Você está na página 1de 18

'pAULO ABRANTES

IMAGENS DE NATUREZA,
IMAGENS DE CI~NCIA

••
••
,p A P I R US E D I TO R A
4
AS CIÊNCIAS E A REVOLUÇÃO FRANCESA

Tornou-se um lugar-comum afirmar que o desenvolvimento da


ciência é condicionado por fatores culturais, políticos, econômicos etc.,
e qu~ esse dese~volvimento, por sua vez, afeta a dinâmica social e a
cultura de vários modos. No entanto, é difícil passar do plano das teses
genérié'ase compreender como se dão concretamente.as· inter-relações
entre ciência e sociedade em contextos particulares e, com base em tais
. casos, tentar elaborar modelos para à sistema ciência-sociedade.
A análise das· relações ciência-sociedade na França do século
XVIII pode dar uma contribuição deCisiva nessa direção~ Nesse contexto
histórico, talvez tenham emergido alguns dos padrões modernos da
inter-relação ciência-sociedade que tomam o caso paradigmático. Des-
taco os seguintes aspectos: '\

1.' Participação do Estado na promoção da atividade científica.


Em contrapartida, participação da comunidade científica nos
negócios do Estado, tornando sistemática a aplicação do
conhecimento científico na solução de problemas administra-
tivos, econômicos, técnicos, militares etc.
2; Crescenteinstitucionalização dá atividade científica.

109
3. Reconhecimento da importância da educação científica em a colocar aF~ança na liderança científica mundial no início do·século
todos os níveis. XIX. Como foi possível, após tanta instabilidade, essa reconstrução?
4. Apropriação ideológica do conhecimento científico para le- Como se alterou o perfil do pesquisador e a orientação geral da "política
gitimar concepções de .homem e de sociedade. científica"? ' '
" A tentativa de compreender alguns desses fatos contrastantes nos
conduzirá não s6 a uma análise da conjuntura 'política, mas também a
o período correspondente à Revolução Francesa e o que imedia-
uma investigação das imagens de natureza e de ciência que se confron-
tamente se seguiu a ela ilustram uma situação extrema de perda de
taram ao longo do século XVIII, e de como se deu sua apropriação
autonomia da atividade científica com respeito à dinâmica social e às
injunções políticas. ideológica pelos diversos atores políticos.

. O ~esmantelamento das instituições científicas legadas pelo An-


tigo Regime, quando da radicalização jacobina, em particular o A reação contra a ciência acadêmica
fechamento da Académie des Sciences em 1793 e a condenação e a
execução de membros ilustres de suas· fileiras - como o astrônomo Os iluministas franceses identificaram na ciência, especificamen-
Bailly e o químico Lavoisier, entre outros -, foi a conseqüência mais .
.',
,,'
te no ,seu paradigma..,. a física newtoniana -,um aliado não s6 numa luta
dramática do impacto que tiveram as transformações revolucionárias ideológica contra a metafísica, a superstição e o seu canal institucional
sobre a atividade científica. À destruição completa do antigo quadro - a Igreja -, mas também na elaboração de um projeto d~ reestruturação
institucional s~gy'e.-:.se'._~llrante
o Terror de 1793-1794, a mobilização da da sociedade e da cultura em conformidade com a "razão". Os filósofos
"ala esquerda" da comuníaade cieniífic~ pelo Comité de Saiut Publique iluministas acreditavam que o método científico, que se mostrara tão
para o desenvolvimento de tecnologia militar, quando a nova República poderoso no estudo da natureza, poderia ser aplicado ao estudo do
Francesa é ameaçada por invasões e pelo bloqueio internacional. honieni-e à reorganização da sociedade em bases mais justas.
"

. Os aconteciment?s desse período apresentam contrastes que pe-


..
•!'"
Uma das manifestações dessa ideologia foi o envolvimento dos
dem uma explicação. E surpreendente, por exemplo, que o país que cientistas nas polítiéasdo Estado francês, e o papel que o conhecimento
melhor encarnou o espírito do TIuminismo, particularmente no que se ciev.tíficp passou a desempenhar naimplementação dessas políticas já
refere à crença no poder libertário da ciência, tenha sido o mesmo/que no· Antigo Regime., O caso do Ministério, Turgot na França é,nesse
fechou instituições científicas e eliminou nomes expressivos da comu- aspecto, exemplar, evidenciando que, no século XVIII, tornou-se siste-
nidade científica. mático ó envolvimento dos homens de ciência com o poder político.
Como entender o tratamento diferenciado que se concedeu a Devido, em parte, à campanha ideológica dos philosophes e, em
algumas instituições, como o Jardin des Plantes (rebatizado Museu de parte, à repercussão dopr6prio trabalho científico, materializado em
História Natural), mesmo durante os períodos de maior radicalização descobertas surpreendentes ou,em novas invenções, a ciência no século
política? Essa foi a única instituição científica·do Antigo Regime, além XVIII passou a gozar de grande prestígio e popularidade.
do College de France, poupada pelos jacobinos. Darnton descreve de forma particularmente vívida esse maravi-
Não menos surpreendente foi a reorganização 'institucional da lhamento pela ciência na França, dá segunda metade do século XVIII,
ciência, que se inicia com o Diret6rio, no período de 1795 a 1799. A nova nos episódios dos vÔos aerostáticos da década de 1780, possibilitados
República Francesa cria as condições para o espetacular salto que viria pelas descobertas de novos gases:

llO 111
o entusiasmo pelos vÔos aerostáticos imprimiu a importância da ciência
entre os franceses comuns de uma forma que jamais os relatórios de
Lavoisier à Academia de Ciências teriam conseguido. [...] A ciência
havia convertido o homem num deus. A capacidade do cientista de
dominar as forças da natureza inspirou aos franceses uma reverência, Um
entusiasmo quase religioso, que ultrapassava as entidades científicas de
Paris, as fronteiras da alfabetização e, no que se referia a questões
literárias, os limites da prosa. (Darnton 1988, p. 27)

" Os jornais concediw:n amplo espaço às descobertas, sobretudo


àquelas que alimentavam a imaginação popular. O número de cientistas
amadores crescia. A natureza torna-se um grande espetáculo:experiên-
das públicas eram realizadas por divulgadores de grande notoriedade,
como o Abade NoIlet 1
Paradoxalmente, a ciência oficial, representada pelas instituições
científicas do Antigo Regime, particularmente pelajá centenária Acadé-
mie des Sciences, fundada em 1666, passou a ser vista, às vésperas da
Revolução, com crescente desconfiança, ressentimento e até rancor por
diversas camadas· da sociedade.
Numa tentativa de compreender tal situação, deve-se atentar para
o fato de que ~ Academiade Ciências nasceu sob a tutela da monarquia
francesa. Ocóntraste com a Royal Society, que se mantinha com doações
espontâneas dos seus associados, é particularmente significativo.
As ligações íntimas da principal instituição científica francesa com
.o Estado traduziam-se em atribuições específicas, çomo a de julgar projetos
tecnológicos e invenções. A Academia também tinha como atribuição
exercer o controle sobre toda e qualquer publicação na área científica. Esse
tipo de publicação não era considerado um direito, mas um privilégio, uma
concessão administrada, em última instância, pela Coroa.
A Academia também era responsável pela outorga de um certo
número de prêmios, alguns deles visando promover trabalhos de utilida-
de pública (em sintonia com um espírito baconiano que, como veremos,
veio a dominar as relações ciência-sociedade à época). Ao longo do
Figura 8 - Visita de Louis XIV à Academia de Ciências. No fundo, através dajanela direita, vê-se a século XVIII, a Academia se pronunciou sobre políticas de sanitarismo,
construção do Observatório de Paris (1667·1671). Estão ilustrados diversos instrumentos científicos, controle de pragas na pecuária e reforma penitenciária.
como.u~a esfera annilar em primeiro plano, instrumentos de química à direita e vários esqueletos
de ammals. Apud Meadows, 1. Les grands scientifiques. Paris: A. CoBn, 1989, p. 95. .
1. Mais infonnaçõessobre.esse·professorserãofomecidasna seçãoreferenteà educaçãocientífica.

