Você está na página 1de 89

R ICHARD D AWKINS

O RIO QUE SAÍA DO É DEN


U MA VISÃO DARWINISTA DA VIDA

© 1995
Orion Publishing Group Ltd

TÍTULO ORIGINAL:
River out of Eden
A d a rw in ia n v ie w of life

TRADUTOR:
Alexandre Tor

R OCCO LTDA
© 1996
ÍNDICE

P REFÁCIO 4

1 O RIO DIGITAL 6
2 TODA A ÁFRICA E SUA PROGENIES 20
3 F AÇA O BEM FURTIVAMENTE 34
4 A FUNÇÃO DE UTILIDADE DE D EUS 52
5 A BOMBA DE REPLICAÇÃO 71

NOTAS 85
B IBLIOGRAFIA 86

2
À memória de
HENRY COLYEAR DAWKIN8 (1921-1992)

Fellow do 81. John’s College, Oxford:


um mestre na arte de tomar as coisas claras.

3
P REFÁCIO

Na tu re, it s ee m s , is th e p op u la r n a m e
For m illia rd s a n d m illia rd s a n d m illia rd s
Of particles pla y in g th e ir in fin ite ga m e
Of b illia rd s a n d b illia rd s a n d b illia rd s .
Piet Hein

A natureza, assim parece, é o nome popular


Para milhares e milhares e milhares
De partículas jogando seu jogo infinito
De “bilhares” e “bilhares” e “bilhares”

Piet Hein capta o mundo classicamente prístino da física. Mas quando os ricochetes das bolas
d e b ilh a r a t ôm ica s p or a ca s o for m a m u m ob jet o qu e tem u m a cer t a , e a p a r en tem en te in ocen te,
p r op r ied a d e, a lgo es p et a cu la r a con t ece n o u n iver s o. E s t a p r op r ied a d e é a ca p a cid a d e d e a uto-
reproduzir-s e; is t o é, o ob jet o é ca p a z d e u t iliza r a m a t ér ia n o m eio a m b ien t e p a r a fa zer cóp ia s
exa t a s d e s i m es m o, in clu s ive r ép lica s d a s fa lh a s m en or es qu e p od em s u r gir oca s ion a lm en t e n o a to
d e cop ia r . O qu e s e s egu ir á a p a r t ir d es t a ocor r ên cia s in gu la r , em qu a lqu er lu ga r d o u n iver s o, é a
s eleçã o d a r win ia n a e, p or ta n t o a ext r a va gâ n cia b a r r oca qu e, n es te p la n et a , ch a m a m os vid a . Nu n ca
t a n t os fa t os for a m exp lica d os com t ã o p ou ca s h ip ót es es . A teor ia d a r win ia n a n ã o d etém a p en a s u m
p od er exces s ivo d e exp lica çã o. S u a econ om ia a o fa zê-lo tem u m a elegâ n cia es b elt a , u m a b eleza
p oét ica qu e u lt r a p a s s a m es m o os m it os m a is ob s es s ivos s ob r e a s or igen s d o m u n d o. Um d os m eu s
p r op ós it os a o es cr ever es te livr o é p r es t a r o r econ h ecim en t o d evid o à qu a lid a d e in s p ir a d or a d a
n os s a com p r een s ã o m od er n a d a vid a d a r win ia n a . Há m a is p oes ia n a E va m it ocon d r ia l d o qu e n a
Eva mitológica original.
As ca r a ct er ís tica s d a vid a , qu e n a s p a la vr a s d e Da vid Hu m e m a is “p r ovoca r a m a a d m ir a çã o
d e t od os os h om en s qu e a con t em p la r a m ”, s ã o os d et a lh es com p lexos p or m eio d os qu a is s eu s
mecanismos – m eca n is m os qu e Ch a r les Da r win ch a m ou “ór gã os d e ext r em a p er feiçã o e
complexidade” – s a t is fa zem u m p r op ós it o a p a r en te. A ou t r a ca r a ct er ís t ica d a vid a n a Ter r a qu e n os
im p r es s ion a é s u a d iver s id a d e lu xu r ia n t e: m ed id a p ela s es t im a tiva s d o n ú m er o d e es p écies , h á
m a is ou m en os u n s 1 0 m ilh ões d e m a n eir a s d ifer en tes d e fa zer u m s er vivo. Um ou t r o p r op ós it o
m eu é s in ôn im o d e “t r a n s m it ir t ext os cod ifica d os em ADN p a r a o fu t u r o”. Meu “r io” é u m r io d e
ADN, flu in d o e for m a n d o a flu en tes a t r a vés d o tem p o geológico, e a m et á for a d a s m a r gen s ín gr em es
qu e con fin a m os jogos gen ét icos d e ca d a es p écie r evela -s e u m es qu em a exp lica t ivo ú t il e
surpreendentemente poderoso.
De u m a for m a ou d e ou t r a , t od os os m eu s livr os t êm s id o d ed ica d os a exp or e a exp lor a r o
p od er qu a s e ilim it a d o d o p r in cíp io d a r win ia n o – u m p od er lib er a d o on d e e s em p r e qu e h a ja t em p o
s u ficien te p a r a qu e a s con s eqü ên cia s d a a u t o-r ep r od u çã o p r im or d ia l s e r evelem . O rio qu e s a ía d o
Éden p r os s egu e com es t a m is s ã o e leva a u m clím a x ext r a ter r es t r e a h is t ór ia d a s r ep er cu s s ões qu e

4
p od em s egu ir -s e qu a n d o o fen ôm en o d os r ep r od u t or es é in t r od u zid o n o a t é a qu i h u m ild e jogo d e
bilhar atômico.
Du r a n t e a feit u r a d es te livr o d es fr u tei o a p oio, en cor a ja m en t o, con s elh o e cr ít ica con s t r u t iva ,
em com b in a ções va r ia d a s , d e Mich a el Bir k et t , J oh n Br ock m a n , S t eve Da vies , Da n iel Den n et t , J oh n
Kr eb s , S a r a Lip p in cot t , J er r y Lyon s , e es p ecia lm en te m in h a es p os a , La lla Wa r d , qu e t a m b ém fez a s
ilu s t r a ções . Aqu i e a li, a lgu n s p a r á gr a fos for a m r ees cr it os a p a r t ir d e a r t igos p u b lica d os em vá r ia s
r evis t a s . As p a s s a gen s d o ca p ít u lo 1 s ob r e os cód igos d igit a l e a n a lógico b a s eia m -s e em m eu a r t igo
p u b lica d o n o Th e S p ecta tor d e 1 1 d e ju n h o d e 1 9 9 4 . O r ela t o d o ca p ít u lo 3 d o t r a b a lh o d e Nils s on e
Susanne Pelger s ob r e a evolu çã o d o olh o foi p a r cia lm en te ext r a íd o d o m eu a r t igo “News a n d Views ”
publicado na revista Nature de 21 de abril de 1994. Agradeço aos editores de ambas as revistas, que
p er m it ir a m a r eu t iliza çã o d es tes a r t igos . Fin a lm en t e, s ou gr a t o a J oh n Br ock m a n e An t h on y
Cheetham pelo convite inicial para fazer parte da série Mestres da Ciência.

Oxford, 1994

5
1
O RIO DIGITAL

Tod os os p ovos t êm len d a s ép ica s s ob r e s eu s a n tep a s s a d os t r ib a is , e es t a s len d a s m u it a s


vezes t om a m a for m a d e cu lt os r eligios os . Os p ovos r ever en cia m e a té ven er a m s eu s a n tep a s s a d os
com t od a a for ça qu e p od em , p ois s ã o s eu s a n tep a s s a d os r ea is , e n ã o d eu s es s ob r en a t u r a is , qu e
detêm a chave da compreensão da vida. De todos os organismos que nascem, a maioria morre antes
de atingir a maturidade. Da minoria que sobrevive e se reproduz, uma minoria ainda menor terá um
d es cen d en te vivo d a qu i a m il a n os . E s t a d im in u t a m in or ia d a m in or ia , es t a elite d e p r ogen itor es , é
t u d o o qu e a s ger a ções fu t u r a s s er ã o ca p a zes d e ch a m a r d e a n ces t r a is . Os a n ces t r a is s ã o r a r os ,
mas os descendentes são comuns.
Tod os os or ga n is m os qu e viver a m – tod o a n im a l e p la n t a , t od a s a s b a ct ér ia s e t od os os
fu n gos , t od a cois a r a s t eja n t e, e t od os os leit or es d es t e livr o – p od em olh a r p a r a s eu s a n ces t r a is e
afirmar or gu lh os a m en te: n en h u m d e n os s os a n ces t r a is m or r eu n a in fâ n cia . Tod os eles a t in gir a m a
id a d e a d u lt a , e t od os s em exceçã o for a m ca p a zes d e en con t r a r p elo m en os u m p a r ceir o
h eter os s exu a l e cop u la r com s u ces s o 1 . Nen h u m d e n os s os a n t ep a s s a d os foi m or t o p or u m in im igo,
ou p or u m vír u s , ou p or u m p a s s o m a l d a d o n a b or d a d e u m p en h a s co, a n t es d e t r a zer p elo m en os
u m r eb en t o a o m u n d o. Milh a r es d e con t em p or â n eos d e n os s os a n ces t r a is fa lh a r a m em t od os es tes
a s p ect os , m a s n em u m ú n ico e s olit á r io a n t ep a s s a d o n os s o fa lh ou em qu a lqu er u m d eles . E s t a s
a fir m a ções s ã o b a s t a n t e ób via s , a in d a a s s im m u it a cois a p od e s er d ed u zid a a p a r t ir d ela s ; m u it a s
cois a s cu r ios a s e in es p er a d a s , m u it a s cois a s qu e exp lica m e m u it a s qu e es p a n t a m , t od a s es t a s
questões serão assunto deste livro.
Com o os or ga n is m os h er d a m t od os os s eu s gen es d e s eu s a n ces t r a is , e n ã o d os
con t em p or â n eos m a ls u ced id os d e s eu s a n ces t r a is , tod os os or ga n is m os t en d em a p os s u ir gen es
b em s u ced id os . E les têm a qu ilo qu e é n eces s á r io p a r a t or n a r -s e a n ces t r a is – e is t o s ignifica
s ob r eviver e r ep r od u zir -s e. E s t a é a r a zã o p ela qu a l os or ga n is m os t en d em a h er d a r gen es com u m a
p r op en s ã o p a r a con s t r u ir u m a m á qu in a b em p r ojeta d a – u m cor p o qu e t r a b a lh a a t iva m en te com o
s e es t ives s e s e es for ça n d o p a r a t or n a r -s e u m a n t ep a s s a d o. E s t a é a r a zã o p or qu e a s a ves s ã o t ã o
b oa s n o vôo, os p eixes t ã o b on s n o n a d o, os m a ca cos t ã o b on s em t r ep a r em á r vor es , os vír u s t ã o
b on s em d is s em in a r -s e. E s t a é a r a zã o p ela qu a l a m a m os a vid a , a m a m os o s exo e a m a m os a s
cr ia n ça s . É p or qu e t od os n ós , s em u m a ú n ica exceçã o, h er d a m os n os s os gen es d e u m a lin h a gem
con t ín u a d e a n t ep a s s a d os b em s u ced id os . O m u n d o t r a n s for m a -s e em u m lu ga r ch eio d e
or ga n is m os qu e têm a qu ilo qu e é n eces s á r io p a r a t or n a r -s e a n ces t r a is . Is to, em u m a fr a s e, é
d a r win is m o. Da r win , é cla r o, d is s e m u it o m a is d o qu e is t o, e h oje em d ia h á m u it o m a is qu e
podemos dizer, o que é a razão pela qual este livro não acaba aqui.
Há u m m od o n a t u r a l, e p r ofu n d a m en te p er n icios o, d e in ter p r et a r m a io p a r á gr a fo a n t er ior . É
t en t a d or p en s a r qu e, con s id er a n d o qu e os a n ces t r a is r ea liza r a m cois a s b em -s u ced id a s , os gen es
qu e eles t r a n s m it ir a m p a r a os s eu s filh os er a m , con s eqü en tem en t e, a p er feiçoa d os em r ela çã o a os
gen es qu e r eceb er a m d e s eu s p a is . Algu m a p a r t e d e s eu s u ces s o ficou em s eu s gen es , e es t a é a
razão p or qu e s eu s d es cen d en tes s ã o tã o b on s em voa r , n a d a r e cor t eja r . E r r a d o, com p let a m en te

6
er r a d o! Os gen es n ã o m elh or a m com o u s o, eles s ã o a p en a s t r a n s m it id os , im u t á veis , excet o p or
er r os a lea t ór ios m u it o r a r os . Nã o é o s u ces s o qu e fa z b on s gen es . S ã o b on s gen es qu e fa zem o
s u ces s o, e n a d a qu e u m in d ivíd u o fa ça d u r a n t e o s eu tem p o d e vid a tem qu a lqu er t ip o d e efeit o
s ob r e eles . Aqu eles in d ivíd u os qu e n a s cem com b on s gen es s ã o os qu e têm m a ior p r ob a b ilid a d e d e
cr es cer e t or n a r -s e a n ces tr a is b em -s u ced id os ; p or t a n t o os gen es b on s t êm m a is p r ob a b ilid a d e d e
s er t r a n s m it id os p a r a o fu t u r o d o qu e os gen es r u in s . Ca d a ger a çã o é u m filtr o, u m a p en eir a : os
gen es b on s t en d em a p a s s a r p ela p en eir a p a r a a p r óxim a ger a çã o; os gen es r u in s t en d em a t er o
s eu fim em cor p os qu e m or r em joven s ou qu e n ã o s e r ep r od u zem . Os gen es r u in s p od em p a s s a r
p ela p en eir a p or u m a ou d u a s ger a ções , t a lvez p or qu e ten h a m a b oa s or t e d e com p a r t ilh a r u m
cor p o com os gen es b on s . Ma s é n eces s á r io m a is d o qu e s or te p a r a p a s s a r com s u ces s o a t r a vés d e
um milhar de peneiras sucessivas, uma peneira depois da outra. Depois de mil gerações sucessivas,
os genes que conseguiram sobreviver são provavelmente os genes bons.
Afir m ei qu e os gen es qu e s ob r evivem a o lon go d a s ger a ções s er ã o a qu eles qu e con s egu ir em
p r od u zir a n ces t r a is . Is t o é ver d a d e, m a s h á u m a exceçã o a p a r en t e qu e d evo leva r em con ta a n t es
qu e s u a con s id er a çã o p r ovoqu e con fu s ã o. Algu n s in d ivíd u os s ã o ir r em ed ia velm en t e es tér eis , a in d a
assim eles são aparentemente projetados para auxiliar na passagem de seus genes para as gerações
fu t u r a s . For m iga s , a b elh a s , ves p a s e t ér m ites op er á r ia s s ã o es t ér eis . E la s t r a b a lh a m n ã o p a r a
tornar-s e a n ces t r a is , m a s p a r a qu e s eu s p a r en tes fér t eis , u s u a lm en te ir m ã s e ir m ã os , o con s iga m .
Há d ois p on t os qu e d evem s er en ten d id os a qu i. Pr im eir o, em qu a lqu er t ip o d e a n im a l, ir m ã s e
ir m ã os t êm u m a gr a n d e p r ob a b ilid a d e d e com p a r t ilh a r cóp ia s d os m es m os gen es . Segu n d o, é o
m eio a m b ien te, e n ã o os gen es , qu e d eter m in a s e, d iga m os , u m a t ér m it e in d ivid u a l s e t or n a r á u m a
reprodutora ou u m a op er á r ia es tér il. Tod a s a s t ér m it es têm gen es ca p a zes d e t r a n s for m a -la s em
op er á r ia s es tér eis s ob cer t a s con d ições a m b ien t a is ou r ep r od u t or a s s ob ou t r a s con d ições . As
r ep r od u t or a s t r a n s m it em cóp ia s d os m es m os gen es qu e fa zem com qu e a s op er á r ia s es tér eis a s
a ju d em a fa zê-lo. As op er á r ia s es tér eis t r a b a lh a m s ob a in flu ên cia d os gen es , cóp ia s d os qu a is
localizam-s e n os cor p os d a s r ep r od u t or a s . As cóp ia s d es tes gen es d a op er á r ia es t ã o s e es for ça n d o
p a r a a ju d a r s u a s p r óp r ia s cóp ia s r ep r od u t iva s a p a s s a r p ela p en eir a t r a n s ger a cion a l. As tér m ites
op er á r ia s p od em s er m a ch a s ou fêm ea s ; m a s en t r e a s for m iga s , a b elh a s e ves p a s a s op er á r ia s s ã o
t od a s fêm ea s ; d e ou t r o m od o o p r in cíp io é o m es m o. De u m a for m a m a is fr a ca , es te p r in cíp io
t a m b ém s e a p lica a d iver s a s es p écies d e a ves , m a m ífer os e ou t r os a n im a is qu e exib em cer t a
in t en s id a d e d e cu id a d os com os joven s p or p a r t e d a s ir m ã s e ir m ã os m a is velh os . E m r es u m o, os
gen es p od em a b r ir ca m in h o a t r a vés d a p en eir a , n ã o a p en a s d a n d o a s s is t ên cia a o s eu p r óp r io cor p o
par a qu e ele s e t or n e u m a n ces t r a l, m a s t a m b ém d a n d o a s s is t ên cia a o cor p o d e u m p a r en te p a r a
que este se torne um ancestral.
O rio do título deste capítulo é um rio de ADN2 , e ele corre através do tempo, não do espaço. É
u m r io d e in for m a çã o, n ã o u m r io d e os s os e t ecid os : u m r io d e in s t r u ções a b s t r a t a s p a r a a
con s t r u çã o d e cor p os , n ã o u m r io d e cor p os s ólid os . A in for m a çã o p a s s a p elos cor p os e os a fet a ,
m a s n ã o é a fet a d a p or eles em s u a p a s s a gem . O r io n ã o s ofr e a s in flu ên cia s d a s exp er iên cia s e d a s
realizações d os cor p os s u ces s ivos a t r a vés d os qu a is flu i. E le t a m b ém n ã o é in flu en cia d o p or u m a
fonte potencial de contaminação que, aparentemente, é muito mais poderosa: o sexo.
E m t od a s a s s u a s célu la s , m et a d e d os gen es d e s u a m ã e es t ã o om b r o a om b r o com m et a d e
d os gen es d o s eu p a i. Seu s gen es m a ter n a is e s eu s gen es p a ter n a is con s p ir a m u n s com os ou t r os
d e m od o ín t im o p a r a t or n á -lo o a m á lga m a s u t il e in d ivis ível qu e é você. Ma s os gen es n ã o s e

7
m is t u r a m . Ap en a s s eu s efeit os o fa zem . Os p r óp r ios gen es têm u m a in t egr id a d e ígn ea . Qu a n d o
ch ega a ép oca d e p a s s a r p a r a a ger a çã o s egu in te, u m gen e va i p a r a o cor p o d e u m a d eter m in a d a
cr ia n ça ou n ã o. Os gen es p a t er n a is e m a t er n a is n ã o s e m is t u r a m ; eles s e r ecom b in a m d e m od o
independente. Um determinado gene em você veio ou da sua mãe ou de seu pai. Ele também veio de
u m , e a p en a s u m , d e s eu s qu a t r o a vós ; d e u m , e a p en a s u m , d e s eu s oit o b is a vós ; e a s s im p or
diante.
Fa lei d e u m r io d e gen es , m a s p od er ía m os t er igu a lm en te fa la d o d e u m gr u p o d e b on s
com p a n h eir os m a r ch a n d o a t r a vés d o tem p o geológico. Tod os os gen es d e u m a p op u la çã o qu e s e
r ep r od u z s ã o, a lon go p r a zo, com p a n h eir os u n s d os ou t r os . A cu r t o p r a zo, eles s e loca liza m em
cor p os in d ivid u a is e s ã o t em p or a r ia m en te com p a n h eir os m a is ín t im os d os ou t r os gen es qu e
compartilham a qu ele cor p o. Os gen es s ob r evivem a t r a vés d os tem p os a p en a s s e for em b on s em
con s t r u ir cor p os qu e s ã o b on s p a r a viver e r ep r od u zir -s e d a m a n eir a p a r t icu la r d e viver es colh id a
p ela es p écie. Ma s h á m a is d o qu e is t o. Pa r a s er b om em s ob r evivên cia , u m gen e d eve s er b om p a r a
o t r a b a lh o em con ju n t o com ou t r os gen es d a m es m a es p écie – o m es m o r io. Pa r a s ob r eviver a lon go
p r a zo, u m gen e d eve s er u m b om com p a n h eir o. Deve s a ir -s e b em em com p a n h ia d os ou t r os gen es
d o m es m o r io, ou s a ir -s e b em con fr on t a n d o-s e com o cen á r io cr ia d o p or eles . Gen es d e ou t r a s
espécies estão em um rio diferente. Eles não têm por que dar-se bem juntos – de qualquer maneira,
não no mesmo sentido – , pois não dividem os mesmos corpos.
A ca r a ct er ís t ica qu e d efin e u m a es p écie é qu e t od os os s eu s m em b r os t êm o m es m o r io d e
gen es flu in d o a t r a vés d eles , e t od os os gen es d e u m a es p écie d evem es t a r p r ep a r a d os p a r a s er b on s
com p a n h eir os u n s p a r a os ou t r os . Um a n ova es p écie p a s s a a exis tir qu a n d o u m a es p écie exis t en te
divide-se em duas. O rio de genes bifurca-se no tempo. Do ponto de vista de um gene, a formação de
espécies, a or igem d e n ova s es p écies , é “u m d em or a d o a d eu s ”. Dep ois d e u m b r eve p er íod o d e
s ep a r a çã o p a r cia l, os d ois r ios p r os s egu em p or leit os s ep a r a d os p a r a s em p r e, ou a t é qu e u m ou
ou t r o d es a p a r eça n a a r eia . S egu r a en t r e a s m a r gen s d e qu a lqu er u m d os d ois r ios , a á gu a m is t u r a -
s e e r em is t u r a -s e p or m eio d a r ecom b in a çã o s exu a l. Ma s a á gu a n u n ca s a lt a a s m a r gen s qu e a
contêm para contaminar o outro rio. Depois que uma espécie dividiu-se, os dois conjuntos de genes
n ã o s ã o m a is com p a n h eir os . E les n ã o m a is t êm en con t r os n o m es m o cor p o, e n ã o s e exige m a is
deles que se dêem bem. Não há mais intercurso entre eles – e intercurso aqui significa, literalmente,
intercurso sexual entre seus veículos temporários, seus corpos.
Por qu e d ever ia m d u a s es p écies d ivid ir -s e? O qu e d á in ício a o d em or a d o a d eu s d e s eu s
gen es ? O qu e fa z com qu e o r io d ivid a -s e em d ois e os d ois b r a ços s ep a r em -s e p a r a n u n ca m a is
encontrar-se novamente? Os detalhes são controvertidos, mas ninguém duvida de que o ingrediente
m a is im p or t a n t e é a s ep a r a çã o geogr á fica a cid en t a l. O r io d e gen es flu i n o t em p o, m a s o r een con t r o
fís ico d os gen es tem lu ga r n os cor p os s ólid os , e cor p os ocu p a m u m lu ga r n o es p a ço. Um es qu ilo
cin zen t o d a Am ér ica d o Nor t e é ca p a z d e r ep r od u zir -s e com u m es qu ilo cin zen t o d a In gla ter r a , s e
ch ega r em a en con t r a r -s e. Ma s é p ou co p r ová vel qu e s e en con tr em . O r io d e gen es d o es qu ilo
cin zen t o d a Am ér ica d o Nor t e es t á efet iva m en te s ep a r a d o, p or u m a m u r a lh a d o r io d e gen es , d o
esquilo cinzento da Inglaterra. Os dois grupos de genes não são mais companheiros de fato, embora
eles a in d a s eja m p r es u m ivelm en te ca p a zes d e a gir com o b on s com p a n h eir os ca s o s u r ja a
oportunidade. Eles disseram adeus, embora não seja um adeus irrevogável – ainda. Mas dados mais
u n s p ou cos m ilh a r es d e a n os d e s ep a r a çã o, é p r ová vel qu e os d ois r ios t en h a m s e s ep a r a d o t a n t o

8
qu e, s e es qu ilos in d ivid u a is en con t r a r em -s e, es tes n ã o s er ã o m a is ca p a zes d e t r oca r gen es .
“Separação” significa aqui separação não no espaço, mas em compatibilidade.
Algo p a r ecid o com is t o es t á qu a s e cer t a m en te p or t r á s d a s ep a r a çã o m a is a n t iga en t r e
es qu ilos cin zen t os e es qu ilos ver m elh os . E les n ã o p od em cr u za r . E les s e in t er p en et r a m
geogr a fica m en t e em p a r tes d a E u r op a , e, em b or a ten h a m en con t r os e p r ova velm en te con fr on t em -se
d e tem p os em t em p os p or ca u s a d a d is p u t a d e u m a n oz, eles n ã o p od em a ca s a la r -s e p a r a ger a r
uma prole fértil. Seus rios genéticos separaram-se muito, o que quer dizer que seus genes não mais
es t ã o b em p r ep a r a d os p a r a cola b or a r u n s com os ou t r os n o in t er ior d os cor p os . Há m u it a s
ger a ções , os a n ces t r a is d o es qu ilo cin zen t o e os a n ces t r a is d o es qu ilo ver m elh o er a m u m ú n ico e
m es m o a n im a l. Ma s eles t or n a r a m -s e geogr a fica m en t e s ep a r a d os – t a lvez p or u m a cor d ilh eir a d e
montanha s , t a lvez p ela á gu a , fin a lm en te p elo ocea n o At lâ n t ico. E s eu s con ju n t os gen ét icos
desenvolveram-s e s ep a r a d a m en te. A s ep a r a çã o geogr á fica p r od u ziu u m a fa lt a d e com p a t ib ilid a d e.
Bon s com p a n h eir os t or n a r a m -s e m a u s com p a n h eir os (ou s e r evela r ia m m a u s com p a n h eir os s e
fos s em tes t a d os em u m en con t r o s exu a l). Ma u s com p a n h eir os tom a r a m -s e p ior es , a té qu e a gor a
eles n ã o s ã o m a is com p a n h eir os . Seu a d eu s é fin a l. Os d ois r ios es t ã o s ep a r a d os e d es t in a d os a
tornar-s e ca d a vez m a is s ep a r a d os . A m es m a h is t ór ia es t á p or t r á s d e s ep a r a ções m u it o m a is
a n t iga s , d iga m os , en t r e n os s os a n ces t r a is e os a n ces t r a is d os elefa n t es . Ou en t r e os a n ces tr a is d a
ostra (que também foram nossos ancestrais) e os ancestrais dos escorpiões.
Há a gor a t a lvez 3 0 m ilh ões d e b r a ços or igin a d os d o r io d e ADN, p ois es t e é o n ú m er o
es t im a d o d e es p écies s ob r e a Ter r a . Foi es t im a d o t a m b ém qu e a s es p écies s ob r eviven tes con s t it u em
cer ca d e u m p or cen t o d a s es p écies qu e exis t ir a m . S egu e qu e t er ia h a vid o cer ca d e 3 b ilh ões d e
b r a ços d e r io or igin a d os d o r io d e ADN. Os 3 0 m ilh ões d e b r a ços d e r io qu e exis tem h oje em d ia
es t ã o ir r em ed ia velm en te s ep a r a d os . Mu it os d eles es t ã o d es t in a d os a s eca r , p ois a m a ior ia d a s
es p écies a ca b a p or ext in gu ir -s e. Se você a com p a n h a r os 3 0 m ilh ões d e r ios (p a r a s er b r eve, m e
referirei aos braços de rio como rios) voltando para o passado, você descobrirá que, um por um, eles
reúnem-s e com ou t r os r ios . O r io d os gen es h u m a n os ju n t a -s e com o r io d e gen es d o ch im p a n zé
m a is ou m en os n a m es m a ép oca em qu e o r io d os gen es d e gor ila o fa z, h á cer ca d e 7 m ilh ões d e
a n os . Un s p ou cos m ilh ões d e a n os m a is p a r a o p a s s a d o, n os s o r io com p a r t ilh a d o com o m a ca co
a fr ica n o é r efor ça d o p ela cor r en te d e gen es d o or a n got a n go. Ma is n o p a s s a d o a in d a , r eu n im o-nos
com o r io d os gen es d e gib ã o – u m r io qu e s ep a ra-s e cor r en te a b a ixo em u m gr a n d e n ú m er o d e
es p écies s ep a r a d a s d e gib ã o e d o s ia m a n go 3 . À m ed id a qu e volt a m os p a r a t r á s n o t em p o, n os s o r io
gen ét ico u n e-s e com r ios d es t in a d os , s e a com p a n h a d os cor r en te a b a ixo d e n ovo, a r a m ifica r -s e n os
m a ca cos d o Velh o Mu n d o, n os m a ca cos d o Novo Mu n d o, e n os lêm u r es d e Ma d a gá s ca r . Ma is p a r a
t r á s a in d a , n os s os r ios u n em -s e com a qu eles qu e con d u zem a ou t r os gr u p os im p or t a n t es d e
m a m ífer os : r oed or es , ga t os , m or cegos , elefa n tes . Dep ois d is t o, en con t r a m os a s cor r en tes qu e
conduzem a vários tipos de répteis, aves, anfíbios, peixes e invertebrados.
Agor a , a qu i es t á u m a s p ect o im p or t a n t e com o qu a l tem os d e s er ca u t elos os s ob r e a m et á for a
d o r io. Qu a n d o p en s a m os s ob r e a s ep a r a çã o con d u zin d o t od os os m a m ífer os – op os t a , d iga m os , à
cor r en te qu e con d u z a o es qu ilo cin zen to –, é ten t a d or im a gin a r a lgo n u m a es ca la gr a n d ios a , u m r io
com o o Mis s is s ip p i ou o Mis s ou r i. O b r a ço m a m ífer o es t á , a fin a l d e con t a s , d es tin a d o a cr ia r ou t r os
b r a ços , a t é p r od u zir t od os os m a m ífer os – d o m u s a r a n h o p igm eu a o elefa n te, d a t ou p eir a qu e vive
em b a ixo d a t er r a a os m a ca cos qu e vivem n o t op o d a s á r vor es . S e o b r a ço m a m ífer o d o r io é
d es t in a d o a a lim en t a r t a n tos m ilh a r es d e r ios m en or es im p or t a n t es , com o p od er ia ele d eixa r d e s er

9
uma torrente volumosa e caudalosa? Mas esta imagem está profundamente errada. Quando os
ancestrais de todos os mamíferos modernos separaram-se daqueles que não são mamíferos, o
acontecimento não foi mais espetacular do que qualquer outro que levou à formação de uma
espécie. Ele poderia ter passado despercebido por qualquer naturalista que por acaso na época
estivesse por perto. O novo braço de rio de genes teria sido um filete de água, percorrendo uma
espécie de pequenas criaturas noturnas não mais diferentes de seus primos não mamíferos do que
um esquilo vermelho é de um esquilo cinzento. É apenas como uma visão a posteriori que vemos o
ancestral mamífero como mamífero. Naqueles dias, ele teria sido apenas uma outra espécie de réptil
s em elh a n te a u m m a m ífer o, n ã o m a r ca d a m en te d ifer en te d e t a lvez u m a d ú zia d e ou t r os p equ en os
mamíferos insetívoros de focinho comprido que serviam de comida para os dinossauros.
A m es m a fa lta d e d r a m a ter ia a com p a n h a d o a s s ep a r a ções a n ter ior es en t r e os a n ces t r a is d e
t od os os gr a n d es gr u p os d e a n im a is : os ver teb r a d os , os m olu s cos , os cr u s t á ceos , os in s et os , os
ver m es s egm en t a d os , os p la t elm in t os , a s m ed u s a s e a s s im p or d ia n t e. Qu a n d o o r io qu e con d u zir ia
a os m olu s cos (e ou t r os ) s ep a r ou -s e d o r io qu e con d u zir ia a os ver teb r a d os (e ou t r os ), a s d u a s
p op u la ções d e cr ia t u r a s (p r ova velm en te s em elh a n tes a ver m es ) t er ia m s id o tã o p a r ecid a s qu e
p od er ia m ter s e a ca s a la d o u m a com a ou t r a . A ú n ica r a zã o p ela qu a l ela s n ã o o fizer a m é qu e
h a via m s e t or n a d o a cid en t a lm en te s ep a r a d a s p or a lgu m a b a r r eir a geogr á fica , t a lvez ter r a fIrme
separando águas anteriormente unidas. Ninguém poderia ter adivinhado que uma população estava
d es t in a d a a ger a r os m olu s cos e a ou t r a os ver teb r a d os . Os d ois r ios d e ADN er a m filetes p ou co
separados, e os dois grupos de animais eram quase indistinguíveis.
Os zoólogos r econ h ecem tu d o is t o, m a s eles o es qu ecem a lgu m a s vezes qu a n d o con t em p la m
os gr u p os r ea lm en te gr a n d es d e a n im a is , com o o d os m olu s cos e o d os ver t eb r a d os . E les s ã o
t en t a d os a p en s a r s ob r e a s ep a r a çã o en t r e gr u p os p r in cip a is com o u m even t o es p et a cu la r . A r a zã o
pela qual os zoólogos podem enganar-se é que eles foram educados numa crença quase reverente de
qu e ca d a u m a d a s gr a n d es d ivis ões d o r ein o a n im a l é d ot a d a d e a lgu m a cois a p r ofu n d a m en te
s in gu la r , m u it a s vezes d es ign a d a p ela p a la vr a a lem ã Bauplan. E m b or a es t a p a la vr a s ign ifiqu e
apenas blueprint (planta de projeto), tornou-se reconhecida como um termo técnico, e a usarei como
s e fos s e u m a p a la vr a d a lín gu a in gles a , em b or a (o qu e m e ca u s ou u m leve ch oqu e a o d es cob r i-lo)
n ã o con s t e a in d a d a a t u a l ed içã o d o Oxford En glis h Diction a ry . (Com o m e d ivir t o m en os com a s
p a la vr a s d o qu e a lgu n s d e m eu s colega s , a d m it o u m ligeir o fr is s on d e Schadenfreude a o con s t a t a r
s u a a u s ên cia ; es t a s d u a s p a la vr a s es tr a n geir a s es tã o n o Dictionary, d e m od o qu e n ã o h á um
p r econ ceit o s is t em á t ico con t r a a im p or t a çã o.) No s eu s en t id o t écn ico, Bauplan é m u it a s vezes
t r a d u zid o com o “p la n o fu n d a m en t a l d o cor p o”. O u s o d a p a la vr a “fu n d a m en t a l” (ou d e m od o
equ iva len te, a u t iliza çã o a u t ocon s cien te d o t er m o a lem ã o p a r a in d ica r p r ofu n d id a d e) é o qu e ca u s a
o estrago. Ela pode levar os zoólogos a cometer sérios erros.
Um zoólogo, p or exem p lo, s u ger iu qu e a evolu çã o n o Ca m b r ia n o (m a is ou m en os en t r e 6 0 0
m ilh ões e 5 0 0 m ilh ões d e a n os a t r á s ) d eve ter s id o u m t ip o d e p r oces s o com p let a m en te d ifer en te d o
p r oces s o evolu t ivo p os t er ior . S eu a r gu m en t o er a qu e h oje em d ia s ã o n ova s es p écies qu e es t ã o
surgindo, enquanto no Cambriano os grupos principais estavam aparecendo, tais como os moluscos
e os cr u s t á ceos . A fa lá cia é evid en te! Mes m o cr ia t u r a s t ã o r a d ica lm en te d ifer en t es u m a s d a s ou t r a s
com o m olu s cos e cr u s t á ceos er a m p op u la ções d a m es m a es p écie or igin a lm en te s ep a r a d a s a p en a s
de modo geográfico. Por um breve tempo, elas poderiam ter intercruzado se tivessem se encontrado,
m a s n ã o o fizer a m . Ap ós m ilh ões d e a n os d e evolu çã o em s ep a r a d o, ela s a d qu ir ir a m a s

10
características que nós, com a visão a posteriori dos zoólogos modernos, agora reconhecemos
respectivamente como as dos moluscos e crustáceos. Estas características são dignificadas com o
título gr a n d ios o d e “p la n o cor p or a l fu n d a m en t a l” ou “Bauplan”. Ma s os Bauplans p r in cip a is d o
reino animal divergiram a partir das suas origens comuns gradualmente.
Ad m it id a m en t e, h á u m d es a cor d o m en or , em b or a m u it o p op u la r iza d o, s ob r e o quão gr a d u a l
ou “n er vos a ” é a evolu çã o. Ma s n in gu ém , e qu er o d izer n in gu ém m es m o, p en s a qu e a evolu çã o
t en h a s id o s u ficien tem en te n er vos a p a r a in ven t a r u m Bauplan n ovo e com p let o d e u m a vez s ó. O
a u t or qu e citei es cr eveu em 1 9 5 8 . Pou cos zoólogos a s s u m ir ia m exp licit a m en te s u a p os içã o h oje em
d ia , m a s a lgu m a s vezes eles o fa zem im p licit a m en t e, fa la n d o com o s e os p r in cip a is gr u p os d e
a n im a is t ives s em s u r gid o es p on t â n ea e p er feit a m en te for m a d os , com o At en a s d a ca b eça d e Zeu s , e
não por meio da divergência de uma população ancestral em isolamento acidental geográfIco4 .
De qualquer modo, o estudo da biologia molecular mostrou que os grandes grupos de animais
estão muito mais próximos uns dos outros do que costumávamos pensar. Você pode tratar o código
gen ét ico com o u m d icion á r io n o qu a l 6 4 p a la vr a s em u m a lín gu a (a s 6 4 t r in ca s d e u m a lfa b et o d e
quatro letras) são mapeadas em 21 palavras de uma outra língua (os 21 aminoácidos mais um sinal
de pontuação). As chances de obter o mesmo mapeamento 64:21 por acaso duas vezes são menores
do que um em 1 milhão de milhão de milhão de milhão de milhões. Ainda assim o código genético é
d e fa t o lit er a lm en te id ên t ico em t od os os a n im a is , p la n t a s e b a ct ér ia s ob s er va d os . Tod a s a s cois a s
viva s t er r es t r es s ã o cer t a m en te d es cen d en tes d e u m ú n ico a n ces t r a l. Nin gu ém con tes t a r ia is t o,
excet o p or a lgu m a s s em elh a n ça s es p a n t os a s en t r e, p or exem p lo, in s et os e ver t eb r a d os qu e a gor a
es t ã o s e r evela n d o qu a n d o a s p es s oa s exa m in a m n ã o a p en a s o cód igo gen ét ico p r op r ia m en te d it o,
m a s t a m b ém s eqü ên cia s d et a lh a d a s d e in for m a çã o gen ét ica . Há u m m eca n is m o gen ét ico b a s t a n t e
com p lica d o r es p on s á vel p elo p la n o cor p or a l s egm en t a d o d os in s et os . Um m eca n is m o gen ét ico
es t r a n h a m en t e s im ila r foi t a m b ém d es cob er t o n os m a m ífer os . De u m p on t o d e vis t a m olecu la r ,
todos os animais são parentes bastante próximos uns dos outros e mesmo das plantas. Você terá de
ir a t é a s b a ct ér ia s p a r a en con t r a r n os s os p r im os d is t a n t es , e m es m o a s s im o cód igo gen ét ico em s i
m es m o é id ên t ico a o n os s o. A r a zã o p ela qu a l é p os s ível fa zer es tes cá lcu los p r ecis os s ob r e o cód igo
gen ét ico, m a s n ã o s ob r e a a n a t om ia d os Bauplans é qu e o cód igo gen ét ico é es tr it a m en te d igit a l, e
os d ígit os s ã o cois a s qu e você p od e con t a r p r ecis a m en te. O r io d e gen es é u m r io d igit a l, e d evo
explicar agora o que este termo oriundo da engenharia quer dizer.
Os en gen h eir os fa zem u m a d is t in çã o im p or t a n t e en t r e os cód igos d igit a l e a n a lógico. Toca -
d is cos e gr a va d or es – e a té r ecen tem en t e telefon es – u t iliza m cód igos a n a lógicos . Com p a ct d is k s
(CD), com p u t a d or es , e a m a ior ia d os s is t em a s telefôn icos m od er n os u t iliza m cód igos d igit a is . E m
u m s is t em a telefôn ico a n a lógico, on d a s d e p r es s ã o flu t u a n d o con t in u a m en te n o a r (os s on s ) s ã o
t r a n s for m a d a s p or m eio d e t r a n s d u t or es em on d a s flu t u a n t es d e volt a gem cor r es p on d en tes em u m
cir cu it o. A gr a va çã o fon ogr á fica fu n cion a d e m od o s im ila r : os s u lcos on d u la n t es fa zem com qu e a
p on t a d a a gu lh a vib r e, e os m ovim en t os d a p on t a d a a gu lh a s ã o t r a n s for m a d os p or u m t r a n s d u t or
em flu t u a ções d e volt a gem cor r es p on d en t es . Na ou t r a p on t a d a lin h a es t a s on d a s d e volt a gem s ão
r econ ver t id a s , p or u m a m em b r a n a vib r a n t e loca liza d a n a p a r t e d o t elefon e qu e s er ve p a r a es cu t a r
ou p elo a lt o-fa la n t e a cop la d o a o t oca -d is co, em on d a s cor r es p on d en tes d e p r es s ã o n o a r , p a r a qu e
p os s a m os ou vi-los . O cód igo é s im p les e d ir et o: flu t u a ções elét r ica s n o fio s ã o p r op or cion a is à s
flu t u a ções n o a r . Tod a s a s volt a gen s p os s íveis , d en t r o d e cer t os lim it es , p od em p a s s a r p elo fio, e a s
diferenças entre elas são importantes.

11
Em um telefone digital, apenas duas voltagens possíveis ou algum número discreto de
voltagens possíveis, tal como 8 ou 256 – passam pelo fio. A informação não está nas voltagens em si
m es m a s , m a s s im n os p a d r ões d os n íveis d is cr etos d e volt a gem . Is t o é ch a m a d o cód igo d e
m od u la çã o p or p u ls os . E m u m d eter m in a d o m om en t o, a volt a gem r ea l r a r a m en te s er á igu a l a u m
d os , d iga m os , oit o va lor es n om in a is , m a s o a p a r elh o r ecep t or a a r r ed on d a r á p a r a a m a is p r óxim a
d a s volt a gen s d es ign a d a s , d e m od o qu e o qu e em er ge n a ou t r a p on t a d a lin h a é qu a s e p er feit o
m es m o qu e a t r a n s m is s ã o a o lon go d es ta s eja r u im . Tu d o o qu e você tem d e fa zer é d is p or os n íveis
d is cr et os d e volt a gem s u ficien tem en te s ep a r a d os p a r a qu e a s flu t u a ções a lea t ór ia s n ã o p os s a m
n u n ca s er m a l in t er p r et a d a s p elo a p a r elh o r ecep t or com o n íveis er r ôn eos . E s t a é a gr a n d e vir t u d e
d os cód igos d igit a is , e é a r a zã o p ela qu a l os s is tem a s d e á u d io e víd eo – e d e m od o ger a l a
t ecn ologia d a in for m a çã o – s ã o ca d a vez m a is d igit a is . Os com p u t a d or es , é cla r o, u t iliza m cód igos
d igit a is em t u d o qu e fa zem . Por r a zões d e con ven iên cia , é u m cód igo b in á r io is t o é, ele tem a p en a s
dois níveis de voltagem e não oito ou 256.
Mes m o em u m t elefon e d igit a l, os s on s qu e en t r a m n o b oca l e s a em n o a u d iofon e s ã o a in d a
flu t u a ções a n a lógica s d a p r es s ã o d o a r . É a in for m a çã o qu e p a s s a d e t r oca em t r oca qu e é d igit a l.
Algu m t ip o d e cód igo tem d e s er cr ia d o p a r a t r a d u zir os va lor es a n a lógicos , d e m icr os s egu n d o em
m icr os s egu n d o, em u m a s eqü ên cia d e p u ls os d is cr et os . Qu a n d o você a r gu m en t a com s u a
n a m or a d a a o t elefon e, t od a s a s n u a n ces , t od os os t on s d e s u a voz, t od o s u s p ir o a p a ixon a d o e
t im b r es d e d es ejo s ã o t r a n s p or t a d os a o lon go d o fio u n ica m en te n a for m a d e n ú m er os . Você p od e
s er leva -lo à s lá gr im a s p elos n ú m er os – d es d e qu e eles s eja m cod ifica d os e d ecod ifica d os d e m od o
suficientemente rápido. Os dispositivos eletrônicos modernos de chaveamento são tão rápidos que o
t em p o d e lin h a p od e s er d ivid id o em p ed a ços , d e m od o b a s t a n t e p a r ecid o a o m es t r e d e xa d r ez qu e
p od e d ivid ir s eu tem p o en t r e vin te p a r t id a s s im u lt â n ea s . Por es t e m eio, m ilh a r es d e con ver s a s
t elefôn ica s p od em s er a loca d a s n a m es m a lin h a , a p a r en tem en te s im u lt â n ea s , m a s n a ver d a d e
s egr ega d a s elet r on ica m en te s em in ter fer ên cia s . Um tr on co d e lin h a s d e in for m a çã o – m u it os d eles
h oje em d ia n ã o s ã o con s t it u íd os p or fios , m a s s im p or feixes d e s in a is d e r á d io, t r a n s m it id os
d ir et a m en te d o t op o d e u m a colin a p a r a ou t r o, ou t r a n s m it id os p a r a u m s a t élite e d ep ois
retransmitidos – é u m r io ca u d a los o d e d ígit os . Ma s em r a zã o d es t a s egr ega çã o eletr ôn ica
en gen h os a , es t e r io é n a ver d a d e for m a d o p or m ilh a r es d e r ios d igit a is , qu e com p a r t ilh a m a s
m es m a s m a r gen s a p en a s n u m s en t id o s u p er ficia l. Com o es qu ilos ver m elh os e cin zen t os , qu e
compartilham as mesmas árvores, mas nunca misturam seus genes.
Volt a n d o a o m u n d o d os en gen h eir os , a s d eficiên cia s d os s in a is a n a lógicos n ã o s ã o m u it o
imp or t a n t es s e n ã o for em cop ia d a s d e m od o r ep et id o. Um gr a va d or p od e ter u m ch ia d o p r óp r io t ã o
b a ixo qu e você m a l con s egu ir á d is t in gu í-lo – a m en os qu e você a m p lifiqu e o s om , e n es te ca s o você
a m p lifica o ch ia d o e t a m b ém in t r od u zem n ovos r u íd os . Ma s , s e você fizer u m a gr a va çã o em fit a d e
u m a gr a va çã o em fit a , e d ep ois u m a gr a va çã o em fita d a gr a va çã o d a gr a va çã o, e a s s im p or d ia n t e,
d ep ois d e u m a cen ten a d e “ger a ções ” t u d o o qu e r es t a r á s er á u m ch ia d o h or r ível. Algu m a cois a
p a r ecid a com is t o er a o p r ob lem a n a qu eles d ia s em qu e os t elefon es er a m t od os a n a lógicos .
Qu a lqu er s in a l t elefôn ico qu e p er cor r a u m a lin h a lon ga ten d e a d es a p a r ecer e d eve s er r e-
lntensificado – r e-amplificado – a ca d a cen ten a d e qu ilôm et r os ou m a is ou m en os is t o. Nos d ia s d a
t elefon ia a n a lógica is t o er a u m p r ob lem a , p or qu e ca d a es t á gio d e a m p lifica çã o a u m en t a va a
in t en s id a d e d o ch ia d o d e fu n d o. Os s in a is d igit a is t a m b ém p r ecis a m s er r ein ten s ifica d os . Ma s , p or
r a zões qu e já vim os , a r ein t en s ifica çã o n ã o in t r od u z n en h u m er r o: a s cois a s p od em s er a r r a r ija d a s

12
de modo tal que a informação é transmitida perfeitamente, não importa o número de estações de
reintensificação que intervenham no processo. O chiado não aumenta mesmo para distâncias de
centenas e centenas de quilômetros.
Qu a n d o eu er a cr ia n ça , m in h a m ã e exp licou -m e qu e a s n os s a s célu la s n er vos a s er a m os fios
t elefôn icos d o cor p o. Ma s s er ã o eles a n a lógicos ou d igit a is ? A r es p os t a é qu e eles s ã o u m a m is t u r a
interessante dos dois. Uma célula nervosa não é como um fio elétrico. Ela é um tubo longo e fino ao
longo do qual passam ondas de alterações químicas, como um rastilho de pólvora sibilando no chão
– excet o qu e, a o con t r á r io d o r a s t ilh o d e p ólvor a , o n er vo logo s e r ecu p er a e p od e s ib ila r n ova m en te
a p ós u m cu r t o p er íod o d e r ep ou s o. A m a gn it u d e a b s olu t a d a on d a – a t em p er a t u r a d a p ólvor a –
p od e flu t u a r à m ed id a qu e es t a p er cor r e o n er vo, m a s is t o é ir r eleva n te. O cód igo o ign or a . Ou o
p u ls o qu ím ico es t á lá ou n ã o, com o d ois n íveis d is cr et os d e volt a gem em u m telefon e d igit a l. Nes te
a s p ect o, o s is t em a n er vos o é d igit a l. Ma s os im p u ls os n er vos os n ã o s ã o r ed u zid os a b ytes : eles n ã o
s e ju n t a m em n ú m er os d e cód igo d is cr et os . E m vez d is t o, a in t en s id a d e d a m en s a gem (a
in t en s id a d e d o s om , o gr a u d e b r ilh o d a lu z, t a lvez m es m o a a gon ia d a em oçã o) é cod ifica d a p or
t a xa s d e im p u ls o. Os en gen h eir os con h ecem is t o com o m od u la çã o p ela fr eqü ên cia d e p u ls os , e es te
processo foi muito popular entre eles antes que o código de modulação por pulsos fosse adotado.
Um a t a xa d e p u ls os é u m a qu a n t id a d e a n a lógica , m a s os p u ls os p r op r ia m en te d it os s ã o
d igit a is ; ou eles es t ã o lá ou n ã o, s em m eio-ter m o. E o s is t em a n er vos o d is to s e b en eficia com o
qu a lqu er s is tem a d igit a l. Pois d a for m a p ela qu a l a célu la n er vos a t r a b a lh a , h á u m equ iva len te a
u m r ein ten s ifica d or elet r ôn ico, n ã o a ca d a cen ten a d e qu ilôm et r os , m a s s im a ca d a m ilím et r o –
oit ocen t a s es ta ções d e r ein t en s ifica çã o en t r e o n er vo d a es p in h a e a p on t a d e s eu d ed o. Se a a lt u r a
absoluta do impulso nervoso – a onda de pólvora – tivesse importância, a mensagem seria distorcida
a p on t o d e s e t om a r ir r econ h ecível a o p er cor r er o com p r im en t o d e u m b r a ço h u m a n o, qu e d ir á o
com p r im en t o d e u m p es coço d e gir a fa . Ca d a es t á gio n a a m p lifica çã o in t r od u zir ia m a is er r os
a lea t ór ios , exa t a m en te com o a con t ece qu a n d o u m a gr a va çã o em fit a é feita a p a r t ir d e u m a
gr a va çã o em fit a m a is d e oit ocen t a s vezes . Ou qu a n d o você fa z u m a cóp ia Xer ox d e u m a cóp ia d e
u m a cóp ia Xer ox. Dep ois d e oit ocen t a s “ger a ções ” fot ocop ia d a s , t u d o o qu e s ob r a é u m a m a n ch a
cin zen t a . A cod ifica çã o d igit a l ofer ece a ú n ica s olu çã o p a r a o p r ob lem a d a célu la n er vos a , e a
seleção natural a adotou devidamente. O mesmo é verdadeiro para os genes.
Francis Crick e James Watson, os descobridores da estrutura molecular dos genes, deveriam,
a cr ed it o eu , s er h om en a gea d os p or m u it os s écu los , com o Ar is t ót eles e Pla t ã o. S eu s p r êm ios Nob el
for a m con ced id os “em fis iologia ou m ed icin a ”, e is t o. é cor r et o m a s qu a s e t r ivia l. Fa la r d e u m a
r evolu çã o con t ín u a é qu a s e u m a con t r a d içã o em t er m os , a in d a a s s im n ã o a p en a s a m ed icin a , m a s
t od a a n os s a com p r een s ã o d a vid a con t in u a r á a s er r evolu cion a d a ca d a vez m a is com o
con s eqü ên cia d ir et a d a m u d a n ça d e p en s a m en t o qu e es tes d ois m oços com eça r a m em 1 9 5 3 . Os
p r óp r ios gen es e a s d oen ça s gen ét ica s s ã o a p en a s a p on t a d o iceb er g. O qu e é ver d a d eir a m en te
revolucionário a respeito da biologia molecular na era pós-Watson-Crick é que ela tomou-se digital.
Dep ois d e Wa t s on e Cr ick , a p r en d em os qu e os gen es , d en t r o d e s u a es t r u t u r a in t er n a
d im in u t a , s ã o lon gos cor d ões d e in for m a çã o d igit a l p u r a . E m a is , eles s ã o ver d a d eir a m en te d igit a is ,
n o s en t id o for t e e com p leto d os com p a ct d is k s (CDs ), n ã o n o s en t id o fr a co d o s is t em a n er vos o. O
código genético não é um código binário como o dos computadores, nem um código de oito níveis de
volt a gem com o em a lgu n s s is t em a s t elefôn icos , m a s s im u m cód igo qu a t er n á r io, com qu a t r o
s ím b olos . O cód igo d e m á qu in a d os gen es é es t r a n h a m en te s im ila r a o d os com p u t a d or es . À p a r te

13
algumas diferenças de jargão, as páginas de uma revista científica de biologia molecular poderiam
ser trocadas pelas páginas de uma revista sobre engenharia de computação. Entre as suas
numerosas conseqüências, esta revolução no próprio cerne da vida deu o golpe final e mortífero no
vitalismo – a cr en ça d e qu e a m a tér ia viva é p r ofu n d a m en te d ifer en te d a m a t ér ia in a n im a d a . Até
1 9 5 3 er a a in d a p os s ível a cr ed it a r qu e h a via a lgu m a cois a fu n d a m en t a l e ir r ed u t ivelm en te
m is t er ios a n o p r ot op la s m a vivo. Agor a n ã o m a is . Mes m o a qu eles filós ofos p r ed is p os t os a a d ot a r u m
p on t o d e vis ta m eca n icis ta d a vid a n ã o ou s a va m ter es p er a n ça s d e u m a r ea liza çã o t ot a l d e s eu s
sonhos mais loucos.
O enredo de ficção científica que se segue é factível se uma tecnologia que difere da tecnologia
d e h oje a p en a s p or s er u m p ou co m a is r á p id a es t iver d is p on ível. O p r ofes s or J im Cr ick s on foi
r a p t a d o p or u m a p ot ên cia es t r a n geir a m a lign a e for ça d o a t r a b a lh a r em s eu s la b or a t ór ios d e gu er r a
b iológica . Pa r a s a lva r a civiliza çã o é d e im p or t â n cia vit a l qu e ele p os s a t r a n s m it ir a lgu m a s
in for m a ções a lt a m en te s ecr et a s p a r a o m u n d o exter ior , m a s os ca n a is d e com u n ica çã o n or m a is lh e
s ã o n ega d os . E xcet o u m . O cód igo d e ADN con s is t e em 6 4 “cód on s ” t r ip los , o s u ficien te p a r a for m a r
u m a lfa b et o in glês com p let o com m a iú s cu la s e m in ú s cu la s m a is d ez n u m er a is , u m ca r a ct er e d e
es p a ça m en t o e u m p on t o fin a l. O p r ofes s or r et ir a u m vír u s extr em a m en te d a n os o d e gr ip e d a
prateleira do laboratório e escreve em seu genoma o texto completo de sua mensagem para o mundo
exter ior , com s en ten ça s em in glês con s t r u íd a s d e m od o p er feito. E le r ep ete a s u a m en s a gem
exa u s t iva m en t e n o gen om a , a d icion a n d o u m a s eqü ên cia , “b a n d eir a d e s in a liza çã o” fa cilm en te
r econ h ecível d iga m os , os d ez p r im eir os n ú m er os p r im os . E le en t ã o s e in fect a com o vír u s e es p ir r a
em u m a s a la ch eia d e gen te. Um a on d a d e gr ip e va r r e o m u n d o, e os la b or a t ór ios m éd icos d e ter r a s
distantes p a s s a m a t r a b a lh a r p a r a d es cob r ir a s eqü ên cia n o gen om a em u m a t en t a t iva d e ob t er
u m a va cin a . Logo fica cla r o qu e exis te u m p a d r ã o es t r a n h o e r ep et it ivo n o gen om a . Aler t a d os p elos
n ú m er os p r im os – qu e n ã o p od em ter s u r gid o es p on t a n ea m en te a lgu ém tem a id éia d e em p r ega r
t écn ica s d e d ecifr a m en t o d e cód igos . Da í em d ia n te d a r ia p ou co t r a b a lh o ler o t ext o com p leto em
inglês da mensagem do professor Crickson, transmitida pelo mundo todo por espirros.
Nos s o s is t em a gen ét ico, qu e é o s is tem a u n iver s a l d e t od a a vid a n o p la n et a , é d igit a l a té a
medula. Com uma precisão de palavra por palavra, você poderia codificar o Novo Testamento inteiro
n a qu ela s p a r t es d o gen om a h u m a n o qu e es t ã o p r es en tem en te ch eia s d e ADN “r efu ga d o” – is t o é,
ADN que não é utilizado, pelo menos do modo comum, pelo corpo. Cada célula de seu corpo contém
o equ iva len te a 4 6 fit a s im en s a s d e d a d os , for n ecen d o ca r a ct er es d igit a is p or m eio d e ca b eça s d e
leit u r a qu e t r a b a lh a m s im u lt a n ea m en te. E m t od a célu la , es t a s fit a s – os cr om os s om os – con t êm a
m es m a in for m a çã o, m a s a s ca b eça s d e leit u r a n os d ifer en tes t ip os d e célu la s va s cu lh a m p a r t es
d ifer en tes d o b a n co d e d a d os p or ca u s a d e s eu s ob jet ivos p r óp r ios es p ecia liza d os . E s t a é a r a zã o
p ela qu a l a s célu la s m u s cu la r es s ã o d ifer en tes d a s célu la s d o fíga d o. Nã o exis te qu a lqu er for ça vit a l
con d u zid a p elo es p ír it o, n ã o exis te qu a lqu er geléia p r ot op lá s m ica e m ís t ica , p u ls a n d o, a r fa n d o ou
pululando. A vida é apenas constituída por bytes, bytes e mais bytes de informação digital.
Os gen es s ã o in for m a çã o p u r a – in for m a çã o qu e p od e s er cod ifica d a , r ecod ifica d a e
d ecod ifica d a , s em qu a lqu er d egr a d a çã o ou a lter a çã o d o s ign ifica d o. A in for m a çã o p u r a p od e s er
cop ia d a e, com o ela é in for m a çã o d igit a l, a fid elid a d e d a s cóp ia s p od e s er im en s a . Os ca r a ct er es d e
ADN s ã o cop ia d os com u m a p r ecis ã o qu e r iva liza com qu a lqu er cois a qu e os en gen h eir os p os s a m
fa zer . E les s ã o cop ia d os p or ger a ções , com er r os oca s ion a is a p en a s s u ficien t es p a r a in t r od u zir
va r ia ções . E n t r e es t a s va r ia ções , a qu ela s com b in a ções cod ifica d a s qu e s e t or n a m m a is n u m er os a s

