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2 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

A FRANÇA SE REBAIXA

O império não
se desarma
POR SERGE HALIMI*

O
s Estados Unidos jamais perma- lítica de grande importância –, o Eliseu
necem humildes por muito tem- se acostumou às afrontas norte-ameri-
po. Um mês depois de sua derro- canas nos últimos quinze anos, quer se
ta afegã, a ordem imperial foi trate da espionagem de presidentes da
restabelecida. Prova-o a afronta que República revelada pelo WikiLeaks, do
Washington acaba de infligir a Paris. desmembramento da Alstom pela Ge-
Um mês? Nem isso. Mal os talibãs neral Electric (graças a embustes judi-
acabavam de se apossar do aeroporto de ciários que beiram o banditismo) ou
Cabul, os neoconservadores se esguei- das multas faraônicas extorquidas de
ravam de novo para fora de seus covis. O empresas e bancos franceses que não
Ocidente tinha “perdido o Afeganis- haviam aplicado sanções, contrárias
tão”? Seria preciso então reafirmar sua ao direito internacional, decretadas
presença em todos os outros lugares pa- pelos Estados Unidos contra Cuba ou o
ra deixar claro a seus rivais estratégicos, Irã.2 Para responder ao insulto de aus-
China e Rússia em particular, que ele tralianos e norte-americanos de outra
não recuaria diante do próximo comba- forma que não a chamada inócua dos
te. “A guerra não acabou”, resumiu o se- embaixadores sediados em Camberra e
nador Mitt Romney, ex-candidato repu- Washington, Emmanuel Macron faria
blicano à presidência. “Estamos mais bem em conceder imediatamente asilo
em perigo que antes. E teremos de in- político a Julian Assange e Edward Sno-
vestir mais para garantir nossa segu- wden, que lançaram luz sobre os sub-
rança.”1 Após disseminarem o caos no terrâneos do império. O mundo inteiro
Oriente Médio, os Estados Unidos agora notaria esse golpe estrondoso.

© Cesar Habert Paciornik


voltam os olhos para o Pacífico e mobi- Enquanto seus presidentes tagare-
lizam sua Marinha contra a China. Um lam, a França se rebaixa. Voltou ao co-
casinho de nada, sem dúvida... mando integrado de uma Organização
Esse é, ao que tudo indica, o motivo do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
principal da crise diplomática atual en- dirigida por Washington; renuncia ca-
tre a França e os Estados Unidos, e não da vez mais à sua soberania diplomáti-
a cólera de Paris por ter sido despojada ca, submetendo-se a uma União Euro-
de um lucrativo contrato de armamen- peia povoada de vassalos dos Estados
to naval. Trata-se, com efeito, de saber Unidos; mantém contra a Rússia uma Washington, mas também a Pequim, 1   C NN, 29 ago. 2021.
como a Europa deve reagir à aliança série de sanções que proíbem todo en- Moscou, Tóquio, Hanói, Seul, Nova Dé- 2   Ver Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la
loi... américaine” [Em nome da lei... norte-a-
militar antichinesa que Washington tendimento “do Atlântico aos Urais”, li e Jacarta que ela não aceitará jamais a mericana], Le Monde Diplomatique, jan.
acaba de anunciar com o Reino Unido e única perspectiva suscetível de arran- guerra do Pacífico que os Estados Uni- 2017.
a Austrália. Porque, quanto ao resto – a car o Velho Continente das garras nor- dos estão preparando.3  3   Ver Martine Bulard, “L’Alliance atlantique bat
la campagne en Asie” [A aliança atlântica em
humilhação pública espetacular, a des- te-americanas ou chinesas. Para não campanha na Ásia], Le Monde Diplomatique,
lealdade dos “aliados”, a falta de con- definhar na insignificância, a França *Serge Halimi  é diretor do Le Monde jun. 2021.
senso em torno de uma decisão geopo- deve urgentemente deixar claro a Diplomatique.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

O Brasil autoritário
POR SILVIO CACCIA BAVA

M
ergulhado em um pesadelo
em plena pandemia, o Brasil
vive, desde o golpe que depôs
a presidenta eleita, Dilma
Rousseff, em 2016, o fim de seu mais re-
cente período democrático.
A coalizão dos governantes, tendo à
frente o presidente Jair Bolsonaro, ataca
o Parlamento, o Judiciário, e assim vai
alimentando sua base radicalizada, im-
pondo a pauta nacional, num processo
contínuo de destruição e aparelhamen-
to das instituições do Estado brasileiro.
A perspectiva de continuidade do
Partido dos Trabalhadores no governo,
depois de eleito por quatro mandatos
consecutivos para a Presidência da Re-
pública, fez que as elites econômicas
rasgassem a Constituição de 1988 e

© Claudius
adotassem a via do golpe parlamentar,
com o apoio do Tio Sam. “As políticas
sociais não cabem no Orçamento da
União”, declaravam parlamentares gol-
pistas, secundando seu mentor intelec-
tual, o ex-ministro da Economia do
tempo da ditadura, Delfim Netto.1
As intenções de golpe já estavam
presentes desde o início do segundo
mandato do presidente Lula. Podemos
observar isso nas palavras do então se-
nador Jorge Bornhausen, presidente do Os resultados do segundo trimestre nal a Emenda Constitucional n.95, mentar sem expressão, eleito sete ve-
PFL, partido de direita. Já em 2006 ele de 2021 apontam que o lucro de dez em- aprovada em dezembro de 2016, que zes deputado federal por sua base em
declarava: “Vamos acabar com essa ra- presas entre as maiores da Bolsa brasi- congelou os gastos sociais por vinte meio aos policiais e militares, defensor
ça. Vamos nos livrar dessa raça por, pe- leira dobrou em relação ao primeiro tri- anos, os quais só poderão ser corrigi- dos interesses corporativos da tropa,
lo menos, 30 anos”.2 Essas intenções se mestre de 2021, passando de R$ 52 dos pela inflação do ano anterior. Co- depois que a Justiça impediu Lula de
materializaram em 2016, com o respal- bilhões para R$ 110 bilhões. Em relação nhecida como “PEC da Morte”, ela vai disputar as eleições e o prendeu, tor-
do das elites econômicas e por meio de ao mesmo período de 2020, os ganhos retirar, ao longo dos anos, recursos nou-se presidente da República com
uma aliança entre partidos conserva- se multiplicaram por dez.3 Entre elas substanciais das políticas sociais, es- 57,7 milhões de votos.
dores, militares e igrejas evangélicas estão Petrobras, Vale, Banco Itaú, Ban- pecialmente da saúde e da educação. Uma declaração recente do coronel
neopentecostais. Os principais jornais co Bradesco, Ambev e Usiminas. A “Ponte para o futuro”, documento do Exército Marcelo Pimentel, crítico
e canais de TV, controlados por cinco A destruição criativa,4 eufemismo estratégico apresentado em 2015 pelo de Bolsonaro, abre outra vertente de
das famílias mais ricas do Brasil, foram tomado da teoria de Schumpeter para PMDB e implementado desde o come- análise. Ele aponta a existência do que
preparando as condições para o golpe, promover a destruição do Estado e sua ço do governo de Michel Temer, que su- chama de Partido Militar, isto é, “um
que, hoje sabemos, contou com a parti- capacidade de regulação, associada ao cedeu ao governo de Dilma Rousseff, é grupo coeso, hierarquizado, disciplina-
cipação ativa da NSA, a agência de inte- intenso processo de fusões e incorpo- seguido fielmente até hoje e se apresen- do, com algumas características autori-
ligência norte-americana, inspiradora rações tornam os grandes grupos eco- ta como o mapa da mina.6 Entende-se tárias e claras pretensões de poder polí-
da Operação Lava Jato, uma iniciativa nômicos ainda mais poderosos e pro- dessa forma por que o grande capital, tico, dirigido por um núcleo de generais
jurídica que se apresentou como uma movem uma ainda maior concentração especialmente o setor financeiro e do formados nos anos 1970 na Academia
operação contra a corrupção, estigma- de riquezas e o aprofundamento da agronegócio, mantinha-se, até há pou- Militar das Agulhas Negras, que inte-
tizou o Partido dos Trabalhadores e desigualdade, maior chaga da socie- co, alinhado e dando suporte ao gover- graram ou integram o Alto Comando
prendeu arbitrariamente, antes das dade brasileira. Paulo Guedes, minis- no Bolsonaro. do Exército. Em sua dinâmica, eles têm
eleições, o candidato que provavel- tro da Economia, declara: “Vamos pri- Inspiradas no passado colonial es- ideário e fundamentação similar a um
mente iria se reeleger, Lula. vatizar tudo”.5 As imensas reservas de cravocrata, no patrimonialismo, no ra- partido político formal. Seus dirigentes
As mudanças vão além das mani- petróleo do pré-sal foram as primeiras cismo, no autoritarismo, na xenofobia, e o capitão sempre foram colegas e ami-
festações fascistas do grupo no poder. a parar na mão das grandes petroleiras no fundamentalismo religioso e numa gos próximos, desde 1973”.7 Sua análise
Elas operam uma profunda mudança internacionais, especialmente norte-a- moral extremamente conservadora, aponta que a candidatura de Bolsonaro
neoliberal no padrão de acumulação – mericanas. Ele também propõe o corte por falta de outro candidato com pos- teria sido uma criação desse grupo.
reforma trabalhista, reforma da Previ- nos gastos sociais e, assim, vocaliza a sibilidades de disputar com Lula as Se existe ou não o assim denomina-
dência, privatizações, concessões –, voracidade das classes dominantes, eleições de 2018, as classes dominan- do Partido Militar ainda é uma questão
processo de destituição de direitos que contando com o apoio das principais tes se viram constrangidas a apoiar controversa, mas o crescente protago-
já se mostra eficaz para as grandes em- associações empresariais. um capitão do Exército que se tornara nismo militar não deixa margem a dú-
presas, que apresentam hoje balanços Logo após o golpe de Estado parla- político depois de afastado da corpo- vidas. E eles parecem não querer voltar
robustos e um importante aumento da mentar, o novo presidente, Michel Te- ração por acusações de conspiração e aos quartéis e abrir mão de seus postos
lucratividade. mer, encaminhou ao Congresso Nacio- terrorismo. Esse capitão, um parla- no governo.
4 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

Na campanha eleitoral de 2018, as presidência da Câmara dos Deputados, públicas em seus redutos eleitorais), A elite brasileira mais esclarecida
denúncias de manipulação da opinião obstruem essa iniciativa. deputados e senadores do chamado começa a considerar que não há plano
pública por parte de Bolsonaro e seus A pandemia foi o ponto de inflexão Centrão, conjunto de partidos fisiológi- B na polarização entre Bolsonaro e Lu-
apoiadores, pela via das fake news dis- da conjuntura que faz que Bolsonaro e cos que apoiam sempre quem lhes ofe- la, não há espaço para que se tente
seminadas nas redes sociais, têm farta seus três filhos parlamentares estejam recer maiores benefícios, o que assegu- criar uma terceira via com Bolsonaro
comprovação. Um dos principais as- perdendo prestígio e sejam acusados de ra ao presidente uma base parlamentar na disputa. Uns acreditam que Lula
sessores da campanha eleitoral de Bol- principais responsáveis pelos mais de suficiente para bloquear pedidos de hoje é a melhor solução para pacificar
sonaro foi Steve Bannon, o especialista 595 mil mortos por Covid-19 no Brasil. A impeachment. Nomeia ministros e o país, desde que ele aceite governar
em fake news e segmentação do público recusa por Bolsonaro de comprar as va- preenche uma vaga no Supremo Tribu- sem tentar recuperar os direitos se-
eleitor, o mesmo que ajudou a eleger cinas disponibilizadas pela Pfizer e pe- nal Federal com evangélicos neopente- questrados pelo golpe. Outros acham
Trump. O Tribunal Superior Eleitoral lo Butantan matou 90.000 pessoas, se- costais, além de favorecer essas igrejas que, se Bolsonaro for afastado, há es-
abriu um inquérito sobre essas denún- gundo estudos de epidemiologistas.11 tanto com benefícios fiscais quanto paço para uma candidatura de direita
cias e já teria todos os elementos para a O fim do auxílio emergencial de R$ com repasse de recursos para progra- disputar com Lula, mas não têm can-
cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.8 600 (cinco parcelas) e de R$ 300 (quatro mas sociais. Por fim, amplia enorme- didato ainda.
O relatório foi encaminhado ao Supre- parcelas) para mais de 67,9 milhões de mente a presença de militares aposen- Se as acusações e os processos que
mo Tribunal Federal e dirigido a Ale- brasileiros (um terço da população), tados e da ativa em seu governo e lhes se acumulam contra ele e seus filhos
xandre de Moraes, o ministro encarre- durante os primeiros nove meses da oferece cargos de importância. prosperarem, o que sobra para Bolso-
gado do inquérito das fake news. pandemia, também contribuiu para Por outro lado, a precarização das po- naro é tentar o golpe, criando uma si-
Tanto a campanha eleitoral quanto essa inflexão. Lembrando que foi o líticas sociais, o desemprego e a fome co- tuação de convulsão social e decretan-
o governo Bolsonaro dispõem de uma Congresso que elevou para esses valo- bram respostas do governo, que ignora as do o estado de sítio para controlar a
poderosa estrutura de comunicação res o auxílio emergencial, proposto em necessidades da grande maioria. Mais de situação. Para isso, ele conta com o
que atua nas redes sociais. Seu núcleo R$ 200 por Bolsonaro e Guedes. 125 milhões de brasileiros (58%) vivem apoio maciço das forças policiais, de
de criação é o assim chamado “gabine- A insatisfação dos brasileiros com o hoje em algum grau de insegurança ali- setores das Forças Armadas e das milí-
te do ódio”, uma central de produção governo cresce à medida que uma Co- mentar e 20 milhões passam fome.13 A cias (grupos armados compostos por
de fake news hoje instalada no Palácio missão Parlamentar de Inquérito do erosão das bases de apoio de Bolsonaro militares e policiais aposentados e da
do Planalto, sede do governo, que con- Senado, controlada pela oposição, vai junto aos evangélicos neopentecostais se ativa que impõem o controle de um ter-
ta com uma pequena equipe liderada demonstrando a negligência delibera- dá em razão da necropolítica no trato da ritório e cobram da população e dos ne-
pelo filho Carlos. Aí se cria o mundo da, proposital, do governo federal no pandemia. Deixam de apoiá-lo os mais gócios por sua segurança), todos gru-
fantasioso das mentiras e da radicali- trato com a pandemia e a corrupção ge- pobres, que pararam de receber o auxílio pos fortemente armados.
zação. A disseminação das fake news neralizada dos ocupantes do governo, emergencial. Setores militares que se A denúncia reiterada de que as ur-
fica a cargo de cerca de 100 hubs, e é por o que envolve tanto a família do presi- opõem ao envolvimento do Exército no nas eletrônicas permitem a fraude é
aí que a máquina bolsonarista alimen- dente, ele incluído, como os cerca de 6 governo também se desgarraram do preparatória para contestar o resultado
ta suas bases. mil militares aposentados e da ativa apoio ao presidente. E setores das classes das eleições, caso ele perca. Sua estra-
Pelo uso dessa máquina de comuni- que ocupam postos-chave no governo. médias que o apoiaram na luta contra a tégia apostava na melhoria da econo-
cação de fake news são destruídas repu- Os ocupantes do governo não têm corrupção ficam estarrecidos com o grau mia e do emprego, o que não vai ocor-
tações de opositores e veiculadas falsas nenhuma preocupação com o país e de corrupção em seu governo, envolven- rer, e num “pacote de bondades”, como
informações que alimentam a base ra- com a população e exercem a economia do-o diretamente, o que a CPI da Co- mais um auxílio emergencial para me-
dicalizada do bolsonarismo, estimada da pilhagem, o que ocorre nos ministé- vid-19 desvenda. lhorar a posição do presidente entre os
por pesquisas em cerca de 12% da po- rios, na facilitação da grilagem de ter- O estreitamento de sua base faz o ca- mais pobres, que, pelas limitações le-
pulação brasileira, e seus apoiadores ras, na mineração clandestina, no con- pitão radicalizar seu discurso. Setores gais do teto dos gastos sociais impostas
menos fiéis, em 15%.9 trabando de madeiras nobres, nos importantes do Judiciário e do Parla- pelo Congresso golpista, não terá nem o
Por exemplo, o presidente, mesmo incêndios na Amazônia e no Pantanal, mento vão se bandeando para a oposi- valor nem o sucesso do auxílio emer-
depois de o Congresso rejeitar a adoção no desmatamento para a ampliação do ção ao verificarem que a nau do governo gencial precedente.
do voto impresso, continua defenden- agronegócio, na venda do patrimônio está fazendo água e passam a defender o A campanha eleitoral já começou,
do essa tese alegando a possibilidade público, entre outras frentes. Estado democrático de direito. mas a avaliação dos dados atuais de-
de fraude com o uso das urnas eletrôni- A devastação ambiental, principal- A ameaça de golpe, diuturnamente monstra que o presidente não tem
cas – uma cópia do comportamento de mente na Amazônia e no Pantanal, enunciada, e a forma criminosa e negli- chances nas urnas. O cerco se fecha. As
Trump, o que já lhe custou outra quei- áreas de expansão ilegal do agronegó- gente no trato da pandemia levam o acusações de corrupção que envolvem
xa-crime encaminhada pelo TSE ao cio, é sem precedentes e tem sensibili- grande capital a também dizer um bas- o clã Bolsonaro, especialmente seus fi-
STF. Em sua atuação nas redes sociais zado o mundo inteiro. Suas consequên- ta, ensaiando retirar seu apoio, por en- lhos Carlos e Flávio, estão colocando o
em defesa do voto impresso, uma pes- cias serão sentidas agora e pelas futuras quanto ainda retórica. Na área econô- presidente em pânico. Eles podem ser
quisa pôde identificar que 65% dos gerações, tornando as crises hídricas mica, a compreensão de que a presos, e aí ele radicaliza.
hubs eram compostos por influencia- (que já vivemos agora), os apagões de instabilidade política não é boa para os Toda a máquina de propaganda
dores digitais (pagos com dinheiro pú- energia, as secas e os eventos climáti- negócios, que ele se tornou um pato montada pelo governo convocou civis,
blico); 20% eram parlamentares e mili- cos extremos fenômenos recorrentes. manco e que terminaram as possibili- militares e a Polícia Militar (o que cons-
tantes membros dos partidos de Os militares que estão em postos de dades de reformas vai restringindo o titucionalmente é proibido) para os
extrema direita; 5% eram pessoas decisão nos ministérios, autarquias e apoio dos empresários. atos públicos do Dia da Independência,
apoiadoras, além de serem usados mui- empresas públicas recebem, além de A um ano das eleições presiden- o 7 de Setembro. O monitoramento das
tos milhares de robôs.10 Vale esclarecer seus soldos, salários e benefícios pela ciais, a sociedade brasileira está dividi- redes sociais identificou o uso de mais
que o Brasil é considerado um dos paí- posição que ocupam, os quais chegam, da. Estima-se que o núcleo duro de de 2.600 robôs atuando na convocação,
ses mais avançados no uso das urnas no caso da presidência da Petrobras, a sustentação de Bolsonaro, a extrema representando 23% dos conteúdos ana-
eletrônicas, e desde 1996, data de sua uma remuneração mensal de R$ 260 direita, seja algo como 12% do eleitora- lisados do período no Twitter.15
implantação, nunca houve nenhuma mil.12 Esses números contrastam com do; mais 15% são simpatizantes. Os se- Na busca de uma demonstração de
denúncia a respeito de sua utilização. a pobreza da maioria, já que mais da tores progressistas e de defesa do Esta- força, Bolsonaro propôs uma megamo-
O processo de cassação da chapa metade dos brasileiros não ganha R$ do democrático são por volta de 30% bilização nessa data, tendo como pauta
eleitoral do presidente eleito pelo uso 800 mensais. do eleitorado. E cerca de 40% são passi- ataques ao Supremo Tribunal Federal,
das fake news ou os mais de 130 pedidos À medida que cai seu prestígio e sua veis de se alinhar de um lado ou de ou- ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Con-
de impeachment que se acumulam na reeleição fica ameaçada, Bolsonaro tro, a depender das circunstâncias e gresso, assim como a defesa do voto
mesa da presidência da Câmara dos busca reforçar seus laços com as bases dos candidatos. Neste momento, Lula, impresso, mesmo depois de o Congres-
Deputados só não prosperam porque que o elegeram. Coopta, por meio de candidato novamente às eleições de so ter rejeitado essa proposta, e da li-
bolsonaristas em postos-chave, como a emendas parlamentares (que garan- 2022, tem 40% da preferência eleitoral, berdade de uso das redes sociais para
Procuradoria-Geral da República e a tem recursos para aplicação em obras e Bolsonaro, 24%.14 veicular fake news.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 5

O 7 de Setembro transcorreu com suspendeu por dois dias as sessões – al- 1   R odolfo Borges, “Os direitos do brasileiro 6   D isponível em: www.fundacaoulysses.org.br/
significativas mobilizações sociais bol- guns avaliam que é para não dar palan- deixaram de caber no orçamento do Gover- wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-
no”, El País , 19 out. 2015. Disponível em: ht- -PARA-O-FUTURO.pdf.
sonaristas nas principais capitais do que para a oposição. O presidente da tps://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/24/ 7   Disponível em: www.cartacapital.com.br/poli-
país, especialmente em São Paulo, Câmara dos Deputados avalia que tudo politica/1443113983_470233.html. O ex- tica/o-brasil-e-refem-do-partido-militar-diz-
onde as igrejas neopentecostais mobi- está normal, que as polêmicas fazem -ministro Delfim Netto lembra que “não há -coronel-reformado.
nada na Constituição que impeça a constru- 8   Por unanimidade, o plenário do Tribunal Su-
lizaram suas bases para o evento. As parte da democracia. As Forças Arma- ção da ‘sociedade civilizada’ que ela projeta. perior Eleitoral também aprovou o encami-
mobilizações foram importantes e de- das não abrem a boca. Bastaria às autoridades eleitas desde 1990 nhamento ao Supremo Tribunal Federal de
monstraram a força do bolsonarismo, No dia seguinte, 8 de setembro, bol- adequá-la aos limites que se impuseram ao notícia-crime contra o presidente Jair Bolso-
longo do tempo – da forma como está, a Car- naro, para apurar possível conduta criminosa
mas pacíficas, sem incidentes graves. sonaristas tentaram invadir o Ministério ta Magna exige um crescimento médio do relacionada aos fatos apurados no Inquérito
Para isso houve o empenho e o controle da Saúde e o Supremo Tribunal Federal, país de 4% ao ano para funcionar (o que só n. 4.781, conhecido como “Inquérito das
efetivo dos governadores sobre suas no que foram contidos. Caminhoneiros ocorreu, durante a democracia inaugurada Fake News”. Disponível em: www.correio-
em 1985, no Governo Lula [...])”. b r a z i l i e n s e . c o m . b r / p o l i t i c a / 2 0 21/ 0 8 /
polícias militares. bloquearam estradas em dezesseis esta- 2   O senador Jorge Bornhausen, banqueiro, pre- 4941363-tse-aprova-envio-de-noticia-crime-
Revigorado pelas manifestações, dos, exigindo o impeachment dos mem- sidente nacional do PFL, revelou o esquema: -contra-bolsonaro-ao-stf-por-ataques-as-
ele radicalizou mais. Diante da multi- bros do STF. Talvez o prelúdio da ação “Estou encantado com a crise política. Ela vai -eleicoes.html.
livrar a gente desta raça por pelo menos 30 9   Silvio Caccia Bava, “A direita tem história”, Le
dão que o apoiava no ato em São Paulo, das milícias bolsonaristas na sociedade, anos”. Disponível em: https://smabc.org.br/ Monde Diplomatique Brasil, ago. 2021.
ele quebrou seu comedimento expres- um ensaio de golpe. Pressionado pelos acabar-com-essa-raca. 10  M AP – Agência de análise de dados da mídia.
so em Brasília horas antes e declarou outros poderes e pela possibilidade de 3   “Dez das maiores empresas da Bolsa veem Resultado analisando a polêmica do voto im-
lucro dobrar no 2º trimestre”. Disponível em: presso. Citado por: “Renda e saúde: a ‘vida
que não obedecerá ao Supremo Tribu- perder sua base no Congresso, Bolsona- www.infomoney.com.br/mercados/dez-das- real’ nas redes sociais”, O Estado de S. Paulo,
nal Federal, chamando de canalhas al- ro pediu a desmobilização dos cami- -maiores-empresas-da-bolsa-veem-lucro-do- 25 jul. 2021.
guns de seus ministros, e que só sairá nhoneiros, o que lhe custou a denomina- brar-no-2o-trimestre/. 11  C elso Rocha Barros, “A CPI provou tudo”, Fo-
4   Alexa Salomão, “A máquina de crescimento lha de S.Paulo, 27 set. 2021.
morto da Presidência. ção de “frouxo” de parte de sua base quebrou” – Entrevista de Armínio Fraga, ex- 12  “ Militares que comandam estatais acumulam
Na avaliação de analistas da con- radicalizada. presidente do Banco Central para o Instituto até R$ 260 mil em salários”, Folha de S.Paulo,
juntura, o golpe está em curso. Não se Se é possível imaginar que haja uma de Estudos de Política Econômica/Casa das 5 set. 2021.
Garças (Iepe/CdG), 2021.Disponível em: 13  “Efeitos da pandemia na alimentação e na
trata de colocar os tanques na rua, até estratégia golpista, ela conta com o     https://iepecdg.com.br/artigos/a-maquina situação da segurança alimentar no Brasil”,
porque Bolsonaro não os tem, mas de apoio internacional da ultradireita. O -de-crescimento-quebrou/. coordenada pelo Grupo de Pesquisa Ali-
um processo contínuo de aparelha- STF, no dia 8, mandou a Polícia Federal 5   O ministro da Economia, Paulo Guedes, deta- mento para Justiça da Universidade Livre de
lhou em entrevista ao jornal Valor Econômico Berlim, na Alemanha, em parceria com a
mento e implosão das instituições do reter no aeroporto internacional de seus planos para acelerar a privatização de Universidade Federal de Minas Gerais
Estado e enfrentamento dos outros po- Brasília e tomar depoimento de Jason todas as empresas estatais brasileiras. Como (UFMG) e com a Universidade de Brasília
deres da República. Miller, ex-assessor de Trump e de Steve o tempo gasto, em média, para preparar a ven- (UnB).
da de uma estatal é de um ano e meio, Gue- 14  Disponível em: www.gazetadopovo.com.br/
As resistências são débeis. O presi- Bannon, que se retirava do país em um des pretende fazer o processo em blocos, em republica/pesquisa-eleitoral-mostra-lula-na-
dente do Supremo tem uma fala fraca e jatinho privado e é acusado de finan- vez de tratar individualmente de cada caso. -frente-de-bolsonaro-agosto-2021/.
genérica em defesa das instituições de- ciar e orientar a convocação das mobi- Disponível em: https://congressoemfoco.uol. 15  Projeto Pegabot, do Instituto de Tecnologia
com.br/economia/guedes-propoe-privatizar- Social do Rio de Janeiro. Folha de S.Paulo, 7
mocráticas. O presidente do Senado lizações bolsonaristas.  -tudo-e-desvincular-todas-as-despesas/. set. 2021.

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CAPA

Concentração midiática: por que


é tão difícil enfrentá-la no Brasil?
Baixa percepção da população sobre a comunicação como direito é consequência da concentração. A conformação
de mercado trouxe consigo o distanciamento do caráter público e educativo da radiodifusão e se reflete na
agenda de regulação dos meios de comunicação, em que os próprios meios disseminam a narrativa de
censura para distorcer o debate

POR ANA CAROLINA WESTRUP, IRAILDON MOTA E MABEL DIAS*

Q
uando falamos sobre o exercício possuir 36 emissoras de rádio, 18 de TV, de um processo de barganha política OS ATAQUES À
do direito humano à comunica- 34 jornais diários e várias revistas. em que a principal moeda de troca fo- COMUNICAÇÃO PÚBLICA
ção nos deparamos com um dos Em razão da pressão de empresários ram as concessões e outorgas de rádio e No outro lado da moeda, a comunica-
indicadores mais importantes do setor de comunicações no Brasil, em TV. Em 1983 foram outorgadas oitenta ção pública vive atualmente sob inten-
para medir o grau de pluralidade de vo- 1962 João Goulart sancionou o Código concessões públicas, e, nos últimos dois so ataque. O caso da Empresa Brasil de
zes presentes nos meios de comunica- Brasileiro de Telecomunicações (CBT), meses do governo Figueiredo, pratica- Comunicação (EBC) é um bom exem-
ção: a concentração midiática. Reco- como espelho dos interesses comerciais mente às vésperas da convocação da As- plo para essa afirmação. Em maio de
nhecer a comunicação como um direito da Associação Brasileira de Radiodifu- sembleia Constituinte, foram autoriza- 2007, seguindo o princípio constitucio-
humano passa, em muitos aspectos, sores (Abert), criada exatamente nesse das 91 concessões, a grande maioria nal da complementaridade entre os sis-
por enxergar de forma crítica a concen- período. Em 1965, as empresas Globo, relacionada a setores conservadores. temas público, privado e estatal, os
tração dos fluxos de comunicação e que já eram donas do jornal O Globo, da Essa prática teve continuidade no contornos da EBC foram estruturados
seus impactos para a cidadania, em Rio Gráfica Editora e da Rádio O Globo, governo de José Sarney. O presidente e com base nas discussões do 1º Fórum
consonância com o grau de midiatiza- investiram na criação da TV Globo gra- seu ministro das Comunicações, Antô- de TVs Públicas, organizado pelo Mi-
ção da sociedade. No Brasil, a discus- ças ao polêmico acordo que garantiu nio Carlos Magalhães, distribuíram nistério da Cultura, na época coman-
são sobre a concentração midiática e a fluxo de capital do grupo internacional 1.028 concessões de TV e rádio até a dado pelo ministro Gilberto Gil.
ausência da efetivação do direito hu- Time Life, o que contrariava a legisla- promulgação da Constituição Federal Entretanto, desde 2016 a EBC está
mano à comunicação como a condição ção brasileira, que proibia capital es- de 1988. Em troca, os parlamentares em profundo ataque, desde a cassação
de cidadania tem contornos históricos trangeiro em empresas nacionais. A ex- aprovaram cinco anos de mandato pa- do Conselho Curador, um espaço fun-
pelo modo como nosso sistema de mí- pansão do Grupo Globo se deu de forma ra Sarney. Esse contexto relacionado damental para a participação da socie-
dia foi desenvolvido e ganha novos de- exponencial nos anos seguintes, adqui- aos políticos detentores de concessão dade civil, culminando com a tentativa
safios com a disseminação da internet rindo uma liderança de mercado peran- de radiodifusão foi denunciado pela de sua privatização, incluída em março
e do modelo de plataformas digitais. te a audiência em praticamente todos campanha Fora Coronéis da Mídia, de 2021 no Plano de Desestatização do
O sistema de radiodifusão no Bra- os seus produtos e serviços. marcando a Semana pela Democrati- governo Bolsonaro.
sil foi configurado dando privilégio à A Constituição Federal de 1988 in- zação das Comunicações em 2014, ação O que vemos, portanto, é a consoli-
iniciativa privada. Além disso, o país seriu alguns princípios para conter a que se seguiu nos anos posteriores. dação de uma concentração midiática,
observa fenômenos como os “coronéis concentração, como a proibição de mo- Já em 1989, outro ator importante de forma vertical e horizontal, que tem
da mídia” e a expansão da evangeliza- nopólios e oligopólios; no entanto, o ar- entrou no sistema dos medias no Brasil. como consequência a baixa percepção
ção eletrônica, em um cenário em que tigo 220 nunca foi devidamente regula- Com a aquisição da emissora Record, o da população sobre esse serviço como
a comunicação pública sofre desmon- mentado. Como resultado, temos hoje bispo Edir Macedo, líder da Igreja Uni- direito. Ou seja, essa conformação de
tes e ataques. Da mesma forma, a con- no Brasil um dos cenários de maior versal do Reino de Deus (Iurd), com sua mercado trouxe consigo o distancia-
centração dos fluxos de informação concentração no mundo, com apenas estratégia de evangelização eletrônica, mento do caráter público e educativo do
graças à ascensão dos monopólios di- cinco grupos de comunicação detendo iniciou o processo de consolidação da setor da radiodifusão, e isso se reflete na
gitais na internet intervém diretamen- a propriedade de 26 dos 50 veículos de emissora que se tornaria a segunda agenda de regulação dos meios de co-
te em direitos digitais fundamentais, maior audiência no Brasil, como mos- maior rede de televisão no país, em municação, em que os próprios meios,
como a privacidade e a liberdade de trou o Monitoramento da Propriedade 2008, concorrendo com o SBT pela se- que estão em uma condição privilegiada
expressão. da Mídia, muitos deles tendo também gunda posição na audiência, atrás ape- no debate público, disseminam a narra-
interesses econômicos que significam nas da Rede Globo. O conglomerado tiva de censura à imprensa para distor-
PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS riscos à independência da mídia. Record possui gráficas, rádios, emisso- cer a necessidade de um debate sobre a
DE RADIODIFUSÃO: PRIVILÉGIO ras de TV, portais de notícias, como o democratização da mídia brasileira.
DA INICIATIVA PRIVADA CORONÉIS DA MÍDIA E R7, e uma plataforma de streaming. Em 2014, entidades que atuam pela
O início da expansão do rádio, na déca- A EXPANSÃO DA MÍDIA RELIGIOSA Ao apoiar o governo de Jair Bolsona- democratização da comunicação, por
da de 1930, se deu sob marcos regulató- Aliado ao modelo de expansão do setor ro, o que não é novidade na estratégia do meio da Campanha para Expressar a Li-
rios em que o Estado brasileiro conce- de radiodifusão comercial, o caso brasi- bispo, Edir Macedo obteve benefícios berdade, elaboraram o projeto de ini-
deu à iniciativa privada o privilégio na leiro ainda tem a especificidade de um significativos em verbas publicitárias, ciativa popular Lei da Mídia Democráti-
prestação desse serviço público, com número significativo de grupos políticos abocanhando cerca de R$ 28,6 milhões ca, que traz uma série de propostas para
base no modelo que o professor Othon detentores de concessões públicas de ra- do governo federal de janeiro de 2019 a regulamentar os meios de comunicação
Jambeiro, da Universidade Federal da diodifusão. Uma publicação do Intervo- maio de 2020 (Agência Pública, 15 jun. no Brasil. O projeto aponta caminhos
Bahia (UFBA), classificou como trus- zes de 2007, “Concessões de rádio e TV: 2020). O Grupo Record não está sozi- para a promoção da pluralidade de
teeship model. Assim nasceu o primeiro onde a democracia ainda não chegou”, nho: nove dos cinquenta veículos de ideias, o fomento à cultura nacional, a
conglomerado de comunicação no Bra- mostra como o processo de abertura fa- maior audiência no Brasil hoje perten- universalização dos serviços essenciais
sil: Emissoras e Diários Associados. voreceu os políticos donos de mídia. cem a lideranças e igrejas religiosas cris- de comunicação e a participação popu-
Criado pelo jornalista e empresário As- O início se deu no governo do gene- tãs (evangélicas e católicas) (Le Monde lar na definição das políticas públicas
sis Chateaubriand, o grupo chegou a ral João Batista de Figueiredo, por meio Diplomatique Brasil, 16 abr. 2018). de comunicação, entre outros.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 7

