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ARTE COMO QUESTÃO - ANOS 701

FERNANDA ALBUQUERQUE

Curadora assistente da 8ª Bienal do Mercosul, Fernanda é jornalista, curadora e crítica de arte. Doutoranda em
História, Teoria e Crítica de Arte pelo PPGAV/UFRGS, foi curadora do Centro Cultural São Paulo, atuou no
Projeto Educativo da 29ª Bienal de São Paulo (2010), no grupo de crítica de arte do Paço das Artes (2007, 2008
e 2010) e no Instituto Tomie Ohtake. Em 2009, desenvolveu o projeto Vandeluz na 7ª Bienal do Mercosul.

Se hoje em dia não vemos apenas pinturas, desenhos e esculturas em exposições de arte,
mas uma infinidade de propostas, isso se deve, em grande parte, aos anos 1970. É que
esse período foi marcado por transformações profundas na produção artística, não só no
Brasil, mas em outras partes do mundo. São mudanças que colocaram em xeque a natureza
e o papel da arte, bem como a maneira como ela circulava na sociedade. O que os artistas
daquele tempo queriam era fazer uma arte menos centrada em si mesma e mais voltada
para o mundo, tanto no sentido de incorporá-lo como matéria viva para as suas criações,
quanto no sentido de explorá-lo como espaço de exibição, estabelecendo uma relação mais
próxima com o público.

Pois essas mudanças – que tiveram início nos anos 1960 e se expandiram na década
seguinte – acabaram por transformar a própria noção de arte, isto é, o que se entendia por
arte até então. E com ela transformaram também as noções de material artístico, de
processo de criação, de espaço de exibição, de artista, de espectador e, é claro, de obra de
arte. Em outras palavras, o que se entendia por arte antes dos anos 1960 e 1970 era uma
coisa, e o que se entendia depois era outra.

Antes desse período, as obras se apresentavam de modo mais ou menos previsível. Ou


eram pinturas, ou gravuras, ou desenhos ou esculturas. Havia uma ou outra exceção, mas a
grande maioria obedecia a esses formatos. A partir dos anos 1960 e 1970 a coisa mudou de
figura, e as apresentações passaram a ser as mais variadas: performance, happening,
xerox, vídeo, instalação, fotografia, livro de artista, revista, objeto, intervenção urbana etc.

Da mesma forma, antes dos anos 1960 e 1970, os espaços de circulação da arte ficavam
mais ou menos restritos a museus e galerias (igrejas, praças e palácios também exibiam
arte, é verdade, mas quase nunca a produção das novas gerações). Pois esse é outro
aspecto que os artistas dessas décadas buscaram ampliar, ao apostar em novos circuitos,
meios e espaços de circulação para os trabalhos, como praias, ruas e até garrafas de Coca-
Cola. A estratégia buscava não só aproximar a arte da vida, mas conquistar outros públicos
para a arte.

Outro fator importante a influenciar essas transformações era a crítica à mercantilização da


obra, ou seja, à redução dos trabalhos a simples mercadorias. Como se sabe, foi nesse
momento que o mercado de arte começou a se estruturar no país. Pois a recusa em reduzir
suas obras a um produto como outro qualquer levou muitos artistas a investir em práticas
mais experimentais e conceituais, que valorizavam o processo em detrimento do objeto e
buscavam estabelecer novas relações com o espectador, muitas vezes convidado a
participar dos trabalhos.

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Texto elaborado para a publicação Caderno do olhar, editada pelo Instituto Tomie Ohtake em outubro de 2007
por ocasião da exposição Arte como questão, de curadoria de Glória Ferreira.
Essa ampliação dos trânsitos e das possibilidades de expressão artística também respondia
ao contexto político da época, marcado pelo endurecimento da ditadura militar. Instituída por
meio de um golpe em 1964, ela se intensificou a partir de 1968, quando a repressão e a
censura ganharam ainda mais força no Brasil. Era uma época em que não existia liberdade
de expressão – pelo menos não para quem era contra o governo. Ou você apoiava a
ditadura ou podia ser perseguido, torturado e até morto pelos militares. Daí o caráter
transgressivo e marginal de muitas propostas artísticas do período, como as trouxas
ensangüentadas de Artur Barrio e as notas carimbadas de Cildo Meireles, para citar apenas
dois exemplos. O interessante, no entanto, é que a questão política não era simplesmente
ilustrada ou representada pelos trabalhos, mas aparecia como um elemento constitutivo das
propostas.

