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INTRODUÇÃO À FISIOPATOLOGIA

Introdução histórica e alguns conceitos

Já decorreram mais de 6000 anos desde que o Homem procura explicar as causas das doenças.
Para que se passasse das sobrenaturais explicações da doença para descobertas como as
relacionadas com os telómeros e a enzima telomerase, a Medicina teve de definir a sua unidade,
a célula, para atingir esta fase mais racional e científica, tal como o haviam feito a Química
(molécula) e a Física (átomo).

A teoria celular para as causas das doenças foi enunciada por Virchow, que escreveu um tratado
de patologia celular, atribuindo então às alterações finas que ocorrem nas células, as disfunções
e a génese das doenças.

Nesta altura do séc. IX, para a explicação das doenças, predominavam as correntes anatómica,
fundada na teoria de Virchow, e fisiológica, que defendia que os morfologistas observavam
apenas o produto final e que seriam necessários fundamentos na área da fisiologia para se
perceber ao certo como se geravam as doenças. Para isso muito contribuiu Claude Bernard, que
aplicou o método experimental à Fisiologia e à Medicina, introduzindo os conceitos de meio
interior – líquido em que se encontram envolvidas todas as células – e de estabilidade do meio
interior – algo essencial para regular o
funcionamento das células, dos órgãos, do
organismo na sua relação consigo próprio e
com o meio que o rodeia, no sentido de
garantir um estado de saúde. Essa estabilidade,
não sendo imutável, representa um equilíbrio
que pode ser alterado quer por alterações do
próprio organismo, quer pela relação com o
meio exterior. A este conceito junta-se outro
introduzido por Cannon (fisiologista
americano): o de homeostase – condição de
estabilidade do meio interior e ao conjunto de
todos os mecanismos que podem atuar de uma
forma coordenada, no sentido de repor o
equilíbrio perdido. Portanto, existe uma
condição de equilíbrio e existem agressões que podem provocar alterações/lesões, sendo que a
alteração do meio interior pode ser quantitativamente ou qualitativamente tão acentuada que
se localize numa rampa de irreversibilidade que conduz inevitavelmente à morte. No entanto,
se tal não acontecer, nós possuímos mecanismos homeostáticos de autorregulação que são
capazes de repor o equilíbrio perdido. Naturalmente, estes conceitos têm
uma ligação com os conceitos da sobrevivência do mais forte de Darwin:
quanto mais eficazes forem estes mecanismos homeostáticos, maior a
probabilidade de sobrevivência.

Com a evolução da Química foi possível subir um nível na compreensão da


doença, passando do nível celular para o nível molecular. Tal deveu-se em
grande parte a Pauling, que enunciou a possibilidade de se entender a
doença através do estudo das moléculas: a patologia molecular.

Estes fundamentos científicos da Medicina permitem a ilustração da


árvore da Medicina. Há um tronco que vai buscar os conhecimentos
básicos da Química, Física, Matemática, Fisiologia, Embriologia, Anatomia,
Biologia Celular, etc. Estes podem ser reunidos em teorias gerais para
explicação das doenças: a chamada patologia geral, que depois
fundamenta uma patologia sistémica, dos vários sistemas, que permite
uma abordagem científica de todas as áreas da Medicina. A fisiopatologia
entra, então, na tentativa de explicação de como se
passa do estado fisiológico para o estado patológico.

Pode-se considerar que um organismo com uma


determinada suscetibilidade responde a um defeito
interior ou a um agente do meio através de uma
reação. Essa reação pode repor o equilíbrio
momentaneamente perdido e o resultado é feliz,
sendo o estudo da forma como as coisas “correm
bem” – objeto da Fisiologia – ou então essa reação
pode não conseguir repor o equilíbrio perdido,
tratando-se assim de um estado de doença, sendo a
Patologia a ciência que estuda a doença.
Dentro da Patologia há várias secções:

• Etiologia – estudo das causas;


• Patogénese – estudo de como essas causas interferem com o funcionamento normal do
organismo;
• Fisiopatologia – estudo de como se passa do estado normal para o estado patológico.

Pode-se distinguir a Fisiopatologia da Patofisiologia, uma vez que esta última se dedica ao
estudo dos efeitos produzidos pelos processos patológicos nas atividades fisiológicas normais.

Mecanismos homeostáticos como causa de doença

Os mecanismos homeostáticos são uma faca de dois


gumes, isto é, servem para a defesa, mas são também
eles próprios causa das doenças:

• Inflamação e resposta imunológica – são


sistemas fundamentais para a sobrevivência.
No entanto, também estão na génese de
doenças, como as auto-imunes, por
desregulação do sistema imunológico, em que
os anticorpos são contra constituintes do
hospedeiro. Por outro lado, as reações
inflamatórias podem ser despropositadas e
prolongadas dando origem às doenças
inflamatórias crónicas.
• Coagulação – essencial para a sobrevivência. Porém, as plaquetas e fatores de
coagulação podem atuar de uma forma desadequada e despropositada, levando à
formação de um trombo e consequente obstrução do vaso, com isquémia do território
nutrido pelo mesmo e necrose desse tecido.
• Regeneração – permite que passados 15 dias uma ferida cutânea já lá não esteja, mas
essa capacidade que permite a manutenção da regeneração permite também a
transformação das células saudáveis em células cancerígenas.
• Sistemas desintoxicantes – fundamentais no sentido de nos libertarem de determinadas
substâncias nocivas, sendo sobretudo eficazes no fígado (como os sistemas do
citocromo P450). Contudo, vão também ativar certas substâncias do ambiente,
transformando-as em substâncias por exemplo carcinogénicas.

Anemia das células falciformes

Foi Herrick o primeiro investigador a chamar a atenção para esta doença, ao observar numa
jovem estudante jamaicana com um quadro de anemia grave a forma peculiar dos seus glóbulos
vermelhos. Não sabia o seu significado, nem se essa alteração era primária ou secundária, mas
resolveu publicar numa revista conceituada o relato do caso com uma fotografia da forma em
foice dos glóbulos vermelhos, dado que ainda não havia sido descrito na literatura. Ao fim de
algum tempo verificou-se que os doentes que apresentavam glóbulos vermelhos com aquela
forma tinham quadros clínicos muito diversos, com manifestações clínicas muito variadas:

• Atraso do desenvolvimento em crianças


• Palidez e icterícia
• Falta de força e cansaço fácil
• Infeções frequentes (por exemplo, osteomielites)
• Hematúria
• Deformações ósseas
• Priapismo (ereção não relacionada com desejo sexual)
• Cegueira
• Elevada incidência de enfartes
• Síndromes dolorosas nas mãos e nos pés devido a necrose de falanges, o que pode
causar encurtamento dos dedos
• Litíase biliar
• Esplenomegália
• Úlceras da região maleolar

Em 1927, verificou-se que o assumir da forma


falciforme dependia da tensão de oxigénio e que era
a desoxigenação que causava alteração na forma dos
glóbulos. Sherman foi o primeiro a observar que estes
glóbulos alterados tinham birrefringência óptica.
Pauling, quando informado dessa birrefringência,
admitiu que esta só podia ser explicada por se formar
uma estrutura organizada molecular, o que seria
provavelmente devido a uma alteração da principal
proteína do eritrócito, a hemoglobina (Hb) (Note-se
que 97,5% das proteínas do eritrócito são Hb). Então
reuniu uma equipa e, através de electroforese,
conseguiu-se verificar que a Hb dos glóbulos vermelhos
daqueles doentes tinha uma mobilidade electroforética
diferente, o que indicava que a proteína tinha uma
diferente composição em aminoácidos da proteína
normal. Isto foi publicado em 1949 e Pauling teve o
mérito de mostrar que existiam doenças que podiam
ser explicadas através de uma alteração molecular,
inaugurando a era da Patologia Molecular, definindo a
anemia das células falciformes como uma doença
molecular.

O conjunto de alterações e manifestações clínicas tão


diversas pode ser explicado apenas por uma alteração
num aa nas cadeias β da Hb. Uma molécula de Hb tem 574
aa, as cadeias β têm 146 aa e a única alteração que foi
encontrada posteriormente por Ingram, em 1956, em
Inglaterra, usando a técnica das impressões digitais que
associa a electroforese com a cromatografia, foi que na
posição 6 das cadeias β da Hb estes doentes, em vez de
terem ácido glutâmico, tinham valina. A esta Hb de
composição diferente designou-se por Hb S.
Hemoglobina – estrutura tetramérica

• A hemoglobina é uma molécula tetramérica


• A HbA (α2β2) é a hemoglobina predominante
no adulto
• Cada molécula de Hb contém 4 cadeias
polipeptídicas de globina:
o 2 cadeias α (141aa) – cromossoma 16
o 2 cadeias β (146aa) – cromossoma 11
• Cada cadeia globínica possui um grupo heme
o Anel de protoporfirina IX
o Ferro no estado ferroso (Fe2+)
o Pode ligar-se O2 (1 molécula por cada grupo heme → 4 por cada molécula de
Hb)

Como relacionar uma única alteração num aa das cadeias beta da Hb com o conjunto tão
complexo e diversificado de alterações apresentado?

Quando a Hb S é desoxigenada, tem tendência a polimerizar, formando túbulos, e estas


estruturas tubulares rígidas levam à deformação do eritrócito. A formação destes polímeros
insolúveis (formação de um gel dentro do glóbulo) ocorre precisamente porque a troca do ácido
glutâmico pela valina vai possibilitar interações (ligações covalentes) com a fenilalanina e a
leucina, o que dá origem a uma relação diferente das moléculas entre si, com o estabelecimento
de diversas ligações hidrofóbicas. As moléculas alinham-se então desta forma peculiar, deixam
de ser solúveis e formam os tais polímeros dentro do glóbulo.

Esta alteração molecular está relacionada com uma alteração de um gene no cromossoma 11
que codifica para as cadeias β. Nos glóbulos cheios de Hb S a desoxigenação leva à formação dos
polímeros.

Nomenclatura

• Portadores assintomáticos (traço falciforme)


o HbAS ou HbS/α-talassémia
o Heterozigóticos – 1 alelo β S, 6Glu→Val + outro alelo β “normal”
• Doença de células falciformes
o Anemia de células falciformes
▪ HbSS (α2βS2)
▪ Homozigóticos – 2 alelos β S, 6Glu→Val
o Outras doenças de células falciformes
▪ HbS/HbS/β0 -talassémia*; HbS/β + -talassémia; HbSC (α2β2 6Glu→Lys); etc
▪ Heterozigóticos compostos - 1 alelo β S, 6Glu→Val + outro alelo β com outra
mutação

Hemólise – anemia

Os polímeros levam a que os glóbulos assumam formas falciformes e interferem com a função
da membrana, podendo haver rotura da mesma, levando a hemólise intravascular: destruição
dos GV em circulação. Estes glóbulos alterados são também reconhecidos e fagocitados pelos
macrófagos, sendo esta chamada de hemólise extravascular que acontece essencialmente em
órgãos com sistema monócito-macrófago como o baço.

Oclusão da circulação distal – crises vaso-oclusivas (isquémia)

Há ainda uma interação dos glóbulos com as células endoteliais e desta interação pode resultar
a obstrução dos vasos, dando origem a complicações vaso-oclusivas. Adicionalmente, estes
glóbulos passam com muita dificuldade ou então não passam nos capilares. O diâmetro do
glóbulo vermelho é 8µm e o diâmetro de um capilar é 3µm, logo o GV tem de se deformar
transitoriamente para conseguir passar e tal é possível para os glóbulos normais, mas não para
os rígidos transformados pela presença da Hb S desoxigenada. Esta situação anómala leva então
à obstrução da microcirculação.

Variabilidade na doença de células falciformes

Há aqui um fator muito importante que é o tempo de latência entre


a desoxigenação e a falciformação, uma vez que em territórios com
circulação mais rápida eventualmente não há tempo para a
falciformação, isto é, acontece a desoxigenação, mas rapidamente
o GV é levado ao pulmão, sendo reoxigenado antes de acontecer a
polimerização da Hb. Por outro lado, foi também demonstrado que
há uma relação muito estreita entre esse tempo de latência e a
concentração de Hb: o tempo de latência é inversamente
proporcional à trigésima potência da concentração da Hb. Daí que o fator concentração da Hb
seja tão relevante para determinar as consequências da desoxigenação.

Fatores que condicionam a patogénese da anemia falciforme

• Desidratação do glóbulo – influencia a concentração de Hb. Quanto maior esta for,


maior polimerização ocorrerá.
• Presença de outras hemoglobinas – há hemoglobinas que inibem a polimerização, como
o caso da HbF (Hb fetal), que tem concentrações consideráveis nos primeiros meses de
vida e que inibe algumas das manifestações da doença nesse período. Depois, quando
os seus níveis diminuem, a probabilidade de polimerização aumenta e a partir dos 2 ou
3 meses a probabilidade de
aparecerem manifestações da doença
aumenta igualmente.
• Produção de espécies reativas de
oxigénio – através do sistema da
catálise do cobre pela transformação
da Hb em metahemoglobina, o que
foi descrito nos GVs dos doentes com
anemia das células falciformes. O
superóxido dá origem ao hidroxilo
que ataca os lípidos das membranas,
levando à lipoperoxidação dos ácidos
gordos polinsaturados das membranas do glóbulo. Estas alterações das membranas
levam eventualmente à hemólise ou então a interações com a membrana das células
endoteliais.
• Aderência – os glóbulos destes doentes são “pegajosos”, nomeadamente os
reticulócitos. Note-se que estes doentes têm um aumento do número de reticulócitos,
uma vez que há uma compensação medular em resposta à destruição periférica,
embora este mecanismo de compensação seja insuficiente, não havendo reposição do
equilíbrio perdido. Contudo, estes GV têm Hb S e produzem alterações membranares,
sobretudo os reticulócitos, que fazem com que sejam pegajosos e tendam a aderir às
moléculas de aderência expressas pelas células endoteliais (como a VCAM, o CD 36, as
integrinas).
• Fenómenos de isquémia-reperfusão – havendo obstrução vascular, não há entrega de
oxigénio aos tecidos, o que conduz ao sofrimento das células; a reperfusão, que é
possível nalguns dos territórios vasculares, acaba por ser geradora de espécies reativas
nas células endoteliais.
• Inflamação – ultimamente defende-se que esta tenha um papel muito relevante na
patogénese da anemia das células falciformes, porque a inflamação está relacionada
com a expressão de moléculas de aderência nas células endoteliais e nos leucócitos. Por
outro lado, a inflamação associa-se à produção de citocinas e quimiocinas que
interferem nos mecanismos de trocas iónicas na membrana do GV. Por último, a
fagocitose é um componente importante já que leva à hemólise extravascular.
• Concentração hidrogeniónica – quanto mais elevada for, ou seja, quanto mais baixo for
o pH, maior a tendência para a formação dos polímeros;
• Aumento da temperatura – facilita a formação dos polímeros;
• 2,3-fosfoglicerato – leva à dissociação do oxigénio da Hb, facilitando a polimerização.

Fatores protetores

Suscetibilidade a infeções → Asplenia (funcional ou anatómica)

• Eritrostase/congestão → Esplenomegalia
• Hipóxia, trombose, isquémia, enfartes repetidos
• Atrofia/fibrose → Auto-esplenectomia
o Defeito opsono-fagocítico
o Defeitos na via alternativa do complemento
o Saturação do sistema monócito-macrófago
o Maior suscetibilidade a microrganismos capsulados (Streptococcus pneumoniae
e Haemophilus influenzae)

Variabilidade das manifestações clínicas

1. Alterações relacionadas com a anemia


hemolítica:
a. Palidez da pele e conjuntivas por
menor concentração da Hb (anemia);
b. Icterícia por hemólise e consequente
destruição da Hb, com aumento da
bilirrubina, que não consegue ser toda
conjugada pelos hepatócitos;
c. Taquicardia para compensar a hipoxia
(mecanismos compensatórios),
aumentando assim o débito cardíaco e
o transporte de oxigénio aos tecidos, já
que o doente está anémico, com
menos Hb.
d. Sopro sistólico devido à circulação
hiperdinâmica que produz som ao
passar pelas válvulas cardíacas;
e. Insuficiência cardíaca de alto débito uma vez que a anemia leva a hipóxia, que
por sua vez leva a diminuição da resistência vascular sistémica e consequente
aumento do retorno venoso e aumento do débito cardíaco. Contudo, este
aumento pode não ser suficiente para corresponder à necessidade dos tecidos.
Então, tem-se uma insuficiência cardíaca, mas com alto débito, contrariamente
à situação mais comum que é uma insuficiência cardíaca por diminuição do
débito, por doença do próprio coração (miocárdica) por exemplo.
f. Esteatose hepática: a falta de energia resultante da diminuição de formação de
ATP no fígado leva à dificuldade de exportação dos lípidos. Havendo deficiência
de energia, não há síntese proteica, não há formação de lipoproteínas e, por
isso, os lípidos ficam no hepatócito. Logo, o doente fica com fígado gordo.
g. Litíase biliar (por cálculos de bilirrubina): a bilirrubina é conjugada, mas depois
cerca de 1% é desconjugada na árvore biliar e liga-se ao cálcio, originando
bilirrubinato de cálcio, que precipita formando cálculos.
h. Sobrecarga de ferro, uma vez que há hemólise e tratamento destes doentes
com transfusões, que é uma estratégia terapêutica importante, podendo ser
repetida muitas vezes, causando sobrecarga de ferro. Esta pode estar na origem
de uma outra situação patológica: uma hemossiderose secundária.
i. Crises de sequestração: ocorrem geralmente nos primeiros meses de vida,
sendo extremamente graves; trata-se da sequestração de grandes volumes de
sangue no baço por obstrução da sua drenagem linfática. Assim, há um
agravamento da anemia e uma esplenomegália que cresce rapidamente, com
dor no hipocôndrio esquerdo. De facto, se as medidas terapêuticas como a
hidratação (em primeiro), as transfusões e eventualmente a cirurgia, não
resolvem a situação, estes indivíduos morrem com choque hipovolémico, uma
vez que uma percentagem muito importante do sangue fica no baço, em vez de
estar em circulação.
j. Hiperplasia normoblástica causada pela medula que tenta compensar a
destruição periférica dos glóbulos; essa compensação é tão acentuada que leva
mesmo a alterações morfológicas dos ossos, porque a medula expande e “como
que rói” o endosteum e as porções internas dos ossos, dando origem a imagens
radiológicas características;
k. Crises aplásicas que podem acontecer essencialmente por dois motivos: um é a
carência de ácido fólico, devido ao elevado turnover de glóbulos (o ácido fólico
é necessário para a sua produção) - vivem entre 15 a 30 dias contra os 120 dias
dos GV’s normais. O outro motivo é a infeção por parvovírus, pois estes
indivíduos são suscetíveis à infeção por parvovírus B19 que tem uma ação direta
nos precursores dos GV’s, inibindo a eritropoiese.
2. Alterações relacionadas com as oclusões vasculares:
a. AVC, enfartes
b. Cor pulmonale: doença cardíaca secundária à doença pulmonar; se houver
enfartes pulmonares, o território pulmonar diminui em extensão e isso pode
levar a hipertensão pulmonar. Esta, por sua vez, faz sobrecarga sobre o
ventrículo direito, que fica hipertrofiado, podendo mesmo falhar e originar
insuficiência cardíaca direita.
c. Insuficiência hepática devido a necrose do fígado, existindo menor quantidade
de parênquima capaz de desempenhar as suas funções
d. Auto-esplenectomia: os doentes, nos seus primeiros anos de vida, têm
tendência para esplenomegália devido à hiperatividade do sistema monócito-
macrófago, com a fagocitose dos eritrócitos deformados. Contudo, por hipoxia,
tromboses, isquémia e enfartes, o baço fica atrófico e com fibrose, não sendo
capaz de desempenhar as suas funções normais.
e. Isostenúria e necrose papilar: a medula renal é hipertónica e o tipo de
vascularização renal faz com que a medula seja relativamente hipóxica em
relação ao córtex renal. A falciformização por levar a obstrução vascular,
isquémia e necrose. Quando há necrose das papilas, estas destacam-se e caem
para o uréter, podendo provocar a sua obstrução (a queda da papila é
naturalmente acompanhada de hemorragia - episódios de hematúria). Estes
doentes ficam sem capacidade de concentração da urina, porque há necrose
medular, passando a haver isostenúria (uma urina sempre com a mesma
densidade).
f. Dactilite (hand-foot syndrome): episódios dolorosos nos dedos das mãos e dos
pés por necrose das falanges, eventualmente com infeção sobreposta
(osteomielite)
g. Síndrome torácico agudo
h. Necrose avascular da cabeça do fémur
i. Priapismo: uma manifestação grave da doença que pode levar à impotência,
podendo ter de ter tratamento cirúrgico; trata-se da ereção provocada por
obstrução venosa dos corpos cavernosos, relacionada com os fenómenos
vasculares já referidos.
j. Úlcera da perna, dado tratar-se de um território, junto às regiões maleolares,
de menor vascularização, onde é mais difícil a cicatrização.

Variabilidade fenotípica:

Há doentes com “mais hemólise e vasoconstrição” e outros com “mais isquémia e crises vaso-
oclusivas”

1. Fenótipo “mais hemólise e vasoconstrição” decorrente da diminuição de NO


biodisponível
2. Fenótipo “mais isquémia e CVOs” (inflamação)

Eritrócitos → destruição membrana → resposta inflamatória

Inflamação e adesão intercelular relacionadas com as crises vaso-oclusivas

LOGO leucocitose → marcador de gravidade da anemia falciforme

✓ Os doentes têm o mesmo genótipo (HbSS), mas existe significativa variabilidade na


gravidade clínica e “tipo” de manifestações (diferentes fenótipos)
✓ Variabilidade possivelmente explicada por variações (polimorfismos) nos genes
relacionados com os moduladores da polimerização, da resposta pró-inflamatória e pró-
coagulante
✓ O estudo dos mecanismos fisiopatológicos subjacentes a esta variabilidade fenotípica
permitiu compreender a variabilidade inter-individual e identificar possíveis alvos-
terapêuticos

Terapêutica atual

• Terapêutica de suporte (ácido fólico, profilaxia das infeções, profilaxia e tratamento das
complicações)
• Hidroxicarbamida
o ↑ %HbF diminuindo a polimerização da HbS
o ↑ VGM (efeito de “diluição” da HbS)
o Efeito mielossupressor (↓leucócitos e plaquetas)
o Efeitos a longo prazo?? – até agora parece seguro
• Transfusões e transfusões-permuta
• Transplante medular (raro)

Alvos terapêuticos em estudo – exemplos

• Inibir o canal de Gardos com clotrimazol


• Inibir o co-transporte de K + e Cl- com magnésio

• Inibir moléculas de aderência intercelular (VCAM,


integrina α4β1 )
• Aumentar a produção de NO (NO inalado,
hidroxicarbamida, arginina); diminuir a destruição de NO
(alopurinol) ou amplificar a resposta (estatinas; sildenafil
– inibidor da PDE5)
• Terapia génica…

RESUMO – VARIABILIDADE

Fatores protetores contra falciformação

✓ ↑ tempo de latência (HbF)


✓ ↓ HbS (↑ HbF)
✓ Outras hbpatias (HbC, α-tal)
✓ Haplotipos
✓ Oxigenação; hidratação e evicção do frio

Fatores de risco para falciformação

✓ ↑ 2,3-BPG; ↑ H+ (diminuição da afinidade da hemoglobina para o O2 )


✓ Desidratação celular (saída de H2O dos eritrócitos a acompanhar o efluxo de K + pelo co-
transportador de K-Cl e pelo canal de Gardos - canal de K + regulado pelo Ca2+ )
✓ Fluxo lento, inflamação (atinge-se mais facilmente o tempo de latência)
✓ Febre, citocinas (aumento da expressão de moléculas de adesão → vasooclusão → lesão
por isquémia-reperfusão e inflamação)

Uma mutação → doença multissistémica

Sub-fenótipos

✓ Disfunção endotelial (vasculopatia) associada à hemólise


o LDH, AST, bilirrubina, reticulócitos
o Hipertensão pulmonar, priapismo, úlceras de perna
o Menor risco se α-talassémia associada
✓ Viscosidade e vaso-oclusão
o Crises vaso-oclusivas, osteonecrose, síndrome torácica aguda
o Proteção pela HbF
o Maior risco se α-talassémia associada
Inflamação

A Inflamação é um mecanismo fisiológico que cobre várias etapas:

Como a maior parte dos mecanismos, este pode ser benéfico, mas, se mal controlado, será
prejudicial, como os mecanismos de inflamação crónica que podem estar na base das doenças
auto-imunes inflamatórias, onde temos uma reação inflamatória desmedida e exagerada contra
o próprio organismo. Temos 2 tipos de inflamação:

Sinais cardinais da inflamação:

• Calor
• Dor
• Edema/tumor
• Rubor
• Perda de função

Inflamação aguda

Neste tipo de inflamação ocorrem duas alterações principais:

• Alterações vasculares: vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular;


• Eventos celulares: recrutamento de leucócitos + ativação e ação dos mesmos.

Como é que o organismo reconhece os agentes patogénicos/células mortas?

Existem várias células do sistema imunitário – células fagocitárias, dendríticas e células epiteliais
– que apresentam recetores denominados pattern recognition receptor – PRR – que vão
reconhecer estruturas comuns a microorganismos como bactérias e vírus, denominados PAMPs
(pathogen associated molecular patterns) ou células mortas, denominados DAMPs (damage
associated molecular pattern).

Os PRR podem-se dividir, por sua vez, em duas categorias:

• Toll like receptor (TLRs), que vão promover o aumento da expressão de moléculas de
adesão bem como a libertação de citocinas;
• Inflamossomas, que vão promover a ativação da caspase 1 de forma a clivar a IL-1 para
a sua forma biologicamente ativa (IL-1 como IL pro-inflamatória).

Alterações vasculares
Existe vasodilatação e aumento da permeabilidade dos vasos. Consoante as alterações, pode-se
formar:

• Transudado: formação de uma substância líquida, mas pobre em proteínas plasmáticas


e células, decorrente da vasodilatação (com aumento da pressão hidrostática) mas não
da permeabilidade vascular. Assim, causas possíveis podem ser IC (com aumento da
pressão hidrostática) ou insuficiência hepática e/ou renal com diminuição da pressão
oncótica.
• Exsudado: substância rica em líquido, proteínas plasmáticas e células, decorrente da
vasodilatação e do aumento da permeabilidade vascular, sendo este caraterístico da
inflamação.

Alterações celulares

Depois de se “notificar” o organismo que existe um microorganismo ou um tecido lesado e que


é necessário iniciar uma resposta inflamatória, os leucócitos têm de conseguir sair dos vasos
sanguíneos e dirigirem-se para o local da ação. Esta é a forma como o fazem:

1) Marginação: devido à estase sanguínea e ao tamanho dos leucócitos (maiores que os


eritrócitos), estes começam a circular na parte periférica dos vasos, junto às paredes;
2) Rolamento: existem fracas interações entre seletinas expressas na superfície dos
leucócitos e no endotélio;
3) Adesão: após a libertação de quimiocinas pelas células presentes no local da inflamação
há um aumento da afinidade por parte das integrinas expressas na superfície do
leucócito, que vão interagir com os respetivos ligandos na superfície do endotélio,
havendo uma interação mais forte e mais duradoura;
4) Transmigração: passagem dos leucócitos entre as células endoteliais;
5) Migração: através do gradiente de quimiocinas, os leucócitos migram até ao local da
inflamação para que possam desempenhar a sua ação. Primeiras células a migrar:
neutrófilos. Só depois há migração dos linfócitos, dai os neutrófilos estarem presentes
na inflamação aguda e os linfócitos na inflamação crónica.

Depois do leucócito atingir o local da inflamação, irá ser ativado de forma a aumentar a sua
capacidade fagocítica, de produção de substâncias microbicidas bem como de citocinas
ativadoras de outros leucócitos. O mecanismo pelo qual há degradação das estruturas
fagocitadas passa pela formação de EROs, pelo que, caso exista destruição destes leucócitos, as
EROs poderão afetar os tecidos envolventes, daí que na resposta inflamatória não se consiga
atuar única e exclusivamente sobre as células danificadas e se acabe por atingir, paralelamente,
células saudáveis.

A Inflamação Aguda pode ter 3 outcomes possíveis:

• Resolução e reparação
• Cicatrização e fibrose (perda de função)
• Inflamação crónica

Principais mediadores da resposta inflamatória aguda

A inflamação é induzida por mediadores químicos produzidos principalmente por macrófagos,


mas também por células dendríticas, mastócitos e proteínas plasmáticas. São ativados fatores
de transcrição que estimulam a produção de vários mediadores inflamatórios como as citocinas,
que promovem a ativação dos leucócitos. O inflamassoma é um complexo citoplasmático
multiproteico que reconhece produtos de células mortas e cliva o percursor da IL-1.

Os mediadores que intervêm na resposta inflamatória podem ser de 2 tipos:

• Mediadores provenientes de células;


• Mediadores presentes no plasma.
Quanto aos mediadores de origem celular, existem alguns que estão armazenados em pequenas
vesículas, podendo ser libertados quando necessário, enquanto outros são sintetizados “na
altura” pela própria célula. Quanto aos mediadores presentes no plasma, estes são produzidos,
na sua maioria, pelo fígado e encontram-se na forma inativa, sendo ativados no local da
inflamação.

Mediador Fonte Principais ações


Derivados de células
Mastócitos, basófilos, Vasodilatação, aumento permeabilidade vascular, ativação
Histamina
plaquetas endotelial
Serotonina Plaquetas Vasoconstrição (libertado durante agregação plaquetária)
Prostaglandinas Mastócitos, leucócitos Vasodilatação, dor, febre
Aumento permeabilidade vascular, quimiotaxia, adesão e
Leucotrienos Mastócitos, leucócitos
ativação de leucócitos
PAF (fator ativador Vasodilatação, aumento permeabilidade vascular, adesão
Leucócitos, mastócitos
plaquetário) leucócitos, quimiotaxia, desgranulação, burst oxidativo
EROs Leucócitos Destruição microrganismos, lesão tecidual
NO Endotélio, macrófagos Relaxamento músculo liso vascular, morte microrganismos
Local: ativação endotelial (expressão moléculas adesão)
Sistémica: induzem reação de fase aguda sistémica
Macrófagos, células
Citocinas (IL-1, TNF, associada a infeções/doenças inflamatórias – febre,
endoteliais e
IL-6) letargia, síntese de proteínas de fase aguda como PCR,
mastócitos
caquexia, libertação de neutrófilos para a circulação,
diminuição PA
Leucócitos,
Quimiocinas Quimiotaxia, ativação de leucócitos
macrófagos ativados
Derivados de proteínas plasmáticas
Plasma (produzido Ativação e quimiotaxia de leucócitos
Complemento
pelo fígado) Opsonização, vasodilatação (estimulação mastócitos)
Plasma (produzido Aumento permeabilidade vascular, contração m. liso,
Cininas
pelo fígado) vasodilatação, dor
Proteases ativadas
Plasma (produzido
durante a Ativação endotelial, recrutamento de leucócitos
pelo fígado)
coagulação

Componente inflamatório Mediadores


Vasodilatação Prostaglandinas, NO, histamina
Histamina e serotonina, C3a e C5a (por libertação de aminas
Aumento permeabilidade vascular vasoativas de mastócitos e outras células); bradicinina, leucotrienos,
PAF, substância P
Quimiotaxia, recrutamento e
TNF, IL-1, quimiocinas, C3a e C5a, leucotrieno, produtos bacterianos
ativação de leucócitos
Febre IL-1, TNF, prostaglandinas
Dor Prostaglandinas e bradicinina
Lesão tecidual Enzimas lisossómicas dos leucócitos, EROs, NO

Não esquecer:

Inflamação crónica

Inflamação que dura mais do que alguns dias, onde os fenómenos de eliminação, reparação e
fibrose ocorrem simultaneamente. É caraterizada por:

• Predomínio de linfócitos, plasmócitos e macrófagos;


• Grande dano tecidual com fenómenos de fibrose e perda de função do órgão;
• Angiogénese (formação de novos vasos).

Podemos distinguir 2 tipos de macrófagos diferentes em termos de ativação e função:

• Os macrófagos M1 que têm uma função fagocítica e de combate contra


microorganismos;
• Os macrófagos M2 que têm uma função de reparação, fibrose e angiogénese de tecidos
lesados.

Quanto aos linfócitos, temos os linfócitos B e os linfócitos T, sendo que os linfócitos B originarão
os plasmócitos com capacidade de formação de anticorpos específicos aos antigénios que
querem destruir. Por oposição à imunidade humoral (linfócitos B), a imunidade celular (linfócitos
T) é mais uma atuação “mano a mano”. Podemos dividir os linfócitos T em CD4+ (TH) ou CD8+
(Tc), sendo que os primeiros estão associados ao MHC II, enquanto os linfócitos CD8+ estão
associados ao MHC I.

Quanto aos linfócitos TH,


estes têm vários tipos de
estímulos e formas de
atuação:
Os granulomas são estruturas típicas da inflamação crónica, onde podemos ter os vários
constituintes:

1) Região central de necrose caseosa – no caso dos granulomas da tuberculose


(granulomas caseados);
2) Região de macrófagos ativados que constituem um conjunto de células de aspeto
epitelioide;
3) Orla de linfócitos T.

Pode haver fusão dos vários macrófagos ativados que poderão originar células gigantes
multinucleadas.

Os granulomas são típicos de algumas doenças como tuberculose, sarcoidose, doença de Crohn
e granuloma de corpo estranho.

Efeitos sistémicos da inflamação

O TNF-α e a IL-1 têm funções biológicas semelhantes, enquanto a IL-6 vai atuar, principalmente,
ao nível do fígado, levando à produção de proteínas de fase aguda positiva (como a PCR, por
exemplo).

Consequências orgânicas da inflamação

Febre

Temperatura > 37,5 ºC + Alteração do set point hipotalâmico

A febre consiste na elevação da temperatura corporal em resposta a pirogénios, que são


substâncias que vão promover a síntese de prostaglandinas na região vascular e peri-vascular
do hipotálamo, que é o centro regulador da
temperatura.

Estas prostaglandinas, nomeadamente as PGE2, vão


fazer um reset ao setpoint da temperatura no
hipotálamo e vão aumentá-lo → a PGE2 libertada liga-se
ao seu recetor nas células da glia, o que resulta na
libertação de AMPc, que é um neurotransmissor. A
libertação de AMPc resulta em alterações no set point
hipotalâmico, quer diretamente ou indiretamente (por
induduzir libertação de neurotransmissores). Também
estão presentes recetores TLR para produtos
microbianos no endotélio hipotalâmico, sendo que estes
apresentam o mesmo mecanismo de transdução de
sinal que os recetores da IL-1. Assim, a ativação dos TLR ou dos recetores da IL-1 resulta na
produção de PGE2 e na febre.

Assim, faz sentido que os AINE’s, ao inibirem as enzimas COX, bloqueiem a síntese de PGE2, pelo
que vão baixar a febre.

Pirogéneos → podem ser exógenos (lipossacáridos de bactérias) ou endógenos (IL-1, TNF-α, IL-
6, IFN-α).

Uma vez que o set point hipotalâmico aumente, os neurónios no centro vasomotor são ativados
e começa a vasoconstrição. Os arrepios, que aumentam a produção de calor nos músculos,
podem também começar, mas não são necessários se os mecanismos de conservação de calor
aumentarem a temperatura suficientemente. A produção de calor pelo fígado também contribui
para o aumento da temperatura corporal.

Os processos de conservação de calor (vasoconstrição) e produção de calor (arrepios e


termogénese não relacionada com arrepios) continuam até que a temperatura do sangue em
torno do hipotálamo seja igual ao novo set point.

Hiperpirexia = aumento temperatura


corporal acima dos 41,5ºC + alteração
set point hipotalâmico. Pode
desenvolver-se em pacientes com
infeções graves, mas mais
frequentemente ocorre em pacientes
com hemorragia no SNC.

Hipertermia = aumento temperatura corporal sem alteração do set point hipotalâmico. Não
envolve pirogénios. (ex de causas: insolação, exercício físico, consumo drogas que bloqueiam
sudorese, alterações vasculares, …)

Os antipiréticos reduzem a temperatura na febre e na hiperpirexia, mas não na hipertermia.

NOTA: definição febre → clínica (a partir dos 38ºC) ≠ fisiopatológica (a partir dos 37,5ºC)

Diagnóstico diferencial febre:

• Infeções
• Traumas
• Necrose tecidular
• Resposta Inflamatória
• Doenças autoimunes
• Hipertiroidismo
• Neoplasias

Elevação proteínas fase aguda

A maior parte das proteínas do plasma são produzidas no fígado e, aquando de uma infeção, há
um aumento da síntese de determinadas proteínas (as proteínas de fase aguda POSITIVA) em
detrimento das proteínas de fase aguda NEGATIVA, pela ação da IL-6 (e não das outras citocinas
inflamatórias). Há 3 proteínas principais cuja produção aumenta numa resposta inflamatória:

• Proteína C reativa (PCR);


• Fibrinogénio;
• Proteína Amilóide A sérica.

Tanto a PCR como a Proteína Amilóide A


sérica vão desempenhar funções de
opsonização sobre os microorganismos,
ativando o sistema de complemento e
promovendo a eliminação dos patogéneos.
Por outro lado, o fibrinogénio vai promover
a agregação de eritrócitos, formando umas
pequenas pilhas (rouleaux) de tal forma que
vão mais facilmente sedimentar, ou seja, na mesma unidade de tempo vão sedimentar mais
eritrócitos do que numa situação normal, daí que a velocidade de sedimentação (VS) vai
aumentar numa situação de inflamação.

Leucocitose

Temos um aumento do nº de leucócitos no sangue, que nos pode indicar/sugerir uma patologia:

• Leucocitose com Neutrofilia – sugere uma infeção bacteriana;


• Leucocitose com Linfocitose – sugere uma infeção viral;
• Leucocitose com eosinofilia – sugere asma brônquica, rinite alérgica ou infeção
parasitária.
FISIOPATOLOGIA – STRESS OXIDATIVO

O stress oxidativo é uma perturbação entre a produção de espécies oxidantes (ERO) e espécies redutoras (defesas
antioxidantes), isto é, do equilíbrio redox biológico, que culmina na lesão celular e molecular.

Nos sistemas biológicos:

• Oxidantes (ERO): doam oxigénio ou recebem hidrogénio.


• Redutores (antioxidantes): recebem oxigénio ou doam hidrogénio.

Espécies reativas de oxigénio (ERO): moléculas com potencial de reação com constituintes celulares (DNA, proteínas
e/ou lípidos) (NÃO reage contra glícidos). 2 famílias:

• Espécies radicalares (radicais livres):


moléculas com pelo menos um eletrão não-
emparelhado em órbita atómica (instáveis).
Têm propriedades oxidativas e podem causar
efeitos deletérios no organismo.
• Espécies não radicalares: moléculas reativas,
mas estáveis do ponto de vista atómico, sem
eletrões desemparelhados

• Propriedades bioquímicas:
o Reatividade variável (a OH é a mais reativa de todas);
o Semi-vida curta;
o O seu potencial lesivo depende da co-localização com o substrato (compartimentação celular/metais
de transição);
o A toxicidade (biológica) não se correlaciona necessariamente com o potencial (intrínseco) de
reatividade.

