentação atípica, expressavam
60
O caderno com os nomes é posse do gru-
po de pesquisadores. Algumas pessoas fo-
ram entrevistadas para essa fase do projeto,
a qual compreende este livro. Pretende-se
avançar com outras ações e ouvir todas as
pessoas que deixaram seus dados.
84
O tempo da fogueira foi marcado pela ausência de água e de luz elétrica, mas
teve muita presença de pessoas que foram chegando e colocando a serviço
do coletivo os seus saberes para os tantos fazeres necessários. Uma okupação
funciona de um jeito muito mágico, sem ninguém falar nada, sem ninguém
mandar fazer nada, sem ter um plano, sem ter uma ordem... As pessoas che-
gando, cantando, entrando, fazendo, trabalhando e capinando, criando móveis
com restos de madeira e compondo um campo de energia muito potente, que
impele para o ato de construir algo, de cuidar de algo. Nas primeiras semanas,
a organização coletiva e horizontalizada, que já era vivenciada no Marl, foi
o tipo de gestão a partir da qual as ações foram realizadas. Com o passar do
tempo e com a necessidade de criação da Amarl, que será tratada no Tempo
do Futuro, manteve-se o formato coletivo, contudo se tornou necessário ins-
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85
O MARL (Movimento dos Artistas de Rua de Londrina), cuja organização é
horizontal e suprapartidária, foi criado em fevereiro de 2012 com o objetivo
de reunir artistas de todas as áreas que desenvolvem o seu trabalho em espaços
públicos. O Movimento, que é um braço da RBTR (Rede Brasileira de Teatro de
Rua), criada em março de 2007, visa estimular discussões artísticas e políticas
referentes, principalmente, à cidade de Londrina, possibilitar a troca de informa-
ções e experiências, solidificar parcerias a fim de promover ações político-cul-
turais e garantir o intercâmbio entre os artistas londrinenses e os movimentos
culturais brasileiros.
86
86
o Movimento promoveu uma reunião com a Secretária de Cultura, na qual ela
forneceu um documento ciente da demanda dos espaços públicos inutilizados e
do interesse do Movimento na utilização desses espaços.
sibilitar o estudo da memória dele. A fim de realizar essa tarefa, o Marl estabe-
leceu parcerias com pesquisadores que pudessem auxiliar no levantamento da
história do local e contou com o suporte do Grupo de Pesquisa de História e
Ensino de História da UEL, bem como com o apoio inicial do NDPH (Núcleo
de Pesquisa e Documentação Histórica da UEL). O processo de pesquisa dos
dados históricos começou a ser realizado já na primeira semana da ocupação,
por meio do mapeamento das reportagens em estado de arquivo na Biblioteca
Municipal de Londrina e da coleta dos relatos de pessoas que possuem memórias
em relação ao espaço. Esse estudo, ainda em sua etapa inicial, retrata os dife-
rentes momentos vivenciados pela Ules, fases de intensa mobilização política e
cultural e outras de desarticulação da organização e consequente abandono do
espaço. O Movimento acredita que a decisão de preservar e de como preservar
este espaço está muito além de manter as paredes de concreto em pé, trata-se da
possibilidade de manter vivo o espírito do lugar, representado pelas pessoas que
ali viveram anteriormente.
