Você está na página 1de 3

JUSTIÇA RESTAURATIVA

Anthony Giddens-Conceitos Essenciais da Sociologia

Definição prática
Teoria e processo de justiça criminal focada em reparar os danos provocados às vítimas
de crimes e que requer a participação de todos os envolvidos.

Origens do conceito
A justiça restaurativa é uma forma de justiça baseada na comunidade e representa um
afastamento dos sistemas judiciais retributivos (calcados na punição) dos países
desenvolvidos. Os sistemas judiciais comunitários têm uma longa história, sobretudo em
antigas sociedades pequenas sem organização estatal. Nessas sociedades, a justiça dizia
respeito à solução da contenda, e esse processo comprometia infratores e suas famílias,
promovendo reparações às vítimas e à comunidade como um todo (Strickland, 2004, p.2-3). Os
sistemas judiciais retributivos hoje tão comuns podem ser considerados relativamente novos,
cuja história remonta ao século XVIII apenas. A invenção e o uso cada vez mais comum do
encarceramento como punição para crimes de todos os tipos marcaram uma mudança
representativa em relação à justiça comunitária. O movimento de justiça restaurativa
contemporâneo, inspirado nos modelos restaurativos das comunidades maori na Nova
Zelândia e em grupos aborígenes na Austrália (McLaughlin et al., 2003), surgiu ao final da
década de 1970. Contudo, entre os criminologistas, o ímpeto desse movimento veio de uma
crescente desilusão com as políticas retributivas convencionais, índices de recidivismo
consistentemente altos e uma sensação de que “nada funciona”.

Significado e interpretação
A justiça restaurativa é uma forma de justiça criminal e comunitária que obriga os
infratores a reconhecer o impacto de seu comportamento nas vítimas, famílias e na
comunidade de modo geral. Nesse sentido, ela parte do princípio de que os infratores fazem
parte, e não estão separados, da comunidade em que vivem. Os sistemas de justiça retributiva
funcionam retirando os infratores da comunidade e levando-os para prisões, quase sempre
muito longe do local onde ocorreu a violação e, dessa forma, blindase o infrator das
consequências de suas ações. Os defensores da justiça restaurativa afirmam que os infratores
devam ser expostos aos custos de suas violações de uma maneira significativa que os ajude a
se reintegrarem à corrente tradicional dos relacionamentos sociais (Graef, 2001). Assim sendo,
os processos restaurativos procuram encontrar novas formas criativas de reduzir a reincidência
do ato, concedendo a vítimas e comunidade um papel central no sistema de justiça.
Uma das figuras fundamentais na origem da justiça
restaurativa é John Braithwaite (1999 [1989]), para quem a
justiça restaurativa é mais eficaz se for baseada na “vergonha
reintegrativa”. Isto é, os infratores passam a reconhecer
totalmente a reprovação da vítima e da sociedade, de formas
que os envergonham a ponto de chegarem à “obediência por
livre escolha”. O processo pelo qual se alcança isso deve se
basear em três princípios básicos: respeito mútuo,
comprometimento mútuo e intolerância em relação ao
comportamento ofensor (Van Ness; Strong, 2010, p.104). Para
Braithwaite, a vergonha é a melhor maneira de transmitir aos infratores o ressentimento
justificado de suas vítimas e fazer que se responsabilizem como cidadãos.
Contudo, a vergonha pode facilmente virar estigmatização, o que pode transformar
infratores em “excluídos”, impulsionando-os para a carreira no crime em subculturas
desviantes. Portanto, é crucial que o processo de justiça seja “reintegrativo” e fiel aos
princípios básicos ressaltados anteriormente (Strang; Braithwaite, 2001).
Nas abordagens da justiça restaurativa, pode-se exigir que os infratores conheçam ou se
comuniquem com as suas vítimas, normalmente através de algum tipo de mediação. Isso
permite que as vítimas façam perguntas, expressem seus sentimentos diretamente, recebam
um pedido formal de desculpas e deixem claro para o infrator quais são as consequências dos
atos por ele cometidos. Isso também ajuda as vítimas a darem sequência à vida. Mas também
obriga os infratores a assumirem a responsabilidade por suas ações, compreenderem como a
violação que cometeram afeta outras pessoas e repensar qual será o seu comportamento no
futuro (Liebmann, 2007, p.29). No entanto, a segunda parte da justiça restaurativa é a
reparação – reparar os danos causados. Embora uma sentença de prisão ainda possa ser
apropriada para crimes graves de violência, há uma probabilidade muito maior de que, na
maioria dos casos, a “sentença comunitária” seja mais propícia. Exemplos disso incluem
prestar serviços comunitários, trabalhar como voluntário ou auxiliar em projetos na
comunidade.