Metais de transição: apresentam eletrões não-emparelhados nas órbitas atómicas e são espécies radicalares (exceto
o Zn). Ex: Cobre e Ferro.

• Reagem com as ERO (Fe e Cu) em reações especificas.


• Contribuem para a ação lesiva das ERO (pela sua co-localização intracelular com os alvos do stress oxidativo).

Em condições normais, o ferro não está cataliticamente biodisponível, visto que esse encontra ligado a proteínas
transportadoras ou armazenadoras (como a transferrina ou a ferritina). No entanto, existem determinadas situações
em que o ferro se encontra na forma livre, entrando em reações em que se formam espécies reativas altamente
lesivas.

Reação de Fenton: O ferro, na sua forma ferrosa e na presença de peróxido de hidrogénio, vai levar à formação do
radical hidroxilo.

Reação de Haber-Weiss, também catalisada por metais, leva à formação de hidroxilo, a partir do peróxido de
hidrogénio e do anião superóxido.
Nota: o nosso organismo possui [Fe3+]>>> [Fe2+], pelo que é necessário que a reação de Haber-Weiss 1 ocorra antes
da reação de Fenton, de modo a proporcionar o ião ferroso Fe2+ necessário à reação de Fenton.

Origem das ERO’s

Fontes exógenas

• Radiação γ-ionizante e UV
• Fármacos (bleomicina, adriamicina, narcóticos, anestésicos…)
• Poluentes (fumo do tabaco, fumo do escape, derivados do NO)
• Comida (peróxidos, aldeídos, ácidos gordos oxidados)
• Xenobióticos (pesticidas, paraquat…)
• Toxinas

Fontes endógenas

Mitocôndria: fosforilação oxidativa


do metabolismo mitocondrial - a
molécula de O2 recebe um eletrão
por parte da coenzima q (Q), sendo
que o ião superóxido é convertido,
pela superóxido dismutase
dependente de manganésio (Mn
SOD) em peróxido de hidrogénio
(H2O2), que é uma ERO não radicalar;
Burst respiratório - Leucócitos: durante a inflamação, por ativação dos neutrófilos e outros fagócitos, ocorre
a formação de superóxido e depois de peróxido de hidrogénio. As ERO’s são utilizadas na degradação dos
produtos fagocitados, consumindo NADPH para doar um H+.

Outros:

• Durante o metabolismo do ácido araquidónico, em que também se forma o anião superóxido;


• Auto-oxidação de quinonas ou de catecolaminas;
• Por absorção de radiação ionizante;
• Por metabolismo de compostos químicos exogénos.

Para a formação de radicais livres, é necessário que ocorram transformações químicas específicas, tais como:

• Dismutação do anião superóxido – é a reação mais importante.


o Catalizada pela enzima superóxido dismutase.
o Leva à formação de peróxido de hidrogénio, molécula esta que, em condições fisiológicas, é
posteriormente metabolizada pela catalase ou por outras peroxidases;
• Reações intracelulares catalisadas por metais de transição, como o ferro e o cobre.
• Reação entre o anião superóxido e o monóxido de azoto (NO)
o Com a formação de peróxido de nitrito.

Fatores que podem levar a lesão oxidante por formação de radicais livres como as ERO

• Agentes físicos (Ex: radiação)


• Agentes químicos (Ex: tetracloreto de carbono)
• Alterações metabólicas
• Fatores nutricionais
• Carência de antioxidantes
• Inflamação
• Reações imunológicas
• Hipóxia/isquémia
• Alterações genéticas

Exemplos de radicais livres

• Derivados do oxigénio:
o Superóxido
o Peróxido
o Hidróxilo
o Peróxilo
o Alcóxilo
• Outros:
o Monóxido de azoto
o Triclorometil
o Radicais sulfidrilo
o Radical cobre (II)
• Espécies radicalares que, não sendo radicais livres, desempenham papeis semelhantes a estes como:
o Oxigénio singuleto
o Peróxido de Hidrogénio

Radicais livres – papel fisiológico e patológico

Eritrocupreína

• Proteína eritrocitária que contém cobre no seu centro ativo, e que, através da enzima superóxido-dismutase,
metaboliza o ião superóxido.
• Contudo, nesta reação, forma-se peróxido de hidrogénio, molécula potencialmente lesiva.
• Sendo assim, a capacidade antioxidante da eritrocupreína é relativa, já que, por metabolizar ERO, também
gera outros radicais livres.
• No entanto, a catalase e outras peroxidases podem neutralizar o peróxido de hidrogénio produzido.

Fagocitose

• A enzima NADP-oxidase 2, após a ativação do neutrófilo, vai catalizar a formação do radical anião superóxido,
contribuindo para a destruição dos microorganismos patogénicos.

Produção de NO

• Um exemplo de espécie reativa com papel fisiológico é o NO.


• Tem ações vastas no organismo tais como:
o Na regulação do tónus vascular, provocando vasodilatação;
o Na proliferação/diferenciação celular;
o Em respostas imunológicas.

Assim sendo, a administração de antioxidantes em excesso pode inibir algumas vias fisiológicas necessárias à
homeostasia.

Consequências celulares e moleculares das ERRO

• Lesão do DNA e ácidos nucleicos;


• Lesão de lípidos (fosfolípidos de membrana);
• Lesão de enzimas e proteínas

Lesão do DNA e ácidos nucleicos: os principais mediadores são o OH•

• Mecanismos:
o Modificação das bases de DNA;
o Quebras simples e duplas da cadeia de DNA;
o Perda de purinas;
o Lesão das desoxirriboses;
o Ligações cruzadas DNA proteínas;
o Disfunção das enzimas de reparação.
• Principais produtos:
o 8-Hidroxidesoxiguanosina;
o 8 Hidroxiadenina;
o Timina peróxido;
o Timina glicol

Lesão dos lípidos (não saturados): os principais mediadores são OH•, RO•, ONOOH

• Mecanismo: lipoperoxidação
1. Iniciação (remove-se um H+ de um ácido gordo não saturado);
2. Propagação (adiciona-se um O2 a um ácido gordo e retira-se um H+ a outro ácido gordo,
iniciando-se uma reação em cadeia);
3. Terminação (contacto com agente antioxidante, como uma vitamina lipossolúvel, que vai doar
o H+ perdido inicialmente, interrompendo o ciclo);
• Principais produtos: aldeídos, endoperóxido, isoprotano, hidrocarbonos.

Lesão das proteínas: os principais mediadores são OH•, RO• e ONOOH.

• Mecanismo
o Peroxidação;
o Modificação da estrutura terciária;
o Degradação e fragmentação.
• Principais produtos
o 3- Nitrotirosina (ONOO+tirosina)
o Aldeídos
o Compostos cetónicos
o Carbonilos

O que esta experiência quer dizer é


que a [EROs] na célula vai ditar o seu
outcome:

1) Se [EROs] for < [anti-


oxidantes] → célula entra em
apoptose;
2) Se [EROs] for > [anti-
oxidantes] → célula entra em necrose.
Apoptose: existe condensação e fragmentação do núcleo, destruição das proteínas do citoesqueleto, mas a membrana
celular mantém-se ÍNTEGRA, não é destruída e as células mantêm-se individualizadas. Aqui, encontramos duas formas
de apoptose:

• Via intrínseca (via mitocondrial porque depende de danos celulares dentro da célula, daí intrínseca);
• Via extrínseca (ativada por ligandos externos à célula, as substâncias da família Fas-ligando).

Necrose: condensação e fragmentação do núcleo, hipereosinofilia e rutura da membrana celular, com fluxo de
substâncias intra e extracelular. Pode levar à formação de DAMPs que vão ativar o sistema imunitário inato como
forma de sinalização para fagocitose das células necrosadas.

Mecanismos de defesa anti-oxidante

Mecanismos diretos

Enzimas
Peroxidase

• Não origina produtos compatíveis


com ERO;
• Utilização do H2O2 em baixas
concentrações;
• Depende da regeneração celular de
glutatião.

Qual a diferença entre a catálase e a peroxidase? Vão funcionar em circunstâncias diferentes:

• Se [H2O2] for baixa, utiliza-se a peroxidase porque a regeneração do glutatião consegue acompanhar a
necessidade
• Se [H2O2] for alta, utiliza-se a catalase porque o organismo não consegue regenerar o glutatião de forma rápida
o suficiente para as necessidades do organismo.

Antioxidantes BMP

• Função scavenger - ação direta


o Doação de eletrões às ERO, tornando as estáveis e não reativas;
o Biologicamente eficientes.
• Função quelante - ação indireta
o Impedimento da participação dos metais de transição nas reações de Fenton e Haber-Weiss.
Em resumo:

Consequências clínicas

Homeostasia oxidativa: equilíbrio entre a produção de oxidantes, como os radicais livres, e a de antioxidantes.

A produção excessiva de radicais livres ou reduzida de antioxidantes pode levar a lesão oxidante celular.

Respostas e efeitos celulares da sobrecarga oxidante

Para concentrações crescentes de radical livre, os efeitos celulares são diferentes:

1. Numa primeira fase, destruir os antioxidantes que reagem com as ERO;


2. Seguidamente, gerar alterações na reparação celular;
3. Depois, parar a proliferação celular;
4. Finalmente, originar apoptose/necrose das células afetadas.
Conclui-se assim que há um conjunto de fenómenos celulares deletérios que dependem da intensidade do estímulo
agressor radicalar.

Existem quatro reações que são particularmente responsáveis pela lesão celular causada por radicais livres:

1. Formação de ligação cruzada entre proteínas – resulta num aumento de degradação ou perda de capacidade
enzimática.
2. Fragmentação de polipéptidos.
3. Fragmentação do DNA – os radicais livres reagem com a timina dos ácidos nucleicos nucleares e mitocondriais,
produzindo single-strandbreaks. A fragmentação do DNA também já foi relacionada com a morte celular, o
envelhecimento e a transformação maligna de células.
4. Lipoperoxidação
• Ocorre nas células que têm fosfolípidos e ácidos gordos poli-insaturados com duplas ligações nas
membranas;
• Pode ser iniciada por ERO nomeadamente pelo radical hidroxilo, e caracteriza-se por ser uma cascata
não controlada enzimaticamente que leva à oxidação dos constituintes das biomembranas.
• Este processo inicia-se quando há a perda de moléculas membranares antioxidantes, como as
vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K);
• Processo:
i. Os ácidos gordos poli-insaturados com duplas ligações, devido à ação dos radicais livres,
perdem um hidrogénio, dando origem a um dieno conjugado.
ii. Este, após sofrer rearranjo molecular, e na presença de oxigénio molecular, vai levar à
formação do radical peroxilo.
iii. Este radical, na presença de metais de transição, vai levar a um processo contínuo em que,
por remoção de mais átomos de hidrogénio, se formam outros radicais lipídicos, os
hidroperóxidos lípidicos (LOOH).
iv. Finalmente, após reações complexas, estes novos radicais vão formar os produtos terminais
da lipoperoxidação, como o malonil de aldeído, o etano e o pentano.
• Os produtos da lipoperoxidação podem ser quantificados, de forma a avaliarmos o grau de stress
oxidativo nas células e nos tecidos.
i. O etano e o pentano são voláteis e podem ser quantificados por cromatografia gasosa no ar
expirado.
ii. O malonil de aldeído pode ser avaliado laboratorialmente, por análise de sangue, soro, e
outros fluídos biológicos.
• A lipoperoxidação das membranas das células vai ter consequências importantes:
• Formação de ligações cruzadas entre lípidos, entre proteínas e entre lípidos e proteínas,
alterando a permeabilidade membranar → perda de seletividade para entrada e/ou saída de
nutrientes e substâncias tóxicas.
• Conduz à alteração de proteínas transmembranares que têm função de bomba (como a Ca2+
ATPase ou a Na+/K+ ATPase) → alterações osmóticas e aumento da concentração intracelular
de cálcio, o que pode desencadear fenómenos de morte celular por apoptose ou necrose.

Radicais livres e o envelhecimento

A teoria dos radicais livres defende que o envelhecimento se deve aos efeitos cumulativos das ERO e na atualidade
esta teoria tem sido usada abusivamente. Contudo, não está comprovada a eficácia da terapia antioxidante na
prevenção do envelhecimento.

Formação de radicais livres por radiação ionizante

No Japão o que causou os cancros não foi a radiação diretamente, mas a água que tinha sofrido radiólise. A formação
de ERO lesou indiretamente o DNA das células dos indivíduos expostos à radiação ionizante, contribuindo para a
carcinogénese.

Formação de radicais livres por compostos químicos


Tetracloreto de carbono (CCl4)

• Substância que causa morte por falência hepática.


• É metabolizado no hepatócito pelo citocromo P450, originando um radical denominado triclorometil (CCl3):
o Esta molécula tem a capacidade de:
▪ Estabelecer ligações covalentes com proteínas, quer na sua forma simples (CCl3), quer
conjugado com oxigénio (O2CCl3), levando à inibição da síntese proteica.
▪ Provocar a oxidação dos fosfolípidos das biomembranas do hepatócito pela via da
lipoperoxidação. Este mecanismo conduz, por um lado a destruição do retículo
endoplasmático rugoso, causando inibição da síntese proteica e esteatose, e, por outro, à
lesão membranar por acumulação de cálcio e, subsequente, morte celular.
• Nas intoxicações graves por tetracloreto de carbono, há necrose hepática maciça e morte por insuficiência
hepática.

Paracetamol

• Metabolizado por algumas vias do citocromo P450 formando ERO e consumindo excessivamente o glutatião
intramitocondrial.

Etanol

• A ingestão excessiva leva também à formação de ERO.

Papel dos radicais livres na lesão por isquémia/reperfusão

Quando há isquémia, o metabolismo aeróbio passa a anaeróbio e o ATP é metabolizado a hipoxantina.

• Caso haja reperfusão, teoricamente, o equilíbrio das células que estiveram transitoriamente em isquémia
deveria ser reestabelecido.
• No entanto, com a reperfusão, a célula torna a ser oxigenada, o que leva à ativação da via enzimática
catalisada pela xantina-oxidase, transformando a hipoxantina e formando ácido úrico e o radical anião
superóxido.
• Com a formação de superóxido dentro da mitocôndria, consome-se glutatião intramitocondrial, há entrada
de cálcio para a mitocôndria, há alterações da osmolaridade e da permeabilidade mitocondrial.
• Consequentemente, as mitocôndrias vão libertar o citocromo C, o que desencadeia a apoptose celular.
• Por outro lado, na isquémia, vai ocorrer ainda ativação dos fagócitos que se infiltram nos tecidos necrosados,
formando também ERO, nomeadamente, o superóxido e o peróxido de hidrogénio, pelas vias dos
leucotrienos e das prostaglandinas.
• Além disto, nos tecidos isquémicos, a passagem do metabolismo de aeróbio para anaeróbio leva a formação
de lactato. O lactato vai diminuir o pH intracelular e extracelular, o que contribui para a libertação do ferro
das proteínas a que está ligado, como a ferritina e a transferrina. Assim, este metal torna-se disponível para
catalisar reações como a de Fenton e a de Haber- Weiss, formando hidroxilo.

Todos estes fenómenos contribuem para a lesão de isquémia/reperfusão que ocorre quer no miocárdio, quer no SNC,
quer no intestino.

Entidades patológicas em que está envolvida a formação de radicais livres

Artrite reumatóide

• Patologia em que estão envolvidos fatores genéticos, imunitários e inflamatórios.


• Nas articulações, o líquido sinovial sofre infiltração por neutrófilos polimorfonucleares, que são ativados,
produzindo ERO como os iões superóxido e o peróxido de hidrogénio. Estes iões despolimerizam e degradam
o ácido hialurónico, que perde a sua viscosidade e contribui para a doença.
• Incubando o ácido hialurónico com os neutrófilos ativados com superóxido dismutase, havia uma inibição da
degradação/despolimerização do ácido hialurónico.
• Verificou-se ainda mais, que se fosse utilizada catalase em vez da superóxido dismutase também havia inibição
da degradação do ácido hialurónico.

Existem indicadores de sobrecarga oxidante na artrite reumatóide como:

• Produtos da lipoperoxidação no líquido sinovial, no plasma e no ar expirado;


• Presença de produtos de degradação do ácido hialurónico no líquido sinovial;
• IgG alteradas no líquido sinovial e no plasma (estas proteínas são atacadas pelas espécies radicalares que
determinam a modificação da sua estrutura);
• Ferro “catalítico” (ferro ferroso - Fe2+) no líquido sinovial;
• Diminuição da relação ácido ascórbico/ácido desidroascórbico no líquido sinovial e no plasma (o ácido
ascórbico é um agente antioxidante que é oxidado na presença de radicais livres em ácido desidroascórbico);
• Aumento da concentração plasmática de ácido 2,3-dihidrobenzóico após administração de ácido
acetilsalicílico (esta é uma prova da existência do radical hidroxilo, já que o ácido 2,3-dihidrobenzóico é um
produto da reação entre o radical hidroxilo e o ácido acetilsalicílico).

Aterogénese/ síndrome metabólico

• A formação de placas ateroescleróticas é outro processo patológico em que participam os radicais livres.
• Na aterogénese, a oxidação de componentes lipídicos, como as LDL, pelos radicais livres é essencial na
formação das células esponjosas.

Outras doenças relacionadas com a formação de radicais livres

• SIDA
• Doença hepática alcoólica
• Cataratas
• DPOC
• Hemocromatose
• Anemia hemolítica
• Doença de Parkinson
• Doença de Alzheimer
• Esclerose Lateral Amiotrófica
• Fototoxicidade
• Choque
• Queimaduras extensas
• Outras doenças inflamatórias autoimunes
• Demência
• Carcinogénese
o ↓ Mn-SOD - ↑ ERO - ↑ proliferação erros DNA
• Síndrome da dificuldade respiratória (ARDS)
o PMN – NADPH oxidase/ H2O2 – lesão alveolar. Há formação de peróxido de hidrogénio com consumo
de NADPH, havendo lesão dos alvéolos
• Lesão isquémia – reperfusão (após EAM)

O oxigénio como origem de lesão oxidativa

Quando em défice por lesão hipóxica, tem um papel na morte celular, quando em excesso ou quando se cria
determinadas condições, gera espécies radicalares que também podem provocar lesão e morte celular.

As patologias associadas à toxicidade do oxigénio:

• Retinopatia dos prematuros


o Concentrações demasiado elevadas de oxigénio nas incubadoras causam lesão retiniana induzida pela
hiperóxia → que inibe a produção do fator de crescimento para o endotélio vascular (VEGF), o que
inibe a angiogénese → isquémia → necrose e apoptose de tecidos oculares → fibrose → cegueira.
• Displasia broncopulmonar
o Ação tóxica do oxigénio sobre a árvore brônquica.
• Neurotoxicidade
• Lesão alveolar difusa
o Também conhecida por síndrome de dificuldade respiratória no adulto (ARDS).
o Associada a mortalidade elevada e a elevada exposição a concentrações elevadas de oxigénio.
o Esta exposição pode conduzir a lesão alveolar difusa, que apresenta 3 fases:
▪ Fase 1 - necrose de pneumócitos tipo I e de células endoteliais.
▪ Fase 2 – proliferação dos pneumócitos tipo II (células que não permitem trocas gasosas
eficientes).
▪ Fase 3 - espessamento difuso e crónico dos septos por deposição de colagénio, o que
prejudica ainda mais as trocas gasosas, levando a insuficiência respiratória.

Existem mecanismos de defesa que permitem a neutralização da ação nociva dos radicais livres:

• Protegem a estrutura da célula;


• Captam os radicais livres;
• Sequestram metais de transição;
• Reparam os danos oxidantes – Ex: metilamina-sulfóxido reductase;
• Reparam mecanismos antioxidantes que já desempenharam a sua função – os antioxidantes são destruídos
após protegerem contra os radicais livres, pelo que a sua reciclagem é de extrema importância.

O efeito sinérgico entre os vários antioxidantes é comprovado no seguinte exemplo:

1. Para reparar o ácido ascórbico oxidado são precisos grupos sulfidrilícos e o NADPH.

2. Para reparar o tocoferol é preciso ácido ascórbico.

Mecanismos de remoção de radicais livres

1. Enzimas
a. Superóxido dismutase (SOD) – enzima presente em inúmeras células que cataliza o radical superóxido
a peróxido de hidrogénio e oxigénio.
b. Catalase (CAT) – enzima dos peroxissomas que degrada o peróxido de hidrogénio a água e oxigénio.
c. Peroxidase do glutatião (GPX) – enzima que lidera os hidroperóxidos, mas que tem como um co-fator
o selénio, por isso o selénio é um anti-oxidante.
2. Metais
a. Zinco (Zn)
b. Manganésio (alguns microorganismos sem superóxido dismutase são ricos em manganésio)
3. Vitaminas
a. Vitamina A
b. Vitamina C
c. Vitamina E
d. Carotenóides
e. Ubiquinol

Uso terapêutico de antioxidantes

• Dieta equilibrada – contém uma maior concentração de antioxidantes (vitaminas, polifenóis ou flavenóides).
• Pensa-se que a administração de quantidades superiores às fisiológicas de antioxidantes exogénos vai inibir
a formação de antioxidantes endógenos e inibir as vias em que os radicais livres contribuem para o
funcionamento do organismo, mas isto ainda não foi provado.
• Utilização de antioxidantes endógenos na terapêutica fotodinâmica utilizada certos tipos de cancro. Consiste
na ativação de várias moléculas na presença de oxigénio, originando oxigénio singuleto (não é um radical livre,
mas uma forma ativada de oxigénio que pode lesar outras células).
• Pensa-se que a produção de radicais livres de forma localizada possa vir a trazer esperança para o tratamento
de alguns tipos de neoplasias.

Estudo do stress oxidativo

Tentativas de terapia antioxidante

O paradoxo dos antioxidantes

Suplementos de α-tocoferol e de β-caroteno foram associados ao aumento da mortalidade em pacientes com enfarte
do miocárdio prévio.
O efeito a longo prazo da suplementação nos eventos cardiovasculares e cancro:

Papel complexo dos antioxidantes:

• Ausência de efeitos locais eficazes;


• Ausência de efeitos contínuos;
• Inibição dos efeitos benéficos das ERO/ERN;
• Inibição da apoptose de células sob stress oxidativo
• Stress oxidativo!

Efeitos benéficos das ERO:

• Ativação e regulação genética (NF-KB & AP-1);


• Crescimento e proliferação celular;
• Modulação bioquímica e metabólica;
• Defesa inflamatória (NADPH oxidase – MPO);
• Regulação endotelial e vascular (NOS);
• Síntese de derivados do ácido araquidónico;
• Neurotransmissão;
• Desenvolvimento embrionário.

NOTAS FINAIS

A produção de ERO é um processo fisiológico e inevitável, mantido e regulado pelos antioxidantes.

A perturbação deste equilíbrio origina condições de stress oxidativo implicadas em múltiplos mecanismos
fisiopatológicos.

A recente descoberta dos efeitos biológicos benéficos das ERO aumenta a complexidade deste equilíbrio e pode
explicar o fracasso das tentativas de terapia antioxidante.
Perturbações iónicas e pH

Distribuição da água pelo corpo

A água é um dos principais constituintes do organismo, sendo que varia nos dois sexos e com a
idade:

• Homens: 50-60%
• Mulheres: 45-50%
• Crianças ↑ → idosos ↓

No nosso organismo, a água é armazenada em 3 diferentes compartimentos: intracelular e


extracelular (que se divide ainda no espaço intersticial e no espaço vascular):

A pressão osmótica é entendida como a força que um compartimento tem em manter a água
naquele local. É tanto maior quanto maior for o nº de solutos nesse compartimento. A água, por
osmose, move-se do local com menos solutos para o local com mais solutos.

Cada compartimento tem um soluto que é responsável pela pressão osmótica naquele local:

• K+ - define pressão osmótica intracelular


• Na+ - define pressão osmótica no espaço intersticial e no espaço vascular
• Proteínas plasmáticas – também contribuem para a pressão osmótica no espaço
vascular

Assim, o armazenamento de Na+ é fulcral para regular o volume do líquido extracelular (vascular
e intersticial), sendo que este ião tem uma grande regulação por parte do rim.

Vamos ter dois mecanismos principais:

• Mecanismo de regulação de volume


• Mecanismo de regulação da osmolaridade

Mecanismos que regulam volume extracelular diferentes dos de regulação de osmolaridade!!

Mecanismos de regulação de volume extracelular

O mecanismo de regulação de volume possui


recetores que vão estar relacionados com as
alterações da volémia e não da [Na+] no sangue.

Ao nível do rim, o principal local de atuação é no


TCP (com a angiotensina II) e no TC (aldosterona e
ANP).

Há 2 tipos de recetores:
• Recetores intra-renais: células justaglomerulares na camada muscular da arteríola
aferente do glomérulo
• Recetores extra-renais: células no arco aórtico, no seio carotídeo e na aurícula
esquerda.

A arteríola aferente, regulada não só pela angiotensina II (que promove a vasoconstrição) como
pela PGE2 (que promove a vasodilatação), vai ditar a TFG.

A aurícula esquerda possui recetores que vão permitir perceber o grau de enchimento da
aurícula (que acaba por traduzir a volémia do doente), pelo que vai regular a volémia do doente
pela libertação de ANP (que atua no TC).

O arco aórtico e o seio carotídeo vão transmitir informação pelo SN Simpático ao coração, de
tal forma que podem influenciar a FC e, desta forma, regular a PA.

O que acontece numa pessoa com edema?

Uma pessoa com edema tem um aumento do volume no espaço extracelular, nomeadamente
no espaço intersticial, o que faz com que o espaço intravascular “pareça” estar mais vazio do
que o habitual, pelo que podemos ter a PA mais baixa que o suposto. No entanto a água está
apenas no sítio errado!

No entanto, o que acontece é que os recetores de pressão intra e extrarenais (os sensíveis à
variação da volémia) vão ter a perceção que existe uma baixa da volémia, pelo que vão ativar os
respetivos mecanismos (ativação do SRAA bem como bloqueio da libertação do ANP e aumento
da libertação de catecolaminas para aumentar a FC).

Mecanismo de regulação da osmolaridade

As alterações na [Na+] são sentidas por osmorrecetores,


que vão regular o estímulo da sede e a libertação da ADH.
A ADH é a hormona que impede a diurese; concentrações
elevadas de ADH vão diminuir o volume de urina e tornar
a urina mais concentrada, enquanto baixos valores de
ADH vão originar muito volume de urina, muito diluída.

De onde vem? → Núcleo supraóptico do hipotálamo

Onde atua? → Nas células principais do TC (e não só!)

Relembrar que o TC tem 2 tipos de células:

• Células principais, com grande nº de bombas Na+/K+, onde atua a ADH


• Células intercalares (α e β) onde há troca de H+/HCO3- para regular o equilíbrio ácido
base

Como funciona a ADH?


1. Quando a [Na+] > 135mmol/L, há libertação de ADH por parte do núcleo supraóptico do
hipotálamo;
2. A ADH atua nos seus vários recetores, sendo que, ao nível do TC do rim, atua nos
recetores V2;
3. As células principais do TC vão ter uma ativação da adenilciclase, aumentando a [cAMP];
4. Este aumento do cAMP vai promover a fusão de vesículas que contêm aquaporinas nos
2 lados da membrana das células principais do TC;
5. Assim, forma-se um canal que permite a passagem unidirecional de água da urina para
o sangue;
6. Aumenta-se a reabsorção de água, diminuindo a água que é perdida na urina e
aumentando o volume de água no sangue;
7. Ao aumentar a água no sangue, vamos diminuir a [Na+], pelo que interrompemos o
estímulo de libertação da ADH.

ADH → TAMBÉM PROMOVE VASOCONSTRIÇÃO E AUMENTA PRODUÇÃO DE ACTH →


PRODUÇÃO DE CORTISOL → AUMENTO DA PA

Tipos de alterações eletrolíticas

• Hipernatrémia: aumento da [Na+] >145mmol/L


• Hiponatrémia: diminuição da [Na+] <135mmol/L
• Hipercaliémia: aumento da [K+] > 5mmol/L
• Hipocaliémia: diminuição da [K+] <3.5mmol/L

Hiponatrémia

• Com hipovolémia: diminuição da água e de Na+, mas o Na+ diminui mais que a água
o Causas renais (quando o organismo tem uma diurese aumentada devido à
presença de substâncias osmoticamente ativas, como a glicose no caso dos
diabéticos)
o Causas extrarrenais (vómitos, diarreia, hemorragias)
• Com euvolémia: acumulação de água, Na+ está igual, e acabou por ficar diluído
o Síndrome de secreção inapropriada de ADH, hipersensibilidade à ADH,
polidipsia psicogénica (a pessoa bebe água de forma incessante sem ter sede)
• Com hipervolémia: doenças em que há edema → IC, insuficiência hepática,
hipoalbuminémia
Manifestações clínicas:

• Sintomas Neurológicos
• Edema celular generalizado
• Insuficiência Respiratória
• Náuseas
• Vómitos

Hipernatrémia

Menos comum do que hiponatrémia. Acontece mais nos idosos (perda do estímulo da sede). Ou
seja, não é necessariamente a [Na+] que aumenta, mas sim a água para diluir esse Na+ que vai
diminuir.

• Défice combinado de água e eletrólitos, com perda de água superior à do Na+


o Diabetes insipidus nefrogénica - células principais do TC do rim não vão ser
sensíveis à ligação da ADH no recetor V2, pelo que não vão promover a
reabsorção de água;
o Diminuição da produção de ADH – diabetes insipidus central – o problema é
central, nomeadamente ao nível do hipotálamo, não havendo produção da
ADH;
o Fármacos ou soluções que aumentem a [Na+]
o Calor, febre, exercício

Manifestações clínicas:

• Febre
• Náuseas
• Vómitos
• Alterações no Estado de Consciência

Alterações na [K+]

O K+ é um ião que se encontra, principalmente, a nível intracelular, pelo que os seus níveis séricos
dependem:

1) Do que é retirado para dentro da célula (uptake intracelular);


2) Do que é perdido: quer pelo rim (perda renal de K+) quer por perda gastrointestinal
(perda extra-renal de K+)

Regulação do uptake de K+ intracelular:

Numa situação de acidose temos um aumento da [H+], sendo que existe um trocador iónico ao
nível da célula entre K+ e H+, pelo que há uma certa reciprocidade entre estes 2 iões:

• Uma acidose vai promover uma hipercaliémia porque o H+ entra dentro das células e
aumenta a saída de K+ para o sangue
• Uma hipocaliémia vai promover a saída de K+ das células para a corrente sanguínea, pelo
que ao sair K+ vai entrar H+, podendo promover uma alcalose.

O principal regulador do balanço do K+ é o rim:

• Reabsorção: de todo o K+ filtrado, cerca de 90% é reabsorvido


no TCP, onde apenas 10% são entregues à ansa de Henle, TCD
e TC
• Secreção: no TC, nas células principais, a ação da aldosterona
promove a reabsorção de Na+ em troca da secreção de K+ e H+
(estímulos para a libertação de aldosterona → hipercaliémia e
angiotensina II)

Hipocaliémia

Principais causas:

• Diarreia crónica
• Uso de diuréticos
• Hiperaldosteronismo (aumenta secreção de K+ nos TC)
• Deficiência na ingestão de K+

Manifestações clínicas:

• Fraqueza muscular
• Arritmias
• Patologia renal intersticial

Hipercaliémia

• Principais causas:
o Após prática de exercício físico vigoroso
(normalmente insignificante)
o Aumento da libertação de K+ pela célula
e diminuição da sua excreção renal
o Muitas vezes por erro médico (toma
concomitante de IECA com diurético
poupador de potássio)
• Manifestações clínicas:
o Alterações cardíacas
o Parésias musculares

Equilíbrio ácido-base

A [H+] intra e extracelular é um mecanismo muito bem regulado, uma vez que o pH é o -log[H+],
por isso uma pequena variação na [H+] dá, efetivamente, uma alteração logarítmica no pH.

↑[H+] - ↓pH - Acidémia – pH < 7,35

↓[H+] - ↑pH - Alcalémia – pH >7,45

NOTA:

• Acidémia e alcalémia: valores pH


• Mecanismo fisiopatológico: acidose e alcalose

A nossa dieta é especialmente rica em substâncias ácidas, pelo que têm de existir mecanismos
tampão que consigam neutralizar estas substâncias de forma a não influenciarem a [H+] sérica
e, consequentemente, o pH.

Sistemas tampão

O sistema mais importante é o do bicarbonato-ácido carbónico. Este funciona sobre a seguinte


equação:

Assim, quando existe uma situação de acidose que faça aumentar a [H+], vamos ter um aumento
dos reagentes, pelo que a equação se desloca para a direita, ou seja, há consumo de HCO3- para
formar ácido carbónico (H2CO3) que, na presença de anidrase carbónica, se vai converter em CO2
e H20.

Assim, para evitar a acidémia, há conversão de H+ em ácido carbónico e, consequentemente,


CO2. O CO2 é uma substância ácida, pelo que o organismo vai aumentar a FR de forma a ventilar
mais para eliminar o CO2 pela respiração. No entanto, este mecanismo não vai regenerar o
bicarbonato que se perdeu.

Assim, para “reaver” o bicarbonato perdido, a solução está no rim: vamos aumentar a secreção
de H+ no rim de forma a reabsorver o bicarbonato que tinha sido filtrado no sangue.

Reabsorção renal de bicarbonato

Ocorre 90% ao nível do TCP, local onde existe maior concentração de


anidrase carbónica. Como é que isto procede? Nas células do TCP existe
uma Na+/K+ ATPase que faz com que o Na+ passe de dentro da célula para
o sangue enquanto o K+ entra dentro da célula.

No outro lado da membrana existe um antiporte de Na+/H+. Como o Na+


tinha saído de dentro da célula, agora vai entrar pelo antiporte,
enquanto o H+ vai sair de dentro da célula para o lúmen do TCP. Neste
lúmen, o H+ reage com o HCO3-, originando ácido carbónico (H2CO3). A anidrase carbónica do
lúmen (anidrase carbónica IV) vai converter o ácido carbónico em CO2 e H2O, sendo que estes
são reabsorvidos e, pela anidrase carbónica II, vão ser convertidos em ácido carbónico, que se
dissocia em bicarbonato e H+. O bicarbonato é reabsorvido para o sangue enquanto o H+ retorna
pelo antiporte Na+/H+ para o lúmen do TCP.

Este mecanismo só serve para reabsorção do bicarbonato, não serve para eliminar H+.
Excreção renal de H+

Existe muito H+ a ser secretado no TCP ao nível do antiporte Na+/H+. No entanto, este H+ acaba
por ser reabsorvido na forma de ácido carbónico, sendo depois novamente secretado em H+…
Ou seja, forma-se um loop onde o H+ acaba por não ser realmente desperdiçado para a urina.
Assim, a sua secreção vai ocorrer distalmente no nefrónio.

Ao nível do TC, existem as células principais, onde atua a ADH e a


aldosterona, e outras células, as células intercaladas (α e β) → regulação
do equilíbrio ácido-base. As células intercaladas α vão atuar em situações
de acidémia (mnemónica: alfa – acidémia) porque vão secretar H+ para o
lúmen/urina enquanto reabsorvem K+. A ação da aldosterona promove a
reabsorção de Na+ nas células principais, enquanto há secreção de K+ para
o lúmen/urina. Assim, a ação da aldosterona vai disponibilizar o K+ no
lúmen para ser reabsorvido pelas células α, o que vai permitir a secreção
de H+ → a aldosterona estimula a secreção de H+.

As células intercaladas β vão atuar em situações de alcalémia, ou seja, vão promover a secreção
para o lúmen/urina de HCO3- e a reabsorção de H+, pelo que têm a função oposta.

A secreção de H+ para a urina ocorre como forma de eliminação de ácido. A urina é, por isso,
ácida, ou seja, pH < 7. No entanto, caso a urina fique com pH < 4, o rim deixa de conseguir
eliminar H+ para lá. Como é que isto se resolve? Existem mecanismos de tampão na urina que
vão manter o pH > 4, de forma a possibilitar a secreção de H+.

Mecanismos tampão da urina

Há 2 mecanismos principais:

1. Ácido titulável, no qual temos uma substância que é


filtrada para a urina que vai ser capaz de receber um H+,
sendo que depois são eliminados na urina. Ex: ácido
fosfórico
2. Amónia, útil em situações de acidose metabólica, sendo
mais eficiente que os ácidos tituláveis nesta situação. Nas
células do TCP, a glutamina é convertida a amoníaco
(NH3). Este passa para o lúmen do túbulo, onde viaja ao
longo do tubo até se conjugar com um H+, originando
amónia (NH4+), sendo excretado na urina nesta forma. A amónia é excretada conjugada
com cloro

Equilíbrio ácido-base

Em primeiro lugar, temos de pensar em 2 sistemas que funcionam paralelamente e que se


influenciam mutuamente:

1) Aparelho respiratório, vai regular a


libertação de mais ou menos CO2 (acidose ou
alcalose respiratória);
2) Aparelho renal, onde vamos regular o
bicarbonato e os restantes tampões
existentes (acidose ou alcalose metabólica).

Um exemplo da sua interação é a seguinte: no caso


de uma acidose metabólica, o organismo vai tentar
compensar com uma alcalose respiratória, ou seja, se temos demasiado “ácido” no organismo
por razões metabólicas, o aparelho respiratório vai eliminar o “ácido” que tem (CO2) através da
hiperventilação.

Acidose respiratória: o pH estará normal ou a


diminuir. A PaCO2 está alta, porque é a causa da
acidose respiratória (estamos a reter CO2). Para
compensar, o organismo vai tentar aumentar a
reabsorção de bicarbonato para contrariar a acidez.

Alcalose respiratória: o pH estará normal ou a


aumentar. A PaCO2 vai estar baixa (porque é uma
alcalose respiratória) pelo que não há necessidade de
o organismo compensar com a reabsorção de Analisa-se pela seguinte ordem: pH → PaCO2 → HCO3-

bicarbonato, pelo que este valor está baixo.

Acidose metabólica: o pH está normal ou a descer. Se a acidose é metabólica, temos de


compensar com o sistema respiratório, pelo que queremos uma alcalose respiratória, ou seja,
hiperventilar para diminuir a PaCO2 (chamada respiração de Kussmaul, onde o doente respira
muito profundamente, mas com FR elevada), pelo que esta estará baixa. O bicarbonato está
baixo pelo seu consumo pelo organismo.