© Rapha Baggas
Entretanto, a ausência de vontade A complexidade não se dá somente
política e um trabalho incessante de dis- no modelo de funcionamento, mas pela
torção dos meios de comunicação tradi- própria natureza desses monopólios. O
cionais sobre o tema nos abrigam sob Google, por exemplo, representa uma
um marco regulatório para a radiodifu- das gigantes transnacionais, as Big Te-
são das décadas de 1930 e 1960, uma es- chs, empresas que concentram bilhões
tagnação que expressa a vontade comer- de pessoas em suas arquiteturas e lu-
cial e política dos empresários do setor. cram valores inimagináveis. A marca
O caso dos coronéis da mídia é em- Google vale atualmente US$ 323 bi-
blemático. Apesar de o artigo 54 da lhões. Lidar com esse cenário de ex-
Constituição Federal proibir que políti- pansão desse modelo de negócios que
cos possuam concessão de rádio e TV, interfere na autonomia do usuário é
nosso sistema de radiodifusão é eivado mais um desafio na agenda do direito
desse fenômeno. Em resposta, o Parti- humano à comunicação.
do Socialismo e Liberdade (Psol) e o O Brasil tem duas legislações im-
Coletivo Intervozes entraram com Ar- portantes que impactam no modelo de
guições de Descumprimento de Precei- funcionamento das plataformas no
to Fundamental da Constituição país: o Marco Civil da Internet (2014) e
(ADPFs) no Supremo Tribunal Federal a Lei Geral de Proteção de Dados Pes-
para fazer valer as regras constitucio- soais (LGPD, 2018). Resultados da mo-
nais. E têm conseguido algumas vitó- bilização da sociedade civil, ambas
rias. Em julho de 2021, a juíza federal são consideradas avanços significati-
Wanessa Figueiredo dos Santos Lima, vos para a defesa da integralidade da
acatando pedido do Ministério Público rede, a garantia da liberdade de ex-
Federal (MPF), decidiu anular a reno- pressão e a proteção da privacidade
vação das concessões de serviços de ra- dos dados pessoais.
diodifusão que tinham o deputado fe- Entretanto, as duas legislações se
deral Damião Feliciano (PDT), da encontram sob ataque. A recente Medi-
Paraíba, como sócio. da Provisória n. 1.068, de 6 de setembro
Em fevereiro de 2021, o Tribunal Re- de 2021, editada pelo governo Bolsona-
gional Federal da 3ª Região (TRF3) ro, que altera o Marco Civil da Internet
manteve o cancelamento da concessão e a Lei de Direitos Autorais, estabelece,
da Rádio Metropolitana Santista, con- em síntese, regras para que as platafor-
firmando a decisão proferida em pri- mas sejam obrigadas a manter no ar to-
meira instância, em 2018. A emissora do o conteúdo que o Ministério Público
tinha em seu quadro societário o então não considera passível de remoção com
deputado federal Antônio Carlos Mar- “justa causa” sem uma ordem judicial,
tins de Bulhões (PRB-SP). como mostra nota da Coalizão Direitos
Ações como essas são fundamen- na Rede (6 set. 2021).
tais para combater a concentração mi- Da mesma forma, a Autoridade Na-
diática no Brasil, mas é preciso um cional de Proteção de Dados (ANPD),
reordenamento no marco regulatório, órgão responsável pela fiscalização e
como acontece em países democráti- aplicação da norma, com início em
cos em todo o mundo. A ausência de 2020, está atrelada ao Executivo e nas
um marco regulatório capaz de enfren- mãos de militares, em um momento-
tar os desafios da concentração midiá- -chave para aplicação dessa legislação,
tica e a regulação de conteúdo, em um visto que durante os primeiros anos de
momento de convergência digital, ele- Mais que espaço ou suporte, trata-se aplicações e conteúdos. A pesquisa trabalho da ANPD serão formulados
va cada vez mais o problema em rela- de um sistema sociotécnico composto apontou que as grandes plataformas, parâmetros e diretrizes para orientar a
ção à busca incessante por audiência. não apenas de tecnologias (redes, pro- como Google e Facebook, constituem aplicação da LGPD, ou seja, as decisões
Isso pode explicar a existência de pro- tocolos, dispositivos, programas), mas monopólios digitais caracterizados por a serem tomadas pela Autoridade agora
gramas policialescos na grade de pro- também de instituições, pessoas e re- forte domínio de um nicho de mercado, definirão como a proteção de dados se
gramação dos principais meios de co- gras. A internet, portanto, é fundamen- grande número de clientes, sejam eles dará no futuro.
municação brasileiros, que, mesmo talmente um espaço de poder em dispu- pagos ou não, operação em escala glo- Observamos, assim, que no Brasil
violando direitos humanos, continuam ta, no qual operam diversos grupos bal, espraiamento para outros segmen- há um desafio acumulado de concen-
sendo exibidos, com cenas e narrativas (governos, organismos multilaterais, tos para além do nicho original, ativi- tração midiática, da radiodifusão ao
cada vez mais violentas. empresas transnacionais e locais, orga- dades intensivas em dados, controle de avanço das plataformas. Essa agenda
nizações da sociedade civil), que bus- um ecossistema de agentes que desen- precisa ser tratada com a seriedade de-
MONOPÓLIOS DIGITAIS cam agir de acordo com seus interesses volvem serviços e bens mediados por vida, em prol de um aspecto fundamen-
Em que pesem os dados ainda muito e adotam estratégias de negócio que suas plataformas e atividades e estraté- tal de nossa democracia – a liberdade de
presentes de exclusão digital no Brasil e afetam a coletividade. gias de aquisição ou controle acionário expressão –, em que todos participem,
as discrepâncias de acesso, a pesquisa Se a internet foi pensada como um de possíveis concorrentes ou agentes como nos ensinou Paulo Freire, de um
“TIC Domicílios” de 2020, realizada pe- espaço aberto, de trocas igualitárias e do mercado. ciclo positivo de comunicação. 
lo Comitê Gestor da Internet no Brasil promessas democratizantes, o que tem Em síntese, as plataformas digitais
(CGI.br), revelou que o Brasil tem 152 ocorrido na última década é a crescen- se firmam na mesma lógica de disputa *Ana Carolina Westrup  é doutoranda em
milhões de usuários de internet, o que te concentração em torno de platafor- de atenção que a radiodifusão, obtendo Sociologia na UFS, pesquisadora do Leep
corresponde a 81% da população com mas digitais e uma crescente inserção seus recursos com o mercado publici- e bolsista CNPq em Tecnologia Social;
10 anos ou mais. Assistimos, portanto, destas na dinâmica capitalista atual. tário, mas com um método mais sofis- Iraildon Mota é comunicador e presidente
à disseminação da internet como um Em 2018, o Intervozes lançou a pes- ticado e complexo, que usa de forma in- da ONG Comradio; Mabel Dias é jornalista
novo lócus de realização das mais di- quisa “Monopólios digitais: concentra- tensiva os dados pessoais dos usuários e mestranda na UFPB. Todos são integran-
versas atividades humanas, dos negó- ção e diversidade na internet”, em que para a captura da atenção e o direcio- tes do Intervozes – Coletivo Brasil de Co-
cios às interações sociais. analisou especificamente a camada de namento de propagandas e conteúdos. municação Social.
8 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

BAND, SBT, RECORD E REDETV! MERGULHAM NO BOLSONARISMO

A mídia e o projeto de grade arrendada sem grandes cons-


trangimentos. A fiscalização, que nun-
ca foi eficiente, tornou-se ainda mais

desdemocratização do Brasil
frágil com as medidas de Michel Temer
(MDB) em 2017, responsável por flexi-
bilizar as regras para a renovação das
concessões e por enterrar a comunica-
ção pública brasileira ainda nos pri-
meiros minutos do golpe de 2016. Além
A crença dos governos petistas de que o fortalecimento da principal adversária do Grupo do rápido e intenso desmonte do proje-
Globo, a RecordTV, pudesse favorecer, do ponto de vista midiático, um cenário mais to de comunicação pública, um dos
primeiros investimentos do governo
plural teve consequências trágicas e centrais na ascensão da extrema direita. Temer foi a compra de conteúdo edito-
A lição de que o controle remoto não resolveria a questão veio tardiamente rial nas emissoras de televisão e de rá-
dio do Brasil em defesa do governo e de
suas propostas reformistas.
POR JANAINE AIRES E SUZY DOS SANTOS* O ex-presidente não é habilidoso so-
mente em escrever cartinhas. Seu pla-

A
comunicação no Brasil nunca foi O fato é que o poder econômico e nica”, isto é, exibição de cultos e de no de publicidade teve como primeiro
democrática, e a dependência da político das igrejas tem moldado a co- missas. Logo, conteúdos como a tele- alvo o que parte da imprensa descreveu
verba pública colabora para que municação nacional, e a maior parte novela bíblica Os Dez Mandamentos, como “os locutores e apresentadores
os interesses políticos do grupo vi- dos líderes religiosos que compõem a comprada pelo governo federal por R$ populares, principalmente do Nordes-
gente penetrem com maior facilidade na base de apoio ao governo de Jair Bolso- 3 milhões para ser exibida na TV Brasil, te”, que seriam pagos para explicar as
programação televisiva e radiofônica e naro é radiodifusora. não entram nesse cálculo. Os telejor- mudanças de um ponto de vista positi-
na imprensa. Focada no entretenimento A transferência direta é o principal nais diários das emissoras religiosas vo. Investiu-se também em youtubers
e com uma estrutura que espelha até ho- mecanismo de acesso aos meios de co- também não. Os reality shows, progra- escolhidos a dedo para defender a re-
je as diretrizes para a comunicação defi- municação por grupos religiosos, que mas de variedades e de entrevistas não forma do ensino médio. A compra de
nidas pela ditadura, é a televisão que compram aos montes as emissoras em são considerados conteúdos religiosos, conteúdo editorial segurou as pontas
constrói a agenda pública brasileira. situação de penúria financeira. À posse mesmo que a atração principal seja o de um governo falido e sem apoio po-
Entre 2003 e 2018 houve uma mu- direta de meios, soma-se o fato de que o papa ou uma cantora gospel. pular e é reproduzida também como
dança paradigmática nesse setor: o nú- arrendamento de programação provo- A televisão brasileira é muito mais parte da estratégia do governo atual.
mero de emissoras sob posse de grupos ca efeitos na estrutura midiática nacio- religiosa do que se imagina. Foi esse Engana-se, porém, quem acredita
políticos tradicionais estagnou e as nal. “Se não vender horário para igreja, capital que os líderes políticos católi- que a compra de conteúdo editorial
emissoras vinculadas a entidades reli- quebro!”, afirmou Marcelo de Carva- cos ofereceram ao atual presidente da tem efeitos somente nas telas e nas on-
giosas quintuplicaram. Atualmente, lho, um dos donos da RedeTV!, em en- República. Como ex-votos modernos, das do rádio. O investimento na mídia
36,5% das emissoras de televisão estão trevista ao repórter Maurício Stycer. os católicos prometeram “mídia positi- reverbera na parcela de representação
ligadas direta ou indiretamente a polí- É por meio do arrendamento que a va”, “boas notícias”, “comunicação pa- política que os meios de comunicação
ticos e/ou parentes, enquanto 42,7% paisagem audiovisual brasileira se al- ra a família” e “uma comunicação em ocupam na Câmara dos Deputados,
são vinculadas a entidades religiosas. terou profundamente. Dados da Anci- defesa da vida e dos costumes” em tro- nas assembleias estaduais, nas câma-
À queima-roupa, os números po- ne de 2016 indicam que o gênero reli- ca de dinheiro e da aceleração de suas ras municipais e nos cargos nos dife-
dem indicar que essa realidade é uma gioso é predominante na programação outorgas. rentes níveis executivos. É como um
consequência da ampliação da por- televisiva nacional, correspondendo a A justiça não aplica os frágeis meca- óleo milagroso que alimenta as engre-
centagem de evangélicos na popula- 21,2% do conteúdo analisado na cidade nismos existentes e insiste não ser pos- nagens ora barulhentas, ora silenciosas
ção brasileira. Ledo engano. A mudan- de São Paulo. Era de se imaginar. Po- sível diferenciar o que é conteúdo e o de um motor midiático-político.
ça reflete a fragilidade das políticas rém, a agência reguladora não inclui que é publicidade. Assim, esse debate Além dos 30% do Congresso que são
públicas para a comunicação no país nessa soma conteúdos que não se en- pouco tem avançado, a ponto de emis- proprietários de concessões de radio-
na garantia de maior equidade, plura- caixem na concepção de “igreja eletrô- soras como a CNT terem 91,2% de sua difusão, desde o período de redemo-
lidade e equilíbrio de vozes. Foi a mí- cratização todas as legislaturas da Câ-
dia capilar e interiorana que permitiu © Marcos Corrêa/PR mara têm em média 10% de deputados
a ascensão de discursos conservado- com perfil que podemos denominar
res, credibilizados pelos meios tradi- como “comunicadores-políticos”. São
cionais e fartamente difundidos pelas políticos que exercem concomitante-
plataformas estrangeiras. mente mandatos eletivos e trabalham
A crença dos governos petistas de como apresentadores, repórteres e/ou
que o fortalecimento da principal adver- comentaristas nos meios de comunica-
sária do Grupo Globo, a RecordTV, pu- ção. Entre 2003 e 2018, 29% estavam
desse favorecer, do ponto de vista midiá- vinculados a programas policiais; 21%,
tico, um cenário mais plural teve a plataformas religiosas; 16%, a progra-
consequências trágicas e centrais na as- mas assistencialistas; 14%, a progra-
censão da extrema direita. A lição de que mas sobre a defesa de direitos; 6%, ao
o controle remoto não resolveria a ques- telejornalismo; e 14%, a plataformas
tão veio tardiamente. Às vésperas do im- diversas, como programas de entrevis-
peachment, em uma ligação para o líder ta e de esportes.
da Igreja Universal do Reino de Deus e Essa realidade é praticamente invi-
então dono da RecordTV, Dilma Rous- sível para a imprensa e mesmo nas mo-
seff (PT) pediu o apoio da emissora e de bilizações políticas. Nos escândalos da
sua bancada de 23 parlamentares: “Eu compra de vacinas, por exemplo, não se
vou orar por você e pelo Brasil”, teria dito cita que o deputado Ricardo Barros
Edir Macedo. A bancada de “aliados” foi (PP), líder do governo na Câmara, acu-
unânime na aprovação do impedimento sado de agenciar a compra de vacinas
da presidenta e, no dia seguinte, já com- superfaturadas, é dono da rádio CBN de
punha o governo interino. Jair Bolsonaro ao lado de Edir Macedo e Silvio Santos no 7 de setembro, 2019 Maringá e casado com a ex-governado-
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 9

ra do Paraná Cida Borghetti (PP), que rães, à Rede Bandeirantes, acusada de do Republicanos, que agrega meticulo- Franca apoiadora do impeachment
nasceu politicamente no programa exigir dinheiro para a divulgação de samente outras denominações religio- de Dilma, a emissora esteve aberta a to-
Curitiba Vips. Ou que Marcos Tolentino, conteúdo, ou seja, a venda de conteúdo sas com e sem mídia, de modo que das as pautas levantadas pelo governo
que chegou à CPI da Covid investigado editorial. Na reunião ministerial, o su- geopoliticamente os interesses do gru- Temer. Quem diria que um salão de be-
como laranja de um banco que teria da- perintendente afirmou: “Hoje de ma- po se mantenham intactos. leza seria o ponto de encontro entre o
do garantias à Precisa Medicamentos nhã, o pessoal da Band queria dinhei- Atualmente, o Republicanos tem 31 poder midiático e político brasileiro?
na intermediação para a compra da Co- ro. O ponto é o seguinte: vai ou não vai deputados federais. Desde sua funda- Foi Robson Jassa que promoveu a con-
vaxin, é dono de uma rede de televisão, dar dinheiro para a Bandeirantes? Não ção, em 2005, o partido mantém a meta versa entre Temer e Santos. Temer e Bol-
a Rede Brasil, e apontado como laranja vai dar dinheiro para a Bandeirantes? de duplicar sua bancada a cada legisla- sonaro, aliás, foram entrevistados em
do deputado federal Celso Russomanno Passei meia hora levando porrada, mas tura. Atualmente, mais da metade tem vários programas do SBT, incluindo o
(Republicanos). repliquei”. vínculos institucionais com a Igreja: mais prestigiado, o Programa Silvio San-
O negacionismo também tem con- O superintendente em questão es- treze são bispos ou pastores da Igreja tos, rompendo um jejum de participa-
cessões de radiodifusão e se sustenta tava participando diariamente do pro- Universal do Reino de Deus, três são da ções políticas da Presidência da Repú-
como a face discursiva da lavagem de grama de Datena, apresentando as me- Assembleia de Deus e um é da Igreja blica de quase uma década na atração.
dinheiro e do projeto de desdemocrati- didas para o pagamento do auxílio Batista. O restante da bancada é forma- A vitória de Bolsonaro fez o conser-
zação nacional. Foi essa mídia essen- emergencial aos brasileiros, com inser- da por radiodifusores e/ou comunica- vadorismo da programação ir mais lon-
cialmente capilar, principal responsá- ções com média de 40 minutos. Datena dores-políticos, como Celso Russo- ge. Na primeira semana após as elei-
vel por privilegiar a perspectiva contestou a informação e disse ao vivo manno (SP), já citado, apresentador do ções de 2018, o SBT exibiu vinhetas em
econômica em detrimento da saúde, que suas participações no programa quadro “Patrulha do Consumidor”, e tons nacionalistas com dizeres como
que conferiu credibilidade às informa- eram gratuitas. Sanado o desconforto Amaro Neto (ES), apresentador do pro- “Brasil, ame ou deixe-o”, que rememo-
ções falsas disparadas pelo gabinete do com a revelação, o superintendente foi grama Balanço Geral ES, por exemplo, ram sua adesão ao autoritarismo e seu
ódio e fortaleceu o discurso de polari- substituído pelo próprio ministro da vinculados à programação da emissora tradicional papel de subserviência, ca-
zação política que opôs o governo fede- Cidadania, responsável pelo auxílio, e de suas afiliadas. pitais políticos fundamentais da emis-
ral aos estaduais. Ônix Lorenzoni, que seguiu partici- A bancada, comumente, é unânime sora. Mais tarde, aderiu ao discurso ar-
Essa espécie de política de celebri- pando do programa diariamente. em seus posicionamentos, e votos con- mamentista e ao recrudescimento das
dades à brasileira e a dependência da Já a RedeTV! investiu na contratação trários aos interesses do grupo impli- leis penais, incorporando programas
verba pública explicam o protagonis- de Sikêra Júnior desde a ascensão de cam saída do partido, da Igreja e da como O crime não compensa, seis dias
mo que Sikêra Júnior e Datena obtive- Bolsonaro. O apresentador bolsonarista emissora. Flávio Bolsonaro (senador depois da posse.
ram como porta-vozes do governo fe- se popularizou por suas participações pelo Rio de Janeiro) foi filiado ao parti- Os principais programas da rede
deral. Seus programas Alerta Nacional cômicas no programa Plantão Alagoas, do, e Carlos Bolsonaro (vereador da ci- são patrocinados pela Havan, loja cata-
(RedeTV!) e Brasil Urgente (Band), res- do SBT em Maceió. Foi criado o progra- dade do Rio de Janeiro) e a ex-mulher rinense de departamento de proprie-
pectivamente, recebem tratamento ma Alerta Nacional, produzido pela TV Rogéria Bolsonaro são filiados. dade de Luciano Hang, um dos princi-
privilegiado como difusores de pro- A Crítica do Amazonas e exibido em ca- À primeira vista, a emissora parece pais empresários que apoiaram o
nunciamentos da Presidência – um deia nacional. O próprio presidente é uma simples apoiadora natural de Te- impeachment e a ascensão da família
contraste significativo, considerando entusiasta do programa e já concedeu mer e de Bolsonaro. Um gesto aparen- Bolsonaro. Seus investimentos nos
os inúmeros episódios de violência diferentes entrevistas exclusivas. Entre temente banal é prova de que, compa- programas da casa, como de Ratinho,
com a imprensa livre. elas, a que comentou uma falsa notícia rada a outras redes, a capacidade de Eliana e Celso Portiolli (Domingo Le-
Bolsonaro concedeu sucessivas en- em que um porteiro não identificado foi barganha é um pouco maior. No dia 1º gal), são importantes.
trevistas exclusivas para o programa notificado como vítima da Covid-19, de setembro de 2019, em pleno Templo Foi ao SBT que a Presidência acenou
Brasil Urgente ao longo da cobertura da mas teria sofrido um acidente ao trocar de Salomão, o presidente da República na crise política provocada pela saída
pandemia, incluindo ocasiões que ante- um pneu. E a que fez no hospital em que prostrou-se de joelhos diante do líder do ex-ministro Sérgio Moro e pelos im-
cediam seus pronunciamentos. Em 16 estava internado com dores abdomi- Edir Macedo e de seu genro, Renato pactos sociais e econômicos da pande-
de março, em 33 minutos, em que se fala nais e soluços persistentes. Cardoso, apresentador do Inteligência e mia de Covid-19. A Presidência decidiu
sobre a participação de Bolsonaro nos A produção tem uma estrutura pe- Fé e do Love School. recriar o extinto Ministério da Comu-
protestos contra a ordem democrática; culiar. No formato, Sikêra comenta ma- Os telejornais da casa frequente- nicação e entregá-lo a Fábio Faria
em 27 de março, em 77 minutos, quando térias de todo o país, acompanhado por mente abrem espaço para o presidente, (PSD), deputado federal potiguar com
classificou a quarentena imposta como um elenco cômico que interpreta e im- mas são os representantes do grupo “ótimo trânsito no Congresso”, como
uma alternativa abusiva e contrariou os provisa respondendo ao seu comando que sempre têm a palavra final e a voz descreveu o ex-presidente da Câmara
números indicados pelos governos esta- teatral. Diferentemente de Datena, sua de autoridade. Assim, a RecordTV se- dos Deputados Rodrigo Maia.
duais; e em 8 de abril de 2020, quando mediação está baseada no drama, e não gue ora “bolsonarista desde crianci- Sem o conhecimento técnico da
deu uma entrevista exclusiva, de 28 mi- no jornalismo. Os comentários radicais nha”, ora sinalizando ruptura. Às ve- área, mas com significativas creden-
nutos, sobre a eficácia da hidroxicloro- e cômicos do programa de televisão são zes, só resta ao vice, Hamilton Mourão, ciais do compadrio, Faria, esposo da
quina. Em maio de 2020, verificou-se editados e disponibilizados na internet correr para apaziguar os ânimos, nem quarta filha de Silvio Santos, Patrícia
uma ruptura mesmo que parcial nesse em pílulas de poucos minutos, permi- que seja embarcando para Angola, o Abravanel, assumiu uma pasta crucial
vínculo. Datena fez pronunciamentos tindo a circulação nas redes sociais e mais recente motivo de conflito entre o para o momento de crise e para o cená-
públicos em que declarava não desejar seu compartilhamento por aplicativos governo e o grupo midiático-político e rio das eleições de 2022. Ele figura ao
mais entrevistar o presidente, embora como o WhatsApp. Quanto mais polê- religioso – uma evidente demonstração lado de Bolsonaro nas caravanas pelo
tenha feito outras entrevistas a posterio- mico o comentário, maior o alcance. de confusão entre o público e o privado Nordeste, região em que o presidente
ri e inserções diárias com representan- Ambos os apresentadores, mesmo que e também da natureza pragmática dos tem baixa penetração, e tem atuado co-
tes do governo federal. não tenham cargos eletivos, classifi- vínculos, consolidada na última déca- mo seu porta-voz perante a imprensa.
Naquele momento, tratava-se de cam-se como comunicadores-políticos da. O grupo costuma pular do barco Turbinada com o poder de outorga de
uma resposta aos ataques que a emis- e desconstroem as barreiras entre os apenas no último segundo. novas concessões de radiodifusão e
sora em que trabalha sofreu na divul- sistemas midiáticos e políticos brasilei- Já o SBT tem outro tipo de estraté- com o controle da verba publicitária es-
gação do vídeo ministerial tido como ros por meio da barganha pela visibili- gia. Seu principal capital político se fir- tatal, a pasta vem promovendo o tal
prova dos autos do inquérito sobre a in- dade e pela mídia positiva. ma nas produções de entretenimento “armistício patriótico” que anunciou,
terferência do presidente na Polícia Fe- A RecordTV é a rede que melhor ad- conservador e acrítico e no apelo popu- alimentando com dinheiro essa cadeia
deral após denúncia do ex-ministro da ministra seus comunicadores-políticos. lar, e se encaixa como uma luva para os midiática dependente. 
Justiça Sérgio Moro. O programa veicu- Sua plataforma articulada nos últimos governos autoritários. Sem a boa dose
lou – inesperadamente, já que desco- anos é taticamente construída na tele- de bajulação que só Silvio Santos é ca- *Janaine Aires é professora da Universi-
nhecia o teor do vídeo antes da exibi- visão e no rádio e calculada nos templos paz de oferecer, o SBT nem existiria, já dade Federal do Rio Grande do Norte; Su-
ção – ao vivo críticas do superintendente da Universal. Seus parlamentares estão que não teria obtido a autorização dos zy dos Santos é professora da Universida-
da Caixa Econômica, Pedro Guima- majoritariamente vinculados ao parti- militares em 1981. de Federal do Rio de Janeiro.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

UMA MÍDIA COMERCIAL CONCENTRADA, OLIGOPOLISTA E ASSENTADA NUM IDEÁRIO COLONIAL

Jornalismo, silenciamentos pluralidade – pilar fundamental do re-


conhecimento da existência e da cida-
dania desses sujeitos políticos indis-

e consensos fabricados
pensáveis para equilibrar a balança
dos poderes existentes na sociedade. 
Seguindo à baila das fontes oficiais
como as principais vozes da notícia, a
grande mídia comercial e hegemônica
incorre numa prática rasa de jornalis-
Como mecanismo de controle, as mídias comerciais agem como ferramentas sociais mo declaratório, o qual pode reforçar,
para a produção de consensos. Para legitimar suas expressões de poder, grande parte no âmbito da política, o personalismo,
marca de projetos autoritários. Além
de suas ações ancora-se na farsa da ideologia burguesa da liberdade de expressão disso, pode corroborar a construção de
e “da cultura de liberdade na prática da autonomia” consensos que reforçam o descrédito
nas instituições públicas e o afasta-
mento dos cidadãos e cidadãs da esfera
POR FRANCIANI BERNARDES E NATALY QUEIROZ* política. Isso se materializa de várias
formas. Uma delas é por meio da crimi-
nalização dos movimentos sociais. Em

C
© Rapha Baggas
omunicação, cidadania e demo- 2011, o Vozes Silenciadas analisou a co-
cracia estão diretamente interli- bertura da mídia acerca do MST. Mais
gadas. Os regimes democráticos da metade das matérias correlaciona a
têm como pressuposto funda- ação do movimento a atos de violência
mental a liberdade de expressão. A no campo, apresentando-o em 42,5%
arena na qual a democracia se forja é o dos casos como autor das ações.
espaço social construído com base em Concomitantemente, ao darem es-
fluxos comunicacionais estabelecidos paço às vozes do capital como prioritá-
entre diversos sujeitos, cada vez mais rias para abordar, por exemplo, pautas
mediados por veículos e tecnologias sobre direitos previdenciários, reforma
de comunicação. O reconhecimento agrária e meio ambiente, os veículos
da pluralidade, bem como de suas ten- comerciais se colocam ao lado de um
sões e complementaridades, como modelo econômico neoliberal, subser-
inerente às práticas democráticas se viente ao Norte global e excludente. No
faz igualmente por meio de processos Vozes Silenciadas que analisou a co-
simbólicos tecidos no cotidiano das bertura jornalística da reforma previ-
representações midiáticas, nas quais denciária de 2019, em um universo de
é possível reafirmar direitos e deveres mais de duzentas matérias produzidas,
partilhados entre os indivíduos. É 72,8% das fontes ouvidas eram favorá-
nessa dialética que se constrói e se va- como a representação midiática do Mo- ção de consensos, os quais podem ser veis ou parcialmente favoráveis à mu-
lida a cidadania. vimento dos Trabalhadores Rurais Sem balizadores da conquista ou da nega- dança da legislação. Apenas 19% apre-
A comunicação é, portanto, ele- Terra (MST), das manifestações de ju- ção de direitos. sentavam posicionamentos contrários
mento político que cimenta nossas re- nho de 2013, da reforma da Previdência, As edições do Vozes Silenciadas, de ou parcialmente contrários.
lações no dia a dia, sendo também do derramamento de petróleo na costa forma geral, revelam que o jornalismo Como mecanismo de controle, as
campo de uma intensa disputa de po- brasileira em 2019 e dos direitos sexuais da grande mídia comercial brasileira se mídias comerciais agem como ferra-
der. A política da grande mídia comer- e reprodutivos das mulheres. mantém como refém dos poderes secu- mentas sociais para a produção de con-
cial brasileira, concentrada, oligopolis- Para isso, colocamos uma lupa sobre larizados da velha política e do capital. sensos. Para legitimar suas expressões
ta e assentada num ideário colonial, o modus operandi dos maiores veículos Isso pode ser evidenciado pela predile- de poder, grande parte de suas ações an-
manifestada em suas narrativas dos fa- de comunicação do país em circulação ção e dependência das fontes oficiais cora-se na farsa da ideologia burguesa
tos considerados relevantes, é um ter- e audiência, a fim de compreender e de- na construção das notícias e reporta- da liberdade de expressão e “da cultura
mômetro que demonstra o tamanho do nunciar como as desigualdades de tra- gens. Essa política midiática, ao dar voz de liberdade na prática da autonomia”.
desafio para manter bases democráti- tamento jornalístico de temas caros à prioritária aos donos do poder, mesmo Não podemos perder de vista que a rela-
cas e cidadãs em um país abalado pelo população se imbricam com as velhas quando existe um tom crítico, tolhe a ção de produção, distribuição e consu-
avanço neoconservador e liberal. desigualdades estruturais de classe, ra- possibilidade de construção de uma vi- mo das informações rebate diretamente
As instituições midiáticas, quando ça e gênero – bases de um sistema so- são ampliada da problemática social na formação da opinião pública.
organismos privados, se configuram co- cioeconômico e político excludente e abordada, circunscrevendo-a às narra- As informações publicadas nas mí-
mo empresas capitalistas de comunica- injusto. No Vozes Silenciadas, as teias tivas de apenas um grupo social. dias podem ser, ao mesmo tempo, um
ção, que visam ao lucro. Nesse sentido, o da narrativa midiática são analisadas Na análise da cobertura sobre o espetáculo de mercadorização da in-
papel mercantil dos meios de comunica- com base em critérios qualitativos e derramamento de petróleo na costa formação ou a expressão de resistên-
ção ultrapassa a função dos outros seto- quantitativos, tais como espaço dedica- brasileira, por exemplo, 60% das vozes cias. O Vozes Silenciadas evidencia
res econômicos, pois, além de serem for- do ao tema nos meios de comunicação, escutadas pela imprensa eram repre- que o direito à comunicação e a demo-
madores da opinião, sua mercadoria, ganchos temáticos, tipo de abordagem sentantes do poder público, majorita- cracia necessitam de um jornalismo
que é a notícia, atua como mecanismo e fontes consultadas, entre outros.  riamente das Forças Armadas e do Exe- que se efetive como campo voltado ao
de controle e dominação, posição cen- Num período histórico em que a cutivo federal. Apenas 5% das fontes e interesse público. 
tral nesse processo de hegemonia. própria política se midiatiza e distintos personagens eram de povos e comuni-
Há uma década, o Intervozes – Cole- agentes disputam o sentido da demo- dades tradicionais, aqueles que tive- *Franciani Bernardes  é jornalista, douto-
tivo Brasil de Comunicação Social de- cracia mediados por tecnologias de in- ram sua vida e seu sustento diretamen- ra em Comunicação e pesquisadora do Ob-
senvolve uma série de pesquisas intitu- formação e comunicação, ressalta-se o te afetados pelo desastre. Ao agir assim, servatório da Mídia, Direitos Humanos, Po-
ladas Vozes Silenciadas, sobre a papel dos meios de comunicação na secundarizando e/ou emudecendo as líticas e Transparências (Ufes); Nataly
cobertura da mídia acerca de temas fun- construção das agendas sociais. Nesse vozes de grupos social e historicamen- Queiroz é jornalista, professora universitá-
damentais para a democracia e para a contexto, o sujeito que fala e, conse- te excluídos, como comunidades tradi- ria e doutora em Comunicação. Ambas fa-
conquista da cidadania plena. Nesse pe- quentemente, se evidencia nas mídias cionais, mulheres, negros e negras, en- zem parte do Intervozes – Coletivo Brasil
ríodo nos debruçamos sobre assuntos tem lugar privilegiado na sedimenta- tre outros, a mídia retira de cena a de Comunicação Socia
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 11

PROGRAMAS POLICIAIS NA TV

Violações de na, as decisões foram 83,3% desfavorá-


veis.4 Além disso, o tempo médio de jul-
gamento é de cinco anos, o que

direitos ao vivo
contraria a lógica imediata televisiva.
A ausência de fiscalização estatal e
a morosidade judiciária tornam o am-
biente televisivo livre para exibir o cor-
po estendido no chão. A chegada do
streaming e a expansão de público do
O maniqueísmo bem versus mal é um traço definidor do discurso simplista utilizado YouTube elevaram a competitividade
para alcançar rapidamente a compreensão do público nos programas policiais na TV. do setor. A busca pela audiência gera
disputas acirradas, intensificando ain-
Deus e o diabo. Polícia e ladrão. Marginal e trabalhador. Posicionar o suspeito contra da mais seu caráter sensacionalista.
o “cidadão de bem” engaja o público em uma sensação de pertencimento e Por isso, a criação de uma legislação
compartilhamento de emoções específica oportunizaria um modelo
mais consistente e estável. Em um plano
ideal, a legislação contemplaria um sis-
POR TICIANNE PERDIGÃO* tema sancionatório robusto, com maior
agilidade e hipóteses claras de infração.