Nesse sentido, o projeto do Movimento é que este lugar continue sendo um es-
paço de luta e resistência política e artística, gerido pelo Marl em diálogo com
a Ules, para que sua sede permaneça no local e também para que um memorial
da história dessa organização possa ser construído no espaço, a fim de garan-
tir sua importância simbólica na construção da cidade de Londrina. O projeto
contempla também a utilização do espaço pelo Movimento como sua sede, que
funcionará como lugar de trocas artísticas, ensaios e encontros, e também como
local de armazenamento do material de trabalho dos coletivos. A ideia é que o
espaço também tenha a característica de um centro de formação artística, po-
dendo, dessa maneira, estabelecer parcerias com as escolas municipais e estadu-
ais na realização de atividades formativas com as crianças e os adolescentes. O
projeto prevê a reforma do local, que será custeada por um financiamento cole-
tivo e também pela realização de eventos, festas, mostras e festivais. A reforma
e os laudos técnicos preliminares estão sendo preparados e estudados por meio
de parcerias com o projeto OCAS, da UEL, o Sindicato da Construção Civil e
outros profissionais autônomos favoráveis à causa. Esses laudos preveem um or-
çamento aproximado de 30.000,00 (trinta mil reais) e contemplam a primeira
fase da reforma do espaço, na qual serão realizados os seguintes trabalhos: de-
87
detização, reforma das calhas, resolução da infiltração das paredes, reforma dos
banheiros, das janelas e das portas, e reforma da parte elétrica e hidráulica do
espaço. Essa reestruturação inicial viabilizará a entrada do Movimento no prédio
e a continuidade das etapas seguintes. Parte do recurso necessário à reforma já
está sendo angariado através de doações espontâneas da comunidade e também
por meio de ações e eventos que estão sendo promovidos pelo Movimento e por
outros coletivos parceiros. O objetivo é que seja possível concretizar essa refor-
ma inicial até o mês de novembro deste ano, para que o espaço possa sediar o
XIX Encontro da RBTR, que acontecerá em diálogo com A MARÉ – Festival de
Arte em Movimento, ambos articulados pelo Marl.
O Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (Marl) acredita que seu projeto
de utilização do espaço, que nesta primeira semana de ocupação já acontece por
O manifesto foi assinado por 15 coletivos: Cia. Boi Voador; Cia. Curumim Açu;
Cia. Palhaços de Rua; Cia. Teatro de Garagem; Clã Pé Vermelho – Permacultura
e Bio-construção; Coletivo Cão sem Plumas; Comitê do Passe Livre de Londrina;
Comunidade Kaingang; Frente Antifascista; MACUL – Movimento Artesanato é
Cultura; Maracatu Semente de Angola; Movimento Cultura Londrina contra o
Retrocesso; Movimento Punk; Núcleo Ás de Paus e Teatro Kaos. Assim, por meio
de seus coletivos, a cidade manifesta a necessidade de exercer o direito à cidade.
Em volta da fogueira, representantes de todos os coletivos citados se fizeram
presentes para dialogar com o prefeito sobre as intenções do Movimento. Fo-
ram apresentados alguns pareceres técnicos sobre a viabilidade e a importância
da transformação do prédio em um espaço cultural. Sobre as condições estru-
turais do prédio, após uma análise prévia, que seria depois pormenorizada, foi
dito que se trata de uma construção sem muito concreto, mas com muito tijolo
maciço, pois as paredes externas são todas de tijolo maciço e construídas com
um tijolo e meio, totalizando quase 50 centímetros de espessura, e se encontram
muito bem conservadas.
88
As intervenções que precisavam ser feitas quanto à segurança estrutural se-
riam mínimas. A respeito dos encaminhamentos relacionados à parte jurídica
para viabilizar a cessão do prédio, foram explicitados os encaminhamentos e
as possibilidades a serem feitos. Argumentou-se, ainda, sobre a importância e
o significado do ato de doação do terreno na década de 1950 para os estudan-
tes e sobre a luta deles para construírem o prédio e as marcas que esses fatos
imprimiram na história da cidade, o que eleva a necessidade de preservação do
prédio. Informamos ao prefeito e aos demais presentes em torno da roda que,
desde o primeiro dia da ocupação, houve a preocupação em chamar historiado-
res para que analisassem os materiais encontrados no prédio. Contamos tam-
bém que foram fotografadas todas as imagens constantes em seu interior, como
adesivos, pichações, grafites e mensagens, para a organização de um acervo para
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estudos futuros. Ao longo das falas, que recebiam apoio das diversas camadas
da sociedade, o grupo comemorava com música.