Alcalose metabólica: o pH está normal ou a aumentar. O sistema respiratório vai ventilar pouco
de forma a tentar aumentar a componente ácida através da retenção de CO2, pelo que este está
alto. Por outro lado, o bicarbonato estará alto também, uma vez que é uma alcalose metabólica.
Esta resposta compensatória não é aleatória, existe uma proporção em termos de
“reajustamento” do equilíbrio com resposta respiratória ou renal em função da origem do
estímulo. Numa situação de
acidose metabólica, por cada
diminuição da concentração
plasmática de 1 mmol/L HCO3-,
vamos ter o “desperdício” de
CO2 em 1,25 mmHg PaCO2. Por
outro lado, numa alcalose
metabólica, pelo aumento de 1
mmol/L HCO3-, vamos ter a
retenção de CO2 para aumentar a sua pressão marcial em 0,75 mmHg.

As alterações de origem respiratória dividem-se em crónicas ou agudas, sendo que as alterações


crónicas vão ter repercussões mais pesadas que as de carácter agudo.

Numa acidose respiratória, por cada aumento da PaCO2 em 10 mmHg, aumenta em 1 ou 4


mmol/L a [HCO3-], consoante seja aguda ou crónica.

Numa alcalose respiratória, por cada perda de PaCO2 em 10 mmHg, perde-se 2 ou 4 HCO3-
consoante seja aguda ou crónica, respetivamente.

A resposta do organismo às alterações do balanço ácido-base não ocorre de forma simultânea


em todos os mecanismos reguladores, ou seja:

• Existe um mecanismo de correção imediato: sistemas tampão, que vão alterar de forma
rápida (mas em pouca quantidade) a concentração de HCO3-
• Mecanismo de correção respiratório inicia-se 30 min depois do desequilíbrio e
completa-se entre 12 a 24h
• Mecanismo de correção renal que regula a reabsorção ou excreção de H+ que demora
horas a iniciar, mas só se completa ao final de alguns dias

Acidose metabólica

Caracteriza-se como:

• pH < 7,35
• [HCO3-] < 22 mmol/L
• PaCO2 < 35 mmHg

Ou seja, podemos ter uma acumulação de ácido no organismo ou uma perda de base (perda de
HCO3-), sendo que estas situações têm origens e causas diferentes. Como fazemos para distinguir
uma da outra? Calculamos o anion gap.

Anion Gap:

Sabe-se que:

Total de catiões = total de aniões

Os catiões mais representativos são o Na+ (cuja concentração varia entre 135 e 145 mmol/L) e
o K+ (cuja concentração varia entre 3.5 e 5 mmol/L). Depois existem outros catiões que não são
medidos, mas que existem no sangue, como o Ca2+ e o Mg2+ que são chamados de catiões não
medidos, porque sabemos que existem, mas a sua concentração no sangue é baixa.

Quanto aos aniões, destaca-se o Cl- e o HCO3- bem como outros aniões que sabemos que não
existem mas que não são medidos, chamados de aniões não medidos.

Assim:

[Na+] + [K+] + catiões não mensurados = [Cl-] + [HCO3-] + aniões não mensurados

Rearranjando a equação, chegamos a:

Aniões não mensurados – catiões não mensurados = ([Na+] + [K+]) – ([Cl-] + [HCO3-])

Assim, chegamos à conclusão de que o Anion Gap é a diferença entre


as cargas positivas e as cargas negativas, ou seja, a diferença entre os
aniões não mensurados e os catiões não mensurados. Idealmente, esta
diferença seria 0 (de acordo com a definição de que o balanço de cargas
positivas e negativas no organismo é 0), mas isso não acontece, porque
a quantidade de aniões não medidos é maior do que a quantidade de
catiões não medidos, ou seja, há mais iões de carga negativa no nosso
sangue que nós não conseguimos medir do que catiões que não
conseguimos medir. Logo, o Anion Gap varia entre 8 a 10 mmol/L.

Na acidose metabólica, a primeira coisa que fazemos é calcular o anion gap e, a partir daí,
perceber se:

• Estamos a perder base (HCO3-), sendo que o anion gap se mantém → acidose
metabólica hiperclorémica ou com anion gap normal
• Estamos a acumular um outro ácido no nosso organismo, pelo que o anion gap vai
aumentar porque vamos aumentar os aniões não mensurados → acidose metabólica
normoclorémica ou com anion gap aumentado

Acidose metabólica normoclorémica/com anion gap aumentado

Acidose metabólica por ganho de ácido – este junta-se aos aniões não medidos → aumenta o
anion gap

Causas (mnemónica): GOLDMARRK

Acidose metabólica hiperclorémica/anion gap normal

Acidose metabólica por perda de base → cloro aumenta para compensar a perda de bicarbonato
→ anion gap não altera
A perda de bicarbonato pode ser por causa renal ou extrarrenal. Sabemos que, numa situação
de acidose metabólica com um funcionamento normal do rim, vamos tentar eliminar H+ para a
urina, urina esta que deve manter um pH > 4 para permitir esta excreção de H+ ativa. Assim,
sintetiza-se amoníaco (NH3) ao nível das células do TCP, que vai reagir com o H+ secretado para
a urina e formar o ião amónia (NH4+). Esta amónia é excretada na urina como NH4Cl, pelo que,
se conseguirmos dosear o Cl- na urina, conseguimos estimar a eliminação de NH4+.

Por outro lado, para que ocorra essa eliminação com o Cl-, é preciso que ocorra reabsorção renal
de HCO3-, pelo que conseguimos depreender que se houver pouca reabsorção de bicarbonato
haverá pouca quantidade de Cl- na urina, pelo que estamos a perder bicarbonato para a urina
→ perda renal de bicarbonato.

No entanto, se a [Cl-] urinária for alta, significa que conseguimos eliminar bastante ácido pela
urina e que foi reabsorvido bicarbonato, pelo que exclui a causa renal de perda de bicarbonato
e sugere perda extrarrenal de bicarbonato.

O anion gap urinário (AGu) pode ser definido como a diferença entre catiões e aniões urinários.
Numa situação de perda extrarrenal de HCO3- vamos ter uma grande eliminação renal de Cl-,
pelo que depreendemos que a eliminação de NH4+ é, igualmente, alta e que as suas
concentrações na urina são grandes. Consequentemente, a diferença entre catiões e aniões é
negativa porque temos bastantes aniões na urina, pelo que o AGu é negativo.

Se o AGu é positivo, significa que [catiões]urinário > [aniões]urinário, ou seja, [Cl-]urinário é baixa. Se é
baixa, então é porque se reabsorveu pouco HCO3- ao nível do rim, pelo que estamos a perder
bicarbonato de forma renal → perda renal de HCO3-.

NOTA! Se tivermos um doente com um pH normal, mas o AG (sanguíneo, não o urinário) estiver
aumentado, então temos de pensar que está a ocorrer pelo menos um processo de acidose
metabólica!

Distúrbios mistos
Outra das importâncias do anion gap é a possibilidade de perceber se está a ocorrer algum tipo
de distúrbio misto. Vamos primeiro definir duas coisas:

Δ AG = [(AG do doente) – (AG normal 10)]

A variação do AG é a diferença entre o anion gap do doente e o seu valor normal (entre 8 a 10),
ou seja, esta variação basicamente diz-nos se temos uma acidose com aumento de anion gap
(normoclorémica) ou não.

Δ HCO3- = [(HCO3- normal 24) – (HCO3- do doente)]

A variação da [HCO3-] corresponde à diferença entre o valor de referência do bicarbonato e o


bicarbonato do doente. Teoricamente, se o doente tiver uma variação positiva, significa que
estamos numa situação de acidose (ou por consumo de HCO3- ou por perda renal ou extra-renal
do mesmo).

Rácio entre as duas variações: Δ AG/ Δ HCO3-

Exemplo: situação de acidose metabólica com aumento do anion gap no contexto de acidose
lática. A variação de AG vai ser positiva porque temos o anion gap aumentado. Por outro lado,
perante a acumulação de ácido, o bicarbonato vai ser consumido de uma forma proporcional à
quantidade de ácido que existe no organismo, pelo que a variação de bicarbonato é positiva
também (de acordo com as fórmulas mencionadas em cima). Consequentemente, o ratio das
variações de AG/bicarbonato será positivo.

Discrepância no rácio → distúrbio de causa mista

Exemplos:

1. Vómitos + acidose láctica

Numa situação de vómitos perde-se ácido gástrico, pelo que teremos uma alcalose metabólica.
Essa alcalose metabólica vai fazer com que a variação de bicarbonato seja negativa, ou seja, o
doente vai ter mais bicarbonato do que seria suposto.

Por outro lado, a acidose lática vai originar uma acidose metabólica com aumento do anion gap,
pelo que AG vai ser positivo. Logo, se temos uma variação de bicarbonato negativa e uma
variação de AG positiva, vamos ter uma discrepância no ratio entre estas duas variações, isto
porque temos uma alcalose metabólica + acidose metabólica com aumento do anion gap →
distúrbio misto.

2. Diarreia + acidose láctica


Numa situação de diarreia temos uma perda extra-renal de bicarbonato, pelo que entramos na
categoria das acidoses metabólicas sem aumento do anion gap ou hiperclorémicas.

Na acidose metabólica já vimos que temos um aumento do anion gap do doente.

Assim, vemos que a variação de AG é positiva. No entanto temos como se fossem “duas
acidoses” pelo que a perda de bicarbonato é maior do que a que seria expectável, pelo que
temos uma discrepância nas duas variações. Isto acontece porque temos um distúrbio misto
→ acidose metabólica hiperclorémica (diarreia) + acidose metabólica com aumento de anion
gap (acidose lática).

Alcalose metabólica

Caracteriza-se por:

• pH> 7,45
• [HCO3-] > 30mmol/L
• PaCO2 > 45mmHg

Esta situação é bastante frequente e pode levar à morte. Temos 2 fases:

1) Geração da alcalose metabólica por perda excessiva de ácido ou ganho/acumulação de


base;
2) Manutenção da alcalose metabólica por incapacidade de excreção renal de
bicarbonato.

As principais causas são:

• Administração exógena de base;


• Perda GI de HCl;

Por vezes pode estar associada a uma situação de hiperaldosteronismo, onde temos uma grande
reabsorção de Na+ com eliminação de K+ originar uma hipocaliémia, com consequente saída de
K+ e entrada de H+ na célula, o que origina uma acidose intracelular e uma alcalose metabólica.

Acidose respiratória

Caracteriza-se por:

• pH < 7,35
• [HCO3-] > 30mmol/L
• PaCO2 > 45mmHg

A principal causa desta alteração é a hipoventilação pulmonar. Se o pulmão estiver a ventilar


menos, estamos a desperdiçar menos CO2, pelo que o vamos reter e originar esta acidose
respiratória. Esta hipoventilação pulmonar pode ser com ou sem patologia pulmonar.
• Hipoventilação s/patologia pulmonar
o Depressão do centro respiratório
o Cifoescoliose
o Doença neuromuscular
• Hipoventilação c/doença pulmonar
o Asma
o Pneumonia
o DPOC

Alcalose respiratória

Caracteriza-se por:

• pH > 7,45
• [HCO3-] < 22mmol/L
• PaCO2 < 35mmHg

Ocorre em caso de hiperventilação → o doente está a perder demasiado CO2 de tal forma que
entra em alcalose respiratória. O organismo, para compensar, vai aumentar a perda de
bicarbonato (principalmente de forma renal). Esta hiperventilação pode ser com ou sem
patologia respiratória:

• Hiperventilação s/patologia pulmonar


o Febre
o Gravidez
• Hiperventilação c/patologia pulmonar
o Pneumonia
o Embolia pulmonar

Exercício:

pH 7,23 – diminuído – acidémia

PaCO2 27 mmHg – diminuído

HCO3- 11 mmol/L – diminuído

Logo acidose metabólica

Anion Gap = (129 + 6,4) – (11 + 96) = 22 logo está aumentado → acidose metabólica por ganho
de ácido
Insuficiência renal

Adaptação do rim ao dano na DRC

Contrabalanço

• Tentativa por parte da porção não danificada do rim de realizar as funções da porção danificada.
• A remoção de um rim leva a um aumento no tamanho do rim contralateral.
• Se um rim sofrer isquémia e o outro estiver intacto, o rim que sofreu isquémia atrofia. Contudo, se for
removido o contralateral, o rim que sofreu isquémia aumenta primeiro de tamanho antes de ocorrer atrofia.
Se o rim contralateral estiver presente, ocorre vasoconstrição e diminuição do fluxo renal para o rim que
sofreu isquémia, mas isto é rapidamente revertido se o rim contralateral for removido.

Hipertrofia

A perda de nefrónios resulta em alterações anatómicas e funcionais dos restantes nefrónios. Existe um aumento do
fluxo sanguíneo para os glomérulos restantes, com potenciais efeitos adversos ao longo do tempo devido ao aumento
do tamanho dos restantes glomérulos e da hiperfiltração. Para além disso, ocorre hipertrofia dos túbulos, através de
vários mediadores:

• Aumento do fluxo sanguíneo renal


• Aumento da absorção tubular de Na com diminuição da excreção distal e diminuição da resistência da arteríola
aferente devido a feedback tubuloglomerular
• HGF (hepatocyte growth factor)
• Transportadores de glucose
• IGF
• TGF β
• p21Waf1, p27kip1 , e p57kip2

A hiperfiltração relaciona-se com o aumento do fluxo


sanguíneo renal provavelmente secundário à dilatação da
arteríola aferente devido a aumento da produção de óxido
nítrico.

Com o aumento do fluxo sanguíneo renal, ocorre


hipertensão glomerular (aumento da pressão capilar
glomerular). O aumento da tensão na parede capilar é
contrariado pelas propriedades contráteis do endotélio e
pelas propriedades elásticas da membrana basal – os
podócitos adaptam-se e aumentam a adesão celular numa
tentativa de manter a arquitetura dos processos
podocitários. Contudo, ao longo do tempo ocorre dano dos podócitos e glomerulosclerose.

Outras adaptações

Potássio

A maior parte do K+ filtrado é reabsorvido no TCP, pelo que a excreção é determinada pela secreção no nefrónio distal.
A homeostase do potássio está alterada na DRC para proteger o organismo de uma potencial hipercaliémia.

A hipercaliémia é comum em pacientes com DRC, e é adaptativa visto que promove a secreção de K+ pelas células
principais no ducto coletor. O efeito direto da hipercaliémia na secreção de K+ é independente de alterações nos níveis
de aldosterona, mas é necessário que existam níveis normais de aldosterona para que se verifique o efeito da
hipercaliémia na excreção de potássio. O aumento do K+ estimula a produção de aldosterona → a aldosterona
aumenta a densidade e atividade da Na+-K+ ATPase basolateral e aumenta o nº de canais de Na+ na membrana apical
do ducto coletor. Na DRC, a excreção do potássio ingerido na dieta ocorre à custa da elevação da concentração sérica
de potássio.
Sódio

À medida que a função renal diminui, a capacidade de excretar Na+ também diminui, pelo que pacientes com doença
renal avançada apresentam um aumento do volume extracelular. Contudo, inicialmente, existe alguma preservação
do balanço glomerulotubular com aumento da reabsorção de Na+ e água no TCP, associado a aumento dos trocadores
Na/H na membrana apical. O feedback glomerulotubular dos restantes nefrónios é sensível à ingestão de sódio. Com
aumento da ingestão de sódio num rim com função normal, ocorre um processo de feedback negativo: o aumento da
secreção distal resulta numa redução da TFG e da filtração de sódio. Na DRC, a TFG torna-se um processo de feedback
positivo: o aumento da secreção distal resulta num aumento da filtração de modo a excretar o sódio existente em
maior quantidade em cada nefrónio. Esta resposta pode tornar-se mal adaptativa, resultando num aumento da
pressão hidrostática intraglomerular com aumento da tensão sobre as paredes dos capilares e sobre os podócitos e
aumento da glomerulosclerose.

Equilíbrio ácido-base

Com a diminuição das unidades funcionais do rim, existe uma resposta adaptativa para aumentar a excreção de H+
pelos restantes nefrónios → aumento da amoniagénese e aumento da secreção de H+ no nefrónio distal, que é
mediada pelo sistema renina-angiotensina e pela endotelina-1. Contudo, o mecanismo de aumento da secreção de H+
pode ser mal adaptativo e contribuir para a inflamação do rim e fibrose e consequentemente facilitando a progressão
de DRC.

Metabolismo fosfato-cálcio e vitamina D

Na DRC, há diminuição da excreção de fosfato e diminuição da produção de 1,25-dihidroxivitamina D3, resultando


num aumento do fosfato sérico e numa diminuição do cálcio sérico. Em resposta, aumenta a produção de PTH e de
FGF-23 (fibroblast growth-factor 23) para tentar aumentar a fosfatúria. Os níveis elevados de PTH aumentam a
reabsorção óssea, e nos osteócitos aumentam a expressão de FGF-23.

Apesar da produção de PTH e de FGF-23 serem inicialmente tentativas para manter os níveis de fosfato ao aumentar
a sua excreção no rim, tornam-se mecanismos mal adaptativos devido a efeitos sistémicos no sistema cardiovascular
e no osso, à medida que a função renal se deteriora.

A PTH e o FGF-23 diminuem a capacidade do rim em reabsorver fosfato ao diminuírem os níveis do co-transportadores
fosfato-sódio NaPi2a e NaPi2c na membrana apical e basolateral. O FGF-23 também reduz a capacidade do rim em
gerar 1,25(OH)2D3.

Na glândula paratiroideia, o recetor do FGF-23 - klotho-fibroblast


growth factor 1 complex – está subregulado, com a consequente
perda da ação do FGF-23 em subregular a produção de PTH. A PTH
e o FGF-23 estão implicados na doença cardiovascular característica
em pacientes com DRC. Com DRC, há menor expressão de klotho no
rim e nas glândulas paratiroideias. A deficiência em klotho contribui
para a calcificação dos tecidos moles. O FGF-23 foi associado a
aumento da mortalidade na DRC e ao desenvolvimento de
hipertrofia ventricular esquerda. A PTH também afeta as células do
miocárdio, aumentando a entrada de cálcio nas células e
contribuindo para a sua morte.

Lesão renal aguda

Função renal

• Depuração – filtração, secreção e excreção de moléculas hidrossolúveis (as proteínas e as substâncias que a
elas estão ligadas não são excretadas em situações normais), sendo esta a principal função do rim.
• Regulação da pressão arterial
• Regulação do equilíbrio ácido-base
• Regulação do equilíbrio hidroeletrolítico
• Funções endócrinas e metabólicas (nomeadamente a produção de eritropoietina e a ativação de vitamina D).

No entanto, quando falamos em insuficiência renal, apenas nos estamos a referir a uma falência na função
depuradora. Não significa que não possa haver alterações nas outras funções, mas o termo insuficiência renal traduz
o que se passa com a depuração.

Filtração glomerular

Em cada rim existem cerca de 1 milhão de nefrónios e cada um contribuiu para a filtração total dos rins. O filtrado
glomerular é o somatório do filtrado individual de cada um destes nefrónios. Diariamente, filtramos cerca de 180L de
água, mas reabsorvemos 178L, daí que só urinemos 1 a 2 L por dia. Um rim sem patologia é extremamente eficaz a
poupar o que é útil e a eliminar o que não é, mantendo a homeostasia.

O melhor marcador da função renal é a creatinina, que resulta do metabolismo muscular da fosfocreatina. A creatinina
tem as vantagens de ser totalmente solúvel e de ser eliminada pelo rim (ou seja, quando há disfunção renal, há
aumento da creatininémia) e as desvantagens de ser parcialmente eliminada por secreção tubular (o melhor seria ser
apenas por filtração) e de variar de indivíduo para indivíduo (consoante, por exemplo, massa muscular e atividade
física).

Para entender bem a lesão renal aguda (que pode ter várias etiologias e manifestações), é necessário compreender
como ocorre a filtração glomerular e quais os seus determinantes.

Para cada nefrónio, ao nível da cápsula de Bowman, existe uma arteríola aferente e uma arteríola eferente, com um
sistema de capilares entre elas, o glomérulo. Estas arteríolas são bastante vasoativas, o seu tónus (vasoconstrição ou
vasodilatação) encontra-se sob regulação rigorosa de vários mecanismos. Funcionam como resistências de um circuito
elétrico, que vão gerir a pressão hidrostática glomerular, que é o principal determinante da filtração. Por exemplo, se
por qualquer motivo ocorrer uma hipoperfusão renal pontual, há vasodilatação da arteríola aferente e vasoconstrição
da arteríola eferente para manter o filtrado glomerular.

Os determinantes da filtração glomerular estão representados na seguinte fórmula:

• A pressão hidrostática glomerular resulta da tensão que o fluido no glomérulo exerce sobre as paredes
capilares, favorecendo a filtração. Quanto maior a pressão hidrostática glomerular, maior a TFG. Esta pressão
pode ser aumentada por vasodilatação da arteríola aferente e por vasoconstrição da arteríola eferente.
• A pressão oncótica glomerular resulta da quantidade de proteínas ao nível do glomérulo, opondo-se à
filtração. Quanto maior a pressão oncótica glomerular, menor a TFG.
• A pressão hidrostática na cápsula de Bowman resulta da tensão que o fluido na cápsula de Bowman exerce
sobre as paredes capilares, opondo-se à filtração. Quanto maior a pressão hidrostática na cápsula, menor a
TFG.
• A pressão oncótica na cápsula de Bowman resulta da quantidade de proteínas ao nível da cápsula de Bowman,
favorecendo a filtração. No entanto, como não existem proteínas no filtrado em condições fisiológicas, a
pressão oncótica na cápsula é de 0 mmHg, pelo que esta parcela é frequentemente omitida nas fórmulas.
• O coeficiente de permeabilidade é dependente da permeabilidade da membrana de filtração e do somatório
da superfície de filtração de todos os glomérulos, favorecendo a filtração. Quanto maior a permeabilidade e
quantos mais glomérulos funcionais tivermos, maior a TFG.

Esta fórmula diz-nos que uma diminuição da TFG (como acontece na lesão renal aguda) é obrigatoriamente causada
por uma alteração nalguma das parcelas, sendo que a parcela alterada vai depender da etiologia e fisiopatologia da
lesão renal aguda.

Definição de Lesão Renal Aguda: subida da creatinina de pelo menos 0.3 mg/dL (ou 50%) em relação ao basal em 24
a 48 horas OU redução do débito urinário para <0.5 mL/kg/h desde há pelo menos 6 horas.

Etiologia e fisiopatologia

A lesão renal aguda (LRA) é caracterizada por uma perda de função renal súbita (esta perda refere-se à depuração,
não às outras funções renais, que podem estar alteradas ou normais), com acumulação de substâncias que
normalmente seriam eliminadas pelo rim.

A LRA não corresponde a uma doença única, mas a um grupo heterogéneo de situações que partilham características
diagnósticas: aumento do BUN (blood urea nitrogen) e/ou da SCr (creatinina sérica), frequentemente com diminuição
do volume urinário (oligúria ou mesmo anúria).

A gravidade da LRA pode ir desde alterações assintomáticas e transitórias de parâmetros laboratoriais da TFG que se
corrigem rapidamente sem ser sequer necessária intervenção médica até perturbações massivas e rapidamente fatais
da regulação do volume circulatório efetivo e dos equilíbrios eletrolítico e ácido-base.

A LRA pode ser:

• Adquirida na comunidade – causas mais comuns: hipovolémia, efeitos adversos fármacos e obstrução do trato
urinário
• Nosocomial – causas mais comuns: sépsis, cirurgia, doenças críticas que envolvam insuficiência cardíaca ou
hepática, administração IV de contraste e administração de fármacos nefrotóxicos.

A LRA é tradicionalmente dividida em 3 grandes categorias, consoante aquilo que está na sua origem: pré-renal,
renal/intrínseca/parenquimatosa e pós-renal/obstrutiva.

1. Pré-renal

A azotémia pré-renal é a forma mais comum de LRA. Corresponde a um aumento na concentração séria de creatinina
ou ureia devido a hipoperfusão renal e diminuição da pressão hidrostática glomerular.

As condições clínicas mais associadas a lesão pré-renal são hipovolémia (hemorragia, terapêutica diurética,
desidratação por queimaduras, vómitos ou diarreia…), débito cardíaco diminuído (insuficiência cardíaca,
tamponamento cardíaco…), fármacos que interfiram com as respostas reguladoras intrínsecas do rim (AINEs e iECAs)
e vasodilatação sistémica (sépsis, fármacos vasodilatadores…).

Quando a hipoperfusão é ligeira e pontual, os mecanismos autorregulatórios do rim são suficientes para manter a TFG
normal. Estes incluem:
• Reflexo miogénico – quando a pressão de perfusão na arteríola aferente é baixa, ocorre uma vasodilatação
direta da mesma, para aumentar a pressão hidrostática glomerular.
• Feedback tubuloglomerular – quando o fluxo ao nível do TCD é reduzido e pobre em Na+, as células da mácula
densa respondem aumentando a produção renal de prostaglandinas, o que vai, por um lado, causar
vasodilatação da arteríola aferente e, por outro, estimular a síntese de renina pelo aparelho justa-glomerular.
• Retenção de Na+ e de água e vasoconstrição sistémica – mediadas pelo sistema renina-angiotensina-
aldosterona, com contribuição do sistema nervoso simpático, com o objetivo de aumentar a volémia, a
pressão arterial e a perfusão renal. A filtração glomerular pode ser mantida apesar da redução da perfusão
renal através da vasoconstrição da arteríola eferente pela angiotensina II, que mantém a pressão hidrostática
glomerular perto do normal, prevenindo reduções marcadas da TFG se a hipoperfusão não for excessiva.

No entanto, existe um limite, e quando a perfusão é demasiado baixa ou quando os mecanismos não são eficazes,
ocorre efetivamente LRA pré-renal, ou seja, a TFG diminui. Caso o distúrbio hemodinâmico seja corrigido, a TFG volta
ao normal e deixa de haver LRA.

A azotémia pré-renal pode coexistir com lesão renal intrínseca na medida em que períodos prolongados de
hipoperfusão renal culminam também em lesão isquémica, frequentemente denominada necrose tubular aguda.

Existem fatores que determinam a eficácia da resposta autorregulatória e o risco de azotémia pré-renal:

• A aterosclerose, hipertensão e idade avançada podem levar a hialinose e a hiperplasia da camada íntima,
diminuindo o lúmen das arteríolas intrarenais e diminuindo a capacidade de dilatação da arteríola aferente;
• Os AINEs inibem a produção de prostaglandinas renais, limitando a vasodilatação da arteríola aferente; os
IECAs e os ARAs limitam a vasoconstrição da arteríola eferente. Portanto, uma combinação de AINEs com
IECAs ou ARAs aumenta o risco de desenvolver azotemia pré-renal.

2. Renal

As causas mais comuns de LRA intrínseca são sépsis, isquémia e nefrotoxinas endógenas ou exógenas (podendo a
primeira cursar inicialmente com LRA pré-renal). Neste tipo de situação, verifica-se lesão do parênquima renal,
denominando-se classicamente necrose tubular aguda (apesar de fenómenos de apoptose e inflamação contribuírem
também para a fisiopatologia). Outras causas menos comuns podem ser agrupadas anatomicamente consoante a
porção do parênquima mais afetada: glomérulos (glomerulonefrites), tubulointerstício (doenças infiltrativas, infeções
com infiltrado inflamatório proeminente…) e vasos (vasculites).

Neste tipo de LRA, o que se encontra alterado na fórmula é o coeficiente de filtração, o que traduz que ou existe uma
diminuição na permeabilidade capilar ou na superfície total de filtração (ou seja, uma diminuição no número de
nefrónios funcionais).
LRA associada a sépsis

Os efeitos hemodinâmicos da sépsis (vasodilatação arterial generalizada, mediada em parte por citocinas que
aumentam a expressão da NO sintase na vasculatura) podem levar a diminuição da TFG. Os mecanismos podem ser
excessiva vasodilatação da arteríola eferente, ou vasoconstrição renal pela ativação do SN Simpático, sistema renina-
angiotensina-aldosterona, ADH e endotelina. A sépsis pode levar a dano endotelial, que resulta em trombose
microvascular, ativação de espécies reativas de oxigénio e adesão e migração leucocitária, que podem danificar as
células tubulares renais.

LRA associada a isquémia

A hipoperfusão e hipóxia relativa começa por provocar alterações


da microvasculatura renal, com:

• Aumento da vasoconstrição mediada por endotelina,


tromboxano A2, leucotrienos e atividade simpática;
• Diminuição da vasodilatação por redução da sensibilidade a
NO, prostaglandinas e bradicinina;
• Aumento da adesão leucócito-endotelial, com congestão
vascular e inflamação local.

Concomitantemente a estas alterações microvasculares, ocorre


necrose tubular aguda, e para além de uma perda das funções
tubulares de secreção e reabsorção, os detritos das células
tubulares acabam por se soltar para o lúmen tubular, o que vai
condicionar uma diminuição da TFG por diferentes mecanismos
(para além da própria perda de nefrónios):

• Feedback tubuloglomerular – um maior fluxo de solutos


(resultante de reabsorção proximal de Na+ ineficiente por
disfunção das células tubulares), ao nível da mácula densa,
é interpretado como estando a ocorrer demasiada
filtração glomerular e provoca vasoconstrição da arteríola
aferente, o que diminui a pressão hidrostática glomerular;
• Perda de integridade das paredes tubulares – o filtrado glomerular vaza para o interstício por espaços na
parede previamente ocupados por células que morreram, ou seja, acaba por não ser excretado;
• Obstrução mecânica de túbulos – por vezes os detritos necróticos podem ocluir os túbulos, impedindo a
passagem do filtrado, o que aumenta a pressão hidrostática na cápsula de Bowman.

A LRA desenvolve-se mais frequentemente quando a isquémia ocorre em contexto de reserva renal limitada (doença
renal crónica ou idosos) ou com situações concomitantes como sépsis, fármacos vasoativos ou nefrotóxicos,
rabdomiólise ou estados inflamatórios sistémicos associados a queimaduras e a pancreatite. A LRA intrínseca
isquémica ocorre frequentemente por sépsis (com um componente inflamatório da fisiopatologia mais marcado), no
pós-operatório (especialmente em operações que envolvam perdas de sangue significativas ou hipotensão
intraoperatória), na pancreatite aguda e em queimaduras extensas (por diminuição acentuada da volémia), entre
outras situações.
LRA associada a nefrotoxinas

A LRA intrínseca pode também ser induzida por inúmeras nefrotoxinas, endógenas ou exógenas, as quais exercem
efeitos diretos sobre as células do rim, podendo afetar as tubulares, as intersticiais ou as endoteliais. A fisiopatologia
deste tipo de LRA é bastante variável consoante as toxinas, podendo envolver vasoconstrição renal, necrose tubular
aguda, inflamação local, stress oxidativo, precipitação intratubular obstrutiva, entre outros mecanismos. No entanto,
existe alguma coincidência entre vários dos mecanismos da LRA nefrotóxica e da puramente isquémica.

Tal como noutras formas de LRA, fatores de risco para a nefrotoxicidade incluem idade avançada, doença renal crónica
e azotémia pré-renal. A hipoalbuminémia pode aumentar o risco de algumas formas de LRA associada a nefrotoxinas
devido ao aumento da concentração de fármaco/toxina livre em circulação.

As principais nefrotoxinas são:

• Exógenas
o Agentes de contraste (mais tóxicos em doentes com doença renal crónica)
o Antibióticos: aminoglicosídeos, anfotericina B…
o Antineoplásicos: cisplatina, carboplatina, ifosfamida, bevacizumab…
o Ingestão de tóxicos ambientais e industriais.
• Endógenas
o Mioglobina e hemoglobina (na rabdomiólise e hemólise, respetivamente, causando nefropatia de
pigmentos).
o Ácido úrico.
o Cadeias leves de mieloma.

3. Pós-renal

A LRA pós-renal ou obstrutiva ocorre quando o fluxo urinário é bloqueado subitamente, levando a acumulação de
urina a montante da obstrução, com aumento da pressão hidrostática na cápsula de Bowman, o que diminui a TFG.
Em indivíduos saudáveis com dois rins, esta obstrução tem de afetar ambos os rins; caso afete apenas um, o outro
consegue compensar. Uma obstrução que afete exclusivamente um rim só causa LRA no contexto de indivíduos com
apenas um rim, indivíduos com doença renal crónica ou, raramente, quando é desencadeado vasospasmo reflexo no
rim contralateral.

Existem várias causas de obstrução possíveis:

• Obstrução do colo vesical (comummente por hipertrofia benigna da próstata).


• Bexiga neurogénica (com hipertonicidade do esfíncter uretral interno).
• Fármacos anticolinérgicos (com retenção urinária).
• Obstrução de algália.
• Obstrução da uretra (cálculos ou constrições uretrais).
• Obstrução intraluminal do ureter (cálculos, papilas renais descamadas, neoplasia).
• Compressão extrínseca do ureter (fibrose retroperitoneal, abcesso, neoplasia).

Para além do aumento da pressão hidrostática da cápsula de Bowman, a fisiopatologia da LRA pós-renal envolve
também alterações hemodinâmicas causadas por um aumento súbito das pressões intratubulares. Apesar de
inicialmente ocorrer uma vasodilatação da arteríola aferente, estas situações acabam por cursar com vasoconstrição
intrarenal por aumento de angiotensina II, tromboxano A2 e ADH e diminuição da produção de NO (apesar de a TFG
estar reduzida, o rim interpreta as pressões intratubulares elevadas como resultado de uma filtração excessiva e ativa
mecanismos de retenção, que agravam a situação).

Também na LRA pós-renal é de extrema importância descobrir rapidamente a causa pois a correção da obstrução, seja
por algaliação, urostomia ou outras abordagens, geralmente interrompe a progressão da lesão.

Complicações
O rim tem um papel central no controlo homeostático da volémia, pressão arterial, composição eletrolítica do plasma
e equilíbrio ácido-base e na excreção de produtos azotados tóxicos. Tudo isto pode estar afetado numa LRA,
dependendo da gravidade e da presença ou não de outras patologias associadas. LRA ligeira a moderada pode ser
completamente assintomática.

Urémia

A acumulação de produtos azotados, com um aumento da concentração sérica de BUN, é característica da lesão renal
aguda. Em concentrações inferiores a 100mg/dL, a BUN raramente apresenta toxicidade, mas com níveis mais
elevados podem surgir alterações nervosas, musculares e metabólicas, entre outras.

Além da ureia, pensa-se que outras substâncias (nomeadamente fenóis, polióis, nucleósidos, carbonilos, guanidinas…)
normalmente eliminadas pelo rim possam também estar na origem deste conjunto de sinais e sintomas que
caracteriza a síndrome urémica.

A correlação entre as concentrações de BUN e SCr e os sintomas urémicos é extremamente variável, em parte devido
às diferentes taxas de formação destes produtos entre indivíduos.

Hipervolémia e hipovolémia

Expansão do volume extracelular é uma complicação major da LRA oligúrica/anúrica, devido a excreção ineficiente de
sal e de água. Isto pode cursar com aumento de peso, edema dependente, pressão venosa jugular aumentada e edema
pulmonar.

A recuperação da LRA é por vezes acompanhada de poliúria, a qual, se não tratada, pode levar a depleção de volume
significativa. Esta fase poliúrica da recuperação deve-se a uma diurese osmótica da ureia e outras toxinas acumuladas
durante a LRA e também a uma recuperação gradual das funções reabsortivas dos túbulos renais.

Hiponatrémia

A hiponatrémia pode surgir caso, numa fase oligúrica, o doente continue a ingerir água (elimina pouco sódio e água e
ingere mais água que sódio – hiponatrémia por diluição) ou pode ser uma complicação da terapêutica (administração
excessiva de fluídos cristalóides hipotónicos ou de dextrose isotónica). Esta hiponatrémia pode cursar com
complicações neurológicas, nomeadamente convulsões.

Hipercaliémia

As anormalidades na composição eletrolítica plasmática na LRA podem ir desde ligeiras a bastante severas.
Frequentemente a mais preocupante é a hipercaliémia. Esta é mais marcada quando a causa de LRA é rabdomiólise,
hemólise ou síndrome de lise tumoral, por libertação de potássio intracelular. Pode resultar em fraqueza muscular,
mas a sua mais complicação mais preocupante é ao nível da condução cardíaca, provocando disritmias potencialmente
fatais.

Acidose metabólica

A acidose metabólica, geralmente de hiato aniónico elevado, é bastante comum na LRA, por retenção de metabolitos
ácidos que seriam normalmente excretados (sulfatos, fosfatos…). A excreção de ião hidrogénio pode também estar
afetada numa LRA intrínseca (pois a função secretória dos túbulos renais está afetada), podendo causar uma acidose
metabólica de hiato aniónico normal.

A gravidade e fisiopatologia da acidose metabólica acaba por ser muito variável, consoante a etiologia da LRA, o grau
de dano do parênquima renal e outras patologias concomitantes.

Hiperfosfatémia e hipocalcémia

O metabolismo fosfocálcio também se encontra alterado na LRA, ocorrendo hiperfosfatémia e hipocalcémia.

A hiperfosfatémia deve-se a retenção de fosfato e é mais severa em estados particularmente catabólicos ou em LRA
causadas por rabdomiólise, hemólise e síndrome de lise tumoral, por libertação de fosfato intracelular.
A hipocalcémia deve-se, essencialmente, à precipitação do cálcio sérico com o fosfato em excesso, podendo ocorrer
deposição metastática de fosfato de cálcio. Adicionalmente, irregularidades no eixo vitamina D – PTH – FGF-23
também podem contribuir para a hipocalcémia (estes mecanismos tornam-se mais relevantes na doença renal
crónica). A hipocalcemia é usualmente assintomática, mas pode levar a parestesias, cãibras musculares, convulsões e
prolongamento do intervalo QT.

Outras

Podem ocorrer complicações hematológicas, nomeadamente anemia e hemorragia, causadas por eritropoiese
reduzida e disfunção plaquetária, respetivamente.

Adicionalmente, podem ocorrer complicações cardíacas, não só as disritmias causadas por distúrbios eletrolíticos
(hipercaliémia) mas também pericardite e efusão pericárdica.

Está também descrita uma fragilização do sistema imunitário, podendo haver maior predisposição para infeções.

Por fim, dado que a LRA provoca frequentemente um estado hipercatabólico severo, malnutrição é uma complicação
major frequente.

Doença renal crónica (DRC)

A DRC traduz-se por uma perda lenta e gradual do filtrado glomerular, enquanto a LRA está associada a uma alteração
súbita da função glomerular.

História natural da DRC

Fisiopatologia da DRC

A fisiopatologia da DRC envolve 2 principais mecanismos de lesão:

• Mecanismos específicos desencadeantes da etiologia propriamente dita (por exemplo defeitos genéticos
aquando do desenvolvimento renal, deposição de complexos imunes e inflamação associada a certos tipos de
glomerulonefrite, exposição a toxinas (decorrente de doenças renais
intersticiais e/ou tubulares));
• Mecanismos de progressão da doença, envolvendo hiperfiltração e
hipertrofia dos nefrónios funcionantes, consequência da redução da massa
renal, independentemente da etiologia primária. Este mecanismo será
desenvolvido posteriormente.

