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FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AGRÁRIO
MESTRADO EM DIREITO AGRÁRIO
PROF.ª. DRª. ANNE GERALDI PIMENTEL
GOIÂNIA
2022
GILVAN DE BARROS PINANGÉ NETO
GOIÂNIA
2022
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3ª SESSÃO: 12/04
TÍTULO: A questão agrária na sociedade moderna
TEXTOS: MARÉS, Carlos. De como a natureza foi expulsa da modernidade. In: Revista
Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015. p. 88-106.
1 A NATUREZA ENJAULADA
Para Marés (2015, p. 88), a dominação do homem pela natureza foi tamanha que
aquele, percebendo sua ameaça aos ecossistemas, também considerou proteger a natureza de si
próprio. Ao criar um ambiente artificial que atendesse as necessidades humanas, também surgiu
a necessidade de o homem conter ou domesticar a natureza presente em seu convívio; temendo
e rechaçando a ideia de natureza intocada como selvagem, improdutiva e incivilizada.
humano criou o seu ambiente e dele expulsou a natureza”, ou seja, no Éden humano a natureza
seria meramente uma convidada.
Na visão de Marés (2015, p. 90), sendo a crise ambiental fruto dessa expulsão injusta
da natureza pelo homem, as catástrofes ambientais (por vezes verdadeiras tragédias anunciadas,
como os episódios recentes de Mariana e Brumadinho no Brasil) seriam uma retaliação de Gaia?
Outrossim, se do próprio veneno se extrai o antídoto, não estaria na reconciliação com a
natureza a cura para as pandemias e desastres naturais?
Marés (2015, p. 90) vislumbra na obra de Las Casas (teólogo indigenista, séc. XVI)
sua ideológica e virtuosa releitura da bíblia cristã, ou seja, reencontrar na criação (natureza) o
utilitarismo divino da terra prometida ao homem, ao qual compete suprir suas necessidades,
mas também ser protegida por ele.
Não obstante ter testemunhado a colonização dos ameríndios pelos espanhóis (séc.
XVI), a preocupação de Las Casas ultrapassava a evangelização dos povos; também
problematizava as relações de igualdade entre as nações, almejando a preservação de ambas,
apesar das diferenças culturais surgidas do choque de civilizações distintas. Seu pensamento
contêm elementos embrionários da atual ideia de “Estado”.
[...] É o próprio Hobbes que separa o estado de natureza do estado civil. A sociedade
naturalmente organizada, encontrada então na América e nas Índias, é o reino da
violência e da desordem: cada um por si, sem ter quem olhe por todos, sem ter freios
sociais, sem leis. As leis da natureza são as leis do mais forte, portanto da violência e
da desordem. (HOBBES, 2010). Esta visão moderna das sociedades acabou por criar
diferenciações de raça, que permitiu, justificou, perdoou ou até mesmo incentivou a
absoluta exploração do trabalho serviu e escravo, reservando o trabalho livre apenas
para as sociedades civis. Se os povos não europeus e dominantes são considerados
subalternos, ainda abaixo deles está a natureza. Aliás, estes povos só são considerados
inferiores porque estão próximos à natureza, são naturais. (MARÉS, 2015, p. 89).
Marés (2015, p. 91) observa que enquanto teólogos medievais (Las Casas, por
exemplo) percebiam a natureza como reflexo da presença divina, isto é, a “grande ordem
universal”, os teólogos modernos enfatizavam a necessidade da criação de uma ordem natural
artificial. Esta seria essencialmente racional, consciente e contratual, portanto, submissa ao
homem; diferente da ordem natural violenta de Hobbes ou aquela imperfeita de Locke
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Nesta ideia, o que tem valor? As coisas da natureza quando modificadas pelo trabalho
humano: o fruto colhido, o cereal plantado, a terra lavrada, a utilidade manufaturada.
O resto, o animal silvestre, a planta que nasce livre, a terra inculta, não. O valor das
coisas, no mundo capitalista, é o valor das coisas como mercadoria, como
possibilidade de troca, como objeto que possa ser convertido em valor permanente,
convertido em ouro, prata, âmbar ou dinheiro, dizia Locke. O resto é um desvalor, o
resto é só natureza. (MARÉS, 2015, p. 92).
Ao longo da vasta obra de Marx se pode notar que as análises das relações entre os
seres humanos e a natureza sempre são marcadas por um contradição na qual o ser
humano transforma a natureza porque dela tira todas as suas necessidades e precisa,
portanto, obedecer as leis naturais, coisa que o capitalismo, justamente por dispensar
esta relação pelo imediatismo individualista e a perseguição da acumulação do capital,
não faz, criando o que Marx chamou de falha metabólica, estabelecendo, assim, um
limite à sua expansão. (MARÉS, 2015, p. 95).