A
visibilidade alcançada pelo apre- Deus no coração. Reconhecem? Deus e diência às leis ou às decisões judiciá- A aplicação das sanções seria feita por
sentador Sikêra Júnior no Alerta o diabo. Polícia e ladrão. Marginal e rias; exposição indevida de pessoa ou um novo órgão fiscalizatório indepen-
Nacional (RedeTV!) retomou o trabalhador. Posicionar o suspeito con- família; discurso de ódio e preconceito dente, dinâmico e com representantes
debate sobre os limites éticos ul- tra o “cidadão de bem” engaja o público de raça, cor, etnia, religião, condição de diversos setores da sociedade.
trapassados por programas policiais. em uma sensação de pertencimento e socioeconômica, orientação sexual ou Enquanto isso não acontece, os ca-
Com uma postura cênica e uma lingua- compartilhamento de emoções. procedência nacional. sos que chegam aos olhos do Estado ou
gem popular em tons de deboche e re- Ainda, os discursos frequentemente É relevante observar que, enquanto que ativam o sistema judiciário têm em
volta, Sikêra gera polêmicas ao come- apoiam a truculência militar e defen- concessionárias do serviço público, as comum uma forte mobilização social.
morar a morte de suspeitos com o dem a violência e o recrudescimento das emissoras estão sujeitas a deveres, in- Diante da dificuldade de mudanças es-
jargão “CPF cancelado” ou chamar ho- leis penais contra o crescimento da cri- clusive acerca do conteúdo veiculado. truturais a curto prazo, pressionar po-
mossexuais de “raça desgraçada”. minalidade. De outro modo, por vezes, Na Constituição existem orientações líticos, debater e dar visibilidade ao te-
Desde os anos 1960, programas po- há um incentivo à “justiça com as pró- sobre os princípios e as finalidades que ma movimenta as peças disponíveis.
licialescos como Polícia às suas Ordens, prias mãos”, que fragiliza instituições devem ser seguidos pelas emissoras, Aqui agora. 
da TV Excelsior (1966), Patrulha da Ci- democráticas. Nesse cenário, os apre- como a preferência pelas atividades
dade, da TV Tupi (1965), e a primeira sentadores se colocam como defensores culturais, educativas e informativas. *Ticianne Perdigão é mestra em Direito
versão de O Homem do Sapato Branco, da moral e dos bons costumes, em prol No plano infraconstitucional, há atos (UFPE), doutora em Comunicação (UFPE)
exibido pela Rede Globo (1968), já fa- da paz social. O tom de indignação ser- normativos mais específicos, como o e professora universitária.
ziam a cobertura de crimes dramati- ve, ao telespectador, como forma de des- Código Brasileiro de Telecomunicação
1   E m pesquisa realizada pela socióloga Esther
zando a realidade com trilhas sonoras pressurizar seu medo da violência ou e o Regulamento dos Serviços de Radio- Solano, a cultura militar relacionada à ética, à
de suspense e sons de sirenes e tiros. suas dificuldades econômicas e sociais difusão,2 que aprofundam as orienta- disciplina e à defesa da moral e dos bons cos-
No entanto, foi no começo da déca- – do preço do gás alto ao ônibus lotado. ções de conteúdo e preveem fiscaliza- tumes foi essencial para eleger o último presi-
dente. SOLANO, E. Crise da democracia e
da de 1990 que o programa Aqui Agora, Quando Sikêra chama os homosse- ção e sanção estatal para as emissoras. extremismos de direita . São Paulo: Friedri-
do SBT (1991), inovou o formato, trans- xuais de “raça desgraçada”, o apresen- No entanto, mesmo diante do pre- chEbert-Stiftung, 2018.
ferindo a narrativa radiofônica para a tador defende o retorno aos valores tra- juízo social, o Estado não toma medi- 2   O Código Brasileiro de Telecomunicação é de
1962 (Lei n. 4.117) e o Regulamento de Servi-
televisão. Seu principal expoente, o ra- dicionais, a exemplo de família e das para coibir abusos produzidos pe- ços de Radiodifusão é de 1963 (Decreto
dialista Gil Gomes, destacava a entona- religião, como forma de restauração da las emissoras. De 2011 a 2018, apenas n. 52.795). Ambos foram modificados durante
ção das palavras e aumentava os efeitos ordem social. Essa pauta conservadora cinco emissoras receberam algum tipo o período da ditadura militar. Mesmo conside-
rados ultrapassados, o engessamento é man-
de suspense e a emoção. A linguagem pareceu mais evidente nas eleições de de sanção por extrapolarem limites da tido exatamente pela incapacidade de provo-
coloquial aproximou os públicos C e D 2018, mas programas policiais sempre liberdade de expressão.3 Diante da car riscos a emissoras.
dos programas denominados informa- estiveram aí.1 inércia do Estado, a via judicial é utili- 3   O levantamento foi realizado pela autora. CA-
BRAL, Ticianne M. P. Fiscalização estatal so-
tivos, gerando uma forte audiência. A Em 2015, um estudo realizado pela zada como saída. Mas o diagnóstico bre o conteúdo televisivo: violações de direitos
mudança de horário também foi im- Andi localizou mais de 8 mil violações também não é bom. Quando a alterna- em programas policiais. Tese (Doutorado em
portante. Exibidos mais cedo, seu su- de direitos em programas policiais em tiva de proteção desses direitos depen- Comunicação) – Programa de Pós-Graduação
em Comunicação. Recife, 2019. São três os ti-
cesso rendeu versões regionais e se apenas trinta dias, como: desrespeito à de de ações civis públicas pelo Ministé- pos de sanções: multa, suspensão de um a
multiplicou pelo país. presunção de inocência; incitação ao rio Público contra conteúdos televisivos trinta dias da programação e cassação (art.
Atualmente, o apresentador tem crime e à violência; incitação à desobe- ofensivos à dignidade da pessoa huma- 122 da Lei n. 4.117). Nesta última, a Constitui-
ção Federal determina que o cancelamento da
maior destaque, mais tempo de estúdio cassação só pode ser feito por decisão judi-
e notícias transmitidas “ao vivo”. É o cial. Nesse caso, especificamente, o processo
âncora condutor do programa que in- deve ser encaminhado para apreciação do Po-
der Judiciário. Nos exemplos citados, as emis-
terfere na cobertura, que pede o enqua- soras foram penalizadas por: “Não transmitir
dramento e a repetição de imagens e programas que atentem contra o sentimento
produz um discurso fortemente opina- público, expondo pessoas a situações que, de
alguma forma, redundem em constrangimento,
tivo e recheado de juízos de valor con- ainda que seu objetivo seja jornalístico”
tra os suspeitos. (art. 28, 12, “b”, do Decreto n. 52.795/1963) e
De modo geral, a construção narra- “Promover campanha discriminatória em razão
de classe, cor, raça ou religião” (art. 122, V, do
tiva é marcada pela ausência de con- Decreto n. 52.795/1963).
textualização dos problemas relativos à 4   A pesquisa foi realizada pela autora sobre 24
violência e à segurança pública. O ma- ações que chegaram à segunda instância.
Não houve delimitação temporal, sendo con-
niqueísmo bem versus mal é um traço sideradas todas as ações localizadas no site
definidor do discurso simplista utiliza- dos tribunais até 2012. CABRAL, Ticianne M.
do para alcançar rapidamente a com- P. Controle jurisdicional de conteúdo da pro-
gramação televisiva comercial aberta . Disser-
preensão do público. Um bandido que tação (Mestrado em Direito) – Programa de
comete um crime como esse não tem Pós-Graduação em Direito. Recife, 2013.
© Rapha Baggas
12 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

O PAPEL DA IMPRENSA PERIFÉRICA, ALTERNATIVA E COMUNITÁRIA

Certas dores não aparecem no jornal


As vozes silenciadas pela imprensa tradicional têm rosto. Entretanto, as mídias periféricas, alternativas e comunitárias,
muitas e múltiplas, estão espalhadas pelos quatro cantos do país. São uma forma de comunicação – jornalística
ou não – que, além de informar, têm o papel de fortalecer identidades, memórias e decisões sociais e políticas

POR RAÍSSA EBRAHIM*

C
© Rapha Baggas
onceição das Crioulas é uma co- ma da comunicação no Brasil sem
munidade quilombola localizada entender que vozes são ouvidas e que
no sertão de Pernambuco, dis- vozes são silenciadas, sobretudo em
tante 550 quilômetros da capital contextos de ameaças.
Recife. O centro urbano mais próximo, Território Vivo é o desdobramento
Salgueiro, fica a 40 quilômetros dali. de outro projeto, o Mapa da Comunica-
Conta a história, baseada na memória ção Popular do Grande Recife, que já
coletiva e oral, que, no fim do século mapeou 38 grupos no segundo maior
XVIII, seis mulheres negras livres, guia- aglomerado urbano do Norte-Nordeste
das por um escravo rebelado, chegaram e vai compartilhar um mapa georrefe-
ao local, fixaram moradia e iniciaram renciado e interativo mostrando onde
uma história de luta e resistência. essas iniciativas estão, o que produ-
Hoje, 750 famílias moram em Con- zem, que plataformas utilizam e como
ceição das Crioulas. Muitas vivem da se financiam.
agricultura familiar, da pecuária e de A Marco Zero é uma das organiza-
uma belíssima herança feminina de ções de jornalismo independente do
produção artesanal com fibras natu- Nordeste que apostam na produção de
rais, palha e barro. O quilombo é um conteúdo aprofundado que dê desta-
dos tantos alvos de processos de regu- que a temas de interesse público invisi-
larização fundiária lentos, inacabados bilizados pela grande mídia. Abordam-
e que abrem caminho para conflitos e -se questões relacionadas a direitos
violações de direitos Brasil afora. UM RELEITURA humanos, democracia, gênero, direito
SOBRE BANKSY
Durante décadas, o acesso a Concei- à cidade e justiça socioambiental, pau-
ção das Crioulas só era possível por meio tas que contemplam territórios falando
de uma esburacada e desnivelada estra- se ponto, não consigo enxergar nin- O documentário PE-460: uma luta sobre perda de direitos e violações.
da de terra. Após muitos anos de mobili- guém melhor do que os próprios ancestral foi produzido graças a um Quando o petróleo cru inundou al-
zação, organização política e promessas quilombolas da Crioulas Vídeo para edital de microbolsas para a constru- guns desses territórios, em 2019, as
governamentais não cumpridas, a co- contar essa antiga história de luta por ção de narrativas com base em vivên- primeiras notícias sobre o maior inci-
munidade finalmente conseguiu o di- uma estrada. Uma estrada. Em que jor- cias em territórios periféricos urbanos dente com petróleo da história do
reito de ir e vir com segurança graças à nal é notícia a construção de uma pista e rurais de Pernambuco. O projeto Ter- Oceano Atlântico Sul só começaram a
construção de uma pista de asfalto. de 40 quilômetros no sertão? O mesmo ritório Vivo incentivou a produção de aparecer mais de um mês depois de as
Essa história de conquista virou sertão que boa parte da imprensa ainda reportagens multimídia de cinco gru- primeiras manchas atingirem as
símbolo recente de afirmação coletiva estereotipa de “Brasil profundo”. pos sobre aspectos da vida relaciona- praias. O Intervozes – Coletivo Brasil
do quilombo pelo bem comum e pela Num universo de disputas de narra- dos aos direitos essenciais das comuni- de Comunicação Social mostrou isso
luta contra o racismo. Virou também tivas, a produção de conteúdo audiovi- dades, seja na denúncia de violações na publicação “Vozes silenciadas”, que
um documentário produzido pelos sual de Conceição das Crioulas é um desses direitos ou na organização da olhou para onze veículos, sendo sete
próprios quilombolas da Crioulas Ví- exemplo de como essa comunicação sociedade civil para garanti-los. de abrangência nacional e quatro de
deo, o PE-460: uma luta ancestral (16 tem função fundamental na garantia A iniciativa foi promovida pela Mar- abrangência regional.
min), lançado em 2020. do direito à informação e à representa- co Zero (www.marcozero.org), organi- O levantamento analisou, em veí-
A pauta tão importante para Con- tividade, diante de uma mídia que ta- zação de jornalismo independente fun- culos com papel fundamental na for-
ceição das Crioulas não foi abordada cha de “regional” o que é produzido no dada em 2015 e com sede no Recife e mação da opinião pública, no im-
pela grande mídia. Nem será. Certas Norte e no Nordeste e de “nacional” o pelos Repórteres Sem Fronteiras, no presso e na TV, que vozes foram ampli-
dores não aparecem no jornal – e elas que é produzido abaixo dessa linha. âmbito do Projeto de Apoio ao Jornalis- ficadas e que vozes foram silenciadas.
têm cor, classe e geografia certas. As Faltam incentivos e suporte institu- mo (Pajor). Lançado em 2020, o Pajor Além de muito atrasadas, as notícias
vozes silenciadas pela imprensa tradi- cional fora dos centros de poder, e o terá três anos de duração e vai contri- com referências ou nomeações de ho-
cional têm rosto. Mas ele nem sempre que nos últimos anos chamamos de buir com uma rede de oito veículos de mens e mulheres das águas – pescado-
passa pelo que convencionamos cha- “desertos de notícias” se confunde com comunicação espalhados por quatro res e marisqueiras tradicionais – foram
mar no jornalismo de “critérios de noti- um “deserto de financiamento”. A estados de três regiões do Brasil: Ama- quase que apagadas das manchetes,
ciabilidade”. Não é relevante. Mas rele- maior parte do dinheiro circulante tem zônia Real e Rede Wayuri, do Amazo- apesar das denúncias de populações
vante para quem? destino certo. Sem dinheiro, dificil- nas; Ação Comunitária Caranguejo costeiras, cientistas, pesquisadores e
As narrativas periféricas, alternati- mente há produção. Sem produção, Uçá e Marco Zero, de Pernambuco; da- ativistas que gritavam. O crime, que
vas e comunitárias são muitas e múlti- não há circulação. E o que não circula ta_labe e Fala Roça, do Rio de Janeiro; continua sem culpados, punições nem
plas. Elas estão espalhadas pelos qua- não amplifica vozes que precisam ser Alma Preta e Nós, Mulheres da Perife- multas, atingiu mais de mil localida-
tro cantos. São uma forma de ouvidas. Sim, amplificar, e deixar para ria, de São Paulo. des em onze estados e 130 municípios
comunicação – jornalística ou não – trás a ideia de que os meios de comuni- O Pajor parte da premissa de que brasileiros. 
que, além de informar, têm o papel de cação “dão voz”. Voz (quase) todo mun- uma mídia independente e plural é es-
fortalecer identidades, memórias e de- do tem a sua. Jornalismo não existe pa- sencial para a manutenção das demo- *Raíssa Ebrahim  é repórter na Marco Zero
cisões sociais e políticas. Partindo des- ra dar nada a ninguém. cracias. Não dá para fazer um panora- Conteúdo.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 13

A CHINA REFESTELA-SE EM REGIÃO DESDENHADA PELOS ESTADOS UNIDOS

A luta da Águia contra o quase US$ 137 bilhões em empréstimos


para financiar projetos de infraestrutura
(portos, estradas, barragens e ferrovias):7

Dragão na América Latina


atualmente, o montante dos emprés-
timos chineses concedidos aos países
latino-americanos supera os do Banco
Mundial e do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) juntos.8
Repentino e maciço, o desembarque
Navios norte-americanos cruzam o Mar da China. De forma mais silenciosa, Pequim da China na América Latina começou a
avança seus peões em uma região que a Casa Branca considera um “quintal”: a América preocupar: ao escapar dos Estados Uni-
dos, teria a região caído sob o jugo de
Latina. Após tentarem um retorno ao seio de Washington, os governos conservadores do um novo império, o do Meio? “Para além
subcontinente, eleitos nos anos 2010, descobriram que os Estados Unidos são um aliado do discurso da cooperação Sul-Sul, as
exigente e pouco generoso assimetrias persistem”, analisa Sophie
Wintgens, pesquisadora do Centro de
Estudos da Vida Política da Université
POR ANNE-DOMINIQUE CORREA* Libre de Bruxelles. “No plano comercial,
a China permitiu reduzir a dependência
dos países latino-americanos em rela-

E
m 9 de dezembro de 2020, a Deve- relação à região, George W. Bush acabou mericano e de representantes da Drug ção aos Estados Unidos. Mas ela repro-
lopment Financial Corporation dedicando seus mandatos à “luta con- Enforcement Administration (DEA), duz o modelo de comércio Norte-Sul:
(DFC), uma agência de financia- tra o terrorismo” no Oriente Médio e no depois de sofrer uma tentativa de golpe vende produtos manufaturados e com-
mento dos Estados Unidos, de- Afeganistão, após os atentados contra o em 2008. Cinco anos depois, expulsou a pra matérias-primas”.
sembarcou no Equador levando na ma- World Trade Center em 2001. Em abril Agência dos Estados Unidos para o De- No plano econômico, persiste o fe-
la um “novo modelo” de acordo-quadro de 2009, três meses depois de se mudar senvolvimento Internacional (Usaid), nômeno da “dependência” denunciado
para os países latino-americanos. Ele para a Casa Branca, Barack Obama pro- acusando-a de “perseguir fins políticos ao longo do século XX por economistas
consistia na concessão de um emprés- clamou “um novo capítulo no relaciona- em vez de sociais”.5 Esses governos tam- progressistas latino-americanos. E ele
timo de US$ 3,5 bilhões para “ajudar” o mento”3 entre os Estados Unidos e seus bém nacionalizaram recursos naturais pode se intensificar ainda mais com a
governo equatoriano a pagar a “dívida vizinhos do Sul. Mas outro lugar atraía e aumentaram os impostos sobre os lu- integração de dezoito países da região
predatória” contraída junto à China mais suas preocupações: em 2011, ele cros das empresas transnacionais que à Nova Rota da Seda chinesa, um vasto
doze anos atrás. Em troca, o Equador se decidiu “reequilibrar” a política externa operavam em seus territórios. “Tais me- programa de infraestrutura lançado em
comprometia a aderir ao programa de seu país por meio de um “pivô” para didas afugentaram diversas companhias 2013 por Xi Jinping para colocar o país
Clean Network (Rede Limpa), lançado a Ásia e o Pacífico, relegando a América ocidentais, que não queriam mais traba- no centro das redes de comércio e geo-
em 2019 pelo ex-presidente dos Estados Latina a uma posição bem baixa na or- lhar nas novas condições impostas pelos política globais. No entanto, em uma
Unidos Donald Trump, cujo objetivo é dem de suas prioridades políticas. governos de esquerda”, explica Rebecca região que sofre de um déficit flagrante
excluir as companhias chinesas dos O segundo fator que explica o suces- Ray, pesquisadora da área de Economia de investimentos em infraestrutura –
contratos de instalação da tecnologia so chinês ao sul do Rio Bravo remonta da Universidade de Boston e especialis- depois da África Subsaariana, a Améri-
5G em todo o mundo. aos anos 1980, quando a crise da dívida ta em relações sino-latino-americanas. ca Latina é a que menos gasta nesse se-
Negócio fechado. Em 14 de janeiro assolou a América Latina. Entregue aos Nesse contexto, poucas nações dis- tor (2,5% ao ano segundo o BID)9 –, tais
de 2021, o presidente conservador equa- “bons cuidados” do FMI e do Banco punham de recursos tecnológicos e fi- preocupações ficam em segundo plano.
toriano, Lenín Moreno, reafirmou sua Mundial, a região passou por um severo nanceiros capazes de atender às neces- A construção de uma ferrovia transcon-
lealdade à Casa Branca, mesmo que isso ajuste estrutural: enquanto o cresci- sidades de uma América Latina ansiosa tinental ligando as costas do Atlântico
significasse atrasar em seu país o desen- mento do PIB per capita ruía – passando por independência. Todos os olhos se e do Pacífico, um dos principais pro-
volvimento da inteligência artificial, da de 80% entre 1960 e 1979 para 11% de voltaram para a China. Em seu primeiro jetos da China, atende a um sonho do
robotização e da internet das coisas. Os 1980 a 1999 –, o número de pessoas vi- livro branco dedicado à América Latina, empresariado local, sobretudo brasi-
Estados Unidos não escondem suas mo- vendo abaixo da linha da pobreza prati- publicado em 2008,6 a potência asiática leiro. “A China está apenas preenchen-
tivações: “A DFC foi criada para que ne- camente dobrou, passando de quase 120 apresentou-se como uma parceira em do as lacunas deixadas por décadas de
nhum Estado autoritário tenha influên- milhões em 1980 para mais de 210 mi- “um nível de desenvolvimento seme- políticas neoliberais que reduziram o
cia indevida sobre outro país”, explica lhões em 2004. Esse profundo mergulho lhante” ao dos países latino-americanos. papel do Estado ao confiar nosso de-
Adam Bohler, diretor da agência.1 Em- na miséria explica, pelo menos em parte, Ela prometia uma cooperação baseada senvolvimento quase exclusivamente
bora por muito tempo insensíveis à che- a ascensão ao poder de líderes de es- “na igualdade, no benefício mútuo e no ao mercado”, defende Osvaldo Rosales,
gada dos chineses a seu “quintal”, agora querda na primeira década dos anos desenvolvimento compartilhado”. ex-diretor da divisão de comércio in-
os Estados Unidos estão preocupados: a 2000. Cansada da ingerência dos Estados No rescaldo da crise de 2008, as ins- ternacional e integração da Comissão
potencial instalação do 5G pela Huawei Unidos, essa “onda vermelha” tentou tituições financeiras chinesas (Banco de Econômica para a América Latina e o
na América Latina parece ter mudado emancipar-se da tutela de Washington. Desenvolvimento da China e Banco de Caribe (Cepal). “Muito mais do que a
a situação. Paradoxalmente, a “invasão Exportação e Importação da China) ofe- China, são elas as responsáveis por essa
chinesa” denunciada pelos Estados Uni- ENTUSIASMO COM receram crédito aos países latino-ameri- estrutura de comércio.”
dos é resultado direto de suas próprias AS ROTAS DA SEDA canos que encontravam dificuldade para A Nova Rota da Seda desperta tanto
opções geopolíticas para a região, de Mal foi eleito chefe do Equador, Rafael obter empréstimos nos mercados inter- entusiasmo que Pequim tem consegui-
modo que a situação atual poderia ser Correa classificou o representante do nacionais, como a Venezuela, a Argentina do impor sua política de “uma só China”.
explicada menos pela astúcia do Dragão Banco Mundial, em 2007, como persona e o Equador. Mais flexível que os Estados Entre 2017 e 2018, El Salvador, Panamá
do que pelas bicadas da Águia. non grata. Ele fechou a base militar dos Unidos, a China ofereceu a possibilidade e República Dominicana decidiram re-
Desde a integração da China à Orga- Estados Unidos em Manta e suspendeu de ser paga em commodities. Essa fórmu- conhecer diplomaticamente a China
nização Mundial do Comércio (OMC), as negociações de livre comércio em an- la permitiu ao país garantir o suprimen- para que pudessem participar do proje-
em 2002, sua presença cresceu conside- damento. No mesmo ano, o presidente to de recursos naturais necessário para to – fazendo cair para nove o número de
ravelmente na América Latina. Primeiro, Hugo Chávez retirou a Venezuela do FMI atender ao apetite crescente de sua clas- aliados de Taiwan na região. A reaproxi-
porque os Estados Unidos estavam com e do Banco Mundial, acusando-os de se média. Essa estratégia “ganha-ganha” mação do gigante asiático com os países
os olhos voltados para outro lugar. De- serem “instrumentos do imperialismo” deu frutos: a China é hoje o maior parcei- caribenhos, situados no cruzamento
pois de prometer, ao longo da campa- dedicados a “saquear” os países pobres.4 ro comercial do Brasil, do Chile, do Peru e entre os oceanos Atlântico e Pacífico,
nha presidencial de 2000, deixar no pas- Na Bolívia, o presidente Evo Morales do Uruguai, bem como o maior credor da garante o acesso a centros estratégicos
sado a “indiferença de Washington”2 em exigiu a saída do embaixador norte-a- região. Desde 2005, ela já desembolsou de comércio, bem como a ampliação do
14 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

número de votos chineses nas institui- padrões ambientais e sociais dos trata- ram empréstimos de US$ 4,5 bilhões e Obcecado pela construção de um muro
ções internacionais. dos”, analisa Wintgens. “O desempenho US$ 11 bilhões, respectivamente, em na fronteira de seu país com o México e
Na China, a atitude norte-america- ambiental e social dos investidores chi- troca de pacotes de austeridade. Mas pela asfixia financeira da Venezuela, sua
na é abertamente criticada: os Estados neses não é pior que o dos ocidentais”, eles foram contestados por grandes mo- política para a América Latina parecia
Unidos “pensam que a América Latina é completa Ray, admitindo implicitamen- bilizações e acabaram sendo retirados. guiada pelas exigências da comunidade
seu quintal”, declarou em 2019 Lu Kang, te que também não é melhor. Acima de tudo, porém, a “onda azul” hispânica de seu país e pela vontade de
um porta-voz do Ministério das Rela- enfraquece a posição geopolítica da conter a imigração oriunda da América
ções Exteriores, antes de apresentar seu RETORNO AOS BRAÇOS América Latina, privando-a de seu prin- Central. Em 2017, Trump chegou a retirar
país como “o verdadeiro amigo” dos la- DE WASHINGTON cipal escudo contra as pressões externas: os Estados Unidos do Acordo de Parceria
tino-americanos.10 Em campo, porém, a De volta ao poder na maioria dos países a integração regional. Ela abandonou a Transpacífica, um tratado liderado por
população constata que as companhias latino-americanos a partir de 2014, a di- Comunidade de Estados Latino-Ameri- Barack Obama em 2015 para rivalizar
chinesas não se comportam necessaria- reita tem operado um realinhamento com canos e Caribenhos (Celac), único fórum com a China em sua vizinhança, ratifica-
mente de forma mais altruísta do que as preferências geopolíticas dos Estados que reúne os 33 países da região e princi- do pelo México, pelo Chile e pelo Peru.
suas congêneres norte-americanas. “A Unidos: de aliada, a China passou a ser pal espaço de discussão com a China. Da O roteiro chinês “Made in China
China nem sempre é bem-vista na re- uma ameaça. Em visita a Washington, em mesma forma, após discordâncias a res- 2025” marca um ponto de inflexão.
gião”, resume Margaret Myers, diretora 2019, o presidente salvadorenho, Nayib peito da crise venezuelana em 2018, seis Lançado em 2015, o programa preten-
do programa Ásia e América Latina do Bukele, garantiu que a China “desenvol- países da região suspenderam sua parti- de tornar a China tecnologicamente
instituto Interamerican Dialogue. “Os ve projetos que não são viáveis, deixando cipação na União das Nações Sul-Ame- autônoma, investindo mais em setores
investimentos chineses enfrentam cada os países com dívidas enormes e impa- ricanas (Unasul), que deveria funcionar de tecnologia de ponta, como robótica,
vez mais inquietudes por parte de orga- gáveis, e usa isso como alavanca finan- como contrapeso à Organização dos Es- inteligência artificial e informação. Um
nizações da sociedade civil.” ceira”.11 No Equador, Moreno qualificou tados Americanos (OEA), braço armado ano depois, Pequim anunciou, em um
No Equador, a morte de treze traba- os acordos fechados por seu antecessor dos Estados Unidos na região. Em 2019, novo livro branco destinado à América
lhadores durante a inundação do can- com a China como “pouco transparen- a Unasul foi trocada pelo Fórum para o Latina, a abertura de uma “nova fase”
teiro de obras da enorme hidrelétrica tes”, acusando-os de “prejudicar o país”.12 Progresso da América do Sul,14 mais co- de cooperação mais voltada à “inovação
Coca Codo Sinclair, em 2014, chamou Durante sua campanha eleitoral de 2018, nhecido pela sigla Prosul. “Esse meca- científica e tecnológica”, acrescentando
a atenção para as irregularidades re- o conservador brasileiro Jair Bolsonaro nismo perverso na verdade deveria cha- seu desejo de desenvolver “intercâm-
lacionadas às condições de trabalho. declarou que “a China não compra do mar ‘Pronorte’”, ironiza Ernesto Samper, bios” no plano militar.15
Um ano depois, no Peru, o presidente Brasil, compra o Brasil”,13 sob o risco de ex-presidente da Colômbia (1994-1998) Desde então, “mudou a natureza do
Ollanta Humala teve de declarar esta- contrariar uma de suas mais poderosas e ex-secretário-geral da Unasul (2014- envolvimento da China [na região]”, ob-
do de emergência em Las Bambas após bases sociais: os grandes exportadores de 2017). “Essa aliança de países de direita serva Myers. “Ela não vende mais calça-
protestos de moradores locais contra carne bovina e soja, que dependem am- tem como ponto de união apenas o ódio dos, tecidos e baldes de plástico, mas um
um projeto de mineração de cobre que plamente do mercado chinês. à Venezuela e o servilismo aos Estados amplo leque de produtos e serviços com
resultou na morte de quatro pessoas. Diante das dificuldades econômicas, Unidos.” Assim dividida, a América La- alto conteúdo tecnológico.” As compa-
Em 2018, a Bolívia adiou a construção muitos se reconfortaram nos braços do tina volta a ser uma presa fácil para a nhias de telecomunicações chinesas
da hidrelétrica Rositas, após as comu- FMI. Em 2018, o presidente argentino, Águia norte-americana. exportam câmeras de vigilância para o
nidades locais reclamarem não terem Mauricio Macri, recorreu ao maior res- Equador e a Bolívia, e fabricam cartei-
sido consultadas antes do lançamento gate financeiro da história do país: um PEQUIM ENVIA MILHÕES DE VACINAS ras de identidade “inteligentes” para a
do projeto. “Ao operar de forma bilate- envelope de US$ 57 bilhões pagos pelo Quando Trump chegou à Casa Branca, Venezuela. A China também embarcou
ral, a China cria uma concorrência entre FMI. Em 2019 e 2021, os conservadores em 2016, ele não parecia mais interessa- na construção de uma estação espacial
os países, pressionando para baixo os Lenín Moreno e Iván Duque consegui- do na região do que seus antecessores. na Patagônia e vendeu armas e sistemas

© DAPENHA
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 15

militares para vários países latino-ame- cláusula que lhe concede direito de veto dos governos, independentemente de Equador a pagar empréstimos à China], Fi-
nancial Times, Londres, 14 jan. 2021.
ricanos por uma quantia de US$ 615 mi- sobre os acordos comerciais firmados considerações ideológicas.” Bem como, 2    Tim Padgett, “Why Latin America Bashes
lhões entre 2015 e 2019. por seus parceiros com países aos quais certamente, a das populações que ela Bush” [Por que a América Latina enfrenta
Assim, os Estados Unidos acabaram os Estados Unidos recusam o título de ajuda a libertar do sofrimento. Bush], Time, Nova York, 4 nov. 2005.
3   Michael Reid, “Obama and Latin America”
acordando de ressaca: a China não é mais “economia de mercado” – sendo a Chi- No Brasil, o presidente Bolsonaro, [Obama e a América Latina], Foreign Affairs,
a “fábrica do mundo”, mas uma potência na o principal deles. Depois, em 2019, a depois de ter ocupado as manchetes Nova York, set./out. 2015.
tecnológica, que logo poderá ditar regras DFC lançou um plano de investimento por causa do tuíte de seu filho Eduardo, 4   “ Le Venezuela se retire du FMI et de la Banque
mondiale” [Venezuela se retira do FMI e do
para o comércio industrial do futuro. Em de US$ 60 bilhões batizado de “Gro- um deputado, acusando o PCC de ser a Banco Mundial], Agence France Presse
2017, ela registrou o dobro de patentes wth in the Americas” [Crescimento nas origem do vírus, repentinamente optou (AFP), 1º maio 2007.
apresentadas pelos Estados Unidos. Sen- Américas], com o objetivo de concorrer por se curvar a Pequim a fim de garantir 5   “ Evo Morales expulsa a USAID de Bolivia”
[Evo Morales expulsa Usaid da Bolívia], 1º
tindo o domínio norte-americano vacilar, com a Nova Rota da Seda. Catorze paí- o acesso às vacinas. A China não se fez maio 2013. Disponível em: rfi.fr.
Trump reagiu. Já em 2017, ele designou a ses da região aderiram à iniciativa. Sem de rogada. Em janeiro de 2021, autori- 6   “China’s Policy Paper on Latin America and the
China como “uma ameaça” à “segurança surpresa, Venezuela, Nicarágua e Cuba zou o embarque de 5.400 litros de insu- Caribbean” [Política da China para a América
Latina e o Caribe], Xinhua, 6 jun. 2008.
nacional”.16 Dois anos depois, proibiu as não foram convidadas a participar. mos para que o Brasil pudesse produzir 7   Katherine Koleski e Alec Blivas, “China’s En-
empresas de seu país de adquirir equipa- Em setembro de 2020, Trump conse- mais de 8,5 milhões de doses da Coro- gagement with Latin America and the Carib-
mentos de fornecedores chineses – Hua- guiu lançar o arquiteto do plano “Gro- naVac. Poucos dias depois, Bolsonaro bean” [Envolvimento da China com a América
Latina e o Caribe], U.S.-China Economic and
wei, ZTE, Dahua e Hikvision –, sob o pre- wth in the Americas”, Mauricio Clever- suspendeu seu veto sobre a participa- Security Review Commission, Washington,
texto de que eles “monitoram” governos -Carone, à presidência do BID, embora ção da Huawei na licitação nacional so- 18 maio 2021.
estrangeiros para o Partido Comunista a instituição seja tradicionalmente pre- bre a frequência 5G. 8   M acarena Vidal Liy, “China prestó más dinero
a América Latina en 2015 que el BM y el BID
Chinês (PCC) e roubariam as tecnologias sidida por um latino-americano. Para o juntos” [China emprestou à América Latina
dos Estados Unidos. ex-presidente colombiano Ernesto Sam- “NOSSOS ALIADOS NÃO AJUDAM” mais dinheiro em 2015 do que o Banco Mun-
A cortina de ferro dessa “guerra fria per, o único objetivo desse “sequestro Os aliados de Taiwan ficaram na corda dial e o BID juntos], El País, 12 fev. 2016.
9   Eduardo Cavallo e Andrew Powell, “Informe
tecnológica” não tardaria a cair sobre a do BID” é “expulsar a China da América bamba. Privados das moléculas chine- macroeconómico de América Latina y el Caribe
América Latina. Em 2018, em um dis- Latina” por meio da imposição de no- sas, eles atrasaram consideravelmente 2019” [Informe macroeconômico da América
curso na Universidade de Austin, no vas condicionalidades aos empréstimos sua campanha de vacinação. Em 17 de Latina e Caribe 2019], BID, Washington, 2019.
10  “China says U.S. criticism of its role in Latin
Texas, Rex Tillerson, então secretário de concedidos pela entidade. maio de 2021, quando a maioria dos paí- America is ‘slanderous’” [China diz que as crí-
Estado de Trump, garantiu que a China No entanto, um certo Sars-Cov-2 ses da região já havia vacinado 12,6% de ticas dos Estados Unidos à sua atuação na
“usa seu poder econômico para contro- acabou pesando muito mais do que sua população, eles mal ultrapassavam América Latina são “caluniosas”], Reuters,
Londres, 15 abr. 2019.
lar a região” e advertiu que “a América todos os gestos da diplomacia norte- uma taxa de 1%. 11  Nelson Renteria, “Responding to El Salvador
Latina não precisa de novas potências -americana. Embora em um primeiro Diante da emergência sanitária, o president-elect, China denies it meddles” [Em
imperiais motivadas apenas pela busca momento a origem da Covid-19 tenha Paraguai, principal bastião de Taiwan resposta ao presidente eleito de El Salvador,
China nega ingerência], Reuters, 14 mar. 2019.
do lucro”17 – um discurso com cheiro de prejudicado a imagem internacional da na América do Sul, debateu em abril 12  “EEUU llegó a un acuerdo con Ecuador de
Doutrina Monroe. China, a rápida recuperação econômica um projeto de lei para abrir relações USD 3 500 millones para ayudarlo ‘a salir de
Os Estados Unidos intensificaram, do país deu-lhe novas cartas para forta- diplomáticas com a China e liberar 14 la trampa de la deuda china’” [Estados Unidos
chegam a acordo de US$ 3,5 bilhões com o
assim, suas ofensivas para retomar o lecer sua posição na América Latina. milhões de doses de vacinas, quantida- Equador para ajudá-lo a “sair da armadilha da
controle. Em setembro de 2018, como Enfraquecida pelos sistemas de saú- de suficiente para imunizar toda a sua dívida chinesa”], 16 jan. 2021. Disponível em:
represália após o rompimento com Tai- de pública deficientes, a região foi vio- população. O secretário de Estado dos infobae.com.
13  Jack Spring, “Discurso antichinês de Bolso-
wan, o país chamou de volta seus repre- lentamente atingida pelo vírus. Embora Estados Unidos, Antony Blinken, conta- naro causa apreensão sobre negócios com o
sentantes diplomáticos no Panamá, na abrigue apenas 8% da população mun- tou então o presidente paraguaio, Mario país”, Reuters, Londres, 25 nov. 2018.
República Dominicana e em El Salvador. dial, ela concentrava, em setembro de Abdo Benítez, próximo de seu país, pro- 14  Aos seis primeiros países somaram-se a Ar-
gentina, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equa-
Um mês depois, seu novo secretário de 2020, quase um terço das mortes ligadas metendo assistência sanitária. O Senado dor, a Guiana, o Peru e o Paraguai.
Estado, Mike Pompeo, viajou ao Pana- à Covid-19. A pandemia mergulhou a paraguaio, dominado pelo partido do 15  “ Policy Paper on Latin America and the Carib-
má para “sensibilizar” o governo de Juan América Latina em sua pior recessão em governo, acabou rejeitando o projeto. bean” [Política para a América Latina e o Ca-
ribe], Xinhua, 24 nov. 2016.
Carlos Varela para a “atividade econômi- 120 anos, marcada por uma contração “Nossos aliados estão com a vacinação 16  Discurso de apresentação da nova estratégia
ca predatória” das companhias chine- do PIB de 7,7% e por um aumento da a todo vapor, mas nós somos impedi- de segurança nacional, 18 dez. 2017.
sas.18 Na sequência, o Panamá cancelou pobreza de quase 10% em 2020. dos de comprar vacinas [chinesas] sob 17  “Alarma a EE.UU. la penetración de China en
América Latina” [Presença chinesa na Améri-
cinco projetos de infraestrutura finan- Enquanto os Estados Unidos pare- o pretexto de que vamos nos tornar co- ca Latina preocupa Estados Unidos], El País,
ciados pelo gigante asiático. ciam indiferentes à situação de seus vizi- munistas”, indignou-se Esperanza Mar- Madri, 2 fev. 2018.
Da mesma forma, em visita ao Chile, nhos do Sul, a China logo ofereceu apoio: tínez, uma das senadoras de esquerda 18  Edward Wong, “Mike Pompeo Warns Panama
Against Doing Business With China” [Mike
Pompeo alertou o presidente Sebastián doou centenas de milhares de máscaras que apresentou a proposta.21 Pompeo adverte Panamá a respeito de rela-
Piñera a respeito do “controle” exercido e equipamentos médicos de todos os Em Honduras, a espera pela chegada ções comerciais com a China], The New York
sobre a Huawei pelo governo chinês.19 tipos (ventiladores, tomógrafos, kits de da vacina Covax (que deveria permitir Times, 19 out. 2018.
19  Ignacio Guerra, “Mike Pompeo advierte a Chi-
Poucos meses depois, o Chile decidiu teste), além de enviar equipes médicas a vacinação de países do Sul sob a égi- le sobre China y Huawei: ‘Esa infraestructura
descartar a empresa de seu projeto de para reforçar as estruturas sanitárias lo- de da Organização Mundial da Saúde presenta riesgos a los ciudadanos de tu país’”
cabo submarino transpacífico em favor cais necessitadas. Assim que suas duas [OMS]) foi tão longa que o governo se [Mike Pompeo adverte Chile sobre China e
Huawei: “Essa infraestrutura apresenta riscos
de uma companhia japonesa. Durante vacinas ficaram prontas para comer- viu na obrigação de mendigar cerca para os cidadãos de seu país], 12 abr. 2019.
uma visita ao Brasil em novembro de cialização – a Convidencia, da CanSino de 34 mil doses a El Salvador, em maio Disponível em: emol.com.
2020, Keith Krach, então um alto funcio- Biologics, e a CoronaVac, da Sinovac –, de 2021. “O povo hondurenho está co- 20  M ichael Stott, Bryan Harris, Michael Pooler,
Gideon Long, Benedict Mander e Jude We-
nário do Departamento de Política Eco- a China prometeu aos países latino-a- meçando a ver que a China ajuda seus bber, “Chinese jabs dominate Latin Ameri-
nômica dos Estados Unidos, persuadiu mericanos um empréstimo de bilhões aliados; e nos perguntamos: por que can vaccination campaigns” [Vacinas chi-
o gigante latino-americano a se juntar de dólares para facilitar a compra. Não os nossos não nos ajudam?”,22 indagou nesas dominam campanhas de vacinação
na América Latina], Financial Times , Lon-
ao programa Clean Network, chamando é de espantar que, até o momento, mais então Carlos Alberto Madero Erazo, um dres, 9 maio 2021.
a Huawei de “espinha dorsal do Estado da metade das vacinas injetadas nos dez alto funcionário do país, para em segui- 21  Ernesto Londoño, “La gran crisis de la CO-
de vigilância do PCC”. países mais populosos da região seja chi- da alertar seus aliados sobre potenciais VID-19 en Paraguay abre una oportunidad di-
plomática para China” [A grande crise da Co-
A estratégia dos Estados Unidos para nesa, segundo o Financial Times.20 “mudanças na política externa” se as vid-19 no Paraguai abre uma oportunidade
isolar a China também passa pelo uso de Os dividendos diplomáticos dessa coisas continuarem assim...  diplomática para a China], The New York Ti-
mecanismos financeiros e comerciais. manifestação de solidariedade cheia mes, 16 abr. 2021.
22  Michael Stott, Kathrin Hille e Demetri Sevas-
Em 2018, a potência norte-americana de interesses não tardaram a chegar. *Anne-Dominique Correa  é jornalista. topulo, “US to send vaccines to Latin America
aproveitou a renegociação do Acordo “A China primeiro faz amigos, depois after Taiwan ally warns of pivot to China” [Es-
de Livre Comércio da América do Nor- trabalha com eles para perseguir seus 1   D
 emetri Sevastopulo e Gideon Long, “US de- tados Unidos enviam vacinas para a América
velopment bank strikes deal to help Ecuador Latina após aliado de Taiwan advertir sobre
te (Nafta) – que reúne Estados Unidos, interesses”, explica Samper. “Com essa pay China loans” [Banco de desenvolvimento pivô para a China], Financial Times, Londres,
México e Canadá – para incluir uma estratégia, consegue ganhar a afeição dos Estados Unidos fecha acordo para ajudar 19 maio 2021.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