As respostas à redução do nº de nefrónios são mediadas por hormonas vasoativas,


citocinas e fatores de crescimento. Eventualmente, estas adaptações de curto-prazo
de hipertrofia e hiperfiltração tornam-se mal adaptativas uma vez que o aumento da
pressão no nefrónio predispõe à distorção da arquitetura glomerular, função anormal
dos podócitos e disrupção da barreira de filtração, levando a esclerose e à perda de
mais nefrónios. O aumento da atividade intrarenal do sistema RAA parece contribuir para a hiperfiltração inicial e
também para a hipertrofia e esclerose.

A lesão renal manifesta-se de diversas maneiras, nomeadamente através da diminuição do filtrado glomerular e da
proteinúria.

Relativamente ao processo de filtração glomerular, é importante ter em conta que a barreira de filtração do glomérulo
restringe a passagem de proteínas com determinado peso molecular. A albumina, cujo volume e peso moleculares são
ligeiramente menores do que o próprio poro, não é filtrada devido às suas cargas elétricas negativas. A acrescentar a
este facto, as células endoteliais apresentam um conjunto de “pés extracelulares” - podócitos - que também têm
cargas elétricas negativas, contribuindo para impedir a filtração da albumina. Quando há lesão renal, este processo
está perturbado, culminando no aparecimento de proteínas na urina. Este aparecimento é indicativo de que a
capacidade de reabsorção tubular no TCP (local onde ocorre a endocitose das proteínas e degradação da albumina)
foi ultrapassada e houve uma disfunção endotelial suficientemente significativa para justificar a proteinúria.

As principais manifestações de lesão renal vão ter repercussões na morfologia do rim, ou seja, o rim vai sofrer
alterações na sua forma e tamanho, que são detetáveis através dos métodos de imagem, como a ecografia (principal
método de imagem utilizado para este fim), a tomografia computorizada e a ressonância magnética, conforme a
radiação.

Fatores de risco e estadiamento da DRC

Apesar de, à partida, a maior parte das pessoas nascer com os dois rins a funcionar normalmente, à medida que vamos
envelhecendo, vamos assumindo alguns fatores de riscos para a perda do filtrado glomerular e, consequentemente,
para a DRC:

• Envelhecimento (fisiológico);
• Diabetes;
• Hipertensão;
• Obesidade;
• Dislipidémia;
• Sedentarismo;
• Fármacos nefrotóxicos;
• Lesão Renal Aguda;
• Doenças autoimunes;
• Componente genética

Os fatores de risco estão associados à perda lenta e progressiva (“um a um”) do nº de nefrónios funcionantes e, por
conseguinte, do filtrado glomerular. É, por isso, fundamental na prática clínica, identificar e controlar os fatores de
risco que levam à perda da função renal.

Na história natural da doença, definem-se estadios, de 1 a 5, baseados na TFG. O cálculo destes estadios é feito a partir
da creatinina, com fórmulas (MDRD ou CKD) que nos dão estimativas da TFG. Estas fórmulas foram obtidas a partir de
estudos que correlacionavam a creatinina e as características das pessoas com a TFG. Por exemplo, as pessoas negras
têm mais massa muscular, que se correlaciona com um aumento normal da creatinina sérica e isto tem de ser corrigido
nas fórmulas. De uma forma análoga, o mesmo valor de creatinina para uma mulher e para um homem não implica
TFG iguais, tendo mais uma vez em linha de conta a massa muscular. Um outro fator que influencia a fórmula é a
idade.

Considera-se Insuficiência Renal quando a TFG é inferior a 60 ml/min/1,73m2.


Para além da TFG, outro aspeto importante na lesão renal é a proteinúria. Assim, pode-se, ainda, introduzir a variável
Albumin Excretion Rate (mg/24h). Este parâmetro pode ser ajustado ao valor da creatinina, formando o ACR (Albumin
to Creatinine Ratio), em miligramas por mol ou miligramas por grama. Distinguem-se, assim, 3 estadios diferentes: A1:
<30; A2: 30-300: A3 >300, utilizando mg/g. Isto é um indicador de gravidade de doença para além do filtrado
glomerular. Assim sendo, se existirem, por exemplo, 70 ml de filtrado e 300 miligramas de proteínas, referimo-nos ao
estadio G2A3.

A importância desta classificação prende-se com a


mortalidade global: à medida que diminui o filtrado
glomerular, abaixo dos 60 ml, a mortalidade aumenta,
e é um aumento do risco de morte independente das
outras causas de morte. A mortalidade é sobretudo nas
doenças cardiovasculares, ou seja, AVCs, enfartes do
miocárdio, etc. daí que a doença renal crónica seja
associada a um aumento do risco a partir de
determinada altura de evolução. Desta forma, à medida
que a doença evolui, vamos ter as complicações, ou
seja, o aumento da mortalidade, mas também da
morbilidade.
Os estádios 1 e 2 da DRC não estão normalmente associados a sintomas derivados da diminuição da TFG. Nos estádios
3 e 4, as complicações clínicas e laboratoriais da DRC tornam-se mais evidentes. As complicações incluem anemia e
fadiga, diminuição do apetite com progressiva malnutrição, alteração no cálcio, fósforo, calcitriol, PTH e FGF-23, bem
como alterações no balanço de sódio, potássio, água e do equilíbrio ácido-base. Se o paciente progredir para o estadio
5, há acumulação de toxinas e surge o síndrome urémico.
Etiologia

A causa mais frequente de DRC nos


países ocidentais é a nefropatia
diabética, mais frequentemente
associada a diabetes mellitus tipo II.

Progressão da doença

A partir do momento em que existe


lesão renal, começa a ser mais complicado evitar que o doente passe para a fase seguinte - “↓GFR”. Se a progressão
da doença não for controlada, rapidamente se entra na fase de insuficiência renal (estadio que ocorre a partir de um
dado valor de TFG).

Normalmente, o valor de referência para a TFG é de 100-120mL/min. Este obtém-se dividindo 180L (ultrafiltrado
diário) por 1440 min (minutos diários). O valor de TFG para o qual diagnosticamos uma insuficiência renal é TFG ≤ 60
mL/min. Com a evolução, esta perda pode levar a uma fase de falência completa do rim. Neste estadio terminal, a
sobrevivência depende da diálise ou da transplantação renal. Dada a epidemiologia pouco favorável de DRC em
Portugal, cabe ao médico evitar que se chegue a esta fase terminal, pelo que é fundamental intervir ao longo da
história natural da doença, através da promoção de alterações do estilo de vida e recurso a fármacos.
Diabetes e DRC

Albuminúria

Os doentes diabéticos, a partir de uma certa altura (cerca de 5 anos se não forem bem controlados), vão manifestar
repercussões microvasculares nos vários órgãos-alvo desta doença, nomeadamente, na retina, no sistema nervoso e
no rim.

A nefropatia diabética manifesta-se frequentemente


através do aparecimento de proteínas (maioritariamente
albumina) na urina. Consoante a quantidade de albumina
excretada, assim classificamos em microalbuminúria e
macroalbuminúria. Com o tempo, o nível de albuminúria
vai aumentando e o filtrado glomerular vai diminuindo
progressivamente.

Em termos de progressão natural da doença, a excreção de


albumina na urina apresenta a seguinte classificação:

• < 30 mg/L - Normoalbuminúria;


• 30 mg/L - 300 mg/L - Microalbuminúria;
• > 300 mg/L - Macroalbuninúria;
• > 3500 mg/L - Proteinúria Nefrótica.

Por vezes, associados à diabetes, surgem no interstício glomerular depósitos de proteínas que clinicamente se
manifestam causando proteinúria. Os anatomopatologistas designam esta lesão por Glomerulopatia de Kimmelstiel
Wilson. Esta lesão pode resultar da evolução da nefropatia diabética. Portanto, a lesão glomerular intersticial vai levar
a uma perda de função e esta perda de função vai fazendo com que haja evolução ao longo da história da doença
natural.

Outros fatores de risco de lesão renal, para além da diabetes, são:

• Glomerulonefrite;
• Uropatias;
• Necrose Tubular Iatrogénica;
• Doenças hereditárias;
• Hipertensão arterial;
• Fármacos analgésicos e AINEs.

Hiperplasia compensatória do glomérulo

A destruição individual dos nefrónios não ocorre em todos simultaneamente. Gradualmente, os nefrónios que não
foram afetados vão sofrer um processo de hiperplasia compensatória e, incongruentemente, será a hipertrofia que, a
longo prazo, levará à destruição do próprio rim.

O que é que se verifica nesta hipertrofia compensadora ao longo do próprio glomérulo?

Num glomérulo normal, um podócito envolve várias ansas capilares. No entanto, à medida que vai existindo a tal
hipertrofia compensatória, existe também uma hipertrofia do podócito que acaba por ceder, levando à própria lesão
de toda uma estrutura glomerular. Assim sendo, vai existir um aumento de passagem de proteínas, como a albumina,
para o espaço urinário. Em adição, a perda de nefrónios funcionantes vai levar a um aumento do fluxo glomerular,
perda da densidade das células epiteliais, “fusão” dos podócitos e colapso dos capilares. Isto vai acabar por resultar
em colapso e destruição de partes do glomérulo. Este processo de autodestruição dos glomérulos é muito lento e,
portanto, passa completamente despercebido pelas pessoas que, na maioria dos casos, são assintomáticas.

Redução do número de nefrónios ⟶ Aumento de perfusão dos


resistentes ⟶ Hipertrofia compensadora ⟶ Esclerose do glomérulo
“compensatório” ⟶ Perda deste nefrónio [ciclo vicioso]

Deste modo, a DRC vai progredindo, e para além das alterações do


filtrado glomerular e da frequência proteínas, pode ter alterações
morfológicas, e um dos aspetos patológicos mais importantes é a
redução do tamanho por destruição progressiva do parênquima do rim
e posterior fibrose renal. A diminuição do tamanho do rim pode ser documentada com exames imagiológicos,
nomeadamente a ecografia renal na qual a perda do tamanho e o aumento da fibrose se traduz por aumento da
ecogenicidade.

Teorias da progressão da doença renal

• Teoria do nefrónio intacto


• Teoria do preço biológico da compensação (trade-off theory): afirma que o facto de existirem muitos nefrónios
que vão compensar os outros não tem só benefícios, tem de se pagar um preço. Isto tem uma vantagem, que
é o facto de doença ser praticamente assintomática durante algum tempo. A creatinina até se mantém mais
ou menos constante enquanto a doença progride, só numa fase mais terminal é que ela sobe e se manifestam
sintomas, associados à perda de função glomerular. Esta diminuição do filtrado glomerular leva a uma
retenção que começa por ser mínima de solutos que são hidrossolúveis e que deviam ser eliminados pelo rim.

É necessário ter em atenção que a retenção de solutos não é equiparável entre eles. De facto, há mecanismos de
adaptação que fazem com que certos solutos sejam muito bem adaptados à perda de função renal. Assim sendo,
alguns compostos, como os fosfatos e os uratos, não aumentam a fração de excreção urinária até fases já muito
avançadas da doença. O marcador ideal seria aquela que à medida que baixava a TFG existiria um aumento sérico do
soluto, no entanto este não existe. Efetivamente, mesmo os níveis plasmáticos de creatinina (tipicamente o marcador
da função renal) não se elevam nas primeiras fases da doença, decorrente da secreção ativa desta.

Manifestações clínicas da DRC

1. Equilíbrio hidroeletrolítico e ácido-base

Homeostasia da água e Na+: a maioria dos doentes com DRC estável tem um aumento ligeiro dos níveis de sódio e
água, impercetível ao exame objetivo. Em alguns casos de glomerulonefrites, se a ingestão de sódio for superior à sua
excreção urinária, existirá um aumento do volume do líquido extracelular, o que condiciona o desenvolvimento de
hipertensão arterial que, por sua vez, leva a uma diminuição do número de nefrónios por lesão renal. Desde que a
ingestão de água não exceda a capacidade de clearance da água, a expansão do volume extracelular é isotónica e o
paciente terá uma concentração plasmática de sódio normal – a hiponatremia não é frequente na DRC, mas quando
presente geralmente corresponde a restrição de água. Por outro lado, quando há uma causa extrarenal que leve à
perda de água e sódio (ex: perda no TGI ou terapia diurética), pode ocorrer diminuição do volume extracelular devido
à incapacidade do rim em reabsorver adequadamente o sódio filtrado.

Homeostasia do K+: na DRC, a diminuição da TFG não é necessariamente acompanhada por uma diminuição da
excreção urinária de potássio, uma vez que, apesar da filtração estar diminuída, esta vai ser compensada pela secreção
aldosterona-dependente ao nível do túbulo distal. Devido a este mecanismo, numa situação de hipercaliémia,
despoletada quer por diminuição da TFG para níveis inferiores a 15-20 mL/min, ou por aumento do intake de potássio
na dieta, ou catabolismo proteico, hemólise, hemorragia, inibidores do SRAA e diuréticos poupadores de potássio…
vai existir uma tentativa de compensação por parte da aldosterona, a fim de secretar mais potássio e absorver mais
sódio. Eventualmente isto vai culminar num hiperaldosteronismo compensatório.

Acidose metabólica

A acidose metabólica é um distúrbio comum na DRC em estadios avançados. A maioria dos pacientes ainda é capaz de
acidificar a urina, no entanto, produz menos amónia e, por esse motivo, não é capaz de excretar a quantidade normal
de protões em combinação com este tampão urinário. Ainda assim, nos estádios iniciais da DRC (1 a 3) pode-se
desenvolver uma acidose metabólica hiperclorémica, ou seja, sem anion-gap. Nestes casos, o que se verifica é uma
diminuição da produção de amónia, perdendo-se também o seu efeito de tampão da urina. Os níveis de amónia
encontram-se ainda mais deprimidos em casos em que existe hipercaliémia. Quando existe uma deterioração mais
acentuada na função renal, o que se verifica é que a excreção de ácido se encontra ainda mais limitada, levando à sua
retenção. Passa-se, então, a ter uma acidose metabólica com aumento do anion-gap.

2. Mecanismo fosfocálcio

A diminuição da TFG (< 60 mL/min) condiciona uma redução da excreção de fosfato e, consequentemente, a sua
retenção. Por sua vez, o fosfato “retido” estimula a secreção de FGF-23, pelos osteócitos, e de PTH (estimulando o
aumento do tecido glandular das paratiroideias). Níveis reduzidos de cálcio ionizado, resultante da supressão do
calcitriol pelo FGF-23 e pela disfunção renal, bem como a retenção de fosfato, também levam à estimulação da
produção de PTH. Estes baixos níveis de calcitriol contribuem para o hiperparatiroidismo, não só porque levam à
hipocalcémia, mas também por efeito direto na transcrição do gene da PTH. Neste caso, trata-se de
hiperparatiroidismo secundário à disfunção renal. O hiperparatiroidismo estimula o turnover ósseo e leva a osteitis
fibrosa cystica/tumores castanhos. As manifestações clínicas do hiperparatiroidismo severo incluem dor e fragilidade
óssea, tumores castanhos, síndrome de compressão e resistência à eritropietina em parte relacionada com a fibrose
da medula óssea. Para além disso, a PTH é considerada uma toxina urémica.

Estudos demonstram correlação entre hiperfosfatémia e aumento da mortalidade por causas cardiovasculares em
doentes com DRC de estadio 5, ou até anteriores. O mecanismo pelo qual isto acontece ainda não foi bem
estabelecido. No entanto, há uma possível correlação entre os doentes com DRC e uma maior incidência de
calcificação, não só da túnica média das artérias coronárias, mas também das válvulas cardíacas.

3. Anormalidades cardiovasculares

As doenças cardiovasculares são a principal causa de mortalidade e morbilidade na DRC, em qualquer estadio. A
maioria das pessoas com DRC morre de causa cardiovascular antes de alcançar o estadio 5 da mesma.
Doença vascular isquémica:

A existência de DRC, independentemente do estadio, é fator de risco para doenças cardiovasculares de origem
isquémica. Estas ocorrem, maioritariamente, devido a:

• Hipertensão;
• Hipervolémia;
• Dislipidemia;
• Hiperatividade simpática;
• Hiperhomocisteinémia;

Outros fatores de risco, menos frequentes, incluem:

• Anemia;
• Hiperfosfatémia;
• Hiperparatiroidismo;
• ↑ FGF-23;
• Apneia do sono;
• Inflamação generalizada.

Entre as doenças cardiovasculares supramencionadas, destacam-se a doença coronária, o AVC e as doenças


vasculares periféricas obstrutivas. Os níveis de troponina cardíaca estão, frequentemente, aumentados nos doentes
com DRC, mesmo que tal não resulte diretamente da isquémia do miocárdio. Assim sendo, é necessário realizar várias
medições de modo a fazer o diagnóstico diferencial de EAM. Por um lado, quando as concentrações, em diferentes
medições, não se alteram, o mais provável é que não exista isquémia do miocárdio. Por sua vez, um aumento das
concentrações de troponina entre diferentes medições é sugestivo de patologia cardíaca isquémica.

Insuficiência cardíaca:

A disfunção cardíaca secundária à isquémia do miocárdio, hipertrofia do ventrículo esquerdo e cardiomiopatia severa,
associadas à retenção de sal e água - típicas da DRC - frequentemente resultam em insuficiência cardíaca ou até edema
pulmonar.

Hipertensão e Hipertrofia Ventricular Esquerda

A hipertensão é uma das complicações mais comuns da DRC. Normalmente inicia-se nos estadios mais precoces da
DRC e está associado a mau prognóstico, incluindo desenvolvimento de hipertrofia ventricular e perda acelerada da
função renal. Muitos estudos mostraram que existe relação entre os níveis de pressão arterial e a progressão da
doença renal de origem diabética e não-diabética. A hipertrofia do ventrículo esquerdo encontra-se entre os fatores
com maior risco de morbilidade e mortalidade cardiovasculares associados à DRC. Isto está maioritariamente
relacionado com hipertensão prolongada e sobrecarga do volume extracelular. Para além disso, tanto a anemia como
a colocação de uma fístula arteriovenosa para hemodiálise podem gerar um aumento do débito cardíaco, levando à
Insuficiência Cardíaca.

4. Anormalidades hematológicas

Anemia

A anemia normocítica e normocrómica é frequentemente observada em doentes com DRC no estadio 3, e quase
sempre em doentes no estadio 4. A principal causa de anemia nestes doentes é a produção insuficiente de
eritropoietina (EPO). Entre outros fatores incluem-se a diminuição do tempo de sobrevida dos eritrócitos, diátese
hemorrágica, deficiência de ferro, …

Hemostasia anormal

Os doentes nos estadios mais avançados da DRC podem apresentar um aumento do tempo de coagulação, diminuição
do fator III plaquetário, adesão e agregação plaquetárias anormais e disfunção na conversão de protrombina em
trombina. Clinicamente, este estado de hemostasia manifesta-se através de hemorragias em diversos locais.
5. Anormalidades neuromusculares

As neuropatias do SN Central, Periférico e Autónomo, bem como anomalias na estrutura e função musculares estão
frequentemente associadas à DRC. Geralmente, a neuropatia periférica torna-se clinicamente evidente a partir do
estado 4 da DRC. Por sua vez, a doença neuromuscular urémica apresenta manifestações clínicas subtis a partir do
estadio 3. Entre as manifestações clínicas da neuropatia do SN Central destacam-se as perturbações de memória, da
concentração e do sono e a irritabilidade neuromuscular (através de soluços, cãibras e fasciculações). Num estadio
avançado da doença não tratada, podem ainda observar-se asterixis, mioclonia, convulsões e coma.

6. Anormalidades gastrointestinais

O fetor urémico - hálito com odor a urina - resulta da conversão de ureia em amónia na saliva e está frequentemente
associado a um sabor metálico desagradável (disgeusia). Pode-se ainda observar, em doentes urémicos, gastrite,
doença péptica e ulcerações na mucosa a qualquer nível do trato gastrointestinal. Consequentemente surgem
manifestações como dor abdominal, anorexia, náuseas, vómitos e hemorragias gastrointestinais.

7. Distúrbios endócrinos

Na DRC, o metabolismo da glicose vai estar comprometido, refletindo-se numa diminuição da capacidade de reduzir
os níveis séricos de glicose após refeições. Assim sendo, num estado pós prandial, após um mesmo intervalo de tempo,
um indivíduo com DRC vai apresentar níveis de glicose mais elevados no sangue que uma pessoa sem esta patologia.
No entanto, os níveis de glicose em jejum estão normais ou ligeiramente elevados. Adicionalmente, uma vez que os
rins participam na excreção de insulina sérica, os níveis plasmáticos da mesma vão estar ligeira ou moderadamente
elevados, quer num estado de jejum ou pós-prandial. Devido à diminuição da excreção renal de insulina, os doentes
medicados com insulina poderão ter de ser sujeitos a ajustes de dose.

Relativamente às hormonas esteróides (femininas - estrogénios; masculinas - testosterona) ambas estarão diminuídas,
o que terá repercussões clínicas associadas.

8. Anormalidades dermatológicas

São prevalentes na DRC, manifestando-se sobretudo através de prurido. Doentes sujeitos a diálise têm,
frequentemente, melhorias dos sintomas dermatológicos.

Na DRC avançada, mesmo que o doente esteja em diálise, este pode apresentar-se com hiperpigmentação, resultado
da deposição de metabolitos pigmentados - urocromos. A DRC está, também, associada a uma condição dermatológica
única denominada dermopatia fibrosante nefrogénica.
SEMINÁRIO HTA

Caso clínico
Temos um homem de 50 anos, obeso, com um volume abdominal também aumentado, fumador, supostamente
sedentário e que é escriturário, o que não lhe confere características de sedentário, mas é.

Esta noite chegou ao hospital com uma situação de cefaleias intensas, e foi internado. Tem uma história anterior, que
começou aos 38 anos, se queixas, numa consulta médica, apresentava uma pressão arterial de 155/95mmHg.

A pressão arterial não é normal, mas isso não faz deste doente um hipertenso. Precisamos de saber qual é o valor a
partir do qual existe HTA (acima de 140 de sistólica e/ou acima de 90 de diastólica), mas para o estabelecimento do
diagnóstico de HTA são necessários, pelo menos, duas medições no mesmo momento, separadas por alguns minutos,
e em, pelo menos, duas visitas ou dois encontros com o profissional de saúde. Só quando isto é estabelecido, duas
medições, duas vezes separadas no tempo, é que se pode dizer que há HTA e assim estabelecer o diagnóstico, para
este homem de 38 anos, na altura.
Foi pedido pelo seu médico assistente na altura, no âmbito da medicina do trabalho, uma medição em ambulatório
da sua PA, através do MAPA, que é um exame que se faz com monitorizações da PA num dia normal da vida do doente,
com medições da PA de 15 em 15 ou de 30 em 30 minutos, ao longo de 24 horas. Os resultados foram estes: HTA
estabelecida ao longo das 24 horas, e sem alteração significativa da PA durante o sono.

O doente já era tido como hipertenso antes de fazer este exame ou não? Sim, o doente já era hipertenso, mas, se
houvesse suspeita de HTA da bata branca ou de PA que não é igual nas 24 horas, então, nessa ocasião, é necessário
fazer um MAPA, para estabelecer o diagnóstico do padrão de HTA. E, de facto, quando nós olhamos para as indicações
deste exame, fazemos por suspeita de HTA da bata branca, ou, no sentido oposto, por suspeita de HTA que não se
documenta na consulta (que ocorre nos doentes que têm, aparentemente, lesão subclínica de algum órgão, mas que
nunca conseguimos detetar valores de PA elevados) e, nestas situações, é necessário a realização de um MAPA. Neste
doente não havia dados que fossem suscetíveis de pensarmos que se tratava de uma HTA de bata branca, pois o
doente tinha outros fatores de risco (fumador, obeso, sedentário, etc) e, por outro lado, nunca nos tinha dito que
tinha feito uma medição ocasional fora do gabinete de consulta em que a PA estivesse normal. E, por isso, este exame,
em particular para este doente, não era necessário.

Mas, ainda assim, há um dado importante que aqui diz, que é o facto de ele não ter uma diminuição significativa da
PA durante o sono.

• Os valores considerados fisiologicamente normais consistem numa diminuição da PA durante o sono, como
era espetável pela sua variação circadiana.
• No padrão nondipping, que neste caso, corresponde a PAS medidas no MAPA, mostra que as PAS não só são
elevadas em relação ao normal, como não têm esta diminuição durante a noite.

A existência de um padrão nondipping é tradutor de maior mortalidade cardiovascular e num maior evento
cardiovascular que conduz, ou não, à morte.

Um estudo recente demosntrou um padrão nondipping VS um padrão dipping, e, no padrão dipping, a mortalidade
subiu 33 vezes face ao controlo, assim como a mortalidade cardiovascular.
E, se olharmos para a metanálise dos eventos cardiovasculares que conduzem ou não conduzem à morte, também
verificamos que a súmula estatística dos vários estudos publicados e, alguns portugueses, é a favor de pior prognóstico
quando não há padrão dipping.

(Padrão non-dipping = padrão de PA caracterizado pela não diminuição da mesma durante as horas em que a pessoa
está a dormir).

Depois de estabelecido o diagnóstico de HTA damos-lhe conselhos sobre estilo de vida, alimentação, exercício físico e
tratamos o doente (farmacologicamente). Mas atenção, é necessário estabelecer a etiopatogénese da PA. É
necessário investigar a presença de lesão em algum órgão, para sabermos o quão grave é esta PA elevada. Temos de
definir o risco cardiovascular total, uma vez que vai ser importante tratar, não só a HTA, mas também os outros
problemas e fatores de risco que vão ser concomitantes, nestes doentes.

Para estabelecer a causa, é necessário fazer uma história clínica, um exame objetivo e pedir exames complementares
de diagnóstico.

1. Eletrocardiograma (a duas derivações), para avaliar as consequências da HTA*. Já estamos a entrar um


bocadinho na avaliação da lesão consequente, na investigação da função normal, mas tudo bem, é preciso
pedir.
2. O Ionograma, a função renal (há causas de HTA que são renovasculares)
3. Colesterol, embora este também
seja uma consequência da HTA.
Não há nenhuma causa de
hipercolesterolémia que dê, por si,
uma HTA. Mas avalia a função
cardiovascular global.
4. Ecocardiograma.
5. Análises laboratoriais (ver
imagem).
6. Urina II. Não está na imagem, mas
é importante porque a avaliação
renal precisa de ter
obrigatoriamente ter uma urina II
com seguimento. Sem ela não há
uma avaliação renovascular
completa.
7. Albuminúria.
8. Glicémia.

O doente fez uma ecografia renal, uma TC da suprarrenais e, dada a idade, que aparece no caso clínico, fez uma
determinação da atividade de renina plasmática e um renograma.

Saber os valores da renina num doente com HTA, modifica a terapêutica? Temos alguma guideline
internacional que diga: se renina elevada é este o fármaco, se não elevada é este, etc? Não. Não há nenhuma
evidência que na HTA essencial, a variação dos valores da renina plasmática influencie a decisão terapêutica. Se esta
análise for necessária, é por outro motivo.

É expectável uma aterosclerose aos 38 anos? Não. Apenas a partir dos 50.

MAS pode ser outra causa de estenose.

Quantos tipos de HTA existem?

• Essencial, em 90% dos doentes


• Secundária, em 10% dos doentes.
O objetivo desta investigação da renina plasmática é, considerando que o doente tem menos de 40 anos, fazer o
diagnóstico diferencial com as causas de HTA secundárias. Isto porque sabemos que a maior parte delas são mais
frequentes em idades mais jovens.

Algumas causas de HTA secundária:

1. Displasia fibromuscular das artérias renais (estenose não provocada por aterosclerose)
2. Situações de hiperaldosteronismo por tumor secretório das suprarrenais, como o feocromocitoma.
3. Apneia do sono (é uma situação muito particular, que normalmente relaciona-se riscos cardiovasculares
clássicos, e tem sido apresentada/documentada de forma controversa, mas pode ser uma causa).
4. Síndrome de Cushing

5. Corartação da aorta. Doenças muito frequentes.

6. Doença renal poliquística.

Os doentes têm de ser investigados para causas de HTA secundária quando:

1. A idade é inferior a 40 anos.


2. Quando há suspeição.
3. Quando existe suspeição, com base na história, no exame objetivo ou nos exames complementares de
1ª linha, de causas de HTA secundária.
• História familiar.
• Doença renal ou outra doença.
• Sintomas sugestivos de doença tiroideia.
• Sopros auscultados no abdómen são sugestivos de displasia fibromuscular das artérias renais.
Os exames do doente foram normais nesta fase, pelo que o diagnóstico classificativo da HTA deste doente é HTA
Essencial.

Isto significa que não tem causa? Não, é claro que tem uma causa. Mas então porque é que é essencial? Essencial, em
medicina, costuma ser sinónimo de idiopático, ou seja, sem causa documentada. É essencial porque não tem apenas
uma causa, mas um conjunto de fatores que a causa, isto é, é uma HTA multifatorial.

Os fatores que contribuem para o desenvolvimento da HTA são fatores genéticos (quase metade da etiopatogénese
da HTA essencial tem fatores genéticos associados, nomeadamente polimorfismos, que não são doenças com
manifestações clínicas), fatores relacionados com a hemodinâmica (como a diminuição da excreção de sódio a nível
renal), com o sistema nervoso simpático, com o estilo de vida, dentre outros.

Como é que se explica o aparecimento de HTA Essencial? Classicamente, a explicação dependia de uma situação
designada curva de pressão de diurese, que é um conceito que tem sido abandonado há alguns anos.

Aquilo que se pensava sobre os fatores iniciadores da HTA é que indivíduos geneticamente predispostos a
polimorfismos em múltiplas enzimas e proteínas envolvidas na função neuro-renal, na forma como o rim responde à
dieta, etc, e, sobretudo, na função endotelial, definem dois tipos de suscetibilidade:

1. Os indivíduos que classicamente eram designados de sal-resistentes.

2. Os indivíduos que classicamente eram designados de sal-dependentes.

O que é que isto quer dizer? Quer dizer que se pensou durante muito tempo (que esta teoria já é dos anos 80), que,
quando nós aumentamos a nossa ingestão de sal na alimentação, de 1 vez o normal para 6 vezes o normal
(concentrem-se na linha do meio da imagem abaixo, que é o equilíbrio), aquilo que se verifica é que a PA passa de 100
para sensivelmente 140.

E isto entende-se porque o sódio é uma carga osmoticamente ativa, que vai aumentar o volume intravascular e
consequentemente o retorno venoso e o volume sistólico e de ejeção, aumentando o débito cardíaco e, levando, em
última instância, ao aumento da HTA.

Depois, pode existir dois tipos de resposta:

1. Ou não a capacidade adaptativa deste indivíduo e a PA mantém-se elevada, o que acontece nos indivíduos
sal-sensível.

2. Ou há um restabelecimento do equilíbrio, que depende do aumento da excreção renal do sódio sofrendo


um desvio à esquerda na curva da natriurese. Nestes, restabelece-se, mesmo consumindo mais sódio, o valor
da PA inicial, porque mais sódio é excretado. Isto acontece nos indivíduos sal-resistentes.

Isto significa que, nos indivíduos sal-resistentes, o balanço de sódio no organismo vai tender a ser neutro, pois
aumentou tanto a sua ingestão como a sua excreção.

Nos outros, aumentou a ingestão, mas não foi possível aumentar a excreção, e o seu balanço foi superior ao normal.

O problema foi que, quando se fez uma investigação, que eticamente até foi um bocadinho discutível, num curto
período curto de tempo (cerca de uma semana), verificou-se que o balanço de sódio, quando se aumentou a ingestão
de sódio na alimentação, no dia 0, foi igual nos dois grupos.

Isto significa que, apesar de se verificar esta diferença muito significativa da PA entre sal-resistentes e os sal-sensível,
não é o balanço de sódio que fica no organismo, que está a contribuir para esta diferença de pressão.

Portanto, tem de haver outro mecanismo que não seja, pelo menos isoladamente, o aumento da natriurese, que
justifique estas diferenças de PA.

A diferença está na resistência vascular periférica. Nos doentes sal-sensível, não há uma diminuição compensatória
da RVP, enquanto que nos sal-resistentes, em resposta ao aumento do volume intravascular, por aumento da ingestão
de sódio, verifica-se uma diminuição da RVP.
E isto é aquilo que restabelece o equilíbrio, e não só o aumento da excreção de sódio a nível renal.

Isto leva-nos a uma coisa que nos permite integrar rapidamente a fisiopatologia da HTA, no polo fisiopatológico dos
fatores genéticos e o sal, um segundo, que é o síndrome metabólico da disfunção endotelial.

E porque é que há indivíduos que conseguem responder ao aumento da ingestão de sal, tendo a resposta fisiológica
compensatória da diminuição da RVP, e outros que não? E a resposta está na disfunção endotelial.

Há indivíduos que têm disfunção endotelial, e, como tal, não conseguem fazer uma utilização vasodilatadora do NO e,
como tal, ficam com vasoconstrição e respondem com HTA, que são os sal-sensível. E há outros que, não tendo
disfunção endotelial, têm valores normais de utilização vasodilatadora do NO e, por isso, conseguem reduzir a RVP de
forma compensatória e restabelecer o equilíbrio.

A pergunta que agora vamos ter de fazer é: porque é que há indivíduos com e outros sem disfunção endotelial? E a
resposta está no síndrome metabólico. Os indivíduos com fatores de risco, nomeadamente, obesidade, sedentarismo,
erros alimentares e tabagismo, são aqueles que, instituem um estado pró-inflamatório, pró-isquémico, pró-
trombótico, que, em todo o organismo, gera disfunção endotelial. Estes são aqueles que não podem diminuir
compensatoriamente a RVP e, como tal, apresentam HTA em resposta a fatores genéticos e alterações alimentares.

Despois destes dois polos, fatores genéticos e sal, e síndrome metabólico e disfunção endotelial, estarem instalados,
a resposta renal vai ser cada vez pior. Isto é, se há fatores pró-inflamatórios, pró-trombóticos, pró-isquémicos, a vaso-
circulação renal entra também neste mecanismo de alterações da microcirculação, trombose, hiperfiltração
glomerular, hipertensão glomerular e iniciam-se mecanismos de perpetuação da retenção de sódio, da perpetuação
da HTA e, mais importante aqui, inicia-se a via fisiopatológica da doença renal crónica e esta vai ter as piores
consequências, para além de AVC e da HTA.

A etiopatogénese da HTA está estabelecida. Quanto à presença de lesão no órgão-alvo, os exames que terão de ser
feitos são alguns dos que já fizemos anteriormente, nomeadamente ECG, sempre que houver sugestão na história,
não esquecer a sugestão de isquemia miocárdica, e a avaliação renal.

Finalmente, o 3º ponto para a


avaliação do doente hipertenso, é o
estabelecimento do risco
cardiovascular global. Na União
Europeia este risco é estabelecido por
estas tabelas da SCORE, que
estabelecem o conjunto de todos os
fatores de risco cardiovascular pelo
sexo, pela existência ou não de hábitos
tabágicos, pela idade e pelos valores
sistólicos e diastólicos da PA.

O estabelecimento deste score é


importante não só porque nos obriga
a saber quais são os restantes fatores
de risco cardiovascular do doente,
mas especialmente porque nós
conseguimos fazer uma enorme
discriminação da mortalidade cardiovascular.

Dependendo do score, isto é, para além de sabermos se o doente tem ou não tem lesão de órgão alvo, sabemos que
isso compromete um maior risco cardiovascular. É possível com o score verificar que se considerarmos a presença de
lesões órgão alvo num score inferior a 5 ou num score superior a 5 têm um risco cardiovascular bastante diferente e
independentemente das lesões de órgãos alvo serem as mesmas nos dois grupos. Portanto, o estabelecimento do
score é importante porque é preditor do fator cardiovascular e porque nos ajuda a estabelecer os restantes fatores
de risco cardiovasculares do doente.
O doente explica a informação de que tinha um pai que tinha falecido aos 60 anos com um enfarte do miocárdio. É
um fator de risco? Não. O fator de risco para a descendência é doença cardiovascular precoce. Significa doença
cardiovascular antes dos 55 anos para o sexo masculino. O pai tinha 60 anos. Se o pai tivesse morrido com 40 anos
com enfarte agudo do miocárdio, era fator de risco cardiovascular para a descendência. Mas não é o caso. Portanto,
o fator de risco familiar para a doença cardiovascular é a existência de doença cardiovascular precoce que se define
com evento cardiovascular antes dos 55 anos no sexo masculino e antes dos 65 anos no sexo feminino. Estas idades
são para os familiares, não para o próprio doente.

Portanto, este senhor, o Manuel, tem uma história de HTA que começa aos 38 anos e que vai até aos 50. Há a
necessidade de identificar a causa da hipertensão, no fundo identificar situações que nós possamos tratar, porque há
sempre uma causa (multifatorial neste caso). No caso do senhor não foi indicada nenhuma patologia e, como era
fumador, obeso, tinha uma vida sedentária e tinha a dieta com muito sal, o médico prescreveu as seguintes
recomendações para reduzir a pressão arterial ou para reduzir o risco cardiovascular:

Estas são as recomendações da DGS, que são as mesmas que as guidelines europeias e americanas.

Quanto ao exercício, há estudos que mostram que deve ser feito num maior período (45 min) e com uma intensidade
à volta dos 50% considerando o volume de oxigenação, pois é onde se obtém maior redução de pressão arterial.
Estudos mostram que se houver um tempo maior, mais prolongado de exercício físico com maior carga em termos de
exercício, não é acompanhado de uma continuada redução da pressão arterial.
Base biológica para explicar porque é que há redução da PA com o exercício físico:

Relativamente ao perímetro da cintura (população portuguesa):

• Para o homem é < 94 cm.


• Para a mulher é < 80 cm.

Em relação ao peso, há estudos que demonstram que a sua redução é acompanhada da redução da pressão arterial.

Relativamente ao consumo de sal, não deve ser superior a 5,8 gramas por dia (que é uma colher de chá rasa por dia),
o que corresponde a 2,3 gramas diárias de Na.

Quanto à dieta: foi feito um estudo (chamado DASH) em que havia um grupo controlo, um grupo com uma dieta que
foi feita com vegetais e um com dieta DASH.

DASH - é uma dieta que tem uma


diminuição da ingestão de gorduras, tem
mais cálcio, aproxima-se muito da dieta
mediterrânica.

A dieta com vegetais é mais rica em


potássio e há então uma redução da
pressão arterial e a dieta DASH é
acompanhada com maior redução ainda
da pressão arterial. LOGO → seguir a dieta
DASH, é o que vem nas recomendações.

O que é que a dieta DASH consegue juntar


com a restrição de sal? Também foi
estudado.
Populações em que se tem restrição de sal alta com 9 gramas por dia versus 3 gramas por dia, quando se junta as duas
situações, a dieta DASH com o control, vejam como desce a pressão arterial muito mais. Juntar a dieta DASH e a
restrição de sódio é o que reduz mais a pressão arterial.