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Neste diapasão, acrescenta Marés que “Quem tem direito, isto é, o sujeito de direitos
tem o poder de exigir dos outros sujeitos comportamentos e restrições fundadas numa relação
contratual.”; isto é, sendo a relação entre homem e natureza baseada no domínio desta por
aquele, inexistem elementos essenciais dos contratos entre os homens, tais como equidade,
igualdade e dignidade.
[...] As coisas são a natureza, que ganham relevância quando se tornam objeto do
desejo, da necessidade ou do interesse humano e, então, são chamados de objeto do
direito de propriedade. O resto, os que não fazem parte da submissão humana, os
animais e plantas expulsos, somente serão alimentados e aquecidos se estiverem
protegidos em jardins zoológicos ou botânicos, senão que sobrevivam segundo
condições atávicas e instintivas da própria natureza, se o ser humano permitir. São
inúteis, nocivos, improdutivos. (MARÉS, 2015, p. 98).
Marés (2015, p. 98) observa também que diante do Código Civil, um dos marcos
ideológico-econômicos do capitalismo na modernidade, não apenas reduziu a terra a
propriedade privada e seus bens a mercadorias e/ou matérias-primas, como também instituiu o
direito integral do proprietário sobre a terra, inclusive facultando-lhe lavrá-la, arrenda-la ou
ainda a deixar inerte (o direito de propriedade não é anulado pela falta de uso).
Igualmente, Marés (2015, p. 99) percebe que o conceito de função social da
propriedade, adotado pela legislação do século XX, a fim de minimizar essa improdutividade
da terra gerada pela inércia, encontra oposição no ambientalismo, o qual exigiu a existência de
áreas naturais, verdadeiros santuários, para proteção e preservação da natureza.
Marés acrescenta que, sob a égide da ditadura militar brasileira, os produtores foram
submetidos pelas políticas públicas de financiamento aos novos “defensivos agrícolas”, isto é,
agrotóxicos. Novamente a agricultura e a sociedade humana se protegendo da perversidade da
natureza.
Para Marés "Apesar da clareza da guerra travada contra a natureza no campo, onde o
ser humano se sente mais dono do território é na cidade.". Outrossim, o ambiente urbano não é
apenas desnaturalizado, como também antinatural. Percebe-se na selva de concreto não apenas
a natureza domesticada, mas também canalizada e impermeabilizada, a fim de ceder lugar às
paisagens urbanas e construções humanas racionais.
Marés reflete que "Nada, porém é mais cruel na guerra do ser humano contra a
natureza, seja no campo ou na cidade do que a extraordinária capacidade do capitalismo de
produzir lixo.". Destarte, seguindo a lógica marxista de produção capitalista, onde o capital
busca produzir cada vez mais mercadorias, a fim de transformá-las novamente em capital.
Futuramente deverá ser substituída por uma nova mercadoria, tornando-se obsoleta e
alcançando não apenas o ideal almejado de acumulação de capital, como também a
“inesperada” acumulação de lixos e resíduos, por sua vez despejados na natureza.
Marés (2015, p. 101) alerta que, diante da aparente bifurcação entre a sobrevivência
da vida e da economia (natureza x capitalismo), torna-se imprescindível uma reforma interna
do capitalismo, a fim de propiciar a reconciliação com a natureza; ou o restart da sociedade e
a consequente ruptura integral da humanidade com o modo de produção capitalista.
mais valia. Este limite gera um óbvio conflito entre a natureza e a propriedade. A
conciliação do capitalismo com a natureza, sem que haja limite no aumento infinito
da produção de bens é quase impossível, porque viola a principal lei capitalista que é
o crescimento permanente e constante. (MARÉS, 2015, p. 101-102).
Nesta esteira, Marés entende que "Ou o Estado cria instrumentos repressivos para fazer
valer as leis protetoras, ou cria impostos e políticas públicas para ordenar a internalização dessas
externalidades, ou ambos.”. Outro caminho interno do capitalismo para alcançar a reconciliação
com a natureza seria a regulação do comércio através do consumo consciente, isto é, a
sustentabilidade ambiental (diferente do liberalismo clássico, busca inspiração no controle do
mercado pela mão invisível e forte do Estado).
Em sentido oposto, a ruptura radical com o capitalismo apenas seria possível diante de
uma revolução desencadeada por catástrofes ambientais de magnitude global (tsunami,
terremoto, aquecimento global etc.), capazes de abalar profundamente as bases de produção
capitalista. A alternativa não capitalista e socioambiental proposta por Marés (2015, p. 103)
consiste na ecologia milenar dos povos tradicionais, capaz não apenas de reconciliar homem e
natureza, como também preconizar o que parte da doutrina denomina “Estado de Direito
Ambiental”.
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REFERÊNCIAS
MARÉS, Carlos. De como a natureza foi expulsa da modernidade. In: Revista Crítica do
Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015. p. 88-106.