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Monica Piccolo
(organizadora)
ENSINO DE HISTÓRIA NA REDE
BÁSICA DO MARANHÃO: UMA
ANÁLISE CRÍTICA DOS LIVROS
DIDÁTICOS
Monica Piccolo
(organizadora)
EDITOR RESPONSÁVEL
Claudio Eduardo de Castro
CONSELHO EDITORIAL
Alan Kardec G. Pachêco Filho Jackson Ronie Sá da Silva
Ana Lucia Abreu Silva José Roberto Pereira de Sousa
Ana Lúcia Cunha Duarte José Sampaio de Mattos Jr
Cynthia Carvalho Martins Luiz Carlos Araújo dos Santos
Eduardo Aurélio B.Aguiar Marcelo Cheche Galves
Fabíola Oliveira Aguiar Maria Claudene Barros
Helciane de F. A.Araújo Maria Sílvia Antunes Furtado
Helidacy Maria M.Corrêa Rosa Elizabeth Acevedo Marin
E56
Ensino de história na rede básica do Maranhão: uma análise crítica dos
livros didáticos / Monica Piccolo organizadora. – São Luís: EDUEMA,
2018.
361 p.
Coletânea de artigos.
ISBN: 978-85-8227-151-3
1. Ensino de História. 2. Livros Didáticos. 3. Maranhão I. Piccolo, Moni-
ca. II. Título
CDU 93/94:371.671.1
Livro publicado com recursos provenientes do EDITAL FAPEMA Nº
021/2016 LITERATURA
SUMÁRIO
Palavras iniciais 7
A organizadora
A organizadora.
São Luís, 2018.
12
O ENSINO DA HISTÓRIA
"VISTO POR DENTRO"
O LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL: RUMO A UMA
POLÍTICA DE ESTADO
Monica Piccolo
________________________________________________________
Introdução
Qualquer reflexão sobre os (des)caminhos da educação
na Rede Básica de Ensino que tenha como foco o repensar da
prática docente e/ou do processo de ensino-aprendizagem,
passa, obrigatoriamente, pelo papel desempenhado por aquele
que ainda é considerado como o mais importante instrumento
pedagógico: o livro didático. A importância do livro didático
como instrumento didático/pedagógico na cultura escolar bra-
sileira é objeto de intenso debate, não só no meio acadêmico,
como também em momentos específicos transbordou para a
sociedade como um todo por meio de embates nas páginas de
grandes jornais e das principais revistas do país.
Uma das maiores polêmicas na imprensa nacional acerca
da qualidade do livro didático de História deu-se em função da
publicação no jornal O Globo, em 18 de setembro de 2007, do
artigo de Ali Kamel, intitulado “O que ensinam às nossas crian-
ças”, no qual o jornalista denuncia o caráter ideologizante da
obra Nova História Crítica, de autoria de Mário Furley Schmidt,
publicado pela Editora Nova Geração.
Não vou importunar o leitor com teorias sobre Gramsci, hege-
monia, nada disso. Ao fim da leitura, tenho certeza de que to-
dos vão entender o que se está fazendo com as nossas crianças
e com que objetivo. O psicanalista Francisco Daudt me fez che-
gar às mãos o livro didático "Nova História Crítica, 8ª série" dis-
tribuído gratuitamente pelo MEC a 750 mil alunos da rede pú-
blica. O que ele leu ali é de dar medo. Apenas uma tentativa de
15
fazer nossas crianças acreditarem que o capitalismo é mau e
que a solução de todos os problemas é o socialismo, que só
fracassou até aqui por culpa de burocratas autoritários. Impos-
sível contar tudo o que há no livro. (...). Nossas crianças estão
sendo enganadas, a cabeça delas vem sendo trabalhada, e o e-
feito disso será sentido em poucos anos. É isso o que deseja o
MEC? Se não for, algo precisa ser feito, pelo ministério, pelo
congresso, por alguém (KAMEL, O Globo 18/9/2007).
1
A Base Nacional Comum Curricular do Ensino Fundamental (BNCC) foi homo-
logada pelo Conselho Nacional de Educação no dia 20/12/2017.
17
acesso à internet; em 53,5%, a internet é do tipo banda larga;
nas escolas brasileiras do ensino fundamental regular, públicas,
urbanas e rurais (107.512), há disponíveis ao uso dos alunos
736.347 computadores2 e 60% dos estabelecimentos estão co-
nectados à internet (BRASIL, MEC, CENSO INEP, 2018, p. 5).
Esses dados, já precários, sofrem grande alteração quan-
do analisado o caso específico do Maranhão: das 9.347 escolas
públicas de ensino fundamental regular, somente 23% têm a-
cesso à rede mundial de computadores e 16% possuem labora-
tório de informática. Na rede privada de ensino, das 770 esco-
las, 81% possuem internet. Se levarmos em consideração o nú-
mero de alunos matriculados nas escolas na rede pública
(1.076.022) e na rede privada (121.606), chega-se ao cenário de
que 89,8% dos alunos matriculados no ensino fundamental
regular do Maranhão encontram-se em escolas públicas, das
quais somente 23% tem acesso à internet 3.
Diante de tal cenário, o livro didático ainda mantém sua
função vital no ensino-aprendizagem, sendo considerado, nas
palavras de Kátia Abud, como “o construtor do conhecimento
histórico daqueles cujo saber não vai além do que lhes foi
transmitido pela escola de 1º e 2º graus” (ABUD, 1986, p. 81).
A partir dessas considerações iniciais, esse texto pro-
põe-se a analisar a trajetória histórica da ação estatal em rela-
ção ao livro didático, com ênfase no componente curricular
História, destacando suas conquistas e transformações a partir
dos anos 1930, momento inicial em uma atuação governamen-
tal específica sobre o tema, até chegarmos Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD) 2018, destacando que a cada edital o
Programa tem seus instrumentos de avaliação repensados, e
2
Não estão disponíveis os dados acerca da distribuição de computadores por
unidade escolar, sendo, assim, impossível indicar quantas escolas de fato dispo-
nibilizam computadores aos alunos.
3
Os dados específicos sobre o Maranhão estão disponíveis no portal
www.qedu.org.br
18
partindo do pressuposto que hoje já podemos considerar o
processo de aquisição e distribuição do livro didático como
uma política de Estado, que vem sobrevivendo aos desmandos
governamentais na área da educação.
19
Marcos Regulatórios da ação estatal em relação ao livro
didático4
Marco Regulatório Conteúdo
DL nº 1.006/1938 Criação da Comissão Nacional do Livro
Didático, com o objetivo de examinar e
emitir parecer sobre os livros didáticos
adotados nas escolas públicas.
DL nº 8.460/1945 Ampliação da CNLD para quinze membros e
estabelecimento da atribuição ao Instituto
Nacional do Livro (INL) da publicação oficial
de livros didáticos para utilização nas esco-
las.
DL nº 38.556/1956 Estabelecimento da Campanha Nacional de
Material de Ensino (CNME) com o objetivo
de redução dos gastos com a distribuição
de materiais didáticos.
DL nº 53.585/1964 Autorização ao MEC de editar livros didáti-
cos para distribuição gratuita e venda a
preço de custo.
DL nº 53.887/1964 Revogação da autorização concedida ao
MEC e retomada da função a CMNE de
assegurar a publicação e distribuição de
livros didáticos.
DL nº 59.355/1966 Criação da Comissão do Livro Técnico e
Didático (COLTED) no âmbito dos acordos
MEC-USAID com o objetivo de incentivas,
orientar, coordenar e executar as atividades
do MEC em relação à produção, edição,
aprimoramento e distribuição de livros
técnicos e didáticos.
Lei nº 5.327/1967 Instituição da Fundação Nacional de Mate-
rial Escolar (FENAME) que incorporou todo
4
As informações sistematizadas nesse quadro foram integralmente extraídas do
texto de Marcelo Soares (2017), que realizou um exaustivo processo de pesqui-
sa. Aqui, foi realizada apenas uma organização cronológica dos marcos regula-
tórios.
20
o acervo da CMNE, as funções da COLTED e
após 1976, a coordenação do PLIDEF (Pro-
grama do Livro Didático)
Lei nº 7.091/1983 Condução pela Fundação de Assistência ao
Estudante (FAE) do PLIDEF
Decreto nº Instituição do Programa Nacional do Livro
91.542/1985 Didático (PNLD)
EC nº 59/2009 Alteração no art. 208 da Constituição Fede-
ral ao estabelecer que os programas de
material didático são dever do Estado e
devem abranger todas as etapas da educa-
ção básica.
Decreto nº 7.084/2010 Regulamentação dos programas de material
didático com o objetivo de prover as esco-
las de educação básica pública com obras
didáticas, pedagógicas e literárias, bem
como de outros materiais de apoio à prática
educativa, de forma sistemática, regular e
gratuita
Lei nº12.796/2013 Alteração do inciso VIII do artigo 4º da Lei
nº 9.394/1996 (LDB), como desdobramento
da EC nº/2009, definindo que o dever do
Estado com educação escolar pública será
efetivado mediante a garantia de atendi-
mento ao educando, em todas as etapas da
educação básica, por meio de progr amas
suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saú-
de.
Lei nº 13.005/2014 Regulamentação do Plano Nacional de
Educação (2014/2024) em que a produção,
disponibilização e desenvolvimento de
material didático estão presentes em diver-
sas estratégias de ação e nas metas a serem
alcançadas.
Fonte: SOARES, 2017, p. 101-114.
21
A opção pela ordenação cronológica dos marcos regula-
tórios da política estatal em relação aos livros didáticos tem
como objetivo apresentar a trajetória de consolidação de uma
política pública considerada como vital para a universalização
da educação básica. Nos anos 1930, no âmbito da Reforma
Capanema, em pleno Estado Novo, deu-se a criação da Comis-
são Nacional do Livro Didático (CNLD). A questão girava em
torno de uma “política de substituição de importações”, ou seja,
a busca pelo incremento da produção nacional dos livros didá-
ticos para substituição dos importados, sem que tivesse sido
plenamente estabelecida a obrigatoriedade estatal na distribui-
ção dos livros. Tratava-se de encontrar instrumentos para auxili-
ar a formação de profissionais no âmbito da elite; uma preocu-
pação ainda de governo (BEZERRA, 2017, p. 69). Mas, ao Estado
era atribuído o controle político e ideológico da produção e
distribuição de livros que, segundo Soares (1996), tinham nu-
merosas e sucessivas edições e eram adotados por décadas,
além de não serem elaborados por especialistas na área.
Especificamente no campo do livro didático de história,
Marco Antônio Silva destaca que
(...) o livro de História do Brasil de Rocha Pombo, editado pela
primeira vez em 1919, foi utilizado por várias gerações de alu-
nos e professores até a sua última edição de 1960. Merece des-
taque também o escritor, jornalista e bacharel em Direito Viriato
Correia, que foi autor de inúmeras obras voltadas para um pú-
blico infanto-juvenil com crônicas históricas que passaram a ser
adotadas em escolas. Seu livro de maior sucesso no meio esco-
lar foi História do Brasil para Crianças, editado pela primeira vez
em 1934 pela Companhia Editora Nacional e, devido à longevi-
dade de sua adoção, foi reeditado 28 vezes (SILVA, 2012, p.
809).
23
Art. 1º Fica instituído o Programa Nacional do Livro Didático,
com a finalidade de distribuir livros escolares aos estudantes
matriculados nas escolas públicas de 1º Grau (BRASIL, 1985).
25
Esse quadro não se repete quando olhamos para a Equi-
pe Responsável pela Avaliação dos Recursos: entre seus 29
membros, há representantes da região norte (UEPA), nordeste
(UFBA, UNEB e UFRN), centro-oeste (UNB), da educação básica
(SEEDF, IFGoiano, IFG), mas, ainda, com o predomínio das uni-
versidades da região sul (UFSM, UNIPAMPA, UEPG, UFPR,
UFRGS) e sudeste (UNESP, UNICAMP, USP, UERJ, UFES, ENSG,
UFRJ), contando com cinco mestres, um especialista e os demais
doutores, sendo seis em educação e os demais nas diversas
áreas.
Quando fechamos o foco especificamente na equipe de
avaliadores da área de História, as assimetrias regionais retor-
nam: dos 38 avaliadores, 22 são vinculados às instituições das
regiões sul e sudeste (com destaque para UFRGS, com cinco
representantes); 13 do nordeste (UFRN com 3 e UFRPE e UFS
com 4), um à região centro-oeste e um à região norte. Há so-
mente dois representantes dos Institutos Federais, IFPR e IFRN.
Todos os demais, professores universitários. Pode-se argumen-
tar que tais assimetrias seriam “mera coincidência” uma vez que
houve mudanças na composição dos avaliadores que, a partir
de 2016, passaram a ser sorteados de um Banco de Avaliadores,
formado por meio de um cadastro nacional de profissionais
habilitados. No entanto, os “sorteados” compõem apenas me-
tade da equipe; a outra metade é escolhida pela IES responsá-
vel, nesse caso específico, a Universidade Federal de Sergipe.
Após essas considerações iniciais acerca da composição
da Equipe Avaliadora, passemos, então, à estruturação do Guia
que, em sua primeira seção, “por que ler o guia?”, apresenta
seus dois principais objetivos: auxiliar na escolha das coleções
que serão adquiridas e distribuídas pelo Estado nos próximos
três anos e refletir sobre o lugar do componente curricular His-
tória no desenho do Ensino Médio. Assim sendo, o Guia é estru-
turado em quatro partes: i) problematização dos objetivos do
ensino de História estabelecidos nos dispositivos legais, os de-
26
safios com a implantação do novo Ensino Médio e da BNCC; ii)
apresentação dos princípios, critérios e processos de avaliação;
iii) perfil das obras analisadas, as concepções de História (ciên-
cia e disciplina), de estudante e professor difundidas pelas cole-
ções do PNLD 2018 e os avanços do Programa nos últimos
quinze anos e as novas configurações possíveis do livro didático
de História; iv) apresentação das resenhas das coleções aprova-
das, organizadas em quatro momentos: visão geral da obra,
descrição, análise da obra e em sala de aula. O momento final
do Guia é destinado à ficha de avaliação elaborada a partir do
Edital PNLD 2018.
Na seção “A História no Ensino Médio”, o Guia apresenta
duas questões iniciais que, acredito, são centrais na reflexão
aqui desenvolvida: qual o lugar da disciplina História no Ensino
Médio e quem, ou o que, orienta a construção do currículo.
Recuperando as análises construídas pelos “especialistas”, inci-
diriam na construção do currículo e sobre o lugar da História no
Ensino Médio, sem qualquer tipo de hierarquização, os Parâme-
tros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM/1999), a
Matriz de Referência de Ciências Humanas (MRCH/2009), que
fundamentam a construção dos itens do Exame Nacional do
Ensino Médio, os livros didáticos, que atuam como indutor do
conteúdo ministrado em sala de aula e, por fim, os valores dos
professores, gestores, pais e responsáveis pelos estudantes.
Ainda nessa primeira parte, uma crítica velada:
quem concebe o livro didático como principal fonte do seu pla-
nejamento, consome, implicitamente, o factualismo enciclopé-
dico da Matriz do ENEM, as ondas de renovação da historiogra-
fia acadêmica, os consensos temporários em termos de habili-
dades historiadoras, induzidas pelos Editais do PNLD, e os prin-
cípios organizativos fornecidos pelas Diretrizes Curriculares Na-
cionais para o Ensino Médio (BRASIL, MEC, PNLD, 2017, p. 9).
Referências
ABUD, Kátia M. O livro didático e a popularização do saber his-
tórico. In: SILVA, Marcos da (org.). Repensando a História. São
Paulo: ANPUH/Marco Zero, 1986, p. 73-92.
BEZERRA, Holien Gonçalves. O PNLD de história: momentos
iniciais. In: ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marce-
lo de Souza. Livros didáticos de história: entre políticas e
narrativas. Rio de Janeiro: FGV, 2017, p.67-82.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de História – fundamentos e
métodos. 4ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curri-
cular – Ensino Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 2017.
BRASIL. Ministério da Educação. PNLD 2018: história – guia
dos livros didáticos – Ensino Médio. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2017.
CAIMI, Flávia Eloísa. O livro didático de história e suas imperfei-
ções: repercussões do PNLD após 20 anos. In: ROCHA, Helenice;
REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Livros didáticos
de história: entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV,
2017, p. 33-54.
SILVA, Marco Antônio. A fetichização do livro didático no Brasil.
Educ. Real, Porto Alegre, v. 37, n.3, p. 803-821, se./dez, 2012.
SOARES, Marcelo. O livro didático como política pública: pers-
pectivas históricas. In: ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís;
MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Livros didáticos de história:
entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV, 2017,101-120.
34
HISTÓRIA, ENSINO DO PRESENTE E O SILÊNCIO
DA MEMÓRIA NOS LIVROS DIDÁTICOS
Introdução
Teorizadas muitas vezes sob aspectos distintos e contra-
ditórios, a relação entre história e memória ainda se fezem au-
sentes nos livros didáticos quando dizem respeito a dimensões
socioculturais e epistemolõgica. Evidente que na produção do
livro didático, o mesmo não deve priorizar discussões acerca
das questões teóricas e metodológicas da história, porém, tais
ausências permitem obscurecer a distinção entre história e me-
mória e, essa relação, ao tornar-se obscurecida, contribui para
que a história do tempo presente, quando tratada no livro didá-
tico, silencie a importância da memória como elemento defini-
dor dos sentidos da vida.
A história tem passado permanentemente por uma série
de elaborações, principalmente após a queda do paradigma
iluminista que buscava a legitimidade do ato de fazer história
pautada na busca de uma verdade científica. Dessa forma, o
professor não passava de um atravessador de saberes, tendo
como preocupação o repasse dessas verdades para o seu alu-
nado. Isso contribuiu para que se construísse um saber histórico
alicerçado pela ideia de que o passado poderia ser construído e
reconstruído, a fim de que se pudesse, de fato, compreender
aquilo que realmente aconteceu.
Nesse ínterim, a forma e os ensinamentos da feitura da
história tinham como principal missão levar a verdade dos fatos
aos alunos, verdade essa transmitida de geração a geração por
35
um grupo de intelectuais que assegurava o seu saber a partir
das fontes que legitimavam essa verdade. Assim, a relação alu-
no/ professor era uma relação caracterizada por um mestre que
explicava as causas e as consequências do ocorrido, enquanto
ao aluno cabia a função de apreensão desses acontecimentos.
Recentemente, a crítica acerca do fazer histórico veio
como um contributo para que os historiadores começassem a
se preocupar com a atual configuração da disciplina História.
Nesse sentido, a narrativa, o discurso e a crítica literária são
elementos que podem ajudar a perceber o que é e o que é
fazer história hoje.
A história é uma narrativa do passado. Tal assertiva tor-
nou-se uma máxima para os historiadores. Mas o que vem a ser
o passado? Este de fato existe? Se a história é o que afirmamos
do passado, consequentemente, é discurso? E se o passado não
existe, se o que existe é o que afirmamos sobre este, o que po-
deríamos afirmar sobre o presente? O presente existe em histó-
ria ou o que existe é o que dizemos do presente?
Sabemos que o que há de mais notável na história é que
os fatos por ela descritos são passados e fatos passados já não
são acessíveis à inspeção direta. Ou seja, não podemos testar a
exatidão de afirmações históricas simplesmente verificando se
correspondem a uma realidade conhecida independentemente.
Embora o passado não nos seja acessível de forma direta, dei-
xou-nos uma série de traços sobre si mesmo no presente, seja
na forma de documentos, edifícios, moedas ou outros elemen-
tos intangíveis.
O dever de historiador não é apenas basear todas as suas
afirmações em provas existentes, mas decidir também quais são
as provas, à medida que busca reconstruir de forma inteligível o
passado. Assim, do passado se buscam as memórias, os ele-
mentos conceptuais que contribuíram para o fazer presente dos
indivíduos, sujeitos históricos.
36
Que a história é o estudo do passado, todos concordam.
Mas que passado? O passado humano? Se essa for a resposta,
existem áreas do passado das quais a história não toma conhe-
cimento – por exemplo, as áreas que precederam a evolução do
homem até chegar ao tipo de criatura que é hoje. Por isso, não
seria pretensão da nossa parte afirmar que a história é sim o
estudo do passado: do passado humano.
Se o nosso papel é narrar o passado, devemos ter segu-
rança em relação a esse gênero literário. Os cronistas criticam
os historiadores e, certamente, aqueles não sabem fazer histó-
ria, como estes também não sabem narrar a história, ou pelo
menos, não têm arcabouço teórico para perceber a importância
da narrativa para contar o passado. Ressalta-se que o fato de
afirmarmos que vamos contar o que aconteceu no passado não
nos tornamos cronistas. No entanto, o conhecimento da crôni-
ca, da literatura e de outros elementos que nos ajudam na nos-
sa escritura é de imenso valor.
Certamente não somos literatos. Por não o sermos, nos
ocupamos de sinais que, se não são verdadeiros, ao menos
tiveram a tendência de ser. O que vai diferir o historiador do
cronista é o fato de que este trabalha com o acontecimento e
tem uma noção de verdade. Porém, trabalhar com o que dife-
rencia de outro campo de saber não significa que não podemos
utilizar as técnicas desses saberes. Assim, quando o historiador
narra o passado, este deve se limitar àquilo que aconteceu,
construindo o que pode ser chamado de uma narrativa direta,
ou além de dizer o que aconteceu, também deve ao menos
tentar explicar por que aconteceu. Assim, nossa narrativa deve
ser “significativa” ou direta?
Devemos fazer da história aquilo que “precisamente a-
conteceu” ou podemos significar o acontecimento? Essa é uma
escolha singular, haja vista que cada um, na sua escrita, escolhe
– de forma arbitrária mesmo – a melhor forma de narrar o pas-
sado. O que não pode acontecer é o esquecimento das regras
37
da narrativa, no sentido de que nós historiadores devemos ter
como elemento definidor uma grande segurança daquilo que
nos distingue dos cronistas, literatos, jornalistas e qualquer ou-
tro que também se utiliza do passado como ferramenta de tra-
balho.
Se a história é passado, qual o papel do presente na his-
tória? O passado pode ser um elemento de suma importância
para percebermos, não de forma profética, algumas característi-
cas do presente. Salienta-se que não temos o papel de elaborar
certezas sobre o que está e o que pode ainda acontecer no
presente, mas corroboramos o modo de pensar do qual nos
aproximamos, ou pelo menos tentamos nos aproximar do pas-
sado, é porque esse passado nos é interessante no presente.
Sendo assim, o presente é um objeto do historiador? Pode o
historiador fazer uma história do presente?
40
Desse modo, compartilhamos com Rosa quando afirma
que “a história é uma forma de memória, mas nem todas as
formas de memória são história” (ROSA, 2007, p. 54). A história
é uma prática epistêmica que ao ser organizada, documentada
e contada parte do principio de verdade. Contamos a história
de algo que aconteceu, e para contarmos esse acontecimento
partimos de uma operacionalização de um saber racionalizado
pautado no domínio da arte de reinventar o passado
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006).
Margareth Rago (1995), no artigo “O Efeito Foucault na
historiografia brasileira”, afirma que de um minuto para outro
todas as nossas frágeis, desgastadas, mas reconfortantes segu-
ranças haviam sido radicalmente abaladas por uma teoria que
deslocava o intelectual dos seus espaços e funções orgânicas,
questionando seus próprios instrumentos de trabalho e modo
de produção.
Segundo Rago (1995), o efeito Foucault foi tão avassala-
dor que provocou reações diferenciadas: de um lado, levou a
revitalização do Marxismo, outros mais ou menos timidamente
cercaram-se das concepções de Foucault tentando entender de
onde vinham e por onde apontavam. Tratava-se, pois, de uma
nova maneira de problematizar a história, de pensar o evento e
as categorias através das quais se constrói o discurso do histori-
ador. Não uma discussão sobre narrativa propriamente dita,
mas sobre as bases epistemológicas de produção da narrativa
enquanto conhecimento histórico.
Foucault (1996) questionava o estudo da história centra-
da no desejo de transformação social numa emocionada aposta
na revolução. Ao questionar esse pressuposto, Foucault afirmou
que a história não é mais do que um discurso. Paul Veyne
(1988), nesta direção, mostrou que a história é uma forma cul-
tural, através da qual os homens na contemporaneidade se
relacionam com seus eventos e com o seu passado. Por isso,
41
segundo Veyne (1988), a história é uma forma de conhecimen-
to, uma escrita e não uma ação.
Portanto, a partir da concepção foucaultiana, o discurso é
materializado junto com uma construção social, com suas pró-
prias regras, normas, saberes e poderes. Não é o espelho da
sociedade, não é neutro e nem deve ser considerado como
verdade absoluta. Por isso, o documento histórico escrito não
deve ser considerado como uma fonte detentora de verdades
absolutas e imparciais, tornando-se necessária uma análise ex-
terna do seu discurso. Ou seja, quem fala, de onde fala e por
quem fala. Assim, a dizibilidade foucaultiana tenta restaurar a
liberdade da palavra, recuperando a continuidade das práticas
que possam informar saberes diferenciados; por isso, Foucault
busca ressaltar as descontinuidades, o começo e não a origem.
Assim, a história, sob a ótica de Foucault, é nominalista, uma
prática discursiva que participa da elaboração do real, pois o
real para Foucault é materializado a partir do discurso, uma vez
que não existe fora da linguagem.
A partir desses pressupostos, a história pode ser conside-
rada como uma arte narrativa, próxima da ciência, mas distante
da elaboração científica do século XIX. A experiência, sob a vi-
são foucaultiana, “não é uma voz do passado que precisa ser
esquecida e precisa ser salva, mas uma fissura no silêncio, silên-
cio a que está condicionada a maior parte dos seres humanos e
de suas experiências” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008, p. 139).
Deste modo, Foucault rompe com o silêncio do passado e, a
partir das condições do saber no século XX, consegue contribuir
para a elaboração de um novo sujeito: o sujeito histórico. Por-
tanto, o passado se configura, dentro da elaboração foucaultia-
na, como uma grande guerra que os homens do presente tra-
vam a fim de dar, nesse tempo presente, novas explicações no
sentido de tentar romper com as verdades históricas estabele-
cidas sobre o sujeito homem na atualidade.
42
Outro expoente que afirma que todas as grandes tradi-
ções historiográficas perderam sua unidade fragmentando-se
em propostas diversas frequentemente contraditórias é Charti-
er. Para Chartier (2002), o desafio lançado por uma nova história
das sociedades da qual a micro história italiana pode ser consi-
derada como uma modalidade exemplar consiste, portanto, a
necessária articulação entre, de um lado, a descrição das per-
cepções, das representações e das racionalidades dos atores e,
de outro, a identificação das interdependências desconhecidas
que, juntas, delimitam e informam suas estratégias.
Ao longo de sua obra “A beira da falésia”, Chartier
(2002) discute o porquê da importância da noção de represen-
tação, demonstrando, dentre outros aspectos, que a história da
construção das identidades sociais encontra-se assim transfor-
mada em uma história das relações simbólicas de força.
Chartier (2002) ratifica a ideia dos historiadores que con-
sideram que a escrita da história pertence ao gênero da narrati-
va com a qual compartilha as categorias fundamentais. No en-
tanto, afirma que somente com a tomada de consciência da
distância existente entre o passado e sua representação, ou
como afirma Ricouer (1994), entre o que um dia foi, e não é
mais, pode se desenvolver uma reflexão sobre as modalidades,
ao mesmo tempo comuns e singulares da narrativa da história.
É importante salientar que Chartier (2002) não comparti-
lha com Hayden White (2001), visto que este não identifica no
discurso da história se não um livre jogo de figuras retóricas,
mas uma expressão entre outras da invenção ficcional. Contra
essa dissolução do estatuto do conhecimento da história, Char-
tier (2002) ratifica que a história é comandada por uma intenção
e por um princípio de verdade; que o passado que ela estabele-
ce como objeto é uma realidade exterior ao discurso; e que seu
conhecimento pode ser controlado.
Para Chartier (2002), o trabalho do historiador está divi-
dido em duas exigências. A primeira, clássica e essencial, consis-
43
te em propor a inteligibilidade mais adequada possível de um
objeto, de um corpus, de um problema. A segunda, obriga a
história a travar um diálogo com outros questionamentos filo-
sóficos, sociológicos, literários etc. Somente através desses en-
contros, a História pode inventar questões e forjar instrumentos
de compreensão mais rigorosos.
46
Esses são alguns dos exemplos concretos de instituições
que vêm se preocupando com o tempo presente como objeto
de estudo da história e, se o presente é para essas instituições
objeto da história, cabe a nós historiadores indagarmos qual o
critério que poderia definir o que pode ser considerado como
história do tempo presente.
Assim, Muller (2007) define o tempo presente na história
embrenhado de questões: Quando começa o tempo presente?
Com a Primeira Grande Guerra? Com a Segunda Guerra Mundi-
al? Ou com a Queda do Muro de Berlim? Além desses elemen-
tos que poderão definir o começo desse novo campo da histó-
ria, outra não menos significante indagação seria: qual o méto-
do utilizado para a construção da história do presente, ou, pode
a história do tempo presente ser uma disciplina? Qual a impor-
tância da memória para a ressignificação da história do con-
temporâneo? O tempo presente é um tempo da pós-
contemporaneidade ou faz parte do mundo contemporâneo?
Certeau (1988) pode contribuir para o direcionamento de
tais questões quando nos pergunta o que fabrica o historiador
quando “faz história”. Dando elementos para o diagnóstico de
tal questão, afirma-nos que a operação histórica é uma combi-
nação de um lugar social e de suas práticas científicas. Desse
modo, a “organização da história é relativa a um lugar e a um
tempo” (DE CERTEAU, 1988, p. 28). Por isso, cada sociedade
deve se pensar historicamente de acordo com os instrumentos
que lhe são próprios.
O olhar sobre o passado é atravessado pelo presente, na
medida em que esse passado é “antes de tudo um meio de
representar uma diferença” (DE CERTEAU, 1988, p. 40). Assim, o
olhar acerca do passado nunca deixa de ser um dado segundo
uma lei presente que pode definir esse mesmo passado, mas tal
definição se constrói concomitantemente a uma distância man-
tida pelo historiador, uma vez que esse distanciamento em rela-
ção ao conhecido presentifica uma situação vivida.
47
A partir dessa perspectiva, poderíamos incorrer numa in-
finitude de pensamentos e não queremos cair na incerteza do
inexplicável. O que podemos salientar é que essa é uma escolha
singular. Não podemos deixar de criticar Muller (2007) e o Ins-
titute of Contemporany British History haja vista que ambos se
ocupam da definição dos métodos e do recorte temporal do
Tempo Presente, como elemento de recorte temporal, os fatos
ocorridos no mundo europeu. Todos os exemplos citados pela
referida autora foram os acontecimentos europeus ocidentais.
Assim, poderíamos indagar: tal assertiva, do existir de uma his-
tória do Tempo Presente não seria uma saída para a tentativa
de continuidade de uma pseudo-supremacia da historiografia
europeia ocidental?
Além disso, escrever sobre o acontecido é escrever sobre
as dificuldades daquilo que presenciamos – como bem lembrou
Hobsbawm (1995) em seu livro “A Era dos Extremos”. Assim,
Heller (1993) ao escrever sobre o presente na história afirma
que: “História não é simplesmente a história do nosso passado,
mas a história do passado do nosso presente e também do
nosso presente” (HELLER, 1993, p. 333). Nesse sentido, a distin-
ção entre presente e passado é muito tênue, é algo que depen-
de fundamentalmente das nossas escolhas teóricas e práticas.
Essa não deixa de ser uma escolha arbitrária. Além disso,
desde Tucídedes, a história do Tempo Presente é praticada, pois
podemos citar uma série de historiadores do Tempo Presente,
desde a Antiguidade Clássica até o referido tempo presente.
Estaria Tucídides fazendo história do tempo presente quando
escreveu sobre a Guerra do Peloponeso? Assim,
Evocar Tucídides é recordar, a propósito de uma obra que foi
não apenas escrita no calor do acontecimento, como por um
responsável notório pelo curso que este seguiu, que a operação
histórica visa, antes de mais nada, à busca de uma linha de inte-
ligibilidade, de uma relação de causa e efeitos, meios e fins, ba-
rulho e sentido (LACOUTURE, 2005, p. 290).
48
Estaria, para darmos um exemplo, mais próximo do Tem-
po Presente, Trotsky fazendo história do tempo presente quan-
do escreveu sobre a história da Revolução Russa? O que pode-
mos compartilhar é com o olhar de que fazer a história do tem-
po presente é talvez romper com a noção de tempo que veio
sendo construída a partir da modernidade. Aquele tempo do
progresso da ciência da certeza. No entanto, do ponto de vista
historiográfico, mesmo quando estamos escrevendo sobre o
tempo presente, estamos narrando o passado, pois esse pre-
sente já passou. Por isso, talvez a melhor definição da História
do Tempo Presente seja “aquela escrita no nosso tempo, a par-
tir de saberes, das idéias, da cultura do nosso tempo” (MULLER,
2007, p. 28).
50
mais plausível e coerente do que pensar e utilizar o presente
para que se possa alcançar determinado nível de consciência.
Se a história é uma disciplina que tem como elemento de
preocupação o conhecimento acerca do passado, para que se
possa construir uma sociedade mais crítica e consciente, nada
mais coerente do que pensarmos esse passado recente, aqui
tratado como presente e como memória. Caso consigamos
compreender o presente, tratá-lo como objeto da história e
conseguirmos diagnosticar problemas e até mesmo tratar de
tentar encontrar algumas soluções para o caos social no novo
milênio, aí teremos alcançado o verdadeiro objetivo do saber
histórico. Saber esse que também precisa ser tratado na Educa-
ção Básica
Referências
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52
LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA: UMA
ABORDAGEM HISTORIOGRÁFICA SOBRE OS
CONCEITOS DE HISTÓRIA, TEMPO E FONTES
HISTÓRICAS
Introdução
Ao longo do século XX, a produção do livro didático se
conjuga e se interpreta sobre as orientações oficiais da educa-
ção brasileira, ou seja, ancorado em um discurso historicamente
construído como parte do contexto social onde foi concebido,
resultando em uma visão de uma determinada sociedade que
de forma hegemônica estabeleceu padrões que permaneceram
e conduziram a conduta de professores e alunos no contexto
escolar.
A importância do livro didático no Brasil direcionado às
políticas educacionais remonta a década de 1930, durante o
chamado “Estado Novo”, quando, em 1938, foi criada, pelo De-
creto-Lei n°1.006, a Comissão Nacional do Livro Didático
(CNLD), estabelecendo a primeira legislação de produção e
circulação do livro didático no país.
Essa preocupação com implantação de uma lei específica
dentro de um órgão federal, o Ministério da Educação e Saúde,
direcionado ao livro didático, reflete a preocupação com o con-
trole de um material ideológico que, segundo Capelato (1998),
consiste num veículo privilegiado para a introdução de novos
valores e modelagem de condutas, sobretudo com base nos
mecanismos prescritivos do currículo e do material instrucional.
53
Entendemos que o livro didático é constituído de múlti-
plas condições: posicionamento políticos, conteúdo, linguagem,
editor, redator, revisor, uma memória impressa, sendo o mesmo
tido como fonte de pesquisa, tanto pela apropriação dos dis-
cursos historiográficos, quanto pelo fato de ser uma concretiza-
ção e intenção de políticas de currículo.
Dessa forma, toda proposta curricular direcionada ao li-
vro didático é socialmente construída, porquanto histórica, e
dependente de inúmeros condicionamentos e conflitos de inte-
resses, e o currículo corresponde, em síntese, a uma forma de
política cultural (GIROUX, 1986).
Uma abordagem sobre os conceitos de História, tempo e
fontes históricas no livro didático de História, resulta em exter-
nalizar de forma direta que os livros didáticos, expressam, nas
entrelinhas, posicionamentos políticos, ideológicos e pedagógi-
cos de um determinado contexto histórico, incorporando senti-
dos e significados, possibilitando múltiplas leituras e interpreta-
ções, e, sobretudo, configurando, no âmbito escolar, uma falsa
sensação de segurança no ensino de História em relação às
categorias históricas, como História, tempo e fonte.
Para podermos chegar ao nosso objetivo, fazemos uma
contextualização de forma sucinta sobre a legislação de produ-
ção e circulação do livro didático no país através das políticas
educacionais adotadas ao longo dos séculos XX-XXI. Posterior-
mente, analisamos, com base na historiografia, os conceitos de
História, tempo e fontes históricas no livro didático Conexões
com a História da editora Moderna, SP, do ano 2013, em sua 2º
edição. O livro tem como autores Alexandre Alves, mestre e
doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo; Leticia Fagundes de
Oliveira, Mestre em História Social, pela faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Assim sendo, a relevância desse artigo justifica-se pela
necessidade de discutir e ampliar o campo teórico sobre o pro-
54
cesso envolvido na produção dos livros didáticos, em especial
do de História, possibilitando uma reflexão ação para com esse
material didático tão complexo que é utilizado pelos docentes
em diferentes situações no contexto escolar.