E o café? É um assunto muito debatido, há muitos trabalhos sobre o café. Ao fim de algumas horas após a ingestão de
café há um aumento da pressão arterial. Mas atenção, em indivíduos hipertensos, a ingestão de cafeína produz um
aumento da pressão arterial por cerca de 3 horas. Contudo, a evidência não suporta a associação entre o uso
continuado de cafeína e o aumento da pressão e o aumento do risco cardiovascular em doentes hipertensos. Há
uma tendência para os médicos serem restritivos, proibirem tudo, neste caso proibirem o café, cujos dados científicos
não fazem sentido. De acordo com estudos, não há problema em tomar um café por dia, duas, três vezes. A cafeína
numa toma exagerada está fora de questão, não faz bem.

Agora, sobre o ponto de vista de restrição em relação a um doente que apenas usufrui do gosto pelo café, não tirem
ao doente aquilo que lhe dá prazer.
Os picos do café podem ser lesivos? Não, os picos não são suficientemente elevados. A pressão arterial não é um valor
sempre 12/8. Tudo faz alterar a pressão arterial, como dar a aula e fazer exercício. O que interessa saber é onde estão
as médias. Não há nenhuma prova que diga que o café tomado em doses moderadas faça mal.

Portanto, qual é a primeira coisa que temos de fazer ao doente quando tem hipertensão? Alterações do estilo de vida.
Estas alterações não têm efeitos adversos, custam é muito porque as pessoas têm hábitos.

Os fármacos, por outro lado, normalmente dão efeitos adversos. Mas o que devemos fazer é uma terapêutica que
tenha o mínimo de efeitos adversos.

Ora, no nosso doente foi prescrita uma nifedipina de ação prolongada. Alguém sabe o que é uma nifedipina? É uma
dihidropiridina e é um bloqueador dos canais de cálcio. O aqui se pergunta é o seguinte. Quando se dá um fármaco,
porque é que não damos dois? Ou porque é que não damos três? Porque não damos todos?

Há quem defenda que dar dois aumenta a possibilidade de tratarmos. Mas assim mais efeitos adversos (hipertensores
não competem entre si atenção), mais gastos, maior confusão para o doente por ter de tomar mais fármacos. E se
estiver tudo no mesmo comprimido? Para evitar falta de adesão à terapêutica por ser mais do que uma substância
podemos pôr tudo no mesmo comprimido. Mas assim temos um problema, que é se depois quisermos ajustar a
terapêutica, é difícil ajustar, porque tem duas substâncias. Se quiser aumentar a A e diminuir a B, não vai dar.

Na literatura existe que quando damos um medicamento, um terço dos doentes vai responder à terapêutica.
Quando damos 2, 45% vai responder à terapêutica. E com 3, 78%. Quanto mais medicamentos dermos, mais redução
da pressão arterial dentro população existe.

Vocês não vão querer ser tratados por três medicamentos quando um era eficaz. Um medicamento pode tratar entre
25% a um terço da população.

Então, quais são as recomendações das guidelines europeias? Depende da situação de administrarmos um fármaco,
depende da hipertensão que temos, depende do risco cardiovascular. Começar por um agente ou dois na combinação
de dois, conforme a situação. E depois quando não há resposta com um fármaco, ou aumentamos a dose desse
fármaco ou damos outro que seja sinérgico, que potencie a ação do outro. E segue-se sempre esta ideia até que se
atinja a dose máxima dos dois fármacos ou adiciona-se outro fármaco que atue sinergicamente. Portanto, o racional
de utilizar outro fármaco é através deste sinergismo de ação. Por exemplo, juntar dois diuréticos que atuem no
mesmo sítio não faz sentido, mas juntar um bloqueador de cálcio com um diurético já pode fazer sentido porque
atuam em sítios diferentes.

Bem, neste doente foi escolhido um bloqueador do canal de cálcio. Bem ou mal? As guidelines europeias colocam os
diuréticos, os beta-bloqueantes, os bloqueadores de canais de cálcio, os IECA, os ARA, todos podem ser em
monoterapia ou associados. Em termos de guidelines, qualquer destes fármacos pode ser usado, tendo em conta que
temos de adaptar os fármacos à situação do doente. Todos estes são considerados de 1ª linha.
Aqui percebe-se quando se deve tomar um ou dois fármacos. Numa monoterapia, quando se opta por um diurético,
deve ser dada preferência à indapamida ou à clortalidona porque têm um tempo de semivida maior, mas
particularmente porque têm maior eficácia no controlo da doença cardiovascular.

Os ingleses e os americanos discordam que os beta-bloqueantes sejam fármacos de 1ªlinha, porque os beta-
bloqueantes, quando comparados com outros fármacos, eles em relação ao AVC, não reduzem assim tanto o risco
como os outros → essa redução, em relação aos outros, é de 18%. Para além disso, os beta bloqueantes também são
usados nas rações dos animais. Têm tendência a provocar insulino resistência, dislipidémia, aumento de peso, e isto
pode contribuir para o aumento do risco cardiovascular. Não está tão demonstrado quanto isso que isto aconteça. A
utilização de beta bloqueantes na ração das vacas é para aumentar o peso, mas isto também acontece no homem.

Os IECA são uma classe homogénea, os ARA são uma classe homogénea, não diferem entre si. Mas os beta-
bloqueantes diferem entre si. E muitos dos estudos foram feitos sempre com o atenolol, e extrapola-se a informação
do atenolol para todos os outros. E aqui há um problema de análise importante.
Em relação à seletividade dos beta-bloqueantes, eles diferem entre si em relação à atividade simpaticomimética
intrínseca, por exemplo, entre outros aspetos. Ou seja, há diferenças grandes entre eles e essas diferenças são
marcadas comparativamente ao atenolol, que é o fármaco de referência. Mas esta é a informação que temos, se a
indústria farmacêutica considera que os outros beta-bloqueantes são melhores do que o atenolol, então têm de
demostrar e não somos nós que temos de andar à procura dessa informação.

Em conclusão, na hipertensão não complicada os beta-bloqueantes não devem ser os primeiros a serem utilizados.
Estes devem ser só utilizados na HTA complicada ou que possa estar associada a arritmias, doença coronária,
insuficiência cardíaca e atividade simpática. Os beta-bloqueantes não são um fármaco a não utilizar, pelo contrário!
Eles têm um valor muito elevado nestas situações. Na hipertensão dos jovens, onde há quantidade simpática mais
aumentada, os beta-bloqueantes são uma das primeiras opções.

Ora bem, o nosso doente tinha edemas maleolares e foi medicado, para além do que já fazia, com clorotalidona.
Concordam? Os bloqueadores dos canais de cálcio têm efeitos adversos. Os efeitos adversos provocam cefaleias,
flushing, tonturas, e também edemas maleolares. Este edema maleolar resulta de um efeito de dilatação pré-capilar
e uma constrição reflexa com saída de água. Podemos dizer que é quase “um edema traumático”: se dermos uma
martelada no dedo e o dedo incha, não vamos tomar um diurético para tratar o edema. Aqui a situação é semelhante
na medida em que esta dilatação/saída de água para o interstício não representa um aumento da volémia. A
administração de diuréticos justifica-se em situações de aumento da volémia, que não é a situação do nosso doente.

Se administrarmos um IECA ou um ARA há um efeito que se opõe ao efeito do edema maleolar. Assim, uma das
terapêuticas para as situações em que o doente esteja medicado com um bloqueador dos canais de cálcio é
administrar um IECA ou um ARA que diminui este efeito do edema periférico maleolar.

“Seis meses depois de ter iniciado esta terapêutica, o doente abandonou a consulta do médico assistente e a
medicação por queixas de disfunção eréctil.”

Importa saber aqui se a disfunção erétil pode ser atribuída ao medicamentos anti-hipertensores. Ela por si só está
associada à hipertensão. Em relação aos fármacos anti-hipertensores, a maioria deles pode levar à disfunção erétil
principalmente aqueles que têm uma ação central.

Uma coisa que é preciso tomarem sempre em atenção é que normalmente como aconteceu com este caso clínico, o
doente não tinha sintomas. Só passou a estar doente quando foi ao médico, e só começou a ficar ainda mais doente
quando começou a tomar a medicação.
“Cerca de 5 anos mais tarde voltou a consultar o seu médico. A PA era de 170/108 mmHg. As análises mostraram
valores elevados de colesterol total (280 mg/dl) e de LDL colesterol (180 mg/dl) e albuminúria (80 mg/24 horas).”

A albuminúria é um marcador de lesão de órgão alvo. Portanto até aqui, o doente apresentava valores de PA elevada,
tinha fatores de risco cardiovasculares (dieta e estilo de vida), mas agora há evidência de lesão de órgão alvo,
nomeadamente, renal. Esta é a principal diferença, independentemente de os valores de PA continuarem elevados
que podem ser justificados pelo facto do doente ter deixado de tomar a terapêutica.

Porque é que a albuminúria é um marcador de lesão subclínica renal? Será que quando se instala um quadro de
albuminúria este é irreversível ou reversível? A resposta está na origem da albuminúria. Essa origem pode ser uma de
duas: ou há lesão transitória tendencialmente reversível das cargas negativas dos podócitos; ou há lesão celular. Isto
é, quando há hipertensão e hiperfiltração glomerular, a primeira lesão é a das cargas negativas do podócitos, significa
isto que não é mais possível repulsionar a albumina que também é de carga negativa, mantendo-a em circulação e
não entrando para o nefrónio. Importa então dizer que para manter proteínas em circulação é necessário o excesso
de carga negativas dos podócitos que permitem manter as proteínas afastadas dos sinusóides. E esta fase é reversível
uma vez que se corrigirmos a hipertensão e hiperfiltração glomerular este problema de cargas pode ser resolvido. O
problema é que quando há destruição membranar, ou seja, quando não é uma questão elétrica, mas sim lesão
tecidular, os podócitos que deixam de ter capacidade de manter poros suficientemente pequenos para impedir a
passagem de proteínas para urina e quando isto acontece a lesão é irreversível.

A albuminúria tem sido definida com uma excreção urinária de albumina entre 30-300 mg acima das 24 horas. Acima
deste valor designa-se proteinúria/(micro)albuminúria. Também se pode avaliar em amostra de urina, ou seja, não é
necessário e obrigatório fazer uma urina de 24 horas para fazer uma avaliação deste parâmetro, mas o mais
importante saber é que este é um marcador fisiopatológico de um processo que está a ocorrer a nível sistémico na
vasculatura e não só no rim.

E de facto verificamos, se olharmos para este estudo que tinha aproximadamente 2000 doentes (Arterial
Hypertension, Microalbuminuria, and Risk of Ischemic Heart Disease), vemos que a microalbuminúria só por si tem
um risco relativo de desenvolvimento de doenças cardíacas muito elevado, sendo muito superior àquele que resulta
da junção de todos os fatores de risco estudados até aqui. Os doentes com microalbuminúria são aqueles que têm
uma maior probabilidade desenvolver doença cardiovascular. E porque é que isto acontece, ou seja, porque é que a
microalbuminúria (marcador de lesão vascular glomerular) está a condicionar o risco cardiovascular?
No estudo de 2004 demonstra que quando há microalbuminúria, a capacidade de dilatação endotelial sistémica é
inferior às situações em que não há albuminúria, estabelecendo-se pela primeira vez aqui que há de facto uma relação
direta entre a presença de microalbuminúria e o estado vascular disfuncionante sistémico.

Atenção a microalbuminúria não é a causa da doença cardiovascular, mas sim um marcador deste processo!

Voltando ao caso clínico o doente tinha 3 queixas na re-avaliação: cefaleias, visão turva e dispneia. Destes 3 sintomas,
qual deles levou à realização do ecocardiograma? A dispneia, porque é um sintoma de edema pulmonar/ sintoma de
um processo fisiopatológico da unidade pulmão-coração.

Neste doente a causa mais provável é de ter origem cardíaca, porque neste doente em particular a dispneia chama a
atenção para o eventual inconveniente de risco de insuficiência cardíaca.

Realizou um ecocardiograma que mostrou uma hipertrofia ventricular esquerda e que mostrou também disfunção
diastólica. Assim, com base neste exame, história e na queixa de dispneia podemos deduzir que o doente tem uma
cardiopatia hipertensiva.

Quando vocês vão administrar os diferentes fármacos para a hipertensão têm de tomar em atenção os seus riscos e
as morbilidades que lhes estão associadas. Por exemplo, no caso de hipertrofia ventricular esquerda, os estudos
mostram melhores resultados são com dietas que induzir uma redução da hipertrofia ventricular esquerda.

O tratamento da albuminúria com resultados na redução da doença cardiovascular não é muito claro. É eficaz porque
reduz a albuminúria, mas sobre a redução cardiovascular é de duvidar. De qualquer forma o tratamento da
albuminúria é feito com um IECA e ARA.

Qual é que é o fundamento racional para administrar um IECA ou um ARA? O nosso doente foi administrado com uma
dieta hipossalina, com um IECA e um diurético. A adição do IECA reduz a angiotensina II, que é responsável por
constrição da arteríola eferente. A vasodilatação dessa arteríola leva a redução da albuminúria. Este efeito dura
enquanto se administra o IECA. Quando se suspende o IECA, a albuminúria volta a agravar-se. Portanto, não há aqui
uma alteração estrutural. O IECA não tem um efeito estrutural, mas sim hemodinâmico.

E como é que nós podemos juntar os fármacos? Existem estudos que foram feitos que demonstram como é que se
devem juntar os fármacos. Digamos que um dos princípios será sempre dar com um diurético. Os diuréticos na maioria
das situações são sempre indicados com um IECA ou um ARA. Já com os beta-bloqueantes não são recomendados
porque aumentam o risco diabetogénico.
Juntar um IECA com um ARA? Um IECA atua em locais diferentes do ARA. Mas quando juntamos os dois há um risco
muito aumentado de hipercaliémia (principalmente em pessoas idosas ou pessoas com a diminuição da função renal).
Por isso não é recomendado juntar IECA com ARA.

Comparando o estado do doente aos 50 anos com o estado de saúde que tinha aos 44 anos, qual é o sintoma que se
destaca por ser o mais preocupante? Confusão mental.

Porquê? Porque é indicativo de lesão do SNC causado pelo edema vasogénico simétrico bilateral envolvendo a
substância branca subcortical nos lobos parieto-occipitais, que pode comprometer os reflexos cruciais para a
manutenção da vida. Por isso perante esta situação que é a confusão mental que leva à decisão de internar o doente.

Fizeram análises: 10 g de hemoglobina (anemia), tinha 1.4 de creatinina (significa que tem disfunção renal), tinha um
ionograma normal, colesterol elevado, mantinha a microalbuminúria e tinha uma eritrocitúria ligeira na urina II, e
tudo isto em conjunto em termos de topografia renal, a lesão que se localiza no glomérulo e não no interstício renal
ou nas porções mais distais do nefrónio.

Realizou uma TAC encefálica seguida de RM que mostrou lesões hiperintensas na região posterior. Isto em conjunto
com a história clínica permitiu o diagnóstico de encefalopatia posterior reversível, que é a consequência mais
frequente da hipertensão arterial elevada sobretudo por flutuações súbitas quer para cima quer para baixo no SNC.

O ecocardiograma mostrava cardiopatia hipertensiva e também realizou um ecodoppler das artérias renais. Porque
é que se realizou um ecodoppler nas artérias renais no ecocardiograma? Porque este exame avalia o fluxo das artérias
renais e permite ver se há estenose. Contudo, tendo em conta este doente que aos 38 anos não apresentava HTA
secundária, pelo que não havia obstrução das artérias renais e não havia hipertensão renovascular. Agora de repente
há uma estenose aos 50 anos vão fazer um ecodoppler das artérias renais, porquê?

Para além de termos um agravamento da situação clinica, esse agravamento também pode ser a causa da própria
estenose, ou seja, uma causa etiológica que leva ao aparecimento da própria estenose. De facto, o reaproximamento
dos doentes para as causas de hipertensão arterial secundária deve ser continuo ao longo do tempo, não é só no
momento do diagnostico, porque as coisas mudam, como sabem o organismo humano é dinâmico, e de facto quando
a hipertensão arterial num doente já hipertenso modifica o seu padrão, porque é súbita, porque dá disfunção de órgão,
pode ser, e é quase sempre obrigatório o reequacionamento das causas da hipertensão arterial secundaria, e é
exatamente isto que aqui está.

Obviamente que o diagnóstico de estenose nas artérias renais tem fundamentalmente duas causas; a causa
aterosclerótica (relacionada com os fatores de risco cardiovascular e hipertensão por si) e a displasia fibromuscular
(que é uma doença genética), obviamente que neste homem aos 50 anos, com a história que já conhecem a hipótese
diagnostica é estenose das artérias renais aterosclerótica, não vamos voltar a equacionar a displasia fibromuscular,
como fizemos quando o doente tinha 38 anos, mas isto é para chamar a atenção que o despiste inicial de hipertensão
arterial secundaria não invalida que se volte a fazer, e de facto hipertensão rapidamente progressiva, sobretudo se
associada a disfunção renal ou repetidas admissões hospitalares por insuficiência cardíaca descompensada, devem
voltar a tornar mandatório o despiste desta situação critica.

O doente fez uma fundoscopia, e tinha uma retinopatia hipertensiva de grau 4, que corresponde ao último grau, que
é o mais grave, e diagnostica-se que existe edema da papila devido à incapacidade de visualização correta da papila
ótica,

Isto significa que o doente tem uma emergência hipertensiva. A distinção entre uma urgência e emergência
hipertensiva é algo controversa, mas tem se mantido assim ao longo dos anos. Urgência é quando existe elevação
isolada, sem lesão de órgãos, da pressão arterial, habitualmente superior a 180/220 da pressão sistólica, as
limitações variam, e superior a 100/120 da pressão diastólica; quando há para além disso lesão de órgão alvo, aqui
temos encefalopatia posterior reversível e retinopatia de grau 4, há uma emergência hipertensiva.

A importância de definir a diferença de urgência e emergência não é só na nomenclatura medica → uma emergência
hipertensiva e uma urgência hipertensiva têm abordagens terapêuticas diferentes.
O que acontece muitas vezes nos pacientes com urgências hipertensivas, não é o nosso doente, é que têm uma
urgência hipertensiva porque suspenderam a terapêutica por alguma razão, o que é necessário fazer, é retomar a
terapêutica, ou associar mais alguma coisa para além de retomar a terapêutica.

Não se deve administrar nifedipina nem captopril de maneira a baixar rapidamente para obter uma pressão
desejável, é bem mais correto fazer a redução da pressão arterial de uma forma gradual do que muito rápido.

Quanto à emergência hipertensiva, que é o caso do nosso doente, temos aqui três fármacos que são: o nitroprussiato
do sódio, o labetalol e a nitroglicerina,

Na encefalopatia hipertensiva, o que é preciso é reduzir nas primeiras horas para esses valores, a pressão arterial
media deve estar a volta dos 20%, a pressão diastólica deve descer para valores inferiores a 100 mm Hg, e na disseção
aórtica, que não é o caso do nosso doente, os critérios são diferentes.

O que é importante saber é que urgência e emergência são situações diferentes, uma urgência pode perfeitamente
ser tratada num centro de saúde com vigilância do doente, sem utilização de medidas que possam provocar uma
redução acentuada da PA e que levem a uma hipoperfusão dos órgãos com lesão, com o risco de desencadear um AVC
ou um EAM.

O nosso doente aos 38 anos apresentava uma PA aumentada, foi medicado com nifedipina e alterações de estilo de
vida, desenvolveu edemas maleolares e o médico receitou Clorotalidona, para resolver esse edema, e nós chegamos
a conclusão que não era o mais indicado, esta associação levou ao surgimento de uma disfunção erétil, o que o fez
suspender a medicação.
Ao suspender a medicação a PA voltou a subir, foi novamente analisado e apresentava albuminúria e hipertrofia
ventricular esquerda, foi medicado com o lisinopril, para reduzir a albuminúria e a hipertrofia ventricular esquerda,
com isso houve uma redução da PA, mais tarde vem desenvolver-se uma emergência hipertensiva com encefalopatia,
apresentando 180/120 mmHg e foi medicado com labetalol. Nesta situação tem alta, com uma PA aumentada, e aqui
com a clorotalidona, o lisinopril, a amlodipina e a clonidina, quatro fármacos que têm mecanismos de ação diferentes,
isto é o que se chama de hipertensão resistente.

A hipertensão resistente é definida quando


existe a necessidade de administrarmos mais
do que dois anti-hipertensores com um
diurético, há quem defenda também que
seja a junção de mais do que quatro
fármacos.

Uma das coisas aqui referidas e que é


necessário que tomem em consideração é
que, há doentes que apresentam um valor de
PA quando estão sentados ao pé de nós, e
outro quando estão em casa, isto cria uma
noção e classificação de HTA que é diferente,
existem hipertensões, como está aqui por
exemplo, em que no consultório é alta, mas
em ambulatório é normal, é o que se chama
de falsa hipertensão resistente (digamos
que é a da “bata branca”), a verdadeira hipertensão resistente é aquela que é determinada quer dentro ou fora do
consultório .

Uma das formas de medirmos fora do consultório, foi o que fizemos com o nosso doente, é através do MAPA, o MAPA
continuava a apresentar valores elevados fora do consultório, portanto era uma verdadeira hipertensão, para além do
MAPA, podemos também pedir ao doente que meça a sua tensão ao longo do dia e nos traga o registro que fez ao
longo do dia. Esta pseudo-hipertensão resistente, pode ter a ver com a hipertensão da bata branca, com a pouca
aderência do doente a terapêutica (quer pelos efeitos adversos, quer por ele ser normalmente desatento a
terapêutica), com o facto de estarmos a prescrever os fármacos nas doses inadequadas ou por estarmos a fazer
combinações de fármacos inadequada.

Se quiserem ter uma boa aderência do


doente à terapêutica, a melhor maneira de
a conseguirem é fazendo dele o vosso
parceiro, é um ponto fundamental,
juntamente com as regras que estão aqui, o
êxito da terapêutica é vosso, mas também é
dele, têm também de envolver outros
profissionais de saúde como os enfermeiros
e farmacêuticos para que se possa ter uma
melhor adesão à terapêutica.

É preciso também ter em consideração que


os fármacos antihipertensores podem ser
antagonizados por outros: AINEs, os
descongestionantes nasais, as
anfetaminas, o álcool em excesso, os
contracetivos orais, as ciclosporinas, a eritropoetina e o Ma Huang (foi retirado do mercado).

A hipertensão refrataria é uma hipertensão em que se utiliza pelo menos cinco fármacos; a hipertensão resistente é
muito menos frequente que a hipertensão dita não resistente e a hipertensão refratária é muito menos frequente,
nesta população apenas 0,5% tem hipertensão refrataria, significa 3,6% da hipertensão resistente, é mais prevalente
nos negros, nos que têm albuminúria e nos que têm diabetes.

Umas das preocupações é a seguinte, como se juntam os fármacos? Temos sempre essas opções, os IECA, os ARA ou
os BCC, essas três classes são sempre a primeira opção, como é obvio podem sempre haver contraindicações, mas
temos sempre um IECA ou ARA mais um BCC mais um diurético, e o quarto qual é? Aqui começa a controvérsia na
decisão de qual será o quarto.

No nosso doente demos a clonidina que tem uma ação central, mas os estudos mostram que provavelmente temos
muitas vezes um hiperaldosteronismo, mesmo que não sejamos capazes de identificar tumores de aldosterona,
poderão haver situações em que as quantidades não são suficientes para que possamos identificar no plasma ou na
urina, mas poderá haver aumento da aldosterona, o que pensa em dar-se então, é um antagonista da aldosterona.

Isto é muito importante porque recentemente foi publicado um estudo feito pelo British Hypertension Society, em
que nestes doentes que são difíceis de tratar, e que já estão medicados com um IECA ou ARA, mais um bloqueador
de cálcio, mais um diurético, juntaram a espironolactona, a doxazosina (bloqueador alfa) e um β-bloqueante. Viu-se
que a redução maior foi com a espironolactona, portanto é considerada neste momento como sendo um padrão,
terão de haver mais estudos, mas a espironolactona poderá ser um dos fármacos a administrar como o quarto da
linha.

O problema da espironolactona é a hipercaliémia (doentes idosos e doentes com o comprometimento da função


renal) e tem mais uma coisa, vocês estão a dar ao doente um IECA ou um ARA, que aumentam ainda mais a
hipercaliemia.

Há terapêuticas a se desenvolverem a nível experimental, muitas delas já se conheciam a muito tempo e agora estão
a ser um pouco recuperadas. Como por exemplo esta situação da desnervação simpática renal, outra que é a
estimulação de barorrecetores ou ainda a anastomose arteriovenosa central.

Como referi, estas situações não são novas, já são conhecidas há algum tempo, como por exemplo esta da
simpatectomia cirúrgica, colocava-se um cateter e cortava-se os nervos simpáticos para reduzir a atividade simpática,
isto em 1925, a desnervação bilateral do rim fez-se em 1934, portanto são coisas que já se fizeram, e existe ainda esta
demonstração, isto foi publicado em 1948, que foi a esplancnetomia, ao fim de anos de follow up viu-se que reduzia
a PA, mas a pessoa deixava de ter mecanismos de controlo, isto porque, sem simpático tem de ter hipotensão, não há
hipertensão mas há hipotensão ortostática, pois não há regulação.
Na desenervação simpática, coloca-se um cateter e cortam-se as fibras simpáticas que se encontram ao nível das
artérias renais, viu-se que isto era muito eficaz, e só na Alemanha haviam 200 clinicas a fazer este procedimento, mais
tarde, viu-se que não há este efeito quando foi comparado com uma simulação de desnervação, ou seja, desnervar a
artéria renal, podendo provocar estenoses na artéria renal, ou simular que se está a fazer isso, têm o mesmo resultado
segundo um estudo publicado há dois anos no New England Journal of Medicine, isto porque todos os estudos que
estavam a ser feitos, eram feitos sem uma simulação e quando se fez a simulação era igual, portanto a conclusão é
está, todos os ensaios clínicos têm de ser feitos com um controlo para a avaliação de novas técnicas ou equipamentos.

O mais interessante é este estudo feito pelos Noruegueses, em que eles foram comparar a situação de desnervação
simpática com a administração de um fármaco e o ajustamento deste fármaco, e os resultados foram iguais, portanto
a desnervação simpática neste momento foi parada forçosamente por razoes éticas, pois a desnervação tem um valor
incerto na redução da pressão arterial.

O que diz a European Society of Hypertension?

A desnervação simpática é um processo cuja ineficácia não é justificada, tem uma base fisiopatológica, e até que hajam
mais estudos bem feitos, não deve ser feita, portanto a desnervação renal simpática não é uma opção, a melhor opção
é seguir melhor os doentes e tratá-los melhor.
Por ultimo, num estudo que foi publicado no Lancet, que tomava em consideração que na DPOC havia uma situação
de hipertensão pulmonar, para a resolução da hipertensão o que se fez foi criar aqui uma comunicação da artéria
com a veia femoral, e com isso esperava-se reduzir a tensão, pensou-se que se podia fazer o mesmo para a hipertensão
arterial, o resultado foi que, em 42 doentes, 29% desenvolveram estenose venosa, isto mostra que realmente vale
tudo, fizeram isto sem nunca terem feito uma situação de controlo.

RESUMO:

O diagnóstico de HTA define-se, em avaliação de consultório, como a elevação persistente, em várias medições e em
diferentes ocasiões, da pressão arterial sistólica (PAS) igual ou superior a 140 mmHg e/ou da pressão arterial diastólica
(PAD) igual ou superior a 90 mmHg.

A hipertensão arterial classifica-se em três graus, correspondendo o grau 1 a hipertensão arterial ligeira, o grau 2 a
hipertensão arterial moderada e o grau 3 a hipertensão arterial grave.

No quadro abaixo assinalam-se os limites de referência da pressão arterial para o diagnóstico de hipertensão arterial,
de acordo com o tipo de medição realizado:
Esta definição de HTA é válida para pessoas de idade igual ou superior a 18 anos, que não sujeitas a tratamento
farmacológico anti-hipertensor e que não apresentem patologia aguda concomitante ou se encontrem grávidas.

Para o diagnóstico de HTA é necessário que a PA se mantenha elevada nas medições realizadas em, pelo menos, duas
diferentes consultas, com um intervalo mínimo entre elas de uma semana. Como regra, o intervalo entre consultas
poderá ser tanto maior quanto mais próximos da normalidade estejam os valores de PA. Em cada consulta deve medir-
se a PA, pelo menos duas vezes, com um intervalo mínimo entre elas de um a dois minutos, sendo registadas no
processo clínico o valor mais baixo registado da PAS e da PAD. Considerar uma terceira medição se houver uma grande
discrepância entre os dois valores iniciais medidos e assinalar essa diferença no processo clínico.

A medição da PA deve obedecer às seguintes premissas:

✓ Efetuada em ambiente acolhedor;


✓ Realizada sem pressa;
✓ Com o doente sentado e relaxado, pelo menos, durante 5 minutos;
✓ Com a bexiga vazia;
✓ Não ter fumado nem ingerido estimulantes (café por exemplo) na hora anterior;
✓ Com o membro superior desnudado;
✓ Usando braçadeira de tamanho adequado;
✓ Medição sistemática no membro superior em que foram detetados valores mais elevados da PA na primeira
consulta.

Todos os doentes com HTA grau 3, assim como todos os doentes com grau 1 e 2 com risco cardiovascular (CV) alto ou
muito alto, são candidatos a tratamento farmacológico precoce.

MAPA

Os valores considerados fisiologicamente normais consistem numa diminuição da PA durante o sono, como era
espetável pela sua variação circadiana.

Padrão non-dipping = padrão de PA caracterizado pela não diminuição da mesma durante as horas em que a pessoa
está a dormir. A existência de um padrão nondipping é tradutor de maior mortalidade cardiovascular e num maior
evento cardiovascular que conduz, ou não, à morte.

Depois de estabelecido o diagnóstico de HTA

Sabemos que o doente é hipertenso e damos-lhe conselhos sobre estilo de vida, alimentação, exercício físico e
tratamos o doente (farmacologicamente). Mas é preciso pensar na fisiopatologia, é preciso saber a causa da HTA.
Tratamos de forma igual todas as pessoas? Não. É preciso saber a causa da HTA. Se não, vamos tratar o quê?

É necessário estabelecer a etiopatogénese da PA e investigar a presença de lesão em algum órgão, para sabermos o
quão grave é esta PA elevada. Temos de definir o risco cardiovascular total, uma vez que vai ser importante tratar,
não só a hipertensão arterial, mas também os outros problemas
e fatores de risco que vão ser concomitantes nestes doentes.

Para estabelecer a causa, obviamente é necessário fazer uma


história clínica, um exame objetivo e pedir exames
complementares de diagnóstico:
Quantos tipos de HTA existem? São 2 tipos,
quais são? Essencial, em 90% dos doentes e
secundária em 10% dos doentes.

Algumas causas de HTA secundária são:

✓ Displasia fibromuscular das artérias


renais (estenose não provocada por
aterosclerose)
✓ Situações de hiperaldosteronismo
por tumor secretório das
suprarrenais, como o
feocromocitoma.
✓ Apneia do sono (é uma situação
muito particular, que normalmente
relaciona-se riscos cardiovasculares
clássicos, e tem sido
apresentada/documentada de forma
controversa, mas pode ser uma
causa).
✓ Síndrome de Cushing (excesso de
produção de cortisol).
✓ Coartação da aorta
✓ Doença renal poliquística

Os doentes têm de ser investigados para


causas de HTA secundária quando:

✓ A idade é inferior a 40 anos.


✓ Quando há suspeição. 3.
✓ Quando existe suspeição, com base
na história, no exame objetivo ou nos
exames complementares de 1ª linha,
de causas de HTA secundária.
o História familiar.
o Doença renal ou outra doença.
o Sintomas sugestivos de doença tiroideia.
o Sopros auscultados no abdómen são sugestivos de displasia fibromuscular das artérias renais.

A história é importante para que, logo na 1ª linha, façamos um despiste de eventuais causas de HTA secundárias.
A HTA essencial não tem apenas uma causa, mas
um conjunto de fatores que a causa, isto é, é uma
HTA multifatorial.

Os fatores que contribuem para o desenvolvimento


da HTA são fatores genéticos (quase metade da
etiopatogénese da HTA essencial tem fatores
genéticos associados, nomeadamente
polimorfismos, que não são doenças com
manifestações clínicas), fatores relacionados com a
hemodinâmica (como a diminuição da excreção de
sódio a nível renal), com o sistema nervoso
simpático, com o estilo de vida, dentre outros.
Aterosclerose

A aterosclerose é uma doença inflamatória crónica e a sua patogénese envolve lípidos, trombose,
elementos da parede vascular e células do sistema imune.

Parede arterial normal

A parede das artérias é constituída por 3 camadas:

• Íntima: células endoteliais que atuam como uma barreira metabolicamente ativa entre o sangue
circulante e a parede do vaso
• Média: é a camada mais espessa. É limitada pelas lâminas elásticas interna e externa, que
separam a camada média da íntima e da adventícia, respetivamente. A média é constituída por
células musculares lisas e matriz extracelular, e apresenta função contrátil e elástica → a
componente elástica, mais proeminente nas grandes artérias, estica durante a alta pressão da
sístole e depois volta ao normal durante a diástole, impulsionando o fluxo de sangue; a
componente muscular, mais proeminentes em pequenas artérias ou arteríolas, contrai ou relaxa
para alterar a resistência do vaso e portanto o fluxo sanguíneo no lúmen.
• Adventícia: contém nervos, vasos e os vasa vasorum, que nutrem as células da parede.

Células endoteliais: apresentam funções estruturais, metabólicas e de sinalização

• As células endoteliais formam uma barreira que impede a passagem de moléculas grandes da
circulação para o espaço subendotelial.
• Produzem moléculas antitrombóticas, sendo que algumas se encontram na superfície endotelial
(ex: sulfato de heparano, trombomodulina e ativadores plasminogénio), enquanto outras entram
na circulação (ex: prostaciclinas e NO).
• O endotélio também produz várias moléculas protrombóticas quando sujeito a stress
• Secreção de substâncias que modulam a contração das células musculares lisas da camada média
– vasodilatadores (ex: NO e prostaciclinas) e vasoconstritores (ex: endotelina) – alterando assim
a resistência do vaso e o fluxo sanguíneo. Alguns dos produtos endoteliais referidos também
inibem a proliferação de células musculares lisas na camada íntima.
• Modulação da resposta imune: na ausência de uma estimulação patológica, as células endoteliais
resistem à adesão leucocitária, opondo-se à inflamação local. Contudo, as células endoteliais nas
vénulas pós-capilares respondem a infeção/lesão local secretando quimiocinas (substâncias
químicas que atraem leucócitos para a área da lesão) e produzindo moléculas de adesão à
superfície, que ancoram as células mononucleares ao endotélio e facilitam a sua migração para
o local da lesão. Estes efeitos podem ser mediados em parte via KLF2 (Kruppel-like factor 2), um
gene regulador nas células endoteliais.

Assim, o endotélio normal providencia uma superfície protetora, não-trombogénica com propriedades
vasodilatadoras e anti-inflamatórias.

Células musculares lisas

Apresentam função contrátil e sintetizadora. Várias substâncias vasoativas modulam a função contrátil,
resultando em vasodilatação ou vasoconstrição, e incluem moléculas circulantes (ex: angiotensina II),
moléculas libertadas nas terminações nervosas locais (ex: acetilcolina) e outras que se originam no
endotélio (ex: endotelina e NO).

As funções biosintéticas (importantes na patogénese da aterosclerose) incluem a produção de colagénio,


elastina e proteoglicanos que formam a matriz extracelular vascular; mediadores vasoativos e
inflamatórios, incluindo IL-6 e TNF-α, que promovem a proliferação de leucócitos e induzem a expressão
de moléculas de adesão leucocitárias.

Matriz extracelular
A matriz extracelular dos vasos (colagénio, proteoglicanos e elastina) mantém a integridade estrutural
dos vasos e regula o crescimento das células. Para além disso, influencia a resposta celular a estímulos –
as células ligadas na matriz respondem de uma forma específica a fatores de crescimento e são menos
propensas a apoptose.

Parede arterial aterosclerótica

A parede arterial é um sistema dinâmico e regulado, mas certos elementos podem perturbar a
homeostase e levar à aterogénese. Por exemplo, as células endoteliais e musculares lisas dos vasos
reagem a mediadores inflamatórios, tais como IL-1 e TNF-α. Estes agentes inflamatórios podem levar as
células a produzir IL-1 e TNF-α, ou seja, as células imunitárias não são a única fonte de agentes pró-
inflamatórios.

Os componentes que contribuem para o processo inflamatório aterosclerótico incluem disfunção


endotelial, acumulação de lípidos na camada íntima, recrutamento de leucócitos e células musculares
lisas para a parede vascular, formação de células esponjosas e deposição de matriz extracelular. Em vez
de seguirem uma sequência, as células das lesões ateroscleróticas interagem e competem continuamente
umas com as outras, alterando a placa ao longo dos anos para um de vários padrões possíveis. Estes
mecanismos podem ser categorizados em 3 estadios patológicos: estria lipídica, progressão da placa e
disrupção da placa.

Estria lipídica

Representa a lesão visível mais precoce da aterosclerose. São áreas amareladas na


superfície interna da artéria, mas que não se projetam para o lúmen nem impedem
o fluxo sanguíneo. Existem na aorta e nas artérias coronárias na maioria das
pessoas aos 20 anos. Não causam sintomas e em alguns locais podem regredir ao
longo do tempo. Apesar do início preciso do desenvolvimento das estrias não ser
conhecido, pensa-se que vários agentes causem disfunção endotelial, que permite
a entrada e modificação de lípidos no espaço subendotelial, onde eles se tornam
mediadores pró-inflamatórios que iniciam o recrutamento de leucócitos e a
formação de células esponjosas.

Disfunção endotelial

A lesão do endotélio arterial pode resultar da exposição a diversos agentes, tais como forças físicas e
irritantes químicos. A predisposição das bifurcações ao desenvolvimento de ateromas apoia o papel do
stress hemodinâmico. Nas secções retas das artérias, as forças laminares normais favorecem a produção
de NO (vasodilatador, inibidor da agregação plaquetária e substância anti-inflamatória). Para além disso,
o fluxo laminar não só ativa KLF-2 como também aumenta a expressão da enzima superóxido dismutase,
que protege contra ERO produzidas por agentes químicos ou isquémia transitória. Pelo contrário, o fluxo
nas bifurcações arteriais é mais turbulento, pelo que estas funções ateroprotetoras estão diminuídas, logo
as bifurcações dos vasos, como a bifurcação da artéria carótida comum e da artéria coronária esquerda,
são locais comuns de formação de ateromas.

A disfunção endotelial também pode resultar de exposição a um ambiente químico tóxico, como tabaco,
aumento dos níveis de lípidos em circulação e diabetes, ambos fatores de risco de aterosclerose que
promovem a disfunção endotelial. Há um aumento da produção endotelial de ERO – nomeadamente
superóxido – que interage com outras moléculas intracelulares, influenciando as funções de síntese e
metabólicas do endotélio. Neste ambiente, as células promovem inflamação local → a função de barreira
do endotélio é afetada, ocorre libertação de citocinas inflamatórias, aumento da produção de moléculas
de adesão, recrutamento de leucócitos, alteração da libertação de substâncias vasoativas (prostaciclinas
e NO) e ocorre interferência nas propriedades antitrombóticas do endotélio.