14
no mundo serão aquelas que, quando decodificadas e obedecidas no interior dos corpos, óbvia e
automaticamente farão com que estes corpos tomem atitudes ativas para preservar e propagar estas
m en s a gen s d e ADN. Nós – e is t o qu er d izer t od a s a s cois a s viva s – s om os m á qu in a s p r ogr a m a d a s
p a r a p r op a ga r o b a n co d e d a d os d igit a is qu e execu t ou o p r ogr a m a . O d a r win is m o a gor a é
considerado como a sobrevivência dos sobreviventes no nível do código digital puro.
Com u m a vis ã o a p os te riori, n ã o p od er ia s er d e ou t r a for m a . Um s is t em a gen ético a n a lógico
p od er ia s er im a gin a d o. Ma s vim os já o qu e a con tece com a in for m a çã o a n a lógica qu a n d o ela é
r ecop ia d a p or ger a ções s u ces s iva s . E la s im p les m en te s e t or n a ir r econ h ecível. S is t em a s telefôn icos
com es t a ções d e r ein ten s ifica çã o d os s in a is , fit a s r egr a va d a s , fot ocóp ia s d e fot ocóp ia s – s in a is
analógicos são tão vulneráveis à degradação acumulativa que o ato de copiar não pode ser realizado
a lém d e u m n ú m er o lim ita d o d e ger a ções . Os gen es , p or ou t r o la d o, p od em r ep lica r -s e p or 1 0
m ilh ões d e ger a ções e m a l s ofr er u m a d egr a d a çã o. O d a r win is m o fu n cion a a p en a s p or qu e –
deixando de lado mutações discretas, que a seleção natural elimina ou preserva o processo de cópia
é p er feit o. Ap en a s u m s is tem a gen ét ico d igit a l é ca p a z d e s u s ten ta r o d a r win is m o d u r a n t e er a s e
er a s d e tem p o geológico. Mil n ovecen t os e cin qü en t a e t r ês , o a n o d a h élice d u p la , s er á con s id er a d o
n ã o a p en a s com o o a n o qu e m a r cou o fim d os p on t os d e vis t a m ís t icos e ob s cu r a n t is t a s s ob r e a
vida; os darwinianos o considerarão como o ano em que seu tema de estudo passou a ser digital.
O r io d e in for m a çã o d igit a l p u r a , flu in d o m a jes t os a m en te a t r a vés d o tem p o geológico e
dividindo-s e em 3 b ilh ões d e b r a ços , é u m a im a gem p od er os a . Ma s com o fica m a s ca r a ct er ís t ica s
familiar es d a vid a ? Com o fica m os cor p os , a s m ã os e os p és , os olh os , os cér eb r os e a s s u íça s , a s
folh a s , os t r on cos e a s r a ízes ? Com o fica m os n ós e n os s a s p a r t es ? Ser em os n ós – n ós a n im a is ,
p la n t a s , p r ot ozoá r ios , fu n gos e b a ctér ia s – a p en a s a s m a r gen s en t r e a s qu a is flu em os p equ en os
rios de informação digital? Em certo sentido, sim. Mas há, como deixei implícito, muito mais do que
is t o. Os gen es n ã o fa zem a p en a s cóp ia s d e s i m es m os qu e flu em a t r a vés d a s ger a ções . E les n a
ver d a d e p a s s a m s eu tem p o n os cor p os , e in flu en cia m a for m a e o com p or ta m en t o d os cor p os
sucessivos nos quais se encontram. Os corpos também são importantes.
O cor p o, d iga m os , d e u m u r s o p ola r n ã o é a p en a s u m p a r d e m a r gen s flu via is p a r a u m a
p equ en a cor r en te d igit a l. E le t a m b ém é u m a m á qu in a d e u m a com p lexid a d e d o t a m a n h o d e u m
u r s o. Tod os os gen es d a p op u la çã o in t eir a for m a m u m a com u n id a d e – b on s com p a n h eir os ,
b r in ca n d o u n s com os ou t r os a t r a vés d os t em p os . Ma s eles n ã o p a s s a m t od o o t em p o em
com p a n h ia d e t od os os ou t r os m em b r os d a com u n id a d e: eles t r oca m d e p a r ceir os d en tr o d o
con ju n t o qu e é a com u n id a d e. E a com u n id a d e é d efin id a com o o con ju n t o d e gen es qu e
potencialmente podem encontrar-se com quaisquer outros genes da comunidade (mas com nenhum
m em b r o d e qu a lqu er d a s ou t r a s 3 0 m ilh ões d e com u n id a d es exis t en tes n o m u n d o). Os en con t r os
r ea is s em p r e a con t ecem d en t r o d e u m a célu la d o cor p o d o u r s o p ola r . E es t e cor p o n ã o é u m
receptáculo passivo para o ADN.
Pa r a com eça r , o p r óp r io n ú m er o d e célu la s , em ca d a u m a d a s qu a is h á u m con ju n t o
com p let o d e gen es , a s s om b r a a im a gin a çã o: cer ca d e 9 0 0 m ilh ões d e m ilh ã o p a r a u m u r s o m a ch o
gr a n d e. Se você a lin h a s s e tod a s a s célu la s d e u m ú n ico u r s o p ola r p a r a qu e for m a s s em u m a fileir a ,
esta faria a viagem de ida e volta da Terra à Lua com facilidade. Estas células são de duzentos tipos
d ifer en tes , es s en cia lm en te a s m es m a s d u zen t a s p a r a t od os os m a m ífer os : célu la s m u s cu la r es ,
célu la s n er vos a s , célu la s ós s ea s , célu la s ep itelia is e a s s im p or d ia n t e. Célu la s d e qu a lqu er u m
d es tes t ip os d ifer en tes s ã o r eu n id a s p a r a for m a r os t ecid os : o t ecid o m u s cu la r , o t ecid o ós s eo e

15
assim por diante. Todos os tipos diferentes de células contêm as instruções genéticas necessárias
para fabricar qualquer um destes tipos de células. Somente aqueles genes apropriados a um tipo de
t ecid o em p a r t icu la r s ã o a t iva d os . E s t a é a r a zã o p ela qu a l os d ifer en tes tecid os s ã o d e for m a e
t a m a n h o d iver s os . E o m a is in t er es s a n te é qu e os gen es a t iva d os n a s célu la s d e u m t ip o p a r t icu la r
fa zem com qu e es t a s con s t it u a m t ecid os com for m a s p a r t icu la r es . Os os s os n ã o s ã o m a s s a s
d is for m es d e t ecid o d u r o e r ígid o. Os os s os t êm for m a s p a r t icu la r es , for m a n d o h a s t es oca s ,
rolamentos e encaixes, espinhaços e esporões. As células são programadas, pelos genes ativados em
s eu in ter ior , p a r a com p or t a r -s e com o s e s ou b es s em on d e es t ã o r ela t iva m en t e à s s u a s célu la s
vizin h a s , p or is t o con s t it u em tecid os n a for m a d o lób u lo d a or elh a e d a s vá lvu la s cor on á r ia s , d a s
lentes oculares e dos músculos do esfíncter.
A com p lexid a d e d e u m or ga n is m o com o o d o u r s o p ola r é con s t it u íd a p or m u it a s ca m a d a s . O
cor p o é u m con ju n t o com p lexo d e ór gã os p r ecis a m en t e for m a d os , com o, p or exem p lo, fíga d o, r in s e
os s os . Ca d a ór gã o é u m a con s t r u çã o com p lexa er igid a com t ecid os p a r t icu la r es cu jos t ijolos
fu n d a m en t a is s ã o a s célu la s , m u it a s vezes d is p os t a s em ca m a d a s ou p la ca s , m a s m u it a s vezes
também como massas sólidas. Em uma escala muito menor, cada célula tem uma estrutura interior
a lt a m en te com p lexa d e m em b r a n a s d ob r á veis . E s t a s m em b r a n a s , e a á gu a con t id a en t r e ela s ,
formam o cenário para reações químicas intricadas de tipos numerosos e diferentes. Uma fábrica de
p r od u t os qu ím icos qu e p er t en ça à ICI (Im p er ia l Ch em ica l In d u s t r ies ) ou à Un ion Ca r b id e p od e ter
cen ten a s d e r ea ções qu ím ica s d is t in t a s ocor r en d o em s eu in ter ior . E s t a s r ea ções qu ím ica s s er ã o
m a n t id a s s ep a r a d a m en te u m a d a s ou t r a s p ela s p a r ed es d os fr a s cos , t u b os d e en s a io, e a s s im p or
d ia n t e. Um a célu la viva p od e ter u m n ú m er o s im ila r d e r ea ções qu ím ica s em a n d a m en t o em s eu
in t er ior s im u lt a n ea m en te. De cer t o m od o, a s m em b r a n a s d e u m a célu la s ã o com o os fr a s cos e
t u b os d e vid r o d o la b or a t ór io, m a s a a n a logia n ã o é b oa p or d ois m ot ivos . Pr im eir o, em b or a m u it a s
d a s r ea ções qu ím ica s ocor r a m en t r e a s m em b r a n a s , u m b om n ú m er o d ela s ocor r e n o interior d a
substância que constitui a própria membrana. Segundo, existe um modo mais importante pelo qual
a s d iver s a s r ea ções s ã o m a n t id a s s ep a r a d a m en te. Ca d a r ea çã o é ca t a lis a d a p or s u a p r óp r ia en zim a
particular.
Um a en zim a é u m a m olécu la m u it o gr a n d e cu ja for m a t r id im en s ion a l a celer a u m t ip o
p a r t icu la r d e r ea çã o qu ím ica qu e for n ece u m a s u p er fície qu e en cor a ja es t a r ea çã o. Com o o qu e é
im p or t a n t e n a s m olécu la s b iológica s é s u a for m a t r id im en s ion a l, p od em os con s id er a r u m a en zim a
com o u m a gr a n d e m á qu in a d e fa b r ica r fer r a m en ta s , cu id a d os a m en te p r ojet a d a p a r a cr ia r u m a
p r od u çã o em lin h a d e m olécu la s com u m a for m a p a r t icu la r . Qu a lqu er célu la , p or t a n t o, p od e con ter
cen ten a s d e r ea ções qu ím ica s s ep a r a d a s ocor r en d o em s eu in ter ior s im u lt â n ea e s ep a r a d a m en te,
n a s s u p er fícies d a s d iver s a s m olécu la s d e en zim a s . As r ea ções qu ím ica s p a r t icu la r es qu e ocor r em
em uma célula em especial são determinadas pelos tipos particulares de moléculas enzimáticas que
es t ã o p r es en tes em gr a n d e n ú m er o. Ca d a m olécu la d e en zim a , in clu s ive a s u a for m a qu e é m u it o
im p or t a n t e, é m on t a d a s ob a in flu ên cia d eter m in ís t ica d e u m gen e p a r t icu la r . Pa r a s er es p ecífico, a
s eqü ên cia p r ecis a d a s d iver s a s cen ten a s d e let r a s d e cód igo n os gen es d eter m in a , p or m eio d e u m
con ju n t o d e r egr a s in teir a m en te con h ecid a s (o cód igo gen ét ico), a s eqü ên cia d e a m in oá cid os n a
m olécu la d e en zim a . Tod a m olécu la d e en zim a é u m a ca d eia lin ea r d e a m in oá cid os , e t od a a ca d eia
lin ea r d e a m in oá cid os en r os ca -s e es p on t a n ea m en te, for m a n d o u m a es t r u t u r a t r id im en s ion a l ú n ica
e p a r t icu la r com o u m n ó, n o qu a l p a r t es d a ca d eia for m a m elos com ou t r a s p a r t es d a ca d eia . A
es t r u t u r a t r id im en s ion a l exa t a do nó é d eter m in a d a p ela s eqü ên cia u n id im en s ion a l d os

16
aminoácidos, e, portanto pela seqüência unidimensional de letras de código no gene. E assim as
reações químicas que ocorrem em uma célula são determinadas pelos genes que são ativados.
O qu e, en t ã o, d eter m in a qu e gen es s er ã o a t iva d os em u m a célu la p a r t icu la r ? A r es p os t a s ã o
os p r od u t os qu ím icos qu e já es t ã o p r es en tes n a célu la . Há a qu i u m elem en to d o p a r a d oxo ovo-
ga lin h a , m a s es te n ã o é in s u p er á vel. A s olu çã o d o p a r a d oxo é, n a ver d a d e, m u it o s im p les em
p r in cíp io, em b or a com p lica d o em s eu s d et a lh es . É a s olu çã o qu e os en gen h eir os d e com p u ta d or es
con h ecem com o bootstrapping (o “p r in cíp io d o cor d ã o d e s a p a t os ”). Qu a n d o com ecei a u t iliza r p ela
primeira vez os com p u t a d or es n os a n os 6 0 , t od os os p r ogr a m a s t in h a m d e s er ca r r ega d os p or m eio
d e fit a s d e p a p el. (Os com p u t a d or es a m er ica n os d o m es m o p er íod o u s a va m m u it a s vezes ca r t ões
p er fu r a d os , m a s o p r in cíp io er a o m es m o.) An t es qu e você p u d es s e ca r r ega r a fit a p r in cip a l d e u m
p r ogr a m a s ér io, você t in h a qu e ca r r ega r u m p r ogr a m a m en or ch a m a d o b oots tra p loa d er (ca r r ega d or
d o [p r in cíp io d o] cor d ã o d e s a p a t os ). O b oots tra p loa d er er a u m p r ogr a m a qu e fa zia a p en a s u m a
cois a : d izer a o com p u t a d or com o ca r r ega r a s fit a s d e p a p el. Ma s – e a qu i es t á o p a r a d oxo ovo-
ga lin h a com o a fit a d o b oots tra p loa d er er a ca r r ega d a ? Nos com p u t a d or es m od er n os , o equ iva len te
do b oots tra p loa d er es t á em b u t id o n a m á qu in a , m a s n a qu eles d ia s d e ou t r or a você t in h a qu e
com eça r a cion a n d o in t er r u p t or es em u m a s eqü ên cia r it u a lm en te p a d r on iza d a . E s t a s eqü ên cia d izia
a o com p u t a d or com o com eça r a ler a p r im eir a p a r te d a fit a d o b oots tra p loa d er. A p r im eir a p a r te
desta fita dizia então ao computador um pouco mais sobre como ler a parte seguinte da fita e assim
p or d ia n t e. Qu a n d o a fit a com p let a d o b oots tra p loa d er t ives s e s id o d iger id a , o com p u t a d or s a b er ia
como ler qualquer fita de papel, e teria se tornado um computador útil.
Qu a n d o u m em b r iã o é for m a d o, u m a ú n ica célu la , o óvu lo fer t iliza d o, d ivid e-s e em d ois , ca d a
u m a d a s d u a s p a r t es d ivid e-s e em qu a t r o, ca d a u m a d a s qu a t r o d ivid e-s e p a r a for m a r oit o, e a s s im
p or d ia n t e. Sã o n eces s á r ia s a p en a s u m a s p ou ca s d ú zia s d e ger a ções p a r a fa zer com qu e o n ú m er o
d e célu la s a t in ja a ca s a d os t r ilh ões , t a m a n h o é o p od er d a d ivis ã o exp on en cia l. Ma s , s e is t o fos s e
t u d o, os t r ilh ões d e célu la s s er ia m t od a s igu a is . Com o, a o in vés d is t o, a s célu la s s e d ifer en cia m
(p a r a u s a r u m t er m o técn ico) p a r a for m a r a s célu la s d o fíga d o, a s célu la s d os r in s , a s célu la s d os
músculos e a s s im p or d ia n t e, ca d a u m a com gen es e en zim a s d ifer en tes a t iva d a s ? Pelo p r in cíp io d o
cor d ã o d os s a p a t os , e ele fu n cion a d a s egu in te m a n eir a . E m b or a o óvu lo a s s em elh e-s e a u m a
esfera, ele na verdade possui polaridade em sua química interna. Ele tem uma parte superior e uma
p a r t e in fer ior e, em m u it os ca s os , u m a p a r t e fr on t a l e u m a p a r te t r a s eir a (e, p or t a n t o u m la d o
d ir eit o e u m la d o es qu er d o) t a m b ém . E s t a s p ola r id a d es m a n ifes ta m -s e n a for m a d e gr a d ien t es d e
s u b s t â n cia s qu ím ica s . As con cen t r a ções de a lgu m a s s u b s t â n cia s qu ím ica s a u m en t a m
con s t a n t em en t e qu a n d o você p er cor r e o óvu lo a p a r t ir d a p a r t e fr on t a l em d ir eçã o à p a r t e d e t r á s , e
ou t r a s con cen t r a ções com p or t a m -s e d a m es m a for m a qu a n d o você s e m ove d a p a r t e s u p er ior p a r a
a p a r t e in fer ior . E s t es gr a d ien tes in icia is s ã o b a s t a n t e s im p les , m a s s u ficien t es p a r a for m a r o
primeiro estágio no funcionamento do princípio do cordão dos sapatos5 .
Qu a n d o o óvu lo d ivid iu -s e em d iga m os , 3 2 célu la s – is t o é, a p ós cin co d ivis ões –, a lgu m a s
d es t a s 3 2 célu la s t er ã o m a is d o qu e s u a cot a n or m a l d e s u b s t â n cia s qu ím ica s n a s u a p a r t e
s u p er ior , ou tr a s t er ã o m a is d o qu e a s u a cot a n or m a l d e s u b s t â n cia s qu ím ica s n a s u a p a r te
in fer ior . As célu la s p od em t a m b ém es t a r d es equ ilib r a d a s r ela t iva m en te à s con cen t r a ções d e
s u b s t â n cia s qu ím ica s en t r e a s u a p a r t e d a fr en te e a s u a p a r t e d e t r á s , cr ia n d o u m gr a d ien te n es t a
direção. Estas diferenças são suficientes para fazer com que combinações diferentes de genes sejam
a t iva d a s em célu la s d ifer en t es . Por t a n to, com b in a ções d ifer en tes d e en zim a s es t a r ã o p r es en t es n a s

17
células de partes diferentes do embrião inicial. Este mecanismo fará com que combinações
diferentes de genes adicionais sejam ativadas em células diferentes. Portanto, as linhagens de
células divergem ao invés de permanecerem idênticas aos seus clones ancestrais dentro do embrião.
E s t a s d iver gên cia s s ã o m u it o d ifer en t es d a s d iver gên cia s en tr e es p écies s ob r e a s qu a is
fa la m os a n t er ior m en te. E s t a s d iver gên cia s celu la r es s ã o p r ogr a m a d a s e p r ogn os t ica d a s com
d et a lh es , en qu a n t o a s d iver gên cia s en t r e a s es p écies s ã o r es u lt a d os for t u it os d e a cid en tes
geogr á ficos e er a m im p r ed izíveis . Ma is a in d a , qu a n d o a s es p écies d iver gem , os p r óp r ios gen es
d iver gem , o qu e ch a m ei im a gin a t iva m en t e d e “o lon go a d eu s ”. Qu a n d o a s lin h a gen s d e célu la s n o
interior d e u m em b r iã o d iver gem , a m b a s a s d ivis ões r eceb em os m es m os gen es – t od os eles . Ma s a s
d ifer en tes célu la s r eceb em com b in a ções d ifer en tes d e p r od u tos qu ím icos , a s qu a is a t iva m
combinações diferentes de genes, e alguns genes trabalham para ativar ou desativar outros genes. E
a s s im o p r in cíp io d o cor d ã o d e s a p a t os con t in u a op er a n d o, a t é qu e ten h a m os u m r ep er t ór io
completo de diferentes tipos de células.
O em b r iã o em d es en volvim en t o n ã o s e d ifer en cia a p en a s em u m p a r d e cen t en a s d e t ip os
diferentes de células. Ele também passa por transformações dinâmicas elegantes na forma interna e
exter n a . Ta lvez a m a is d r a m á t ica d es t a s t r a n s for m a ções s eja u m a d a s p r im eir a s : o p r oces s o
con h ecid o com o ga s t r u la çã o. O em in en t e em b r iologis t a Lewis Wolp er t ch egou a a fir m a r : “Nã o é o
n a s cim en t o, o ca s a m en t o ou a m or t e, m a s s im a ga s t r u la çã o qu e é ver d a d eir a m en te o p er íod o m a is
importante em sua vida”. O que acontece na gastrulação é que uma bola oca de células transforma-
s e em u m a t a ça com u m r eves t im en t o in t er n o. E s s en cia lm en te t od a s a s em b r iologia s n o r ein o
a n im a l s ofr em es te m es m o p r oces s o d e ga s t r u la çã o. É a b a s e u n ifor m e s ob r e a qu a l r ep ou s a a
d iver s id a d e d e em b r iologia s . Men cion o a qu i a ga s t r u la çã o com o a p en a s u m exem p lo – u m exem p lo
p a r t icu la r m en t e d r a m á t ico – d e u m t ip o d e m ovim en t o in ces s a n t e, s em elh a n t e à feit u r a d e u m
origami, d e ca m a d a s com p let a s d e célu la s qu e é m u it a s vezes ob s er va d o n o d es en volvim en to
embrionário.
Ao fin a l d a p er for m a n ce d ign a d e u m vir t u os e d o origami; d ep ois d e n u m er os a s d ob r a d u r a s
em s i m es m a , es t ir a m en t os , for m a çã o d e volu m es e es t ica m en t os d e ca m a d a s d e célu la s ; d ep ois d e
m u it os cr es cim en t os d ifer en cia is d in a m ica m en te or qu es t r a d os d e p a r tes d o em b r iã o à cu s t a d e
ou t r a s p a r t es ; d ep ois d a d ifer en cia çã o em cen ten a s d e t ip os d e célu la s qu ím ica e fis ica mente
es p ecia liza d a s ; qu a n d o o n ú m er o d e célu la s a t in giu a ca s a d os t r ilh ões , o p r od u t o fin a l é u m b eb ê.
Não, mesmo o bebê não é o final, porque o crescimento por completo do indivíduo – com novamente
a lgu m a s p a r t es cr es cen d o m a is r á p id o d o qu e a s ou t r a s –, p a s s a n d o p ela m a t u r id a d e e ch ega n d o à
velhice, deveria ser visto como uma extensão do mesmo processo embriológico: a embriologia total.
Os in d ivíd u os va r ia m em r a zã o d a s d ifer en ça s n os d et a lh es qu a n tit a t ivos d a s u a em b r iologia
t ot a l. Um a ca m a d a d e célu la s p od e cr es cer u m p ou co m a is a n t es d e d ob r a r -s e em s i m es m a , e o
r es u lt a d o é – o qu ê? – u m n a r iz a qu ilin o em vez d e u m n a r iz a r r eb it a d o; p és ch a t os qu e p od em
s a lva r s u a vid a , p ois im p ed em qu e você p r es te o s er viço m ilit a r ; u m a con for m a çã o p a r t icu la r d a
omop la t a qu e o p r ed is p õe a s er u m b om la n ça d or d e la n ça s (ou gr a n a d a s d e m ã o ou b ola s d e
cr íqu ete, d ep en d en d o d a s s u a s cir cu n s t â n cia s ). Algu m a s vezes m u d a n ça s in d ivid u a is n o origami d e
ca m a d a s d e célu la s p od em t er con s eqü ên cia s t r á gica s , com o qu a n d o u m b eb ê n a s ce com cot os n o
lugar dos braços ou das mãos. As diferenças individuais que não se manifestam no origami formado
com ca m a d a s d e célu la s , m a s s ã o p u r a m en te qu ím ica s p od em s er n ã o m en os im p or t a n t es em s u a s

18
conseqüências: uma inabilidade em digerir leite, uma predisposição para a homossexualidade, ou
uma alergia aos amendoins, ou achar que as mangas têm o gosto ruim de aguarrás.
O d es en volvim en t o em b r iôn ico é u m a p er for m a n ce fís ica e qu ím ica m u it o com p lica d a . A
alteração de um detalhe em seu decurso pode ter conseqüências notáveis bem no final da linha. Isto
n ã o é s u r p r een d en te, qu a n d o você lem b r a r o qu ã o im p or t a n t e o p r in cíp io d o cor d ã o d e s a p a t os é
para o processo. Muitas das diferenças no modo pelo qual os indivíduos se desenvolvem são devidas
à s d ifer en ça s d e m eio a m b ien te – fa lt a d e oxigên io ou exp os içã o à t a lid om id a , p or exem p lo. Mu it a s
ou t r a s d ifer en ça s s e d evem a d ifer en ça s n os gen es – n ã o a p en a s n os gen es con s id er a d os
is ola d a m en te, m a s gen es em in t er a çã o com ou t r os gen es , e em in t er a çã o com d ifer en ça s
a m b ien t a is . Um p r oces s o com p lica d o, ca leid os cóp io, qu e ob ed ece in t r ín s eca e r ecip r oca m en te a o
p r in cíp io d o cor d ã o d os s a p a t os , com o é o d es en volvim en t o em b r ion á r io, é r ob u s t o e s en s ível. É
r ob u s t o p or qu e com b a te m u it a s a lt er a ções em p ot en cia l, p a r a p r od u zir u m b eb ê vivo con t r a
chances que algumas vezes parecem ser esmagadoramente contrárias; e ao mesmo tempo é sensível
a a lt er a ções , p ois d ois in d ivíd u os – n em m es m o d ois gêm eos id ên t icos – n ã o s ã o lit er a lm en te
idênticos em todas as suas características.
E a gor a p a s s a m os p a r a o p on t o a o qu a l t u d o is t o n os con d u z. J á qu e a s d ifer en ça s en t r e
in d ivíd u os s e d evem a os gen es (u m a m ed id a qu e p od e s er gr a n d e ou p equ en a ), a s eleçã o n a t u r a l
p od e fa vor ecer a lgu m a s es qu is it ices d o origami em b r iológico ou d a qu ím ica em b r iológica e
d es fa vor ecer ou t r a s . Na m ed id a em qu e s eu b r a ço qu e s er ve p a r a la n ça r la n ça s ou ou t r os ob jet os é
in flu en cia d o p elo gen e, a s eleçã o n a t u r a l p od e fa vor ecê-lo ou d es fa vor ecê-lo. Se s er ca p a z d e la n ça r
b em tem con s eqü ên cia s , n ã o im p or t a qu ã o p equ en a s , n a p r ob a b ilid a d e d e u m in d ivíd u o s ob r eviver
o t em p o s u ficien te p a r a ger a r cr ia n ça s , já qu e a h a b ilid a d e d e la n ça r é in flu en cia d a p elo gen e,
cor r es p on d en t em en te es tes gen es ter ã o u m a ch a n ce m a ior d e p a s s a r p a r a a p r óxim a ger a çã o.
Qu a lqu er in d ivíd u o p od e m or r er p or r a zões qu e n ã o t êm n a d a a ver com s u a h a b ilid a d e d e a t ir a r
u m a la n ça . Ma s u m gen e qu e ten d e a fa zer in d ivíd u os m elh or es n o la n ça m en to d e la n ça s qu a n d o
es t á p r es en te d o qu e qu a n d o es t á a u s en t e h a b it a r á m u it os cor p os , b on s e m a u s , d u r a n t e m u it a s
ger a ções . Do p on t o d e vis t a d o gen e p a r t icu la r , a s ou t r a s ca u s a s d e m or te n ã o s ã o leva d a s em
con t a . Olh a n d o d a p er s p ect iva d e u m gen e, h á a p en a s a con s t a t a çã o d e lon go p r a zo d e u m r io d e
ADN fluindo através das gerações, enquanto ele está apenas temporariamente hospedado em corpos
p a r t icu la r es , e a p en a s tem p or a r ia m en te d ivid in d o u m cor p o com ou t r os gen es qu e p od em s er b em -
sucedidos ou malsucedidos.
A lon go p r a zo, o r io fica ch eio d e gen es qu e s ã o b on s n a a r t e d a s ob r evivên cia p or d iver s a s
r a zões : u m a h a b ilid a d e levem en te a p er feiçoa d a d e a t ir a r la n ça s , u m a h a b ilid a d e levem en te
a p er feiçoa d a d e p r ova r ven en o, ou qu a lqu er ou t r a h a b ilid a d e. Gen es qu e, n a m éd ia , s ã o m en os
b on s n a a r t e d e s ob r eviver p or qu e eles ten d em a ca u s a r u m a vis ã o a s t igm á t ica n os cor p os
sucessivos qu e h a b it a m , qu e s ã o, p or ta n t o a t ir a d or es d e la n ça m en os b em -s u ced id os ; ou p or qu e
eles t om a m os cor p os s u ces s ivos qu e h a b it a m m en os a t r a en tes e, p or t a n t o com p r ob a b ilid a d es
menores de acasalar – tais genes tenderão a desaparecer do rio genético. Em tudo isto, lembre-se do
p on t o qu e leva n t a m os a n t er ior m en te: o d e qu e os gen es qu e s ob r evivem n o r io s er ã o a qu eles qu e
s ã o b on s n a a r t e d a s ob r evivên cia n o m eio a m b ien t e m éd io d a es p écie, e t a lvez o a s p ect o m a is
im p or t a n t e d es te m eio a m b ien te m éd io s eja os ou t r os gen es d a es p écie; os ou t r os gen es com os
qu a is u m gen e tem a p r ob a b ilid a d e d e com p a r t ilh a r u m cor p o: os ou t r os gen es qu e n a d a m a t r a vés
do tempo geológico no mesmo rio.

19
2
TODA A ÁFRICA E SUAS PROGÊNIES

Mu it a s vezes p en s a m os qu e é in teligen te d izer qu e a ciên cia n ã o é m a is d o qu e n os s o m it o d e


or igem m od er n o. Os ju d eu s t in h a m Ad ã o e E va , os s u m ér ios , Ma r d u k e Gilga m es h , os gr egos , Zeu s
e os deuses do Olimpo, os nórdicos, o Valhala. O que é a evolução, dizem algumas pessoas espertas,
s en ã o o n os s o equ iva len te m od er n o d os d eu s es e d os h er óis ép icos , n em m elh or ou p ior , n em m a is
ver d a d eir a ou m a is fa ls a ? Há u m a filos ofia d e s a lã o elega n te ch a m a d a r ela tivis m o cu lt u r a l qu e
a fir m a , n a s u a ver s ã o r a d ica l, qu e a ciên cia n ã o t em m a is d ir eit o em a fir m a r a ver d a d e d o qu e o
m it o t r ib a l: a ciên cia é a p en a s a m it ologia fa vor ecid a p or n os s a t r ib o ocid en t a l m od er n a . Um a vez
fu i p r ovoca d o p or u m colega a n t r op ólogo e coloqu ei a qu es t ã o cla r a m en te, d o m od o qu e s e s egu e:
s u p on h a qu e exis te u m a t r ib o, d is s e eu , qu e a cr ed ita qu e a Lu a é u m a ca b a ça velh a la n ça d a a os
céu s , p en d u r a d a for a d e a lca n ce u m p ou co a cim a d o t op o d a s á r vor es . Você a fir m a r ea lm en te qu e
n os s a ver d a d e cien t ífica – qu e a fir m a qu e a Lu a es t á a 3 8 2 m il qu ilôm et r os a fa s t a d a e tem u m
qu a r t o d o d iâ m et r o d a Ter r a – n ã o é m a is ver d a d eir a d o qu e a ca b a ça d a tr ib o? “S im ”, d is s e o
a n t r op ólogo. “Nós a p en a s fom os cr ia d os em u m a cu lt u r a qu e vê o m u n d o d e u m m od o cien t ífico.
E les for a m cr ia d os p a r a ver o m u n d o d e ou t r o m od o. Nen h u m d es t es m od os é m a is ver d a d eir o d o
que o outro”.
Aponte-me um relativista cultural a 10 quilômetros de distância e lhe mostrarei um hipócrita.
Aviões con s t r u íd os d e a cor d o com p r in cíp ios cien t íficos fu n cion a m . E les m a n têm -s e n o a r e o leva m
a o s eu d es tin o es colh id o. Aviões con s t r u íd os d e a cor d o com es p ecifica ções t r ib a is ou m it ológica s ,
t a is com o os a viões d e im it a çã o d os cu lt os d e ca r r ega r n en t o 6 n a s cla r eir a s d a s s elva s ou a s a s a s
cola d a s com cer a d e a b elh a d e Íca r o, n ã o fu n cion a m 7 . S e você es tiver voa n d o p a r a u m con gr es s o
in t er n a cion a l d e a n t r op ólogos ou d e cr ít icos lit er á r ios , a r a zã o p ela qu a l vocêp r ova velm en te ch ega r á
lá – a r a zã o p ela qu a l você n ã o s e es b or r a ch a r á em u m ca m p o cu lt iva d o – é qu e u m a m u lt id ã o d e
en gen h eir os ocid en t a is cien t ifica m en te t r ein a d os r ea lizou os cá lcu los cor r et a m en te. A ciên cia
ocid en t a l, com b a s e n a evid ên cia con fiá vel d e qu e a Lu a or b it a em t or n o d a Ter r a a u m a d is t â n cia
d e 3 8 2 m il qu ilôm et r os , con s egu iu coloca r p es s oa s em s u a s u p er fície. A ciên cia t r ib a l, a cr ed it a n d o
que a Lua estava um pouco acima do topo das árvores, nunca chegará a tocá-la, exceto em sonhos.
Ra r a s s ã o a s oca s iões em qu e m in is t r o u m a p a les t r a p op u la r s em qu e u m es p ecta d or n ã o m e
a p r es en te d e for m a b r ilh a n t e a lgu m a cois a n a m es m a lin h a d e m eu colega a n t r op ólogo, e is t o em
geral provoca um murmúrio e movimentos de aprovação com as cabeças por parte dos demais. Sem
d ú vid a os qu e a p r ova m s en t em -s e b on s , lib er a is e n ã o r a cis t a s . Um a a fir m a çã o p r ovoca d or a a in d a
m a is s egu r a é: “Fu n d a m en t a lm en te, s u a cr en ça n a evolu çã o r ed u z-s e à fé, e p or t a n t o n ã o é m elh or
d o que a crença de alguém no Jardim do Éden”.
Tod a t r ib o t em s eu m it o d e or igem – s u a h is t ór ia p a r a exp lica r o u n iver s o, a vid a e a
h u m a n id a d e. Há u m s en t id o n o qu a l a ciên cia r ea lm en te for n ece o equ iva len t e d is t o, p elo m en os
p a r a a p a r t e in s t r u íd a d a n os s a s ocied a d e m od er n a . A ciên cia p od e a té s er d es cr it a com o u m a
r eligiã o, e eu p u b liqu ei, n ã o d e m od o in t eir a m en te jocos o, u m a d efes a cu r t a d a ciên cia com o u m
t em a a p r op r ia d o p a r a a s a u la s d e ed u ca çã o r eligios a 8 . (Na In gla ter r a , a ed u ca çã o r eligios a é u m a

20
part e ob r iga tór ia d o cu r r ícu lo es cola r , a o con t r á r io d os E s t a d os Un id os , on d e ela es t á b a n id a p or
m ed o d e ofen d er qu a lqu er u m a d a s m ú lt ip la s cr en ça s m u t u a m en te in com p a t íveis .) A ciên cia
com p a r t ilh a com a r eligiã o a p r eten s ã o d e r es p on d er à s qu es t ões p r ofu n d a s s ob r e a s or igen s , a
n a t u r eza d a vid a e o cos m os . Ma s a s em elh a n ça a ca b a a qu i. As cr en ça s cien t ífica s s ã o a p oia d a s
p ela evid ên cia , e ela s ob têm r es u lt a d os . Mit os e cr en ça s n ã o s ã o a p oia d os p ela s evid ên cia s e n ã o
obtêm resultados.
De t od os os m it os d e or igem , a h is t ór ia ju d a ica d o J a r d im d o É d en é t ã o in flu en te em n os s a
cu lt u r a qu e legou s eu n om e a u m a im p or t a n t e teor ia s ob r e n os s a a n ces t r a lid a d e, a teor ia d a “E va
africana”. Estou dedicando este capítulo à Eva africana em parte
p or qu e ele m e p er m it ir á d es en volver a a n a logia d o r io d e ADN, m a s t a m b ém p or qu e qu er o
contrastá-la , com o h ip ótes e cien tífica , com a legen d á r ia m a t r ia r ca d o J a r d im d o É d en . S e eu
con s egu ir , você a ch a r á a ver d a d e m a is in t er es s a n te, ta lvez m es m o m a is p oet ica m en te com oved or a ,
d o qu e o m ito. Com eça r em os com u m exer cício d e r a ciocín io p u r o. S u a r elevâ n cia em b r eve fica r á
clara.
Você tem d ois p a is , qu a t r o a vós , oit o b is a vós e a s s im p or d ia n t e. A ca d a ger a çã o o n ú m er o d e
a n ces t r a is d ob r a . Volt e p a r a t r á s g ger a ções e o n ú m er o d e a n ces t r a is s er á 2 m u lt ip lica d o p or s i
mesmo g vezes : 2 eleva d o à p ot ên cia g. E xcet o qu e, s em d eixa r a s u a p olt r on a , você p od e ver
r a p id a m en te qu e n ã o p od e s er a s s im . Pa r a con ven cer -n os d is t o, t em os a p en a s qu e volt a r u m p ou co
n o p a s s a d o – d iga m os , a t é o t em p o d e J es u s , qu a s e exa t a m en te 2 m il a n os a t r á s . S e s u p u s er m os
con s er va d or a m en te qu a t r o ger a ções p or s écu lo – is t o é, qu e a s p es s oa s p r ocr ia m n a m éd ia com a
id a d e d e 2 5 a n os – 2 m il a n os s ign ifica m u m a s m er a s oiten t a ger a ções . O n ú m er o r ea l é
p r ova velm en te m a ior d o qu e is t o (a té r ecen tem en te, m u it a s m u lh er es p r ocr ia va m m u it o joven s ),
m a s is t o é a p en a s u m cá lcu lo feit o s em s a ir d a p olt r on a , e a qu es tã o n ã o d ep en d e d es tes d eta lh es .
Dois multiplicado por si mesmo oitenta vezes é um número formidável, um 1 seguido de 24 zeros, 1
t r ilh ã o d e t r ilh ões a m er ica n os . Você teve 1 m ilh ã o d e m ilh ões d e m illiões d e m ilh ões d e a n ces t r a is
que foram contemporâneos de Jesus, e eu também! Mas a população total do mundo naquela época
era uma fração de uma fração desprezível do número de ancestrais que acabamos de calcular.
Ob via m en te com etem os u m er r o em a lgu m lu ga r , m a s on d e? Fizem os o cá lcu lo cor r et a m en te.
A única coisa errada que consideramos foi a nossa suposição sobre a duplicação a cada geração. De
fa t o, es qu ecem os qu e os p r im os ca s a m en t r e s i. S u p u s qu e n ós t od os t em os oit o b is a vós . Ma s
qu a lqu er cr ia n ça fr u t o d e u m ca s a m en t o en t r e p r im os d e p r im eir o gr a u t em a p en a s s eis b is a vós ,
p ois os a vós com p a r t ilh a d os d os p r im os s ã o d e d ois m od os d is t in t os b is a vós d a cr ia n ça . Você p od e
p er gu n t a r : “E d a i?” As p es s oa s oca s ion a lm en te ca s a m com s eu s p r im os (a es p os a d e Ch a r les
Da r win , E m m a Wed gwood , er a s u a p r im a d e p r im eir o gr a u ), m a s s egu r a m en te is t o n ã o a con t ece
com fr eqü ên cia s u ficien te p a r a fa zer d ifer en ça ? S im , a con t ece, p ois “p r im os ” p a r a os n os s os
p r op ós it os in clu i p r im os d e s egu n d o gr a u , qu in t o gr a u , d écim o s ext o gr a u e a s s im p or d ia n t e.
Quando você conta primos tão distantes assim, todo casamento é um casamento entre primos. Você
a lgu m a s vezes ou ve p es s oa s va n glor ia n d o-s e d e s er em p r im os d is t a n t es d a r a in h a , m a s is t o é
b a s t a n t e p om p os o d a p a r t e d ela s , p ojs t od os n ós s om os p r im os d is t a n t es d a r a in h a , e tod os os
d em a is , e d e m a is m a n eir a s d o qu e é p os s ível con t a r . A ú n ica cois a es p ecia l s ob r e a r ea leza e os
a r is t ocr a t a s é qu e eles p od em fa zer a con t a gem exp licit a m en te. Com o d is s e o d écim o qu a r t o con d e
d e Hom e qu a n d o foi zom b a d o p or ca u s a d e s eu t ít u lo p or u m op on en te p olítico: “Im a gin o qu e o S r .
Wilson seja o décimo quarto Sr. Wilson”.

21
A conseqüência de tudo isto é que somos primos nuito mais próximos uns dos outros do que
normalmente percebemos, e temos muito menos ancestrais do que os cálculos simples sugerem.
Procurando fazer com que uma estudante seguisse este raciocínio, uma vez lhe pedi que fizesse
uma estimativa razoável de qUiIDto tempo atrás nosso ancestral comum mais recente poderia ter
vivido. Olhando duramente para mim, ela retrucou sem hesitar, com uma voz lenta e sotaque rural:
“Na ép oca d os m a ca cos ”. Um s a lt o in t u it ivo d es cu lp á vel, m a s qu e es t á a p r oxim a d a m en te er r a d o em
1 0 m il p or cen t o. E le s u ger ir ia u m a s ep a r a çã o m ed id a em m ilh ões d e a n os . A ver d a d e é qu e o
a n ces t r a l m a is r ecen te qu e eu e ela com p a r t ilh a m os p r ova velm en te ter ia vivid o h á n ã o m a is d o qu e
d ois s écu los , p r ova velm en t e b em d ep ois d e Gu ilh er m e, o Con qu is t a d or . E , m a is a in d a , n ós
certamente éramos primos de muitas maneiras distintas simultaneamente.
O m od elo d e a n ces t r a lid a d e qu e con d u ziu a o n os s o cá lcu lo er r on ea m en te in fla cion a d o d o
n ú m er o d e a n ces t r a is er a con s t it u íd o p or u m a á r vor e qu e s e r a m ifica s em p a r a r , r a m ifica n d o-s e e
t or n a n d o a r a m ifica r -s e in fin it a s vezes . Vir a d o d e ca b eça p a r a b a ixo, e igu a lm en te er r a d o, es t á o
modelo da árvore da descendência. Um indivíduo típico tem dois filhos, quatro netos, oito bisnetos e
a s s im p or d ia n t e a té a t in gir em u n s p ou cos s écu los os im p os s íveis t r ilh ões d e d es cen d en tes . Um
modelo bem mais realista da ancestralidade e da descendência é o modelo do rio de genes, que intro
d u zim os n o ca p ít u lo a n t er ior . Con t id os p ela s m a r gen s , os gen es for m a m u m a cor r en te qu e flu i
s em p r e a t r a vés d os tem p os . A cor r en te for m a r ed em oin h os s ep a r a d os qu e s e ju n t a m n ova m en te à
m ed id a qu e os gen es a t r a ves s a m o r io d o t em p o. Ret ir e u m b a ld e ch eio em in t er va los n os p on t os
es p a ça d os a o lon go d o com p r im en t o d o r io. Pa r es d e m olécu la s n a á gu a d o b a ld e ter ã o s id o
companheir a s a n t es , d u r a n t e o s eu p r ogr es s o r io a b a ixo, e ela s s er ã o com p a n h eir a s m a is u m a vez.
E la s t a m b ém es t iver a m b a s t a n t e s ep a r a d a s n o p a s s a d o, e es t a r ã o b a s t a n t e s ep a r a d a s n ova m en te.
É d ifícil t r a ça r os p on t os d e con t a t o, m a s p od em os es t a r m a t em a t ica m en te cer tos d e qu e o con t a t o
ocorre – m a tem a t ica m en te cer t os d e qu e s e d ois gen es es t ã o for a d e con t a t o em u m p on t o
particular, não teremos de viajar muito rio abaixo ou rio acima até que eles se toquem novamente.
Você p od e n ã o s a b er qu e é p r im a d e s eu m a r id o, m a s é es t a t is t ica m en te p r ová vel qu e você
n ã o t en h a d e volt a r m u it o a t r á s n a s u a a n ces t r a lid a d e a té qu e en con t r e u m p on t o d e ju n çã o com a
lin h a gem d ele. Olh a n d o n a ou t r a d ir eçã o, n a d ir eçã o d o fu t u r o, p od e p a r ecer ób vio qu e você ten h a
u m a b oa ch a n ce d e com p a r t ilh a r d es cen d en tes com s eu m a r id o ou es p os a . Ma s a qu i es t á u m
p en s a m en t o m u it o m a is a t r a en te. Na p r óxim a vez em qu e você es t iver com u m gr u p o gr a n d e d e
pessoas – d iga m os , n u m a s a la d e con cer t o ou n u m jogo d e fu teb ol –, olh e p a r a a a u d iên cia e r eflita
sobre o s egu in t e: s e você t iver qu a is qu er d es cen d en t es n o fu t u r o d is t a n t e, h á p r ova velm en te
p es s oa s n a m es m a s a la d e con cer t o cu ja m ã o você p od er ia a p er t a r com o co-a n ces t r a l d e s eu s
fu t u r os d es cen d en tes . Co-a vós d a s m es m a s cr ia n ça s u s u a lm en te s a b em qu e s ã o co-a n ces t r a is , e
is t o d eve d a r -lh es u m cer t o s en t im en t o d e a fin id a d e, n ã o im p or t a n d o s e eles s e r ela cion a m b em ou
não pessoalmente. Eles podem olhar uns para os outros e dizer: “Bem, posso não gostar muito dele,
m a s s eu ADN es t á m is t u r a d o com o m eu n o n os s o n et o com u m , e p od em os es p er a r com p a r t ilh a r
d es cen d en tes n o fu t u r o, m u it o t em p o d ep ois d e ter m os p a r t id o. Cer t a m en te is to cr ia u m elo en t re
n ós ”. Ma s m eu p on t o é qu e, s e você é a b en çoa d o com d es cen d en t es d is t a n tes , a lgu n s d os p er feit os
es t r a n h os n a s a la d e con cer t o p r ova velm en te s er ã o s eu s co-a n ces t r a is . Você p od e exa m in a r o
auditório e especular sobre quais indivíduos, homens ou mulheres, estão destinados a compartilhar
s eu s d es cen d en tes e qu a is n ã o es t ã o. E u e você, n ã o im p or t a qu em você é ou a s u a cor e s exo,

22
podemos muito bem ser co-ancestrais. Seu ADN pode estar destinado a misturar-se com o meu.
Parabéns!

S u p on h a a gor a qu e via jem os p a r a t r á s n u m a m á qu in a d o t em p o, t a lvez em d ir eçã o a u m a


m u lt id ã o n o Colis eu , ou m a is p a r a t r á s , p a r a u m d ia d e com p r a s n o mercado em Ur, ou ainda mais
p a r a t r á s . E xa m in e a m u ltid ã o, exa t a m en te com o im a gin a m os p a r a a n os s a a u d iên cia m od er n a n a
sala de concerto. Perceba que você pode separar estes indivíduos falecidos há muito tempo em duas
e s om en te d u a s ca t egor ia s : a qu eles qu e s ã o s eu s a n ces t r a is e a qu eles qu e n ã o s ã o. Is t o é b a s t a n t e
ób vio, m a s a gor a ch ega m os a u m a ver d a d e n ot á vel. Se s u a m á qu in a d o t em p o o levou
s u ficien tem en t e p a r a o p a s s a d o, você p od e d ivid ir os in d ivíd u os qu e en con t r a r n a qu eles qu e s ã o os
a n ces t r a is d e t od o s er h u m a n o vivo em 1 9 9 5 e n a qu eles qu e n ã o s ã o os a n ces tr a is d e n in gu ém qu e
es t á vivo em 1 9 9 5 . Nã o h á in t er m ed iá r ios . Tod o in d ivíd u o s ob r e qu em você p u s er os olh os qu a n d o
d e em b a r ca r d a s u a m á qu in a d o t em p o ou é u m a n ces t r a l h u m a n o u n iver s a l ou n ã o é a n ces tr a l d e
ninguém.
E s t e r a ciocín io é ca t iva n te, m a s é t r ivia lm en te fá cil d e p r ova r . Tu d o o qu e você t em d e fa zer é
m over s u a m á qu in a d o t em p o m en t a l p a r a u m t em p o p a s s a d o a b s u r d a m en te lon go: d iga m os , p a r a
3 5 0 m ilh ões d e a n os a t r á s , qu a n d o n os s os a n ces t r a is er a m p eixes com n a d a d eir a s em for m a d e
lób u los e com p u lm ões , em er gin d o d a á gu a e t or n a n d o-s e a n fíb ios . S e u m p eixe p a r t icu la r é m eu
a n ces t r a l, é in con ceb ível qu e ele n ã o s eja s eu a n ces tr a l t a m b ém . S e ele n ã o o fos s e, is t o im p lica r ia
qu e a lin h a gem qu e con d u z a você e a lin h a gem qu e con d u z a m im evolu ír a m in d ep en d en tem en te,
s em r efer ên cia s cr u za d a s , d o p eixe p a s s a n d o p elo a n fíb io, p elo r ép til, p elo m a m ífer o, p ele) p r im a t a ,
p elo m a ca co e p elo h om in íd eo, ter m in a n d o d e m od o t ã o s im ila r qu e p od em os fa la r u m com o ou t r o
e, se formos do sexo oposto, acasalar um com o outro.
Pr ova m os qu e, s e via ja r m os s u ficien tem en te lon ge e p a r a t r á s n o t em p o, t od o in d ivíd u o qu e
en con t r a r m os d eve s er o a n ces t r a l ou d e t od os n ós ou d e n in gu ém . Ma s qu ã o lon ge é
suficientemente longe? Nós claramente não precisamos voltar até os peixes da nadadeiras em forma
d e lób u los – a qu ilo foi o red u ctio a d a b u rd u m –, m a s a t é qu e p on t o d evem os volt a r p a r a t r á s n o
tempo até encontrar um ancestral universal de todo ser humano vivo em 1995? Esta é uma questão
m u it o m a is d ifícil, e é a qu ela qu e d es ejo con s id er a r a s egu ir . E s t a qu es t ã o n ã o p od e s er r es p on d id a
s en t a d o n a p olt r on a . Pr ecis a m os d e in for m a çã o r ea l, m ed id a s d o m u n d o d u r o d os fa t os
particulares.
Sir Ronald Fisher, o formidável geneticista e matemático inglês, que poderia ser considerado o
maior sucessor de Darwin no século XX, assim como o pai da estatística moderna, tinha isto a dizer
em 1930:
“S ã o a p en a s a s b a r r eir a s geogr á fica s e ou t r a s b a r r eir a s a o in ter cu r s o s exu a l en t r e a s d ifer en tes r a ças...
que impedem a humanidade inteira de ter tido, deixando de lado os últimos mil anos, uma ancestralidade
praticamente idêntica. A ancestralidade dos membros de uma mesma nação pode diferir pouco para além
d os ú lt im os qu in h en t os a n os ; p a r a 2 m il a n os a t r á s a s ú n ica s d ifer en ça s qu e p a r ecer ia m t er r es t a d o
s er ia m a qu ela s en tr e r a ça s etn ogr á fica s d is t in t a s ; es t a s ... p od em n a ver d a d e s er extr em a m en te a n t iga s ;
m a s is t o p od er ia s er o ca s o a p en a s s e d u r a n te lon gos p er íod os a d ifu s ã o d o s a n gu e en t r e os gr u p os
separados fosse quase inexistente”.

23
Em termos da nossa analogia do rio, Fisher está, com efeito, utilizando o fato de que os genes
de todos os membros de uma raça geograficamente unida estão fluindo ao longo do mesmo rio. Mas
qu a n d o con s id er a m os os s eu s n ú m eros – qu in h en t os a n os , 2 m il a n os , a a n t igu id a d e d a s ep a r a çã o
d a s d ifer en tes r a ça s – Fis h er d evia es ta r fa zen d o es t im a t iva s r a zoá veis . Os fa t os r eleva n tes n ã o
er a m d is p on íveis n a s u a ép oca . Agor a , com a r evolu çã o d a b iologia m olecu la r , h á u m a qu a n t id a d e
embaraçosa de dados. Foi a biologia molecular que nos deu a carismática Eva africana.
O rio digital não é a única metáfora que tem sido usada. É tentador comparar o ADN em cada
um de nós com uma família bíblica. O ADN é um texto muito longo, escrito, como vimos no capítulo
a n t er ior , em u m a lfa b et o d e qu a t r o let r a s . As let r a s t êm s id o es cr u p u los a m en te cop ia d a s d os
n os s os a n ces t r a is , e a p en a s d os n os s os a n ces t r a is , com u m a fid elid a d e n ot á vel m es m o n o ca s o d e
a n ces t r a is m u it o r em ot os . Dever ia s er p os s ível, com p a r a n d o os t ext os p r es er va d os em p es s oa s
d ifer en tes , r econ s t r u ir s eu p a r en tes co e r em on t a r a u m a n ces t r a l com u m . Pr im os d is t a n t es , cu jo
ADN t eve m a is t em p o p a r a d iver gir – d iga m os , n or u egu es es e a b or ígin es a u s tr a lia n os –, d ever ia m
d ifer ir em u m gr a n d e n ú m er os d e p a la vr a s . Os er u d it os fa zem es te t ip o d e cois a com a s d ifer en tes
ver s ões d os d ocu m en t os b íb licos . In felizm en te, n o ca s o d os a r qu ivos d e ADN, h á u m p equ en o
problema. O sexo.
O s exo é o p es a d elo d o a r qu ivis t a . E m vez d e d eixa r os t ext os a n ces t r a is in t a ctos excet o p or
u m er r o oca s ion a l in evit á vel, o s exo p en et r a d e m od o vigor os o n os a r qu ivos e d es t r ói a s evid ên cia s .
Nen h u m elefa n t e fez ja m a is t a n t o es t r a go em u m a loja d e p or cela n a ch in es a cor n o o s exo t em feit o
es t r a gos n os a r qu ivos d e ADN. Nã o h á n a d a p a r ecid o com is t o n a er u d içã o b íb lica . Ad m it e-s e qu e,
a o p r ocu r a r tr a ça r a s or igen s , d iga m os , d o câ n t ico d e S a lom ã o, u m er u d it o es tá con s cien te d e qu e
es te n ã o é b em o qu e p a r ece s er . O câ n t ico t em p a s s a gen s es t r a n h a m en te d es con exa s , s u ger in d o
qu e ele é n a ver d a d e con s t it u íd o p or fr a gm en t os d e d iver s os p oem a s d ifer en t es , s en d o a p en a s
alguns deles eróticos, costurados juntos. Ele contém erros – mutações – especialmente na tradução.
“Agarrai-n os a s r a p os a s , a s r a p os a s p equ en in a s , qu e d eva s t a m n os s a s vin h a s ” é u m a t r a d u çã o
er r ôn ea , m es m o qu e a s u a r ep et içã o d u r a n t e u m a vid a in t eir a lh e ten h a con fer id o u m a m is t er ios a
a t r a çã o p r óp r ia , qu e é im p r ová vel qu e s eja a t in gid a p elo m a is cor r et o “Pega i p a r a n ós os m or cegos
frugívoros, os pequeninos morcegos frugívoros...”:
Vê, o in ver n o p a s s ou , a ch u va a ca b ou e s e foi. As flor es s u r gem n a ter r a ; o tem p o d o ca n t a r d a s a ves
chegou, e a voz da tartaruga se faz ouvir em nossa terra9 .

A p oes ia é tã o a r r eb a t a d or a qu e m e s in t o r elu t a n t e em es t r a gá -la ob s er va n d o qu e a qu i,


também, es t á u m a m u t a çã o in d u b it á vel. In s ir a n ova m en te “r ola ” n o lu ga r d e “t a r t a r u ga ”, cor n o a s
t r a d u ções m od er n a s cor r eta m a s con d u t or a m en te o fa zem , e ou ça a ca d ên cia en t r a r em cola p s o.
Ma s es tes s ã o er r os m en or es , a s ligeir a s e in evit á veis d egr a d a ções qu e d evem os es p er a r qu a n d o
d ocu m en t os n ã o s ã o im p r es s os a os m ilh a r es ou gr a va d os n os d is cos d e a lt a fid elid a d e d os
com p u t a d or es m a s s im cop ia d os e r ecop ia d os p or es cr ib a s m or t a is a p a r t ir d e p a p ir os r a r os e
vulneráveis.
Ma s a gor a d eixem os o s exo en t r a r em cen a . (Nã o, n o s en t id o em qu e em p r ego o t er m o, o s exo
n ã o en t r a n o Câ n t ico d os Câ n t icos .) S exo, n o s en t id o em qu e em p r ego o t er m o, s ign ifica r a s ga r
m et a d e d e u m d ocu m en t o, n a for m a d e fr a gm en t os a lea t or ia m en te es colh id os , e m is t u r á -lo com a
metade rasgada complementar de um outro documento. Por mais inacreditável– mesmo vandalístico
– qu e p os s a p a r ecer , is t o é exa t a m en te o qu e a con tece s em p r e qu e u m a célu la s exu a l é p r od u zid a .