112 113
';.,
o Ministério Turgot tinha: uma diretriz explícita de envolver ai artesãos, inventores, engenheiros e pequenos empresários contra ajuris-
comunidade eientífica nas questões de Estado. Lavoisier, por exemplo, dição que a Academia exe~cia sobre suas atividades. Essa revolta atinge
foi designado por Turgot para administrar a produção de pólvora e sua máxima intensidade durante a Revolução. Associações são criadas,
munições (Régie des Poudres, criada em 1775). após 1789, ,para defender os interesses desses setores, visando à criação
Às vésperas da Revolução, o poder e os privilégios associados ao de uma instância de julgamento independente da Academia, e na qual
envolvimento da Academia com a administração, no Antigo Regime, não tivessem participação. Essa defesa de interesses corporativistas est~ve
foram bem-vistos por diversas categorias e setores da sociedade~ constantemente associada a uma imagem de ciência que desqualificava
O papel da Academia de controlar -toda a publicação científica a ciência teórica e especulativa, estabelecendo a utilidade como o único
fortaleceu-se ao longo do século XVIII. Além disso, devido à inexistên- critério do verdadeiro conhecimento.
cia de uma legislação sobre patentes, a Academia tornou-se a instituição Um trecho extraído do jornal do Point Central des Arts et Métiers,
que decidia, de fato, a respeito da concessão de recursos governamentais associação criada em 1791, é bastante representativo dessa imagem de
a projetos de desenvolvimento industrial, ou do exercício de monopólio ciência:
na produção e comercialização de produtos. Essa atribuição correspondia
à intenção original de Colbert, que esperava da Academia uma contri- As artes. são mais seguras, e seu caráter benéfico é mais certo! O quanto
não estavam, portanto, culpadas essas fonnas abusivas e tirânicas que,
buição para o desenvolvimento da manufatura.
violando a mais santa, a primeira das propriedades, a do pensamento, a
A Academia era extremamente elitizada e hierarquizada (se compa- do gênio inventivo ou aperfeiçoador, submetiam os Privilegiados da
rada, por exemplo, com a Royal Society de Londres). O número de seus natureza, _os Artistas, a essas Leis incÔmodas, a essas duras provas, a
esses censores inquietos e duros; cuja ignorância ou inveja inquisitorial
membros -era --mantido -reduzido (54), de forma a garantir uma elevada
-tinha por finalidade humilhar ou repudiar o verdadeiro talento! O quanto
competitividade no ingresso. A Academia talvez tenha representado o não er~ cruéis e vexat6rias essas pretensões exageradas dos corpos
primeiro esforço de profissionalização da atividade científica, com tudo o ·acadêmicos? O quanto não era revoltante.esse império tirânico e destrui-
que isso comporta, em especial a administração, por uma-elite científica, .l dor da indOstria, que a riqueza concedia a esses vampiros da usura, a
esses déspotas e sanguessugas, sempre prontos a devorar o mel trabalha-
dos pádrões de excelência e de competência. Isso, evidentemente, gerou
do pelas abelhas, aproveitando-se de sua fortuna ou de seu poder, seja
frustrações por parte de inúmeros aspirantes a acadêmicos, desencadeando para se-apropriar das Colméias, seja para reduzir os Artistas a composi-
acusações de elitismo, favoritismo, corporativismo e outras. ~õesaviltaittes e arruinadas" expropriando70s mesmo da honra ligada a
seus trabalhos, usuIl?ando shas invenções ...
É nesse contexto que se deve compreender a f~rmação, após 1789,
de sociedades científicas paralelas, como a Société Linnéenne de Paris,
Em outro trecho lê-se: :'... somente os conhecimentos úteis podem
a Société Philomatique, a Sociétéd'Histoire Naturelle, entre outras, que
absorveram aqueles que foram frustrados em sua aspiração a tomar-se ser chamados de ciências [... t (apud Gillispie 1959, p. ~71).
"acadêmicos". Assim, a Academia perdeu, gradualmente, o controle O ressentimento desses setores em parte se justificava, sobretudo
absoluto sobre a atividade científica e seus produtos. se considerarmos as exigências -descabidas que os. Acadêmicos impu-
nham aos "inventores", como a de se submeter a uma prova de geometria
A revolta dos artesãos (por iniciativa dé Laplace, em 1789).
A -Academia tentou aÇlaptar-se aos novos- tempos passando, em
Para completar o quadro, junte-se à insatisfação -daqueles que 1791, apenas a fazer recomendações aos projetos apresentados, já não
pretendiam ter assento na prestigiosa instituição científica, a revolta dos os aprovando ou rejeitando. Nesse mesmo ano, a Convenção retira da

114 115
Academia as atribuições de julgamento de invenções e de concessão de do decreto e, mesmo após a decisão, ainda acreditav21 que a Academia
brevets e as atribui a um recém-criado Bureau de Consultatíon des Arts seJ;i.a de alguma forma poupada e poderia dar continuidade a seus
et Métiers; no qual metade dos assentos são destinados a representantes trabalhos. Mas eles estavanl isolados no Comitê. Lavoi.sier ainda tentou
das sociedades de artesãos. A outra metade mantém-se ~cupada por garantir arilanutenção das atividades, pela proposta de formação de uma
membros da Academia. Société libre etfratemeUe pour l'avancement des sciences, uma inicia-
Essa reação contra a Academia de ciências era somente um lado tiva que seguramente foi percebida como um estratagema para mant~r
da reação contra todas as academias, e a primeira era associada, injusta- os "privilégios" e os poderes das "elites científicas" (Barthélemy 1988).
mente, às demais, pois os cientistas afinal desempenhavam inúmeras Até mesmo o projeto de criação de um novo sistema métrico, que
funções atribuídas pelo governo, mesmo após 1789, não podendo ser , estava prestes a ser concl1.!-ídoquando da dissolução da Academia, é
acusados de "inúteis". . afetado. Criou-se uma comissão temporária para dar continuidade a ele,
De toda forma, o surgimento, em 1791, do Point Central des Arts já que era considerado prioritário também pelos.revolucionários. Mas
et Métiers,' consolida a tendência ao utilitarismo e reforça os ataques à vários membros dessa comissão - como Borda, Coulomb, Brisson,
Academia. As artes, e não mais as ciências, são colocadas na base de Delambre, Lavoisier e Laplace - foram demitidos por suspeita de coni-
uma nova educação, que se implantou efetivamente no Lycée des Arts. vência com as "forças contra-revolucionárias".
. A tentativa de reorganizara ciência, após o desmantelamento das
Lavoisier, pelo seu imenso prestígio como químico, foi escolhido
por. seu.s. pares para defender a Académie des Sciences . Num texto Instituições do Antigo Regime, orientou-se por princípios utilitaristas,
como demonstra o estatuto da Société d'Inventions et Découvertes:
dirigido aos eciiiveiidoriãis'em 17 dejulho de 1793, ele tenta distingui-Ia
das outras academias, ressaltando sua função social. Em resposta ao o govemp sódeve encor'ajar as ciências em sua relação com as artes, e
utilitarismo reinante, Lavoisier afirma em dado ponto: " ... a.indústria, '.~ sempre que se pretenda solicitar dinheiro ao povo para esse encoraja-
mento, é preciso que se possa perceber facilmente sua utilidade; de outro
que dá movimento a tudo, que vivifica tudo, empresta ela mesma sua
modo. ele poderia ver o produto como visando à satisfação de uma· vã
força de um impulso primeiro, e são as ciências que ofornecem." . curiosidade. (ApudGillispie 1959. nota 82) ,
Lavoisier tentou também dissociara Academia do despotismo do
".'....
. '-~ .
Lavoisier e outros acadêmicósse opuseram a esse utilitarismo
Antigo Regime, mostrando que as ciências já erám"organizadas em ;'if
.~
república" antes mesmo que a sociedade o fizesse; e que o trabalho
"ri-<

estreito, mas suas iniciativas $ó aumentavam as suspeitas de umà mano-


científico não se faz isoladamente, mas exige a colaboração de diversos .bra reacionária da antiga elitf? científica.
indivíduos, com diferentes especialidades. Lavoisier termina seu texto 'Ji
!
..•.

em tom desafiador: "A Convenção Nacional deseja interromper na Marat e o rriesmerismJ radical
República francesa o movimento progressivo das ciências e das artes ?~'
(apud ~hombres e Dhombres 1989, pp. 15-16). Muitodesgastantes p~a a imagem da Academia foram os episó-
Esses esforços foram em vão. Em 8 de agosto de 1793, "todas as dios de julg'amento de charlàtanismo envolvendo as supostas curas de
academias e sociedades literárias subvencionadas pela nação" são dis- Mesmer; com base em sua teoria do "magnetismo animal", e o questio-
solvidas, sem exceção, pela Convenção, com base num relatório namento das teorias e dos experimentos de Marat.
apresentado por Grégoire, em nome do Comitê de Instrução Pública. Em 1784,'foi formadà uma comissão para julgar as pretensões
Grégoire, como LaIcanal, havia tentado excluir a Academia de Ciências científicas do mesmerismo, composta por médicos da Faculdade de

