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“MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA” E A QUEBRA COM A UTOPIA DA

FELICIDADE DOMÉSTICA1

Beatriz Palmer Barros Alvarenga2

1. Ideia Geral

Ismail Xavier, em seu livro Alegorias do Subdesenvolvimento, especificamente no


capítulo atribuído ao filme Matou a família e foi ao cinema (1969), analisa a obra de Bressane
como uma obra-síntese que encapsula a quebra da utopia da felicidade doméstica. Essa utopia
é substituída no filme pela, na ótica do autor, tônica da violência não redimida no contexto de
alusão à ditadura militar seguido pelo gesto de rotina ou por referências carnavalescas.
A ideia principal do autor é que o filme constitui seu sentido em detrimento da
continuidade e a partir de jogos de espelho dando ênfase no conjunto, visto que é uma narrativa
seccionada onde os episódios se conectam na cadência temática do crime entre quatro paredes.
Essa regularidade indica que o filme exibe uma denúncia da crise interna. Xavier aponta
também que há um impulso comum entre os episódios o qual atravessa as diferenças de classe,
sexo e circunstância - o desconcerto e a crise projetados na forma fílmica pela escolha da
representação descontínua e fragmentada em relações verticais.
Ademais, segundo Xavier, a encenação literal e imediata da situação que o nome do
filme carrega representa, no plano simbólico, uma ruptura com a ordem ressentida. A violência
toma conotação insólita pela ausência relativa da exposição de motivos que poderiam a
desencadear. Relativa, pois, em perspectiva constitui uma transgressão cerimonial de um
sistema opressor que organiza essa violência. Esse paradigma é um sinal incisivo da
deterioração social que está relacionada à brutalidade no filme a qual é simétrica à vigente no
período da ditadura. O retrato da violência não de maneira a banalizá-la, mas a escandalizá-la.

1
Resenha Crítica apresentada à disciplina de Análise Cinematográfica: Alegorias do Subdesenvolvimento, do
Bacharelado em Cinema e Audiovisual da Unespar – Universidade Estadual do Paraná, sob orientação do Prof.
Dr. Pedro de Andrade Lima Faissol. Curitiba, 2021.
2
Estudante do curso de Cinema e Audiovisual da Unespar – Universidade Estadual do Paraná.
2

2. Estratégia Argumentativa
Para sustentar as suas ideias, as quais expus acima, Ismail Xavier categoriza que a marca
da quebra da utopia da felicidade doméstica se manifesta no filme em duas instâncias. Na
primeira, a situação do crime introdutório é seguida do gesto banal o qual atribui ao cinema o
símbolo da transgressão e nivela o crime ao ato casual de compra o ingresso seguido pela
entrada na sala escura. Assim, Xavier nota que Bressane propõe uma desestabilização da
fronteira entre o pecado e a inocência, deixando o espectador com uma sensação de irresolução
e consternação diante da ausência de culpa que sente o assassino. Essa indagação do espectador
ecoa até o fim do filme, Matou a família propõe um desafio constante ao espectador. Esse
desconforto refere-se à violência estrutural no nível da linguagem que tem seu dado central no
choque e provoca risco de uma viagem interior indesejável muito por consequência do estilo
disjuntivo que Bressane é adepto.
Já no resto dos episódios, nota-se que a violência é seguida de uma referência
carnavalesca. Isso provoca perplexidade diante do contraste entre festa (paraíso tropical) e
tragédia (inferno doméstico). Esse contraste pode ser somente aparente, visto que a violência
pode trazer um contraponto de liberação referente a uma ruptura com a ordem opressora,
liberação que remete ao carnaval.
Ademais o autor coloca que o filme “confia na estranheza” sem esvaziar o drama pela
comédia. Ele discorre sobre algumas das estratégias de Bressane para tal efeito: fragmentação
dos episódios, descontinuidade dentro dos episódios, modos de representação antitéticos,
sonegação, elipses, atores que representam mais de uma personagem etc.
Em meios gerais, Ismail traça uma análise que constata que independentemente de uma
motivação mais clara ou mais enigmática, todos os atos de violência no filme estão ligados à
decadência do espaço doméstico, há uma desordem amorosa que vista de perto é correlata à
ordem doméstica. Isso é trabalhado por Bressane, segundo Ismail Xavier, pela experimentação,
jogos de duração da imagem e de espelhamento, estrutura de mosaico e evocação do rito do
carnaval. Assim, o autor constata que Matou a família e foi ao cinema não coloca o cinema
como fato exterior do círculo de violência e sim dentro do processo que traz o problema de
amor e morte focalizado no filme.

3. Posicionamento Crítico
Considerei uma leitura bastante reveladora, densa e fértil. Gostaria que fosse
aprofundada sob a ótica das relações de gênero, mas compreendo não ser a especialidade
do autor. Mesmo assim, achei importante ressaltar a carência nesse viés de estudo.
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