57
são excluídos do Guia do Livro Didático” (BRASIL, MEC, PNLD,
2015).
Dessa forma, entendemos que os PCNs (1997) são uma
orientação política curricular e de avaliação pela qual o livro
didático de História deve ser submetido, direcionado, e, sobre-
tudo, são apontados os caminhos historiográficos que devem
ser seguidos e que influenciam sobremaneira a prática do pro-
fessor de História no contexto escolar.
61
ador, e que a História pode ser “boa” ou “ruim” e não apenas
em uma história verdadeira.
Como o próprio Bann (2004) comenta novos métodos e
técnicas de pesquisa já romperam com a narrativa tradicional e
instituíram uma forma de historiografia que atinge seus efeitos
por meios muito mais explícitos. Tentemos, então, ler a História
pelo crivo do olhar historiográfico, ler pelas lentes.
Dessa forma, entendemos que tratar sobre o conceito de
história de forma crítica e reflexiva em um livro didático requer
um texto passível de interpretações, sem tornar-se uma verdade
absoluta, sendo assim possível por conta dos padrões de com-
preensão de um fato ou de um contexto específico que podem
emergir da construção da história.
Assim, por se tratar de um texto conceitual, segundo S-
chimidt e Cainelli (2007), é imprescindível a utilização de uma
linguagem acessível, e que não seja meramente apresentada
como se fosse uma obra pronta, acrescida de contextualização
de fatos determinantes da época e das histórias de seus indiví-
duos.
Entendemos que o conceito sobre História tratado no
texto didático remete a muitos aspectos históricos complexos e
que não são explicados de forma clara, como o conceito de
modernidade, de correntes históricas, métodos, testemunhos,
veracidade e relativização, existindo ideias e contextos que per-
passam as correntes históricas e que não são tratadas no livro
didático de forma explícita e didática, cabendo ao professor a
responsabilidade de fazer a mediação dialógica do texto, possi-
bilitando ou não estratégias de investigação, exemplificação,
hipóteses. No entanto, esses aspectos podem ser verificados de
forma sucinta ao final do livro didático no “Suplemento para o
professor”, que traz em seu texto pontos sobre as correntes
historiográficas, exemplos textuais, imagens, entrevistas, um
referencial com autores contemporâneos sobre o conceito em
62
análise, que poderiam estar no texto didático direcionado ao
aluno.
Percebemos dessa forma que a questão mercadológica
do livro didático, sua distribuição, impressão e custo influenci-
am demasiadamente a aprendizagem do aluno e o trabalho do
professor, recortando e sintetizando ideias e construções histó-
ricas com relação ao material a ser trabalhado em sala de aula,
resultando em um ensino direcionado apenas à transposição
didática.
Sobre o conceito de fontes históricas descrito no livro di-
dático Conexões com a História, o mesmo coloca que
as fontes da história são todos os vestígios deixados pelas gera-
ções passadas que podem ser analisadas pelos historiadores
para produzir conhecimento histórico, esses vestígios podem
ser registros escritos, monumentos, fotografias, pinturas, ins-
trumentos de trabalho, joias, vestimentas, entre outros objetos
feitos pelo trabalho humano, que servem como base para a
construção do conhecimento histórico (ALVES; OLIVEIRA, 2015,
p.12).
63
Podemos analisar que os conceitos tratados sobre fonte
histórica no texto didático afirmam que toda fonte histórica é
passível de produzir conhecimento histórico. No entanto, o que
nos chama atenção é que não há a preocupação em deixar cla-
ro que fontes históricas são passíveis de serem contestadas,
refutadas, tendo um caráter histórico, político, social, religioso e
econômico, traduzindo interesses de uma determinada época,
sendo partes constitutivas das relações e de realidade sociais.
Não há também a preocupação em distinguir os diversos
tipos de fontes, sendo que na organização do conceito didático
sobre fontes históricas temos exemplificações de diversos tipos
de fontes como se fossem todas da mesma natureza.
Segundo Gil (2010, p.66) as fontes primárias são constitu-
ídas por obras ou textos originais, material ainda não trabalha-
do sobre determinado assunto. As fontes documentais clássicas
são: os arquivos públicos e documentos oficiais; fontes biblio-
gráficas, conhecidas como fontes secundárias, classificam-se
em: a) livros de literaturas correntes, como obras de literaturas,
em seus diversos gêneros, romance, poesias; b) livros de refe-
rência, como dicionários, enciclopédias e anuários; c) periódicos,
publicações de jornais e revistas; d) impressos diversos, como
livros, jornais, revistas e boletins informativos que se encontram
nas bibliotecas púbicas do governo.
Entendemos que ao conceituar fontes históricas, o livro
didático em questão deveria contemplar, em uma perspectiva
didática e clara, que não há documento neutro, nem fonte que
transpareça a verdade absoluta, pois segundo Le Goff (1990,
p.535-536) o historiador deve argumentar que o documento
não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um pro-
duto da sociedade que o fabricou segundo as relações de for-
ças que aí detinham o poder, o historiador assim começa a fazer
falar as coisas mudas.
A pesquisa histórica lida com diversos tipos de fontes em
suportes variados, e é preciso levar em conta as especificidades
64
do trabalho com esses materiais. O domínio de técnicas e lin-
guagens aplicáveis a documentos de diferentes tipos (escritos,
iconográficos, orais, musicais, etc.) requer um exercício constan-
te, não havendo uma fórmula única para lidar com eles. Torna-
se imprescindível examinar e relacionar as fontes históricas com
um estado de interrogações que nos possibilita uma leitura não
apenas literal das informações contidas nos documentos, mas
questionamentos contextualizados com a realidade da época e
com que objetivo em que o documento foi prescrito.
O que é possível se verificar de forma clara ao final do li-
vro didático no “Suplemento para o professor”, em seu texto
questões sobre fontes históricas, é que a análise sobre o tema é
relacionada às correntes historiográficas, fazendo um percurso
teórico metodológico claro e didático, trazendo exemplos tex-
tuais, imagens entrevistas, mas que somente no capitulo 8 do
livro é que o aluno vai ter a possibilidade de analisar na “Seção
documentos” uma fonte secundária, ou seja, há um desloca-
mento do texto literal e de sua função didática, dificultando
uma análise daquilo que é exposto no texto sobre fontes histó-
ricas.
Nessas circunstâncias, o entrecruzar direcionado à análise
documental dos dados levantados, com a disposição das infor-
mações obtidas nos documentos, permite enxergar melhor
detalhes para a produção de novos olhares descritivos e pro-
blematizadores, voltados ao passado e contextualizados com a
história do documento da época.
Assim, acredita-se que se faz necessária uma delimitação
mais detalhada sobre os conceitos de fontes históricas no livro
didático em questão e sua crítica mais precisa.
Para Koselleck (2006) o passo em direção à exegese
imanente de fontes é dado quando o historiador abandona
assim a história dos eventos para voltar seu olhar para
transcursos, estruturas e processos de mais longo prazo pois
todo testemunho, seja escrito ou em forma de imagem,
65
permanece associado às circunstâncias e ao excesso de
informações. O que pode conter não é suficiente para abarcar a
historicidade que atravessa em diagonal todos os testemunhos
do passado. Sendo assim, faz-se necessário que tenhamos,
enquanto historiador e mediador de conhecimento em âmbito
escolar, uma teoria possível de ser trabalhada de forma
consciente.
A questão relacionada ao conceito de tempo no livro di-
dático Conexões com a História nos coloca que tempo é a maté-
ria-prima de que é feita a História e que pressupõe a divisão do
tempo em passado (o que já passou), presente (a realidade
vivida neste momento) e futuro (o que ainda estar por vir); ain-
da continuando no parágrafo “como o homem é um ser que
tem linguagem e memória, é capaz de relacionar o presente
vivido com as experiências passadas e com as expectativas para
o futuro” (ALVES; OLIVEIRA, 2015, p.15).
Segundo Koselleck (2006), eventos podem ser imediata-
mente apreensíveis por meio de testemunhos escritos, o que
não ocorre com os transcursos temporais, estruturas de longo
prazo e processos. E se um historiador parte do principio de
que as determinantes de um evento interessam-no, tanto quan-
to o evento em si, faz-se necessário transcender os testemu-
nhos singulares do passado.
No parágrafo a seguir, os autores citam que
um bom exemplo para entendermos a ligação entre passado e
presente e futuro é pensarmos a história das mulheres. De fato
foi a partir do momento em que as mulheres começaram a
conquistar um espaço público na sociedade, ou seja, a partir de
uma questão do presente, que se desenvolveu, na historiografi-
a, um espaço para estudar o passado da mulher, agora entendi-
da como sujeito histórico (ALVES; OLIVEIRA, 2015, p.12).
Considerações Finais
Consideramos que as abordagens sobre os conceitos de
História, fontes históricas e tempo, no livro didático Conexões
com a História revelam a complexidade desse artefato cultural,
que, segundo Martins (2007), tem suas condições atreladas a
68
aspectos sociais de produção, circulação e recepção, e estão
definidas com referência a práticas sociais estabelecidas na
sociedade.
Historicamente, entendemos que o livro didático perpas-
sa por uma construção político-social-econômica, e a ideia so-
bre livro didático e de seus aportes teóricos e metodológicos
envolve por parte do professor o problematizar pelas opções
feitas, os recortes estabelecidos pelos mesmos (o que precisa-
mos aprender?), questões técnicas, de organização e operacio-
nalização (como podemos aprender?) que são autonomizadas e
discutidas “em si”. Segundo Bittencourt, “o livro didático é, an-
tes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da edição
que obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercia-
lização” (BITTENCOURT, 2010, p. 71).
Para Cunha (2010, p.669) nas últimas décadas ganhou
espaço nos debates acadêmicos a discussão sobre o ensino de
História e a consciência histórica, principalmente na Educação
Básica. Tal discussão levou os historiadores a desenvolverem
uma revisão historiográfica do ensino de História, favorecendo,
transformações editoriais dos livros didáticos de História, com a
inclusão de “Novos Objetos”, “Novos Problemas”, e “Novas
Abordagens” (LE GOFF, 1995), sofrendo, desta forma, diferentes
transformações que interferiram e interferem na produção e
usos dos mesmos.
Conceitos como história, fontes históricas e tempo, no li-
vro didático Conexões com a História, acabam sendo definidos e
pensados de forma generalista e com correntes historiográficas
que se entrecruzam e se confundem em um mesmo texto, re-
sultando em pensar que faz se necessário que o professor, en-
quanto mediador de conhecimento deve deixar claro para os
alunos que o livro didático corresponde a um artefato cultural, e
que a apropriação dos discursos historiográficos construídos ao
longo da história pode ser favorável à pluralidade de matrizes
69
historiográficas, e que a permanência de algumas matrizes, em
detrimento de outras, depende das condições mercadológicas.
Entendemos que pensar na formação inicial e continuada
do professor de Historia requer também em pensar o livro didá-
tico como objeto de estudo, um momento concreto para viven-
ciar essa temática e discuti-la.
Atualmente, o ensino de história ainda está muito atrela-
do às heranças do século XIX. Assim, refletir sobre o cotidiano
escolar faz-se fundamental para que uma ação (trans)formadora
da consciência histórica pedagógica possa, de fato, acontecer
no processo de formação dos professores de História e, conse-
quentemente, no melhor uso dos livros didáticos nas aulas de
História de inúmeras escolas da Educação Básica.
Nesse contexto, o ensino de história está comprometido,
conforme Cerri (2011), com um tipo de conhecimento histórico
qualitativamente diferente do conhecimento produzido por
especialistas acadêmicos. Segundo Cerri,
A consciência histórica relaciona “ser” (identidade) e “dever” (a-
ção) em uma narrativa significativa que toma os acontecimentos
do passado com o objetivo de dar identidade aos sujeitos a
partir de suas experiências individuais e coletivas e de tornar in-
teligível o seu presente, conferindo uma expectativa futura a es-
sa atividade atual. Portanto, a consciência histórica tem uma
“função prática” de dar identidade aos sujeitos e fornecer à rea-
lidade em que eles vivem uma dimensão temporal, uma orien-
tação que pode guiar a ação, intencionalmente, por meio da
mediação da memória histórica (CERRI, 2011, p. 31).
70
lectuais para compreender a natureza do conhecimento históri-
co científico e da realidade social.
Uma tomada de consciência histórica, na qual se invista
na autonomia do aluno, oferecendo oportunidades para que o
mesmo seja construtor do seu conhecimento, pode vir a contri-
buir para que as várias reflexões que ocorreram e que tem ocor-
rido há décadas acerca da História e do ensino de História se
concretizem de fato em sala de aula.
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72
“EXPANSÃO CAPITALISTA COM O OBJETIVO DE
DOMINAÇÃO”: UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE
IMPERIALISMO NO LIVRO DIDÁTICO
Introdução
Os livros didáticos de história podem ser considerados
ferramentas importantes no ensino básico, atrelados a uma
série de outras ferramentas que auxiliam no processo ensino-
aprendizagem. No entanto, têm se tornado instrumento central
neste processo. Como forma de avaliar esses materiais, o go-
verno federal utiliza o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD),
que é formado por especialistas em cada área de ensino, que
avaliam e elaboram relatório a respeito das coleções que po-
dem ser escolhidas por professores da rede básica de ensino
em todo o país.
Para este trabalho foi feito um levantamento das princi-
pais coleções para o 9º ano do ensino fundamental, escolhidas
de acordo com o valor de aquisição por título e de acordo com
a tiragem das coleções com base no PNLD de 2017. Este levan-
tamento se justifica pelo recorte temático deste trabalho - o
imperialismo – que aparece em alguns capítulos da série anteri-
ormente citada.
A partir do gráfico abaixo apresentado, pode-se constatar
que a coleção História, sociedade & cidadania 1 (2015), de auto-
1
O material em análise é utilizado em diversas escolas da capital do Maranhão
a exemplo da Unidade de Educacao Basica Ensino Fundamental Justo Jansen
(UEBEF) localizada na Rua Candido Ribeiro, 336, região central de São Luis.
73
ria de Alfredo Boulos Júnior2, lidera o ranking com 730.539 títu-
los distribuídos, seguido da coleção Projeto Araribá – história
com 388.596 títulos. Assim, este trabalho tem por objetivo prin-
cipal analisar o conceito de imperialismo presente no livro didá-
tico com maior distribuição de acordo com os números apre-
sentados no gráfico anterior, isto é, a coleção História, sociedade
& cidadania em sua última edição até a publicação dos dados
do PNLD 2017, ou seja, a edição de 2015.
2
Doutor em educação (área de concentração: História da educação) pela Ponti-
fícia Universidade Católica de São Paulo; Mestre em Ciências (área de concen-
tração: História Social) pela Universidade de São Paulo.
74
como ponto de inflexão que reorganizou as relações econômi-
cas em níveis internacionais pela consolidação da hegemonia
norte-americana.
Com base neste recorte temporal, será analisado, então,
o primeiro capítulo do livro História, sociedade & cidadania. A
escolha pelo capítulo se justifica por ser o recorte temporal da
análise mais extensa dos teóricos do marxismo sobre o imperia-
lismo do início do século (1870-1924).
O presente trabalho pretende sustentar a hipótese central
de que o objeto em análise não apresenta uma abordagem
satisfatória no que tange à utilização do conceito de imperia-
lismo, de modo que acaba por naturalizar diversos aspectos
deste amplo conceito. Para sustentar a análise que se pretende
fazer neste estudo, tem-se como arcabouço teórico o marxismo
com foco nas obras de Lenin, Rosa Luxemburgo, Bukharin e
Hilferding. Não se pretende neste trabalho sustentar a ideia de
inserção destes autores em materiais didáticos do ensino bási-
co, mas fazer um debate que pretende apontar as possibilida-
des de abordagem deste conceito para que uma mediação
didática3 entre o saber acadêmico e o saber escolar possa se
efetivar.
3
Este trabalho se configura alinhado à perspectiva de Lopes (1997) quando a
autora afirma que o termo transposição didática, elaborado por Chevallard (s/d),
nos remete a uma aplicação no saber escolar do conhecimento produzido na
academia, a uma reprodução deste conhecimento, sendo o professor do ensino
escolar mera ferramenta de reprodução deste conhecimento. Por outro lado, o
conceito de mediação didática nos reporta a pensar em um trajeto em que a
metodologia deve ser elaborada e aplicada de acordo com uma série de ques-
tões existentes no saber escolar que são díspares das questões que permeiam o
universo acadêmico e que, assim, requer um movimento dialético em sua apli-
cação, ou seja, “um processo de constituição de uma realidade através de medi-
ações contraditórias, de relações complexas, não imediatas, com um profundo
sentido de dialogia” (LOPES, 1997, p. 106).
75
Análise estrutural do objeto
O autor inicia o livro didático em análise com o capítulo:
industrialização e imperialismo (capítulo 1) inserido na unidade
01, intitulada “Eleições: passado e presente”. O livro está organi-
zado por uma abertura da unidade em que o autor traz o que
considera como tema central, no caso desta unidade, as elei-
ções. Acredita-se que o tema é considerado central pela abor-
dagem dos capítulos que tratam da Primeira República no Bra-
sil. No entanto, o capítulo que será analisado neste trabalho não
se insere de forma direta a essa temática. Portanto, ao contrário
do tema utilizado pelo autor, acredita-se que o próprio imperia-
lismo poderia ser tema da unidade haja vista que três dos cinco
capítulos tem o imperialismo como conceito central4.
4
Capítulos da unidade 1: capítulo 1: industrialização e imperialismo; capítulo 2:
A Primeira Guerra Mundial; capítulo 3: A Revolução Russa; capítulo 4: A Primeira
República: dominação e; capítulo 5: Primeira República: resistência.
76
Segundo parte introdutória do livro, na abertura de uni-
dade “são apresentados, por meio de imagens e textos, os te-
mas que serão trabalhados” (BOULOS JÚNIOR, 2015), no entan-
to, somente um dos temas é trabalhado nesta abertura, as elei-
ções. É importante destacar que as imagens que constam na
abertura são utilizadas somente como ilustração ao tema abor-
dado, mas utilizam grande espaço nas duas páginas que são
destinadas a abertura, conforme imagens acima.
No texto central da abertura a única referência às ima-
gens é feita em um único parágrafo:
O texto e as imagens desta dupla página referem-se às eleições
atuais. Na página anterior, veja imagens do voto secreto; um jo-
vem de 16 anos e um idoso indo às urnas; a urna eletrônica. En-
fim, todas essas conquistas são relativamente recentes e fazem
parte da democracia brasileira. Já a sujeira nas ruas resultante
de propaganda política em época de eleições (veja na fotografia
acima) é um problema a ser resolvido por essa democracia
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 11).
77
Imagem 3 – Abertura do capítulo 1
79
A consciência histórica serve como um elemento de orientação
chave, dando à vida prática um marco e uma matriz temporais,
uma concepção do "curso do tempo" que flui através dos as-
suntos mundanos da vida diária. Essa concepção funciona como
um elemento nas intenções que guiam a atividade humana,
"nosso curso de ação". A consciência histórica evoca o passado
como um espelho da experiência na qual se reflete a vida pre-
sente, e suas características temporais são, do mesmo modo,
reveladas (RÜSEN, 1992, p. 5).
80
Neste cenário de educação “potenciadora” os professores
são componente fundamental, pois são responsáveis pela me-
diação didática entre os saberes acadêmico e escolar, além de
serem formadores de sujeitos históricos capazes de intervirem
na realidade que os cerca. Para tanto é preciso lutar por uma
educação humanista e emancipadora e “humanizar o homem é
percebê-lo em sua organização social de produção, mas tam-
bém no conteúdo específico dessa produção” (PINSKY; PINSKY,
2005, p. 21).
Portanto, segundo Pinsky e Pinsky (2005), um ensino de
história mais construtivo deve ter por objetivo: a) demonstrar
que alguns conteúdos possuem atualidade a fim de despertar o
interesse dos alunos; b) preparar os estudantes para análises
conceituais que envolvam contextualização; c) denotar sobre
certos “usos” e “abusos” da história; d) possibilitar que os estu-
dantes reconheçam certos preconceitos e o desenvolvimento
destes e; e) “possibilitar a crítica a dogmatismos e ‘verdades’
absolutas com base no reconhecimento da historicidade de
situações e formas de pensamento” (PINSKY; PINSKY, 2005, p.
25-26).
De volta à estrutura do material em análise, podem-se
destacar boxes intitulados da seguinte maneira: a) para saber
mais; b) para refletir; c) atividades – retomando; d) integrando
com...; e) leitura e escrita em história; f) cruzando fontes e; g)
você cidadão. De acordo com parte introdutória do livro o Box
para saber mais é um “quadro que apresenta informações ex-
tras sobre os conteúdos dos capítulos trabalhados” (BOULOS
JÚNIOR, 2015, p. 4); a seção para refletir “traz textos estimulan-
tes sobre os conteúdos estudados e propõe a discussão sobre
esses temas” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 4) com questões que
podem ser caracterizadas como “desafios propostos ao longo
do texto para discutir imagens, gráficos, tabelas e textos”
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 4).
81
As atividades – retomando trazem “questões sobre os
conteúdos dos capítulos para serem realizadas individualmente
ou em grupo. Uma forma de rever aquilo que foi estudado”
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 5). No que tange à seção leitura e
escrita em história, esta pode ser considerada, segundo o autor,
uma “seção que permite o estudo de imagens relacionadas aos
temas dos capítulos. Seção que trabalha a leitura e interpreta-
ção de diferentes gêneros textuais” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p.
5).
Ainda no âmbito de análises propriamente históricas,
tem-se a seção cruzando fontes, que segundo Boulos, possibili-
tará ao alunado “se aproximar do trabalho de um historiador,
por meio da análise e da comparação de diferentes fontes”
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 5). Na seção integrando com a histó-
ria “a História e outras áreas do conhecimento se encontram, o
que permite ampliar ou complementar o que foi visto no capí-
tulo” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 5). E, por fim, a seção você ci-
dadão “permite a reflexão sobre temas como meio ambiente,
ética e solidariedade. As atividades visam estimular e preparar o
aluno para o exercício da cidadania” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p.
5). De acordo com o Plano Nacional do Livro Didático – PNLD
2017, no que diz respeito ao componente curricular de História,
a estrutura do material
Apresenta uma abordagem crítica com propostas de problema-
tizações para o trabalho com os conteúdos da História, de for-
ma que a sala de aula seja espaço para debates que aliam o co-
nhecimento histórico, a memória coletiva e as opiniões pessoais
dos alunos. Efetiva-se, na proposta, a compreensão da História
como uma ciência em permanente construção, comprometida
com o conhecimento do passado para a ação consciente dos
sujeitos no tempo presente. Os diversos textos – argumentati-
vos, poéticos, crônicas – e ilustrações – cartazes, charges, pintu-
ras, quadrinhos e fotografias – são trabalhados como fontes his-
82
tóricas em atividades que permitem a apropriação do conheci-
mento histórico (BRASIL, 2016, p. 107-108).
83
presentes no livro, no entanto, não dão um direcionamento ao
professor de como explorar cada seção didática contendo ape-
nas informações descritivas, exceto por tópico que apresenta
roteiro para leitura e análise de documentos escritos além de
possibilidades de usos da mídia como ferramentas a serem
utilizadas no processo de ensino-aprendizagem.
O conceito de Imperialismo
Antes de adentrar na análise textual do material foi feita
uma breve análise da bibliografia que consta no objeto em aná-
lise. Percebeu-se que o autor não utiliza como referência ne-
nhuma obra cuja temática central seja o imperialismo. O mais
próximo deste tema que o autor chega é quando se utiliza de
obras cuja temática é a globalização. Não se crê que globaliza-
ção seja sinônimo de imperialismo, no entanto, este conceito
muitas vezes é tomado como uma espécie de eufemismo teóri-
5
co à bruta e cruel dominação imperialista.
Das 61 obras que constam na bibliografia do livro didáti-
co em análise, apenas 14 apresentaram relação direta ou indire-
ta com o tema do imperialismo contemporâneo, tendo como
destaque as obras cuja temática, como mencionado anterior-
mente, é a globalização. 6
5
Tomando de empréstimo dos estudos de linguagem da língua portuguesa o
termo eufemismo como “Toda palavra, enunciado ou maneira delicada ou
suavizada que se usa para expressar certos fatos, ideias e verdades, em substitu-
ição a uma forma mais direta, menos agradável e menos polida e cuja sinceri-
dade ou crueza poderia chocar ou agredir alguém” (http://michaelis.uol.com.br)
acredita-se, portanto, que o termo globalização seja utilizado com o intuito de
obnubilar a real dominação capitalista que tem como base a exploração dos
trabalhadores e a dominação imperialista travestida pelo termo “sociedade do
conhecimento”, “sociedade pós-moderna” ou mesmo pelo termo “pós-
verdade”.
6
As obras são: BRIGAÇÂO, Clóvis; RODRIGUES, Gilberto. Globalização a olho
nu: o mundo conectado. São Paulo: Moderna, 1998; CARVALHO, Bernardo de
Andrade. A globalização em cheque: incertezas para o século XXI. São Paulo:
Atual, 2000; MAGNOLI, Demétrio. Globalização: Estado nacional e espaço
84
Este levantamento nos possibilita analisar textualmente o
objeto em investigação, pois como orientação metodológica
deste trabalho considera-se fundamental o cruzamento entre as
referências e a construção textual do autor de modo que possa
ser percebido o eufemismo teórico utilizado quando trata do
imperialismo do início do século XX.
No tópico que o autor intitula como “O Imperialismo”,
destaca como marco cronológico o ano de 1870 denotando
que este é um momento de expansão capitalista “com o objeti-
vo de dominação” que é chamado de “imperialismo ou neoco-
lonialismo” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 15).
Uma confusão (proposital ou não) feita por Boulos é evi-
dente: o trato dado ao termo imperialismo como sinônimo de
neocolonialismo. É sabido que o neocolonialismo é uma das
características do imperialismo recente. No entanto, não se
limita a ela. Esta é uma redução drástica da complexa teia de
relações que envolvem o imperialismo contemporâneo. Esta
redução excessiva pode levar o alunado a perceber o imperia-
lismo como um movimento de exploração de uma nação sobre
a outra, sem perceber características de relações intrínsecas,
como a exploração de trabalhadores e a atuação da fração fi-
nanceira, além do próprio processo de acumulação de capital
que culmina no capital de tipo monopolista já no final do século
XIX.
Bukharin aponta a existência de uma divisão internacional
do trabalho que “está expressa no intercâmbio internacional”
(BUKHARIN, 1986, p. 21) que determina o lugar de cada país na
esfera da economia mundial. Esta hipótese não elimina, no en-
tanto, a interdependência existente entre estes países, pelo
mundial. São Paulo: Moderna, 1997; SANTOS, Milton. Por uma outra globali-
zação: do pensamento único à consciência universal. 5. Ed. Rio de Janeiro:
Record, 2001; SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alter-
nativas. São Paulo: Contexto, 2000. VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio
de Janeiro: Record, 1997.
85
contrário, reforça o caráter de função específica de cada país na
lógica da divisão internacional do trabalho. Na perspectiva do
teórico, a economia mundial seria, então, um “sistema de rela-
ções de produção e de relações correspondentes de troca, que
abarcam o mundo em sua totalidade” (BUKHARIN, 1986, p. 24).
Nesse processo de internacionalização das relações eco-
nômicas materializadas no imperialismo, como forma de expan-
são das relações econômicas, a força de trabalho ganha desta-
que no processo chamado de neocolonialismo, de forma tal
que uma grande massa de trabalhadores é deslocada dos eixos
centrais de produção à nova “periferia” do mundo: os países
dominados.
Esse deslocamento de trabalhadores é considerado como
uma circulação da força de trabalho de forma a reduzir o exérci-
to de reserva concentrado nos grandes centros econômicos,
portanto, segundo Bukharin, “a circulação da força de trabalho
tem sua correspondência na circulação do capital, que constitui
o outro polo (...) do regime de produção capitalista”
(BUKHARIN, 1986, p. 37), constituindo-se, assim, como uma “lei
de nivelamento internacional”.
Neste processo de internacionalização teríamos não so-
mente o capital externo em ação na organização da política
econômica imperialista, mas um consórcio entre diversas for-
mas de capital que culminariam no processo de exportação de
capitais: a) empréstimos governamentais e municipais; b) o
sistema de “participação”; c) financiamento de empresas es-
trangeiras; d) a abertura de créditos que os grandes bancos de
um país concedem aos bancos de outros países e; e) compra de
ações estrangeiras (BUKHARIN, 1986).
Através destas formas de ação da política econômica im-
perialista percebe-se que no processo de internacionalização
não temos somente a organização do capital transnacional, mas
a atuação de capital misto - e mesmo nacional - no emaranha-
do de consórcios que se formam e que culminará na organiza-
86
ção dos monopólios que se constituirão base sólida da concen-
tração de capital. Portanto,
O desenvolvimento do processo da economia mundial, apoiado
no crescimento das forças produtivas, tem, assim, como resul-
tado não apenas o estreitamento das relações de produção en-
tre os diferentes países, a multiplicação e a consolidação das re-
lações capitalistas em geral, mas ainda o surgimento de novas
formações econômicas, novas formas econômicas, desconheci-
das nas épocas precedentes do desenvolvimento capitalista. (...)
o crescimento das forças produtivas do capitalismo mundial a-
carreta, cada vez mais imperiosamente, a necessidade de acor-
dos de âmbito internacional entre os grupos capitalistas nacio-
nais desde suas formas mais elementares até a forma centrali-
zada do truste internacional (BUKHARIN, 1986, p. 46).
7
As traduções clássicas da obra de Marx atribuem a nomenclatura mais valia ao
momento mencionado no texto principal dessa nota, no entanto, traduções
mais recentes - capitaneadas pela editora Boitempo, sob a supervisão de Mario
Duayer - tem atribuído a nomenclatura mais valor por ser esse momento de
geração de lucro em que o valor de uso da mercadoria se subsume ao valor de
troca aparente e que, portanto, dita as relações entre capital e trabalho na
lógica da geração do lucro.
89
É nítido que o capital-dinheiro, como valor equivalente
universal no processo de troca, é fundamental no processo de
circulação global, isto é, no momento de sua atuação o valor de
uso das mercadorias se secundariza e o seu valor de troca se
deixa transparecer em seu equivalente universal, a forma di-
nheiro do valor.
Neste processo, a forma dinheiro é importante no mo-
mento de reprodução, de modo que o trabalho não pago acu-
mulado se sobressai na forma de novos investimentos no pro-
cesso de produção de novas mercadorias a circularem. Essa
inserção de capital em sua forma dinheiro no processo de re-
produção se concretiza ganhando as formas de capital constan-
te e de capital variável, garantindo os meios de produção ne-
cessários a um novo ciclo de reprodução do capital baseado no
acúmulo de trabalho não pago.
Depois dos tópicos mencionados anteriormente o autor
destaca o “imperialismo na África” e a “Partilha da Ásia”. A partir
de então Boulos Júnior subdivide os tópicos de acordo com a
ação das potências imperialistas na África e na Ásia (“Franceses
onde hoje é a Argélia”; “Belgas na bacia do Rio Congo”; “Britâni-
cos na África”; “Britânicos na Índia”; “Britânicos na China”).
No início do tópico “O Imperialismo na África” o ator des-
taca que
A partir de 1880, ocorre uma aceleração da corrida imperialista
rumo à Ásia, África e América. As potências da época avançam
em busca de áreas ricas em matéria-prima, como ferro, cobre e
carvão, necessários à indústria. Lançam-se sobre áreas onde
pudessem investir, construir ferrovias e fornecer empréstimos a
juros altos; essas potências partiam das feitorias do litoral para
controlar terras e gentes no interior da África. Por meio de ata-
ques e da pressão diplomática, as terras conquistadas são trans-
formadas em colônias, protetorados, domínios ou áreas de in-
fluência (BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 17).
90
O trecho destacado é o único momento de análise mais
sucinta da ação do bloco europeu na região africana de modo
que os demais trechos são relatos factuais da ação dos países
imperialistas na região. No entanto, acredita-se que qualquer
esforço de uma construção teórica nos livros didáticos é fun-
damental e o trecho supracitado apresenta minimamente esta
análise sem tanto eufemismo teórico.
Como divisão entre as análises da atuação das potências
imperialistas na áfrica e na Ásia há uma página destinada à “re-
sistência africana”, momento em que o autor apresenta a reação
dos africanos “à dominação européia de diversas formas, inclu-
sive por meio de inúmeras revoltas” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p.
20) que tem como principais motivos a) a perda de soberania
por parte dos africanos; b) a exploração econômica e; c) a impo-
sição de hábitos ou modos de administração dos europeus
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p. 20).
Neste momento se torna evidente o posicionamento do
autor no que tange à inversão da análise, apresentando este
uma lista de motivos que transforma a luta dos habitantes da
região em luta pelo capital, isto é, os motivos anteriormente
citados representam um embate entre as potências imperialis-
tas e diversas regiões da África como uma luta em prol da he-
gemonia econômica.
Ao denotar que a “exploração econômica” é um dos mo-
tivos para as revoltas o autor deixa transparecer uma análise
que sobrepõe esta exploração à análise da exploração da popu-
lação local, isto é, uma disputa econômica obscurece a explora-
ção de trabalhadores africanos.
Esta época de dominação imperialista sob a hegemonia
do capital financeiro, de acordo com Bukharin (1986), é época
de “organismos econômicos altamente desenvolvidos e, em
consequência, certa amplitude e certa intensidade de relações
internacionais, e a existência de uma economia mundial desen-
volvida” (BUKHARIN, 1986, p. 107).
91
Este é o momento da divisão do mundo entre as potên-
cias imperialistas, momento de expropriação cada vez maior da
força de trabalho em busca da ampliação da taxa de lucro por
meio do mais valor, momento de dominação constante por
meio do capital financeiro, das guerras, do neocolonialismo.
Segundo Bukharin (1986),
A anexação imperialista constitui, pois, um caso particular da
tendência geral capitalista à concentração do capital: uma cen-
tralização cuja amplitude deve corresponder ao nível da concor-
rência dos trustes capitalistas nacionais. Essa luta tem por arena
a economia mundial; e por limites econômicos e políticos o
truste universal, o Estado mundial único, subordinado ao capital
financeiro dos vencedores que tudo assimilaram – ideal que ja-
mais haviam sonhado os mais audaciosos espíritos das épocas
passadas (BUKHARIN, 1986, p. 112).
Considerações Finais
Foi visto, assim, que tratar de conceitos econômicos em
livros didáticos requer uma atenção minuciosa, sobretudo, no
que tange a formas do Estado capitalista que possuem dinâmi-
cas político-sociais além da própria dinâmica econômica e que,
portanto, precisam ser esmiuçadas através de estratégias de
92
mediação da linguagem de forma que não se caia em eufemis-
mos teóricos como o percebido no material em análise.
Não se teve por objetivo a inserção da discussão acadê-
mica no material didático, mas apontar que – a partir da análise
da bibliografia utilizada pelo autor – há uma abordagem de
extrema superficialidade e equívocos interpretativos.
Além disso, percebe-se também, que a abordagem con-
ceitual traz a relação causa- consequência como matriz explica-
tiva da dinâmica do imperialismo do fim do século XIX e início
do século XX sem levar em consideração que a abordagem
conceitual requer uma atenção à teoria e metodologia que se
deve aplicar para que não se caia em equívocos interpretativos
durante as pesquisas históricas sobre as quais se pretende de-
bruçar. A análise da utilização de conceitos necessita de um
escopo metodológico que perpassa por diversas áreas das ciên-
cias (filosofia, história, linguística, entre outras) reverberando,
assim, em um estudo com caráter interdisciplinar e transdisci-
plinar.
Assim como o uso dos conceitos requer uma atenção à
metodologia e teoria, a história econômica também requer a
utilização de metodologia própria de análise que sustente estu-
dos históricos, não com o intuito de se chegar a uma verdade,
mas com o objetivo de se aproximar de uma crítica coerente em
torno de determinado tema que se pretende analisar.
Referências
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conceitos básicos. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala
de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: contexto,
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93
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professores e o cotidiano em aulas de história. Cad. Cedes,
Campinas, vol. 25, n. 67, p. 297-308, set./dez. 2005.