O prefeito dialogou com os presentes respondendo às questões, posicionando-se
favoravelmente quanto ao uso do prédio enquanto um espaço cultural, sede do
Movimento dos Artistas de Rua de Londrina: “o que eu falei que poderia ser um
obstáculo é se já tivesse tido gastos públicos no desenvolvimento deste projeto,
referente à Guarda Municipal, mas isso não existe. Considerando que a utilização
deste imóvel pela Secretaria de Segurança, de Defesa Social, exigiria investimen-
tos na reforma do imóvel, investimento em tecnologia, que também não temos a
verba necessária, e considerando que vocês têm já disposição da utilização ime-
diata do imóvel, não me parece inadequado que este imóvel seja cedido à prática
cultural”. No evento, não foi assinado nenhum documento formal, pois, segundo
informações de assessores que acompanhavam o prefeito, ele já estava impedido
de fazê-lo, considerando o prazo de três meses para as eleições municipais.
Naquele momento, em roda e em volta da fogueira acesa pelos nossos ances-
trais, os presentes comemoraram entre aplausos, danças, abraços e olhares es-
perançosos. E cantaram:
89
Nessa noite, o universo nos presenteou com uma estrela cadente, que foi vista
por alguns de nós já no adentrar da madrugada. No entrecruzamento dos olha-
res, sem falas, realizamos o pedido: vida longa ao espaço cultural!
Após a reunião com o prefeito, prosseguimos discutindo junto ao poder pú-
blico as possibilidades de regularizar a okupação. O caminho que viria pela
frente não seria nada fácil, mas, assim como na história da humanidade, o
domínio do fogo tem um significado ímpar, o tempo da fogueira também
imprimiu uma marca singular no povo do Marl e em todos os que vieram (e
virão) fazer parte dessa experiência, que é dar um novo significado ao lugar.
Acendemos o fogo, formamos a roda, cantamos, dançamos, tomamos café,
trabalhamos, negociamos, ouvimos, falamos, fizemos a roda da ciranda girar.
90
Roda de capoeira realizada nas primeiras noites da okupa-
ção. A cozinha improvisada é vista ao lado direito (2016)
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TEMPO DA ÁGUA:
florescer
A água limpa, refresca, inunda, transborda. O tempo da água no processo de
utilização do lugar foi marcado pela feitura de muitas ações que, em meio ao
inacabamento de um prédio sem vidros, sem banheiro e tantos outros “sem”,
completou-se com encontros, mostras culturais, peças de teatro, shows, oficinas,
cursos, feirões... Foi – e continua sendo – o tempo do fazer acontecer o melhor
possível e nas condições que se tem para construir em conjunto as condições
que seriam ideais. De maneira cronológica, podemos marcar como início do
tempo da água o dia em que foi possível fazer a lavagem interna do prédio, e
prossegue como um curso de rio que leva as águas recebidas na nascente em
direção ao mar. No nosso caso, é em direção ao Canto do Marl. No tempo da
água, a semente de esperança lançada no lugar germinou. Por isso, a palavra
eleita para representar esse tempo é: florescer.
O pacto selado com o poder público em torno da fogueira nos trouxe alívio
quanto aos encaminhamentos das negociações no âmbito do diálogo e da ci-
vilidade. Ainda assim, passar as noites nas barracas não era tarefa simples.
Montamos um sistema de revezamento para cuidar do prédio dia e noite e,
também, grupos para estabelecer contato com os vizinhos para explicar a cada
um o que era o Movimento, o que se pretendia em relação ao espaço e a fim
de convidar para um café.