116 117
Medicina e por cinco membros da' Academia de Ciências, incluindo Em contraste com essa irada proposta de "democratização" da
Bailly, Lavoi,sier e Benjamin Franklin(Darnton 1988, p. 63). O resultado "república da ciência", vemos Condorcet - que viria a se suicidardurante
da investigação foi definitivo: o fluido magnético de Mesmer era uma o Terror - defendendo a autoridade baseada na competência. O trecho
ficção e suas supostas curas, resultado da sugestão dos pacientes. que se segue foi retirado d'e um ensaio - escrito provavelmente entre
1784 e 1785, mas não publicado - com o título sugestivo "Razões que
Darnton analisa com riqueza de detalhes as reações indignadas dos me impediram até aqui de crer no magnetismo animal":
adeptos do mesmerismo. O caso Mesmer mobilizou até membros da
nobreza, que solicitaram à Academia uma atitude mais tolerante e .' As únicas .testemunhas em que se deve acreditar a respeito dos fatos
receptiva para com a "prática clínica" com base no magnetismo animal. ,
.~ extraordinários são os que são seus juízes competentes. [Existe], diz-se,
um fluido universal, cujos efeitos se estendem desde os astros mais
A vulgarização da ciência, na década que precedeu a Revolução, acabara· ",.
".
distantes até a Terra. Bem,. s6 posso acreditar nisso com a autoridade dos
por eliminar totalmente "a linha divisória entre ciência e ficção" (ibid., físicos. Esse fluido age sobre o corpo humano. Então exijo que esses
p. 36), favorecendo a aceitação de hipóteses, as mais fantásticas, como físicos unam a filosofia aos seus conhecimentos, porque devo desconfiar
a da existência do "fluido mesmérico". A ficção parecia se mesclar com agora da imaginação e da impostura. Esse fluido cura os doentes sem
a realidade: tocá-Ios ou tocando-os; então preciso que os médicos me atestem a
doença e a cura. Mas o magnetismo animal foi admirado, empregado por
físicos ou médicos. Concordo, mas trata-se de me decidir a crer numa
(...) o público leitor daquela época estava intoxicado com o poder da autoridade; isso é difícil para a razão humana. Assim, não entendo
ciência e desnorteado pelas forças reais e imaginárias com que os' absolutamente por físico ou médico alguém que escreveu livros de físiça
cientistas povoavam o universo. Por não poder distinguir entre o real e ou foi recebido como doutor em alguma faculdade. Entendo alguém que,
o imaginário,-' o -público .aceitava qualquer fluido invisível, qualquer antes que o magnetismo estivesse em questão, gozava na França, e
hipótese com ressonâncias científicas que prometesse explicar as mara- mesmo na Europa, de uma reputação bem estabelecida. Eis o tipo de
vilhas da natureza. (lbid., p. 28) testemuntió que me é necessário para acreditar num fato extraordinário
; de físÍCaou medicina. Mas é necessário ainda que esse testemunho não
. seja contrabalançado por testemunhos contrários, com' igualdade de
Apesar do juízo negativo da Academia e da Faculdade de Medi- mérito e autoridade. Um único homem que, admitido para ver os mesmos
cina, o mesmerismo continuou se expandindo e adquiriu cqntomos fatos, não vê neles o maravilhoso que aí se quer ver, contrabalançará os
que viram. Pois a circunspecção. que não vê, raramente se engana, e o
políticos radicais às vésperas da Revolução. O alvo privilegiado dos
eritusiasmoque quer crer engana-se freqUentemente. (Apud Darnton
discípulos de Mesmer eram os acadêmicos. Um desses mesmeristas
1988,pp.188-189)
radicais, Jacques-Pierre Brissot, publicou um manifesto com o título
"Uma palavra ao pé do ouvido dos acadêmicos de Paris", em que Uma tal defesa do controle que uma elite deve exercer sobre os
denunciava o "despotismo" da Academia. Em um livro publicado em critérios de cieritificidade, de verdade, de objetividade e a autonomia dos
1782, renovou ataques semelhantes: critérios de julgamento científico com respeito à 'iopinião pública" eram
valores denunciados cada vez inais como um privilégio inadmissível; em
o império das ciências não deve conhecer déspotas, aristocratas ou última análise, decorriam do~ privilégios da aristocracia e do clero na
privilegiados com direito a voto. Ele oferece a imagem de uma república
França do Anciim.Régime.
perfeita. Lá, o mérito é o único título para se receberem honras. Admitir
um déspota, ou aristocratas, ou privilegiados com direito a voto s Marat, como Brissot, foi um dos que fustigaráfú. o:; ~c:a.dêm;:cs
violar a natureza das coises, a liberdade do espírito humano; é .'kt<ii·
antes e, com mais intensidadé, depois da queda da Basi'iL;" ;:)e fOl ;(.
contra a opinião pública, qCIi'. é, a única que tem o oireito a coroar ')
é introduzir um despotismo tevoltante. (ApudDamton 1988, p. 83) desses dentistas amadores, tão comuns no século XVIE, aspira v âúl

118 119
. . . .

a um reconhecimento institucionaI .•..o que significava um assento na ' . . Darnfon, aoteferlr,.se à "carreira revolucionária" de Marat, avalia
Academia. Marat submeteu à Academia, a partir .de 1779, um grande ... 'qu~ "~s.·ressenwn~nt()s provocados pela frustração de suas ambições
número de "descobertas sobre ofogo; a eletricidade e aluz", que foram literári~s e.êientíficas. nos anos 1780 forneceram o elemento fundamental
rejeitadas. Um dos relatórios rejeitando suas "descobertas" foi redigido dessa carreira,eproy'avelmentede muitas outras carreiras semelhantes"
por ninguém menos do que Condorcet, secretário da Academia à época. (Darnton 1988,p. 85).
<;ondorcet alega, contra as experiências apresentadas por Marat, que " ... Dhonibrese Dhombres (1989, p. 35) não vêem como uma mera
são em número muito grande [...] e que nós não pudemos verificá-Ias ....coinciq'ênciaaproxirnidade deqatas entre o assassinato de Marat (13 de
todas ...", e usa o argumento de autoridade: " ... elas são contrárias, em
julhôde 1793)/que gerou uma~orte comoçãopopular,eo fechamento
geral, ao que há de mais conhecido eIn óptica" (apud Barthélemy 1988, daAc.adémiede &;iences. j
p. 169). A candidatura de Marat à Academia, apresentada entre 1778 e
·.Osentimentoderevo1ta~()r parte dos artesãos, mes~la~o àfrus-
1780, não foi, tampouco, apreciada. Marat se conSiderava um grande
tração de Ciel1tiStasamadores, c~mo Marate Brissot, const;ltuIU o pano
cientista, tendo traduzido para o francês, a Opticci de Newton, embora
atacasse sua teoria das cores. . de. fundo para as investidis dós jacobinos contra,a Aca~emla;

Em 1791, Marat revida publicando Os charlatães modernos:


Imagens de·nátureza ede ciênciq no século XVIII
Cartas sobre o charlatanismo acadêmico, em que não faz distinção entre
os vários tipos de acadêmicos e descreve os matemáticos como "tipos de • Em contraste com o repúdio à Academia, uma instituição cientí-
autômatos habituados a seguir certas fórmulas e a aplicá-Ias cegamente, fica do Antigo Regime é não s6 poupada como estimulada pelos
como um eaval0de"riJ.óirihó'qúe faz um certo número de voltas antes de revolucionários: o antigo Jardin du Roi, rebatizado Jardin des Plantes
parar" (apud Dhombres e Dhombres 1989, p. 36). É interessante contras- em 1789 ..Doisrileses antes do fechamento da Academia (l0 de junho
tar a defesa que fazia Lavoisier da colaboração entre os cientistas com o 1793), o J4rdi~ des Plantes é reestruturado pela Convenção, pas.sandc:.a
individualismo de sabor rousseauÍsta que pregava Marat nas atividades se chamar Muséum National d'Histoire Naturelle. Doze cadeIras sao
intelectuais: "É patente que todas as descobertas foram feitas por indivÍ· criadas cobrindo os. diversos ramos da história natural, tornando-o um
duos isolados, que todas as obras-primas de arte foram produzidas por importante centro de ensino e de pesquisa. Buffon havia dirigido o Jardin
indivíduos isolados e que os limites do espírito humano só foram recua- du Roi, ao que parece de modo autocrático, até sua morte em 17;88. Com
dos por indivíduos isolados" (ibid.). a Revolução, o corpo de cientistas do museu - que c~mpree~dIa nom~s
como Daubenton, Lamarck, Jussieu, Fourcroy, ThoUlO, Lacepede - VIU
Condorcet, que não esperava desencadear com um relatório de
rotina toda essa bílis, escreveu mais tarde a d' Alembert sobre oepisódio: a oportunidade de controlar a instituição. Tal expectativa foi, no entanto,
frustrada com a nomeação de Bernardin de Saint-Pierre - um discípulo
de Rousseau - para presidir a instituição.
o único erro da Academia foi o de ter, inicialmente, aparentado acolher
as experiências dadas como novas, mas que eram cQnhecidas, e quesó A discrepância no tratamento reservado, de um lado, à A~adem~a
tinham de novo o jargão sistemático com o qual o autor as tinha revestido. :. I e, de outro, ao Jardin des Plantes, sugere que algo de mUlto maIS
As academias têm duas utilidades incontestáveis: a primeira. a de serem fundamental estavaemjogo, além de interesses de indivíduos e de grupos
uma barreira sempre oposta ao charlatanismo de todos os gêneros, e é
ou do envólvimento político da Academia com o poder no Antigo
por isso que tanta gente se queixa; a segunda. a de manter nas ciências
os bons métodos e de impedir que qualquer ramo das ciências seja Regime. Esses episódios evidenciaram um confronto ent:e di:er~ntes
absolutamente abandonado. (Apud Barthélemy 1988, p. 171) imagens de natureza ede ciência, que jáse insinuava em dIvergencIas e