“Arte como Questão - Anos 70”, de curadoria de Glória Ferreira, apresenta este e outros
veios da arte brasileira da década de 1970, ao reunir obras de artistas de diferentes regiões
do país. A exposição exibe uma produção extremamente diversificada, que, como o título
sugere, colocou a arte e o fazer artístico em questão – e com ele todo o sistema que os
sustentava.

ARTE SEM OBRA DE ARTES


A idéia de produzir arte sem obra de arte, ou seja, trabalhos que não resultam em um
produto final, impulsionou muitos artistas na década de 1970. À primeira vista, a proposta
pode parecer estranha, mas o que os artistas daquele tempo queriam era justamente
experimentar outras possibilidades de pensar, fazer e apresentar arte, diferentes das que se
conheciam até então. É por isso que, para essa produção, aspectos como a habilidade
técnica do artista e a beleza da obra – ou o seu acabamento formal – não eram tão
importantes assim. Fundamental mesmo era experimentar. Daí a aposta em trabalhos que
privilegiavam o processo, a vivência, a ação ou a idéia que os constituía, em detrimento da
produção de objetos. Muitas obras simplesmente desapareciam ao longo do tempo:
deterioravam-se, diluíam-se na paisagem ou eram literalmente destruídas por seus autores.

Outras nem chegavam a constituir um produto. É o caso das intervenções urbanas do grupo
3NÓS3, de São Paulo, que envolviam ações como o ensacamento de monumentos públicos
e a interrupção do trânsito por meio de faixas coloridas. Além de abrir espaço para uma
infinidade de propostas, a estratégia de produzir arte sem obra de arte também buscava
impedir que as produções fossem tomadas pelo mercado como simples mercadorias. Assim
como as intervenções do 3NÓS3, Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles, é
outro trabalho que, hoje, só pode ser apreciado por meio de registros (imagens em vídeo ou
fotografia) e documentações. Realizado entre 1970 e 1975, o projeto se valia de dois
elementos em constante circulação na sociedade: notas de dinheiro e garrafas de Coca-
Cola (na época, retornáveis). O artista gravava informações e opiniões críticas nesses
objetos e os devolvia à circulação. Em um dos projetos realizados com cédulas de dinheiro,
por exemplo, Cildo Meireles carimbou as notas com a frase “Quem matou Herzog?”. Com
forte caráter político, o trabalho questionava as reais causas da morte do jornalista Wladimir
Herzog, vítima da ditadura militar.

NOVOS CIRCUITOS PARA A ARTE


A criação de outros circuitos para a arte, além dos tradicionais salões e exposições
realizados em museus e galerias, foi um dado marcante no período. A idéia era ir ao
encontro de um público mais amplo e diversificado do que aquele habituado a freqüentar
espaços artísticos. Praias, terrenos baldios, calçadas, salas de concerto, esquinas e até
apartamentos residenciais foram incorporados pelos artistas como locais ou meios de
circulação possíveis para as suas criações. Vide os projetos de Cildo Meireles em notas de
dinheiro e garrafas de Coca-Cola, que se valiam de um circuito comercial para a sua
difusão. Outro bom exemplo é o movimento internacional de arte postal, que no Brasil reuniu
nomes como Paulo Bruscky, Regina Silveira e Julio Plaza. Os participantes trocavam
trabalhos pelo correio que iam de desenhos, fotografias e experiências em xerox a
intervenções em envelopes, selos e postais. Também circulavam pela rede jornais, revistas
e fanzines produzidos pelos artistas, tais como as publicações O Saco e Karimbada,
veículos que tiveram um papel fundamental nessa investida em novos circuitos para a arte.