94
A LINGUAGEM LITERÁRIA NO FAZER HISTÓRICO:
OS LIVROS DIDÁTICOS E A HISTORIOGRAFIA
Introdução
A Constituição Federal de 1988 preceituou a educação
como direito social público subjetivo, dando um arcabouço
normativo notório em termos de garantia positiva. Tal direito,
passa a ser um dos sustentáculos do avanço jurídico e tecno-
legal em matéria de proteção aos direitos sociais. Efetivamente,
está creditado entre os arts 205 e 214 do texto constitucional e
a partir de então ganha larga disposição com a Lei de Diretrizes
e Bases (Lei 9394/96), demonstrando a imensa importância da
instrução nos ambientes escolares.
O conhecimento sempre foi polo nas construções sociais,
e, o ensino respeitado como instrumento de garantias e fazeres
ideológicos. A ideia de Ensino supõe a reconstrução social cujos
participantes assumam um compromisso histórico na elabora-
ção das respostas às exigências das comunidades. Portanto,
compreender a dinâmica nas escolas é fundamental para se
articular a educação como direito social público objetivo. O
Ensino é tarefa basilar, como expõe a própria CF/88. E, nossa
sociedade o vê, como regra, através dos livros que não precisa
ser tarefa restrita e isolada.
Acompanhando o raciocínio de que a Educação é um
preceito constitucional que deve ser aplicado de forma respon-
sável e de qualidade, é que as Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Básica - orientações pedagógicas em consonância
95
à legislação - motivam uma formação escolar plena para o exer-
cício da cidadania, dos direitos sociais, econômicos, civis e
políticos para alunos em geral (dentro e fora da faixa etária das
séries de ensino). Os livros são instrumentos pedagógicos es-
senciais nesse processo por serem mais acessíveis e possuírem
um discurso de poder.
O Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) busca
constantes aprimoramentos na avaliação e seleção de obras
didáticas disponibilizadas às escolas públicas do país. O PNLD,
consolidado pelo Decreto nº 7.084 de 27/01/2010, é um
programa de Estado que distribui às escolas públicas do Brasil
livros didáticos, dicionários e outros materiais de apoio à prática
educativa, de forma sistemática, regular e gratuita. Esse subsídio
ao trabalho pedagógico dos professores, por meio da
distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da
educação básica, é executado em ciclos trienais alternados.
Assim, a cada ano o MEC adquire e distribui livros para todos os
alunos de um segmento, que pode ser: anos iniciais do ensino
fundamental, anos finais do ensino fundamental ou ensino mé-
dio.
A Coordenação Geral de Materiais Didáticos (COGEAM) é
responsável pela avaliação e seleção das obras inscritas no
Programa Nacional do Didático (PNLD) e no Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE), bem como pela elaboração do Guia
dos Livros Didáticos voltado a auxiliar o professor na escolha
dos livros didáticos. Com relação à compra e à distribuição dos
materiais didáticos e literários selecionados pelo Ministério da
Educação no âmbito da Secretaria de Educação Básica (SEB) são
de responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), cabendo a este órgão também a logística do
provimento e do remanejamento dos materiais didáticos para
todas as escolas públicas do país cadastradas no censo escolar.
O PNLD também atende aos alunos que são público-alvo da
educação especial. São distribuídas obras didáticas em Braille
96
de língua portuguesa, matemática, ciências, história, geografia e
dicionários.
Ao que assente nosso objeto em estudo, o Ensino de His-
tória, o PNLD tem o compromisso de apresentar a trajetória da
História como disciplina que revela diferentes recortes e interes-
ses.
Ainda que aprendamos na universidade que a ciência da Histó-
ria é o estudo das sociedades humanas no tempo e, por isso
mesmo, aceitemos que ela abarque experiências dos âmbitos
político, econômico, social e cultural, em qualquer tempo ou lu-
gar do planeta, é necessário também lembrar que o trabalho de
escrever e estudar a História conserva obrigatoriamente um e-
xercício de seleção. E não nos enganemos: uma seleção interes-
sada (BRASIL, MEC, PNLD, 2015, p. 15).
98
Concebendo uma “Nova” História
Pensando a História hoje como resultado da combinação
de sujeitos (agentes), tempo e espaço (físico e social) “lidos” por
suas perspectivas sociais, políticas, econômicas e culturais, não
podemos pensar num ensino da disciplina sem contemplar a
multipercepção dessas relações pelo aluno. A educação deve
ser meio de fazer com que o pensamento integracionista seja
mais visível no ensino histórico. O PNLD/2015 menciona que o
aluno deve pensar historicamente, fazendo com que as experi-
ências históricas das sociedades permitam que ele entenda as
experiências atuais, assim como o trabalho em sala de aula deve
também apoderar-se de outras disciplinas/componentes curri-
culares/áreas do conhecimento. Logo, a aula de História deve
superar em muito o caráter monovalente e apropriar-se de mo-
dalidades mais duais. O que seria pensar historicamente, pro-
priamente dito? Como esse pensar interfere diretamente na sala
de aula? Como reconstruir com o aluno as experiências históri-
cas? Essas indagações fazem com que o ensino de História ga-
nhe conotações muito mais articuladas e que se aproximem
cada vez mais do que foi proposto pela historiografia da Escola
dos Annales?
Podemos dizer que os caminhos percorridos pelo ensino
de História são diversos, mas nosso estudo defende, assim co-
mo Estevão Martins (1994), quatro caminhos:
o da consciência histórica em geral; o da historiografia como
produto científico; o da formação dos profissionais que produ-
zem essa historiografia e seus subprodutos e o da prática pro-
fissional dos que transmitem conhecimento histórico no âmbito
do sistema institucionalizado de ensino (MARTINS, 1994, p. 52).
99
percebemos como seres capazes de entender que nossa convi-
vência no tempo presente muito se relaciona com as inferências
que conseguimos fazer com as demais gerações. Entender-se
historicamente não nos localiza em um passado, mas sobrema-
neira num presente que construiu-se de memórias no intuito de
se articular como futuro, ou seja, pensar em história apenas
como “algo que já passou” é inexpressivo para o entendimento
das sociedades.
b) a historiografia como produto científico se envolve com a
capacidade crítica e analítica que temos em perceber que outras
fontes, cujo discurso não seja necessariamente o documental,
são passíveis de nos revelar a História, pois os enredos carre-
gam consigo memórias. As fontes históricas vão muito além dos
documentos oficiais guardados ao longo dos anos. A historici-
dade está na constituição de tudo que a humanidade interferiu
na criação ou mesmo recriação, ou seja, as “histórias contadas”
podem ser lidas em diversos instrumentos, verbais ou não.
c) a formação dos profissionais que produzem historiografia e
seus subprodutos (exemplos: arquivos, museus, exposições per-
manentes, exposições temporárias, filmes, documentários, tex-
tos de divulgação, livros e manuais didáticos) está intimamente
relacionada à capacidade do “historiador" em perceber as ou-
tras linguagens dentro de um método, este como orientador e
facilitador na descoberta da História. A autoridade científica de
profissionais faz de seus objetos verdadeiras fontes de estudo
histórico. A pesquisa e a academia se completam. Não podem
ser vistas de forma isolada porque, ao se estudar História, a
historiografia representa uma parcela significativa de sua com-
preensão, pois permite o livre exercício da consciência histórica
do interlocutor.
d) a prática profissional dos que transmitem conhecimento histó-
rico no âmbito do sistema institucionalizado de ensino que re-
presenta os professores de História no sistema de ensino. Eis a
ponta da cadeia social, pois são os espaços escolares os maio-
100
res propagadores “do que é história”. Aos professores, cabe o
legado de conduzir o aluno, de forma a se perceber como inter-
locutor no processo de constituição de consciência histórica.
A Historiografia faz parte de um processo epistemológico
e espelha a produção intelectual de um certo momento
passado. Nela estão os anseios de uma época, as verdades que
a dinâmica social das ideias desfigurará com o passar do tempo.
Ela é um fragmento para compreendermos – numa
preocupação de totalidade – esse passado. Portanto, a
historiografia, de produção intelectual, passa a ser vestígio de
um determinado acontecimento para quem a analise; o
conhecimento histórico observado a partir de uma perspectiva
de historicidade em processo torna-se objeto de análise ou
história-processo no plano do vestígio escrito.
Essa consciência de uma “nova história” dos anos 1980
vai além da própria História. A educação sofre profundas
discussões e alterações acerca dos programas e propostas
metodológicas. Houve uma mudança significativa no cenário
político brasileiro, saindo de um regime militar e adentrando
em um processo de redemocratização que motivou uma
reflexão político-ideológica quanto à estrutura curricular e
metodológica, sem retroceder à visão tecnicista. Era hora de
intercambiar os saberes produzidos na academia com os do
ambiente escolar. A “história tradicional” precisava ser superada,
uma vez que era instrumento de divulgação do militarismo.
Vivia-se o cenário de que o ensino de História deveria formar
cidadãos, ao mesmo tempo que os profissionais de História
deveriam impor uma narrativa pré-selecionada (currículo).
Ainda, aprendia-se muito fora da escola. O desafio era articular
esses três polos. Os conceitos de cultura histórica, consciência
histórica e educação histórica precisam ser remodelados. Com a
chegada da nova era, o ensino de história deveria preocupar-se
em superar esse paradoxo, contribuindo para uma reflexão
101
acerca do que se ensina no interior das salas de aula e os usos
sociais do passado para além delas.
Inspirados no pensamento de Rüsen, alguns autores
trataram do entendimento desses conceitos. Le Goff (2003)
motiva o conceito de cultura histórica pelo entendimento do
que é história e sua relação com a memória. “O discurso
historiográfico é portador de uma das formas de produção do
passado, e a escrita da história está subentendida às maneiras
de entender e de se relacionar com o tempo em determinada
época”. Valoriza-se o conhecimento histórico tanto pelo
trabalho da ciência histórica como pelas narrativas produzidas
por diferentes grupos e sujeitos sociais. Hartog (2011) analisa as
normas e os princípios historiográficos pela consciência que
uma comunidade tem de si, indo além da análise e
compreensão do passado, entendimento fortemente
influenciado pelo pensamento de Koselleck (2006). Ele
preconiza que “horizonte de expectativa e campo de
experiência são duas categorias relevantes, uma vez que não se
encontram apenas na execução concreta da história, mas
fornecem as determinações formais que permitem que o nosso
conhecimento histórico decifre essa execução” (KOSELLECK,
2006, p. 311). Esses autores comungam que a narrativa histórica
representa o discurso de uma sociedade de uma época e suas
funções sociais. Logo, a historiografia é uma prática política que
resgata conceitos de tempo, linguagem e relações sociais.
Mais genericamente um texto histórico (quer dizer, uma nova
interpretação, o exercício de métodos novos, a elaboração de
outras pertinências, um deslocamento da definição e do uso do
documento, um modo de organização característico, etc.)
enuncia uma operação que se situa num conjunto de práticas.
Este aspecto é o primeiro. É o essencial numa pesquisa
científica. Um estudo particular (...) Cada resultado individual se
inscreve numa rede cujos elementos dependem estritamente
102
um dos outros, e cuja combinação dinâmica forma a história
num dado momento (DE CERTEAU, 2002, p. 72).
103
A Literatura como Fonte Histórica
Compreender, eis a base das relações sociais e seus sujei-
tos. Quer dizer: entender, perceber, alcançar, depreender, inferir,
saber, incluir, abranger; a busca dinâmica e multifacetada sobre
algo que deve ser minuciosamente explorado e analisado sobre
várias vertentes. E quando falamos de história, não deve ser
diferente. Ela deve abranger o máximo de informações sobre o
objeto em estudo, para que tenhamos uma dimensão mais
aproximada dos contextos que vivemos e/ou vivíamos. O ser
humano por si só é alguém politizado, que sempre esteve no
mundo deixando suas marcas e valores; perceber e entender
esses marcadores ao longo da sua passagem tem ocupado, no
transcorrer das construções sociais, boa parte do estudo cientí-
fico e o da memória humana. Identificar nossas tradições e
construir nossas memórias requer muito a análise do que so-
mos, do que fomos e do que seremos, a fim de projetarmo-nos
como “contadores” de histórias, ou seja, entendermo-nos como
agentes de uma composição historiográfica, que “narra” acon-
tecimentos, que faz percebermo-nos dentro de um grande en-
redo com personagens, ambientes, tempos, espaços, sendo
todos eles oscilantes ao longo da trajetória da humanidade. E
nos posicionarmos para entender esse enredo exige uma postu-
ra crítica e metodológica para elaborarmos conceitos, teorias,
sujeitos e objetos do que virá compor “nossa” história. Entender
as relações humanas vai além de visitar um museu ou ler um
documento que foi escrito por nossos ancestrais.
Durante muito tempo, acreditou-se que estudar História
estava intrinsecamente ligado ao fato de decorar o que foi dito
por registros oficiais. Contudo, em meados do século XX come-
ça a se ensaiar uma nova postura da compreensão do que é
história. A “contação” positivista das histórias com marcos e
personalidades cede para uma historiografia reflexiva que privi-
legia o entendimento do narrado em detrimento de quem o faz,
visto que seus olhos (quem conta geralmente seleciona e trans-
104
creve o que lhe convém) não são capazes de trabalhar os tantos
prismas que a história tem a nos ofertar. Até que ponto o trans-
crito é história? O que pretendem a história e os historiadores?
A história é uma ciência ou uma arte? Como os ensinamentos
históricos estão sendo transmitidos ou reproduzidos? Falar em
estudar História é bem mais abrangente que se pensar um a-
contecimento passado. Começamos por tentar entender as
indagações propostas, sem necessariamente esgotá-las.
Nem tudo que é transcrito “registra a História”, pois os
relatos baseiam-se no prisma do poder de quem escreve e,
geralmente, traduz um momento com seus sujeitos e espaços,
condizentes à perspectiva do escritor; representa uma classe,
uma formação, um anseio, mas não traduz a totalidade do “ob-
jeto”. Por exemplo, ao estudarmos a Independência do Brasil, as
versões são inúmeras. Houve verdadeiramente uma indepen-
dência? O que foi a independência? Quem participou? Quem se
avantajou? Pode-se tê-la como do Brasil ou no Brasil? As trans-
crições dos personagens e marcos que possuímos com certeza
motivam-se de forma segregada, apresentam de forma unilate-
ral a visão do escritor, porque mesmo que a tentativa seja im-
parcial não se pode defender o posicionamento despretensioso
de quem “narra”.
Defendendo o registro “histórico” motivado, então o que
querem os historiadores ao “fazerem” História? Revelar o pas-
sado para entender o presente e projetar o futuro? O certo é
que buscar o passado é pouco, contentar-se com visitar a cro-
nologia histórica em seus marcos e personalidades não respon-
de às dúvidas do presente. Portanto, o que buscamos é
“conhecermo-nos”, ou melhor, “conhecermo-nos no tempo”;
compreender (e não querer julgar) o presente pelo passado e,
correlativamente , compreender o passado pelo presente, como
apregoa Marc Bloch (2001). Na apresentação de sua obra pós-
tuma Apologia da História, a professora Lilia Moritz Schwarcz
(2001) começa com um provérbio árabe: Os homens se parecem
105
mais com sua época do que com seus pais. Tal provérbio encerra
como somos, mesmo que inconscientes, frutos do tempo, espa-
ço e ambiente, o que valoriza uma historiografia reflexiva. En-
tender o passado pelo presente ou vice-versa exige muito mais
que uma sincronia (que um condiciona o outro e, portanto nos
fada ao obscurantismo ou, no mínimo, a certa ignorância) e vale
muito mais a diacronia (que um compreende o outro, porque
condicionar é pouco para o conhecimento das sociedades e da
humanidade). Assim, entender essas variáveis no processo de
reconhecimento histórico desvia o olhar de uma historiografia
positivista - que se apoiava em fatos, personalidades e marca-
dores, proposta até meados do século XX - para uma historio-
grafia problema, onde o método regressivo procurava desven-
dar o passado ao resgatar os temas vividos no presente. Diz que
"a história não era a ciência do passado, também não poderia
ser definida como ciência do homem”.
Entre tantos “nãos”, sobrava, porém, espaço para a conclusão: a
história seria talvez a “ciência dos homens”, ou melhor, dos ho-
mens no tempo”. Não estamos longe da definição de Lucien
Febvre, um especialista no século XVI, o qual, junto com Marc
Bloch, fundou nos idos de 1929 a prestigiosa Escola dos Anna-
les, que teria papel fundamental na constituição de um novo
modelo de historiografia. Segundo Febvre, a “história era filha
de seu tempo”, o que já demonstrava a intenção do grupo de
problematizar o próprio "fazer histórico" e sua capacidade de
observar. Cada época elenca novos temas que, no fundo, falam
mais de suas próprias inquietações e convicções do que de
tempos memoráveis, cuja lógica pode ser descoberta de uma
vez só (SCHWARCZ, 2001, p. 7).
106
Até o século XIX, a história se ocupava em buscar objetos
autênticos que demonstrassem em verdade o passado revivido,
para que soubéssemos localizar tempo, espaço e nomes, o que
chamamos de visão positivista. Contudo, a dinâmica social im-
petrou outro ritmo, e em meados do século XX a história tor-
nou-se mais reflexiva. Certeau (2002) defendia uma teorização
mais de acordo com as possibilidades oferecidas pelas ciências
da informação; precisava substituir a promoção de representa-
ções globais da sociedade para entendermos com maior
riqueza a “história humana”. Valoriza-se agora uma experimen-
tação crítica dos modelos sociológicos, econômicos, psicológi-
cos ou culturais para desvendar as fontes históricas. Para
Chesneaux (1977), estudar ou analisar a história passou a ser
uma procura por estabelecer um diálogo entre o presente e o
passado por meio dos acontecimentos vividos com o registro
historiográfico e as memórias. O registro historiográfico deve
nos permitir uma visão ampla e dinâmica conseguido pela
sintonia das memórias existentes. Cabe a nós entender que a
memória (e aqui valoramos todas as naturezas de memórias) é
fator primordial na construção do saber histórico, já que ela
interage a visão do narrador1 com os registros.
O século XX marcou a necessidade de se perceber a His-
tória numa perspectiva que valorizasse as experiências humanas
e suas relações com o tempo e, segundo Martins (2014) a histo-
riografia buscou dar voz a três vertentes fundamentais da expe-
riência do tempo vivida e refletida pela humanidade: a experi-
ência pessoal do tempo, a reflexão sobre experiência do tempo
na consciência histórica e a crítica da experiência do tempo
refletida e legada por outros.
1
Narrador, aqui, identificamos como aquele que transcreve os acontecimentos
em seus marcos e ícones, no intuito de contar algo que aconteceu de forma a
se tornar uma versão oficialmente aceitável e reconhecível no meio científico e
cultural.
107
Toda pessoa faz História e por ela é feita, e seu marcador tem-
poral é resultado da interação individual e social dos homens. O
ser humano nasce num mundo com História e depara-se com
esse legado, sua interação o educa, o faz tomar consciência de
seu mundo e de sua cultura (MARTINS, 2014, p.52).
2
Por linguagem, tem-se: 1. conjunto das palavras e dos métodos de combiná-
las usado e compreendido por uma comunidade; 2. capacidade de expressão; 3.
meio sistemático de expressão de ideias ou sentimentos com o uso de marcas,
sinais ou gestos convencionados; 4. maneira de expressar-se própria de um
grupo social, profissional, etc; 5. qualquer sistema de símbolos e sinais, código
(HOUAISS, 2015).
“Exposição metódica sobre um assunto; conjunto de enunciados que
3
4
Se é verdade que, de um modo geral, a análise científica contemporânea
pretende reconstruir o objeto a partir de “simulacros" ou de “cenários”, quer
dizer, adquirir, com os modelos relacionais e as linguagens (ou metalinguagens)
que ela produz, o meio de multiplicar ou de transformar sistemas constituídos
(físicos, literários ou biológicos), a história tende a evidenciar os “limites da
significabilidade” destes modelos ou destas linguagens: reencontra, sob esta
forma de limite relativo a modelos, aquilo que ontem aparecia como um
passado relativo a uma epistemologia da origem ou do fim. Sob este aspecto,
ela parece fiel ao propósito fundamental, que sem dúvida continua por definir
(…) (DE CERTEAU, 2002, pag.84).
5
Movimento artístico, político e filosófico de rejeição ao racionalismo e
valorização do indivíduo acontecido na Europa, no final do século XVIII ao
século XIX, e que influenciou as sociedades ocidentais.
109
sam ser classificados e deslocados; a exploração é viabilizada a-
través das diversas operações de que este material é susceptível
(DE CERTEAU, 2002, p. 85).
6
Ao lermos um conto, um poema ou um romance, observamos que os fatos, as
coisas, o tempo e o espaço se assemelham aos fatos, às coisas, ao tempo e ao
espaço que podemos reconhecer no mundo real que nos cerca. Isso porque a
literatura procura retratar o homem e seu mundo, ou seja, seu ambiente, suas
alegrias, emoções, angústias e aspirações (MAIA, 2003, pág. 75).
110
Ou seja, o que se pretende é o equilíbrio, para que não
seja deturpada. Esse foi um ganho trazido pela Escola dos An-
nales, já no século XX, pois, se percebermos o registro histórico,
sempre esteve muito comprometida com o discurso de grupos
e/ou indivíduos que trataram de registrar suas posturas, anseios
e virtudes, ou seja, observou-se que ao longo dos tempos o
registro partia da necessidade de corroborar discursos, e as
fontes históricas estavam muito próximas dessas “vontades”.
Podemos assim dizer que seria interessante a arte literária e o
conhecimento científico proposto pela história se aliarem. “Re-
novar a história, sim, em particular pelo contato com outras
ciências; nelas imergir, não” (BLOCH, 2001, p 22). Pois um as-
pecto da análise histórica é o do vocabulário. Por ele estudar-
se-ão os sentidos, a semântica histórica, a linguagem do passa-
do e do presente, se recriando para nos alocarmos. O discurso é
o grande aliado nessa empreitada, interpretar as linguagens
torna-se o grande recurso de que o historiador passa a usufruir.
Coloca-se como historiográfico o discurso que “compreende"
seu outro - a crônica, o arquivo, o documento (…) Pelas “cita-
ções”, pelas referências, pelas notas e por todo o aparelho de
remetimentos permanentes a uma linguagem primeira (que Mi-
chelet chamou de crônica), ele se estabelece como saber do ou-
tro. Ele se constrói segundo uma problemática de processo, ou
de citação, ao mesmo tempo capaz de “fazer surgir” uma lin-
guagem referencial que aparece como realidade, e julgá-la a tí-
tulo de um saber. A convocação do material, aliás, obedece à
jurisdição que, na encenação historiográfica, se pronuncia sobre
ele. Também a estratificação do discurso não tem a forma do
“diálogo" ou da “colagem”. Ela combina no singular do saber,
citando os documentos citados. Nesse jogo, a decomposição da
material (pela análise, ou divisão) tem sempre como condição e
limite a unicidade de uma recomposição textual. Assim, a lin-
guagem citada tem por função comprovar o discurso: como re-
ferencial, introduz nele um efeito de real; e por seu esgotamen-
to remete, discretamente, a um lugar de autoridade. Sob este
111
aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à maneira
de uma maquinário que extrai da citação uma verossimilhança
do relato e uma validade do saber. Ela produz credibilidade (DE
CERTEAU, 2002, p. 25).
7
O entendimento do que é letramento vai muito além de decodificar os signos
linguísticos, tem estreita relação do fazer social em que o aluno deve
concatenar saberes. A escola tem por proposta formar um aluno com domínio
da linguagem culta mas também que ele reconheça a diversidade que os
gêneros textuais propiciam.
8
Segundo Kleiman (1996), a concepção interativa é a síntese de dois modelos
explicativos: o ascendente (o leitor processa a compreensão do texto a partir do
entendimento das letras, palavras, frases num processo sequencial e
hierárquico) e o descendente (o leitor utiliza os conhecimentos prévios e
recursos cognitivos para estabelecer antecipações sobre o conteúdo do texto
que é utilizado como um instrumento de verificação). A leitura tem, portanto,
um caráter subjetivo o que permite que existam leituras diferentes de um
mesmo texto quer por leitores distintos ou por um mesmo leitor mas em
contextos diferentes.
114
conceitos estruturantes da História (história, processo histórico,
tempo, sujeitos históricos, trabalho, poder, cultura, memória e
cidadania) necessitam ser internalizados porque no ambiente
escolar a compreensão histórica só se estabelece quando o
aluno consegue fazer as relações do conteúdo proposto com as
implicações que ele possui e seus pré-conceitos. Em outras
palavras, o recurso didático sofre direta influência das memórias
concebidas (as próprias ou as próximas de convívio).
Talvez a grande contribuição desse tipo de fonte na sala
de aula é a oportunidade que o aluno tem de perceber que o
conteúdo não está distante do seu cenário e que suas
individualidades são valoradas na compreensão do que é e para
que serve a história. O aluno pode materializar seu
protagonismo na construção do saber.
9
O livro é resultado de um projeto multidisciplinar, sendo a parte de história
escrita pelos autores Edimar Araujo Silva e José Wagner de Melo.
115
Língua Estrangeira Moderna – Inglês e Artes e são divididas em
duas unidades cada. A seção de História divide suas duas uni-
dades em dois capítulos que se estruturam em seis seções: para
começo de conversa, desvendando o tema, revelando o que a-
prendeu, aprofundando o tema, ampliando o tema, e, e eu com
isso? Essas seções exploram diversas linguagens; se utilizam de
pinturas, esculturas, fotografias, crônicas, notícias, relatos, depo-
imentos, poesias, textos injuntivos, mapas, gráficos, fragmentos
de peças teatrais, charges, roteiros, glossários e tabelas que
parecem travar um diálogo direto com o aluno/leitor.
Consideramos como fonte histórica todo material que
possamos extrair informações de uma ”memória”. É através das
relações entre as diversas fontes históricas que o conhecimento
humano sobre o passado vai sendo aprofundado, e o nosso
aluno precisa perceber isso.
O conhecimento precisa ser construído e não engessado.
A coleção sugere um trabalho com diferentes gêneros textuais e
imagens, contudo, não observamos o uso dessas tantas lingua-
gens; a diversidade de gêneros não acompanha a diversidade
de ideias, parecem que todos foram simetricamente seleciona-
dos para recuperar um único entendimento. O conteúdo é a-
presentado como temas desenvolvidos em tópicos descritos em
textos informativos/instrutivos com a reprodução de imagens
(telas artísticas, fotografias e charges) e pouquíssimos excertos
literários. Essas imagens e excertos, contudo, são pouco explo-
rados ou provocados; parecem apenas compor a título de um
pouco mais de “informação“ ou face de uma atividade/exercício,
mesmo por falta de conhecimento dos gêneros por parte dos
professores que em suas formações acadêmicas não exploram a
dimensão social de textos literários e seu fulcro histórico ou
pelo raso entendimento dos alunos ao tentar explorar um pou-
co mais essa multiplicidade de textos.
Na seção “aprofundando o tema”, por exemplo, traz o
exercício “trabalhando texto com texto” que na unidade primei-
116
ra do volume 3 sobre Cidadania e Cultura apresenta no texto 01
um mapa localizando Portugal na Europa e no texto 02 a pintu-
ra “Cavaleiros” (1460) - Retábulo de São Vicente de Fora, atribu-
ída a Nuno Gonçalves (1450–1471) que apresenta “nobres, sol-
dados, banqueiros, navegadores e clérigos: todas as classes da
nação portuguesa na época das Grandes Navegações” (p. 186-
187) tem como sugestão de atividade: após observar atenta-
mente o mapa e a imagem do Retábulo de São Vicente de Fora,
o que você vê?, o manual do professor traz como resposta:
Portugal! Nos textos literários o exercício também não difere;
sobre a poesia “Eu sou um indivíduo”, de Naomi Drew, (p. 221)
perguntas como: pra você, o que é moral? Traz no manual didá-
tico a resposta certa: “é um conjunto de normas e valores que
regulam o comportamento dos indivíduos na sociedade”, ou
ainda “é preciso ter ética na política”. Na sua opinião, qual o
significado dessa frase? A resposta seria “política tem haver com
poder, e todo poder é uma relação de subordinação gostemos
ou não (…) Veja o manual específico”. O fato de ter um manual
do professor trazendo “as respostas corretas” faz com que as
atividades sejam generalizadas; é dado um tempo para que os
alunos leiam e respondam os exercícios propostos e depois se
faz a leitura em voz alta para a “correção”, impossibilitando em
muito a inferência dos educandos na construção desse saber
mais dinâmico e contextualizado pensado em origem para o
livro.
Acontece que esses livros são verdadeiros manuais do fa-
zer pedagógico e quando trazem as repostas aceitáveis, é natu-
ral que o professor privilegie o discurso único para todos. A
proposta de trabalhar os muitos gêneros está em perfeita sin-
tonia com as ideias trazidas pelas atuais políticas públicas brasi-
leiras; contudo, a articulação de como vem sendo usado esse
recurso, cerceia a riqueza do ensino pelos diferentes gêneros
textuais.
117
O formato dado ao livro privilegia uma relação ensino-
aprendizagem com boa base de formação preliminar, sendo a
distorção a faixa etária. Mas a realidade nessa escola destoa
dessa estruturação, o que temos são alunos semi-analfabetos
com dificuldade na leitura e na escrita e com graves limitações
em interpretações e interpelações nas atividades. A exploração
do gênero literário nas aulas de História exige que alunos e
professores utilizem o entremear do discurso, tentar desvendar
o não dito, o quê a historiografia pode resgatar do passado no
tempo presente para entender o futuro, ou seja, exige um com-
portamento essencialmente ativo que resgate as memórias, os
pré conhecimentos para entender as produções apresentadas.
Considerações Finais
Depois de se perceber a interação das linguagens como
instrumento de estudo da História, que os textos literários são
fontes históricas e o discurso como elemento primeiro da
Historiografia, nossa proposta é que a linguagem literária seja
melhor explorada nas estratégias de ensino pelos professores
do Ensino Fundamental à luz das orientações legais e da obser-
vância do contexto que vivemos; valendo-se de atividades
interdisciplinares e interdiscursivas. Os textos verossímeis per-
mitem que o aluno perceba as multifacetas do fato histórico.
Imagine o aluno ao ler as produções literárias do Trovadorismo
(cantigas líricas e satíricas, as crônicas, as hagiografias, os nobi-
liários e mesmo as novelas de cavalaria) conseguirá perceber "o
discurso da sociedade” em um mesmo assunto por diversos
prismas: o do senhor feudal, o do cronista, o da corte, o do
clero, o das mulheres…
São as interpretações dadas aos textos que nos valem
como instrumento de aprendizagem, pois elas garantem a pos-
sibilidade de desvendarmos em maior clareza o dito, já que elas
relacionam e esmiuçam os textos com quem os fez, quando os
fez e para quem os fez; o exercício da linguagem é decifrável,
118
de acordo com as pretensões históricas e ideológicas do leitor
que só consegue apreender o “dito” que seus olhos permitem.
Quando pensamos nas fontes históricas, as produções humanas
das épocas anteriores só podem ser “recontadas” a partir da
bagagem (conhecimento e interesse) que o analista possui; os
valores ideológicos que situam o leitor e a fonte em determina-
da época e posição muito se ligam às apropriações e seleções
que a linguagem é capaz de fazer. A história, portanto, não
pode ser entendida como cronologia dos fatos e sim como
reconstrução das relações e sentidos que as memórias dos su-
jeitos produzem em determinadas situações; faz valer que as
palavras são dinâmicas e só são válidas se consideradas pela
historicidade que carregam e pela língua que materializam, uma
vez que elas sempre tentam dizer algo na esfera do político
(recontam, parafraseiam, situam algo num plano arreigado de
dimensões) e do simbólico (as muitas possibilibidades que algo
tem a nos dizer). Os textos literários representam muito bem
esse exercício.
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121
122
O ENSINO DA HISTÓRIA
SOBRE
O QUE "VEM DE FORA"
CRISTIANISMOS NA ANTIGUIDADE: UMA
REFLEXÃO SOBRE SUA ESCRITA NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
Introdução
Os estudos sobre a religião cristã na antiguidade no âm-
bito dos livros didáticos (Séc. I ao IV), e, portanto, dos espaços
educacionais, requer num primeiro momento lançar mão de
uma discussão sobre os seus principais aspectos formativos no
mundo antigo a fim de possibilitar um maior conhecimento
sobre a mesma nestes espaços que, ano após ano, tem ganha-
do cada vez mais importância nos lugares de ensino. Desta
feita, ao historicizá-la, procuramos abordá-la como um movi-
mento cultural entendido dentro do período proposto para esta
análise.
Quando falamos de Cristianismo, nos remetemos irreme-
diavelmente às experiências religiosas vivenciadas por indiví-
duos que, em maior ou em menor grau, situam os seus pensa-
mentos e ações na crença em Jesus de Nazaré; um judeu cam-
ponês que viveu há mais de dois mil anos e que por se opor ao
ordenamento político, social e econômico do Império Romano,
acabou recebendo uma das penas capitais mais temidas para
aqueles que cometiam atos de rebeldia: a crucifixão.
Via de regra, quando falamos de cristianismo, duas narra-
tivas se colocam em disputas: a teológica e a histórica. Não
existe, necessariamente, um antagonismo “em si” entre esses
saberes. Porém, historicamente, essa religião foi vista apenas
125
pelas lentes do saber teológico. Situação que começa a mudar
nos últimos vinte anos, através de estudos de diversos historia-
dores, arqueólogos e antropólogos no Brasil e no mundo, que
passaram a olhar essa mesma religião e realizar perguntas so-
bre determinados casos e situações contidas no material neo-
testamentário, propiciando uma gama de descobertas e novos
pontos de vista, ampliando tudo que já conhecíamos.
O conhecimento histórico que vem se desenvolvendo nas
últimas décadas sobre o tema, tem procurado problematizar as
relações que se estabelecem entre a constituição de uma religi-
ão (Cristianismo) e o personagem histórico que suscita o elo a
essa elaboração religiosa: Jesus. Sobre este, os avanços de pes-
quisas arqueológicas e históricas nos tem permitido falar com
algumas certezas sobre a vida do nazareno, bem como as impli-
cações que a profissão de fé no mesmo acarreta para os estu-
dos sobre o cristianismo antigo.
Dessa forma, a historiografia que aborda esta temática
tem conseguido desmonopolizar lugares comuns concernentes
a Jesus e ao cristianismo antigo, trazendo a baila, discussões
pertinentes sobre identidades, memória, poder, conflitos e inte-
rações culturais, que antes não eram, ou pouco eram contem-
plados nos estudos desta natureza.
Não obstante, é relativamente novo o interesse pelo Jesus
da História. Quando falamos de um Jesus Histórico, implicita-
mente queremos dizer que este personagem e as crenças religi-
osas ligadas ao mesmo estiveram por muito tempo ausentes
das possibilidades de conhecimento e, até mesmo, tratados com
desinteresse por parte do saber histórico. De outra forma, cha-
mamos atenção, também, para o fato de que este personagem
e os cristianismos estiveram por muito tempo presos na torre de
marfim do saber teológico, de forma que os seus ditos e ações
eram tratados apenas no plano da fé, pouco, ou nada, remeten-
do ao ambiente vivido pelo mesmo na Palestina Judaica.
126
Entrementes, ao iniciar uma discussão que pretende tratar
das representações sobre os Cristianismos na antiguidade nos
livros didáticos, queremos refletir não apenas sobre um deter-
minado tipo de leitura da temática que tem sido apresentada
nestes materiais direcionados ao público estudantil de ensino
médio, como também a problemática que cerca a elaboração
destes materiais.
128
nestes materiais. Sobre este ponto, convém pontuar um impor-
tante postulado:
Ao historiador cabe o papel de São Tomé, aquele que precisa
ver para crer, que não se baseia num pressuposto de fé, mas na
confrontação de dados empíricos ou ideológicos selecionados,
cruzados, seriados, todos fornecidos pela documentação, com
as informações colocadas pela bibliografia concernente ao ob-
jeto de estudo, sempre no intuito de se fazer a relação do texto
para com o contexto no qual ele foi produzido. No caso da bí-
blia especificamente, que se trata de uma compilação de textos
que apresenta gêneros literários diversos, de diferentes perío-
dos históricos, torna-se necessária a identificação do gênero a
que pertence o discurso, a compreensão de tal gênero na época
em que surgiu o relato analisado, a exposição das características
mais gerais do autor (quando conhecido) e, obviamente, a con-
textualização histórica do relato em questão e para que público
ele se dirigiu (SELVATICI, 2000, p. 93-94).
129
se bastante diluída nos discursos institucionais próprios para a
difusão da crença religiosa cristã na sociedade, como por e-
xemplo, as igrejas.