120

.,'

k=r-~ ;p.@ ) Icrr Wv r-\f{ -\y


~~
'n' ••.. cr: \f ffiV "V
~~
9 :>~ 2 e
ct-J; '*~ ~.

v 2
SM )
~

0>

~pgura9 ~ Laborat?ri~ qufnúco e tabela de proporções, Na tabela figuram diversos "caracteres"


resentnndo s~bstanclas eoperações quínúcas, Pranchas da Enc:yclopédie de d' Alembert e D' d t
3, Parma (ItálIa): Franco Maria Ricci, 1970,. 1 ero.
divisões no próprio seio dos porta-vqzes do Iluminismo: os philosophes. Aos olhos de muitos cientistas e filósofos do século XVIII, essa
Isso aponta para a necessidadede'e~piQraro papeldesse imagináriopá filosofia mecânica tão radicalmente adotada pelos cartesianos, fracassara
inserção cultural e política da ciênciamls·sociedadesmodernas. . em dar uma explicação para a vida, em especial· para a geração, o
crescimento e a reprodução dos seres vivos.

A imagem de natureza-organismo O materialismoorganicista do século XVIII constituiu uma res-


posta às dificuldades que uma antologia mecanicista enfrentava ao tentar
explicar essas característica~ dos seres vivos. Vários philo.s0I!hes ateís-
Esquematicamente, púdemoscliZçr que duas irnagens de natureza
tas, como Diderot, apesar de se oporem à concepção cnstade al~a,
se confrontavam no século XViII:'ijma"'natureza-mecartismo" e unia, ' adotaram de f01'O;laparadoxal, segundo Hankins, essa nova ontologla,
"natUreza-organismo". " •. . '. ., '
que possuía evidentes traçosanimistas:
Vimos, no capítulo, 2, qüe .á.iÍnagem de natureza-mecanismo"
[...] A resposta dos materialistas foi a de revi ver o antigo ~neum:z~stóíco
fundamentava-se no conjunto das"'qu~li,4ades primáriás.,elehcadas por e dotar de vida toda a matéria, ou ao menos toda a matérIa orgamca. Os
cientistas e filósofos no sêculoXVII. 'tr'atáva-se deumartaturezaessen.,;. estóicos haviam escolhido a atividade e a mudança, ao invés da ~strutura
cialmente passiva,não,geradora. Para osdeístas, umanatureza que exibe, e da pennanêricia, como o fundamento da na~re~a. [...] Os fil6sofos
materialistas do século XVIllJomaram a maténa atIva, concedendo-lhe
uma ?rdem fundamentalme~te estável dçsde a crIa9ão.. . . as propriedades da vida: Essen~ialmente, eles distribuíram a alma através
da matéria de modo a verem-~ livres dela. (Hankins 1985, p. 127)
Na França da segunda metade do século XVIII, a imagem de
natureza-mecanism:o ..tomou.por paradigma os Principia oe Newton e
estava representada, fundamentalmente, no domínio da então chamada Em Dalnterpretação d4 Natureza (1753), Diderot já argume~~a
physique générale, nas teorias de Lagrange, ~'Alembert e Laplace, pela insuficiência domecanici~mo,e discorre s~bre uma "alma sens~tl-
exemplos de uma física matemática altamente abstrata e "racional" (ver va", q~e':existiria "na menor partícula de maté~a, be~ como no ~alOr
capítulo 5, para detalhes). Lavoisier esfoiçou-seporincluir também a animal" (1961, p.225). Já em O sonho de d Alemb~rt (1769), ... o
mundo toma-se um ser vivo, infinitamente elástico e cheio de força"
química no âmbito desse programa'''riewtoniano'' que privilegiava o
quantitativo em relação ao qualitativo, o controle experimental e a (Diderot 1961, pI'. 299~303). q materialismo recebera reforço de.algu-
:,'
""',
mas descobertàs feitas no século XVII, como a da capaCIdade
articulação racional em relação à especulação metafísica; Essa imagem autb-regeneradota da hidra (porA. Trembley).
de natureza traduziu-se, no plano institucional, numa ciência profissio-
nalizada, hermética aos não-iniciados e distante do senso comum. A explicação que os mecanicistas tinham a oferecer da origem e do
desenvolvimento dos seres vivos - após terem retirado da natureza, ou
Ao lado da concepção de natureza-mecanismo, o século XVIII foi
mesmo da causação secundária, qualquer poder gerador - era o prefonnis-
solo fértil para o desenvolvimento de uma imagem rival, de natureza-or- mo. Málebranche havia levado o preformismo às ,últimas conseqüências:
ganismo, associada a ciências como a química e a história natural. D'eus teria criado as sementes de todos os seres vivos no momento da
Vimos que, para Descartes, não havia diferença essencial entre criação. Formas preexistentes'são exibidas em qualquer desenvolvimento.
coisas vivas e não vivas. São todas elas, basicamente, mecanismos. Em É evidente que O prefonnismo, como uma teoria da reprodução ou da
particular, os corpos dos animais (e do homem) eram considerados como geração, afinava-se com o ~xismo das espécies criadas por Deus?
instâncias da res extensa e, portanto, seu funcionamento era explicável
mecanicamente.
2. o lIIlIterialismo abalou o fixismo (que era compatível com o mecanicismo), criando as condições

124 125
No século XVIII, o preformismo cede lugar à epigênese, que acessível a todos, e não s6 aos especialistas. ~a França, laboratórios.
constitui um real desenvolvimento dó ser vivo- um embrião por exemplo herbários e coleções de borboleta"s são montados nos castelos. Buffon e
- a partir de uma massa homogênea inicial que se diferencia gradual- o Abade N:ollet são os grandes representantes dessa ciência. cujo propó-
mente. Em Systeme de ia Nature, de 1751, Maupertuis aborda a origem sito era o de estabelecer uma comunhão entre o homem e a natureza.
da vida, defendendo uma posição estritamente materialista: a geração
No verbete Chimie da Encyclopédie, Venel opõe uma física "su-
espontânea com base em poderes ~tivos presentes na própria matéria.
perficial" a uma química "profunda" (que visaria a essência·dos corpos).
Diderot é, entre os philosophes, o porta-voz dessa concepção de A uma física abstrata e quantitativa. Venel opõe uma química manipu-
natureza que Gillispie descreve como um "romantismo biológico"; "[...] latória, empírica, que nos colocaria verdadeiramente em contato direto
uma tentativa para construir um relato das operações da natureza em termos com a "vida da natureza". Essa química seria acessível a todos, por usar
das categorias de organismo e consciência, e não em termos de uma matéria. uma linguagem ao mesmo tempo científica e inteligível para o leigo. Ela
impessoal em movimento inanimado" (Gi1lispie 1970, v. 4, p. 88). reintroduz as qualidades secundárias que a física do século XVII havia
Essa imagem de natureza é também tributária dó estoicismo, na extirpado da natureza- por serem "subjetivas" - em nome da "objetivi-
medida em que possibilita ver a Natureza (com "n" maiúsculo!) corno fonte dade" das qualidades primárias, mecânicas e matematizáveis.
de virtude. Segundo essa imagem, a experiência humana integra-se numa Evidentemente, essa química sonhada por Venel não era a química
finalidade universal imanente à natureza: há urna continuidade· entre o de Lavoisier e que se elabora na colaboração dest~ com Laplace (ver capítulo
homem e a natureza, entre a esfera moral e o mundo físico ..Essa concepção :~
.~..
." 5). Era a química de um Rouelle: dos artesãos farmacêuticos, que viam na
veio a tornar-se um traço característico do movimento romântico. 3
••••• - •• ~. ' •••• - •••••••••• __ o .,_.~
nova nomenclatura química, intrpduzida por Lavoisier, uma manobra para
A essa imagem de natureza associou-se, na França do século ../ criar uma".dependência d~s artes~os em relação aos cienti~tas (? líder dos
XVIII, uma imagem de ciência que tomava a química e a hist6ria natural· farmacêuttcos.Machy, fOIo po~-voz dessa versãoconsprrat6na).
corno paradigmas, e não a física newtoniana. Essa imagem de ciência É ih1portante assinalar a p~esença detais temas vários textos de
e.t:D

