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para a criminalização internacional das drogas, marcou Verifica-se, pois, que já em Freud foi possível a busca de
não só o primeiro forum mundial do denominado combate uma explicação do comportamento adictivo, o que repre-
à droga, mas também a tentativa de aproximação entre os sentou um primeiro contributo para se clarificar a noção de
governos norte-americano e chinês, unidos na luta contra dependência (Ribeiro, 1995, p. 9). Lewin (1920), fundando-
abordagem juspsicológica
o ópio; apesar disso, no mesmo período, o Senado votou -se na experiência clínica com morfinómanos, elaborara
uma resolução recomendando a interdição de venda de os principais conceitos que regem o abuso de substâncias
Carlos Poiares
bebidas espirituosas e de ópio a raças não civilizadas, o psicoactivas: a dependência, a tolerância e a abstinência;
que demonstra cabalmente a índole segregacionista, apa- "o seu contributo permitiu elaborar o modelo médico-sani-
rentemente puritana, que a proibição não conseguia enco- tário em que o toxicodependente é considerado doente, e
brir (Poiares, 1999, pp. 161-162). não delinquente, como até então sucedia" (Ribeiro, 1995,
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p. 10); mais recentemente, a American Psychiatric Associa- os toxicodependentes não delinquam para obterem a dro-
tion (1934) incluiu a toxicodependência no elenco das ga, pelo que pode ser conveniente oferecê-la com con-
doenças mentais, o mesmo acontecendo em outras ins- trole sério, injectando-a em centros oficiais, ao mesmo
tâncias [DSM III R (1987), DSM IV (1994), ICD 10] (cfr. tempo que se programa, exercita e aperfeiçoa progressi-
Ribeiro, 1995, p.11). vamente um grande plano de dissuasão do consumo de
Constata-se, portanto, que a Comunidade Internacional drogas" (Ramos, 1986, pp. 293-294).
permaneceu voluntariamente impermeável à produção de
conhecimento científico sobre o consumo de drogas, ob- 2.
servando o actor social consumidor como um criminoso, 2.1. Esta parece ter sido, em parte, a intenção da legis-
com absoluta rejeição pelas revelações médicas e psi- lação portuguesa mais recente, compreendendo quer o
cológicas. Mas este carácter de delinquente atribuído ao quadro normativo da despenalização do consumo e actos
utilizador das drogas resultava da rotulagem que, em nome conexos (Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, e Decreto-
de conveniências políticas, lhes era aplicada. Assim se -Lei n.º 130-A/2001, de 23 de Abril), quer os diplomas rela-
compreende que entre a inclusão da dependência na lista tivos à prevenção, à redução de riscos e à minimização de
das doenças mentais, ocorrida em 1934, e a consagração danos.
de uma postura direccionada para o tratamento e rein- Qualquer análise a que se proceda sobre o sentido ou o
serção dos consumidores, na Convenção sobre as Subs- contexto da política descriminalizadora deverá ter em conta:
tâncias Psicotrópicas, de Viena (1971), tenham decorrido (I) a despenalização integra-se num plano mais abrangen-
cerca de quarenta anos e que a única resposta prevista te, que envolve uma nova racionalidade sobre o consumo
ao longo desse lapso temporal residisse na punição dos e o consumidor de drogas, expendida na denominada
dependentes de drogas. Este espaço de castigo reserva- Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, aprovada pela
do pela generalidade das legislações àqueles que con- Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 22 de
somem drogas tornou-se, durante muito tempo, elemento Abril (in Diário da República, I série-B, n.º 122/99, de 26 de
de complexificação do tratamento, prejudicando a recupe- Maio); (II) o Poder assumiu claramente a insuficiência e a
ração dos toxicodependentes. Como refere Ménéchal inadequação do registo criminalizador, afastando, enfim,
(1999, p. 122), "o tratamento da toxicomania torna-se com- a velha concepção do "simbolismo da lei penal", a que já
