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PROBLEMA 4 - COM OU SEM MOLHO?

Sami, 19 anos, é solteiro, pardo, mecânico, natural e procedente de Goiás. Mora em São Simão
há quatro anos. Queixa-se de diarreia há dois dias, que começou com uma evacuação aquosa,
mas evoluiu com a presença de “catarro” e laivos de sangue nas fezes. As evacuações passam
de dez episódios ao dia, são de pequeno volume, acompanham-se de dor abdominal em cólica
no hipogástrio e tenesmo. Refere que há três dias vem se sentindo progressivamente doente,
com adinamia, dor de cabeça e febre que ultrapassa os 39ºC. Acabou tomando um
comprimido de imosec pois “não aguentava mais”. Desconfia que o quadro foi causado por um
cachorro-quente com muito molho que comeu há quatro dias em uma banca de rua. Desde
então só comeu alimentos preparados em casa. Marcela, sua namorada, que não quis o
sanduíche, não adoeceu. Sami informou também que já teve diarreia no passado e que, após o
exame de sangue, o médico disse que não era grave e que ele necessita somente de
tratamento com sintomáticos. Vanessa, a interna que o atendeu, constatou que o paciente
estava febril, desidratado leve, com o abdome doloroso à palpação profunda, mas sem sinais
de irritação peritoneal. Os ruídos hidroaéreos estavam aumentados. Depois de analisar o caso,
junto com o residente, colheu hemograma, PCR, Na +, K + , Mg ++ , coprocultura e
protoparasitológico de fezes (PPF). Iniciou hidratação oral, orientou interromper o imosec e
iniciar buscopam composto de 8 em 8 horas. Explicou que deveria retornar para checar os
exames 72h ou antes, se piorasse.

1. Explicar a fisiopatologia das diferentes formas de diarreias agudas e classificar quanto ao


tempo a diarreia.

Classificações: A diarreia é um sintoma/sinal caracterizado por dois componentes principais:


aumento no número de evacuações (mais de três vezes ao dia) e diminuição da consistência.
Um terceiro componente, o peso (mais de 200 g/dia), pode ser considerado, porém, é de difícil
avaliação na clínica diária.

A classificação quanto ao tempo é definida pela duração do sintoma, sendo consideradas


diarreias agudas aquelas com duração de até 15 dias, e diarreias crônicas quando os sintomas
duram mais de 30 dias. O intervalo entre 15 e 30 dias é considerado, por alguns, diarreia
persistente, enquanto outros preferem classificar a diarreia que dura mais de 15 dias como
crônica.

Outra forma de classificação das diarreias, baseada no mecanismo fisiopatológico mais


importante, separa-as em quatro tipos: osmóticas, secretoras, exsudativas e motoras.

Os mecanismos envolvidos na diarreia motora são o trânsito acelerado, causando inadequada


mistura do ali- mento com as enzimas digestivas, e o pouco contato com a superfície absortiva,
por ressecção intestinal ou fístulas enteroentéricas.

A diarreia secretora ocorre quando o intestino delgado e o grosso secretam sais


(especialmente cloreto de sódio) e água nas fezes. Certas toxinas, como a toxina produzida
durante uma infecção de cólera ou durante algumas infecções virais, podem causar essas
secreções. Ocorre por meio da produção de mediadores como o AMPc e o GMPc, que ativaram
proteinoquinases que levarão a menor absorção de NaCl, e maior excreção de cloreto.

A diarreia exsudativa ocorre quando o revestimento do intestino grosso se inflama, apresenta


ulceração ou se congestiona e libera proteínas, sangue, muco e outros líquidos, aumentando o
volume e o conteúdo líquido das fezes.
2. Explicar as manifestações clínicas da diarreia aquosa e da disenteria, correlacionando-as
com as diferentes etiologias.