valorizava os sentidos corno fonte de conhecimento, em lugar da razão Diderot: a mesma desconfiança com respeito à conceituação abstrata e ao
"fria", que abstrai, que uniformiza, que exclui da natureza as qualidades emprego da matemática no estudo da natureza. A matemática é vista como
secundárias, ou seja, tudo o que é percebido pelos sentidos. um obstáculo que se interpõe entre o homem e a natureza, corrompendo sua
sensibilidade. Uma matemática' que é ·"arrogante", "orgulhosa", porque
Já fizemos menção. anteriormente. à popularidade da ciência no
elitista. que afasta o conhecimento científico do homem comum; Sua Da
século XVIII. que fez da natureza palco de um grande espetáculo.
Interpretação da Natureza, publicada no mesmo ano do tomo III da
,
Encyclopédie, já selava as diferenças entre Diderot e d' Alembert, não só
para que se introduzisSe a temporalidade na ordem natural, em autores como Buffon e Lamarck, que
I;Odem ser considerados, nesse aspecto, como precursores da hipótese evolucionista.
quanto às imagens de natureza, mas também quanto às imagens de ciência.
3. E tentador notar as semelhanças entre as funções conceituais do pneUflUl est6ico e as do fluido Diderot denunciou a matematização do programa newtonianono qual
magnético de Mesmer: promover uma simpatia universal, servir de causa única aos diversos
trabalhava d' Alembert: "Estamos quase chegando ao momento de uma
f~nômenos naturais (inclusive abrangendo o homem), fundamentar urna ética; para Bergasse, um
discfpulo de Mesmer, é possfvel descobrir ''urna moral emanada da física geral do mundo" (Damton grande revolução nas ciências. 'Pela tendência que os espíritos me parecem
1988, p. 1(0). Damton percebe ecos entre o mesmerismo e "a ciência vitalista romântica da natureza ter para a moral, para as belas-letras, para a história da natureza e para a
que inspirava os sonhos de Diderot e d' Alembert" (ibid" p. 60; a referência a d'Alembett nesse
contexto me parece, contudo, equivocada). A aproximação com a cosmologia est6ica, para ser
física experimental. eu quase ousaria assegurar que 'antes de cem anos não
fundamentada, exige, contudo, uma extensa pesquisa histórica. Fiz algumas indicaçbes no capítulo se contará três grandes geômetras na Europa. Essa ciência acabará sem mais
3.
ninguém" (Diderot 1989, p. 32).

127
continuamente, novas razões para amá-Ia".4 Esse é o ponto de vista que
Para Diderot, a utilidade era o antídoto contra a "arrogância" da
ciência abstrata. A utilidade era o critério para decidir aquilo que deve Guerlac chama, sugestivamente, de "ecoI6gico".
ser conhecido. Ciência e técnica iluminam-se mutuamente, a primeira O trabalho de Darnton sobre o mesmerismo também tende a
permite uma "racionalização" da segunda, e esta define o âmbito e a reforçar a hip6tese da influência de Rousseau ao demonstrar que a
finalidade da primeira. vertente radical dO mesmerismo veiculou concepções políticas e sociais
de corte rousseauísta: .
A Encyclopédie, pela pluma de Diderot, veicula predominante-
mente essa preocupação com o desenvolvimento das artes: A idéia mística que os mesmeristas faziam da natureza evocava Rous-
seau, principalmente na medida em que freqUentemente comparavam a
A Enciclopédia assimila o conjunto .da ciência às suas aplicações, natureza primitiva à decadência da sociedade moderna ..(Darnton 1988,
tornando-a somente a racionalização da tecnologia e prpcura, na prática, p.102)
ser fiel à injunção de Diderot de colocar o homem no centro, não somente
o homem, mas todo homem. Ela propõe o sonho de uma ciência dos O mesmerismo teria, segundo o mesmo autor, estabelecido uma
cidadãos, que a Revolução traduziu em medidas concretas. (GiIlispie ponte entre a era iluminista da razão e a era do romantismo (ibid., pp.
1959, p. 270) . 137, 141). .
Robespierre, nos seus· discursos aos convencionais, freqüente- .
Para Gillispie, a conjugação· entrê interesses políticos e essas mente mencionava temas rousseauÍstas: .
imagens de natureza e de ciência explicaria a hostilidade dos jacobinos I
à Aca~~mia de Ciências. Imagens que podem ser detectadas nos discur- o homem é bom saindo das mãos da natureza: quem negar o princípio
sos de líderescómoMarat; nos seguintes temas: 1) rejeição da nova não pode sonhar em instituir III homem. Se o homem é corrompido, é '
.portanto aos vícios das institUições sociais que é preciso imputar a .
química e ataques a LavoisieÍ'; 2) entusiasmo pela história natural; 3)
des?rdem.(ApudDhombres e ~hombres 1989, p.30)
ataques à ciência oficial como sendo não-democrática, tirânica, inútil, e
um bastião da aristocracia.
Gillispie(1959) é ambíg~o ao avaliar a influência de Rousseau.
Historiadores como Guerlac (1959), Williams (1959) e Dhombres A tendência de sua análise é a de considerá-Ia não preponderante, apesar
e Dhombres (1989) tendem a enfatizar não a influência eventual das da ligação de diversos naturalistas com Rousseau. Para Gillispie, Rous-
especulações de Diderot, mas, sim, a de Rousseau. Este último teria sido seau teria, no máximo, diminuído li importância da ciência, atacando-a
o primeiro a denunciar o "ídolo da ciência acadêmica" e teria inspirado. ocasionalmente. Mas, na avalilição desse historiador. ele não pretendia
uma série de discípulos, como Marat, Brissot de Warville e Bernardin alterar a "estrutura da .ciência", como era o objetivo de Diderot.
de Saint-Pierre (este nomeado; como vimos, para presidir o Muséum Fa:tos como as execuções de Lavoisier e de Bailly não podem,
d'Histoire Naturelle). evídentemente, ser vistos como uma simples decorrência de conflitos em
torno de imagens de natureza e de ciência. Nesses casos, e em muitos
Bernardin e Brissot teriam divulgado o sonho de Rousseau: "um
outros (como a prisão de. Condorcet), o envolvimento político desses
tipo de ciência primitivista, em que o homem trabalha melhor solitaria-
membros da Academia com Antigo Regime foi, sem dúvida, o fator
<;>

mente e em relação íntima com a natureza" (Guerlac 1959, pp. 319-320).


determinante. Eritretanto, o antagonismo entre diferentes imagens de
Essa, como vimos, também era a visão que Marat tinha do trabalho
natureza e qual deveria ser a organização e a inserção da ciência na
científico. Essa ciência antinewtoniana tomava por paradigma não a
química (como sugeriu Gillispie), mas a história natural. Rousseau
4.· Em Les r~veries duprofl)eneur solitaire, 1782; apud Dhombres e Dhombres 1989. p. 29 ..
definia o botânico como aquele que "s6 estuda a natureza para encontrar,
..
1")0
128 ;1·
I

sociedade provavelmente condicionou várias decisões tomadas nos mo~ que eram ensinadas.metafísica, fj)osofia moral e matemática avançada. No
. mentos de maior radicalização política. Os debates em torno de uma último ano de filosofia, espaço cada vez maior veio a ser dedicado ao ensino
política educacional fornecem mais evidências em favor dessa hipótese. de física no final do Antigo Regime. Uma evidência de que havia um
'~.
,'t'
.:, estímulo explícito nesse sentida foi a criação, em 1753, por iniciativa
governamental, de uma cátedrà de "física experimental" ocupàda pelo
Imagens de ciência e educação científica
Abade Nollet - a quem já me referi anterionnente - no College Navarre,
em Paris. Essas aulas de física não eram restritas aos alunos regulares do
Williams (1953, 1956, 1959), com base numa análise da política
colégio e eram abertas para um público amplo. As aulas públicas do Abáde
educacional durante e após a Revolução, contesta a associação que
Nollet eram dadas num auditório com lugar para 600 pessoas. De um total
estabelece Gillispie entre o jacobinismoe uma imagem antinewtoniana
de mais de 347 colégios, às vésperas da Revolução, em 1861, havia 85 com
de ciência. Williams tenta mostrar·que não havia unidade ideológica no ".::
.....' professores de física (Palmer 1985, p. 18).
partido jacobino: as incertezas em torno de uma política educacional '.,