91
Visitamos os estabelecimentos comerciais situados na Avenida Duque de Caxias,
entre a Avenida Juscelino Kubitschek e a Rua Benjamim Constant. De forma ge-
ral, os relatos dos grupos nas plenárias, realizadas diariamente no início da noite,
mostravam a aceitação das pessoas em relação ao ato. A iniciativa de fazer a vi-
sita e convidar para um café foi fundamental para se criar uma rede de relações
que fez diferença quando, no ano de 2018, um pequeno grupo contrário à cessão
do prédio para a Amarl apresentou-se como uma Associação dos Comerciantes
da Duque de Caxias. Não era. E o acontecido fortaleceu ainda mais os laços entre
o Canto do Marl e a vizinhança.
No tempo da água, já se ouviam suspiros mais aliviados entre os integrantes
do Movimento. Tempo de lavar a alma, tempo de lavar o chão, as paredes, de
62
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 120.
63
Fala de um transeunte no dia da okupação.
92
Administrar coletivamente uma okupação e, no nosso caso, transformá-la ao
longo do tempo em um espaço cultural vinculado ao poder público não é tarefa
simples. As plenárias realizadas diariamente no tempo da fogueira passaram
a acontecer uma vez por semana no tempo da água. Planejadas para durarem
duas horas, alongavam-se para quatro, cinco horas. É fato a dificuldade de
planejar as ações em um coletivo tão grande como é a união dos coletivos que
compõem o Marl, pois somos pessoas muito diferentes, que trabalham em ni-
chos muito diversos, e algumas demandas pedem um tempo mais ágil. Por isso,
fez-se necessário que algumas pessoas tomassem a frente em campos mais es-
tratégicos. Aprender a delegar e a agir dentro de um coletivo é um processo de
aprendizagem lento e complexo, mas também é uma forma de unir as pessoas,
de estabelecer trocas e de aprender a lidar com os conflitos. Nós okupamos o
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93
Desde a primeira semana de ocupação, divulgamos para a população a agenda
das ações a serem realizadas. Tínhamos plena consciência de que, para conse-
guirmos regularizar a okupação do prédio, fazia-se imprescindível criar e man-
ter constante uma pauta de ações junto à comunidade. Nos primeiros tempos, a
agenda era semanal e com ações para se pensar os encaminhamentos do processo
de okupação. A composição de tais agendas só foi possível devido à intensa mo-
bilização junto aos diversos coletivos, artistas e outros profissionais que se deslo-
caram para trazerem os seus trabalhos para o Canto do Marl. Depois de alguns
meses, a divulgação passou a ser mensal e assim se mantém até os dias de hoje.
94
Nos meses vindouros, as ações do Marl na “antiga sede da Ules” já compunham
a agenda cultural da cidade e imprimia-se uma cara nova para aquele endereço.
A população identificou essa mudança e começou a frequentar o lugar: “alunos
de escolas públicas, oficinandos, público de fruição, multiplicadores, profissio-
nais das áreas afins, acadêmicos, comerciários do entorno, moradores do entor-
no e público em geral”64. Mesmo em tempos de muita escassez quanto aos re-
cursos financeiros, o primeiro ano da okupação foi marcado pelo florescimento
e pela consolidação de importantes projetos, como A Maré – Festival de Arte
em Movimento, que levou diversos espetáculos à periferia de Londrina e teve o
Marl como sede para a preparação de todo o evento. No dia 14 de dezembro de
2016, o espaço foi inundado por crianças de diferentes lugares da cidade, que
participaram do cortejo apresentando para a população um pouco das vivências
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95
pessoal que passava aqui na frente falava: poxa, se eu tivesse um prédio... Se eu tivesse
um prédio eu ia fazer um teatro; se eu tivesse um prédio eu ia fazer uma sala para
ensaiar os espetáculos; se eu tivesse um prédio eu ia fazer um lugar para a gente se en-
contrar... Aí uma pessoa – ou duas, ou três – falou assim: Ah! Mas tem um prédio! Ah!
Mas aquele prédio não, ele está muito in... – com movimentos, convida as crianças
a complementarem a palavra. Em menos de uma fração de segundos: “Indesejá-
vel!”. A contadora: indesejável, inacabável... Prossegue: Aquele prédio está muito in...
