Você está na página 1de 4

O BRINQUEDO E O DESENVOLVIMENTO EM VYGOTSKY

É enorme a importância do brinquedo no desenvolvimento de uma criança. No


entanto, não se pode considerar a essência do brinquedo como sendo uma atividade que
dá prazer à criança. Existem outras fontes que prendem mais a criança do que o
brinquedo, como é o caso da chupeta. Além do que, os jogos que dependem do
resultado para se obter satisfação podem causar desprazer.
Lev Semionovitch Vygotsky estuda o papel do brinquedo na formação da
criança no capítulo VII de sua obra A Formação Social da Mente. Ele ressalta a
importância do jogo no desenvolvimento infantil do indivíduo enquanto sujeito ativo
considerando que a compreensão dos avanços da criança, no que se refere ao
desenvolvimento intelectual em seus diversos momentos, fundamenta-se na verificação
da eficácia dos estímulos externos que acompanham a variação desses momentos e que
agem internamente na criança promovendo suas ações. Assim, ele nota que o que parece
ser fonte de prazer para um bebê pode não ser para uma criança maior.

A busca do brinquedo como fonte de prazer

Ao constatar que a criança brinca para tentar suprir algumas de suas


necessidades, o pensador bielo-russo se propõe a investigar no que compreende
exatamente essas necessidades, e descobre que o brinquedo serve como uma forma de a
criança atender seus desejos não realizáveis imediatamente. A criança se apropria da
imaginação, que para ele é um processo psicológico estritamente humano, para saciar
aquilo que é impossível de se tornar realidade não mediada.
Mas a criança ainda não realiza seu desejo no brinquedo, tal qual ele se
apresenta anteriormente. O brinquedo como atividade também tem suas restrições, e o
desejo aparece continuamente em oposição às regras do jogo. Ao brincar, portanto, a
criança ainda não pode agir espontaneamente, por impulso. Vygotsky coloca o exemplo
do bombom de mentira que a criança se esforça para não comer. Essa adequação às
regras, entretanto e de maneira paradoxal, é exatamente a forma de prazer que a criança
encontra:
(...) no brinquedo, a criança segue o caminho do menor esforço – ela faz o que
mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer – e, ao mesmo
tempo, ela aprende a seguir os caminhos mais difíceis, subordinando-se a regras
e, por conseguinte, renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição a
regras e a renúncia à ação impulsiva constitui o caminho para o prazer no
brinquedo (VYGOTSKY, 1989, p. 113).

Portanto, respeitar as regras é uma forma de satisfação. Assim, o brinquedo cria novos
desejos, e a criança se desenvolve moral e cognitivamente ao estabelecer relações
fictícias com o brinquedo.
A partir dessa constatação, Vygotsky verifica que as motivações que orientam a
busca do prazer através dos brinquedos são diferentes ao longo do desenvolvimento da
criança, e diferencia o brincar de outras formas de atividades pelo seu aspecto da
imaginação. Esta se torna, assim, um elemento essencial como parte integrante do
próprio brinquedo.
Mas essa imaginação é acompanhada de regras que partem da realidade, e
Vygotsky chega à conclusão de que não existem brinquedos sem regras. Assim, para se
divertir imitando a mãe, a criança deve, de certo modo, atender às expectativas de
comportamentos que representam a maternidade. Por outro lado, os jogos com regras
também compreendem situações imaginárias, na medida em que as regras delimitam um
raio de possibilidades de ação. Essa transição de jogos a partir da imaginação para jogos
que partem de regra é o que determina a evolução do brinquedo em seu papel no
desenvolvimento infantil.

O papel do brinquedo no desenvolvimento infantil

O comportamento de uma criança é muito influenciado pelo meio externo. Os


objetos estimulam suas ações. Num primeiro momento, quando a criança ainda é muito
pequena, suas ações sofrem uma influência quase que absoluta do meio, de maneira que
suas reações, restritas à situação na qual ela se encontra, consistem em respostas
imediatas a percepções que surgem através de estímulos externos. O significado do
objeto coincide com a percepção visual, e é aqui exatamente onde atua o brinquedo. Ele
tem a função de quebrar essa determinação que os objetos impõem sobre as ações das
crianças. O próprio autor explica:

No brinquedo, no entanto, os objetos perdem sua força determinadora. A


criança vê um objeto, mas age de maneira diferente em relação àquilo que ela
vê. Assim, é alcançada uma condição em que a criança começa a agir
independentemente daquilo que ela vê (VYGOTSKY, 1989, p. 110) 1.