Entrada e modificação de lipoproteínas


O aumento da permeabilidade do endotélio permite a entrada de LDL na íntima, um processo facilitado
por elevada concentração de LDL em circulação. Os níveis elevados de LDL podem ser causados tanto por
excessiva ingestão como por mutações no recetor da LDL, na apolipoproteína B e na PCSK9, uma protéase
envolvida na regulação do recetor LDL.

Dentro da íntima, o LDL acumula-se no espaço subendotelial ao ligar-se aos proteoglicanos, o que permite
um aumento do tempo de permanência da LDL na parede vascular, onde a lipoproteína pode sofrer
modificações químicas, críticas para o desenvolvimento de lesões ateroscleróticas.

A HTA, um fator de risco major para aterosclerose, pode promover a retenção de lipoproteínas na íntima
ao acentuar a produção nas células musculares lisas de proteoglicanos que se ligam às LDL.

As LDL podem sofrer oxidação, resultante da ação local de ERO e enzimas pró-oxidantes derivadas de
células musculares lisas, células endoteliais ativadas ou de macrófagos. Para além disso, o microambiente
do espaço subendotelial impede o contacto das LDL com antioxidantes no plasma. Em pacientes
diabéticos com hiperglicemia continuada, pode ocorrer glicação da LDL, que a torna antigénica e pró-
inflamatória.

Estas modificações bioquímicas da LDL são precoces e contribuem para os mecanismos inflamatórios
iniciados pela disfunção endotelial, e podem continuar a promover inflamação ao longo do tempo de vida
da placa. Nas estrias lipídicas, e ao longo do desenvolvimento da placa de ateroma, as LDL modificadas
(m LDL) promovem o recrutamento de leucócitos e a formação de células esponjosas.

Recrutamento leucocitário

O recrutamento de leucócitos (monócitos e linfócitos T) para a parede vascular é uma etapa chave da
aterogénese. Este processo depende da expressão de moléculas de adesão leucocitárias (LAM) na
superfície endotelial luminal e de sinais quimiotáxicos (MCP-1, IL-8, interferon-inducible protein-10) que
dirigem a diapedese para o espaço subintimal. Há 2 grupos de LAM que persistem na placa aterosclerótica
inflamada: a superfamília das imunoglobulinas (particularmente VCAM-1 e ICAM-1) e as selectinas
(particularmente a E- e P-seletina).

Apesar do papel central dos linfócitos T no sistema imune, as LAM e os sinais quimiotáxicos dirigem
maioritariamente monócitos para a lesão, principalmente um subgrupo de monócitos pró-inflamatórios,
caracterizados pela expressão de altos níveis de citocinas pró-inflamatórias (IL-1 e TNF-1), mas também
há linfócitos T dentro das placas, onde constituem outra fonte de citocinas.

As m LDL e as citocinas pró-inflamatórias induzem a expressão de LAM e de quimiocinas de forma


independente, mas as m LDL também conseguem estimular a produção de citocinas pró-inflamatórias nas
células endoteliais e musculares lisas → esta capacidade dupla de promover o recrutamento leucocitário
e a inflamação direta e indiretamente persiste ao longo da aterogénese.

Formação de células esponjosas

Depois dos monócitos aderirem e penetrarem na íntima, diferenciam-se em macrófagos e estes fagocitam
as lipoproteínas, formando células esponjosas.

As células esponjosas não derivam do uptake de LDL pelo recetor de LDL, porque o conteúdo elevado de
colesterol dentro destas células leva à supressão da expressão dos recetores LDL. Para além disso, o
recetor LDL clássico não reconhece as m LDL. Assim, os macrófagos usam recetores “scavenger” que se
ligam e internalizam preferencialmente m LDL. Ao contrário da via clássica, a entrada de m LDL por estes
recetores escapa à inibição de feedback negativo e permite o ingurgitamento dos macrófagos, resultando
na aparência típica de células esponjosas.

Apesar deste uptake ser benéfico inicialmente, o efluxo comprometido destas células, comparando com
a quantidade de influxo, leva a acumulação local na placa, diminuindo assim o seu papel protetor e
promovendo a apoptose das células esponjosas e a libertação de citocinas pró-inflamatórias que
promovem a progressão da placa aterosclerótica. O centro da placa, formado por células esponjosas
necróticas, é denominado core necrótico.

Progressão da placa

Enquanto as células endoteliais desempenham um papel fundamental na formação das estrias lipídicas,
a migração de células musculares lisas para a íntima domina o início da progressão da placa. Durante
décadas de desenvolvimento, as placas ateroscleróticas típicas adquirem um core lipídico trombogénico
recoberto por uma capa fibrosa protetora. Nem todas as estrias lipídicas progridem para lesões
fibrolipídicas, e não se sabe por que é que umas evoluem e outras não.

O início do crescimento da placa está associado a uma remodelação compensatória da parede arterial
que preserva o diâmetro do lúmen e permite a acumulação da placa sem limitação do fluxo sanguíneo,
logo não vão existir sintomas isquémicos. Mais tarde, o crescimento da placa pode ultrapassar o
alargamento compensatório da artéria, diminuindo o lúmen do vaso e impedindo uma correta perfusão
– estas placas podem provocar então isquémia dos tecidos, causando sintomas como angina de peito ou
claudicação intermitente das extremidades.

A maioria dos síndromes coronários agudos (enfarte agudo do miocárdio e angina de peito instável)
ocorrem quando a capa fibrosa de uma placa aterosclerótica rompe, expondo as moléculas pró-
trombóticas do core lipídico e precipitando assim trombose aguda que oclui subitamente o lúmen arterial.

Migração das células musculares lisas

A transição de estria lipídica para uma placa aterosclerótica fibrosa envolve a


migração de células musculares lisas da camada média para a camada íntima, e
a secreção de moléculas da matriz extracelular por estas células. Tanto as
células esponjosas como plaquetas ativadas que entram através de
microfissuras na superfície da placa e células endoteliais produzem substâncias
que contribuem para a migração e proliferação das células musculares.

A células esponjosas libertam:

• PDGF (também produzido por plaquetas e células endoteliais) que


estimula a migração e o crescimento das células na íntima.
• Citocinas e fatores de crescimento (TNF-α, IL-1, FGF e TGF-β) que
estimulam a proliferação das células musculares e a síntese de proteínas da matriz extracelular.
As citocinas também induzem a ativação leucocitária e dos miócitos, promovendo ainda mais a
libertação de citocinas, reforçando e mantendo a inflamação na lesão.

As placas crescem continuamente e gradualmente, mas esta progressão pode ser pontuada por eventos
subclínicos com surtos de replicação do músculo liso. Por exemplo, evidências morfológicas de
hemorragias intraplaca resolvidas indicam que podem ocorrer pequenas falhas na integridade da placa
sem que se verifiquem sinais ou sintomas clínicos. Estas falhas expõem o fator tecidual derivado das
células esponjosas, que ativa a coagulação e a formação de microtrombos. As plaquetas ativadas dentro
destes microtrombos libertam outros fatores potentes, como PDGF e heparinase, que podem estimular
uma onda local de migração e proliferação de células musculares lisas. A heparinase degrada o sulfato de
heparano, um polissacarídeo na matriz que inibe a migração e proliferação dos miócitos. Por outro lado,
linfócitos Treg e Th2 podem produzir TGF-β e IL-10 que inibem a proliferação dos miócitos, regulando o
crescimento da placa.

Metabolismo da matriz extracelular

A deposição de matriz depende do balanço entre a síntese pelas células musculares lisas e a degradação,
mediada em parte por uma classe de enzimas proteolíticas, as MMP (matrix metaloproteinases).
Enquanto o PDGF e o TGF-β estimulam a produção de colagénio, o IFN-γ derivado dos linfócitos T inibe a
síntese de colagénio. Para além disso, citocinas
inflamatórias estimulam a secreção de MMP pelas
células esponjosas, enfraquecendo a placa fibrosa
e predispondo-a a rutura.

Disrupção da placa

Integridade da placa

O balanço entre síntese e degradação da matriz


continua durante décadas, mas não sem
consequências: a morte de células musculares
lisas e esponjosas, quer devido a excesso de
estímulo inflamatório quer por ativação de vias de apoptose, liberta conteúdo celular, contribuindo para
o aumento de detritos necróticos e lípidos no core lipídico.

O tamanho do core lipídico tem implicações biomecânicas na estabilidade da placa → com o crescimento
e protusão para o lúmen arterial, o stress mecânico foca-se na periferia da placa, na transição com o
tecido normal; a acumulação de células esponjosas e linfócitos T neste local acelera a degradação da
matriz, o que torna esta região a mais propensa a rotura da
placa.

A distribuição da capa fibrosa também é um importante


determinante da estabilidade da placa → apesar de lesões
com capa fibrosa espessa causarem um maior estreitamento
do lúmen, têm menos probabilidade de romper, enquanto
placas com capas mais finas tendem a ser mais frágeis,
rompendo mais facilmente e provocando trombose. Assim:

• Placas estáveis: capa fibrosa espessa e core lipídico


pequeno
• Placas instáveis: capa fibrosa fina, grande core
lipídico, extenso infiltrado de macrófagos e escassez
em células musculares lisas

Potencial trombogénico

A rutura de uma placa aterosclerótica não causa


inevitavelmente AVCs ou enfarte do miocárdio – pequenos
trombos não oclusivos podem ser reabsorvidos pela placa,
estimulando o crescimento de células musculares lisas e a
deposição fibrosa. É em grande parte o balanço entre o
potencial trombogénico e fibrinolítico da placa e fase fluida do sangue que determinam se a disrupção da
capa fibrosa leva a um trombo mural transitório, não obstrutivo, ou a um trombo completamente
oclusivo.

A probabilidade de ocorrer um evento


trombótico major reflete o balanço entre os
processos de coagulação e fibrinólise. Estímulos
inflamatórios comuns no ambiente da placa,
como CD40L, estimulam a libertação do fator
tecidual, o iniciador da via extrínseca da
coagulação, pelas células musculares lisas,
células endoteliais e células esponjosas. Para
além disto, os estímulos inflamatórios favorecem a expressão de antifibrinolíticos (plasminogen activator
inhibitor-1) preferencialmente a anticoagulantes (trombomodulina, moléculas heparina-like, proteína S)
e a mediadores pró-fibrinolíticos (tissue plasminogen activator e urokinase-type plasminogen activator).
O endotélio ativado também promove a formação de trombina, a coagulação e a deposição de fibrina na
parede vascular.

A propensão da pessoa para a coagulação pode ser aumentada pela genética (ex: presença de uma
mutação génica pró-coagulante e protrombínica), comorbilidades (ex: diabetes) e/ou estilo de vida
(tabagismo, obesidade visceral, …). Consequentemente, o conceito de placa vulnerável deve ser
expandido para um conceito de paciente vulnerável para reconhecer outras contribuições para o risco
vascular da pessoa.

Complicações da aterosclerose

As placas ateroscleróticas desenvolvem-se primeiro no aspeto dorsal da aorta abdominal e nas artérias
coronárias proximais, depois nas artérias popliteias, aorta torácica descendente, artérias carótidas
internas e artérias renais. Portanto, as regiões irrigadas por estes vasos são as que mais sofrem com as
complicações da aterosclerose.

As complicações podem ter graves consequências clínicas devido a restrição aguda do fluxo sanguíneo e
a alterações na integridade da parede vascular.

• Calcificação da placa, que aumenta a rigidez do vaso e a sua fragilidade


• Rutura ou ulceração, que liberta procoagulantes que estavam dentro da placa para o sangue,
causando trombose, que pode ou ocluir o vaso e resultar em enfarte do respetivo órgão, ou o
trombo pode ser incorporado pela placa.
• Hemorragia dentro da placa devido a rutura da capa fibrosa ou dos microvasos que se formam
na placa. O resultado é um hematoma intramural que pode diminuir o lúmen do vaso
• Embolização de fragmentos do ateroma para locais mais distais
• Enfraquecimento da parede vascular: a placa fibrosa sujeita a camada média a uma maior
pressão, o que pode provocar atrofia e perda de tecido elástico com subsequente expansão da
artéria, formando um aneurisma
• Crescimento de microvasos dentro da placa, sendo estes uma fonte de hemorragia intraplaca e
de maior tráfico de leucócitos.

Estas complicações podem resultar em


consequências clínicas específicas em diferentes
sistemas de órgãos.

No caso de placas ateroscleróticas nas


coronárias, lesões com expansão gradual e
progressiva e com uma capa fibrosa espessa
tendem a diminuir o lúmen do vaso e a causar
desconforto no peito intermitente em esforço
(angina de peito). Por outro lado, placas que não
comprometam o lúmen do vaso mas que tenham
uma capa fibrosa fina e um grande core lipídico
podem sofrer rutura, levando a trombose aguda
e enfarte do miocárdio – este tipo de placas são
muitas vezes numerosas e dispersas ao longo das
artérias, e como não limitam o fluxo sanguíneo,
não provocam sintomas e muitas vezes escapam
à deteção por teste de esforço físico ou
angiografia.

A intervenção percutânea (angioplastia ou colocação de stent) em estenoses coronárias sintomáticas


aliviam a angina de peito, mas não previnem necessariamente um futuro enfarte do miocárdio ou
prolongam o tempo de vida. Portanto, há uma multiplicidade de placas não oclusivas em risco de
precipitar eventos trombóticos. Modificações do estilo de vida e terapêutica farmacológica que limitem
os fatores de risco para a formação de ateromas e diminuam a sua instabilidade são críticos para prevenir
a progressão e complicações da aterosclerose.

Fatores de risco da aterosclerose

Fatores de risco modificáveis:

• Dislipidémia (LDL elevado, HDL baixo)


o Em excesso, o LDL acumula-se no espaço subendotelial e sofre modificações químicas
que danificam a íntima, iniciando e perpetuando o desenvolvimento de placas
ateroscleróticas.
o Níveis elevados de HDL parecem proteger contra a aterosclerose devido à capacidade
das HDL transportarem colesterol dos tecidos periféricos de volta para o fígado e devido
às suas propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.
o Níveis elevados de LDL podem ocorrer por várias razões, desde uma dieta rica em
gorduras a anormalidades no mecanismo do recetor LDL.
o Pensa-se que as lipoproteínas ricas em triglicéridos, como as VLDL e IDL, estejam
envolvidas no desenvolvimento de aterosclerose. Contudo, ainda é incerto se estas
partículas participam diretamente na aterogénese ou se apenas se relacionam com
baixos níveis de HDL. A diabetes mellitus tipo 2 não controlada associa-se a uma
combinação de hipertrigliceridemia e a baixos níveis de HDL.
• Tabaco
o O tabaco pode levar a aterosclerose por várias vias, incluindo o aumento da modificação
oxidativa das LDL, diminuição dos níveis de HDL, disfunção endotelial devido a hipoxia
dos tecidos e a aumento do stress oxidativo, aumento da adesão plaquetária, aumento
da expressão de LAM solúveis, estimulação do SN Simpático pela nicotina e dissociação
do O2 da Hb a favor do CO. Fumar não só acelera a aterogénese como também aumenta
a probabilidade de ocorrer trombose.
• HTA
o A PA elevada danifica o endotélio vascular e pode aumentar a permeabilidade da parede
dos vasos às lipoproteínas. O aumento do stress hemodinâmico pode aumentar o nº de
recetores scavenger nos macrófagos, estimulando a formação de células esponjosas. A
tensão circunferencial nas artérias pode aumentar a produção pelas células musculares
lisas de proteoglicanos que retêm as LDL na intima e facilitam a sua modificação
oxidativa. A angiotensina II atua não só como vasoconstritor como também estimula o
stress oxidativo (através da ativação de NADPH oxidases, uma fonte do anião
superóxido) e atua como citocina pró-inflamatória.
• Diabetes mellitus
o A predisposição dos pacientes diabéticos para a aterosclerose pode relacionar-se com
a glicação não enzimática das lipoproteínas ou com a tendência protrombótica e
antifibrinolítica que está frequentemente presente. Os diabéticos também podem ter
função endotelial comprometida – biodisponibilidade de NO reduzida e aumento da
adesão leucocitária. O controlo dos níveis de glicose reduz o risco de complicações
microvasculares, como retinopatia e nefropatia. O controlo da HTA e da dislipidemia em
diabéticos reduz o risco de complicações cardíacas e cerebrovasculares.
• Síndrome metabólica
o Descreve um conjunto de fatores de risco, incluindo HTA, hipertrigliceridemia, HDL
reduzido, resistência periférica à insulina e obesidade visceral.
• Sedentarismo
o Para além dos efeitos benéficos no perfil lipídico e na PA, o exercício físico aumenta a
sensibilidade à insulina e a produção endotelial de NO.

Fatores de risco não modificáveis:


• Idade avançada
• Sexo masculino
• Genética

Antes da menopausa, as mulheres têm menor incidência de eventos coronários do que os homens, mas
depois da menopausa as taxas já são semelhantes, o que sugere que o estrogénio pode ter propriedades
ateroprotetoras. Níveis fisiológicos de estrogénio nas mulheres pré-menopausa aumentam HDL e
diminuem LDL. O estrogénio também apresenta ação antiplaquetária e antioxidante potencialmente
benéficas e aumenta a vasodilatação dependente do endotélio.

Biomarcadores do risco cardiovascular

Os biomarcadores têm como função:

• Estratificar o risco de doença aterosclerótica e guiar a escolha terapêutica


• Avaliar o sucesso terapêutico
• Potenciais alvos de novas terapêuticas

Homocisteína

Vários estudos mostram uma relação significativa entre níveis elevados do aa homocisteína em circulação
e a incidência de doença arterial coronária, cerebral e periférica. O mecanismo pelo qual a homocisteína
pode aumentar o risco aterosclerótico permanece indeterminado, mas sugere-se que níveis muito
elevados promovam stress oxidativo, inflamação vascular e adesão plaquetária. Apesar do ácido fólico e
de outros suplementos com vitamina B reduzirem os níveis séricos de homocisteína, ensaios clínicos sobre
esta terapia não mostraram redução da doença aterosclerótica nem das suas complicações.

Lipoproteína a

A Lp(a) é uma variante da LDL cuja apolipoproteína principal (apo B-100) se liga por uma ponte disulfito a
outra proteína, a apo(a), que estruturalmente se assemelha ao plasminogénio, uma proteína do plasma
importante na lise endógena de coágulos de fibrina. Pensa-se que a Lp (a) compita com a atividade normal
do plasminogénio. A Lp (a) entra na intima e encoraja inflamação e trombose.

Há uma prevalência de níveis mais elevados de Lp (a). Tal como a homocisteína, nem todos os estudos
apoiam uma associação entre a Lp (a) e o risco cardiovascular. Também não existe evidência de que a
redução da Lp (a) por terapia farmacológica melhore os outcomes cardiovasculares.

Proteína C reativa e outros marcadores de inflamação

Como a patogénese da aterosclerose envolve a inflamação em todos os estádios, avaliaram-se


marcadores da inflamação como preditores do risco cardíaco. As citocinas envolvidas na aterogénese (ex:
IL-6) mobilizam-se para o fígado e estimulam o aumento da produção de reagentes de fase aguda,
incluindo PCR, fibrinogénio e SAA.

Destas moléculas, a PCR mostrou ser a mais promissora como marcador de inflamação sistémica de baixo
grau associada à aterosclerose. Apesar de ser um marcador de risco, não existe evidência de que a PCR
seja um mediador da aterogénese.

Genética

É um fator de risco não modificável. Foram identificados vários loci associados com a aterosclerose. A
maior conexão entre a doença coronária e o enfarte do miocárdio localiza-se no cromossoma 9p21.3. Esta
região contém genes que codificam 2 inibidores da cinase dependentes de cicilina que estão envolvidos
na regulação do ciclo celular e que podem participar na via inibitória TGF-β. Outras associações incluem
o cromossoma 6q25.1, com um gene que codifica uma sintase C1-tetrahidrofolato mitocondrial que está
envolvida na síntese de metionina, e o cromossoma 2q36.3, uma região sem genes funcionais conhecidos.
Doença cardíaca isquémica

A doença cardíaca isquémica é uma condição em que ocorre perda do balanço entre o fornecimento e o
consumo miocárdico de O2, maioritariamente causada pela aterosclerose das artérias coronárias. As
manifestações clínicas são muito variáveis, formando várias síndromes:

Determinantes do fornecimento e consumo miocárdico de O2

No coração normal, o consumo de O2 do miocárdio corresponde ao fornecimento pelas artérias


coronárias. Mesmo durante exercício intenso, quando as necessidades metabólicas do coração
aumentam, também aumenta o fornecimento de O2 ao miocárdio, mantendo assim o balanço.

Fornecimento de O2 ao miocárdio

O fornecimento de O2 ao miocárdio depende do conteúdo de O2 no sangue e da taxa de fluxo sanguíneo


coronário. O conteúdo de O2 é determinado pela concentração de hemoglobina e pelo grau de
oxigenação sistémica. Na ausência de anemia ou doença pulmonar, o conteúdo em O2 permanece
constante. Por outro lado, o fluxo sanguíneo coronário é muito mais dinâmico, e a sua regulação é
responsável pelo equilíbrio entre o fornecimento de O2 e as necessidades metabólicas.

Tal como nos outros vasos, o fluxo coronário é diretamente proporcional à pressão de perfusão do vaso
e é inversamente proporcional à resistência vascular coronária. Ao contrário de outros sistemas arteriais,
a predominância da perfusão coronária ocorre durante a diástole, uma vez que o fluxo sistólico é
comprometido pela compressão dos pequenos ramos das coronárias devido à contração do miocárdio.
Portanto, no caso das coronárias, a pressão de perfusão corresponde aproximadamente à pressão aórtica
diastólica. Condições que diminuam a pressão aórtica diastólica (como hipotensão ou regurgitação
aórtica) diminuem a pressão de perfusão das coronárias e o fornecimento de O2 ao miocárdio.
A resistência vascular coronária é modulada por forças que comprimem externamente as artérias
coronárias e fatores que alteram o tónus coronário intrínseco.

• Compressão externa: ocorre durante o ciclo cardíaco pela contração do miocárdio. O grau de
compressão está diretamente relacionado com a pressão intramiocárdica, logo é maior durante
a sístole. Para além disso, quando o miocárdio contrai, o subendocárdio, adjacente à elevada
pressão intraventricular, é sujeito a uma maior força do que as outras camadas, o que o torna
uma das regiões mais vulneráveis a lesão isquémica.
• Controlo intrínseco do tónus arterial coronário: ao contrário de outros tecidos, o coração não
consegue aumentar a extração do O2 que é fornecido porque, no seu estado basal, remove todo
o O2 que é possível. Portanto, qualquer necessidade adicional de O2 precisa do aumento do fluxo
sanguíneo, sendo a autorregulação da resistência vascular coronária um importante mediador
deste processo. Os fatores que participam na regulação da resistência vascular coronária são:
o Acumulação de metabolitos locais: durante estados de hipoxemia, o metabolismo
aeróbio e a fosforilação oxidativa na mitocôndria estão inibidos, não sendo possível
regenerar ATP. Consequentemente, acumula-se ADP e AMP, que são degradados a
adenosina, um potente vasodilatador → ao ligar-se aos recetores no músculo liso
vascular, diminui a entrada de cálcio nas células, o que conduz a relaxamento,
vasodilatação e aumento do fluxo coronário. Outros metabolitos que atuam localmente
como vasodilatadores incluem lactato, acetato, hidrogeniões e CO2.
o Fatores endoteliais:
▪ As células endoteliais produzem substâncias vasoativas, entre as quais
vasodilatadores (NO, prostaciclinas e EDHF) e vasoconstritores (endotelina 1)
▪ O NO regula o tónus vascular ao se difundir e relaxar o músculo liso vascular
adjacente através de um mecanismo dependente de GMP cíclico. A produção
de NO pelo endotélio normal ocorre no estado basal e é estimulada
adicionalmente por várias substâncias e situações. Por exemplo, a sua
libertação aumenta quando o endotélio é exposto a ACh, trombina, produtos
de plaquetas agregadas (serotonina e ADP),… Apesar do efeito direto de muitas
destas substâncias causar vasoconstrição, a libertação de NO que é induzida
resulta em vasodilatação.
▪ A prostaciclina, um metabolito do ácido araquidónico, tem propriedades
vasodilatadoras semelhantes às do NO. É libertada pelas células endoteliais em
resposta a hipoxia, tensão de cisalhamento, ACh e produtos plaquetários
(como serotonina). Causa relaxamento do músculo liso vascular através de um
mecanismo dependente de AMP.
▪ O EDHF (endothelium derived hyperpolarizing factor) é uma substância
difusível libertada pelo endotélio que hiperpolarizam (e portanto relaxa) as
células musculares lisas vasculares adjacentes. É libertado por muitos dos
fatores que estimulam o NO, incluindo ACh e o fluxo sanguíneo pulsátil normal.
Na circulação coronária, o EDHF parece ser mais importante no relaxamento
de pequenas arteríolas do que nas artérias maiores.
▪ A endotelina 1 é um potente vasoconstritor que contraria parcialmente as
ações dos vasodilatadores endoteliais. A sua libertação é estimulada pela
trombina, angiotensina II, epinefrina e tensão de cisalhamento do fluxo
sanguíneo. Sob circunstâncias normais, o endotélio normal promove a
vasodilatação através da libertação de vasodilatadores, cuja ação predomina
sob vasoconstritores endoteliais. Contudo, a disfunção endotelial (por
exemplo, nos vasos ateroscleróticos) reduz a libertação de vasodilatadores,
causando uma alteração do balanço a favor da vasoconstrição.
o Fatores neuronais
▪ O controlo neuronal da resistência vascular apresenta uma componente
simpática e outra parassimpática.
▪ Sob circunstâncias normais, a contribuição do SN Parassimpático é reduzida,
mas os recetores simpáticos desempenham um papel importante. Os vasos
coronários contêm recetores adrenérgicos α e β2. A estimulação dos recetores
α resulta em vasoconstrição enquanto a estimulação dos recetores β2
promove a vasodilatação.

É a interação entre os fatores reguladores metabólicos, endoteliais e neuronais que determina o impacto
no tónus vascular. Por exemplo, a estimulação por catecolaminas pode causar inicialmente vasoconstrição
das coronárias por estimulação dos recetores α. Contudo, as catecolaminas também aumentam o
consumo de O2 do miocárdio ao aumentarem a frequência cardíaca e a contractilidade (efeito β2), e a
resultante produção de metabolitos locais induz a dilatação das coronárias.

Consumo miocárdico de O2

Os 3 principais determinantes do consumo miocárdico de O2 são o stress da parede ventricular, a


frequência cardíaca e a contractilidade/estado inotrópico. Para além disso, pequenas quantidades de
oxigénio são consumidas para a energia necessária ao metabolismo basal cardíaco e à despolarização
elétrica.

O stress da parede ventricular é a força tangencial que atua nas fibras do miocárdio, tendendo a afastá-
las, e há gasto de energia ao opor-se a esta força. O stress da parede está relacionado com a pressão
intraventricular, o raio do ventrículo e a espessura da parede ventricular.

• É diretamente proporcional à pressão sistólica ventricular. Circunstâncias que aumentem esta


pressão no ventrículo esquerdo, como estenose aórtica ou hipertensão, aumentam o stress na
parede e o consumo de O2. Condições que diminuam a pressão ventricular, como terapia
antihipertensiva, diminuem o consumo miocárdico de O2.
• Como o stress da parede também é diretamente proporcional ao raio do ventrículo esquerdo,
condições que aumentem o enchimento do ventrículo esquerdo (regurgitação aórtica ou mitral)
aumentam o stress na parede e o consumo de O2. Por outro lado, a diminuição do tamanho e
enchimento do ventrículo esquerdo (ex: nitratos) reduz o stress na parede e o consumo
miocárdico de O2.
• O stress da parede é inversamente proporcional à espessura da parede ventricular pois a força é
espalhada por uma maior massa muscular. Um coração hipertrofiado tem menor stress na
parede e consumo de O2 por grama de tecido do que um coração com parede mais fina.
Portanto, a hipertrofia que se desenvolve em condições de aumento de pressão crónica, como
na estenose aórtica, tem um papel compensatório ao reduzir o consumo de O2.

Se a frequência cardíaca aumentar, o nº de contrações e a quantidade de ATP consumido por minuto


aumenta, aumentando também o consumo de O2. Por outro lado, diminuir a frequência cardíaca (por
exemplo com β-bloqueantes) diminui a utilização de ATP e o consumo de O2.

Relativamente à contractilidade do miocárdio, as catecolaminas circulantes, ou a administração de


fármacos inotrópicos positivos, aumentam diretamente a força de contração, o que aumenta o consumo
de O2. Por outro lado, fármacos inotrópicos negativos, como β-bloqueantes, diminui o consumo
miocárdico de O2.

No estado normal, os mecanismos autorreguladores ajustam o tónus coronário para corresponder o


fornecimento de O2 às necessidades de O2. Na ausência de doença coronária obstrutiva, estes
mecanismos mantêm uma taxa constante de fluxo coronário, desde que a pressão de perfusão aórtica
seja aproximadamente 60 mmHg ou superior. Na aterosclerose coronária avançada, uma diminuição da
pressão de perfusão distal à estenose arterial, em conjunto com a disfunção do endotélio no segmento
afetado, leva a uma incompatibilidade entre o O2 disponível e as necessidades metabólicas do miocárdio.

Fisiopatologia da isquémia
A redução do fluxo sanguíneo na doença arterial coronária resulta de uma combinação entre o
estreitamento fixo de um vaso e um tónus vascular anormal, para o qual contribui a disfunção endotelial
induzida pela aterosclerose.

Estreitamento fixo de um vaso

A significância hemodinâmica de uma lesão estenótica depende da sua extensão e do grau de


estreitamento do lúmen que causa.

As artérias coronárias apresentam segmentos epicárdicos proximais maiores e arteríolas distais mais
pequenas. Os vasos proximais estão sujeitos a estenose provocada por placas de ateroma, enquanto os
segmentos distais estão geralmente livres destas placas e conseguem ajustar o seu tónus vasomotor em
resposta às necessidades metabólicas. As arteríolas têm uma função de reserva,
aumentando o seu diâmetro para corresponder ao aumento do consumo de O2 e
dilatam, mesmo em repouso, se uma estenose proximal for suficientemente
severa.

A significância hemodinâmica do estreitamento de uma artéria coronária depende


do grau de estenose da porção epicárdica do vaso e da quantidade de vasodilatação
compensatória que as arteríolas distais conseguem produzir. Se a estenose
provocar menos de 60% de redução do diâmetro do lúmen, o fluxo potencial
máximo da artéria não é alterado significativamente e, em resposta a esforço, as
arteríolas podem dilatar para alcançar um fluxo sanguíneo adequado. Se a redução
do diâmetro for superior a 70%, o fluxo sanguíneo em repouso é normal, mas o
fluxo máximo é reduzido mesmo com vasodilatação total das arteríolas. Nesta
situação, quando aumenta o consumo de O2 (FC elevada, aumento da força de
contração durante esforço físico), o fluxo coronário de reserva é insuficiente, o consumo supera o
fornecimento e ocorre isquémia do miocárdio. Se a estenose comprometer o lúmen em mais de 90%,
mesmo com dilatação máxima das arteríolas, o fluxo pode ser inadequado para as necessidades basais e
pode ocorrer isquémia em repouso.

Apesar de conexões colaterais poderem ocorrer entre coronárias não obstruídas e em locais distais às
estenoses, frequentemente isto não é suficiente para prevenir a isquémia durante esforço.

Disfunção endotelial

A disfunção endotelial pode contribuir para a fisiopatologia da isquémia através da vasoconstrição


inapropriada das artérias coronárias e através da perda de propriedades antitrombóticas.

Vasoconstrição inapropriada

Em pessoas normais, a atividade física e o stress mental resultam em vasodilatação


coronária. Pensa-se que este efeito seja regulado pela ativação do SN Simpático,
com aumento do fluxo sanguíneo e tensão de cisalhamento a estimularem a
libertação de vasodilatadores endoteliais, como NO. O efeito do NO sobrepõe-se
ao efeito constritor direto α-adrenérgico das catecolaminas, pelo que ocorre
vasodilatação. Contudo, em pacientes com disfunção endotelial, a libertação de
vasodilatadores endoteliais está afetada, logo não há oposição ao efeito direto das
catecolaminas e ocorre vasoconstrição. A resultante diminuição do fluxo
sanguíneo nas coronárias contribui para isquémia. Mesmo o efeito vasodilatador
de metabolitos locais, como a adenosina, é atenuado na disfunção endotelial.

Em pacientes com fatores de risco para doença coronária, como


hipercolesterolemia, diabetes mellitus, hipertensão e tabaco, o
comprometimento da vasodilatação mediada pelo endotélio é notado ainda antes
de existirem lesões ateroscleróticas visíveis, o que sugere que a disfunção
endotelial ocorre precocemente na aterogénese.
A vasoconstrição inapropriada também parece ser importante em síndromes coronárias agudas, como
angina instável e enfarte agudo do miocárdio. A causa mais comum de síndromes coronárias agudas é a
disrupção de placas ateroscleróticas, com agregação plaquetária e formação de trombo. Normalmente,
os produtos da agregação plaquetária no coágulo (serotonina e ADP) resultam em vasodilatação porque
estimulam a libertação endotelial de NO. Contudo, com disfunção endotelial, as ações vasoconstritoras
diretas dos produtos plaquetários predominam, comprometendo ainda mais o fluxo no lúmen arterial.

Perda das propriedades antitrombóticas normais

Para além das ações vasodilatadoras, os fatores libertados pelo endotélio (incluindo NO e prostaciclinas)
também apresentam propriedades antitrombóticas ao interferirem com a agregação plaquetária. Como
na disfunção endotelial a libertação destas substâncias está diminuída, também o efeito antitrombótico
é atenuado. Portanto, em síndromes caracterizadas por trombose, o comprometimento da libertação de
NO e prostaciclinas permite que as plaquetas se agreguem e que secretem procoagulantes e
vasoconstritores.

Outras causas de isquémia do miocárdio

Para além da doença coronária aterosclerótica, outras causas de diminuição do fornecimento de O2 ao


miocárdio incluem:

• Diminuição da pressão de perfusão devido a hipotensão (hipovolémia e choque séptico)


• Redução severa da quantidade de O2 no sangue (anemia grave ou comprometimento da
oxigenação do sangue nos pulmões). Por exemplo, um doente com hemorragia GI maciça pode
desenvolver isquémia do miocárdio e angina de peito mesmo na ausência de doença coronária
aterosclerótica devido à diminuição do fornecimento de O2 (perda de hemoglobina e
hipotensão).

Um profundo aumento na necessidade de consumo miocárdica de O2 pode causar isquémia, por exemplo,
em taquicardias, hipertensão aguda e estenose aórtica severa.

Consequências da isquémia

As consequências da isquémia refletem a oxigenação inadequada do miocárdio e a acumulação local de


produtos do metabolismo. Por exemplo, durante a isquémia, os miócitos passam da via metabólica
aeróbia para a via anaeróbica. A diminuição da produção de ATP afeta a interação das proteínas contráteis
e resulta numa redução transitória da contração sistólica ventricular e do relaxamento diastólico (ambos
processos dependentes de energia). A consequente elevação na pressão diastólica do ventrículo esquerdo
é transmitida (via aurícula esquerda e veias pulmonares) aos capilares pulmonares e pode precipitar
congestão pulmonar e dispneia. Para além disso, produtos metabólicos como lactato, serotonina e
adenosina acumulam-se localmente. Suspeita-se que um ou mais destes compostos ative recetores da
dor periféricos na distribuição C7-T4, podendo ser este o mecanismo pelo qual o desconforto da angina é
produzido. A acumulação local de metabolitos e alterações transitórias no transporte iónico nos miócitos
pode também precipitar arritmias.

O destino final do miocárdio sujeito a isquémia depende da gravidade e duração do desequilíbrio entre o
consumo miocárdico e o fornecimento de O2. Pensava-se que a lesão isquémica cardíaca resultava em
necrose irreversível do miocárdio (EAM) ou recuperação rápida e completa da função dos miócitos (depois
de um breve episódio de angina). Sabe-se atualmente que para além destes desfechos, a isquémia pode
por vezes resultar num período de disfunção contrátil prolongado sem necrose dos miócitos, e que pode
seguir-se a recuperação da função normal.

Por exemplo, miocárdio atordoado refere-se ao tecido que, após sofrer um episódio de isquémia aguda
transitória e severa (mas sem necrose), demonstra disfunção sistólica prolongada mesmo depois do
retorno de fluxo sanguíneo normal. As anormalidades funcionais, bioquímicas e ultraestruturais a seguir
à isquémia são reversíveis e a função contrátil recupera gradualmente. O mecanismo envolvido neste
atraso envolve a sobrecarga de cálcio nos miócitos e a acumulação de radicais livres derivados do oxigénio
durante a isquémia. Em geral, a magnitude do atordoamento é proporcional ao grau da isquémia
precedente, e este estado é provavelmente uma resposta fisiopatológica a uma lesão isquémica que por
pouco não causou necrose irreversível.

Por outro lado, o miocárdio hibernante refere-se ao tecido que manifesta disfunção contrátil ventricular
crónica devido a uma redução persistente do fornecimento sanguíneo, geralmente por doença coronária
que atinge múltiplos vasos. Nesta situação, não ocorre dano irreversível e a função ventricular pode
melhorar logo que seja restaurado o fluxo sanguíneo apropriado (por exemplo, através de angioplastia
coronária ou bypass).

Os conceitos de miocárdio atordoado e hibernante são muito importantes na clínica. Estas regiões do
miocárdio contraem pouco no ECG ou angiografia de contraste e podem parecer indistinguíveis de EAM
irreversível. Contudo, podem serfiferenciados de regiões necróticas por estudos especiais de imagem
(ECG dobutamina, estudo viabilidade thallium-201, PET). Esta distinção influencia a decisão de recorrer a
procedimentos de perfusão percutâneos ou cirúrgicos, porque o miocárdio atordoado e hibernante
melhoraria com revascularização mecânica, enquanto um verdadeiro EAM não.

Síndromes isquémicas

Angina estável

A angina estável crónica manifesta-se como um padrão transitório de desconforto no peito durante
esforço físico ou stress emocional. É geralmente causado por placas de ateroma fixas e obstrutivas em
uma ou mais artérias coronárias. O padrão de sintomas está relacionado com o grau de estenose →
quando o lúmen da artéria está diminuído em mais de 70%, a redução do fluxo pode ser suficiente para o
consumo miocárdico de O2 em repouso, mas insuficiente para compensar um aumento no consumo de
O2. Durante o exercício físico, a ativação do SN Simpático resulta num aumento da FC, PA e
contractilidade, todas as quais aumentam o consumo miocárdico de O2. Quando o consumo excede o
fornecimento de O2 disponível, ocorre isquémia, geralmente acompanhada pelo desconforto no peito da
angina. A isquémia e os sintomas persistem até que a necessidade aumentada de O2 diminua e seja
restaurado o equilíbrio no balanço de O2.