24
Por exemplo, quando um homem produz uma célula de espermatozóide, os cromossomos que ele
herdou de seu pai formam pares com os cromossomos que ele herdou de sua mãe, e partes inteiras
destes trocam de lugar. Os cromossomos de uma criança são uma mistura irrecuperavelrnente
confusa dos cromossomos de seus avós e assim por diante até os seus ancestrais distantes. Dos
supostos textos antigos, as letras, talvez as palavras, podem sobreviver intactas ao longo das
gerações. Mas os capítulos, páginas, mesmo parágrafos são rasgados e recombinados com urna
eficiência tão grosseira que corno meio de reconstituir a história eles são quase inúteis. No que diz
respeito à história antiga, o sexo é um bom disfarce.
Pod em os u s a r os a r qu ivos d e ADN p a r a r econ s t r u ir a h is t ór ia s em p r e qu e o s exo es t iver
con fia velm en te for a d e cen a . Pos s o d a r d ois exem p los im p or t a n t es . Um é a E va a fr ica n a , e ch ega r ei
a ela m a is t a r d e. O ou t r o exem p lo é a r econ s t r u çã o d a a n ces t r a lid a d e m a is r em ot a – o exa m e d a s
r ela ções en t r e a s es p écies e n ã o d a s r ela ções n o in ter ior d e u m a es p écie. Cor n o vim os n o ca p ít u lo
anterior, a mistura sexual só acontece no seio de urna espécie. Quando uma espécie progenitora dá
origem a uma espécie-filha, o rio de genes divide-se em dois braços. Após terem divergido por tempo
s u ficien te, a m is t u r a s exu a l n a s á gu a s d e ca d a r io, lon ge d e s e con s t it u ir em ob s t á cu lo p a r a o
a r qu ivis t a gen ét ico, n a ver d a d e p r es t a a u xílio n a r econ s t r u çã o d a a n ces t r a lid a d e e d a r ela çã o d e
p a r en tes co en t r e p r im os d a s es p écies . É s om en te on d e a s r ela ções d e p a r en tes co en t r e p r im os n o
s eio d a es p écie s ã o im p or t a n t es qu e o s exo em b a r a lh a a s evid ên cia s . On d e a s r ela ções d e
p a r en tes co en t r e p r im os d a s es p écies s ã o im p or t a n tes , o s exo a ju d a , p ois ten d e a u t om a tica m en te a
t or n a r s egu r o qu e ca d a in d ivíd u o s eja u m a b oa a m os t r a gen ét ica d a es p écie in t eir a . Nã o im p or t a
qu e b a ld e ch eio p a r t icu la r você r et ir ou d e u m r io d e á gu a s b em m is t u r a d a s ; ele s er á r ep r es en t a t ivo
da água daquele rio.
Os t ext os d a ADN r et ir a d os d e r ep r es en t a n tes d e es p écies d ifer en tes têm s id o n a ver d a d e
com p a r a d os com gr a n d e s u ces s o, let r a p or let r a , p a r a r econ s tr u ir a s á r vor es d e fa m ília d a s
es p écies . É m es m o p os s ível, d e a cor d o com u r n a in flu en te es cola d e p en s a m en t o, a t r ib u ir d a t a s à s
r a m ifica ções . E s t a op or t u n id a d e é con s eqü ên cia d a con t r over t id a n oçã o d e “r elógio m olecu la r ”: a
s u p os içã o d e qu e a s m u t a ções em qu a lqu er p a r te d o t ext o d o cód igo gen ét ico ocor r em a u m a t a xa
constante por milhão de anos. Retomaremos à hipótese do relógio molecular em um instante.
O “p a r á gr a fo” n os n os s os gen es qu e d es cr eve a p r ot eín a ch a m a d a cit ocr om o c t em 3 3 9 let r a s .
Doze t r oca s d e let r a s s ep a r a m o cit ocr om o c h u m a n o d o cit ocr om o c d os ca va los , n os s os p r im os
m u it o d is t a n t es . Ap en a s u m a t r oca d e let r a n o cit o cr om o c s ep a r a os h u m a n os d os m a ca cos
(nossos primos bastante próximos), uma troca de letra separa os cavalos dos jumentos (seus primos
muito p r óxim os ) e t r ês t r oca s d e let r a s s ep a r a m os ca va los d os p or cos (s eu s p r im os u m t a n t o m a is
d is t a n t es ). Qu a r en t a e cin co t r oca s d e let r a s ep a r a m os h u m a n os d o leved o e o m es m o n ú m er o
s ep a r a os p or cos d o leved o. Nã o é s u r p r es a qu e es tes n ú m er os s eja m os m es m os , p ois , à m ed id a
que subimos o rio que conduz aos humanos, ele reúne-se ao rio que conduz aos porcos muito antes
d e o r io com u m a h u m a n os e p or cos s e ju n t a r a o r io qu e con d u z a o leved o. E n t r et a n t o, h á u m leve
er r o n es tes n ú m er os . O n ú m er o d e let r a s t r oca d a s n o cit ocr om o c qu e s ep a r a os ca va los d o leved o
n ã o é 4 5 , m a s s im 4 6 . Is t o n ã o s ign ifica qu e os p or cos s ã o p r im os m a is p r óxim os d o leved o d o qu e
os cavalos. Eles são exata e igualmente próximos do levedo, como o são todos os vertebrados – e, na
verdade, t od os os a n im a is . Ta lvez u m a t r oca ext r a ten h a ocor r id o s u b -r ep t icia m en te n a lin h a gem
qu e con d u z a os ca va los d es d e a ép oca d o a n ces t r a l r ela t iva m en te r ecen te qu e eles com p a r t ilh a m
com os p or cos . Is t o n ã o é im p or t a n t e. No t ot a l, o n ú m er o d e t r oca d e let r a s d o cit ocr om o c qu e

25
separa pares de criaturas é mais ou menos aquele que esperaríamos das idéias prévias que temos
sobre o padrão de ramificação da árvore evolutiva.
A t eor ia d o r elógio m olecu la r , com o ob s er vei, a fir m a qu e a ta xa d e m u d a n ça d e u m
determinad o t r ech o d e text o p or m ilh ã o d e a n os é a p r oxim a d a m en t e con s t a n te. Da s 4 6 t r oca s d e
let r a n o cit ocr om o c qu e s ep a r a m os ca va los d o leved o, a s s u m e-s e qu e cer ca d e m et a d e d ela s
ocor r eu d u r a n t e a evolu çã o d e u m a n ces t r a l com u m p a r a os ca va los m od er n os e cer ca d e m et a d e
d ela s ocor r eu d u r a n t e a evolu çã o d o a n ces t r a l com u m p a r a o leved o m od er n o (ob via m en te, os d ois
ca m in h os evolu t ivos exigir a m exa t a m en t e o m es m o n ú m er o d e m ilh ões d e a n os p a r a s er em
p er cor r id os ). No com eço is t o p a r ece u m a cois a s u r p r een d en te d e s er a s s u m id a . Afin a l d e con t a s , é
m u it o p r ová vel o a n ces t r a l com u m a s s em elh a r -s e m a is a o leved o d o qu e a o ca va lo. A r econ cilia çã o
es t á n a s u p os içã o, cr es cen t em en te a ceit a d es d e qu e foi d efen d id a p ela p r im eir a vez p elo em in en te
geneticista japonês Motoo Kimura, de que a maior parte dos textos genéticos pode mudar livremente
sem que o seu significado seja afetado.
Um a b oa a n a logia é va r ia r o t ip o d a let r a em u m a s en ten ça im p r es s a . “O ca va lo é u m
MAMÍFERO”. “Um leved o é u m FUNGO”. O s ign ifica d o d es t a s s en ten ça s ch ega a t é n ós em a lt o e b om
s om , m es m o qu e ca d a p a la vr a s eja im p r es s a com u m a fon t e d ifer en te. O r elógio m olecu la r m a r ca o
t em p o com o equ iva len te d a s t r oca s d e fon t e qu e n ã o s ign ifica m n a d a , à m ed id a qu e s ã o d ecor r id os
m ilh ões d e a n os . As m u d a n ça s qu e es t ã o s u jeit a s à s eleçã o n a t u r a l e qu e d es cr evem a d ifer en ça
entre um cavalo e um levedo – as mudanças no significado das sentenças – são a ponta do iceberg.
Algu m a s m olécu la s têm u m a t a xa d e m a r ca çã o d o t em p o m a is a lt a d o qu e ou t r a s . O
citocromo c evolu i d e m od o r ela t iva m en t e len t o: cer ca d e u m a t r oca d e let r a a ca d a 2 5 m ilh ões d e
a n os . Is t o p r ova velm en te p or qu e a im p or t â n cia vit a l d o cit ocr om o c p a r a a s ob r evivên cia d e u m
or ga n is m o d ep en d e d e m od o cr ít ico d a s u a for m a d et a lh a d a . A m a ior ia d a s m u d a n ça s n es t a
m olécu la cu ja for m a é t ã o cr ít ica n ã o s ã o t oler a d a s p ela s eleçã o n a t u r a l. Ou t r a s p r ot eín a s , t a is
com o a s ch a m a d a s fib r in op ep t íd eos , em b or a s eja m im p or t a n t es , fu n cion a m igu a lm en te b em com
gr a n d e va r ied a d e d e for m a s . Os fib r in op ep t íd eos s ã o u t iliza d os n a coa gu la çã o d o s a n gu e, e você
p od e m u d a r a m a ior ia d e s eu s d et a lh es s em p r eju d ica r s u a ca p a cid a d e d e coa gu la çã o. A t a xa d e
m u t a çã o n es t a s p r ot eín a s é d e cer ca d e u m a m u ta çã o a ca d a 6 0 0 m il a n os , u m a t a xa m a is d e
qu a r en t a vezes m a is r á p id a d o qu e a d o cit ocr om o c. Por t a n t o, os fib r in op ep t íd eos n ã o s ã o b on s
para r econ s tr u ir uma a n ces t r a lid a d e a n t iga , em b or a s eja m ú t eis para r econ s t r u ir uma
a n ces t r a lid a d e m a is r ecen t e – p or exem p lo, en t r e os m a m ífer os . Há cen ten a s d e p r ot eín a s
d ifer en tes , ca d a u m a com s u a p r óp r ia t a xa ca r a ct er ís t ica p or m ilh ã o d e a n os e ca d a u m a p od en d o
s er u s a d a d e for m a in d ep en d en te p a r a r econ s t r u ir á r vor es d e fa m ília . E la s tod a s con d u zem à
m es m a fa m ília – a qu a l, a p r op ós it o, é u m a evid ên cia b a s t a n t e b oa , s e s ã o n eces s á r ia s evid ên cia s ,
de que a teoria da evolução é verdadeira.
Ch ega m os a es t a d is cu s s ã o a p a r t ir d a p er cep çã o d e qu e a m is t u r a s exu a l em b a r a lh a o
r egis t r o h is t ór ico. Dis t in gu im os d ois m od os p elos qu a is os efeit os d o s exo p od em s er con t or n a d os .
Aca b a m os d e t r a t a r com u m d eles , a p a r t ir d o fa t o d e qu e o s exo n ã o m is tu r a gen es en t r e a s
es p écies . Is t o a b r e a p os s ib ilid a d e d a u t iliza çã o d e s eqü ên cia s d e ADN p a r a r econ s t it u ir á r vor es d e
família remotamente antigas de nossos ancestrais que viveram muito tempo antes de nos tomarmos
reconhecivelm en te h u m a n os . Ma s já con cor d a m os qu e, s e volta r m os t a n t o a s s im n o t em p o, n ós
h u m a n os s om os t od os d efin it iva m en te d es cen d en tes d o m es m o e ú n ico in d ivíd u o. Qu er ía m os
d es cob r ir a té qu ã o r ecen tem en te p od er ía m os a in d a t er u m a d es cen d ên cia com u m com t od os os

26
outros humanos. Para descobrir isto, temos que voltar nossa atenção para um tipo diferente de
evidência de ADN. E aqui a Eva africana entra na história.
A E va a fr ica n a é a lgu m a s vezes ch a m a d a E va m it ocon d r ia l. As m it ocôn d r ia s s ã o p equ en os
cor p os em for m a d e los a n go qu e exis tem a os m ilh a r es em ca d a u m a d e n os s a s célu la s . E la s s ã o
b a s ica m en te oca s mas com uma es t r u t u r a in t er ior com p lica d a for m a d a p or a n t ep a r os
m em b r a n os os . A á r ea ofer ecid a p or es t a s m em b r a n a s é m u it o m a ior d o qu e você p od er ia p en s a r
observando a a p a r ên cia ext er n a d a m it ocôn d r ia , e ela é u t iliza d a . As m em b r a n a s s ã o a s lin h a s d e
p r od u çã o d e u m a fá b r ica d e p r od u t os qu ím icos – m a is p r ecis a m en te, u m a cen t r a l p r od u t or a d e
energia. Urna reação em cadeia cuidadosamente controlada é orquestrada ao longo das membranas
– u m a r ea çã o em ca d eia qu e en volve m a is et a p a s d o qu e a qu ela s qu e exis tem em qu a lqu er fá b r ica
d e p r od u t os qu ím icos h u m a n a . O r es u lt a d o é qu e a en er gia , qu e s e or igin a n a s m olécu la s d a
com id a , é lib er a d a em p a s s os con t r ola d os e a r m a zen a d a d e m od o r eu t ilizá vel p a r a s er qu eim a d a
m a is t a r d e, s em p r e qu e s e fizer n eces s á r io, em qu a lqu er p a r te d o cor p o. S em n os s a s m it ocôn d r ia s ,
morreríamos em um segundo.
Is t o é o qu e u r n a m it ocôn d r ia fa z, m a s a qu i es t a m os m a is p r eocu p a d os com s u a or igem .
Originalmente, na história evolutiva antiga, elas era bactérias. Esta é a teoria notável defendida pela
t em ível Lyn n Ma r gu lis , d a Un iver s id a d e d e Ma s s a ch u s et t s em Ar n h er s t , a p a r t ir d e or igen s
h eter od oxa s e ven cen d o in t er es s es m es qu in h os a t é a t in gir u m a a ceit a çã o t r iu n fa n t e e qu a s e
universal hoje em dia. Há 2 bilhões de anos, os ancestrais remotos das mitocôndrias eram bactérias
qu e vivia m livr em en te. J u n t o com ou t r a s b a ct ér ia s d e d ifer en tes t ip os , ela s in s t a la r a m -s e d en t r o d e
célu la s m a ior es . A com u n id a d e r es u lt a n t e d e b a ctér ia s (“p r oca r iót ica s ”) t r a n s for m ou -s e n a gr a n d e
célu la (“eu ca r iót ica ”) qu e fa z p a r t e d e n ós . Ca d a u m d e n ós é u m a com u n id a d e d e u r n a cen ten a d e
m ilh ões d e m ilh ões d e célu la s eu ca r iót ica s m u t u a m en t e d ep en d en t es . Ca d a u m a d es t a s célu la s é
Ur n a com u n id a d e d e m ilh a r es d e b a ctér ia s d om es t ica d a s es p ecia l e t ot a lm en te con t id a s n o in t er ior
d a célu la , on d e ela s s e m u lt ip lica m cor n o a s b a ct ér ia s o fa zem . Foi ca lcu la d o qu e, s e t od a s a s
m it ocôn d r ia s d e u m ú n ico cor p o h u m a n o fos s em coloca d a s u m a a tr á s d a ou t r a , ela s d a r ia m a volt a
em t or n o d a Ter r a n ã o a p en a s u m a vez, m a s s im 2 m il vezes . Um a n im a l ou p la n t a in d ivid u a l é
uma vasta comunidade de comunidades localizadas em camadas que interagem entre si, corno uma
flor es t a t r op ica l. Qu a n t o à flor es t a t r op ica l, ela é u m a com u n id a d e fer vilh a n d o com t a lvez 1 0
m ilh ões d e es p écies d e or ga n is m os , s en d o ca d a m em b r o in d ivid u a l d e ca d a es p écie ele p r óp r io u m a
com u n id a d e d e com u n id a d es d e b a ct ér ia s d om es t ica d a s . A t eor ia d a s or igen s d a Dr a . Ma r gu lis – d e
que a célula é um jardim fechado de bactérias – é não apenas incomparavelmente mais inspiradora,
excit a n te e en a lt eced or a d o qu e a h is t ór ia d o J a r d im d o É d en . E la t em a va n t a gem a d icion a l d e s er
quase certamente verdadeira.
Cor n o m u it os b iólogos , a gor a a s s u m o a t eor ia d e Ma r gu lis cor n o ver d a d eir a , e n es te ca p ít u lo
eu a m en cion o a p en a s p a r a a com p a n h a r u m a im p lica çã o em p a r ticu la r : a s m itocôn d r ia s t êm s eu
p r óp r io ADN, qu e es t á con fin a d o a u m ú n ico cr om os s om o em for m a d e a n el, cor n o em ou t r a s
b a ct ér ia s . E a gor a va m os a o p on t o a o qu a l t u d o is t o con d u z. O ADN m it ocon d r ia l n ã o p a r t icip a d e
qu a lqu er m is t u r a s exu a l, ou com o ADN “n u clea r ” p r in cip a l d o cor p o ou com o ADN d e ou t r a s
m it ocôn d r ia s . As m it ocôn d r ia s , cor n o m u it a s b a ct ér ia s , r ep r od u zem -s e s im p les m en te d ivid in d o-se.
S em p r e qu e u m a m it ocôn d r ia d ivid e-s e em d u a s m it ocôn d r ia s filh a s , ca d a u m a d es t a s filh a s r eceb e
u m a cóp ia id ên t ica – a m en os qu e h a ja u m a m u t a çã o oca s ion a l – d o cr om os s om o or igin a l. Você
p od e ver a gor a , a p a r t ir d o n os s o p on t o d e vis t a d e gen ea logis t a s d e lon go a lca n ce, a b eleza d is t o.

27
Descobrimos que, no que diz respeito aos nossos textos comuns de ADN, em cada geração o sexo
mistura as evidências, confundindo as contribuições das linhagens paternal e maternal. O ADN
mitocôndrial é, graças a Deus, celibatário.
Recebemos n os s a s m it ocôn d r ia s s om en t e d e n os s a s m ã es . Os es p er m a t ozóid es s ã o m u ito
p equ en os p a r a con t er m a is d o qu e u m a s p ou ca s m it ocôn d r ia s ; eles têm a p en a s u m n ú m er o
s u ficien te p a r a for n ecer a en er gia qu e m ovim en t a s eu s fla gelos à m ed id a qu e n a d a m em d ir eçã o a o
óvu lo, e es t a s m it ocôn d r ia s s ã o joga d a s for a ju n t o com o fla gelo qu a n d o o cor p o d o es p er m a t ozóid e
é a b s or vid o p elo óvu lo n a fer t iliza çã o. Com p a r a t iva m en te o óvu lo t em u r n a m a s s a gr a n d e, e s eu
in t er ior a m p lo, p r een ch id o com flu id os , con t ém u m a r ica cu lt u r a d e m it ocôn d r ia s . E s t a cu lt u r a d á
or igem a o cor p o d a cr ia n ça . Des te m od o, s eja você h om em ou m u lh er , s u a s m it ocôn d r ia s s ã o t od a s
d es cen d en tes d e u m a in ocu la çã o in icia l d e m it ocôn d r ia s d e s u a m ã e. Seja você h om em ou m u lh er ,
s u a s m it ocôn d r ia s s ã o t od a s d es cen d en t es d a s m it ocôn d r ia s d e s u a a vó m a ter n a . Nen h u m a d ela s
vem d e s eu p a i, n en h u m a d ela s vem d e s eu a vô, n en h u m a d ela s vem d e s u a a vó p a t er n a . As
m it ocôn d r ia s con s t it u em u m r egis tr o in d ep en d en te d o p a s s a d o, n ã o con t a m in a d a s p elo ADN
n u clea r p r in cip a l, o qu a l t em p r ob a b ilid a d es igu a is d e or igin a r -s e d e ca d a u m d e s eu s qu a t r o a vós ,
de cada um de seus oito bisavós e assim por diante.
O ADN m it ocôn d r ia l n ã o é con t a m in a d o, m a s n ã o é im u n e à s m u ta ções – a os er r os a lea t ór ios
d e cóp ia . Na ver d a d e, ele s ofr e m u t a ções com u m a t a xa m a is a lt a d o qu e o n os s o “p r óp r io” ADN,
p ois (com o é o ca s o com t od a s a s b a ct ér ia s ) lh e fa lt a a s ofIs t ica d a m a qu in á r ia d e leit u r a p r elim in a r
d e text o qu e a s n os s a s célu la s d es en volver a m com o d ecor r er d os t em p os . Ha ver á u m a s p ou ca s
diferenças en t r e o s eu ADN m it ocôn d r ia l e o m eu , e o n ú m er o d e d ifer en ça s s er á u m a m ed id a d e
qu a n t o t em p o a t r á s n os s os a n ces t r a is d iver gir a m . Nã o qu a lqu er u m d e n os s os a n ces t r a is , m a s
n os s os a n ces t r a is n a lin h a exclu s iva m en te fem in in a . S e p or a ca s o s u a m ã e é u m a n a tiva
a u s t r a lia n a p u r a , ou u m a ch in es a p u r a , ou u m a !Ku n g S a n d o Ka la h a r i p u r a , h a ver á m u it a s
d ifer en ça s en t r e s eu ADN m it ocôn d r ia l e o m eu . Nã o im p or t a qu em s eja s eu p a i: ele p od e s er u m
m a r qu ês in glês ou u m ch efe S iou x, n o qu e d iz r es p eit o à s d ifer en ça s em s u a s m it ocôn d r ia s , e a
mesma coisa vale para qualquer um de seus ancestrais masculinos, sempre.
Des te m od o h á t ext os a p ócr ifos m it ocon d r ia is , p a s s a d os a d ia n t e ju n t o com a Bíb lia fa m ilia r
p r in cip a l, m a s com a gr a n d e vir t u d e d e s er em t r a n s m it id os a p en a s p ela lin h a gem fem in in a . E s te
p on t o n ã o é s exis t a ; d a r ia n o m es m o s e is t o a con teces s e a p en a s a tr a vés d a lin h a gem m a s cu lin a . A
vir t u d e es t á n a s u a in t egr id a d e, n o fa t o d e n ã o s er cor t a d o e m is t u r a d o em ca d a ger a çã o. Um a
d es cen d ên cia con s is t en te p or via d e qu a lqu er u m d os s exos m a s n ã o p or via d e a m b os é o qu e n ós ,
com o gen ea logis t a s , p r ecis a m os . Os cr om os s om os Y, qu e, com o o s ob r en om e, s ã o t r a n s m it id os
a p en a s p or m eio d a lin h a gem m a s cu lin a , s er ia m em t eor ia igu a lm en te b on s p a r a is t o, m a s eles
contêm muito pouca informação para serem úteis. Os textos apócrifos mitocondriais são ideais para
datar ancestrais comuns dentro de uma mesma espécie.
O ADN m it ocôn d r ia l foi exp lor a d o p or u m gr u p o d e p es qu is a d or es a s s ocia d os a o fa lecid o
Alla n Wils on em Ber k eley, Ca lifór n ia . Nos a n os 8 0 , Wils on e s eu s colega s fIzer a m a m os t r a gen s com
a s s eqü ên cia s d e 1 3 5 m u lh er es viva s es colh id a s em t od a s a s p a r t es d o m u n d o – a b or ígin es
a u s t r a lia n a s , m on t a n h es a s da Nova Gu in é, n a t iva s a m er ica n a s , eu r op éia s , ch in es a s e
r ep r es en t a n tes d e vá r ios p ovos d a Áfr ica . E les exa m in a r a m a s d ifer en ça s n o n ú m er o d e let r a s qu e
s ep a r a va m ca d a m u lh er d e ou t r a m u lh er . E les p a s s a r a m es tes n ú m er os p a r a u m com p u t a d or e
pediram-lh e qu e con s t r u ís s e a á r vor e d e fa m ília m a is p a r cim on ios a qu e p u d es s e. “Pa r cim on ios a ”

28
aqui s ign ifica evit a r o m á xim o p os s ível a n eces s id a d e d e p os t u la r a coin cid ên cia . Is t o exige u m
pouco de explicação.
Volte para trás até nossa discussão anterior sobre cavalos, porcos e levedos, e sobre a análise
d a s eqü ên cia d e let r a s n o cit ocr om o c. Você d eve lem b r a r -s e qu e os ca va los d ifer em d os p or cos em
a p en a s t r ês d e t a is let r a s , os p or cos d ifer em d o leved o em 4 5 let r a s , e os ca va los d ifer em d o leved o
em 4 6 let r a s . Con s id er o im p or t a n t e qu e, teor ica m en te, com o os ca va los e os p or cos es t ã o
relacionados uns com os outros por um ancestral comum relativamente recente, eles deveriam estar
exa t a m en te a u m a m es m a d is t â n cia d o leved o. A d ifer en ça en t r e 4 5 e 4 6 é u m a a n om a lia , a lgo qu e
em u m m u n d o id ea l n ã o exis t ir ia . E la p od e s er u m a m u t a çã o a d icion a l n a r ot a qu e con d u z a os
cavalos ou uma mutação reversa na rota que conduz aos porcos.
Agor a , p or m a is a b s u r d a qu e es t a id éia n a r ea lid a d e s eja , é t eor ica m en te con ceb ível qu e os
p or cos es teja m r ea lm en te m a is p r óxim os d o leved o d o qu e d os ca va los . É t eor ica m en te p os s ível qu e
os p or cos e os ca va los t en h a m d es en volvid o s u a s em elh a n ça ín tim a u n s com os ou t r os p or u m a
gr a n d e coin cid ên cia (s eu s t ext os d e cit ocr om o c s ã o d ifer en tes em a p en a s t r ês let r a s , e s eu s cor p os
s ã o b a s ica m en t e con s t r u íd os com u m p a d r ã o m a m ífer o qu a s e id ên t ico). A r a zã o p ela qu a l n ã o
a cr ed it a m os n is t o é qu e o n ú m er o d e m od os p elos qu a is os p or cos s e a s s em elh a m a os ca va los é
m u it o m a ior d o qu e o n ú m er o d e m od os p elos qu a is os p or cos s e a s s em elh a m a o leved o. Ad m it e-se
qu e h á u m a ú n ica let r a d e ADN p ela qu a l os p or cos p a r ecem es t a r m a is p r óxim os d o leved o d o qu e
d os ca va los , m a s is t o é es m a ga d o p or m ilh ões d e s em elh a n ça s qu e a p on t a m p a r a o ou t r o la d o. O
a r gu m en t o é o a r gu m en t o d e p a r cim ôn ia . S e a d m it ir m os qu e os p or cos es t ã o p r óxim os d os ca va los ,
p r ecis a m os a com od a r a p en a s u m a s em elh a n ça coin cid en te. Se t en t a r m os a s s u m ir qu e os p or cos
es t ã o p r óxim os d o leved o, t em os qu e p os t u la r u m a con ca t en a çã o p r od igios a m en te ir r ea l d e
semelhanças coincidentes adquiridas de modo independente.
Nos ca s os d os ca va los , p or cos e leved o, o a r gu m en t o d a p a r cim ôn ia é d em a s ia d o es m a ga d or
p a r a s er p os to em d ú vid a . Ma s n o ADN m it ocôn d r ia l d a s d ifer en tes r a ça s h u m a n a s n ã o h á n a d a
es m a ga d or a r es p eit o d e s em elh a n ça s . Os a r gu m en tos d e p a r cim ôn ia p od em a in d a s er a p lica d os ,
m a s eles s ã o a r gu m en t os s u a ves e qu a n t it a t ivos e n ã o a r gu m en tos m a ciços e a ca ch a p a n t es . Aqu i
es t á o qu e o com p u t a d or , t eor ica m en te, d eve fa zer . E le d eve fa zer u m a lis t a d e t od a s a s á r vor es d e
fa m ília s p os s íveis qu e r ela cion a m a s 1 3 5 m u lh er es . E le en t ã o exa m in a es te con ju n t o d e á r vor es
p os s íveis e es colh e a m a is p a r cim on ios a – is t o é, a qu ela qu e m in im iza o n ú m er o d e s em elh a n ça s
coin cid en tes . Devem os a ceit a r qu e m es m o a m elh or á r vor e p r ova velm en te n os for ça r á a a ceit a r
u m a s p ou ca s coin cid ên cia s , exa t a m en te com o s om os for ça d os a a ceit a r o fa t o d e qu e, com r es p eit o
a u m a let r a d o ADN, os leved os es t ã o m a is p r óxim os d os p or cos d o qu e d os ca va los . Ma s – p elo
m en os em teor ia – o com p u t a d or d ever ia s er ca p a z d e leva r is t o em con t a e in for m a r -n os qu a is d a s
muitas árvores possíveis é a mais parcimoniosa, a que tem menos coincidências.
Is t o é em teor ia . Na p r á t ica , h á u m p r ob lem a . O n ú m er o d e á r vor es p os s íveis é m a ior d o qu e
você, eu , ou qu a lqu er m a tem á t ico, p od e p os s ivelm en t e im a gin a r . Pa r a o ca va lo, o p or co e o leved o
h á a p en a s t r ês á r vor es p os s íveis . A ob via m en te cor r et a é [[p or co, ca va lo], leved o], com o p or co e o
ca va lo a n in h a d os ju n t os d en t r o d a s ch a ves m a is in t er n a s e o leved o com o (gr u p o exter n o) n ã o
r ela cion a d o. As ou t r a s d u a s a r vor es teór ica s s ã o [[p or co, leved o], ca va lo] e [[ca va lo, leved o] p or co].
S e a d icion a r m os u m a qu a r t a cr ia t u r a – d iga m os , u m p olvo –, o n ú m er o d e á r vor es s ob e a té 1 2 . Nã o
lis t a r ei t od a s a s 1 2 , m a s a ver d a d eir a (m a is p a r cim on ios a ) é [[[p or co, ca va lo], p olvo], leved o].
Nova m en te, o p or co e o ca va lo, com o p a r en tes p r óxim os , es t ã o a n in h a d os con for t a velm en te ju n t os

29
nas chaves mais internas. O polvo é o próximo a juntar-se ao clube, tendo um ancestral mais
recente com a linhagem porco cavalo do que o levedo. Qualquer uma das outras 11 árvores – por
exemplo, [[porco, polvo], [cavalo, levedo]] – é definitivamente menos parcimoniosa. É altamente
improvável que o porco e o cavalo pudessem ter desenvolvido de modo independente suas
numerosas semelhanças se os porcos realmente fossem primos mais próximos do polvo e o cavalo
fosse realmente um primo mais próximo do levedo.
S e es t a s t r ês cr ia t u r a s ger a m t r ês á r vor es p os s íveis , e qu a t r o cr ia t u r a s ger a m 1 2 á r vor es
p os s íveis , qu a n t a s á r vor es p os s íveis p od em s er con s t r u íd a s com 1 3 5 m u lh er es ? A r es p os t a é u m
n ú m er o t ã o r id icu la m en te gr a n d e qu e n ã o fa z o m en or s en t id o es cr eve-lo. Se o m a ior e m a is r á p id o
com p u t a d or d o m u n d o fos s e p r ogr a m a d o p a r a lis t a r t od a s a s á r vor es p os s íveis , o fim d o m u n d o
chegaria a nós antes que o computador tivesse feito uma parte perceptível da tarefa.
Não ob s t a n t e, a ca u s a n ã o é d es t it u íd a d e es p er a n ça s . E s t a m os a cos t u m a d os a d om es t ica r
n ú m er os im p os s ivelm en te gr a n d es com t écn ica s ju d icios a s d e a m os t r a gem . Nã o p od em os con t a r o
n ú m er o d e in s et os d a b a cia a m a zôn ica , m a s p od em os es t im a r o n ú m er o fa zen d o a m os t r a gen s em
p equ en a s exten s ões es p a lh a d a s a lea t or ia m en te p ela flor es t a e s u p or qu e es t a s p equ en a s exten s ões
d e flor es t a s ã o r ep r es en t a tiva s . Nos s o com p u t a d or n ã o p od e exa m in a r t od a s a s á r vor es p os s íveis
qu e r ela cion a m a s 1 3 5 m u lh er es , m a s ele p od e es colh er a m os t r a s a lea t ór ia s d o con ju n t o d e t od a s
a s á r vor es d e fa m ília p os s íveis . Se, s em p r e qu e você es colh er u m a a m os t r a d a s giga b ilh ões d e
á r vor es d e fa m ília p os s íveis , você n ot a r qu e os m em b r os m a is p a r cim on ios os d a a m os t r a t êm cer t a s
ca r a ct er ís t ica s com u n s , você p od e con clu ir qu e p r ova velm en te a m a is p a r cim on ios a d e t od a s a s
árvores tem as mesmas características.
E é is t o o qu e a s p es s oa s fizer a m . Ma s n ã o é n eces s a r ia m en te ób vio qu a l é a m elh or m a n eir a
d e fa zê-lo. E xa t a m en te com o os en t om ologis t a s qu e p od em d is cor d a r s ob r e o m od o m a is
r ep r es en t a t ivo d e fa zer a m os t r a gen s d a flor es t a tr op ica l b r a s ileir a , os gen ea logis t a s d o ADN
utilizaram diferentes técnicas de amostragemo E infelizmente os resultados nem sempre concordam
en t r e s i. Nã o ob s t a n t e, a té on d e ch ega a s u a va lid a d e, a p r es en t a r ei a s con clu s ões qu e o gr u p o d e
Ber k eley ext r a iu d e s u a a n á lis e or igin a l d o ADN m it ocôn d r ia l h u m a n o. S u a s con clu s ões s ã o
extremamente interessantes e provocativas. De acordo com elas, a árvore mais parcimoniosa tem as
s u a s r a ízes fir m em en te fin ca d a s n a Áfr ica . Is t o s ign ifica qu e a lgu n s a fr ica n os es t ã o r ela cion a d os d e
m a n eir a m a is d is t a n t e com ou t r os a fr ica n os d o qu e qu a lqu er p es s oa n o r es t o d o m u n d o tod o. O
resto do mundo – europeus, nativos americanos, aborígines australianos, chineses, nativos da Nova
Gu in é, In u it s , e t od os os ou t r os – for m a u m gr u p o r ela t iva m en t e p r óxim o d e p r im os . Algu n s
a fr ica n os p er t en cem a es te gr u p o d e p r im os p r óxim os . Ma s ou t r os a fr ica n os n ã o. De a cor d o com
es t a a n á lis e, a á r vor e m a is p a r cim on ios a p a r ece-s e com is t o: [a lgu n s a fr ica n os , [ou t r os a fr ica n os ,
[ainda outros africanos, [ainda outros africanos e todos os demais]]]]. Eles, portanto concluíram que
a gr a n d e a n ces t r a l d e t od os n ós viveu n a Áfr ica : a “E va a fr ica n a ”. Com o já a fir m ei, es t a con clu s ã o é
controvertida. Outros têm afirmado que árvores igualmente parcimoniosas podem ser encontradas e
n a s qu a is os r a m os m a is exter n os ocor r em for a d a Áfr ica . E les ta m b ém a fir m a m qu e o gr u p o d e
Ber k eley ob teve os r es u lt a d os p a r t icu la r es em p a r te em r a zã o d a or d em n a qu a l s eu com p u t a d or
p r ocu r ou p ela s á r vor es p os s íveis . Ob via m en te, a or d em p ela qu a l a p r ocu r a é feit a n ã o é
im p or t a n t e. Pr ova velm en te a m a ior ia d os es p ecia lis t a s a in d a a p os t a r ia o s eu d in h eir o n o fa t o d e a
Eva mitocôndrial ser africana, mas eles não o fariam com muita confiança.

30
A segunda conclusão do grupo de Berkeley é menos controvertida. Não importa onde a Eva
mitocôndrial viveu, eles foram capazes de estimar quando. É um fato conhecido a rapidez com que o
ADN m it ocôn d r ia l evolu i; você p od e p or t a n t o a t r ib u ir u m a d a t a a p r oxim a d a p a r a ca d a u m d os
p on t os d e r a m ifica çã o d a á r vor e d a d iver gên cia d o ADN m it ocôn d r ia l. E o p on t o d e r a m ifica çã o qu e
u n e t od a s a s m u lh er es – a d a t a d e n a s cim en t o d a E va m it ocôn d r ia l – es t á en t r e 1 5 0 m il e u m
quarto de milhão de anos atrás.
S eja a E va m it ocôn d r ia l a fr ica n a ou n ã o, é im p or t a n t e evit a r u m a p os s ível con fu s ã o com u m
ou t r o s en t id o p elo qu a l é in d u b it a velm en te ver d a d eir o qu e n os s os a n ces t r a is vier a m d a Áfr ica . A
E va m it ocôn d r ia l é u m a n ces t r a l r ecen te d e t od os os h u m a n os m od er n os . E la er a com p on en t .e d a
espécie Hom o s a p ien s . Fós s eis d e h om in íd eos m u it o m a is p r im it ivos , o Hom o erectu s , for a m
en con t r a d os ta n t o n a Áfr ica com o for a d ela . Os fós s eis d e a n ces tr a is a in d a m a is r em ot os d o qu e o
do Hom o erectu s , t a is com o o Hom o h a b ilis e a s vá r ia s es p écies d e Au s tra lop ith ecu s (in clu s ive u m
r ecen tem en te d es cob er t o com m a is d e 4 m ilh ões d e a n os ), for a m en con t r a d os s om en te n a Áfr ica .
As s im , s e s om os d es cen d en tes d e u m a d iá s p or a a fr ica n a ocor r id a n o ú lt im o qu a r t o d e m ilh ã o d e
a n os , es t a foi a s egu n d a d iá s p or a a fr ica n a . Hou ve u m êxod o a n t er ior , t a lvez h á u m 1 ,5 m ilh ã o d e
a n os , qu a n d o o Hom o erectu s s a iu d a Áfr ica p a r a colon iza r p a r t es d o Or ien te Méd io e d a Ás ia . A
t eor ia d a E va a fr ica n a n ã o es t á a fir m a n d o qu e es tes a s iá t icos p r im or d ia is n ã o exis t ir a m , m a s qu e
eles n ã o d eixa r a m d es cen d en tes qu e t ives s em s ob r evivid o. De qu a lqu er m od o qu e você olh a r p a r a a
qu es t ã o, s om os t od os , s e você volt a r 2 m ilh ões d e a n os , a fr ica n os . Além d is to à t eor ia d a E va
a fr ica n a es t á a fir m a n d o qu e n ós h u m a n os qu e s ob r evivem s om os tod os a fr ica n os s e você volta r n o
t em p o a p en a s u m a s p ou ca s cen ten a s d e m ilh a r es d e a n os . Ser ia p os s ível, s e n ova s evid ên cia s
fos s em d is p on íveis , t r a ça r t od o o ADN m it ocôn d r ia l m od er n o a té u m a a n ces t r a l qu e t ives s s e vivid o
for a d a Áfr ica (“a E va a s iá tica ”) en qu a n t o a o m es m o tem p o con cor d á s s em os qu e n os s os a n ces t r a is
mais remotos fossem encontrados apenas na África.
Va m os a s s u m ir , p or u m m om en t o, qu e o gr u p o d e Ber k eley es tá cor r et o, e exa m in a r o qu e
s u a s con clu s ões s ign ifica m e n ã o s ign ifica m . O a p elid o “E va ” t em t id o con s eqü ên cia s in felizes .
Algu n s en t u s ia s t a s s a ír a m cor r en d o com a id éia d e qu e ela d eve t er s id o u m a m u lh er s olitá r ia , a
ú n ica m u lh er s ob r e a fa ce d a Ter r a , o ga r ga lo d e ga r r a fa gen ét ico fin a l, e m es m o u m a con fir m a çã o
do Gênese! Isto é um mal-entendido completo. A afirmação correta não é que ela tenha sido a única
m u lh er s ob r e a s u p er fície d a Ter r a , n em m es m o qu e a p op u la çã o er a r ela t iva m en te p equ en a
d u r a n t e a s u a ép oca . Seu s com p a n h eir os , d e a m b os os s exos , p od em ter s id o n u m er os os e
fecu n d os . E les p od em ter a in d a n u m er os os d es cen d en t es vivos h oje. Ma s t od os os d es cen d en t es d e
s u a s m it ocôn d r ia s d es a p a r ecer a m , p ois s eu elo con os co p a s s a , em a lgu m p on t o, p or u m h om em .
Do m es m o m od o, u m s ob r en om e n ob r e (os s ob r en om es es t ã o liga d os a os cr om os s om os Y e s ã o
transmitidos exclusivamente pela linha masculina numa imagem especular exata das mitocôndrias)
p od e d es a p a r ecer , m a s is t o n ã o s ign ifica qu e os d eten t or es d o s ob r en om e n ã o ten h a m
d es cen d en tes . E les p od em t er n u m er os os d es cen d en t es p or ou t r os ca m in h os a lém d o ca m in h o
exclusivamente masculino. A afirmação correta é apenas de que a Eva mitocôndrial é a mulher mais
r ecen te d e qu em p od e s er d it o qu e t od os os h u m a n os m od er n os d es cen d em na lin h a
exclu s iva m en t e fem in in a . Deve h a ver u m a m u lh er a r es p eit o d a qu a l es t a a fir m a çã o p od e s er feit a .
A ú n ica d is cu s s ã o é s ob r e s e ela viveu a qu i e n ã o lá , n es t a ép oca e n ã o n a qu ela . O fa t o d e qu e ela
realmente viveu, em algum lugar e em alguma época, é certo.

31
E aqui está um segundo mal-entendido – u m m a l-entendid o m a is com u m , qu e ou vi
p er p et r a d o m es m o p or em in en tes cien t is t a s qu e t r a b a lh a m n o ca m p o d o ADN m it ocôn d r ia l. É a
cr en ça d e qu e a E va m it ocôn d r ia l é a n os s a a n ces t r a l com u m m a is r ecen te. E la é fu n d a m en ta d a n a
con fu s ã o en tr e “a n ces t r a l com u m m a is r ecen te” e “a n ces t r a l com u m m a is r ecen te n a lin h a
p u r a m en te fem in in a ”. A E va m it ocôn d r ia l é n os s a a n ces t r a l com u m m a is r ecen te n a lin h a
puramente feminina, mas existem muitas outras maneiras de ser descendente de nossos ancestrais
a lém d a lin h a fem in in a . Milh ões d e ou t r a s m a n eir a s . Volt e a os n os s os cá lcu los d o n ú m er o d e
a n ces t r a is (es qu ecen d o a com p lica çã o d o ca s a m en t o en t r e p r im os , qu e a n tes er a o p on t o p r in cip a l
d o a r gu m en to). Você tem oit o b is a vós , m a s a p en a s u m d eles é d e lin h a p u r a m en te fem in in a . Você
t em d ezes s eis t r is a vós , m a s a p en a s u m d eles é d e lin h a p u r a m en te fem in in a . Mes m o qu e
p er m it a m os qu e ca s a m en t o en t r e p r im os r ed u za o n ú m er o d e a n ces t r a is em u m a d eter m in a d a
ger a çã o, a in d a é ver d a d e qu e h á m u it ís s im a s m a n eir a s d e s er u m a n ces t r a l a lém d a lin h a
exclusiva m en t e fem in in a . À m ed id a qu e a com p a n h a m os o n os s o r io gen ét ico, r em on t a n d o a t é a
An t igu id a d e r em ot a , p r ova velm en te en con t r a r em os m u it a s E va s e m u it os Ad ã os – in d ivíd u os foca is ,
de quem é possível dizer que todas as pessoas vivas em 1995 são descendentes dela, ou dele. A Eva
m it ocôn d r ia l é a p en a s u m d es s es a n ces tr a is . Nã o exis t e qu a lqu er r a zã o p a r t icu la r p a r a p en s a r qu e
d e t od os es tes Ad ã os e E va s , a E va m it ocon d r ia l é a m a is r ecen te. Ao con t r á r io. E la é d efIn id a d e
u m m od o particular: s om os d es cen d en tes d ela p or m eio d e u m ca m in h o p a r t icu la r a t r a vés d o r io d a
d es cen d ên cia . O n ú m er o d e ca m in h os p os s íveis qu e p od em s er coloca d os a o la d o d o ca m in h o
exclu s iva m en t e fem in in o é t ã o gr a n d e qu e é m a t em a t ica m en te m u it o im p r ová vel qu e a E va
m it ocôn d r ia l s eja a m a is r ecen te d es tes m u it os Ad ã os e E va s . E le é es p ecia l en t r e os ca m in h os
p os s íveis d e u m cer t o m od o (p or s er exclu s iva m en te fem in in o). S er ia u m a coin cid ên cia n ot á vel s e
ele fosse um caminho especial entre os caminhos possíveis de um outro modo (ser o mais recente).
Um p on t o a d icion a l d e in t er es s e m ed ia n o é qu e o n os s o a n ces t r a l com u m m a is r ecen te p od e
d e a lgu m m od o t er s id o m a is p r ova velm en te u m Ad ã o d o qu e u m a E va . Ha r én s d e fêm ea s t êm
m a ior p r ob a b ilid a d e d e ocor r er d o qu e h a r én s d e m a ch os , p ois os m a ch os s ã o fis ica m en te ca p a zes
d e ter cen ten a s d e r eb en tos , e m es m o m ilh a r es . O Gu in n es s B ook of Record s r egis t r a u m r ecor d e
s u p er ior a m il r eb en t os , a t in gid o p or Mou la y Is h m a el, o Sed en to d e S a n gu e. (In cid en t a lm en te,
Mou la y Is h m a el p od e m u it o b em s er a d ot a d o p ela s fem in is ta s com o s ím b olo d e m a ch is m o
d es a gr a d á vel. Diz-s e qu e s eu m ét od o d e m on t a r u m ca va lo er a t ir a r a es p a d a d a b a in h a e s a lta r n a
s ela , p a r t in d o r a p id a m en te a o m es m o t em p o em qu e d eca p it a va o es cr a vo qu e s egu r a va a s r éd ea s .
Por mais incrível que isto possa parecer, o fato é que a lenda chegou até nós, junto com a reputação
d e ter m a t a d o 1 0 m il h om en s com s u a s p r óp r ia s m ã os , d a n d o t a lvez u m a id éia d o t ip o d e
qu a lid a d es qu e er a m a s m a is a d m ir a d a s en t r e os h om en s d e s eu t ip o.) As m u lh er es , m es m o em
condições id ea is , n ã o p od em t er m a is d o qu e d u a s d ezen a s d e filh os . É m a is p r ová vel qu e a m u lh er
t en h a o n ú m er o m éd io d e fIlh os d o qu e o h om em . Un s p ou cos h om en s p od em t er u m qu in h ã o
ridiculamente grande de rebentos, o que significa que os outros homens não podem ter nenhum. Se
a lgu ém fr a ca s s a com p let a m en te com o r ep r od u t or , é m u it o m a is p r ová vel qu e s eja o h om em e n ã o a
m u lh er . E s e a lgu ém ger a u m a p os t er id a d e d es p r op or cion a d a , é ta m b ém p r ová vel qu e es te a lgu ém
s eja u m h om em . Is t o va le p a r a o a n ces t r a l com u m m a is r ecen te d e t od a a h u m a n id a d e, qu e é
portanto muito mais provável ter sido um Adão do que uma Eva. Considerando um exemplo radical,
qu em é m a is p r ova velm en t e o a n ces t r a l d e t od os os m a r r oqu in os d e h oje, Mou la y Is h m a el, o
Sedento de Sangue, ou qualquer mulher de seu infeliz harém?

32
Podemos chegar às seguintes conclusões: primeiro, é necessariamente certo que existiu uma
única mulher, a quem podemos chamar de Eva mitocôndrial, que é o ancestral comum mais recente
d e t od os os h u m a n os p elo ca m in h o exclu s iva m en te fem in in o. Ta m b ém é cer t o qu e exis t iu u m a
pessoa, de sexo desconhecido, a quem podemos chamar o Ancestral Focal, que é o ancestral comum
m a is r ecen te d e t od os os h u m a n os qu a lqu er qu e s eja o ca m in h o. Ter ceir o, em b or a s eja p os s ível qu e
a E va m it ocôn d r ia l e o An ces t r a l Foca l s eja m u m a ú n ica p es s oa , é d es p r ezivelm en te im p r ová vel qu e
is t o s eja a s s im . Qu a r t o, é d e a lgu m m od o m a is p r ová vel qu e o An ces t r a l Foca l t en h a s id o u m
homem e não uma mulher. Quinto, a Eva mitocôndrial muito provavelmente viveu há menos do que
u m qu a r t o d e m ilh ã o d e a n os . S ext o, h á d is cor d â n cia s ob r e o lu ga r on d e a E va m it ocôn d r ia l viveu ,
m a s a b a la n ça d a op in iã o in for m a d a a in d a fa vor ece a Áfr ica . Ap en a s cin co e s eis d ep en d em d a
análise da evidência científica. As quatro primeiras podem ser trabalhadas a partir do conhecimento
comum e raciocínio de poltrona.
Ma s eu d is s e qu e os a n ces t r a is d etêm a ch a ve d a com p r een s ã o d a vid a . A h is t ór ia d a E va
a fr ica n a é u m m icr ocos m os h u m a n o, p a r oqu ia l, d e u m ép ico in com p a r a velm en te m a is a n t igo e
m a ior . Us a r em os n ova m en t e o r ecu r s o d a m et á for a d o r io d e gen es , o n os s o r io qu e s a ía d o É d en .
Ma s d ever em os volt a r p a r a t r á s n o t em p o a t r a vés d e u m a es ca la t em p or a l in com en s u r a velm en te
m a is a n t iga d o qu e os m ilh a r es d e a n os d a E va legen d á r ia e d a s cen ten a s d e m ilh a r es d e a n os d a
E va a fr ica n a . O r io d e ADN vem flu in d o a t r a vés d e n os s os a n ces t r a is a o lon go d e u m cu r s o
ininterrupto que abrange não menos de 3 mil milhões de anos.

33
3
FAÇA O BEM FURTIVAMENTE

O criacionismo tem uma atração duradoura, e o motivo não é difícil de entender. Não o é, pelo
m en os p a r a a m a ior p a r t e d a s p es s oa s qu e en con tr o, p or ca u s a d a a d es ã o à ver d a d e liter a l d o
Gên es e ou a a lgu m a ou t r a h is t ór ia t r ib a l s ob r e a s or igen s . Is t o a con t ece p or qu e a s p es s oa s
d es cob r em p or s i m es m a s a b eleza e a com p lexid a d e d o m u n d o vivo e con clu em qu e ele d eve ter
s id o “ob via m en te” p la n eja d o. Os cr ia cion is t a s qu e r econ h ecem qu e a evolu çã o d a r win ia n a for n ece
p elo m en os a lgu m t ip o d e a lter n a t iva à s u a t eor ia fu n d a m en ta d a n a s es cr it u r a s m u it a s vezes
a p ela m para uma ob jeçã o ligeir a m en t e m a is s ofis t ica d a . E les n ega m a p os s ib ilid a d e de
intermediários evolutivos. “X deve ter sido planejado por um Criador”, dizem as pessoas, “pois um X
p ela m et a d e n ã o fu n cion a r ia d e m od o a lgu m . Tod a s a s p a r t es d e X d evem ter s id o coloca d a s ju n t as
s im u lt a n ea m en te; ela s n ã o p od er ia m ter evolu íd o d e m od o gr a d u a l”. Por exem p lo, n o d ia em qu e
com ecei a es cr ever es te ca p ít u lo a con t eceu d e eu r eceb er u m a ca r t a . E r a d e u m p a s t or a m er ica n o
que havia sido ateu, mas convertera-se ao ler um artigo do National Geographic. E is a qu i u m t r ech o
extraído da carta:
O artigo era sobre as espantosas adaptações que as orquídeas fizeram aos seus ambientes para propagar-
se de modo bem-sucedido.
E n qu a n t o lia fiqu ei p a r t icu la r m en te in t r iga d o p ela es tr a tégia r ep r od u t iva d e u m a es p écie, qu e en volvia a
cooperação de urna vespa macho. Aparentemente a flor lembrava de muito perto a fêmea desta espécie de
ves p a , in clu s ive ten d o u m a a b er t u r a n o lu ga r a p r op r ia d o, p a r a qu e a ves p a m a ch o p u d es s e a lca n ça r , a o
cop u la r com a flor , o p ólen p r od u zid o p or es ta . Ao voa r p a r a a flor s egu in te o p r oces s o s er ia r ep et id o, e
d es t a m a n eir a a con t ece à p olin iza çã o cr u za d a . E m p r im eir o lu ga r , o qu e tom ou a flor a t r a en te p a r a a
vespa foi o fato de que ela emitia feromônios [produtos químicos específicos muito utilizados pelos insetos
e que servem para reunir os sexos] idênticos aos das fêmeas desta espécie de vespa. Examinei com algum
in ter es s e a s fot ogr a fia s qu e a com p a n h a va m o text o d u r a n t e m a is ou m en os u m m in u t o. E n t ã o, com u m a
sensação formidável de choque, percebi que para que aquela estratégia reprodutiva tivesse dado certo, ela
t in h a d e s er p er feit a d es d e a p r im eir a vez. Pa s s os in cr em en t a is n ã o p od er ia m exp licá -la , p ois s e a
orquídea não se parecesse com e Gheirasse como a fêmea da vespa, e possuísse uma abertura apropriada
p a r a a cop u la çã o com o p ólen p er feit a m en te d en tr o d o a lca n ce d o ór gã o r ep r od u t ivo d a ves p a m a ch o, a
estratégia seria um fracasso total.
Nu n ca es qu ecer ei o s en t im en to d e d ep r es s ã o qu e t om ou con t a d e m im , p ois n a qu ele m in u t o t om ou -se
cla r o qu e a lgu m t ip o d e Deu s em a lgu m t ip o d e for m a d eve exis t ir , e ter u m a r ela çã o con t ín u a com o
processo pelo qual as coisas passam a existir.
Qu e, em s u m a , o Deu s cr ia d or n ã o er a u m m it o a n t ed ilu via n o, m a s a lgu m a cois a r ea l. E , m u it o
relutantemente, também vi que deveria pesquisar para descobrir mais sobre Deus o mais rápido possível.