Etiologia viral: Os mais prevalentes são o rotavírus e o norovírus. A fisiopatologia das


alterações intestinais ainda é mal compreendida, porém, sugere-se um possível efeito de
proteína viral como enterotoxina. Outro agente viral, o citomegalovírus, consiste também em
uma infecção prevalente em todo o mundo, a qual é usualmente sintomática apenas em
indivíduos imunocomprometidos. As diarreias virais manifestam-se em um contexto de
gastroenterite aguda, com fezes aquosas, tendo como característica importante a presença de
vômitos, com duração habitualmente curta (máximo de 72 horas). A infecção pelo
citomegalovírus pode se apresentar, no entanto, como forma persistente (entre 15 e 30 dias) e
disentérica.

A espécie mais frequentemente associada a gastroenterites é o Campylobacter jejuni, seguida


pelo Campylobacter coli. Os fatores de risco mais importantes são a ingestão de água e
alimentos (aves domésticas) contaminados. Nos países em desenvolvimento, o contato com
animais é outro fator de risco importante. A enterite secundária à infecção pelo
Campylobacter tem período de incubação de 2 a 5 dias e é, quase sempre, autolimitada,
raramente exigindo abordagem terapêutica específica. Manifesta-se por febre, dores
abdominais em cólica e diarreia, com duração habitual do quadro diarreico de 2 a 3 dias. A dor
abdominal pode se prolongar por mais alguns dias. O aspecto das fezes varia de aquoso a
sanguinolento, dependendo da intensidade da infecção e do tempo de enfermidade.
Possibilidade de desencadear a síndrome de Guillain- Barré, o que acontece em 1 de cada
1.000 indivíduos infectados.

Clostridium difficile: bactéria Gram-positiva, responsável por 15 a 20% dos casos de diarreia
secundária ao uso de antibióticos e de praticamente todos os casos de colite
pseudomembranosa. Produz toxinas (A e B) que provocam aumento da permeabilidade
intestinal e destruição das células epiteliais colônicas. Manifesta-se sob a forma de diarreia
aquosa em indivíduos com história de uso recente de antibióticos (3 ou mais dias).

Clostridium perfringens: bactéria Gram- positiva, anaeróbica, geralmente em forma de


esporos. É abundante no meio ambiente, ocorrendo com frequência no intestino humano.
Transmitida, geralmente, por alimentos contaminados, como carnes e maioneses. Bloqueia a
absorção de água através de enterotoxinas, provocando diarreia aquosa.

Escherichia coli: bastonete Gram-negativo, inclui cinco diferentes sorotipos com características
patogênicas individuais: enteroinvasiva (EIEC), enterotoxigênica (ETEC), enteroagregante
(EAEC), enteropatogênica (EPEC) e entero-hemorrágica (EHEC). Atuam por meio da produção
de enterotoxinas, que estimulam a secreção de cloro e reduzem a absorção de sódio, e de
citotoxinas, que agridem o epitélio intestinal, alterando sua estrutura. As características da
diarreia dependem do sorotipo. A diarreia aquosa está associada à infecção pelos sorotipos
EPEC, ETEC e EAEC, ao passo que os sorotipos EIEC e EHEC causam disenteria. A EHEC produz a
toxina Shiga, que pode causar complicações sistêmicas graves, incluindo síndrome hemolítico-
urêmica.

Salmonella: bastonete Gram-negativo, transmitido por ovos, aves domésticas, leite e outros
alimentos contaminados. A S. typhimurium está intimamente relacionada com gastroenterites,
enquanto a S. typhi está mais relacionada a efeitos sistêmicos tóxicos (febre tifoide). Produz
enterotoxinas que estimulam secreção de cloro, e invadem a mucosa, ativando eventos
inflamatórios. Manifesta-se inicialmente por diarreia aquosa, seguida de diarreia
sanguinolenta.

Shigella: bastonete Gram-negativo, transmitido por via fecal-oral e por meio de alimentos e
água contaminados. Produz enterotoxina potente, além de penetrar nas células colônicas,
provocando degeneração do epitélio e inflamação da lâmina própria, o que resulta em
descamação e ulceração. Os sintomas surgem após um período de incubação de um a dois
dias. A fase inicial, de enterite, manifesta-se por diarreia aquosa, seguida por colite, com
diarreia mucossanguinolenta.

