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Portanto, respeitar as regras é uma forma de satisfação. Assim, o brinquedo cria novos
desejos, e a criança se desenvolve moral e cognitivamente ao estabelecer relações
fictícias com o brinquedo.
A partir dessa constatação, Vygotsky verifica que as motivações que orientam a
busca do prazer através dos brinquedos são diferentes ao longo do desenvolvimento da
criança, e diferencia o brincar de outras formas de atividades pelo seu aspecto da
imaginação. Esta se torna, assim, um elemento essencial como parte integrante do
próprio brinquedo.
Mas essa imaginação é acompanhada de regras que partem da realidade, e
Vygotsky chega à conclusão de que não existem brinquedos sem regras. Assim, para se
divertir imitando a mãe, a criança deve, de certo modo, atender às expectativas de
comportamentos que representam a maternidade. Por outro lado, os jogos com regras
também compreendem situações imaginárias, na medida em que as regras delimitam um
raio de possibilidades de ação. Essa transição de jogos a partir da imaginação para jogos
que partem de regra é o que determina a evolução do brinquedo em seu papel no
desenvolvimento infantil.
Agora, não só a percepção imediata dos objetos atua nas ações da criança, mas
também os significados que eles contêm. O desenvolvimento das atividades
psicológicas superiores2 permite com que a criança se distancie do objeto. Assim, ela
pode representar, através da imaginação, uma ação referente aos significados que ela
atribui aos objetos, e não apenas pela percepção imediata que ela recebe dos mesmos.
Há, portanto uma nítida separação entre o campo dos significados e o campo da
percepção visual:
No brinquedo, o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das idéias
e não das coisas: um pedaço de madeira torna-se um boneco e um cabo de
vassoura torna-se um cavalo. A ação regida por regras começa a ser
determinada pelas idéias e não pelos objetos. Isso representa uma tamanha
inversão da relação da criança com a situação concreta, real e imediata, que é
difícil subestimar seu pleno significado (VYGOTSKY, 1989, p. 111).
1
Grifos do autor.
2
Vygotsky trabalha com essa questão no capítulo 4 da obra citada. A internalização simbólica das
operações, juntamente com a conquista do signo como instrumento interno, através da razão, atua como
mediador no processo dialético de transformação da realidade, em que o indivíduo age em relação ao
meio e vice-versa. Ela tem importância fundamental nas funções psicológicas superiores, na medida em
que potencializa as atividades psicológicas elementares, como a memória, permitindo ao homem que
exerça seu papel histórico e cultural se distinguindo, assim, dos outros animais.
medida em que canaliza o pensamento da criança no significado e situa o objeto, em sua
concretude, em segundo plano.
Mas a criança ainda não tem o nível de abstração do adulto. Assim, ela utiliza
propriedades do objeto para fazer a ponte entre significado e realidade. Enquanto o sujeito
adulto pode atribuir a um cartão postal, por associação livre, o significado de um cavalo, a
criança necessita de um objeto mais anatomicamente semelhante, com o qual ele possa colocá-
lo entre as pernas e sair pulando como se estivesse em cima de um cavalo real.
Da mesma forma que o objeto, a ação também estabelece, em razão com seu
significado, representação diversa no desenvolvimento da criança. No início, a percepção das
ações está subordinada à realidade objetiva, imediata. Com o tempo a criança começa a dar
significado também às ações. Com isso ela pode obter prazer ao imaginar-se cavalgando com
ajuda de alguns pulos que simulem o ritmo do galope. Essa situação caracteriza já o domínio do
significado da ação em relação ação própria.
O pensador bielo-russo identifica diferentes conseqüências diante das conquistas entre
as relações significado / objeto e significado / ação. Enquanto da primeira deriva a possibilidade
de se fazer abstrações, a outra permite o surgimento das vontades do indivíduo e a capacidade
de se fazer escolhas próprias.
Ambas as relações atuam aproximando a distância que há entre o nível de
desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial da criança. Assim, o brinquedo
cria uma zona de desenvolvimento proximal 3, em que a criança se comporta além de suas
possibilidades aparentes. Os significados dos objetos e das ações variam ao longo desse
processo, de maneira que o brinquedo estabelece sempre novas relações entre o campo do
significado e o campo da percepção e configura-se, portanto, como agente fundamental no pleno
desenvolvimento da criança.
Vimos, portanto, que a criança busca o brinquedo como forma de realizar os desejos
que ela não alcança na vida real, que a introdução das regras nos jogos faz parte do processo de
evolução do brinquedo ao longo do desenvolvimento infantil, e que o brinquedo atua
estimulando a criança a deixar o mundo em que seu contato com as coisas se limita a
imediatidade da situação para ir se inserindo no mundo social, em que prevalece a cada dia o
campo do significado.
3
Conceito desenvolvido pelo autor no capítulo 6 da obra citada.