Ou t r os , s em d ú vid a , ch ega m à r eligiã o p or ca m in h os d ifer en tes , m a s cer t a m en te m u it a s


p es s oa s t iver a m u m a exp er iên cia s im ila r à qu ela qu e m u d ou a vid a d es te p a s tor (cu ja id en tid a d e,
em n om e d a b oa ed u ca çã o, n ã o r evela r ei). E les vir a m u m a m a r a vilh a d a n a t u r eza , ou ler a m s ob r e
ela . E is t o, d e u m m od o ger a l, os en ch eu d e tem or e a d m ir a çã o, ch ega n d o à r ever ên cia . Ma is
es p ecifica m en t e, com o m eu m is s ivis t a , eles d ecid ir a m qu e es te fen ôm en o n a t u r a l p a r t icu la r – u m a

34
teia de aranha, um olho de águia, ou o que quer que seja – não pode ter evoluído em estágios
graduais, porque os estágios intermediários, semicompletos não serviriam para nada. O propósito
deste capítulo é destruir o argumento de que maquinações complicadas devem ser perfeitas se
queremos que elas funcionem. Incidentalmente, as orquídeas estavam entre os exemplos favoritos
de Charles Darwin, e ele devotou um livro inteiro à demonstração de corno o princípio da evolução
gr a d u a l p ela s eleçã o n a t u r a l p a s s a p elo t es te d e exp lica r “As vá r ia s m a qu in a ções p ela s qu a is a s
orquídeas são fertilizadas pelos insetos10” .
A ch a ve d o a r gu m en t o d o p a s t or es t á n a a fir m a çã o “p a r a qu e a qu ela es t r a tégia r ep r od u t iva
tivesse dado certo, ela tinha de ser perfeita desde a primeira vez. Passos incrementais não poderiam
explicá-la”. O mesmo argumento poderia ser aplicado – e freqüentemente o é – à evolução do olho, e
voltarei a isto no decorrer do capítulo.
O qu e s em p r e m e im p r es s ion a qu a n d o es cu t o es te t ip o d e a r gu m en t o é a con fia n ça com qu e
ele é apresentado. Como, quero perguntar ao pastor, o senhor poderia estar certo de que a orquídea
qu e im it a a ves p a (ou o olh o, ou qu a lqu er ou t r a cois a ) n ã o p od er ia fu n cion a r a m en os qu e ca d a
p a r t e d ela fos s e p er feit a e es t ives s e n o lu ga r ? O s en h or d eu à qu es t ã o, d e fa t o, u m s egu n d o d e s u a
a t en çã o? O s en h or r ea lm en t e s a b e o b á s ico s ob r e or qu íd ea s , ou ves p a s , ou s ob r e os olh os com os
qu a is a s ves p a s olh a m p a r a a s fêm ea s e a s or qu íd ea s ? O qu e o fa z s er ou s a d o a p on t o d e a fir m a r
qu e a s ves p a s s ã o t ã o d ifíceis d e s er en ga n a d a s qu e a s em elh a n ça d a or qu íd ea d ever ia s er p er feita
em todas as suas dimensões para funcionar?
Pen s e s ob r e a ú lt im a vez em qu e o s en h or foi en ga n a d o p or u m a s em elh a n ça ca s u a l. Ta lvez o
senhor ten h a t ir a d o o ch a p éu p a r a u m a es t r a n h a n a r u a , con fu n d in d o-a com u m a p es s oa d e s u a s
relações. As estrelas de cinema têm dublês masculinos e femininos que caem dos cavalos ou saltam
do penhasco em seus lugares. A semelhança do dublê com a estrela é usualmente muito superficial,
m a s d u r a n t e a r á p id a t om a d a d a a çã o ela é s u ficien te p a r a en ga n a r u m a a u d iên cia . Os m a ch os
h u m a n os s ã o excit a d os s exu a lm en te p ela s fot ogr a fia s d e u m a r evis t a . Um a fot o d e r evis t a é a p en a s
u m a im p r es s ã o a t in t a s ob r e o p a p el. E la é b id im en s ion a l e n ã o t r id im en s ion a l. A im a gem t em
a p en a s u n s p ou cos cen t ím et r os . E la p od e s er u m a ca r ica t u r a gr os s eir a con s is tin d o em u n s p ou cos
t r a ços , e n ã o u m a r ep r es en t a çã o n a t u r a l. Ain d a a s s im ela p od e leva r u m h om em a t er u m a er eçã o.
Talvez uma visão fugidia da fêmea seja tudo o que uma vespa que voa velozmente possa obter antes
de tentar copular com ela. De qualquer modo, talvez as vespas macho percebam apenas uns poucos
estímulos-chave.
Existem todas as razões para pensar que as vespas possam ser enganadas mais facilmente do
que os humanos. As espinhelas certamente são, e os peixes têm cérebros maiores e visão melhor do
qu e a s ves p a s . As es p in h ela s m a ch os t êm ven t r es ver m elh os , e eles a m ea ça r ã o n ã o s om en te ou t r os
m a ch os com o t a m b ém im ita ções gr os s eir a s com o “ven t r e” ver m elh o. Meu velh o m es t r e, ga n h a d or
d o p r êm io Nob el, o et ologis t a Nik o Tin b er gen , con t ou u m a h is t ór ia fa m os a s ob r e u m a ca m in h on ete
ver m elh a d o cor r eio qu e p a s s ou r a p id a m en te n a fr en t e d a ja n ela d e s eu la b or a t ór io, e com o t od a s
a s es p in h ela s m a ch os cor r er a m p a r a o la d o d e s eu s t a n qu es qu e d a va m p a r a a ja n ela e a
a m ea ça r a m vigor os a m en te. As es p in h ela s fêm ea s qu e es t ã o ch eia s d e ova s têm os ven t r es in ch a d os
d e m a n eir a ca r a ct er ís t ica . Tin b er gen d es cob r iu qu e u m a im it a çã o p r a t ea d a , ext r em a m en te
gr os s eir a , va ga m en te a lon ga d a , qu e n ã o s e a s s em elh a va em n a d a a os n os s os olh os a u m a
es p in h ela , m a s p os s u ía u m “ven t r e” b em r ed on d o, p r ovoca va u m com p or t a m en t o s exu a l p r óp r io
para o acasalamento por parte dos machos. Experiências mais recentes na linha de pesquisa criada

35
por Tinbergen mostraram que a assim chamada “bomba sexual” um objeto em forma de pêra, a
personificação da rechonchudez, mas não alongada e não semelhante a um peixe por nenhum
esforço de imaginação (humana) – era ainda mais eficiente em excitar sexualmente o macho da
espinhela. A “bomba sexual” para a espinhela é um exemplo clássico de um estímulo supernormal –
u m es t ím u lo a in d a m a is eficien te d o qu e a cois a r ea l. Com o ou t r o exem p lo, Tin b er gen p u b licou a
fot o d e u m os t r eir o ten t a n d o ch oca r u m ovo d o t a m a n h o d e u m ovo d e os t r a . As a ves têm cér eb r os
m a ior es e u m a vis ã o m elh or d o qu e os p eixes – e a fortiori d o qu e a s ves p a s –, a in d a a s s im os
os t r eir os a p a r en tem en te “p en s a m ” qu e u m ovo d o t a m a n h o d e ovo d e os t r a é u m ob jet o s u p er la t ivo
no que diz respeito a incubação.
Ga ivot a s , ga n s os e ou t r a s a ves qu e con s t r oem s eu s n in h os em s olo fir m e têm u m a r es p os t a
es ter eot ip a d a p a r a u m ovo qu e r olou p a r a for a d o n in h o. E les o a lca n ça m e o fa zem r ola r d e volt a
com a p a r te in fer ior d e s eu s b icos . Tin b er gen e s eu s es t u d a n tes m os t r a r a m qu e a s ga ivot a s fa r ã o
is t o n ã o a p en a s com s eu s p r óp r ios ovos , m a s t a m b ém com ovos d e ga lin h a e m es m o cilin d r os d e
m a d eir a ou la t a s d e ca ca u d es ca r t a d a s p or gen te a ca m p a d a . As ga ivot in h a s h er r in g 11 ob têm a s u a
a lim en t a çã o p ed in d o-a a os p a is ; ela s d ã o b ica d a s em u m a m a n ch a ver m elh a n o b ico d os p a is ,
estimulando-os a regurgitar alguns peixes de seu papo cheio. Tinbergen e um colega mostraram que
u m a im it a çã o gr os s eir a d a ca b eça d os p a is feit a d e p a p elã o er a m u it o eficien t e p a r a p r ovoca r o
com p or t a m en t o p ed in te p or p a r t e d a s ga ivot in h a s . Tu d o o qu e é r ea lm en te n eces s á r io é u m a
m a n ch a ver m elh a . No qu e d iz r es p eit o à ga ivot in h a , s eu s p a is s ã o u m a m a n ch a ver m elh a . E la p od e
muito bem ver o resto do corpo de seus pais, mas isto não parece ser importante.
E s t a vis ã o a p a r en tem en te r es t r it a n ã o é lim it a d a a s ga ivot in h a s . As ga ivot a s a d u lt a s d e
ca b eça p r et a s ã o con s p ícu a s p or ca u s a d e s u a s m á s ca r a s fa cia is n egr a s . Rob er t Ma s h , a lu n o d e
Tin b er gen , in ves t igou a im p or t â n cia d is t o p a r a os ou t r os a d u lt os p in t a n d o u m a im it a çã o d e
madeira da cabeça destas gaivotas. Cada uma das cabeças foi fincada na extremidade de um bastão
de madeira preso a motores elétricos ,dentro de uma caixa, de modo que, por controle remoto, Mash
podia erguer ou abaixar as cabeças e fazê-las girar para a esquerda e para a direita. Ele enterrava a
ca ixa p er t o d o n in h o d e ga ivot a e a d eixa va com a ca b eça s egu r a m en te for a d a vis ã o s ob a a r eia .
E n t ã o, d ia a p ós d ia , ele ia a t é u m a n tep a r o p er t o d o n in h o e ob s er va va a r ea çã o d a s ga ivot a s d o
n in h o à ca b eça d e im it a çã o qu a n d o es t a er a er gu id a e gir a va p a r a u m la d o ou ou t r o. As a ves
r es p on d er a m à ca b eça e a os s eu s m ovim en t os com o s e ela fos s e u m a ga ivot a r ea l, a in d a a s s im ela
era apenas uma imitação presa na extremidade de um bastão de madeira, sem qualquer corpo, sem
p er n a s , a s a s ou ca u d a , s ilen cios a e s em m ovim en t os excet o os b a s t a n t e r ob óticos e s em vid a d e
leva n t a r , gir a r e a b a ixa r . Pa r ece qu e, p a r a u m a ga ivot a d e ca b eça p r et a , u m vizin h o a m ea ça d or é
u m p ou co m a is d o qu e u m a fa ce n egr a e d es t it u íd a d e cor p o. O cor p o, a s a s a s ou qu a lqu er ou t r a
coisa parecem não ser necessários.
E n t r em n o a n t ep a r o p a r a ob s er va r a s a ves . Ma s h , com o m u it a s ger a ções d e or n it ólogos a n t es
e a p a r t ir d ele, exp lor a r a m a lim it a çã o h á lon go t em p o con h ecid a d o s is t em a n er vos o d a s a ves : a s
a ves n ã o s ã o m a t em á t icos n a t u r a is . S u p on h a qu e d ois d e vocês vã o p a r a o a n t ep a r o, e a p en a s u m
s a i d ele. Sem es te t r u qu e, a s a ves d es con fia r ia m d o a n t ep a r o, “s a b en d o” qu e a lgu ém en t r ou n ele.
Ma s s e ela s vêem a p en a s u m a p es s oa s a ir , “p r es s u p õem ” qu e a m b os s a ír a m . S e u m a a ve n ã o p od e
d izer a d ifer en ça en t r e u m a p es s oa ou d u a s , s er á s u r p r een d en te qu e o m a ch o d a ves p a p os s a s er
enganado por uma orquídea que tem uma semelhança um pouco menos que perfeita com a fêmea?

36
Mais uma história de aves nesta linha, e esta é uma tragédia. As peruas mães são protetoras
ferozes de sua prole. Elas precisam protegê-los contra os predadores dos ninhos, como a doninha
ou ratos. A regra que uma perua mãe usa para reconhecer os ladrões de ninho é uma regra
constemadoramente rude: nas vizinhanças de seu ninho, ataque qualquer coisa que se mova, a
m en os qu e ela fa ça u m b a r u lh o igu a l a o d e u m p er u b eb ê. Is t o foi d es cob er t o p or u m zoólogo
a u s t r ía co ch a m a d o Wolfga n g S ch leid t . S ch leid t teve u m a vez u m a p er u a m ã e qu e m a t ou s elva gem
ente todos os seus bebês. A razão era lastimosamente simples: ela era surda. Os predadores, no que
d iz r es p eit o a o s is t em a n er vos o d os p er u s , s ã o d efin id os com o ob jet os qu e s e m ovem e qu e n ã o
em item u m s om d e b eb ê. E s t es p er u s b eb ês , em b or a p a r eces s em p er u s b eb ês , s e m oves s em com o
p er u s b eb ês , e cor r es s em con fia n t em en t e p a r a a s u a m ã e com o p er u s b eb ês , for a m vít im a s d a
defInição restrita de “predador” da mãe. Ela estava protegendo suas crianças delas mesmas, e ela os
massacrou a todos.
Em uma versão da trágica história do peru vivida por um inseto, certas células sensoriais rias
a n t en a s d a a b elh a s ã o s en s íveis a a p en a s u m p r od u t o qu ím ico, o á cid o oléico. (E la s t êm ou t r a s
célu la s qu e. s ã o s en s íveis a ou t r os p r od u t os qu ím icos .) O á cid o oléico é p r od u zid o p elos cor p os d a s
a b elh a s em d ecom p os içã o, e ele a cion a o com p or t a m en t o “d e a gen te fu n er á r io” d a s a b elh a s , a
r em oçã o d os ca d á ver es d a s a b elh a s m or t a s d a colm éia . Se u m p es qu is a d or exp er im en t a l p in ça r
u m a got a d e á cid o oléico n u m a a b elh a viva , a in feliz cr ia t u r a s er á a r r a s t a d a p a r a for a d a colm éia ,
chutando e brigando, e obviamente muito viva, para ser jogada fora junto com as abelhas mortas.
Os cér eb r os d os in s et os s ã o m u it o m en or es d o qu e os cér eb r os d os p er u s ou os cér eb r os d os
h u m a n os . Os olh os d os in s et os , m es m o os gr a n d es olh os com p os t os d a s lib élu la s , p os s u em u m a
fração da acuidade de nossos olhos ou dos olhos das aves. Por outro lado, é sabido que os olhos dos
in s et os vêem o m u n d o d e u m m od o com p let a m en te d ifer en te d o m od o p elo qu a l os n os s os olh os o
vêem . O gr a n d e zoólogo a u s t r ía co Ka r l von Fr is ch d es cob r iu qu a n d o jovem qu e os in s et os s ã o cegos
p a r a a lu z ver m elh a ., m a s qu e eles p od em ver – e vêem com m a t iz m a r ca d a m en t e p r óp r io – a lu z
u lt r a violet a , p a r a a qu a l n ós s om os cegos . Os olh os d os in s et os s ã o m u it o m a is p r eocu p a d os com
a lgo ch a m a d o “vib r a ções lu m in os a s ”, qu e p a r ecem – p elo m en os p a r a u m in s et o qu e s e m ove
velozmente – s u b s t it u ir p a r cia lm en te o qu e n ós ch a m a r ía m os “for m a ”. Bor b olet a s m a ch os já for a m
vis t a s “cor t eja n d o” folh a s m or t a s qu e ca em d a s á r vor es . Nós vem os u m a fêm ea d e b or b oleta com o
u m p a r d e a s a s gr a n d es a git a n d o o a r p a r a cim a e p a r a b a ixo. Um m a ch o d e b or b olet a a vê, e a
cor t eja , com o u m a con cen t r a çã o d e “vib r a ções lu m in os a s ”. Você p od e en ga n á -lo com u m a lâ m p a d a
estroboscóp ica , a qu a l n ã o s e m ove, m a s a p en a s em it e cin tila ções d e lu z. Se você a cer t a r a t a xa d e
cin t ila ções , ele a t r a t a r á com o s e fos s e u m a ou t r a b or b olet a a git a n d o s u a s a s a s com a m es m a
fr eqü ên cia . As lis t r a s , p a r a n ós , s ã o p a d r ões es t á t icos . Pa r a o in s et o, à m ed id a qu e ele voa
p a s s a n d o p or ela s , a s lis t r a s a p a r ecem com o “cin t ila ções ” e p od em s er im it a d a s com u m a lâ m p a d a
es t r ob os cóp ica qu e em ite cin t ila ções d e lu z com a fr eqü ên cia cor r et a . O m u n d o vis t o p or m eio d os
olh os d os in s et os é t ã o es t r a n h o p a r a n ós qu e fa zer a fir m a ções com b a s e em n os s a p r óp r ia
exp er iên cia a o d is cu t ir o qu ã o “p er feit a m en te” u m a or qu íd ea p r ecis a im it a r o cor p o d e u m a ves p a
fêmea é uma presunção humana.
As p r óp r ia s ves p a s for a m o t em a d e u m a exp er iên cia clá s s ica , or igin a lm en te r ea liza d a p elo
gr a n d e n a t u r a lis t a fr a n cês J ea n -Hen r i Fa b r e e r ep etid a p or vá r ios ou t r os p es qu is a d or es , in clu s ive
membros da linha de pesquisa de Tinbergen. A vespa cavadora fêmea retoma a sua toca carregando
s u a p r es a a fer r oa d a e p a r a lis a d a . E la a d eixa for a d a t oca en qu a n t o en t r a , a p a r en tem en te p a r a

37
verificar se tudo está bem antes de reaparecer e arrastar a presa para dentro. Enquanto a vespa
está na toca, o experimentador afasta a presa uns poucos centímetros do lugar onde ela a deixou.
Quando a vespa reaparece, ela nota a falta e rapidamente recoloca a presa no lugar. Ela então a
arrasta de volta para a entrada da toca. Passaram-se apenas alguns segundos desde que ela
inspecionou o interior da toca. Nós pensamos que não há realmente motivos pelos quais ela não
dever ia p r os s egu ir p a r a a p r óxim a et a p a d a s u a r ot in a , a r r a s t a r a p r es a p a r a d en t r o d a t oca e
a ca b a r com ela . Ma s s eu p r ogr a m a foi r ecoloca d o em u m a et a p a a n t er ior . E la la b or ios a m en te d eixa
a p r es a for a d a t oca d e n ovo e en t r a p a r a fa zer u m a ou t r a in s p eçã o. O exp er im en t a d or p od e r ep et ir
esta charada quarenta vezes, até ficar aborrecido. A vespa comporta-se como uma máquina de lavar
coloca d a em u m a et a p a a n t er ior d e s eu p r ogr a m a e n ã o “s a b e” qu e já la vou a qu ela s r ou p a s
qu a r en t a vezes r ep et id a s . O em in en te cien t is t a d a com p u t a çã o Dou gla s Hofs t a d t er a d otou u m
a d jet ivo n ovo, “sphexish”, p a r a r ot u la r es te a u t om a t is m o in flexível e s em s en t id o. (Sphex é o n om e
d e u m t ip o r ep r es en t a t ivo d e ves p a ca va d or a .) Por t a n t o, p elo m en os em a lgu n s a s p ect os , a s ves p a s
s ã o fá ceis d e s er en ga n a d a s . É u m t ip o m u it o d ifer en te d e lu d ib r ia çã o d a qu ele p la n eja d o p ela
orquídea. Não obstante, devemos ser cautelosos ao usar a intuição humana para concluir que “para
que esta estratégia reprodutiva funcionasse, ela tinha que ser perfeita desde a primeira vez”.
Posso ter realizado muito bem meu trabalho de persuadi-lo de que as vespas são propensas a
s er en ga n a d a s fa cilm en te. Você p od e es t a r a lim en ta n d o u m a s u s p eit a qu a s e op os t a à d e m eu
m is s ivis t a or d en a d o p a s t or . S e a vis ã o d o in s et o é t ã o p ob r e, e s e a s ves p a s s ã o t ã o fá ceis d e
en ga n a r , p or qu e a or qu íd ea s e d á o t r a b a lh o d e tor n a r a s u a flor t ã o s em elh a n t e a u m a ves p a
fêmea? Bem, a visão das vespas não é sempre tão pobre. Há situações nas quais as vespas parecem
ver b a s t a n te b em : p or exem p lo, qu a n d o es t ã o loca liza n d o s u a t oca a p ós u m lon go vôo d e ca ça d a .
Tin b er gen in ves t igou is t o com a Philantus, a ves p a ca va d or a qu e ca ça a s a b elh a s . E le es p er a va a t é
qu e a ves p a en t r a s s e n a toca . An t es qu e r ea p a r eces s e, Tin b er gen coloca va r a p id a m en te “m a r cos ”
em volt a d a en t r a d a d a t oca – d iga m os , u m r a m in h o e u m a p in h a . E le en t ã o a fa s t a va -s e e es p er a va
a ves p a s a ir d a t oca . Dep ois qu e s a ía d a t oca , a ves p a d a va d u a s ou t r ês Volt a s cir cu la r es em t or n o
desta, como se estivesse tirando uma fotografia mental da área, então voava em busca de sua presa.
Du r a n t e o t em p o em qu e a ves p a es t ives s e for a , Tin b er gen m ovia o r a m in h o e a p in h a p a r a u m
lu ga r u n s p ou cos m et r os a fa s t a d o. Qu a n d o a ves p a r et om a va , ela er r a va a t oca e m er gu lh a va n a
a r eia n o p on t o a p r op r ia d o r ela t ivo à s n ova s p os ições d o r a m in h o e d a p in h a . Nova m en te, a ves p a
t in h a s id o “en ga n a d a ” n u m cer t o s en t id o, m a s d es ta vez ela m er ece n os s a a d m ir a çã o p or s u a vis ã o.
Pa r ece qu e “t ir a r u m a fot ogr a fia m en t a l” er a o qu e ela r ea lm en te es ta va fa zen d o n o s eu vôo cir cu la r
p r elim in a r . E la p a r ece ter r econ h ecid o o p a d r ã o, ou “ges t a lt ”, d o r a m in h o e d a p in h a . Tin b er gen
r ep et iu a exp er iên cia m u ita s vezes , u s a n d o t ip os d ifer en tes d e m a r cos , t a is com o a n éis d e p in h a ,
com resultados consistentes.
Agor a , eis a qu i u m a exp er iên cia d e Ger a r d Ba er en d s , a lu n o d e Tin b er gen , qu e con t r a s t a d e
m od o im p r es s ion a n t e com a exp er iên cia d a “m á qu in a d e la va r ” d e Fa b r e. A es p écie d e ves p a
cavadora de Baerends, a Ammophila campestris, uma espécie também estudada por Fabre, é atípica
p or s er u m a “p r oved or a p r ogr es s is t a ”. A m a ior ia d a s ves p a s ca va d or a s a b a s t ecem s u a s toca s e
d ep os it a m u m ovo, d ep ois s ela m a s t oca s e d eixa m a s la r va s p a r a qu e s e a lim en tem p or con t a
própria. A Am m op h ila é d ifer en te. Com o u m a a ve, ela r et om a d ia r ia m en te à t oca p a r a ver ifica r o
bem-es t a r d a la r va , e lh e d a r com id a qu a n d o é n eces s á r io. Até a gor a , n a d a d e p a r t icu la r m en te
n ot á vel. Ma s u m a fêm ea in d ivid u a l d e Ammophila t er á d u a s ou t r ês t oca s p a r a t om a r con t a a o

38
mesmo tempo. Uma toca conterá uma larva relativamente grande, quase crescida; uma conterá
uma larva pequena, recém-posta; e uma, talvez, uma larva de tamanho e idade intermediários. As
três naturalmente têm exigências alimentares diferentes, e a mãe as satisfaz devidamente. Por meio
de uma série cansativa de experiências que envolviam a troca do conteúdo das tocas, Baerends foi
capaz de mostrar que as vespas mães realmente levam em consideração as exigências alimentares
diferentes de cada toca. Isto parece inteligente, mas Baerends descobriu que isto também, de um
modo muito estranho, não é o caso. A vespa mãe, como primeira tarefa matutina, faz uma ronda de
in s p eçã o em t od a s a s s u a s t oca s a t iva s . É o es t a d o d e ca d a t oca n a h or a d a in s p eçã o m a t u t in a qu e
a m ã e ver ifica e is t o in flu en cia s eu com p or t a m en t o com o p r oved or a p elo r es t o d o d ia . Ba er en d s
p od ia t r oca r os con t eú d os d a s t oca s qu a n t a s vezes qu is es s e a p ós a in s p eçã o m a t u t in a , e is to n ã o
fa zia qu a lqu er d ifer en ça p a r a o com p or t a m en t o d a ves p a m ã e com o p r oved or a . E r a com o s e ela
t ives s e liga d o s eu equ ip a m en t o d e a s s is t ên cia à s t oca s a p en a s d u r a n t e a d u r a çã o d a in s p eçã o
matutina e então o tivesse desligado, para economizar eletricidade pelo resto do dia.
Por u m la d o, es t a h is t ór ia s u ger e qu e h á u m equ ip a m en t o s ofis tica d o p a r a con t a r , m ed ir , e
m es m o ca lcu la r , n a ca b eça d a ves p a m ã e. Agor a fica fá cil a cr ed it a r qu e o cér eb r o d a ves p a p od er ia
s er ver d a d eir a m en te en ga n a d o a p en a s p or u m a s em elh a n ça d et a lh a d a e com p let a en t r e a or qu íd ea
e a fêm ea . Ma s a o m es m o t em p o, a h is t ór ia d e Ba er en d s s u ger e u m a ca p a cid a d e d e cegu eir a
s elet iva e d e s er en ga n a d a qu e es t á d e a cor d o com a exp er iên cia d a m á qu in a d e la va r , e fa z
a cr ed it a r qu e u m a s em elh a n ça gr os s eir a en t r e a or qu íd ea e a fêm ea p od e m u ito b em s er s u ficien te.
A liçã o ger a l qu e d evem os a p r en d er é n u n ca u s a r o ju lga m en t o h u m a n o a o a va lia r t a is qu es t ões .
Nu n ca d iga , e n u n ca leve a s ér io qu a lqu er u m qu e d iga , “eu n ã o p os s o a cr ed it a r qu e is t o a s s im
assim possa ter evoluído por meio de seleção gradual”. Chamo este tipo de falácia de “argumento da
in cr ed u lid a d e p es s oa l”. Por d iver s a s vezes , ele tem s e m os t r a d o u m p r elú d io a u m a exp er iên cia
intelectual do tipo escorregadia como uma casca de banana.
O a r gu m en t o qu e es t ou a t a ca n d o é a qu ele qu e d iz: a evolu çã o gr a d u a l d e t a l cois a n ã o
p od er ia ter a con t ecid o, p ois a s s im “ob via m en te” d eve s er p er feit o e com p let o s e é qu e d eve
fu n cion a r . At é a gor a , em m in h a r es p os t a , a t r ib u í m u it a im p or t â n cia a o fa t o d e qu e a s ves p a s e
ou t r os a n im a is têm u m a vis ã o d o m u n d o m u it o d ifer en te d a n os s a , e d e qu a lqu er m od o m es m o n ós
n ã o s om os d ifíceis d e s er en ga n a d os . Ma s h á ou t r os a r gu m en tos qu e qu er o d es en volver qu e s ã o
ainda mais convincentes e mais gerais. Vamos usar a palavra “frágil” para um engenho que deve ser
p er feit o s e qu is er m os qu e fu n cion e – com o o m eu m is s ivis t a a lega va a r es p eit o d a s or qu íd ea s qu e
im it a va m a s ves p a s . Ach o s ign ifica t ivo qu e n a ver d a d e s eja m u it o d ifícil p en s a r em u m en gen h o ou
d is p os it ivo in equ ivoca m en te fr á gil. Um a viã o n ã o é fr á gil, p ois em b or a n ós t od os p r efer ís s em os
con fia r n os s a s vid a s a u m Boein g 7 4 7 com p let o com t od a s a s s u a s m ir ía d es d e p a r t es em p er feit a s
con d ições d e fu n cion a m en t o, u m a viã o qu e t en h a p er d id o m es m o a lgu m a s p eça s p r in cip a is d o
equ ip a m en t o, com o, p or exem p lo, u m ou d ois d e s eu s m ot or es , a in d a p od e voa r . Um m icr os cóp io
n ã o é fr á gil, p ois em b or a u m d e qu a lid a d e in fer ior n os d ê u m a im a gem b or r a d a e m a l ilu m in a d a ,
você a in d a p od e ver p equ en os ob jet os com ele m elh or d o qu e ver ia s e n ã o tives s e m icr os cóp io
a lgu m . Um r á d io n ã o é fr á gil; ele p od e d eixa r a d es eja r s ob a lgu n s a s p ect os , ele p od e p er d er a
fid elid a d e e s eu s om p od e s er m et á lico e d is t or cid o, m a s você p od e a in d a d is t in gu ir o qu e a s
p a la vr a s s ign ifica m . Ven h o olh a n d o p ela ja n ela h á d ez m in u t os t en t a n d o p en s a r s ob r e u m ú n ico e
realmente bom exemplo de um engenho fabricado pelo homem que seja frágil, e consegui pensar em
apenas um: o arco. Um arco tem certa fragilidade no sentido em que, já que seus dois lados estejam

39
reunidos, ele tem grande resistência e estabilidade. Mas, antes de juntar os dois lados, nenhum
deles ficará de pé. Um arco tem de ser construído com a ajuda de algum tipo de andaime. O
andaime fornece um suporte temporário até que o arco esteja completo; então pode ser removido e o
arco permanece estável por um tempo muito longo.
Na t ecn ologia h u m a n a n ã o h á r a zã o p or qu e u m en gen h o ou d is p os it ivo n ã o d eva s er em
p r in cíp io fr á gil. Os en gen h eir os têm a lib er d a d e d e p r ojet a r em s u a s p r a n ch et a s en gen h os qu e, s e
s em icom p let os , n ã o fu n cion a r ia m d e m od o a lgu m . Mes m o n o ca m p o d a en gen h a r ia , p or ém , t em os
d ificu ld a d es d e d es cob r ir u m en gen h o gen u in a m en t e fr á gil. Acr ed it o qu e is t o s eja a in d a m a is
ver d a d eir o p a r a os en gen h os vivos . Va m os exa m in a r a lgu n s d os d is p os it ivos s u p os t a m en te fr á geis
d o m u n d o vivo qu e a p r op a ga n d a cr ia cion is t a t em u t iliza d o. O exem p lo d a ves p a e d a or qu íd ea é
a p en a s u m exem p lo d o fa s cin a n t e fen ôm en o d o m im et is m o. Um gr a n d e n ú m er o d e a n im a is e
a lgu m a s p la n t a s ob t êm va n t a gen s em r a zã o d e s u a s em elh a n ça com ou t r os ob jet os , m u it a s vezes
ou t r os a n im a is e p la n t a s . Qu a s e t od os os a s p ect os d a vid a têm s id o em a lgu m lu ga r r efor ça d os ou
s u b ver t id os p elo m im et is m o: ob t er com id a (os t igr es e os leop a r d os s ã o qu a s e in vis íveis qu a n d o
es p r eit a m s u a s p r es a s n a flor es t a s a lp ica d a d e m a n ch a s cr ia d a s p ela lu z s ola r ; os p eixes -sapos
assemelham-s e a o fu n d o d o m a r s ob r e o qu a l es t ã o a s s en t a d os , e a t r a em s u a s p r es a s com u m a
“var a d e p es ca ” com p r id a , em cu ja ext r em id a d e es t á u m a is ca qu e m im et iza u m ver m e; a s fêm ea s
d os p ir ila m p os , com p or t a n d o-s e com o ver d a d eir a s fem m es fa ta les , m im et iza m o p a d r ã o d e
a ca s a la m en t o p a r a a s cin t ila ções lu m in os a s d e ou t r a s es p écies , a t r a in d o m a ch os , qu e ela s en t ã o
d evor a m ; os b lên ios d e d en t e d e s a b r e im it a m ou t r a s es p écies d e p eixes qu e s e es p ecia liza m em
fa zer a lim p eza d e p eixes m a ior es , e en t ã o, u m a vez qu e lh es ten h a s id o d a d o a ces s o p r ivilegia d o,
arrancam pedaços das barbatanas de seus clientes); evitar ser comido (animais que podem servir de
presas para outros animais podem mimetizar uma casca de árvore, um ramo, folhas verdes e novas,
folh a s m or t a s e r es s eca d a s , flor es , es p in h os d e r os a s , cop a s d e p la n t a s ou a lga s m a r in h a s , p ed r a s ,
d ejet os d e a ves e ou t r os a n im a is con h ecid os com o ven en os os ou t óxicos ); lu d ib r ia r p r ed a d or es
afastando-os d os filh ot es (a vocet a s e m u it a s ou t r a s a ves qu e fa zem s eu s n in h os s ob r e o s olo
m im et iza m o a n d a r e os t r ejeit os d e u m a a ve com a a s a qu eb r a d a ); ob t er cu id a d os p a r a s eu s ovos
p or p a r t e d e ou t r os a n im a is (os ovos d os cu cos a s s em elh a m -s e a os ovos d a s es p écies h os p ed eir a s
p a r t icu la r es qu e p a r a s it a m ; a s fêm ea s d e cer t os p eixes ciclíd eos [a ca r á s ] têm im it a ções d e ovos
p in t a d os em s eu s fla n cos p a r a a t r a ir os m a ch os e fa zer com qu e es t es p on h a m os ovos ver d a d eir os
nas suas bocas e os choquem).
Em todos os casos, há uma tentação em pensar que a mimetização não funciona a menos que
s eja p er feit a . No ca s o p a r t icu la r d a or qu íd ea d a ves p a , r es s a ltei a s im p er feições p er cep t u a is d as
ves p a s e ou tr a s vít im a s d a m im et iza çã o. Na ver d a d e, a os m eu s olh os , a s or qu íd ea s n ã o s ã o t ã o
m is t er ios a s em s u a s em elh a n ça com ves p a s , a b elh a s ou m os ca s . A s em elh a n ça d e u m in s et o com
u m a folh a é m u it o m a is p r óxim a a os m eu s olh os , p os s ivelm en te p or qu e m eu s olh os s e p a r ecem
m u it o m a is com os olh os d os p r ed a d or es (p r es u m ivelm en te a ves ) con t r a os qu a is é d ir igid a a
mimetização da folha.
Mas há um sentido mais geral no qual é errado sugerir que a mimetização deve ser perfeita se
qu is er m os qu e ela fu n cion e. Nã o im p or t a qu ã o b on s os olh os d e, d iga m os , u m p r ed a d or p os s a m
s er , as con d ições de vis ib ilid a d e não são s em p r e p er feit a s . Ma is a in d a , h a ver á qu a s e
in evit a velm en t e u m con t ín u o d e con d ições d e vis ib ilid a d e qu e va i d e p és s im a s a t é m u it o b oa s .
Pen s e em a lgu m ob jet o qu e você r ea lm en t e con h ece b em , t ã o b em qu e você n u n ca p od er ia t om á -lo

40
por qualquer outra coisa. Ou pense em uma pessoa – digamos, uma amiga íntima, tão querida e
familiar que você nunca poderia confundi-la com qualquer outra pessoa. Mas agora imagine que ela
es t á ca m in h a n d o n a s u a d ir eçã o a u m a d is t â n cia m u it o gr a n d e. Deve h a ver u m a d is t â n cia t ã o
gr a n d e p a r a a qu a l você n ã o p od e vê-la d e m od o a lgu m . E u m a d is t â n cia t ã o p r óxim a qu e você
p od er á ver ca d a ca r a ct er ís t ica , ca d a cílio, ca d a p or o. Pa r a d is t â n cia s in t er m ed iá r ia s , n ã o h á
t r a n s for m a ções s ú b it a s . Há u m a u m en to ou d im in u içã o gr a d u a l d a ca p a cid a d e d e r econ h ecim en t o.
Os m a n u a is m ilit a r es d e t ir o a fir m a m : “A u m a d is t â n cia d e 2 0 0 m et r os , t od a s a s p a r t es d o cor p o
s ã o d is t in t a m en te vis t a s . A u m a d is t â n cia d e 3 0 0 m et r os , o con t or n o d o r os t o é va go. A u m a
distância de 400 metros, não se vê o rosto. A uma distância de 600 metros, a cabeça é um ponto e o
cor p o t om a -s e a fila d o. Algu m a p er gu n ta ?” No ca s o d e u m a a m iga qu e s e a p r oxim a gr a d u a lm en te,
você p od e r econhecê-la r ep en t in a m en te. Ma s n es te ca s o a d is tâ n cia for n ece u m gr a d ien t e d e
probabilidade de reconhecimento repentino.
De u m a m a n eir a ou d e ou t r a , a d is t â n cia for n ece u m gr a d ien te d e vis ib ilid a d e. E le é
es s en cia lm en t e gr a d u a l. Pa r a qu a lqu er gr a u d e s em elh a n ça en t r e u m m od elo e u m a im it a çã o, s eja
es t a s em elh a n ça m a r ca n t e ou qu a s e in exis t en te, d eve h a ver u m a d is t â n cia p a r a a qu a l os olh os d o
p r ed a d or s er ã o en ga n a d os e u m a d is tâ n cia ligeir a m en te m a is cu r t a p a r a a qu a l eles ter ã o u m a
p r ob a b ilid a d e m en or d e qu e is t o a con t eça . Por t a n t o, à m ed id a qu e a evolu çã o p r os s egu e,
s em elh a n ça s com u m a p er feiçã o qu e m elh or a gr a d u a lm en te p od em s er fa vor ecid a s p ela s eleçã o
n a t u r a l, n a m ed id a em qu e a d is t â n cia cr ít ica p a r a a qu a l o p r ed a d or p od e s er en ga n a d o t or n a -se
m en or . Us o a s p a la vr a s “olh os d e p r ed a d or ” n o lu ga r d e “olh os d e qu a lqu er u m qu e p r ecis a s er
en ga n a d o”. E m a lgu n s ca s os s er ã o os olh os d os p r ed a d or es , olh os d e p a is s u b s t it u t os , olh os d e
uma fêmea de peixe e assim por diante. .
Ten h o d em on s t r a d o es te efeit o em p a les t r a s p op u la r es p a r a a u d iên cia s con s t it u íd a s p or
cr ia n ça s . Meu colega , o Dr . Geor ge McGa vin , d o Oxford Un ivers ity Mu s eu m (Mu s eu d a Un iver s id a d e
d e Oxfor d ), gen t ilm en te con s t r u iu p a r a m im u m m od elo d e “ch ã o d a flor es t a ” cob er t o com r a m os ,
folh a s m or t a s e m u s go. S ob r e es te ch ã o ele h a b ilm en t e colocou d ú zia s d e in s etos m or t os . Algu n s
d eles , t a is com o os b es ou r os d e color a çã o a zu l m et á lica , er a m b a s t a n t e s a lien tes ; ou t r os , in clu s ive
in s et os qu e s e a s s em elh a m a gr a vet os e b or b olet a s qu e m im et iza m as folh a s , es t a vam
r equ in t a d a m en t e ca m u fla d os ; ou t r os a in d a , t a is com o a b a r a t a m a r r om , t in h a m u m a ca m u fla gem
in t er m ed iá r ia . As cr ia n ça s d a a u d iên cia er a m con vid a d a s e lh es er a p ed id o qu e ca n ú n h a s s em
lentamente em direção ao tablado, procurando pelos insetos e avisando quando tivessem descoberto
u m d eles . Qu a n d o es t a va m s u ficien tem en te lon ge, a s cr ia n ça s er a m in ca p a zes d e d es cob r ir m es m o
os in s et os m a is con s p ícu os . À m ed id a qu e s e a p r oxim a va m d o t a b la d o, ela s via m os m a is ób vios ,
d ep ois a qu eles d e ca m u fla gem in ter m ed iá r ia , com o a s b a r a t a s , e fin a lm en te os b em ca m u fla d os . Os
in s et os m u ito b em ca m u fla d os n ã o er a m p er ceb id os m es m o qu a n d o a s cr ia n ça s os olh a va m d e
muito perto, e quando eu os apontava as crianças davam suspiros de desapontamento.
A d is t â n cia n ã o é o ú n ico gr a d ien te s ob r e o qu a l p od em os a p r es en t a r es te t ip o d e a r gu m en t o.
O a n oit ecer é ou t r o. Na ca la d a d a n oit e, qu a s e n a d a p od e s er vis t o, e m es m o u m a s em elh a n ça
m u it o gr os s eir a d e u m a m im et iza çã o com o m od elo r ea l p a s s a r á p elo tes te. Ao m eio-d ia , a p en a s
u m a m im et iza çã o m et icu los a m en te p r ecis a p od e es ca p a r d es p er ceb id a . E n t r e es t a s d u a s p a r t es d o
d ia , a o r a ia r d o d ia e a o a n oit ecer , n o lu s co-fu s co, n u m n evoeir o ou em u m a t em p es t a d e d e ch u va ,
t em os u m con t ín u o s u a ve e in in ter r u p t o d e con d ições d e vis ib ilid a d e. Ma is u m a vez, a s
s em elh a n ça s d e p r ecis ã o gr a d u a lm en te cr es cen te s er ã o fa vor ecid a s p ela s eleçã o n a t u r a l, p ois p a r a

41
qualquer semelhança determinada haverá um nível de visibilidade para o qual esta qualidade
particular da semelhança fará toda a diferença. À medida que a evolução prossegue, semelhanças
aperfeiçoadas gradualmente conferem uma vantagem para a sobrevivência, pois a intensidade
crítica da luz para ser enganado torna-se pouco a pouco maior.
Um gr a d ien te s im ila r é for n ecid o p elo â n gu lo d e vis ã o. A m im et iza çã o d e u m in s et o, s eja ela
b oa ou m á , s er á vis t a a lgu m a s vezes p elo ca n to d os olh os d e u m p r ed a d or . E m ou t r a s
op or t u n id a d es ela s er á vis t a im p ied os a m en te d e fr en te. Deve h a ver u m â n gu lo d e vis ã o t ã o
periférico que a mimetização mais pobre possível escapará de ser detectada. E deve haver uma visão
t ã o cen t r a l qu e m es m o a m im et iza çã o m a is b r ilh a n t e fica em p er igo. E n t r e es ta s d u a s s it u a ções h á
u m gr a d ien te con t ín u o d e vis ã o, u m con t ín u o d e â n gu los . Pa r a u m d eter m in a d o n ível d e p er feiçã o
n a m im et iza çã o, h a ver á u m p a r a o qu a l u m a p equ en a m elh or a ou u m a p equ en a p ior a é cr u cia l. À
m ed id a qu e a evolu çã o p r os s egu e, a s s em elh a n ça s qu e a p er feiçoa m d e m od o con t ín u o a s u a
qualidade são favorecidas, pois o ângulo crítico para ser enganado torna-se cada vez mais central.
A qu a lid a d e d os olh os e cér eb r os d os in im igos p od e s er con s id er a d a com o u m ou t r o
gr a d ien te, e já in d iqu ei is to n a s p a r tes in icia is d es te ca p ít u lo. Pa r a qu a lqu er gr a u d e s em elh a n ça
en t r e u m m od elo r ea l e s u a m im et iza çã o, h á u m a p r ob a b ilid a d e d e qu e exis ta u m olh o qu e s er á
en ga n a d o e u m olh o qu e n ã o o s er á . Nova m en te, à m ed id a qu e a evolu çã o p r os s egu e, s em elh a n ça s
com u m a qu a lid a d e qu e a u m en t a con t in u a m en te s ã o fa vor eci d a s , p ois olh os d e p r ed a d or ca d a vez
m a is s ofis t ica d os es t ã o s en d o en ga n a d os . Nã o qu er o d izer qu e os p r ed a d or es es t ã o d es en volven d o
olh os m elh or es em p a r a lelo com o a p er feiçoa m en t o d a m im et iza çã o, em b or a p os s a m . Qu er o d izer
qu e exis te, em a lgu m lu ga r , p r ed a d or es com b on s olh os e p r ed a d or es com olh os r u in s . Tod os es tes
p r ed a d or es con s t it u em -s e em u m p er igo. Um a m im et iza çã o p ob r e en ga n a a p en a s os p r ed a d or es
com olhos ruins. Uma mimetização boa engana quase todos os predadores. Entre estes extremos há
um contínuo suave.
A m en çã o a olh os b on s e r u in s leva -m e a o qu eb r a -ca b eça fa vor it o d os cr ia cion is t a s . Qu a l é a
u t ilid a d e d e u m olh o p ela m et a d e? Com o p od e a s eleçã o n a t u r a l fa vor ecer u m olh o qu e é m en os d o
qu e p er feit o? Tr a t ei d es t a qu es t ã o a n tes e a p r es en tei u m a ga m a d e olh os in ter m ed iá r ios , ca lca d os
n a qu eles qu e r ea lm en te exis t em n os vá r ios phyla d o r ein o a n im a l. Aqu i in cor p or a r ei os olh os s ob a
r u b r ica d os gr a d ien tes teór icos qu e cr iei. Há u m gr a d ien te, u m con t ín u o, d e ta r efa s p a r a a s qu a is
u m olh o p od e s er u t iliza d o. No m om en t o, es t ou u t iliza n d o os m eu s p a r a r econ h ecer a s letr a s d o
a lfa b et o à m ed id a qu e ela s a p a r ecem n a t ela d o com p u t a d or . Você p r ecis a d e b on s olh os , com u m a
a cu id a d e gr a n d e, p a r a fa zer is t o. At in gi u m a id a d e em qu e n ã o p os s o m a is ler s em a a ju d a d e
ócu los , qu e a gor a s ã o d e len tes m a gn ifica d or a s m a is ou m en os fr a ca s . À m ed id a qu e en velh ecer , a
in t en s id a d e d a s len tes p r es cr it a s a u m en t a r á con s t a n t em en te. Sem m eu s ócu los , d es cob r ir ei qu e é
ca d a vez m a is d ifícil ver os p equ en os d et a lh es . Aqu i t em os u m ou t r o con t ín u o – o con t ín u o d a
idade.
Qu a lqu er h u m a n o n or m a l, n ã o im p or t a qu ã o velh o s eja , t em u m a vis ã o m elh or d o qu e u m
in s et o. Há t a r efa s qu e p od em s er r ea liza d a s d e m od o ú t il p or p es s oa s com u m a vis ã o r ela t iva m en te
p ob r e, m es m o qu e es t a s es t eja m p r óxim a s d a cegu eir a t ot a l. Você p od e joga r t ên is com u m a vis ã o
b a s t a n t e b or r a d a , p ois a b ola d e tên is é u m ob jet o gr a n d e, cu jos p os içã o e m ovim en t o p od em s er
vistos mesmo que estejam fora de foco. Os olhos das libélulas, embora pobres pelos nossos padrões,
s ã o b on s p elos p a d r ões d os in s et os , e a s lib élu la s p od em ca ça r in s et os com a s a s a s , u m a t a r efa t ã o
d ifícil qu a n t o a cer t a r u m a b ola d e t ên is . Olh os m u it o p ior es p od em s er u s a d os n a t a r efa d e evit a r a

42
colisão com uma parede, cair de um penhasco ou em um rio. Olhos que são ainda piores podem
perceber quando uma sombra, que pode ser uma nuvem ou também trair a presença de um
predador, paira sobre a cabeça. E olhos que são ainda mais pobres podem servir para perceber a
diferença entre o dia e a noite, o que é útil para, entre outras coisas, sincronizar as temporadas de
reprodução e saber a hora de dormir. Há um contínuo de tarefas para as quais um olho pode ser
classificado, de magnífico a terrível, de modo que, para uma determinada qualidade de visão, existe
um nível de tarefas para o qual um aperfeiçoamento marginal na visão poderia ser de suprema
import â n cia . Por t a n t o, n ã o h á d ificu ld a d e em en ten d er a evolu çã o gr a d u a l d o olh o, d es d e s eu s
com eços p r im it ivos e r u d im en t a r es , p a s s a n d o p elo con t ín u o s u a ve d e qu a lid a d es in ter m ed iá r ia s ,
até a perfeição que vemos no gavião e nos humanos jovens.
As s im , a p er gu n t a d o cr ia cion is t a – “Qu a l é a u t ilid a d e d e u m olh o p ela m et a d e?” – é u m a
questão peso-leve, fácil de ser respondida. Um olho pela metade é apenas 1 por cento melhor do que
4 9 p or cen t o d e u m olh o, o qu e já é m elh or d o qu e 4 8 p or cen t o, e a d ifer en ça é s ign ifica t iva . Um a
d em on s t r a çã o m a is p on d er á vel d e p es o p a r ece es t a r p or t r á s d o com p lem en t o in evit á vel: “Fa la n d o
com o fís ico 12, n ã o p os s o a cr ed it a r qu e t en h a h a vid o t em p o s u ficien te p a r a qu e u m ór gã o t ã o
com p lica d o com o o olh o t en h a evolu íd o a p a r t ir d o n a d a . Você r ea lm en te p en s a qu e h ou ve t em p o
s u ficien te?” Am b a s a s p er gu n t a s or igin a m -s e d o Ar gu m en t o d a In cr ed u lid a d e Pes s oa l. Nã o
obstante, as audiências apreciam uma resposta, e usualmente tenho recorrido à magnitude pura do
t em p o geológico. S e u m p a s s o r ep r es en ta u m s écu lo, o t em p o em An n o Dom in i é r ed u zid o a o s a lto
d e u m gr ilo. Pa r a ch ega r a t é a or igem d os a n im a is m u lt icelu la r es n es t a m es m a es ca la , você ter ia
que caminhar com o passo apertado de Nova York até San Francisco.
Agor a t em os a im p r es s ã o d e qu e o im p a ct o d a en or m id a d e d o t em p o geológico é com o u s a r
um martelo pneumático para quebrar um amendoim. Caminhar de costa a costa dramatiza o tempo
disponível p a r a a evolu çã o d o olh o. Ma s u m es t u d o r ecen te r ea liza d o p or d ois cien t is t a s s u ecos ,
Da n Nils s on e S u s a n n e Pelger , s u ger e qu e u m a fr a çã o r id icu la m en t e p equ en a d es te tem p o s er ia o
s u ficien te. A p r op ós it o, qu a n d o a lgu ém d iz “o olh o”, im p licit a m en te qu er d izer o olh o d o ver teb r a d o,
mas olh os ú t eis , for m a d or es de im a gen s evolu ír a m en t r e qu a r en t a e s es s en t a vezes,
in d ep en d en tem en te a p a r tir d o zer o, em m u it os gr u p os d ifer en tes d e in ver teb r a d os . E n t r e es t a s
m a is d e qu a r en t a evolu ções in d ep en d en t es , p elo m en os n ove p r in cíp ios d is t in t os d e p la n eja m en to
for a m d es cob er t os , in clu s ive olh os s em elh a n tes a ca b eça s d e a lfin ete, d ois t ip os d e olh os
s em elh a n tes a len tes d e câ m er a fot ogr á fica , olh os cu r vos e r efletor es (s em elh a n t es à s a n ten a s em
forma de prato dos satélites), e diversos tipos de olhos compostos. Nilsson e Pelger concentraram-se
n os olh os s em elh a n tes a len tes d e câ m er a , t a is com o os b em d es en volvid os n os ver teb r a d os e n os
polvos.
Como você começaria uma estimativa do tempo necessário para uma determinada quantidade
d e m u d a n ça evolu t iva ? Tem os d e en con t r a r u m a u n id a d e p a r a m ed ir o t a m a n h o d e ca d a p a s s o
evolutivo, e é s en s a t o exp r es s á -lo com o u m a m u d a n ça p er cen t u a l n o qu e já exis t e. Nils s on e Pelger
usaram o número de mudanças sucessivas de 1 por cento como sua unidade para medir mudanças
n a s qu a n t id a d es a n a t ôm ica s . E s t a é a p en a s u m a u n id a d e con ven ien te – com o a ca lor ia , d efin id a
com o a qu a n t id a d e d e en er gia n eces s á r ia p a r a r ea liza r cer t a qu a n t id a d e d e t r a b a lh o. É m a is fá cil
u s a r a u n id a d e d e 1 p or cen t o qu a n d o a m u d a n ça é ela t od a em u m a d im en s ã o. No even t o
im p r ová vel, p or exem p lo, d e qu e a s eleçã o n a t u r a l fa vor eces s e ca u d a s d e a ve-do-p a r a ís o d e
t a m a n h o s em p r e cr es cen te, qu a n t os p a s s os s er ia m n eces s á r ios p a r a qu e es t a evolu ís s e d e 1 m et r o

43
para 1 quilômetro de comprimento? Um aumento de 1 por cento no comprimento da cauda não
seria notado pelo observador de aves casual. Não obstante, surpreendentemente, são necessários
poucos passos para alongar a cauda até o comprimento de 1 quilômetro – menos do que setecentos
passos.
Alon ga r u m a ca u d a d e 1 m et r o a té 1 qu ilôm et r o é fá cil (e b a s t a n t e a b s u r d o), m a s com o você
colocaria a evolu çã o d e u m olh o n a m es m a es ca la ? O p r ob lem a é qu e, n o ca s o d o olh o, m u it a s
cois a s d evem a con t ecer em m u it a s p a r t es d ifer en tes , em p a r a lelo. A t a r efa d e Nils s on e Pelger er a
cr ia r m od elos d e evolu çã o p a r a o olh o n o com p u t a d or e r es p on d er a d u a s p er gu n t a s . A p r im eir a é
es s en cia lm en t e a p er gu n t a qu e fizem os r ep et id a s vezes n o p a s s a d o em d iver s a s p á gin a s d es te livr o,
m a s eles a fizer a m d e m od o m a is s is tem á t ico, u s a n d o u m com p u t a d or : h a ver á u m gr a d ien t e s u a ve
de mudança, da superfície achatada até o olho de câmera completo, tal que cada olho intermediário
s eja u m a p er feiçoa m en t o d o a n t er ior ? (Ao con t r á r io d os p r ojet is t a s h u m a n os , a s eleçã o n a t u r a l n ã o
p od e es cor r ega r m on t a n h a a b a ixo – n em m es m o s e h ou ver u m a m on t a n h a t en t a d or a m a is a lt a n o
ou t r o la d o d o va le.) Segu n d o – a qu es t ã o com a qu a l com eça m os es t a s eçã o –, qu a n t o t em p o s er ia
necessário para que a quantidade necessária de mudança evolutiva ocorresse?
Nos s eu s m od elos con s tr u íd os n o com p u t a d or , Nils s on e Pelger n ã o fizer a m qu a lqu er
t en t a t iva d e s im u la r o fu n cion a m en t o in t er n o d a s célu la s . E les com eça r a m a p a r t ir d a in ven çã o d e
u m a ú n ica célu la s en s ível à lu z – n ã o fa z m a l a lgu m ch a m á -la d e u m a fot océlu la . S er ia ót im o, n o
futuro, criar um outro modelo no computador, desta vez ao nível do interior da célula, para mostrar
com o a p r im eir a fot océlu la d e s er vivo t or n ou -s e r ea lid a d e p or m eio d e u m a m od ifica çã o p a s s o a
p a s s o d e u m a célu la m a is a n t er ior e d e fin a lid a d es m a is ger a is . Ma s você d eve com eça r em a lgu m
lu ga r , e Nils s on e Pelger com eça r a m a p ós a evolu çã o d a fot océlu la . E les t r a b a lh a r a m n o n ível d os
t ecid os : o n ível d a cois a feit a d e célu la s e n ã o n o n ível d a s célu la s in d ivid u a is . A p ele é u m tecid o,
a s s im com o o r eves t im en t o d os in t es t in os , ou os m ú s cu los e o fíga d o. Os t ecid os p od em m u d a r s ob
a in flu ên cia d a s m u t a ções a o a ca s o d e vá r ia s m a n eir a s . As ca m a d a s d e t ecid os p od em t or n a r -se
m a ior es ou m en or es em á r ea . E la s p od em t or n a r -s e m a is es p es s a s ou m a is fin a s . No ca s o es p ecia l
dos tecidos transparentes como o tecido das lentes oculares, elas podem mudar o índice de refração
(o poder de encurvar a luz) de partes locais do tecido.
A b eleza d e s im u la r u m olh o, d ifer en tem en te d e, d iga m os , a p er n a d e u m a ch it a veloz, é qu e
s u a eficiên cia p od e s er fa cilm en te m ed id a u s a n d o a s leis elem en t a r es d a óp t ica . O olh o é
r ep r es en t a d o com o u m a s eçã o r et a b id im en s ion a l, e o com p u t a d or p od e ca lcu la r fa cilm en t e s u a
acuidade visual, ou resolução espacial, expressa por um único número real. Seria muito mais difícil
ob t er u m a exp r es s ã o n u m ér ica e equ iva len te p a r a a eficá cia d e u m a p er n a ou es p in h a d or s a l d e
uma chita. Nilsson e Pelger começaram com uma retina plana em cima de uma camada pigmentada
t a m b ém p la n a e r od ea d a p or u m a ca m a d a p r ot et or a t r a n s p a r en t e p la n a . E r a p er m itid o qu e a
ca m a d a t r a n s p a r en te s ofr es s e m u t a ções loca liza d a s e a lea t ór ia s n o s eu ín d ice d e r efr a çã o. E les
en t ã o d eixa va m o m od elo d efor m a r -s e a o a ca s o, ob ed ecen d o a p en a s à exigên cia d e qu e qu a lqu er
mudança deveria ser pequena e também um aperfeiçoamento daquilo que existia antes.
Os r es u lt a d os for a m r á p id os e d ecis ivos . Um a t r a jet ór ia d e a cu id a d e con s t a n t em en te
cr es cen te con d u ziu s em h es it a r a p a r t ir d a s u p er fície p la n a p a s s a n d o p or u m a in d en t a çã o r a s a a t é
u m a for m a d e t a ça , à m ed id a qu e o olh o m od ela d o d efor m a va -s e n a t ela d o com p u t a d or . A ca m a d a
transparente t or n ou -s e m a is es p es s a p a r a p r een ch er a t a ça e s u a vem en te a s u a s u p er fície ext er n a
p a s s ou a for m a r u m a cu r va . E n t ã o, qu a s e com o s e fos s e m á gica , u m a p a r t e d es te p r een ch im en to

44
transparente condensou-se em uma sub-região local, esférica, com alto índice de refração. Não de
modo uniforme, mas com um gradiente de índice de refração de modo que a região esférica
funcionava como uma ótima lente de índice de refração variável. Lentes de índice de refração
variável não são familiares aos fabricantes humanos de lentes, mas são comuns nos olhos dos seres
vivos . Os h u m a n os fa b r ica m len tes t or n ea n d o o vid r o a t é qu e es t e a d qu ir a u m a for m a p a r t icu la r .
Nós fa zem os len tes com p os t a s , com o a s ca r ís s im a s len tes d e cor violet a d a s câ m er a s m od er n a s ,
m on t a n d o vá r ia s len tes ju n t a s d e m od o a for m a r u m con ju n t o, m a s ca d a u m a d es s a s len tes
in d ivid u a is é fa b r ica d a com u m a ú n ica p eça u n ifor m e d e vid r o. E m con t r a s t e, u m a len te d e ín d ice
d e r efr a çã o va r iá vel é u m a len te com ín d ice d e r efr a çã o qu e va r ia con t in u a m en te n o in ter ior d a
substân cia com a qu a l a len t e é for m a d a . Tip ica m en t e, ela tem u m a lt o ín d ice d e r efr a çã o p er t o d o
s eu cen t r o. Os olh os d os p eixes s ã o for m a d os p or len t es d es te t ip o. Agor a , s a b e-s e h á m u it o t em p o
qu e, p a r a u m a len te d e ín d ice d e r efr a çã o va r iá vel, os r es u lt a d os m a is livr es d e a b er r a çã o s ã o
obtidos quando você obtém um valor ótimo teórico particular para a razão entre a distância focal e o
r a io d a len te. E s t a r a zã o é ch a m a d a d e r a zã o d e Ma t ties s en . O m od elo d e com p u t a d or d e Nils s on e
Pelger obteve sem hesitar a razão de Mattiessen.
E a gor a a p er gu n t a r ela tiva a o t em p o n eces s á r io p a r a qu e es ta evolu çã o ocor r es s e. Pa r a
r es p on d er a es t a p er gu n t a , Nils s on e Pelger t iver a m qu e fa zer a lgu m a s h ip ót es es s ob r e a gen ét ica
d a s p op u la ções n a t u r a is . E les p r ecis a va m a lim en t a r s eu m od elo com va lor es p la u s íveis d e
qu a n t id a d es t a is com o “h er d a b ilid a d e”. A h er d a b ilid a d e é u m a m ed id a d e a té on d e a va r ia çã o é
gover n a d a p ela h er ed it a r ied a d e. O m od o fa vor it o d e m ed ir is t o é ver a té on d e gêm eos m on ozigot os
(isto é, idênticos) assemelham-s e um ao outro quando comparados com gêmeos comuns. Um estudo
d eter m in ou qu e a h er d a b ilid a d e d o com p r im en t o d a p er n a n os m a ch os h u m a n os er a 7 7 p or cen t o.
Um a h er d a b ilid a d e d e 1 0 0 p or cen t o s ign ifica r ia qu e você p od er ia m ed ir u m a p er n a d e u m d os
gêm eos id ên ticos e ob ter u m con h ecim en t o p er feito d o com p r im en t o d a p er n a d o ou t r o gêm eo,
m es m o qu e os gêm eos fos s em cr ia d os s ep a r a d a m en te. Um a h er d a b ilid a d e d e zer o p or cen t o
significaria que as pernas dos gêmeos monozigotos não são mais similares entre si do que as pernas
d e m em b r os a o a ca s o d e u m a p op u la çã o es p ecifica d a em u m d eter m in a d o m eio a m b ien te. Algu m a s
ou t r a s h er d a b ilid a d es m ed id a s n os h u m a n os s ã o 9 5 p or cen t o p a r a o t a m a n h o d a ca b eça , 8 5 p or
cento para a altura quando sentado, 80 por cento para o comprimento do braço e 79 por cento para
a estatura.
As h er d a b ilid a d es s ã o fr eqü en tem en te m a ior es d o qu e 5 0 p or cen t o, e Nils s on e Pelger
sentiram-s e, p or t a n t o s egu r os em a t r ib u ir u m a h er d a b ilid a d e d e 5 0 p or cen to n o s eu m od elo d o
olh o. E s t a h ip ót es e er a con s er va d or a , ou “p es s im is t a ”. Com p a r a d a com u m a h ip ót es e m a is r ea lis t a
d e, d iga m os , 7 0 p or cen t o, a h ip ótes e p es s im is t a ten d e a a u m en t a r a s u a es t im a t iva [m a l d o t em p o
n eces s á r io p a r a qu e o olh o evolu a . E les d es eja va m er r a r p a r a m a is , p ois s om os in t u it iva m en te
céticos com r ela çã o a es t im a t iva s cu r t a s p a r a o tem p o exigid o n a evolu çã o d e a lgo t ã o com p lica d o
como um olho.
Pela m es m a r a zã o, eles es colh er a m va lor es p es s im is t a s p a r a o coeficien te d e va r ia çã o (is t o é,
p a r a a qu a n t id a d e d e va r ia çã o qu e t ip ica m en te exis t e n a p op u la çã o) e a in ten s id a d e d e s eleçã o (a
va n t a gem qu a n t it a t iva em s ob r evivên cia qu e u m a vis ã o a p er feiçoa d a con fer e). E les ch ega r a m a t é a
a s s u m ir qu e qu a lqu er ger a çã o n ova d ifer ia em a p en a s u m a p a r t e d o olh o d e ca d a vez: m u d a n ça s
s im u lt â n ea s em d ifer en tes p a r t es d o olh o, qu e t er ia m a celer a d o b a s t a n t e a evolu çã o, for a m
d ecla r a d a s ilegít im a s . Ma s , m es m o com es t a s h ip ótes es con s er va d or a s , o t em p o n eces s á r io p a r a a