Staphylococcus: coco Gram-positivo. A diarreia causada por esse microrganismo está


relacionada à contaminação de alimentos e produção de toxina termoestável, cuja ingestão
causa diarreia e vômitos. Os sintomas surgem 2 a 8 horas após a ingestão e tendem a regredir
espontaneamente em até 48 horas. As fezes apresentam aspecto aquoso.

Vibrio cholerae: bacilo Gram-negativo. Provoca diarreia por meio de uma potente toxina que
estimula o AMP cíclico, ocasionando a redução da absorção de sódio e a secreção de cloreto. A
diarreia secundária a essa infecção é aquosa, extremamente volumosa e coloca a vida do
paciente em risco por desidratação.

Yersinia enterocolitica: bacilo Gram-negativo. Responsável por quadros de diarreia aguda,


linfadenite mesentérica, ileíte terminal e pseudoapendicite. Transmitido por leite cru, água e
alimentos contaminados, vegetais crus e de animais para pessoas. A diarreia é usualmente
aquosa, porém, pode ser sanguinolenta nos casos severos. Os vômitos podem estar presentes
em 10% a 40% dos casos.

Protozoário Cryptosporidium: Tem ação predominantemente secretora, mas pode se associar


a atrofia vilositária e infiltrado inflamatório da lâmina própria. Desencadeia diarreia aquosa,
que pode ser prolongada.

Giardia lamblia: sabe-se que pode provocar destruição da borda em escova das células
epiteliais, assim como induzir resposta imune do hospedeiro. Infestações maciças podem
resultar em má absorção, tanto pelas lesões da mucosa como, em algumas situações, pelo
impedimento mecânico da absorção de nutrientes provocada pelo revestimento da mucosa
em decorrência da enorme quantidade do protozoário.

Entamoeba histolytica: Produz enzimas proteolíticas que provocam ulcerações, hemorragia e,


até mesmo, perfuração. A infestação por esse protozoário pode não ter qualquer manifestação
clínica aparente, mas pode se manifestar como quadro de amebíase invasiva intestinal, com
colite disentérica, apendicite, megacólon tóxico e ameboma, e extraintestinal (peritonite,
abscesso hepático e outras).

Nematoide:- Strongyloides stercoralis: Em situações especiais, como constipação intestinal,


alterações da motilidade intestinal e moléstia diverticular dos cólons, a permanência da larva
rabditiforme por tempo prolongado no intestino pode favorecer sua evolução para larvas
filariformes, iniciando um ciclo de infestação interna, a autoinfecção. Essa condição pode estar
exacerbada em indivíduos imunocomprometidos, o que pode ocasionar hiperinfecção, quadro
clínico grave, frequentemente fatal.

Outras causas de diarreia incluem as não-infecciosas, que são provientes de uma grande
quantidade de outras patogenias. Podemos citar a síndrome do intestino irritável, diarreia
funcional, RCU, DC, Doença celíaca, gastroenterite eosinofílica, colite isquêmica,
medicamentos, colite microscópica. Algumas causas não intestinais podem cursar com
quadros de diarreia também, como é o caso de diabetes, vipoma, gastrinoma,
somatostatinoma, insuficiência pancreática, hipertireoidismo.

Diagnóstico: Diarreias tóxicas: surgem entre 4 e 24 horas após a ingestão do alimento


contaminado por toxinas de bactérias como Staphylococcus aureus, Clostridium perfringens e
Bacillus cereus, e tendem a regredir logo após a eliminação da toxina, entre 1 e 2 dias após seu
início.

- Diarreia infecciosas: ocorrem 48 horas ou mais após a contaminação. São mais


frequentemente secundárias a infecções virais, porém, podem ser causadas por bactérias ou
protozoários. A duração das diarreias virais não costuma ser maior que 3 a 4 dias, ao passo que
as bacterianas podem evoluir por até 7 dias. Quadros diarreicos que duram mais de 1 semana
devem levantar a suspeita de infecção por protozoários.

- Diarreias funcionais: ao contrário das diarreias orgânicas, as funcionais apresentam


características como duração maior que três meses (Roma III), ausência de sintomas ou sinais
de alarme como perda de peso significativa, são intermitentes e não costumam acontecer
durante a noite.