plicado pela incidência judiciária desta patologia", o que se me referi em outros momentos (1999; 2000, p. 13): é ca-
explica pelas diversas situações em que, com maior ou so para dizer que o nosso Legislador leu e assimilou, en-
menor proximidade, o cruzamento do sujeito com o circuito fim, a mensagem de Beccaria (1766; 1998, p. 163), ou se-
punitivo funciona como factor acrescido de perturbação. ja, que a criminalização só faz sentido quando for útil, ne-
As medidas proibicionistas converteram a droga em ob- cessária e "a mais pequena possível nas circunstâncias
jecto de incriminação, arrastando o consumidor para as dadas, proporcional aos delitos"; (III) o modelo que se pre-
malhas da estigmatização, jurídica e social, com o con- tende implementar, a partir dos textos legislativos de 2000
curso dos meios de reacção formal. Esta política de intru- e 2001, visa promover o encaminhamento dos consumi-
A descriminalização do consumo de drogas:
são penal acabou, porventura, por provocar maiores da- dores para o tratamento, fomentando, do mesmo passo,
nos do que os reportáveis ao uso de drogas, do mesmo a abstinência dos consumos; ou, quando isso não seja
passo que não se vislumbram as vantagens dela decor- possível, que do uso de drogas advenha o mínimo de
rentes. Como acentua um penalista espanhol "... o Direito danos sociais e sanitários, razão por que se está perante
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penal demonstrou a sua impotência para lutar contra a uma legislação cujos intuitos são essencialmente de saú-
droga, até ao extremo de ter sido um factor muito impor- de; e, (IV) esta perspectiva privilegia o que tenho desig-
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tante na expansão da mesma, ao convertê-la em bem es- nado por intervenção juspsicológica na área das drogas,
casso por ser um género proibido. É preciso estudar traduzida na penetração do saber e das práticas da Psi-
soluções audazes a longo prazo e com âmbito interna- cologia nos territórios judiciais, convertendo as instâncias
cional, e é preciso também, a curto prazo, conseguir que de aplicação da Lei em pólos que encaminhem o sujeito
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para as vias terapêuticas, reforçando-lhe essa opção sobre a felicidade e a perfeição. O que, por ser uma mani-
(Poiares, 2000; 2001, p.69). festação de contestável paternalismo, constituiria igual-
Relançando o olhar sobre a legislação pregressa verifica- mente uma inescapável afronta aos princípios do Estado
-se que, à medida que o discurso legislativo se permea- de Direito de uma sociedade aberta e plural. Este direito
bilizou ao saber, as reacções penais foram diminuindo de à diferença (poder-se-ia mesmo dizer: à infelicidade) ofe-
intensidade e severidade punitivas, favorecendo, progres- rece ainda um contributo não despiciendo para a des-
sivamente, o recurso a meios de tratamento: afastou-se a criminalização de condutas ou formas de vida como o
imagem do consumidor-delinquente, fazendo sobressair alcoolismo, o consumo de estupefacientes, o jogo, etc.".
o cidadão carecido de apoio, que a legislação de 1976, Na verdade, que legitimidade assiste ao Estado - que
da responsabilidade de A. Santos, referia. constitucionalmente se proclama democrático e pluralista
2.2. A adopção de princípios descriminalizadores em Por- - para criminalizar estilos de vida, como é o caso do con-
tugal, consubstanciada na fabricação legislativa de 2001, sumo de drogas? Naturalmente que não se pode alargar
tem gerado alguma controvérsia, como é natural, quer no o âmbito deste pressuposto e extrapolar para a segunda
plano político - não nos podemos esquecer que "[...] le- geração transgressiva, traduzida na adopção de outros
gislar é, sempre, um acto político" (Andrade, 1980/81, p. comportamentos desviantes, desde que constituam cri-
120) - quer no domínio da formalização jurídica. mes (os delitos predatórios de subsistência da depen-
Estes tipos de argumentação parecem esquecer dois as- dência ou os actos de tráfico de drogas).