seriam evidências de clivagens importantes no seio do partido. Portanto,


.. , Com a Revolução, essa estrutura educacional foi sendo gr~dua1mente,
é relevante para o nosso tema traçar um quadro, mesmo que esquemátic.o, desmantelada. Após a queda da Bastilha, embora se tentasse manter o ensino
da situação da educação científica na França antes, durante, e imediata- primário e o mais avançado, dos Colleges, a desorganização foi crescendo
mente após a Revolução. com as sucessivas medidas tomadas contra as instituições religiosas que, como
vimos, praticamente controlavam o ensino nesses níveis. Tolerou-se, em dado
No Antigo Regime, o ensino elementar (Petites Écoles) estava
momento, que membros do clero continuassem ensinando, desde que aceitas- ..
basicamente nas mãos do clero e não era universal. Acima desse nível,
sem fazer um juramento. Muitos se recusaram e preferiram deixar as escolas,'
uma minoria prosseguia os estudos nos Colleges, muitos deles fazendo
Mas a pá de cal foi colocada com medidas que afetaram a base econômica do
parte das "Faculdades de Artes" das universidades.5 Também nesse
sistema que vigia no Antigo Regime. As escolas eram financiadas, em grande
nível, o ensino estava a cargo de membros do clero, não necessariamente
parte, pela Igreja e por dotações baseadas na administração de um patrimônio
padres, mas pertencentes a diversas ordens religiosas. Só após a Revo- imobiliário (aluguel de fazendas, imóveis urbanos etc.), legado que, em muitos
lução o ensino passou a ser reconhecido como uma profissão para leigos
casos, remontava ao período medieval. A Convenção decidiu, em 8 de março
(Palmer 1985, pp. 14-16).
de 1793, desapropriar todo esse patrimônio. Até que o Estado passasse a
É importante frisar que as ciências naturais não tinham uma posição financiar de modo eficiente e contínuo todo o sistema, a falência foi a regra.
de destaque no ensino durante o Antigo Regime, qualquer que fosse o nível, O patrimônio das escolas - instrumentos científicos, bibliotecas etc. - foi
sendo praticada basicamente mis academias e sociedades científicas. Os dois dilapidado (ibid., 1985, p. 117). '
últimos anos de formação nos Colleges6 eram dedicados à "filosofia", em Até 1795, com o Diretório, a França ficou sem uma organização
pública de ensino nos níveis elementar e secundário. Williams atribui
5. Não havia ainda um ensino "secundário" estruturado, e se passava diretamente do ensino elementar esse vazio educacional às divergências insuperáveis entre filosofias
para a "universidade". que tinha um caráter bem diferente, portanto, do que as universiclades possuem
atualmente. Os Colleges eram "públicos", no sentido de que eram fiilanciados por doações pelas da educação, que pressupunham diferentes concepções de homem e
municipalidades e alguns, especialmente em níveis mais elevados, tinham subvençãà do governo
central, especialmente para o pagamento dos salários dos professores. O ensino nos colégios era
gratuito, embora fossecomumos alunos terem de pagar pelo alojamento. Ao lado das escolas públicas,
havia escolas privadas, pagas, e seu número parece ter crescido no final do Antigo Regime. Ver·
Palmer. 1985, capítulo 1. de oito anos. Os Coll~gesd'Humonités tinham um programa de apenas seis a::óc; ,'.,m os dois illlúé;
6. A filosofia fazia parte do currículo dos Colleges de Plein Exercice, num prograrru. com <luraçãototal .,i
,:.,
finais áe filosofia. Os alunos ingressavam em ambos os colégios com a idade de 11 0U 12 anos.
)!.
de sociedade. As tendências, nesse período, podem ser classificadas pesquisa de alto nível. Essa Sociedade seria dividida em cinco seções:
.em três categorias: ciências físicas e matemáticas; ciências morais e políticas; aplicações da
ciência às artes industriais e práticas; literatura e belas-artes. A classe
correspondente·às·.ciências aplicadas teria o maior número de assentos
1. Uma corrente iluminista, que atribuía à educação, c~ntrada
(156 num total de 428). Apesar das várias diferenças, viu-se nesse
no conhecimento científico, um papel formador essencial. O
sistema uma tentativa de reproduzir a estrutura hierárquica, elitista e de
conhecimento da ordem natural em moldes newtonianos con~
privilégios do antigo sistema, e o poder da Academia. Com o agravante,
tribuiria para o advep.to de uma nova ordem social, com a
aos olhos dos~eus críticos, de gue a "Sociedade"no topo, embora não
eliminação dos preconceitos e das superstições, por meio da
devesse ter ensino, supervisionaria todo o sistema educacional nos níveis
educação científica dos cidadãos. O projeto educacional pro-
inferiores, o que não era atrib~lÍção da Academia no Antigo Regime.
posto por Condorcet em 1792 representou essa corrente.
Como defender, nas condiçõesêntão vigentes, um controle absoluto pelo
2. Um estoicismo "esclarecido" que, por intermédio de Montes-
quieu, remetia a Fénelon. Essa concepção centrava-se na governo da educação nacional,~como previa o plano Condorcet?
. promoção, pela educação, daqüelas virtudes morais conside- Um rousseauísmo mais ou menos explícito permeava as críticas
radas necessárias à estabilidade de um regime republicano. ao plano de Condorcet, corno sugere o trecho do discurso de Robespierre
3. Por últimol havia um "reformismo moral", inspirado em que citei na seção anterior.
Rousseau. As virtudes morais eram vistas por Rousseau como Era comum nos debates a distinção entre "educação" e "instrução".
naturais, e emergiriam espontaneamente no indivíduo em O primeiro plano educacional, proposto pelo Comitê de Instrução Pública
condições adequadas (especialmente no contato com a natu- (plano conhecido pelos p.omes de seus idealizadores, Sieyes-Daunou-Laka-
reza), não podendo ser impostas "de fora" (pela educação, por nal), previa uma "instrução comum" a todos os cidadãos apenas no nível
exemplo). elementltt,_Oúnico que seria público. Havia uma desconfiança com respeito
ao caráter burocrático de J,lmimenso sistema público, centralizado. Os níveis
superiores não deveriam ser controlados pelo poder público, ficariam a
O projeto educacional apresentado por Condorcet foi muito criti- cargo de organizações privadas e professores autônomos.
cado por diversas correntes às vésperas da vitória dosjacobinos em 1793,
Robespierre defendeu ·na Convenção, em 13 de julho de 1793,
portanto, num contexto de exacerbação política e de radicalismo cres-
centes. Condorcet previa cinco níveis de "instrução": um primário
universal, atendendo uma faixa etária que iria dos 6 aos 11 anos e,em
I
'1
I
aparentemente por conveniência política, um plano educacional elabo-
rado porLepeletier (Palmer 1985, p. 138). Esse plano propunha uma
instrução científica nos níveis superiores, mas defendia uma instrução
seguida, um afunilamento gradual até os níveis mais altos do Lycée (que 1
universal mínima (basicamente, a alfabetização) aliada a urna educação
substituiria as antigas universidades).? Nesse último nível, um entre
1.600 alunos que ingressassem no sistema seria atendido. O ensino seria j entendida como urna promoção das virtudes, por meio de festas que
falassem diretamente ao sentimento, e não à razão. O plano de Condorcet
público e gratuito em todos os níveis. No topo da pirâmide, Condorcet
era considerado completamente deficiente do ponto de vista dessa con-
colocou urna "Sociedade Nacional das Artes e Ciências", em que se faria
cepção "revolucionária" de urna verdadeira educação do futuro cidadão,
que não deveria ser confundida com a mera aquisição de conhecimentos.
7. o termo Lycée. tradicionalmente, era empregado para designar o ensino superior. de terceiro grau .
(era o caso do Lycée des Arts no Antigo Regime, que já mencionei). S6 com Napoleão ele passou a O plano Lepeletier distinguia-se dos·demais pela ênfase num igualitaris-
ser utilizado para designar o ensino de segundo grau. mo radical na instrução universal primária, que seria universal e