Aspectos controversos
O uso da vergonha no sistema de justiça criminal parece mais adequado para alguns
tipos de infratores do que para outros. Grande parte da literatura e exemplos de justiça
restaurativa se concentram em um conjunto semelhante de violações, incluindo
arrombamentos, furtos, violência doméstica, infrações de trânsito e vandalismo, por exemplo.
Houve alguns casos de reintegrações bem-sucedidas nessas áreas, embora realmente faltem
dados empíricos convincentes capazes de fundamentar a ideia de que a justiça restaurativa
reduz a reincidência. Será mesmo possível que gângsteres organizados, estupradores,
assassinos ou pessoas envolvidas em redes de pedofilia possam ser induzidos à cidadania
responsável por meio da vergonha reintegrativa?
De maneira análoga, não é à toa que o modelo de justiça restaurativa seja extraído de
comunidades pequenas e relativamente homogêneas nas quais as reparações comunitárias
têm mais chances de sucesso. Em cidades e áreas urbanas grandes e multiculturais, a
impessoalidade e a segregação ditam as regras. Nesse contexto, é muito difícil discernir o
significado de “comunidade”. Além disso, na falta da identificação comunitária, é pouco
provável que a vergonha e as medidas restaurativas carreguem alguma força.
Alguns acadêmicos também confrontam os princípios básicos da justiça restaurativa.
Acorn (2004) afirma que, sem dúvida, a melhor forma de lidar com violações e rivalidades é
tentar resolvê-las mediante diálogo e acordo.
Contudo, a ideia de que a justiça restaurativa poderia formar a base de todo o sistema
de justiça é errônea e possivelmente perigosa. Acorn reitera que todos os sistemas de justiça
são formas de lidar com relacionamentos entre pessoas justamente quando não há respeito
mútuo, solidariedade e compaixão. Portanto, a justiça restaurativa reflete um fracasso ou falta
de disposição para encarar a realidade de uma vida moderna em que essas qualidades podem
estar escassas. A justiça restaurativa não abarca, em nenhum aspecto, uma concepção genuína
de justiça, mas está meramente “atrelada à ancestral esperança do ser humano pela
convergência de amor e justiça” (Acorn, 2004, p.22). A indicação de que o sistema corrente
deveria ser desmantelado a favor de tamanho sentimentalismo fantasioso é, sem dúvida, um
perigo.

Relevância contínua
Como uma novidade relativamente recente, a abordagem da
justiça restaurativa ainda está sendo experimentada em diversos
países e para diferentes atos de crime e desvio. Logo, ainda
estamos muito longe de descobrir se ela de fato reduz os índices
de reincidência. Uma das áreas de pesquisa que vêm ganhando
espaço nesse campo são as avaliações sistemáticas das
abordagens restaurativas e é de se esperar que elas continuem.
Mesmo assim, alguns acadêmicos sugerem que o mero foco nos índices de reincidência talvez
não demonstre todos os benefícios da justiça restaurativa, que incluem satisfação da vítima
com o processo e maior envolvimento da comunidade no sistema de justiça.
Esta última argumentação é realizada por Young e Goold (2003 [1999]) em sua
comparação entre a prisão cautelar policial “à moda antiga” e a ação cautelar restaurativa “ao
novo estilo” em uma cidade inglesa. As prisões cautelares policiais ocorrem normalmente,
ainda que nem sempre, nas delegacias. A intenção é evitar que pequenos delitos cheguem aos
tribunais onde uma forma “degradante” de constrangimento pode ser percebida como injusta,
resultando na adoção de uma identidade desviante. No entanto, os autores afirmam que o
modo de execução das prisões cautelares policiais convencionais se constitui em uma forma de
“reprimenda” e, em consequência, de constrangimento humilhante. As ações cautelares
restaurativas demoram muito mais tempo – em geral, trinta a quarenta minutos –, permitindo
que os infratores descrevam seu delito e as vítimas façam perguntas e expliquem seus
sentimentos. Young e Goold argumentam que esse novo modelo deve ser valorizado pelo
envolvimento das vítimas e relativa abertura quando comparado com o tipo antigo, e não
avaliado isoladamente como forma de prevenção à reincidência.

Referências e leitura complementar


ACORN, A. Compulsory Compassion: A Critique of Restorative Justice. Vancouver: UBC Press, 2004.
BRAITHWAITE, J. Crime, Shame and Reintegration. Cambridge: Cambridge University Press, 1999 [1989].
GRAEF, R. Why Restorative Justice? Repairing the Harm Caused by Crime. London: Calouste Gulbenkian Foundation,
2001.
LIEBMANN, M. Restorative Justice: How it Works. London: Jessica Kingsley, 2007.
MCLAUGHLIN, E.; FERGUSSON, R.; HUGHES, G.; WESTMARLAND, L. (eds.). Restorative Justice: Critical Issues.
Buckingham: Open University Press, 2003 [1999].
STRANG, H.; BRAITHWAITE, J. (eds.). Restorative Justice and Civil Society. Cambridge: Cambridge University Press,
2001.
STRICKLAND, R. A. Restorative Justice. Nova York: Peter Lang, 2004.
VAN NESS, D. W.; STRONG, K. H. Restoring Justice: An Introduction to Restorative Justice . 4.ed. New Providence, NJ:
Matthew Bender, 2010.
YOUNG, R.; GOOLD, B. Restorative police cautioning in aylesbury: from degrading to restorative shaming
ceremonies? In: MCLAUGHLIN, E.; FERGUSSON, R.;
HUGHES, G.; WESTMARLAND, L. (eds.). Restorative Justice: Critical Issues. Buckingham: Open University Press, 2003
[1999], p.94-104.

Você também pode gostar