pectos de extrema pertinência: por um lado, a criminaliza- Acresce que é inegável, à vista desarmada, que a crimi-
ção já demonstrou sobejamente o que (não) vale; de fac- nalização das drogas, para além de ter servido plúrimos
to, um século de incriminações sucessivas gerou a situa- interesses económicos, entre os quais os dos traficantes,
ção actual, o que é suficiente para que qualquer política conseguiu criar autênticas gerações de excluídos e margi-
seriamente empenhada em obstaculizar o surto da toxico- nais, que pululam pelas cidades e povoam as cadeias.
dependência recuse a manutenção do status; por outro 2.3. A Lei n.º 30/2000, descriminalizando o consumo, de-
lado, a formalização jurídica não pode deixar de reflectir cidiu manter a ilicitude do acto, remetendo-o, através de
que, sem embargo do recurso a elaboradas conceptua- uma desqualificação, para o espaço contra-ordenacional.
lizações, o problema não se resolve nessa sede, já que a Já em outros trabalhos tive oportunidade de suscitar dú-
questão da droga não é jurídica. Por isso surpreende-me vidas à colocação do consumo de drogas na esfera das
que se faça uso de conceitos formais para pôr em causa contra-ordenações, o que fiz tendo em consideração que
a descriminalização: mais coerente seria proclamar que se se a alteração do contexto da ilicitude se fizesse acom-
está contra a descriminalização, o que é legítimo, e que panhar de sanções pecuniárias a lei seria necessaria-
se pretende manter o clássico sistema punitivo, em vez de mente criminógena (Poiares, 1999, pp. 304-305; 2000, pp.
lançar mão de argumentos que, embora formalmente váli- 13-14). Ora, sem prejuízo de se me afigurar que o con-
dos, mais não fazem do que pretender conservar o in- sumo de drogas não deve constituir crime nem contra-
conservável. -ordenação, reconheço as vantagens possíveis deste últi-
A descriminalização do consumo de drogas:
A problemática da criminalização versus descriminaliza- mo formato se, como creio, o mesmo for idóneo à motiva-
ção do consumo de drogas é, a meu ver, cada vez menos ção dos consumidores para adesão ao tratamento e se
uma questão política, no sentido dicotómico de Esquerda- não se ousar impor aos consumidores-toxicodependentes
-Direita; mas é uma questão do foro político no que con- sanções patrimoniais. Por isso penso que a engenharia
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cerne a outros pressupostos, desde logo o respeito pelas legislativa subjacente à Lei n.º 30/2000 é credora de
opções do outro, quaisquer que elas sejam: estamos em aplauso, dado que interditou a aplicação de coima pecu-
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presença das chamadas evasões subculturais e, como niária sempre que o indiciado for um toxicodependente.
assinalam Dias & Andrade (1984, p.430) "também aqui, a As leis pretéritas, localizadas no que já denominei paradig-
criminalização significaria sempre a imposição coactiva ma biopsicossociológico (1983 e 1993), revelavam acen-
de um particular eudemonismo, isto é, duma concepção tuada falta de convicção nos benefícios penalizadores,
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propondo, crescentemente, disponibilização e assistência criminalização peca ainda por defeito, na medida em que
médico-psicológica e apoio social, do mesmo modo que se provou, desde há muito, que não é eficaz; nestes ter-
se retirou a obrigação de fixação de pena reclusiva para o mos que vantagens adviriam de se conservar um modelo
consumo (no normativo de 1993). No início da vigência do ineficaz? Mais: se se interiorizou, ao nível aplicativo e dos
Decreto-Lei n.º 15/93, um dos seus responsáveis políticos operadores judiciários, que a pena adequada seria a mul-
proclamava: "Numa área onde o desconhecimento ainda ta, para quê continuar a criminalizar? O Legislador do
impera - manda a verdade e a humildade dizê-lo! - não se Código Penal (1982) aceitou explicitamente que "[...] o
deve partir de uma realidade experimentada e conhecida combate à criminalidade é matéria de estrutura englo-
para uma aventura, ao encontro de uma realidade que bante, que não pode prescindir de outros ramos de direi-
pode gerar, como em toda a parte tem gerado, efeitos to sancionatório" (in Preâmbulo, Parte Especial, n.º 24).