UMA ILHA NO CORAÇÃO DO CONFLITO ENTRE PEQUIM E WASHINGTON

Taiwan, a peça que de estratégia e passou da “libertação”


da ilha pelas armas à promoção de
uma unificação pacífica mediante o

falta no “sonho chinês”


reforço dos laços econômicos e huma-
nos. Em uma “mensagem aos compa-
triotas taiwaneses” publicada no dia
do estabelecimento das relações ofi-
ciais com Washington, as autoridades
comunistas propuseram a abertura de
Taiwan elege seu próprio presidente (atualmente Tsai Ing-wen) e possui sua intercâmbio em todas as áreas. A pos-
própria moeda. Entretanto, não tem reconhecimento internacional. Apenas quinze sibilidade de uso da força não foi des-
cartada, mas relegada a solução de úl-
países reconhecem a ilha como separada da China. Se Pequim espera reintegrá-la tima instância.
em seu seio, os taiwaneses duvidam cada vez mais do slogan “um país, dois Passados dois anos, Pequim foi um
sistemas”, e Washington joga com seus medos pouco mais longe ao formular as condi-
ções da integração pacífica: a ilha po-
deria conservar “um alto grau de auto-
POR TANGUY LEPESANT* nomia enquanto região administrativa
especial” e Pequim não se meteria nos
“assuntos locais”. Ou seja, Taiwan con-

“O
© Presidência de Taiwan
lugar mais perigoso do servaria seu sistema econômico e seu
mundo”, proclamava a re- modo de vida. Essas propostas consti-
vista The Economist no iní- tuíram a certidão de nascimento da
cio de maio. A manchete fórmula “um país, dois sistemas”, final-
era acompanhada por uma imagem de mente aplicada a Hong Kong. Ficou nis-
radar de Taiwan, como se a ilha fosse o so a posição de Pequim. No discurso
alvo de um submarino. Esse artigo se que pronunciou por ocasião dos qua-
inscreve numa longa série com títulos renta anos da “mensagem aos compa-
similares, que, por sua vez, ecoam uma triotas taiwaneses” (2 jan. 2019), o pre-
multiplicidade de declarações alarmis- sidente Xi Jinping lembrou de novo que
tas sobre o futuro da ilha.1 Em um rela- a única perspectiva para a ilha era a in-
tório publicado em março de 2021, o in- tegração à China Popular no quadro de
fluente think tank norte-americano “um país, dois sistemas”, com Taipei
Council on Foreign Relations julgava reivindicando única e exclusivamente
que Taiwan estava prestes a “se tornar o estatuto de autoridade local.
o ponto mais explosivo do mundo, po- Essa intransigência tem sua origem
dendo conduzir a uma guerra entre os no apego a uma concepção essencialis-
Estados Unidos, a China e provavel- ta da nação que considera primordiais
mente outras grandes potências”.2 Na os laços de sangue: como se originaram
mesma ocasião, o almirante Philip Da- do continente, os habitantes de Taiwan
vidson, comandante das forças norte- são forçosamente chineses. Não têm
-americanas na região indo-pacífica, nada a dizer a esse respeito; a história e
declarava, perante o Senado, que um seus ancestrais falam por eles. Ora, a
conflito no Estreito de Formosa pode- história, segundo Xi Jinping e seu “so-
ria ocorrer “ainda nesta década”.3 nho chinês” formulado em 2012, após
Se as declarações dos estados-maio- Tsai Ing-wen, presidente de Taiwan, eleita em janeiro de 2016, discursa na China ele assumir o comando do PCC, induz o
res escondem segundas intenções orça- conjunto dos chineses a redobrar a fi-
mentárias, esses medos não deixam de anos depois, derrotado na guerra civil com uma cascata de rupturas diplo- delidade a seu país e a esquecer o “sé-
se basear numa realidade: a crescente que o opôs ao Partido Comunista Chi- máticas até que, finalmente, Washin- culo de humilhações” sofrido a partir
pressão militar da China sobre seus vi- nês (PCC), ele retomou as instituições gton pôs fim às suas relações com Tai- da Primeira Guerra do Ópio (1842).8
zinhos, principalmente Taiwan. De iní- da República da China, fundada no pei e reconheceu Pequim, em 1º de Após o retorno de Macau e Hong Kong,
cio, Pequim bloqueou todos os canais continente em 1912, após a derrubada janeiro de 1979. A partir daí, a política Taiwan continua sendo o último terri-
de discussão com o governo da presi- da dinastia Qing. Ante a iminência de norte-americana para com Taiwan se tório perdido, a última “humilhação”.
denta Tsai Ing-wen, eleita em janeiro de uma invasão das forças comunistas, o baseou em cinco textos principais (o
2016 e de tendência independentista.4 A KMT deve sua sobrevivência à eclosão Taiwan Relations Act, os três “comu- DESPERTAR DAS CONSCIÊNCIAS
tensão aumentou muito após sua reelei- da Guerra da Coreia, em junho de 1950,6 nicados conjuntos sino-norte-ameri- Não obstante as diferenças ideológicas
ção, quatro anos depois. Segundo An- e à proteção norte-americana de Tai- canos” e as “Seis Garantias”). Os Esta- que o opunham ao PCC, esse naciona-
toine Bondaz, pesquisador da Funda- wan no quadro da política de conten- dos Unidos consideram que existe lismo essencialista, que promove a re-
ção para a Pesquisa Estratégica (FRS), ção do comunismo na Ásia. A situação apenas uma China, a RPC, mas não to- cuperação da grandeza da nação chi-
contaram-se 380 incursões da aviação no Estreito de Formosa ficou como es- mam posição quanto ao “problema da nesa como uma missão sagrada, era
chinesa na zona de identificação da de- tava por duas décadas. soberania de Taiwan” e insistem em partilhado por Chiang Kai-shek e pelo
fesa aérea de Taiwan em 2020.5 Com o apoio dos Estados Unidos, a sua “resolução pacífica”. Na verdade, KMT, que o impuseram à população de
As tensões recentes têm duas ori- República da China, dirigida com mão esses textos apenas consignam, sem Taiwan – com tanto mais facilidade
gens: uma se enraíza na história geopo- de ferro por Chiang Kai-shek, conser- endossá-la explicitamente, a posição quanto cerca de 1 milhão de continen-
lítica das relações entre ambas as mar- vou a cadeira de representante do país de Pequim segundo a qual Taiwan faz tais, equivalentes a 15% da população
gens do Estreito de Formosa; a outra está nas Nações Unidas, em detrimento da parte da RPC. da ilha, lá encontraram refúgio. Mas,
ligada ao lugar que a ilha ocupa na riva- República Popular da China (RPC), Em 1979, a ilha contava somente na esteira da democratização da ilha a
lidade entre Estados Unidos e China. que foi excluída. Contudo, em 1971, a com 24 aliados diplomáticos, um nú- partir do fim dos anos 1980, o naciona-
Em 1945, após cinquenta anos de Resolução 2.758 da ONU entregou a mero próximo das quinze chancelarias lismo chinês passou a enfrentar a con-
colonização japonesa, o Kuomintang cadeira a Pequim e expulsou “os re- que reconhecem hoje a existência de corrência da identificação crescente
(KMT), que então governava a China, presentantes de Chiang Kai-shek”.7 um Estado em Taiwan. Ciente de sua com uma nação taiwanesa, que tem, é
assumiu o controle de Taiwan. Quatro Em seguida, Taiwan se viu às voltas posição de força, a RPC mudou então certo, parte de suas raízes culturais na
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 17

China, mas também sua própria traje- anos, que só conheceram a democracia, poriam em perigo a segurança ou o sis- garantir à força que esses recursos per-
tória histórica e política. Essa dinâmica e revela uma nova geração de militantes tema econômico e social” da ilha. Evi- maneçam em seu campo. 
identitária levou à primeira alternância e políticos bem mais desconfiada das tando citar de maneira explícita a hipó-
política e à formação de um governo in- consequências políticas da busca de in- tese de uma intervenção militar em *Tanguy Lepesant  é professor da Univer-
dependentista em 2000. tegração econômica das duas margens. caso de agressão chinesa, a fórmula sidade Nacional Central (NCU), em
Após sua derrota e considerando As pesquisas que vêm sendo feitas deixa entrever, contudo, que ela é pos- Taoyuan (Taiwan), e pesquisador adjunto
daí em diante o independentismo tai- há quinze anos mostram o aumento sível; está na base da “ambiguidade es- no Centro de Estudos Franceses sobre a
wanês como seu principal inimigo, a contínuo da identificação com uma tratégica” mantida por Washington. China Contemporânea (CEFC), em Taipei.
direção conservadora do KMT facilitou “nação taiwanesa” independente e so-
uma aproximação com o PCC em nome berana. Em 2020, segundo o Centro de A CARTA DOS SEMICONDUTORES 1   V  er, por exemplo, Gilles Paris e Frédéric Le-
maître, “Taïwan, au coeur des tensions en-
de sua fidelidade comum à “Grande Estudos das Eleições da Universidade Com efeito, aos olhos dos Estados Uni- tre la Chine et les États-Unis” [Taiwan, no
China”. Voltou ao poder em 2008, com Nacional Chengchi, de Taipei, dois ter- dos, Taiwan sempre foi um peão cujo centro das tensões entre a China e os Esta-
o apoio dos empresários e das mídias ços da população se diziam “unica- valor estratégico relativo se inscreve dos Unidos], Le Monde, 15 abr. 2021, e
Brendan Scott, “Why Taiwan is the biggest
largamente conquistadas para sua mente taiwaneses”, contra menos de nos cálculos da realpolitik regional. risk for a US-China clash” [Por que Taiwan
causa; e, ao mesmo tempo, empregou um quinto em 1992. Uma sondagem Ora, esse valor está em alta há alguns é o maior risco de um conflito entre os Esta-
um discurso duplo junto à população publicada na revista CommonWealth anos. Depois de ter sido um ponto na dos Unidos e a China], Bloomberg , 27 jan.
2021 (atualizado em 5 maio 2021), Washin-
sobre as questões de soberania e a confirma esses dados e oferece uma política de contenção do comunismo gton Post , 5 maio 2021.
ameaça de crises econômicas advindas imagem mais precisa da situação em durante a Guerra Fria, a ilha se tornou o 2   Robert D. Blackwill e Philip D. Zelikow, “The
de uma reaproximação com o conti- Taiwan.10 Duas tendências ficam cla- modelo de sociedade capitalista e de- United States, China and Taiwan – a strategy
to prevent war” [Estados Unidos, China e Tai-
nente. Sob a presidência de Ma Ying- ras: de um lado, as relações com a Chi- mocrática que Washington pensava in- wan – uma estratégia para evitar a guerra],
-jeu, dezenove acordos foram assina- na não podem mais avançar segundo o suflar na China por intermédio de uma relatório do Council on Foreign Relations,
dos com Pequim, lançando as bases itinerário traçado por Pequim, pois política de “comprometimento”. Du- Nova York, fev. 2021.
3   “China could attack by 2027: US admiral” [Chi-
para um “mercado comum das duas 90% da população rejeita a fórmula rante três décadas, essa abordagem, as- na pode atacar em 2027: almirante norte-ame-
margens”. O intercâmbio em todas as “um país, dois sistemas” e o atrativo sociada aos apetites das multinacio- ricano], AFP e Taipei Times, 11 mar. 2021.
áreas aumentou e a dependência eco- econômico do continente está em que- nais, disseminou suas indústrias 4   Ver Tanguy Lepesant, “Taïwan en quête de
souveraineté économique” [Taiwan em busca
nômica de Taiwan em relação à China, da livre; de outro, entre os menores de poluidoras e sequiosas de mão de obra de soberania econômica], Le Monde Diplo-
já considerável, vai assumindo propor- 30 anos, o “sonho chinês” já não existe. barata, alimentando o otimismo dos matique, maio 2016.
ções inquietantes aos olhos dos inde- Mais de quatro quintos entre eles se dirigentes norte-americanos quanto à 5   Nathalie Guibert, “Taïwan: des incursions aé-
riennes chinoises sans précédent” [Taiwan:
pendentistas: 40% das exportações se- consideram “unicamente taiwaneses”; integração da China a “seu mundo”. incursões aéreas chinesas sem precedentes],
guem para lá. A trilha aberta trinta dois terços pensam que o nome de seu Ainda predominante no seio da admi- Le Monde, 25 jan. 2021.
anos antes pelas autoridades chinesas país deveria ser “Taiwan”, e não “Repú- nistração Obama, ela cedeu o passo a 6   Ver Philippe Pons, “L’engrenage de la guerre”
[A engrenagem da guerra]. In: “Corées. Enfin
a fim de conseguir a unificação pacífi- blica da China”, e se pronunciam em fa- uma perspectiva mais conflituosa sob la paix” [Coreias: enfim a paz], Manière de
ca parece ter se tornado uma rodovia. vor da independência. os governos Trump e Biden. Taiwan Voir, n.162, dez. 2018-jan. 2019.
O “sonho chinês”, porém, acabou Como os taiwaneses ficaram surdos ocupa aí um lugar nada negligenciável. 7   Resolução n. 2.758, “Rétablissement des droits
légitimes de la République populaire à l’Organi-
em 2014. O governo KMT está agora en- ao canto das sereias da prosperidade No plano geoestratégico, a ilha ain- sation des Nations Unies” [Restabelecimento
frentando uma mobilização nacional conjunta com a China, Pequim voltou a da é um elo decisivo na primeira cadeia dos direitos legítimos da República Popular na
contra um acordo de liberalização de brandir a ameaça militar. Todavia, essa insular que vai do Japão à Indonésia, Organização das Nações Unidas], 1.976ª Ses-
são Plenária da ONU, Nova York, 25 out. 1971.
serviços que ele tenta impingir ao Par- mudança de abordagem se choca com a barrando o acesso da Marinha chinesa 8   Ver Alain Roux, “Les guerres de l’opium revisi-
lamento. Autorizando investimentos evolução rápida das relações sino-nor- ao Pacífico Ocidental. No nível econô- tées” [As Guerras do Ópio revisitadas], Le
continentais nos setores de editoras, te-americanas. Desde a ruptura de suas mico, Taiwan acabou desempenhando Monde Diplomatique, out. 2002.
9   C f. Jérôme Lanche, “À Taïwan, les étudiants en
mídia e cultura, mas também a abertu- relações diplomáticas, Washington não um papel importante na vontade de lutte pour la démocratie” [Em Taiwan, os estu-
ra do mercado de empregos local a tra- está mais ligada a Taipei por um trata- Washington de frear a ascensão chine- dantes em luta pela democracia], Planète
balhadores chineses, esse acordo susci- do de defesa. O Taiwan Relations Act, sa, sobretudo no projeto da adminis- Asie, 28 mar. 2014. Disponível em: blog.mon-
dediplo.net.
ta grandes temores. A ocupação do lei adotada em abril de 1979, enfatiza, tração Biden de constituir uma aliança 10  “Taïwan vs République de Chine, le conflit de
Parlamento e das ruas adjacentes du- porém, a importância de uma resolu- das “tecnodemocracias”. As fundições génération surpasse la division sud-nord”
rante três semanas e meia, no Movi- ção pacífica do conflito entre as duas da ilha produzem, com efeito, a maior [Taiwan versus República da China, o conflito
de gerações ultrapassa a divisão sul-norte],
mento dos Girassóis,9 cristaliza vários margens, prevê o fornecimento a Tai- parte dos semicondutores de última CommonWealth, n.689, Taipei, 31 dez. 2019
anos de descontentamento e marca wan das armas necessárias à sua defesa geração, compostos indispensáveis à (em chinês).
uma reviravolta nas relações com a Chi- e promete “manter a decisão dos Esta- economia digital do mundo (smart- 11  Ver Evgeny Morozov, “Doit-on craindre une
panne électronique?” [Devemos temer uma
na. Isso provoca o despertar das cons- dos Unidos de resistir ao emprego da phones, conexões, inteligência artifi- pane eletrônica?], Le Monde Diplomatique,
ciências cidadãs entre os menores de 40 força e outras formas de coerção que cial etc.).11 Os Estados Unidos querem ago. 2021.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

ALTO XINGU

Pandemia entre indígenas comunicação xinguanas. Algo que


Theue Kalapalo considera inédito: “An-
tes, essas fake news não chegavam mui-

é catalisada por enxurrada


to assim”, relata ele.
Eram vídeos e áudios produzidos
deliberadamente para minimizar os
perigos da doença, incentivar o uso de

de fake news
medicamentos ineficazes ou questio-
nar a própria existência do vírus em
tom conspiratório. Segundo Theue,
parte da pressão pela abertura do por-
tão e livre circulação da cidade vinha
dos próprios indígenas do Xingu, in-
Desinformação divulgada pelo próprio presidente Bolsonaro aumenta vulnerabilidade fluenciados por essas peças de desin-
de indígenas. Até 20 de setembro, foram 1.572 casos e vinte óbitos confirmados formação: “Eles falavam que já tinham
encontrado remédio. Outros falavam
pelo Ministério da Saúde apenas entre indígenas do Xingu. Segundo a Coordenação assim: ‘A doença não mata’. Outros di-
das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), entre os povos da ziam que o próprio hospital estava ma-
Amazônia foram 1.006 mortes até o dia 25 de agosto tando pacientes. E outros falavam: ‘Eu
vi no jornal o caixão sem corpo dentro.
Foi descoberto!’. Esse é o argumento
POR FÁBIO ZUKER E THOMAZ PEDRO* que eles passavam pra gente deixar o
portão aberto”, reflete Theue. “A comu-
nidade ficou cansada de levar essa

N
a aldeia Aiha, do povo Kalapalo, mais provável é que ocorreria uma am- cuja demarcação é a mais antiga do pressão e deixamos aberto.”
localizada no Território Indígena pla contaminação. Brasil, realizada em 1961 por Jânio Qua- Contrariando epidemiologistas,
do Xingu, os fins de tarde são Os relatos do tempo do sarampo, da dros. Seu nome oficial é Parque Indíge- que entendem que uma comunicação
marcados pela reunião de ho- quase dizimação de diferentes etnias na do Xingu, mas os indígenas reivindi- clara, com informações precisas e sem
mens que se encontram no centro da al- xinguanas, são uma memória quase cam substituir “parque” por “território”, gerar alardes desnecessários é funda-
deia para conversar. Foi nessa dinâmi- adormecida, mas que prontamente para evitar a associação entre parque e mental para combater a pandemia, o
ca, em meio a esse anoitecer no Xingu, veio à tona com as notícias do novo ví- jardim zoológico. O local é a casa de Brasil teve no governo de Jair Bolsona-
em fevereiro de 2020, que as primeiras rus letal. A partir de então, a regra era cerca de 8.126 pessoas, segundo dados ro, em seu Ministério da Saúde e no
notícias de que o novo coronavírus (Sar- clara: ninguém entrava e ninguém saía da Secretaria Especial de Saúde Indíge- chamado “gabinete paralelo”, um polo
s-CoV-2) já se encontrava no Brasil che- até a situação melhorar. na (Sesai), do Ministério da Saúde. difusor de informações falsas ou im-
garam às aldeias da região, localizadas Ou pelo menos a regra parecia clara precisas. O objetivo da desinformação
no nordeste de Mato Grosso. Os primei- no momento em que foi estipulada. e das ações do governo, segundo estu-
ros casos de Covid-19 estavam distan- Não tardou muito para a iniciativa de A troca e o compartilha- do coordenado por Deisy Ventura, da
tes, concentrados em São Paulo, a mais se isolar gerar tensões e divergências de mento de alimentos, Faculdade de Saúde Pública da Univer-
de 1.600 quilômetros dali. Mas o receio opinião. A estrada, que havia sido aber- sidade de São Paulo (USP), era promo-
com a possível devastação que o vírus ta em 2018 – ela mesma uma decisão
nas grandes casas onde ver a circulação do vírus para atingir a
poderia causar já estava disseminado. controversa –, passou a ser o principal moram várias pessoas, chamada imunidade coletiva, ou imu-
As conversas no centro da aldeia acesso à cidade para diferentes etnias, tornaria impossível o nidade de rebanho.
adquiriram tom sério, de preocupação, como Nahukuá, Matipu, Kuikuro, Ya- distanciamento social A ideia propalada pelo presidente e
e a comunidade Kalapalo tomou uma walapiti, Waurá, entre outras. O trajeto, por um grupo de médicos, microbiolo-
decisão: isolar-se do mundo não indí- que antes poderia levar mais de 15 ho- gistas, congressistas e empresários de
gena para se proteger. Para tanto, era ras e precisar de carro e barco, passou a Os motivos para esse vaivém nas es- fora do Ministério da Saúde, mas com
preciso fechar a estrada que liga a al- ser feito em apenas 3 horas por motos tratégias de enfrentamento ao novo co- afinidade ideológica ao governo, era de
deia à cidade de Querência. No dia 20 pela nova estrada. “Informamos todas ronavírus são muitos. Em parte, têm a que, quanto mais pessoas se contami-
de março de 2020, Theue Kohozinho as aldeias que frequentam essa estra- ver com a relação com a cidade. Con- nassem, mais rapidamente terminaria
Kalapalo, um dos professores da al- da”, explica Theue. trariando uma visão exotizante que os a pandemia e a economia poderia ser
deia, junto com outros Kalapalo pega- Mesmo assim, segundo ele, “algu- não indígenas cultivam sobre os indí- retomada. Os indígenas, tal como o res-
ram suas motos e dirigiram até um mas aldeias sentiram falta de sabonete, genas, as idas à cidade compõem o coti- to do país, foram tragados por essa ver-
ponto da estrada, onde derrubaram combustível, linha de pesca”. A pressão diano das pessoas na região. Indígenas dadeira epidemia de desinformação.
quatro grandes árvores. “Eu mesmo foi tamanha que a comunidade decidiu saem em busca de um atendimento A partir do dia 11 de março, no mes-
bloqueei a estrada, para impedir a saí- retirar as árvores algumas semanas de- médico mais complexo, para fazer mo dia em que a Organização Mundial
da da comunidade para a cidade e a en- pois. Os Kalapalo, tentando retomar compras básicas e retirar os benefícios da Saúde (OMS) declarava a existência
trada também”, conta Theue. sua estratégia de isolamento, coloca- do Bolsa Família. A ida à cidade é tam- de uma pandemia e o Brasil contava
Esse medo concreto em relação ao ram um portão. Menos agressivo como bém um passeio atrativo. Algumas fa- com apenas 69 casos confirmados da
vírus tinha razões de ser. Além da leta- instrumento de controle, a ideia era que mílias passaram a morar nas cidades doença, Bolsonaro passou a ser um po-
lidade associada ao novo coronavírus, ele seria aberto para passagem apenas do entorno para estudar ou trabalhar. lo central na emissão de desinforma-
os Kalapalo sabem, pelo histórico de em ocasiões excepcionais, possibilitan- Dessa forma, a relação com a cidade é ção no país. Nesse dia, ele disse: “O que
epidemias de sarampo que acompa- do rastrear a entrada e a saída dos indí- uma dimensão prática da vida de mui- eu vi até o momento é que outras gripes
nharam o contato dos indígenas com a genas e equipes médicas. “A pessoa en- tos indígenas no Brasil hoje. mataram mais do que essa”. E, dez dias
sociedade não indígena ao longo dos comendava combustível e outras Foi outro fator, porém, que minou a depois, o presidente pronunciou aquele
anos 1950, que seu modo de vida com- mercadorias, e a entrega acontecia lá estratégia inicial de isolamento e fez os que se tornou uma espécie de bordão
partilhado facilita a disseminação de mesmo, no portão.” Segundo Theue, indígenas se exporem ao vírus mais do entre negacionistas e daria o tom da
doenças infectocontagiosas vindas de eles tentaram manter o portão, mas ele que haviam previsto inicialmente. Ce- forma como ele administrou a crise sa-
fora. A troca e o compartilhamento de foi retirado e recolocado diversas vezes, lulares e redes sociais foram os meios nitária a partir de então: “Caso fosse
alimentos, nas grandes casas onde mo- até meados de novembro de 2020, quan- pelos quais os indígenas receberam contaminado pelo vírus, [eu] não pre-
ram várias pessoas, tornaria impossí- do a passagem finalmente foi liberada. grande quantidade de desinformação cisaria me preocupar, nada sentiria, ou
vel o distanciamento social. Sabiam O povo Kalapalo vive no Território sobre o vírus: as fake news passaram a seria, quando muito, acometido de
também que, caso o vírus entrasse, o Indígena do Xingu, a terra indígena circular abundantemente nas redes de uma gripezinha ou resfriadinho”.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 19

O relato de Theue Kalapalo sobre Segundo os dados consolidados do o adoecimento, mas ele enfraquece o de São Gabriel da Cachoeira que mo-
como a desinformação influenciou o Ministério da Saúde, na sexta-feira, 17 corpo, deixando-o vulnerável a feiti- ram no Alto Vaupés e falaram isso pra
transcorrer da pandemia em sua aldeia de setembro, enquanto o DSEI-Alta- ços, que o adoecem. Se não for devida- mim: ‘Essa vacina aí é do Satã, é uma
não é exceção. De certa forma, o indíge- mira contabiliza 96% de pessoas aci- mente tratado pelos xamãs, esse pro- vacina lucífera’.”
na faz um comentário passível de ser ma de 18 anos vacinadas com a pri- cesso de transformação pode ser total e No Xingu, um profissional de saúde
expandido para o Brasil como um todo: meira dose e 89% com a segunda, no irreversível, levando à morte. que atuou durante a pandemia e solici-
“Infelizmente, as fake news ficaram DSEI-Rio Tapajós o percentual de Luiz Penha explica como funciona a tou anonimato enfrentou a mesma si-
muito famosas e impediram nossa pro- maiores de 18 anos vacinados com a desinformação em relação às vacinas. tuação. Ele considera o início da cam-
teção, de ficar direto na aldeia”, resume. primeira dose não ultrapassa 48%. No caso da vacina da AstraZeneca, mui- panha de vacinação o pior momento de
Vivendo realidades culturais, sociais e Para Luiz Tukano, a falta de adesão tas pessoas relatam efeitos colaterais. desinformação durante a pandemia.
políticas específicas, a desinformação de algumas aldeias à vacinação tem “Infelizmente, as informações são mui- “Foi negação mesmo. Teve pessoas que
teve impactos singulares entre indíge- origem em dois problemas. De um lado, to rápidas, seja pela internet ou pela pró- não se vacinaram, alegando que não
nas, distintos daqueles da população ele ressalta a inação do governo federal, pria ‘rádio cipó’, que a gente fala na al- iam receber o chip do demônio. Foi es-
geral no Brasil. que constantemente cria dúvidas deia, a fofoca de pessoa pra pessoa. Até sa a justificativa, por medo de ter um
“Essa situação de fake news, que quanto à vacinação. Essa ausência de chegar lá, um efeito colateral, já chegou chip implantado que ia causar morte
passou aqui principalmente pela rede incentivo ocorre em falas do presidente falando que o cara que foi vacinado está três meses depois. E não foi uma ou
social, deixou a comunidade confusa. retirando a credibilidade de determi- morto”, explica Luiz Penha Tukano. duas pessoas. Foram muitas famílias.
As pessoas falavam assim: ‘O governo nadas vacinas, ou mesmo não fazendo Para ele, a prática do governo é mar- Teve aldeias inteiras que não permiti-
falou no Jornal Nacional, o Bolsonaro uma boa comunicação quanto a possí- cada por desorganização e incertezas: ram que a gente entrasse com a vacina”,
falou que essa doença era uma gripezi- veis efeitos adversos leves. “O governo federal fazia campanha, reflete o profissional.
nha’. Aí a comunidade que assistia ao A fala de Bolsonaro, de que pessoas bem forte, de vacina. O Zé Gotinha foi Hoje o Xingu tem uma boa cobertu-
jornal e via a rede social dizia que o go- poderiam virar jacaré com a vacina, te- criado pra isso. E hoje em dia não se ra vacinal: 90% dos indígenas xingua-
verno estava dizendo que não estava ve um efeito particularmente concreto veem muito essas campanhas. Pega o nos maiores de 18 anos tomaram a pri-
grave, que não era doença mortal. As- entre indígenas do Alto Xingu, onde há isopor e vamos embora. Não se trabalha meira dose, e 77%, a segunda, segundo
sim, ficou todo mundo totalmente con- uma associação entre animais e doen- na questão da importância da vacina. dados do dia 17 de setembro. Mas al-
fuso”, conta Theue. ças. Da perspectiva xinguana, as doen- Cada município monta sua estratégia”. deias inteiras permanecem negando a
ças são causadas por um itseke, termo Luiz Tukano ressalta ainda outro aplicação da vacina. 
“VACINA LUCÍFERA” em Karib que pode ser traduzido por fator para a não adesão à vacinação: a
Com a vacinação, começou a circular “bicho”, “espírito” ou mesmo um “hi- influência de missionários ligados a *Fábio Zuker é jornalista e antropólogo;
outra forma de desinformação no Xin- perser”. A captura e transformação da igrejas evangélicas. “A gente tem rela- Thomaz Pedro é documentarista e pes-
gu, que dizia respeito à prioridade dos alma de uma pessoa por esse itseke po- tos da questão religiosa: comentam quisador. Esta reportagem foi produzida
indígenas em receber as doses. Por dem causar o adoecimento. Em outra que é uma vacina que tá aí para exter- com o apoio do Rainforest Journalism Fund
seus modos de vida compartilhados e interpretação, não é o itseke que produz minar as pessoas. Eu conheço pessoas em parceria com o Pulitzer Center.
por apresentarem taxa de contamina-

© Thomaz Pedro
ção e de mortalidade superiores à da
média da população, o Plano Nacional
de Imunização (PNI) entende que os
indígenas estão entre os mais vulnerá-
veis ao vírus.
Entretanto, no atual contexto, em
que indígenas são alvos constantes de
ameaças pelo governo Bolsonaro, a
prioridade foi lida de outro modo entre
algumas aldeias do Xingu. Entre os
Kalapalo, por exemplo, o receio era de
que a vacina estaria sendo testada ne-
les. A reflexão não é propriamente uma
desinformação, mas uma desconfiança
que surge desse ambiente de ampla cir-
culação de notícias falsas e ataques do
governo aos direitos indígenas.
Luiz Penha Tukano realiza o moni-
toramento da pandemia entre indíge-
nas amazônicos junto à Coordenação
das Organizações Indígenas da Ama-
zônia Brasileira (Coiab). Ele é indígena
Tukano, natural de São Gabriel da Ca-
choeira, no extremo norte do país, e
mestre em Saúde Pública pela Fiocruz
Amazônia, com uma década de expe-
riência de trabalho com doenças veto-
riais no DSEI-Alto Rio Negro. O Distrito
Sanitário Especial Indígena (DSEI) é
uma estrutura federal de atenção à saú-
de indígena vinculada à Secretaria Es-
pecial de Saúde Indígena que atende os
indígenas aldeados no Brasil.
Penha acompanhou de perto toda
a circulação de desinformação ao lon-
go da pandemia. Uma das preocupa-
ções atuais é a disparidade da cober-
tura entre indígenas amazônicos. Theue Kohozinho Kalapalo, na aldeia Aiha do povo Kalapalo no Território Indígena do Xingu
20 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

IMPEDIR FLUXO DE IMIGRANTES E GRUPOS ARMADOS

Muros de areia marroquina como um meio de barrar o


acesso da Frente Polisário aos campos
de Tinduf, na Argélia, ele não impede
arriscada. A União Europeia, via agên-
cia Frontex, e a Organização Interna-
cional para as Migrações (OIM) se re-

surgem no Saara
por completo a passagem para o sul, jubilam com a queda observada em
como mostram imagens de satélite. 2017 no número de migrantes oriun-
Por muito tempo considerado uma dos do Níger: 79% a menos que em
exceção, esse muro de areia tornou-se 2016 nos fluxos provenientes de Arlit e
um modelo precursor imitado por ou- Séguédine. Atribuem essa queda à efi-
tros países, que tentam também fechar ciência de suas ações e à adoção em
Construir muros e portões para proteger territórios é uma suas fronteiras recorrendo ao trabalho 2015, pelo Níger, de uma lei que crimi-
prática corrente no mundo e que avança cada vez mais sobre frenético das escavadeiras. A Tunísia e naliza a migração irregular, mas não
o Egito invocam a necessidade de se citam jamais o impacto do muro de
o continente africano para impedir os fluxos migratórios. proteger das incursões de indivíduos areia argelino, construído em 2016 na
Discretamente, do Marrocos ao Níger, passando pela armados, comuns desde o colapso da fronteira com o Níger.7 Ele, porém,
Argélia, as autoridades erguem paredes de areia, Líbia em 2011. Túnis empreendeu as- presta um grande e discreto serviço à
sim a construção de um muro de areia política de externalização europeia
guardadas por policiais e militares e vigiadas por câmeras que já atingiu 200 quilômetros em dire- das questões migratórias.
ção ao posto fronteiriço de Dehiba e Essa obra, além do mais, desferiu
conta, graças à ajuda financeira e téc- um golpe violento nas trocas comer-
POR RÉMI CARAYOL E LAURENT GAGNOL* nica dos Estados Unidos, com um siste- ciais de que sobrevivem a população
ma eletrônico de vigilância integrado. local tuaregue e os comerciantes ára-
Por sua vez, o Cairo retomou o traçado bes. É o caso, principalmente, dos habi-

D
eixando sua Guiné natal com um ACESSO IMPEDIDO das “cercas de arame farpado” de fron- tantes das cidades gêmeas dissimétri-
vizinho sem saber bem aonde ir, À FRENTE POLISÁRIO teira, dispostas por mais de 270 quilô- cas que surgiram de um e de outro lado
Yussuf 1 atravessou o Mali em Construir um muro ou um cercado pa- metros pela Itália fascista, em 1931, da fronteira entre a Argélia, o Níger e o
guerra, cruzou as fronteiras ar- ra proteger a fronteira tornou-se fato desde o Mediterrâneo até as cercanias Mali. Do lado do Níger, o posto frontei-
gelinas, caminhou pela areia escal- corriqueiro em quase todos os lugares dos oásis de Siwa e de Al-Jaghbub.6 O riço de Assamakka, onde se encontram
dante do deserto líbio e enfrentou o tu- do mundo, sejam os regimes autoritá- Egito se beneficia também da ajuda forças armadas, funcionários de alfân-
multo do Mediterrâneo antes de pôr os rios ou democráticos.3 O fenômeno pa- norte-americana para reforçar a vigi- dega e nigerianos, bem como a OIM, é
pés no continente europeu, ao fim de recia, até há pouco, ter poupado a Áfri- lância eletrônica de suas fronteiras oci- provavelmente o mais bem provido. A
um périplo de mais de nove meses. O ca do Norte e a África Ocidental. Não é dental e meridional com a Líbia e o Su- população que vive do comércio trans-
adolescente de 16 anos escapou das mais o caso. A análise de imagens re- dão. As imagens de satélite revelam fronteiriço fundou um bairro informal,
minas terrestres artesanais no cami- centes de satélite revelou uma quanti- outro muro de areia na fronteira com o chamado El Akla, com suas casas-ar-
nho entre a cidade de Gao (Mali) e a dade insuspeita de muros de areia.4 O Sudão, desde a margem do Mar Verme- mazéns e seu mercado ao ar livre, que
fronteira com a Argélia, dos policiais Saara, frequentemente descrito como lho até o interior (cerca de 30 quilôme- existe desde o início dos anos 2000,
argelinos de péssima reputação e das um vasto espaço desértico sem limites tros), o que concretiza a ocupação mas aumentou a partir de 2013. Graças
milícias líbias que extorquem suas ou uma “zona cinzenta” onde prolifera egípcia do território contestado do às autorizações derrogatórias de passa-
presas em Trípoli. Precisou se escon- o tráfico de armas, drogas, cigarros e “triângulo” de Hala’ib. gem concedidas à feira, o povoamento
der, baixar os olhos, contornar os pos- gasolina, e onde circulam à vontade da aldeia se mantém e o mercado, se-
tos de controle. Entretanto, o que pare- contrabandistas, saqueadores, rebel- ARGÉLIA SE FECHA miclandestino, prospera. A situação é
ce tê-lo deixado mais perplexo foi o des, combatentes jihadistas e migran- ATRÁS DE ATERROS mais complicada em In Khalil, no Mali:
muro de areia que os obrigou, tanto ele tes, está na realidade fechado por No entanto, o frenesi dos muros de areia fundada em 2000 por árabes do vale
quanto seus companheiros de viagem, imensas barreiras de areia que vão do parece ter dominado sobretudo a Argé- maliano de Tilemsi, essa aldeia se tor-
a marchar durante três dias e três noi- Oceano Atlântico ao Mar Vermelho. lia. Esse dispositivo impressionante, nou um centro de tráfico importante,
tes no deserto para atravessar a fron- A mais conhecida é a que corre do constituído de trincheiras, elevações de sobretudo de armas, o que provocou
teira entre a Argélia e a Líbia. “Era mui- norte ao sul do Saara Ocidental, um areia, cercas e paredes de concreto, en- operações militares argelinas. Em se-
to impressionante”, lembra o rapaz na território ocupado pelo Marrocos des- cerra agora, com seus 6.700 quilôme- guida, Argel reforçou o muro criando
cidadezinha do sul da França onde de a saída dos espanhóis, em fins de tros de extensão, a quase totalidade do um tríplice cinturão para impedir
agora frequenta a escola. “De repente, 1975, e reivindicado pela Frente Polisá- território argelino. Apenas na parte qualquer passagem. Uma única saída
vimo-nos diante de uma imensa bar- rio, movimento independentista apoia- saariana, 50 mil soldados se encarre- foi prevista quando da construção des-
reira de areia impossível de cruzar de do por Argel. Esse “muro de separação”, gam do patrulhamento. O muro de sas cercas, que se situam em parte no
carro. Nosso coiote nos deixou dizendo também chamado de “cinturão de se- areia erguido na fronteira com a Líbia território maliano (do mesmo modo
que deveríamos seguir em frente até gurança”, foi erigido por Rabat nos data de 2015 e depois se estendeu às do que a cidade se situa, em parte, em ter-
encontrar o muro. Depois que o esca- anos 1980 e tem mais de 2.500 quilôme- Mali, do Níger e da Mauritânia. Trata-se ritório argelino). O mercado começou
lássemos, estaríamos na Líbia.” tros.5 Desde essa época, está em perpé- de um aterro de 2 a 5 metros de altura, então a decair. Os jovens moradores da
Todos os migrantes vindos da Áfri- tua consolidação por meio de equipa- ladeado por uma trincheira e uma pista cidade gêmea argelina de Bordj Badji
ca Subsaariana viram esse muro de mentos eletrônicos cada vez mais (às vezes, uma estrada asfaltada) ligan- Mokhtar falam de uma sensação de
areia quando atravessaram a fronteira sofisticados, mas também em contínua do o local a bases militares distantes “sufocamento”. De lugar de trocas, a ci-
da Argélia. Comerciantes e traficantes extensão. A despeito dos acordos de dezenas de quilômetros. As imagens de dade se tornou um beco sem saída. A
do Saara aprenderam a contorná-lo. cessar-fogo assinados em setembro de satélite mostram que ele pode se afastar edificação do muro foi acompanhada
Os habitantes das cidades situadas 1991 sob a égide das Nações Unidas, a alguns quilômetros da linha fronteiriça pela militarização da zona, que impede
nos confins do país tiveram de se engenharia militar marroquina cons- para se adaptar ao relevo ou desapare- toda atividade transfronteiriça – o co-
adaptar. Mas poucos argelinos sabem truiu um novo prolongamento de 14 cer onde é inútil em razão da presença mércio e o tráfico, mas também a cria-
que a quase totalidade de seu territó- quilômetros até a fronteira mauritana. de dunas (erg), montanhas ou rebordos ção de animais.
rio saariano está hoje cercada por um A finalidade é impedir o bloqueio da de planaltos (hamada), que impedem a “É como se fôssemos prisioneiros
imenso cordão de dunas artificiais única estrada asfaltada transaariana e passagem de veículos motorizados. em nossa própria casa”, queixa-se
que chegam a ter de 2 a 3 metros de al- barrar o acesso da Frente Polisário ao Como todo muro, ele não é total- Mohamed, um comerciante árabe ins-
tura. “Em Argel, ninguém ou pratica- Atlântico. Em março de 2021, um novo mente intransponível, e passagens talado na parte maliana e que prefere o
mente ninguém fala desse empareda- muro de areia com 50 quilômetros foi clandestinas noturnas de pedestres, anonimato. “Antes, podíamos ir de um
mento”, ressalta o pesquisador em erguido no extremo norte do Saara Oci- como Yussuf pode testemunhar, são país a outro sem dificuldade. Agora, tu-
geopolítica Raouf Farrah, que fez in- dental, bem perto da fronteira com a possíveis. Entretanto, tornou a traves- do se complicou. Já não podemos tra-
vestigações no sul argelino. 2 Argélia. Apresentado pela imprensa sia mais complicada e, portanto, mais balhar.” Isso é ainda mais problemático
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 21