Uma criança: “Íngreme!”. A contadora: Íngreme, ai, meu Deus – assustada com a
palavra – inútil! Aquele prédio é inútil. Falaram isso. Mas ele também pode ficar in...
Uma criança: “Infeitado”. Outra, já deixando o “in” de lado, talvez por ter compre-
endido a essência da história narrada: “Forte”. E mais uma: “Bonito”. A contadora:
Forte... Ele também pode ficar “imbonito”, que é quando a beleza nasce do corpo... E esse
96
A partir de sua terceira edição, realizada em junho de 2017, à Mostra Marl
somou-se o evento Feirão da Resistência e da Reforma Agrária uma ação re-
alizada em parceria com os agricultores dos assentamentos do Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra – MST. Assim, no sábado, o público passou a
se dividir entre as apresentações artísticas e a compra de produtos agrícolas
cultivados sem veneno. Com o passar dos meses, foi se consolidando o se-
gundo sábado do mês como a data de realização do Feirão no Marl, que se
transformou em um evento na cidade de Londrina. O Feirão é, por si só, um
espetáculo de diversidade. Embaixo do mesmo texto pessoas que dificilmente
se encontrariam em outro espaço da cidade trocam animadas conversas: o
casal de idosos moradores de um prédio próximo dialoga com a agricultora
de um dos acampamentos que participa da feira, e ela ensina como fazer a
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65
Disponível em: <http://www1.londrina.
pr.gov.br/index.php?option=com_content
&view=article&id=21172&Itemid=2036>.
97
cesso de articulação entre a cultura camponesa e a cultura integrada e popular
se constitui em um campo de pesquisa e estudo, a considerar as representações
que se materializam na Feira Livre entre os saberes e os sabores da cultura cam-
ponesa, bem como os saberes populares diversos da cultura urbana de Londrina
e região66. Nesse sentido, foi muito importante a aprovação da proposta no Edi-
tal do Promic, porque se tornou possível democratizar o circuito cultural inde-
pendente da cidade, promovendo apresentações culturais e oficinas formativas
que foram selecionadas por meio de chamamento público, o que ampliou a rede
de colaboradores do Canto para além dos parceiros já integrados na organiza-
ção do evento desde seu início e, além disso, ampliou-se o público-participante.
E assim foi. No tempo da água, o prédio se fez bonito pela ação de todos e todas,
66
Disponível em: <http://londrinacultura.
londrina.pr.gov.br/projeto/131/#/tab=sobre>.
67
Poema Morte e Vida Severina,
de João Cabral de Melo Neto.
68
Relatório de atividades anuais
do Amarl nos anos 2017 e 2018.
98
Relatório de atividades anuais do Amarl nos anos 2017 e
2018, entregue à Secretaria Municipal de Cultura
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Acervo pessoal
Mas, como conseguir recursos para adaptar o prédio para todas as ações? No
tempo da água, promovemos a campanha via site Benfeitoria69 para investir em
melhorias e reparos nas instalações elétricas e hidráulicas, nas estruturas do te-
lhado, das janelas e das portas, entre outros ajustes técnicos que viabilizassem a
realização das atividades programadas. A campanha foi lançada no mês de agos-
to de 2016 no contexto das comemorações de um mês da okupação e contou
com a colaboração de diversos coletivos culturais envolvidos no projeto da ade-
quação do prédio, para que ele se transformasse em espaço cultural da cidade.
No dia 15 de setembro de 2016, finalizou-se a campanha com satisfatória ade-
são da população, que demostrou acreditar no potencial transformador que já
se fazia visível em um mês de trabalhos realizados na okupação do prédio, e que
contribuiu com R$ 24.759,00, recurso totalmente investido em infraestrutura.