132 133
compulsória. Os jovens cidadãos de todos os estratos sociais deveriam rejeitou a filosofia da educação que fundamentava o projeto das Écoles.
ser afastados dos pais (cujos valores os corromperiam, reproduzindo a Os liceus napoleônicos podem ser considerados como sua antítese. O que
estratificação social existente) e seriam submetidos a uma éducation se manteve desta última expériência foi a ênfase no ensino de ciências,
commune, enquadrados em Maisons d'Égalité, caracterizada por simpli- embora seu peso no currículo viesse a ser muito inferior ao concedido
cidade e austeridade espartanas. nas Ecoles Cent~ales. Os liceus visavam, em última instân~ia, formar
quadros para a carreira militar.
A Convenção tampouco aprovou o plano Lepeletier, em virtude
do impasse gerado pelo conflito das filosofias que fundamentavam as
diferentes propostas e das circunstâncias. políticas dramáticas daquele A reorganização do ensino superior científico sob o Diret~rio
período. Nenhum plano foi efetivamente.implantado até os tempos do
Diretório, quando são criadas as Écoles Centrales, inspiradas naqueles . As "faculdades de artes", como disse anteriormente, compreen-
ideais iluministas que haviam sido defendidos por Condorcet, bem como diam os Colleges, que se ocupavam de algo próximo ao que hoje
nas concepções de Condillac e dos Idéologues.8 chamaríamos de um ensino secundário. O ensino superior nas universi-
dades - que estavam em decadência no século xvm - tinha lugar nas
As Écolçs Centrales foram criadas em 26 de outubro de 1795, e
faculdades de teologia, de direito e de medicina. Havia também, na
seu currículo era dividido em três seções: latim, desenho e história
França, várias escolas independentes de engenharia, minas, estradas e
natural (dois anos); ciências físicas e matemáticas (dois anos); princípios
escolas militares, financiadas pela Coroa.
da "Ideologia". Esse currículo refletia, por um lado, a importância
formativa que o Iluminismo cQncediaàs ciências e, por outro lado, o Antes da Revolução, um ensino superior avançado em ciências só
predomínio dos princípios da Ideologia, que eram baseados na psicologia era oferecido basicamente no College Royal, que já tinha uma longa ~
sensualista de Condillac. Uma das suas teses centrais era a de que a conturbada história desde sua fundação em 1530 (mais tarde passou a ser
origem dos erros estaria no mau uso da linguagem, justificaIldo uma chamadô de College de France). Em 1772, passou com sucesso por uma
ênfase no ensino de gramática e no estudo de línguas. Williams sintetiza refonnulação, na qual se ampliou o número de cadeiras dedicadas à física,
do seguinte modo a filosofia educacional das Écoles Centrales: I reduzindo-se o número de cadeiras mais tradiçionais, como latim, direito,
filosofia grega e latina. Não havia exames e o College Royal não fornecia
A eliminação do erro pela correlação mais próxima entre os significados i diplomas. As aulas eram gratuitas e abertas a um público adulto. Havia
das palavras e aS sensações que constituem seus fundamentos; a destrui- também uma prestigiosa instituição privada de ensino superior, o Lycée des
ção de preconceitos e superstições pela revelação da ordem física (e
j
I Arts, fundado em 1781, e que, após a Revolução, passou ase chamar Lycée
sensível) do universo; a criação de uma ordem moral e social baseada
num conceito materialista e utilitãrio de homem e de sociedade [...].
1
, Républicain, não tendo tido, aparentemente, descontinuidade em suas ati-
(Williams 1953, p. 314) 1 vidades nem mesmo durante o Te1To~(Palmer 1985, pp. 35-36).
i Com o Diret6rio, a fonnação científica se reorganiza na França e
A experiência das Écoles Centrales foi, em muitos aspectos, um i adquire um lugar de relevo compatível com o ideário 'iluminista. São
I
frac~sso. Quando do golpe de estado de Napoleão, em 1799, o sistema 'I criadas a École Normale e a École .centrale des Travaux Publiques em
de Ecoles Centrales já se encontrava em franca decadência. Napoleão 1794. Também,são criadas novas faculdades de medicina (Paris, Estras-
I
burgo, Montpellier) e o Conservatoire des Arts et Métiers. O Muséum
8. Os chamados ldéologues incluíam Cabanis, Destutt de Tracy, Malne de Biran, Volney, entre outros, 1

e consideravam-se discípulos de CondiUac. Adotavam, sobretudo. o "método analítico" desenvolvido


d'HistoireNaturelle foi, como vimos, a única instituição de pesquisa
por esse filósofo. tentando apücá-lo à educação.
I científica do Antigo Regime que se manteve funcionando, tendo mesmo
i!
I
135
florescido durante o Terror. Outras instituições são reativadas, como a contato com os engenheiros formados pela Escola, A.:; {;ontingências
École desMines, a École des Ponts et Chaussées e o College de France. ditadas pela guerra determinavam o currículo, voltado psra a arte mili tar.
Por fim, é criado o lnstitut de France em 25 de outubro de 1795, por Em 1795, passada a ameaça de invasão da França, a École Poly-
iniciativa do combativo Lakanal; nesse Instituto voltam a tornar assento, technique é reorganizada em moldes liberais e o conhecimento científico
em sua primeira classe - só que agora na condição de "funcionários passa a ser perseguido por seu valor intrínseco: as ciências teóricas
públicos" - muitos dos antigos membros da Academia de Ciências que, ocupam um lugar privilegiado no currículo, com grande ênfase em
em sua maioria, haviam sobrevivido ao Terror .. matemática. A nova química de Lavoisier possui também, ironicamente,
É justamente nesse período que surgem as condições institucio- um lugar privilegiado nos "cursos revolucionários". Até o golpe de
nais que possibilitariam a liderança científica francesa das décadas Napoleão, a escola viveu seu período áureo como principal instituição
seguintes. científica do mundo. Entre seus professores, destacavam-se Lagrange,
Vários historiadores assinalaram 'que essa reorganização da pes- Laplace, Monge, Prony, Berthollet;,Guyton, Chaptal.
quisa científica na França se fez sob a égide de urna reforma educacionaL Sob Napoleão, a escola é gradativamente militarizada, e a formação
O que constitui mais uma evidência da retomada dos ideais iluministas dos estudantes passa a satisfazer às necessidades imediatas do Estado. Em
de promoção da cidadania pela educação científica. 1804, ela se transfonna, por decreto, numa academia militar, 'dirigida por
Os membros da comunidade científica (muitos deles, como La- uni governador militar. A ênfase passa a ser, novamente, o treinamento para
place, passaram incólumes pela Revolução) engajaram-se nesse as necessidades militares, com a orientação teórica cedendo lugar a um
programa educacional; tornando-se professores nas novas instituições utilitarismo estreito, que se estenderia pelo menos até 1815.
criadas. Os tradicionais comptes rendus de pesquisas, que eram escritos O curto período que vai de 1794 a 1799 pode ser visto, portanto,
pelos cientistas para seus pares, são substituídos por obras didáticas, corno U:rn último eefêmero, porém esplêndido, reatamento com os ideais
sistemáticas, dirigi das aos estudantes. Esse esforço educacional era do lluminismo, com o seu imaginário norteando as relações entre ciência
lastreado por uma filosofia preocupada com o método, com a classifica- 'e sociedade.
ção, com o rigor, e voltada para a ação. Acreditava-se na universalidade
do método analítico (influência clara de Condillac) e na unidade e na '" Os cientistas e a Revolução
interdependência de todas as ciências. O caso da militância pedagógica
de Lacroix é freqUentemente citado como representante desse novo Os ataques dos jacobinos às instituições científicas do Antigo
espírito, sem dúvida inspirado pelos ideais iluministas de Condorcet: Regime não significaram uma total marginalização dos Cientistas em
"Aproximar-se das diversas ciências é' o meio mais adequado para relação aópoder revolucionário. Uma "ala esquerda" da comunidade
descobrir o método - o mais geral - que deve dirigir o espírito humano científica teve uma participação crucial na organização da defesa nacio-
na pesquisa da verdade" (Lacroix apud Dhombres e Dhombres 1989, p. nal, durante o Terror, trabalhando em comissões vinculadas diretamente
254). ao Comité de Saiut Publique, criado em abril de 1793. Guyton de
É instrutivo acompanhar a trajetória da École Polytechnique. Ela Morveau e Lazare Camot foram membros de primeira hora do Comité
surge, inicialmente, com o nome de École CentraIe des Travaux Publi- de SaIut Publique. Da importante "Comissão de Trabalhos Públicos"
ques em 1794, por iniciativa de Lamblardie, Monge e Prieur de Ia participaram, em diferentes períodos, químicos como Claude Louis
Côte-d'Or. Suafinalidade era prática: promover a técnica com base no Berthollet, Chaptal e Fourcroy, além do próprio Guyton. Também des-
conhecimento científico. O cientista passa a estar sistematicamente em tacaram-se nessa comissão Hassenfratz (físico), Lamblardie e Prieur de