Além dos correios, as ruas também mereceram destaque no período, ao transformarem-se


em palco de inúmeras intervenções artísticas, como as realizadas pelo grupo 3NÓS3. Ainda
em relação à ampliação do circuito artístico nos anos 1970, vale citar o fortalecimento de
núcleos regionais no país via iniciativas como o Espaço N.O., em Porto Alegre, e o Núcleo
de Arte Contemporânea da Paraíba, em João Pessoa, ambos comprometidos com a difusão
e a reflexão sobre a arte contemporânea. Integrante do Núcleo, o artista Antonio Dias
participa desta exposição com a instalação Faça Você Mesmo: Território Liberdade, obra
que aponta para o funcionamento do sistema da arte: o artista pode fazer o que quiser, no
lugar onde bem entender, mas seu trabalho sempre será incorporado pelo circuito artístico –
tal como aconteceu com as práticas realizadas ao longo dos anos 1970, por mais
transgressoras que elas pudessem ser. Muitas dessas propostas integram coleções
importantes hoje em dia e são apresentadas em espaços institucionais, como museus,
galerias e centros culturais.

CATEGORIAS DILUÍDAS
Realizado em 1969, no Rio de Janeiro, o Salão da Bússola anunciou uma das
características mais marcantes da produção dos anos 1970: a diluição das categorias
artísticas. Para participar da mostra, os artistas tinham de inscrever suas obras nas
categorias gravura, pintura, escultura, desenho etc. Como várias criações não se
encaixavam em nenhuma delas, muitos escolheram a categoria etcétera – e a exposição
acabou conhecida como Salão dos Etcéteras. O fato é que a produção da década de 1970,
ao abrir espaço para a experimentação, acabou por flexibilizar as fronteiras entre as
categorias tradicionais, apostando em formalizações – ou apresentações – as mais diversas.
Muitas obras traziam elementos da pintura e da escultura, como a Bolha Vermelha, de
Marcello Nitsche, enquanto outras misturavam aspectos do desenho e da gravura, a
exemplo dos trabalhos em carimbo, de Carmela Gross. Outras, ainda, incorporavam novos
procedimentos e referências. Performances, instalações, livros de artista e vídeos são
alguns dos formatos adotados na época. Outro fator importante a contribuir com esse
fenômeno foi o crescente diálogo da produção artística com outras linguagens e campos do
conhecimento, como a poesia, a dança, o cinema, a música, a ciência e a fotografia.
Exemplos disso são os discos de artistas como Antonio Dias e Cildo Meireles, e os livros de
nomes como os de Artur Barrio e Waltercio Caldas. O livre trânsito entre meios, técnicas e
linguagens também era uma constante entre os artistas. Basta citar a série Passagens, de
Anna Bella Geiger, que inclui um vídeo, fotografias, livros de artista e trabalhos em xerox.
Um dos primeiros realizados no pais, em 1974, o vídeo retrata a artista subindo escadas em
tempo real.

OUTROS MATERIAIS
Para quem achava que obras de arte só eram feitas com tinta, metal, pedra e outros
materiais nobres, a produção dos anos 1960 e 1970 mostrou que não. Carne, papel
higiênico, feijão, lixo, garrafas de Coca-Cola, computador, notas de dinheiro e até galinhas
foram usados pelos artistas em suas criações. Essa ampliação de materiais respondia ao
desejo de aproximar os temas, referências e preocupações da arte da vida real. Explica-se:
se até pouco tempo a arte era voltada para questões da própria arte, a partir das décadas
de 1960 e 1970 ela passou a se voltar para o mundo – não mais no sentido de retratá-lo,
mas no sentido de incorporá-lo como matéria viva para as suas produções. Daí o interesse
dos artistas por materiais que falavam do cotidiano, da cidade, da tevê, da periferia, da
violência etc. Trata-se de materiais que já traziam consigo alguns significados, isto é, que
compunham as obras não apenas materialmente, mas também conceitualmente. Basta
pensarmos na diferença entre usar uma folha de papel e um pedaço de papel higiênico em
um trabalho. Embora sejam muito parecidos do ponto de vista material, os significados
trazidos por esses dois elementos são completamente diferentes. Assim como também seria
diferente se as trouxas ensangüentadas de Artur Barrio fossem compostas apenas por pano
e tinta vermelha e não por pedaços de carne e sangue de verdade, como de fato são.
Realizadas pelo artista por ocasião de uma exposição, em 1970, elas foram espalhadas pela
cidade de Belo Horizonte, numa clara referência à violência da ditadura militar. Outra obra
que se utiliza de materiais pouco convencionais é Fome, de Carlos Vergara. O trabalho é
formado pelas letras que compõem a palavra fome, desenhadas com grãos de feijão sobre
algodão umedecido. Com a passagem do tempo, os grãos germinam e as letras se
entrelaçam, até se deteriorarem por completo. O que permanece são apenas os registros,
isto é, as fotos e o vídeo do trabalho. Aqui, a própria linguagem também é usada como
material artístico.