© Agnès Stienne
quando se leva em conta que, como
lembra sob o selo do anonimato um jor-
Argel
nalista maliano que frequenta regular- Túnis
mente a região, “aqui, todos vivem do OCEANO
pastoreio, do comércio ou do transpor- ATLÂNTICO o TUNÍSIA
n
aaria MAR MEDITERRÂNEO
te. Não há mais nada a fazer para ga- Rabat as s Ras Jedir
Atl
nhar a vida. Ora, em cada uma dessas as Dehiba Tobruque
A tl Tripoli
atividades, a mobilidade é indispensá- Alto
Sirte Cairo
vel”. Muitos jovens que possuem uma MARROCOS Benghazi

picape vivem sobretudo da exportação ARGÉLIA Giarabube


Siwa
Al-Joufra
de produtos argelinos subsidiados (sê-
Tindouf Ni
lo
mola, massas, tomates em conserva) Ubari
S A A R A LÍBIA MAR
para o Mali. “Se nos tiram isso, adeus
FEZZAN
EGITO
subsistência”, alarma-se Mohamed. SAARA Ghat VERMELHO
Ahaggar Passe de
Os moradores de Tin Zauatine tam- OCIDENTAL Bordj Salvador Cufra
Badji Tamanrasset
bém experimentam a sensação de te- Zuerate Toummo Hala’ib.
Mokhtar
rem sido pegos numa armadilha. Essa
MALI El P Tin Zaouatine
Madama
Tibesti
ipe
Nuadibu In Khalil In Guezzam
cidade, de ambos os lados da fronteira MAURITÂNIA
argelino-maliana – traçada no meio de
Aguel’hoc Assamakka Séguédine CHADE SUDÃO
Nuaquechote El Akla Arlit
Tilemsi Kidal
um ued (vale) que fica seco a maior par- Ennedi Cartum
Níg
er NÍGER
te do tempo –, é uma zona sensível: lo- Gao
cal de trânsito de migrantes, é também KANEM
Dakar
Bamako Niamey
o feudo de Iyad Ag Ghali, um dos prin- N’Djamena
0 500 km

cipais chefes dos grupos jihadistas Fontes: Laurent Gag nol; « Displacement Tracking Matrix » (DTM),
Fronteira Principal rota transaariana
atuantes entre o Sahel e o Saara, que a Organização Internacional para as Migrações (OIM), 2020; Africa
Intelligence , fev. 2021 ; Missão das Nações Unidas para Organiza -
Fronteira fechada por motivos de segurança Ponto de passagem fronteiriço saariano
França considera “o inimigo número Barreira (muro de areia, trincheira, arame farpado, cerca) Cidade murada (cercada de muros de areia e trincheiras)
ção de um Referendo no Saara Ocidental (Minurso); Sentinel Hub;
Satellites.pro; Google Earth.
1”. A parte argelina, onde vivem 10 mil
pessoas, é praticamente um enclave
porque, saindo de Tamanrasset, a cida- ça. Houve tumulto, e um rapaz de lar o acesso a um poço, um sítio indus- 1   N ome fictício.
de mais importante do sul argelino, é apenas 20 anos, Ayub Ag Adji, foi morto trial, um aeroporto ou uma cidade. Por 2   Ver, principalmente, Raouf Farrah, “Algeria’s
preciso viajar por pistas acidentadas a tiros. Dois dias depois, o comandante exemplo, a rota que liga Ubari a Ghat, migration dilemma: Migration and human
smuggling in southern Algeria” [Dilema da mi-
durante mais de nove horas a fim de al- militar da região anunciou a retirada no sudoeste da Líbia, é controlada por gração argelina: migração e tráfico humano
cançá-la. A parte maliana, destituída do arame e a abertura de pontos de um posto prolongado por muros de no sul da Argélia], relatório da Global Initiative
de serviços públicos, é habitada por al- passagem para os criadores. areia até os contrafortes montanhosos against Transnational Organized Crime, Nova
York, dez. 2020.
gumas dezenas de famílias. Abandona- que o enquadram. Kufra, no sudeste da 3   Stéphane Rosière, Frontières de fer. Le cloison-
da pelo Estado, está sob o controle da PARA CONTROLAR UM POÇO... Líbia, é cercada por um vasto muro de nement du monde [Fronteiras de ferro. O fe-
Coordenação dos Movimentos de Aza- Assim, nas regiões saarianas dos países areia que interdita qualquer incursão chamento do mundo], Syllepse, Paris, 2020.
4   L aurent Gagnol (a publicar), “Des lignes colo-
wad (CMA), uma coalizão de grupos do Magreb, os muros de areia torna- clandestina. Cidades (com seus aero- niales tracées au cordeau au cloisonnement
armados signatários do acordo de paz ram-se a materialização da função portos) estão agora cercadas e mesmo par les murs de sable: l’héritage enseveli des
asperamente negociado em Argel e fir- mais dura – a de barreira, de dispositi- muradas: além de Kufra, Nuadhibu e frontières des nomades au Sahara central”
[Linhas coloniais traçadas a prumo para o fe-
mado em Bamako em 2015. vo de segurança, de arma de defesa – Zuerate, na Mauritânia, Tinduf, Bordj chamento por muros de areia: a herança se-
Depois de fechar oficialmente a atribuída a uma fronteira. Em situa- Badji Mokhtar e In Guezzam, na Argé- pultada das fronteiras dos nômades no Saara
fronteira com o Mali, em janeiro de ções de conflito, eles contribuem para a lia, In Khalil, Kidal, Aguelhok e Gao, no Central], Bulletin de l’Association des Géo-
graphes Français, Paris.
2013, em nome da segurança nacional, manutenção do status quo. Mali, Sirta, na Líbia... 5   Karine Bennafla, “Illusion cartographique au
as Forças Armadas argelinas prolonga- No leste do Saara, a situação é um Na Líbia, o muro de areia em cons- Nord, barrière de sable à l’Est: les frontières
ram em 2018 o muro de areia, chamado pouco diferente. Do Passe de Salvador trução no norte, entre Sirta e a região mouvantes du Sahara occidental” [Ilusão car-
tográfica no norte, barreira de areia no leste:
“El Pipe”, até a periferia da cidade. Em (entre o Níger e a Líbia) até as proximi- de Jufra, é a obra nacional mais longa as fronteiras movediças do Saara Ocidental],
um artigo publicado em 2020, Raouf dades do Mar Vermelho (entre o Sudão (mais de 100 quilômetros no início de Espace Politique n.20, Reims, 2013.
Farrah constatou que “a população e o Egito), a circulação transfronteiriça 2021) e mais estratégica. Será feita pelo 6   C onstantino Di Sante, “La ‘pacification’ ita-
lienne de la Cyrénaïque (1929-1933)” [A
nunca participou das discussões em parece ocorrer com relativa facilidade. grupo russo Wagner, por conta do Exér- “pacificação” italiana na Cirenaica (1929-
torno desse projeto”. Ora, acrescentou Disso é testemunha a incursão dos re- cito Nacional Líbio (ENL), do marechal 1933)], Revue d’Histoire de la Shoah, n.189,
ele, “sem a adesão das populações lo- beldes da Frente para a Alternância e a Khalifa Haftar.10 Esse muro correspon- Paris, 2008.
7   Ver Rémi Carayol, “Migrants dans la nasse
cais, sem um trabalho de aproximação Concórdia no Chade (Facc), do Fezzan de à linha de frente entre os governos d’Agadez” [Migrantes na armadilha de Aga-
com os jovens que controlam as rotas líbio ao Kanem chadiano, que causou a de Trípoli e Tobruk, delimitada após o dez], Le Monde Diplomatique, jun. 2019.
do deserto, sem levar em conta a ecolo- morte em combate do ex-presidente do fracasso da tomada de Trípoli pelo 8   R aouf Farrah, “Tin Zaouatine, marginalisa-
tion et militarisation aux confins des frontiè-
gia humana do Saara, todo esforço de Chade, Idriss Déby, em abril último. ENL, em 2020. O estabelecimento de res algériennes” [Tin Zauatine, marginaliza-
segurança, mesmo legítimo, torna-se Não obstante, ali também existem um governo de transição no início do ção e militarização nos confins das
uma fonte de frustração que incentiva muros.9 Menos espetaculares e vigia- ano relativizou sem dúvida sua impor- fronteiras argelinas], Jadaliyya, Washing-
ton-Beirute, 15 jul. 2020.
o desprezo pelo Estado e as tensões dos, ainda são numerosos, estenden- tância: só avançou alguns quilômetros 9   Jérôme Tubiana e Claudio Gramizzi, “Lost in
com os serviços de segurança”.8 Essa do-se às vezes por mais de 100 quilô- para o sul desde fevereiro de 2021. Mas Trans-Nation: Tubu Tubu and other armed
frustração explodiu em junho de 2020, metros. Em vez de seguirem o traçado uma preocupação subsiste: ao final, groups and smugglers along Libya’s Southern
border” [Perdidos na Transnação: Tubu Tubu
quando as autoridades estenderam o das fronteiras, eles ziguezagueiam pe- em caso de falência do processo políti- e outros grupos armados e traficantes ao lon-
muro ao longo do ued que marca a fron- lo território. Não foram erigidos por co líbio, esse muro de areia poderia se go da fronteira sul da Líbia], relatório da Asso-
teira, coroando-o com um fio de arame forças armadas nacionais, mas por transformar em uma fronteira e, assim, ciation Small Arms Survey, Genebra, dez.
2018; Jérôme Tubiana e Claudio Gramizzi,
farpado que não permite aos habitan- grupos armados que os utilizam para contribuir para “congelar” o conflito “Les Toubou dans la tourmente: présence et
tes, notadamente os criadores de ani- vigiar (e taxar) todos os deslocamen- ou então provocar a partilha do territó- absence de l’État dans le triangle Tchad-Sou-
mais, se deslocarem e chegarem a seus tos. Erguidos nas imediações de postos rio da Líbia? Um tal cenário lembraria dan-Libye” [Os Tubu na tormenta: presença e
ausência do Estado no triângulo Chade-Su-
poços, hortas e pastagens situados em de controle, esses obstáculos permi- o observado no Saara Ocidental há cer- dão-Líbia], Small Arms Survey HSBA Wor-
território maliano, bem como às minas tem garantir a apropriação informal de ca de quarenta anos.  king Paper n. 43, Genebra, fev. 2018.
de ouro que são aí exploradas. Irrita- minas de ouro – numerosas no sul da 10  Ver Akram Kharief, “Libye, un afflux histori-
que de mercenaires” [Líbia, um afluxo históri-
dos, os jovens tentaram arrancar o ara- Líbia e no norte do Chade –, policiar *Rémi Carayol  é jornalista; Laurent Gag- co de mercenários], Le Monde Diplomatique,
me, enfrentando as forças de seguran- pistas ou estradas asfaltadas e contro- nol é geógrafo. set. 2020.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

ANCORAGEM LOCAL OU ESTRATÉGIA GLOBAL

As duas nas. Mas nunca foram acusados pelos


norte-americanos de ter sabido da pre-
paração dos atentados do 11 de Setem-
Contudo, uma análise mais apro-
fundada dos movimentos jihadistas
mostra que essa pretensa continuidade

faces do jihad
bro em Nova York e Washington. não apenas carece de sentido, como
Esse enfoque na violência armada também equipara todas as guerras ter-
impede que se compreendam os fenô- ritoriais, que na melhor das hipóteses
menos de radicalização e passagem ao não servem para nada e na pior acen-
ato. Ele supõe, com efeito, uma conti- tuam a internacionalização de confli-
nuidade entre radicalização religiosa, tos locais e, portanto, sua articulação
Grupos terroristas como a Al-Qaeda e a Organização proclamação do jihad e terrorismo in- com o jihadismo global. Esse quadro de
do Estado Islâmico saudaram a ação das milícias ternacional, como se se passasse for- análise inviabiliza toda abordagem po-
çosamente da primeira etapa para a lítica que permitiria evitar o impasse
armadas no Sahel e a vitória dos talibãs no Afeganistão. terceira e, inversamente, o terrorismo terrorista e reintegrar os grupos arma-
Entretanto, longe de se explicarem por uma guerra internacional criasse jihadismo local. dos ao jogo. Sem dúvida, podemos nos
santa planetária, esses conflitos obedecem a uma Esse raciocínio induz a ler toda refe- perguntar por que essa reintegração é
rência à xaria e todo apelo à guerra necessária. Mas a resposta é simples:
lógica própria, do território. O recurso exclusivo à santa como prelúdios de ataques em quando esses movimentos dispõem de
força, portanto, nunca vai ser bem-sucedido escala mundial. base social e poder de mobilização, o
Nessa abordagem, a política oci- contraterrorismo e a ação militar, por si
dental para com os movimentos islâ- só, não bastam para destruí-los. O Afe-
POR OLIVIER ROY* micos é determinada unicamente pelo ganistão e o Mali mostram que funda-
critério da proximidade destes com o mentar uma política de contrainsurrei-
terrorismo. Ora, essa proximidade se ção apenas no paradigma do recurso à

A
noção de “terrorismo” se tornou perguntam sobre dois outros pontos: define, ao mesmo tempo, pela “escala força armada não funciona. Isso vale
o padrão pelo qual todo aconteci- por que os talibãs conseguiram se de intensidade” dos referentes religio- também para a decisão de manter os
mento ligado ao mundo muçul- apossar da capital afegã sem pratica- sos e – se não mais – pela prática real do radicais a distância pelo tempo neces-
mano passou a ser medido. Des- mente disparar um tiro? E estiveram al- recurso à violência: de modo geral, sário para a montagem de um Estado
de a queda de Cabul, em agosto de 2021, guma vez diretamente implicados em quanto mais falam de xaria e contes- de direito estável, democrático e adep-
meios de comunicação e inúmeros ob- um ato violento fora do Afeganistão? É tam a política das grandes potências, to da boa governança. Todas as tentati-
servadores ocidentais não param de se verdade que deram asilo a Osama bin mais os grupos islâmicos aparecem co- vas nesse sentido falharam. Como mo-
perguntar se a volta dos talibãs ao po- Laden entre 1996 e 2001 e pagaram por mo ameaça terrorista. Daí o princípio tivos do fracasso, só aparecem
der provocará uma retomada de atenta- isso ao serem desalojados do poder ao da guerra preventiva: vamos atacá-los argumentos culturais: o Estado de di-
dos islâmicos no mundo. Mas não se fim de uma guerra de algumas sema- antes que comecem a agir. reito seria um modelo ocidental inade-

© Renato Caetano
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 23

quado às sociedades muçulmanas. Afi- francesas desempenharam papel se- por outro, comporta também o risco de muçulmanos de segunda geração e
nal, não se percebe que muitas dessas cundário? Pelo menos até hoje, oito uma intervenção militar externa. convertidos.2 Após 2016, os perfis se
sociedades cultivem uma tradição de anos de guerra francesa no Mali não A escolha entre Al-Qaeda e OEI po- tornam mais heteróclitos; os atenta-
Estado capaz de adotar semelhante motivaram ações terroristas no territó- de, sem dúvida, ser motivada por laços dos, mais individuais e artesanais; as
modelo, a começar pelo Afeganistão. rio nacional. pessoais (por exemplo, a participação motivações, mais vagas e desconecta-
O terrorismo existe, é claro. A Al- de dirigentes locais em guerras anterio- das do grande jogo estratégico. Essa
-Qaeda tornou-o sua missão exclusiva e GERAÇÕES “DESCULTURADAS” res), mas repousa sobretudo em visões evolução sugere que o jihad global ja-
a Organização do Estado Islâmico Para desvendar esse enigma, temos de diferentes da relação entre islã e territó- mais teve raízes sociológicas profun-
(OEI) associou-o sistematicamente ao distinguir jihads locais de jihad mun- rio. A Al-Qaeda sempre recusou a opção das. Os “terroristas” não se dão bem na
jihad. Entretanto, este não é indisso- dial, ainda que todos possam se cru- territorial e viu, nos emirados, apenas sociedade francesa: são facilmente
ciável do terrorismo, tanto no plano zar. Por jihad local, entendemos a von- um local onde buscar refúgio: Bin La- descobertos por sua atitude suicida e
teológico (há uma tradição jurídica que tade de um grupo de estabelecer um den fez aliança com o emir dos talibãs, o pela melhoria da cooperação policial e
regula a violência) quanto no político emirado islâmico governado pela xaria mulá Omar, e não o contrário. Sua orga- das técnicas de segurança.
(os mujahidin afegãos nunca se lança- em determinado território, com um nização não se imiscuiu nos negócios Sim, podemos falar de um declínio
ram no terrorismo internacional con- emir à frente; apenas a OEI proclamou do regime político instaurado pelos ta- do jihad global. Mas não dos jihads lo-
tra alvos soviéticos). Sem ser falsa, a um califa, isto é, um chefe com voca- libãs; chegou mesmo a se pôr a seu ser- cais, como se constata pela vitória dos
ideia de que o terrorismo constitui uma ção para dirigir o conjunto da umma, viço, no plano interno, ao assassinar talibãs e pelas dificuldades da França
reação ao intervencionismo ocidental que reúne todos os crentes do mundo. seu principal adversário, o comandante no Mali. Esses conflitos territorializa-
armado no Oriente Médio (o eterno ar- Essas entidades locais se espalham ge- Massud (9 set. 2001), para ficar de mãos dos não devem mais ser vistos como
gumento da Al-Qaeda) permanece in- ralmente por zonas tribais em sentido livres em seu projeto de terrorismo glo- simples sucursais de uma guerra santa
suficiente. Ela não explica a ressonân- amplo.1 Elas surgem de tensões e mu- bal. Para Bin Laden, o jihad global era globalizada, mas, ao contrário, como
cia diferente de certas guerras: por que tações locais: vingança de clãs meno- mais importante que a ação local; ele e movimentos profundamente enraiza-
a Chechênia, onde o Ocidente não se res contra a aristocracia tribal, confli- seu subcomandante (e futuro sucessor), dos nas sociedades em que prosperam.
meteu, e a Bósnia, onde a Otan lutou ao tos referentes à água e à terra, Ayman al-Zawahiri, tentaram explicar Um pouco de antropologia política se
lado dos muçulmanos, suscitaram impotência do Estado diante da cor- isso aos que iam criar a Organização do impõe: todos os jihads locais que se
mais solidariedade junto aos jovens ra- rupção e da violência, aparecimento Estado Islâmico no Iraque e no Levante, mantêm não querem apenas matar e
dicais europeus que o Sahel, onde o de novas gerações mais “descultura- Abu Mussab al-Zarqaui e depois Abu reinar pelo terror. Os talibãs devem sua
Exército francês interveio em 2012? das”, isto é, distanciadas dos códigos e Bakr al-Baghdadi. Já os dirigentes da Al- influência, sobretudo, à sua capacidade
É preciso, assim, ver as coisas mais costumes tradicionais. E isso sem falar -Qaeda acharam que a territorialização de gerir microconflitos3 (em torno da
de perto. Não existe liame sistemático da referência ao islã para combater as seria uma armadilha capaz de atrair um terra, da água, das vinganças etc.); o vai-
entre jihad local e terrorismo interna- segmentações locais e deslegitimar ataque maciço de exércitos profissio- vém de jihadistas no Sahel só pode ser
cional. Já nos referimos aos talibãs: eles tanto o Estado quanto outras institui- nais, com domínio total do ar. O que compreendido em sua articulação com
nunca exportaram a violência para fora ções (chefias, tribos, confrarias reli- aconteceu depois lhes deu razão. os conflitos já existentes, que os Estados
do Afeganistão, e a maior parte dos giosas). Do norte da Nigéria a Moçam- Já a OEI permanece sendo a única se confessam incapazes de regular (ter-
atentados contra civis ou xiitas em Ca- bique, passando pelo Mali, Chade e organização a combinar território e glo- ra, água, pastagens, tensões étnicas e
bul, durante os vinte anos de presença Sudão, em zonas tribais afegãs e pa- balização, pois retoma ao mesmo tem- sociais). Esses enfrentamentos locais
norte-americana, foi reivindicada por quistanesas, do nordeste sírio ao Iê- po as tradições dos emirados locais e a atraem pouco os voluntários estrangei-
grupos jihadistas, entre os quais se men, passando pelo Sinai egípcio, o herança da Al-Qaeda, recorrendo a ros e não geram o que fez a força princi-
conta hoje a OEI. surgimento de grupos jihadistas se an- ações terroristas suicidas. O califado, pal da Al-Qaeda e da OEI: a construção
O caso do Mali parece ainda mais cora sempre na antropologia política proclamado em junho de 2014, apresen- de uma grande narrativa milenarista,
paradoxal. Considerando que a França das sociedades envolvidas. ta assim uma síntese do global e do lo- que transforma os jovens radicais inter-
combate na linha de frente os grupos O desenvolvimento dos jihads locais cal: a cada ganho de terreno, lançou nacionalistas, em guerra com a socieda-
do Sahel, o Exército apregoa aos quatro precede ou acompanha o fortalecimen- campanhas terroristas no Ocidente pa- de, nos heróis de um mundo novo.
ventos suas vitórias contra os terroris- to de duas organizações globais: a Al- ra incentivar a opinião pública a se opor A história dos talibãs, como a do ra-
tas – como recentemente, após abater -Qaeda e a OEI. Uma e outra partem de a intervenções militares contra ele. mo dissidente da Al-Qaeda na Síria (Ha-
Adnan Abu Walid al-Sahraoui, o emir uma mesma análise e divergem depois: Conduziu também uma guerra-relâm- tesh), demonstra que os jihads locais es-
do Estado Islâmico no Grande Saara a vitória nunca pode ser local, do con- pago no Oriente Médio, na esperança de tão submetidos a coerções políticas que
(EIGS) –, o Estado maliano é apoiado trário o território liberado será logo rea- ver os regimes tombarem como frutos podem convencê-los a negociar e a se
por Paris e existe um passado colonial vido ou o novo Estado renunciará ao maduros. Mas essa estratégia era insus- “territorializar” em um quadro aceitá-
reconhecido, como se dá que nenhum jihad global para obter o reconheci- tentável: com um território em perma- vel aos olhos da comunidade interna-
terrorista tenha sido motivado pela mento das grandes potências. Portanto, nente expansão, ignorando fronteiras, cional (respeito às fronteiras, rejeição
presença francesa? Todos ou quase to- é necessário colocar de joelhos o Oci- praticando limpeza ideológica e termi- do terrorismo global). Foi o que os tali-
dos mencionaram a Síria e o Iraque (co- dente antes, para em seguida reunir os nando por voltar-se contra os grupos lo- bãs fizeram, dando assim uma lição
mo Salah Abdeslam nos primeiros dias diferentes emirados em um mesmo cais, notadamente as tribos, que pode- tanto aos jihadistas de todas as cores
do processo dos atentados de 13 de no- conjunto. Os jihadistas locais, diante riam tê-lo acolhido favoravelmente no como a seus adversários: não há vitórias
vembro em Paris) ou o apoio das auto- dessa perspectiva de globalização de início, essa organização precipitou sua militares, apenas vitórias políticas. 
ridades francesas ao semanário Charlie sua própria guerra santa, têm uma es- derrota. De resto, seu cálculo a longo
Hebdo após a publicação das caricatu- colha a fazer: conservar sua indepen- prazo comportava um erro: o Exército *Olivier Roy, cientista político, é professor
ras do profeta Maomé. Os emigrados dência (o que farão os talibãs) ou se pro- norte-americano não se fixou, como no do Instituto Universitário Europeu de Floren-
malianos na França são, certamente, clamar franquia de uma das duas Iraque e no Afeganistão, mas, vencido o ça. Autor, em especial, de Le Djihad et la mort
pouco numerosos e provêm de grupos organizações, aliando-se ao emir da Al- califa, entregou as chaves às milícias [O jihad e a morte], Le Seuil, Paris, 2016.
étnicos que não participam do jihad. -Qaeda ou ao califa da OEI, como fize- xiitas e às forças curdas – e se foi.
Mas os oriundos de Faluja ou Mossul ram a Al-Qaeda no Magreb Islâmico Hoje, embora os riscos de atentados 1   A nalisamos o fenômeno dos emirados locais,
também não são muitos. Por que tantos (AQMI) ou o Ansar Bait al-Maqdis no Si- no Ocidente ainda persistam, o terro- com base na observação de um autoprocla-
mado “Estado Islâmico do Afeganistão”, fun-
jovens da segunda geração de imigran- nai. Essa estratégia tem uma vantagem rismo internacional parece ter perdido dado em 1985 no Nuristão, no leste do país.
tes do Magreb se mobilizam pela Síria e e um inconveniente: por um lado, inter- o ímpeto depois de dominar a cena du- Cf. Virginie Colombier e Olivier Roy (orgs.),
pelo Iraque, mas não pelo Sahel, que no nacionalizar-se lhes confere uma legiti- rante mais de vinte anos. Existe uma Tribes and Global Jihadism [Tribos e jihadis-
mo global], Oxford University Press, 2018.
entanto está mais próximo do país de midade maior em comparação com perfeita continuidade no perfil dos ter- 2   C f. Olivier Roy, Le Djihad et la mort [O jihad e
origem de seus pais? Por que um con- possíveis rivais locais, ao mesmo tempo roristas que agiram no Ocidente de a morte], Éditions Points, Paris, 2019.
vertido normando, bretão ou reunionês que lhes oferece a possibilidade de aco- 1995 a 2015: de Khaled Kelkal – envolvi- 3   Ver Adam Baczko e Gilles Dorronsoro, “Com-
ment les talibans ont vaincu l’Occident”
não se refere jamais ao Mali, mas sem- lher voluntários estrangeiros, o que do na onda de atentados cometidos na [Como os talibãs venceram o Ocidente], Le
pre ao Iraque e à Síria, onde as forças acentua o medo no resto da população; França em 1995 – a Abdeslam, vemos Monde Diplomatique, set. 2021.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

QUASE 60 MIL MORTES POR ANO NA ÍNDIA

As serpentes do em volume de medicamentos vendi-


dos,3 mas a quantidade e a qualidade
dos soros ali produzidos são notoria-

continuam matando
mente insuficientes.
O setor surgiu em 1966, no seio de
uma rica família parse do estado de
Maharashtra. O pai, Soli Poonawalla,
ganhou fama como pioneiro em cria-
ção de cavalos de corrida. Um belo dia,
Flagelo de países pobres, as picadas de cobra são uma das doenças tropicais mais uma serpente matou um deles. O filho,
negligenciadas. Na Índia, elas matam mais que em qualquer outra parte do mundo. Cyrus, teve a ideia de iniciar a fabrica-
ção de um soro e fundou o SII, que mais
As serpentes, contudo, poderiam ter o poder de curar, mas para isso seria necessário tarde se tornou o maior produtor mun-
superar obstáculos industriais, logísticos e culturais impostos à produção de soros dial de vacinas.
Os Poonawalla simplesmente apli-
caram uma receita descoberta em 1894
POR ALEXIA EYCHENNE E ROZENN LE SAINT* por Albert Calmette, discípulo de Louis
Pasteur: injeta-se uma “dose cavalar”
de veneno num animal, quase sempre

D
os arrozais de Kerala às planícies uma cabana de palha sem eletricidade. Health Action International, a OMS in- um equídeo, para provocar a defesa
semiáridas do Rajastão, as ser- O pai e a criança morreram no hospital serisse o problema na lista das “doen- imunitária. Os anticorpos de seu san-
pentes povoam a terra e o imagi- apenas duas horas depois. ças tropicais negligenciadas”. Em gue são então recuperados e tratados
nário dos camponeses indianos. O veneno das kraits e das najas pa- 2019, ela se impôs o objetivo de reduzir para a inoculação em humanos. Não
Os cultos hinduístas e budistas estão ralisa o sistema respiratório. O das ví- pela metade o número de vítimas até existe nenhuma técnica mais testada,
repletos de nãgas, gênios guardiães do boras provoca coágulos, edemas e ne- 2030 e exigiu um aumento de 25% na ainda que deixe impurezas e cause efei-
solo meio homens, meio serpentes. croses. Sem a aplicação de um soro, as produção de soros, que, no entanto, tos indesejáveis: prurido, dificuldade
“São fonte tanto de perigo quanto de fe- picadas podem ser mortais. “As pri- diminui a olhos vistos. para respirar ou mesmo choque anafi-
cundidade”, explica o indianista Michel meiras horas são decisivas, mas muitos As multinacionais do setor farma- lático (reação alérgica grave).
Angot. “No Pañchatantra, uma coletâ- aldeões esperam que as vítimas este- cêutico, as big pharmas, negligenciam De resto, o arcaísmo do procedi-
nea de fábulas [datando de 300 a.C.], jam em estado crítico para agir. Mais os medicamentos pouco rentáveis: os mento revolta os defensores dos ani-
um homem avista uma naja no fundo da metade morre a caminho do hospi- mais antigos, que já não asseguram mais. E os antídotos, para funcionar
de um poço e fica com medo”, relata o tal ou ao chegar”, afirma Kadam. Acon- monopólio, ou os de produção mais ca- bem, devem ser preparados com vene-
pesquisador. “Mas ela lhe diz: ‘Sabes tece que, com frequência, é necessário ra, para um mercado constituído es- no extraído de espécies locais. A Vins
muito bem que só picamos quando nos ir à capital do distrito, onde está o am- sencialmente de países pobres. Os so- Bioproducts, principal fabricante in-
ordenam’.” O animal aparece como o bulatório, e percorrer “entre 5 e 40 qui- ros estão nos dois casos. A francesa diana, é acusada de ter vendido a países
braço armado do destino. lômetros” – uma tarefa difícil para as Sanofi encerrou em 2010 a produção do africanos remédios pouco ou nada efi-
Priyanka Kadam se ocupa desses populações pobres. FAV-Afrique, principal soro com desti- cazes contra o veneno de suas próprias
mitos recorrentes. “Muitos indianos no à África. “A concorrência cada vez serpentes, pois tinham sido feitos com
atribuem as picadas de cobra a uma QUINHENTOS EUROS POR GRAMA mais agressiva dos países emergentes, venenos colhidos em outras regiões do
maldição”, constata a fundadora da Os hospitais públicos, tristemente fa- com custos de produção que não pode- continente. “Isso pode ter acontecido
Snakebite Healing and Education So- mosos pela precariedade de seus meios, mos igualar, contribuiu progressiva- no passado”, reconhece Ajit Nair, dire-
ciety, uma associação sediada em fornecem de graça os antídotos... quan- mente para concentrar a demanda tor do laboratório. “Mas, há dois ou três
Mumbai, no sudoeste da Índia. “Quan- do têm. “Os Estados os abastecem sem mundial, sobretudo em critérios de anos, extraímos o veneno do local mais
do são picados, imediatamente procu- nunca levar em conta suas necessida- preço”, justifica o laboratório. próximo do mercado a abastecer.”
ram os curandeiros.” Essa assistente des e o nível dos estoques”, lamenta Ka- Ao mesmo tempo, a Sanofi está de Na Índia, ele vem principalmente do
social percorre o subcontinente para dam. “Não há nenhum sistema de in- olho nos fabricantes indianos. A Índia é Tamil Nadu, na costa leste do país. Em
esclarecer as populações: “Como um formação para fazer as avaliações e um dos raros países vítimas das serpen- uma faixa de terra entre o oceano e um
ataque cardíaco, é no hospital que as reabastecer os estabelecimentos.” De tes capaz de fabricar antídotos. Ela se lago, membros da tribo dos irulas tra-
picadas devem ser tratadas”, insiste. resto, nem sempre uma injeção basta. tornou “a farmácia do mundo”, lembra balham no Madras Crocodile Bank
Anualmente, em escala planetária, “Ao fim de uma hora, caso não note ne- M. K. M. Gopakumar, especialista em Trust, centro de preservação de répteis
cerca de 5,4 milhões de pessoas são pi- nhum sinal de eliminação do veneno, o propriedade intelectual. A partir dos fundado pelo herpetologista Romulus
cadas e entre 81 mil e 138 mil sucum- médico deve aplicar outra dose”, expli- anos 1970, o país adquiriu competência Whitaker nos anos 1970, nos termos das
bem aos ataques, segundo a Organiza- ca Jean-Philippe Chippaux, diretor de para copiar medicamentos e vacinas. leis de preservação da fauna selvagem.
ção Mundial da Saúde (OMS).1 As pesquisa do Instituto de Pesquisas pa- Depois que passou a integrar a Organi- A cooperativa emprega hoje mais de
vítimas, que sobrevivem com graves ra o Desenvolvimento (IRD). “É neces- zação Mundial do Comércio (OMC), em trezentos apanhadores de serpentes
sequelas, como amputações ou defi- sário, em seguida, observar as reações janeiro de 1995, a Índia precisou se cur- (snake-catchers), pagos por capturas
ciências permanentes, são três vezes do organismo para prescrever um tra- var ao direito de propriedade intelec- nos campos ao redor. Isso dá cerca de
mais numerosas. Na Índia, as picadas tamento sintomático.” Mas esse trata- tual que rege o setor farmacêutico, a 2.800 da espécie Echis, 2 mil najas, 2 mil
provocaram em média 58 mil mortes mento raramente é prescrito, por causa fim de exportar seus medicamentos, víboras e 1.500 kraits por ano. Elas fi-
por ano entre 2000 e 2019.2 da falta de pessoal qualificado e de ma- apoiando-se na infraestrutura e na tec- cam “hospedadas” em jarros de terra.
Nos campos, as serpentes pululam, terial adequado. nologia já adquiridas. Para extrair o veneno, os irulas as tiram
atraídas para as casas graças à presen- As picadas de serpente foram du- Atualmente, o país produz em mas- de lá com uma vara. Pegos pelo pesco-
ça de roedores. O país tem pelo menos rante muito tempo ignoradas pelas po- sa fármacos caídos no domínio público ço, os répteis escancaram a goela e suas
cinquenta espécies de répteis capazes líticas de saúde pública. As intoxica- ou por acordo com laboratórios deten- presas penetram na tampa de um reci-
de matar, quando ameaçados. Kadam ções por veneno “ocorrem em países tores das patentes, como é o caso da piente que recolhe o fluido translúcido.
recolhe histórias arrepiantes de dra- pobres, mais de 95% entre as popula- parceria entre o Serum Institute of In- Em 2019, foram coletados 1.577 gramas,
mas que são também os da miséria ex- ções desamparadas. E não é ali que se dia (SII) e a AstraZeneca para a produ- que valiam, conforme a espécie, de 280
trema, como a de um homem de 30 tomam as grandes decisões farmacêu- ção de uma vacina contra a Covid-19. a 500 euros o grama, ou seja, de cinco a
anos e sua filha de 6, atacados por uma ticas e terapêuticas”, informa Chi- “As empresas indianas se tornaram es- dez vezes a cotação do ouro. Os animais
krait-azul numa noite de monção de ppaux. Foi preciso esperar até 2017 pa- pecialistas em copiar medicamentos são soltos depois de três semanas.
2018. Sete membros da família dor- ra que, sob pressão de ONGs como de baixo custo”, prossegue Gopaku- “O que eu pensava ser uma boa ideia
miam no chão, sem mosquiteiros, em Médicos sem Fronteiras (MSF) e mar. Sua indústria é a terceira do mun- nos anos 1970 talvez já não seja mais
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 25

© Cássia Roriz
tanto assim”, insinua, porém, Whitaker.
Afora o perigo das capturas, é difícil re-
introduzir as serpentes, sempre vene-
nosas, em seu meio natural sem des-
pertar a ira dos camponeses locais... Os
répteis são então enviados para flores-
tas distantes, sem a garantia de que vão
se dar bem ali. Não bastasse isso, a qua-
lidade dos soros sofre por causa do qua-
se monopólio dos irulas – da ordem de
80%, segundo Whitaker –, pois a prove-
niência é única e seria necessário diver-
sificar para adaptar o antídoto às espé-
cies locais. O remédio que cura a picada
de uma mamba da África não trata a de
uma naja da Índia. “O veneno das co-
bras de uma mesma espécie difere con-
forme as regiões, sobretudo porque elas
se alimentam de maneira diferente”,
adverte Anita Malhotra, especialista
em Zoologia da Universidade de Bangor
(Reino Unido).
O diretor da Vins Bioproducts afir-
ma estar capacitado a buscar venenos
em outras partes que não o Tamil Na-
du. O Premium Serums and Vaccines,
um dos seis grandes produtores nacio-
nais, garante, ao contrário, que só pode
consegui-los por intermédio dos irulas.
“Os poderes públicos deviam organizar
sua própria coleta. Seria preciso produ-
zir um antídoto específico para cada
região”, afirma Kartik Sunagar, pesqui-
sador e coautor de um estudo sobre as
falhas dos soros.4 Mas os serviços flo-
restais só concedem com conta-gotas
as licenças de captura de serpentes, to-
das protegidas. Para melhorar a ras-
treabilidade, “a OMS recomenda cole-
tar o veneno de animais de criação,
como nos Estados Unidos ou na Euro-
pa”, informa Whitaker. “Os irulas terão
de se adaptar, mas transformar-se em
criadores implica uma mudança enor-
me. Não sei quando isso será possível.”

