Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O tema desta exposição não teria em si nada de especial, desde que se admita
a existência de uma área de estudo denominada Didática, que tenha como objeto de
estudo o ensino. Qualquer manual dessa disciplina, antigo ou recente, traz um capitulo
sobre a relação da didática com as outras ciências da educação. Tanto quanto o
fenômeno educativo, o ato didático tem uma pluridimensionalidade, de modo que a
Didática não caminha isoladamente no campo dos conhecimentos científicos e não dá
conta de resolver seus problemas sem a contribuição de outras ciências da educação.
Além disso, a interdisciplinaridade tornou-se hoje um princípio inquestionave1 na
organização do conhecimento e não há razão para que a Didática o desconheça.
A questão, entretanto, não é tão simples. O que parece óbvio de um
determinado ponto de vista pode ser descabido visto sob outro prisma. Quem lida mais
diretamente com ensino e pesquisa na Didática vê com naturalidade as contribuições
da Psicologia da Sociologia, da Linguística, da Teoria do Conhecimento, da Teoria da
Educação do Currículo etc. Fica fácil reconhecer essas contribuições porque elas são
avaliadas a partir de um enfoque pedagógico-didático das situações do ensino. Mas a
situação muda quando o didático é visto pelo olhar do psicólogo, do sociólogo, do
linguista, do filósofo. do professor de Prática de Ensino. A tendência. nesses casos, é
a de encarar as questões de ensino na perspectiva da área de conhecimento dessas
especialidades tal como tem acontecido, também, quando se discute a educação
como objeto de estudo. Com isso, não é muito fora do comum que uma ou outra
dessas áreas desqualifique a relevância da Didática ou até postule ocupar seu lugar.
Já tive oportunidade de tratar desse assunto em publicação recente (Libâneo, 1992).
Nesse artigo, discuto os entendimentos do termo educação nas várias áreas de
conhecimento que se ocupam direta ou indiretamente do fenômeno educativo e
escrevo a esse respeito:
É inevitável que ocorram entendimentos parcializados devido ao viés das
várias áreas do conhecimento que se ocupam do fenômeno educativo, das
diversas instituições que lidam com questões educacionais ou das
experiências vividas na prática. Não é de estranhar que sociólogos,
psicólogas, administradores escolares, professores, costumem abordar
questões da educação apenas sob o prisma de sua formação acadêmica ou
de suas experiências em instituições especificas. Os problemas surgem
quando estes especialistas pretendem generalizar conclusões de estudos ou
suas opiniões para todas as instâncias da prática educativa.
() Texto publicado nos Anais do VII ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Goiânia, 1994,
pp.65-78. (Atualizado no material_ Didática: Velhos e novos temas: LIBÂNEO José Carlos. Maio,2002).
O tema, portanto põe questões delicadas precisamente porque o ensino é um
campo de interesse comum a vários campos do conhecimento. Não há como
desconhecer a pluridimensionalidade do fenômeno ensino. Mas nós, da Didática
dizemos: é precisamente em razão dessas pluridimensionalidades que se torna
necessário postular o enfoque propriamente didático dos fenômenos educativos para,
partindo dai, buscar a contribuição de outros campos científicos. Caso contrário, os
enfoques parciais levariam a apreender um aspecto da totalidade do fenômeno ensino,
configurando reducionismos. Mas essa afirmação, com certeza, soará estranha aos
ouvidos dos especialistas de outras áreas que dirão, por sua vez, que nós é que
reivindicamos exclusividade no tratamento das questões de ensino. E não têm faltado
posições contrárias e mesmo desqualificadoras da Didática como teoria geral do
ensino. Chega a incomodar a insistência com que alguns filósofos, sociólogos e
psicólogos da educação provocam os pedagogos, perguntando para que serve a
Pedagogia ou a Didática ou qual a especificidade dessas disciplinas.
Como lidar com essas questões? Haverá soluções para esses impasses no
diálogo entre as ciências da educação? Mais especificamente, é legitimo postular uma
especificidade científica à Didática sem perder de vista a necessária integração e
interação de conhecimentos? Será possível uma convergência dos especialistas das
varias ciências da educação — sociólogos, psicólogos linguistas e outros - em torno
de problemáticas especificas do ensino, da docência, da sala de aula sem disputar
exclusividade? Qual é a relevância e a utilidade da Didática na formação de
professores? Em que a Didática se distingue da Psicologia da Educação, das
Metodologias de Ensino, das Práticas de Ensino e, ao mesmo tempo, como pode
ocorrer uma integração entre essas e outras áreas de conhecimento?
Estas são as questões que pretendo tratar em seguida, problematizando o
tema da exposição.