45
evolução de um olho de peixe a partir de uma superfície plana era minúsculo: menos de 400 mil
gerações . Pa r a os t ip os d e a n im a is p equ en os d e qu e es t a m os fa la n d o, p od em os a s s u m ir u m a
ger a çã o p or a n o, a s s im p a r ece qu e s er ia m n eces s á r ios m en os d e 5 0 0 a n os p a r a fa zer evolu ir u m
bom olho semelhante a uma câmera.
À lu z d os r es u lt a d os d e Nils s on e Pelger , n ã o é s u r p r een d en te qu e “o” olh o t en h a evolu íd o d e
m od o in d ep en d en te p elo m en os qu a r en t a vezes n o r ein o a n im a l. Hou ve t em p o s u ficien te p a r a qu e o
olh o evolu ís s e a p a r t ir d o n a d a 1 .5 0 0 vezes s u ces s iva s d en tr o d e ca d a lin h a d e evolu çã o.
As s u m in d o p er íod os d e t em p o ger a cion a is t íp icos p a r a os p equ en os a n im a is , o t em p o n eces s á r io
p a r a a evolu çã o d o olh o, lon ge d e p r ovoca r es p a n t o com a s u a ext en s ã o, r evela -s e s er m u it o cu r t o
pelos padrões geológicos. Um piscar de olhos, por estes padrões.
Fa ça o b em fu r t iva m en te. Um a s p ect o-ch a ve d a evolu çã o é o s eu gr a d u a lis m o. Is t o é m a is
u m a qu es t ã o d e p r in cíp ios d o qu e d e fa tos . Pod e s er ou n ã o o ca s o d e a lgu n s ep is ód ios d a evolu çã o
s ofr er em u m a gu in a d a b r u s ca . Pod e h a ver p on t os d e evolu çã o r á p id a , ou m es m o m a cr om u t a ções
abruptas – gr a n d es m u d a n ça s s ep a r a n d o u m a cr ia n ça d e s eu s p a is . Cer t a m en te h á ext in ções
súbitas – provocadas, talvez, por grandes catástrofes naturais tal como a colisão de um cometa com
a Ter r a – e es t a s ext in ções d eixa m vá cu os a s er p r een ch id os p or s u b s t it u t os qu e s e a p er feiçoa m
r a p id a m en te, com o os m a m ífer os qu e s u b s t it u ír a m os d in os s a u r os . Com o fa t o r ea l, a evolu çã o n ã o
é p os s ivelm en t e s em p r e gr a d u a l. Ma s d eve s er gr a d u a l qu a n d o é em p r ega d a p a r a exp lica r o
s u r gim en t o d e cois a s com p lica d a s , a p a r en tem en te p r ojet a d a s , com o os olh os . Pois s e n es tes ca s os
ela n ã o for gr a d u a l, ces s a d e ter qu a lqu er p od er exp la n a t ór io. S em o gr a d u a lis m o n es tes ca s os ,
voltamos ao milagre, que é simplesmente sinônimo para a ausência total de explicação.
A r a zã o p ela qu a l os olh os e a s or qu íd ea s p olin iza d a s p ela s ves p a s n os im p r es s ion a m t a n t o é
qu e s ã o im p r ová veis . As ch a n ces a d ver s a s à s u a exis t ên cia es p on t â n ea , fr u t o d a b oa s or te, s ã o
ch a n ces m u ito gr a n d es p a r a qu e is t o a con t eça n o m u n d o r ea l. A evolu çã o gr a d u a l p or p equ en os
p a s s os , ca d a p a s s o d ot a d o d e s or t e, m a s n ã o m u it a s or t e, é a s olu çã o p a r a o p r ob lem a . Ma s , s e ela
não é gradual, não é solução; é apenas uma reafirmação do problema.
Ha ver á ép oca s p a r a a s qu a is s er á d ifícil im a gin a r com o a s et a p a s in t er m ed iá r ia s d evem ter
s id o. E s t a s et a p a s s e con s t it u ir ã o em d es a fio p a r a a n os s a en gen h os id a d e, m a s s e a n os s a
en gen h os id a d e fa lh a r , p ior p a r a ela . Is to n ã o s e con s t it u i em evid ên cia d e qu e n ã o h ou ve et a p a s
in t er m ed iá r ia s . Um d os d es a fios m a is á r d u os à n os s a en gen h os id a d e em im a gin a r et a pas
in t er m ed iá r ia s é for n ecid o p ela céleb r e “lin gu a gem d a d a n ça ” d a s a b elh a s d es cob er t a n o t r a b a lh o
clá s s ico p elo qu a l Ka r l von Fr is ch é m a is con h ecid o. Aqu i o p r od u t o fin a l d a evolu çã o p a r ece t ã o
com p lica d o, t ã o en gen h os o e t ã o d is t a n t e d o qu e es p er a r ía m os n or m a lm en te d e u m in s et o qu e é
muito difícil imaginar as etapas intermediárias.
As a b elh a s in for m a m u m a s à s ou t r a s s ob r e a loca liza çã o d a s flor es p or m eio d e u m a d a n ça
cu id a d os a m en t e cod ifica d a . S e o a lim en t o es t iver m u it o p r óxim o d a colm éia , ela s execu t a m a
“qu a d r ilh a ”. Is t o a p en a s excit a a s ou t r a s a b elh a s , e es t a s cor r em p a r a for a d a colm éia e exa m in a m
a s vizin h a n ça s . Na d a d e p a r t icu la r m en t e n ot á vel. Ma s é m u it o n ot á vel o qu e a con tece qu a n d o a
com id a es t á lon ge d a colm éia . A a b elh a p r oved or a qu e d es cob r iu o a lim en to execu t a a a s s im
chamada “dança do balanço”, e sua forma e sincronização informam às outras abelhas a direção e a
d is t â n cia d a colm éia a o a lim en t o. A d a n ça d o b a la n ço é execu t a d a n o in t er ior d a colm éia s ob r e a
s u p er fície ver t ica l d e u m fa vo. A colm éia é es cu r a , d e m od o qu e a d a n ça d o b a la n ço n ã o é vis t a
p ela s ou t r a s a b elh a s . E la é p er ceb id a p or ela s , e t a m b ém ou vid a , p ois a a b elh a d a n ça r in a

46
acompanha a sua performance com pequenos ruídos rítmicos. A dança tem a forma de um oito,
com um curso reto no meio. É a direção do curso reto que, na forma de um código engenhoso,
informa sobre a direção da comida.
A d ir eçã o d a d a n ça n ã o a p on t a d ir et a m en te p a r a a com id a . Nã o p od e s er a s s im , já qu e a
d a n ça é r ea liza d a s ob r e a s u p er fície ver t ica l d o fa vo e o a lin h a m en t o d o p r óp r io fa vo é fixo, n ã o
in t er es s a n d o on d e a com id a p os s a es t a r . A com id a d eve es t a r loca liza d a n a geogr a fia h or izon t a l. O
fa vo ver t ica l é m a is com o u m m a p a p en d u r a d o n a p a r ed e. Um a lin h a d es en h a d a n o m a p a d a
p a r ed e n ã o a p on t a d ir et a m en te p a r a u m d es t in o em p a r t icu la r , m a s você p od e ler a d ir eçã o p or
meio de uma convenção arbitrária.
Pa r a en ten d er a con ven çã o qu e a s a b elh a s u t iliza m , você d eve s a b er p r im eir o qu e a s a b elh a s ,
com o m u it os in s et os , or ien t a m -s e u s a n d o o S ol com o u m a b ú s s ola . Nós o fa zem os t a m b ém , d e u m
m od o a p r oxim a d o. O m étod o t em d u a s d es va n t a gen s . Pr im eir o, m u it a s vezes o S ol fica es con d id o
a t r á s d a s n u ven s . As a b elh a s r es olvem es te p r ob lem a p or m eio d e u m s en t id o qu e n ós n ã o
p os s u ím os . Ma is u m a vez, foi Von Fr is ch qu e d es cob r iu qu e ela s p od em p er ceb er a d ir eçã o d a
p ola r iza çã o d a lu z e is t o a s in for m a s ob r e a p os içã o d o S ol m es m o qu e es te es teja in vis ível. O
s egu n d o p r ob lem a com a b ú s s ola s ola r é qu e o S ol “m ove-s e” n os céu s à m ed id a qu e a s h or a s
p a s s a m . As a b elh a s d ã o con t a d is t o u t iliza n d o u m r elógio in ter n o. Von Fr is ch d es cob r iu , qu a s e
in a cr ed it a velm en te, qu e a s a b elh a s d a n ça r in a s p r es a s d en t r o d a colm éia d u r a n t e h or a s a p ós a s u a
exp ed içã o à ca t a d e com id a gir a va m len t a m en te a d ir eçã o d o cu r s o d ir et o d a d a n ça , com o s e es te
curso reto fosse o ponteiro das horas de um relógio que marca 24 horas. Dentro da colméia elas não
p od ia m ver o S ol, m a s es ta va m or ien t a n d o len t a m en t e a d ir eçã o d o cu r s o r et o d a s u a d a n ça p a r a
manter-s e em com p a s s o com o m ovim en t o d o S ol, o qu a l, s eu s r elógios in t er n os lh es d izia m , d evia
es t a r ocor r en d o lá for a . Fa s cin a n t em en t e, a s a b elh a s d o h em is fér io S u l fa zem a m es m a cois a a o
contrário, como deveriam.
Agor a , exa m in em os o cód igo p r op r ia m en t e d it o. O cu r s o d a d a n ça , a o a p on t a r d ir et a m en te
p a r a cim a em r ela çã o a o fa vo, s in a liza qu e o a lim en t o es t á n a m es m a d ir eçã o d o S ol. Pa r a b a ixo
s in a liza qu e o a lim en t o es t á n a d ir eçã o op os t a . Tod os os â n gu los in t er m ed iá r ios s in a liza m o qu e
você es p er a r ia . Cin qü en t a gr a u s à es qu er d a d a ver t ica l s ign ifica m 5 0 gr a u s à es qu er d a d a d ir eçã o
d o S ol n o p la n o h or izon t a l. A p r ecis ã o d a d a n ça , p or ém , n ã o é exa t a . Por qu e d ever ia s er , p ois é
u m a con ven çã o a r b it r á r ia n os s a d ivid ir a b ú s s ola em 3 6 0 gr a u s ? As a b elh a s d ivid em -n o em m a is
ou m en os 8 gr a u s a p ícola s . Na ver d a d e, is t o é o qu e fa zem os a p r oxim a d a m en te qu a n d o n ã o s om os
navegadores profissionais. Dividimos nosso compasso informal em oito quadrantes: N, NE, E, SE, S,
SO, O e NO.
A d a n ça d a s a b elh a s cod ifica t a m b ém à d is t â n cia . Ou m elh or , os vá r ios a s p ect os d a d a n ça . A
t a xa d e volteio, a t a xa d e b a la n ço, a ta xa d e em is s ã o d e r u íd o – s ã o t od a s r ela cion a d a s com a
d is t â n cia a o a lim en t o, e qu a lqu er u m a d es t a s ou qu a lqu er com b in a çã o p od er ia , p or ta n t o s er
utilizada pelas outras abelhas para obter a distância. Quanto mais perto está a comida, mais rápida
é a d a n ça . Você p od e lem b r a r -s e d is t o p en s a n d o qu e, a o en con t r a r com id a p er t o d a colm éia , é
n a t u r a l qu e u m a a b elh a fiqu e m a is excit a d a , e m en os ca n s a d a , d o qu e u m a a b elh a qu e d es cob r iu
comida a uma distância muito grande. Isto é mais do que apenas um aidememoire; como veremos, é
a chave para descobrir como a dança evoluiu.
Em resumo, a abelha batedora descobre uma boa fonte de alimentação. Ela retoma à colméia,
carregada de néctar e pólen, e entrega sua carga às operárias que estão ali para recebê-la. Então ela

47
começa a sua dança. Em algum lugar sobre um favo vertical, não importa onde, ela volteia
repetidas vezes, traçando a figura de um oito. As outras operárias aglomeram-se em tomo dela,
sentindo, ouvindo. Elas contam a taxa de emissão de ruído e talvez a taxa de volteio. Elas medem,
relativamente à vertical, o ângulo do curso reto da dança enquanto a dançarina faz balançar o seu
abdômen. Então elas vão para a porta da colméia e saem da escuridão para a luz do dia. Elas
observam a posição do Sol– não a sua altura vertical, mas sim a sua orientação em relação a uma
bússola no plano horizontal. Depois voam em linha reta, cujo ângulo em relação ao Sol combina
com o ângulo da dança original da batedora relativamente à vertical no favo. Elas mantêm o vôo
n es te cu r s o, n ã o p or u m a d is t â n cia in d efin id a , m a s p or u m a d is tâ n cia (in ver s a m en te) p r op or cion a l
à (n a ver d a d e, o loga r it m o d a ) t a xa d e em is s ã o d os p equ en os r u íd os r ít m icos d a d a n ça r in a or igin a l.
De m od o in t r iga n t e, s e a a b elh a or igin a l r ea lizou u m vôo com es ca la s p a r a d es cob r ir a com id a , ela
or ien t a s u a d a n ça n ã o n a d ir eçã o d es t a s es ca la s , m a s s im n a d ir eçã o r econ s t itu íd a com com p a s s o
direcional da comida.
A h is t ór ia d a s a b elh a s d a n ça r in a s é d ifícil d e s er a cr ed it a d a , e a lgu n s a têm p os t o em d ú vid a .
Ret om a r ei a os cét icos , e à s exp er iên cia s r ecen tes qu e fin a lm en te es t a b elecer a m a s evid ên cia s , n o
p r óxim o ca p ít u lo. Nes te ca p ít u lo, qu er o d is cu t ir a evolu çã o gr a d u a l d a d a n ça d a s a b elh a s . Com o
t er ia m s id o a s et a p a s in t er m ed iá r ia s n a s u a evolu çã o, e com o es t a s et a p a s op er a va m qu a n d o a
dança ainda estava incompleta?
A p r op ós it o, o m od o p elo qu a l a qu es t ã o foi coloca d a n ã o es t á com p let a m en te cor r eto.
Nen h u m a cr ia t u r a con s egu e viver s en d o “u m a et a p a in t er m ed iá r ia ”, “in com p let a ”. As a b elh a s d e
ou t r or a , h á t em p o d es a p a r ecid a s e cu ja s d a n ça s p od em s er in t er p r et a d a s , com u m a vis ã o a
posteriori, com o et a p a s in t er m ed iá r ia s r u m o a o m od o p elo qu a l a s a b elh a s m od er n a s d a n ça m ,
vivia m b em . E la s vivia m u m a vid a com p let a com o a b elh a s e n ã o p en s a va m “es t a r a ca m in h o” d e
a lgo “m elh or ”. E , m a is a in d a , n os s a d a n ça d a s a b elh a s “m od er n a ” p od e n ã o s er a ú lt im a p a la vr a e
evolu ir p a r a a lgu m a cois a a in d a m a is es p et a cu la r qu a n d o n ós e n os s a s a b elh a s já t iver m os
d es a p a r ecid o. Nã o ob s t a n t e, tem os r ea lm en te u m qu eb r a -ca b eça n o m od o p elo qu a l a d a n ça a t u a l
d a s a b elh a s p od e ter evolu íd o em p a s s os gr a d u a is . Com o er a m es t a s et a p a s in t er m ed iá r ia s e com o
funcionavam?
O p r óp r io Von Fr is ch a t a cou o p r ob lem a , e ele o a t a cou exa m in a n d o a á r vor e d e fa m ília , os
p r im os m od er n os d is t a n t es d a s a b elh a s . E s t es n ã o s ã o os a n ces t r a is d a s a b elh a s , p ois s ã o s eu s
contemporâneos. Mas eles podem reter características dos ancestrais. A abelha é um inseto da zona
t em p er a d a qu e n id ifica em b u s ca d e a b r igo em á r vor es oca s ou ca ver n a s . S eu s p a r en tes m a is
p r óxim os s ã o a s a b elh a s t r op ica is qu e p od em n id ifica r em ca m p o a b er t o, p en d u r a n d o a s s u a s
colm éia s em a r b u s t os d e á r vor es ou n a s r och a s . Por t a n t o, ela s s ã o ca p a zes d e ver o S ol en qu a n t o
d a n ça m , e n ã o t êm d e r ecor r er à con ven çã o d e d eixa r a ver t ica l “s u b s t it u ir ” a d ir eçã o d o S ol. O S ol
pode desempenhar ele próprio o seu papel.
Um destes parentes tropicais, a abelha anã Apis florea, dança sobre uma superfície horizontal
n o t op o d o fa vo. O cu r s o r et o d a d a n ça a p on t a d ir et a m en te p a r a o a lim en t o. Nã o h á n eces s id a d e d e
u m a con ven çã o d e m a p a s : a or ien t a çã o d ir et a é s u ficien te. Cer ta m en te, u m a et a p a d e t r a n s içã o
plausível no caminho da abelha comum, mas ainda temos de pensar sobre as etapas intermediárias
qu e p r eced er a m e s u ced er a m a es t a . Com o p od er ia m t er s id o a s p r ecu r s or a s d a d a n ça d a a b elh a
a n ã ? Por qu e d ever ia u m a a b elh a qu e en con t r ou com id a r ecen tem en te t r a ça r u m a figu r a em for m a
d e oit o e cu jo cu r s o r et o a p on t a n a s u a d ir eçã o? A s u ges t ã o é d e qu e s e tr a t a d e u m a for m a

48
ritualizada de decolagem. Antes que a dança evoluísse, sugeriu Von Frisch, a batedora que tivesse
descarregado a comida simplesmente decolaria na mesma direção, voando de volta para a fonte de
alimentos. Como preparação para a sua decolagem, ela voltaria a face na direção correta e poderia
dar alguns passos. A seleção natural favoreceria qualquer tendência em exagerar ou prolongar a
decolagem se isto encorajasse as outras abelhas para que a seguissem. Talvez a dança seja uma
espécie de decolagem repetida ritualizada. Isto é plausível porque, utilizem ou não a dança, as
abelhas freqüentemente utilizam a tática mais direta de simplesmente seguir uma à outra até a
fonte de alimentação. Um outro fato que dá plausibilidade à idéia é que as abelhas dançarinas
mantêm as suas asas levemente esticadas como se fossem voar e as fazem vibrar, não de modo
suficientemente vigoroso para decolar, mas o suficiente para produzir o ruído que é parte
importante da dança de sinais.
Um a m a n eir a ób via d e p r olon ga r e exa ger a r a cor r id a p a r a a d ecola gem é r ep et i-la . A
r ep et içã o s ign ifica volt a r a o com eço e n ova m en te efetu a r u n s p ou cos p a s s os n a d ir eçã o d a com id a .
Há d u a s m a n eir a s d e volt a r a o com eço: você p od e vir a r p a r a a es qu er d a ou p a r a a d ir eit a n o fin a l
d a p is t a . S e você con s is ten t em en te vir a r p a r a a d ir eit a ou con s is t en t em en te vir a r p a r a a es qu er d a ,
fica r á a m b ígu a a ,d ir eçã o qu e d eve s er a ver d a d eir a d ir eçã o d a d ecola gem e a d ir eçã o d e r et or n o a o
com eço d a p is t a . A m elh or m a n eir a d e r em over a a m b igü id a d e é vir a r a lter n a t iva m en te p a r a a
esquerda e para a direita. Daí o favorecimento pela seleção natural do padrão da figura do oito.
Ma s com o a r ela çã o en t r e a d is t â n cia d a com id a e a r a p id ez d a d a n ça evolu iu ? S e a r a p id ez
d a d a n ça fos s e p os it iva m en t e r ela cion a d a com a d is t â n cia d a com id a , is t o s er ia d ifícil d e exp lica r .
Ma s , você d eve lem b r a r , n a ver d a d e a con t ece o op os t o: qu a n t o m a is p er t o es t á a com id a , m a is
r á p id a é a d a n ça . Is t o s u ger e im ed ia t a m en te u m a t r a jet ór ia p la u s ível d e evolu çã o gr a d u a l. An t es
qu e a d a n ça p r op r ia m en te d it a evolu ís s e, a s b a ted or a s p od er ia m ter execu ta d o a s u a r ep et ição
ritualizada da decolagem, mas sem que isto fosse feito com uma velocidade em particular. A rapidez
d a d a n ça s er ia a qu ela qu e qu is es s em . Agor a , s e você t ives s e voa d o d e volt a p a r a ca s a p er cor r en d o
vá r ios qu ilôm et r os , s ob r eca r r ega d o com n éct a r e p ólen , você s e s en t ir ia com d is p os içã o p a r a u m a
a r r em et id a em a lt a velocid a d e em t or n o d o fa vo? Nã o, você p r ova velm en te s e s en t ir ia exa u s t o. Por
outro lado, se você tivesse recém-descoberto uma rica fonte de alimentos bastante perto da colméia,
s u a cu r t a via gem p a r a ca s a o ter ia d eixa d o ou t r o e en er gét ico. Nã o é d ifícil im a gin a r com o u m a
r ela çã o or igin a l a cid en t a l en t r e a d is t â n cia d a com id a e a len t id ã o d a d a n ça p od er ia t er s e
ritualizado em um código formal e seguro.
E a gor a a m a is d es a fia d or a d e t od a s a s et a p a s in ter m ed iá r ia s . Com o é p os s ível qu e u m a
dança antiga na qual a direção apontava diretamente para a comida tenha se transformado em uma
d a n ça n a qu a l o â n gu lo r ela t ivo à ver t ica l é u m cód igo p a r a o â n gu lo d a com id a em r ela çã o a o S ol?
Tal transformação era necessária em parte porque o interior da colméia é escuro e não se pode ver o
S ol, e em p a r t e p or qu e, a o d a n ça r em u m fa vo ver t ica l, n ã o s e p od e a p on t a r d ir et a m en te p a r a a
com id a a m en os qu e a p r óp r ia s u p er fície a p on te p a r a a com id a . Ma s n ã o é s u ficien te m os t r a r qu e
a lgo d es t a t r a n s for m a çã o er a n eces s á r io. Tem os t a m b ém d e exp lica r com o es t a tr a n s içã o d ifícil foi
realizada por meio de uma série plausível de etapas intermediárias percorridas passo a passo.
Pa r ece es p a n t os o, m a s u m fa t o s in gu la r a r es p eit o d o s is t em a n er vos o d os in s et os vem em
n os s o a u xilio. O n ot á vel exp er im en t o qu e vem a s egu ir foi r ea liza d o com u m a va r ied a d e d e in s et os ,
d es d e os b es ou r os a t é a s for m iga s . Com ecem os com u m b es ou r o ca m in h a n d o a o lon go d e u m a
tábua de madeira horizontal na presença de luz elétrica. A primeira coisa a ser demonstrada é que o

49
inseto está usando uma bússola fornecida pela luz. Mude a posição da lâmpada, e o inseto mudará
a sua direção concomitantemente. Se ele estava seguindo um curso de digamos, 30 graus
relativamente à lu z d a lâ m p a d a , ele m u d a r á s eu cu r s o p a r a m a n t er a or ien t a çã o d e 3 0 gr a u s em
r ela çã o à n ova p os içã o d a lu z. De fa t o, você p od e m u d a r o cu r s o d a t r a jet ór ia d o b es ou r o d o m od o
qu e d es eja r , u s a n d o o feixe d e lu z com o t im ã o. E s t e fa t o a r es p eit o d os in s et os é h á m u it o t em p o
s a b id o: eles u t iliza m o Sol (ou a Lu a , ou a s es t r ela s ) com o b ú s s ola , e você p od e en ga n á -los
fa cilm en te com u m a lâ m p a d a . At é a qu i t u d o b em . Agor a p a s s em os p a r a a exp er iên cia in ter es s a n t e.
Desligue a luz e ao mesmo tempo incline a tábua até alinhá-la com a vertical. Impassível, o besouro
con t in u a a ca m in h a r . E , m ira b ile d ictu , ele m u d a a s u a d ir eçã o d e ca m in h a d a p a r a qu e o â n gu lo
com r ela çã o à ver t ica l s eja igu a l a o â n gu lo p r évio em r ela çã o à lu z: n o n os s o exem p lo, 3 0 gr a u s .
Nin gu ém s a b e p or qu e is to a con t ece. E s t e fa t o p a r ece t r a ir u m a es qu is it ice a cid en t a l d o s is t em a
n er vos o d o in s et o – u m a con fu s ã o d os s en t id os , u m a in t er fer ên cia en t r e o s en t id o d a gr a vid a d e e o
s en t id o d a vis ã o, t a lvez u m p ou co p a r ecid o com o qu e a con t ece con os co qu a n d o vem os u m fla s h d e
luz ao sermos atingidos na cabeça. De qualquer modo, este fato fornece provavelmente a ponte para
a evolução do código em que “a vertical substitui o Sol” da dança das abelhas.
De m od o r evela d or , s e você a cen d er a lu z n o in t er ior d e u m a colm éia , a s a b elh a s
a b a n d on a r ã o s eu s en s o d e gr a vid a d e e u s a r ã o a d ir eçã o d a lu z com o s u b s t it u t o d ir et o d o S ol em
s eu cód igo. E s t e fa t o h á m u it o con h ecid o, foi exp lor a d o em u m d os exp er im en tos m a is en gen h os os
ja m a is r ea liza d o, o exp er im en t o qu e fin a lm en te p er m itiu a ob ten çã o d a s evid ên cia s . d e qu e a d a n ça
d a s a b elh a s r ea lm en te fu n cion a . Ret om a r ei a is t o n o p r óxim o ca p ít u lo. E n t r em en tes , d es cob r im os
u m a s ér ie p la u s ível d e d a n ça s in t er m ed iá r ia s p ela qu a l a d a n ça m od er n a d a s a b elh a s p od er ia ter
evoluído a partir de começos mais simples. A história como eu a relatei, com base nas idéias de Von
Fr is ch , p od e n a ver d a d e s er a h is t ór ia cor r et a . Ma s a lgu m a cois a u m p ou co p a r ecid a com ela
cer t a m en te a con t eceu . Con t ei es t a h is tór ia com o u m a r es p os t a a o cet icis m o n a t u r a l – o Ar gu m en t o
d a In cr ed u lid a d e Pes s oa l – qu e s u r ge n a s p es s oa s qu a n d o es t a s d ep a r a m com u m fen ôm en o
n a t u r a l r ea lm en te en gen h os o ou com p lica d o. O cét ico d iz: “E u n ã o p os s o con ceb er u m a s ér ie
plausível de estágios intermediários, portanto não há nenhum, e o fen ôm en o s u r giu p or u m m ila gr e
espontâneo”. Von Frisch apresentou uma série plausível de estágios intermediários. Mesmo que não
s eja a s ér ie cor r et a , o fa to d e qu e é p la u s ível é s u ficien te p a r a con t r a p or -s e a o Ar gu m en t o d a
In cr ed u lid a d e Pes s oa l. O m es m o é ver d a d eir o p a r a t od os os ou t r os exem p los qu e exa m in a m os ,
d es d e a s or qu íd ea s qu e m im et iza m a fêm ea d a ves p a a t é os olh os s em elh a n t es a os d a s câ m er a s
fotográficas.
Muitos fatos da natureza curiosos e intrigantes poderiam ser reunidos por pessoas céticas em
r ela çã o a o gr a d u a lis m o d a r win ia n o. Por exem p lo, m e foi p ed id o qu e exp lica s s e a evolu çã o gr a d u a l
das criaturas que vivem nas fendas profundas do oceano Pacífico, onde não há luz e onde a pressão
d a á gu a p od e exced er a s 1 .0 0 0 a t m os fer a s . Um a com u n id a d e in teir a d e a n im a is cr es ceu em t or n o
d e cr a ter a s vu lcâ n ica s e qu en tes n a s p r ofu n d eza s d os a b is m os d o Pa cífico. Um a b ioqu ím ica
com p let a a lter n a t iva é con d u zid a p ela s b a ct ér ia s , qu e u tiliza m o ca lor d a s cr a ter a s e m et a b oliza m o
en xofr e em vez d o oxigên io. A com u n id a d e d e a n im a is m a ior es é d ep en d en t e d es t a s b a ct ér ia s
sulfurosas, exatamente como a vida comum é dependente das plantas verdes que capturam energia
do Sol.
Os a n im a is d a com u n id a d e s u lfu r os a s ã o t od os p a r en tes d os a n im a is m a is con ven cion a is
en con t r a d os em ou t r a s p a r t es . Com o evolu ír a m e a tr a vés d e qu e es t á gios in ter m ed iá r ios ? Bem , a

50
forma do argumento será exatamente a mesma. Tudo de que precisamos para a nossa explicação é
pelo menos um gradiente natural, e os gradientes são abundantes quando descemos às
profundezas dos mares. Mil atmosferas é uma pressão horrenda, mas é apenas quantitativamente
maior do que 999 atmosferas, que por sua vez é apenas quantitativamente maior do que 998 e
assim por diante. O fundo do mar apresenta gradientes de profundidade desde zero metro passando
p or t od os os va lor es in ter m ed iá r ios a té 1 1 qu ilôm et r os . A p r es s ã o va r ia s u a vem en te d es d e 1
a t m os fer a a té 1 .0 0 0 a t m os fer a s . A in ten s id a d e d a lu z va r ia s u a vem en te d es d e a p len a lu z d o d ia
p r óxim o d a s u p er fície a té a es cu r id ã o t ot a l d a s p r ofu n d eza s , a livia d a a p en a s p elos r a r os
a glom er a d os d e b a ctér ia s lu m in es cen tes d os ór gã os lu m in os os d os p eixes . Nã o h á cor t es b r u s cos .
Para cada nível de pressão e escuridão, haverá um projeto de animal já adaptado a estas condições,
ligeiramente diferente de outros animais existentes, que pode sobreviver um centímetro mais fundo,
u m a ca n d ela a m en os d e lu z. Pa r a t od o... m a s es te ca p ít u lo já es t á s e es ten d en d o p a r a a lém d a
conta. Você conhece meus métodos Watson. Aplique-os.

51
4
A FUNÇÃO DE UTILIDADE DE D EUS

Meu m is s ivis t a cler ica l d o ca p ít u lo a n ter ior d es cob r iu a fé p or m eio d e u m a ves p a . Ch a r les
Da r win p er d eu a s u a com a a ju d a d e u m a ou t r a : “Nã o p os s o con ven cer -m e”, es cr eveu Da r win , “d e
que um Deus benéfico e onipotente tenha criado propositalmente as Ichneumonidae .com a intenção
exp r es s a d e qu e es t a s b u s ca s s em o s eu a lim en t o n o in t er ior d o cor p o vivo d a s la ga r t a s ”. Na
verdade, a perda gradual da fé por parte de Darwin, que ele dissimulava com medo de aborrecer sua
d evot a es p os a E m m a , t in h a ca u s a s m a is com p lexa s . S u a r efer ên cia à s Ichneumonidae er a
a for ís t ica . Os h á b it os m a ca b r os a os qu a is ele s e r efer iu s ã o com p a r t ilh a d os p or s u a s p r im a s , a s
ves p a s ca va d or a s 13, a s qu a is en con t r a m os n o ca p ít u lo a n t er ior . A fêm ea d a ves p a ca va d or a n ã o
apenas põe seus ovos numa lagarta (ou gafanhoto ou abelha) para que suas larvas alimentem-se de
s eu cor p o, m a s , d e a cor d o com Fa b r e e ou t r os , ela cu id a d os a m en t e d ir ige s eu fer r ã o p a r a ca d a u m
d os gâ n glios d o s is t em a n er vos o cen t r a l d a p r es a , d e m od o a p a r a lis á -la m a s n ã o m atá-la . Des te
m od o, a ca r n e m a n tém -s e fr es ca . Nã o s e s a b e s e a p a r a lis ia fu n cion a com o u m a a n es tes ia ger a l ou
s e ela fu n cion a com o o cu r a r e qu e s im p les m en te s u p r im e a h a b ilid a d e qu e a vít im a t em d e m over -
s e. Se es te for o ca s o, a p r es a p od e es ta r con s cien te d e es t a r s en d o com id a viva a p a r t ir d e s eu
in t er ior , m a s é in ca p a z d e m over u m m ú s cu lo p a r a fa zer qu a lqu er cois a a r es p eit o. Is t o p a r ece
s elva gem en te cr u el m a s , com o ver em os , a n a t u r eza n ã o é cr u el, a p en a s im p la ca velm en te
in d ifer en te. E s t a é u m a d a s lições m a is d u r a s qu e os h u m a n os t êm d e a p r en d er . Nã o p od em os
a d m it ir qu e a s cois a s p os s a m s er n em b oa s n em m á s , n em cr u éis n em ca r in h os a s , m a s
simplesmente cruas – indiferentes a todos os sofrimentos e sem nenhum propósito.
Nós h u m a n os t em os o p r op ós it o n o cér eb r o. Ach a m os d ifícil olh a r p a r a qu a lqu er cois a s em
perguntar-n os “p a r a qu e s er ve?”, qu a l o m ot ivo ou qu a l o p r op ós it o p or t r á s d is t o. Qu a n d o a
ob s es s ã o com o p r op ós it o t om a -s e p a t ológica , ela é ch a m a d a p a r a n óia – e in ter p r et a r com o
p r op ós it o m a levolen te o qu e n a ver d a d e é a lea t ór io é ch a m a d o d e m á s or t e. Ma s es t a é u m a for m a
exa ger a d a d e u m a ilu s ã o qu a s e u n iver s a l. Mos t r em -n os qu a s e qu a lqu er ob jet o ou p r oces s o e s er á
difícil para nós resistir à pergunta “por quê?” – ou à pergunta “para que serve?”
O d es ejo d e ver p r op ós it o em t od a p a r t e é n a t u r a l em u m a n im a l qu e vive cer ca d o p or
m á qu in a s , ob r a s d e a r te, in s t r u m en t os e ou t r os a r t efa t os p r ojeta d os ; a lém d o m a is , u m a n im a l
cu jos d eva n eios d iu r n os s ã o d om in a d os p or s eu s p r óp r ios ob jet ivos p es s oa is . Um ca r r o, u m a b r id or
d e la t a s u m a ch a ve d e p a r a fu s o ou u m for ca d o ga r a n t em a legit im id a d e n a p er gu n t a “p a r a qu e
s er ve?”. Nos s os a n t ep a s s a d os p a gã os t er ia m feit o a m es m a p er gu n t a s ob r e os t r ovões , os eclip s es ,
a s r och a s e a s cor r en tes d e á gu a . Hoje or gu lh a m o-n os d e ter m os n os livr a d o d es te a n im is m o
p r im it ivo. S e, em u m cu r s o d ’á gu a , u m a p ed r a s er ve com o a p oio, con s id er a m os s u a u t ilid a d e com o
u m b en efício a cid en t a l, e n ã o a lgo com u m p r op ós it o ver d a d eir o. Ma s a velh a t en t a çã o volta p a r a
vingar-s e qu a n d o u m a t r a géd ia n os a t in ge – n a ver d a d e, a p r óp r ia p a la vr a “a t in ge” é u m eco
animístico: “Por quê, mas por quê, o câncer/terremoto/furacão tinha de atingir a minha criança?” E
a m es m a t en ta çã o é m u it a s vezes s a b or ea d a d e m od o p os it ivo qu a n d o o t óp ico é a or igem d e t od a s

52
as coisas ou as leis fundamentais da física, culminando na questão existencial vazia “Por que existe
algo em vez de nada?”.
Per d i a con ta d o n ú m er o d e vezes em qu e u m m em b r o d a p la téia leva n t ou -s e a p ós u m a
p a les t r a p ú b lica m in is t r a d a p or m im e d is s e a lgo m a is ou m en os com o s e s egu e: “Vocês cien t is t a s
s ã o m u it o b on s em r es p on d er p er gu n ta s d o t ip o ‘com o?’. Ma s d evem a d m it ir qu e s ã o im p ot en tes
fr en te a p er gu n t a s d o t ip o ‘p or qu ê?’’’. O p r ín cip e Ph ilip , d u qu e d e E d im b u r go, r es s a ltou es te
m es m o p on t o qu a n d o em u m a p a les t r a em Win d s or d ir igiu -s e a m eu colega , o Dr . Peter At k in s . Por
t r á s d a p er gu n t a h á s em p r e a im p lica çã o n ã o d it a m a s in ju s t ifica d a d e qu e, com o a ciên cia é
in ca p a z d e r es p on d er à s p er gu n t a s d o t ip o “p or qu ê?”, d eve h a ver a lgu m a ou t r a d is cip lin a
qualificada para respondê-las. A implicação é, naturalmente, bastante ilógica.
Temo que o Dr. Atkins tenha dado pouca atenção ao “por quê?” real. O simples fato de que se
p os s a fa zer u m a p er gu n t a n ã o t om a s en s a t o ou legít im o fa zê-la . Há m u it a s cois a s s ob r e a s qu ais
você pode perguntar: “qual é a sua temperatura?” ou “qual é a sua cor?”, mas você não pode fazer a
p er gu n t a s ob r e a tem p er a t u r a ou s ob r e a cor r ela t iva m en te a o, d iga m os , ciú m e ou à or a çã o. Da
mesma forma, você está certo em perguntar “por quê?” a respeito dos pára-lamas da bicicleta ou da
r ep r es a d e Ka r ib a , m a s n o m ín im o você n ã o t em d ir eit o d e s u p or qu e a p er gu n ta d o t ip o “p or qu ê?”
m er ece u m a r es p os t a qu a n d o feit a a r es p eit o d e u m r och ed o, u m in for t ú n io, o m on t e E ver es t ou o
u n iver s o. Per gu n t a s p od em s er s im p les m en te in a p r op r ia d a s , n ã o im p or t a qu ã o s in cer a s eja s u a
formulação.
E m a lgu m lu ga r en t r e lim p a d or es d e p á r a -b r is a e a b r id or es d e la t a d e u m la d o e o u n iver s o
d o ou t r o es t ã o à s cr ia t u r a s viva s . Os cor p os vivos e s eu s ór gã os s ã o ob jet os qu e, a o con t r á r io d a s
rochas, parecem ter a palavra propósito escrita em todas as suas partes. De modo notório, é claro, a
fin a lid a d e a p a r en te d os cor p os vivos d om in ou o clá s s ico Ar gu m en t o d o Pla n o 14, in voca d o p elos
teólogos desde são Tomás de Aquino e William Paley aos criacionistas “científicos” modernos.
O p r oces s o ver d a d eir o qu e d ot ou a s a s a s e os olh os , os b icos , os in s t in t os d e p r ocr ia çã o e
t od os os d em a is a s p ect os d a vid a d e u m a in t en s a ilu s ã o d e p la n o p r op os it a l es t á a gor a b em
en ten d id o. É a s eleçã o n a t u r a l d a r win ia n a . Nos s a com p r een s ã o d is t o, d e m od o es p a n t os o, ch egou
a t é n ós r ecen t em en te, n o ú lt im o s écu lo e m eio. An tes d e Da r win , m es m o a s p es s oa s in s t r u íd a s qu e
h a via m a b a n d on a d o a s p er gu n t a s d o t ip o “p or qu ê?” com r es p eit o à s r och a s , cu r s os d ’á gu a e
eclipses a in d a a ceit a va m im p licit a m en t e es te t ip o d e p er gu n ta s em p r e qu e d izia r es p eit o à s
cr ia t u r a s viva s . Agor a a p en a s os cien t ifica m en te a n a lfa b et os a fa zem . Ma s “a p en a s ” es con d e a
verdade indigesta de que ainda estamos falando sobre a maioria absoluta.
Na ver d a d e, os d a r win ia n os fa zem p er gu n t a s d o t ip o “p or qu ê?” a r es p eit o d a s cois a s viva s ,
mas eles o fazem em um sentido especial, metafórico. Por que as aves cantam, e para que servem as
a s a s ? Ta is p er gu n t a s s er ia m a ceit a s com o u m a es p écie d e t a qu igr a fia p elos d a r win ia n os m od er n os
e ter ia m r es p os t a s s en s a ta s em ter m os d a s eleçã o n a t u r a l d os a n ces t r a is d a s a ves . A ilu s ã o d o
p r op ós it o é tã o p od er os a qu e os p r óp r ios b iólogos u t iliza m a s u p os içã o d o p r op ós it o com b oa s
in t en ções com o fer r a m en t a d e t r a b a lh o. Com o vim os n o ca p ít u lo a n t er ior , m u it o a n t es d e s eu
t r a b a lh o s ob r e a d a n ça d a s a b elh a s qu e m a r cou ép oca , Ka r l Von Fr is ch d es cob r iu , n a s b a r b a s d a
for t e op in iã o or t od oxa em con t r á r io, qu e a lgu n s in s et os t êm vis ã o color id a ver d a d eir a . S u a s
exp er iên cia s a p a ixon a n t es for a m es t im u la d a s p ela s im p les ob s er va çã o d e qu e a s flor es p olin iza d a s
pelas abelhas dão-se o trabalho de produzir pigmentos coloridos. Por que deveriam elas fazer isto se
as abelhas fossem cegas às cores? A metáfora do propósito – mais precisamente, a suposição de que

53
a seleção darwiniana faz parte do processo – é usada aqui para fazer uma inferência forte sobre o
mundo. Teria sido uma atitude bastante errônea por parte de Von Frisch se ele tivesse dito: “As
flores são coloridas, portanto as abelhas devem ter visão em cores”. Mas foi correto da parte dele
dizer, como o disse: “As flores são coloridas, portanto pelo menos vale a pena trabalhar duro em
algumas experiências novas para testar a hipótese de que as abelhas têm visão em cores”. O que
Von Frisch descobriu quando examinou a questão com detalhes foi que as abelhas têm uma boa
visão em cores, mas que o espectro no qual vêem é deslocado em relação ao nosso. Elas não podem
ver a luz vermelha (as abelhas poderiam dar o nome de “infra-amarelo” ao que chamamos
ver m elh o). Ma s a s a b elh a s p od em ver n a p a r t e d o es p ect r o qu e cor r es p on d e a com p r im en t os d e
on d a m a is cu r t os qu e ch a m a m os u lt r a violet a , e ela s vêem o u lt r a violet a com o u m a cor d ifer en te,
algumas vezes chamada de “roxo das abelhas”.
Qu a n d o s e d eu con t a d e qu e a s a b elh a s vêem a p a r t e u lt r a violeta d o es p ect r o, Von Fr is ch
m a is u m a vez fez a lgu n s r a ciocín ios u t iliza n d o a m et á for a d o p r op ós it o. Pa r a qu e, ele p er gu n t ou -se,
a s a b elh a s u s a m s u a ca p a cid a d e d e ver a lu z u lt r a violet a ? S eu s p en s a m en t os volt a r a m -se
novam en te, d e m od o cir cu la r , p a r a a s flor es . E m b or a n ã o p os s a m os ver a lu z u lt r a violet a , p od em os
fa zer u m film e fot ogr á fico qu e é s en s ível a ela , e p od em os fa zer filt r os qu e s ã o t r a n s p a r en tes p a r a a
lu z u lt r a violet a , m a s qu e cor t a m a lu z “vis ível”. Agin d o d e a cor d o com s u a s u p os içã o, Von Fr is ch
t ir ou a lgu m a s fot ogr a fia s u lt r a violet a s d a s flor es . Pa r a s u a a legr ia , viu o p a d r ã o d e m a n ch a s e
lis t r a s qu e n en h u m olh o h u m a n o h a via vis t o a n t es , qu e m u it a s vezes s er vem com o s in a liza d or es d e
p is t a d e p ou s o p a r a gu ia r a s a b elh a s a té o n éct a r . A s u p os içã o d e p r op ós it o a p a r en te h a via m a is
u m a vez d a d o cer t o: a s flor es , s e b em p r ojet a d a s , exp lor a r ia m o fa t o d e qu e a s a b elh a s p od em ver
nos comprimentos de onda ultravioleta.
Qu a n d o Von Fr is ch já es t a va velh o, s eu t r a b a lh o m a is fa m os o – s ob r e a d a n ça d a s a b elh a s ,
qu e d is cu t im os n o ú lt im o ca p ít u lo – foi qu es t ion a d o p or u m b iólogo a m er ica n o ch a m a d o Ad r ia n
Wen n er . Felizm en te, Von Fr is ch viveu o t em p o s u ficien t e p a r a ver s eu t r a b a lh o con ím n a d o p or u m
ou t r o a m er ica n o, J a m es L. Gou ld , a gor a em Pr in cet on , em uma das exp er iên cia s m a is
b r ilh a n t em en t e con ceb id a s d e t od a a b iologia . Rela t a r ei b r evem en te a h is t ór ia , p ois es t a é r eleva n t e
para o meu argumento sobre o poder da suposição do tipo “como se tivesse sido planejado”.
Wenner e seus colegas não negaram que a dança acontece. Eles nem mesmo negaram que ela
contém toda a informação que Von Frisch disse que continha. O que eles realmente negaram foi que
ou t r a s a b elh a s in t er p r et a m a d a n ça . S im , d is s e Wen n er , é ver d a d e qu e a d ir eçã o d a cor r id a em
lin h a r et a d a d a n ça a git a d a em r ela çã o à ver t ica l es t á r ela cion a d a com a d ir eçã o d a com id a em
r ela çã o a o S ol. Ma s n ã o, a s ou t r a s a b elh a s n ã o r eceb em es t a in for m a çã o d a d a n ça . S im , é ver d a d e
qu e a s t a xa s d e vá r ia s cois a s p od em s er in t er p r et a d a s com o in for m a çã o a r es p eit o d a d is t â n cia d a
com id a . Ma s n ã o h á b oa s evid ên cia s d e qu e a s ou t r a s a b elh a s p os s a m in t er p r et a r a in for m a çã o.
E la s a s p od er ia m es t a r ign or a n d o. As evid ên cia s d e Von Fr is ch , d is s er a m os cr ít icos , er a m fa lh a s , e
qu a n d o eles r ep et ir a m s u a s exp er iên cia s com os “con t r oles ” a p r op r ia d os (is t o é, leva n d o em con t a
os m eios a lter n a t ivos p elos qu a is a s a b elh a s p od em d es cob r ir a com id a ), a s exp er iên cia s n ã o m a is
apoiavam a hipótese da linguagem da dança das abelhas.
É a qu i qu e J im Gou ld en t r a n a h is t ór ia com s u a s exp er iên cia s r equ in t a d a s e en gen h os a s .
Gou ld exp lor ou u m fa t o h á m u it o s a b id o s ob r e a s a b elh a s com u n s , qu e você r ecor d a r á d o ca p ít u lo
a n t er ior . E m b or a ela s u s u a lm en te d a n cem n o es cu r o, u t iliza n d o a d ir eçã o d ir et a m en te p a r a cim a
n o p la n o ver tica l com o u m s ím b olo cod ifica d o d a d ir eçã o d o S ol n o p la n o h or izon t a l, a s a b elh a s

54
comuns passarão sem esforço para um modo possivelmente mais antigo de fazer as coisas se você
acender a luz dentro da colméia. Elas esquecerão tudo sobre a gravidade e usarão a lâmpada como
seu Sol de imitação, permitindo que ela determine diretamente o ângulo da dança. Felizmente, não
há qualquer mal-entendido quando a dançarina troca de objeto de fidelidade, passando da
gravidade para a lâmpada. As outras abelhas que “interpretam” a dança trocam de fidelidade, do
mesmo modo, de modo que a dança ainda tem o mesmo significado: as outras abelhas ainda se
desviam procurando a comida na direção que a dançarina pretendia.
Agor a o golp e d e m es t r e d e J im Gou ld . E le p in t ou os olh os d e u m a a b elh a d a n ça r in a com
esmalte preto, de modo que ela não podia ver a lâmpada. Esta abelha, portanto dançou utilizando a
convenção normal imposta pela gravidade. Mas as outras abelhas que acompanhavam a sua dança,
n ã o es t a n d o cega s , p od ia m ver a lâ m p a d a . E la s in t er p r et a r a m a d a n ça com o s e a con ven çã o
im p os t a p ela gr a vid a d e t ives s e s id o d eixa d a d e la d o e a s u b s t it u ír a m p ela con ven çã o im p os ta p ela
lâ m p a d a “s ola r ”. As d a n ça r in a s a com p a n h a n t es m ed ir a m o â n gu lo d a d a n ça em r ela çã o à lu z,
en qu a n t o a d a n ça r in a cega a or ien t a va em r ela çã o à gr a vid a d e. De fa t o, Gou ld es t a va for ça n d o a
abelha dançarina a ficar na direção da comida. Ficar não apenas em um sentido geral, mas ficar em
u m a d ir eçã o p a r t icu la r qu e Gou ld p od ia m a n ip u la r p r ecis a m en te. E le r ea lizou a exp er iên cia n ã o
a p en a s com u m a a b elh a cega , é cla r o, m a s com u m a a m os t r a es t a t ís t ica d e a b elh a s e â n gu los
va r ia d a m en te m a n ip u la d os . E fu n cion ou . A h ip ót es e or igin a l d e Von Fr is ch s ob r e a lin gu a gem d a
dança foi confirmada de modo triunfante.
Nã o con t ei es t a h is t ór ia a p en a s p or d iver t im en t o. Qu er ia r ea lça r os a s p ect os p os it ivos e
n ega t ivos d a s u p os içã o d e b om p la n eja m en t o. Qu a n d o li p ela p r im eir a vez os t r a b a lh os cét icos d e
Wenner e seus colegas, fui abertamente zombeteiro. Não era uma coisa boa de ser feita, mesmo que
fin a lm en te Wen n er s e m os t r a s s e er r a d o. Min h a zom b a r ia er a fu n d a m en t a d a n a h ip ót es e d o “b om
p la n eja m en t o”. Wen n er , a fin a l d e con t a s , n ã o es t a va n ega n d o qu e a d a n ça exis t is s e, n em qu e ela
cor p or ifica s s e t od a a in for m a çã o qu e Von Fr is ch a fir m a qu e con t in h a a r es p eito d a d is t â n cia e d a
d ir eçã o d a com id a . Wen n er s im p les m en te n ega va qu e a s ou t r a s a b elh a s in t er p r et a s s em a
in for m a çã o. E is t o er a in t r a gá vel p a r a m im e p a r a ou t r os b iólogos d a r win ia n os . A d a n ça er a t ã o
com p lica d a , t ã o r equ in t a d a m en te d eta lh a d a , t ã o p er feit a m en te s in t on iza d a com s eu p r op ós it o
a p a r en te d e in for m a r à s ou t r a s a b elh a s s ob r e a d is t â n cia e a d ir eçã o d a com id a . E s t a s in t on ia
p er feit a n ã o p od er ia ter s u r gid o, d o n os s o p on t o d e vis t a , s en ã o p ela s eleçã o n a t u r a l. De u m cer to
m od o, n ós ca ím os n a m es m a a r m a d ilh a em qu e os cr ia cion is t a s ca em qu a n d o con t em p la m a s
m a r a vilh a s d a vid a . S im p les m en te a d a n ça t in h a d e es t a r s er vin d o a u m p r op ós it o ú t il, e is t o
p r es u m ivelm en t e s ign ifica va a ju d a r a s a b elh a s a en con t r a r com id a . Ma is a in d a , a qu eles m es m os
a s p ect os d a d a n ça qu e er a m p r ecis a m en t e a ju s t a d os – a r ela çã o d o s eu â n gu lo e velocid a d e com a
d ir eçã o e d is tâ n cia à com id a – t in h a m d e es t a r s er vin d o a u m p r op ós it o ú t il t a m b ém . Por ta n t o, n o
n os s o p on t o d e vis t a , Wen n er t in h a d e es t a r er r a d o. E u es t a va t ã o con fia n t e qu e, m es m o s e fos s e
suficientemente engenhoso para propor a experiência da abelha cega de Gould (o que certamente eu
não era), não teria me dado o trabalho de realizá-la.
Gou ld n ã o a p en a s er a s u ficien tem en te en gen h os o p a r a im a gin a r a exp er iên cia com o t a m b ém
deu-s e o t r a b a lh o d e fa zê-la , p ois n ã o es t a va s ed u zid o p ela h ip ót es e d o b om p la n eja m en t o.
E n t r et a n t o, é u m a cor d a b a m b a m u it o fin a es t a s ob r e a qu a l es t a m os ca m in h a n d o, p ois s u s p eit o
qu e Gou ld – com o Von Fr is ch a n t es d ele, n a s u a p es qu is a s ob r e a s cor es – t in h a s u ficien tes

55
suposições do tipo “bom planejamento” em sua cabeça para acreditar que sua notável experiência
tinha uma chance respeitável de sucesso e portanto valia a pena gastar tempo e esforço com ela.
Qu er o a gor a in t r od u zir d ois t er m os t écn icos , “en gen h a r ia r ever s a ” e “fu n çã o d e u t ilid a d e”.
Nes t a s eçã o, s ou in flu en cia d o p elo s ob er b o livr o d e Da n iel Den n et t Da rw in ’s Da n gerou s Id e a (A
p er igos a id éia d e Da r win ). A en gen h a r ia r ever s a é u m a t écn ica d e r a ciocín io qu e fu n cion a d o
s egu in te m od o. Você é u m en gen h eir o con fr on t a d o com u m a r t efa t o qu e en con t r ou , m a s n ã o
entende. Você faz a hipótese de trabalho de que ele foi projetado com algum propósito. Você disseca
e a n a lis a o ob jet o vis a n d o d es cob r ir p a r a qu e t ip o d e p r ob lem a ele s er ia a s olu çã o: “S e eu qu is es s e
construir uma máquina que fizesse isto-e-lsto, eu a teria feito desta forma? Ou será o objeto melhor
explicado como uma máquina projetada para fazer aquilo-e-aquilo?”
A régua de cálculo, símbolo até recentemente da honrosa profissão de engenheiro, é na era da
elet r ôn ica t ã o ob s olet a qu a n t o qu a lqu er r elíqu ia d a Id a d e d o Br on ze. Um a r qu eólogo d o fu t u r o,
en con t r a n d o u m a r égu a d e cá lcu lo e s e p er gu n t a n d o s ob r e ela , p od e ob s er va r qu e es t a é ú t il p a r a
d es en h a r lin h a s r et a s e p a s s a r m a n t eiga n o p ã o. Ma s s u p or qu e qu a lqu er u m a d es t a s a t ivid a d es
er a o s eu p r op ós it o or igin a l viola o p r es s u p os t o d e econ om ia . Um a s im p les r égu a ou fa ca d e
m a n t eiga n ã o t er ia n eces s id a d e d e u m a p a r t e d es liza n t e n o m eio d a r égu a . Ma is a in d a , s e você
exa m in a r o es p a ça m en t o d a s gr a t ícu la s , você d es cob r ir á es ca la s loga r ít m ica s p r ecis a s , d is p os t a s d e
m od o d em a s ia d a m en te m et icu los o p a r a s er em a cid en t a is . Um a r qu eólogo d a r -se-ia con t a d e qu e,
em u m a ép oca a n t er ior à d a s ca lcu la d or a s elet r ôn ica s , es te p a d r ã o s e con s t it u ir ia em u m t r u qu e
en gen h os o qu e s er vir ia p a r a a m u lt ip lica çã o e d ivis ã o r á p id a s . O m is t ér io d a r égu a d e cá lcu lo s er ia
resolvido pela engenharia reversa, empregando a hipótese do projeto inteligente e econômico.
“A fu n çã o d e u t ilid a d e” é u t iliza d o n ã o p elos en gen h eir os , m a s s im p elos econ om is t a s . E la
s ign ifica “a qu ilo qu e é m a xim iza d o”. Os p la n eja d or es econ ôm icos e en gen h eir os s ocia is p a r ecem -se
b a s t a n t e com os a r qu it et os e os en gen h eir os ver d a d eir os , p ois es for ça m -s e em m a xim iza r a lgu m a
cois a . Os u t ilit a r is t a s es for çam-s e em m a xim iza r ”o m á xim o d e felicid a d e p a r a o m a ior n ú m er o” (a
p r op ós it o, u m a fr a s e qu e s oa m a is in t eligen te d o qu e é). Deb a ixo d es te gu a r d a -ch u va , o u t ilit a r is t a
p od e d a r à es t a b ilid a d e d e lon go p r a zo u m a p r ior id a d e m a ior ou m en or à cu s t a d a felicid a d e d e
cu r t o p r a zo, e os u t ilit a r is t a s d is cor d a m s e m ed em a “felicid a d e” p ela r iqu eza m on et á r ia , s a t is fa çã o
n o t r a b a lh o, r ea liza çã o cu lt u r a l ou r ela ções p es s oa is . Ou t r os con fes s a d a m en te m a xim iza m a s u a
própria felicidade à custa do bem-estar comum, e podem dignificar o seu egoísmo com uma filosofia
qu e a fir m a qu e a felicid a d e ger a l s er á m a xim iza d a s e ca d a u m t or n a r con t a d e s i m es m o. Pela
ob s er va çã o d o com p or t a m en t o d os in d ivíd u os a o lon go d e s u a s vid a s , você d ever ia s er ca p a z d e
a p lica r a en gen h a r ia r ever s a à s s u a s fu n ções d e u t ilid a d e. Se você a p lica r a en gen h a r ia r ever s a a o
com p or t a m en t o d o gover n o d e u m p a ís , p od e ch ega r à con clu s ã o d e qu e o qu e es t á s en d o
maximizado é o emprego e o bem-estar geral. Para um outro país, a função de utilidade pode revelar
ser o p od er in in t er r u p t o d e u m p r es id en t e, ou a r iqu eza d e u m a fa m ília gover n a n t e p a r t icu la r , o
t a m a n h o d o h a r ém d e u m s u lt ã o, a es ta b ilid a d e d o Or ien te Méd io, ou a m a n u t en çã o d o p r eço d o
p et r óleo. A qu es t ã o é qu e p od em os con ceb er m a is d e u m a fu n çã o d e u t ilid a d e. Nem s em p r e é ób vio
o qu e in d ivíd u os , em p r es a s ou gover n os es t ã o s e es for ça n d o em m a xim iza r . Ma s p r ova velm en te é
s egu r o a s s u m ir qu e eles es t ã o m a xim iza n d o a lgu m a cois a . Is t o é a s s im p or qu e o Hom o s a p ien s é
u m a es p écie p r ofu n d a m en t e d ot a d a d e p r op ós it os . O p r in cíp io é vá lid o m es m o qu e a fu n çã o d e
u t ilid a d e r evele s er u m a m éd ia p on d er a d a ou a lgu m a ou t r a fu n çã o com p lica d a d e m u it os d a d os d e
entrada.