Assim sendo, utilizo especificamente para este trabalho, o
livro “História das Cavernas ao Terceiro Milênio” (2015), das
autoras Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota, destinado
ao alunado do 1º ano do ensino médio, sendo ele nosso objeto
de reflexão e análise, para problematizarmos as diversas nuan-
ces pelas quais a religião cristã na antiguidade encontra-se re-
presentada.
No entanto, como dito anteriormente, todos os livros e
coleções didáticas implementadas na educação pública de nível
básico, passam pelo crivo do governo federal através do Pro-
grama Nacional do Livro Didático (PNLD), instituído no ano de
2008, que teve por meta, a distribuição de livros para todos os
componentes curriculares que compõem a educação básica. 1
Além disso, o PNLD, como política pública, busca melho-
rar a qualidade dos livros didáticos, ao passo que também visa
através desta oferecer formação continuada aos professores(as)
da educação básica através de formulações de propostas peda-
gógicas, aprimoramento e problematização no uso das fontes
históricas inseridas no manual do professor(a), além é claro dos
próprios conteúdos presentes nos livros, que a partir de cons-
tantes avaliações realizadas pelo Ministério da Educação são
observados princípios de ordem ética, estética e cidadã comum
a todas as disciplinas que aliadas com as competências específi-
cas do componente curricular devem ser incorporadas em cada
coleção didática.
O guia de livros didáticos de História para o ano de 2016
do PNLD traz em seu bojo algumas recomendações a serem
1
Este programa substituiu o Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio
(PNLEM), que distribuía livros apenas para esta modalidade de ensino. O PNLD
além de tomar para si esta tarefa, englobou as demais modalidades: fundamen-
tal I e II.
130
observadas no momento de escolha das obras pelos profissio-
nais do ensino. A síntese dos critérios avaliativos orienta os
elementos que devem estar presentes tanto no livro do aluno,
quanto no dos docentes. Nos manuais dos professores(as) são
valorizadas as habilidades que os mesmos devem manifestar
quanto ao trato com as imagens contidas nos livros, problema-
tizando-as para que não seja um mero elemento ilustrativo que
compõe a página, além do enfoque na interdisciplinaridade e
estímulo ao pensamento crítico dos alunos quanto às experiên-
cias sociais no tempo.
Uma vez aprovada, a obra em questão traz na seção Su-
plemento de apoio ao professor os procedimentos básicos no
campo pedagógico que proporcione ao docente um melhor
uso de práticas desse campo do saber nos processos de ensino-
aprendizagem evocados pelo PNLD.
Dessa forma, o livro tenta responder aos desafios de se
inserir nos processos de transformações que vem ocorrendo no
âmbito da cultura a partir da constatação das autoras de que
vivemos cada vez mais em uma sociedade bombardeada pela
informação, sendo necessária a adaptação do saber histórico a
essa demanda contemporânea. É nesse contexto, que o livro
deixa claro a história do tempo presente como regime de histo-
2
ricidade adotado, visando proporcionar, sobretudo aos alunos
certo dinamismo que possibilite perceberem-se como sujeitos
históricos através da integração entre passado e presente, dan-
do ao processo ensino-aprendizagem na História uma utilidade
de caráter prática e significativa, como explicitada:
Essa forma clássica de pensar a história permite estabelecer re-
lações de causa e efeito entre acontecimentos de períodos su-
cessivos e, para o aluno, apresenta a vantagem de dar sentido
2
Termo criado pelo historiador francês François Hartog para se referir aos
diferentes modos como uma sociedade trata seu passado, ao modo da consci-
ência de si e de uma comunidade humana.
131
ao mundo em que vive. A ideia de dar um sentido ao presente,
tendo como referência o passado, é o cerne da utilidade social
da história. É também uma postura que torna impossível qual-
quer pretensão a um discurso historiográfico definitivo, à medi-
da que as questões colocadas para o passado não cessam de
evoluir (BRAICK; MOTA, Suplemento de apoio ao professor,
2015, p. 259).
3
Segundo Forquin, o livro didático é um artefato cultural escolar, onde o con-
junto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados,
normalizados, rotinizados, sob os efeitos da didatização, constituem-se como
um objeto de transmissão de conhecimentos no contexto da escola (1993,p.
167).
133
tica sobre os eventos que constituíram o período imperial ro-
mano, e sim, em uma proposta que dialogue com o conheci-
mento histórico que vem sendo produzida pela academia nos
últimos anos, e com as demandas contemporâneas, como a
diversidade e o combate a intolerância levantados no PNLD.
Entendemos que o conhecimento acerca da antiguidade
- especificamente do objeto de pesquisa - não é imutável no
âmbito da cultura escolar (tendo o livro como elemento cen-
tral), cabendo novas representações quando o espaço de histo-
ricização do fenômeno religioso abre caminhos para perceber
os indivíduos que dele participam, assim como esse mesmo
fenômeno é recepcionado nos livros didáticos.
Tendo o livro “História das Cavernas” como campo de
observação para análises do Cristianismo, identificamos que o
mesmo apresenta algumas simplificações dos processos históri-
cos relacionados a temática. Embora entendamos que um dos
papéis dos livros didáticos seja justamente o de tratar dos even-
tos históricos numa linguagem clara e acessível, identificamos
que tais simplificações aparecem mais como um saber tradicio-
nal sobre o tema, do que relacionado ao aprendizado simplifi-
cado.
Dessa forma, partimos da premissa de que os cristianis-
mos na antiguidade nos livros didáticos tem sido tradicional-
mente representado pelo saber teológico. Essa representação
se faz presente no livro analisado, como veremos posteriormen-
te. No entanto, cabe ressaltar que as representações diretas ou
próximas da teologia, não são uma característica contemporâ-
nea de representação deste objeto. Sobre isso, vale apontar
que:
Na cultura escolar [..], a história do povo hebreu somada à his-
tória do cristianismo remete a uma prática comum nos primór-
dios do ensino de história; a história sagrada. Em 1827, a pro-
posta debatida na Assembleia dos deputados previa o ensino
de história subdividido em História Geral Profana, História Sa-
134
grada e História do Império do Brasil (BITTENCOURT, 2008, p.
100).
135
É consenso na historiografia a pluralidade que este mo-
vimento assumiu ainda nos anos iniciais. Logo, propomos a
substituição do termo no singular por acreditar que o engessa-
mento das relações sociais não faz parte do campo de estudo
das ciências humanas. Sendo assim, utilizamos o termo Cristia-
nismos, que para além da grafia, também denota um conceito
que explicita uma longa forma de ver o processo histórico de
disseminação do movimento. Conforme é ressaltado:
Por cristianismos, afirma-se que uma dada experiência religiosa
é sempre plural, com a sua base formativa sendo ampla demais
para caber em categorias como certo e errado, ortodoxo e he-
terodoxo. O reducionismo de uma experiência religiosa, seja ela
qual for, costuma produzir um tipo de análise “histórica” bas-
tante previsível, com seus resultados parciais e militantes.
(CHEVITARESE, 2011, p. 9).
2004).
5
Os materiais que constituem os quatro Evangelhos apresentam alguns pro-
blemas, tais como a datação e a autoria dos mesmos. Além disso, esses docu-
mentos são tardiamente escritos: no final do I século d.C, possivelmente já na
segunda geração de cristãos, e num período em que as disputas pelas memó-
rias de e sobre Jesus ainda se mostravam acirradas, o que demonstrava as
disputas pelo controle das comunidades ditas Marcana, Mateana, Lucana e
Joanina.
137
à crítica e a verificação de fontes (BRASIL, MEC, Guia PNLD,
2015, p.122).
138
confusa do ponto de vista histórico, pois coloca Jesus como
contemporâneo do Cristianismo, como explicitado: “Após a
morte de Jesus, o Cristianismo difundiu-se pelo Império Roma-
no graças ao trabalho dos apóstolos” (BRAICK; MOTA, 2015,
p.106). Sobre essa questão, a Historiografia já possui considerá-
vel entendimento para refutar.
A leitura de Jesus como cristão e fundador do Cristianis-
mo não coaduna com as pesquisas realizadas no âmbito aca-
dêmico que através de análises sobre os evangelhos identificam
o mesmo como um judeu, que viveu e morreu no judaísmo. 6
Somente após a sua morte, seus seguidores passam a divinizá-
lo tratando-o como Cristo, ou seja, o messias - aquele que é
ungido.
No livro didático, a explicação sobre o início das ações de
Jesus ate a sua execução por Roma, silencia o contexto sócio-
político da região da Palestina no século I, o que se realizado,
poderia ampliar o entendimento sobre Jesus e o início do mo-
vimento cristão. Ademais, para entendermos o contexto da vida
de Jesus é necessário nos reportarmos ao período de domina-
ção romana na Palestina judaica.
Segundo Horsley e Hanson “Depois da conquista da Pa-
lestina por Pompeu em 63 a.C, os territórios judeus estiveram
continuamente sob o controle romano” (HORSLEY; HANSON,
2007, p. 43). Roma adotava uma estratégia que lhe permitia
governar as nações indiretamente através de uma elite dirigente
local. No caso específico, esta elite respondia pelo conjunto
sacerdotal centrado no Templo de Jerusalém.
Este perfil de governo representava uma séria ameaça a
existência dos camponeses, haja vista, a pesada tributação que
incidia sobre seu trabalho. Além de destinarem o tributo para a
6
O cumprimento da lei de Moisés, como por exemplo, guardar o sábado (Lc
6:5) e o episódio da purificação do templo (Mt 21:12), são alguns dos elementos
utilizados para situar Jesus no interior do mosaico de experiências religiosas que
compunham os judaísmos no I século.
139
elite sacerdotal e de serem obrigados a entregar ¼ da colheita
a cada dois anos, os programas administrativos implantados
pelo governo imperial romano no tempo de Jesus acarretavam
num crescente empobrecimento da população – marcadamente
camponesa -, que por sua vez, recorria a empréstimos não me-
nos onerosos, que, por conseguinte, empurrava grande quanti-
dade de camponeses a uma condição de subsistência e margi-
nalidade, fazendo florescer inclusive o surgimento de movimen-
tos messiânicos populares que almejavam a libertação política
do povo judeu ante a exploração sofrida pelos romanos.
É nesse contexto dominado pelo empobrecimento e in-
justiça, que Jesus - um judeu camponês7 -, instaura ainda na
metade do I século um movimento contra imperial, baseado no
tripé: Justiça, Paz e Comensalidade.
As autoras oferecem uma explicação comum e reducio-
nista sobre as razões da execução de Jesus, apontando para o
fato de que isso teria ocorrido pela pregação do reino de Deus,
que embora não pertencesse a esse mundo terreno, levou o
mesmo a ser condenado na cruz por crime de rebeldia. Redu-
cionista, por entender o denominado “Reino de Deus” dentro
de uma concepção eminentemente religiosa e isolada das esfe-
ras políticas e sociais nas quais essa crença se relacionava.
Dado o contexto conflituoso da região da Palestina judai-
ca, o olhar historiográfico ao analisar as estruturas sócio-
políticas nas quais se assentavam a sociedade romana no I sé-
culo identificou uma flagrante oposição entre o denominado
7
Koester (2005, p. 84) sugere que Jesus era letrado e que possivelmente sabia
ler e escrever. Porém, sua sugestão carece de comprovações. Horsley (1995, p.
127) e Crossan (2004, p. 274-275) sustentam que a porcentagem de alfabetiza-
ção judaica na região da Palestina era extremamente baixa, sendo a maioria da
população pobre e camponesa. Logo, quase que por definição defendem que
os camponeses eram analfabetos. Jesus de origem camponesa, nascido na
pobre aldeia rural de Nazaré na Galiléia, provavelmente como camponês que
era não teve educação letrada, o que corrobora para sustentarmos que o mes-
mo tambem era analfabeto.
140
Reino de Deus e o reinado dos imperadores romanos. Dessa
forma, não estamos pensando em uma realidade que transcen-
de o chão histórico dos indivíduos daquele tempo e daquela
região, e sim de uma realidade que é o próprio chão, a sua ra-
zão de ser.
Entendemos “Reino de Deus” como um conceito de forte
cunho não apenas religioso, mas também político, que funcio-
nara como um elemento de oposição dos judeus aos projetos
imperialistas adotados por sucessivos governos estrangeiros na
Palestina judaica.
No entanto, queremos apontar que “Reino de Deus” não
pressupõe aqui um espaço territorial e uma identidade étnica
como condicionantes de sua impetração. Antes disso, ele quer
denotar uma nova forma de distribuição econômica, um novo
tipo de organização humana e uma nova ordem social para o
mundo, pautados em atributos como justiça, paz e igualdade
(CROSSAN; BORG, 2007).
Entretanto, o significado deste conceito ficaria vago se
não colocado em confronto com o “Reino de Roma”. É a partir
desta oposição de reinos e seus projetos distintos encontrados
no âmbito de suas particularidades que entenderemos melhor o
contexto das situações sócio-políticas que ocorreram na Pales-
tina judaica no I século, e que, por conseguinte, encontrarão
ecos nas comunidades cristãs que se desenvolverão posterior-
mente.
Segundo Crossan e Borg (2007) “[...] tanto o Reino de
Roma quanto o Reino de Deus, foram anunciados como o quin-
to e culminante reino da terra, mais ou menos em meados do II
século antes da era cristã”. Essa informação torna socialmente
explosiva a relação entre judeus e romanos no ambiente pales-
tino, assim como também coloca grupos cristãos do I século na
mesma situação.
Contudo, será no plano das ideias que os cristãos se lan-
çarão contra o imperialismo romano, diferindo estrategicamen-
141
te de grupos judeus que em duas ocasiões intentaram militar-
mente revoltas contra a dominação na Palestina. 8
Logo, embora incipiente no conteúdo do livro, a execu-
ção de Jesus se relaciona diretamente com a oposição feita
pelos judeus no aspecto social, político e religioso ao Reino de
Roma, sendo a instauração do Reino de Deus algo iminente, e
não a ser estabelecido “em outro mundo” como reproduz o
livro.
Outro elemento explorado no livro didático pelas autoras
reside na narrativa de que o Cristianismo teve sucesso entre as
camadas populares devido ao discurso de libertação da opres-
são imposta pelo imperialismo romano, especialmente sobre as
mulheres e escravos.
Nas primeiras décadas de Cristianismo, a participação de
mulheres no interior das comunidades cristãs não era algo ine-
xistente, sendo relatada a presença feminina nos evangelhos
situados no Novo Testamento, sobretudo Lucas e João. A histo-
riografia oferece bons indícios de que nessas comunidades era
forte a presença de mulheres ocupando até mesmo posições
8
De 66 a 70 d.C os habitantes da Judéia se lançaram militarmente contra os
romanos nessa região, assim como nos anos de 132 a 135 d.C sob a liderança
de Simão Bar Kokhba, os judeus se irromperam em revolta contra a tentativa do
imperador Adriano de revitalizar o helenismo em Jerusalém, onde pretendia-se
inclusive a construção de um santuário em homenagem a Júpiter Capitolino
sobre o monte do Templo. Todavia, é interessante notar que nos livros didáti-
cos, inclusive o que é analisado neste trabalho, não é mencionado em nenhum
momento a relação temporal dessas revoltas com o movimento cristão. Existe
um descolamento de conteúdos no livro: como se a História dos Hebreus neste
período nada tivesse a ver com o movimento cristão que já existia nessa mesma
época. Nos livros, primeiro aborda-se a História da civilização hebraica e depois
sobre cristianismo. Tem-se a impressão de que após se trabalhar com Hebreus
não se pode falar dos mesmos no I século quando aparecem Jesus e o início do
movimento cristão.
142
centrais.9 Sua exclusão em si ocorrerá através de apologetas a
partir do século III.
No entanto, a penetração do Cristianismo nas camadas
mais baixas da sociedade romana não necessariamente promo-
verá uma ruptura com o status quo vigente na época. Paulo, um
personagem que sequer é citado no livro analisado e que pos-
sui grande importância dentro do movimento cristão primitivo,
dialogará intensamente através da sua atuação no seio da soci-
edade mediterrânica com as estruturas de poder imperial. Nes-
se ponto, o mesmo através de suas cartas, irá propor o que
Hoornaert denomina de “patriarcalismo de amor”, como explici-
tado:
[...] o cidadão romano considerava a escravidão a coisa mais na-
tural do mundo. Ninguém a contestava, nem os filósofos mais
lúcidos nem os líderes mais éticos. A boa conduta consiste não
em contestar o instituto, mas em se comportar como ‘bom se-
nhor’ ou ‘bom escravo’, conforme ensina Paulo com seu ‘patri-
arcalismo de amor’ (HOORNAERT, 2014, p. 87).
9
A presença feminina parece ter sido predominantemente forte na comunidade
Joanina. Tanto que sob a liderança de Paulo no Mediterrâneo antigo, a apostoli-
cidade foi um elemento de disputas pelo poder nas comunidades cristãs. Um
dos critérios para ser apóstolo(a), era a ocularidade, como defendida e vivencia-
da por Paulo. Dessa forma, Maria Madalena, personagem controverso nas nar-
rativas neotestamentárias pode ser considerada como apóstola, já que viu Jesus
ressuscitado. Isso pode ser visto nos textos bíblicos (Jo: 20, 14-18).
10
A carta de Filemon é uma boa fonte para se pensar as relações entre cristãos
que aderiram o cristianismo como crença, mas que continuavam sendo escra-
vos, mesmo quando seus senhores também aderiam a nova fé. Para Paulo, não
existia contradição se houvesse um bom relacionamento entre Servo e Senhor,
como assevera um trecho de sua carta aos Gálatas 3:28: “Não há judeu nem
grego, escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só
em Cristo Jesus”.
143
didático que aparece quase como unanimidade discursiva
quando abordado a temática seja em sala de aula ou em outro
espaço, são as narrativas de perseguição aos cristãos por parte
do Império Romano.
As autoras abordam que as experiências religiosas dos
primeiros cristãos na sociedade romana entravam em desacor-
do com as normas imperiais, devido à negação que este grupo
fazia do culto ao imperador. Tal postura colocava em risco o
ordenamento social, posto que prejudicava o equilíbrio funda-
mentado na Pax Deorum ou paz dos deuses.
Outro fator que legitimaria a perseguição religiosa para
as autoras do livro recai na suposta condição de igualdade pre-
gada entre os grupos cristãos, além de promoverem reuniões
secretas. É deveras problemático nos primeiros anos deste mo-
vimento evocar a questão de igualdade como símbolo de união
entre os grupos cristãos. Muitos liam suas realidades a partir
dos contextos sócio-políticos da bacia mediterrânica, onde a
distinção social acarretava posturas de comportamento que
nem sempre ofereciam links com as propostas sustentadas por
Jesus.
Neste momento (século I), as disputas pelas memórias de
e sobre Jesus e a diversidade cultural das comunidades enrijeci-
am qualquer tipo de proposta igualitária entre esses grupos.
Não obstante, no decorrer das atividades de Paulo no Mediter-
râneo, se desenvolveram diversos projetos de Reino de Deus
onde a aproximação com as estruturas do Estado Romano con-
feriam diferenças junto às comunidades que se mostravam re-
sistentes a projetos como esse.
Todavia, no que tange a perseguição aos cristãos, Hoor-
naert assevera:
É verdade que as comunidades estavam expostas a eventuais
pogroms de caráter local e que, em certas circunstâncias, os cris-
tãos eram chamados para interrogatórios vexatórios e perigo-
sos diante das autoridades, mas isso não basta para se justificar
144
o tão invocado termo “igreja dos mártires” (HOORNAERT, 2014,
p. 82).
11
Shaw (2015, p. 78) identifica o surgimento de alteridades entre as comunida-
des cristãs e defende que as perseguições não partiram apenas do aparato
militar romano, mas também de grupos cristãos que enxergavam nos demais
grupos, propostas que não coadunavam com a visão inicial proposta para o
movimento.
145
de Milão (313 d.C) bem como a conversão do imperador Cons-
tantino no ano anterior e a adoção dessa religião como sendo a
única oficial do Estado.
Chamou atenção o fato da conversão do Imperador
Constantino ser trabalhada em um “box” através de um texto de
que embora traga aspectos coerentes, fora produzido por um
historiador que possui lugar de fala no interior do Cristianismo.
A fonte de onde foi retirado o texto sugere uma característica
parcial da mesma: “A Igreja dos apóstolos e dos mártires” do
historiador Francês Henri Petiot, mas que ficou conhecido no
meio literário com o pseudônimo de Daniel Rops. Como crítica
e sugestão, pensamos que as autoras do livro poderiam ter feito
uso de autores com maior respaldo acadêmico no que tange ao
tema trabalhado, como a do historiador Paul Veyne na obra
Quando o nosso mundo se tornou Cristão.
Ato contínuo aparece com significativo destaque uma
imagem equestre do imperador Constantino empinando seu
cavalo em uma batalha. Tal imagem, como um processo de
representação sugere a ligação do Cristianismo a um destino
político glorioso, onde depois de diversas perseguições e martí-
rios, encontra na política estatal um lugar seguro para o exercí-
cio das suas experiências religiosas.
.
146
Portanto, podemos constatar um claro e problemático
distanciamento existente entre as obras didáticas destinadas ao
ensino básico, das produções acadêmicas sobre o objeto em
questão. Tal fator, que advém de uma série de problemáticas
estruturais do campo editorial, limita uma análise aprofundada
sobre a complexidade desta experiência religiosa e, por conse-
guinte, social dos primeiros cristãos nas salas de aula, onde tais
questões poderiam proporcionar maiores entendimentos sobre
a pluralidade das experiências religiosas não apenas no mundo
antigo, como também, nos dias atuais.
Nesse sentido, cabe ao professor (a) de História, respal-
dado pela sua formação, o manejo dos alicerces teórico-
metodológicos disponíveis para problematizar as informações
nem sempre completas ou verídicas sobre o tema presente nos
livros didáticos, ensejando, assim, novas leituras que possibili-
tem o exercício do pensamento crítico aos seus alunos. Contu-
do, chamo atenção para o fato que tal possibilidade, passa ir-
remediavelmente pela reestruturação acadêmica das disciplinas
da área de antiguidade, bem como, do engajamento (e não o
descolamento) com a pesquisa dos egressos das universidades
no campo escolar.
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Journal of Roman Studies (2015).
148
A IDADE MÉDIA NO LIVRO DIDÁTICO: MUITO
ALÉM DA “IDADE DAS TREVAS”
Introdução
O livro didático se reveste de um caráter quase indispen-
sável na sala de aula, pois é muitas vezes o único instrumento
de mais fácil acesso. O livro faz parte de um processo formador
dos alunos, tanto no ensino fundamental como médio, por isso
é indispensável que esse livro não apresente deficiências, ana-
cronismos, juízos de valores, equívocos. Aspectos como esses
farão parte da formação dos alunos, comprometendo a com-
preensão, sustentando opiniões deformadas.
Por muito tempo, os livros didáticos continham interpre-
tações equivocadas, silenciadas, distorcidas acerca desse perío-
do que se refletiram nos manuais didáticos. Mas, atualmente,
existem pesquisas significativas que analisam os conteúdos
presentes nos livros didáticos. Com o surgimento do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) e dos Parâmetros Curricula-
res Nacionais (PCN's), os livros didáticos foram reformulados
nas suas formas de abordar certos conteúdos. No que tange à
Idade Média, já trazem discussões pertinentes como a partici-
pação feminina, as crianças, as cruzadas, etc, que em outros
momentos foram negligenciados pela historiografia. Contudo,
alguns livros didáticos continuam com simplificações e distor-
ções, prejudicando a aprendizagem dos alunos.
Os estudos dos historiadores como Jerome Baschet, Le
Goff, Ricardo da Costa, Jean Claude Schmitt, Marc Bloch, Terezi-
149
nha Oliveira, entre outros, apontam que o período medieval foi
importante na formação da civilização ocidental. Embora o Bra-
sil (1500) não tenha surgido no período que se convencionou
denominar de Idade Média (476 d. C. – 1453), recebeu resquí-
cios desse contexto, pois teve a sua colonização europeia, daí a
relevância desses estudos nesse país. Nesse sentido, é necessá-
rio que o aluno tenha contato com aspectos históricos da Idade
Média no processo de sua formação escolar, visto que é na
escola que o aluno, possivelmente, terá a oportunidade de co-
nhecer o medievo de forma crítica e analítica, dada a estereoti-
pização que alguns filmes trazem desse período, que é, na mai-
oria das vezes, o meio pelo qual o aluno conhece e concebe a
Idade Média.
Não podemos esquecer que o livro didático não está i-
sento de ideologias. A seleção dos conteúdos1, por exemplo,
passa por um processo de escolha ideológica, teórica e comer-
cial. Em outros momentos históricos, isso ficou bastante claro,
como nas produções didáticas durante a Ditadura Militar no
Brasil (1964-1985). Sabemos que o livro didático se torna uma
mercadoria desde o momento da sua produção e venda, até
chegar ao seu destino final, na sala de aula. O livro didático, que
ainda hoje é um grande aliado do professor na sala aula, e, ge-
ralmente, é o único material que alunos têm acesso na escola,
2
Capítulos: 1 - A alta Idade Média e a formação do feudalismo. 2 - Nascimento
e expansão do Islã. 3 - A África antes dos europeus. 4 - A baixa Idade Média. 5 -
O Renascimento e as reformas religiosas. 6 - As Grandes Navegações. 7 - A
América Pré-colombiana. 8 - O império português na África e na Ásia. 9 - A
colonização espanhola na América. 10 - Conquista e colonização da América
Portuguesa. 11 - O Nordeste açucareiro. 12 - Ingleses e franceses na América.
3
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS). Área de concentração: História das Sociedades Ibéricas e Americanas.
Professora do Ensino Médio em Belo Horizonte, MG. No currículo Lattes dessa
autora, com última atualização em julho de 2006, não constam informações
sobre a sua vida acadêmica.
151
Olímpica, localizada na Cidade Olímpica, um bairro da cidade
de São Luís do Maranhão.
Para nossa análise, faremos uso dos capítulos 1 e 4 que
trabalham os seguintes conteúdos a respeito da Idade Média:
Feudalismo; Mulheres e crianças; A vida terrena e o Além: Céu,
Inferno e Purgatório; Cruzada, Cidades Medievais, Inovações
Agrícolas, Mercadores, A Expansão do Comércio, e a Educação
Medieval. Ressaltamos que devido à limitação do artigo, anali-
saremos algumas temáticas abordadas nos dois capítulos e não
iremos realizar, em detalhes, a análise de todo o conteúdo que
se refere a Idade Média.
Esse livro foi aprovado pelo Ministério da Educação e
Cultura (MEC) por meio do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD). Ressaltamos que para análise dessa obra, destacaremos
os elementos exigidos pelo PNLD (2017) e os Parâmetros Curri-
culares Nacionais (PCN) e, uma breve análise do manual do
professor. Por fim, apresentaremos sugestões de abordagem
que podem ser inseridas no livro didático acerca da História
Medieval.
Quem nunca ouviu falar que “não vivemos mais na Idade Média?”, ou seja,
4
154
Ali, o feudalismo não partiu de um processo espontâneo como
na França, mas foi implantado de fora para dentro e de cima
para baixo em 1066, com a invasão de um grande vassalo fran-
cês, o duque da Normandia, Guilherme, o Conquistador
(FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 80).
155
As imagens não são espelhos da realidade, nem devem ser utili-
zadas na condição de ilustração de temas, numa perspectiva in-
genuamente “realista”, como se as imagens retratassem alguma
realidade histórica. Daí ser preciso ainda analisar a relação entre
ver e saber, com intuito de esclarecer/ compreender a fusão en-
tre recepção e produção como processo para novas interpreta-
ções (SILVA, 2010, p. 181).
161
de pária da sociedade medieval dominada pela influência cristã
(LE GOFF, 1986, p. 71).
164
uso metodológico do cinema no ensino de História. A coleção
apresenta muitas possibilidades de trabalhos com imagens, que
podem ser amplamente aproveitadas na exploração de conteú-
do específicos (BRASIL, MEC, GUIA PNLD, 2016, p. 74).
165
Reconhecer a preocupação com a morte e com a vida além-
túmulo como central no pensamento do homem medieval.
Desconstruir a ideia de que a Idade Média foi um período ca-
racterizado pelo atraso e pela estagnação (BRAICK, 2015, p.
278).
166
Sobre o termo “bárbaro”, é importante mostrar aos alu-
nos que hoje se trata de uma conotação pejorativa. Isso não é
comentado no decorrer do capítulo, ou seja, seria interessante
debater questões como o preconceito, o olhar do outro, ques-
tões como povos “superiores” e “inferiores”, que precisam ser
desmistificadas. Não compartilhar a mesma cultura ou não ser
civilizado opõe-se à ideia de bárbaro. Ainda hoje essa ideia não
é superada, pois é muito comum chamar de “bárbaro” aquele
que não se enquadra nos padrões ditos “civilizados”.
A autora Braick (2015) incentiva o professor a pesquisar
outros materiais além do livro didático, a saber: há sugestão de
dois textos na seção Enquanto isso. Como sugestão de ativida-
de, indica ao professor que os alunos interpretem o texto As
três ordens (século XI) Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez (2000).
Em Textos complementares, há dois textos, um sobre a “leitura
na Idade Média”, de Steven Roger Fischer, História da Leitura,
de 2006, e outro que trata das “Experiências e representações
sociais”, de Elias Thomé Saliba, O saber histórico na sala de aula,
de 2010. A autora indica, em sugestões de site, um artigo de
Alexander Meireles da Silva, intitulado O conto de fadas e a
questão da alteridade na Idade Média, da Revista Signótica, do
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Univer-
sidade Federal de Goiás.
A Sugestão de bibliografia contém oito sugestões de li-
vros relacionados aos temas estudados no capítulo, de autores
como Ariès, Bittencourt, Bloch, Duby, Franco Júnior, Le Goff,
Pedrero-Sánchez. Autora não oferece suporte de como traba-
lhar imagens, que acabam por ficarem soltas ao longo do texto
sem ligação, muitas vezes, com o conteúdo abordado, servindo
apenas como ilustração.
O capítulo 04, A Baixa Idade Média, na seção Contextuali-
zando o tema, a autora fala sobre o papel da mulher na socie-
dade medieval, destacando a ambivalência da condição femini-
na, que por um lado representava a pureza e do outro o peca-
167
do. A autora também destaca a existência de “brechas” possí-
veis na atuação da mulher naquela sociedade. Em Explorando o
capítulo, diz que o professor deve apresentar a complexidade
da temática das Cruzadas, que vai além do quesito religioso ou
comercial, e também destacar sobre as “guerras religiosas”,
tema muito atual para nossa sociedade. Contudo, essas infor-
mações dadas pela autora se restringem apenas ao professor,
tendo em vista que o aluno não tem acesso ao manual do pro-
fessor, seria relevante essas abordagens no decorrer do texto
principal do livro didático.
Em Saiba mais, está presente o texto do discurso papa
Urbano II em que convoca os cristãos com objetivo da retoma-
da de Jerusalém. Para aprofundar a temática, a autora sugere o
livro As Cruzadas vistas pelos árabes do escritor libanês Amin
Maalouf. Ela considera essas leituras centrais para mostrar que
os mulçumanos e árabes consideravam as Cruzadas como inva-
sões. Acreditamos que essas sugestões são fundamentais, pois
apresentam as outras interpretações sobre a história. A autora
explica como trabalhar alguns textos ao longo do capítulo, e dá
a sugestão em vale a pena assistir do filme “O nome da Rosa”.
Por fim, há sugestões de atividades, indicação de leitura
das obras dos historiadores, Anderson, Bloch, Duby, Franco
Júnior, Huizinga, Le Goff, Pedrero-Sánchez e Torres, e de sites
para pesquisa na internet da Revista História Viva com o artigo
Os animados cemitérios medievais, da historiadora Séverine
Fargette-Vissière, e da Revista USP, com o texto Raízes medie-
vais do Brasil, do historiador Hilário Franco Júnior.
O “manual do professor”, infelizmente, é um espaço pou-
co visitado pelos professores em sua grande maioria. Porém é,
sem dúvida, uma parte que compõe o livro do professor ofere-
cendo subsídios para o profissional, pois além de pequenas
discussões sobre a importância da História, as noções dos con-
teúdos trabalhados nos capítulos buscam atender de modo
168
simples algumas necessidades que só o profissional que está na
sala de aula enfrenta.
169
reduzir a presença de versões estereotipadas sobre a Idade
Média.
A Idade Média possibilita compreender por meio dos
conteúdos relacionados a religião, a importância da tolerância,
do olhar para o outro com o respeito, e tantas outras compre-
ensões fundamentais para se viver na sociedade contemporâ-
nea, marcada pela intolerância.
A mulher na Idade Média, geralmente, ocupa nas abor-
dagens conservadoras uma posição de inferioridade, despreza-
das por serem consideradas frágeis e, por terem sido as respon-
sáveis pelo pecado original, recebiam esse sentimento de culpa.
É importante ressaltar que havia outras modelos de mulheres.
José Rivair Macedo (2002) chama atenção para devidos cuida-
dos sobre analisar a mulher medieval sob um único aspecto. Ele
destaca que grande parte das informações foi fornecida por
homens. Do outro lado, há uma escrita feita pelos religiosos
sobre o pecado, associando a mulher como um instrumento do
demônio. Mas. é importante dar destaque as fontes da época,
escrita também por elas, em que a fala é feminina, permitindo
uma releitura de sua história. Essas discussões presentes no
livro didático ajudam na compreensão acerca do papel da mu-
lher na sociedade e no combate à violência de gênero.
Sobre a utilização do cinema (ficção e documentário), Jo-
sé Rivair Macedo (2002) destaca que o cinema pode se tornar
uma potencialidade como recurso pedagógico. Porém, é neces-
sário o professor estar ciente de que o resultado dependerá da
qualidade das aulas, ou seja, de como o conteúdo foi discutido.
Quando se trata dos filmes sobre o medievo, é necessário ter
muito cuidado para que não reforcem as ideias distorcidas do
período, fortalecendo os preconceitos já existentes. O mesmo
autor enfatiza que o trabalho com auxílio do filme pode ser
positivo quando ele “deixa de ter o papel de fixar determinada
imagem de uma época, mas passa apontar mudanças ou per-
manências, continuidades ou rupturas” (MACEDO, 2002, p. 118).
170
A iconografia também pode ser uma excelente aliada na
sala de aula, desde que a sua utilização seja a partir da interpre-
tação das imagens e não apenas como uma ilustração, visto que
durante o período medieval umas das funções das imagens era
seu uso para fins pedagógicos. Sendo assim, o professor pode
fazer uma seleção de imagens e iluminuras da época, o que
permite aos alunos terem contato com obras que foram criadas
pelos homens medievais, assim podem fazer interpretações
críticas e analíticas desse contexto.
Considerações Finais
Diante do exposto, cabe a todos envolvidos no processo
de ensino-aprendizagem, apontar caminhos para enfrentar as
novas demandas. Nesse sentido, entendemos que não existe
um material didático perfeito, mas muito ainda pode ser feito
para melhoria dos livros didáticos, visto que as novas tecnologi-
as têm surgido, e podem contribuir de forma significativa para
avanço e aprimoramento desses livros.
Por mais questionável que seja o livro didático, é um veí-
culo essencial na formação dos alunos da sociedade brasileira,
sendo um elemento norteador da política educacional. No que
diz respeito aos conteúdos sobre a Idade Média no livro, vemos
que permanecem visões distorcidas sobre o período. Acredita-
mos que a historiografia mais atualizada pode integrar os futu-
ros materiais, e para que isso ocorra é fundamental transforma-
ções introduzidas no sistema de elaboração desse material com
ajuda de especialistas do medievo que contribuam para infor-
mações mais próximas às pesquisas que têm sido desenvolvidas
no âmbito acadêmico.
Observamos durante a análise que caso o aluno tenha
contato só com um livro, terá um conhecimento fragmentado,
visto que alguns conteúdos são trabalhados de forma simplifi-
cada. Apresentar aos alunos que em algumas páginas não é
possível abordar mil anos de História e muito menos resgatar a
171
riqueza dessa história do medievo é essencial, para que não
entendam aquelas abordagens como únicas e absolutas, como
se a História estivesse pronta e acabada.
De acordo com os PCN’s, não faz sentido estudar os fatos
da história de forma isolada, mas apresentar as rupturas, conti-
nuidades, permanências, mudanças. E no que diz respeito à
Idade Média, não há conteúdos mais ou menos importantes,
alguns livros fazem escolhas diferentes dos assuntos, mas o que
importa é perceber quais impactos, a seleção terá sobre o de-
senvolvimento crítico dos alunos. Apesar de alguns preconcei-
tos persistirem, os estudos medievais têm avançado no Brasil, e
os pesquisadores também. Assim, acreditamos que quando os
especialistas interferirem mais nos livros didáticos, com profes-
sores mais capacitados para analisar, utilizar e reavaliar o livro,
sem dúvida, o livro didático poderá de forma mais adequada
contribuir para o cotidiano dos alunos.