perversos e particularmente contrários aos pretendidos. A visão descriminalizadora do consumo de drogas ins-
A esse propósito valerá a pena recordar a experiência de creve-se também no âmbito das preocupações que eram
outros países que, tendo abandonado a penalização do já contemporâneas da edição do Código Penal, especial-
consumo, dela se aproximam de novo, agora por via ad- mente no tocante ao prestígio do próprio sistema de
ministrativa." (Soeiro, 1994, p. 23); este discurso atesta o justiça: "[...] a vantagem da descriminalização, que o novo
carácter paupérrimo atribuído à criminalização, que era Código Penal adopta, [está] sensibilizada pela hipertrofia
feita sem convicção: à míngua de conhecimento, deixava- dos casos submetidos aos tribunais, hipertrofia que lhe re-
-se estar tudo como antes. tira, em larga medida, a sua dignidade funcional.
Criminalizar ou contra-ordenalizar tem sido, pois, questão "Descriminalização que, aliás - note-se -, não significa apro-
recorrente desde a Resolução do Conselho de Ministros vação ou aplauso. Ainda que eticamente censuráveis, as vio-
n.º 46/99. Convirá salientar, no entanto, que a decisão legis- lações de certos interesses ou valores, o Estado, por razões
lativa da descriminalização foi apontada, por larga maioria, de política criminal, entende ficar neutro e não as punir.
por uma comissão de especialistas e que o Poder político "A isto se juntam a dispensa dos custos dos sistemas ju-
se limitou a seguir a via indicada pelos peritos. Nesta con- risdicionais, a destigmatização jurídica que lhe corres-
formidade, socorrendo-se do Direito de Mera Ordenação ponde [...]" (Correia, 1983, p. 14).
Social, o Legislador procurou, por um lado, evitar a estig- 2.4. A formulação constante da Lei n.º 30/2000 - e, tam-
matização e os efeitos nefastos emergentes da crimina- bém, de certo modo, do Decreto-Lei n.º 130-A/2001 -,
lização e, por outro lado, não deixar o consumo de drogas assenta na já mencionada convicção que o consumo de
num plano de indiferença jurídica, que poderia ser enten- drogas, ainda que não revestindo natureza que determine
dido como ruptura com o convencionalismo internacional a sua criminalização, não deve ficar impune ao juízo de
a que Portugal está vinculado. Deste modo, o Legislador censura social ou jurídica; por essa razão, remeteu-o para
assinala ao acto de consumo um desvalor, que merece o exílio contra-ordenacional, denotando cautelas especiais,
censura social, ainda que não revista dignidade penal. Ao tendo em consideração o terreno clínico e psicológico em
longo das últimas décadas têm-se desenvolvido progra- que se move. Daí que o quadro legislativo recorra a uma
A descriminalização do consumo de drogas:
mas de descriminalização, em nome do princípio de inter- hábil engenharia, na qual se começa por distinguir, ao ní-
venção mínima do Direito Penal. Como refere Andrade vel das sanções, o toxicodependente do consumidor não
(1980/1981, p. 118) "tem sido, v.g., em nome da dignidade toxicodependente, destarte se estabelecendo uma autên-
humana que se tem sentido a necessidade de restringir o tica descriminalização construtiva. Neste domínio, a lei do
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recurso ao gravame da pena criminal a certas lesões de consumo de droga, publicada em 2000, afastou-se par-
bens jurídicos de reconhecida importância ético-social", cialmente da lei-quadro do ilícito de mera ordenação
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concedendo-se uma maior margem de tolerância relativa- social (o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro), como
mente a comportamentos que, merecedores de juízo de refere Monteiro (2001, p. 70); contudo, como esta autora
censura, não são suficientemente graves para acarreta- também frisa, o Legislador ordinário não está obrigado à
rem sanção penal. Ora, no que às drogas concerne, a determinação do primeiro elenco de sanções, já que "uma
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lei-quadro não é uma constituição sectorial" e porque "a tratégias de motivação à aceitação do tratamento. Com
existência comunitária interpelará por vezes a imaginação efeito, da leitura e interpretação dos dois textos legais
do autor da lei para que encontre, em sede de "parte es- ressalta que o Legislador quis que as CDT's se ancorem
pecial", sanções mais adequadas às concretas proibições num registo clínico em que a aplicação da medida visa o
que instaura. Estando, como está, em causa um ramo do actor e não o acto (Debuyst, 1986), procedendo a dis-
direito sancionatório do qual se espera uma maleabili- tribuição das sanções numa perspectiva singularizadora.