O gerenciamento criterioso da verba foi aliado às parcerias estabelecidas com
diversos profissionais da cidade, os quais, para além de realizarem seu trabalho
no Canto, também auxiliaram no sentido de tomar as decisões possíveis, con-
benfeitoria.com/okupamarl>.
99
siderando que estávamos a tratar de um prédio que há mais de dez anos
não recebia nenhum investimento quanto a sua manutenção. Optamos por
investir na revitalização estrutural e na adaptação da segurança do espaço,
na dedetização, na readequação das estruturas hidráulica e elétrica, na troca
de portas e na estruturação dos banheiros.
No mês de dezembro do mesmo ano, o prédio já estava em condições de
abrigar os coletivos culturais da cidade para receberem os encontros da
Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e da Rede Paranaense de Teatro
de Rua (RPTR). Assim foi. Tais encontros deixaram marcas na história do
Canto do Marl, principalmente quanto a sua potência para ser um espaço
de encontros, de incentivo à arte e de possibilidade, firme e forte, de trans-
100
TEMPO DO FUTURO:
esperança
Quando o futuro chega? Uma resposta plausível é que ele chega sempre que
a ação no presente, a experiência, alarga-se em expectativa. Assim, “experi-
ência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com
o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro”70. O futuro é o
tempo no qual tudo pode ser, por isso a palavra eleita para representar esse
tempo é “esperança”, sentimento do qual se alimentam todos os que viven-
ciam as ações realizadas no Canto do Marl. Não há um marco cronológico
para definirmos o início deste tempo: o futuro esteve presente no ato da
okupação, no tempo da fogueira, no tempo da água e está presente sempre
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70
KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado – contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006. p. 308.
71
BAUMAN, op. cit.
101
Os acontecimentos que se sucederam desde o dia da okupação até a assinatura
da Lei nº 12.802/2018, que concede a cessão de uso do imóvel localizado na
Avenida Duque de Caxias, 3241 para a Amarl, podem ser compreendidos co-
mo um grande processo de resolução de conflitos, nos quais atuaram diferentes
sujeitos. Durante esses três anos de negociações, é fato que também se intentou
levar o problema para o campo do confronto, com tentativas de aniquilamentos,
mas, tais adversidades, que ainda se fazem presentes nas relações estabelecidas
entre o Marl e os vários setores da sociedade, foram, uma a uma, colocadas na
mesa, negociadas e resolvidas.
Uma cidade disponibiliza várias possibilidades aos seus cidadãos e um lugar
promove a ocasião para a realização das ações. Um lugar tem força72 e é com
essa força que imaginamos o futuro que, para nós, concretiza-se na vida longa
72
SANTOS, Milton. Da totalidade
ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005.
102
O espaço do mezanino contará com alojamento para hospedar artistas em pas-
sagem pela cidade, sala de reunião e um espaço aberto do qual será possível
visualizar o palco e que também pode ser usado para exposições.
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Para dar andamento à reforma do prédio, era necessário regular a situação dele
e, no esforço para tal intento, os integrantes do Movimento intensificaram as
visitas aos vereadores da cidade em busca de apoio e orientações quanto aos
procedimentos legais a serem colocados em prática. Logo após as primeiras reu-
niões com o pessoal da prefeitura, soube-se da necessidade de criar uma pessoa
jurídica e de utilidade pública para ser a responsável pelo espaço, pois não é
permitida por Lei a cedência para pessoa física. Foi esse o contexto de criação
da Associação do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina, que passou a
representar o Marl juridicamente.