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174
HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-
BRASILEIRA NA LITERATURA DIDÁTICA DE
HISTÓRIA
Introdução
Há mais de uma década, o ensino de história e cultura a-
fricana e afro-brasileira, respaldado pela Lei n° 10.639/2003
passou a ocupar um espaço que deveria ser respeitado no cur-
rículo e no cotidiano escolar. Contudo, esse ainda é um grande
desafio nas salas de aula do país. Assim, pretendo evidenciar os
espaços destinados a esse conteúdo nos livros didáticos da
coleção “História, Sociedade e Cidadania” (2015) de Alfredo
Boulos Júnior, utilizada no Ensino Fundamental do Centro de
Ensino Sotero dos Reis em diálogo com o Plano Nacional do
Livro Didático (PNLD), além de pensar na trajetória desse conte-
údo no âmbito da educação básica brasileira, tanto nos docu-
mentos legais como nos manuais didáticos.
A escolha dessa unidade escolar se dá devido à pesquisa
desenvolvida desde 2016, em que objetivo perceber os lugares
e não lugares das religiões afro-brasileiras no cotidiano, currícu-
lo e manuais didáticos utilizados em sala de aula. Tendo em
vista que, especialmente a partir da implantação da referida Lei,
surgiram várias produções e discussões relativas ao tema. Con-
tudo, as dificuldades não são menos relevantes, pois permanece
o desafio de revisar conteúdos e promover uma reeducação das
práticas comportamentais historicamente arraigadas acerca dos
afrodescendentes e da população negra.
175
Sales Augusto dos Santos (2005) argumenta que, histori-
camente, o sistema de ensino brasileiro pregou, e ainda prega,
uma educação formal de embranquecimento cultural em senti-
do amplo e que exclui a população negra. Diante disso, ao per-
ceberem a inferiorização dos negros, ou melhor, a produção e a
reprodução da discriminação racial no sistema de ensino brasi-
leiro, os movimentos sociais e intelectuais negros militantes
passaram a reivindicar espaço na educação para a história e
cultura africana e afro-brasileira e a luta dos afrodescendentes
no Brasil. Considerando as pressões antirracistas, legítimas rei-
vindicações dos movimentos sociais e políticos de diversas ten-
dências ideológicas, em vários estados e municípios brasileiros,
reconheceram a necessidade de reformular as normas estaduais
e municipais que regulam o sistema de ensino.
Vale destacar que a educação brasileira historicamente se
constituiu pautada na ausência da história do negro, e essa
realidade só foi se modificando após inúmeras mobilizações por
parte de representações dos movimentos negros, intelectuais e
alguns outros grupos da sociedade, que surgiram com o intuito
de inserir a história desses povos nos currículos escolares. Nos
anos 1950, durante o I Congresso Brasileiro do Negro realizado
no Rio de Janeiro e organizado pelo Teatro Experimental do
6
Negro (TEN) , emergiam as primeiras reivindicações referentes
ao assunto, tendo em vista que por muito tempo os afrodes-
cendentes foram excluídos do processo de escolarização do
país, tanto como alunos quanto como sujeitos históricos.
6
Engajado a estes propósitos, surgiu, em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro
Experimental do Negro, ou TEN, que se propunha a resgatar, no Brasil, os valo-
res da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados por
uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a baga-
gem mental de sua formação metropolitana europeia, imbuída de conceitos
pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a
trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da
cultura e da arte (NASCIMENTO, 2004, p.01).
176
Posto isso, pode-se notar que há mais de seis décadas há
exigências por parte de movimentos sociais e outros segmentos
da sociedade pela inserção dessa parte da história na sociedade
nacional, pautadas no pressuposto de diminuição do racismo
através do acesso à educação. “Essa é uma mudança significati-
va em termos de posicionamento político e marca o processo
de gestação desse segundo projeto de nação que vem repercu-
tir, para além dos meios de militância nos dias de hoje” (BAKKE,
2011, p. 8).
A década de 1970 é marcada por grande efervescência
de discussões sobre a temática, sobretudo no que tange ao
reconhecimento e valorização da identidade afrodescendente.
Nesse momento, “a educação formal passou a ser reivindicada
não mais como forma de inclusão do negro na sociedade de
classe, mas como veículo para a tomada de consciência da “i-
dentidade negra” (BAKKE, 2011, p.47). Em 1978, cria-se o Movi-
mento Negro Unificado (DOMINGUES, 2007), que consegue,
com o processo de redemocratização e através de mobilizações,
inserir algumas contribuições na Constituição de 1988.
Outros marcos merecem destaque nesse processo, como
os desdobramentos da Marcha 300 anos de Zumbi dos Palmares
Contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, realizada no dia
20 de novembro de 1995. Nessa ocasião, cerca de 30 mil pesso-
as se reuniram em Brasília para denunciar a ausência de políti-
cas públicas para a população negra e foi entregue ao então
presidente, Fernando Henrique Cardoso, algumas reivindica-
ções, nas quais a educação ganhava destaque. Em reconheci-
mento à importância de Zumbi, a data foi transformada oficial-
mente pela lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, no Dia
Nacional da Consciência Negra. Em decorrência disso, “o gover-
no brasileiro, em virtude das mobilizações ocorridas em todo o
Brasil, em especial da “marcha” reconheceu pela primeira vez a
existência do racismo. A visão oficial de uma nação miscigenada
levava aqui um importante golpe” (BAKKE, 2011, p.51).
177
[...] ao perceberem a inferiorização dos negros, ou melhor, a
produção e a reprodução da discriminação racial contra os ne-
gros e seus descendentes nosistema de ensino brasileiro, os
movimentos sociais negros (bem como os intelectuais negros
militantes) passaram a incluir em suas agendas de reivindica-
ções junto ao Estado Brasileiro, no que tange à educação, o es-
tudo da história do continente africano e dos africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional brasileira. Parte desta reivindi-
cação já constava na declaração final do I Congresso do Negro
Brasileiro, que foi promovido pelo Teatro Experimental do Ne-
gro (TEN), no Rio de Janeiro, entre 26 de agosto e 04 de setem-
bro de 1950, portanto, há mais de meio século (SANTOS, 2005,
p. 23).
7
O advento da Lei nº 10.639/2003 se deu em meio a um intenso debate social
amplificado pela mídia, que expressava os primeiros impactos da implantação
de programas de ação afirmativa em algumas universidades brasileiras. O texto
das "Diretrizes" apresenta dimensões normativas relativamente flexíveis, suge-
rindo referências, conteúdos e valores para a ação docente, em consonância
com o pressuposto formativo e educativo da valorização da pluralidade cultural
- mote, aliás, já presente nos Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, de 1998 (PEREIRA, 2001, p.1).
8
O ano de 2008 demarcou a promulgação da Lei 11.645, que dispõe sobre a
obrigatoriedade do tratamento da temática afro-brasileira e indígena em todo o
sistema escolar brasileiro. Tal lei viria ampliar o sentido previamente constituído
pela lei 10.639, do ano de 2003, que pela primeira vez na história do país torna-
va obrigatório o enfrentamento escolar da questão das relações étnico-raciais
em todas as suas implicações curriculares e cotidianas. As duas leis representam
um ponto importante de mudança numa estrutura de silenciamento e produção
de muitos estereótipos que, ao longo de mais de um século, vem demarcando
práticas e discursos escolares (BRASIL, MEC, PNLD, 2016, p. 31).
178
rando, com isso, a Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996.
Na educação o olhar para o diverso é reflexo da consolidação
das políticas públicas concretizadas a partir dos anos de 1990.
Nessa década tivemos a promulgação da Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional – LDB n. 9394/96, a inserção dos Pa-
râmetros Curriculares Nacionais – PCNs (1997) na educação
brasileira, que permitiram o desenvolvimento de propostas me-
todológicas de valorização das diferenças que, em seguida, com
a Lei 10.639/03 tivemos a regulamentação do trato ao conceito
de diversidade redefinido por meio do ensino de História e Cul-
tura Africana e Afro-brasileira nas diferentes modalidades de
ensino. A inserção dessa temática se dá também por meio das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais que estabelecem os parâmetros de inserção de
conteúdos e abordagem (KATRIB; TEIXEIRA, 2014, p. 1).
179
étnico-raciais de forma a diminuir o racismo, seria necessário
conhecer, estudar, aprender sobre a história e cultura dos povos
africanos que foram trazidos para o Brasil e sobre a história e
cultura que produzem seus descendentes.
Neste contexto, é válido esboçar reflexões sobre os im-
pactos dessa Lei nas escolas. Até os anos 2000, segundo De
Paula e Guimarães (2014) as pesquisas apontam para forte invi-
sibilidade da história e cultura africana e afro brasileira nos anos
anteriores. O tema não é visível até década de 1990 para as
instituições de educação e pesquisa, em especial aquelas volta-
das para a formação dos professores para a educação básica e
para o ensino superior; na década de 2000, torna-se um dos
temas com crescente demanda e inserção no campo da pesqui-
sa, do ensino e da extensão, isso devido à implementação da
Lei. Posto isso, trago a seguir elaborações sobre a trajetória do
conteúdo sobre educação étnico racial nos manuais didáticos.
9
O material didático é construído com um objetivo muito específico que é
instruir o aluno, fornecendo informações e fixando-as por meio de exercí-
cios, eles são frequentemente utilizados nas atividades escolares, tanto em sala
de aula como fora, e caracterizam-se por uma linguagem direta e objetiva. Já o
livro paradidático, além de ensinar, também cumpre a função de divertir, nesse
sentido explora, com mais frequência, a linguagem lúdica, usando as dimensões
da razão, das sensações e das emoções para instruir (BAKKE, 2011, p. 95-96).
180
imbuída grande parte dos países africanos formados no século
XX, o que fica evidente que esse conteúdo torna-se, geralmen-
te, um complemento nos manuais didáticos.
Na realidade educacional das escolas brasileiras ainda existem
currículos e materiais didáticos silenciadores do preconceito,
das discriminações e das injustiças sociais historicamente prati-
cados contra a população africana no País. Muitas crianças, jo-
vens e adultos abandonam ou não ingressam no ensino formal
temendo nossos “males de origem” que persistem em adotar
nas nossas escolas padrões eurocêntricos mal digeridos e não
identificáveis com nossas raízes culturais em detrimento das
nossas bases culturais de natureza indígena, africana e Afro-
Brasileira. Este distanciamento cultural promove a sensação de
falta de pertencimento identificatório e contribui para aumentar
o índice de evasão escolar da população afro-brasileira. O chi-
cote ainda soa contra tambores da alegria e das gingas linguís-
ticas e corpóreas africanas e afro-brasileira presentes nos 4
(quatro) cantos deste imenso território. [...] percebemos que há
muita coisa a fazer e uma das ferramentas poderosíssima para a
construção voltada para nossas bases ou raízes culturais está na
construção descolonializada do currículo no Livro Didático
(XAVIER, 2015, p. 3).
10
Doutor em educação (área de concentração: História da Educação) pela ponti-
fícia universidade católica de São Paulo. Mestre em ciências (área de concentra-
ção História social) pela universidade de São Paulo. Lecionou na rede pública e
particular e em cursinhos de pré-vestibulares. É autor de coleções paradidáticas.
(Trecho retirado de um livro didático analisado)
184
ções. América: astecas, maias, incas e tupis. Unidade IV - Nós e
os outros: Espanhóis e ingleses na América. Colonização portu-
guesa: administração. Economia e sociedade colonial açucareira.
185
Imagens das capas da coleção História: Sociedade & Cida-
dania, Ensino Fundamental
11
[...] Portanto, desde 1981, o mais destacado dos movimentos sócias de defesa
dos direitos das populações negras no Brasil já reivindicava a inserção da Histó-
ria da África e dos afro-brasileiros nos currículos escolares, o que, por si só,
evidencia sua importância nas conquistas posteriores envolvendo legislação e
Estado. Nas décadas seguintes, o movimento negro manteve-se ativo e, junta-
mente com seus aliados da sociedade civil conseguiu uma grande conquista em
2003 quando coroada uma luta de décadas, foi promulgada a Lei de número
10.639/2003, que tornou obrigatório o estudo de história e cultura afro-
brasileira. (BOULOS JÚNIOR, 2015, p.348)
190
No livro do 8º ano o conteúdo aparece na primeira uni-
dade, Dominação e Resistência, logo no primeiro capítulo- Afri-
canos no Brasil: dominação e resistência. O capitulo tem 21 pá-
ginas e apresenta uma variedade de imagens, entre elas foto-
grafias, pinturas, gravuras, mapas e desenhos. Esta unidade
começa destacando a congada como forma de resistência dos
negros escravizados no Brasil. “E uma das formas de resistência
dos escravizados foi a congada, bailado em que eles represen-
tavam, entre cantos, danças e som ritmado dos seus tambores o
coração de um rei ou rinha do Congo, área sitiada no coração
da África” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p.10). Em seguida, mostra
algumas imagens do congo comparando o passado com o pre-
sente.
O capítulo começa com fotos de algumas personalidades
famosas e pergunta se os alunos conhecem e quais as contribu-
ições de cada uma para a vida social brasileira. Em seguida,
apresenta um tópico perguntando se havia escravidão na África
antes dos europeus e para responder utiliza o livro A África na
sala de aula de Leila Leite Hernandez. Depois frisa na chegada
dos europeus e os problemas que isso acarretou no continente,
como guerra, escravidão e tráfico transatlântico, trazendo in-
formações sobre a quantidade e origem dos sujeitos que foram
escravizados, sempre legitimando com pesquisadores no assun-
to. “Na estimativa do historiador David Eltis, um especialista no
tema, cerca de 12,5 milhões de escravos deixaram a costa da
África entre 1500 e 1867. Destes 4,9 milhões desembarcaram
em portos brasileiros.” (BOULOS JÚNIOR, 2015, p.14) E assegura
ainda que boa parte do que hoje é a América foi construída
com o trabalho desses africanos e seus descendentes.
O capítulo, no geral, trata do processo de escravidão com
foco nas práticas de resistência, apresentando elaborações so-
bre quantidade, origem, travessia, trabalho na América, alimen-
tação, violência e, neste último caso, com imagens de objetos
de tortura. No “box” para saber mais traz a história da negra
191
Anastácia, “uma negra de olhos azuis, altiva e muito bonita, por
sua beleza teria despertado ciúmes na mulher do seu senhor
que, por isso, obrigou-a a usar uma máscara de flandres. Vítima
de maus tratos Anastácia teria morrido ainda muito jovem”
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p.14).
Outro “box”, Para refletir, narra com detalhes uma histó-
ria, ocorrida em 2015 no Maranhão, institulada: Terra da vergo-
nha, em que conta a experiência de Antônio, homem pobre que
foi vendido por R$ 80,00 para um fazendeiro maranhense para
trabalhar na derrubada de mata e limpeza de pasto. Em seguida
pergunta ao aluno, você sabia que a escravidão ainda está sen-
do praticada no Brasil? Que elementos da história apresentam
que era trabalho escravo? o que poderia ser feito para pôr um
fim a essa história?
No final do capítulo aponta diversas formas de resistência
dos negros escravizados, “eles resistiam praticando religiões de
origens africanas, jogando capoeira, promovendo festejos, co-
mo o congado, o reisado, o jongo e fundando irmandades”
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p.21). Além dessas, destaca também o
suicídio, a fuga e a criação de quilombos, com ênfase para o
Quilombo dos Palmares, e termina com elaborações sobre re-
manescentes de quilombos. Tudo o que está disseminado no
capítulo aparece nas atividades de forma criativa e contextuali-
zada, com questões subjetivas que utilizam recursos diversos
para despertar e aguçar no aluno a hábito de pesquisar e rela-
cionar os tempos.
No capítulo 11, Regências: A unidade ameaçada, é traba-
lhada a Revolta dos Males na Bahia. “Em Salvador, na Bahia, em
25 de janeiro de 1835, eclodiu a mais importante revolta escra-
va já ocorrida numa cidade brasileira, na época essa revolta era
chamada de insurreição Nagô, nome dado aos Iorubás na Bahi.”
(BOULOS JÚNIOR, 2015, p.223). Depois de breves informações
sobre os desdobramentos da revolta, destaca a figura de Gezo,
rei africano trazido para o Brasil no processo da escravidão e
192
também a figura de mulheres que usam turbantes, fazendo uma
comparação entre África e Brasil através de duas imagens.
O livro do 9° ano apresenta o conteúdo de África em dois
capítulos. O capítulo 1 Industrialização e imperialismo, nos tópi-
cos imperialismo na África e resistência africana. E o capítulo 10
Independências: África e Ásia. O primeiro capítulo traz à tona a
África no processo do imperialismo, “em 1880, 1/10 do territó-
rio africano estava ocupado pelos europeus; em 1900 os euro-
peus já tinham se apoderado de 9/10 da África” (BOULOS
JUNIOR, 2015, p.17). A divisão se dá em tópicos, sobre a ação
dos franceses, belgas, portugueses, alemães, espanhóis e ingle-
ses nos países africanos e em formas de resistência do povo.
“Os africanos reagiam à dominação europeia de diversas for-
mas, inclusive por meio de inúmeras revoltas, como a Rebelião
Ashanti e para descrever essa rebelião utilizando novamente
texto da historiadora Leila Leite Hernandez (BOULOS JUNIOR,
2015, p. 126)
O capítulo 10 começa com três imagens de diferentes ci-
dades africanas desenvolvidas e com construções modernas e
pergunta, você sabe onde ficam essas cidades? Com qual ou
quais cidades brasileiras se parecem? Dicas: essas cidades ficam
todas na África, e por seus portos saíram ancestrais de milhões
de brasileiros. Se África possui cidades prosperas, como essas
que você viu nas fotos, por que então na TV e no cinema é
mostrada quase sempre como uma grande savana habitada por
leões, girafas e elefantes? Por que a mídia quase nunca mostra
cidades africanas? O que isso pode significar? Depois apresenta
as razões da independência dos povos afro-asiáticos com des-
taque para os movimentos pan-africanista e negritude. Na pá-
gina seguinte, no “box” para saber mais traz uma música África
une-te de Bob Marley e em seguida fala do negritude, movi-
mento político-literário, nascido em fins dos anos 1930 e que
contribuiu com ideias que alimentaram as independências afri-
canas.
193
No decorrer dos três livros ocorrem imprecisões e simpli-
ficações. Ao descrever a cultura material e imaterial do conti-
nente, no que se refere às cosmologias africanas, em nenhum
momento o autor atenta para uma abordagem explicativa da
relação entre as diferentes percepções e definições ocidentais e
as elaborações africanas sobre a questão. Pouco se preocupa
em desmistificar estereótipos arraigados e em chamar atenção
dos alunos para as representações dos africanos feitas pelos
europeus, embora se preocupe em permitir a construção de
conhecimento e análises por parte dos alunos. “O trabalho com
os afrodescendentes não se limita à discussão sobre a escravi-
dão, enfatiza resistências e lutas no passado e no presente,
apresentando aspectos afirmativos da sua história e cultura”
(BRASIL, MEC, PNLD, 2016, p.108). O que se percebe é que essa
discussão se limita ao manual do professor.
A coleção apresenta um Projeto Gráfico-Editorial signifi-
cativo, tendo como pontos positivos a grande quantidade de
ilustrações, que possibilitam perceber a diversidade cultural,
material e imaterial do continente, contudo, isso fica pratica-
mente ausente no conteúdo escrito. Além disso, os capítulos
são compostos por diferentes tipos de textos: historiográficos,
literários, oficiais, bibliográficos, depoimentos, entrevistas e com
uma variedade de linguagens (cinematografia, fotografia, obras
de arte, desenhos e mapas).
Salienta-se a existência de um glossário, que aparece
com palavras em destaque disseminadas nas páginas, com ex-
plicações sobre conceitos, significados de palavras e expressões,
além de informar sobre nomes de lugares e pessoas. “A obra
utiliza recursos variados para promover a aprendizagem dos
estudantes, reconhecendo seus saberes e interesses e propondo
abordagens conceituais, procedimentais e atitudinais, de forma
coerente com a proposta didática expressa no Manual” (BRASIL,
MEC, PNLD, 2016, p.109).
194
Sobre as atividades que compõem os capítulos, de modo
geral, são bem contextualizadas e dialogam com a avaliação do
PNLD, “o desenvolvimento do pensamento crítico e a autono-
mia do estudante são bem explorados, em diferentes atividades
e textos, contribuindo para a superação da ideia de História
como verdade absoluta” (BRASIL, MEC, PNLD, 2016, p.108). A
proposta pedagógica da coleção se caracteriza pela proposição
de atividades diversificadas, que investem na leitura de textos e
de imagens, ensejando a promoção da crítica e do pensar histo-
ricamente. No geral, as questões são de interpretação, em que
o aluno precisa analisar o que está posto no enunciado com uso
de textos, mapas, contos, imagens, provérbios, entrevistas, etc.
E, em alguns casos, comparar concepções, por exemplo, no livro
do 7º ano, há uma questão referente a um conto africano sobre
a criação do universo em que pede que o aluno pesquise sobre
a versão bíblica da criação do mundo e dos seres humanos e, a
seguir, aponte uma semelhança e uma diferença entre essa
versão e o mito de yorubá apresentado.
Vale ressaltar que, em meio a diversos desafios que per-
meiam o âmbito escolar, um, particularmente, mobiliza muitos
atores: a proposição de um ensino que conecte, efetivamente,
os alunos a um saber contextualizado e que promova o prota-
gonismo juvenil, ou seja, a construção da compreensão de su-
jeito histórico. Diante do exposto, podemos aferir que discutir a
história da África é fundamental, além de ser um dos momentos
propícios para se trabalhar temáticas como a origem da desi-
gualdade social, do racismo e preconceito, tratar das relações
étnicas e raciais, das questões envolvendo intolerância religiosa,
etc. Para tanto, é preciso que a escola instrumentalize-se a fim
de fornecer subsídios para tratar dessas questões.
De acordo com os PCNS (1998), o que se busca é a cons-
trução de um repertório básico referente à pluralidade étnica e
cultural, suficiente tanto para identificar o que é relevante para
a situação escolar como para buscar outras informações que se
195
façam necessárias. Neste contexto, Oliva (2003) destaca que, a
partir da década de 1990, houve mudanças significativas nos
currículos escolares de história saindo-se de uma história positi-
vista e incorporando estudos tais como os marxistas e a Nova
História.
Com isso, podemos perceber um esforço na introdução
de novos eixos temáticos envolvendo abordagens diferentes,
associadas à escrita de manuais e que informavam os rumos
distintos que o ensino da disciplina História tomava. Entretanto,
é necessário pensar que mesmo com a maior abrangência do
ensino de história baseado na Nova História percebem-se mui-
tas lacunas. Por exemplo, os primeiros trabalhos que lançam
olhar sobre o conteúdo de África nos livros didáticos partiam de
uma visão eurocêntrica e muitas vezes causando visões impreci-
sas e distorcidas sobre essas questões. O que pode ser reflexo
de formações deficientes, de poucas bibliografias, e até concep-
ções pessoais de quem está elaborando esses materiais didáti-
cos. E isso nos faz refletir sobre o que se sabe sobre a África e
cultura afro-brasileira, e como se pode ensinar esse conteúdo
de forma livre de estereótipos.
Considerações Finais
Se o que passa efetivamente a ser considerado história,
ou parte dela, aquilo que configuraria a consciência histórica
dos estudantes, tem relação direta com esses livros didáticos e
as aulas nas quais eles são estudados, então, não há espaço
para os conteúdos referentes à história e cultura africana e afro-
brasileira nessa consciência em construção. Na medida em que
subvalorizam os processos sociais e culturais do continente
africano e dos afrodescendentes, e sobrevalorizam aqueles pro-
cessos que envolvem o continente europeu e seus descenden-
tes, pode-se argumentar que os livros didáticos do Brasil são
racialistas e racistas. E pensar nas implicações desse processo é
fundamental para compreender a formação dos alunos. Esses
196
manuais são permeados por lacunas, imprecisões e exclusões
de conteúdos em detrimento de outros. A questão das relações
raciais aparece de forma muito sutil e embora traga informa-
ções pertinentes no manual do professor deixa a desejar na
parte destinada aos alunos.
Diante do exposto, podemos aferir que ensinar a história
da África aos alunos é a única maneira de romper com a estru-
tura eurocêntrica que caracterizou a formação escolar brasileira.
Além de ser um dos momentos propícios para se trabalhar te-
máticas como a origem da desigualdade social, do racismo e
preconceito, tratar das relações étnicas e raciais, das questões
envolvendo intolerância religiosa, etc. Para tanto, é preciso que
a escola instrumentalize-se para fornecer informações mais
precisas a questões que vêm sendo indevidamente respondidas
pelo senso comum ou simplesmente ignoradas por um silêncio
constrangedor.
Portanto, o que se busca é a construção de um repertório
básico referente à pluralidade étnica/cultural, suficiente tanto
para identificar o que é relevante para a situação escolar como
para buscar outras informações que se façam necessárias. Essa
informação deverá também contribuir na constituição da me-
mória coletiva do aluno, bem como na identidade nacional que
se reconstrói cotidianamente. Assim, evidencia-se que, é no
interior desse amálgama que podemos articular discussões e
levar os alunos a reflexão através do diálogo do tema em ques-
tão com suas vivências, contudo, para isso é necessário ocorrer
mudanças significativas no âmbito da sala de aula, principal-
mente, voltada para a desconstrução da imagem negativa do
continente africano na literatura didática vigente e na formação
dos professores.
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cial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temárica “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
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200
ENSINO DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA: A
ESCRITA DA HISTÓRIA DE ISRAEL ANTIGO NOS
LIVROS DIDÁTICOS E SUAS PROBLEMÁTICAS
Introdução
Os debates em torno e sobre os livros didáticos no país
por alguns longos anos passaram silenciados dentro do campo
historiográfico, mesmo sendo este um elemento tão presente
no cotidiano escolar e potencializador na construção de uma
consciência acerca dos entornos que cercam alunos e alunas
para fora da sala de aula.
Percebendo a importância da problematização sobre o
que tem sido ensinado no ensino de História através deste ob-
jeto pedagógico, nos propomos neste trabalho a destacar a
desnaturalização do livro didático como parte do processo de
ensino-aprendizagem, dando ênfase aos seus aspectos de e
para um público que o consumirá a partir das linhas editoriais
reguladas e regulamentadas devidamente pelo Programa Na-
cional do Livro Didático (PNLD).
Escolhemos por analisarmos o capítulo 8 titulado Hebreus
e Fenícios do livro Estudar História: das origens do homem à era
digital, da editora Moderna em sua 1ª edição. A autoria do ma-
terial didático é da historiadora e mestra em História Patricia
Ramos Braick. O livro é parte do acervo pedagógico do Colégio
Universitário (COLUN) da cidade de São Luís do Maranhão, lo-
calizado dentro da cidade universitária da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), reconhecido por oferecer uma educação
pública de qualidade aos alunos e alunas da instituição.
201
Com as seguintes informações, desenvolvemos nosso
trabalho na perspectiva de refletirmos sobre a construção da
escrita da história judaica nesse capítulo, contrapondo a histori-
ografia tradicional do tema em conjunto com alguns novos
debates realizados sobre. A análise tem sua relevância no to-
cante a forma, sobretudo como a história de um povo muito
mais tem tons de uma meta-história, apoiada inteiramente ape-
nas nos relatos bíblicos, do que construída em formas interdis-
ciplinares de se fazer e discutir historicidades de um grupo hu-
mano.
Desta forma, pretendemos, ao apontar algumas reprodu-
ções não problematizadas em sala de aula, oferecer novas a-
bordagens acerca do tema e indicar aos professores e professo-
ras que o que ali está posto não poderá em tempo algum ser
lido enquanto uma verdade absoluta. Ao contrário disto, a es-
crita da História é uma construção em que há disputas e esco-
lhas historiográficas e editoriais para que o livro didático, en-
quanto produto possa servir a quem o interessar, conforme o
público que o receber.
205
A compreensão da materialidade do livro didático como
um objeto a ser analisado e desnaturalizado o que nele contém,
perpassa em conhecer a produção, a edição, circulação desses
livros, o seu consumo, o público que o receberá e aquele que o
escolherá, “o livro didático, então, é uma mercadoria destinada
a um mercado específico: a escola” (MUNAKATA, 2005, p. 185).
Em outras palavras, além de ser um produto submetido a uma
lógica industrial e cultural, e ser um suporte didático para apli-
cabilidade de métodos, o livro didático é antes disso uma mer-
cadoria, veículo de transmissão de ideologias, valores, represen-
ta um determinado grupo social e tem que ser analisado como
tal (FERREIRA, 2005, p. 69).
Ao observarmos a própria cronologia das ações do go-
verno brasileiro em relação ao livro didático, nos anos 1930 ele
funcionou como um censor pela via educacional, ou seja,
constata-se que, embora a estruturação de um programa de
avaliação determinante dos processos de compra seja algo rela-
tivamente recente, o estabelecimento de uma política pública
para o livro didático remonta ao Estado Novo, quando se insti-
tuiu, pela primeira vez, uma Comissão Nacional de Livros Didá-
ticos, cujas atribuições envolviam o estabelecimento de regras
para a produção, compra e utilização do livro didático
(MIRANDA; LUCA, 2004,p. 48).
206
aprendizagem, de maneira mais específica no que tange a edu-
cação pública do país a partir de seus interesses.
Desta forma, o que podemos observar, é que a educação
no Brasil é uma via também de projeção de intenções modela-
doras de condutas, sobretudo a partir das políticas educacionais
voltadas para a produção dos livros didáticos. Ou seja, podemos
dizer que este material também é um produto ideológico que
reproduz interesses diversos de grupos que veem nos materiais
educativos possibilidades de consumo a partir de determinadas
opções conteudísticas. Alain Choppin (2004) segue a mesma via
de compreensão acerca do que sejam os livros didáticos, que
para além de suportes pedagógicos, são instrumentos de sele-
ções culturais diversas com “verdades” – questionáveis - a se-
rem difundidas.
A trama de produção faz com que os mesmos sejam re-
sultados de interesses de mercado, projetos escolares, compra-
dores e leitores como já tocados mais acima. Portanto, com
efeito, percebendo a complexidade entorno deste produto di-
dático, o PNLD aprimorou com mais rigor as suas avaliações
através de Comissão Técnica (MIRANDA; LUCA, 2004). Como
mecanismo jurídico dentro desse processo de controle a respei-
to das distribuições desses produtos, o Programa foi estabele-
cido oficalmente através do Decreto n. 9154/85, que instituiu o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), com suas várias
comissões.
Encaminhando-nos nesta perspectiva, é importante que
os/as professores/professoras de História compreendam que,
o livro didático é uma das fontes de conhecimento histórico e,
como toda e qualquer fonte, possui uma historicidade e chama
a si inúmeros questionamentos (FONSECA, 2003, p.56, apud
TIMBÓ, 2009, p. 4).
207
vista toda a complexidade que cerca as questões sobre estes
objetos pedagógicos. Educar não é simplesmente informar, e
em se tratando do ensino de História, o passado pelo passado
não se explica. A relação entre o ensino e a pesquisa deve ser
contínua e possibilitada também para que no processo da
transposição didática, o que em sala de aula for debatido, sen-
tidos sejam criados na vida particular de quem ouve. E a Histó-
ria em sua prática detém essa característica de encaminhar criti-
cidades no/na aluno/aluna.
As provocações lançadas a partir do momento em que o
livro passa do estágio de leitura, como um simples corpo de
texto editorial, para uma fonte histórica, que também precisa
receber indagações, torna a sala de aula mais do que um espa-
ço de compartilhamento, mas de construção de mudanças soci-
ais a partir do próprio tempo histórico debatido no decorrer da
disciplina. Os conceitos criam sentidos, os temas recebem utili-
dades para novas formas de ler o mundo, e o ensino, para além
de um ato profissional mecânico, passa a ter uma funcionalida-
de de conscientização sobre o ser humano como agente e su-
jeito de sua própria história.
Partindo dessas questões, portanto, necessário é que os
estudos sobre os livros didáticos se ampliem para que o proces-
so de ensino-aprendizagem seja compreendido como um pro-
cesso consciente, em que existem interesses e que isto deve,
por sua vez, ser preocupação de historiadores e historiadoras na
perspectiva de descobrir como a História tem sido ensinada,
qual tem sido a sua função e para que a mesma tem servido.
Os debates não caberiam em linhas sobre estas proble-
máticas, mas diante da rede alinhavada pelas produções destes
materiais envolvendo diversos atores, ainda assim professora e
professor, aluno e aluna, são as principais personagens destas
discussões, pois são estes que, em sala de aula, constroem no-
vas leituras de mundo e sociabilidades.
208
Sendo assim, interessa-nos refletir sobre estes instrumen-
tos que muito comumente estão no meio destas relações, não
somente cumprindo práticas curriculares pedagógicas, como
também servem de materializações de opções políticas de pro-
jetos de Estado. E pensar nestas questões, é pensar quais são os
(des)caminhos que o ensino de História tem percorrido e ainda
poderá percorrer.
1
Ainda que hora ou outra do texto nos utilizemos do termo judaísmos para nos
direcionarmos ao grupo analisado, em consonância com sua estrutura social,
não cabe aqui o significado de religião no sentido moderno do conceito. Mas,
assim o vemos enquanto um conjunto de regras, práticas, costumes e símbolos,
conforme Miranda, Malca (2001, p. 53).
210
ao longo do capítulo você vai estudar alguns acontecimentos
da história judaica narrados pela Bíblia, compreender os víncu-
los históricos dos judeu com a Palestina e perceber que outros
povos também viveram nessa terra (BRAICK, 2011,p. 121).
2
Sua primeira edição aparece em Roterdã em 1706-1707.
211
divina no curso humano. Ele, sobretudo, generaliza, fundamen-
tado em sua carga protestante-cristã (e afinidade com a nação
judaica), o processo político conflituoso eminente na sociedade
judaica que antecedeu a queda do Segundo Templo. E sob esta
óptica, postula-se a primeira “História universal” do povo judeu
e emergencial compreensão que houve sobre a história deste
grupo.
Entre divergência e uma leve e melindrosa concordância,
Heirinch Ewald, orientalista, teólogo protestante, caracterizou
durante o século XIX, cada “nação-época” por um “fim”, ou seja,
cada história mundial é marcada pela história de um povo parti-
cular que tem por missão trabalhar a realização dessa ideia fun-
damental. Esses povos cada qual em seu tempo e em função de
seu gênio próprio, são atores da história, na medida em que
trazem para a cena undial a ideia que os habita, que realizaram
e elevaram a perfeição (SCHMDITH, 1994, p. 40-41).
212
unicidade do povo e tempo de espera pelo “rei-messias”. Mo-
delo de governo: monarquia teocrática;
3. Regresso do exílio: destacou-se a figura de Esdras e o anun-
ciado fim com a chegada das duas grandes guerras judaicas
que concluirão a história desse povo.
Uma leitura linear destas etapas ou épocas pôde também
ser verificada na temática do mesmo livro didático, conforme
segue as imagens:
213
Imagem III:
Ponto 1. Momento da liderança dos
juízes.
Ponto 2. Após a morte de Saul,
tentativas frustradas de unicidade
do povo, resultando assim na divi-
são do Reino de Israel, p. 127.
214
Em suma, para o autor, o judaísmo seria como uma etapa
anterior à história de Israel, e o cristianismo como uma próxima
etapa para a conclusão da história do povo judeu. Estas leituras
e interpretações historiográficas, de maneira direta, refletem na
forma como a história judaica é apresentada, de maneira linear
e em etapas. Há que se ressaltar também, sobre a imagem co-
mo forma de representação para o momento do Cativeiro da
Babilônia destacado na mesma página 128 em que o tema so-
bre A divisão do Reino de Israel é apresentado como já apon-
tada acima no texto na imagem IV:
215
estivessem na ausência do corpo sacerdotal e na ausência do
seu espaço sagrado (o Templo).
Em se tratando de números, o segundo livro dos Reis
24,14 alguns indícios são indicados quanto a quantidade de
exilados na primeira campanha babilônica (em 597 a.C., na épo-
ca de Joaquin), apontando uma numeração de dez mil. Entre-
tanto, o versículo 16, do mesmo capítulo, reduz o número para
8 mil exilados. Contudo, o livro de Jeremias 52,28-30 relata que
o total de deportados para a Babilônia chegou a 4.600 dos ha-
bitantes de Judá.