ANTIVENENOS DILUÍDOS
A pesquisa de antídotos alternativos liams, toxicólogo e consultor do Depar- essa tarifa, os antídotos indianos são os à saúde mundial, Global Health Journalism
também exige tempo. O Policy Cures tamento de Controle das Doenças Tro- mais baratos do mundo, mas também Grant Programme for France.
Research, um think tank que recenseia picais Negligenciadas. “O mais urgente os menos rentáveis. “No mercado inter- 1   “ Morsures de serpents” [Picadas de serpen-
esforços financeiros em pesquisa e de- seria, antes, apoiar os fabricantes para no, não é viável obter lucros suficien- tes], Organização Mundial da Saúde, Gene-
senvolvimento, não identifica nenhum que garantam a qualidade de seus pro- tes”, assegura Milind Khadilkar, diretor bra, 17 maio 2021.
2   Wilson Suraweera et al., “Trends in snakebite
investimento nessa área até 2017. De- dutos e socorram as pessoas que mor- da Premium Serums and Vaccines. Seu deaths in India from 2000 to 2019 in a natio-
pois da inscrição na lista da OMS, 16 rem de picadas todos os anos.” A come- antídoto figura na lista da OMS de pro- nally representative mortality study” [Tendên-
milhões de euros lhe foram consigna- çar pelas vítimas dos países africanos, dutos certificados com destino à Áfri- cias de mortes por picadas de cobras na Índia
de 2000 a 2019 em um estudo de mortalida-
dos.5 O Wellcome Trust, uma das mais que não contam com uma unidade se- ca, o único entre seus concorrentes in- de nacionalmente representativo], eLife,
poderosas fundações de caridade do quer de produção de soros. Em junho dianos. O laboratório conta com esse Cambridge, 7 jul. 2020.
mundo, depois da de Bill Gates, finan- de 2021, a OMS elaborou uma primeira selo para aumentar as vendas para o 3   “ Indian pharmaceuticals – a formula for
success” [Empresas farmacêuticas india-
cia com cerca de 3,5 milhões de euros lista de antídotos certificados e segu- continente africano, onde um frasco é nas – uma fórmula de sucesso], InvestIn-
um projeto sobre anticorpos monoclo- ros, com destino à África. “É importan- vendido por cerca de 25 euros. Mais ou dia, Nova Déli, 2021. Disponível em: www.
nais, popularizados pela pesquisa con- te restaurar a confiança para que as po- menos metade das vendas de sua orga- investindia.gov.in.
4   S enji Laxme et al., “Beyond the ‘big four’:
tra a Covid-19. Esses anticorpos se pulações não fiquem com medo de nização e da Vins Bioproducts vai para Venom profiling of the medically important
agarram às células para impedir que os utilizá-los”, sublinha Julien Potet, con- o estrangeiro. A outra é para cuidar dos yet neglected Indian snakes reveals distur-
elementos tóxicos do veneno penetrem sultor político dos MSF. “Como as mar- indianos que continuam sendo, apesar bing antivenom deficiencies” [Além dos
“quatro grandes”: perfil dos venenos das
nelas, à semelhança de uma porta blin- gens são fracas, os fabricantes indianos de tudo, as maiores vítimas de picadas serpentes indianas medicamente importan-
dada que bloquearia sua progressão. tendem a infringir as normas diluindo de serpente no mundo.  tes, embora negligenciadas, revela perturba-
Essa esperança, porém, pressupõe os produtos, por exemplo. Às vezes, são doras deficiências dos antídotos], PLOS
Neglected Tropical Diseases , San Francis-
programas de pesquisa “muito caros”, necessárias vinte injeções para neutra- *Alexia Eychenne e Rozenn Le Saint co, 5 dez. 2019. Disponível em: https://jour-
segundo os industriais indianos. E nem lizar os envenenamentos mais graves.” são jornalistas. Este artigo foi escrito no nals.plos.org.
são prioridade da OMS. “Um novo pro- Na Índia, o preço de venda de um âmbito de um projeto financiado pelo Cen- 5   Entre os doadores figuram a Fundação Bill e
Melinda Gates, que financia também o Policy
duto leva de cinco a quinze anos para frasco é tabelado em cerca de 8 euros, tre Européen de Journalisme (EJC), por Cures Research e o Centre Européen du Jour-
ser desenvolvido”, avalia David Wil- próximo do custo de produção. Com meio do seu programa de bolsas dedicadas nalisme (EJC).
26 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

SELFIES, E-MAILS, STREAMING...

Quando a tecnologia Os números são reveladores: a in-


dústria digital global consome tanta
água, materiais e energia que sua pega-

digital destrói o planeta


da é três vezes maior que a de um país
como a França ou o Reino Unido. As
tecnologias digitais mobilizam hoje
10% da eletricidade produzida no mun-
do e seriam responsáveis por lançar
quase 4% das emissões globais de CO2,
Há muito tempo a ideia de uma indústria digital limpa, pois “imaterial”, domina as quase o dobro do emitido por todo o se-
mentes. Diante dos gigantes dos automóveis e do petróleo, o Vale do Silício parecia tor de aviação civil mundial.4 “Se as
empresas do setor digital se mostrarem
um aliado natural contra o aquecimento global. Essa ilusão começa a se dissipar. mais poderosas do que os poderes re-
Pesquisa conduzida em diversos continentes revela o custo ambiental gulatórios exercidos sobre elas, há um
exorbitante das altas tecnologias risco de não conseguirmos mais con-
trolar seu impacto ecológico”, adverte
Jaan Tallinn, fundador do Skype e do
POR GUILLAUME PITRON* Future of Life Institute, que trabalha
com a questão da ética na tecnologia.5
Até hoje, Jens Teubler, pesquisador

D
esenvolvedores do Vale do Silício Bruxelas, para o qual “as emissões evi- pesquisa em computação. Os danos do Wuppertal Institute, ainda não se
e fabricantes de grandes cami- tadas com o uso de tecnologias de in- causados ao meio ambiente começam recuperou. Há alguns anos, o cientista
nhões, a Comissão Europeia e a formação e comunicação são quase dez pelos bilhões de dispositivos (tablets, alemão participou de uma conferência
consultoria McKinsey, Joe Biden vezes maiores do que as geradas pela computadores, smartphones) que proferida nesse centro de pesquisa, es-
e Xi Jinping, os liberais britânicos e os implantação dessas tecnologias”.2 Mas abrem as portas para a internet. Mas tabelecido na cidade de mesmo nome
verdes alemães: diante da emergência pesquisadores independentes contes- também decorrem dos dados que pro- na Vestfália (Alemanha). Foi então, re-
climática, uma Santa Aliança global foi tam a sinceridade dessas cifras, repeti- duzimos o tempo inteiro: transporta- corda, que ele ficou “perplexo diante da
forjada pelo bem do planeta em torno das em toda parte, bem como a impar- das, armazenadas e processadas em ilustração de um homem usando uma
da convicção da necessidade de uma cialidade de seus autores. vastas infraestruturas que consomem aliança de casamento e uma enorme
grande mudança do mundo on-line. “A Para além dos esforços de “marke- recursos e energia, essas informações mochila nas costas, que representava o
tal ponto que se considera cada vez ting verde” das companhias do setor e permitirão criar novos conteúdos digi- real impacto de sua aliança. Essa ima-
mais que não será possível controlar as seus porta-vozes, qual é o impacto am- tais, para os quais necessitaremos de... gem me marcou”. O Wuppertal Institu-
mudanças climáticas sem recorrer ma- biental das ferramentas digitais? Essas mais dispositivos! Para realizar ações te estava então apresentando um méto-
ciçamente à tecnologia digital”, desta- novas redes de comunicação são com- tão impalpáveis como enviar um e-mail do inédito de cálculo do impacto
ca a associação The Shift Project, que patíveis com a “transição ecológica”? pelo Gmail, uma mensagem pelo What- material de nossos padrões de consu-
não compartilha desse ponto de vista.1 Ao final de uma investigação que nos sApp, um emoticon pelo Facebook, um mo, desenvolvido por seus pesquisado-
Nasce um novo evangelho que promete levou a dez países, eis a realidade: a po- vídeo pelo TikTok ou fotos de gatinhos res na década de 1990: a material input
a salvação por meio de cidades “inteli- luição digital é um colosso e, inclusive, pelo Snapchat, construímos, segundo o per service unit (Mips), ou seja, a quan-
gentes”, abarrotadas de sensores e veí- a que cresce com mais rapidez. Greenpeace, uma infraestrutura que, tidade de recursos necessários para a
culos elétricos autônomos. E ele tem “Quando descobri os números rela- em breve, “será provavelmente a maior fabricação de um produto ou serviço.6
apóstolos eficazes, como a Global cionados a essa poluição, pensei comigo coisa já feita pela humanidade”.3 De tal Para medir seu impacto ambiental,
e-Sustainability Initiative (GeSI), um mesmo: ‘Como isso é possível?’”, recor- forma, essas duas famílias de poluição os setores produtivos costumam focar
lobby corporativo estabelecido em da Françoise Berthoud, engenheira de se complementam e se retroalimentam. suas emissões de CO2. Esse método de

O smartphone,
Hydrogène Hélio

Fontes: Compilação do autor, Michael Ashby e Jean-Pierre Raskin; Compounds Interest, 2021.
Elementos presentes nos 1 2
H He
smartphones em 2021,
por composto Lítio Berílio
devorador de matérias-primas Boro Carbono Nitrogênio Oxigênio Flúor Neônio
3 4 5 6 7 8 9 10
Eletrônico Li Be Fer B C N O F Ne
Microeletrônico 26 Número atômico
Sódio Magnésio Símbolo químico Fe Alumínio Silício Fósforo Enxofre Cloro
Microcondensador 11 12 13 14 15 16 17 18
Na Mg Al Si P S Cl Ar
Circuito integrado
Potássio Cálcio Escândio Titânio Vanádio Cromo Manganês Ferro Cobalto Níquel Cobre Zinco Gálio Germânio Arsênio Bromo
Vibrador 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36
K Ca Sc Ti V Cr Mn Fe Co Ni Cu Zn Ga Ge As Se Br Kr
Imãs (micro e
alto-falante) Rubídio Estrôncio Ítrio Zircônio Molibdênio Paládio Prata Cádmio Índio Estanho Antimônio Telúrio Iodo
37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54
Soldagem Rb Sr Y Zr Nb Mo Tc Ru Rh Pd Ag Cd In Sn Sb Té I Xe
Bário Háfnio Tântalo Tungstênio Irídio Platina Ouro Tálio Chumbo Bismuto
Tela 55 56 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86
Touchpad Cs Ba Hf Ta W Re Os Ir Pt Au Hg Tl Pb Bi Po At Rn
Vidro
87 88 104 105 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115 116 117 118
Fixação de Fr Ra Rf Db Sg Bh Hs Mt Ds Rg Cn Nh Fl Mc Lv Ts Og
cores
Lantânio Cério Praseodímio Neodímio Európio Gadolínio Térbio Disprósio Érbio Túlio
Bateria Elementos presentes
57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71
em um telefone La Ce Pr Nd Pm Sm Eu Gd Tb Dy Ho Er Tm Yb Lu
Casco
de 1960 Amerício
Indeterminado 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103
de 1990
© Fanny Privat

Ac Th Pa U Np Pu Am Cm Bk Cf Es Fm Md No Lr

em 2021, um smartphone é composto de uma grande diversidade de matérias-primas (assinaladas em cores); o titânio é utilizado na fabricação de um circuito integrado (azul claro),
o cobalto na da bateria (laranja). Presente no casco (amarelo), o hidrogênio já entrava na composição dos telefones de 1960 e 1990. Por outro lado, o hélio, o molibdênio e ainda
o cádmio desapareceram dos aparelhos da nova geração.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 27

cálculo, porém, ofusca com frequência “As pessoas sempre se surpreendem toma o caminho de um datacenter – a por metro quadrado, custe mais caro
outras formas de poluição, como o im- com o tamanho do fosso entre o efeito nuvem, ou cloud. do que um datacenter de alto nível”.
pacto dos rejeitos de produtos quími- percebido e o impacto real de sua deci- A coleta sistemática e global de to-
cos na qualidade da água. Nos anos são de comprar um bem de consumo”, dos os tipos de dados “decuplica a ne- SERVIDORES ZUMBIS
1990, a Mips trouxe o foco para a degra- confirma Teubler. E há um motivo para cessidade de datacenters”, analisa um Como se isso não bastasse, as empresas
dação ambiental implicada na produ- isso: o maior tributo material é pago profissional da Bolt. Fervilham na Chi- de hospedagem de dados também du-
ção de bens e serviços. Olhar para o que pela zona geográfica mais a montante na as cloud cities (cidades-nuvem), es- plicam os próprios datacenters, não
entra em um objeto, em vez de para o da cadeia de produção, bem longe dos pecializadas em armazenamento de sem antes garantir que as instalações-
que sai dele, era uma completa inver- pontos de vendas. As tecnologias digi- dados. Aliás, o maior datacenter do pla- -espelho sejam construídas sobre uma
são de perspectiva. tais fizeram – imperceptivelmente – ex- neta se localiza em Langfang, cidade a placa tectônica diferente! Claro, um
Concretamente, a Mips avalia todos plodir nossa pegada. Com os bilhões de uma hora de carro ao sul de Pequim, e terremoto não pode nos impedir de
os recursos mobilizados e deslocados servidores, antenas, roteadores, repeti- ocupa quase 600 mil metros quadra- postar nosso almoço no Instagram ou
durante a fabricação, o uso e a recicla- dores wi-fi etc. atualmente em opera- dos, o equivalente a 110 campos de fu- atrasar um encontro no Tinder... Du-
gem de uma roupa, uma garrafa de suco ção, as tecnologias “desmaterializa- tebol! O consumo de água e eletricidade rante uma conferência realizada por
de laranja, um tapete, um smartpho- das” não apenas consomem matéria: dos datacenters, necessário para res- volta de 2010, engenheiros do Google
ne... Tudo passa por aí: recursos renová- elas estão em via de se tornar um dos friar as máquinas, cresce à medida que teriam explicado que as mensagens do
veis (vegetais) ou não (minerais), movi- maiores processos de materialização os fornecedores de serviços tentam evi- Gmail eram duplicadas seis vezes, e a
mentação de solo gerada pelo trabalho de todos os tempos. tar a qualquer custo o que se chama, no regra geral era um vídeo de gatinhos ser
agrícola, água mobilizada, produtos Entre essas infraestruturas muito setor, de “apagão total”: a pane geral, armazenado em pelo menos sete data-
químicos consumidos etc. Tomemos reais, os datacenters ocupam um lugar que poderia ser causada por uma falha centers mundo afora. O setor é, portan-
uma camiseta: sua fabricação em uma especial. Esses monstros de concreto e de energia, um vazamento de água no to, assombrado por “servidores zum-
oficina indiana requer eletricidade, que aço recheados de servidores multipli- sistema de climatização, um bug com- bis”, tão glutões quanto os outros...
é produzida por meio da queima de car- cam-se ao ritmo do dilúvio de informa- putacional... Em 2017, por exemplo, Por fim, os provedores de hospeda-
vão, para cuja extração foi derrubada ções produzido por nosso universo di- uma pane gigante em um datacenter da gem “superdimensionam” as infraes-
uma floresta de pinheiros... gital: 5 quatrilhões de octetos (byte de empresa British Airways levou ao can- truturas, prevendo picos de tráfego. O
8 bits) por dia – o equivalente a todos os celamento de quatrocentos voos e ao resultado é que, “se um roteador está
MOCHILA ECOLÓGICA dados produzidos desde o início da his- bloqueio de 75 mil passageiros no aero- operando a 60% de sua capacidade, ele
Essa abordagem se traduz em um nú- tória da computação até 2003 e o sufi- porto de Heathrow, em Londres. Uma está no máximo”, estima a pesquisado-
mero, a “mochila ecológica”, ou seja, o ciente para preencher a memória de 10 falha duradoura dos servidores da ra da computação Anne-Cécile Orgerie.
coeficiente multiplicador de cada uma milhões de discos Blu-ray que, empi- Amazon representaria um sério proble- O corolário de todo esse descomedi-
de nossas ações de consumo. O méto- lhados, chegariam a quatro vezes a al- ma econômico no Ocidente. mento é um formidável desperdício de
do não é perfeito: “A maioria dos dados tura da Torre Eiffel. Uma migalha em Em um ambiente cada vez mais eletricidade. Uma antiga reportagem
usados para calcular a Mips resulta de comparação com o que será gerado pe- competitivo, muitas empresas de hos- do jornal The New York Times (22 set.
opiniões e estimativas de especialis- las centenas de bilhões de objetos co- pedagem de dados trabalham para 2012) revelou que alguns datacenters
tas”, campo no qual a imprecisão cos- nectados à rede 5G que logo varrerão o manter suas infraestruturas funcio- subutilizados poderiam desperdiçar
tuma ser regra, pondera Teubler. Mas mundo. Para refletir sobre esse avanço, nando 99,995% do tempo, ou seja, com até 90% da eletricidade que consu-
isso não impede nossa perplexidade podemos observar um simples patinete 24 breves minutos de indisponibilida- miam. Em uma conferência realizada
diante de sua impressionante franque- elétrico de aluguel. de do serviço por ano. “As empresas no fim de 2019 na feira de negócios Da-
za: a aliança com alguns gramas de Quantos usuários desses equipa- que passam por apagões regulares ta Center World (um dos maiores en-
ouro tem uma Mips de... 3 toneladas! mentos sabem que as empresas que os saem do mercado”, afirma Philippe Lu- contros de profissionais da nuvem), em
Também é possível medir a Mips de alugam “coletam uma imensa quanti- ce, presidente do Institut Datacenter. Paris, um executivo fez esta atordoante
um serviço ou de uma ação de consu- dade de dados gerados pelos hábitos Para tender à disponibilidade total, as declaração: “Identificamos que os da-
mo: 1 quilômetro de carro e uma hora de mobilidade dos usuários?”, questio- empresas de hospedagem multiplicam tacenters iriam capturar um terço da
de televisão mobilizam respectiva- na Mohammad Tajsar, advogado da suas precauções. Em primeiro lugar, eletricidade da Grande Paris”.9
mente 1 e 2 quilos de recursos. Um mi- American Civil Liberties Union (Aclu). praticam a “redundância” das redes de A Amazon Web Services, que desde
nuto ao telefone “custa” 200 gramas. Já Ao criar uma conta em um aplicativo, distribuição de energia. “Você se vê 2017 está instalada na Île-de-France,
um SMS “pesa” 0,632 quilogramas... você compartilha seu nome, e-mail, com duas entradas de energia, dois ge- “teria assinado, na França, um contrato
Para muitos produtos, a Mips pode re- endereço, número de telefone, dados radores e salas cheias de baterias de de fornecimento de 155 megawatts de
velar uma proporção bastante baixa: bancários, histórico de pagamentos chumbo do tamanho de bibliotecas eletricidade, o suficiente para abastecer
por exemplo, a fabricação de uma bar- etc. Em seguida, a locadora pode cole- municipais para garantir a continuida- uma cidade com vários milhões de habi-
ra de aço requer “apenas” dez vezes tar todas as informações relativas a de entre a pane e o momento em que os tantes”, revela um especialista que pre-
mais recursos que seu peso final. Mas, seus trajetos, usando os sensores aco- geradores assumem”, explica Paul Be- fere permanecer anônimo. Estima-se
“quando há tecnologia envolvida, a plados ao patinete e os dados transmi- noit, da Qarnot Computing. Uma logís- que o setor seja responsável por 1% a 3%
Mips se eleva”, explica Teubler. As tec- tidos por seu celular. O grupo Bird per- tica gigantesca costuma estar atrelada do consumo mundial de eletricidade,
nologias digitais comprovam isso, da- mite até enriquecer seu perfil com a esse dispositivo. valor que, dado o ritmo de crescimento
da a grande quantidade de metais que informações recolhidas junto a outras Assim, os telhados de vários data- da nuvem, pode aumentar de quatro a
contêm, em particular “metais raros e empresas que já possuem dados sobre centers situados em pleno coração de cinco vezes até 2030.10 Em outras pala-
difíceis de extrair do subsolo”, prosse- você, além de consultar sua capacida- Nova York “são vertiginosas excrescên- vras, concluem Cécile Diguet e Fanny
gue o pesquisador. Assim, um compu- de de pagamento junto a agências de cias”, que incluem “torres de refrigera- Lopez, os datacenters estão “entre os
tador de 2 quilos mobiliza, entre ou- avaliação de crédito! Ao se colocar so- ção de água para o ar-condicionado maiores pontos de consumo de eletrici-
tras coisas, 22 quilos de produtos bre essas duas rodas, você também au- [...], reservatórios de água para o caso dade do século XXI”.11 E a principal fonte
químicos, 240 quilos de combustíveis toriza a operadora a compartilhar al- de corte de energia, guindastes para de energia utilizada para produzir ele-
e 1,5 tonelada de água limpa.7 A Mips guns de seus dados “com terceiros, trazer os geradores a diesel da rua... tricidade não é outra senão o carvão...12
de uma televisão varia de 200 a 1.000/1, para fins de pesquisa, comercializa- Seus subsolos são forrados de cabos, A internet está moldando um mun-
enquanto a de um smartphone é de ção e outros”, indica, por exemplo, o equipados com tanques de combustí- do no qual a atividade humana stricto
1.200/1 (183 quilos de matérias-primas grupo Lime, sem maiores detalhes. vel com capacidade para várias cente- sensu não é mais a única a animar o
para 150 gramas de produto acabado). Tais especificações “são redigidas em nas de milhares de litros a fim de abas- universo digital. “Computadores e ob-
Mas é a Mips de um chip eletrônico termos vagos e opacos, para serem in- tecer os geradores”, enumeram Cécile jetos se comunicam sem intervenção
que quebra todos os recordes: 32 qui- compreensíveis”, observa Tajsar. Essa Diguet e Fanny Lopez, duas pesquisa- humana. A produção de dados não é
los de material para um circuito inte- enxurrada de informações pessoais doras que realizaram um estudo global mais uma ação apenas de nossa parte”,
grado de 2 gramas, ou uma proporção que alimentará perfis individuais ven- sobre os datacenters.8 Claramente, con- confirma Mike Hazas, professor da
de 16.000/1. didos a preço de ouro inevitavelmente clui Philippe Luce, “não há edifício que, Universidade de Lancaster.13 Claro que
28 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

esse fenômeno gera um impacto am- ele mesmo a decisão [de investimen- Kong, o Deep Knowledge Ventures, 1   “ Lean ICT: pour une sobriété numérique”
[Lean ICT: por uma sobriedade digital], relató-
biental, sem que sejamos capazes de to]’”, reflete Michael Kearns, professor anunciou a nomeação de um robô, ape- rio do grupo de trabalho liderado por Hugues
calculá-lo, ou de controlá-lo. Uma ques- de Teoria da Computação. lidado de Vital, para seu conselho de Ferreboeuf para a associação The Shift Pro-
tão perturbadora se coloca: em termos Ao lado dos chamados fundos “ati- administração,19 de modo que nenhu- ject, Paris, out. 2018.
2   “#SMARTer2030 opportunity: ICT solutions
de atividade digital, os robôs poderão vos”, nos quais a arbitragem ainda re- ma decisão será tomada sem conside- for 21st century challenges” [Oportunidade
um dia deixar uma marca ecológica cai principalmente sobre os humanos, rar sua análise. Já a companhia norte- #SMARTer2030: soluções de TICs para os
ainda mais profunda do que a dos hu- multiplicam-se os “fundos passivos”, -americana EquBot conta com os desafios do século XXI], GeSI e Accenture
Strategy, Bruxelas, 2015.
manos? Mais de 40% da atividade on-li- nos quais as operações financeiras es- serviços de uma “inteligência artifi- 3   “Clicking clean: who is winning the race to
ne já vem de autômatos ou de pessoas tão gradativamente sendo colocadas cial” que supera “as fragilidades emo- build a green Internet?” [Clicando limpo:
pagas para gerar atenção fictícia. Trolls, em piloto automático. Normalmente cionais e psicológicas que atrapalham quem está ganhando a corrida pela constru-
ção de uma internet verde?], Greenpeace In-
botnets e outros spambots enviam cor- são fundos de índices, que rastreiam o raciocínio humano”,20 como declarou ternational, Amsterdã, 2017.
respondência não solicitada, amplifi- índices de ações (por exemplo, o S&P o fundador da empresa... 4   “Lean ICT: pour une sobriété numérique”, op. cit.
cam boatos nas redes sociais ou exage- 500, baseado nas quinhentas maiores Quais serão os impactos ecológicos 5   Salvo indicação em contrário, os comentários
são retirados de entrevistas com o autor.
ram a popularidade de determinados empresas listadas nas Bolsas de Valores de um mundo onde enxames de veícu- 6   Michael Ritthoff et al., “Calculating MIPS: Re-
vídeos. A internet das coisas está, ob- dos Estados Unidos) e investem a longo los autônomos erram vazios através de source productivity of products and services”
viamente, acelerando essa atividade prazo nas empresas ali listadas. É o ca- cidades adormecidas e onde exércitos [Calculando a Mips: produtividade em recur-
sos de produtos e serviços], Wuppertal Spe-
não humana: em 2023, as conexões en- so da BlackRock, da Vanguard, da Re- de softwares rasgam a web 24 horas por zial 27e , Instituto Wuppertal de Clima, Meio
tre máquinas (fala-se em M2M, “má- naissance Technologies e da Two Sig- dia, enquanto cuidamos de nossos Ambiente e Energia, jan. 2002.
quina a máquina”), infladas principal- ma. Os investimentos feitos por fundos hobbies? Serão impactos colossais – 7   Frédéric Bordage, Aurélie Pontal e Ornella Tru-
du, “Quelle démarche Green IT pour les gran-
mente pelas casas conectadas e pelos passivos já superam os da gestão ativa provavelmente maiores do que toda a des entreprises françaises?” [Que abordagem
carros inteligentes, deverão totalizar nos Estados Unidos.17 Dessa forma, o poluição digital de origem humana. de TI Verde adotar nas grandes empresas fran-
metade das conexões na rede.14 Quanto conjunto do mercado financeiro vem Uma pista: pesquisadores calcularam cesas?], estudo WeGreen IT realizado em co-
laboração com a WWF-França, out. 2018.
aos dados, a fatia não humana já pro- se tornando cada vez mais uma ques- recentemente que alimentar uma inte- 8   C écile Diguet e Fanny Lopez, “L’impact spatial
duz mais que a humana, e desde 2012... tão de linhas de códigos, algoritmos e ligência artificial com grandes volumes et énergétique des data centers sur les territoi-
Isso é apenas o começo, pois os ro- computadores. de dados poderia gerar tantas emissões res” [O impacto espacial e energético dos da-
tacenters nos territórios], relatório da Agence
bôs agora respondem – a outros robôs. de CO2 quanto cinco carros durante to- de l’Environnement et de la Maîtrise de l’Envi-
Desde 2014, “redes antagônicas gerati- do seu ciclo de vida.21 Assim, focar as ronnement (Ademe), Angers, fev. 2019.
vas” permitem, por exemplo, que soft- Parametrizados para repercussões de nosso comportamento 9   Discurso de José Guignard, da Gaz Réseau
Distribution France (GRDF), Data Center
wares produzam vídeos falsos que gerar lucro, e não para digital pode se revelar vão e ilusório, World, nov. 2019.
substituem um rosto ou modificam as pois o 5G muda tudo.
palavras de uma personalidade (deep-
impedir o derretimento As tecnologias digitais são o espe-
10  Ben Tarnoff, “To decarbonize we must decom-
puterize: why we need a Luddite revolution”
fakes). A essas redes se opõem algorit- das geleiras, os fundos lho de nossas preocupações contempo-
[Para descarbonizar, temos de descomputa-
dorizar: por que precisamos de uma revolução
mos responsáveis por destruí-las... algorítmicos estão acele- râneas, de nossa nova ecologia em so- ludita], The Guardian, Londres, 18 set. 2019.
“Nenhum ser humano escreveu os có- rando a crise climática frimento. No entanto, elas trazem 11  C écile Diguet e Fanny Lopez, op. cit.
12  Ler Sébastien Broca, “Le numérique carbure
digos para produzir esses conteúdos, e grandes esperanças de progresso para au charbon” [O setor digital é movido a car-
máquinas estão funcionando para des- a humanidade. Com elas, vamos esten- vão], Le Monde Diplomatique, mar. 2020.
mascarar essas deepfakes... É um com- UM ROBÔ NO CONSELHO der a expectativa de vida dos seres hu- 13  Mike Hazas, discurso na conferência “Drow-
ning in data – digital pollution, green IT, and
bate entre máquinas”, resume Liam DE ADMINISTRAÇÃO manos, sondar as origens do Cosmos, sustainable access” [Afogando em dados –
Newcombe, engenheiro britânico es- Os fundos movidos por máquinas hoje generalizar o acesso à educação e pre- poluição digital, TI verde e acesso sustentá-
pecializado em internet. Outro exem- destroem mais o meio ambiente do que ver as próximas pandemias. Elas vão, vel], EuroDIG, Tallinn (Estônia), 7 jun. 2017.
14  “Cisco Annual Internet Report (2018-2023)
plo: para combater os spammers (geral- seus equivalentes dirigidos por huma- inclusive, estimular formidáveis inicia- White Paper” [Documento sobre o Cisco An-
mente robôs), uma associação da Nova nos. Essa é a conclusão à qual chegou tivas ecológicas. nual Internet Report (2018-2023)], San José
Zelândia criou recentemente o Re:S- Thomas O’Neill, pesquisador que em Pela primeira vez na história, uma (Estados Unidos), atualizado em 9 mar. 2020.
15  “ Send scam emails to this chatbot and it’ll
cam, um software que entabula inter- 2018 liderou um estudo para a organi- geração se levanta para “salvar” o pla- waste their time for you” [Envie seus spams
mináveis conversas com golpistas au- zação britânica Influence Map.18 Anali- neta, levar os Estados à justiça pela ina- para este chatbot e eles desperdiçarão tem-
tomatizados, com o objetivo de sando sobretudo os fundos passivos ção climática e replantar árvores. Pais po com você], TheVerge.com , Nova York,
10 nov. 2017.
desperdiçar o precioso tempo destes.15 geridos pela BlackRock, O’Neill consta- reclamam que têm “três Gretas Thun- 16  Juan Pablo Pardo-Guerra, Automating Finan-
No setor financeiro, a especulação au- tou que eles haviam registrado, em berg em casa” protestando contra o ce: Infrastructures, Engineers, and the Making
tomatizada responde por 70% das tran- 2018, “uma ‘intensidade de carbono’ de consumo de carne, o plástico e as via- of Electronic Markets [Finanças automatiza-
das: infraestruturas, engenheiros e a criação
sações globais e por até 40% do valor mais de 650 toneladas por milhão de gens aéreas. Ao mesmo tempo, esse de mercados eletrônicos], Cambridge Univer-
dos títulos negociados. Estamos mu- dólares, enquanto seus fundos ativos grupo etário usa mais do que os outros sity Press, 2019.
dando de uma rede usada por e para [...] reportam uma intensidade muito os sites de comércio eletrônico, a reali- 17  “ The passives problem and Paris goals: How
index investing trends threaten climate ac-
humanos para uma internet operada inferior, da ordem de 300 toneladas por dade virtual e os jogos eletrônicos. Ado- tion” [O problema dos passivos e as metas
por, e até para, máquinas. milhão de dólares”. Segundo o pesqui- ra vídeos on-line e não conhece outro de Paris: como as tendências de investimen-
Segundo o professor Juan Pablo sador, o conjunto dos fundos passivos mundo que não o da alta tecnologia. to em índices ameaçam a ação climática],
relatório do Sunrise Project, Surry Hills (Aus-
Pardo-Guerra, autor de um livro sobre do mundo são notoriamente superex- Portanto, devemos abandonar qual- trália), 2020.
o tema, o universo dos fundos de inves- postos a recursos fósseis, muito mais quer ternura ao nos engajarmos na 18  “ Who owns the world of fossil fuels. A foren-
timentos mostra-se cada vez menos po- do que os fundos ativos. Parametriza- grande batalha deste século nascente: a sic look at the operators and shareholders of
the listed fossil fuel reserves” [Quem é o dono
voado por analistas que competem pe- dos para gerar lucro, e não para impe- tecnologia digital, tal como se desdobra do mundo dos combustíveis fósseis. Uma
los melhores lucros, tornando-se um dir o derretimento das geleiras, os fun- diante de nossos olhos, não foi, em sua análise forense dos operadores e acionistas
mundo no qual “os indivíduos têm, na dos algorítmicos estão acelerando a maior parte, colocada a serviço do pla- das reservas de combustível fóssil listadas],
InfluenceMap, Londres, dez. 2018 (atualizado
melhor das hipóteses, um papel par- crise climática. neta e do clima. De aparência evanes- em 4 jan. 2019).
cial”.16 Um ex-analista acredita que “a Claro que outras regulações pode- cente, ela é paradoxalmente o elemento 19  “Artificial intelligence gets a seat in the boar-
fantasia absoluta dos fundos quantita- riam favorecer os valores de baixo car- que, mais do que qualquer outro, nos droom” [Inteligência artificial ganha assento no
conselho], Nikkei Asia, Tóquio, 10 maio 2017.
tivos é quase nem ter mais funcioná- bono. Os dirigentes dessas instituições projetará além dos limites físicos e bio- 20  “A.I. has arrived in investing. Humans are still
rios, que apertariam alguns botões de financeiras, no entanto, argumentam lógicos de nossa casa comum.  dominating” [Inteligência artificial chega ao
vez em quando para manter tudo fun- contra tal solução com base no com- mundo dos investimentos. Humanos ainda
dominam], The New York Times, 12 jan. 2018.
cionando”. Podemos adivinhar o resto: promisso que têm para com seus clien- *Guillaume Pitron é jornalista. Autor de 21  “Training a single AI model can emit as much
“Uma vez que toda essa infraestrutura tes, a quem cabe, dizem, a responsabi- L’Enfer numérique. Voyage au bout d’un like carbon as five cars in their lifetimes” [Treinar
esteja em funcionamento, não é neces- lidade por seus investimentos. Em [O inferno digital. Viagem ao centro de um um único modelo de inteligência artificial
pode emitir tanto carbono quanto cinco car-
sária muita imaginação para dizer: breve a questão talvez nem se coloque like], Les Liens qui Libèrent, Paris, 2021, ros durante sua vida toda], MIT Technology
‘Talvez o computador pudesse tomar mais. Em 2017, um fundo de Hong apresentado por este artigo. Review, Stanford, 6 jun. 2019.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 29