103
A saber, não houve consenso com a decisão e a ação de criar a Amarl. Para
muitos, o atendimento das questões administrativas e jurídicas afetava as carac-
terísticas anarquistas do Marl, sem hierarquia, sem um representante formal e
com revezamentos para o diálogo com o poder público. Após intensos debates
realizados diariamente nas plenárias, optou-se pela criação da Amarl e, assim, o
Movimento ampliou-se em duas frentes: o Marl, que prossegue sendo um cole-
tivo sem uma estrutura organizacional institucionalizada e por meio do qual os
artistas de rua continuam a promover seus trabalhos em todos os cantos da ci-
dade; e a Amarl, associação que pleitearia junto ao poder público a permissão do
uso do prédio. Em meio a esse embate foi preciso criar um nome para o espaço
e se optou, também em plenária, por “Canto do Marl”, como já contamos no
tempo da água. A assembleia de fundação da Amarl ocorreu em 18 de outubro
de 2016 e ela foi declarada de utilidade pública pela Câmara Municipal de Lon-
104
projeto da Amarl, tendo em mãos um dossiê com as ações em desenvolvimento
no Canto, que o caracterizavam como de utilidade pública e que foram iniciadas
logo após a okupação ocorrida em junho de 2016.
Com as eleições de 2016, Marcelo Belinati assumiu a Prefeitura de Londrina e
prosseguiu com os encaminhamentos do prefeito anterior quanto à questão da
cessão do prédio para a efetivação de um centro cultural. Houve, também, signi-
ficativa mudança na composição da casa legislativa, o que fez com que os parti-
cipantes do Movimento intensificassem as visitas aos gabinetes.
O perfil mais conservador da Câmara, após as eleições de 2016, aliado a um
contexto nacional de acirramento político partidário – que disseminou no país
um estado de confronto constante entre grupos que apresentavam leituras so-
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73
Conjunto residencial em construção pela Caixa Econômica Federal, localizado na re-
gião norte da cidade. A construção foi paralisada por problemas junto aos empreiteiros
e, em outubro de 2016, foi ocupado por famílias sem condições de pagar aluguéis e que
aguardam casas via sistema da Companhia de Habitação de Londrina. Disponível em:
<https://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/residencial-flores-do-campo-na-zona-
-norte-de-londrina-ja-tem-cara-de-cidade-427708.html>.
105
Trata-se de chamar para o grupo e para a população a responsabilidade sobre
certas questões, as quais são dirigidas a lugares para os quais o Estado não está
conferindo respostas profícuas quanto ao papel público deles74. A maioria dos
movimentos de ocupação no âmbito da cultura se assenta na preocupação em
relação ao bom uso do bem público, impedindo que a memória presente no es-
paço se apague e transformando-o em lugar para sediar outras interações com
o patrimônio e novos questionamentos sobre a cidade75.
Esses novos questionamentos que os movimentos de ocupações provocam são,
por vezes, indesejados por parte de alguns que optam por tratar tais ações
pautando-se exclusivamente no aspecto errante do ato, tido à luz da legislação
vigente. É muito mais fácil indicar o fato como problema que voltar o olhar
74
BERNARDO, Paula. Ocupa colaborativa: a luta popular pela cultura e pela preserva-
ção do patrimônio histórico. Revista Cidade, Patrimônio e Memória, 1. ed., dez. 2016.
75
SANTOS, Tiago Moreira. As ocupações culturais como estratégias de luta: a luta
popular pela cultura na Ocupa Colaborativa na cidade de Jundiaí. Trabalho de Con-
clusão de Curso. São Paulo: USP, 2017. p. 18.
106
É inegável que fomos à Câmara no dia 13 de novembro contando com a
aprovação do projeto em segunda discussão e que a retirada do projeto nos
afetou. Era preciso compreender o que ocorreu para podermos elaborar
uma estratégia de ação. Em linhas gerais, após conversa com um e outro nos
bastidores da Câmara, descobrimos que o abaixo-assinado foi elaborado às
pressas, ao final de uma reunião realizada no Sindicato do Comércio Vare-
jista de Londrina. Entre os presentes, alguns adentraram no assunto posi-
cionando-se contrários à cessão do prédio e, por persuasão, formulou-se a
ideia de um abaixo-assinado, o qual foi compreendido como formulado por
uma associação de pessoas envolvidas com a Avenida Duque de Caxias, já
que a instituição está inexistente. Não se descarta que houve uma incitação a
respeito e que a chegada do documento à Câmara no dia da segunda votação
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107
Como resultado do encontro, a associação se comprometeu a reavaliar seu
posicionamento contrário ao projeto de Lei de permissão de uso do Canto
do Marl. No encontro, um dos representantes dos comerciantes afirmou:
“É bem melhor com vocês aqui do que com isso abandonado como estava”.