Agora, não só a percepção imediata dos objetos atua nas ações da criança, mas
também os significados que eles contêm. O desenvolvimento das atividades
psicológicas superiores2 permite com que a criança se distancie do objeto. Assim, ela
pode representar, através da imaginação, uma ação referente aos significados que ela
atribui aos objetos, e não apenas pela percepção imediata que ela recebe dos mesmos.
Há, portanto uma nítida separação entre o campo dos significados e o campo da
percepção visual:

No brinquedo, o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das idéias
e não das coisas: um pedaço de madeira torna-se um boneco e um cabo de
vassoura torna-se um cavalo. A ação regida por regras começa a ser
determinada pelas idéias e não pelos objetos. Isso representa uma tamanha
inversão da relação da criança com a situação concreta, real e imediata, que é
difícil subestimar seu pleno significado (VYGOTSKY, 1989, p. 111).

Vygotsky explicita melhor a variação que há na relação entre objeto e significado ao


longo do desenvolvimento infantil elaborando uma estrutura da percepção humana através da
razão figurativa entre objeto e significado. No bebê há uma predominância do objeto em si
atuando na percepção. Já no adulto o significado que este objeto traduz contribui com uma
participação maior na percepção do estímulo. E o brinquedo contribui com essa transição na

1
Grifos do autor.
2
Vygotsky trabalha com essa questão no capítulo 4 da obra citada. A internalização simbólica das
operações, juntamente com a conquista do signo como instrumento interno, através da razão, atua como
mediador no processo dialético de transformação da realidade, em que o indivíduo age em relação ao
meio e vice-versa. Ela tem importância fundamental nas funções psicológicas superiores, na medida em
que potencializa as atividades psicológicas elementares, como a memória, permitindo ao homem que
exerça seu papel histórico e cultural se distinguindo, assim, dos outros animais.
medida em que canaliza o pensamento da criança no significado e situa o objeto, em sua
concretude, em segundo plano.
Mas a criança ainda não tem o nível de abstração do adulto. Assim, ela utiliza
propriedades do objeto para fazer a ponte entre significado e realidade. Enquanto o sujeito
adulto pode atribuir a um cartão postal, por associação livre, o significado de um cavalo, a
criança necessita de um objeto mais anatomicamente semelhante, com o qual ele possa colocá-
lo entre as pernas e sair pulando como se estivesse em cima de um cavalo real.
Da mesma forma que o objeto, a ação também estabelece, em razão com seu
significado, representação diversa no desenvolvimento da criança. No início, a percepção das
ações está subordinada à realidade objetiva, imediata. Com o tempo a criança começa a dar
significado também às ações. Com isso ela pode obter prazer ao imaginar-se cavalgando com
ajuda de alguns pulos que simulem o ritmo do galope. Essa situação caracteriza já o domínio do
significado da ação em relação ação própria.
O pensador bielo-russo identifica diferentes conseqüências diante das conquistas entre
as relações significado / objeto e significado / ação. Enquanto da primeira deriva a possibilidade
de se fazer abstrações, a outra permite o surgimento das vontades do indivíduo e a capacidade
de se fazer escolhas próprias.
Ambas as relações atuam aproximando a distância que há entre o nível de
desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial da criança. Assim, o brinquedo
cria uma zona de desenvolvimento proximal 3, em que a criança se comporta além de suas
possibilidades aparentes. Os significados dos objetos e das ações variam ao longo desse
processo, de maneira que o brinquedo estabelece sempre novas relações entre o campo do
significado e o campo da percepção e configura-se, portanto, como agente fundamental no pleno
desenvolvimento da criança.
Vimos, portanto, que a criança busca o brinquedo como forma de realizar os desejos
que ela não alcança na vida real, que a introdução das regras nos jogos faz parte do processo de
evolução do brinquedo ao longo do desenvolvimento infantil, e que o brinquedo atua
estimulando a criança a deixar o mundo em que seu contato com as coisas se limita a
imediatidade da situação para ir se inserindo no mundo social, em que prevalece a cada dia o
campo do significado.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes,


1989.

3
Conceito desenvolvido pelo autor no capítulo 6 da obra citada.

Você também pode gostar