Características físicas das evacuações: consistência, presença de sangue ou muco, volume,


número, presença de gordura – diarreias secundárias a doenças do delgado costumam sem
aquosas e volumosas, apresentando risco maior de desidratação. Ao contrário, nas diarreias
secundárias a colites as fezes são de pequeno volume e podem apresentar muco ou sangue, o
que será sugestivo de infecção por microrganismo com potencial invasivo (Campylobacter, E.
coli, Shigella e V. parahemolyticus). Presença de gordura nas fezes sugere doença disabsortiva.

Presença de outros sintomas: febre, náusea, vômitos, dor abdominal – a febre é sugestiva de
doença infecciosa, mais frequentemente viral. Já a presença de vômitos deve ser vir de alerta
para a maior probabilidade de desidratação, uma vez que aumenta a perda de líquidos, ao
mesmo tempo que prejudica a reposição oral. Além disso, vômitos sem diarreia ou com
diarreia mínima são sugestivos de etiologia viral. A presença de dor abdominal torna pouco
provável o diagnóstico de diarreia funcional.

Poderão ser solicitados alguns exames complementares no caso de manifestações mais


severas, do agravamento progressivo, apesar das medidas adotadas, ou naqueles com mais de
48 horas de duração dos sintomas, sem sinais de arrefecimento, para avaliar o quadro
hematológico: hemograma, níveis do sódio e potássio séricos, ureia e creatinina. Podem-se
considerar exceção os casos de diarreia sanguinolenta, que poderão merecer investigação
etiológica precoce.

3. Discutir os fundamentos do tratamento clínico das diarreias agudas.

A TRO é considerada uma das modalidades terapêuticas que mais salvou vidas a partir do
século XX1,2. O princípio fisiológico da eficácia vincula-se ao fato de que a via de transporte
ativo, acoplada de sódio-glicose-água pelo enterócito está preservada na diarreia aguda,
independentemente da etiologia. Vale lembrar que são outras vias que explicam o aumento da
secreção e diminuição da absorção de água e eletrólitos na diarreia aguda.

O zinco faz parte da estrutura de várias enzimas. Tem importante papel na função e no
crescimento celular. Atua também no sistema imunológico. Pode reduzir a duração do quadro
de diarreia, a probabilidade da diarreia persistir por mais de sete dias e a ocorrência de novos
episódios de diarreia aguda nos três meses subsequentes. O racional para seu emprego é a
prevalência elevada de deficiência de zinco nos países não desenvolvidos.

Vitamina A: Deve ser administrada a populações com risco de deficiência desta vitamina. O
uso da vitamina A reduz o risco de hospitalização e mortalidade por diarreia e tem sido
administrada nas zonas mais carentes do norte e nordeste.

Antibióticos: Na grande maioria das vezes os antibióticos não são empregados no tratamento
da diarreia aguda, pois os episódios são autolimitados e grande parte se deve a agentes virais.

1. ciprofloxacino (primeira escolha): crianças, 15mg/kg, duas vezes ao dia, por 3 dias;
adultos, 500mg duas vezes por dia por 3 dias.
2. como segunda escolha, pode ser adotada a recomendação da ESPGHAN11
(azitromicina, 10 a 12mg/kg no primeiro dia e 5 a 6mg/kg por mais 4 dias, via oral)
para o tratamento dos casos de diarreia por Shigella (casos suspeitos ou
comprovados).
3. ceftriaxona, 50-100mg/kg EV por dia por 3 a 5 dias nos casos graves que requerem
hospitalização. Outra opção é a cefotaxima, 100mg/kg dividida em quatro doses.
4. A racecadotrila é um inibidor da encefalinase, enzima responsável pela degradação
das encefalinas produzidas pelo sistema nervoso entérico. As encefalinas com ação
mais duradoura, em função da menor atividade da encefalinase, reduzem a secreção
intestinal de água e eletrólitos que se encontra aumentada nos quadros de diarreia
aguda.

4. Discutir medidas preventivas para as diarreias infecciosas.

Hábitos de higiene.

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