Mediante a estes números em altas escalas, é necessário
que observemos que quando autores do mundo antigo nos
apresentam sob estes modelos de categorias numéricas eleva-
das, em tempo algum podemos entendê-los como exatos. Estes
seriam apenas parâmetros de como deveríamos interpretá-los a
partir de uma grande porporção, e que se estes foram citados
em larga escala, significa que o número representava uma pe-
culiaridade importante naquele cenário, na tentativa de ressaltar
que de fato foi um grande contingente, porém, não precisa-
mente aquele descrito.
Paralela às contribuições que Schmidth com maestria a-
presentou para o campo historiográfico da história do judaísmo
3
antigo, algumas teorias a partir da ciência bíblica por um viés
tradicionalista, estruturalista e histórico-social também permea-
ram de maneira determinante os estudos que definiram a escri-
ta da história deste grupo, o que nos conduz a críticas imediatas
quando, sem problematizações, apresentam a História a partir,
sobretudo, das narrativas bíblicas. Como podemos observar, o
livro didático apresentado segue esta mesma linha interpretati-
3
Para um maior aprofundamento do tema, ver mais em: BERLESI, Josué. História,
arqueologia e a cronologia do Êxodo: historiografia e problematizações. Disser-
tação – Escola Superior de Teologia Instituto Ecumênico de Pós-Graduação. São
Leopoldo, 2007.
216
va, destacando apenas a literatura bíblica como fonte exclusiva
para a compreensão da história de Israel Antigo.
Dentro das pesquisas sobre este tema, a arqueologia tem
um papel fundamental na busca pelos vestígios desse momento
histórico, o que em momento algum do capítulo é levantado ou
no mínimo citado. Os estudos arqueológicos nos apresentaram,
em 1962, dados que em muito contribuíram para as pesquisa
sobre Israel na antiguidade, como por exemplo um lote de pa-
piros em aramaico encontrados em uma gruta ao norte de Jeri-
có, cujo assunto tratava-se de temas jurídico-administrativos
provenientes da Samaria com a datação de 375-335 AEC. Fora
outras fontes, já do século I e.c, como os relatos de Flavio Jose-
fo que saem da lógica das narrativas bíblicas como sinais dos
judeus na história.
Contudo, este modelo de interpretação sobre a bíblia
com privilégios de “verdades inquestionáveis”, caracteriza uma
das três concorrentes interpretações dadas aos seus textos. Este
viés interpretativo define os maximalistas, que, no geral, em um
sentido de comprovação dos eventos narrados, dispõem de um
esforço para que a pesquisa torne-se uma verificação material
da autenticidade bíblica (BERLESI, 2007, p. 7).
219
A partir destas três correntes teóricas, cristalizaram-se
compreensões sobre os eventos ocorridos neste território em
seu mundo antigo, o que, por conseguinte, também desenca-
deou interferências em suas práticas religiosas, em sua própria
identidade e memória: a) “teoria da unidade racial e conquista
de Canaã”; b) “teoria da unidade pela prática e ocupação pacífi-
ca”; e c) “teoria da insurreição camponesa” (MARIANO, 2007).
Passível de verificações no fragmento do capítulo anali-
sado quando se enfatiza a prática da agricultura, situando o
povo hebreu dentro de uma lógica campesina, apenas engen-
drando uma das teorias mais recorrentes sobre os “prelúdios”
do povo hebreu. Como podemos observar na imagem a seguir:
221
Em concordância com Nogueira (2010), tal conceito mui-
to mais criou problemas do que soluções, pois pressupõe prin-
cípios universais e atemporais para a história do judaísmo como
se sua sobrevivência não tivesse também dependido do inter-
câmbio para além de sua própria fronteira. O que muito pouco
é ressaltado nas linhas do livro didático ao não mencionar esses
contatos na Bacia do Mediterrâneo, negando o princípio meto-
dológico ao trabalhar antiguidade a partir da história compara-
da.
Considerações finais
O debate sobre os livros didáticos como um elemento a
ser problematizado dentro do processo de ensino-
aprendizagem e, sobretudo como fonte para o historiador e
historiadora, é primordial para que o espaço escolar também
receba novos olhares e novos questionamentos. Como um lugar
de construção e produção de saberes, seja o corpo docente
quando o discente, devem por sua vez ser objetivos de pesqui-
sas na tentativa de repensarmos o modelo posto de ensino,
buscando novas estratégias e abordagens de conteúdos tantas
vezes engessados ou silenciados em suas problemáticas, princi-
palmente aqueles que compõem os currículos escolares do
ensino de História.
De maneira particular no que tange à história dos He-
breus, o desafio é compreender que mesmo diante ao muito
que sobre o mundo judaico fora produzido, devemos nos ater
aos esforços para que de maneira criteriosa, as análises histori-
ográficas sobre a tradição judaico-cristã superem os limites de
uma meta-história (história de salvação). Deste modo, a escrita
da História não deve estar subordinada às questões modernas
que lhe impuseram como se o sagrado do mundo antigo esti-
vesse separado do entorno que dá o seu contorno histórico. Ou
seja, é preciso não esquivar-se da singularidade do religioso e
não separar estas dessemelhantes perspectivas.
222
Portanto, optarmos por uma pluralidade ao invés da sin-
gularidade é vermos a história do povo judeu por baixo e não
pelos olhares suspensos com juízos determinantes em silenciar
entre o sagrado e o mundo material da História pluralizada dos
judaísmos que construíram o mundo antigo com suas variáveis
inseparáveis. Olharmos de forma universalizante, captando a
diversidade de uma mesma sociedade, nos possibilita compre-
ender as razões pelas quais leituras dicotômicas sobre o cenário
bíblico desembocaram, já visualizando suas consequências ma-
teriais. Por isso, mediante a estes desafios de uma história reli-
giosa universalizada e engessada,
não importa se o estudioso acredita ou não que a experi-
ência com o invisível seja verdadeira, pois independente
disto o que se busca (e o que se pode buscar) está no
discurso no qual o indivíduo apresenta, seja em escritos
ou na própria fala, e não na compreensão do transcen-
dente (PIRES, 2009, p. 4).
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226
O NAZISMO NOS LIVROS DIDÁTICOS: UMA
ANÁLISE CRÍTICA
Introdução
Em 1952, Anísio Teixeira, que até então era um dos prin-
cipais expoentes da chamada Escola Nova no Brasil, ao assumir
a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP),
divulgou a necessidade da produção de guias e manuais de
ensino para professores e diretores de escolas, além de um livro
didático para a compreensão do livro texto e um livro de fontes.
A Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino (CALDEME),
assim como ficou conhecida após sua consolidação e a trans-
formação do INPE num órgão mais legislador de estudos e pes-
quisas, é transferida para o âmbito da Divisão de Estudos e
Pesquisas Educacionais (DEPE), do Centro Brasileiro de Pesqui-
sas Educacionais (CBPE), criados em 1956.
O objetivo inicial da CALDEME, para a elaboração de um
manual de história do Brasil destinados a professores do ensino
básico, era:
A elaboração do manual será orientada pelo objetivo de pro-
mover, entre os professores secundários do país, um movimen-
to de renovação no tocante à matéria a ser ensinada e aos mé-
todos de ensiná-la, a fim de tornar a matéria e o método mais
adequados aos interesses do adolescente e ao ambiente em
que vive (MUNAKATA, 2004, p. 516).
228
grama Nacional do Livro Didático (PNLD). Este programa tinha
por objetivo universalizar, gradativamente, o uso do livro didáti-
co, através da distribuição gratuita dos títulos escolhidos pelos
professores a todos os alunos das escolas públicas e comunitá-
rias do país (Panfleto Informativo PNLD/ FNDE, 2002).
Segundo a explicação de Silva (2012), o PNLD funciona,
grosso modo, da seguinte maneira. Uma equipe de pareceristas
formada por professores/pesquisadores de diversas universida-
des públicas brasileiras e que, mais recentemente, incorporou
alguns professores do ensino básico, produz um catálogo com
uma resenha de cada uma das coleções aprovadas pela equipe
para participar das edições trienais do programa. Por meio do
Guia do Livro Didático e/ou de folders publicitários e/ou da
análise direta dos livros, os professores de cada escola pública
escolhem o livro com o qual trabalharão com seus alunos du-
rante os três anos seguintes. Os livros solicitados em cada esco-
la são encomendados junto às editoras e distribuídos gratuita-
mente aos estudantes. Cada estabelecimento de ensino pode
solicitar novos títulos ou manter a escolha dos mesmos para
uma nova compra a cada intervalo de três anos (SILVA, 2012, p.
811).
Este programa é, sem dúvida, um grande negócio para as
editoras. Ter um livro de seu catálogo escolhido por diversas
escolas brasileiras é a garantia de uma vendagem certa. A pro-
dução é feita a partir da encomenda estatal. Mesmo pagando
um preço bem menor do que o valor de venda do material em
livrarias, as compras do governo federal têm permitido que as
editoras ampliem bastante o faturamento, já que o volume de
negócios é muito grande. A alta lucratividade do setor vem da
enorme quantidade vendida.
Nos livros didáticos de História, a equipe de pareceristas
avalia se a “coleção/obra foi concebida e organizada segundo
uma metodologia de ensino-aprendizagem que seja adequada
às finalidades e às especificidades dos alunos” (BEZERRA, 2003,
229
p. 36), além de procurar encontrar nas obras uma contribuição
para o aprimoramento da ética e a construção da cidadania. No
campo mais específico da disciplina História, o foco avaliativo
alicerça-se no pressuposto de que a
transposição didática, que se traduz em saber escolar, deve par-
tir do pressuposto de que o conhecimento produzido pelos his-
toriadores será sempre o ponto de referência para os autores
de livros didáticos. Assim é importante avaliar se a coleção, na
exposição dos conteúdos específicos da área de História, está
em sintonia com as metodologias próprias da disciplina históri-
ca (BEZERRA, 2003, p. 36).
232
rências metodológicas graves entre a proposta explicitada e
aquilo que foi efetivamente realizado ao longo da obra.
Para as editoras, a criação de uma obra não estava intei-
ramente ligada às orientações metodológicas ou às ideologias
contidas em seu conteúdo. Sua importância se dava a partir dos
níveis de vendagem e aceitação no mercado. Os processos téc-
nicos de exclusão desempenhados pelo PNLD reverteram este
quadro. As editoras e os autores passaram a mudar as aborda-
gens construtivas no material didático para que se adequassem
às novas normas estabelecidas pelo PNLD, melhorando por
tanto o nível dos conteúdos presentes nesse material. Outro
ponto sensível, identificado em todas as pesquisas mais recen-
tes a respeito da escolha de livros didáticos, está no desempe-
nho agressivo das editoras no mercado, que se valem de sofisti-
cados esquemas de distribuição e vendas, a ponto de influir
decisivamente nos processos de escolha nas escolas de todo o
país. Naturalmente, as empresas mais bem estruturadas desfru-
tam de larga vantagem frente às editoras menores.
A problematização e a teorização relativas a esse contexto his-
tórico particular acabariam por gerar discussões a respeito da
formação da consciência histórica pensadas genericamente sob
o ponto de vista da manipulação, do controle ideológico e da
formação de mentes acríticas em função de falsificações delibe-
radamente inseridas no material didático destinado às crianças
e aos jovens. Vários trabalhos acadêmicos debruçaram-se sobre
a produção didática nacional desse período e evidenciaram os
compromissos ideológicos subjacentes, seu caráter manipula-
dor, falsificador e desmobilizador, que mal disfarçava o intento
de formar uma geração acrítica. Em relação à história ensinada,
a alusão às perspectivas analíticas ensejadas, sobre tudo por
Marc Ferro, constituía-se como uma tendência acadêmica sis-
temática que acabaria por exercer um papel importante no sen-
tido de constituir uma forma de pensar o livro didático de His-
tória e as políticas públicas a ele associadas exclusivamente en-
233
quanto políticas sociais discriminatórias e homogeneizadoras.
(MIRANDA, 2004, p. 125-126).
235
A produção de livros didáticos propicia uma enfadonha
rede entre saberes de referência, autores e editoras. Já o seu
consumo engloba tramas não menos relevantes entre mercado,
projetos escolares, compradores e leitores finais. A ação avalia-
dora do Estado implementa elementos que não podem ser
desprezados na compreensão das relações entre produção e
consumo, uma vez que os efeitos determinantes do mercado
impõem limites ao processo de renovação do perfil das obras e
ao diálogo entre o saber escolar didático e os saberes proveni-
entes das ciências de referência. Deve-se dar atenção também
aos elos possíveis entre a prática de avaliação vinculada a essa
política pública e o seu efeito indutor quanto às dimensões do
saber histórico escolar presentes nas obras didáticas.
De acordo com Miranda (2004), no Brasil, data da década
de 1990 a discussão a respeito das dimensões inerentes à Didá-
tica da História, problemática que tem se renovado constante-
mente desde então. Klaus Bergmann, já no início dos anos 90,
introduzia no Brasil uma discussão que hoje se renova através
da divulgação em língua portuguesa das abordagens propostas
por Jorn Russen a respeito das dimensões inerentes à Didática
da História. Segundo Bergmann,
refletir sobre a História a partir da preocupação da Didática da
História significa investigar o que é apreendido no ensino da
História (é a tarefa empírica da Didática da História), o que pode
ser apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da História) e o
que deveria ser apreendido (é a tarefa normativa da Didática da
História) (MIRANDA, 2004, p. 133-134).
236
histórico pelos alunos e a construção de conceitos dele deriva-
dos. Os livros didáticos de História se apresentam, até pelo seu
enorme grau de difusão, potencializado pela distribuição gratui-
ta aos estudantes de escola pública de todo o país, como uma
das mais importantes formas de currículo semi-elaborado, que
nascem a partir de distintas visões e recortes acerca da cultura.
Carregam consigo, portanto, múltiplas possibilidades de organi-
zação dessa relação entre o que é, o que pode ser e o que de-
veria ser aprendido em relação à disciplina. Segundo Lajolo, a
partir do texto de Cassiano (2004), o livro didático pode ser
caracterizado como o que vai ser utilizado em aulas e cursos, na
situação específica da escola, isto é, de aprendizado coletivo e
orientado por um professor. Provavelmente foi escrito, editado,
vendido e comprado em função da escola, sendo que esse tipo
de recurso didático vai ter sua importância ampliada em países
como o Brasil, nos quais as condições precárias da educação
fazem com que ele acabe determinando conteúdos e decidindo
estratégias de ensino. Diz ainda que o livro didático é instru-
mento importante de ensino e aprendizagem formal que, ape-
sar de não ser o único, pode ser decisivo para a qualidade do
aprendizado resultante das atividades escolares. E, finalmente,
para ser considerado didático, um livro precisa ser usado de
forma sistemática no ensino-aprendizagem de um determinado
objeto do conhecimento humano, normalmente caracterizado
como disciplina escolar.
Disponível em www.cartacapital.com.br/internacional/em-2017-o-auge-da-
extrema-direita-na-europa. Acessado em janeiro de 2018.
240
Uma vez que o Ensino de História tem como principal
função incentivar uma consciência critica aos alunos da educa-
ção básica e formar cidadãos capazes de participarem e influ-
enciarem na sociedade, o ensino deste tema requer muita a-
tenção e cuidado. Como defende Benoit Falaize (2014) a escola
pleiteia certa narrativa coerente do passado de uma nação,
mantendo a ilusão genealógica da unidade histórica do co-
mum. Partindo do princípio que o nazismo causou desdobra-
mentos mundiais que influenciaram todos os países e tomando
como exemplo o Brasil, o aprofundamento sobre este tema nos
permite entender os elementos que levaram a vinda de judeus
fugitivos do regime para cá e as ideologias adotadas no país
com influência direta deste regime, tais como o neonazismo.
O livro História das cavernas ao terceiro milênio mantém
sua narrativa com base nos recortes clássicos de conteúdos,
mas abre-se de modo significativo e relevante para uma reno-
vação historiográfica de caráter tópico. Relativiza os paradigmas
explicativos em relação a temáticas e pesquisas específicas que
vêm sendo objeto de debates historiográficos nas últimas dé-
cadas e, nesse sentido, a explicação histórica ofertada ao aluno,
com raras exceções, já não mais se baseia em paradigmas que
foram objeto de revisão no campo historiográfico (MIRANDA,
2004, pág. 141). Nas propostas de atividades, os autores busca-
ram instigar os alunos a pesquisarem sobre o tema do Nazismo
e suas conseqüências, aproximando assim o aluno ao conteúdo
trabalhado e o ensinando a criticar os diferentes tipos de fontes
e informações sobre este período.
De acordo com a proposta apresentada pelo material di-
dático, devem-se ter alguns cuidados, tais como o envolvimento
do aluno com o objeto de estudo que está sendo trabalhado.
Na exposição factual e linear, que entende o aluno como recep-
táculo de ensinamentos, além dos textos expositivos e detalha-
dos, devem estar presentes exercícios voltados especificamente
para o teste de compreensão e fixação de conteúdo. A preocu-
241
pação com o desenvolvimento de competências e habilidades
não faz parte dos horizontes dessas propostas pedagógicas.
A partir de pareceres dados pelo PNLD, podem-se obser-
var quais são as tendências nacionais quanto à História ensina-
da que se vinculam mais a tipos diferenciados de saberes disci-
plinares, curriculares e/ou derivados de tradições pedagógicas
distintas do que aos efeitos supostamente normativos do pro-
grama. Os resultados liberados da avaliação dos livros didáticos
constituem-se em uma fonte distinta para compor um quadro
compreensivo a respeito de tendências contemporâneas da
História, ou melhor, das Histórias, que se quer ver ensinadas.
A produção dos livros didáticos de História permeia sua
organização através de tendências sobre 4 blocos: i) história
temática, quando os volumes são apresentados não em função
de uma cronologia linear, mas por eixos temáticos que proble-
matizarão as permanências e transformações temporais, sem,
contudo, ignorar a orientação temporal assentada na cronolo-
gia; ii) história integrada, coleções que se agrupam pela evoca-
ção da cronologia de base europeia, integrando quando possí-
vel temas relativos a História brasileira, africana e americanas; iii)
história intercalada, obras que os conteúdos abordam concomi-
tantemente as histórias da América, do Brasil e História Geral; e
iv) história convencional. A maioria dos livros didáticos atual-
mente se pauta na história intercalada e na história integrada
para a sua produção, pois acreditam que estas formas englo-
bam de uma forma mais completa os conteúdos que devem ser
trabalhados no ensino básico. O livro História das cavernas ao
terceiro milênio pertence a categoria de história intercalada,
seus conteúdos são trabalhados simultaneamente e harmonio-
samente.
A ambiguidade proposta pelos múltiplos projetos possí-
veis para a História ensinada pode ser claramente entendida a
partir de uma análise feita sobre o conjunto dos manuais didáti-
cos avaliados a partir do PNLD de 2015 que reforça a interdisci-
242
plinaridade como principal forma de ensino de História na rede
básica brasileira. Distinguiram-se três possibilidades de aborda-
gem presente nos livros didáticos. Há um grupo de obras que
apresenta uma organização de conteúdos, atividades e textos
articulados de acordo com um agrupamento que se poderia
designar como procedimental e, nesse sentido, valoriza a di-
mensão formativa que advém do procedimento histórico e do
tipo de leitura e problematização de fontes que caracteriza a
ação do historiador com ênfase em habilidades relacionadas à
leitura, identificação de informações, análise, comparações, bem
como em discussões que priorizam um olhar sobre o contem-
porâneo; outro grupo cuja seleção de conteúdos, cronologia e
textos é feita segundo uma visão mais informativa acerca da
narrativa de acontecimentos do passado e que, nesse sentido,
prioriza aquela dimensão que Vilar nos aponta como “conheci-
mento de uma matéria”; e, finalmente, um terceiro grupo que,
pela ausência de uma expressão mais precisa, designou-se de
“visão global”, por buscar articular com relativo sucesso as duas
dimensões citadas, isto é, não abre mão da informação histórica
derivada de um conhecimento socialmente acumulado bem
como dos recortes canônicos de conteúdo, mas explora tam-
bém a dimensão construtiva do conhecimento histórico, pro-
blematiza as fontes, apresenta elementos que garantem a alu-
nos e professores a compreensão acerca da dimensão provisó-
ria da explicação histórica (MIRANDA, 2004).
O manual aqui analisado, “História Das Cavernas ao Ter-
ceiro Milênio: do avanço imperialista no século XIX aos dias
atuais”, no que se refere ao ensino do conteúdo do Nazismo,
mais especificamente quando se trata do Holocausto poderia
usar diferentes tipos de abordagens e fontes que possibilitas-
sem uma aproximação entre o aluno e o conteúdo trabalhado.
O uso de autobiografias, por exemplo, envolveria um trabalho
interdisciplinar, sendo esse um dos principais critérios de apro-
243
vação pelo PNLD, e proporcionaria ao aluno uma aproximação
material e emocional com o tema.
Considerações Finais
Nos debates desenvolvidos sobre a História ensinada e
da critica a uma abordagem dos acontecimentos essencialmen-
te informativos sobre o conteúdo histórico, pode-se observar
um perfil das obras que permeiam a indústria editorial e sua
inserção no mercado, confirmando, assim, a perspectiva domi-
nante. Apesar desta constatação, não se pode desconsiderar o
fato de que, embora a abordagem relativa a uma visão proce-
dimental da História seja quantitativamente secundária frente à
visão do acontecimento, que é hegemônica, deve-se ter presen-
te que a projeção dessa perspectiva em meio a um universo
maior projeta de modo objetivo, para a indústria cultural, uma
possibilidade alternativa em relação à cultura histórica posta e,
neste sentido, esse grupo numericamente inferior tende a cum-
prir um papel importante enquanto artífice de uma nova possi-
bilidade pedagógica posta no âmbito das reflexões sobre o
ensino.
A construção de um diálogo como ponto de partida para
a projeção de um recorte que seja significativo para o aluno,
tanto no recorte temático, quanto nas possibilidades de expli-
cação e estabelecimento de analogias, pode ser visto como
outra forma de se ensinar História. Pode-se dizer que, nessas
obras, considera-se genericamente uma base de saberes pré-
vios dos alunos como ponto de partida para uma aprendizagem
significativa. As obras constituídas sob tal orientação dialogam
com tais referências a partir de uma postura que valoriza o pro-
blema enquanto forma de estabelecer relações entre passado e
presente. Busca-se, de modo geral, promover a aquisição gra-
dual dos conceitos que, nesse caso, se sobrepõem às definições
mecânicas e, coerentemente com tal opção, os momentos de
introdução das unidades, as atividades e exercícios são propos-
244
tos com a intenção de propiciar circunstâncias dialógicas e de
construção conceitual (MIRANDA, 2004).
Quando se leva em conta a variabilidade dos currículos
de História e sua relação com a história da História ensinada no
Brasil, vislumbra-se um cenário mais global, no qual programas
distintos se transformaram em textos oficiais, pertinentes a dife-
rentes cenários históricos e que acabaram por se converter em
tradições distintas, sustentadas essencialmente pela profunda
interferência nos processos de formação de professores. Em
certa medida, essa tradição encontra-se presente nas obras que
fazem uma opção pela abordagem da chamada história inte-
grada.
Segundo Miranda (2004), tal perspectiva, ancorada em
uma visão eurocêntrica do tempo e do processo histórico, aca-
bou por se vincular, ainda que sob diferentes recortes temáti-
cos, uma abordagem programática marcada pela valorização da
identidade nacional, por intermédio da introdução dos conteú-
dos de História do Brasil no início da escolarização ou, mais
precisamente, a partir do segundo segmento do ensino funda-
mental. De certo modo, a cultura instituída a partir da Reforma
Capanema, que consagrou a separação entre a História Geral e
a do Brasil, deixou marcas bastante notáveis sobre um modo
específico de pensar a articulação das temáticas históricas. So-
mente após o estudo do Brasil, o aluno é inserido nas temáticas
relacionadas à História Geral.
A partir das informações levantadas, podem-se observar
as diferentes formas de abordagens acerca do tema da história.
O livro didático ainda é considerado uma das formas de trans-
missão do conhecimento mais utilizada em todos os tempos.
Apesar de sua progressiva melhora e aprimoramento, é possível
encontrar falhas e déficits na abordagem de alguns conteúdos
essenciais para a educação básica. O Holocausto, por exemplo,
ainda é muito pouco explorado em suas páginas. A partir, pro-
ponho buscar novas formas e fontes de aprendizagem que aju-
245
dem a complementar o ensino de temas que necessitam de
uma maior atenção.
Assim sendo, particularmente, busco na literatura, mais
especificamente nas obras autobiográficas, uma forma de com-
plemento para o conhecimento e ensino de temas importantes
da atualidade, como o nazismo e o Holocausto que ainda se
mantém presentes e atuantes em grande parte da sociedade
mundial através dos movimentos neonazistas e no fortaleci-
mento de regimes da extrema-direita. A importância do estudo
e da reflexão sobre este conteúdo se dá pela grande onda de
intransigências e intolerâncias que vem assolando todas as so-
ciedades atuais. È preciso se lembrar dos erros do passado para
que não voltem a se repetir.
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247
248
O ENSINO DA HISTÓRIA
SOBRE
O QUE "VEM DE DENTRO"
ENSINO DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA: UMA
ANÁLISE DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NO
LIVRO DIDÁTICO
Introdução
O ensino de história tem sido objeto de estudo para mui-
tos pesquisadores, dado o seu valor para a formação do indiví-
duo enquanto sujeito ativo da sua própria história. Um dos
grandes problemas no ensino da História são os resquícios de
uma história factual que ressalta grandes feitos de grandes
homens, pois a História enquanto campo de conhecimento
ganha seu lugar como Ciência no século XIX, sob a égide do
positivismo.
Quanto ao livro didático, seu uso, finalidade e contribui-
ção, continuam sendo objeto de avaliações contraditórias nos
últimos tempos. Há aqueles professores que criticam os livros
didáticos, apontando-os como responsáveis pela baixa critici-
dade dos estudantes. Por outro lado, têm aqueles que os veem
como um auxílio importante em seu métier. O livro escolar
permanece como o material didático referencial dos docentes e
discentes que os apreciam como referencial básico para o estu-
do, e no início do ano as editoras colocam no mercado diversas
obras que se diferenciam pelo tamanho e qualidade. O livro
didático é, antes de sua finalidade de promover a aprendizagem
do aluno, uma mercadoria, uma obra do mundo da edição que
segue os desenvolvimentos das técnicas de fabricação e venda
que fazem parte da lógica de mercado (BITTENCOURT, 1997).
251
Os livros didáticos, quando são adotados como o único
material na sala de aula, e isso é o que mais acontece, limitam o
empenho dos professores de inventar um espaço adequado à
discussão. Vale destacar que mesmo quando não adotados
como material único, o livro passa ser a fonte privilegiada não
só do conhecimento, mas das atividades, o que deixa o profes-
sor sem autonomia, assim o que acaba acontecendo é que os
alunos acreditam que a História está contida nele (SEFFNER,
2000).
Os livros didáticos de história têm em suas raízes a preo-
cupação de criar uma consciência de nação. No decorrer da
história do Brasil modificou-se de acordo com as transforma-
ções que afetaram o cenário político, econômico e social, até
assumir um espaço central no processo de aprendizagem
(PEREIRA, 2014). Um dos papéis do Livro Didático, portanto, é
levar ao aluno o conhecimento elaborado na academia 1, por
isso no momento de sua escolha requer atenção e habilidade
do professor que o adota. Para isso, existe o Plano Nacional do
Livro Didático (PNLD) que tem por finalidade subsidiar o profes-
sor e a escola na escolha do livro didático que será adotado no
triênio.
Como uma mercadoria o livro escolar recebe diversas in-
tervenções durante sua fabricação e comercialização. Nesse
processo interferem várias personagens como o editor, autor,
técnicos especializados dos processos gráficos: programadores
visuais e ilustradores. Vale dizer que o livro escolar como ele-
mento da indústria cultural determina um modo de ler direcio-
nado por técnicos e não pelo autor (BITTENCOURT, 1997). As-
sim, o conteúdo do livro didático não se trata apenas de uma
vontade de quem o escreve, sobre suas visões historiográficas,
1
Vale dizer que nem sempre o conhecimento histórico é elaborado na acade-
mia, pois há aqueles que se colocam a escrever a História como jornalista, literá-
rios, etc.
252
contudo vai muito além do seu ponto de vista que é adequado
às bases curriculares, mediadas pelo mercado.
Desse modo, avaliar ou analisar um livro didático é mais
complexo que assinalar a ausência de determinado conteúdo,
ou modo como o seu conteúdo é ou precisaria ser oferecido.
Ao se pensar no livro didático, é necessário observá-lo inserido
nesse complexo contexto que abarca políticas públicas de ensi-
no, bases curriculares e a efetuação do livro didático por auto-
res e editoras, e a inserção da historiografia (BITTENCOURT,
1997).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) têm por ob-
jetivo garantir aos estudantes brasileiros o direito de desfrutar
do conjunto de conhecimentos tidos como indispensáveis para
o exercício da cidadania. Segundo os PCNs, a importância da
História no currículo escolar não se prende apenas a uma preo-
cupação com a identidade nacional, porém a disciplina pode
oferecer contribuição específica ao desenvolvimento dos estu-
dantes como sujeitos conscientes, capazes de apreender a His-
tória como conhecimento, como experiência e prática de cida-
dania. O Saber histórico escolar, como conhecimento produzido
no espaço escolar, desempenha um papel de tornar o aluno um
observador atento das realidades em sua volta, capacitado para
estabelecer relações, comparações e relativizando sua atuação
no tempo e espaço (BRASIL, MEC, PCN, 1997).
O PNLD 2017 aponta que na escolha do livro didático,
em primeiro lugar, “é avaliado se a obra se enquadra em algum
dos quesitos gerais de exclusão, isto é, valores válidos para
todas as áreas do conhecimento e que são observados pelas
equipes de todos os componentes curriculares” (BRASIL, MEC,
PNLD, 2017, p.19). Esses quesitos são:
Respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais Relativas
ao ensino fundamental; Observância de princípios éticos neces-
sários à construção da cidadania e ao convívio social republica-
no; Coerência e adequação da abordagem teórico-
253
metodológica assumida pela coleção, no que diz respeito à
proposta didático-pedagógica explicitada e aos objetivos visa-
dos, Correção e atualização de conceitos, de informações e de
procedimentos; Observância das características e das finalida-
des específicas do Manual do Professor e adequação da coleção
à linha pedagógica nele apresentada; Adequação da estrutura
editorial e do projeto gráfico aos objetivos didático-
pedagógicos da coleção (BRASIL, MEC, PNLD, 2017, p.19-20).
2
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS). Área de concentração: História das Sociedades Ibéricas e Americanas.
Professora do Ensino Médio em Belo Horizonte, MG. No currículo Lattes dessa
autora, com última atualização em julho de 2006, não constam informações
sobre a sua vida acadêmica.
254
como estudo da história dos escritos históricos, métodos, in-
terpretações e as respectivas controvérsias" (SILVA, 2001, p. 26).
O movimento da historiografia acontece por meio de contesta-
ções. “Presentemente, os estudos historiográficos já ocupam o
seu devido espaço no contexto da produção historiográfica
contemporânea é uma reflexão crítica de suma importância
para a produção do conhecimento” (SILVA, 2001, p. 22).
As interpretações da historiografia tradicional expõem a
noção de concórdia no processo de Independência do Brasil,
como sendo um período de concordância entre os vários seg-
mentos da sociedade diante de um inimigo comum, o “aprovei-
tador português”. No entanto, longe de se restringir apenas ao
pretenso embate entre “brasileiros” e os lusos, houve violenta
disputa e tensão entre projetos políticos de setores sociais dife-
rentes (escravos, livres pobres, sertanejos).
Por muito tempo a historiografia reproduziu que as ca-
madas subalternas em geral eram simples marionetes nas mãos
de seus governantes e senhores. A subordinação ocorria em
uma sociedade escravocrata em que a hierarquização era rígida,
porém, isso não impedia os ditos inferiores de fazerem suas
próprias leituras dos processos em que viviam, interpretavam os
acontecimentos nos quais estavam inseridos por meio do ponto
de vista provido de suas vivências no meio.
Muitos são os estudos sobre a Independência do Brasil,
por essa razão apresentaremos alguns dos principais expoentes,
tais como Varnhagen (1850), Oliveira Lima (1922), que fazem
parte de uma historiografia tradicional, ligados a uma escrita de
uma história linear, acrítica, de grandes heróis. Posteriormente,
os historiadores Dias (1972), Mota (1972), Jancsó (2005), Maler-
ba (2006) com perspectiva revisionista com os postulados de
uma nova maneira de se escrever a história.
255
Francisco Adolfo de Varnhagen e a obra História geral do
Brasil (1850)
É considerado o fundador da história do Brasil. Em 1850,
Francisco Adolfo de Varnhagen (1806-1878) surge com a obra a
História geral do Brasil, trabalho que refletia uma preocupação
com a história pátria recém-iniciada, em coletar uma documen-
tação sobre o passado brasileiro que o recém-criado Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) reputou como sua missão.
Esse livro foi possível diante das condições históricas do Brasil,
pois a emancipação política estava consolidada e a constituição
do Estado nacional do país havia amadurecido nos anos de
1850. Por meio do IHGB com a institucionalização da reflexão e
pesquisa histórica foi possível dar ao Brasil o perfil que ainda
não possuía, entregando à nova nação um passado, a partir do
qual criaria um futuro (REIS, 2007).
Varnhagen narra em sua obra que Deus protegeu o Brasil
inspirando a D. Pedro I o meio de salvá-lo! A resolução tomada
por D. Pedro, no dia sete de setembro de 1822, à beira do rio
Ipiranga, levara o Brasil desde esse dia a uma nova era. De D.
Pedro I proveio principalmente a mais segura esperança de que
o Brasil constituiria uma só nação, salva pela monarquia de
tempestades de anárquico-socialistas (VARNHAGEN, 1850, p.
438). Varnhagen enaltece a figura de D. Pedro, a sua escrita está
impregnada da forma como a história era escrita no século XIX,
pautada em enfatizar os “Grandes Homens” em seus “Grandes
Feitos”. Reis afirma que Varnhagen aparenta não dominar aqui-
lo que é essencial para o ofício do historiador: cortar e recortar
o tempo, periodizar, inventar ritmos que promovessem o domí-
nio e a compreensão da vida social (REIS, 2007).
Quanto ao processo de Independência, Varnhagen não
tece grandes críticas à forma como aconteceu, isso se evidencia
pela emancipação ter sido conduzida por um filho de Portugal,
pois ainda se manteve ligado à religião cristã, a monarquia, e
essa última nas mãos da família Bragança. A emancipação não
256
foi danosa, porque garantiu o Brasil continuar português, pelo
contrário, não interrompeu o passado, melhorou-o. O Brasil se
mantinha português, imperial e ainda por cima independente.
Em relação às repressões do Estado, Varnhagen diz ter sido
necessário para que a unidade das províncias fosse mantida,
isto é, para que o Império não se fragmentasse (REIS, 2007).
258
confundi-la com uma luta brasileira nativista da colônia in abs-
trato contra a metrópole” (DIAS, 1972, p. 180).
Dias diz que, se as diretrizes fundamentais da historiogra-
fia brasileira já estão bem definidas, carecem ainda ser melhor
elaboradas por pesquisas mais sistemáticas das particularidades
da sociedade colonial, que possibilitem uma compreensão mais
completa do processo de interiorização da metrópole, “que
parece ser a chave para o estudo da formação da nacionalidade
brasileira” (DIAS, 1972, p. 180).
3
Capítulos: 1 - A expansão da América portuguesa. 2 - A mineração no Brasil. 3
- A Revolução Industrial. 4 - O Iluminismo e a Independência dos Estados Uni-
dos. 5 - A Revolução Francesa. 6 - O império napoleônico e o Congresso de
Viena. 7 - A independência das colônias espanholas. 8 - O processo de inde-
pendência do Brasil. 9 - As revoluções e as novas teorias políticas do século XIX.
10 - Brasil: o Primeiro e as Regências. 11 – O Segundo Reinado. 12 – Os Estados
Unidos no Século XIX.
261
para essa obra. Os quadrinhos D. João Carioca: a corte portu-
guesa chega ao Brasil (1808-1821), de autoria da historiadora
Lilia Schwarcz (2007), no qual o trecho reproduzido narra a a-
meaça da invasão francesa a Portugal pelas tropas de Napoleão,
com isso resultou na mudança da família real e sua corte para o
Brasil. Desse trecho dos quadrinhos, a autora da obra didática
solicita três questões, a saber:
264
ram na formação de três grupos políticos: o partido brasileiro, o
partido português e os liberais radicais”. Nesta mesma seção, a
autora utiliza uma cena do filme Carlota Joaquina, a princesa do
Brasil, dirigido por Carla Camurati (1995), com a atriz Marieta
Severo, no papel da princesa Carlota Joaquina, e o ator Marco
Nanini, no papel de D. João VI. Legenda e crédito acompanham
essa imagem, a saber: "O filme mostra D. João como um regen-
te fraco, inseguro e glutão, imagem que tem sido questionada
por historiadores atuais" (BRAICK, 2015, p. 158). Isso favorece
de historicidade essa fonte, o que colabora para coerência na
interpretação do aluno durante a leitura da imagem, e com a
indicação de filmes contribui para o uso metodológico do ci-
nema no ensino de História.