56
Retomemos aos corpos vivos e tentemos extrair a sua função de utilidade. Poderia haver
muitas, mas de modo revelador, finalmente elas se mostrariam redutíveis a uma. Urna boa maneira
d e d r a m a t iza r a n os s a t a r efa é im a gin a r qu e a s cr ia t u r a s viva s for a m feit a s p or u m E n gen h eir o
Divin o e ten ta r en ten d er a p a r t ir d is t o, com a en gen h a r ia r ever s a , o qu e o E n gen h eir o estava
tentando maximizar. Qual era a função de utilidade de Deus?
As ch it a s m os t r a m t od os os in d ícios d e s er s ob er b a m en te p r ojet a d a s p a r a a lgu m a cois a , e
d ever ia s er s u ficien tem en te fá cil a p lica r a ela s a en gen h a r ia r ever s a e d es cob r ir a s u a fu n çã o d e
utilid a d e. E la s p a r ecem p r ojet a d a s p a r a m a t a r a n t ílop es . Os d en tes , a s ga r r a s , os olh os , o focin h o,
os m ú s cu los d a s p a t a s , es p in h a d or s a l e o cér eb r o d e u m a ch it a s ã o p r ecis a m en te t u d o o qu e
d ever ía m os es p er a r s e o p r op ós it o d e Deu s a o p r ojet á -la s er a m a xim iza r a s m or t es en t r e os
a n t ílop es . De m od o con t r á r io, s e a p licá s s em os a en gen h a r ia r ever s a a u m a n t ílop e, d es cob r ir ía m os
igu a lm en te evid ên cia s im p r es s ion a n tes d e p la n eja m en t o com o ob jet ivo p r ecis a m en te op os t o: a
s ob r evivên cia d os a n t ílop es e a fom e en t r e a s ch it a s . É cor n o s e a s ch it a s t ives s em s id o p la n eja d a s
p or u m a d ivin d a d e e os a n t ílop es p or u m a d ivin d a d e r iva l. De m od o a lt er n a t ivo, s e h á a p en a s u m
Cr ia d or qu e fez o t igr e e o cor d eir o, a ch it a e a ga zela , a on d e E le qu er ch ega r ? S er á E le u m s á d ico
qu e s e d eleita em s er u m es p ect a d or d e es p or tes s a n gr en t os ? E s t a r á E le t en t a n d o evita r u m a
s u p er p op u la çã o en t r e os m a m ífer os d a Áfr ica ? E s t a r á E le m a n ob r a n d o p a r a m a xim iza r os ín d ices
t elevis ivos d e Da vid At t en b or ou gh ? Tod a s es t a s s er ia m fu n ções d e u t ilid a d e qu e p od er ia m m os t r a r -
s e ver d a d eir a s . Na ver d a d e, n a t u r a lm en t e, ela s es tã o t od a s com p let a m en te er r a d a s . Nós a gor a
en ten d em os a ú n ica fu n çã o d e u t ilid a d e d a vid a com gr a n d e d et a lh e e ela n ã o s e p a r ece com
nenhuma destas.
O capítulo 1 preparou o leitor para considerar a verdadeira função de utilidade da vida, aquilo
qu e es t á s en d o m a xim iza d o n o m u n d o n a t u r a l, a s ob r evivên cia d o ADN. Ma s o ADN n ã o flu t u a
livr em en te, ele es t á p r es o n os cor p os vivos e tem d e exp lor a r a o m á xim o os r ecu r s os a o s eu d is p or .
As s eqü ên cia s d e ADN qu e s e en con t r a m n os cor p os d a s ch it a s m a xim iza m a s u a s ob r evivên cia
fa zen d o com qu e es tes cor p os m a t em ga zela s . As s eqü ên cia s qu e s e en con t r a m n os cor p os d a s
ga zela s m a xim iza m a s u a s ob r evivên cia p r om oven d o ob jet ivos op os t os . Ma s em a m b os os ca s os é a
s ob r evivên cia d o ADN qu e es t á s en d o m a xim iza d a . Nes te ca p ít u lo, fa r ei u m t r a b a lh o d e en gen h a r ia
r ever s a com a lgu n s exem p los p r á t icos e m os t r a r ei com o t u d o fa z s en t id o u m a vez qu e você a s s u m a
que o que está sendo maximizado é a sobrevivência do ADN.
A r a zã o s exu a l – a p r op or çã o d e m a ch os p a r a fêm ea s – n a s p op u la ções s elva gen s é
u s u a lm en te d e 5 0 :5 0 . Is to p a r ece n ã o fa zer s en t id o d o p on t o d e vis t a econ ôm ico p a r a a qu ela s
m u it a s es p écies n a s qu a is u m a m in or ia d e m a ch os t em u m m on op ólio in ju s t o d e fêm ea s : o sistema
d o h a r ém . E m u m a p op u la çã o b em es t u d a d a d e elefa n tes -m a r in h os , 4 p or cen t o d os m a ch os
r es p on d ia m p or 8 8 p or cen t o d a s cóp u la s . Nã o im p or t a qu e a fu n çã o d e u t ilid a d e d e Deu s n es te
ca s o p a r eça tã o in ju s t a com a m a ior ia d e s olteir os . O qu e é p ior , u m a d ivin d a d e p r eocu p a d a com o
cor t e d os cu s t os e a eficiên cia ob s er va r ia com cer t eza qu e os 9 6 p or cen t o d e d es t it u íd os es t ã o
consumindo metade dos recursos alimentares da população (na verdade mais do que a metade, pois
os machos adultos do elefante-marinho são muito maiores do que as fêmeas). O excesso de solteiros
n ã o fa z n a d a a n ã o s er es p er a r p or u r n a op or t u n id a d e d e a fa s t a r u m d os 4 p or cen t o d e s en h or es
s or t u d os d o h a r ém . Com o p od e a exis tên cia d es t a s h or d a s d e s olteir os s er p os s ivelm en te
justificada? Qu a lqu er fu n çã o d e u t ilid a d e qu e d es s e p elo m en os u m a p equ en a a t en çã o à eficiên cia
econ ôm ica d a com u n id a d e d is p en s a r ia os s olt eir os . E m vez d is to, h a ver ia a p en a s u m n ú m er o

57
suficiente de machos para fertilizar as fêmeas. Novamente, esta anomalia aparente é explicada com
elegante simplicidade, uma vez que você compreenda a verdadeira função de utilidade darwiniana:
maximizar a sobrevivência do ADN.
E xa m in a r ei o exem p lo d a r a zã o s exu a l com u m p ou co m a is d e d et a lh e, p ois s u a fu n çã o d e
u t ilid a d e p r es t a -s e s u t ilm en te a um t r a t a m en to econ ôm ico. Ch a r les Da r win con fes s ou -se
espantado:
“E u a n t es p en s a va qu e qu a n d o u m a t en d ên cia em p r od u zir os d ois s exos em n ú m er os igu a is er a
va n t a jos a p a r a a es p écie, is t o s er ia o qu e s e s egu ir ia d a s eleçã o n a t u r a l, m a s a gor a vejo qu e o p r ob lem a
todo é tão intricado que é melhor deixar a sua solução para o futuro”.

Com o em m u it a s oca s iões , foi o gr a n d e Sir Ron a ld Fis h er qu e s u r giu n o fu t u r o d e Da r win .


Fisher raciocinou como se segue.
Tod os os in d ivíd u os n a s cid os t êm exa t a m en te u m a m ã e e u m p a i. Por t a n t o, o s u ces s o
r ep r od u t ivo tot a l, m ed id o p elos d es cen d en tes d is t a n t es , d e t od os os m a ch os vivos d eve s er igu a l
à qu ele d a s fêm ea s viva s . Nã o qu er o d izer cada m a ch o e cada fêm ea , p or qu e cla r a m en te, e d e m od o
im p or t a n t e, a lgu n s in d ivíd u os t êm m a is s u ces s o d o qu e ou t r os . E s t ou fa la n d o d a t ot a lid a d e d os
m a ch os com p a r a d a à t ot a lid a d e d a s fêm ea s . E s t a p os t er id a d e tot a l d eve s er d ivid id a en tr e os
in d ivíd u os m a ch os e fêm ea s – n ã o d ivid id a igu a lm en t e, m a s d ivid id a . O b olo r ep r od u t ivo qu e d eve
s er d ivid id o en t r e t od os os m a ch os é igu a l a o b olo qu e d eve s er d ivid id o en tr e t od a s a s fêm ea s .
Por t a n t o, s e h á , d iga m os , m a is m a ch os d o qu e fêm ea s n a p op u la çã o, o p ed a ço m éd io d o b olo p or
m a ch o d eve s er m en or d o qu e o p ed a ço m éd io d o b olo p or fêm ea . S egu e qu e o s u ces s o r ep r od u t ivo
m éd io (is t o é, o n ú m er o es p er a d o d e d es cen d en tes ) d e u m m a ch o com p a r a d o com o s u ces s o
r ep r od u t ivo m éd io d e u m a fêm ea é d eter m in a d o u n ica m en te p ela r a zã o m a ch o/ fêm ea . Um
com p on en te m éd io d o s exo m in or it á r io t em u m s u ces s o r ep r od u t ivo m a ior d o qu e u m m em b r o
médio do sexo majoritário. Somente se a razão sexual for harmoniosa e não houver minoria é que os
s exos d es fr u ta r ã o u m s u ces s o r ep r od u t ivo igu a l. E s t a con clu s ã o n ot a velm en t e s im p les é u r n a
con s eqü ên cia d e u r n a lógica p u r a m en te d e p olt r on a . E la n ã o d ep en d e em a b s olu t o d e qu a is qu er
d a d os em p ír icos , excet o d o fa t o fu n d a m en t a l d e qu e t od os os r eb en t os já n a s cid os t êm u m p a i e
uma mãe.
O s exo é u s u a lm en te d eter m in a d o n o m om en t o d a con cep çã o, d es te m od o p od em os a s s u m ir
qu e u m in d ivíd u o n ã o tem p od er d e d eter m in a r o s eu s exo (p elo m en os u m a vez o cir cu n lóqu io n ã o
é ritual, e sim necessário). Assumiremos, de acordo com Fisher, que um progenitor pode ter o poder
d e d eter m in a r o s exo d e s u a p r ole. Por “p od er ”, é cla r o, n ã o qu er em os d izer p od er con s cien t e ou
d elib er a d a m en t e m a n ip u la d o. Ma s u m a m ã e p od e t er u m a p r ed is p os içã o gen ética p a r a cr ia r u m a
qu ím ica va gin a l levem en te h os t il a os es p er m a t ozóid es qu e p r od u zem filh os mas n ã o a os
es p er m a t ozóid es qu e p r od u zem filh a s . Ou u m p a i p od e ter u m a ten d ên cia gen ét ica d e fa b r ica r m a is
es p er m a t ozóid es qu e p r od u zem filh a s d o qu e es p er m a t ozóid es qu e p r od u zem filh os . Nã o im p or t a o
qu e p os s a s er feit o n a p r á t ica , im a gin e-s e com o u m p a i t en t a n d o d ecid ir s e qu er ter u m filh o ou
u m a filh a . Nova m en te, n ã o es t a m os fa la n d o s ob r e d ecis ões con s cien tes , m a s s ob r e a s eleçã o d e
gerações de genes que atuam sobre os corpos para influenciar o sexo de suas proles.
S e você es t iver t en t a n d o m a xim iza r o s eu n ú m er o d e n et os e n et a s , você d ever ia t er u m filh o
ou uma filha? Vimos já que você deveria ter uma criança do sexo que é minoria na população. Deste
m od o, s eu r eb en t o p od e es p er a r u m a fa t ia r ela t iva m en te m a ior n a a t ivid a d e d e r ep r od u çã o e você

58
pode esperar um número relativamente maior de netos e netas. Se nenhum dos sexos é mais raro
do que o outro – em outras palavras, se a taxa já é 50:50 –, você não pode esperar benefícios em
preferir um sexo ou outro. Não importa se você terá um filho ou uma filha. Uma razão sexual de
50:50 é, portanto dita evolutivamente estável, para usar um termo cunhado pelo grande
evolucionista J ohn Maynard Smith. Somente se a razão sexual existente tem algum outro valor e
não 50:50 é que uma preferência em sua escolha dará dividendos. Quanto à questão de por que os
indivíduos deveriam tentar maximizar os seus netos e netas e descendentes posteriores, ela mal
precisa ser formulada. Os genes que fazem com que os indivíduos maximizem os seus descendentes
s ã o os gen es qu e es p er a m os ver n o m u n d o. Os a n im a is qu e es t a m os d is cu t in d o h er d a r a m s eu s
genes de ancestrais bem-sucedidos.
É t en t a d or exp r es s a r a teor ia d e Fis h er d izen d o qu e 5 0 :5 0 é a r a zã o s exu a l “ot im iza d a ”, m a s
is t o é es t r it a m en te in cor r et o. O s exo ót im o a s er es colh id o p a r a u m a cr ia n ça é m a s cu lin o s e os
h om en s es t iver em em m in or ia e fem in in o s e a s m u lh er es es t iver em em m in or ia . S e n en h u m d os
sexos é minoria, não há ótimo: o progenitor bem projetado é estritamente indiferente quanto ao fato
d e n a s cer u m filh o ou u m a filh a . Cin qü en t a p or cin qü en t a é d it a s er u m a r a zã o evolu t iva m en te
es t á vel p or qu e a s eleçã o n a t u r a l n ã o fa vor ece qu a lqu er ten d ên cia em d es via r -s e d ela , e s e h á
qualquer desvio a seleção natural favorece o restabelecimento do equilíbrio.
Ma is a in d a , Fis h er p er ceb eu qu e n ã o é es t r it a m en te o n ú m er o d e m a ch os e fêm ea s qu e é
m a n t id o com r a zã o d e 5 0 :5 0 p ela s eleçã o n a t u r a l, m a s s im o qu e ele ch a m ou d e “ga s t o p a r en t a l”
com os filh os e filh a s . O ga s t o p a r en t a l s ign ifica t od o o a lim en t o d u r a m en te ob t id o e coloca d o n a
b oca d e u m r eb en t o; e t od o o t em p o e en er gia ga s t os p a r a cu id a r d ele, e qu e p od er ia ter s id o gasto
com a lgu m a ou t r a cois a , t a is com o t en t a r fa zer u m ou t r o r eb en t o. Por exem p lo, s u p on h a qu e os
p a is em u m a es p écie p a r t icu la r d e foca s ga s t a s s em t ip ica m en te d u a s vezes m a is t em p o e en er gia
criando um rebento macho do que um rebento fêmea. Os machos das focas são tão pesados quando
com p a r a d os com a s fêm ea s qu e é fá cil a cr ed it a r (em b or a , d e fa t o, er r a d o) qu e es te p od e s er o ca s o.
Pen s e n o qu e is t o p od er ia s ign ifica r . A ver d a d eir a es colh a d is p on ível a u m p a i ou u m a m ã e n ã o é
“d evo ter u m filh o ou u m a filh a ?” m a s s im “d evo ter u m filh o ou d u a s filh a s ?” Is t o p or qu e, com a
com id a e os ou t r os cu id a d os qu e s ã o n eces s á r ios p a r a cr ia r u m filh o, você p od er ia ter cr ia d o d u a s
filh a s . A r a zã o s exu a l evolu t iva m en te es t á vel, m ed id a em n ú m er o d e cor p os , s er ia en t ã o d u a s
fêm ea s p a r a ca d a m a ch o. Ma s , m ed id a e m qu a n tid a d e d e ga s tos p a ren ta is (em op os içã o a o n ú m er o
de indivíduos), a razão sexual evolutivamente estável é ainda 50:50. A teoria de Fisher é equivalente
a u m equ ilíb r io d os ga s t os d os d ois s exos . Is t o m u it a s vezes r es u lt a , p or a s s im d izer , equ iva len t e a
equilibrar os números dos dois sexos.
Mes m o en t r e a s foca s , com o d is s e, p a r ece qu e a qu a n t id a d e d e ga s t os p a r en t a is com os
filh ot es m a ch os n ã o é p er cep t ivelm en te d ifer en te d os ga s t os com os filh ot es fêm ea s . A d es igu a ldade
patente em peso parece surgir depois do final dos gastos parentais. De modo que a decisão com que
d ep a r a u m p r ogen it or ou p r ogen it or a é a in d a “d evo t er u m filh o ou u m a filh a ?” Mes m o qu e o cu s t o
t ot a l d o cr es cim en t o d e u m filh o a t é a m a t u r id a d e p u d es s e s er m u it o m a ior d o qu e o cu s t o t ot a l d o
cr es cim en t o d e u m a filh a , s e o cu s t o a d icion a l n ã o é cob er t o p or qu em t om a a d ecis ã o (os p a is ) is t o
é tudo o que conta na teoria de Fisher.
A regra de Fisher sobre o equilíbrio dos gastos ainda vale naqueles casos em que um sexo tem
u m a r a zã o d e m or t a lid a d e m a is a lt a d o qu e o ou t r o. Por exem p lo, s u p on h a qu e b eb ês m a ch os
t en h a m u m a t en d ên cia m a ior p a r a m or r er d o qu e os b eb ês fêm ea s . S e a r a zã o s exu a l n a con cep çã o

59
é exatamente 50:50, os machos que atingirem a idade adulta serão suplantados pelas fêmeas.
Portanto, eles serão o sexo minoritário. E ingenuamente esperaríamos que a seleção natural
favorecesse pais que se especializassem em filhos. Fisher também esperaria isto, mas somente até
certo ponto – e um ponto precisamente limitado. Ele não esperaria que os pais concebessem um
excesso de filhos que compensaria exatamente a taxa de mortalidade, levando a uma igualdade na
população reprodutora. Não, a razão sexual na concepção deveria ser de algum modo favorável aos
bebês machos, mas até o ponto em que se espera que o gasto total com os filhos iguale o gasto total
com as filhas.
Ma is u m a vez, o m od o m a is fá cil d e p en s a r s ob r e is t o é você coloca r -s e n a p os içã o d o p a i ou
d a m ã e qu e tem d e t om a r u m a d ecis ã o e fa zer a p er gu n t a “d evo ter u m a filh a qu e p r ova velm en te
s ob r eviver á , ou u m filh o qu e p od e m or r er n a in fâ n cia ?” A d ecis ã o d e ter n etos ou n et a s via filh os
t r a z con s igo a p r ob a b ilid a d e d e você ter d e ga s t a r m a is r ecu r s os com a lgu n s filh os ext r a s p a r a
substituir aqueles que vão morrer. Você pode pensar que cada filho sobrevivente carrega o fantasma
d e s eu s ir m ã os m or t os n a s cos t a s . E les os ca r r ega m n a s cos t a s n o s en t id o em qu e a d ecis ã o d e
ch ega r a os n et os p ela r ota d e filh os h om en s d eixa o p r ogen it or ou p r ogen itor a r es p on s á vel p or
a lgu n s ga s t os a d icion a is d es p er d iça d os – ga s t os qu e s er ã o d es p er d iça d os com a s cr ia n ça s d e s exo
m a s cu lin o m or t a s . A r egr a fu n d a m en t a l d e Fis h er a in d a va le. A qu a n t id a d e t ot a l d e víver es e
en er gia in ves t id a n os filh os h om en s (in clu s ive a lim en t a r filh os p equ en os a té o p on t o em qu e
morrem) será igual à quantidade total investida com as filhas.
O qu e a con tece s e, em vez d e u m a t a xa d e m or t a lid a d e in fa n t il m a s cu lin a m a is a lt a , h á u m a
t a xa d e m or ta lid a d e m a s cu lin a m a is a lt a a p ós o fin a l d os ga s t os p a r en t a is ? De fa t o, is t o m u it a s
vezes s er á o ca s o, p ois os m a ch os a d u lt os lu t a m e fer em u n s a os ou t r os . E s t a cir cu n s t â n cia ,
t a m b ém , con d u zir á a exces s o d e fêm ea s em u m a p op u la çã o r ep r od u t or a . Por t a n t o, a p a r en tem en te,
is t o p a r ecer ia fa vor ecer p a is qu e s e es p ecia liza s s em em filh os , t ir a n d o d es t a for m a va n t a gem d a
raridade de machos entre a população reprodutora. Entretanto, pense um pouco mais e você notará
qu e es te r a ciocín io é fa la cios o. A d ecis ã o com qu e u m p r ogen it or d ep a r a é a s egu in t e: “Dever ei ter
u m filh o, qu e p r ova velm en t e s er á m or t o em u m a b a t a lh a a p ós eu tê-lo cr ia d o, m a s qu e, s e
s ob r eviver , m e d a r á m u it os n et os m a is ? Ou d evo ter u m a filh a , qu e é qu a s e cer t o qu e m e d a r á u m
n ú m er o m éd io d e n et os ?” O n ú m er o d e n et os qu e você p od e es p er a r d e u m filh o é a in d a o m es m o
n ú m er o m éd io qu e você p od e es p er a r d e u m a filh a , e o cu s t o d e t er u m filh o a in d a é o cu s t o d e
alimentá-lo e p r ot egê-lo a té o m om en t o em qu e ele d eixa r o n in h o. O fa t o d e qu e ele p r ova velm en te
será morto pouco tempo após ter abandonado o ninho não muda o cálculo.
E m t od o es te r a ciocín io, Fis h er a s s u m iu qu e “qu em tom a a d ecis ã o” é o p r ogen it or . O cá lcu lo
m u d a s e é a lgu m a ou t r a p es s oa . S u p on h a , p or exem p lo, qu e u m in d ivíd u o p u d es s e in flu en cia r o
p r óp r io s exo. Ma is u m a vez, n ã o qu er o d izer in flu en cia r com in t en çã o con s cien te. E s t ou fa zen d o a
h ip ót es e d e qu e h á gen es qu e a lter a m o d es en volvim en t o d e u m in d ivíd u o p a r a m a ch o ou fêm ea ,
con d icion a d o a es t ím u los p or p a r t e d o m eio a m b ien t e. Segu in d o a n os s a con ven çã o u s u a l, p a r a
en cu r t a r o tem p o, u s a r ei a lin gu a gem d a es colh a in d ivid u a l p or p a r t e d o in d ivíd u o – n es te ca s o, a
es colh a d elib er a d a d e s eu p r óp r io s exo. S e a os a n im a is qu e têm o s is tem a d o h a r ém com o os
elefantes-m a r in h os fos s e d a d o o p od er d es t a es colh a flexível, o efeito s er ia d r a m á t ico. Os in d ivíd u os
a s p ir a r ia m a s er m a ch os com h a r ém , m a s s e fa lh a s s em em t er u m h a r ém eles p r efer ir ia m s er
fêm ea s a m a ch os s olt eir os . Os elefa n tes -m a r in h os in felizm en te n ã o p od em r econ s id er a r o s exo qu e
r eceb er a m n a con cep çã o, m a s a lgu n s p eixes p od em . Os m a ch os d o la b r o d e ca b eça a zu l s ã o

60
grandes e brilhantemente coloridos, e têm haréns de fêmeas de cores esmaecidas. Algumas fêmeas
são maiores do que outras, e elas constituem uma hierarquia de dominação e poder. Se um macho
morre, seu lugar é rapidamente assumido pela fêmea maior, que breve se transforma em um macho
b r ilh a n t em en t e color id o. E s t es p eixes têm o m elh or d os d ois m u n d os . E m vez d e d es p er d iça r s u a s
vidas como machos solteiros esperando pela morte de um macho dominante, senhor do harém, eles
p a s s a m o s eu t em p o d e es p er a com o fêm ea s p r od u t iva s . O s is tem a d e r a zã o s exu a l d o la b r o d e
ca b eça a zu l é r a r o, e a fu n çã o d e u t ilid a d e d e Deu s coin cid e com a lgo qu e u m econ om is ta s ocia l
poderia considerar como prudente.
As s im , con s id er a m os a a m b os , o p r ogen it or e o p r óp r io in d ivíd u o, t om a d or es d e d ecis ã o.
Qu em m a is p od er ia t om a r a d ecis ã o? Nos in s et os s ocia is a s d ecis ões d e in ves t im en t o s ã o t om a d a s
p ela s op er á r ia s es tér eis , a s qu a is n or m a lm en te s er ã o ir m ã s m a is velh a s (e ir m ã os t a m b ém , n o ca s o
d a s t ér m it a s ) d os joven s qu e es t ã o s en d o cr ia d os . E n t r e os m eu s leit or es , os a p icu lt or es p od em já
t er r econ h ecid o qu e a r a zã o s exu a l d a colm éia n ã o p a r ece, à p r im eir a vis t a , con fir m a r a s
expectativas de Fisher. A primeira coisa que deve ser observada é que as operárias não deveriam ser
conta d a s com o fêm ea s . E la s s ã o t ecn ica m en te fêm ea s , m a s n ã o s e r ep r od u zem , d e m od o qu e a
r a zã o s exu a l qu e es t á s en d o r egu la d a d e a cor d o com a teor ia d e Fis h er é a r a zã o en t r e os za n gões
(m a ch os ) e a s r a in h a s qu e es t ã o s en d o p r od u zid a s p ela colm éia . No ca s o d a s a b elh a s e d a s
formigas, há razões técnicas particulares, que discuti no meu livro The Selfísh Gene (O gene egoísta)
e n ã o a s r ea p r es en t a r ei a qu i, p a r a es p er a r a r a zã o s exu a l d e 3 :1 em fa vor d a s fêm ea s . Lon ge d is t o,
com o qu a lqu er a p icu lt or s a b e, a r a zã o s exu a l r ea l in clin a -s e p es a d a m en te p a r a o la d o d os m a ch os .
Um a colm éia flor es cen te p od e p r od u zir m eia d ú zia d e n ova s r a in h a s em u m ciclo, m a s p r od u z
centenas e mesmo milhares de zangões.
O qu e es t á a con t ecen d o a qu i? Com o m u it a s vezes n a t eor ia evolu t iva m od er n a , d evem os a
resposta a W. D. Hamilton, que está agora na Universidade Oxford. Ela é reveladora e sintetiza toda
a t eor ia d a s r a zões s exu a is in s p ir a d a p or Fis h er . A ch a ve p a r a o p r ob lem a d a s r a zões s exu a is d a s
a b elh a s es t á n o n ot á vel fen ôm en o d a for m a çã o d o en xa m e. Um a colm éia d e a b elh a s é, em m u it os
a s p ect os , com o u m ú n ico in d ivíd u o. E le cr es ce, a t in ge a m a t u r id a d e, s e r ep r od u z e fin a lm en te
m or r e. O p r od u t o d a r ep r od u çã o d e u m a colm éia é o en xa m e. No p ico d o ver ã o, qu a n d o u m a
colm éia vem r ea lm en te p r os p er a n d o, ela for m a u m a colôn ia filh a – u m en xa m e. Pa r a a colm éia ,
produzir enxames é o equivalente da reprodução. Se a colméia é uma fábrica, os enxames são o seu
p r od u t o fin a l, ca r r ega n d o com eles os gen es p r ecios os d a colôn ia . Um en xa m e é con s t it u íd o p or
u m a r a in h a e m ilh a r es d e a b elh a s op er á r ia s . E la s t od a s d eixa m a colm éia m ã e d e u m a s ó vez e
reúnem-se em um aglomerado denso, pendurando-se em um arbusto ou uma rocha. Isto será o seu
a ca m p a m en to t em p or á r io en qu a n t o b u s ca m u m la r p er m a n en t e. Den t r o d e p ou cos d ia s , ela s
en con t r a r ã o u m a ca ver n a ou u m a á r vor e oca (ou , o qu e é m a is fr eqü en te n os d ia s d e h oje, s ã o
capturadas por um apicultor, talvez o original, e alojadas em uma nova colméia).
É o n egócio d e u m a colm éia p r ós p er a p r od u zir en xa m es filh os . O p r im eir o p a s s o p a r a is t o é
fa zer u m a n ova r a in h a . Us u a lm en te m a is ou m en os m eia d ú zia d e r a in h a s s ã o p r od u zid a s , e
a p en a s u m a d ela s es t á d es t in a d a a viver . A p r im eir a a fer r oa r a s ou t r a s a t é a m or t e.
(Pr es u m ivelm en te a s r a in h a s em exces s o es t ã o a li a p en a s p or fin a lid a d e d e s egu r a n ça ) As r a in h a s
s ã o gen etica m en te in ter ca m b iá veis com a s op er á r ia s , m a s s ã o cr ia d a s em célu la s r ea is es p ecia is
qu e fica m a b a ixo d o fa vo, e s ã o a lim en t a d a s com u m a d iet a p a r t icu la r m en te r ica , u m a n u t r içã o
r ea l. A d iet a in clu i a geléia r ea l, a s u b s t â n cia a qu e a r om a n cis t a Dame Ba r b a r a Ca r t la n d

61
romanticamente atribui sua longa vida e porte real. As abelhas operárias são criadas em células
menores, as mesmas células usadas mais tarde para armazenar o mel. Os zangões são
geneticamente diferentes. Eles vêm de ovos não fertilizados. Notavelmente, cabe à rainha decidir se
um ovo se tornará um zangão ou uma fêmea, rainha ou operária. A abelha rainha acasala-se
a p en a s d u r a n t e u m ú n ico vôo n u p cia l, n o com eço d e s u a vid a a d u lt a , e a r m a zen a o es p er m a p elo
r es t o d a vid a d en t r o d o s eu cor p o. À m ed id a qu e ca d a ovo d es ce p elo t u b o ovíp a r o, ela p od e ou n ã o
lib er a r u m a p equ en a qu a n t id a d e d e es p er m a d e s eu es t oqu e p a r a fer t ilizá -lo. A r a in h a , p or t a n t o,
t em o con t r ole d a r a zã o s exu a l en t r e os ovos . S u b s eqü en tem en te, p or ém , a s op er á r ia s p a r ecem ter
t od o o p od er , p or qu e con t r ola m o s u p r im en t o d e com id a d a s la r va s . E la s p od er ia m , p or exem p lo,
m a t a r a s la r va s d e fom e s e a r a in h a t iver p os t o m u it os ovos (d o s eu p on t o d e vis t a ) d e m a ch os . De
qu a lqu er m od o, a s op er á r ia s t êm o con tr ole s ob r e o fa t o d e u m ovo t or n a r -s e u m a op er á r ia ou u m a
rainha, já que isto depende exclusivamente das condições de criação, especialmente da dieta.
Ret om em os a gor a a o n os s o p r ob lem a d a r a zã o s exu a l e exa m in em os a d ecis ã o com qu e
d ep a r a m a s op er á r ia s . Com o vim os , a o con t r á r io d a r a in h a , ela s n ã o es t ã o es colh en d o s e p r od u zem
filh os ou filh a s , m a s s e p r od u zem za n gões (ir m ã os ) ou ir m ã s (joven s r a in h a s ). E a gor a volt em os a o
n os s o qu eb r a -ca b eça . Por qu e a r a zã o s exu a l r ea l p a r ece d em a s ia d a m en te in clin a d a à p r od u çã o d e
m a ch os , o qu e p a r ece n ã o fa zer s en t id o d o p on t o d e vis t a d a t eor ia d e Fis h er . Va m os exa m in a r a
d ecis ã o com qu e d ep a r a m a s op er á r ia s m a is m in u cios a m en te. E u d is s e qu e er a u m a es colh a en tre
ter irmãos ou irmãs. Mas espere um pouco. A decisão de criar um irmão é, na verdade, apenas isto:
ela com p r om ete a colm éia em for n ecer qu a is qu er t ip os d e com id a e d e ou t r os r ecu r s os n eces s á r ios
p a r a cr ia r u m a a b elh a za n gã o. Ma s a d ecis ã o d e cr ia r u m a n ova r a in h a com p r om ete a colm éia com
muito mais do que apenas os recursos necessários para nutrir o corpo de uma rainha. A decisão de
cr ia r u m a n ova r a in h a é equ iva len te a o com p r om is s o d e p r od u zir u m en xa m e. O cu s t o ver d a d eir o
de uma nova rainha inclui apenas de modo desprezível a pequena quantidade de geléia real e outros
a lim en t os qu e ela com er á . E le con s is te p r in cip a lm en t e n o cu s t o d e p r od u zir t od a s a s op er á r ia s qu e
serão perdidas pela colméia quando o enxame partir.
E s t a é qu a s e cer t a m en te a ver d a d eir a exp lica çã o p a r a a a p a r en te ten d ên cia a n ôm a la qu e
favor ece os m a ch os n a r a zã o s exu a l. Is t o r evela -s e u m exem p lo ext r em o d o qu e eu d is cu t i
a n t er ior m en te. A r egr a d e Fis h er a fir m a qu e a qu a n t id a d e d e ga s t os com m a ch os e fêm ea s d eve s er
igu a l, n ã o o cen s o d e in d ivíd u os m a ch os e fêm ea s . O ga s t o com u m a n ova r a in h a s ign ifica ga s t os
volu m os os com op er á r ia s qu e d e ou t r o m od o n ã o s er ia m p er d id a s p ela colm éia . É com o a n os s a
p op u la çã o h ip ot ét ica d e foca s , n a qu a l u m s exo cu s ta d u a s vezes m a is p a r a cr ia r d o qu e o ou t r o,
r es u lt a n d o qu e a qu ele s exo é d u a s vezes m en os n u m er os o. No ca s o d a s a b elh a s , u m a r a in h a cu s t a
cen ten a s e m es m o m ilh a r es d e vezes m a is d o qu e u m za n gã o, p ois ela ca r r ega em s u a s cos t a s o
cu s t o d e t od a s a s op er á r ia s ext r a s n eces s á r ia s p a r a for m a r u m en xa m e. Por t a n t o a s r a in h a s s ã o
cen ten a s d e vezes m en os n u m er os a s d o qu e os za n gões . Há u m p or ém a d icion a l n es t a cu r ios a
h is t ór ia : qu a n d o o en xa m e p a r te, ele m is t er ios a m en t e con tém a velha r a in h a , e n ã o a n ova . Nã o
ob s t a n t e, a econ om ia é a m es m a . A d ecis ã o d e p r od u zir u m a n ova r a in h a a in d a t r a z con s igo a
decisão de produzir o enxame necessário para escoltar a velha rainha para a sua nova casa.
Pa r a t er m in a r com n os s o t r a t a m en t o d a s r a zões s exu a is , r et om em os a o p r ob lem a d os h a r én s
com os qu a is com eça m os : es te a r r a n jo im or a l p or m eio d o qu a l u m en or m e b a n d o d e m a ch os
s olt eir os con s om e qu a s e a m et a d e (ou m es m o m a is d o qu e a m eta d e) d os r ecu r s os a lim en t a r es d a
p op u la çã o, m a s n u n ca s e r ep r od u z ou fa z qu a lqu er cois a d e ú t il. Ob via m en t e, o b em -es t a r d a

62
população não está sendo maximizado aqui. O que está acontecendo? Mais uma vez, coloque-se na
posição de quem tem de tomar a decisão – digamos uma mãe tentando “decidir” se tem um filho ou
uma filha para maximizar o número de seus netos e netas. Sua decisão, à primeira vista ingênua, é
desigual: “Deverei ter um filho, que provavelmente ficará solteiro e não me dará netos e netas, ou
uma filha, que provavelmente acabará em um harém e me dará um número respeitável de netos e
netas?” A resposta apropriada para esta mãe em perspectiva é: “Mas, se você tiver um filho, ele pode
cons egu ir u m h a r ém , e n es t e ca s o ele lh e d a r á u m n ú m er o m u ito m a ior d e n et os e n et a s d o qu e
você p od er ia ja m a is es p er a r p or m eio d e u m a filh a ”. S u p on h a , p or s im p licid a d e, qu e t od a s a s
fêm ea s r ep r od u za m com a t a xa m éd ia e qu e n ove en tr e d ez m a ch os n ã o s e r ep r od u za m , en qu a n t o
u m m a ch o em d ez m on op oliza d ez fêm ea s . Se você tem u m a filh a , você p od e con t a r com o n ú m er o
m éd io d e n etos e n et a s . Se você t em u m filh o, você t em 9 0 p or cen t o d e ch a n ce d e n ã o t er n et os e
n et a s , m a s 1 0 p or cen t o d e ch a n ce d e ter d ez vezes o n ú m er o m éd io d e n et os e n et a s . O n ú m er o
m éd io d e n etos e n et a s qu e você p od e es p er a r ter p or m eio d e s eu s filh os é igu a l a o n ú m er o m éd io
qu e você p od e es p er a r d e u m a filh a . A s eleçã o n a t u r a l a in d a fa vor ece u m a r a zã o s exu a l d e 5 0 :5 0 ,
mesmo que o nível econômico da espécie exija um excesso de fêmeas. A regra de Fisher ainda vale.
E xp r es s ei t od os es tes r a ciocín ios em t er m os d e “d ecis ões ” d e a n im a is in d ivid u a is , m a s
r ep et in d o, is to é a p en a s u m m od o d e fa la r . O qu e r ea lm en te es tá a con t ecen d o é qu e os gen es qu e
fa vor ecem a m a xim iza çã o d os n et os e n et a s t or n a m -s e m a is n u m er os os n o a cer vo gen ét ico. O
m u n d o en ch e-s e d e gen es qu e a t r a ves s a r a m d e m od o b em -s u ced id o t od a s a s ép oca s . Com o p od er ia
u m gen e b em -s u ced id o a t r a ves s a r os t em p os a n ã o s er in flu en cia n d o a s d ecis ões d os in d ivíd u os
p a r a qu e es tes m a xim izem o n ú m er o d e s eu s d es cen d en tes ? A t eor ia d a r a zã o s exu a l d e Fis h er n os
d iz com o es t a m a xim iza çã o d ever ia s er feit a , e é m u it o d ifer en te d e m a xim iza r o b em -estar
econ ôm ico d e u m a es p écie ou p op u la çã o. Há u m a fu n çã o d e u t ilid a d e a qu i, m a s es t á lon ge d e s er a
função de utilidade que surgiria nas nossas econômicas mentes humanas.
O d es p er d ício d a econ om ia d o h a r ém p od e s er s in tet iza d o d o s egu in t e m od o: os m a ch os , a o
in vés d e d evot a r -s e a o t r a b a lh o ú t il, joga m a s u a en er gia e for ça for a em lu t a s fú t eis u n s con tr a os
ou t r os . Is t o é ver d a d e, m es m o qu e d efin a m os “ú t il” d e u m m od o a p a r en tem en te d a r win ia n o, n o qu e
diz respeito à criação de crianças. Se os machos desviassem para canais úteis a energia que gastam
com p et in d o u n s con t r a os ou t r os , a s es p écies com o u m t od o cr ia r ia m m a is r eb en t os com m en or
esforço e menor consumo de alimentos.
Um es p ecia lis t a em econ om ia exa m in a r ia com ir r it a çã o o m u n d o d o elefa n te-m a r in h o. Um
p a r a lelo a p r oxim a d o s er ia o s egu in t e: u m a oficin a n ã o n eces s ita m a is d o qu e d ez h om en s p a r a
fu n cion a r , já qu e h á a p en a s d ez t or n os p a r a s er em op er a d os . E m vez d e s im p les m en te em p r ega r
d ez h om en s , a a d m in is t r a çã o d ecid e em p r ega r u m a cen ten a . Tod os os d ia s , os h om en s a p a r ecem e
a p a n h a m o p a ga m en t o. E les p a s s a m o d ia b r iga n d o p ela p os s e d os d ez t or n os . Algu m a s cois a s s ã o
fa b r ica d a s n os t or n os , m a s n ã o m a is d o qu e s er ia m feit a s p or d ez h om en s , e p r ova velm en te m en os ,
p ois a cen t en a d e h om en s es t á t ã o ocu p a d a b r iga n d o en t r e s i qu e os t or n os n ã o es t ã o s en d o
utilizados de modo eficiente. O especialista em economia do trabalho não teria dúvidas. Noventa por
cento dos homens são redundantes, e deveriam ser comunicados oficialmente e dispensados.
Nã o é a p en a s n os com b a t es fís icos qu e os a n im a is m a ch os d es p er d iça m s eu s es for ços – m a is
u m a vez, “es for ço” s en d o d efin id o d o p on t o d e vis t a d e u m econ om is t a h u m a n o ou es p ecia lis t a em
econ om ia d o t r a b a lh o. E m m u it a s es p écies h á t a m b ém u m con cu r s o d e b eleza . Is t o n os leva a u m a
ou t r a fu n çã o d e u t ilid a d e qu e n ós h u m a n os p od em os a p r ecia r m es m o qu e n ã o fa ça d ir et a m en te

63
sentido econômico: a beleza estética. À primeira vista, é como se a função de utilidade de Deus
fosse algumas vezes construída ao longo das linhas (agora graças a Deus fora d.e moda) de
concurso de Miss Mundo, mas com os machos na passarela. Isto é visto de modo mais claro nos
assim chamados “leks” das aves como os galos silvestres e aves com colares de penas em torno do
pescoço. Um “lek” é uma parte do terreno tradicionalmente utilizado pelas aves machos para
desfilar na frente das fêmeas. As fêmeas visitam o “lek” e observam os trejeitos exibidos por
numerosos machos antes de escolher um e copular com ele. Os machos deste tipo de espécie
muitas vezes possuem uma ornamentação bizarra, que exibem com movimentos igualmente
not á veis d e en cu r va r e t or cer o p es coço, e em is s ã o d e r u íd os es t r a n h os . A p a la vr a “b iza r r o” é,
n a t u r a lm en te, u m ju lga m en t o s u b jet ivo d e va lor : p r es u m ivelm en te os m a ch os d a s a ves s ilves t r es ,
com s u a s d a n ça s exib icion is t a s a com p a n h a d a s p or r u íd os s em elh a n t es a o d e u m a r olh a qu a n d o
a b r im os a ga r r a fa , n ã o p a r ecem b iza r r os p a r a a s fêm ea s d e s u a p r óp r ia es p écie, e is t o é t u d o o qu e
importa. Em alguns casos a idéia de beleza das fêmeas das aves coincide com a nossa, e o resultado
é um pavão ou uma ave-do-paraíso.
As ca n ções d os r ou xin óis , a ca u d a d os fa is ões , os la m p ejos d os p ir ila m p os , a s es ca m a s com
a s cor es d o a r co-ír is d os p eixes t r op ica is qu e h a b it a m os cor a is , t u d o is t o es t á m a xim iza n d o a
b eleza es tét ica , m a s n ã o é – ou é a p en a s in cid en t a lm en te – u m a b eleza p a r a o d eleite h u m a n o. S e
d es fr u t a m os o es p et á cu lo, is t o é u m b ôn u s , u m s u b p r od u t o. Os gen es qu e tor n a m os m a ch os
a t r a en tes p a r a a s fêm ea s a ch a m -s e a u t om a t ica m en te t r a n s m it id os p a r a o fu t u r o p elo r io d igita l. Há
a p en a s u m a fu n çã o d e u t ilid a d e p a r a es t a s b eleza s qu e fa z s en t id o; é a m es m a qu e exp lica a s
r a zões s exu a is d os elefa n tes -m a r in h os , a cor r id a r a cia l s u p er ficia lm en te fú t il d a s ch it a s e a n t ílop es
u n s con t r a os ou t r os , d os cu cos e p iolh os , olh os , ou vid os e t r a qu éia s , for m iga s op er á r ia s es tér eis e
rainhas s u p er fér teis . A gr a n d e fu n çã o d e u t ilid a d e d o u n iver s o, a qu a n t id a d e qu e es t á s en d o
d iligen tem en te m a xim iza d a em t od os os ca n t os d o m u n d o vivo, é, em tod os os ca s os , a
sobrevivência do ADN responsável pelo aspecto que você está tentando explicar.
Os p a vões s ã o t ã o ca r r ega d os d e or n a m en t os p es a d os e in côm od os qu e is t o p r eju d ica r ia
s er ia m en te s eu s es for ços d e fa zer t r a b a lh o ú t il, m es m o qu e eles s e s en t is s em in clin a d os a fa zer
t r a b a lh o ú t il – o qu e, n o t od o, n ã o s ã o. As a ves ca n or a s m a ch os u t iliza m qu a n t id a d es p er igos a s d e
t em p o e en er gia ca n t a n d o. Is t o cer t a m en te os coloca em p er igo, n ã o a p en a s p or qu e a t r a em
p r ed a d or es , m a s p or qu e ga s t a m en er gia e d es p er d iça m u m t em p o qu e p od er ia s er em p r ega d o em
r ep or es t a en er gia . Um es tu d ios o d a b iologia d a s ca m b a xir r a s a fir m ou qu e u m d os s eu s m a ch os
s ilves t r es ca n t ou lit er a lm en t e a té m or r er . Qu a lqu er fu n çã o d e u t ilid a d e qu e ten h a com o ob jet ivo o
bem-es t a r d e lon go p r a zo d a es p écie, m es m o a s ob r evivên cia a lon go p r a zo d es te m a ch o in d ivid u a l
p a r t icu la r , cor t a r ia a qu a n t id a d e d e en er gia e tem p o d ed ica d os a o ca n t o, a qu a n t id a d e d e
exib icion is m o, a qu a n t id a d e d e lu t a s en t r e os m a ch os . Ain d a a s s im , p or qu e o qu e es t á s en d o
r ea lm en te m a xim iza d o é a s ob r evivên cia d o ADN, n a d a p od e im p ed ir a d is s em in a çã o d o ADN qu e
n ã o t em efeitos b en éficos a n ã o s er t or n a r os m a ch os b elos p a r a a s fêm ea s . A b eleza n ã o é u m a
vir t u d e a b s olu t a em s i m es m a . Ma s in evit a velm en te, s e a lgu n s gen es r ea lm en te con fer em a os
m a ch os qu a is qu er qu a lid a d es qu e a s fêm ea s da es p écie a ch a m d es ejá veis , es tes gen es ,
forçosamente, sobreviverão.
Por que as árvores das florestas são tão altas? Simplesmente para suplantar as árvores rivais.
Um a fu n çã o d e u t ilid a d e “s en s a t a ” fa r ia com qu e t od a s fos s em b a ixa s . E la s ob t er ia m exa t a m en te a
mesma quantidade de luz solar, com menores gastos, com troncos grossos e apoios pesados. Mas se

64
elas fossem todas baixas, a seleção natural não poderia ajudar favorecendo uma variante particular
que tivesse crescido um pouco mais alta. A primeira tendo crescido mais do que as outras, estas a
seguiria m . Na d a p od e p a r a r o jogo t od o d e es ca lon a m en t o a té qu e t od a s a s á r vor es fiqu em
r id icu la m en te a lt a s . É r id ícu lo e u m d es p er d ício a p en a s d o p on t o d e vis t a d e u m p la n eja d or
econ ôm ico r a cion a l qu e p en s a em ter m os d e m a xim iza r a eficiên cia . Ma s t u d o fa z s en t id o u m a vez
qu e você com p r een d a a ver d a d eir a fu n çã o d e u t ilid a d e – os gen es es t ã o m a xim iza n d o a s u a p r óp r ia
s ob r evivên cia . As a n a logia s d om és t ica s s ã o a b u n d a n t es . Nu m a fes t a , você gr it a a t é fica r r ou co. A
razão é que todos os outros estão gritando o máximo que podem. Se os convidados concordarem em
a p en a s s u s s u r r a r , eles ou vir ia m u n s a os ou t r os s em for ça r a voz e com m en or ga s t o d e en er gia .
Ma s a cor d os com o es te n ã o fu n cion a m a m en os qu e s eja m p olicia d os . Algu ém s em p r e es t r a ga o
a cor d o gr it a n d o egois t ica m en te u m p ou co m a is a lt o, e, u m p or u m , t od os o a com p a n h a m . Um
equ ilíb r io es tá vel é a lca n ça d o a p en a s qu a n d o t od os es t ã o gr it a n d o o m a is fis ica m en te p os s ível, e
is t o é m u it o m a is a lt o d o qu e o exigid o d e u m p on t o d e vis t a “r a cion a l”. Vezes s em con t a , u m a
restriçã o coop er a t iva é es m a ga d a p or s u a p r óp r ia in s t a b ilid a d e in t er n a . A fu n çã o d e u t ilid a d e d e
Deu s r a r a m en t e r evela -s e o m a ior d os b en s p a r a o m a ior n ú m er o d e in d ivíd u os . A fu n çã o d e
utilidade de Deus trai as suas origens numa corrida desenfreada pelo ganho egoísta.
Os h u m a n os t êm u m a ten d ên cia b a s ta n t e ca r in h os a em a s s u m ir qu e b em -es t a r s ign ifica
bem-es t a r gr u p a l, qu e o “b em ” s ign ifica o b em d a s ocied a d e, o b em -es t a r fu tu r o d a s es p écies ou
mesmo do ecossistema. A função de utilidade de Deus, derivada de uma contemplação das porcas e
p a r a fu s os d a s eleçã o n a t u r a l, r evela es ta r t r is t em en te em op os içã o a t a is vis ões u t óp ica s . Pa r a s er
cor r et o, h á oca s iões em qu e os gen es p od em m a xim iza r o s eu b em -es t a r egoís t a n o s eu n ível,
p r ogr a m a n d o u m a coop er a çã o n ã o egoís t a , ou m es m o o a u t o-s a cr ifício, p elo or ga n is m o em s eu
n ível. Ma s o b em -es t a r d o gr u p o é s em p r e u m a con s eqü ên cia for t u it a , e n ã o u m m ot ivo p r im á r io.
Este é o significado de “gene egoísta”.
Va m os exa m in a r u m ou t r o a s p ect o d a fu n çã o d e u t ilid a d e d e Deu s , com eça n d o com u m a
a n a logia . O p s icólogo d a r win ia n o Nich ola s Hu m p h r ey d es cob r iu u m fa t o es cla r eced or s ob r e Hen r y
Ford. Diz-se que Ford, o santo patrono da eficiência manufatureira, uma vez
“con t r a t ou u m a p es qu is a d os fer r os -velh os d e ca r r os d a Am ér ica p a r a d es cob r ir s e h a via p a r tes d o For d
m od elo T qu e n u n ca h a via m fa lh a d o. S eu s in s p et or es volt a r a m com r ela t ór ios com qu a s e t od os os t ip os
d e fa lh a s : eixos , fr eios , p is t ões – t od os t in h a m p r ob a b ilid a d e d e fa lh a r . Ma s eles ch a m a r a m a a t en çã o
p a r a u m a exceçã o n ot á vel, os p in os -m es t r e d os ca r r os d o fer r o-velh o t in h a m a n os a in d a d e u s o. Com
u m a lógica im p la cá vel For d con clu iu qu e os p in os -m es t r e n o m od elo T er a m m u it o b on s p a r a o s eu
trabalho e ordenou que no futuro eles deveriam ser fabricados com especificações inferiores”.