Como se nota, os conflitos estão presentes em toda sociedade democrática
e podem ser resolvidos com diálogo. Temos imensa gratidão por termos vi-
venciado esse episódio, o qual nos levou de volta às visitas junto aos comer-
ciantes da Duque para coletar suas assinaturas, expressando-se favoráveis
à cessão do prédio à Amarl. Assinaram o abaixo-assinado 1.506 pessoas76.
No dia 04 de dezembro de 2018, o projeto foi pautado em segunda dis-
cussão e aprovado por com 15 votos a favor, 2 ausências e 2 não votantes.
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A documentação referente à tramitação do processo de cessão do
prédio para a Amarl, inclusive as cópias dos relatórios, pode ser acessada em
<https://www.cml.pr.gov.br/cml/site/leidetalhe.xhtml?leicodigo=LE128022018>.
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Informações disponíveis no site: <http://www1.londrina.pr.gov.br/index.php?option=
com_content&view=article&id=31249%3Aprefeitura-cede-espaco-para-o-movimento-
de-artistas-de-rua-de-londrina&catid=108%3Adestaques&Itemid=1078>.
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senvolvido aqui”. O secretário de cultura em exercício também falou sobre a
importância do ato da assinatura da cessão: “Um município que tem a cultu-
ra como marca precisa ocupar, cada vez mais, espaços como este. O trabalho
do Movimento dos Artistas de Rua, de reivindicar o uso de um espaço que
historicamente pertenceu ao Movimento dos Estudantes Secundaristas de
Londrina, também tem um peso histórico muito importante”.
A cessão de uso do prédio concedida à Amarl converteu-se na Lei nº 12.802,
de 05/12/2018. O tempo do futuro se abrirá para muitos outros tempos.
Novos tempos. O Marl e a Amarl comprovaram durante todo o processo a
eficácia, não sem dificuldades, de uma gestão coletiva que conta com par-
ticipação de dezenas de pessoas envolvidas diretamente na administração,
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Disponível em: <http://siglon.londrina.pr.gov.br>.
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Significância é um item de descrição do imóvel no documento Inventário
Arquitetônico do Plano Diretor de Patrimônio Histórico-Cultural. Secretaria
da Cultura de Londrina. Lei Municipal de Incentivo à Cultura.
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Dia da assinatura da Lei de Per-
missão de uso do Canto do Marl
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ficação do prédio, e dos demais, responsáveis pela sua permanência, e nos
sentimos honrados em prossegui-la.
A marca que representa o Canto do Marl é uma mão que sai do asfalto e
está rodeada de lírios. O espaço cultural Canto do Marl é isso: uma flor que
brotou e resistiu ao tempo. Por isso,
Evoé!
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Trecho do poema A Flor e a Náusea,
de Carlos Drummond de Andrade
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SOBRE OS AUTORES
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Fagner Bruno de Souza
Jornalista formado pela Universidade Estadual de Londrina (2012), especialis-
ta em Criação e Produção em Rádio e TV pela Faculdade Pitágoras Londrina
(2014). É estudante de mestrado em Cinema e Audiovisual pela Universidade
Federal Fluminense. Atua como cineclubista desde 2013.
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 11,6 x 19 cm
Tipografia: Red Hat Display 8 | 9 | 11 | 12
Amiri 9 | 9,5 | 10 | 10,5 | 12
Times New Roman 9 | 10 | 14
Papel: Pólen 80 g/m² (miolo)
Royal Supremo 250 g/m² (capa)