dade correspondente à diversidade fenomenológica das Para tanto, o decreto-lei que regula o funcionamento das
situações que regula" (Monteiro, 2001, p. 71). comissões determina o apoio e acompanhamento dos
Nada me parece opor-se a que o Legislador do texto de membros daquelas por técnicos (a equipa de apoio pre-
2000, confrontando-se com um objecto (droga) e um su- vista no artigo 7º), competindo-lhes, entre outras funções,
jeito (consumidor) dotados de grandes especificidades, as de prestar apoio técnico na escolha das sanções, rea-
tenha optado por fazer corresponder aos ilícitos contra-or- lizar avaliação psicológica dos indiciados, encaminhá-los
denacionais sanções não pecuniárias. Pereira (1992, p. para as entidades de saúde, acompanhá-los nos perío-
16) nota que "a coima é sempre e só uma pena pecu- dos de suspensão provisória do processo, de determi-
niária"; refere-se porém, ao articulado da lei-quadro, pelo nação e execução da sanção, bem como no caso de apli-
que não existe crise quando o Legislador envereda pela cação de medidas alternativas. Trata-se, em bom rigor, de
contra-ordenação através de lei especial, como acontece um trabalho de apoio psicológico e de encaminhamento
no caso vertente. No campo das drogas houve sensibili- para as vias terapêuticas, acompanhando a sua evolu-
dade aos graves riscos que resultariam da imposição de ção, o que requer adequada formação em Psicologia ou
coimas pecuniárias aos toxicodependentes e não me Medicina por parte desses técnicos - apesar de, lamen-
parece que fosse sensata, até em termos de economia tavelmente, o Legislador ter optado por não referenciar
processual, que se tivesse previsto para todos os indicia- essa vertente na formação do pessoal técnico.
dos (toxicodependentes incluídos) essa modalidade de Ora, do elenco de sanções previstas (artigos 15º e 17º da
sanção principal, admitindo-se logo a sua substituição, Lei n.º 30/2000) e das diversas modalidades de suspen-
como propõe Monteiro (2001, p. 76). Na realidade, creio são contempladas (provisória do processo, da determi-
que chega de se brincar ao faz de conta na justiça da dro- nação da sanção, da execução da sanção) resulta nitida-
ga: até aqui, previa-se prisão mas, em regra, aplicava-se mente acentuado o propósito não estigmatizador e tera-
multa; prever-se agora coima monetária para se aplicar pêutico deste pacote legislativo. A intencionalidade de
qualquer outra sanção poderia ser muito divertido mas ambos os diplomas consiste em motivar o sujeito a mu-
não seria, definitivamente, honesto da parte do Legisla- dar de rumo, optando por um estilo de vida saudável,
dor; e, do mesmo modo, não acredito que "[...] a ameaça para o que é convidado e não obrigado: por isso, se não
de pagamento forçado da coima funcionaria como "em- aceitar ou se frustrar a adesão inicial ao tratamento, a
purrão" para o cumprimento integral das sanções afinal sanção que pode ser aplicada conterá um sentido peda-
mais adequadas, ao menos para os toxicómanos" (Mon- gógico e de prevenção (geral e especial), como se pode
A descriminalização do consumo de drogas:
teiro, 2001, p. 76). Basta que se conheça o estilo de vida concluir do artigo 15º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 30/2000.