Você pode, como eu, estar um pouco confuso sobre o que são pinos-mestre, mas não importa.
E les s ã o a lgo d e qu e os m ot or es d os ca r r os p r ecis a m , e a s u p os t a r u d eza d e For d er a , n a ver d a d e,
in t eir a m en te lógica . A a lter n a t iva t er ia s id o m elh or a r t od a s a s ou t r a s p a r t es d o ca r r o p a r a fa zê-las
a t in gir o p a d r ã o d os p in os -m es t r e. Ma s en t ã o n ã o s er ia u m m od elo T qu e ele es t a r ia fa b r ica n d o,
m a s s im u m Rolls Royce, e is t o n ã o er a o ob jet ivo d a p es qu is a . Um Rolls Royce é u m ca r r o
r es p eit á vel d e s er m a n u fa t u r a d o a s s im com o o é u m m od elo T, m a s p or u m p r eço d ifer en te. O
t r u qu e é a s s egu r a r -s e d e qu e o ca r r o t od o s eja fa b r ica d o com a s es p ecifica ções d e u m Rolls Royce
ou com a s es p ecifica ções d e u m m od elo T. S e você fa b r ica r u m ca r r o h íb r id o, com a lgu n s
com p on en tes com a qu a lid a d e d o m od elo T e a lgu n s com p on en tes com a qu a lid a d e d o Rolls Royce,

65
você estará obtendo o pior de dois mundos, pois o carro será jogado fora quando o mais fraco de
seus componentes desgastar-se inapelavelmente, e o dinheiro gasto com componentes de alta
qualidade que nunca serão tempo de desgastar-se será desperdiçado.
A liçã o d e For d a p lica -s e a in d a m a is for t em en te a os cor p os vivos d o qu e a os ca r r os , p ois os
com p on en tes d e u m ca r r o p od em , d en t r o d e cer t os lim it es , s er s u b s t it u íd os p or s ob r es s a len t es . Os
m a ca cos e os gib ões vivem n o t op o d a s á r vor es e h á s em p r e o r is co d e ca ir e fr a t u r a r u m os s o.
S u p on h a qu e t ivés s em os en com en d a d o u m a p es qu is a em ca d á ver es d e m a ca cos p a r a con t a r a
fr eqü ên cia d e fr a t u r a s n os os s os p r in cip a is d o cor p o. S u p on h a qu e a p es qu is a r evela s s e qu e t od o
os s o qu eb r a -s e em u m m om en t o ou ou tr o, com u m a exceçã o: n u n ca foi ob s er va d o u m a fr a tu r a d e
fíb u la (o os s o qu e cor r e p a r a lela m en te à t íb ia ) em qu a lqu er m a ca co. A p r es cr içã o fir m e d e Hen r y
For d s er ia r e-p r ojet a r a fíb u la com es p ecifica ções in fer ior es , e is t o é exa t a m en te o qu e a s eleçã o
n a t u r a l fa r ia t a m b ém . In d ivíd u os m u t a n t es com u m a fíb u la in fer ior – in d ivíd u os m u t a n t es cu ja s
r egr a s d e cr es cim en t o exigem u m d es vio d e cá lcio p r ecios o p a r a ou t r a s p a r t es d o cor p o qu e n ã o a
fíb u la p od er ia m u t iliza r o m a t er ia l econ om iza d o p a r a r efor ça r ou t r os os s os d o cor p o e d es te m od o
t om a r t od os os os s os igu a lm en te in clin a d os a s ofr er u m a fr a t u r a . Ou os in d ivíd u os m u t a n t es
p od er ia m u s a r o cá lcio econ om iza d o p a r a p r od u zir m a is leite e a s s im cr ia r m a is in d ivíd u os joven s .
O t ecid o ós s eo d a fíb u la p od e s er r a s p a d o, p elo m en os a té o p on t o em qu e es t a s e t om a t ã o
in clin a d a a qu eb r a r -s e qu a n t o o os s o m a is d u r á vel qu e vem a s egu ir . A a lt er n a t iva – a s olu çã o
“Rolls Royce” d e fa zer com qu e t od os os ou t r os com p on en tes a t in ja m o p a d r ã o d a fíb u la – é m a is
difícil de ser realizada.
O cá lcu lo n ã o é t ã o s im p les qu a n t o p a r ece, p ois a lgu n s os s os s ã o m a is im p or t a n t es d o qu e
ou t r os . S u p on h o qu e s eja m a is fá cil p a r a u m m a ca co-a r a n h a s ob r eviver com u m os s o d o ca lca n h a r
quebra d o d o qu e com u m b r a ço fr a t u r a d o, d e m od o qu e n ã o d ever ía m os es p er a r qu e a s eleçã o
n a t u r a l lit er a lm en te fizes s e t od os os os s os igu a lm en t e in clin a d os a fr a t u r a r . Ma s a liçã o p r in cip a l
qu e ext r a ím os d a h is t ór ia d e Hen r y For d es t á in d u b it a velm en t e cor r et a . É p os s ível qu e u m
com p on en te d o cor p o d o a n im a l s eja m u it o b om , e d evem os es p er a r qu e a s eleçã o n a t u r a l fa vor eça
u m a d im in u içã o d o p a d r ã o d e qu a lid a d e a té o p on t o, m a s n ã o a b a ixo d ele, d e equ ilíb r io com a
qu a lid a d e d os ou t r os com p on en tes d o cor p o. Ma is p r ecis a m en te, a s eleçã o n a t u r a l fa vor ecer á o
n ivela m en t o d a qu a lid a d e p a r a cim a e p a r a b a ixo, a t é qu e o equ ilíb r io s e es t a b eleça em t od a s a s
partes do corpo.
É p a r t icu la r m en te fá cil a p r ecia r es te equ ilíb r io qu a n d o ele é a lca n ça d o en t r e d ois a s p ectos
b a s t a n t e s ep a r a d os d a vid a : p or exem p lo, a s ob r evivên cia d o p a vã o ver s u s a b eleza n os olh os d o
fa is ã o. A t eor ia d a r win ia n a n os d iz qu e tod a s ob r evivên cia é a p en a s u m m eio p a r a a t in gir u m fim , a
propagação dos genes, mas isto não nos impede de partir o corpo em componentes, como as pernas,
qu e s ã o p r im a r ia m en te com p r om et id a s com a s ob r evivên cia in d ivid u a l, ou os p ên is , qu e es t ã o
com p r om et id os com a r ep r od u çã o. Ou a in d a os ch ifr es , qu e s ã o d es t in a d os à com p et içã o en t r e
in d ivíd u os r iva is ver s u s a s p er n a s e os p ên is , cu ja im p or t â n cia n ã o d ep en d e d a exis tên cia d e
in d ivíd u os r iva is . Mu it os in s et os im p õem u m a s ep a r a çã o r ígid a en t r e a s et a p a s r a d ica lm en te
d ifer en tes d a s u a h is t ór ia d e vid a . As la ga r t a s d ed ica m -s e a ju n t a r a lim en tos e a cr es cer . As
b or b olet a s s ã o com o a s flor es qu e cos tu m a m vis it a r , d ed ica d a s à r ep r od u çã o. E la s n ã o cr es cem ,
m a s s u ga m o n éct a r a p en a s p a r a qu eim á -lo com o com b u s t ível d e a via çã o. Qu a n d o u m a b or b oleta
s e r ep r od u z, ela es p a lh a os s eu s gen es n ã o a p en a s p or qu e é u m a b or b olet a qu e voa e a ca s a la -s e d e
modo eficien t e, m a s t a m b ém p or qu e foi u m a la ga r t a eficien te n a a lim en t a çã o. As efem ér id a s

66
alimentam-se e crescem como ninfas subaquáticas durante um período de até três anos. Elas então
em er gem com o in d ivíd u os a d u lt os ca p a zes d e voa r e viver p or a p en a s u m a s p ou ca s h or a s . Mu it a s
d ela s s ã o com id a s p elos p eixes , m a s , m es m o qu e n ã o o fos s em , d e qu a lqu er m od o m or r er ia m em
p ou co t em p o, p ois n ã o p od em a lim en t a r -s e e n em m es m o p os s u em in t es t in o (Hen r y For d a s t er ia
a d or a d o). S u a t a r efa é voa r a t é en con t r a r u m com p a n h eir o. E n t ã o, t en d o t r a n s m it id o os s eu s gen es
– in clu s ive os gen es qu e a s t om a m n in fa s eficien tes ca p a zes d e a lim en t a r -s e d eb a ixo d a á gu a
d u r a n t e t r ês a n os –, ela s m or r em . Um a efem ér id a é com o u m a á r vor e qu e leva a n os p a r a cr es cer , e
en t ã o flor es ce p or u m ú n ico e glor ios o d ia e m or r e. A efem ér id a a d u lt a é com o a flor qu e flor es ce n o
final da vida e dá início a uma nova.
Um s a lm ã o jovem m igr a cor r en te a b a ixo a p a r t ir d o p on t o em qu e n a s ceu e p a s s a a m a ior
p a r t e d e s u a vid a a lim en ta n d o-s e e cr es cen d o n o m a r . Qu a n d o a t in ge a m a t u r id a d e, ele p r ocu r a
n ova m en te, p r ova velm en te p elo ch eir o, a ca b eceir a d a cor r en te em qu e veio a o m u n d o. E m u m a
jor n a d a ép ica e m u it o celeb r iza d a , o s a lm ã o n a d a cor r en te a cim a , s a lt a n d o a s qu ed a s e a s
cor r ed eir a s , r u m o à ca b eceir a d a cor r en t e on d e foi ger a d o h á m u it o t em p o. Ali ele ger a n ovos
salmões e o ciclo se renova. Neste ponto existe tipicamente uma diferença entre o salmão do Pacífico
e o s a lm ã o d o At lâ n t ico. O s a lm ã o d o At lâ n t ico, t en d o ger a d o n ovos s a lm ões , p od e r et om a r a o m a r
com a lgu m a ch a n ce d e r ep et ir o ciclo p or u m a s egu n d a vez. O s a lm ã o d o Pa cífico m or r e, es got a d o,
poucos dias após ter gerado.
Um s a lm ã o d o Pa cífico t íp ico é com o u m a efem ér id a , m a s s em a s ep a r a çã o a n a t om ica m en te
cla r a en t r e a fa s e d e n in fa e a fa s e a d u lt a n a s u a h is t ór ia b iológica . O es for ço d e n a d a r con t r a a
cor r en teza é tã o gr a n d e qu e n ã o p od e s er r ep et id o d u a s vezes . Por t a n t o a s eleçã o n a t u r a l fa vor ece
in d ivíd u os qu e coloca m ca d a gr a m a d e s eu s r ecu r s os em u m ú n ico es for ço “exp los ivo” d e
reprodução. Quaisquer recursos que porventura sobrassem após a reprodução seria um desperdício
– o equ iva len t e a os p in os -m es t r e s u p er es p ecifica d os d e Hen r y For d . O s a lm ã o d o Pa cífico evolu iu
r ed u zin d o a s u a s ob r evivên cia p ós -r ep r od u t iva a t é qu e es t a ch ega s s e a zer o, s en d o os r ecursos
econ om iza d os d es t a m a n eir a d es t in a d os a os ovos e a o es p er m a . Os s a lm ões d o At lâ n t ico evolu ír a m
n a ou t r a d ir eçã o. Ta lvez p or qu e os r ios qu e t êm d e s u b ir t en d em a s er m a is cu r t os e or igin a r -s e d e
m on t a n h a s m en os for m id á veis , os in d ivíd u os qu e m a n t êm a lgu n s r ecu r s os p a r a u m s egu n d o ciclo
a lgu m a s vezes con s egu em com p let á -lo. O p r eço qu e es tes s a lm ões d o At lâ n t ico p a ga m é n ã o p od er
comprometer-s e t a n t o com s u a p r ole. Há u m in ter câ m b io en t r e a lon gevid a d e e a r ep r od u çã o, e
tipos diferentes de salmão optaram por diferentes tipos de equilíbrio. Uma característica especial da
vid a cíclica d o s a lm ã o é qu e a od is s éia cr u el d e s u a m igr a çã o im p õe u m a d es con t in u id a d e. Nã o h á
u m a con t in u id a d e s u a ve en t r e u m a tem p or a d a d e p r ocr ia çã o e ou t r a . Um com p r om is s o com u m a
segu n d a tem p or a d a d e p r ocr ia çã o cor t a a eficiên cia d a p r im eir a . O r es u lt a d o é qu e u m in d ivíd u o
típico morre inequivocamente logo após o seu único e titânico esforço de reprodução.
O mesmo tipo de compromisso marca todas as vidas, mas ele é usualmente menos dramático.
Nos s a p r óp r ia m or t e é p r ova velm en te p r ogr a m a d a com o a lgu m a cois a com o m es m o s en t id o qu e a
d o s a lm ã o, m a s d e u m m od o m en os d ir et o e cla r o. S em d ú vid a n en h u m a u m eu gen is t a p od er ia
cr ia r u m a r a ça d e h u m a n os s u p er la t iva m en te d ot a d os d e u m a vid a lon ga . Você es colh er ia p a r a a
p r ocr ia çã o a qu eles in d ivíd u os qu e a p lica s s em a m a ior p a r t e d e s eu s r ecu r s os em s eu s p r óp r ios
cor p os à cu s t a d e s u a p r ole: in d ivíd u os , p or exem p lo, cu jos os s os fos s em m a ciça m en te r efor ça d os e
r es is ten tes à s fr a t u r a s , m a s qu e têm p ou co cá lcio d e s ob r a p a r a p r od u zir leite. É m u it o fá cil viver
u m p ou co m a is , s e você é b em t r a t a d o à cu s t a d a ger a çã o s egu in te. O eu gen is ta p od er ia m im á -lo e

67
explorar os arranjos na direção desejada da longevidade. A natureza não mima os indivíduos desta
maneira, pois os genes que prejudicam a próxima geração não são transmitidos para o futuro.
A função de utilidade da natureza nunca valoriza a longevidade em si mesma, mas apenas em
r a zã o d a r ep r od u çã o fu t u r a . Qu a lqu er a n im a l qu e, com o n ós , m a s n ã o com o o s a lm ã o d o Pa cífico,
ger a p or m a is d e u m a vez d ep a r a com com p r om is s os en t r e a s cr ia n ça s d e a gor a (ou n in h a d a ) e a s
fu t u r a s . Um a coelh a qu e d ed icou t od a a s u a en er gia e r ecu r s os à s u a p r im eir a n in h a d a
p r ova velm en te ter á u m a p r im eir a n in h a d a d e qu a lid a d e s u p er ior . Ma s ela n ã o t er á r ecu r s os
s ob r a n d o p a r a leva -la a ter u m a s egu n d a n in h a d a . Os gen es qu e fa zem com qu e a lgo s eja m a n t id o
com o r es er va t en d er ã o a d is s em in a r -s e a t r a vés d a p op u la çã o d e coelh os , t r a n s p or t a d os n os cor p os
d a s egu n d a e d a ter ceir a n in h a d a . S ã o os gen es d es te t ip o qu e d e m od o t ã o s a lien te n ã o s e
d ifu n d ir a m en t r e a p op u la çã o d o s a lm ã o d o Pa cífico, p ois a d es con t in u id a d e p r á t ica en t r e u m a
temporada de reprodução e outra é demasiado formidável.
À m ed id a qu e fica m os m a is velh os n os s a s ch a n ces d e m or r er n o p r óxim o a n o, d ep ois d e ter
in icia lm en te d ecr es cid o e en t ã o s e es t a b iliza d o p or cer t o tem p o, com eça m a cr es cer . O qu e es t á
a con t ecen d o n es te lon go a u m en t o d e m or t a lid a d e? É b a s ica m en te o m es m o p r in cíp io qu e va le p a r a
o s a lm ã o d o Pa cífico, m a s es p a lh a d o s ob r e u m p er íod o d e tem p o m a ior e n ã o con cen t r a d o em u m a
b r eve or gia qu e leva à m or t e d ep ois d e u m a or gia d e r ep r od u çã o. O p r in cíp io p elo qu a l a s en ilid a d e
evolu iu foi or igin a lm en te exp lor a d o p elo ga n h a d or d o p r êm io Nob el e cien t is ta m éd ico Sir Peter
Med a wa r n o in ício d os a n os 5 0 , com vá r ia s m od ifica ções d a id éia b á s ica a cr es cen t a d a s p elos
eminentes darwinianos G. C. Williams e W. D. Hamilton.
O a r gu m en t o es s en cia l é o s egu in te: p r im eir o, com o vim os n o ca p ít u lo 1 , qu a lqu er efeit o
gen ét ico n or m a lm en te s er á a t iva d o em u m a ép oca p a r t icu la r d u r a n t e a vid a d o or ga n is m o. Mu it os
gen es s ã o a t iva d os n o em b r iã o in icia l, m a s ou t r os – com o os gen es d a cor éia d e Hu n t in gt on , a
d oen ça qu e m a t ou t r a gica m en te o p oet a folclór ico e ca n t or Wood y Gu t h r ie – n ã o s ã o a t iva d os a t é a
meia-ld a d e. Segu n d o, os d et a lh es d e u m efeit o gen ét ico, in clu s ive a ép oca em qu e é a t iva d o, p od em
ser modificados por outros genes. Um homem que tem o gene da coréia de Huntington pode esperar
m or r er p or ca u s a d es t a d oen ça , m a s , s e ela o m a t a qu a n d o ele es t á com 4 0 ou qu a n d o es t á com 5 5
a n os (com o er a o ca s o d e Wood y Gu t lu je) p od e s er in flu en cia d o p or ou t r os gen es . Segu e-s e qu e,
s elecion a n d o gen es “m od ifica d or es ”, a ép oca d a a çã o d e u m gen e p a r t icu la r p od e s er p os ter ga d a ou
adiantada no tempo evolutivo.
Um gene como o gene da coréia de Huntington, que é ativado entre as idades de 35 e 55 anos,
t em m u it a s op or t u n id a d es d e s er t r a n s m it id o p a r a a p r óxim a ger a çã o a n t es qu e m a te o s eu
p os s u id or . S e, en t r et a n t o, ele fos s e a t iva d o n a id a d e d e vin t e a n os , s er ia t r a n s m it id o a p en a s p or
p es s oa s qu e r ep r od u zem u m p ou co ced o, e, p or t a n t o s er ia for tem en te s elecion a d o. S e ele fos s e
a t iva d o n a id a d e d e d ez a n os , es s en cia lm en te n ã o s er ia n u n ca t r a n s m it id o. A s eleçã o n a t u r a l
favoreceria quaisquer genes modificadores que tivessem o efeito de postergar a época da ativação do
gene da coréia de Huntington. De acordo com a teoria de Medawar e Wllliams, isto seria exatamente
a r a zã o p ela qu a l n or m a lm en te ele n ã o é a t iva d o a té a m eia -id a d e. No p a s s a d o ele p od e ter s id o u m
gen e m a t u r a n d o p r ecocem en te, m a s a s eleçã o n a t u r a l fa vor eceu u m a d ia m en t o d e s eu efeit o let a l
a t é a m eia -id a d e. Sem d ú vid a h á a in d a u m a leve p r es s ã o s eletiva p a r a qu e ele s eja a t iva d o n a
velh ice, m a s es t a p r es s ã o é fr a ca , p ois p ou ca s vít im a s m or r em a n t es d e r ep r od u zir e t r a n s m it ir o
gene.

68
O gene da coréia de Huntington é um exemplo particularmente claro de gene letal. Há muitos
genes que não são em si mesmos letais, mas que, não obstante, produzem efeitos que aumentam a
probabilidade de morrer em razão de alguma outra causa e são chamados semiletais. Mais uma vez,
s u a ép oca d e a t iva çã o p od e s er in flu en cia d a p or gen es m od ifica d or es e, p or t a n t o p os t er ga d a ou
a celer a d a p ela s eleçã o n a tu r a l. Med a wa r p er ceb eu qu e a s d eb ilid a d es d a velh ice p od em r ep r es en t a r
u m a a cu m u la çã o d e efeitos gen ét icos let a is e s em ilet a is qu e for a m a d ia d os p a r a u m a ép oca ca d a
vez mais posterior no ciclo da vida e que tiveram a permissão de passar através da rede reprodutiva
para as gerações futuras simplesmente porque atuavam mais tarde.
A in t er p r et a çã o d a d a a es t a h is t ór ia em 1 9 5 7 p or G. C. Willia m s , o d eca n o d os d a r win is t a s
a m er ica n os , é m u it o im p or t a n t e. E le n os leva n ova m en te a o n os s o p on t o s ob r e com p r om is s os
econ ôm icos . Pa r a com p r een d ê-lo, p r ecis a m os a d icion a r -lh e u m p a r d e in for m a ções d e fu n d o. Um
gen e u s u a lm en t e p r ovoca m a is d o qu e u m efeit o, m u it a s vezes em p a r t es d o cor p o s u p er ficia lm en te
b a s t a n t e d ifer en tes . Nã o a p en a s é es ta “p leiot r op ia ” u m fa t o, com o t a m b ém d eve s er b a s t a n t e
es p er a d a , já qu e os gen es exer cem os s eu s efeit os n o d es en volvim en to em b r iôn ico e o
d es en volvim en t o em b r iôn ico é u m p r oces s o com p lica d o. As s im , qu a lqu er m u t a çã o n ova é in clin a d a
a t er n ã o a p en a s u m , m a s d iver s os efeit os . E m b or a u m d os s eu s efeit os p os s a s er b en éfico, é
im p r ová vel qu e s eja m a is d e u m . Is t o a con t ece s im p les m en te p or qu e a m a ior ia d os efeit os
m u t a cion a is s ã o r u in s . Além d e s er u m fa t o, is t o d eve s er es p er a d o em p r in cíp io; s e você com eça r
com u m m eca n is m o d e fu n cion a m en to com p lica d o – d iga m os , com o u m r á d io –, h á m u it a s
maneiras mais de torná-lo pior do que melhor.
S em p r e qu e a s eleçã o n a t u r a l fa vor ece u m gen e em r a zã o d e s eu s efeit os b en éficos n a
juventude – digamos, na atração sexual de um macho jovem –, haverá provavelmente um outro lado
d es fa vor á vel: p or exem p lo, a lgu m a d oen ça p a r t icu la r n a m eia -id a d e ou n a velh ice. Teor ica m en t e, os
efeit os d a id a d e p od er ia m s er ou t r os , m a s d e a cor d o com a lógica d e Med a wa r , a s eleçã o n a t u r a l
d ificilm en te fa vor ecer á a d oen ça n os joven s p or ca u s a d e u m efeit o b en éfico d o m es m o gen e n a
velh ice. Ma is a in d a p od em os in voca r n ova m en te o p on t o a r es p eito d o gen e m od ifica d or . Ca d a u m
d os d iver s os efeit os d e u m gen e, efeit os b on s e r u in s , p od e t er s u a ép oca d e a tiva çã o a lt er a d a n a
evolu çã o s u b s eqü en te. De a cor d o com o p r in cíp io d e Med a wa r , os efeit os b on s t en d er ia m a s er
a t iva d os m a is ced o e os efeit os r u in s p os t er ga d os p a r a m a is t a r d e. Ma is a in d a h a ver á em a lgu n s
ca s os u m com p r om is s o d ir et o en t r e os efeit os a t iva d os m a is ced o e os a d ia d os p a r a m a is t a r d e. Is to
estava implícito na discussão sobre o salmão. Se um animal tem uma quantidade finita de recursos
p a r a ga s t a r com a lgo, d iga m os , t or n a n d o-s e fis ica m en t e for te e ca p a z d e fu gir d o p er igo, qu a lqu er
p r ed ileçã o em u s a r es tes r ecu r s os ced o s er á fa vor ecid a em r ela çã o a u m a p r efer ên cia em u t ilizá -los
m a is t a r d e. Aqu eles qu e ga s t a m os s eu s r ecu r s os m a is t a r d e têm m a is p r ob a b ilid a d e d e s er em
m or t os p or ou t r a s ca u s a s a n t es qu e t en h a m u m a ch a n ce d e u t iliza r es t es m es m os r ecu r s os .
Coloca n d o o p on t o d e vis ta ger a l d e Med a wa r em u m a es p écie d e ver s ã o a o con t r á r io d a lin gu a gem
qu e in t r od u zim os n o ca p ít u lo 1 , t od o m u n d o d es cen d e d e u m a lin h a in in t er r u p t a d e a n ces t r a is qu e
em s u a t ot a lid a d e for a m em a lgu m a ép oca d e s u a s vid a s joven s , m a s d os qu a is m u it os n ã o
a lca n ça r a m a velh ice. As s im h er d a m os t u d o o qu e é n eces s á r io p a r a s er m os joven s , m a s n ã o
n eces s a r ia m en t e t u d o o qu e é p r ecis o p a r a s er m os velh os . Ten d em os a h er d a r gen es qu e ca u s a m a
morte muito tempo depois de termos nascido e não o contrário.
Ret om a n d o a o in ício p es s im is t a d es te ca p ít u lo, qu a n d o a fu n çã o d e u t ilid a d e – a qu ilo qu e
está sendo maximizado – é a sobrevivência do ADN, isto não é uma receita de felicidade. Enquanto o

69
ADN estiver sendo transmitido, não importa quem ou o quê sai prejudicado no processo. É melhor
para a vespa ichneumon d e Da r win qu e a la ga r t a es teja viva , e p or ta n t o fr es ca , a o s er com id a , n ã o
im p or t a o cu s t o em s ofr im en t o. Os gen es n ã o s e im p or t a m com o s ofr im en t o, p ois eles n ã o s e
importam com nada.
S e a n a t u r eza fos s e ca r id os a , ela fa r ia p elo m en os a p equ en a con ces s ã o d e a n es tes ia r a s
lagartas antes que fossem comidas vivas de dentro. Mas a natureza não é caridosa ou cruel. Ela não
é a fa vor n em con t r a o s ofr im en t o. A n a t u r eza n ã o es t á in ter es s a d a d e u m a for m a ou ou t r a n o
s ofr im en t o, a m en os qu e ele a fete a s ob r evivên cia d o ADN. É fá cil im a gin a r u m gen e qu e, d iga m os ,
t ranqüilize as gazelas quando estas estão prestes a levar uma mordida mortal. Tal tipo de gene seria
fa vor ecid o p ela s eleçã o n a t u r a l? Nã o, a m en os qu e o a t o d e t r a n qü iliza r a ga zela a u m en t a s s e a s
ch a n ces d e p r op a ga çã o d o gen e p a r a a s ger a ções fu t u r a s . É d ifícil ver p or qu e is t o d ever ia s er
a s s im , e p od em os , p or t a n t o s u p or qu e a s ga zela s s ofr em u m a d or t er r ível e s en tem m ed o qu a n d o
s ã o p er s egu id a s a t é a m or t e – com o a m a ior ia d ela s fin a lm en te s ã o. A qu a n t id a d e tot a l d e
s ofr im en t o a n u a l n o m u n d o n a t u r a l es t á a lém d e t od a a con tem p la çã o d ecen te. Du r a n t e o m in u t o
qu e foi ga s t o p a r a es cr ever es t a s en ten ça , m ilh a r es d e a n im a is es t ã o s en d o com id os vivos ; ou t r os
es t ã o cor r en d o p a r a s a lva r a s s u a s vid a s , gr it a n d o d e m ed o; ou t r os es t ã o s en d o len ta m en te
d evor a d os p or d en t r o p or p a r a s it a s ; m ilh a r es , d e t od a s a s es p écies , es t ã o m or r en d o d e fom e, s ed e e
d oen ça s . Is t o d eve s er a s s im . S e a lgu m d ia h ou ver u m t em p o d e fa r t u r a , es te fa t o p or s i s ó
con d u zir á a u t om a t ica m en te a u m exces s o p op u la cion a l a t é qu e o es t a d o n a t u r a l d e fom e e m is ér ia
seja restaurado.
Os t eólogos p r eocu p a m -s e com o “p r ob lem a d o m a l” e u m “p r ob lem a d o s ofr im en t o” qu e lh e é
r ela cion a d o. No d ia em qu e es cr evi es t e p a r á gr a fo em s u a for m a or igin a l, os jor n a is b r it â n icos
traziam uma história terrível sobre um ônibus cheio de crianças de uma escola católica romana que
acidentou-s e s em m ot ivos ób vios , com u m a gr a n d e p er d a d e vid a s . Nã o p ela p r im eir a vez, os
clér igos ch ega r a m a o p a r oxis m o s ob r e a qu es t ã o t eológica qu e u m colu n is t a d e u m jor n a l d e
Lon d r es (Th e S u n d a y Telegraph) colocou d o s egu in te m od o: “Com o p od em os a cr ed it a r em u m Deu s
a m a n t ís s im o e t od o-p od er os o qu e p er m it e u m a t r a géd ia d es te t ip o?” O a r t igo con t in u a va cit a n d o a
r es p os t a d e u m p a d r e: “A r es p os t a s im p les é qu e n ós n ã o s a b em os p or qu e d ever ia h a ver u m Deu s
qu e p er m ite qu e es t a s cois a s h or r en d a s a con t eça m . Ma s o h or r or d o d es a s t r e, p a r a u m cr is t ã o,
con fir m a o fa t o d e qu e vivem os em u m m u n d o d e va lor es r ea is : p os it ivos e n ega t ivos . S e o u n iver s o
fosse apenas elétrons, não haveria o problema do mal ou do sofrimento”.
Ao con t r á r io, s e o u n iver s o fos s e con s t it u íd o a p en a s p or elét r on s e gen es egoís t a s , t r a géd ia s
s em s en t id o com o o d es a s t r e d es te ôn ib u s s er ia m exa t a m en te o qu e es p er a r ía m os , ju n t o com u m a
b oa s or t e igu a lm en te d es t it u íd a d e s ign ifica d o. E s t e u n iver s o n ã o t er ia in ten ções b oa s ou m á s . Nã o
m a n ifes t a r ia qu a lqu er t ip o d e in ten çã o. E m u m u n iver s o d e for ça s fís ica s e r ep lica çã o gen ét ica
cega s , a lgu m a s p es s oa s s er ã o m a ch u ca d a s , ou t r a s p es s oa s ter ã o s or t e, você n ã o a ch a r á qu a lqu er
s en t id o n ele, n em qu a lqu er t ip o d e ju s t iça . O u n iver s o qu e ob s er va m os tem p r ecis a m en t e a s
p r op r ied a d es qu e d ever ía m os es p er a r s e, n o fu n d o, n ã o h á p r ojet o, p r op ós it o, b em ou m a l, n a d a a
não ser uma indiferença cega, impiedosa. Como o infeliz poeta A. E. Housman colocou:
For Nature, h e a rtle s s , w itle s s Na tu re Pois a natureza, desapiedada, a natureza estúpida!
Will neither know or care. n ã o s a b erá ou s e im p orta rá .
O ADN não sabe e nem se importa. O ADN apenas é. E nós dançamos de acordo com a sua música.

70
5
A BOMBA DE REPLICAÇÃO

A m a ior ia d a s es t r ela s – e o n os s o S ol é u m a es t r ela t íp ica – qu eim a d e u m a m a n eir a es t á vel


d u r a n t e m ilh a r es d e m ilh ões d e a n os . Mu it o r a r a m en t e, em a lgu m lu ga r d a ga lá xia , u m a es t r ela
exp lod e s u b ita m en te s em a vis o ób vio em u r n a s u p er n ova . E m p ou ca s s em a n a s , ela a u m en t a em
b r ilh o p or u m fa t or d e m u it os b ilh ões e en t ã o ext in gu e-s e d eixa n d o ves t ígios en egr ecid os d e s i
m es m a . Du r a n t e os s eu s p ou cos d ia s d e glór ia com o s u p er n ova , u r n a es t r ela p od e em it ir m a is
energia do que em todos as suas centenas de milhões de anos anteriores como urna estrela comum.
Se o nosso Sol se transformasse em urna supernova, o sistema solar inteiro seria vaporizado em um
in s t a n t e. Felizm en te is t o é m u it o im p r ová vel. Na n os s a ga lá xia con s t it u íd a p or u r n a cen t en a d e
bilhões de estrelas, apenas três supernovas foram registradas pelos astrônomos: em 1054, em 1572
e em 1 6 0 4 . A n eb u los a d o Ca r a n gu ejo é for m a d a p elos ves t ígios d o even t o d e 1 0 5 4 , r egis t r a d o p or
astrônomos chineses. (Quando digo o evento “de 1054” quero dizer, é claro, o evento sobre o qual as
n ot ícia s ch ega r a m a Ter r a em 1 0 5 4 . O even t o p r op r ia m en te d it o a con t eceu 6 m il a n os a n t es . A
frente de onda luminosa originada por ele atingiu-nos em 1054.) Desde 1604, as únicas supernovas
observadas foram observadas em outras galáxias.
Há u m ou t r o t ip o d e exp los ã o qu e p od e a con t ecer em u r n a es t r ela . E m vez d e t r a n s for m a r -se
em s u p er n ova , ela t r a n s for m a -s e em in for m a çã o. A exp los ã o com eça m a is len t a m en te d o qu e a
exp los ã o d e u m a s u p er n ova e d em or a u m p er íod o d e tem p o in com p a r a velm en t e m a is lon go p a r a
formar-se. Podemos chamá-la urna bomba de informação ou, por razões que se tornarão aparentes,
u r n a b om b a d e r ep lica çã o. Nos p r im eir os p ou cos b ilh ões d e a n os d e s u a for m a çã o, você p od er ia
d etect a r u m a b om b a d e r ep lica çã o s om en te s e es t ives s e n a s s u a s vizin h a n ça s im ed ia t a s .
Fin a lm en te, m a n ifes t a ções s u t is d a exp los ã o com eça m a va za r p a r a r egiões m a is d is t a n t es d o
es p a ço e ela s e t om a , p elo m en os p oten cia lm en te, d etect á vel a u m a d is t â n cia m u it o gr a n d e. Nã o
s a b em os com o es te t ip o d e exp los ã o a ca b a . Pr es u m e-s e qu e ela d eva ext in gu ir -s e fin a lm en te com o
uma explosão de supernova, mas não sabemos quanto tempo é tipicamente necessário antes para a
s u a for m a çã o. Ta lvez a ca b e em u m a ca t á s t r ofe violen t a e a u t od es t r u t iva . Ta lvez em u m a em is s ã o
r ep et id a e t r a n qü ila d e ob jet os qu e s e m ovem em u m a t r a jet ór ia d ir igid a e n ã o em u m a t r a jet ór ia
b a lís t ica s im p les , a fa s t a n d o-s e d a es t r ela em d ir eçã o a os con fin s d o es p a ço, on d e p od em in fect a r
outros sistemas estelares com a mesma tendência de explodir.
A r a zã o p ela qu a l s a b em os t ã o p ou co s ob r e a b om b a d e r ep lica çã o n o u n iver s o é qu e
ob s er va m os s om en te u m exem p lo, e u m exem p lo d e qu a lqu er fen ôm en o n ã o é s u ficien te p a r a d a r
fu n d a m en t o a gen er a liza ções . A h is t ór ia d e n os s o ú n ico exem p lo es t á a in d a em a n d a m en to. E s t e
and a m en t o vem s e d a n d o p or u m p er íod o d e tem p o en t r e 3 e 4 b ilh ões d e a n os , e a p en a s a gor a
a t in giu o lim ia r d e em is s ã o a p a r t ir d a s vizin h a n ça s im ed ia t a s d a es t r ela . A es t r ela em qu es t ã o
chama-s e S ol, u m a es t r ela a n ã a m a r ela loca liza d a n a b or d a d e n os s a ga lá xia , em u m d os b r a ços
es p ir a is . A exp los ã o n a ver d a d e or igin ou -s e em u m d os s a t élites qu e tem u m a ór b it a m u it o p r óxim a
em t om o d o S ol, m a s a en er gia n eces s á r ia p a r a p r ovoca r a exp los ã o vem t od a d ele. O s a télit e é,
n a t u r a lm en te, a Ter r a , e a exp los ã o qu e já d u r a 4 b ilh ões d e a n os , a b om b a d e r ep lica çã o, é

71
chamada vida. Nós humanos somos uma manifestação extremamente importante da bomba de
replicação, pois é por nosso meio – por meio de nossos cérebros, nossa cultura simbólica e nossa
tecnologia – qu e a exp los ã o p od e p r os s egu ir p a r a a p r óxim a et a p a e r ever b er a r a t r a vés d a s
profundezas do espaço.
Com o d is s e, a n os s a b om b a d e r ep lica çã o é, a té a gor a , a ú n ica qu e con h ecem os n o u n iver s o,
m a s is t o n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te qu e even t os d es te t ip o s eja m m a is r a r os d o qu e os even t os
que dão origem as supernovas. Admite-se que as supernovas foram detectadas com uma freqüência
t r ês vezes m a ior em n os s a ga lá xia , m a s a s s u p er n ova s , p or ca u s a d a s im en s a s qu a n t id a d es d e
en er gia lib er a d a , s ã o m u it o m a is fá ceis d e s er em ob s er va d a s d e u m a d is t â n cia m u it o gr a n d e. Até
u m a s p ou ca s d éca d a s a t r á s , qu a n d o on d a s d e r á d io p r od u zid a s p elo h om em com eça r a m a s er
ir r a d ia d a s a p a r t ir d e n os s o p la n et a , n os s a exp los ã o d e vid a p od er ia t er p a s s a d o d es p er ceb id a p or
ob s er va d or es m es m o em p la n et a s b a s t a n t e p r óxim os . Pr ova velm en te a ú n ica m a n ifes t a çã o
conspícua de nossa explosão de vida até tempos recentes foi a Grande Barreira de Coral.15
Um a s u p er n ova é u m a exp los ã o giga n t es ca e r ep en tin a . O even t o qu e d á in ício a qu a lqu er
exp los ã o é a lgu m a qu a n t id a d e qu e u ltr a p a s s a u m va lor cr it ico, a p ós o qu e a s cois a s s a em d e
controle e produzem um resultado muito maior do que o evento original que lhe deu início. O evento
qu e in icia u m a b om b a d e r ep lica çã o é o s u r gim en t o es p on t â n eo d e en t id a d es a u t o-replicantes , m a s
a in d a a s s im va r ia d a s . A r a zã o p ela qu a l a a u t o-r ep lica çã o é u m fen ôm en o p oten cia lm en te exp los ivo
é a m es m a d e qu a lqu er exp los ã o: cr es cim en t o exp on en cia l – qu a n t o m a is você tem , m a is você
con s egu e. Um a vez qu e você ten h a Um ob jet o a u to-replicante, você em b r eve ter á d ois . E n t ã o ca d a
u m d os d ois fa z u m a cóp ia d e s i m es m o e você ter á qu a t r o. Dep ois oit o, d ep ois 1 6 , 3 2 , 6 4 ... Dep ois
d e u m a s m er a s t r in t a ger a ções d es t a d u p lica çã o, você ter á m a is d o qu e 1 b ilh ã o d e ob jet os qu e
p od em d u p lica r -s e. Dep ois d e cin qü en ta ger a ções , h a ver á m il m ilh ões d e m ilh ã o d eles . Dep ois d e
d u a s cen ten a s d e ger a ções , h a ver á 1 m ilh ã o d e m ilh ã o d e m ilh ã o d e m ilh ã o d e m ilh ã o d e m ilh ã o d e
milhão de milhão de milhão de milhão de milhão. Em teoria. Na prática isto nunca aconteceria, pois
es te n ú m er o é u m n ú m er o m a ior d o qu e o n ú m er o d e á t om os n o u n iver s o. O exp los ivo p r oces s o d e
auto-r ep r od u çã o d eve s er lim it a d o m u it o a n t es d e a lca n ça r a s d u a s cen ten a s d e ger a ções ca p a zes
de duplicar-se sem problemas.
Nã o t em os in d ica çã o d ir et a d o even t o d e r ep lica çã o qu e d eu in ício a es t e p r oces s o n es te
p la n et a . Pod em os a p en a s in fer ir qu e ele d eve ter a con t ecid o em r a zã o d a exp los ã o em es t á gios d a
qu a l s om os p a r t e. Nã o s a b em os exa ta m en te com o foi o even t o cr it ico or igin a l, o in ício d a a u t o-
replicação, m a s p od em os in fer ir qu e t ip o d e even t o ele d eve ter s id o. E le com eçou com o u m even t o
químico.
A química é um drama que se passa em todas as estrelas e em todos os planetas. Na química
os atores são os átomos e as moléculas. Mesmo os átomos mais raros são extremamente numerosos
p elos p a d r ões d e con t a gem com os qu a is es t a m os a cos t u m a d os . Is a a c As im ov ca lcu lou qu e o
n ú m er o d e á tom os d e a s t a t ín io 2 1 5 , u m elem en t o r a r o, em t od a a Am ér ica d o S u l e d o Nor t e a té
u m a p r ofu n d id a d e d e 1 6 qu ilôm et r os é “a p en a s 1 t r ilh ã o”. As u n id a d es fu n d a m en t a is d a qu ím ica
s ã o á t om os qu e t r oca m in ces s a n tem en t e d e p a r ceir os p a r a p r od u zir u m a p op u la çã o ca m b ia n t e,
m a s s em p r e m u it o gr a n d e d e u n id a d es m a ior es – a s m olécu la s . Nã o im p or ta qu ã o n u m er os a s
s eja m , a s m olécu la s d e u m d eter m in a d o t ip o – a o con t r á r io d e, d iga m os , os a n im a is d e u m a
d eter m in a d a es p écie ou os violin os S t r a d iva r iu s – s ã o s em p r e id ên t ica s . Os p a d r ões d o r od ízio
a t ôm ico d a qu ím ica fa zem com qu e, n o u n iver s o, a lgu m a s m olécu la s t om em -s e m a is n u m er os a s e

72
outras mais raras. Naturalmente, um biólogo tem a tentação de descrever as moléculas que se
tomam mais numerosas em população como “bem-sucedidas”. Mas sucumbir a esta tentação não
ajuda. Sucesso, no sentido esclarecedor da palavra, é uma propriedade que surge apenas em uma
etapa mais posterior em nossa história.
O qu e foi, en tã o, es te even to cr ít ico es p et a cu la r qu e d eu in ício a es t a exp los ã o d e vid a ? Fa lei
qu e h a via s id o q s u r gim en t o d e en t id a d es a u t od u p lica d or a s , m a s d e m od o equ iva len te p od er ía m os
chamá-lo o s u r gim en t o d o fen ôm en o d a h er ed it a r ied a d e – u m p r oces s o qu e p od er ía m os r otu la r d e
“s em elh a n tes ger a n d o s em elh a n tes ”. Is t o n ã o é a lgo qu e a s m olécu la s exib em com u m en t e. As
moléculas de água, embora existam em enxames com populações gigantescas, não exibem nada que
s e a p r oxim e d a ver d a d eir a h er ed it a r ied a d e. J u lga n d o p ela s a p a r ên cia s , você p od er ia p en s a r qu e
ela s o fa zem . A p op u la çã o d a s m olécu la s d e á gu a (H 2 O) a u m en t a qu a n d o o h id r ogên io (H) en t r a em
com b u s t ã o com o oxigên io (O). A p op u la çã o d a s m olécu la s d e á gu a d im in u i qu a n d o a á gu a é
d ecom p os t a , p or elet r ólis e, em b olh a s d e h id r ogên io e oxigên io. Ma s , em b or a exis t a u m a p op u la çã o
d in â m ica d e m olécu la s d e á gu a , n ã o h á h er ed it a r ied a d e. A con d içã o m ín im a p a r a a exis t ên cia d e
h er ed it a r ied a d e s er ia a exis t ên cia d e p elo m en os d ois t ip os d is t in t os d a m olécu la d e H 2 O, a m b a s a s
quais dariam origem (“gerariam”) cópias de seu próprio tipo.
As m olécu la s a lgu m a s vezes exis tem em d u a s va r ied a d es qu e s ã o a im a gem n o es p elh o u m a
d a ou t r a . Há d ois t ip os d e m olécu la d e glu cos e, qu e con têm á t om os id ên t icos u n id os d e m od o
id ên t ico com a d ifer en ça d e qu e u m a é a im a gem n o es p elh o d a ou t r a . O m es m o é ver d a d eir o p a r a
ou t r a s m olécu la s d e a çú ca r , e ou t r a s m olécu la s a lém d es s a s , in clu s ive os im p or t a n t ís s im os
a m in oá cid os . Ta lvez a qu i es t eja u m a op or t u n id a d e p a r a “s em elh a n t es ger a n d o s em elh a n tes ” – u m a
op or t u n id a d e p a r a a h er ed it a r ied a d e qu ím ica . Pod er ia m a s m olécu la s d ext r ogir a s ger a r m olécu la s
dextrogiras filhas e as levogiras gerar moléculas filhas canhotas? Primeiro, um pouco de informação
s ob r e a s m olécu la s qu e p os s u em im a gen s es p ecu la r es . O fen ôm en o foi d es cob er t o p elo gr a n d e
cien t is t a fr a n cês d o s écu lo XIX Lou is Pa s t eu r , qu e es ta va exa m in a n d o cr is t a is d e t a r t a r a t o, u m t ip o
d e s a l d e á cid o t a r t á r ico, u m a s u b s t â n cia im p or t a n t e n o vin h o. Um cr is t a l é com o u m ed ifício
sólido, suficientemente grande para ser observado a olho nu e, em alguns casos, ser usado em tomo
d o p es coço. E le é for m a d o qu a n d o os á t om os ou a s m olécu la s , t od os ou t od a s d o m es m o t ip o,
empilham-s e u m em cim a d o ou t r o, ou u m a em cim a d a ou t r a , p a r a con s t it u ir u m s ólid o. E les ou
ela s n ã o s e em p ilh a m d es or d en a d a m en t e, m a s s im d e m a n eir a or d en a d a , cr ia n d o u m a r r a n jo
geom ét r ico, com o gr a n a d eir os d e m es m a a lt u r a e m a r ch a im p ecá vel. As m olécu la s qu e já s e
con s t it u em em p a r t e d o cr is t a l for m a m u m a es p écie d e m old e com o qu a l s ã o a d icion a d a s n ova s
m olécu la s , qu e s ã o ob t id a s a p a r t ir d e u m a s olu çã o a qu os a e a ju s t a m -s e p er feit a m en te a ele, d e
m od o qu e o cr is t a l in t eir o cr es ce com a p r ecis ã o d e u m a r ed e geom ét r ica . E s t a é a r a zã o p or qu e os
cristais d e s a l t êm fa ces qu a d r a d a s e os cr is t a is d e d ia m a n tes s ã o tet r a éd r icos (em for m a d e
d ia m a n t e). Qu a n d o qu a lqu er for m a a ge com o m old e n a con s t r u çã o d e u m a ou tr a for m a s em elh a n te
a si mesma, temos uma nesga da possibilidade de auto-replicação.
Agor a , volt a n d o a os cr is t a is d e t a r t a r a t o d e Pa s teu r . Pa s t eu r ob s er vou qu e qu a n d o d eixa va a
s olu çã o d e t a r t a r a t o n a á gu a , s u r gia m d ois t ip os d e cr is t a l, id ên t icos excet o p elo fa t o d e s er em
im a gen s n o es p elh o u m d o ou t r o. La b or ios a m en te ele s ep a r ou os d ois t ip os d e cr is t a l em d u a s
p ilh a s s ep a r a d a s . Ao d is s olvê-los n ova m en te e em s ep a r a d o, ob t eve d u a s s olu ções d ifer en tes , d ois
t ip os d e t a r t a r a t o n a s olu çã o. E m b or a a s s olu ções fos s em s im ila r es em m u it os a s p ect os , Pa s t eu r
d es cob r iu qu e ela s d es via va m a lu z p ola r iza d a em d ir eções op os t a s . É is t o qu e d á a os d ois t ip os d e

73
moléculas seus nomes convencionais de dextrogira e levogira, já que elas desviam a luz polarizada
no sentido anti-horário e horário, respectivamente. Como você pode adivinhar, quando se permitiu
que as duas soluções cristalizassem mais uma vez, cada uma delas produziu cristais puros que
eram imagens no espelho uns dos outros.
As m olécu la s es p ecu la r es s ã o r ea lm en te d ifer en tes n o s en t id o em qu e, com o a con t ece com o
p é d e s a p a t o es qu er d o e com o p é d e s a p a t o d ir eit o, n ã o im p or t a qu a n t a s t en ta t iva s você fa ça , você
n u n ca p od er á gir á -la s d e m od o qu e u m a p os s a s er s u b s t it u íd a p ela ou t r a . A s olu çã o or igin a l d e
Pa s t eu r er a con s t it u íd a p or u m a p op u la çã o m is t a d os d ois t ip os d e m olécu la s , e os d ois t ip os
in s is t ia m em a lin har-s e s ep a r a d a m en te a o cr is t a liza r . A exis tên cia d e d u a s (ou m a is ) va r ied a d es
d is t in t a s d e u m a en t id a d e é con d içã o n eces s á r ia p a r a a exis tên cia d a ver d a d eir a h er ed it a r ied a d e,
m a s n ã o é s u ficien te. Pa r a qu e h a ja u m a h er ed it a r ied a d e ver d a d eir a en t r e os cr is t a is , os cr is t a is
d ext r ogir os e levogir os d ever ia m p a r t ir -s e em d ois a o a lca n ça r u m es t a d o cr ít ico e ca d a m et a d e
s er vir d e m old e p a r a u m n ovo cr es cim en t o a t é a t in gir o t a m a n h o or igin a l. S ob es t a s con d ições n ós
r ea lm en te ter ía m os u m a p op u la çã o cr es cen te d e d ois t ip os r iva is cr is t a lin os . Pod er ía m os fa la r
ver d a d eir a m en t e d e “s u ces s o” n a p op u la çã o, p ois – já qu e a m b os os t ip os es t a r ia m com p et in d o
p elos m es m os á t om os con s t it u in t es – u m t ip o p od er ia es t a r s e t om a n d o m a is n u m er os o à cu s t a d o
ou t r o, em vir tu d e d e s er “b om ” em fa zer cóp ia s d e s i m es m o. In felizm en te, a m a ior ia d a s m olécu la s
conhecidas não possuem a propriedade singular da hereditariedade.
Digo “in felizm en te” p or qu e os qu ím icos , a o t en t a r fa zer com ob jet ivos m ed icin a is m olécu la s
que são todas, digamos, levogiras, gostariam muito de ser capazes de “gerá-las”. Mas, na medida em
qu e a s m olécu la s a gem com o m old es p a r a a for m a çã o d e ou t r a s m olécu la s , ela s n or m a lm en te o
fa zem p a r a a s s u a s im a gen s n o es p elh o, e n ã o p a r a a s qu e t êm s u a m es m a d ext er id a d e. Is to t orna
a s cois a s d ifíceis , p ois , s e você com eça r com u m a for m a levogir a , a ca b a r á com u m a m is t u r a igu a l
d e m olécu la s levo gir a s e d ext r ogir a s o Os qu ím icos qu e t r a b a lh a m n es te ca m p o d a qu ím ica es t ã o
t en t a n d o “logr a r ” a s m olécu la s in d u zin d o-a s a “ger a r ” m olécu la s filh a s com a m es m a d exter id a d e.
Um truque muito difícil de ser aplicado.
De fa t o, em b or a ele p r ova velm en te n ã o en volva a d ext er id a d e, u m a ver s ã o d es t e t r u qu e foi
a p lica d a n a t u r a l e es p on ta n ea m en te h á 4 m il m ilh ões d e a n os , qu a n d o o m u n d o er a jovem e a
exp los ã o qu e t r a n s for m ou -s e em vid a e in for m a çã o com eçou . Ma s a lgo m a is d o qu e a s im p les
h er ed it a r ied a d e er a n eces s á r ia a n t es qu e a exp los ã o p u d es s e d a r in ício d e m od o a p r op r ia d o a s eu
cu r s o. Mes m o qu e u m a m olécu la exib is s e u m a h er ed it a r ied a d e r ea l en t r e a s for m a s levo gir a s e
dextrogiras, qualquer competição entre elas não teria conseqüências interessantes, pois há somente
dois tipos. Uma vez que, digamos, as do tipo levogiro tivessem vencido a competição, isto encerraria
a questão. Não haveria mais progresso.
As m olécu la s m a ior es p od em exib ir d exter id a d e em d ifer en tes p a r tes d a m olécu la . O
a n t ib iót ico m on en s in , p or exem p lo, tem 1 7 cen t r os d e a s s im et r ia . E m ca d a u m d es tes 1 7 cen t r os ,
h á u m a for m a levo gir a e u m a d ext r ogir a . Dois m u lt ip lica d o p or s i m es m o 1 7 vezes é 1 3 1 .0 7 2 , e,
p or t a n t o, h á 1 3 1 .0 7 2 for m a s d is t in t a s d a m olécu la . S e es t a s 1 3 1 .0 7 2 for m a s p os s u ís s em a
p r op r ied a d e d a h er ed it a r ied a d e ver d a d eir a , com ca d a for m a ger a n d o a p en a s for m a s d e s eu p r óp r io
t ip o, p od er ia h a ver u m a com p et içã o b a s t a n t e com p lica d a , n a m ed id a em qu e os m em b r os m a is
bem-s u ced id os d o con ju n to d e 1 3 1 .0 7 2 gr a d u a lm en t e s e a fir m a s s em n os cen s os p op u la cion a is
s u ces s ivos . Ma s m es m o is t o s er ia u m a es p écie lim it a d a d e h er ed it a r ied a d e, p ois 1 3 1 .0 7 2 , em b or a

74
seja um número grande, é finito. Para termos uma explosão de vida que mereça o nome, a
hereditariedade é necessária, mas também o é uma variedade indefinida e sem limites.
Com o m on en s in ch ega m os a o fim d o ca m in h o, n o qu e d iz r es p eit o a u m a h er ed it a r ied a d e
especular. Mas levogiro versus dextrogiro não é o único tipo de diferença que pode prestar-se para a
r ep r od u çã o h er ed it á r ia . J u liu s Reb ek e s eu s colega s d o Ma s s a ch u s et t s In s t it u te ofTech n ology s ã o
qu ú n icos qu e t êm leva d o a s ér io o d es a fio d e p r od u zir m olécu la s a u t o-r ep lica n tes . As va r ia n t es qu e
eles exp lor a r t:l n ã o s ã o im a gen s n o es p elh o u m a s d a s ou t r a s . Reb ek e s eu s colega s p ega r a m d u a s
p equ en a s m olécu la s – os n om es d et a lh a d os n ã o im p or t a m , va m os ch a m á -la s a p en a s d e A e B.
Qu a n d o A e B s ã o m is t u r a d a s em u m a s olu çã o, ela s u n em -s e p a r a for m a r u m t er ceir o com p os t o –
você a d ivin h ou – C. Ca d a m olécu la d e C a ge com o u m m old e, ou fôr m a . As m olécu la s d e A e B,
flu t u a n d o livr em en te n a s olu çã o, vã o p a r a r d en t r o d o m old e. Um a m olécu la A e u m a m olécu la B
s ã o coloca d a s n a s u a p os içã o n o m old e e, p or t a n t o a ch a m -s e cor r et a m en te a lin h a d a s p a r a for m a r
u m a n ova m olécu la C, exa t a m en te com o a a n t er ior . As m olécu la s C n ã o s e u n em p a r a for m a r u m
cr is t a l, m a s s ep a r a m -s e. Am b a s a s m olécu la s es t ã o a gor a d is p on íveis com o m old es p a r a fa b r ica r
novas moléculas C, desta maneira a população das moléculas C cresce exponencialmente.
Do m od o com o foi d es cr it o a t é a gor a , o s is t em a n ã o exib e u m a h er ed it a r ied a d e ver d a d eir a ,
mas registra a conseqüência. A molécula B chega em uma variedade de formas, cada uma das quais
com b in a com A p a r a fa zer a s u a p r óp r ia va r ied a d e d e m olécu la C. As s im , t em os C l C 2 C 3 e a s s im
p or d ia n t e. Ca d a u m a d es ta s ver s ões d a m olécu la C s er ve com o m old e p a r a a fa b r ica çã o d e ou t r a s
m olécu la s C d e s u a p r óp r ia va r ied a d e. A p op u la çã o d e m olécu la s C é, p or t a n to h eter ogên ea . Ma is
a in d a , os d ifer en tes t ip os d e C n ã o s ã o igu a lm en te eficien tes n a p r od u çã o d e m olécu la s filh a s .
Por t a n t o, h á u m a com p et içã o en t r e a s ver s ões r iva is d e C n a p op u la çã o d e m olécu la s C. Melh or
a in d a , “m u t a ções es p on t â n ea s ” d a s m olécu la s C p od em s er in d u zid a s com r a d ia çã o u lt r a violet a . O
n ovo t ip o m u t a n t e p r ovou s er u m “r ep r od u t or p u r o-s a n gu e”, p r od u zin d o m olécu la s filh a s qu e s ã o
cóp ia s exa t a s d e s i m es m o. De m od o s a t is fa t ór io, a n ova va r ia n t e u lt r a p a s s ou a va r ia n te
p r ogen it or a e r a p id a m en te a s s u m iu o con t r ole d o tu b o d e en s a io n o qu a l es t a s p r ot ocr ia t u r a s
p a s s a r a m a exis t ir . O com p lexo A/ B/ C n ã o é o ú n ico con ju n t o qu e s e com p or ta d es t a m a n eir a . Há
o com p lexo D/ E / F, p a r a cit a r a p en a s u m a t r in ca com p a r á vel. O gr u p o d e Reb ek foi m es m o ca p a z
d e p r od u zir lu ôr id os a u t o-r ep lica n tes a p a r t ir d e elem en t os d o com p lexo A/ B/ C e d o com p lexo
D/E/F.
As m olécu la s ver d a d eir a m en te a u t o-r ep lica n t es qu e con h ecem os n a n a t u r eza – a s m olécu la s
d os á cid os n u cléicos ADN e ARN – t êm con ju n t a m en te u m p ot en cia l m a is r ico d e variação.
E n qu a n t o o r ep lica n te d e Reb ek é u m a ca d eia com a p en a s d ois elos , a m olécu la d e ADN é u m a
lon ga ca d eia d e com p r im en t o in d efin id o; ca d a u m d a s cen ten a s d e elos d a ca d eia p od e s er d e
qu a lqu er u m d os qu a t r o t ip os ; e qu a n d o u m a p a r t e d eter m in a d a d o ADN a ge cor n o m old e p a r a a
for m a çã o d e u m a n ova m olécu la d e ADN, ca d a u m d os qu a t r o t ip os d e elos a ge cor n o m old e p a r a
u m t ip o p a r t icu la r e d ifer en t e d e s i m es m o. As qu a t r o u n id a d es , con h ecid a s com o b a s es , s ã o os
com p os t os a d en in a , t im in a , cit os in a e gu a n in a , con ven cion a lm en t e d en ot a d a s A, T, C e G. A a ge
s em p r e cor n o m old e p a r a T, e vice-ver s a . G a ge s em p r e cor n o m old e p a r a C e vice-ver s a . Qu a lqu er
or d en a m en t o con ceb ível d e A, T, C e G é p os s ível e s er á fielm en te d u p lica d o. Ma is a in d a , cor n o a s
ca d eia s d e ADN t êm com p r im en t o in d efin id o, a ga m a d e va r ia ções d is p on íveis é efet iva m en te
in fin it a . E s t a é a r eceit a p ot en cia l p a r a u m a exp los ã o in for m a cion a l cu ja s r ever b er a ções p od em
finalmente originar-se do planeta Terra e alcançar as estrelas.