Qual é o campo do didático, qual é o objeto de estudo e o conteúdo próprio da
Didática? As respostas a esta pergunta têm sido dadas em varias publicações, sendo
um assunto bastante trabalhado na produção científica da área, Vou apenas fazer uma
síntese da minha posição, para tentar em seguida buscar as áreas fronteiriças entre a
Didática e outros campos de conhecimento.
Começo trazendo algumas definições de Didática colhidas em publicações de
autores estrangeiros nas últimas décadas.
Vicente Benedito, espanhol (1987):
A didática é — está a caminho de ser - uma ciência e tecnologia que
se constrói a partir da teoria e da prática, em ambientes organizados
de relação e comunicação intencional, nos quais se desenvolvem
processos de ensino e aprendizagem para a formação do aluno.
Contreras Domingo, espanhol (990):
A Didática é a disciplina que explica os processos de ensino-aprendizagem
para propor sua realização consequente com as finalidades educativas.
1. Está difundida ainda uma visão de senso comum de que a Didática é a parte
prática do ensino. Assim como há uma ideia de que o campo do pedagógico é o
campo do metodológico, também há a ideia de que o campo do didático é o dos
métodos e técnicas de ensino. Aliás, gente de cabeça boa monta sua
argumentação anti-didática em cima do pressuposto, insustentável hoje, de que o
objeto da Didática seria os métodos de ensino. Obviamente a Didática tem muito
de métodos e técnicas, mas é um erro reduzi-la a uma teoria dos métodos de
ensino. Os que ainda insistem nessa tecla desconhecem o campo teórico da
Didática.
2. Outra ideia muito comum, mas de melhor nível, é que uma Didática chamada geral
seria dispensável. Todo o conteúdo a ser incluído na didática de uma disciplina
caberia numa disciplina chamada Prática de Ensino. Ou seja. para você ensinar
Matemática, História, Geografia, basta dominar o conteúdo e a metodologia
dessas matérias, acrescentando aí um pouco de psicologia da aprendizagem.
Acho que esta posição tem o viés, até compreensível, da especialidade do
professor de Prática de Ensino. Mas acho sumamente relevante que o
desenvolvimento dos conteúdos e métodos de investigação, bem como a
epistemologia das disciplinas, tenham penetrado o campo do ensino, gerando uma
rica diferenciação interna no campo da Pedagogia. Todavia, acho problemática a
separação entre a Metodologia/Prática de Ensino das disciplinas e a teoria geral
do ensino, especialmente por causa da desatenção ao fundamento pedagógico-
didático do ensino das disciplinas específicas.
3. Um terceiro grupo põe a Didática em cheque com base numa discussão de cunho
epistemológico. Aqui há duas tendências. Numa estão intelectuais que questionam
a especificidade epistemológica da Didática, mas que estão distanciados do
interesse pela prática docente cotidiana, como é o caso de um segmento de
sociólogos e filósofos da educação que não tem domínio sobre o campo específico
de investigação da Didática. Noutra tendência estão pesquisadores ligados às
questões práticas do ensino, mas que negam à Didática estatuto científico próprio
e atribuem à sua área de especialização certa supremacia no tratamento das
questões do ensino. Esta tendência é ocupada basicamente por um segmento de
especialistas da Psicologia e da Linguística e, mais raramente, da Sociologia da
Educação.
4. Finalmente, há o grupo que reconhece a especificidade teórica da Didática sem
desconhecer seu caráter multi e interdisciplinar. Há nesse grupo uma variedade de
formulações em torno do que seria seu campo próprio de investigação. Alguns
autores vêm tratando desse assunto, especialmente Oliveira (1992).
Quais seriam os equívocos desses posicionamentos, obviamente do ponto de
vista de um especialista em Didática?
Nada tenho a dizer sobre as afirmações de senso comum sobre a Didática -
métodos e técnicas de transmissão da matéria - embora seja uma ideia muito
difundida entre professores de todos os graus de ensino. Muitos críticos da área da
filosofia, sociologia cometem a falha de olhar a didática com um olhar de senso
comum.