SOCIOLOGIA DA ALTA GASTRONOMIA

Receita para se
poder de influenciar as escolhas de ricos
turistas e empresários de seu país, uma
parcela significativa da clientela dos

tornar um grande chef


grandes restaurantes.
Patricia Wells sabia elogiar muitos
chefs. Ela era particularmente conheci-
da por seu apego à cozinha de Joël Ro-
buchon, uma das poucas “superestre-
las” da área, a quem descreveu como “o
melhor chef do século” quando se apo-
Por muito tempo confinados a seus fogões, os grandes chefs ocupam cada vez sentou e com o qual escreveu um livro
mais a cena pública. Eles aparecem na publicidade, apresentam programas de de culinária.7 Ela não apenas defendeu
a culinária de Robuchon, mas também
sucesso, as revistas celebram sua genialidade. Mas não é tudo uma questão zelou por seu legado, apoiando a carrei-
de talento? Um mergulho no mundo da alta gastronomia mostra que ra profissional de seus muitos discípu-
determinadas “panelinhas” são fundamentais para a excelência... los: Benoît Guichard, Dominique Bou-
chet, Frédéric Anton... “Tenha certeza:
se é a primeira vez que você ouve falar
POR RICK FANTASIA* de Frédéric Anton, certamente não será
a última”, escreveu no Herald Tribune (4
abr. 1997). “Anton ilustra brilhantemen-

N
a tarde de 24 de fevereiro de 2003, taram em busca de uma explicação para ristas e para o público em geral, o Guia te tudo o que aprendeu na escola do
Bernard Loiseau, um dos maio- seu suicídio – constitui uma imagem em Michelin só se tornou a referência em mestre, agregando seu talento particular
res chefs franceses, deu fim à miniatura do universo da gastronomia termos de gastronomia francesa após para transformar os ingredientes, crian-
própria vida em seu quarto, com francesa, do “campo gastronômico”.4 a Segunda Guerra Mundial. Nos anos do combinações que encantam o pala-
seu rifle de caça. Embora a autópsia não Em um ensaio sobre a alta costura, o 1920, sua tiragem anual variou de 60 mil dar e, acima de tudo, satisfazem.”
deixasse a menor dúvida quanto ao sui- sociólogo Pierre Bourdieu inventariou as a 90 mil exemplares; na década seguinte, Outro meio de reconhecimento são
cídio, a falta de um bilhete levou todos características essenciais dos mercados foi fixada em 100 mil. Ela aumentou com as competições culinárias, que se con-
– família, mídia, colegas de profissão – de bens culturais de luxo.5 Em primeiro a Segunda Guerra Mundial, chegando a tam às centenas na França. A mais co-
a tentar encontrar um motivo. lugar, é na raridade do produtor, mais do 600 mil exemplares nos anos 1970 e es- biçada, que serve de modelo para as ou-
Quase imediatamente, as especula- que na raridade do produto, que está a tabilizando-se entre 500 mil e 700 mil.6 tras, é a que designa o Meilleur Ouvrier
ções concentraram-se no rebaixamento fonte do valor. A raridade do produtor, A chance de encontrar um Michelin no de France (MOF, ou “o melhor profissio-
de seu restaurante, o La Côte d’Or, pelo por sua vez, resulta ela própria da escas- porta-luvas dos automóveis franceses nal da França”). O título, criado em 1924,
guia Gault & Millau, que pouco tempo sez de sua posição em um campo. Por era, portanto, enorme. No entanto, seu é concedido pela Société Nationale des
antes baixara sua nota de 19 para 17, em fim, a fé na magia da assinatura do pro- papel institucional no campo da alta Meilleurs Ouvriers de France, uma asso-
uma escala de 0 a 20. Paul Bocuse, ami- dutor (a grife) permite que seu carisma gastronomia dependia apenas parcial- ciação sem fins lucrativos que organiza
go de longa data de Loiseau e provavel- seja transferido ao produto cultural. De mente de seu número de leitores. Sua competições relacionadas a uma ampla
mente o mais respeitado dos chefs fran- acordo com esse raciocínio, a análise do influência e o lugar que ocupa até hoje gama de profissões. O concurso “Culiná-
ceses de então, proferiu palavras campo da gastronomia implica observar podem ser explicados sobretudo pelo ria e Gastronomia” começa com várias
duríssimas: “Parabéns, Gault & Millau, em primeiro lugar como se forja a cren- sistema de classificação dos restauran- centenas de candidatos, que são redu-
vocês venceram, sua avaliação custou a ça no virtuosismo do chef ou no valor da tes, cujos efeitos culturais repercutiram zidos a um grupo de trinta a quarenta
vida de um homem”.1 Jacques Pourcel, alta gastronomia. Isso supõe estar aten- muito além do círculo de gourmets e via- finalistas, entre os quais apenas quatro
renomado chef e então presidente da to ao conjunto dos agentes coletivamen- jantes em busca de informações sobre ou cinco são premiados. Os vencedores
Chambre Syndicale de la Haute Cuisine te envolvidos na produção dessa crença: hospedagem e alimentação. No campo mais conhecidos do MOF normalmente
Française, escreveu uma carta aberta a os diferentes guias gastronômicos, os da alta gastronomia e no vasto domínio são chef-restaurateurs cujos estabeleci-
seus colegas. Ele responsabilizou a mí- periódicos e revistas especializados, os da gastronomia francesa, o Guia Miche- mentos obtiveram três estrelas no Mi-
dia pela morte de Loiseau. François Si- jornalistas e críticos gastronômicos, as lin e seu sistema de estrelas constituem chelin – como Bocuse (1961), Jean Trois-
mon, crítico gastronômico do diário Le fundações, museus e monumentos... a referência do valor culinário (ver boxe). gros (1965), Guy Legay (1972), Roger
Figaro, insinuou que o La Côte d’Or esta- Embora os guias gastronômicos Vergé (1972), Alain Chapel (1973), Joël
va prestes a perder sua terceira estrela A PODEROSA PATRICIA WELLS (Michelin, Gault & Millau, Bottin Gour- Robuchon (1976), Philippe Legendre
no Guia Michelin.2 O Gault & Millau re- Entre eles, o Guia Michelin reina sobera- mand) ocupem um lugar indiscutível no (1996) –, mas a maioria dos chefs com
jeitou qualquer responsabilidade. Seu no no mundo da gastronomia francesa. sistema de produção da crença na alta três estrelas nunca alcançou esse título.
diretor, Patrick Mayenobe, garantiu: Sua supremacia, que reside essencial- cozinha francesa, eles constituem ape-
“Uma nota não mata, nem uma estrela a mente em seu poder de consagração, nas uma parte dele. Há uma infinidade LINHAGENS DE COZINHEIROS
menos. [...] Esse grande cozinheiro cer- consiste, assim, na expressão de seu mo- de revistas e periódicos, com seus edito- De modo geral, os júris de culinária e
tamente tinha outros problemas, outras nopólio da legitimidade gastronômica, res, jornalistas e críticos gastronômicos, gastronomia são compostos por concei-
preocupações”.3 ou seja, o poder de dizer (com autorida- que fazem suas vozes e opiniões serem tuados chefs franceses. Entre 1989 e 2011,
Assim, os chefs colocaram a culpa de) quem está autorizado a proclamar- ouvidas. Jornalistas como François Si- o júri da final do MOF foi presidido por
nos guias e críticos gastronômicos; os -se “grande chef”. mon, que passou dezesseis anos no Le Paul Bocuse, sem dúvida o chef mais fa-
guias e críticos gastronômicos focaram Criado em 1900, no início da era do Figaro (até 2013), e Jean-Claude Ribaut, moso do mundo na época. O título con-
as finanças do cozinheiro; seu consul- automóvel, pela fabricante de pneus Mi- que esteve no Le Monde mais ou menos fere ao laureado grande prestígio dentro
tor financeiro desmentiu os problemas chelin, e distribuído gratuitamente aos na mesma época, estão entre os mais da profissão; ser finalista é por si só algo
de dinheiro e sugeriu que Loiseau era motoristas com o objetivo de promover eminentes críticos gastronômicos fran- bastante valorizado, muitas vezes visto
psicologicamente frágil; sua esposa, por uma nova modalidade de turismo, o li- ceses. Isso sem falar da norte-americana como uma conquista em si, sendo a fa-
fim, dona e gerente das empresas do vro de capa vermelha, em sua primeira Patricia Wells, que trabalhou para o In- çanha mencionada em artigos da revis-
chef (que manteve o reconhecimento edição, com tiragem de 35 mil exempla- ternational Herald Tribune publicado ta Le Chef, em biografias e publicações
de guias e editores culinários), insistiu res, trazia mapas de treze cidades fran- em Paris (e antes disso para a revista se- oficiais. Mas, embora tornar-se um MOF
nas pressões relacionadas à profissão, cesas e indicava o endereço de hotéis, manal L’Express) e talvez tenha sido ain- seja uma proeza que atrai a atenção das
que teriam contribuído para a instabili- correios, estações ferroviárias, médicos da mais influente. Por um quarto de sé- principais instituições e protagonistas
dade psicológica de seu marido. Em seu e farmácias, além de postos de gasolina, culo, as crônicas de Wells contribuíram do mundo gastronômico, e ainda que
conjunto, é possível dizer que o círculo com o preço do combustível. Inicial- para a influência da grande culinária o simples fato de chegar às finais possa
próximo a Loiseau – os que se manifes- mente um manual prático para moto- francesa em todo o mundo. Ela tinha o lançar a carreira de um jovem chef, na
30 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

maior parte das vezes o cozinheiro que A entrada depende da capacidade preciso que devo intervir. [...] Se eu in- essa razão que, normalmente, quando
atravessa esse limiar já estava preparado de obter, como chef ou cozinheiro, as tervir nesse momento exato, os sabores se escreve sobre um chef, mencionam-
para o papel de grande chef. Por exem- vantagens certas, explícitas e implícitas. são fixados. Quando se ama cozinhar, -se os restaurantes onde ele trabalhou e
plo, dos dezenove finalistas do MOF na Isso inclui diplomas e outros carimbos esse princípio pode ser aprendido, mas as pessoas que o formaram.
categoria “Culinária e Gastronomia” aprobatórios oficiais, reconhecidos e apenas por experiência, fazendo suas Destacar essas linhagens de chefs
de 1991 sobre os quais temos informa- codificados nos programas escolares e próprias experimentações”.8 (Roger Vergé gerou Alain Ducasse, que
ções, doze já haviam trabalhado ou sido nos regulamentos nacionais, bem como No entanto, a experiência prática e gerou Michel Sarran e Alain Solivérès,
aprendizes na cozinha de um restauran- habilidades teóricas que podem ser es- pessoal do chef não é o único fator a con- que gerou Marc Miretti etc.) não benefi-
te três estrelas, ou já haviam conquista- pecificadas e testadas em exames. Mas siderar. Também é necessário levar em cia apenas os novatos ou os menos esta-
do algum prêmio culinário importante. também inclui uma aprendizagem por conta a experiência organizada em e por belecidos, mas também os mais velhos.
Isso não significa que as marcas de re- imersão, durante a qual os conhecimen- um sistema mais amplo de relações for- Por exemplo, Alain Ducasse tira partido
conhecimento anteriores e as relações tos teóricos da profissão são integrados mais e informais. O que importa não é o de seus laços de “família” com Roger Ver-
já estabelecidas tenham influenciado os ao exercício de uma atividade prática na que você sabe, mas quem você conhece. gé, ou com Michel Guérard e Alain Cha-
júris, mas apenas que, tendo já ocupado cozinha (ou no salão). O chef Joël Robu- As pessoas com quem aprendemos pel, a quem também designa como seus
um lugar na alta gastronomia, esses jo- chon articulou muito bem essa ideia de não apenas marcam uma carreira, mas mentores, embora os tenha sem dúvida
vens chefs (a idade média dos finalistas senso prático no domínio da culinária: determinam a trajetória. Quando um superado em termos de reconhecimen-
era de 37 anos) tinham tido a oportuni- “Não importa o quão habilidoso seja seu chef consegue relacionar claramente to e notoriedade. Ao reivindicarem sua
dade de estar cotidianamente expostos pessoal, há certos princípios culinários sua carreira com o legado de um ante- vinculação a Vergé, Ducasse, Solivérès
aos padrões, expectativas, técnicas e que não podem ser explicados em pala- cessor reconhecido, ele pode reivindicar e Sarran ancoram-se no patrimônio da
métodos de grandes cozinheiros e aspi- vras ou em atos. É o caso da fixação, ou seu pertencimento a um “grupo de pa- profissão; já Vergé, dando a conhecer
rantes. Nesse sentido, o rótulo de finalis- estabilização, dos sabores. Por exemplo, rentesco” específico e, assim, acumular que formou Ducasse e Solivérès, mos-
ta funciona tanto para confirmar o lugar quando eu preparo um ragu de trufas, capital social, capital de associação ou tra o que deixa como legado à cozinha
ocupado em um grupo restrito de chefs há um momento – ele pode ser reconhe- de pertencimento, altamente valorizado francesa. Essa preocupação com a linha-
como para oferecer um bilhete de entra- cido pelo aroma – no qual todo o sabor no campo da gastronomia, sobretudo gem sem dúvida alcançou sua expressão
da para esse clube. da trufa é liberado, e é nesse momento em seus espaços mais exclusivos. É por máxima com a Associação de Discípulos

© Maíra Mendes
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 31

de Paul Bocuse, criada em 1976 por uma essa cadeia profissional desenrola-se a
centena de ex-aprendizes e assistentes linhagem familiar de Orsi, cujos quatro
de todo o mundo para perpetuar, por filhos ingressaram no setor de restau- MICHELIN, A REFERÊNCIA (pelo menos de ordem financeira).
ocasião de seu quinquagésimo aniver- rantes em diferentes países (incluindo Protegido do risco de contaminação
sário, o nome e o legado do chef. Bocuse
também é membro de uma prestigiosa
linhagem culinária, descendente de Eu-
seu filho Laurent, que foi aprendiz, com
Roger Jaloux, de Bocuse!).
Ter sido aprendiz, assistente ou chef
E xistem três categorias de notas
no Guia Michelin. Um restaurante
de uma estrela oferece (no jargão ca-
por considerações comerciais, o
Guia Michelin soube cumprir seu pa-
pel de pilar simbólico do edifício da
génie, do La Mère Brazier, de Lyon, e do de estação em um restaurante famoso racterístico do guia) “muito boa cozi- gastronomia francesa (mesmo quan-
lendário Fernand Point, do La Pyramide, equivale quase a ter trabalhado ao lado nha em sua categoria”; é “uma boa do suas vendas caíram e os comen-
onde foi aprendiz por dois anos e for- de um chef consagrado. A validação por parada em seu roteiro”. Um estabele- tários e avaliações na internet se
mou cinco laureados pelo título de MOF. uma instituição confere a seu destinatá- cimento de duas estrelas é um local popularizaram).
Os laços biológicos também têm pa- rio o direito de exibir a aura. Tudo indi- onde se pode esperar encontrar “uma O terceiro ingrediente da aura que
pel importante. Dos 37 chefs que con- ca que a experiência adquirida em um cozinha excelente”, que “merece um rodeia o Michelin é a atemporalida-
quistaram três estrelas Michelin nos restaurante devidamente reconhecido desvio”. Por fim, um três estrelas é de que o guia procura encarnar, fru-
anos 1990, 21 tinham pais ou avós que é capaz de preparar um cozinheiro para “uma das melhores mesas” e “vale a to simultaneamente de sua antigui-
trabalharam no setor da gastronomia ocupar uma posição em um restaurante viagem”: “Nele se come sempre muito dade (mais de um século), seu
como chefs, donos de hotéis ou de ca- digno de reconhecimento comparável, bem, às vezes maravilhosamente. Vi- calendário de publicação (a apre-
fés. Essas conexões os prepararam, des- que saberá recomendá-lo e garantir que nhos finos, serviço impecável, am- sentação da edição anual é um ver-
de tenra idade, para encarar a cozinha tenha “tudo o que é necessário” para biente elegante”. dadeiro ritual) e seu conservadoris-
como uma profissão economicamente operar em um nível de competência e Toda uma mitologia se constituiu mo (sempre a mesma capa vermelha,
viável, além de familiarizá-los com téc- status profissional equivalente. O núme- em torno desse sistema de pontua- com uma apresentação e um layout
nicas culinárias básicas e com os rit- ro de restaurantes que podem conceder ção. Em primeiro lugar está o culto ao que variam pouco). Além disso, a im-
mos de um restaurante, facilitando seu essa validação é limitado, e eles não cor- sigilo quanto à forma como os restau- pressão de seriedade e confiabilida-
ingresso na aprendizagem. Em outras respondem necessariamente aos de che- rantes são inspecionados. Não ape- de é acentuada pelos vínculos do
palavras, eles chegaram à idade adulta fs influentes e conceituados. Na França, nas o número preciso de críticos que guia com uma companhia familiar
com um “dom” para o ofício, enquanto pouquíssimos estabelecimentos gozam trabalham para o guia permanece um respeitável, solidamente implantada
outros tiveram de enfrentar desafios e de um reconhecimento mais elevado do mistério, como também eles preser- há um século.
adquirir esse conhecimento aos pou- que aquele conquistado pelos chefs que vam escrupulosamente seu anonima- O quarto componente do mito Mi-
cos. As relações de parentesco também nele trabalharam. No topo da lista estão to junto ao pessoal dos estabeleci- chelin deriva dos três anteriores: seu
servem para reduzir o perímetro do uni- os parisienses La Tour d’Argent e Le Tail- mentos que visitam, pagando a conta poder de consagração, muitas vezes
verso já relativamente fechado da alta levent, seguidos pelo Le Grand Véfour e ao final da refeição (ao contrário de veiculado pela imprensa e valorizado
gastronomia. Assim, vários de nossos 37 o Pavillon Ledoyen. Mas é difícil para os outros críticos, que, após divulgarem pelo lugar de destaque que a gastro-
chefs trabalharam em estreita colabora- restaurantes mais conceituados manter sua identidade para a gerência, mui- nomia ocupa no patrimônio cultural
ção com membros de sua família: entre esse reconhecimento sem a renovação tas vezes jantam de graça). nacional francês. Quando ganha sua
eles, os gêmeos Jacques e Laurent Pour- trazida por um chef ou proprietário reco- Além de sua discrição lendária, ou- terceira estrela, um chef é investido
cel (chefs em Montpellier), os duetos de nhecido. É por isso que Bernard Loiseau tro elemento contribui para o mito do de um poder cultural considerável.
pai e filho formados por Michel e Jean- foi contratado para restaurar o prestígio Michelin : seu desinteresse. Essa Todo ano, a publicação do guia é tra-
-Michel Lorain, em Joigny, e Marc e Paul de um restaurante na Borgonha. qualidade reconhecida deve-se mui- tada como um evento midiático. Seu
Haeberlin, em Estrasburgo; pelo menos Quando morreu, Loiseau estava em to ao fato de que, durante cerca de “quadro de honra”, com seus vence-
cinco chefs eram então considerados uma espiral virtuosa. As entrevistas e 85 anos, a publicidade foi totalmente dores e seus perdedores, fascina
herdeiros de verdadeiras “dinastias” artigos a seu respeito abriram oportuni- proibida na publicação (ao contrário muitos franceses (especialmente
culinárias familiares, sendo três delas dades de negócios que o enriqueceram, dos outros guias gastronômicos). porque a maioria dos chefs três es-
(Blanc, Pic e Troisgros) quase institui- ampliando sua fama e aumentando Essa postura, ligada à proteção fi- trelas são celebridades). A mitologia
ções da gastronomia. ainda mais suas chances de desenvol- nanceira que a empresa Michelin da- em torno do Michelin permite, assim,
Se considerarmos os “laços fami- vimento. O chef seguia assim os passos va a seu guia, manteve-o acima de perpetuar a crença no poder cultural
liares” em sentido mais amplo, ou seja, de Michel Guérard, o primeiro dos gran- suspeitas de conflitos de interesses da gastronomia. ( R.F.)
incluindo as linhagens profissionais des chefs a cruzar o Rubicão comercial,
estabelecidas por meio do sistema de em meados da década de 1970. Les Prés
aprendizagem e as dinastias familiares d’Eugénie, seu restaurante situado no su- se, Robuchon... Todos buscaram entrar 1   C  itado em Craig S. Smith, “Bitterness follo-
ws French chef’s death” [Amargura após a
capazes de transmitir sua influência de doeste da França, estava então entre os no mundo da indústria, assinando con- morte do chef francês], The New York Times,
geração em geração, o campo gastro- mais bem avaliados nos principais guias tratos, emprestando sua fama a marcas 26 fev. 2003.
nômico conservou certa independên- gastronômicos. Reconhecido como um de produtos congelados, supermerca- 2   Citado em William Echikson, “Death of a
Chef” [Morte de um chef], The New Yorker, 12
cia em relação ao julgamento externo. dos chefs da nouvelle cuisine, Guérard dos, redes de restaurantes... Marc Veyrat, maio 2003. Um porta-voz do guia indicou que
A sucessão efetua-se através desse funil foi também autor de La Grande Cuisine conhecido por cultivar uma imagem de as estrelas de Loiseau “não estavam ameaça-
e se mantém protegida das formas de Minceur, best-seller publicado em 1976. chef rebelde e próximo da natureza, tra- das – pelo menos este ano”.
3   Citado em “La disparition tragique de Bernard
avaliação e julgamento impostas pela Nesse mesmo ano, assinou contrato balhou por muitos anos como consultor Loiseau” [A trágica partida de Bernard Loi-
lógica do mercado ou pelo sistema com a marca Nestlé. Em uma edição que para a multinacional de alimentação So- seau], Le Monde, 25 fev. 2003.
educacional. divulgou sua lista dos “Oito melhores dexo. E hoje é possível comprar luvas de 4   Um campo, no sentido sociológico, é um domí-
nio de atividade humana distinto e relativamen-
Concretamente, a sucessão ocorre chefs da França”, Gault & Millau questio- forno com o nome Thierry Marx, facas te fechado em si mesmo, com história, regras e
por meio dos circuitos profissionais e nou Guérard sobre ter “ultrapassado um japonesas com a efígie de Cyril Lignac, instituições próprias, mas também antagonis-
familiares, resultando em seu reforço limite”: provocativo, ele assumiu ter sido pulverizadores de chocolate Pierre Her- mos, alianças, recursos e recompensas.
5   Pierre Bourdieu (com Yvette Delsaut), “Le
mútuo. Por exemplo, Pierre Orsi (chef à o “primeiro chef francês a descer ao nível mé ou formas ecológicas com a marca couturier et sa griffe: contribution à une théo-
frente do restaurante que leva seu nome da indústria”. Segundo Guérard, tratava- de Christophe Michalak...  rie de la magie” [O costureiro e sua grife: con-
em Lyon, com uma estrela no Michelin e -se de levar à Nestlé “savoir-faire, imagi- tribuição para uma teoria da magia], Actes de
la Recherche en Sciences Sociales, v.1, n.1,
três no Bottin Gourmand) fez seus estu- nação e requinte” – no momento em que *Rick Fantasia, sociólogo, é autor de Paris, 1975.
dos com Paul Bocuse (e foi membro da a multinacional seguia os passos de suas Gastronomie française à la sauce améri- 6   Jean-François Mesplède, Trois étoiles au Miche-
Associação de Discípulos de Paul Bocu- subsidiárias norte-americanas para lan- caine. Enquête sur l’industrialisation de lin. Une histoire de la haute gastronomie françai-
se [Três estrelas Michelin. Uma história da alta
se). Depois, Orsi formou os chefs Gérard çar na França, sob a marca Findus, uma pratiques artisanales [Gastronomia fran- gastronomia francesa], Gründ, Paris, 1998.
Vignat, Jacques Rolancy e Stéphane Ga- linha de produtos de “cozinha leve”. cesa ao molho norte-americano. Uma pes- 7   Cuisine Actuelle: Patricia Wells Presents the
borieau (que por sua vez formou Pascal Cruzada a fronteira entre artesanal quisa sobre a industrialização das práticas Cuisine of Joël Robuchon [Cozinha atual: Pa-
tricia Wells apresenta a gastronomia de Joël
Cayeux, Sébastien Chambru, Sylvain De- e industrial, as relações entre esses uni- artesanais], Le Seuil, 2021, obra na qual se Robuchon], Londres, Macmillan, 1993.
reau e Katsumi Ishida). Paralelamente a versos só se ampliaram. Bocuse, Ducas- baseia este texto. 8   C uisine Actuelle, op. cit.
32 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

O FUTURO GIGANTE DO AUDIOVISUAL SERIA UM “ANÃO”

A fusão TF1-M6, para AMEAÇA PARA A FICÇÃO FRANCESA


“Essa fusão não me inquieta”, sorriu a
ministra da Cultura, Roselyne Bachelot,

enfrentar a Netflix?
em 30 de agosto, no France Info. “Preci-
samos de grupos fortes no audiovisual
privado, para garantir programas gra-
tuitos de qualidade [...]. Alguns deram
a isso o nome de gigante, mas, em nível
internacional, o que temos aí são anões
A largada da campanha presidencial francesa foi dominada pela exposição midiática do audiovisual.” Ela disse “anões”? Esse
do jornalista antimuçulmano Éric Zemmour e pelo ativismo ideológico do bilionário também foi o argumento oferecido em
18 de maio no programa C ce Soir, na
ultraconservador Vincent Bolloré. A ponto de o anúncio da fusão das duas principais France 5, dessa vez em uníssono, por
redes de televisão privadas, TF1 e M6, passar quase despercebido Couture e Sonia Devillers. Somente Ju-
lia Cagé, professora de Economia do
Instituto de Estudos Políticos de Paris,
POR MARIE BÉNILDE* tentou opor-lhes as ameaças que pe-
sam sobre o pluralismo de expressão e
as redações, que essa fusão alega prote-

S
e fosse necessário procurar uma mundo desvia o olhar. Antes mesmo do o “delírio burocrático” é que teria feito ger. Se a M6 não tem mais que oitenta
ilustração para o desmorona- teste com os atores, Roch-Olivier Mais- partir Bertelsmann, o vendedor alemão jornalistas contra quatrocentos da TF1
mento dos combates culturais da tre, presidente do Conselho Superior da M6, de “uma França que se julga so- e sua cadeia de informação continua
esquerda, para a normalização do Audiovisual (CSA), não faz nenhum berana e espantou os grupos europeus sendo a LCI, seria tentador reservar para
capitalista da mídia e para o sono pru- mistério sobre o resultado do exame sem se dar conta de que a internet abri- as equipes editoriais uma parte das si-
dente dos editorialistas diante das colegial – que deve ocorrer no verão de ria as portas aos grandes grupos nor- nergias anunciadas – e cifras entre 250
grandes evoluções que lhes dizem res- 2022: segundo ele, “é natural ou pelo te-americanos”. Isto é, as plataformas milhões e 350 milhões de euros em três
peito, um lugar de escolha deveria ser menos compreensível” que alguns ato- de streaming Netflix, Amazon Prime, anos. Juntar as redações do grupo M6
reservado à fusão, anunciada em maio, res do audiovisual francês “se ponham Disney+ e Apple TV. “Quando se fala do (entre as quais a da RTL) e da TF1-LCI
da TF1 com a M6. Para quem se lembra em marcha” para “aprimorar sua capa- gigantesco grupo que vai ser criado”, sob uma direção única de informação
dos acirrados debates em torno da pri- cidade de investimento e preservar uma garante, “trata-se de uma pilhéria, pois permitirá ditar os preços das reporta-
vatização da primeira rede pública, em forma de soberania cultural”, declarou mesmo a TF1 e a M6, juntas, faturarão gens junto às agências externas e, sem
1986, ou da compra do Canal+ pela em 7 de setembro.1 “É num espírito de menos em publicidade que o Google. dúvida, dispor de jornalistas considera-
Compagnie Générale des Eaux, dez abertura e compreensão que o regula- [...] Esse novo gigante não passa de um dos competentes. Tavernost cuidará dis-
anos depois, a atonia geral com que são dor aborda essas operações de aproxi- anão!” Para provar, ele recomenda que so. “Não suporto que falem mal de meus
acolhidos esses casamentos diz bem da mação.” Gilles Pélisson, CEO da TF1, se analise a capitalização recorde em clientes”, advertira ele em 31 de maio de
cegueira dos atores do debate público, completa: “Senti uma espécie de entu- Bolsa ou o número de assinantes das 2015 no Canal+, depois de vetar uma re-
que olham o mundo através do eco de siasmo, de vontade de acertar”.2 multinacionais do streaming de vídeo. portagem do programa Capital sobre a
sua conta no Twitter ou no Facebook. Maistre não é o primeiro que acerta. Para o segundo, que critica o “espartilho Free Mobile e censurar, seis anos antes,
Denunciada no século passado pe- Em 19 de maio, na France Inter, o pro- de regras”, “a sobrevivência da TF1 e da uma reportagem do Zone Interdite sobre
las elites culturais ora como o sinal de grama Instant M, de Sonia Devillers, deu M6 depende de se casarem, pois essas a higiene nos restaurantes McDonald’s,
uma impermeabilização das ideias, ora o tom. Para falar desse projeto de me- cadeias iriam inexoravelmente desapa- anunciantes da M6.
como a certidão de óbito de uma exce- gadifusão, que pretende dar vida a um recer se não encontrassem um modelo No entanto, o futuro grupo não pre-
ção cultural, a entrega da TF1 e em se- mastodonte controlado por Bouygues econômico”. Lembremos então que os tende renunciar à sua posição no domí-
guida do Canal+ aos grupos Bouygues e e presidido por Nicolas de Tavernost, o grupos TF1 e M6 totalizaram juntos, em nio da informação, instrumento de po-
Vivendi suscitou sua legião de discursos dono da M6, dois “especialistas” dizem a 2020, ano de crise sanitária, 3,36 bilhões der junto ao mundo político, que decide
enfurecidos, manchetes questionadoras mesma coisa: um ex-dirigente da TF1 e de euros em montante de negócios e 460 sobre as encomendas públicas e sobre
e discussões sem fim. Agora, nada. Ou do Canal+, Xavier Couture, e um colabo- milhões em lucro operacional. São res- leis e regulamentos suscetíveis de travar
quase. O grupo controlado por Bouy- rador do Journal de Dimanche, editado ponsáveis, conjuntamente, por 42% dos o desenvolvimento de uma grande em-
gues vai ampliar sua oferta de venda de pelo grupo Lagardère, ele mesmo pres- 44,3 milhões de telespectadores diários presa tanto de telecomunicações como
“tempo de cérebro disponível”, como tes a cair sob o controle total de Vivendi e por três quartos dos lucros da publici- de construção de obras públicas. O gru-
dizia seu ex-CEO Patrick Le Lay, e todo (grupo Bolloré). Aos olhos do primeiro, dade televisada. po TF1 encarregou seu banco consultor,

Ventres livres? Anticapitalismo O Programa


No momento em que a Lei romântico Minimalista
do Ventre Livre completa e natureza Em uma de suas obras mais
150 anos no Brasil, vem a importantes, Noam Chomsky
público esta coletânea que A par�r de uma ampla
variedade de expressões apresenta o minimalismo como
inves�ga, sob a um programa, e não como uma
perspec�va de gênero, da cultura român�ca em
diferentes áreas, Robert teoria, oferecendo valiosa
raça e liberdade, aspectos contribuição para a tradição
múl�plos e complexos da Sayre e Michael Löwy
examinam as conexões gera�vista em linguís�ca.
escravidão de mulheres no
processo de emancipação. profundas entre a rebelião
român�ca contra a
civilização burguesa
moderna e a consequente Produzir conteúdo
destruição do ambiente Compartilhar conhecimento.
natural. Desde 1987.
www.editoraunesp.com.br
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 33

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Rothschild, de encontrar um comprador
para suas cadeias TFX e TF1 Séries Fil-
ms, para satisfazer à obrigação legal de
não possuir mais que sete frequências
hertzianas nacionais (ele possui cinco,
como a M6). Mas não tenciona se desfa-
zer da LCI, que, no entanto, é deficitária.
Nem da TMC, que veicula o programa
Quotidien, de Yann Barthès. E é pouco
provável que a CSA lhe imponha isso.
Didier Casas, secretário-geral da TF1,
que participou ativamente da campa-
nha de Emmanuel Macron em 2017, en-
carregou-se de dissuadi-la, lembrando
que a entidade reguladora correria o ris-
co de comprometer uma operação que o
Poder Executivo aprovava.
De resto, não se trata apenas de
manter as plataformas a distância, mas
também de refrear o apetite de Vincent
Bolloré, o acionista principal do Canal+,
cuja cadeia CNews, de linha ultracon-
servadora, vai ganhando terreno. No
Palácio do Eliseu, em todo caso, o se- TF1 e M6 totalizaram juntos, em 2020, ano de crise sanitária, 460 milhões de euros em lucro
cretário-geral Alexis Kohler pode contar
com Casas, da TF1, para não ter más sur- francesa por meio de telefilmes ou sé- ta de vídeo por assinatura, suscetível informações ligadas ao consumo e à
presas. “É bastante lógico que o poder ries de sucesso, como Les Bracelets Rou- de defender a criação francesa contra vida prática, o grupo TF1-LCI quase dei-
apoie o bloco TF1, pois sabe onde põe os ges [As pulseiras vermelhas] ou HPI, mas as plataformas, já existe: ela se chama xou de ser um ator político. Deslocou-se
pés, e isso deve tranquilizá-lo num ano o mesmo não ocorreu com a M6. E por Salto, agrupa a TF1, a M6 e a France Té- rumo a um centro muito relativo dian-
de eleição presidencial”, sussurrou um uma razão simples: os episódios custam lévisions, e foi aceita pela autoridade te da CNews, que fabrica os medos, e a
banqueiro ao Télérama (17 maio 2021). caro e o retorno do investimento nem encarregada da concorrência. BFMTV, que os alimenta.
A concentração, tema central das su- sempre é garantido. Sob o olhar perscru- Assim, a privatização do audiovisual
cessivas leis sobre a comunicação, pra- tador de Tavernost, que tenta produzir o EMPOBRECIMENTO DO francês pode levar o telespectador, 35
ticamente nunca foi questionada. “Esse que difunde, raros são os programas que IMAGINÁRIO COLETIVO anos mais tarde, a ter de escolher entre
acordo só tem uma finalidade: tentar podem prescindir de lucratividade ime- Fundindo duas empresas com 3.700 e os grupos Bouygues, que fizeram cam-
concorrer modestamente com Netflix, diata. Assim é que seu grupo tem uma 2 mil funcionários, a operação TF1-M6 panha para Nicolas Sarkozy em 2007,
Amazon, Disney e outras plataformas rentabilidade perto de duas vezes maior não procura, de maneira prosaica, per- antes de se beneficiarem de numerosos
que vão arrasando tudo à sua passa- que a da TF1. Se a fusão for aceita, é pro- mitir aos acionistas privados fazer eco- contratos, a Altice (BFMTV, RMC e a ca-
gem”,3 garante Emmanuel Duteil, chefe vável que toda despesa nova seja mais nomias de escala (reduzindo seus efe- deia pró-israelense 124) e Bolloré, que
do Serviço Econômico da Europa 1, cujo rigorosamente cotejada com aquilo que tivos) e valorizar mais suas partes sem depende da ação da França para defen-
acionista principal, Bolloré, se apossou ela proporciona. E com a dupla TF1-M6 nada perder de sua capacidade de in- der seus interesses na África e censura
em 2021 de seu grupo Lagardère, após em posição dominante, podendo com fluência? Arnaud Montebourg (Partido as reportagens que lhe desagradam.
engolir a Prisma Media e se candidatar, mais facilidade impor aos produtores Socialista), que anunciou sua candida- Felizmente, pode-se dizer, resta o au-
sem sucesso, à compra do grupo M6. Se- seus preços e escolhas editoriais, o risco tura à presidência em 2022, ainda não diovisual público. Mas sua presidenta,
ria preciso então um “campeão francês seria ver partir para as plataformas tão falou desse projeto, que visa, no entan- Delphine Ernotte, também preferiu não
e europeu” para combater o Google ou temidas os talentos diversos da criação to, reforçar o que ele chamou em 2010 se alarmar: “Se a fusão da TF1 e da M6
o Facebook na publicidade, e a Netflix, a francesa. “O mercado francês sempre de “a televisão da direita, a televisão das significar a criação de um grupo privado
Amazon ou a Disney nos programas. sofreu com a falta de concorrência; por- ideias que destroem a França, a televi- francês mais forte, tanto melhor”, decla-
Com esse fim, os dirigentes da TF1 tanto, a concentração que se anuncia são do individualismo, a televisão do di- rou.6 Para Ernotte, caso se queira impe-
e da M6 se esforçam para demonstrar não é uma boa notícia”, adverte Stépha- nheiro, a televisão que exalta a insegu- dir os atentados contra o pluralismo e o
que agora avançam no mercado publi- ne Le Bars, delegada-geral da União Sin- rança”.5 Será que “o empobrecimento do “risco de predação” dos direitos espor-
citário dominado pelos atores digitais, dical da Produção Audiovisual.4 imaginário coletivo” ou “a violação do tivos, um audiovisual forte até contri-
e não pela televisão. Pedem então à au- “Existe um consenso profissional pluralismo político” se tornaram uma buiria para reforçar “a necessidade de
toridade encarregada da concorrência, em favor da fusão da TF1 com a M6”, lembrança distante justamente quan- um audiovisual público de peso”. O pre-
solicitada a apresentar suas conclusões escreveu, no Twitter, Pascal Rogard, di- do a LCI servia, há dois anos, de rampa sidente da TF1, Pélisson, decodifica: os
vários meses antes da renovação das li- retor-geral da Sociedade dos Autores de lançamento para as ideias de Éric poderes públicos se aproveitariam disso
cenças de emissão da TF1 e da M6, na Compositores Dramáticos, cujos direi- Zemmour ao transmitir ao vivo e inte- para restabelecer, como compensação, a
primavera de 2023, que amplie a análise tos repousam em receitas publicitárias. gralmente o discurso do editorialista do publicidade do serviço público após as
do “mercado pertinente” da publicida- Não se percebe por que uma diminui- Figaro na convenção da direita, orga- 20 horas: “Preparamo-nos psicologica-
de televisiva aos vídeos pela internet do ção da concorrência reforçaria a oferta nizada por Marion Maréchal (a neta de mente para essa solicitação de Delphine
YouTube (Google) ou do Facebook. Van- de ficção privada quando foi justamen- Jean-Marie Le Pen)? Ali, já ouvíamos fa- Ernotte”, disse ele em 7 de setembro.7 A
tagem: isso permite passar de três quar- te para se diferenciar da M6 que a TF1 lar do imigrante “colonizador”, da “gran- volta integral da publicidade na Fran-
tos a pouco mais da metade de parte do renunciou ao modelo dominante da sé- de substituição” de Renaud Camus, do ce Télévisions completaria a revolução
mercado publicitário. Contudo, o lobby rie norte-americana comprada a preço “islamismo da rua”... Fascinados por seu conservadora da televisão francesa. 
dos anunciantes, a União das Marcas, barato. De resto, em comparação com próprio reflexo, de difusão reduzida, no
não se engana: teme que a fusão seja o os gigantes do streaming, uma capitali- YouTube ou no Facebook, os líderes da *Marie Bénilde  é jornalista.
momento certo para aumentar o custo zação de 4 bilhões de euros oriunda da esquerda se esqueceram do alcance da
1   L
 es Échos, Paris, 8 set. 2021.
de acesso à publicidade televisiva. fusão seria realmente mais eficaz que televisão junto aos franceses e da capa- 2   AFP, 7 set. 2021.
Todavia, para o telespectador, é no uma capitalização 50% inferior diante cidade da mídia dominante de tornar 3   Europe 1, 28 jul. 2021.
âmbito dos programas que a ameaça dos 200 bilhões da Netflix, que levanta aceitáveis as teses mais reacionárias. 4   T
 élérama , Paris, 17 maio 2021.
5   L
 e Point, Paris, 1º out. 2010.
pode se materializar. A TF1 se destacou dinheiro na Bolsa à vontade para finan- Enquanto isso, com sua decisão de falar 6   L
 e Figaro, Paris, 24 ago. 2021.
nos últimos anos ao investir na ficção ciar seus programas? Além disso, a ofer- diretamente às “pessoas” e privilegiar 7   L
 es Échos, 8 set. 2021.
34 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