75
As reverberações da explosão replicante do nosso sistema solar têm estado confinadas ao
planeta Terra durante a maior parte dos 4 bilhões de anos desde seu início. Apenas no último
milhão de anos surgiu um sistema nervoso capaz de inventar a tecnologia do rádio. E apenas nas
últimas poucas décadas é que este sistema nervoso foi realmente capaz de desenvolver a tecnologia
do rádio. Agora, uma frente esférica em expansão de ondas de rádio ricas em informação está se
afastando do planeta com a velocidade da luz.
Digo “r ica em in for m a çã o” p or qu e já h a via m u it a s on d a s d e r á d io r icoch etea n d o p elo cos m os .
As es t r ela s ir r a d ia m n a s fr eqü ên cia s d e r á d io a s s im cor n o n a s fr eqü ên cia s qu e con h ecem os com o
lu z vis ível. E xis t e m es m o u m ch ia d o d e fu n d o d eixa d o p ela gr a n d e exp los ã o or igin a l qu e cr iou o
t em p o e o u n iver s o. Ma s es t e ch ia d o d e fu n d o n ã o t em u m p a d r ã o qu e fa ça s en t id o: n ã o é r ico em
in for m a çã o. Um r a d io a s t r ôn om o em u m p la n et a qu e or b ite Prox irn a Cen ta u ri d etect a r ia o m es m o
ch ia d o d e fu n d o cor n o os n os s os a s t r ôn om os o fa zem , m a s t a m b ém n ot a r ia u m p a d r ã o d e on d a s d e
r á d io m a is com p lica d o em a n a n d o d a d ir eçã o d a es t r ela ch a m a d a S ol. E s t e p a d r ã o n ã o s er ia
r econ h ecid o cor n o u m a m is t u r a d e p r ogr a m a s d e televis ã o t r a n s m it id os h á qu a t r o a n os , m a s ele
s er ia r econ h ecid o cor n o m a is or ga n iza d o e r ico em in for m a çã o d o qu e o ch ia d o d e fu n d o u s u a l. Os
r a d ioa s t r ôn om os d e Prox irn a Cen ta u ri r ela t a r ia m , en t r e d em on s t r a ções d e excit a çã o, qu e a es t r ela
ch a m a d a S ol exp lod ir a em u m equ iva len te in for m a cion a l d e u m a s u p er n ova (eles fa r ia m a
s u p os içã o, m a s p od er ia m n ã o t er cer teza , qu e n a ver d a d e er a u m p la n et a or b it a n d o em tor n o d o
Sol).
As b om b a s d e r ep lica çã o, cor n o vim os , s egu em u m cu r s o t em p or a l m a is len t o d o qu e o d a s
s u p er n ova s . Nos s a p r óp r ia b om b a d e r ep lica çã o exigiu u n s p ou cos b ilh ões d e a n os p a r a a tin gir o
lim ia r d o r á d io – o m om en t o n o qu a l u m a p or çã o d a in for m a çã o t r a n s b or d a d o m u n d o or igin a l e
começa a banhar sistemas estelares vizinhos com pulsos cheios de significados. Podemos supor que
exp los ões d e in for m a çã o, s e a n os s a é t íp ica , p a s s a m p or u m a s ér ie d e lim ia r es es ca lon a d os . O
lim ia r d o r á d io e a n tes d is to o lim ia r d a lin gu a gem for a m a t in gid os b em m a is t a r d e n a ca r r eir a d e
u m a b om b a d e r ep lica çã o. An t es d es tes er a o qu e é p elo m en os n es t e p la n et a – p od e s er ch a m a d o o
limiar das células nervosas, e antes deste foi o limiar multicelular. O limiar número um, o bisavô de
todos eles, foi o limiar replicante, o evento inicial que tornou a explosão total possível.
O qu e é t ã o im p or t a n t e a r es p eit o d os r ep lica n tes ? Cor n o p od e a con t ecer qu e o s u r gim en t o
casu a l d e u m a m olécu la com a p r op r ied a d e a p a r en tem en te in ócu a d e s er vir cor n o m old e p a r a
s ín t es e d e u m a ou t r a exa t a m en te igu a l a ela s eja o ga t ilh o d e u m a exp los ã o cu ja s r ever b er a ções
finais podem ir além dos planetas? Corno vimos, parte do poder dos replicantes está no crescimento
exp on en cia l. Os r ep lica n tes exib em cr es cim en t o exp on en cia l d e u m a for m a p a r t icu la r m en te cla r a .
Um exem p lo s im p les é a a s s im ch a m a d a cor r en te d e ca r t a s . Você r eceb e n o cor r eio u m ca r t ã o-
p os t a l n o qu a l es t á es cr it o: “Fa ça s eis cóp ia s d es te ca r t ã o e en vie-os a s eis a m igos n o p r a zo d e u m a
s em a n a . Se você n ã o fizer is t o, u m feit iço s er á feito con t r a você e você m or r er á s ofr en d o d or es
terríveis em um mês”. Se você é sensato, jogará o cartão-postal fora. Mas uma boa porcentagem das
pessoas n ã o s ã o s en s a t a s ; ela s fica m va ga m en te in t r iga d a s , ou in t im id a d a s , p ela a m ea ça , e en via m
s eis cóp ia s d o ca r t ã o p a r a ou t r a s p es s oa s . S e, n a m éd ia , u m t er ço d a s p es s oa s qu e r eceb er a m o
ca r t ã o ob ed ecem à s in s t r u ções es cr it a s n ele, o n ú m er o d e ca r t ões em cir cu la çã o d u p lica r á a ca d a
s em a n a . E m t eor ia , is t o s ign ifica qu e o n ú m er o d e ca r t ões em cir cu la çã o d ep ois d e u m a n o s er á 2
eleva d o à p otên cia 5 2 , ou cer ca d e 4 m il t r ilh ões . Ca r t ões -p os t a is s u ficien tes p a r a s u foca r t od os os
homens, mulheres e crianças que vivem no mundo.

76
O crescimento exponencial, se não for interrompido pela falta de recursos, sempre conduz a
resultados de grande escala espantosos num tempo surpreendentemente curto. Na prática, os
recursos são limitados, e outros fatores, também, servem para limitar o crescimento exponencial.
No nosso exemplo hipotético, os indivíduos provavelmente começarão a ficar relutantes quando a
mesma carta da corrente chega até eles pela segunda vez. Na competição pelos recursos, podem
surgir variantes do replicante mais eficientes em reproduzir-se. Estes replicantes mais eficientes
tenderão a substituir seus rivais menos eficientes. É importante compreender que nenhuma destas
entidades capazes de replicação está conscienciosamente interessada em se fazer duplicar. Mas
simplesmente acontecerá que o mundo tornar-se-á cheio de replicantes que são mais eficientes.
No ca s o d a cor r en te d e ca r t a s , s er eficien te p od e con s is t ir em a cu m u la r u m a coleçã o m elh or
de palavras no papel. Em vez de uma afirmação um pouco implausível de que “se você não obedecer
à s p a la vr a s d es te ca r t ã o você m or r er á com d or es h or r íveis em u m m ês ”, a m en s a gem p od e m u d a r
p a r a “p or fa vor , eu lh e im p lor o, s a lve s u a a lm a e a m in h a , n ã o cor r a o r is co: s e você t iver a m en or
d ú vid a , ob ed eça à s in s t r u ções e en vie a ca r t a p a r a ou t r a s s eis p es s oa s ”. Ta is “m u t a ções ” p od em
a con t ecer s em p r e, e o r es u lt a d o fin a lm en te s er á u m a p op u la çã o h eter ogên ea d e m en s a gen s , t od a s
em cir cu la çã o, t od a s d es cen d en tes d o m es m o a n ces t r a l or igin a l, m a s d ifer in d o n a r ed a çã o
d et a lh a d a e n a n a t u r eza e in ten s id a d e d a s a r t im a n h a s em p r ega d a s . As va r ia n t es m a is b em -
s u ced id a s ten d er ã o a cr es cer à cu s t a d a s r iva is m en os b em -s u ced id a s . O s u ces s o é s im p les m en te
s in ôn im o d e fr eqü ên cia d e cir cu la çã o. A “Ca r t a d e s ã o J u d a s ” é u m exem p lo b em con h ecid o d es te
s u ces s o; ela via jou a o r ed or d o m u n d o m u it a s vezes , p r ova velm en te a u m en ta n d o n o d ecor r er d o
p r oces s o. Qu a n d o es t a va es cr even d o es t e livr o, r eceb i d o Dr . Oliver Good en ou gh , d a Un iver s id a d e
d e Ver m on t , a s egu in te ver s ã o, e es cr evem os u m a r t igo ju n t os s ob r e ela , com o u m exem p lo d e
“vírus da mente”, para a revista Nature:
“COM AMOR TODAS AS COISAS SÃO POSSÍVEIS”
E s t a ca r t a foi en via d a a você p a r a t r a zer s or te. O or igin a l es t á n a Nova In gla ter r a . E la foi en via d a n ove
vezes a o r ed or d o m u n d o. A s or te foi en via d a a você. Você ter á b oa s or t e qu a t r o d ia s a p ós o r eceb im en t o
d es t a ca r t a com o com p r om is s o qu e você p or s u a vez a p a s s e p a r a fr en te. Is t o n ã o é b r in ca d eir a . Você
ter á b oa s or te n o cor r eio. Nã o en vie d in h eir o. Ma n d e cóp ia s p a r a p es s oa s qu e você a ch a qu e es t ã o
p r ecis a n d o d e b oa s or t e. Nã o en vie d in h eir o, p ois a fé n ã o t em p r eço. Nã o fiqu e com es t a ca r t a . E la d eve
d eixa r s u a s m ã os d en tr o d e 9 6 h or a s . J oe E lliot , oficia l d a A.R.P., r eceb eu $ 4 0 .0 0 0 .0 0 0 . Geo. Welch
p er d eu s u a es p os a cin co d ia s a p ós ter r eceb id o es t a ca r t a . E le d eixou d e cir cu la r a ca r t a . E n t r et a n t o
a n tes d a m or t e d a es p os a ele r eceb eu $ 7 5 .0 0 0 . Por fa vor en vie cóp ia s e veja o qu e a con tece d ep ois d e
qu a t r o d ia s . A cor r en te com eça n a Ven ezu ela e foi es cr it a p or S a u l An t h on y Degn a s , u m m is s ion á r io d a
Amér ica d o S u l. Com o es t a cóp ia d eve d a r a volt a a o m u n d o, você d eve fa zer vin te cóp ia s e en viá -la s a
a m igos e p es s oa s con h ecid a s ; d ep ois d e u n s p ou cos d ia s você ter á u m a s u r p r es a ; is t o é a m or , m es m o
qu e você n ã o s eja s u p er s t icios o. Ob s er ve o s egu in te: Ca n t on a r e Dia s r eceb eu es t a ca r t a em 1 9 0 3 . E le
p ed iu a s u a s eco qu e fizes s e cóp ia s e a s en via s s e. Un s p ou cos d ia s m a is t a r d e ele ga n h ou n a lot er ia 2 0
m ilh ões d e d óla r es . Ca r l Dob b it , u m em p r ega d o d e es cr it ór io, r eceb eu a ca r t a e es qu eceu qu e ela t in h a
qu e s a ir d e s u a s m ã os d en t r o d e 9 6 h or a s . E le p er d eu s eu em p r ego. Ap ós ter en con t r a d o a ca r t a
n ova m en te, ele fez cóp ia s e en viou vin t e p elo cor r eio. Un s p ou cos d ia s m a is t a r d e ele con s egu iu u m
em p r ego m elh or . Dola n Fa ir ch ild r eceb eu a ca r t a e n ã o a cr ed it a n d o jogou for a . Nove d ia s m a is t a r d e ele
m or r eu . E m 1 9 8 7 a ca r t a foi r eceb id a p or u m a m oça n a Ca lif. E s t a va b or r a d a e m a l p od ia s er lid a . E la
p r om eteu a s i m es m a qu e r eb a t er ia a ca r t a e a en via r ia , m a s ela d eixou -a d e la d o p a r a fa zer is t o m a is
tarde. Ela teve vários problemas, inclusive problemas muito caros com o seu carro. Esta carta não deixou

77
suas mãos em 96 horas. Ela finalmente bateu a carta como prometeu e conseguiu um carro novo.
Lembre-se, não envie dinheiro. Não ignore isto – funciona.
São Judas.

E s t e d ocu m en t o r id ícu lo t em t od os os in d ícios d e ter p a s s a d o p or n u m er os a s m u t a ções . Há


numerosos erros e frases mal escritas, e há outras versões conhecidas circulando pelo mundo.
Diver s a s ver s ões s ign ifica t iva m en te d ifer en tes m e for a m en via d a s d e d iver s os ca n t os do
m u n d o d es d e qu e n os s o a r t igo foi p u b lica d o n a Nature. E m u m d es tes t ext os a lt er n a t ivos , p or
exem p lo, o oficia l d a A.R.P. é u m “oficia l d a R.A.F”. A ca r t a d e s ã o J u d a s é b em con h ecid a p elo
cor r eio a m er ica n o, qu e r ela t a s er ela d e u m a ép oca a n t er ior a o com eço d os s eu s r egis t r os oficia is e
exibe surtos epidêmicos recorrentes.
Ob s er ve qu e a s u p os t a lis ta d e b oa s or te d es fr u t a d a p elos com p ila d or es e d os d es a s t r es qu e
a con t ecer a m com qu em a ign or ou n ã o p od e t er s id o es cr it a p ela s vít im a s ou b en eficiá r ios . A
sup os t a b oa s or t e d os b en eficiá r ios n ã o os a lca n çou a t é d ep ois d e a ca r t a t er d eixa d o s u a s m ã os . E
a s vít im a s n ã o en via r a m a s ca r t a s . E s t a s h is t ór ia s for a m p r es u m ivelm en te in ven t a d a s – com o
p od er ia s er in fer id o d e m od o in d ep en d en te p ela im p la u s ib ilid a d e d o s eu con teú d o. Is t o n os leva a o
aspecto principal pelo qual as correntes de cartas diferem dos replicantes naturais que deram início
à exp los ã o d e vid a . As cor r en tes d e ca r t a s s ã o or igin a lm en te es cr it a s p elos h u m a n os , e a s
m u d a n ça s em s eu text o s u r gem n a ca b eça d os h u m a n os . No in ício d a exp los ã o d e vid a n ã o h a via
m en tes , cr ia t ivid a d e ou in ten çã o. Ha via a p en a s a qu ím ica . Nã o ob s t a n t e, u m a vez qu e s u b s tâ n cia s
qu ím ica s a u t o-r ep lica n tes t iver a m a ch a n ce d e s u r gir , t er ia h a vid o u m a t en d ên cia a u t om á t ica p a r a
variantes bem-sucedidas em aumentar em freqüência à custa de variantes menos bem-sucedidas.
Com o n o ca s o d a cor r en t e d e ca r t a s , o s u ces s o en t r e os r ep lica n t es qu ím icos é s im p les m en te
s in ôn im o d e fr eqü ên cia d e cir cu la çã o. Ma s is t o é a p en a s u m a d efin içã o: qu a s e u m a t a u t ologia . O
s u ces s o é ob tid o p ela com p etên cia p r á tica , e com p etên cia s ign ifica a lgo con cr et o, m a s n u n ca u m a
t a u t ologia . Um a m olécu la r ep lica n te b em -s u ced id a s er á u m a qu e, p or r a zões t écn ica s qu ím ica s
d et a lh a d a s , tem o qu e é n eces s á r io p a r a s er d u p lica d a . O qu e is t o s ign ifica n a p r á t ica p od e s er
qu a s e in fin it a m en te va r iá vel, m es m o qu e a n a t u r eza d os r ep lica n tes p os s a p a r ecer
surpreendentemente uniforme.
O ADN é t ã o u n ifor m e qu e con s is te in teir a m en te em va r ia ções em u m a s eqü ên cia for m a d a
com a s m es m a s qu a t r o “let r a s ” A, T, C, e G. E m com p a r a çã o, com o já vim os n os ca p ít u los
a n t er ior es , os m eios u s a d os p ela s s eqü ên cia s d e ADN p a r a fa zer -s e d u p lica r s ã o es p a n t os a m en te
va r iá veis . E les in clu em a con s t r u çã o d e cor a ções m a is eficien tes p a r a os h ip op ót a m os , p er n a s m a is
flexíveis p a r a a s p u lga s , a s a s m a is a er od in â m ica s p a r a o a n d or in h ã o, b exiga s n a t a t ór ia s qu e
p er m item a os p eixes b oia r m elh or . Tod os os ór gã os e m em b r os d os a n im a is ; a s r a ízes , folh a s e
flor es d a s p la n t a s ; t od os os olh os , cér eb r os e m en tes , e m es m o m ed os e es p er a n ça s , s ã o a s
fer r a m en t a s p or m eio d a s qu a is s eqü ên cia s b em -s u ced id a s d e ADN t r a n s p or t a m a s i m es m a s p a r a
o fu t u r o. As fer r a m en t a s s ã o qu a s e in fin it a m en te va r iá veis , m a s a s in s t r u ções p a r a a con s tr u çã o
d es t a s fer r a m en t a s s ã o, em con t r a s t e, r id icu la m en te u n ifor m es . Ap en a s p er m u t a çã o a p ós
permutação de A, T, C e G.
Pod e n ã o ter s id o s em p r e a s s im . Nã o t em os evid ên cia d e qu e, qu a n d o a exp los ã o d e
informação começou, o código seminal estivesse escrito em letras do ADN. De fato, toda a tecnologia
de informação com base no ADN/proteína é tão sofisticada – alta tecnologia, como foi chamada pelo

78
químico Graham Cairns-Smith – qu e você m a l p od e im a gin á -la com o t en d o s u r gid o gr a ça s à s or t e,
sem algum outro sistema auto-replicante como precursor. O precursor pode ter sido o ARN; ou pode
t er s id o a lgo com o a s m olécu la s s im p les e a u t o-r ep lica n t es d e J u liu s Reb ek ; ou p od e t er s id o a lgo
muito diferente: uma possibilidade tantalizante, que discuti com detalhes em The Blind Watchmaker
(O relojoeiro cego), é a sugestão de Cairns-Smith (ver seu Seven Clues to the Origin of Life) de cristais
inorgânicos de argila como replicantes primordiais. Podemos nunca saber com certeza.
O qu e p od em os fa zer é s u p or u m a cr on ologia ger a l d e u m a exp los ã o d e vid a em qu a lqu er
p la n et a , em qu a lqu er p a r t e d o u n iver s o. Os d et a lh es d a qu ilo qu e d a r á cer t o d ep en d em d a s
con d ições loca is . O s is t em a ADN/ p r ot eín a n ã o d a r ia cer t o em u m m u n d o d e a m ôn ia líqu id a em
t em p er a t u r a s m u it o b a ixa s , m a s t a lvez a lgu m ou t r o s is t em a d e h er ed it a r ied a d e e em b r iologia
funcionasse. De qualquer modo, estes são os tipos de especificidades que desejo ignorar, pois desejo
concentrar-m e n os p r in cíp ios qu e fa zem p a r t e d a s in s t r u ções ger a is e s ã o in d ep en d en tes d o tip o d e
p la n et a . E xa m in a r ei m a is s is t em a t ica m en te a gor a a lis t a d e lim ia r es qu e qu a lqu er b om b a d e
r ep lica çã o p la n et á r ia d eve u lt r a p a s s a r . Algu n s d es t es lim ia r es têm t od a a p r ob a b ilid a d e d e s er em
gen u in a m en te u n iver s a is . Ou t r os p od em s er p ecu lia r es a o n os s o p la n et a . Pod e n ã o s er s em p r e fá cil
d ecid ir qu a is os qu e p r ova velm en te s ã o u n iver s a is e qu a is s ã o loca is , e es t a qu es t ã o é in ter es s a n te
em si mesma.
O lim ia r n ú m er o 1 é, n a t u r a lm en te, o lim ia r d o r ep lica n t e: o s u r gim en t o d e a lgu m t ip o d e
s is t em a a u t o-r ep lica n te p a r a o qu a l exis te p elo m en os u m a for m a r u d im en t a r d e va r iação
h er ed it á r ia , com er r os a lea t ór ios oca s ion a is n a r ep lica çã o. A con s eqü ên cia d a u lt r a p a s s a gem d o
lim ia r n ú m er o 1 é qu e o p la n et a p a s s a a con t er u m a p op u la çã o m is t a , n a qu a l a s va r ia n t es
com p etem p elos r ecu r s os . Os r ecu r s os s er ã o es ca s s os – ou s e t or n a r ã o es ca s s os qu a n d o a
com p et içã o fica r m a is in ten s a . Algu m a s r ép lica s d e va r ia n t es s e r evela r ã o r ela t iva m en te m a is b em -
s u ced id a s n a com p et içã o d os r ecu r s os es ca s s os . Ou t r a s s er ã o r ela t iva m en te m a ls u ced id a s . Tem os
agora uma forma básica de seleção natural.
Par a com eça r , o s u ces s o en t r e r ep lica n t es r iva is s er á ju lga d o exclu s iva m en te p ela s
p r op r ied a d es d ir et a s d os p r óp r ios r ep lica n t es – p or exem p lo, qu ã o b em s u a for m a a ju s t a -s e a u m
molde. Mas agora, depois de muitas gerações evolutivas, passamos para o limiar número 2, o limiar
d o fen ót ip o. Rep lica n tes s ob r evivem n ã o em vir t u d e d e s u a s p r op r ied a d es , m a s em vir t u d e d os
efeit os ca u s a is s ob r e u m a ou t r a cois a , qu e ch a m a m os fen ót ip o. No n os s o p la n et a , os fen ót ip os s ã o
fa cilm en te r econ h ecid os com o a qu ela s p a r t es d os a n im a is e p la n t a s qu e os gen es p od em
in flu en cia r . Is t o s ign ifica tod os os p ed a cin h os d o cor p o. Pen s e n os fen ót ip os com o a la va n ca s p or
m eio d a s qu a is os r ep lica n t es b em -s u ced id os a b r em o ca m in h o p a r a a ger a çã o s egu in te. De m od o
m a is ger a l, fen ót ip os p od em s er d efin id os com o con s eqü ên cia s d e r ep lica n tes qu e in flu en cia m o
s u ces s o d e r ep lica n t es , m a s qu e n ã o s ã o eles m es m os r ep lica d os . Por exem p lo, u m gen e p a r ticu la r
d e u m a es p écie d e ca r a col d e u m a ilh a d o Pa cífico d et er m in a s e a con ch a es p ir a la p a r a a d ir eit a ou
p a r a a es qu er d a . A m olécu la d o ADN n ã o é levogir a ou d ext r ogir a , m a s s u a con s eqü ên cia fen ot íp ica
é. As con ch a s levo gir a s ou d ext r ogir a s p od em n ã o s er igu a lm en t e b em -s u ced id a s n o n egócio d e
for n ecer u m a p r ot eçã o exter n a p a r a os cor p os d os ca r a cóis . Com o os gen es d o ca r a col a n d a m n o
in t er ior d a con ch a cu ja for m a a ju d a m a d eter m in a r , os gen es qu e p r od u zem con ch a s b em -
s u ced id a s p a s s a r ã o a s u p er a r n u m er ica m en te os gen es qu e p r od u zem con ch a s m a ls u ced id a s . As
con ch a s , s en d o fen ót ip os , n ã o ger a m con ch a s filh a s . Ca d a con ch a é feit a d e ADN, e é o ADN qu e
gera ADN.

79
As seqüências de ADN influenciam seus fenótipos (como a orientação das espirais das
conchas) por meio de uma cadeia de eventos intermediária mais ou menos complicada, todos
sumarizados sob o título geral de “embriologia”. No nosso planeta, o primeiro elo da cadeia é sempre
a síntese de uma molécula de proteína. Todos os detalhes da molécula de proteína são precisamente
es p ecifica d os , via o fa m os o cód igo gen ét ico, p ela or d en a çã o d os qu a t r o t ip os d e let r a s d o ADN. Ma s
estes detalhes provavelmente têm significado apenas local. De modo mais geral, um planeta passará
a con t er r ep lica n t es cu ja s con s eqü ên cia s (fen ót ip os ) têm efeit os b en éficos , qu a is qu er qu e s eja m os
meios empregados, no sucesso dos replicantes em replicar-se. Uma vez que o limiar do fenótipo seja
cr u za d o, os r ep lica n tes s ob r evivem p or p r ocu r a çã o, s u a s con s eqü ên cia s s ob r e o m u n d o. No n os s o
p la n et a , es t a s con s eqü ên cia s es t ã o u s u a lm en te lim it a d a s a o cor p o n o qu a l o gen e s e loca liza
fisicamente. Mas isto não é necessariamente assim. A doutrina do fenótipo estendido (à qual devotei
u m livr o in teir o com es te t ít u lo) a fir m a qu e a s a la va n ca s fen ot íp ica s com a s qu a is os r ep lica n t es
ga r a n t em s u a s ob r evivên cia a lon go p r a zo n ã o p r ecis a m fica r lim ita d a s a os s eu s “p r óp r ios ” cor p os .
Os gen es p od em a t in gir o exter ior d os cor p os in d ivid u a is e in flu en cia r o m u n d o lá for a , in clu s ive
outros corpos.
Nã o s ei com o o lim ia r d o fen ót ip o u n iver s a l p r ova velm en te d eve s er . S u s p eit o qu e ele ten h a
s id o cr u za d o em t od os a qu eles p la n et a s em qu e a exp los ã o d e vid a u lt r a p a s s ou u m es t á gio b em
r u d im en t a r . E s u s p eit o qu e o m es m o s eja ver d a d e p a r a o p r óxim o lim ia r em m in h a lis t a . E s t e é o
lim ia r n ú m er o 3 , o lim ia r d a s equ ip es d e r ep lica n tes , qu e em a lgu n s p la n eta s p od e s er cr u za d o
antes, ou a o m es m o tem p o, qu e o lim ia r d o fen ót ip o. No in ício, os r ep lica n tes s ã o p r ova velm en te
en t id a d es a u t ôn om a s n a d a n d o a o a ca s o ju n t o com ou t r os r ep lica n t es n u s n a s ca b eceir a s d o r io
gen ét ico. Ma s é u m a ca r a ct er ís t ica d o n os s o m od er n o s is t em a tecn ológico d e in for m a çã o com b a s e
n o ADN e n a s p r ot eín a s a qu i n a Ter r a qu e n en h u m gen e p od e t r a b a lh a r is ola d a m en te. O m u n d o
qu ím ico n o qu a l o gen e fa z s eu t r a b a lh o n ã o é o d a qu ím ica in d ep en d en te d o m eio exter n o. E s t e
p a r a s er exa to, for m a o p a n o d e fu n d o, m a s u m p a n o d e fu n d o b em r em ot o. O m u n d o qu ím ico
im ed ia t o e vit a lm en te n eces s á r io n o qu a l o ADN r ep lica n t e tem exis t ên cia é u m a b ols a d e p r od u t os
qu ím icos m u it o m en or , m u it o m a is con cen t r a d a – a célu la . De u m cer t o m od o, ch a m a r a célu la d e
b ols a d e p r od u t os qu ím icos p od e con d u zir a o er r o, p ois m u it a s célu la s t êm u m a es t r u t u r a in t er n a
ela b or a d a d e m em b r a n a s d ob r a d a s , n a s qu a is , s ob r e a s u p er fície, n o in t er ior e n o volu m e con t id o
en t r e ela s ocor r em r ea ções qu ím ica s vit a is . O m icr ocos m o qu ím ico qu e é a célu la é cr ia d o p or u m
con s ór cio d e cen ten a s – e n a s célu la s a va n ça d a s m ilh a r es d e cen ten a s – d e gen es . Ca d a gen e
con t r ib u i p a r a o m eio a m b ien te, o qu a l eles t od os en t ã o exp lor a m p a r a s ob r eviver . Os gen es
trabalham em equipes. Vimos isto a partir de um ângulo ligeiramente diferente no capítulo 1.
Os m a is s im p les d os s is tem a s d e ADN a u t o-r ep lica n t es a u t ôn om os n o n os s o p la n et a s ã o a s
célu la s b a cter ia n a s , e s ã o n eces s á r ios p elo m en os d u a s cen ten a s d e gen es p a r a fa b r ica r os
com p on en tes d e qu e es ta s célu la s p r ecis a m . Célu la s qu e n ã o s ã o b a ct er ia n a s s ã o ch a m a d a s
eu ca r iót ica s . Nos s a s célu la s , e a d e t od os os a n im a is , p la n t a s , fu n gos e p r ot ozoá r ios s ã o célu la s
eu ca r iót ica s . E la s t ip ica m en t e têm d ezen a s ou cen t en a s d e m ilh a r es d e gen es , t od os t r a b a lh a n d o
em equ ip e. Com o vim os n o ca p ít u lo 2 , p a r ece p r ová vel a gor a qu e a p r óp r ia célu la eu ca r iót ica t en h a
com eça d o com o u m a equ ip e d e m eia d ú zia ou a lgo a s s im d e célu la s b a ct er ia n a s qu e s e r eu n ir a m .
Ma s is t o é u m a for m a d e t r a b a lh o d e equ ip e d e n ível m a is a lt o e n ã o é s ob r e o qu e es t ou fa la n d o
a qu i. E s t ou fa la n d o d o fa t o d e qu e t od os os gen es fa zem s eu tr a b a lh o em u m m eio a m b ien te
químico criado por um consórcio de genes na célula.

80
Uma vez que tenhamos entendido o fato de que os genes trabalham juntos em equipes, é
obviamente tentador chegar à conclusão de que hoje em dia a seleção darwiniana faz sua escolha
entre equipes rivais de genes – concluir que a seleção passou para os níveis mais altos de
organização. Tentador, mas do meu ponto de vista errado no nível profundo. É muito mais
esclarecedor d izer qu e a s eleçã o d a r win ia n a a in d a fa z s u a es colh a en t r e gen es r iva is , m a s qu e os
gen es fa vor ecid os s ã o a qu eles qu e p ros p era m n a p res en ça d e ou tros gen es qu e es t ã o s en d o
s im u lt a n ea m en te fa vor ecid os n a p r es en ça u m d o ou t r o. E s t e é o p on t o com qu e d ep a r a m os n o
ca p ít u lo 1 , on d e vim os qu e gen es qu e com p a r t ilh a m o m es m o b r a ço d o r io d igita l t en d em a tor n a r -
se “bons companheiros”.
Talvez o próximo limiar importante a ser cruzado à medida que a bomba de replicação em um
p la n et a a cu m u la for ça s s eja o lim ia r m u lt icelu la r , e eu o ch a m o d e lim ia r n ú m er o 4 . Na n os s a
for m a d e vid a , qu a lqu er célu la , com o vim os , é u m p equ en o ocea n o loca l d e p r od u t os qu ím icos em
qu e u m a equ ip e d e gen es es t á m er gu lh a d a . E m b or a con t en h a a equ ip e in teir a , ele é con s t it u íd o p or
u m s u b con ju n t o d a equ ip e. Agor a , a s célu la s s e m u lt ip lica m p a r t in d o-s e em d u a s , ca d a m et a d e
crescendo até o tamanho de uma célula normal. Quando isto acontece, todos os membros da equipe
d e gen es s ã o d u p lica d os . S e d u a s célu la s n ã o s e s ep a r a m com p let a m en te m a s p er m a n ecem liga d a s
u m a à ou t r a , gr a n d es ed ifica ções p od em s er er igid a s , com a s célu la s fa zen d o o p a p el d e t ijolos . A
h a b ilid a d e d e er igir ed ifica ções m u lt icelu la r es p od e s er t ã o im p or t a n t e em n os s o m u n d o qu a n t o em
ou t r os . Qu a n d o o lim ia r m u lt icelu la r é cr u za d o, p od em s u r gir fen ót ip os cu ja s for m a s e fu n ções s ã o
a p r ecia d a s s om en te em u m a es ca la m u it o m a ior d o qu e a es ca la d e u m a ú n ica célu la . Ch ifr es ,
folh a s , glob os ocu la r es ou con ch a s d e ca r a cóis – t od a s es t a s for m a s s ã o cr ia d a s p ela s célu la s , m a s
as células não são versões em miniatura da forma maior. Em outras palavras, órgãos multicelulares
n ã o cr es cem d o m od o com o os cr is t a is o fa zem . Pelo m en os em n os s o p la n et a , s eu cr es cim en t o s e
a s s em elh a m a is à con s t r u çã o d e ed ifícios qu e, a fin a l d e con t a s , n ã o t êm a for m a d e t ijolos m u it o
gr a n d es . A m ã o t em u m a for m a ca r a ct er ís t ica , m a s n ã o é feit a d e célu la s qu e têm es t a for m a , com o
s er ia o ca s o s e os fen ót ip os cr es ces s em com o cr is t a is . Nova m en te, com o ed ifícios , ór gã os
m u lt icelu la r es a d qu ir em s u a s for m a s e t a m a n h os ca r a ct er ís t icos p or qu e a s ca m a d a s d e célu la s
(t ijolos ) s egu em r egr a s qu e lh es d izem qu a n d o p a r a r d e cr es cer . E m cer t o s en t id o, a s célu la s d evem
s a b er t a m b ém qu a l a s u a p os içã o em r ela çã o à s ou tr a s célu la s . As célu la s d o fíga d o com p or t a m -se
com o s e s ou b es s em qu e s ã o célu la s d o fíga d o e, m a is a in d a , s a b em s e es t ã o n a b eir a d a d e u m
lób u lo ou n o m eio. Com o ela s fa zem is t o é u m a qu es tã o d ifícil e m u it o es t u d a d a . As r es p os t a s s ã o
p r ova velm en te p ecu lia r es a o n os s o p la n et a e a qu i eu n ã o a s con s id er a r ei m a is . J á a s m en cion ei n o
ca p ít u lo 1 . Qu a is qu er qu e s eja m os s eu s d et a lh es , os m ét od os for a m a p er feiçoa d os exa t a m en te
p elos m es m os p r oces s os ger a is em p r ega d os em ou t r a s m elh or ia s d a vid a : a s ob r evivên cia n ã o
aleatória dos genes bem-sucedidos julgados por seus efeitos – neste caso, efeitos do comportamento
da célula relativamente às células vizinhas.
O p r óxim o lim ia r im p or ta n t e qu e qu er o con s id er a r , p ois s u s p eit o qu e ele, t a m b ém , é
p r ova velm en te d e s ign ifica d o m a ior d o qu e o loca l p la n et á r io é o lim ia r d o p r oces s a m en t o d e
inform a çã o d e a lt a velocid a d e. No n os s o p la n et a es te lim ia r n ú m er o 5 é a t in gid o p or u m a cla s s e
es p ecia l d e célu la s ch a m a d a s n eu r ôn ios , ou célu la s n er vos a s , e p od em os ch a m á -lo loca lm en te d e
lim ia r d o s is t em a n er vos o. Tod a via ele p od e s er a t in gid o em u m p la n et a , o qu e é im p or t a n te, p ois
a gor a a a çã o p od e s er efet u a d a n u m a es ca la tem p or a l m u it o m a is r á p id a d o qu e a qu ela qu e os
gen es , com s u a s a la va n ca s qu ím ica s , p od em efet u a r d ir et a m en t e. Os p r ed a d or es p od em s a lt a r

81
sobre seu jantar e as presas podem correr por suas vidas, utilizando os sistemas muscular e
nervoso que agem e reagem com velocidades muito maior do que as velocidades embriológicas com
que os genes criaram estes sistemas em primeiro lugar. Velocidades absolutas e tempos de reação
podem ser muito diferentes em outros planetas. Mas em qualquer planeta um limiar importante é
cruzado quando os dispositivos construídos pelos replicantes começam a ter tempos de reação
muitas ordens de magnitude mais rápidos do que as maquinações embriológicas dos próprios
replica n tes . S e os in s t r u m en t os lem b r a r ã o n eces s a r ia m en te os ob jet os qu e n ós , n es te p la n et a ,
ch a m a m os n eu r ôn ios e célu la s m u s cu la r es , é m en os cer t o. Ma s n a qu eles p la n et a s em qu e a lgu m a
cois a s em elh a n t e a o lim ia r d o s is t em a n er vos o é u lt r a p a s s a d o, con s eqü ên cia s adicionais
importantes provavelmente se seguirão e a bomba de replicação dará prosseguimento à sua jornada
para o exterior.
E n t r e es t a s con s eqü ên cia s p od em es t a r gr a n d es a gr ega ções d e u n id a d es m a n ip u la d or a s d e
dados – “cér eb r os ” – ca p a zes d e p r oces s a r p a d r ões com p lexos d e in for m a çã o ca p t a d os p or “ór gã os
d os s en t id os ” e ca p a zes t a m b ém d e a r m a zen a r r egis t r os d es tes p a d r ões n a “m em ór ia ”. Um a
con s eqü ên cia m a is ela b or a d a e m is ter ios a d e cr u za r -s e o lim ia r d o n eu r ôn io é a p er cep çã o
con s cien te, e eu ch a m a r ei o lim ia r n ú m er o 6 d e lim ia r d a con s ciên cia . Nã o s ei qu a n t a s vezes is to
a con t eceu em n os s o p la n eta . Algu n s filós ofos a cr ed it a m qu e ele es teja r ela cion a d o d e m od o cr u cia l
com a lin gu a gem , qu e p a r ece ter s id o ob t id a a p en a s u m a vez, p ela es p écie b íp ed e d e m a ca cos
chamada Hom o s a p ien s . De qu a lqu er m od o, a con s ciên cia exigin d o ou n ã o u m a lin gu a gem ,
r econ h eça m os o lim ia r d a lin gu a gem com o u m lim ia r im p or t a n t e, o lim ia r n ú m er o 7 , qu e p od e ou
n ã o s er cr u za d o em u m p la n et a . Os d eta lh es d a lin gu a gem , t a is com o s e ela é t r a n s m it id a ou n ã o
pelo som ou algum outro meio físico, devem ser relegados ao nível de significado local.
A lin gu a gem , d es te p on t o d e vis t a , é u m s is t em a em r ed e p or m eio d o qu a l os cér eb r os (com o
s ã o ch a m a d os n es te p la n et a ) t r oca m in for m a ções com in t im id a d e s u ficien t e p a r a p er m it ir o
d es en volvim en t o d e u m a t ecn ologia coop er a t iva . A t ecn ologia coop er a t iva , com eça n d o com o
d es en volvim en t o im it a t ivo d os a r t efa t os d e p ed r a e p r os s egu in d o a tr a vés d a s er a s d o m et a l fu n d id o,
d os veícu los p r ovid os d e r od a s , d a en er gia d o va p or e a gor a d a elet r ôn ica , tem m u it o d os a t r ib u t os
p a r a s er u m a exp los ã o p or s i s ó, e s eu in ício m er ece, p or t a n t o u m n om e, o lim ia r d a t ecn ologia
cooperativa, ou limiar número 8. De fato, é possível que a cultura humana tenha criado uma bomba
de replicação genuinamente nova, com um novo tipo de entidade auto-replicante – o meme, como eu
a d en otei em Th e S elfis h Gen e (O gen e egoís t a ) – p r olifer a n d o e “d a r win iza n d o-s e” em u m r io d e
cu lt u r a . Pod e h a ver a gor a u m a b om b a d e memes exp lod in d o, em p a r a lelo com a b om b a d e gen es
qu e es t a b eleceu a n t er ior m en te a s con d ições cér eb r ocu lt u r a is qu e t or n a r a m s u a exp los ã o p os s ível.
Ma s is t o, d e n ovo, é u m a s s u n t o m u it o va s t o p a r a es t e ca p ít u lo. Devo r et om a r a o t em a p r in cip a l d a
exp los ã o p la n et á r ia e ob s er va r qu e, u m a vez qu e a et a p a d a tecn ologia coop er a t iva ten h a s id o
a lca n ça d a , é b a s t a n t e p r ová vel qu e em a lgu m p on t o a o lon go d o ca m in h o o p od er d e ca u s a r u m
im p a ct o for a d o p la n et a qu e s er ve com o la r s er á con s egu id o. O lim ia r n ú m er o 9 , o lim ia r d o r á d io,
foi u lt r a p a s s a d o, e a gor a é p os s ível a os ob s er va d or es exter n os ver qu e u m s is t em a es tela r fez
explodir recentemente uma bomba de replicação.
O primeiro indício que os observadores externos terão, como vimos, será provavelmente ondas
d e r á d io va za n d o p a r a o m eio exter ior com o s u b p r od u t os d a s com u n ica ções in ter n a s n o p la n et a d e
or igem . Ma is t a r d e, os h er d eir os tecn ológicos d a b om b a d e r ep lica çã o p od em eles m es m os volt a r
s u a a t en çã o d elib er a d a m en te em d ir eçã o à s es t r ela s . Nos s os p r óp r ios p a s s os va cila n tes n es ta

82
direção têm incluído o envio de mensagens ao espaço especificamente talhadas para a inteligência
alienígena. Como se podem talhar mensagens para inteligências de cujas naturezas não temos
idéia? Obviamente é difícil, e é bem possível que nossos esforços tenham sido mal concebidos.
Mu it a a t en çã o t em s id o con ced id a a con ven cer os ob s er va d or es a lien ígen a s d e qu e n ós
exis t im os , em vez d e en via r -lh es m en s a gen s com con teú d o s u b s t a n cia l. E s t a t a r efa é a m es m a com
qu e d ep a r ou o m eu h ip otét ico p r ofes s or Cr ick s on n o ca p ít u lo 1 . E le t r a d u ziu os n ú m er os p r im os
p a r a o cód igo d e ADN, e u m a p olít ica s im ila r u s a n d o s in a is d e r á d io s er ia u m m od o s en s a t o d e
a s s in a la r n os s a p r es en ça a os ou t r os m u n d os . A m ú s ica p od e s er u m a p r op a ga n d a m elh or p a r a a
n os s a es p écie, e, m es m o qu e a a u d iên cia n ã o t en h a ou vid os , ela p od er ia a p r eciá -la d e s eu p r óp r io
jeit o. O fa m os o cien t is t a e es cr it or Lewis Th om a s s u ger iu qu e t r a n s m it ís s em os Ba ch , t u d o d e Ba ch
e m a is n en h u m ou t r o t ip o d e m ú s ica , em b or a ele tem es s e qu e is t o p u d es s e p a r ecer u m a
fa n fa r r on a d a . Ma s , da m es m a for m a , a m ú s ica p od e s er con fu n d id a , p or uma m en te
suficientemente alienígena, com as emanações rítmicas de um pulsar. Pulsares são tipos de estrelas
qu e em item p u ls os r ít m icos d e on d a s d e r á d io com in t er va los d e u n s p ou cos s egu n d os ou m en os .
Quando eles for a m d es cob er t os p ela p r im eir a vez, p or u m gr u p o d e r a d ioa s t r ôn om os d e Ca m b r id ge
em 1 9 6 7 , h ou ve u m a excit a çã o m om en t â n ea en qu a n t o a s p es s oa s s e p er gu n t a va m s e os s in a is
p od er ia m s er m en s a gen s vin d a s d o es p a ço. Ma s em b r eve s e p er ceb eu qu e u m a exp lica çã o m a is
econ ôm ica er a qu e u m a p equ en a es t r ela es t a va gir a n d o ext r em a m en te r á p id o e va r r en d o o es p a ço
em t or n o d e s i com u m feixe d e on d a s d e r á d io com o u m fa r ol d e n a vega çã o. At é o m om en t o,
nenhuma comunicação autêntica vinda de fora de nosso planeta foi recebida.
Dep ois d a s on d a s d e r á d io, o ú n ico p a s s o a d icion a l qu e con s egu im os im a gin a r n o p r ogr es s o
r u m o a o exter ior d e n os s a p r óp r ia exp los ã o é a via gem es p a cia l p r op r ia m en te d it a : o lim ia r n ú m er o
10, o limiar da viagem espacial. Os escritores de ficção científica têm sonhado com a proliferação de
colôn ia s h u m a n a s , ou s u a s cr ia ções r ob ót ica s . E s t a s colôn ia s filh a s p od er ia m s er con s id er a d a s
com o s em en tes , ou in fes ta ções , d e n ovos b ols ões d e in for m a çã o a u t o-replicante – b ols ões qu e
p od em s u b s eqü en tem en te eles m es m os exp a n d ir -s e d e n ovo exp los iva m en te p a r a o ext er ior , com
bombas de replicação satélites, transmitindo genes e memes. Se esta visão algum dia concretizar-se,
t a lvez n ã o s eja d em a s ia d o ir r ever en te im a gin a r a lgu m Ch r is t op h er Ma r lowe a p ela n d o p a r a a s
imagens do rio digital: “Veja, veja, onde o rio da vida corre no firmamento!”
At é a gor a m a l d em os o p r im eir o p a s s o em d ir eçã o a o exter ior . E s t ivem os n a Lu a , m a s p or
m a is m a gn ífica qu e es t a r ea liza çã o s eja , a Lu a , em b or a n ã o s eja u m a ca b a ça , é t ã o loca l qu e do
p on t o d e vis ta d os a lien ígen a s com os qu a is fin a lm en t e p od er em os com u n ica r -n os , m a l con t a com o
via gem . E n via m os u m a m a n ch eia d e cá p s u la s n ã o t r ip u la d a s p a r a a s p r ofu n d eza s d o es p a ço, em
t r a jet ór ia s qu e n ã o têm u m fim vis u a lizá vel. Com o r es u lt a d o d a in s p ir a çã o d o vis ion á r io a s t r ôn om o
a m er ica n o Ca r l S a ga n , u m a d es t a s cá p s u la s ca r r ega u m a m en s a gem p r ojet a d a p a r a s er d ecifr a d a
p or qu a lqu er in t eligên cia a lien ígen a qu e p or ven t u r a a r eceb a . A m en s a gem é en feit a d a com u m a
gravação em metal da espécie que a enviou, um homem e uma mulher nus.
Is t o p a r ece fa zer com qu e com p letem os o cír cu lo, volt a n d o a os m it os a n ces t r a is com os qu a is
com eça m os . Ma s es te ca s a l n ã o é Ad ã o e E va , e a m en s a gem gr a va d a s ob a s s u a s for m a s gr a cios a s
é u m tes t a m en t o m a is va lios o p a r a a n os s a exp los ã o d e vid a d o qu e qu a lqu er cois a n o Gên es e. No
qu e é p r ojeta d a p a r a s er u m a lin gu a gem icon ogr á fica u n iver s a lm en te com p r een s ível, a p la ca
r egis t r a s eu p r óp r io Gên es e n o t er ceir o p la n et a d e u m a es t r ela d a ga lá xia cu ja s coor d en a d a s es t ã o
precisamente r egis t r a d a s . Nos s a s cr ed en cia is são a in d a m a is es t a b elecid a s p or a lgu m a s

83
representações iconográficas de princípios fundamentais da química e da matemática. Se a cápsula
algum dia for recolhida por seres inteligentes, eles creditarão a civilização que a produziu com algo
mais do que superstições tribais primitivas. Através do abismo espacial, eles saberão que há muito
tempo existiu uma outra explosão de vida que culminou em uma civilização com a qual teria valido
a pena conversar.
Ai de nós, as chances desta cápsula passar ao alcance a uma distância de um parsec de uma
ou t r a b om b a d e r ep lica çã o é d es a n im a d or a m en te p equ en a . Algu n s com en t a r is t a s vêem s eu va lor
com o in s p ir a d or a p a r a a p op u la çã o a qu i d e ca s a . A gr a vu r a em m et a l d e u m h om em e u m a m u lh er
nus, com as mãos erguidas em um gesto de paz, deliberadamente enviada para uma viagem exterior
eter n a en t r e a s es t r ela s , o p r im eir o fr u t o en via d o d o con h ecim en t o d e n os s a exp los ã o d e vid a –
cer t a m en te a con t em p la çã o d is t o p od e t er a lgu n s efeit os b en éficos s ob r e a s n os s a s n or m a lm en t e
p equ en a s con s ciên cia s p a r oqu ia is ; a lgu m eco d o im p a ct o p oét ico d a es t á t u a d e Newt on n o Trin ity
College, Cambridge, sobre a consciência reconhecidamente gigantesca de William Wordsworth:
And from my pillow, looking forth by light
Of moon or f avou rin g s ta rs , I cou ld b e h old
Th e a n te ch a p el w h e re th e s ta tu e s tood
Of Ne w ton w ith h is p ris m a n d s ilen t.f ace,
The marble index of a mind for ever
Voyaging through strange seas of Thought, alone*.

E do meu travesseiro, olhando à frente sob


a luz da lua ou d a s e s trela s a u s p icios a s p od ia m ira r
a a n te ca p ela on d e es ta v a a e s tá tu a
De Newton com seu prisma e o rosto silencioso
O marco em mármore de uma mente para sempre
Via ja n d o p elos es tra n h os m a re s d o Pe n s a m e n to, s oz in h a .

84
NOTAS

1 Estritamente falando, há exceções. Alguns animais, como os anfíbios, reproduzem-se sem sexo. Técnicas como
a in s em in a çã o a r t ificia l t or n a m p os s ível a os h u m a n os m od er n os t er cr ia n ça s s em cop u la r , e m es m o – já qu e
os óvu los p a r a a fer t iliza çã o in v itro p od er ia m s er ob t id os d e u m fet o fem in in o – s em a t in gir a id a d e a d u lt a .
Mas para a maior parte de meus propósitos a força de meu argumento não é diminuída.
2 ADN é ácido desoxinibonucléico, constituinte básico dos genes. (N. do T.)
3 Symphalangus syndactüus, espécie de antropóide encontrado na Malásia. (N. do T.)
4 Os leit or es d ever ia m m a n ter es tes p on t os em m en te qu a n d o con s u lt a r em Vid a m a r a vilh os a , o b elo r ela t o d e
Stephen J. Gould da fauna Cambriana de Burgess Shale.
5 o leit or a ten to p od er á p er gu n t a r -s e o qu e ca u s a r á es t a s d es igu a ld a d es in icia is d e con cen t r a çã o n a s u p er fície
d o óvu lo. Por es t a s e ou t r a s r a zões , o p r in cíp io d o cor d ã o d os s a p a t os , r efer ên cia a o fa t o d e u m a p es s oa
p od er h ip ot et ica m en te eleva r -s e p u xa n d o os cor d ões d os p r óp r ios s a p a t os , é d is cu t ível t a n t o d o p on t o d e
vista científico como do ponto de vista filosófico. (N. do T.)
6 Cu lt o n a t ivo r eligios o d e ca r á ter m ilen a r is ta d a s ilh a s d o s u d oes te d o Pa cífico qu e s u s t en t a qu e a o fin a l d o
m ilên io os es p ír it os d os m or t os r et om a r ã o com gr a n d es ca r r ega m en t os d e p r es en tes p a r a os s eu s a d ep t os .
(N. do T.)
7 E s t a n ã o foi a p r im eir a vez qu e u t ilizei es te a r gu m en t o a r r a s a d or , e d evo ch a m a r a a t en çã o p a r a qu e ele d eve
s er es t r it a m en te u t iliza d o con t r a p es s oa s qu e p en s a m com o o m eu colega d a ca b a ça . Há ou t r os qu e,
con fu s a m en te, t a m b ém ch a m a m a s i p r óp r ios d e r ela t ivis t a s cu lt u r a is , em b or a s eu s p on t os d e vis t a s eja m
com p let a m en te d ifer en tes e p er feit a m en te s en s a t os . Pa r a es tes , o r ela t ivis m o cu lt u r a l s ign ifica a p en a s qu e
você n ã o p od e en ten d er u m a cu lt u r a s e você ten t a r in ter p r et a r s u a s cr en ça s em ter m os d e s u a p r óp r ia
cu lt u r a . Você d eve ver ca d a u m a d a s cr en ça s d e u m a cu lt u r a n o con t ext o d a s ou t r a s cr en ça s d es t a cu lt u r a .
Ten h o s u s p eit a s d e qu e es t a for m a s en s a t a d e r ela t ivis m o cu lt u r a l é a or igin a l, e a qu ela qu e cr it iqu ei com o
radica l, em b or a a la r m a n t em en te com u m , u m a for m a p er ver s a d a or igin a l. Os r ela t ivis t a s s en s a t os d ever ia m
trabalhar mais duramente para distanciar-se dos relativistas do tipo tolo.
8 The Spectator (Londres), 6 de agosto de 1994.
9 A ver s ã o d a Bíb lia d e J er u s a lém é: Vê o in ver n o: já p a s s ou ! Olh a a ch u va : já s e foi! As flor es flor es cem n a
terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo. (N. do T.)
10 Este é o título do livro de Darwin sobre o tema. Veja a bibliografia ao final deste livro. (N. do T.)
11 Larus argentatus, tipo de gaivota comum no hemisfério Norte. (N. do T.)
1 2 E s p er o qu e is t o n ã o ofen d a . E m a p oio a o m eu a r gu m en to cit o a p a s s a gem s egu in te ext r a íd a d e S cien ce a n d
Ch r is t ia n Beliej, es cr it a p or u m fís ico em in en te, o r ever en d o J oh n Polk in gh om e (1 9 9 4 , p á g. 1 6 ): “Algu ém
com o Rich a r d Da wk in s p od e a p r es en t a r im a gen s p er s u a s iva s d e com o a p en eir a çã o e o a cú m u lo d e
p equ en a s d ifer en ça s p od em p r od u zir d es en volvim en t os d e gr a n d e es ca la , m a s , in s t in t iva m en te, u m cien t is t a
fís ico gos t a r ia d e ver u m a es tim a t iva , n ã o im p or t a qu ã o gr os s eir a p os s a s er , d o n ú m er o d e et a p a s qu e n os
leva r ia d e u m a célu la ligeir a m en te fot os s en s it iva p a r a o olh o com p let a m en te for m a d o d e u m in s et o, e d o
número aproximado de gerações exigidas para que as mutações necessárias possam ocorrer.”
13 Qualquer uma das vespas da família Sphecidae que nidificam no solo ou na madeira. (N. do T.)
1 4 Ar gu m en t o b a s ea d o n o p r es s u p os t o d e qu e h á u m p r op ós it o d e or igem d ivin a s u b ja cen te a os p r oces s os d a
natureza. (N. do T.)
15 Grande recife de coral paralelo à costa da província de Queensland, no nordeste da Austrália. (N. do T.)

85
BIBLIOGRAFIA

Com p ou ca s exceções lim ite i es ta lis ta a livros p ron ta m e n te a ces s íve is e n ã o in clu í tra b a lh os
técnicos que somente podem ser encontrados nas bibliotecas das universidades.

Bodmer, Walter, e Robin McKie – The Book of Man


(Nova York: Scribners, 1995)
Bonner, John Tyler – Life Cycles: Reflections of an Evolutionary Biologist
(Princeton: Princeton University Press, 1993)
Cain, Arthur J. – Animal Species and Their Evolution
(Nova York: Harper Torchbooks, 1960)
Caims-Smith, A. Graharn – Seven Clues to the Origin of Life
(Cambridge: Cambridge University Press, 1985)
Cherfas, Jeremy, e John Gribbin – The Redundant Male: Is Sex Irrelevant in the Modern World?
(Nova York: Pantheon, 1984)
Clarke, Arthur C., Profiles of the Future: An Inquiry into the
Limits of the Possible (Nova York: Rinehart & Winston, 1984)
Crick, Francis – What Mad Pursuit: A Personal View of Scientific Discovery
(Nova York: Basic Books, 1988)
Cronin, Helena – The Ant and the Peacock: Altruism and Sexual Selection from Darwin to Today
(Nova York: Cambridge University Press, 1991)
Darwin, Charles – The Origin of Species
(Nova York: Penguin,1985)
[Ed. brasileira A origem das espécies, Editora ltatiaia Ltda., Belo Horizonte.]
_______The Various Contrivances by Which Orchids Are Fertilized by Insects
(Londres: John Murray, 1882)
Dawkins, Richard – The Extended Phenotype
(Nova York: Oxford University Press, 1989)
_______The Blind Watchmaker
(Nova York: W.W. Norton, 1986)
[Ed. portuguesa O relojoeiro cego, Edições 70, Lisboa, 1986.]
_______Th e S elfis h Gen e, n ew e d ition
(Nova York: Oxford University Press, 1989)
[Ed. portuguesa O gene egoísta, Gradiva, Lisboa.]
Dennett, Daniel C. – Darwin ’s Da n gerou s Id e a
(Nova York: Simon & Schuster, 1995)
Drexler, K Eric – Engines of Creation
(Garden City, N.Y.: Anchor Press/Doubleday, 1986)
Durant, John R. – Human Origins
(Oxford: Oxford University Press, 1989)
Fabre, Jean-Henri – Insects
(Nova York: Scribners, 1979)

86
Fisher, Ronald A. – The Genetical Theory of Natural Selection
(Nova York: Dover, 1958)
Frisch, Karl von – Th e Da n ce La n gu a ge a n d Orien ta tion of B ees
(Cambridge: Harvard University Press, 1967)
Gould, James L., e Carol G. Gould – The Honey Bee
(Nova York: Scientific American Library, 1988)
Gould, Stephen J. – Wonderful Life: The Burgess Shale and the Nature of History
(Nova York: W.W. Norton, 1989)
[Ed. brasileira Vida maravilhosa, Companhia das Letras, São Paulo, 1990.]
Gribbin, John, e Jeremy Cherfas – The Monkey Puzzle: Reshaping the Evolutionary Tree
(Nova York: Pantheon, 1982)
Hein, Piet, com Jens Arup – Grooks
(Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969)
Hippel, Arndt von – Human Evolutionary Biology
(Anchorage: Stone Age Press, 1994)
Humphrey, Nicholas K. – Consciousnes Regained
(Oxford: Oxford University Press, 1983)
Jones, Steve, eds. – Th e Ca m b rid ge En cy clop ed ia of Hu m a n Evolu tion
(Nova York: Cambridge UniverSity Press, 1992)
Kingdon, Jonathan – Self-m a d e Ma n : Hu m a n Evolu tion from Ed en to Ex tinction?
(Nova York: Wiley, 1993)
Macdonald, Ken C., e Bruce P. Luyendyk – “The Crest of the East Pacific Rise”
(Scientific American, maio 1981, pp. 100-116.)
Manning, Aubrey, e Marian S. Dawkins – An Introduction to Animal Behaviour
(Nova York: Cambridge University Press, 1992)
Margulis, Lynn, e Dorion Sagan – Microcosmos: Four Billion Years of Microbial Evolution
(Nova York: Simon & Schuster, 1986)
Maynard Smith, John – The Theory of Evolution
(Cambridge: Cambridge University Press, 1993)
Meeuse, Bastiaan, e Sean Morris – The Sex Life of Plants
(Londres: Faber & Faber, 1984)
Monod, Jacques – Ch a n ce a n d Neces s ity
(Nova York: Knopf, 1971)
Nesse, Randolph, e George C. Williams – Why We Get Sick: The New Theory of Darwinian Medicine
(Nova York: Random House, 1995)
Nilsson, Daniel E. – “A Pessimistic Estimate of the Time Required for an Eye to Evolve”
(Proceedings of Royal Society of London, B 1994)
Owen, Denis – Camouflage and Mimicry
(Chicago: University of Chicago Press, 1982)
Pinker, Steven – The Language Instinct
(Nova York: Moitow, 1994)
Ridley, Mark – Evolution
(Boston: Blackwell Scientific, 1993)
Ridley, Matt. – The Red Queen: Sex and the Evolution of Human Nature
(Nova York: Macmillan, 1994).

87
Sagan, Carl – Cosmos
(Nova York: Random House, 1980)
[Ed. brasileira Cosmos, Livraria Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro.]
Sagan, Carl, e Ann Druyan – Shadows of Forgotten Ancestors
(Nova York: Random House, 1992)
Tinbergen, Niko – The Herring Gull’s World
(Nova York: Harper & Row, 1960)
_______Curious Naturalists
(Londres: Penguin, 1974)
Trivers, Robert – Social Evolution
(Menlo Park, Calif.: Benjamin Cummings, 1985)
Watson, James D. – The Double Helix: A Personal Account of the Discovery of the Structure of DNA
(Nova York: Atheneum, 1968)
[Ed. portuguesa A dupla hélice, Lisboa, Gradiva.]
Weiner, Jonathan – The Beak of the Finch: A Story of Evolution in Our Time
(Nova York: Knopf, 1994)
[O bico do tentilhão: Urna história da evolução no nosso. tempo, Rocco, Rio de Janeiro, 1995.]
Wickler, Wolfgang – Mimicry in Plants and Animals
(Nova York: McGraw-Hill, 1968)
Williams, George C. – Natural Selection: Domains, Levels, and Challenges
(Nova York: Oxford University Press, 1992)
Wilson, Edward O. – The Diversity of Life
(Cambridge: Harvard University Press, 1992)
Wolpert, Lewis – The Triumph of the Embryo
(Nova York: Oxford University Press, 1992)

88
This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com.
The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.
This page will not be added after purchasing Win2PDF.

Você também pode gostar