Em relação às outras posições, convém começar por dizer que estamos
assistindo no campo da educação a duas tendências paradoxais. De um lado, a
diferenciação das ciências humanas tem trazido maior especialização nos campos de
conhecimento, corno é o caso da Psicologia, Sociologia, Linguística. Teoria do
Conhecimento. Teoria da Comunicação, todas com forte influência na educação. Por
outro lado tem crescido o movimento pela interdisciplinaridade, buscando a superação
da especialização excessiva. A impressão. no entanto, é que essas áreas do
conhecimento, com notáveis exceções, mantém uma disputa pela hegemonia no
campo do ensino. Desconhecendo ou negando o campo teórico da Didática, tendem a
urna postura exclusivista como se seu campo de conhecimento, incluindo seu próprio
sistema conceitual e metodologia de investigação, fosse capaz de resolver todos os
problemas didáticos. Esse posicionamento abre espaço a toda sorte de
reducionismos. Por exemplo, a teoria psicológica do construtivismo substituiria
qualquer didática, as teorias psicolinguísticas teriam o suporte necessário para orientar
práticas de ensino, a Sociologia do currículo cobriria qualquer busca de especificidade
do didático. E claro que não se está postulando o exclusivismo da Didática para lidar
com os problemas do ensino, nem de retirar sua dimensão pluridisciplinar e nem de
minimizar a importância da problemática epistemológica que a envolve. O problema
está em pulverizar o ensino como objeto de estudo aglutinador das investigações de
cunho psicológico, linguístico, sociológico etc.
Vou considerar algumas dificuldades na busca de um diálogo interdisciplinar
entre a Didática e outros campos científicos.
1.Há um segmento de sociólogos da educação que não tem se acertado com a
Didática. Uma característica forte desse segmento tem sido a de influenciar o
professorado a optar pelo primado da análise sociopolítica da escola e da sala de aula,
minimizando os aspectos didáticos e metodológicos. Dizem que as questões da escola
não são técnicas, mas políticas. Trata-se, obviamente, de uma tendência à
sociologização do pensamento pedagógico, em muitos casos responsável por boa
parte dos slogans usados pelo professorado. Atualmente alguns intelectuais
continuam a fustigar a Pedagogia, a Didática, o trabalho cotidiano das escolas, por
conta ora de uma propalada insuficiência epistemológica dessas áreas ora de serem
disciplinas e práticas retrógradas frente à pós-modernidade. Adeptos do discurso pós-
moderno criticam os pedagogos porque o que estes investigam e o que fazem nas
escolas não resistem às exigências da pós-modernidade. Eis que encontramo-nos
frente a outro discurso imobilizante do trabalho escolar, como foi o discurso
reprodutivista. Não é que não se deva dar importância ao pensamento pós-moderno
para uma pedagogia critica, ou às análises macroestruturais da Sociologia da
Educação. O problema é que mais uma vez essas análises jogam a atividade docente
ao descrédito por conta de menosprezar o discurso pedagógico; de dizer que a escola
convencional está superada, que o professorado é incapaz de se inserir na
contemporaneidade. que o dar aula” é coisa retrógrada diante da mídia eletrônica etc.
Esse segmento de intelectuais, ao desqualificar o trabalho docente na escola,
contribuem para acentuar o desprestígio social da profissão de professor e. mi fim, a
desqualificação acadêmica de tudo que diga respeito á pedagogia e à didática. Com
isso. travam uma estranha associação com setores políticos e econômicos da
sociedade que inviabilizam uma escola pública de qualidade para o povo.
Outra questão preocupante para a educação diz respeito a uma exacerbação do
relativismo ético e do ceticismo pedagógico no pensamento pós-modernista.
Obviamente o pensamento pós-moderno é anti-pedagogia, ao menos dentro do
sentido de pedagogia que já explicitei aqui. Mas nós, pedagogos, temos um
compromisso com a prática muito mais direto que ode outros intelectuais envolvidos
com a temática educacional. Esse compromisso com a prática — com a escola,
alunos, pais - envolve necessariamente intencionalidade, valorações. A recusa da
Pedagogia significa a recusa de opções ético-valorativas, a renúncia á postulação de
objetivos e metas mais específicos para o trabalho em sala de aula. A insistência do
pós-modernismo no relativismo ético, na descrença na ação política. na morte das
utopias, na crítica da razão, no esvaziamento dos ideais etc., traz uma problema
crucial ao educador que é a adoção de um ceticismo pedagógico e o enfraquecimento
de sua responsabilidade moral, o que compromete qualquer sentido educativo da
prática docente.
2. Algumas orientações teóricas da Psicologia da Educação também
atravessam as pretensões de especificidade teórica da Didática. A Psicologia há muito
luta pela hegemonia científica no campo do ensino. Mais recentemente, com a onda
do construtivismo, passou-se a dar peso às teorias do conhecimento para a
compreensão do processo de aprendizagem (que alguns chamam, a meu ver
equivocadamente, de epistemologia). Devo insistir que essas duas áreas de
conhecimento São centrais na análise da problemática do ensino, posso dizer mesmo
que são as mais centrais. A Psicologia tem uma afinidade direta Com a Didática e uma
teoria do conhecimento é a base pata a compreensão cientifica do processo de
ensino. Como escreve Klingberg (1988,p.142):
REFERÊNCIAS