No que tange ao processo de Independência, há um tre-
cho da obra História do Brasil em quadrinhos, publicado em
2008, de Edson Rossatto e outros, no qual narra um diálogo
entre D. João VI e D. Pedro I a respeito da volta do monarca
para Portugal e D. Pedro que permanecesse no Brasil, como
príncipe regente, bem como se a Independência do Brasil de-
pendesse apenas da decisão dessas duas personagens. Desse
modo, a autora simplifica a emancipação brasileira, e evidencia
mais a preocupação dos Bragança em perder o comando do
Brasil, do que a própria Independência desse pais, e o texto
principal ratifica isso, a saber:
Acatar a decisão das Cortes e regressar a Portugal podia afastar
a dinastia de Bragança do comando do Brasil. Assim, em 9 de
janeiro de 1822, o príncipe regente anunciou, oficialmente, sua
permanência no Brasil, marcando o Dia do Fico. A partir de en-
tão, D. Pedro esforçou-se para conquistar o apoio das elites
brasileiras [...] em maio de 1822, o príncipe ordenou que os de-
cretos das Cortes só podiam ser executados com sua aprovação
e, no mês seguinte, convocou uma Assembleia Constituinte pa-
ra elaborar a primeira Constituição do Brasil. Também decidiu
que as tropas portuguesas que tentassem desembarcar no terri-
265
tório do Brasil seriam consideradas inimigas [...] As Cortes reagi-
ram às novas medidas reduzindo a autoridade de D. Pedro. In-
formado do fato, no dia 7 de setembro de 1822, em passagem
por São Paulo, D. Pedro formalizou a independência do Brasil. O
príncipe recebeu o apoio das camadas médias urbanas e da a-
ristocracia rural, que pretendiam garantir privilégios e manter as
camadas populares longe do processo de independência. Em
outubro, D. Pedro foi aclamado imperador do Brasil (BRAICK,
2015, p. 159-160, grifos da autora).
266
com o Piauí, no tópico Enquanto Isso... há um destaque para a
Batalha do Jenipapo, com trecho do artigo Entre Foices e Facões,
da historiadora Claudete Dias, contendo um mapa e uma pintu-
ra com o nome da batalha, de Pintura de Artes Paz, de 2003, há
também dois questionamentos referentes a essa batalha, na
qual Braick não explora essa imagem. Há uma pintura de Antô-
nio Parreiras, O primeiro passo para Independência da Bahia, de
1931, assim como a referente ao Piauí, apenas serve para ilus-
tração.
Sobre a adesão dessas províncias, Braick fala que para lu-
tar contra os aliados das Cortes, as tropas do Brasil “tiveram de
intervir. D. Pedro I contou também com mercenários ingleses,
que foram contratados para combater as províncias rebeldes.
Somente um ano após a Independência as províncias rebeldes
foram vencidas e a unidade territorial do Brasil foi concluída”
(BRAICK, 2015, p. 160). Assim, nota-se que não há espaço para
atuação das camadas populares que estiveram presentes nesse
processo, omitindo o outro lado da história, aquele composto
por pessoas do povo, que não preenchiam requisitos de “cida-
dão” para os padrões da época, mas que estiveram presentes
nas lutas políticas buscando não tomar o poder e, sim melhores
condições de vida para sair da exploração e jugo em que se
encontravam. Acerca das imagens, não há imagens que se re-
metam ao processo de Independência do Brasil no texto princi-
pal.
As atividades no final do capítulo 8 apresentam quatro
questões no tópico Compreender os conteúdos, tratando sobre a
Conjuração Mineira e Baiana; A vinda da corte portuguesa para
o Brasil; As medidas econômicas de D. João quando chegou ao
Brasil; e para fazer uma frase ou parágrafo sobre alguns temas
estudados no capítulo. Em Ampliar o aprendizado nesta ativida-
de a autora busca seguir as orientações dos PCN’s e do PNLD
quanto à interdisciplinaridade, apresentando questões que po-
dem dialogar com outros campos do conhecimento, como a
267
arte, pois utiliza o quadro de Pedro Américo de 1888, pedindo
que os alunos apresentem interpretações sobre esse quadro
apontando a participação popular. Na questão Investigar, é em
grupo para pesquisarem sobre a presença de estrangeiros de-
pois de 1808.
Sobre a historiografia da Independência que consta nas
referências finais desse livro escolar, têm-se aquelas obras que
inovaram essa temática, como a obra História Geral da Civiliza-
ção Brasileira (HGCB): O Brasil monárquico, tomo 2 (1972) diri-
gido por Sérgio Buarque de Holanda, e a obra marxista História
Econômica do Brasil (1984) de Caio Padro Júnior. Da Senzala à
Colônia (1966), de Emília Viotti da Costa apresenta também os
trabalhos escritos a partir dos anos de 1970, como as obras A
interiorização da metrópole e outros estudos, de Maria Odila
Silva Dias; A construção da ordem: a elite política imperial (1981),
de José Murilo de Carvalho; História da vida privada no Brasil.
Império: a corte e a modernidade nacional (1997), organizada
por Luiz Felipe Alencastro; Dicionário do Brasil Imperial (1822-
1889), organizado por Ronaldo Vainfas; O império marítimo
português, 1415-1825 (2002), de Charles Boxer; Sentinela da
liberdade e os outros escritos (1821-1835) (2008), de Marco Mo-
rel.
No entanto, a autora não usou obras como as de István
Jancsó, A Independência: História e Historiografia (2005), e
Jurandir Malerba, Independência brasileira: novas dimensões
(2006), que fazem um balanço atualizado, amplo e que lança-
ram novas bases para o tema já tão visitado, ainda que enigmá-
tico e desconhecido em múltiplos aspectos.
De modo geral, o projeto gráfico no capítulo que versa
sobre a Independência brasileira apresenta certa ludicidade,
pois é visualmente apropriado ao tamanho das letras e, na arti-
culação dos títulos, textos e imagens, essas possuem reprodu-
ções de qualidade e em grande número. Nesse capítulo anali-
sado observam-se alguns recursos presentes que inovam, em-
268
bora às vezes poucos explorados, e destacam-se pela diversifi-
cação, tais como: charges, obras de arte, indicações de sites
para pesquisa na internet, mapas, imagens, fragmentos de texto
historiográficos, glossários, filmes, quadrinhos. Vale dizer que é
relevante o investimento dado pela autora na utilização de fil-
mes e quadrinhos como fontes e material didático, porque es-
ses gêneros audiovisuais têm uma potencialidade no processo
de ensino e aprendizagem do aluno.
271
Sugestões de abordagens do processo de Independência do
Brasil no livro didático
Sendo impossível estudar o conteúdo total da história
humana, sabe-se que toda organização de conteúdos progra-
máticos opera por seleção, fundamentada em noções cultural e
historicamente estabelecidas, pode-se fazer certas comparações
e assinalar algumas direções. A estrutura curricular tradicional
da História, difundida na maior parte das escolas, destaca al-
guns acontecimentos tidos como marcos, para, a partir deles,
estabelecer um quadro didático em que os acontecimentos são
colocados numa continuidade espaço–temporal linear, posto
em uma lógica de causas e consequências (BRASIL, MEC, PCN,
2000).
Conforme os PCNs, a Independência do Brasil é um e-
xemplo a ser pautado como item importante do conteúdo pro-
gramático. No entanto, os PCNs criticam a forma como esse
conteúdo vem sendo ensinado, apenas por suas conexões cau-
sais com um conjunto de acontecimentos políticos imediata-
mente antecedentes, distribuídos em sequência linear, como se
a própria sequência cronológica refreasse, em si mesma, a força
explicativa. Esse arranjo se pauta numa noção de processo his-
tórico como mudança linear, que aponta os acontecimentos
singulares ou particulares, o que resulta num conhecimento
partido. Caso, no entanto, tomar-se a ciência do processo histó-
rico como um processo de modificação direcional, em que os
sujeitos históricos, em meio à indeterminação das relações soci-
ais, criam os caminhos possíveis, colocando-se nas distintas
dimensões temporais (conjunturas e estruturas) os aconteci-
mentos que ecoam de maneira diversa nos diversos ambientes
de ação (privado ou público, local, regional ou mundial) e que
contêm diferentes elementos (políticos, econômicos, sociais,
culturais), terá uma nova possibilidade de interpretação e análi-
se da Independência do Brasil (BRASIL, BRASIL, MEC, PCN 2000).
272
Outra forma de se pensar a independência proposta pe-
los PCNs seria considerar a Independência do Brasil inserida na
estrutura de desenvolvimento do capitalismo mundial a cami-
nho da internacionalização da economia, na conjuntura da ins-
tauração dos Estados nacionais, apontando o potencial explica-
tivo desse conceito para a apreensão das relações internacio-
nais (formação de blocos econômicos) e das dificuldades que se
põem para a cidadania (participação política e poder efetivo de
influenciar as decisões de Estado; as identidades nacionais, étni-
cas e mundiais) e diferentes questões do mundo contemporâ-
neo. Essa abordagem serve para que o aluno possa perceber
que ser cidadão no Brasil Imperial é diferente do que é ser na
atualidade (BRASIL, BRASIL, MEC, PCN 2000).
O sentido que a palavra assume para os brasileiros atualmente,
de certa maneira, inclui os demais sentidos historicamente loca-
lizados, mas ultrapassa os seus contornos, incorporando pro-
blemáticas e anseios individuais, de classes, de gêneros, de gru-
pos sociais, locais, regionais, nacionais e mundiais, que projetam
a cidadania enquanto prática e enquanto realidade histórica
(BRASIL, BRASIL, MEC, PCN 2000, p. 78).
273
tampadas em camisas são utilizados principalmente em épocas
de torneios esportivos, como copas do mundo, olimpíadas, etc.
As colônias situadas na América Latina, de forma geral, a
partir do século XIX, com as fragilidades de suas metrópoles,
com as mudanças internas nas colônias, novas ideias políticas
advindas do iluminismo, abriram espaços de luta em direção às
suas independências: Venezuela; (1811); Colômbia (1811); E-
quador (1811); Paraguai (1813); Uruguai (1815); Argentina
(1816); Chile (1818); México (1821); Peru (1821); Brasil (1822);
Bolívia (1825). Mas, a Independência do Brasil aparece nos Li-
vros didáticos de forma isolada das que ocorreram na América
Latina, sendo interessante ligar a discussão da independência
do Brasil a outras Independências na América Latina.
O livro didático pode trazer reflexões sobre o que de fato
significou a Independência Brasileira, apresentando quem se
beneficiou com ela, se foi o povo ou a elite agrária que apoiou
D. Pedro I, quais as mudanças que podem enquadrar o Brasil
como um país Independente, um país que a distribuição de
renda permaneceu desigual, a escravidão continuou, tornou-se
dependente economicamente da Inglaterra, com um português
se mantendo a frente do novo país. O aluno deve refletir a
quem de fato interessou e o que foi essa independência.
A criação de “heróis” da história deve ser combatida nos
livros didáticos ao contemplar a memória histórica e as identi-
dades políticas com destaque para consciência política das ca-
madas populares envolvidas no processo de Independência do
Brasil ajudam a desconstruir alguns mitos presentes na historio-
grafia e nos livros didáticos relativos a esse processo, especial-
mente aqueles relacionados à participação dos setores popula-
res como simples massa de manobra, agindo sem propósitos e
sem consciência política e que se rebelavam para gerar baderna
e desordem da ordem vigente, no entanto, estavam em busca
não de tomar o poder e sim melhores condições de vida para
sair da opressão e jugo em que se deparavam.
274
Considerações Finais
Observou-se ao longo deste trabalho que a prática com o
livro didático é muito importante para o processo de ensino
aprendizagem do aluno, é por meio do livro que chega a maior
parte do conhecimento que o discente adquire sobre a História.
Assim, a escolha do livro escolar deve ser realizada com bastan-
te cautela para que o estudante, principal beneficiado com o
material, possa usufruir dos conteúdos nele contidos para exer-
cer de forma consciente sua cidadania e interpretando os pro-
cessos históricos, nas tomadas de decisões quer seja em benefí-
cio próprio ou coletivo.
Destacou-se o caráter complexo do livro didático, que
para além de sua função pedagógica, é uma mercadoria, com
vários interesses perpassando sua construção. Existem várias
transações na escolha desse material didático, e o PNLD auxilia
o docente no ato da escolha, enquanto os PCNs orientam os
objetivos a serem alcançados com os conteúdos nele postos. A
breve discussão historiográfica feita neste trabalho nos propor-
cionou perceber como os temas da Independência do Brasil
precisam ser repensados nos manuais didáticos, a fim de que os
alunos compreendam que não existe uma única versão dos
fatos e nem uma explicação definitiva.
O livro analisado apresenta alguns equívocos e omissões,
especialmente em relação ao protagonismo das camadas popu-
lares no processo de Independência do Brasil, mas traz novas
formas de abordagens sobre os fatos históricos com a utilização
do cinema, sugestões de pesquisas na internet, leitura de ima-
gens, histórias em quadrinhos, charges, mapas e reflexões sobre
questões sociais. O Suplemento de Apoio ao Professor tem
boas articulações com os temas do livro didático, mas não esti-
mula o debate dos temas da história local que o livro, por várias
razões, não dá conta de desenvolver. Por fim, sugeriu-se algu-
mas abordagens e questionamentos que podem enriquecer a
275
forma como essa temática pode ser discutida nos livros escola-
res.
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277
278
AS LUTAS CAMPONESAS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO A PARTIR DA ANÁLISE DO
LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA ARARIBÁ
Mariana da Sulidade
____________________________________________________________________
Introdução
Muito se tem a fazer na reconstrução da memória social
das resistências camponesas assim como das inúmeras violên-
cias institucionalizadas sofridas por milhares de pessoas no
Brasil rural. Assassinatos, estupros, espancamentos, incêndios,
destruição de bens materiais, expropriação e expulsão são al-
gumas das muitas práticas presentes nas narrativas sobre o
campo, sobre a luta pela terra, nenhuma delas está presente no
processo de construção do saber histórico em sala de aula, ou
seja, nas formas de como o Ensino de História se apresenta no
movimento de construção da memória social do país e constru-
ção do conhecimento histórico.
Não podemos deixar de pontuar que nos últimos anos a
relação entre Historiografia e Ensino de História tem sido alvo
de inúmeras revisitações teóricas. Nessa perspectiva o livro
didático passou a ser uma constante no que se refere à reflexão
do que é proposto como relevante para "historia ensinada".
Assim sendo, o presente trabalho objetiva refletir sobre a
temática da luta pela terra presente livro no didático de História
da coleção Araribá da Editora Moderna, referente ao último ano
do Ensino Fundamental.
Para pensar o livro didático interessa-nos levar em consi-
deração a sua natureza mercadológica (BITTENCOURT, 2004, p
72), não deixando de refletir sobre alcance dos materiais didáti-
279
cos na construção de uma determinada consciência e histórica
(CERRI, 2011). Em suma, o livro didático sintetiza uma visão de
mundo e perspectiva de conhecimento histórico, sendo uma
espécie de guardiã de uma determinada memória social.
Observamos ainda que não se trata de uma tarefa de
demonizar os materiais didáticos adotados em sala de aula. No
caso específico, diz respeito a analisar como tais materiais didá-
ticos se colocam diante da história social dos movimentos rurais
de luta pela terra. A investigação aqui presente será em torno
das limitações dos livros didáticos e dos pontos trazidos à tona
sobre os aspectos das lutas dos movimentos sociais rurais na
História do Brasil Contemporâneo.
O desafio de um ensino de história voltado para a cons-
trução do sujeito histórico levou este campo à aproximação
entre currículo e teoria da História na tentativa de resolver (ou
propor) questões do próprio ensino de História na contempo-
raneidade. (BARROSO, 2010). Tal aproximação muito acrescen-
tou para anatomia da história ensinada no que se refere aos
estudos sobre o currículo e seu lugar social na produção de um
imaginário coletivo, ou de um projeto nacionalizador de um
tempo histórico e sobre um conceito de História.
Os currículos são responsáveis em grande parte pela formação
e pelo conceito de História de todos os cidadãos alfabetizados
estabelecendo em cooperação com a mídia, a existência de um
discurso histórico dominante que formará a consciência e me-
mória coletiva da sociedade (ABUD, 2004, p. 32).
280
de História em um contexto de redemocratização e luta pela
autonomia e presença da disciplina de História em sala de aula.
Tal aspecto não significa ausência de elementos limitado-
res de construção do sujeito histórico, mas que o currículo co-
mo expressão de uma proposta de sociedade também está em
movimento podendo avançar ou recuar sobre o conceito de
História, sobre a leitura do tempo e espaço e dos interesses dos
agentes envolvidos na sua elaboração. 1
1
A atual reforma curricular do Ensino Médio inspirado em experiências de
centralização curricular, tal como o modelo do Common Core Americano, refle-
te exatamente esse caráter de movimento em relação ao currículo. Os recuos
referentes ao ensino de História e ao trato para com a formação educacional
custarão caros para sociedades futuras. A elaboração e aplicação da nova Base
Nacional Comum Curricular 2017 refletem um momento limite de retrocesso,
silenciamento das comunidades escolares e homogeneização e centralização do
ensino. Somados a essa tragédia curricular, tramitam no legislativo propostas
assustadoras de controle disciplinares, tal como o projeto de lei mais conhecido
"Escola sem Partido" que representa um segmento conservador que busca por
meio do controle e criminalização da prática docente retirar toda e qualquer
discussão relacionada principalmente a diversidade de gênero, religiosa ou
qualquer discussão que implique participação, respeito e tolerância.
2
Pode ser compreendida como uma prática pedagógica de reconstrução de um
objeto de ensino de forma dialética. Não só uma mera tradução de linguagem,
mas um refazer, repensar um determinado objeto o inserindo em cultura ensi-
nada. Ver MONTEIRO, 2003, p. 37-62.
281
editoriais sendo possível verificar sua dimensão somente a par-
tir da sua materialidade social, cultural e física
A noção de materialidade, em suma, remete à materialidade das
relações sociais em que os livros (inclusive didáticos) estão im-
plicados. Na esfera da produção, diversas modalidades de tra-
balho concorrem para que o livro venha à luz. Esses trabalhos
são geralmente executados por diversos trabalhadores em suas
especializações (editores, revisores, paginadores, artes-finalistas,
impressores, encadernadores etc.), embora não seja impossível
que todos esses trabalhos especializados sejam realizados por
um só trabalhador ou por um punhado deles. A circulação, em
se tratando de livro didático no Brasil, é uma operação comple-
xa, exatamente pela materialidade desse objeto: imagine-se, por
exemplo, a logística envolvida para que os 160 milhões de e-
xemplares, adquiridos pelo Programa Nacional de Livro Didático
(PNLD), cheguem simultaneamente no início do ano letivo em
todos os recantos do território brasileiro (MUNAKATA, 2012, p.
184).
282
dáticos correspondiam, no início do século XX, a dois terços dos
livros publicados e representavam, ainda em 1996, aproxima-
damente a 61% da produção nacional (CHOPPIN, 2004, p 549).
3
O processo de financiamento e distribuição do livro didático perpassa as
seguintes etapas: 1 Adesão; 2 Editais; 3 Inscrição das editoras; 4 Tria-
gem/Avaliação; 5 Guia do Livro; 6 Escolha; 7 Pedido; 8 Aquisição; 9 Produção;
Avaliação de qualidade física; 11 Distribuição; 12 Recebimento. Disponível em
http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-funcionamento
Acesso em 14.09.2016.
283
A distribuição de livros didáticos e dicionários para as es-
colas públicas não era feita de forma integral, excluindo alguns
segmentos, como Educação Jovens e Adultos, e estabelecendo
um quantitativo menor para o Ensino Médio. Aliás, o processo
de distribuição de livros em toda rede básica equiparando esses
segmentos de ensino foi gradual, sendo regularizado nos anos
2000.
Por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)
são distribuídos milhares de exemplares para os estabelecimen-
tos de ensino de Educação Básica4, fazendo da indústria do livro
didático um grande negócio. Tal política pública passou por
redefinições, sobretudo a partir de 1997, ano da publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN's), que guiarão a con-
fecção e as matrizes pedagógicas do livro didático. O MEC por
sua vez é o maior comprador de livro didático do mundo e
PNLD demonstra o quão lucrativo é ter o livro didático em seu
catálogo.
Os valores negociados entre o FNDE e as editoras que fornece-
ram livros didáticos para o Ensino Fundamental em 2011, por
exemplo, foi de R$ 880.263.266,15 (Assessoria de Comunicação
FNDE, 2010). O PNLD é, sem dúvida, um grande negócio para as
editoras. Ter um livro de seu catálogo escolhido por diversas
escolas brasileiras é a garantia de uma vendagem certa. A pro-
dução é feita a partir da encomenda estatal. Mesmo pagando
um preço bem menor do que o valor de venda do material em
livrarias, as compras do governo federal têm permitido que as
editoras ampliem bastante o faturamento, já que o volume de
4
Houve aquisição de 114,8 milhões de livros didáticos para 36,6 milhões de
alunos da educação básica pública, para utilização a partir de 2010. O maior
volume de investimento foi direcionado às turmas do 1º ao 5º ano do ensino
fundamental (distribuição integral) e do 6º ao 9º ano (reposição e complemen-
tação), com 103,6 milhões de obras distribuídas. Os estudantes de ensino médio
receberam 11,2 milhões de exemplares, como complementação e reposição.
Dados disponíveis em: http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-
didatico-historico. Acesso em 15/09/2016.
284
negócios é muito grande. A alta lucratividade do setor vem da
enorme quantidade vendid. (SILVA, 2012 p. 810).
5
Selva Guimarães Fonseca a respeito das experiências nas escolas de São Paulo
analisa o currículo que integra diferentes abordagens de tempo histórico na
definição dos conteúdos durante os anos 1990, período determinante para a
revisão das reformas educacionais da Educação Básica (Leis de Diretrizes e Bases
da Educação e definição dos Parâmetros Nacionais da Educação) e profundo
impacto de novas orientações teóricas e metodológicas da própria disciplina
histórica. Para mais aprofundamento ver FONSECA, 1993, p. 43,
285
de exclusão de uma obra didática (MIRANDA; LUCA, 2004,
p.127).
288
Imagem 2 – Sumário
289
Imagem 3 - Membros das Ligas Camponesas.
290
diferentes fontes e visões de mundo, o que denota a construção
do trabalho historiográfico e a diversidade de vozes que cons-
troem o mundo social. (BRASIL, MEC, Guia do livro Didático.
PNLD, 2014, p. 105).
Considerações Finais
Como podemos observar, anteriormente nas análises das
obras de circulação nacional apresentadas, o quadro de exposi-
ção das lutas camponesas nos livros didáticos possui um espaço
irrisório para compreensão dos dilemas agrários do país.
7
Essa renovação data dos anos 1960, com a historiografia inglesa e a consolida-
ção da chamada “history from below”.
291
A repressão política no campo durante a Ditadura Empre-
sarial Militar foi letal para inúmeros camponeses e camponesas.
Inúmeras foram as formas de perseguição aos movimentos
sociais rurais, que vão desde a desarticulação dos sindicatos às
agressões físicas e assassinatos.
Na construção de conhecimento histórico em sala de aula
que objetiva se posicionar diante de um passado e nos redire-
cione para "agir no mundo" não se pode omitir o significado
das ditaduras (no caso em estudo, a iniciada em 1964) para a
sociedade em geral e sua atuação no sentido da efetivação de
políticas violentas, violando direitos básicos, como o direito à
vida e a reprodução desta
Na prática escolar, a construção de um conhecimento histórico
das ditaduras militares, comprometido com a Educação em Di-
reitos Humanos, significa que o professor deve não apenas a-
bastecer os alunos de informações e dados sobre os aconteci-
mentos, fatos, personagens e processos relacionados às ditadu-
ras militares, mas, ao mesmo tempo, conduzir uma problemati-
zação que oriente os alunos no sentido de perceber a violência
e as violações de direitos humanos que caracterizam os fatos,
acontecimentos e processos constitutivos de tais circunstâncias
(SETEMY, 2017, s/p).
8
Dados disponíveis no Relatório Final Comissão Camponesa da Verdade 2014,
p. 420.
292
tendores são patrícios e sua luta implica também na definição
no sentido da História nacional (CERRI, 2011, p. 10).
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294
A CRISE POLÍTICA POPULISTA E O GOLPE DE
1964: UMA ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO
Introdução
Pretende-se neste texto problematizar acerca do papel
do livro didático no ensino de história. Cabe antes ressaltar algo
importante, a reflexão que se estabelecerá acerca dessa fonte
histórica é de forma localizada. O propósito principal da pesqui-
sa é analisar criticamente o livro didático da Editora Moderna
"Conexões com a História", volume 3, destinado à terceira série
do ensino médio.
Justificamos a escolha desse documento pelo seu uso na
rede pública do Estado do Maranhão. O recorte cronológico a
ser examinado é o que aponta o fim da experiência populista
brasileira, marcada pela crise que culminou no golpe empresa-
rial-militar de 1964, demarcando o momento destituição do
então presidente João Goulart e o início de um longo período
de ditadura no país.
Em paralelo ao objetivo principal do artigo, temos algu-
mas propostas secundárias, mas de suma importância para o
êxito de nossa argumentação textual. A primeira delas é discutir
sobre a importância da utilização do livro didático como fonte
de pesquisa histórica. A segunda, e não menos significativa, é
de debater historiograficamente sobre o contexto histórico do
fim do populismo no Brasil e o golpe de 1964.
A parte final do trabalho, aquela que constitui objetivo
principal deste artigo, é justamente, através dos objetivos se-
295
cundários anteriormente referidos, traçar uma análise crítica
acerca daquele período histórico da história política brasileira.
Investigar as credenciais dos autores, o conteúdo do livro e o
manual do professor, serão tarefas metodológicas primordiais
na pesquisa.
1
É importante ressaltar que o livro adotado neste trabalho "Conexões com a
História", de Alexandre Alves e Letícia Fagundes de Oliveira, da editora Moder-
na, é utilizado em algumas escolas da rede pública estadual de ensino, mas não
em todas. Justificamos a escolha deste livro pelo seu uso na Escola Modelo
Benedito Leite, uma das mais tradicionais escolas públicas do Maranhão, local
que desenvolvi todo meu estágio curricular durante a graduação.
296
samos reconhecer que esse objeto de pesquisa remete a ques-
tões externas ao próprio livro. Enquanto objeto cultural e políti-
co, reflexo de intensas relações de poder e saber, essas obras
constituem-se espaços de disputas políticas e relações de saber.
Célia Rocha em O livro didático como fonte documental de
pesquisa para a investigação do discurso eugênico na educação
(1946-1961) afirma de maneira pontual o quão é complexo
trabalhar com esse tipo de instrumento no que se refere à ne-
cessidade de ultrapassar os limites físicos do manual didático:
Todo este deslocamento torna a pesquisa com este tipo de fon-
te, extremamente complexa, principalmente na perspectiva his-
tórica, onde o manual escolar quando utilizado, seja como fon-
te, seja como objeto de pesquisa exige que sua análise contem-
ple um diálogo tanto com a educação, quanto com a história, a
ciência, o social e a cultura (ROCHA, s/d, p. 2).
297
estudo dessa fonte, a História da Educação em aliança com o
entendimento da sociedade vigente.
Corroborando com a ideia de Mendes Salles de que o li-
vro didático representa um avanço teórico-metodológico, te-
mos o importante trabalho de Rosa Lydia Teixeira Corrêa. Em O
livro escolar como fonte de pesquisa em História da Educação a
professora da PUC-Campinas compreende seu objeto de estudo
como um "possuidor de valores que fossem transmitidos num
dado momento histórico ao mesmo tempo em que é portador
de um projeto de nação a ser construído por meio da educação
escolar" (CORRÊA, 2000, p.11).
Outras questões referentes ao estudo do livro didático
como fonte histórica são de extrema importância a serem aqui
analisadas. Podemos apontar duas importantes variantes que,
segundo Alain Choppin em História dos livros e das edições di-
dáticas: sobre o estado da arte indicam sérias problemáticas
teórico-metodológicas. A primeira delas
Relaciona-se à própria definição do objeto, o que se traduz
muito bem na diversidade do vocabulário e na instabilidade dos
usos lexicais. Na maioria das línguas, o “livro didático” é desig-
nado de inúmeras maneiras, e nem sempre é possível explicitar
as características específicas que podem estar relacionadas a
cada uma das denominações, tanto mais que as palavras quase
sempre sobrevivem àquilo que elas designaram por um deter-
minado tempo (CHOPPIN, 2004, p. 549).
299
nível de ingerência entre os mais variados sujeitos como tam-
bém modificações das políticas educacionais referentes a esse
significativo objeto cultural e político.
2
A Escola dos Annales foi um movimento historiográfico surgido na França,
durante a primeira metade do século XX. Desde o século XVIII, quando a Histó-
ria passou a ser notada como ciência, os métodos de se escrever e pensar sobre
História conquistaram grande evolução. A historiografia passou por grandes
modificações metodológicas que permitiram maior conhecimento do cotidiano
do passado, através da incorporação de novos tipos de fontes de pesquisa.
Ainda assim, no início do século XX, questionava-se muito sobre uma historio-
grafia baseada em instituições e nas elites, a qual dava muita relevância a fatos
e datas, de uma forma positivista, sem aprofundar grandes análises de estrutura
e conjuntura. Em 1929, surgiu na França uma revista intitulada Annales
d’Histoire Économique et Sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch. Ao
301
Finalizando a parte estrutural do livro, temos as "orienta-
ções específicas para o volume". Como o nome já diz, esse
fragmento do livro apresenta a grade de conteúdos dividida em
unidades, temas, análise de documento histórico, controvérsias,
diálogos com a arte, trabalhando com..., seções antes citadas e
detalhadas. Paralelo a isso, nas páginas finais do livro, apresen-
tam-se sugestões para o professor e aluno, ou seja, propostas
de sites, filmes, leituras e atividades interdisciplinares.
4
A adoção do termo "Empresarial-Militar", no que se refere tanto ao golpe de
1964 quanto ao regime autoritário subsequente, representa a marcação de um
posicionamento dentro dos embates teóricos em torno do caráter da conspira-
ção que destituiu João Goulart do executivo federal e dos posteriores anos de
estado de exceção. Tendo em vista a utilização do termo "Civil-Militar" por uma
corrente revisionista que confirma e reproduz uma série de mistificações sobre
o período, endossamos a aplicação do termo "Empresarial-Militar", originalmen-
te proposto pelo historiador René Armand Dreifuss em sua obra 1964: a con-
quista do estado. Ação política, poder e golpe de classe, na qual é ressaltado o
caráter classista do Golpe e da Ditadura.
5
Expressão que se refere a todo aquele político filiado à UDN , sigla correspon-
dente a União Democrática Nacional, um partido político brasileiro criado a 7 de
303
do de renúncia do dia 25 de agosto de 1961 aprovado quase
que de imediato pelo Congresso, valendo ressaltar o silêncio
das ruas e da esfera militar, empossando Ranieri Mazzili, presi-
dente da Câmara dos Deputados, presidente interino, tendo em
vista a ausência do vice-presidente João Goulart, em visita ofici-
al à China comunista.
No tópico "O governo de Jango" é retratada a crise em
torno da posse do político gaúcho. Por ser herdeiro político de
Getúlio Vargas, vice-presidente eleito pelo PTB (Partido Traba-
lhista Brasileiro), João Goulart logo enfrentou resistência, pois
A UDN se recusava a aceitar que o vice, herdeiro político de
Vargas e acusado de simpatizar com o socialismo, assumisse o
controle do Estado brasileiro. Os três ministros militares divul-
garam nota, no dia 26, afirmando que a volta de Goulart ao país
era de "absoluta inconveniência" (FAGUNDES; ALVES, 2013,
p.185).
305
O golpe foi militar?
O ponto estratégico de debate a partir da análise do ma-
terial didático se dá justamente no que se refere ao caráter do
golpe de 1964, recorte temporal adotado para tal pesquisa e
que já foi explicado anteriormente no texto. Muitos livros didá-
ticos trazem uma leitura que soa consensual nos manuais esco-
lares: a tese de que o rompimento institucional se deu parte
apenas dos militares.
No entanto, de uns quinze anos pra cá, renovaram-se as
leituras sobre o caráter do rompimento institucional, agora
trazendo a denominação "civil-militar", reconhecendo que civis
tiveram protagonismo no processo de conspiração e golpismo.
No entanto, essa classificação incorre, em determinadas leituras,
em um erro que é generalizar a participação civil, melhor dizen-
do, não especificando que segmentos da sociedade civil tiveram
participação direta no desenvolvimento de um projeto de to-
mada e remodelação do Estado brasileiro, e neste momento
cabe fazermos isso.
Dentro do campo de embates que existem dentro da his-
toriografia sobre o golpe e a ditadura surgiu recentemente uma
corrente de pesquisadores das quais seus trabalhos representa-
ram um avanço no sentido de classificar o rompimento institu-
cional de 1964 e o regime posterior. A terminologia "empresari-
al-militar", trazida por esses historiadores, significa um recado
para a academia e a sociedade em geral que apenas apontar a
ofensiva golpista e o regime como "civil-militar" pode não ser
suficiente, e a até mesmo suscetível a generalizações.
A necessidade de uso da denominação "Empresarial-
Militar", segundo estes pesquisadores, se dá pelo profundo teor
classista existente no Golpe de 1964, e do regime que entrava
em vigência a partir dali. Perceber como importantes associa-
ções civis como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), em aliança
com Escola Superior de Guerra (ESG) trabalharam incessante-
306
mente em campanhas conspiracionistas e golpistas que desca-
racterizavam o regime democrático denotam a necessidade de
identificar quais segmentos civis elaboram um projeto de to-
mada e remodelagem de estado.
Seguindo uma tendência de força dentro da ciência polí-
tica na década de 1980, que recolocou a ação política no eixo
de análise, René Armand Dreifuss, autor da obra 1964: A Con-
quista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe, publica-
da em 1981, produz uma tese extremamente pontual acerca do
que foi a conjuntura do governo Goulart e do Golpe de 1964.
Sustentado por uma vasta documentação, o historiador uru-
guaio analisa a luta por hegemonia desencadeada pela grande
burguesia em associação com o capital multinacional.
As reflexões de Dreifuss, ao colocarem luz sobre duas
importantes organizações empresariais existentes na década de
1960 no Brasil, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), acabam por
destacar o caráter extremamente classista do movimento políti-
co autoritário exitoso em 31 de março. Ao classificar essas a-
gências (IPES e IBAD), na visão gramsciana, como Aparelhos
Privados de Hegemonia, Dreifuss prova que os empresários
elaboraram um projeto de tomada e remodelamento do Estado
brasileiro.
Existia, portanto, claro propósito de explicitar que o capi-
tal multinacional e associado não encontrava correspondente
liderança política na figura de João Goulart. Naquele momento,
na ótica de Gramsci, acontece a nacionalização de um projeto
de classe, ou melhor dizendo, de fração de classe, falando espe-
cificamente do capital multinacional e associado.
Sendo assim, o complexo IPES/IBAD, para Dreifuss, se
constitui enquanto Estado-Maior da burguesia multinacional,
pois esta passa a planejar e desenvolver um projeto de condu-
ção ao poder, ou seja, de tomada do Estado. Para isso, amplas
campanhas de desestabilização do presidente João Goulart
307
foram realizadas, envolvendo atividades de instrução anticomu-
nista e também de profunda crítica ao "atraso" das oligarquias
rurais, do intervencionismo estatal e da corrupção desenfreada
incrustada, segundo eles, na essência política "populista".
O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Renato Luís do Couto e Lemos, em artigo intitulado “Contrarre-
volução e Ditadura: ensaio sobre o processo político pós-1964”
(2004), versa sobre o processo político brasileiro de 1964. Sua
pesquisa corrobora com a leitura de Golpe e Ditadura Empresa-
rial-Militar que surgiu recentemente em contraposição ao revi-
sionismo historiográfico sobre a temática aqui no Brasil.
Abordando as temporalidades de Fernand Braudel e a
noção de contrarrevolução, Renato Lemos traça um importante
olhar as condições que fomentaram o Golpe de Estado em 1964
e sobre a ditadura subsequente. Na sua visão, explicar as razões
do Golpe e da Ditadura que ele denomina como burguês-
militar é retomar cruzamentos históricos de longa, média e cur-
ta duração do período de 1914 a 1989.