O que também contribui para um inadequado fornecimento de O2 é a vasoconstrição inapropriada das


coronárias causada, em parte, pela disfunção endotelial associada à aterosclerose → a vasodilatação está
comprometida e os vasos podem vasocontrair paradoxalmente em resposta à estimulação das
catecolaminas libertadas durante o exercício, que se ligam aos recetores α nas células musculares lisas
das artérias coronárias.

Para alguns pacientes com angina estável, alterações no tónus desempenham um papel mínimo no
fornecimento diminuído de O2, e o nível de atividade física requerida para precipitar angina é constante
→ angina com threshold fixo. Noutros casos, o grau de obstrução dinâmica causada pela vasoconstrição
ou vasoespasmo tem um papel predominante → angina com threshold variável (estes pacientes podem
ter sintomas num dia e noutros não, com o mesmo consumo miocárdico de O2).

Angina instável

É um aumento na duração e intensidade de episódios isquémicos, que pode ocorrer em baixo esforço
físico e mesmo em repouso, podendo ser um percursor de EAM. A angina instável e o EAM são também
conhecidos como síndromes coronárias agudas e resultam frequentemente de rutura de uma placa
aterosclerótica instável com subsequente agregação plaquetária e trombose.

Angina de Prinzmetal

Episódios de vasoespasmo coronário focal na ausência de lesões ateroscleróticas → o vasoespasmo


intenso reduz o fluxo coronário e resulta em angina. Pensa-se que isto envolva um aumento da atividade
simpática em combinação com disfunção endotelial. Muitos pacientes com este tipo de angina podem ter
aterosclerose precoce manifestada apenas por disfunção endotelial. Ocorre em repouso porque a
isquémia ocorre devido a uma diminuição do fornecimento de O2 e não devido a um aumento do
consumo miocárdico de O2.

Isquémia silenciosa

Episódios assintomáticos de isquémia cardíaca que podem ocorrer em pacientes que já tiveram angina
sintomática, ou podem ser a única manifestação de doença coronária. A presença de isquémia silenciosa
pode ser detetada em eletrocardiografia contínua em ambulatório ou durante o teste de esforço físico. A
razão pela qual ocorre a isquémia silenciosa não é conhecida. É mais comum em pacientes diabéticos
(possivelmente devido a uma perda da sensação de dor por neuropatia periférica), nos idosos e nas
mulheres.

Síndrome X

Pacientes com sintomas típicos de angina de peito em que não há presença de estenose aterosclerótica
significativa nas coronárias nos angiogramas coronários. A patogénese neste caso está relacionada a uma
reserva vasodilatadora inadequada das arteríolas coronárias → as arteríolas (que são demasiado
pequenas para serem vistas na angiografia coronária) podem não dilatar apropriadamente durante
períodos de maior consumo miocárdico de O2, sendo que a disfunção microvascular, vasoespasmo e
hipersensibilidade à dor podem contribuir para esta síndrome. Os pacientes com síndrome X têm melhor
prognóstico do que os que têm doença aterosclerótica.

Manifestações clínicas da angina de peito estável

• História clínica
• Qualidade
o A angina é frequentemente descrita como pressão, desconforto, aperto ou sensação de
peso no peito. Não é uma dor aguda e não varia significativamente com a inspiração ou
movimento da parede torácica. É um desconforto estável que dura mais do que alguns
segundos e que não ultrapassa os 10 min, o que permite diferenciar da dor
musculoesquelética, por exemplo.
o Sinal de Levine: quando solicitado a localizar a sensação, o doente tipicamente coloca
uma mão sobre o esterno, por vezes com um punho fechado, para indicar um
desconforto em aperto, central e subesternal.
• Localização
o Difusa, na área retroesternal ou no precórdio esquerdo, mas pode ocorrer em qualquer
parte do peito, nos braços, pescoço, ace inferior e abdómen superior. Por vezes irradia
para os ombros ou parte interna dos braços, especialmente no lado esquerdo.
• Outros sintomas
o A estimulação simpática e parassimpática resulta em taquicardia, diaforese e náuseas.
A isquémia também provoca uma disfunção transitória da contração do ventrículo
esquerdo e do relaxamento diastólico – a resultante elevação da pressão diastólica do
ventrículo esquerdo é transmitida aos vasos pulmonares e muitas vezes causa dispneia
durante o episódio.
• Precipitantes
o A angina, quando não causada por vasoespasmo puro, é precipitada por condições que
aumentem o consumo miocárdico de O2 (aumento da FC, contractilidade e stress na
parede), como esforço físico e stress emocional, uma refeição pesada ou o frio (frio →
vasoconstrição periférica → aumento stress na parede pois ventrículo contrai mais
contra o aumento da resistência).
o Geralmente alivia passado uns minutos da cessação da atividade que a precipitou e
ainda mais rápido se for utilizada nitroglicerina sublingual.
• Frequência
o Apesar do nível de esforço que é necessário para precipitar angina ser constante, a
frequência dos episódios varia consideravelmente porque os pacientes aprendem
rapidamente quais as atividades que causam o desconforto e evitam-nas.
• Fatores de risco
o Tabaco, dislipidemia, hipertensão, diabetes e história familiar de doença coronária
• Diagnóstico diferencial

Exame físico

Se for possível examinar um doente durante um episódio de angina, podem ser detetados vários sinais
físicos transitórios:

No exame físico também deve constar a avaliação de sinais de doença aterosclerótica noutros locais:
sopros carotídeos, na artéria femoral ou pulsos diminuídos nas extremidades inferiores, …

Estudos diagnósticos

Eletrocardiograma (ECG)

Durante a isquémia, são comuns alterações no segmento ST e na onda


T → depressões do segmento ST e achatamento ou inversão da onda
T. Podem ocorrer elevações do segmento ST na isquémia miocárdica
transmural e durante vasoespasmo intenso na angina de Prinzmetal.
Ao contrário do ECG de um paciente com EAM, as alterações no segmento ST normalizam com a resolução
dos sintomas, sendo que em períodos livres de isquémia, o ECG está normal em metade dos pacientes
com angina estável. Noutros, alterações crónicas não diagnosticadas do segmento ST e da onda T podem
estar presentes.

Stress testing

Como o ECG obtido pode estar normal, os testes de esforço físico e testes farmacológicos são úteis para
o diagnóstico e prognóstico.

• Teste de esforço físico: o paciente anda/corre numa passadeira ou numa bicicleta estática com
aumento progressivo do esforço e observa-se se ocorre desconforto no peito ou dispneia
excessiva. Monitoriza-se a FC, PA e ECG. O teste continua até que ocorra angina, apareçam sinais
de isquémia do miocárdio no ECG, seja alcançada a FC alvo ou que o paciente esteja demasiado
cansado para continuar.
• Testes de imagem nuclear
• Teste de esforço físico com ecocardiograma (EEG)

Angiografia coronária

Técnicas de imagem não invasivas das artérias coronárias (ex: TC)

História natural da doença

Os doentes com angina estável podem manter um padrão de isquémia estável por vários anos. Noutros
isto pode ser pontuado pela ocorrência de angina instável, EAM ou morte cardíaca súbita. Estas
complicações relacionam-se com trombose aguda no local de disrupção da placa aterosclerótica.

A localização e a extensão das estenoses coronárias são importantes, mas também há outros fatores
preditivos de mortalidade, que incluem a magnitude do comprometimento da função contrátil
ventricular, baixa capacidade física e a magnitude dos sintomas da angina.

A mortalidade associada à doença coronária tem diminuído significativamente devido a redução do risco
aterosclerótico por mudança do estilo de vida (cessação tabágica, diminuição da ingestão de gorduras,
prática de exercício físico), melhoria das estratégias terapêuticas e longevidade após síndrome coronária
aguda e avanços na terapêutica da doença coronária crónica.

Síndromes coronárias agudas

Patogénese

Mais de 90% das síndromes coronárias agudas (SCA) resultam da disrupção de uma placa aterosclerótica
com subsequente agregação plaquetária e formação de um trombo intracoronário. O trombo provoca
oclusão grave ou completa, e o comprometimento da perfusão leva a um desequilíbrio entre o
fornecimento e o consumo miocárdico de O2.

A forma de SCA depende do grau de obstrução coronária e da isquémia associada:

Um trombo parcialmente oclusivo é a causa típica de angina instável e de EAM sem elevação do segmento
ST (historicamente referido como EAM sem onda Q), sendo a angina instável e o EAM são distinguidos
pela presença ou não de necrose. Um trombo completamente obstrutivo provoca isquémia mais severa
e mais necrose, manifestando-se como EAM com elevação ST (ou EAM com onda Q).
O trombo é formado pelas interações entre a placa aterosclerótica, o endotélio, as plaquetas circulantes
e o tónus vasomotor dinâmico da parede vascular, que se sobrepõem aos mecanismos naturais
antitrombóticos.

Hemostase normal

Quando um vaso é lesado, a superfície endotelial sofre disrupção e o tecido conjuntivo trombogénico fica
exposto. A hemóstase primária é a 1ª linha de defesa contra a hemorragia. Este processo começa
segundos após a lesão do vaso e é mediado pelas plaquetas circulantes, que aderem ao colagénio no
subendotélio vascular e se agregam formando um tampão plaquetário. Depois, a exposição de fatores
teciduais subendoteliais estimula a cascata de coagulação plasmática, iniciando o processo de hemóstase
secundária. As proteínas de coagulação plasmáticas envolvidas na hemóstase secundária são ativadas
sequencialmente no local da lesão e formam um coágulo de fibrina através da ação da trombina, que
estabiliza e fortalece o tampão plaquetário.

Existem diferenças entre a resposta fisiológica e o processo patológico de trombose coronária


desencadeado por disrupção do ateroma.

Mecanismos endógenos antitrombóticos

Inativação de fatores de coagulação

• Antitrombina: é uma proteína plasmática que


se liga irreversivelmente à trombina e a outros
fatores de coagulação, inativando-os e
facilitando a sua saída da circulação. A eficácia
da antitrombina aumenta 1000x ao se ligar ao
sulfato de heparano, uma molécula heparina-
like que se encontra normalmente na superfície
luminal das células endoteliais.
• Proteína C/proteína S/trombomodulina:
formam um sistema anticoagulante natural que
inativa os fatores “de aceleração” da via da
coagulação (fatores Va e VIIIa). A proteína C é
sintetizada no fígado e circula na sua forma
inativa. A trombomodulina é um recetor
presente nas células endoteliais ao qual se liga
a trombina → a trombina ligada à
trombomodulina não consegue converter fibrinogénio em fibrina (a reação final na formação de
um coágulo). Para além disso, o complexo trombina-trombomodulina ativa a proteína C, que
degrada os fatores Va e VIIIa, inibindo assim a coagulação. A presença de proteína S em
circulação aumenta a função inibitória da proteína C.
• TFPI (tissue factor pathway inhibitor): é um inibidor da protéase de serina plasmática que é
ativado pelo fator de coagulação Xa. A combinação fator Xa-TFPI liga-se e inativa o complexo do
fator tecidual com o fator VIIa que normalmente desencadeia a via extrínseca da coagulação.
Portanto, o TFPI funciona como um inibidor de feedback negativo que interfere na coagulação.

Lise de coágulos de fibrina

O ativador do plasminogénio tecidual (tPA) é uma proteína secretada pelas células endoteliais em
resposta a vários estímulos de formação de coágulos. Cliva o plasminogénio para formar plasmina ativa,
sendo que esta degrada enzimaticamente os coágulos de fibrina. Quando a tPA se liga à fibrina num
coágulo em formação, a sua capacidade de converter plasminogénio em plasmina é aumentada.

Inibição plaquetária endógena e vasodilatação


As prostaciclinas são sintetizadas e secretadas por células endoteliais; aumentam os níveis plaquetários
de AMP cíclico, inibindo a ativação plaquetária e a agregação. Também inibe indiretamente a coagulação
através das suas propriedades vasodilatadoras – a vasodilatação aumenta o fluxo sanguíneo (o que
minimiza o contacto entre fatores procoagulantes) e reduz a tensão de cisalhamento (um indutor da
ativação plaquetária).

O NO também é secretado pelas células endoteliais – atua localmente ao inibir a ativação plaquetária e
também é um potente vasodilatador.

Patogénese da trombose coronária

A aterosclerose contribui para a formação de trombos


através da rutura da placa, que expõe o sangue a
substâncias trombogénicas e disfunção endotelial, com
perda das propriedades normais protetoras
antitrombóticas e vasodilatadoras.

A rutura de placa é o principal desencadeante da


trombose coronária. As causas da disrupção da placa
incluem fatores químicos que destabilizam as lesões
ateroscleróticas e stress físico a que as placas são
sujeitas.

As SCA por vezes ocorrem devido a atividade física


intensa ou transtorno emocional. A ativação do SN Simpático nestas situações aumenta a PA, FC e força
de contração ventricular, o que pode causar stress sobre a placa e provocar a sua rutura. Para além o EAM
tem mais tendência a ocorrer nas primeiras horas do dia, uma vez que os agentes stressores fisiológicos
(como PA, viscosidade do sangue e níveis séricos de epinefrina) são mais elevados nesse período.

Depois da rutura da placa, a exposição do fator tecidual do núcleo do ateroma desencadeia a via da
coagulação, enquanto a exposição do colagénio subendotelial ativa as plaquetas. As plaquetas ativadas
libertam o conteúdo dos seus grânulos, que incluem facilitadores da agregação plaquetária (ADP e
fibrinogénio), ativadores da cascata de coagulação (fator Va) e vasoconstritores (tromboxano e
serotonina). Tanto o desenvolvimento do trombo intracoronário como a hemorragia intraplaca e a
vasoconstrição contribuem para a estenose, criando um fluxo turbulento que contribui para a tensão de
cisalhamento e ativação plaquetária.

A disfunção endotelial também aumenta a probabilidade de formação de trombo → é libertada uma


quantidade reduzida de vasodilatadores (NO e prostaciclinas), logo a inibição da agregação plaquetária
por estes fatores está comprometida, resultando na perda de uma defesa chave contra a trombose. A
disfunção endotelial também faz com que o endotélio esteja menos apto a contrariar os produtos
vasoconstritores das plaquetas. Durante a formação do trombo, a vasoconstrição é promovida pelos
produtos plaquetários (tromboxano e serotonina) e pela trombina que constitui o coágulo em
desenvolvimento. A resposta normal associada às plaquetas seria a vasodilatação, porque os produtos
plaquetários estimulam a libertação endotelial de NO e prostaciclinas, cuja influência predomina sobre os
vasoconstritores derivados das plaquetas. Contudo, a diminuição da secreção de vasodilatadores
endoteliais na aterosclerose permite que ocorra vasoconstrição. A trombina é um potente vasoconstritor
na disfunção endotelial. A vasoconstrição causa stress torcional que pode contribuir para a rutura da placa
ou que pode ocluir transitoriamente o vaso estenótico através do tónus arterial aumentado. A redução
do fluxo sanguíneo coronário causada pela vasoconstrição também reduz a saída das proteínas de
coagulação do local, aumentando assim a trombogenicidade.
A formação de um trombo intracoronário pode resultar em vários desfechos:

Causas não ateroscleróticas de síndromes coronárias agudas

Patologia e fisiopatologia

O EAM (quer com elevação do segmento ST quer sem elevação do segmento ST) ocorre quando a isquémia
é suficientemente grave para provocar necrose dos miócitos. Apesar de por definição a angina instável
não resultar em necrose, pode suceder-se EAM se a patofisiologia do padrão instável da angina não for
rapidamente corrigido.

Para além das classificações clínicas, os enfartes podem ser descritos patologicamente, de acordo com a
extensão da necrose:

• Enfarte transmural: resulta da oclusão total e prolongada de uma artéria coronária epicárdica
• Enfarte subendocárdico: o subendocárdio é particularmente suscetível a isquémia porque é a
zona sujeita a maior pressão da câmara ventricular, tem poucas anastomoses colaterais e é
irrigado por vasos que têm de passar através das camadas do miocárdio contrátil.

O miocárdio que é irrigado diretamente pelo vaso ocluído pode sofrer necrose rapidamente. O tecido
adjacente pode não sofrer logo necrose se for suficientemente irrigado por vasos próximos. Contudo, as
células adjacentes podem tornar-se progressivamente isquémicas, visto que o consumo miocárdico de O2
continua face a uma diminuição do fornecimento de O2, pelo que a região de enfarte se pode estender.
Assim, a quantidade de tecido que sofre enfarte relaciona-se com a massa de miocárdio perfundida pelo
vaso ocluído, com a magnitude e duração do fluxo coronário afetado, com o consumo de O2 da região
afetada, com a existência de anastomoses colaterais e com o grau de resposta do tecido que modifica o
processo isquémico.

As alterações fisiopatológicas durante o EAM ocorrem em 2 fases: alterações durante o EAM e alterações
durante a recuperação e remodelação do miocárdio.

Alterações iniciais
Incluem a evolução histológica do enfarte e o impacto funcional da provação de O2 na contractilidade
miocárdica. Estas alterações culminam em necrose de coagulação em 2-4 dias.

Alterações celulares

A diminuição do O2 disponível leva a alteração do


metabolismo aeróbio para metabolismo anaeróbio.
Como a mitocôndria não consegue oxidar ácidos
gordos ou produtos da glicólise, diminui a produção
de ATP e a glicólise anaeróbia leva à acumulação de
ácido láctico, o que resulta numa diminuição do pH.

A diminuição de ATP interfere com a Na+-K+-ATPase,


com resultante elevação do Na+ intracelular (que
contribui para edema celular) e do K+ extracelular.
Ocorre alteração no potencial elétrico
transmembranar, predispondo o miocárdio a arritmias letais. Há acumulação de Ca2+ intracelular, que
ativa lípases e protéases.

Estas alterações metabólicas diminuem a função miocárdica 2 min após a trombose oclusiva. Sem
intervenção, ocorre lesão celular irreversível em 20 min, marcada por defeitos na membrana. Enzimas
proteolíticas saem através da membrana danificada e lesam o miocárdio adjacente. A libertação de certas
macromoléculas na circulação serve como marcador clínico de enfarte agudo.

O edema do miocárdio desenvolve-se em 4-12 horas, à medida que a permeabilidade vascular aumenta
e a pressão oncótica intersticial aumenta (devido ao extravasamento de proteínas intracelulares). A
resposta inflamatória aguda, com infiltração de neutrófilos, começa após 4 horas e aumenta ainda mais
o dano tecidual. Dentro de 18-24h, a necrose de coagulação torna-se evidente.

Alterações macroscópicas

Não aparecem até 18-24h após a oclusão da coronária, apesar de certas técnicas de coloração permitirem
ao patologista identificar as regiões de enfarte mais cedo. Na maioria das vezes, a isquémia e o enfarte
começam no subendocárdio e depois estendem-se lateralmente e para fora em direção ao epicárdio.

Alterações tardias

Incluem a remoção dos detritos necróticos e a formação de cicatriz. Os macrófagos invadem o miocárdio
depois da infiltração neutrofílica e removem o tecido necrótico. Esta remoção, combinada com a
diminuição da espessura e dilatação da zona de enfarte, resultam em fragilidade estrutural da parede
ventricular, com a possibilidade de se romper. Depois ocorre fibrose, e a cicatrização está completa 7
semanas após o enfarte.
Alterações funcionais

Comprometimento da compliance e contractilidade

A destruição de miócitos afeta a contração ventricular (disfunção sistólica). O débito cardíaco é


comprometido porque perde-se a contração síncrona dos miócitos. Uma região localizada com contração
reduzida é denominada hipocinética, um segmento que não contrai é acinético, e uma região discinética
é a que se projeta para fora durante a contração das restantes porções funcionais do ventrículo.

Durante a síndrome coronária aguda, o ventrículo esquerdo também é comprometido por disfunção
diastólica. A isquémia e/ou o enfarte afetam o relaxamento diastólico (um processo dependente de
energia), o que reduz a compliance ventricular e contribui para pressões de enchimento ventriculares
elevadas.

Miocárdio atordoado

O atordoamento desempenha um papel importante em pacientes com angina instável ou no miocárdio


adjacente à região que sofreu enfarte. Em ambas as situações, a disfunção contrátil prolongada dos
segmentos ventriculares afetados pode ser evidente após o evento, simulando tecido que sofreu enfarte.
Contudo, se for simplesmente miocárdio atordoado em vez de necrótico, a sua função recupera ao longo
do tempo.

Pré-condicionamento isquémico

Períodos breves de isquémia numa região do miocárdio podem aumentar a resistência do tecido a
episódios subsequentes – pré-condicionamento isquémico. A relevância clínica é que pacientes que
sofrem EAM no contexto de um episódio recente de angina apresentam menor morbilidade e mortalidade
do que aqueles sem episódios isquémicos precedentes. O mecanismo deste fenómeno é desconhecido
mas parece envolver várias vias de sinalização. Substâncias libertadas durante a isquémia, como
adenosina e bradicinina, podem ser desencadeantes destas vias.

Remodelação ventricular

Após o EAM, ocorrem alterações no miocárdio que sofreu e que não sofreu enfarte, ao nível do tamanho
da câmara cardíaca e da espessura da parede, que afetam a função cardíaca a longo prazo e o prognóstico.

Inicialmente, após o EAM, pode ocorrer expansão dos segmentos ventriculares afetados sem necrose
adicional. A expansão do enfarte representa o desgaste e dilatação da zona necrótica do tecido,
resultando numa diminuição do volume de miócitos na região. A expansão aumenta o tamanho do
ventrículo, o que aumenta o stress na parede, afeta a função contrátil sistólica e aumenta a probabilidade
de se formar um aneurisma. Para além disto, a remodelação do ventrículo também pode envolver
dilatação dos segmentos sobrecarregados que não sofreram enfarte, que estão sujeitos a aumento do
stress na parede. A dilatação continua durante semanas-meses. Inicialmente, a dilatação da câmara
apresenta um papel compensatório porque aumenta o débito cardíaco via o mecanismo de Frank-Starling,
mas pode progressivamente levar a insuficiência cardíaca e predispor a arritmias ventriculares.

A remodelação ventricular adversa pode ser modificada através de várias intervenções. No período do
enfarte, terapias de reperfusão limitam o tamanho do enfarte e portanto diminuem a probabilidade de
ocorrer expansão. Para além disso, fármacos que interferem com o sistema renina-angiotensina atenuam
a remodelação progressiva e reduzem a mortalidade a curto e longo prazo.

Características clínicas das síndromes coronárias agudas

Como a síndrome coronária aguda representa um continuum, as características clínicas sobrepõem-se.


Em geral, a gravidade dos sintomas e achados laboratoriais associados progridem de angina instável →
EAM sem elevação do segmento ST → EAM com elevação do segmento ST. A distinção entre estas
síndromes é baseada na apresentação clínica, nos achados do ECG e em biomarcadores plasmáticos. Para
instituir terapêutica imediata adequada, a mais importante distinção é entre síndromes coronárias agudas
que causam elevação do segmento ST no ECG e aquelas que não a causam.

Apresentação clínica

Angina instável

Consiste numa aceleração dos sintomas isquémicos numa das seguintes formas:

• Padrão em crescendo, em que o paciente com angina crónica estável experiencia um súbito
aumento na frequência, duração e/ou intensidade dos episódios isquémicos
• Episódios de angina que ocorrem em repouso
• Novos episódios de angina num paciente sem sintomas prévios de doença coronária.

A angina instável pode progredir para enfarte a não ser que a condição seja reconhecida e rapidamente
tratada.

Enfarte agudo do miocárdio

A dor característica, tal como na angina, resulta da libertação de mediadores, como a adenosina e o
lactato, das células que sobrem isquémia para as terminações nervosas. Como a isquémia no EAM persiste
e progride para necrose, estas substâncias continuam a acumular-se e ativam os nervos aferentes durante
mais tempo – dermátomos C7 a T4, incluindo pescoço, ombros e braços. Ao contrário de um episódio de
angina, a dor não diminui em repouso e pode haver pouca resposta à administração de nitroglicerina
sublingual. A dor é muitas vezes severa, mas 25% dos doentes com EAM são assintomáticos durante a
fase aguda – isto é comum em pacientes diabéticos em que a sensação de dor está afetada por neuropatia
periférica.

A combinação de dor intensa e de menor ativação dos barorrecetores (se estiver presente hipotensão)
desencadeia uma elevada resposta simpática. Sinais sistémicos da subsequente libertação de
catecolaminas incluem diaforese (sudorese), taquicardia e pele fria e húmida causada por vasoconstrição.

Se a isquémia afetar uma quantidade suficiente de miocárdio, a contractilidade do ventrículo esquerdo


pode ficar reduzida (disfunção sistólica), diminuindo o volume sistólico, e aumentando o volume diastólico
e a pressão no ventrículo. O aumento da pressão, em conjunto com a rigidez da câmara induzida pela
isquémia (disfunção diastólica), é passado à aurícula esquerda e às veias pulmonares. A resultante
congestão pulmonar diminui a compliance pulmonar e estimula os recetores justacapilares. Estes
recetores J são responsáveis por um reflexo que resulta em respiração rápida e superficial que provoca
dispneia. A transudação de fluido para os alvéolos exacerba este sintoma.

Os achados físicos durante um EAM dependem da localização e extensão do enfarte. O som S4 e S3 podem
estar presentes. Também pode existir um sopro sistólico se a disfunção dos músculos papilares causar
insuficiência mitral ou se for criado um defeito no septo interventricular.
A necrose também ativa uma resposta inflamatória sistémica. Citocinas como IL-1 e TNF são libertadas
pelos macrófagos e pelo endotélio em resposta à lesão dos tecidos, e provocam febre.

Nem todos os pacientes com dor severa no peito apresentam EAM ou angina instável:

Diagnóstico

O diagnóstico de e a distinção entre síndromes coronárias agudas são baseados nos sintomas do doente,
nas anormalidades presentes no ECG e na deteção de biomarcadores específicos de necrose do miocárdio.

Anormalidades no ECG:

Biomarcadores séricos

A necrose do miocárdio causa disrupção do sarcolema, pelo que macromoléculas intracelulares


extravasam para o interstício cardíaco e para a corrente sanguínea. A deteção destas moléculas no
plasma, particularmente troponinas cardíacas específicas e a CK-MB, é importante para o diagnóstico e
prognóstico. Em pacientes com EAM com e sem elevação do segmento ST, estes marcadores aumentam
acima de um nível basal numa sequência temporal definida.

Troponinas específicas cardíacas

A troponina é uma proteína reguladora nas células musculares que controla as interações entre a miosina
e a actina. Apresenta 3 subunidades: TnC, TnI e TnT. Apesar destas subunidades serem encontradas tanto
no músculo esquelético como no cardíaco, as formas cardíacas de troponina I (cTnI) e troponina T (cTnT)
são estruturalmente únicas. Como em pessoas saudáveis elas praticamente não se encontram em
circulação, mesmo uma elevação mínima serve como um marcador potente e sensível da lesão de
miócitos.

Nota: as troponinas cardíacas podem ser detetadas em pequenas quantidades noutras condições que
causam inflamação ou tensão cardíaca aguda (exacerbação de insuficiência cardíaca, miocardite, crise
hipertensiva ou embolismo pulmonar).

No caso do EAM, o nível sérico de troponinas cardíacas começa a


aumentar 3 a 4 horas após o início da dor, atinge um pico entre as
18 e 36h e depois diminui lentamente, sendo possível a deteção
por 10-14 dias após um grande enfarte. Portanto, a sua medição
é útil para deteção de EAM durante as 2 semanas após o evento.
Devido à sua alta sensibilidade e especificidade, são os
biomarcadores séricos preferidos para detetar necrose do
miocárdio.

Creatinina cinase

É encontrada no coração, cérebro, músculo esquelético e noutros


órgãos, pelo que concentrações séricas elevadas traduzem dano
nestes tecidos.

Existem 3 isoenzimas de CK: CK-MM (músculo esquelético), CK-BB (cérebro) e CK-MB (coração).

Nota: existe uma pequena quantidade de CK-MB fora do coração, incluindo no útero, próstata, intestino,
diafragma e língua. A CK-MB também representa 1-3% da creatina cinase no músculo esquelético. Na
ausência de trauma nos órgãos referidos, a elevação da CK-MB é altamente sugestiva de lesão no
miocárdio. Para facilitar o diagnóstico de EAM usando este marcador, calcula-se a razão entre a CK-MB e
a CK total. A razão é geralmente > 2,5% na lesão do miocárdio e menor de a elevação da CK-MB for devida
a outra fonte.

Os níveis séricos de CK-MB começam a aumentar 3-8h após o enfarte, atinge o pico às 24h e depois volta
ao normal dentro de 48-72h. Esta sequência temporal é importante porque outras fontes de CK-MB (ex:
lesão musculoesquelética) ou outras condições cardíacas que aumentem os níveis da isoenzima (ex:
miocardite) não mostram este padrão.

A CK-MB não é tão sensível nem tão específica para a deteção de lesão do miocárdio como as troponinas
cardíacas.

Como as troponinas e a CK-MB não aumentam até algumas horas após o início dos sintomas de EAM, a
sua utilidade diagnóstica é limitada àquele período crítico. Assim, decisões iniciais a tomar nos pacientes
com síndrome coronária aguda são apoiadas principalmente na história clínica e nos achados no ECG.

Técnicas de imagem

Por vezes o EEG é útil no diagnóstico, e tipicamente revela anormalidades na contração ventricular na
região de isquémia ou enfarte.
Tratamento de síndromes coronárias agudas

Complicações

Na angina instável, as potenciais complicações incluem morte (5 a 10%) ou progressão para enfarte (10 a
20%) nos dias-semanas seguintes ao episódio. As complicações do enfarte resultam de anormalidades
inflamatórias, mecânicas e elétricas induzidas pelo miocárdio necrosado. As iniciais resultam da própria
necrose, enquanto as mais tardias refletem inflamação e cicatrização.

Isquémia recorrente

A angina pós-enfarte é reportada por 20-30% dos


pacientes após um EAM. Esta taxa não é reduzida
por terapêutica trombolítica, mas é mais baixa nos
pacientes que sofreram angioplastia percutânea
ou implantação de stent coronário. É indicativo de
fluxo coronário inadequado residual e
correlaciona-se com aumento do risco de voltar a
ocorrer enfarte. Estes pacientes normalmente
cateterização cardíaca urgente seguida por
revascularização através de técnicas percutâneas
ou bypass coronário.

Arritmias

Os mecanismos que contribuem para a formação de arritmias após o EAM incluem:

• Interrupção anatómica do fluxo sanguíneo para estruturas da via de condução (ex: nódulo sino-
auricular, nódulo AV, feixe de His, ramo esq e dto)
• Acumulação de produtos metabólicos tóxicos (ex: acidose) e concentração anormal de iões
transcelulares devido a fugas pela membrana
• Estimulação autonómica (simpática e parassimpática)
• Administração de fármacos potencialmente arritmogénicos (ex: dopamina)

A fibrilhação ventricular (atividade elétrica ventricular rápida e desorganizada) é responsável por muitos
casos de morte súbita durante o EAM. Episódios que ocorram durante as primeiras 48h do EAM estão
relacionados com instabilidade elétrica transitória, e o prognóstico a longo prazo dos sobreviventes não
é afetado. Contudo, fibrilhação ventricular que ocorra depois das 48h reflete disfunção ventricular grave
e está associada a elevadas taxas de mortalidade.

Disfunção do miocárdio

Insuficiência cardíaca congestiva

A isquémia cardíaca aguda afeta a contractilidade ventricular (disfunção sistólica) e aumenta a rigidez do
miocárdio (disfunção diastólica), ambas as quais podem levar a sintomas de insuficiência cardíaca. Para
além disso, remodelação ventricular, arritmias e complicações mecânicas agudas do EAM podem culminar
em insuficiência cardíaca. Os sinais e sintomas incluem dispneia e presença de S3.

Choque cardiogénico

É uma condição em que ocorre diminuição grave do débito cardíaco e hipotensão com inadequada
perfusão dos tecidos periféricos que se desenvolve quando mais de 40% do ventrículo esquerdo sofre
enfarte. O choque cardiogénico perpetua-se porque a hipotensão leva a diminuição da perfusão
coronária, que exacerba a lesão isquémica, e o volume sistólico diminuído aumenta o tamanho do
ventrículo esquerdo, e portanto aumenta o consumo miocárdico de O2. O choque cardiogénico ocorre
em cerca de 10% dos pacientes após o enfarte, e a taxa de mortalidade é >70%. A cateterização cardíaca
precoce e a revascularização podem melhorar o prognóstico.

Enfarte do ventrículo direito

Aproximadamente 1/3 dos doentes com enfarte da parede inferior do ventrículo esquerdo também
desenvolvem necrose em porções do ventrículo direito, porque a mesma artéria coronária irriga ambas
as regiões. A resultante contração anormal e diminuição da compliance do ventrículo direito leva a sinais
de insuficiência cardíaca direita (como ingurgitamento jugular). Para além disso, pode originar-se
hipotensão profunda se a disfunção ventricular direita afetar o fluxo sanguíneo para os pulmões, fazendo
com que o ventrículo esquerdo não seja totalmente preenchido.

Complicações mecânicas

Rutura músculos papilares

A necrose isquémica e a rutura de um músculo papilar do ventrículo esquerdo pode ser rapidamente fatal
devido à regurgitação mitral aguda grave, quando os folhetos da válvula deixam de estar ancorados. A
rutura parcial, com regurgitação moderada, não é imediatamente letal mas pode resultar em sintomas de
insuficiência cardíaca ou edema pulmonar. Como tem uma menor irrigação, o músculo papilar póstero-
medial do ventrículo esquerdo é o mais suscetível.

Rutura parede ventricular livre

Pode ocorrer nas primeiras 2 semanas após o enfarte. É mais comum em mulheres e em doentes com
hipertensão. A hemorragia para o espaço pericárdico resulta em rápido tamponamento cardíaco, no qual
o sangue preenche o espaço pericárdico e restringe o enchimento ventricular. A sobrevivência é rara.
Pode formar-se um pseudoaneurisma se a rutura da parede for incompleta e se um coágulo preencher a
rutura do miocárdio.

Rutura do septo interventricular

A passagem de sangue do ventrículo esquerdo para o direito precipita insuficiência cardíaca congestiva
devido à sobrecarga de volume nos capilares pulmonares. Ouve-se um sopro sistólico no bordo esternal
esquerdo.

Aneurisma ventricular

A parede ventricular fica enfraquecida pela remoção do tecido necrótico e o resultado é uma discinesia
quando o músculo residual contrai. Não envolve comunicação do ventrículo com o pericárdio, pelo que
não se desenvolve rutura nem tamponamento. As potenciais complicações incluem formação de trombo,
arritmias ventriculares e insuficiência cardíaca.

Pericardite

Inflamação estende-se do miocárdio para o pericárdio adjacente.

Tromboembolismo

A estase em regiões de contração ventricular afetada pode resultar na formação de trombos


intracavitários. Um tromboembolismo subsequente pode resultar em enfarte de órgãos periféricos (ex:
AVC).
Hemostasia

A hemostasia normal consiste numa série de processos regulados que mantêm o sangue em
estado fluido, sem coágulos, nos vasos normais, formando ao mesmo tempo e rapidamente um
tampão hemostático, localizado no sítio de lesão vascular. A contraparte patológica da
hemostasia é a trombose, a formação de coágulo sanguíneo (trombo) dentro de vasos intactos.
Tanto a hemostasia como a trombose envolvem três elementos: parede vascular, plaquetas e
cascata de coagulação.

Hemostasia normal

• A lesão vascular causa vasoconstrição arteriolar


transitória por meio de mecanismos neurogénicos
reflexos, aumentados pela secreção local de
endotelina (um potente vasoconstritor derivado
do endotélio). Contudo, esse efeito é fugaz, e a
hemorragia rapidamente retornaria se não fosse a
ativação de plaquetas e dos fatores de coagulação.
• A lesão endotelial expõe a matriz extracelular
(MEC) subendotelial altamente trombogénica,
facilitando a adesão, ativação e agregação
plaquetárias. A formação do tampão plaquetário
inicial é chamada de hemostasia primária
• A lesão endotelial também expõe o fator tecidual
(conhecido como fator III ou tromboplastina), uma
glicoproteína pró-coagulante envolta por
membrana sintetizada pelas células endoteliais. O
fator tecidual exposto, agindo em conjunto com o
fator VII, é o principal gatilho in vivo da cascata de
coagulação, e a sua ativação eventualmente
culmina na ativação da trombina, que tem vários
papéis na regulação da coagulação.
• A trombina ativada promove a formação de um
coágulo insolúvel de fibrina por clivagem de
fibrinogénio; a trombina também é um potente
ativador de plaquetas adicionais, que servem para
reforçar o tampão hemostático. Essa sequência,
denominada hemostasia secundária, resulta na
formação de um coágulo estável capaz de impedir
mais hemorragia.
• À medida que a hemorragia é controlada,
mecanismos contrarregulatórios (p. ex., fatores
que produzem fibrinólise, como o ativador do plasminogénio tipo tecidual) são postos
em movimento para assegurar que a formação de coágulo seja limitada ao local da
lesão.

Endotélio

As células endoteliais são reguladoras centrais da hemostasia; o equilíbrio entre as atividades


anti e protrombóticas do endotélio determina se ocorre formação, propagação ou dissolução de
trombo. Células endoteliais normais expressam uma variedade de fatores anticoagulantes que
inibem a agregação plaquetária e a coagulação, e promovem fibrinólise; após a lesão ou a
ativação, esse equilíbrio altera-se, e as células endoteliais adquirem numerosas atividades pró-
coagulantes. Além do trauma, o endotélio pode ser ativado por agentes patogénicos
microbianos, forças hemodinâmicas e mediadores pró-inflamatórios.

Propriedades antitrombóticas do endotélio normal:

• Efeitos inibidores sobre as plaquetas: o endotélio intacto impede que as plaquetas (e os


fatores de coagulação) se juntem à MEC subendotelial. As plaquetas não ativadas não
aderem ao endotélio normal; mesmo com plaquetas ativadas, a prostaciclina e o NO
produzido pelo endotélio impedem a sua adesão. Ambos os mediadores também são
potentes vasodilatadores e inibidores da agregação plaquetária; a sua síntese pelas
células endoteliais é estimulada por uma série de fatores (p. ex., trombina, citocinas)
produzidos durante a coagulação. As células endoteliais também produzem adenosina
difosfatase, que degrada o ADP e inibe mais a agregação plaquetária.
• Efeitos inibidores sobre os fatores de coagulação: essas ações são mediadas por fatores
expressos nas superfícies endoteliais, particularmente as moléculas do tipo heparina,
trombomodulina e inibidor da via de fator tecidual. As moléculas do tipo heparina agem
indiretamente: elas são cofatores que aumentam muito a inativação da trombina (e de
outros fatores de coagulação) por meio da proteína plasmática antitrombina III. A
trombomodulina também age indiretamente: liga-se à trombina, modificando a
especificidade do substrato da trombina, para, em vez de clivar fibrinogénio, clivar e
ativar a proteína C, um anticoagulante. A proteína C ativada inibe a coagulação por meio
de clivagem e inativação de dois pró-coagulantes, fator V e fator VIIIa; ela requer um
cofator, a proteína S, que também é sintetizada pelas células endoteliais. Finalmente, o
inibidor da via do fator tecidual (TFPI) inibe diretamente o complexo fator tecidual-
fator VIIa e o fator Xa.
• Fibrinólise: as células endoteliais sintetizam o ativador de plasminogénio do tipo
tecidual, uma protease que cliva plasminogénio para plasmina; esta, por sua vez, cliva a
fibrina para degradar os trombos.