1':l'i
136
Bonaparte dotava-se de um corpo destinado a mudar a face do país que ele
Ia Côte-d' ar (engenheiros), bem como os matemáticos Gaspard M~nge conquistaria. e destinado a ir além de um inventário de curiosidades. Ele não
e Vandermonde (Dhombres e Dhombres 1989, p. 693). preparava um novo Estado, fruto das Luzes do século XVIll, da ciência
aplicada e da Revolução democrática? A conquista militar, num território
A grande mobilização de guerra exigiu o desenvolvimento de tão afastado da metrópole, devia encontrar uma consolidação pennanente
novas tecnologias para a fundição de canhões, a produção de pólvora, no estabelecimento de uma civilização esclarecida, graças a rea!izaçÚs
de soda artificial e a fabricação de aço para armas de diverSos tipos. decididamente modernas bem como a princípios políticos revolucionários.
Em outros tennos, o governo a ser estabelecido poderia prefigurar um outro
Cientistas e engenheiros foram também chamados para resolver pro-
governo, o da própria França. A este título, a experiência egípcia constituía
blemas gerenciais, colocados pela escala necessária de produção. uma démarche preparatória, como um laboratório. Que cientistas e enge-
Chaptal dirigiu indústrias bélicas em Paris, a partir de março de nheiros fossem a esseponto associados, permite medir o papel que Bonaparte
pretendia atribuif a eles. (1989, p. 104) ,
1794, s~pervisio?an~o em especial a fabricação de pólvora (ibid., p.
703). DIversos cIentIstas deram aulas" nos "cursos revolucionários":
Monge sobre a fabricação de canhões; Berthollet, Fourcroy e Guyton Um dos resultados da "conquista" científica - que sofria as vicis-
sobre técnicas de fabricação de pólvora. Fourcroy, em seu relatório situdes da conquista militar - foi a criação do Instituto do Egito, tendo
apresentado na Convenção, em 1795, elogiou a "mobilização dos como modelo o bistitut de Paris, pouco depois do desembarque em
cientistas do ano lI", que aumentou consideravelmente a fabricação Alexandria. Além do trabalho de pesquisa, o Instituto do Egito tinha um
de pólvora e de armas, de navios de guerra, e revolucionou a organi- claro objetivo de transmitir as "luzes~', abrindo suas seções ao público,
zação das empresas bélicas pela introdução de novos métodos; além de incentivar a aplicação dos conhecimentos; com o fim de melho-
rar as condições de vida das populações locais (ibid., p. 114). A
Após o Terror, além do engajamento educacional, a que me
publicação, em 1822, da Descrição do Egito - obra que reunia as
referi na seção anterior, talvez o evento mais significativo do envol-
vimento da comunidade cieIUífica com as políticas do Estado foi a pesquisas realizadas nas mais diversas frentes - concentrou os esforços
de todos os participantes da expedição. a prefácio foi escrito, em 1809,
expedição ao Egito. a Diretório, em 12 de abril de 1798, decidiu-se
por Jean-Baptiste Joseph Fourier, professor na Escola Politécnica e que
pela conquista militar do Egito, e Napoleão incluiu na expedição uma
se destacara na expedição; sim, o mesmo Fourier que, 13 anos-depois,
"Comissão de Ciências e qe Artes" com 142 membros da comunidade
científica das mais diversas áreas. Monge e Berthollet, membros do viria a ganhar o prêmio da Academia com a sua teoria analítica do calor
Institut recém~criado, foram encarregados de recrutar cientistas e (ver capítulo 5). . ' "
No Estado napoleônico, diversos cientistas tiveram posições po-
engenhei~os, especialmente na Escola Politécnica (dirigi da por Mon-
ge a partu de outubro de 1797) e no Museu de História Natural. ].1 líticasde destaque, no Senado e mesmo no Ministério. Laplace foi
Geoffroy de Saint- Hilaire aderiu com entusiasmo a essa estranha nomeado, em 12 de novembro.de 1799, ministro do Interior do governo
combinação de expedição militar e científica, ao lado de cientistas provisório, tendo tido posteriormente posições no Senado até o final do
como Fourier. Império. Chaptal tam~ém foi ministro do Interior, tendo aparentemente
tido sucesso na aplicação de seus conhecimentos científicos à adminis-
Dhombres e Dhombres avaliam que, a despeito dos objetivos
tração (ibid., p. 752). Berthollet, Monge, Cousin, Lacépêde e Cabanis
propagandístioos e colonialistas, a expedi'ção encarnava o "espírito de
também foram senadores ..Lazare Carnot foi chamado por Napoleão a
Condorcet" e foi, além disso, um laboratório para um projeto político,
ocupar diversos cargos, tendo chegado a ministro da Guerra em 1800.
no qual os cientistas estavam destinados a ter um papel de destaque:
Founer foi prefeito de Isere entre 1802 e 1815. Esses são sn~>nenteaj:UlS
exemplos da estreita relação que a comunidade cientíricil teve c~m o

139
138
poder nesse período. Isso se explica, em parte, pela influência que o Com base em considerações análogas, Gillispie defende que, tanto
pensamento enciclopedista' exerceu sobre Napoleão no que se refere à aqueles que se apropriaram da ciência "newtoniana' numa cruzad,,"
crença na contribuição que o conhecimento científico dgn~ para o reformista quanto os que a ela se opuseram numa CruZ"ciB.
tevolucionári.
desenvolvimento da técnica e para o progresso sociaI.9 - não compreenderam a atividade científica em sua especiflcidade e ern
suas limitações. O conhecimento científico (e as instituições que o
geravam e administravam) era visto ora de uma perspectiva milenarista
Filosofia natural efilosofia moral
- apontando para uma soéiedade próspera e justa - ora associado a uma
ordem social e políti,ca particular, como ado Antigo Regime.
A tese de que a ciência do século XVIII estava tendendo para uma A tendência a vincular uma imagem de natureza a uma moral, e a
neutralidade com respeito a valores, tese que encontramos em historia- conceber a ciência em conformidade com ambas, é particularmente clara
dores como P. Gay (1966-1969), não é compatível com o uso que os em Diderot. Só que a sua imagem de natureza, como vimos, não é
philosophes fizeram da ciência para fundamentar concepções de homem mecanicista, e tampouco a sua imagem de ciência é newtoniana. Mas, ao
e de sociedade.
reeditar uma imagem de natureza inspirada nos estóicos, e ao tomar como
A imagem de natureza-mecanismo - na qual não se percebe paradigmas as ciências baconianas, Diderot foi muito mais consistente,
qualquer hierarquia na natureza (se a compararmos, por exemplo, com nesse projeto, do que os seus pares mecanicistas e newtonianos. As
o cosmos aristotélico), a ordem sendo presidida pelo mesmo conjunto de conseqüências desse radicalismo nostálgico, se aceitarmos as evidências
leis físicas -evocava, para filósofos como Voltaire, uma ordem social. fornecidas neste capítulo, foram muito sérias para a cultura científica que
igualitária, em que não haveria lugar para privilégios. conhecimento o iniciara sua história no século XVII.
científico, em sua positividade, deveria, por conseguinte, servir de eixo Se for legítimo tirar algumensinamento das vicissituves por que
L
a uma educação voltada para a eliminação 'da superstição e do precon- passou a atividade científica nesse conturbado período, ele seria o de que
; I
ceito, atuando como um instrumento privilegiado de progresso social e a atividl'lde científica pressupõe uma autonomia para que possa desen-
cultural. volver-se. É seguramente equivocado e perigoso fazer us,o do
conhecimento científico para fundamentar uma concepção de homem e
Lenoble ressaltou muito bem essa ambivalência da herança ilumi-
nista: de sociedade. A ciência, entretanto, pressupõe determinadas concepções
de homem e de sociedade para que possa existir como atividade.
À hora, portanto, em que a natureza se desagrega em fenômenos impon- As conseqüências do cientificismo como ideologia podem ser tão
deráveis agrupados sob leis aparentes, essa mecânica sem alma e sem
nefastas quanto a ideologia anticientífica. As relações ciência-sociedade
valor próprio retoma, por um paradoxo curioso, seu papel de mestra de
consciências. O século XVIII perdeu, em física e parcialmente na arte, na França do século XVIII constituem um precioso precedente de dis-
o sentido da natureza, mas da natureza ele faz um consumo prodigioso cussões que mantêm sUa atualidade.
em moral. Ela s6, contra a ordem social e a religião, nos dá a virtude,
contra as mesmas forças "tenebrosas" ela nos dá a felicidade. Voltaire,
d' Alembert, Fontenelle vivem desse paradoxo, sem mesmo o percebe-
rem. (Lenob1e 1969, p. 356) .

9. ~apoleão foi, contudo, ll\Illbém influenciado pelas correntes "newtoniana" e "rousseauísta", segundo \ .

Dhombres e Dhombres (1989, pp. 680-685).

140 141

Você também pode gostar