Para o historiador, a contrarrevolução é o elemento que
conecta os tempos, ou seja, percebendo a história política brasi-
leira (história da luta de classes) na "longa duração", a crise da
democracia no país, o golpe de estado e o regime autoritário
seguinte estão articulados às lutas de classes no âmbito do
sistema capitalista mundial. Assim, a partir da revolução russa
de 1917, passou a existir uma forte tendência à preservação dos
privilégios do capital.
Sendo assim, o Golpe de 1964 foi entendido como uma
ação de classe pelo historiador Demian Bezerra de Melo (2012).
Mais que um movimento classista, seus estudos identificam
quais frações da classe dominante conspiraram no golpe e que
depois enriqueceram abruptamente durante a ditadura. Para o
autor de “O golpe de 1964 como uma ação de classe”, a ditadura
representou um grande negócio para o grande capital.
308
Para o pesquisador, algumas evidências reforçam a tese
de que houve sim um Golpe e uma Ditadura Empresarial-
Militar. Como evidências disso, temos a aceleração da acumula-
ção capitalista, a expansão da fração do capital ligada à indus-
tria de bens duráveis e o fortalecimento de outras frações das
classes dominantes brasileiras.
Como exemplos eloquentes, pensemos o empresariado
ligado à construção civil (como os grupos Camargo Corrêa,
Andrade Gutierrez, Mendes Júnior e Odebrecht), à industria
pesada (Gerdau, Votorantim, Villares, entre outros), sem esque-
cer o sistema bancário (de que são exemplos os grupos Moreira
Salles, Bradesco e Itaú), grupos que construíram ou consolida-
ram seus impérios naquele contexto. No ramo das telecomuni-
cações, a maior empresa do país, a Rede Globo, cuja trajetória
de colaboração com o regime ditatorial está bem descrita no
documentário Muito Além do Cidadão Kane, de Simon Hartog
(Reino Unido, 1993), deve ser incluída na lista (MELO, 2012, p.3).
A proposta de análise classificação por "empresarial-
militar", surgida na tese de René Dreifuss, talvez seja um cami-
nho para criticarmos às novas abordagens que procuram "anis-
tiar historiograficamente" aqueles que procuram equiparar to-
dos os sujeitos sociais que participaram e viveram aqueles anos.
Igualar as responsabilidades da "sociedade" e dos "golpistas" e
"ditadores" possa não ser opção para que as reflexões e análi-
ses históricas contribuam de maneira direta na sociedade.
Considerações Finais
Atendendo a proposta principal do trabalho de estabele-
cer uma análise crítica do livro didático de história da Editora
Moderna "Conexões com a História", volume 3, destinado à
terceira série do ensino médio, de autoria de Alexandre Alves e
Letícia Fagundes de Oliveira, procuramos estabelecer um exame
reflexivo acerca de como os autores trabalharam a questão dos
309
antecedentes e do golpe de 1964, recorte temporal adotado
para a pesquisa vigente.
No entanto, antes de desenvolvermos o objetivo maior
do trabalho, foi necessário trabalharmos algumas questões
secundárias, mas de suma importância para que obtivéssemos
êxito na proposição central da pesquisa. Versar sobre a impor-
tância da utilização do manual escolar como fonte de pesquisa
histórica, trazendo a contribuição de especialistas na área facili-
tou bastante o desenvolvimento restante do projeto.
Reconhecermos que o livro didático, desde o processo de
elaboração, passando pela fabricação e depois sua distribuição,
se converte em um espaço de intensas disputas ideológicas,
culturais, políticas e comerciais, é extremamente caro para que
essa alternativa metodológica se constitua importante arcabou-
ço documental no processo de elaboração histórica, servindo
de base para o trabalho não só de professores em sala de aula,
mas também de pesquisadores.
Conclui-se, portanto, que o livro didático supera os limi-
tes de um manual escolar limitado ao exercício da docência,
mas também representa, e muito, uma fonte de trabalho que
reflete o contexto histórico de sua produção, a ideologia e ori-
entação teórica daqueles que o produzem e, não menos impor-
tante, aponta o estado da arte de determinados fatos históricos
estão sendo problematizados pela historiografia atual.
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312
A DITADURA EMPRESARIAL-MILITAR BRASILEIRA
NO LIVRO DIDÁTICO POR MEIO DO HUMOR
GRÁFICO
Introdução
Após o fim do Estado ditatorial brasileiro, seguiu-se uma
narrativa histórica sobre esse período antidemocrático de cunho
memorialista e denunciativa dos horrores da época, mas com
timidez no aprofundamento dos temas. O medo em relação ao
que falar e não falar remonta a uma série de questões mal re-
solvidas no processo de redemocratização política. Afinal, so-
mos o país que concedeu “anistia geral e irrestrita”, sim, “per-
doamos oprimidos e opressores”. Nossa Constituição Federal,
mesmo com todas as conquistas legais instituídas, guardou seu
quinhão protetivo aos arquitetos da ditadura, por exemplo, com
uma separação abismal entre o âmbito civil e militar no que
compete às responsabilidades de quem deve punir um militar
diante do desrespeito ao Estado de Direito. Essas e outras situa-
ções objetivas do cotidiano nacional são endêmicas para com-
preendermos que tipo de sociedade nasceu após 1985 e, prin-
cipalmente, a partir da Constituição de 1988 e eleições diretas
de 1989.
Nossa democracia é frágil e arraigada por elementos que
aparentemente deveriam estar superados com a redemocratiza-
ção. Isso de modo inevitável refletiria no ensino de História, em
como esse passado seria apresentado à posteridade. O Progra-
ma Nacional do Livro Didático (PNLD) assevera que é possível
aplicar também as possibilidades que os Objetos Educacionais
313
(OEDs) oferecem para a articulação dos temas da História que é
ensinada nas escolas com as questões atuais, destacando as
permanências e transformações das práticas sociais ao longo do
tempo. Isso colaborou muito para que houvesse avanços subs-
tanciais na qualidade de materiais didáticos e paradidáticos no
país, embora tenhamos nos últimos anos a presença gradativa
de ataques frontais às possibilidades de revisão crítica do co-
nhecimento histórico, sobretudo através de organizações de
classe como o movimento “escola sem partido”.
Não obstante, a legislação vigente ainda se mantém ori-
entada pelo eixo fundamental da construção da cidadania nos
estudantes. Nos livros didáticos que abordaremos acerca do
humor gráfico dos anos finais da ditadura empresarial-militar,
os fatores de realce da importância democrática são imperati-
vos, expõem uma preocupação humana com os representantes
da resistência que foram presos, torturados e mortos ao longo
do regime, isso, em comunhão com os discursos de Direitos
Humanos que, por sinal, ganharam muita força no Brasil ao
longo da abertura política. Esse viés democrata, cidadão e hu-
manista funciona como uma espinha dorsal dos materiais de
ensino analisados e atravessa o teor dos textos regulares e a-
pêndices do início ao fim. Mais ainda, sempre com discussões
acerca da importância do resgate da memória dos perseguidos
políticos.
Dessa forma, abordaremos o humor gráfico sobre a dita-
dura através de três livros didáticos: Vontade de Saber (História)
de Marco Pellegrini, Adriana Dias e Keila Grinberg; Historiar de
Gilberto Cotrim e Jaime Rodrigues (ambos do nível fundamen-
tal, triênio 2017/2018/2019, utilizados na rede pública de ensino
do município de São Luís - MA) e História em Movimento: do
século XIX aos dias de hoje de Gislane Azevedo e Reinaldo Seria-
copi (nível médio, triênio 2015/2016/2017, utilizado na rede
pública de ensino do Estado do Maranhão).
314
O livro didático como fonte
A partir do que se desenvolveu na chamada “Nova Histó-
ria”, foi observada a expansão do universo do historiador, que
passou a dispor de uma ampla variedade de novas abordagens
históricas, isto é, houve, por exemplo, a ampliação do conceito
de fontes históricas.
A proeminência da palavra quebrou-se; porém, sem pres-
cindir da mesma. Hoje, podemos trabalhar no universo acadê-
mico e no ambiente de ensino aprendizagem da escola junto
aos alunos, diversas evidências históricas, por exemplo: docu-
mentos oficiais, jornais, mapas, ilustrações, gravuras, histórias
em quadrinhos, poemas, letras de música, literatura, manifestos,
relatos de viajantes, panfletos, caricaturas, pinturas, rádio, tele-
visão, entre outros; além, é claro, do próprio livro didático.
O importante é que se alerte para a necessidade de que
as fontes recebam um tratamento adequado, de acordo com
sua natureza (KARNAL, 2003), não há fonte melhor ou pior, a
questão está na abordagem e trabalho sobre a mesma. “O es-
sencial é enxergar que os documentos e os testemunhos só
falam quando sabemos interrogá-los” (BLOCH, 2002, p. 27).
Toda imagem se bem trabalhada pode vir a ser uma evidência
histórica. Haja vista, que não buscamos uma “janela literal” para
o passado.
Dessa forma, o livro didático é sim fonte de competência
do historiador, material legítimo de seu ofício de investigação
do passado e suas reverberações no presente e futuro. Sua pe-
cha de sacralizador de sensos comuns lhe imputou por muito
tempo a infâmia e repugnância de uma parcela de historiadores
(ainda presentes na atualidade) de nem sequer fonte histórica
ser. O vício ao papel velho resistiu às evoluções da própria his-
toriografia e ainda tenta descredibilizar estudos atuais que valo-
rizam essa fonte.
O escapismo a tal crítica é tão problemático quanto, pois
vem à tona outro ranço do ofício do historiador: a partir de
315
quanto afastado da fonte surge a sua “competência essencial”
de historiador para investigar àquele vestígio? As pesquisas e
teorizações sobre a função do livro didático ganharam espaço, à
medida que este é responsável pela explicitação e sistematiza-
ção dos conteúdos oriundos da produção historiográfica que
chegam à sociedade. Logo, o propósito do estudo histórico está
acima de qualquer vaidade e disputa de nicho intelectual, seu
propósito é responder às demandas da coletividade social e
intervir sobre os seus sentidos cristalizados, destruindo-os e
reconstruindo-os em favor da constância do conhecimento.
316
sobre o regime, a visibilidade de sujeitos históricos silenciados
em outros contextos.
Os livros e seus manuais do professor instruem acerta-
damente sobre metodologias de ensino e de produção do co-
nhecimento histórico, observado que o objetivo não é fazer do
aluno um pesquisador, mas um sujeito ativo na produção de
sua consciência histórica. No mais, existem materiais extras
dispostos nos capítulos que contemplam recursos de aprendi-
zado por meio do cinema, música, artes plásticas, literatura,
esportes, entre outros. Embora utilize uma estrutura de organi-
zação de conteúdos, definições e conceitos históricos ditados
pela progressão cronológica, ocasionalmente ocorrem transver-
salidades de conceitos a título de curiosidade, comparação e
olhar macroestrutural de acontecimentos.
Os livros têm em seu texto do capítulo uma série de pe-
quenas remissões com o propósito de conectar o aluno com
elementos do seu dia-a-dia, que o façam refletir a interação
entre passado e presente. Dessa maneira, propõe a discussão
em sala, ou fora dela, de modo interativo com os conteúdos do
livro didático, destacando questões contemporâneas relevantes
ao aluno e ao passado. A proposta pedagógica se desencadeia
por via de circunstâncias do dia-a-dia dos estudantes para a
reflexão e a construção de argumentos históricos cada vez mais
elaborados. Por exemplo, ao tratar do tema “violência”, estará
incutida a transversalidade e interdisciplinaridade disso na atua-
lidade e história recente do país. Porém, devendo-se levar em
consideração que o fato de distintas disciplinas trabalharem
com temáticas aproximadas não quer dizer que esteja sendo
interdisciplinar.
Nessa nova compreensão do ensino médio e da educação bási-
ca, a organização do aprendizado não seria conduzida de forma
solitária pelo professor de cada disciplina [...]. As linguagens, as
ciências e as humanidades continuam sendo disciplinares, mas é
preciso desenvolver seus conhecimentos de forma a constituí-
317
rem, a um só tempo, cultura geral e instrumento para a vida, ou
seja, desenvolver, em conjunto, conhecimentos e competências
(BRASIL, MEC, PCN, 2002, p. 14 e 15).
318
volvimento incessante do pensamento, reflexão e conhecimen-
to, no qual o discente é participante ativo.
O uso da multiplicidade de linguagens para o processo
de ensino-aprendizagem nesses livros é um de seus pontos
mais positivos. No PNLD existe uma preocupação em mostrar a
necessidade do caráter interativo das linguagens na formação
cognitiva dos estudantes. Nos livros em questão, o uso da críti-
ca ilustrada no corpo dos capítulos segue um raciocínio básico:
aplicação alegórica em algumas passagens do texto principal,
isto é, anexo a informações sobre fatos históricos emblemáticos,
principalmente, na fase da abertura política; além de estar tam-
bém concentrada em médios e grandes boxes analíticos no
texto principal ou ao final do capítulo.
Ambas as formas de inserção se alinham aos objetivos de
análise deste trabalho, respectivamente, a primeira por ofertar a
possibilidade de uma crítica sobre o uso meramente auxiliar a
linguagem escrita, e a segunda por apresentar discussões e
exercícios que provocam o censo crítico dos alunos a partir da
leitura das charges, cartuns, caricaturas e tiras.
Na obra História em movimento 3: do século XIX aos dias
de hoje (3º ano do Ensino Médio, especificamente o capítulo 16:
O Brasil sob a Ditadura Civil-Militar) as imagens do humor gráfi-
co estão concentradas no final do capítulo em um grande boxe
intitulado Interpretando Documentos. Como se vê, a proposta é
de fazer o estudante interagir com a ideia de fonte histórica. Os
desenhos estão conveniados a pequenos textos de enunciação,
o que nos condiciona a pensar que se tratam de elementos
complementares, caso não sejam bem operacionalizados pelo
professor.
319
Imagem 01: Interpretando Documentos
320
Imagem 02: Charge de Redi1 publicada em 1976
1
Pseudônimo do chargista Sílvio Redinger que foi um dos muitos colaborado-
res do jornal alternativo “O Pasquim”.
321
este também apresenta um espaço próprio para a leitura e aná-
lise da sua crítica ilustrada, denominado Investigando na Prática,
um grande boxe de duas páginas no centro do capítulo. Essa
alocação do boxe no centro das discussões tira do humor gráfi-
co o estigma da subsidiariedade dessa linguagem.
323
país”, isto é, em virtude da legislação guiada pela Doutrina Se-
gurança Nacional, toda e qualquer suspeita de vinculo esquer-
dista era ferozmente combatido pelos aparelhos de coerção. O
iconotexto satiriza o terror de Estado a partir de um uso indis-
criminado e hiperbolizado do recurso legal aplicado às conveni-
ências cotidianas das personagens, logo, fazendo uma associa-
ção crítica ao caráter discricionário dos órgãos de controle de
informação e polícia, e também à própria sociedade brasileira.
326
Considerações Finais
Esse trabalho se propôs, entre outros caminhos, a inves-
tigar naquela que ainda é a grande ferramenta do professor, o
livro didático, quais as abordagens sobre a ditadura estão sen-
do ensinadas nas escolas por meio da linguagem imagética
burlesca da crítica ilustrada.
Logo, como se pôde perceber, a investigação histórica
por meios que privilegiem múltiplas linguagens para uma histo-
riografia consoante ao seu tempo e a um ensino de História
aprimorado, existem e são necessários, os livros didáticos mais
atuais são prova desse empenho. A progressão da mescla da
linguagem humorada de charges, cartuns, tiras e caricaturas à
linguagem escrita tem se mostrado um salto qualitativo signifi-
cativo nos livros didáticos atuais.
Uma vez que a história não é um dogma, ou seja, é cons-
tante, mutável, segue a dinâmica evolutiva dos seres humanos
na sua interação social e nos desenvolvimentos dos conheci-
mentos científicos historiográficos. Assim, questionar a realida-
de ao seu entorno observando problemas e tratando de resol-
vê-los, valendo-se para isso do pensamento, da criatividade, da
intuição, da capacidade de análise crítica, selecionando proce-
dimentos e verificando sua adequação é uma noção primordial
para que mais que quantidade do conhecimento, tenha a sua
qualidade como um norte vitalício e a sua formação cidadã
como uma consequência natural da própria evolução da socie-
dade brasileira. Uma sociedade que enfim poderá encarar seu
passado nos olhos e dar-lhe a importância e respeito devidos.
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330
ABERTURA POLÍTICA E ANISTIA BRASILEIRA NOS
LIVROS DIDÁTICOS: A (SUCINTA) HISTÓRIA DE
UMA LUTA INCONCLUSA
Introdução
Na construção das interseções entre ensino de História e
as discussões sobre o caráter inconcluso da Lei de Anistia brasi-
leira, esse trabalho tem o livro didático como objeto central de
investigação. Assim, será privilegiado o processo de distensão
política e, mais especificamente, a aprovação da Lei de Anistia
de 1979 no Brasil e o modo como esta temática é trabalhada
nos livros didáticos adotados pela rede estadual de ensino do
Maranhão nos últimos anos. A reflexão aqui construída será
parametrizada pelo conceito de cultura histórica, que sintetiza
as múltiplas formas de constituição da trama que liga o presen-
te ao passado, na importância de um ensino (não só de Histó-
ria) pautado no exercício efetivo e pleno da cidadania e na pre-
venção da repetição de quaisquer arbitrariedades e violações de
direitos humanos. A importância de maiores problematizações
desses temas, quando relacionados às graves violações de direi-
tos humanos durante o regime ditatorial brasileiro, pode con-
duzir à historicização de questões diretamente relacionadas à
cidadania, igualdade, justiça social, liberdade ou outros direitos
historicamente conquistados e fundamentais na construção de
um cidadão crítico e atuante. As análises das abordagens pre-
sentes nos livros são também parametrizadas pelas diretrizes e
critérios de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático.
331
Deste modo, ao considerarmos nosso “passado recente”, como
estão sendo abordados os “temas sensíveis1” em sala de aula?
Como a anistia, dentro desta perspectiva, pode ser inserida no
cotidiano escolar, ultrapassando as explicações simplificadas ou
naturalizadoras que lhe são dedicadas nos livros didáticos?
Para fundamentação destas questões, foi analisada a
abordagem construída sobre o processo de anistia no Brasil em
alguns dos livros mais recorrentemente adotados nas escolas da
Educação Básica no Maranhão, especificamente no Ensino Mé-
dio. Apesar da presença de algumas importantes discussões
acadêmicas, os livros ainda publicizam uma interpretação do
processo de anistia pautado pelo protagonismo dos presidentes
Geisel e Figueiredo, em detrimento das diversas lutas promovi-
das pelos movimentos sociais. Assim, as singularidades dos
embates e insatisfações em torno da aprovação da anistia se
relacionam com a perspectiva da necessidade de preservação
da memória histórica e documental do período ditatorial brasi-
leiro, notadamente carente em termos de publicização desses
“documentos sensíveis2”.
1
Ou seja, temas presentes em sociedades egressas de eventos traumáticos,
como regimes ditatoriais ou totalitários relacionados à graves violações de
direitos humanos.
Para Thiesen (2013), “documentos sensíveis podem ser definidos provisoria-
2
333
nal do Livro Didático (PNLD)3, apontam Selva Guimarães Silva e
Marco Antônio Fonseca, também são objetos de crítica no sen-
tido de que essa “socialização de certo saber histórico, não con-
tribuiu para o desenvolvimento da compreensão da história de
forma crítica entre nossos alunos” (SILVA; GUIMARÃES, 2010, p.
26) e colabora sobremaneira para a “difusão e imposição de
uma história excludente, reprodutora por excelência da memó-
ria oficial da nação” (SILVA; GUIMARÃES, 2010, p. 26). Os ques-
tionamentos dos autores seguem na linha da tentativa de com-
preensão do livro didático como mercadoria, “destinada a di-
fundir uma determinada produção totalmente alheia ao proces-
so ensino-aprendizagem”. Continuando em suas reflexões sobre
quais procedimentos tornam possíveis que o livro didático seja
visto como “panaceia universal” para uns e “bode expiatório”
para outros, é destacado o papel da simplificação do conheci-
mento histórico, impondo um discurso unilateral, tornando
definitiva, institucionalizada e legitimada pela sociedade a me-
mória de um projeto de poder vitorioso (SILVA; GUIMARÃES,
2012, p. 145-147).
Nesta mesma perspectiva crítica em relação ao livro didá-
tico, Marco Antonio Silva (2012) afirma ocorrer uma supervalo-
rização do papel do livro didático, resultado de sua complexa
trajetória histórica, sua significativa relevância econômica, de
contornos ideológicos e políticos, ocorridos com maior intensi-
dade no período republicano brasileiro (SILVA, 2012, p. 803). O
autor explica que a atual crítica que ocorre, dentro e fora da
3
A partir de 1996, o MEC exclui de suas compras livros que apresentam erros
conceituais, indução a erros, desatualização e preconceito ou discriminação de
qualquer tipo. Posteriormente, ao invés de livros avulsos, são avaliadas somente
coleções didáticas, e os critérios de exclusão são aperfeiçoados. Com o lança-
mento dos PCNs, passa a ser muito recorrente a presença de selos nas capas
dos livros didáticos anunciando suas adequações aos Parâmetros. Logo, há um
movimento de revisão dos materiais didáticos feitos pelas editoras, tanto para
se adequar à nova proposta curricular, como para se adaptar aos critérios de
avaliação do PNLD.
334
academia, sobre a utilização dos livros didáticos em sala de
aula, parece não incitar questionamentos “mais incisivos”. Ques-
tões como a precarização das condições de trabalho em sala de
aula e o uso dos livros didáticos, como principal recurso peda-
gógico e como fonte de pesquisa pessoal, demonstram tam-
bém complexidades em relação à formação dos professores
(SILVA, 2012, p. 805-807).
As adversidades enfrentadas pelos professores cotidia-
namente, acabam por transformar o livro didático como instru-
mento solitário do processo de ensino-aprendizagem, como
indicado nos próprios PCNs:
O ambiente da sala de aula, o número excessivo de alunos por
turma, a quantidade de classes assumidas pelos professores e
os controles administrativos assumidos no espaço escolar con-
tribuem para a escolha de práticas educacionais que se adap-
tem à diversidade de situações enfrentadas pelos docentes. Ge-
ralmente, isso significa a adoção ou aceitação de um livro, um
manual ou uma apostila, como únicos materiais didáticos utili-
zados para o ensino (BRASIL, MEC, PCNs, 1998, p. 79).
338
de categorias e padrões de interpretação globais (RÜSEN, 2011,
p. 123).
340
riências e às interpretações de modo sistematicamente argu-
mentativo (RÜSEN, 2011, p. 126).
Dada a impossibilidade de construção de perspectivas o-
rientadoras e juízos históricos sem as referências ao presente na
exposição e interpretação do passado, o livro didático deve
respeitar a ideia de que a aprendizagem histórica de orientação
trabalhará sempre com essa relação com o presente. A singula-
ridade do passado deve ser ilustrada por essas referências, evi-
tando assim um presentismo histórico, bem como uma falsa
objetividade histórica. Somente esta problematização transfor-
mará a perspectiva da orientação em histórica, conduzindo à
experiência histórica e sua interpretação do presente. Assim,
as referências ao presente não fazem desaparecer as diferenças
entre o passado e o presente, mas as sondam de tal forma que
na distância temporal entre passado e o presente se vislumbre
uma parte da perspectiva futura para o presente. Com tudo is-
so, um livro didático deveria levar em conta que as crianças e
jovens aos quais se dirige possuem um futuro cuja configuração
também depende da consciência histórica que lhes foi dada
(RÜSEN, 2011, p. 127).
341
da consciência histórica e da memória unimos as três dimen-
sões (passado, presente e futuro) e nos orientamos no tempo.
7
. Os dados sobre matrículas e outras informações referente ao Censo Escolar se
encontram disponíveis no portal www.qedu.org.br. Sobre os livros didáticos,
número de alunos e escolas que receberam as obras, as informações foram
consultadas no portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro e no Sistema do Materi-
al Didático (SIMAD) disponível em
https://www.fnde.gov.br/distribuicaosimadnet/iniciarSistema.action. Acessado
em janeiro de 2018.
342
Para mapeamento da temática sobre a anistia, os livros
didáticos escolhidos foram adotados pelas seguintes escolas de
São Luís: Fundação Nice Lobão (Cintra); Centro Educacional
Liceu Maranhense; pelo Centro de Ensino Benedito Leite (Escola
Modelo); pelo Centro Educacional Almirante Tamandaré; Centro
Educacional Paulo VI e Centro Educacional Manuel Beckman. Os
livros analisados foram adotados durante a vigência trienal do
Plano Nacional do Livro Didático 2014-2016. A escolha das es-
colas seguiu critérios quantitativos, como número de matrículas
(escolas de ampla concorrência) e infraestrutura relacionada ao
acesso a internet (banda larga e número de computadores dis-
poníveis aos alunos), conforme sistematizados no quadro a
seguir.
343
Quadro II – Matrículas Rede Básica Educação em São Luís
(Ensino Médio Regular) em 2015
Total de Matrículas Ensino Matrículas 3º
Escolas Médio Ano
Maranhão 468 238.580 62.358
São Luís 74 39.501 10.805
Fonte: Portal QEdu. Elaboração própria.
8
O livro do 3º ano desta coleção foi distribuído no ano de 2015, conforme nota
do FNDE, com 86.862 unidades, ocupando o posto de 3º livro mais distribuído
entre as escolas no Brasil. O livro mais distribuído, História, Sociedade e Cidada-
nia, do autor Alfredo Boulos, com 371.457 unidades, não foi adotado dentro do
espectro das escolas elencadas nesta pesquisa. Os demais livros analisados na
dissertação foram: “Coleção Integralis - História: 3º ano - ensino médio” (Editora
IBEP) do autor Divalte Garcia Figueira; “História 3 - o mundo por um fio do século
XX ao XXI” (Editora Saraiva) dos professores Ronaldo Vainfas, Jorge Ferreira,
Sheila de Castro Faria e Georgina dos Santos.
344
Braick e Myriam Becho Mota. Serão analisadas questões relati-
vas à caracterização do regime ditatorial de pós-1964 e seus
mecanismos de repressão, a distensão do regime e seu proces-
so de abertura política, destacando, dentro desta perspectiva, a
anistia e seus desdobramentos nos livros didáticos escolhidos.
O livro das autoras Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota9
foi adotado, entre outras escolas, no Liceu Maranhense e no
Centro Educacional Paulo VI.
O processo de abertura política é trabalhado ao “longo”
de duas páginas10 e com o subtítulo de “O lento processo de
abertura política”, subdividido em “Notícias dos porões”, “Anistia
para quem?” e “Eu quero votar para presidente”, tratando, res-
pectivamente, sobre os protestos desencadeados pelas mortes
do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho; a
Lei de Anistia, o fim do bipartidarismo e a organização de parti-
dos, que as autoras apontam, de alguma forma, com o mundo
do trabalho e tangenciam sobre a mobilização pelo voto direto
para presidente, denominado de Diretas Já. Assim, estão pre-
sentes as opções pela caracterização do início da abertura polí-
tica brasileira como resultado da chegada ao poder do general
Ernesto Geisel e sua vinculação com a “intelectualidade do Exér-
cito”, trazendo à tona novamente a figura do também general
Golbery do Couto e Silva e sua defesa pelo “afastamento gra-
dual dos militares do governo sem que eles perdessem a capa-
cidade de interferência nas principais questões estratégicas do
país” (BRAYCK; MOTA, 2015, p. 182). Deste modo, as autoras
nos demonstram, resumidamente, que o processo se desenrola-
9
Antes de iniciarmos nossa análise, se faz necessário uma breve apresentação
sobre os autores trabalhados. Patrícia Ramos Braick é Mestre em História pela
PUC do Rio Grande do Sul. Myriam Becho Mota possui licenciatura em História
pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira, em Minas Gerais, Mestre em
Relações Internacionais pela The Ohio University, nos Estados Unidos.
10
As páginas referentes à temática são 182 e 183.
345
ria de modo pactuado, afastando assim qualquer possibilidade,
por parte dos militares, de uma transição por ruptura, abrupta.
De soslaio, o cenário de desaceleração econômica é ras-
cunhado como decorrente da alta dos preços do petróleo no
mercado internacional a partir de 1974, provocando elevação
de preços e dificuldades de manutenção da produção industrial,
resultando assim em uma ampliação das estatizações de “seto-
res essenciais e estratégicos da economia”. Notam-se traços de
uma tradição historiográfica que atribui unicamente ao fim do
“milagre econômico” a dissolução da principal base de susten-
11
tação do projeto político ditatorial . Sendo parte integrante
dessa grande engrenagem controlada pelos militares, o desgas-
te do milagre por si só não explica uma inclinação à distensão
política. As autoras nos mostram ainda que o abrandamento
dessa censura e a “divulgação desses acontecimentos” estariam
indicando uma “disposição do governo de conter o aparato
repressivo”, possibilitando assim um clima propício à redemo-
cratização. Já foi aqui explicitada essa perspectiva conciliatória
rumo à democracia, ensejada pelos militares e apresentada aqui
no sentido de pequenos deslocamentos e reformulações do
velho aparato ditatorial e que viabilizava um projeto de tutela
militar sobre o processo de abertura (SAES, 2001).
No que se refere ao sucessor de Geisel, o general João
Baptista Figueiredo, a abertura política é exposta como sua
prioridade desde o seu discurso de posse, enfatizando a pers-
pectiva de uma abertura “lenta e gradual”, reverberando a tôni-
ca de pacto, de tutela. Contudo, é destacável a crítica, mesmo
que eufêmica, sobre a reciprocidade acima discutida da Lei de
Anistia de 1979. Conceitualmente, é interessante a forma como
são caracterizados os anistiados. São anistiados os “oposicionis-
tas” e “aqueles que haviam agido em defesa do regime militar”,
11
Para mais considerações sobre a perspectiva econômica e sua influência no
jogo político brasileiro pós-“milagre econômico” consultar NAPOLITANO (2014).
346
enfatizando que se incluíam aí os torturadores. Aqui é exposta a
ênfase no projeto governamental, em consonância com as notí-
cias veiculadas na imprensa, diluindo a luta dos vários movi-
mentos sociais que empunhavam bandeiras pela anistia ao re-
dor do país.
Fica evidente a opção em caracterizar os movimentos
como “oposicionistas” e não como “guerrilheiros”, adaptando o
discurso para as discussões sobre a legitimidade das lutas con-
tra o regime ditatorial. Deste modo, as autoras instigam a atua-
lidade das discussões sobre o perdão concedido também aos
“crimes cometido pelos agentes do Estado”. A argumentação é
embasada no texto pela afirmação da participação do Brasil
como signatário de “documentos internacionais que classificam
os crimes de tortura como imprescritíveis”, e que grupos de
ativistas e entidades de defesa dos direitos humanos questio-
nam a “cultura do esquecimento e a impunidade” engendrada
pela referida lei. Neste sentido, a abordagem faz referência
sobre o debate atual em torno da “batalha da memória” duran-
te a resistência e transição democrática brasileira. Segundo
Marcos Napolitano (2015), este gira em torno das posições
conflitantes de três importantes agentes históricos: militares,
liberais e esquerdas, muito embora não exista consenso entre a
própria memória da resistência civil e da esquerda armada. Para
o autor, os questionamentos acerca do papel das políticas de
constituição e abertura de arquivos nos processos de historici-
zação do passado, bem como o diálogo entre direito à memória
e o distanciamento inerente ao ofício do historiador, mesmo
daquele mais engajado, devem conduzir não a “veredicto rigo-
roso no tribunal da história”, mas sim à compreensão de um
período complexo, marcado por uma sociedade complexa e
plural. O conhecimento crítico desses atores pode nos levar ao
entendimento dos motivos que levaram as esquerdas, derrota-
das politicamente em 1964, em 1968 e em 1973, serem “vitorio-
347
sas” no campo da memória hegemônica 12 (NAPOLITANO, 2015,
p. 105).
No seio da opção pelas “microtransformações”, as auto-
ras encerram o tópico com a reforma partidária, pondo fim ao
bipartidarismo sem, contudo, apresentarem criticamente os
possíveis desdobramentos dessas mudanças dentro de uma
transição pactuada e tutelada. A tentativa de retirada da princi-
pal bandeira de luta dos movimentos sociais aprovando uma lei
de anistia restrita e recíproca ou a aposta no possível esfacela-
mento do MDB após o pluripartidarismo não são mencionados
no livro didático em questão. Aqui é apresentada uma perspec-
tiva que novamente reproduz a discussão que cristaliza a natu-
ralização de mais um “avanço” rumo à abertura política, o pluri-
partidarismo. Para Décio Saes (2001), a tese defendida pela
grande imprensa, políticos profissionais (filiados à oposição
moderada ou à situação), burocratas estatais e intelectuais (en-
tre os quais, muitos cientistas políticos) colocaria o Estado dita-
torial militar brasileiro em marcha constante rumo ao Estado
democrático, a serviço de “todo o povo”, do “bem como”, como
vimos anteriormente ocultando seu caráter tutelado e de confli-
tos na cena política. Saes desmonta a versão dessa “democracia
em curso” e questiona qual seria o ponto final, efetivo, da de-
mocracia plena. Novamente apresentando os argumentos dos
defensores da abertura como marcha, Saes aponta a divisão
entre uma eleição direta para presidente e a proclamação de
uma nova Constituição. Muito embora essas explicações e justi-
Considerações Finais
Assim, destaca-se a falta de uma problematização maior,
levando-se em consideração a pouca ênfase dada à atualidade
das discussões sobre as continuidades e rupturas dos efeitos da
Lei de Anistia na sociedade brasileira atual, com as demandas
de um ensino de História voltado para as noções de cidadania e
igualdade, uma vez que essa temática pode ser facilmente tra-
balhada em sala de aula quando pensamos em direitos huma-
nos, justiça, reparação, impunidade, tortura, violência policial,
desigualdade social. A questão da formação é notória, uma vez
que, como aqui exposto, muitas vezes o discurso de esqueci-
mento e silenciamento é reproduzido em sala de aula do mes-
mo modo que é sucintamente nos livros didáticos de história
aqui analisados.
Os livros analisados recompõem, por amostragem, os
discursos de naturalização, silenciamento ou esquecimento
quando a temática em questão refere-se à anistia brasileira de
1979, inserida no “lugar-comum” de uma abertura lenta, gradu-
al e segura. Em meio às disputas por um mercado editorial al-
tamente rentável e o controle da história a ser contada nos
livros, serão aqui lançados questionamentos e problematizações
com relação às opções de discurso e se corroboram ou não
com o esquecimento engendrado no projeto de anistia aprova-
do e que estende suas questões até os dias de hoje. No seio
351
dessas questões insere-se a preocupação em como tornar com-
patível uma visão crítica do passado e a necessidade, quase
imperiosa, de síntese, clareza e objetividade, tão inerentes aos
livros didáticos. A resolução para Marieta de Moraes Ferreira e
Renato Franco (FERREIRA; FRANCO, 2008, p. 90) seria o desen-
volvimento da capacidade crítica do aluno através do livro, criti-
cando não somente os documentos trabalhados, mas também,
as interpretações históricas contidas nele.
O que se pode inferir sobre as fundamentações que nor-
teiam as breves abordagens sobre a anistia nos livros didáticos
é a reprodução (embora esporádica e superficialmente apresen-
tada) do que a pesquisadora Heloisa Amélia Greco denomina
de “caixa de ressonância do discurso oficial” (GRECO, 2003, p.
128), ou seja, os editoriais e reportagens da “grande imprensa”.
Em proximidade, inclusive semântica, com as publicações e
mensagens do poder Executivo, nos editoriais de periódicos
como Folha de São Paulo (19/01/1978), O Globo (31/01/1978)
ou Jornal do Brasil (04/11/1978), e as revistas Veja e IstoÉ, am-
bas publicadas em 01/03/1978, há a presença de uma tentativa
de construção de consenso em torno do projeto pretendido
pelo governo e também do questionamento da legitimidade da
luta desses movimentos que se organizavam em torno da ban-
deira da anistia . A presença de expressões como “revanchis-
13
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358
SOBRE OS AUTORES
359
Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea (NUPEHIC),
coordenado pela profª Drª Monica Piccolo.
360
William Braga Nascimento. Mestre em História pela Universi-
dade Estadual do Maranhão (PPGHIST/UEMA). Membro do
Mnemosyne, coordenado pela profª. Drª Ana Livia Bomfim Viei-
ra.
361