PROPOSIÇÕES PARA SAIR DO CONSUMISMO DESENFREADO

Elogio do decrescimento
A retomada da economia mundial tranquiliza meios de comunicação, investidores
e políticos. Mas a volta ao crescimento anterior poderá garantir de forma sustentável
o futuro da humanidade? Entre os que recusam esse modelo, existem aqueles
que defendem o decrescimento como uma nova abordagem dos desafios
ambientais, sociais, culturais e democráticos

POR VINCENT LIEGEY*

U
ma plataforma internacional de crescimento3 e passar de uma aborda- 84% de nosso consumo. Na falta de recusa a inovação técnica quando ela
debates fecundos gira, hoje, em gem estritamente quantitativa, que equivalente facilmente estocável e está ancorada em uma reflexão social
torno da noção de decrescimen- perde de vista as finalidades da econo- transportável, denso em energia e – pe- e cultural.
to.1 Por razões ambientais evi- mia, para uma reflexão qualitativa so- lo menos no momento – facilmente ex- Um crescimento infinito da popu-
dentes, a possibilidade de crescimento bre o sentido de nossas atividades e vi- plorável, não temos outra solução a não lação na Terra é tão absurdo quanto um
infinito em um mundo finito não pode da. Experimentar e usar outras ser reduzir nosso consumo. crescimento energético infinito. O pro-
mais dar ilusão. Em um mundo desi- maneiras de questionar. Responder às Apesar dos enormes investimentos jeto de decrescimento responde à ques-
gual, produtivista e consumista, o nossas necessidades fundamentais de recentes, a eólica e a solar ainda repre- tão central da demografia privilegian-
“sempre mais” atinge seus limites. O maneira sustentável, sem dúvida, mas sentam menos de 3% da energia pri- do o objetivo de uma justiça social
decrescimento abre, segundo seus de- também convivial e justa. mária mundial e ao mesmo tempo já planetária. A história ensina que as po-
fensores, perspectivas de justiça social, Apesar de tudo, essa religião do levam a tensões não só no aprovisiona- pulações que alcançam condições de
de emancipação e de alegria de viver. crescimento continua muito presente, mento de alguns materiais, como o co- vida decentes e acesso à educação re-
Do ponto de vista deles, o cresci- tanto na direita como na esquerda, e bre, mas também na utilização de es- duzem por opção o número de filhos.
mento tal como é mensurado, hoje, pe- mesmo entre muitos ecologistas. Para paços. Portanto, a transição energética Cerca de uma centena de países, em
lo aumento anual do valor agregado reagir à crise climática, o dogma se só poderá ser feita com uma redução praticamente todos os continentes, já
constitui uma aberração física, pois es- apoia, a partir de agora, na aposta do de nossas atividades mais energívoras. têm uma taxa de natalidade inferior à
tá diretamente correlacionado com a desatrelamento: continuar a aumentar Assim, para o decrescimento, a utiliza- das gerações anteriores.7 Se a inércia
produção e o consumo. Seja vermelho, nossa produção de bens e serviços, re- ção de soluções que substituam os dos fenômenos demográficos nos leva-
verde ou negro, sustentável e inclusivo, duzindo, ao mesmo tempo, de maneira combustíveis fósseis só tem sentido em rá a sermos mais de 10 bilhões de terrá-
sua busca perpétua lhes parece absur- significativa e de uma só vez os impac- economias sóbrias, solidárias, abertas queos em poucas décadas, a questão do
da: 3% de crescimento por ano leva a tos ambientais e a extração de recur- e relocalizadas.5 controle da população continua aguda
dobrar nossa produção (e nosso consu- sos. No entanto, se não foi possível ob- apenas em uma parte da África Sub-
mo) a cada 24 anos. Nesse ritmo, em servar em um lugar ou em outro CONVIVIALIDADE, saariana. Trata-se também de uma
um século, produziríamos dezoito ve- desatrelamentos parciais, regionais, AUTONOMIA, ALEGRIA questão de partilha, particularmente
zes mais do que hoje. O bom senso diria setoriais ou temporários, um desatre- Em uma sociedade de crescimento, de alimentação e de acesso à água, o
para desistirmos dessa busca que esgo- lamento global à altura das questões somente a dimensão econômica da que implica o questionamento de nos-
tou os benefícios de ontem relativos ao em jogo jamais ocorreu.4 inovação é levada em conta e se torna sos modos de produção e consumo. O
bem-estar social.2 Na realidade, quem Um dos grandes desafios de um de- sinônimo de progresso técnico. O de- desafio do envelhecimento das popula-
pode afirmar que somos globalmente satrelamento como esse seria uma re- crescimento convida a repensar a ino- ções necessita, além disso, que sejam
três vezes mais felizes do que há cin- dução drástica de nossas emissões de vação a serviço de outros valores, co- destinados mais recursos e tempo à
quenta anos? gases de efeito estufa. Mas, a menos mo a convivialidade, a autonomia, a saúde, aos cuidados para o bem-estar,
Um movimento no sentido inverso que ultrapassemos as leis da física, pa- alegria de viver, o ecofeminismo, as assim como aos serviços e à produção
seria também totalmente absurdo. O rece pouco provável que se chegue a camadas populares, o tempo livre, as de uma alimentação de qualidade, me-
que está em jogo não é decrescer, mas substituir as energias fósseis (petróleo, low-tech, a permacultura, a autoges- nos carnívora, produzida no entorno e
“desacreditar”, desistir da religião do gás, carbono), que ainda representam tão e ainda a reciprocidade.6 Ninguém regeneradora da biodiversidade.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 35

bra a urgência de romper com a “viola-


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ção do imaginário” que constitui a so-


ciedade de crescimento.12 De se
emancipar dela. Com a ambição de co-
locar a abundância lá, onde se estende
a miséria, e a frugalidade lá, onde os ex-
cessos proliferam.13 

*Vincent Liegey é engenheiro, um dos


coordenadores da cooperativa social Car-
gonomia em Budapeste e coautor (com
Anitra Nelson) de Exploring Degrowth: A
Critical Guide [Explorando o decrescimen-
to: um guia crítico], Pluto Press, 2020, e
(com Isabelle Brockman) de La Décrois-
sance, fake or not [O decrescimento, fake
ou não], Tana Éditions, 2021.

1   C f. Rémi Noyon e Sébastien Billard, “Faut-il


avoir peur de la décroissance?” [É preciso
ter medo do decrescimento?], L’Obs , Paris,
13 maio 2021.
2   C f. Timothée Parrique e Giorgos Kallis, “La
décroissance: le socialisme sans la croissan-
ce” [O decrescimento: o socialismo sem o
crescimento], Terrestres, 18 fev. 2021. Dispo-
nível em: www.terrestres.or.
3   Ler Serge Latouche, “La décroissance ou le
sens des limites” [O decrescimento ou o sen-
so de limites], Manuel d’économie critique do
Le Monde Diplomatique, 2016.
4   C f. Timothée Parrique et al., “Decoupling de-
bunked: Evidence and arguments against
green growth as a sole strategy for sustaina-
Será necessário desistir da “religião do crescimento”, que continua presente na direita e na esquerda bility” [Desatrelamento desbancado: evidên-
cia e argumentos contra crescimento verde
como única estratégia para a sustentabilida-
Por mais necessária que seja, a saí- balto (necessárias à tecnologia digital tivos, como o de moedas locais. Siste- de], Bureau Européen de l’Environnement,
da do capitalismo não é suficiente. O e às novas tecnologias), e da Bolívia, mas democráticos mais diretos e mais Bruxelas, jul. 2019.
5   C f. Vincent Liegey, Stéphane Madelaine,
que está em jogo é também renunciar com seus recursos de lítio (utilizado deliberativos poderiam, enfim, colocar Christophe Ondet e Anne-Isabelle Veillot,
ao produtivismo, ao consumismo, e para as baterias elétricas). as questões primordiais: o que produ- “Ni protectionnisme, ni néolibéralisme mais
não mais perceber e organizar a socie- O acesso de classes médias ao modo zir, como, para qual uso? une ‘relocalisation ouverte’, base d’une nou-
velle internationale” [Nem protecionismo
dade apenas pelo prisma da economia. de vida ocidental na China, Índia e Bra- Junto à exigência de uma renda má- nem neoliberalismo, mas uma “relocalização
Convém acrescentar a essa reflexão sil não deve nos levar a esquecer a críti- xima e a uma reflexão sobre a redistri- aberta”, base de uma nova internacional],
uma crítica radical ao tecnocientificis- ca ao desenvolvimento nem a impor- buição do patrimônio, principal vetor Bastamag, 4 nov. 2015. Disponível em:
www.bastamag.net.
mo, essa alienação segundo a qual a tância de seus resultados nocivos nessas das desigualdades, esse projeto genéri- 6   Muitos desses conceitos e reflexões são ana-
técnica pode resolver tudo. regiões do mundo. Enfim, na realidade, co demanda também a instalação de lisados em profundidade na coleção Les Pré-
Não é por acaso que o decresci- os chineses são as primeiras vítimas da auditorias da dívida (pública e privada) curseurs de la Décroissance [Os precursores
do decrescimento], Éditions Le Passager
mento tenha se originado em torno da poluição ligada à produção do que é e uma reflexão sobre o papel dos ban- Clandestin.
crítica ao desenvolvimento. O modelo consumido nos países ocidentais. Uma cos centrais e da criação de moeda. 7   Ler “La bombe humaine. Pression démogra-
de civilização ocidental foi imposto vez que o Norte está na origem de mais phique sur la planète” [A bomba humana.
Pressão demográfica no planeta], Manière de
por meio da violência, em primeiro lu- de 90% das emissões de gases de efeito REAPROPRIAR-SE DE SEUS DESEJOS Voir, n.167, out.-nov. 2019.
gar às populações dos territórios em estufa,9 só será possível sair desse im- “Pão e rosas”, clamava um poema de Ja- 8   C f. Karl Polanyi, La Grande Transformation.
que ele surgiu, como na Inglaterra, passe no qual todo o planeta está por mes Oppenheim que se tornou o hino Aux origines politiques et économiques de
notre temps [A grande transformação. Nas
com os cercamentos no século XVI,8 meio de um diálogo com o Sul e com os de muitos movimentos operários. É origens políticas e econômicas de nosso
com a Revolução Industrial no século países emergentes, reconhecendo essa preciso pão sempre, é evidente, mas tempo], Gallimard, Paris, 1983 (1. ed.:
XIX e, em seguida, estendido a todo o responsabilidade histórica. gostoso e se possível produzido local- 1944).
9   Jason Hickel, “Quantifying national responsi-
planeta pela colonização. O que está em jogo não é mais cres- mente com farinhas biológicas, prove- bility for climate breakdown: an equality-ba-
Se os ocidentais não têm a menor cer, mas compartilhar. Refletir sobre o nientes de métodos de produção rege- sed attribution approach for carbon dioxide
legitimidade para proibir os outros de decrescimento leva ao interesse pelas neradores da biodiversidade. Pão que é emissions in excess of the planetary boun-
dary” [Quantificação responsabilidade nacio-
imitá-los no impasse consumista que noções de rendas básicas, de gratuida- partilhado em torno de bons pratos, nal pelo colapso do clima: uma abordagem
foi a chama, eles têm a dupla obrigação de e de sistemas de troca locais. É o que exigindo tempo. E rosas também, mas sobre as atribuições baseada na igualdade
de reconhecer suas responsabilidades se encontra na ideia de dotação incon- não como as cultivadas em condições para as emissões de dióxido de carbono aci-
ma dos limites planetários], The Lancet, v.4,
nas catástrofes em curso e nas futuras dicional de autonomia, que faz o elo sociais e ambientais terríveis na África, n.9, Londres, 1º set. 2020.
e interromper a exploração dos países entre a renda básica, o acesso gratuito a que depois são exportadas em aviões 10  Cf. Vincent Liegey, Stéphane Madelaine,
do Sul. Somente um decrescimento serviços públicos e a bens de primeira frigoríficos.11 O decrescimento questio- Christophe Ondet e Anne-Isabelle Veillot, Un
projet de décroissance. Manifeste pour une
dos consumos no Norte permitirá que necessidade.10 Essa dotação garante a na a relação com o tempo, com os terri- dotation inconditionnelle d’autonomie [Um
estes se reapropriem de seu destino. cada um, desde o nascimento até a tórios, com o outro; com as atividades, projeto de decrescimento. Manifesto para
Essa é a condição indispensável para morte, de maneira individual e incon- com as necessidades, com os usos. Ele uma dotação incondicional de autonomia],
Éditions Utopia, Paris, 2013.
romper com a exploração de seus re- dicional, condições dignas de vida. Ela articula o projeto de se reapropriar de 11  Ler Zulma Ramirez e Geoffroy Valadon, “Al-
cursos, a qual produz ingerências polí- seria concedida em forma de direitos a seus desejos, tanto no Norte como no lons voir si la rose...” [Vamos ver se a rosa...],
ticas e econômicas. Continuar na mes- recursos (água, energia, superfície para Sul, libertando-se da manipulação pu- Le Monde Diplomatique, fev. 2020.
12  Aminata Traoré, Le Viol de l’imaginaire [A vio-
ma via com um crescimento dito se alojar ou desenvolver atividades, ali- blicitária, assim como das mídias que lação do imaginário], Fayard – Actes Sud, Pa-
“verde” simplesmente fará que essa di- mentação), acesso a serviços (educa- enquadram uma sociedade de desi- ris-Arles, 2002.
nâmica colonial seja perpetuada, co- ção, saúde, transportes, informação e gualdades e desperdícios. 13  C f. Jean-Baptiste de Foucauld, L’Abondance
frugale. Pour une nouvelle solidarité [A abun-
mo lembram os exemplos do Congo, cultura), mas também com base em Aminata Traoré, a altermundialista dância frugal. Por uma nova solidariedade],
país estratégico por suas minas de co- outros sistemas de troca não especula- nascida no Mali, com frequência lem- Odile Jacob, Paris, 2010.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

MÚSICA

A festa proibida vo de voluntários, le sound system, em


áreas campestres ou em terrenos de an-
tigas fábricas industriais abandonadas.
Desde quando surgiu na França, há uns
trinta anos, foi rejeitada pelos poderes
A música, quando não é “culta”, tende a ser considerada portadora de riscos diversos. públicos, o que a mantém na clandesti-
Ela é assim enquadrada a golpes de normas de segurança draconianas e de limitadores nidade. Dessa maneira, toda uma práti-
ca cultural amadora foi marginalizada –
de sons brutais. A história das relações entre as autoridades e as festas techno ao contrário do que se passou na Alema-
testemunha uma longa desconfiança que se endurece e se transforma em repressão nha, por exemplo. No entanto, estima-se
hoje, de acordo com a Coordination Ma-
tinal des Sons (CNS) – uma organização
POR ANTOINE CALVINO* que reúne em federação cerca de um
quinto dos produtores musicais france-
ses –, que uns mil coletivos organizam

E
m 19 de junho de 2021, Gérald Nantes. Enquanto choviam granadas e Embora essa violência excepcional cerca de 4 mil eventos por ano, muitas
Darmanin, ministro do Interior, golpes de cassetete, os bombeiros fo- pareça ter sido motivada por uma mos- vezes no meio de desertos culturais.
lançou em plena noite quatro- ram impedidos de intervir para ajudar tra de autoridade às vésperas das elei- A repressão sempre acompanhou a
centos policiais em ofensiva con- os feridos, entre os quais um jovem ções regionais, a pressão que pesa no história da música techno. Em primeiro
tra uma free party organizada em Re- que ficou sem uma das mãos. Pela ma- cenário da free party é constante já há lugar, em razão do consumo de drogas
don, na Bretanha, em homenagem a nhã, a aparelhagem de som, no valor uns vinte anos. A free party (não confun- ligado a ela,1 mas também porque essas
Steve Maia Caniço, que, em 2019, mor- de mais de 100 mil euros, foi destruída dir com a rave paga) é uma festa livre e festas refratárias ao controle do Estado
reu no Rio Loire durante uma inter- com golpes de machado, sem nenhum gratuita, na qual são tocadas músicas são imaginadas como ilhas de resistên-
venção policial na Festa da Música em procedimento legal. eletrônicas, organizada por um coleti- cia simbólica a uma sociedade sob vigi-
lância constante. Desde 1993, incitados
© Unsplash

por uma campanha alarmista da im-


prensa, os poderes públicos endurece-
ram, e a primeira grande rave francesa,
Oz, foi proibida. Em resposta, todos os
organizadores da França foram convi-
dados para o primeiro teknival, perto
de Beauvais, uma espécie de festival
gratuito aberto a todos os sound syste-
ms. Em 1995, uma circular interminis-
terial qualificou as raves (no sentido de
festa techno em geral) como noitadas
de risco e determinou que as forças da
ordem fizessem de tudo para impedir
que continuassem a ocorrer. A partir de
1998, tornou-se impossível alugar um
salão. As free parties desfrutaram de sua
capacidade furtiva para explodir e, no
fim de semana do 1º de Maio de 2001,
o teknival de Marigny recebeu 30 mil
pessoas. Em 27 de julho, o presidente
Jacques Chirac afirmou que “as festas
rave em si de fato não causam proble-
ma. O que causa problema é o que se
chama hoje de free parties”. Alguns me-
ses depois, a maioria socialista votou a
emenda do deputado Thierry Mariani
(da UMP – Union pour un Mouvement
Populaire, hoje RN – Rassemblement
National) à lei sobre a segurança coti-
diana adotada após os atentados do 11
de Setembro. A partir de então, as au-
toridades passaram a poder apreender
os sistemas de som das manifestações
com objetivo não lucrativo com mais
de 250 participantes, que não tiverem
pedido uma autorização. Como as pre-
feituras quase nunca as fornecem – em
média, três por ano para toda a França
–, isso se tornou de fato uma proibição.
Em 2003, foram enfrentamentos en-
tre policiais e os que participam das ra-
ves que levaram Nicolas Sarkozy, na épo-
ca ministro do Interior, para o debate.
Em 26 de setembro, ele declarou diante
de seus governadores: “A música tech-
no é uma realidade inevitável, quer isso
A repressão, cobrada pelos meios de comunicação, marca a história das free parties na França agrade ou não. Estima-se mais de 300
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 37

mil os adeptos das free parties, muitos reúne questões de circulação, saúde, dispostos a conceder suas áreas, pois fechado, mas é justo proibir fazê-lo em
dos quais poderiam ser nossos próprios policiamento e vizinhança. Entre 2008 se preocupavam com histórias de dro- sua habitação. Isso não impede que as
filhos. Não é proibindo cegamente e de e 2012, as prefeituras da Bretanha e do gas e álcool. É hipocrisia, há isso tanto forças da ordem interrompam essas fes-
maneira sistemática que encontraremos País do Loire estabeleceram, com Sa- em nossas festas tradicionais como nas tas e façam apreensões do material”. Em
uma solução inteligente. Simplesmente muel Raymond, da associação Techno- touradas na Occitânia.” O senador en- geral, os procedimentos tomados contra
radicalizaremos mais ainda esses movi- tonomy, um sistema de cooperação que contra locais, mas se dá conta de que as os organizadores, por delito de agressão
mentos, apenas os incitaremos à clan- leva a uma rede de “multissons”. “Con- prefeituras jamais autorizam. “Fiquei sonora ou abandono dos detritos, não
destinidade e à rejeição da lei. [...] Além seguimos montar uma grande festa de estupefato! Esses jovens estão impos- são fixos. “A principal infração, na ver-
disso, ao legalizarmos as raves, busca- uns vinte coletivos de quinze em quinze sibilitados de organizar manifestações dade, é uma simples contravenção rela-
mos um objetivo de ordem e segurança dias entre maio e outubro”, lembra. E legais. Um policial me disse: ‘Prefere-se cionada à organização sem declaração
pública para todos. [...] O que fazemos continua: “Tivemos o apoio do conselho um morto em uma manifestação não prévia. Nós negociamos de trinta a qua-
no âmbito nacional, vocês devem fazer regional para termos banheiros públi- declarada a um ferido em uma manifes- renta apreensões por ano via o fundo de
no âmbito local. Temos todo o interesse cos, iluminação, walk-talkies, coletes de tação autorizada’.” Ele persiste, conduz apoio jurídico da CNS, que é financiado
nisso. As rave parties devem se tornar segurança... A prefeitura investiu muito, um estudo com 150 prefeituras, tenta por um sistema de doações. Elas se tra-
banais”.2 Os coletivos aceitaram orga- houve um forte apoio do Ministério do um caminho de consultas em âmbito duzem em uma restituição do material
nizar junto com o ministro e o gover- Interior para alugar material, indenizar nacional. “Mas o Ministério do Inte- em 90% dos casos, acompanhadas de
nador do território relacionado com os os agricultores se fosse necessário, or- rior fez tudo fracassar em 2017. São os multas de pequenos montantes. Quan-
teknivals, cujo afluxo chegava às vezes ganizar reuniões locais. Os policiais se parlamentares locais que aguentam as do as festas reúnem menos de quinhen-
até perto de 100 mil participantes, mas acostumaram a falar com os mesmos consequências.” Indagado, o Ministério tas pessoas em um terreno, o procedi-
as prefeituras continuaram a recusar as interlocutores, os vínculos se estreita- do Interior respondeu laconicamente mento chega sistematicamente a uma
festas locais. “Precisávamos de Sarkozy ram. Algumas pessoas nos acusaram de por e-mail que “as reuniões festivas or- decisão de inculpabilidade.”
para organizar os teknivals”, explica Ben ser vendidos, mas 95% dos coletivos do ganizadas de acordo com a regulamen- Segundo Bergeault, se os poderes
Lagren, um dos porta-vozes da CNS. E oeste participaram desses multissons. tação serão acompanhadas, como toda públicos continuam a desencorajar es-
continua: “Isso significa menos autono- Com a eleição de François Hollande, manifestação legal”. sas reuniões, é em razão de sua imagem
mia, menos liberdade, menos poesia... em 2012, esperávamos generalizar esse midiática. “Hoje, os jovens vão tanto a
Nós aceitamos isso em troca de uma exemplo”. Mas o novo poder se desinte- free parties quanto a festivais e, no en-
normalização das free parties durante o ressou do dossiê e, aos poucos, o dispo- O presidente Jacques tanto, a imprensa os demoniza siste-
resto do ano todo”.3 Estas últimas não sitivo se desmantelou. Desde 2015, os Chirac afirmou que maticamente. Nos teknivals, as equipes
obtiveram mais autorizações das prefei- teknivals se tornaram novamente ile- de televisão preferem se interessar por
turas; todavia, o limite para a declaração gais, aliás, para a satisfação de uma boa
“as festas rave em si de pessoas cansadas no fim da festa aos DJs
passou, em 2006, para quinhentos par- parte do cenário que deseja se organizar fato não causam proble- e organizadores.” Uma normalização do
ticipantes, o que protegeu a maioria das por si próprio, e as free parties continu- ma. O que causa proble- cenário permitiria que as autoridades
festas. O status quo não julgou satisfató- am a ser reprimidas. ma é o que se chama enquadrassem os eventos e propuses-
rio: há quinze anos, os teufeurs organi- Henri Cabanel, senador socialista sem espaços mais adaptados. Após as
zam regularmente “manifestivas” para do departamento Hérault, também ten-
hoje de free parties” violências ocorridas em Redon, o diálo-
demandar a revogação da emenda Ma- tou fazer as coisas evoluírem. Em 2015, go entre o Estado e os coletivos acabou
riani e a volta ao regime de direito con- por demanda dos parlamentares de sua Na realidade, há um mal-entendido sendo retomado. Sem nenhum resulta-
suetudinário, que normalmente supõe circunscrição, ele levou à anulação uma em torno da lei, como indica a advogada do significativo até o momento.  
uma autorização da prefeitura apenas a free party. “Simplesmente, ela foi des- Marianne Rostan, especialista em defesa
partir de 1.500 participantes. locada para outro lugar e a comuna in- de coletivos: “Os parlamentares e os po- *Antoine Calvino  é jornalista.
No entanto, o Ministério da Edu- teressada teve problema, enquanto no liciais pensam de maneira equivocada
cação Nacional e da Juventude tenta início havia um contrato previsto”, la- que as free parties são necessariamente 1   O Observatoire Français des Drogues et Toxi-
acompanhar esse cenário desde 2004. menta. Ele organizou, então, uma reu- ilegais. Ora, essas festas devem ser obje- comanies enumerou, nos anos 2010 na Fran-
ça, uma média de vinte a trinta intoxicações
Éric Bergeault, referência nacional de nião entre os coletivos e os parlamenta- to de uma declaração da prefeitura uni- mortais, por ano, com a MDMA, a molécula
reuniões festivas organizadas pelos jo- res. “O acordo era sobre uma área diante camente quando recebem mais de qui- ativa do ecstasy, droga tradicionalmente as-
vens, difunde guias sobre a mediação da gestão do barulho e dos detritos. Era nhentas pessoas ou quando o lugar es- sociada à festa techno.
2   Declaração de Nicolas Sarkozy, ministro do
para prefeitos, profissionais de saúde um acordo para que todos ganhassem. colhido é perigoso. Se esses critérios não Interior, da Segurança Interna e das Liberda-
e organizadores. A Escola Nacional de Além disso, havia consequências eco- forem preenchidos, o evento não precisa des Locais, na reunião de governadores em
Administração (ENA) lançou, no início nômicas. Os participantes compram ser declarado. Além disso, é permitido se Paris no dia 26 de setembro de 2003. Dispo-
nível em: www.vie-publique.fr.
dos anos 2010, um curso sobre a orga- alimentos nos comércios das cidades. instalar à noite no terreno de outro para 3   Todas as declarações relatadas vêm de entre-
nização dos teknivals, um dossiê que Mas não era fácil encontrar prefeitos organizar ali uma festa se ele não for vistas dadas ao autor.

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38 Le Monde Diplomatique Brasil  OUTUBRO 2021

MISCELÂNEA

livros internet
NOVAS NARRATIVAS DA WEB
alheia. Quem nunca? Rafael Coutinho, grande qua-
drinista brasileiro, escreveu o prefácio e reconhece Sites e projetos que merecem seu tempo
o talento de Helô ao criar um suprapersonagem, o
prédio, “que nos faz dançar no grid que ela propõe, INCÊNDIOS NA COSTA OESTE
na unidade de página que agita nossos olhos atrás O New York Times tem um mapa interativo
de detalhes o tempo todo, voltando aos núcleos em que você acompanha em tempo real
iniciais, procurando o gato, a mudança do casal, o os incêndios ativos e recentes que ocor-
velho reacionário que foi tomar cerveja escondido rem na Costa Oeste dos Estados Unidos.
ISOLAMENTO com seu comparsa do 4º”. Helô brinca que é uma Várias bases de dados são a fonte do
Helô D’Angelo verdadeira fofoca em quadrinhos. A gente gargalha material, inclusive a Nasa e serviços de
em algumas páginas e chora de emoção em outras. controles de incêndios geoespaciais. Os

H elô D’Angelo é uma das maiores quadrinistas


brasileiras da nova geração. Jornalista de for-
mação, ganhou destaque com suas HQs políticas,
Outro ponto importante são as informações ex-
tras à história, que contextualizam o que acontecia
no Brasil durante a construção do livro. Uma escolha
pontos em vermelho são incêndios ativos,
onde houve fogo nas 24 horas anteriores.
O mapa traz informações como qualidade
principalmente durante as eleições de 2018. Aten- esperta da autora, que torna a obra um registro im- do ar na região, deslocamento da fumaça
ta aos detalhes e inspirada pelo tédio, ano passado portante feito durante a própria pandemia por uma e fuligem emitidas e quantidade de pes-
começou um registro sensível sobre a pandemia no jovem artista paulistana, desses que vamos reler soas que vivem nas áreas próximas das
Brasil com base no que via, escutava e imaginava com as gerações futuras, para tentar explicar – e bordas das queimadas.
sobre seus vizinhos. Daí nasceu Isolamento, seu se- até mesmo entender – tudo o que estamos vivendo. https://bit.ly/wildfiresnyt
gundo livro, que narra a vida de doze moradores de Isolamento foi publicada inicialmente no formato
um predinho, que vivem o que muitos de nós vive- webcomic, no perfil no Instagram da autora, para LUCY MCRAE
mos durante a pandemia: o drama do pai bolsonaris- então virar um livro de 208 páginas coloridas, pu- Ela é uma artista de ficção científica, ar-
ta e sua filha, afastados por suas escolhas políticas; blicado de maneira independente por meio de uma quiteta de corpo, cineasta e inventora. Faz
o médico que precisa sair para trabalhar; a mulher campanha no Catarse. Já experiente em financia- design especulativo sobre o futuro da ex-
presa no home office; o casal apaixonado; o cachor- mento coletivo, Helô é autora também da graphic periência humana explorando os limites
ro que se torna a única companhia da dona. novel Dora e a Gata , de 2019. do corpo, trabalhando com moda, beleza,
O mais interessante na narrativa criada pela auto- biotecnologia. Difícil explicar sem mostrar
ra é a estrutura, que une na mesma página a histó- [Gabriela Borges] Jornalista e curadora. Fundado- seu trabalho, fotos e vídeos que provocam
ria de todos os apartamentos. É como se estivésse- ra da Mina de HQ, mídia independente e feminista uma discussão ética e filosófica sobre a
mos observando de longe o que se passa na janela sobre histórias em quadrinhos. tecnologia, ideologias, o ser humano. A
obra de McRae tem aparecido em museus
e exibições, e mesmo a Nasa tem pedido
a ela certas especulações: como seria a
geração de um feto em gravidade zero?
Um dos trabalhos interessantes dela é a
“pílula de perfume”: você toma e sua per-
terceira pessoa salienta, por outro lado, o estranha- fume. Não existe ainda, claro. O trabalho
mento de quem não se reconhece nessas imagens, dela é justamente imaginar.
nesses filmes ou áudios. Salienta ainda o artifício www.lucymcrae.net
inerente à empreitada, na medida em que “ela” é um
produto da linguagem, a representação de uma vida, LABORATÓRIO DE
OS ANOS não uma vida em si mesma. FORMATOS HÍBRIDOS
Annie Ernaux, Cronologicamente paralela à história íntima, a his-
Fósforo tória coletiva abrange várias décadas de sociedade Site do curso de Jornalismo da ESPM que
francesa – das duas Guerras Mundiais, evocadas pesquisa linguagens limítrofes entre o jor-

U ma mulher e a sociedade de seu tempo bio-


grafadas em paralelo sob o olhar dos primeiros
anos do século XXI. Grosso modo, essa é a estrutu-
por familiares de crianças, como Annie, nascidas
nos anos 1940, até a revolução digital da primeira
década do século XXI. Marcos históricos, como a
nalismo e a arte e novas formas de comuni-
cação, e procura ampliar as possibilidades
da narrativa de não ficção. É um mapea-
ra do premiado Os anos, da francesa Annie Ernaux, insurreição argelina, a Guerra Fria, Maio de 1968, mento com mais de 250 exemplos sobre
publicado originalmente em 2008 e cuja tradução a queda do Muro de Berlim, a adoção do euro e os novas linguagens do jornalismo. Em 2017
brasileira chega ao catálogo da recém-criada Fósfo- atentados de 11 de setembro de 2001, são aborda- começou uma parceria com o Docubase,
ro dois anos após sair pela Três Estrelas. dos numa sintaxe cumulativa em pé de igualdade laboratório do MIT sobre documentários
Na hipótese remota de ignorar os paratextos, ain- com o cotidiano mais comezinho, reconfigurado pela 360°, interativos, imersivos. Muitos dos
da assim o leitor perceberia que a mulher, a voz que revolução dos costumes e pela sociedade de con- projetos listados pelo MIT estão no site, e
dela fala e a autora estão imbricadas. Perceberia, sumo. Nessa parte, de viés totalizante, alternam-se projetos brasileiros foram também publi-
talvez não de pronto. Isso porque, para revisitar a a terceira pessoa e o “nós” em sua acepção mais cados no site norte-americano.
história pessoal, Annie Ernaux abdica do “eu”, pilar impessoal. A ela talvez falte expor e problematizar https://labfor.espm.edu.br/
da escrita autobiográfica, em favor do “ela”. O pro- seus limites, recurso que sobressai na outra, pes-
nome é empregado para se referir àquela cujos vá- soal. Senão, porém, que em nada compromete a for- [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
rios estágios da vida foram registrados em arquivos ma ambiciosa e original de Annie Ernaux. Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
pessoais – sobretudo fotos –, descritos ao longo do ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
livro. Se recorrer ao acervo íntimo configura um es- [Wilker Sousa] Jornalista, escritor e pela ECA-USP e doutorando em Design
forço de exatidão autobiográfica, sua descrição em mestre em Teoria Literária. na FAU-USP.
OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa
Ano 14 – Número 171 – Outubro 2021
Que capa linda!!! www.diplomatique.org.br
Natalia Gregorini, via Instagram

Sensacional a ilustração da capa da Pri Wi. DIRETORIA


Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Fernando Alves, via Twitter
02 A França se rebaixa
O império não se desarma
Silvio Caccia Bava
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
O Le Monde Diplomatique Por Serge Halimi Rubens Naves
Brasil é muito necessário. Editor
Jorge Balbino Junior, via Twitter 03 Editorial
O Brasil autoritário
Luís Brasilino

Por Silvio Caccia Bava Editora-web


A pandemia nos trouxe muitas lições, Bianca Pyl

e uma delas é que sem enfrentar a crise


dos cuidados estaremos sempre subordinadas.
06 Capa
Concentração midiática: por que é
Editor de Arte
Cesar Habert Paciornik

Todas nós. A autonomia econômica tão difícil enfrentar esse desafio no Brasil? Estágio em Jornalismo
das mulheres exige um pacto coletivo. Por Ana Carolina Westrup, Laura Toyama, Samantha Prado

Giulliana Bianconi, via Twitter Iraildon Mota e Mabel Dias Estágio em Design
A mídia e o projeto de Romane Lombard

desdemocratização do Brasil Revisão


Por Janaine Aires e Suzy dos Santos Lara Milani e Maitê Ribeiro
Duas décadas de guerra por nada
A lista é grande: Vietnã, Iraque, Líbia, Jornalismo, silenciamentos e Gestão Administrativa e Financeira
Leila Alves
Síria e agora Afeganistão. consensos fabricados
Ruy Martins, via Facebook Por Franciani Bernardes e Nataly Queiroz Assinaturas
Larissa Alves
Violações de direitos ao vivo assinaturas@diplomatique.org.br
Por Ticianne Perdigão
Tradutores desta edição
Como os talibãs venceram o Ocidente Certas dores não aparecem no jornal Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Não acho que eles tenham vencido o Por Raíssa Ebrahim
Ocidente, nunca estivemos em guerra Conselho Editorial

com eles. Será que Otan e EUA 13 A China refestela-se em


região desdenhada pelos EUA
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
representam todos nós? A luta da Águia contra o Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Penso que não. Dragão na América Latina Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
Marcelo Lima, via Instagram Por Anne-Dominique Correa Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,

16 Uma ilha no coração do conflito


entre Pequim e Washington
Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
e Vera da Silva Telles.
A dívida que enlouquece os credores
Taiwan, a peça que falta no “sonho chinês” Assessoria Jurídica
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diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
O DIPLÔ AGORA TEM UMA NEWSLETTER
22 Ancoragem local ou estratégia global
As duas faces do jihad Assinaturas: Leila Alves
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