PARTICIPAÇÃO DO ESPECTADOR
Se a distância que separa o espectador da obra já havia sido questionada nos anos 1960
pelas experiências de Hélio Oiticica e Lygia Clark, que convidavam o público a manipular
seus trabalhos, na década seguinte esse questionamento seguiu alimentando a produção
artística. Não bastava ampliar os espaços de circulação da arte; era preciso, também,
ampliar as possibilidades de relação entre ela e o público. Tocar, mexer, vestir, sacudir,
provar, entrar e interagir passaram a ser, em muitos casos, condições para experienciar os
trabalhos. Exemplo disso são os objetos relacionais, de Lygia Clark, elementos como sacos
plásticos contendo ar, água ou pedras e almofadinhas de tecido preenchidas por areia ou
bolinhas de isopor. Produzidos pela artista a partir de 1970 e utilizados em sessões
terapêuticas, os objetos só adquiriam sentido ao serem experimentados pelo público, de
modo a propiciar uma experiência corporal única. Outro exemplo é a instalação Roda dos
Prazeres, de Lygia Pape, um conjunto de vasilhas contendo água de cores variadas, que o
público era convidado a experimentar por meio de um conta-gotas. O interessante é que a
beleza dos líquidos não coincidia com o seu sabor desagradável. “O dado principal deste
trabalho é um dado de ironia, de humor negro”, explica a artista. Propostas como essas
faziam da experiência de cada participante um elemento central na realização da obra. Era
como se o trabalho só se completasse a partir desse contato.

ARTE EM SÉRIE
Meios de reprodução como o xerox, o carimbo, o mimeógrafo, o vídeo e a fotografia
constituíram um novo campo de experimentação para os artistas dos anos 1970. A
possibilidade de produzir imagens em série de forma totalmente mecânica questionava
aspectos como o valor da obra de arte única, base de sustentação do mercado de arte, e o
próprio fazer artístico, historicamente relacionado à habilidade manual do artista. A novidade
ainda respondia ao desejo de ampliar a circulação das obras, uma vez que os meios de
reprodução permitiam multiplicá-las indefinidamente. É o caso dos trabalhos de Hudinilson
Jr., que xerocava partes do próprio corpo – tronco, pernas, braços, sexo etc. – para depois
reunir as imagens ou trabalhá-las individualmente. O interessante é que as imagens geradas
nesse processo eram imagens diretas, que não sofriam qualquer intermediação por parte do
artista. Sua participação se resumia a apertar um botão. Gestos automáticos e repetidos
também constituíam os trabalhos de Carmela Gross realizados com carimbos cujos
desenhos, ironicamente, imitam pinceladas, riscos e rabiscos manuais. Trata-se de outro
exemplo em que a obra de arte é fruto de uma ação mecânica, que, a rigor, pode ser
executada por qualquer um. Já o vídeo e a fotografia, ao mesmo tempo em que
funcionavam como importantes instrumentos de registro, sem os quais não teríamos acesso
a muitos trabalhos da época, também eram utilizados pelos artistas como meios de
expressão. Paisagem sobre Paisagem, de Clóvis Dariano, é um bom exemplo. Ao sobrepor
duas fotos da mesma paisagem, de modo a compor uma única imagem do local, o trabalho
aponta para a ambigüidade da fotografia: ao mesmo tempo em que ela é real, também é
pura representação.

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