toxicodependente para se perceber como soçobraria uma As CDT's, segundo a perspectiva legal, não são instân-
solução como a apontada por Monteiro. cias de julgamento, ao contrário do que já li (Monteiro,
A ideia-chave desta lei reside na motivação para o trata- 2001, p. 80). Qualquer semelhança que se pretenda esta-
abordagem juspsicológica
mento e recuperação dos toxicodependentes e dos con- belecer entre as CDT's e os tribunais é infundada: basta
sumidores de droga, razão por que se agilizou um modelo atender à letra dos normativos que as criam e regulam
Carlos Poiares
que visa afastar a estigmatização dos sujeitos, quer pela para se perceber que o cerne da questão está no conhe-
natureza da instância de audição e valoração (as Comis- cimento das personalidades e trajectórias de vida [artigo
sões para a Dissuasão da Toxicodependência - CDT's) 7º, alínea d), do Decreto-Lei n.º 130-A/2001], no acom-
quer pelo regime processual fixado, que reforça as es- panhamento técnico do indiciado (n.º 4 do artigo 12º do
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decreto-lei), na diagnose e avaliação (artigos 14º, n.º 8, menos ao nível das CDT's, na medida em que estas estão
15º, 16º e 19º) e na tentativa de motivar o indiciado e os apoiadas por técnicos apetrechados para a descodifi-
seus familiares para a recuperação clínico-psicológica cação dos comportamentos dos indiciados, sendo, por
(artigo 16º do Decreto-Lei n.º 130-A/2001). conseguinte, menos susceptíveis de erro na apreciação
Realce-se, portanto, a natureza psicologizada destes nor- dos casos e dos sujeitos que os corporizam.
mativos, que apelam já de maneira explícita à Psicologia,
enfatizando o saber sobre as normatividades. Dir-se-á 3. A alteração do regime jurídico aplicável ao consumo
que os técnicos das CDT's terão sempre presente os de drogas consubstancia, formal e materialmente, uma
critérios de diagnóstico contidos no DSM IV, no concer- mudança. Mudança de atitude legislativa e aplicativa;
nente às perturbações relacionadas com substâncias, mudança de racionalidade, desde um registo criminali-
concedendo-lhes ampla prioridade, e que devem ser pes- zador-terapêutico para um de motivação e encaminha-
soas habilitadas a captar e descodificar as mensagens mento para as vias terapêuticas, sem a ameaça da
que recebem dos indiciados. sanção penal; mudança, ainda, da representação institu-
A lógica subjacente aos textos legais de 2000 e 2001 vai cional do consumidor e do toxicodependente, que deixa
no sentido de o consumo de drogas ser avaliado de har- de ser considerado um delinquente ou um doente,
monia com o conhecimento clínico e psicológico, reme- emergindo antes como um sujeito que optou por um esti-
tendo a vertente jurídica para o plano de revestimento e lo de vida que não é saudável e que carece de apoio psi-
formalização processual. Essa a razão por que estas comis- cossocial. As CDT's não o observam como delinquente -
sões não são tribunais nem entidades de julgamento, mas naquele caso em que vai ser ouvido, ele não cometeu um
pontes entre os comportamentos adictivos e o consumo crime; e um consumidor de drogas não é necessaria-
ocasional e a motivação para adesão ao tratamento. mente um doente. As CDT's enfatizarão a responsabili-
Todavia, o texto-matriz deste novel regime carece, a meu dade que lhe cabe, desde logo na vontade de alterar o ru-
ver, de um reajustamento no que tange à fixação do limite mo de vida, funcionando como pólo de aproximação ao
de produto que é possuído pelos indiciados. Com efeito, tratamento. Nesta medida, a lei criou instâncias de autên-
preceitua-se que "...a aquisição e a detenção para con- tica intervenção juspsicológica, dando-lhes a palavra: o
sumo próprio das substâncias [...] não poderão exceder a saber faz parte integrante e explícita das normações.
quantidade necessária para o consumo médio individual
Contacto:
durante o período de 10 dias" (artigo 2º, n.º 2, da Lei n.º
Prof. Doutor Carlos Poiares
30/2000), o que determina a aplicação de um critério Rua dos Castelinhos, 7-1º
quantitativo que, em minha opinião, é extremamente falí- 1150 Lisboa
Petrony.
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