Propriedades pró-trombóticas do endotélio lesionado ou ativado:


• Ativação de plaquetas: a lesão endotelial põe as plaquetas
em contato com a MEC subendotelial, a qual inclui entre os
seus constituintes o fator de von Willebrand (fvW), uma
proteína multimérica sintetizada por células endoteliais. O
fvW mantém-se aderido à MEC por meio de interações
com o colagénio e também se liga fortemente à Gp1b, uma
glicoproteína encontrada na superfície das plaquetas.
Essas interações permitem a ação do fvW como uma
espécie de “cola” molecular que liga fortemente as
plaquetas às paredes do vaso.
• Ativação de fatores de coagulação: em resposta às
citocinas (p. ex., TNF ou IL-1) ou certos produtos bacterianos incluindo endotoxina, as
células endoteliais produzem fator tecidual, o principal ativador in vivo da coagulação,
e são um regulador decrescente da expressão da trombomodulina. As células
endoteliais também ligam os fatores de coagulação IXa e Xa, o que aumenta as
atividades catalíticas desses fatores.
• Efeitos antifibrinolíticos: as células ativadas secretam inibidores do ativador do
plasminogénio (PAIs), os quais limitam a fibrinólise e, portanto, favorecem a trombose.

Plaquetas

As plaquetas são fragmentos celulares anucleados libertados na circulação sanguínea por


megacariócitos medulares. Têm um papel crítico na hemostasia normal pela formação de um
tampão hemostático, que sela os defeitos vasculares, e pela provisão de uma superfície que
recruta e concentra os fatores de coagulação ativados. A função plaquetária depende de vários
recetores de glicoproteína da família da integrina e dois tipos de grânulos citoplasmáticos:

• Grânulos α, que expressam a molécula de adesão e seletina P nas suas membranas, e


contêm fibrinogénio, fibronectina, fatores V e VIII, fator 4 plaquetário (uma quimiocina
ligante de heparina), PDGF e TGF-β.
• Corpos densos (grânulos δ), que contêm ADP e ATP, cálcio ionizado, histamina,
serotonina e epinefrina.

Após a lesão vascular, as plaquetas encontram constituintes da MEC (o colagénio é o mais


importante) e glicoproteínas adesivas como o fvW, o que desencadeia uma série de eventos que
levam à adesão, ativação e agregação plaquetária.

1. Adesão plaquetária: inicia a formação de coágulo e depende do fvW e da glicoproteína


plaquetária Gp1b. Sob stress de cisalhamento (p. ex., no fluxo sanguíneo), o fvW sofre
alteração da sua conformação, assumindo uma forma estendida que permite a sua
ligação simultânea ao colagénio na MEC e à Gp1b plaquetária. A importância dessa
interação adesiva é ressaltada pelas deficiências genéticas do fvW e da Gp1b, resultando
ambos em distúrbios hemorrágicos — doença de von Willebrand e doença de Bernard-
Soulier, respetivamente.
2. Ativação plaquetária: a adesão plaquetária leva a uma irreversível alteração de forma
e secreção (reação de libertação) de ambos os tipos de grânulos — um processo
denominado ativação plaquetária. O cálcio e o ADP libertados dos grânulos δ são
especialmente importantes em eventos subsequentes visto que o cálcio é exigido por
vários fatores de coagulação e o ADP é um potente ativador de plaquetas em repouso.
As plaquetas ativadas também sintetizam tromboxano A2, uma prostaglandina que
ativa plaquetas adicionais próximas, além de ter um papel importante na agregação
plaquetária. Durante a ativação, as plaquetas sofrem uma drástica alteração na forma,
passando de discos lisos para esferas com numerosas extensões longas e espiculadas,
assim como alterações na constituição das suas membranas plasmáticas. As alterações
de forma aumentam a subsequente agregação e também a área de superfície disponível
para interação com os fatores de coagulação. As alterações da membrana incluem maior
expressão de superfície dos fosfolípidos com carga negativa, os quais fornecem locais
de ligação, tanto para o cálcio como para os fatores de coagulação, e modificação de
conformação da plaqueta GpIIb/IIIa que lhe permite ligar-se ao fibrinogénio.
3. Agregação plaquetária: a agregação plaquetária é estimulada por alguns dos mesmos
fatores que induzem a ativação plaquetária, como o TxA2. A agregação é promovida
pelas interações de ligação entre o fibrinogénio e os recetores GpIIb/IIIa nas plaquetas
adjacentes. A importância dessa interação é ressaltada por uma rara deficiência herdada
de GpIIb/IIIa (trombastenia de Glanzmann), que está associada a hemorragia e
incapacidade de agregação das plaquetas. O reconhecimento do papel central dos
recetores GpIIb/IIIa na agregação plaquetária estimulou o desenvolvimento de agentes
antitrombóticos que inibem a função de GpIIb/IIIa. A concomitante ativação da cascata
de coagulação gera trombina, que estabiliza o tampão plaquetário por meio de dois
mecanismos:
a. A trombina ativa um recetor de superfície plaquetária (recetor ativado por
protease [PAR]), que em conjunto com ADP e TxA2, aumenta mais a agregação
plaquetária. Segue-se a contração plaquetária, criando uma massa
irreversivelmente fundida de plaquetas que constitui o tampão hemostático
secundário definitivo.
b. A trombina converte o fibrinogénio em fibrina na circunvizinhança do tampão,
cimentando o tampão plaquetário em posição.

Eritrócitos e leucócitos também são encontrados nos tampões hemostáticos. Os leucócitos


aderem às plaquetas por meio de seletina P e ao endotélio por meio de várias moléculas de
adesão; eles contribuem para a resposta inflamatória que acompanha a trombose. A trombina
também promove inflamação estimulando a adesão de neutrófilos e monócitos e gerando
produtos de divisão da fibrina quimiotáticos durante a clivagem do fibrinogénio.

Interações plaquetárias-endoteliais

A prostaciclina (sintetizada pelo endotélio normal) é um vasodilatador e inibe a agregação


plaquetária, enquanto o tromboxano A2 (TxA2) (sintetizado por plaquetas ativadas) é um
potente vasoconstritor. O equilíbrio entre estes efeitos opostos varia: em casos normais, os
efeitos da prostaciclina dominam e a agregação plaquetária é impedida, enquanto a lesão
endotelial diminui a produção de prostaciclina e promove a agregação plaquetária e a produção
de TxA2. A utilidade clínica da aspirina (um inibidor irreversível da COX) na redução do risco de
trombose coronária está na sua capacidade de bloquear permanentemente a produção de TxA2
pelas plaquetas. Embora a produção da prostaciclina endotelial também seja inibida pela
aspirina, as células endoteliais podem ressintetizar a COX, superando assim o bloqueio. De
forma semelhante à prostaciclina, o NO derivado do endotélio também age como vasodilatador
e inibidor da agregação plaquetária.

Cascata de coagulação
A cascata de coagulação constitui uma série
sucessiva de reações enzimáticas amplificadoras. A
cada etapa do processo, uma proenzima sofre
proteólise para se tornar uma enzima ativa, a qual
por sua vez faz a proteólise da proenzima seguinte
na série, levando eventualmente à ativação da
trombina e à formação de fibrina.

A trombina tem um papel-chave, visto que age em


numerosos pontos da cascata. A trombina proteolisa
fibrinogénio em monómeros de fibrina, que se
polimeriza em gel insolúvel, que envolve plaquetas e
outras células circulantes no tampão hemostático
secundário definitivo. Os polímeros de fibrina são
estabilizados pela atividade de ligação cruzada do
fator XIIIa, que também é ativado pela trombina.

Cada reação na via depende da montagem de um


complexo composto por uma enzima (um fator de
coagulação ativado), um substrato (uma proenzima
que forma o fator de coagulação seguinte na série) e
um cofator (um acelerador de reação). Esses
componentes são tipicamente montados numa
superfície fosfolipídica (fornecida por células
endoteliais ou plaquetas) e mantidas juntas pelas
interações que dependem dos iões cálcio (explicando
por que a coagulação sanguínea é impedida por
quelantes de cálcio). A cascata sequencial de ativação
pode ser semelhante a uma “dança” de complexos,
sendo os fatores de coagulação passados
sucessivamente de um parceiro para o seguinte.

A capacidade dos fatores de coagulação II, VII, IX e X de se ligarem ao cálcio requer que grupos
γ-carboxílicos adicionais sejam um complemento enzimático de certos resíduos do ácido
glutâmico nessas proteínas. Essa reação
requer vitamina K como cofator e é
antagonizada por fármacos como o
coumadin, que tem uso amplo como
anticoagulante.

Tradicionalmente, a coagulação sanguínea


divide-se em vias extrínseca e intrínseca,
convergindo na ativação do fator X. A via
extrínseca foi designada dessa maneira
por exigir a adição de um deflagrador
exógeno (fornecido originalmente por
extratos teciduais); a via intrínseca só
exige o fator XII (fator de Hageman) para
uma superfície com carga negativa (até o
vidro é suficiente). No entanto, essa
divisão é principalmente um artefacto dos testes in vitro; há de facto várias interconexões entre
as duas vias. A via extrínseca é a mais relevante em termos físicos para ocorrer a coagulação
após lesão vascular; ela é ativada pelo fator tecidual, uma glicoproteína ligada à membrana
expressa nos locais de lesão.

The immediate trigger for coagulation is vascular damage that exposes blood to TF that is
constitutively expressed on the surfaces of subendothelial cellular components of the vessel
wall, such as smooth muscle cells and fibroblasts. TF is also present in circulating
microparticles, presumably shed from cells including monocytes and platelets. TF binds the
serine protease factor VIIa; the complex activates factor X to factor Xa. Alternatively, the
complex can indirectly activate factor X by initially converting factor IX to factor IXa, which
then activates factor X. The participation of factor XI in hemostasis is not dependent on its
activation by factor XIIa but rather on its positive feedback activation by thrombin. Thus,
factor XIa functions in the propagation and amplification, rather than in the initiation, of the
coagulation cascade. Factor Xa can be formed through the actions of either the TF/ factor
VIIa complex or factor IXa (with factor VIIIa as a cofactor) and converts prothrombin to
thrombin, the pivotal protease of the coagulation system. The essential cofactor for this
reaction is factor Va. Like the homologous factor VIIIa, factor Va is produced by thrombin
induced limited proteolysis of factor V. Thrombin is a multifunctional enzyme that converts
soluble plasma fibrinogen to an insoluble fibrin matrix. Fibrin polymerization involves an
orderly process of intermolecular associations. Thrombin also activates factor XIII (fibrin-
stabilizing factor) to factor XIIIa, which covalently cross-links and thereby stabilizes the fibrin
clot.

Os laboratórios clínicos avaliam a função dos dois braços da via usando dois testes-padrão:

• O tempo de protrombina (TP) faz a triagem da atividade das proteínas na via extrínseca
(fatores VII, X, II, V e fibrinogénio). O TP é realizado por adição de fosfolípidos e fator
tecidual ao plasma citrado do paciente (o citrato de sódio quela o cálcio e impede a
coagulação espontânea), seguido pelo cálcio, e o tempo para a formação de coágulo de
fibrina (geralmente 11-13 segundos) é registado. Como o fator VII é um fator de
coagulação dependente de vitamina K com semi-vida menor (aproximadamente 7
horas), o TP é usado para guiar o tratamento dos pacientes com antagonistas de
vitamina K.
• O tempo de tromboplastina parcial (TTP) faz a triagem da atividade das proteínas na
via intrínseca (fatores XII, XI, IX, VIII, X, V, II e fibrinogénio). O TTP é realizado com a
adição de um ativador com carga negativa do fator XII (p. ex., vidro moído) e fosfolípidos
ao plasma citrado do paciente, seguido por cálcio, registrando-se o tempo necessário
para a formação do coágulo (normalmente, 28-35 segundos). O TTP é sensível aos
efeitos anticoagulantes e, portanto, é usado para
monitorar a sua eficácia.

Depois de formada, a trombina não só catalisa as etapas finais na


cascata de coagulação, mas também exerce uma ampla variedade
de efeitos sobre a vasculatura local e meio inflamatório; ela até
participa ativamente da limitação da extensão do processo
hemostático. A maior parte dos efeitos mediados por trombina
ocorre por meio de recetores ativados por protease (PARs), que
pertencem a uma família de sete proteínas internas
transmembrana. Os PARs estão presentes em vários tipos celulares, incluindo plaquetas,
endotélio, monócitos e linfócitos T. A trombina ativa PARs cortando os seus domínios
extracelulares, provocando uma alteração de conformação que ativa a proteína G associada.
Assim, a ativação de PAR é um processo catalítico, explicando a potência impressionante da
trombina em desencadear efeitos dependentes de PAR, como aumentar as propriedades
adesivas dos leucócitos.

Depois de ativada, a cascata de coagulação deve ser fortemente restrita ao local da lesão para
prevenir a coagulação inadequada e, em outra parte da árvore vascular, a coagulação
potencialmente perigosa. Além da ativação do fator de restrição em locais de fosfolípidos
expostos, a coagulação também é controlada por três categorias gerais de anticoagulantes:

• Antitrombina (p. ex., antitrombina III) inibe a atividade da trombina e outras serinas
proteases, ou seja, fatores IXa, Xa, XIa e XIIa. A antitrombina III é ativada pela ligação a
moléculas do tipo heparina nas células endoteliais — daí a utilidade clínica da
administração de heparina para limitar a trombose.
• Proteína C e proteína S: são duas proteínas dependentes da vitamina K que agem num
complexo para a inativação proteolítica dos fatores Va e VIIIa.
• Inibidor da via do fator tecidual (IVFT) é uma proteína secretada pelo endotélio (e
outros tipos celulares) que inativa o fator Xa e os complexos fator tecidual-fator VIIa.

A coagulação também põe em movimento uma cascata fibrinolítica que modera o tamanho
final do coágulo. A fibrinólise é realizada principalmente pela plasmina, que quebra a fibrina e
interfere na sua polimerização. Os resultantes produtos da divisão da fibrina (FSPs ou produtos
de degradação da fibrina) também podem agir como fracos anticoagulantes. Níveis elevados de
FSPs (mais notavelmente os dímeros D derivados de fibrina) podem ser usados para
diagnosticar estados trombóticos anormais, incluindo coagulação vascular disseminada (CID),
trombose venosa profunda ou tromboembolismo pulmonar.

A plasmina cliva a fibrina em diferentes locais, levando à formação


de fragmentos característicos durante o processo de fibrinólise.
Os locais de clivagem na fibrina são os mesmos que no
fibrinogénio. Contudo, quando a plasmina atua na fibrina com
ligações cruzadas covalentes, libertam-se D-dímeros, logo os D-
dímeros podem ser medidos no plasma como um teste
relativamente específico da clivagem de fibrina (e não de
fibrinogénio). A análise de D-dímeros pode ser usada como
marcador sensível da formação de coágulos sanguíneos – na
prática clínica, utiliza-se para excluir o diagnóstico de trombose
venosa profunda e embolismo pulmonar em populações
selecionadas. Para além disso, podem ser usados para estratificar
o risco de tromboembolismo venoso recorrente, particularmente
em mulheres, quando medido um mês depois de descontinuação
de tratamento anticoagulação para um evento idiopático inicial.
Os D-dímeros podem estar elevados na ausência de
tromboembolismo venoso nos idosos.
A plasmina é gerada por proteólise do plasminogénio, um percursor plasmático inativo, pelo
fator XII ou pelos ativadores do plasminogénio. O mais importante dos fatores do plasminogénio
é o ativador do plasminogénio tipo tecidual (tPA); o tPA é sintetizado principalmente por
células endoteliais, sendo mais ativo quando fixado à fibrina. A afinidade por fibrina confina, em
grande parte, a atividade fibrinolítica do tPA aos locais de trombose recente. O ativador de
plasminogénio tipo uroquinase (uPA) é outro ativador do plasminogénio presente no plasma e
em vários tecidos; ele pode ativar a plasmina na sua forma de fluido. Além disso, o
plasminogénio pode ser clivado para a sua forma ativa pela estreptoquinase. A atividade da
plasmina é fortemente restrita: para prevenir o excesso de plasmina decorrente da lise de
trombos indiscriminadamente pelo corpo, a plasmina livre forma rapidamente complexos com
α2 – antiplasmina e é inativada.

As células endoteliais modulam ainda mais


o equilíbrio coagulação-anticoagulação,
libertando inibidores do ativador do
plasminogénio (PAIs); estes bloqueiam a
fibrinólise e conferem um efeito pró-
coagulante geral. A produção de PAI é
aumentada pelas citocinas inflamatórias e
provavelmente contribui para a trombose
intravascular que acompanha a
inflamação grave.

Trombose

As três principais anormalidades que levam à formação de trombo


(chamada de tríade de Virchow) são: (1) lesão endotelial, (2) estase ou
fluxo sanguíneo turbulento e (3) hipercoagulabilidade do sangue.

1. Lesão endotelial

A lesão endotelial é uma causa importante de trombose,


particularmente no coração e nas artérias, onde as altas taxas de fluxo poderiam, por outro lado,
prevenir a coagulação impedindo a adesão plaquetária ou diluindo os fatores de coagulação.
São exemplos de trombose relacionada a lesão endotelial: a formação de trombos nas câmaras
cardíacas após enfarte do miocárdio, sobre placas ulceradas em artérias ateroscleróticas ou em
locais de lesão vascular traumática ou inflamatória (vasculite). A franca perda de endotélio
expõe a MEC subendotelial (levando à adesão plaquetária), liberta fator tecidual e reduz a
produção local de PGI2 e de ativadores de plasminogénio. Porém, o endotélio não precisa de ser
lesado fisicamente para contribuir para o desenvolvimento de trombose; qualquer perturbação
do equilíbrio dinâmico dos efeitos protrombóticos do endotélio pode influenciar localmente a
coagulação. Assim, o endotélio disfuncional elabora maiores quantidades de fatores pró-
coagulantes (p. ex., moléculas de adesão plaquetária, fator tecidual, PAI) e sintetiza menores
quantidades de moléculas anticoagulantes (p. ex., trombomodulina, PGI2, t-PA). A disfunção
endotelial pode ser induzida por uma variedade de agressões, incluindo hipertensão, fluxo
sanguíneo turbulento, produtos bacterianos, lesão por radiação, anormalidades metabólicas,
como homocistinúria e hipercolesterolemia, e por toxinas absorvidas do fumo do tabaco.

2. Fluxo sanguíneo anormal


A turbulência contribui para a trombose arterial e cardíaca por causar lesão ou disfunção
endotelial, e também por formar contracorrentes e bolsas locais de estase. A estase é um fator
importante no desenvolvimento de trombos venosos. Sob condições normais de fluxo
sanguíneo laminar normal, plaquetas (e outras células sanguíneas) são encontradas
principalmente no centro do lúmen do vaso, separadas do endotélio por uma camada
plasmática em movimento lento. Em contrapartida, estase e fluxo sanguíneo turbulento têm
os seguintes efeitos deletérios:

• Ambos promovem a ativação das células endoteliais e aumentam a atividade pró-


coagulante, em parte por meio de alterações induzidas pelo fluxo na expressão genética
endotelial.
• A estase permite que plaquetas e leucócitos entrem em contato com o endotélio
quando o fluxo é lento.
• A estase também torna lenta a eliminação dos fatores de coagulação ativados e impede
o influxo de inibidores de fator de coagulação.

O fluxo sanguíneo turbulento e estático contribui para a trombose numa série de quadros
clínicos:

• Placas ateroscleróticas ulceradas não apenas expõem a MEC subendotelial, mas


também causam turbulência.
• Os aneurismas criam estase local e, consequentemente, um local propício para
trombose.
• O EAM resulta em não contração focal do miocárdio. O remodelamento ventricular
após enfarte mais remoto pode levar à formação de um aneurisma. Em ambos os casos,
os trombos murais cardíacos formam-se mais facilmente em decorrência de estase
sanguínea local.
• A estenose da válvula mitral (p. ex., após doença cardíaca reumática) resulta em
dilatação auricular. Em conjunto com a fibrilhação auricular, uma aurícula dilatada é um
local de estase profunda, bem como uma localização primária para o desenvolvimento
de trombos.
• As síndromes de hiperviscosidade (como policitemia) aumentam a resistência ao fluxo
e causam estase dos pequenos vasos;
• As hemácias deformadas da anemia falciforme causam oclusões vasculares, e a estase
resultante também predispõe à trombose.

3. Hipercoagulabilidade

Não é frequente a contribuição da hipercoagulabilidade para a trombose arterial ou


intracardíaca, mas é um importante fator de risco subjacente para trombose venosa. É definida
como qualquer alteração das vias de coagulação que predisponha as pessoas afetadas à
trombose, e pode ser dividida em desordens primárias (genéticas) e secundárias (adquiridas).

A hipercoagulabilidade primária (herdada) com mais frequência é causada por mutações no


fator V e nos genes da protrombina:

• Aproximadamente 2-15% dos caucasianos são portadores de uma mutação específica


do fator V (mutação de Leiden). A mutação altera um resíduo de aminoácido no fator V
e torna-o resistente à proteína C, perdendo-se um importante mecanismo
antitrombótico. Os heterozigóticos são portadores de um risco
5x maior de trombose venosa, tendo os homozigóticos um
risco 50x maior.
• A substituição de um único nucleotídeo (G para A) na região
não traduzida 39 do gene da protrombina é um alelo bastante
comum (encontrado em 1-2% da população geral). Essa
variante resulta em aumento da transcrição de protrombina e
está associada a um risco quase 3x maior de tromboses
venosas.
• Os estados hipercoaguláveis primários menos comuns incluem
deficiências herdadas de anticoagulantes, como antitrombina
III, proteína C ou proteína S; os pacientes afetados tipicamente
apresentam trombose venosa e tromboembolismo recorrente
na adolescência ou no início da vida adulta.
• Níveis congenitamente elevados de homocisteína contribuem
para as tromboses

Os indivíduos heterozigóticos estão em risco mais alto de trombose venosa na situação de


outros fatores de risco adquiridos, como gravidez, repouso prolongado no leito e voos
prolongados em avião. Consequentemente, as causas herdadas de hipercoagulabilidade devem
ser consideradas em pacientes jovens (<50 anos de idade), mesmo quando outros fatores de
risco adquiridos estão presentes.

A hipercoagulabilidade secundária (adquirida) é observada em muitas situações. Em algumas


situações (p. ex., insuficiência cardíaca ou trauma), estase ou lesão vascular pode ser o fator
mais importante. A hipercoagulabilidade associada ao uso de contracetivos orais e ao estado de
gravidez pode estar relacionada a aumento da síntese hepática dos fatores de coagulação e à
redução da síntese de antitrombina III. Em neoplasias disseminadas, a libertação de produtos
tumorais procoagulantes (p. ex., mucina do adenocarcinoma) predispõe à trombose. A
hipercoagulabilidade observada com o avançar da idade é atribuída ao aumento da agregação
plaquetária e reduzida liberação de PGI2 do endotélio. Tabagismo e obesidade promovem a
hipercoagulabilidade por mecanismos desconhecidos.

Entre os estados trombofílicos adquiridos, dois são particularmente problemas clínicos e


merecem especial menção:

• Síndrome trombocitopénica induzida por heparina (TIH). Essa síndrome ocorre em até
5% dos pacientes tratados com heparina não fracionada (para anticoagulação
terapêutica). É marcada pelo desenvolvimento de autoanticorpos que ligam complexos
de heparina e proteína de membrana plaquetária (fator 4 plaquetário). Embora o
mecanismo não seja claro, parece que esses anticorpos também podem ligar complexos
semelhantes presentes nas superfícies plaquetária e endoteliais, resultando em
ativação, agregação e consumo de plaquetas (portanto, em trombocitopenia) e causar
lesão de célula endotelial. O resultado geral é um estado pró-trombótico, mesmo diante
da administração da heparina e baixas contagens plaquetárias. Recentes preparações
de heparina fracionada de baixo peso molecular induzem autoanticorpos com menos
frequência, mas ainda podem causar trombose caso os anticorpos já tenham se
formado.
• Síndrome do anticorpo antifosfolipídico. Esta síndrome tem manifestações
multiformes, incluindo trombose recorrente, abortos repetidos, vegetações em válvulas
cardíacas e trombocitopénia; está associada a autoanticorpos direcionados contra
fosfolípidos aniónicos (p. ex., cardiolipina) ou, mais precisamente, antigénios de
proteína plasmática que são revelados pela ligação a esses fosfolípidos (p. ex.,
protrombina). In vivo, esses anticorpos induzem um estado hipercoagulável, talvez pela
indução de lesão endotelial, por ativação de plaquetas ou complementos diretamente
ou interação com os domínios catalíticos de certos fatores de coagulação. In vitro (na
ausência de plaquetas e endotélio), porém, os anticorpos interferem na montagem do
complexo fosfolipídico, inibindo, portanto, a coagulação (daí a denominação
anticoagulante lúpico). Em pacientes com anticorpos anticardiolipina, testes serológicos
para sífilis produzem um resultado falsopositivo porque o antigénio nos testes-padrão
é incrustado em cardiolipina. Os pacientes com síndrome do anticorpo antifosfolipídico
enquadram-se em duas categorias. Muitos têm síndrome antifosfolipídica secundária
decorrente de doença autoimune bem definida, como o lúpus eritematoso sistémico. O
resto desses pacientes mostra somente manifestações de um estado hipercoagulável
sem evidência de outra desordem autoimune (síndrome antifosfolipídica primária).
Embora os anticorpos antifosfolipídicos estejam associados a diáteses trombóticas, eles
também ocorrem em 5-15% das pessoas aparentemente normais; a implicação é que
sua presença pode ser necessária, mas não suficiente, para causar síndrome do
anticorpo antifosfolipídico total.

Destino do trombo:

• Propagação. O trombo aumenta por acréscimo de plaquetas e fibrina, que aumentam a


margem de oclusão ou embolização vascular.
• Embolização. O trombo, no todo ou em parte, desloca-se e é transportado para outra
parte na vasculatura.
• Dissolução. Se um trombo é recém-formado, a ativação dos fatores fibrinolíticos pode
levar à sua rápida contração e completa dissolução. No caso de trombos antigos, a
extensa polimerização da fibrina torna o trombo substancialmente mais resistente à
proteólise induzida por plasmina e a lise é ineficaz. Essa aquisição de resistência à lise
tem significância clínica, uma vez que a administração terapêutica de agentes
fibrinolíticos (p. ex., t-PA no quadro de trombose coronária aguda) geralmente não é
eficaz, a não ser que sejam administrados dentro de algumas horas da formação do
trombo.
• Organização e recanalização. Os trombos antigos tornam-se organizados pelo
crescimento de células endoteliais, células da musculatura lisa e fibroblastos para
dentro de um trombo rico em fibrina. Podem formar-se canais capilares que — até certo
ponto — criam canais ao longo da extensão do trombo, restabelecendo a continuidade
do lúmen original. Algumas vezes, a canalização adicional pode converter um trombo
em massa vascularizada de tecido conjuntivo que eventualmente se incorpora à parede
do vaso remodelado. Ocasionalmente, em vez de se organizar, o centro de um trombo
sofre digestão enzimática, presumivelmente por libertação de enzimas lisossomais
provenientes e leucócitos capturados. Se ocorrer semeadura bacteriana, os conteúdos
dos trombos degradados servem como meio de cultura ideal, e a infeção resultante
pode enfraquecer a parede do vaso, levando à formação de um aneurisma micótico.

Correlação clínica
Os trombos são significativos por causarem obstrução de artérias e veias podendo dar origem a
êmbolos. O efeito de maior importância clínica dependerá do local da trombose. Assim, embora
os trombos venosos possam causar congestão e edema nos leitos vasculares distais a uma
obstrução, eles são mais preocupantes pelo seu potencial para embolizar para os pulmões. Por
outro lado, embora os trombos arteriais possam embolizar e causar enfarte tecidual, a sua
tendência a obstruir os vasos (p. ex., nos vasos coronários e cerebrais) é consideravelmente mais
importante.

• Trombose venosa (Flebotrombose)


o A maior parte dos trombos venosos ocorre nas veias superficiais ou profundas
da perna. Os trombos venosos superficiais normalmente surgem no sistema
safeno, em especial no quadro de varizes; raramente embolizam, mas podem
ser dolorosos e causar congestão local e edema decorrentes do fluxo de saída
venoso comprometido, predispondo a pele sobrejacente ao desenvolvimento
de infeções e úlceras varicosas.
o As tromboses venosas profundas (“TVPs”) nas veias maiores da perna, no joelho
ou acima dele (p. ex., veias poplítea, femoral e ilíaca), são mais sérias pela
propensão a embolizar. Embora tais TVPs possam causar dor local e edema, a
obstrução venosa com frequência é envolvida por canais colaterais.
Consequentemente, as TVPs são totalmente assintomáticas em cerca de 50%
dos pacientes e reconhecidas somente depois de terem embolizado para os
pulmões.
o As TVPs da extremidade inferior estão associadas à estase e aos estados
hipercoaguláveis → são fatores predisponentes comuns a insuficiência cardíaca
congestiva, o repouso e a imobilização no leito, trauma, cirurgia e queimaduras
que não apenas imobilizam um paciente, mas também estão associados a lesão
vascular, libertação de pró-coagulantes, aumento da síntese hepática dos
fatores de coagulação e redução da produção de t-PA. Muitos fatores
contribuem para a diátese trombótica da gravidez; além da infusão do líquido
amniótico potencial na circulação no momento do parto, a pressão produzida
pelo aumento de tamanho do feto e do útero pode produzir estase nas veias
das pernas, e a gravidez tardia e o período pós-parto estão associados à
hipercoagulabilidade. A libertação de pró-coagulantes associada a tumor é em
grande parte responsável pelo aumento de risco dos fenómenos
tromboembólicos observados nos cancros disseminados, o que algumas vezes
é referido como tromboflebite migratória pela tendência a envolver vários leitos
venosos diferentes ou como síndrome de Trousseau. Independentemente do
quadro clínico específico, o risco de TVP é maior em pessoas com mais de 50
anos.
o Embora muitas condições predisponentes de trombose sejam bem
reconhecidas, o fenómeno permanece imprevisível.

Embolia

Um êmbolo é uma massa sólida, líquida ou gasosa que é transportada pelo sangue para um local
distante de seu ponto de origem. A vasta maioria dos êmbolos deriva de um trombo desalojado
— daí o termo tromboembolismo. Tipos menos comuns de êmbolos são as gotículas de gordura,
bolhas de ar ou nitrogénio, detritos ateroscleróticos (êmbolos de colesterol), fragmentos
tumorais, pedacinhos de medula óssea e líquido amniótico. Inevitavelmente, os êmbolos
alojam-se em vasos muito pequenos para permitir a sua passagem, resultando em oclusão
vascular parcial ou completa; dependendo do local de origem, os êmbolos podem se alojar em
qualquer parte da árvore vascular. A consequência primária da embolização sistémica é a
necrose isquémica (enfarte) dos tecidos a jusante, enquanto a embolização na circulação
pulmonar leva a hipóxia, hipotensão e insuficiência cardíaca direita.

Tromboembolismo pulmonar

Em mais de 95% dos casos, os êmbolos venosos originam-se de trombos nas veias profundas da
perna proximais à fossa poplítea. Os trombos fragmentados são transportados através de canais
progressivamente maiores e, em geral, atravessam o lado direito do coração antes de pararem
na vasculatura pulmonar. Dependendo do tamanho, o EP pode ocluir a principal artéria
pulmonar, alojar-se na bifurcação das artérias pulmonares direita e esquerda (êmbolo em sela)
ou passar para o interior de arteríolas menores, ramificantes. Com frequência, ocorrem
múltiplos êmbolos, sequencialmente ou como uma saraivada de êmbolos menores
provenientes de um trombo único e maior; um paciente que teve um êmbolo pulmonar está em
grande risco de ter mais trombos. Raramente um êmbolo atravessa um defeito atrial ou
ventricular e entra na circulação sistémica (embolia paradoxal). As principais características
clínicas e patológicas são as seguintes:

• A maioria dos êmbolos pulmonares (60-80%) corresponde a êmbolos pequenos e


clinicamente silenciosos. Com o tempo, eles submetem-se a organização e passam a se
incorporar à parede vascular; em alguns casos, a organização dos tromboêmbolos deixa
para trás redes fibrosas de ligação.
• Um êmbolo grande que bloqueia uma grande artéria pulmonar pode causar morte
súbita.
• A obstrução embólica das artérias de tamanho médio e a subsequente rutura de
capilares que se tornaram anóxicos podem causar hemorragia pulmonar. Tal
embolização normalmente não causa enfarte pulmonar, uma vez que a área também
recebe sangue através de circulação brônquica intacta (circulação dupla). No entanto,
um êmbolo semelhante no quadro de insuficiência cardíaca do lado esquerdo (e
perfusão diminuída da artéria brônquica) pode levar a enfarte pulmonar.
• A embolia para pequenos ramos pulmonares nas terminações arteriolares normalmente
causa enfarte.
• Múltiplos êmbolos, que ocorrem com o tempo, podem causar hipertensão pulmonar e
insuficiência ventricular direita (cor pulmonale).

Tromboembolismo sistémico

A maioria dos êmbolos sistémicos (80%) surge dos trombos murais intracardíacos, 2/3 estão
associados a enfartes ventriculares esquerdos e outros 25% à aurícula esquerda dilatada (p. ex.,
doença de válvula mitral secundária). O restante origina-se de aneurismas aórticos, trombos
sobrejacentes a placas ateroscleróticas ulceradas, vegetações valvulares fragmentadas ou
sistema venoso; 10-15% dos êmbolos sistémicos são de origem desconhecida. Em oposição aos
êmbolos venosos, que se alojam principalmente no pulmão, os êmbolos arteriais podem se
deslocar praticamente para qualquer parte; o seu local de repouso final depende de seu ponto
de origem e das taxas de fluxo sanguíneo relativas para os tecidos a jusante. Os locais de
embolização arteriolar comuns incluem extremidades inferiores (75%) e SNC (10%); intestinos,
rins e baço são alvos menos comuns. As consequências da embolização dependem do calibre do
vaso ocluído, da irrigação colateral e da vulnerabilidade do tecido afetado à anóxia; os êmbolos
arteriais muitas vezes alojam-se nas artérias terminais e causam enfarte.

Neoplasia como estado pró-coagulante


Síndromes paraneoplásicas

• Neoplastic cells can produce a variety of products that can stimulate hormonal,
hematologic, dermatologic, and neurologic responses.
• Paraneoplastic syndromes is the term used to refer to the disorders that accompany
benign or malignant tumors but are not directly related to mass effects or invasion.
• Tumors of neuroendocrine origin, such as small-cell lung carcinoma (SCLC) and
carcinoids, produce a wide array of peptide hormones and are common causes of
paraneoplastic syndromes.
Insuficiência cardíaca

É um síndrome clínico que resulta da incapacidade do coração em manter um débito cardíaco


suficiente para satisfazer as necessidades de oxigénio dos tecidos ou, se o faz, é à custa da
dilatação e de um aumento das pressões de enchimento ventricular (insuficiência cardíaca
compensada). Portanto, o débito pode servir as necessidades pelo menos em repouso, mas à
custa de aumento das pressões ventriculares.

A IC caracteriza-se por:

• Diminuição do débito cardíaco e/ou


• Retenção de sangue nas veias a montante das cavidades cardíacas

Em alguns casos, o débito cardíaco pode ser normal ou estar mesmo aumentado - insuficiência
cardíaca de alto débito. É o caso, por exemplo, da anemia, em que vai haver um aumento do
débito cardíaco para tentar satisfazer as necessidades do organismo, mas que, mesmo assim,
não é suficiente.

Causas da IC

A IC pode ser causada por qualquer patologia cardíaca ou qualquer afeção cardíaca:

1. Doença coronária (causa + frequente no mundo ocidental): ao levar à oclusão de um


vaso coronário, vai provocar a morte de células miocárdicas e disfunção sistólica. A
gravidade da insuficiência cardíaca está relacionada com o tamanho do enfarte
(cardiopatia isquémica)
2. Hipertensão arterial. CONTRIBUI para o desenvolvimento de IC em 75% dos casos,
incluindo a maioria dos doentes com DAC. DAC, HTA e DM interagem para aumentar o
risco de IC.
3. Doenças valvulares (causa muito importante até há pouco tempo devido à febre
reumática). Uma das consequências desta doença é a fibrose das válvulas, causada por
uma reação imunológica ao Estreptococos beta hemolítico, levando a uma posterior
calcificação e consequente diminuição do enchimento do ventrículo com diminuição do
débito. Hoje em dia, a febre reumática é menos frequente. Pelo contrário, uma doença
valvular atualmente relativamente frequente e que pode levar a uma insuficiência
cardíaca é a estenose aórtica, uma doença fibrocalcificante que aparece
predominantemente na velhice.
4. Doenças do pericárdio: o pericárdio pode tornar-se fibrosado, espessado – pericardite
crónica constritiva – havendo uma incapacidade no enchimento ventricular.
5. Hipertensão pulmonar
6. Alterações do ritmo (taquiarritmia, bradicardia, bloqueio aurículoventricular…)
7. Situações de alto débito – anemia, hipertiroidismo
8. Miocardiopatias: doenças primárias do miocárdio, não resultando, portanto, de outra
patologia. São uma causa de IC frequente.
a. Miocardiopatia dilatada:

Há dilatação (neste caso, do VE) e disfunção ventricular sistólica, diminuição da função contráctil
e substituição do tecido muscular por tecido fibroso. A espessura da parede encontra-se normal
ou um pouco diminuída.

Existem várias causas que podem levar à miocardiopatia dilatada, sendo que muitas vezes não
é possível chegar ao diagnóstico → miocardiopatia dilatada idiopática. Sabe-se, contudo, que
muitas destas têm uma causa genética, com diminuição de proteínas contrácteis. Pode ser
inflamatória, como consequência de uma infeção, de uma miocardite viral, ou não infecciosa.
Pode ser uma consequência tóxica do álcool para o coração e dos seus aditivos, que podem
conduzir a uma miocardiopatia dilatada reversível - se o doente deixar de beber há melhoria. A
quimioterapia é outra causa nefasta, pelo uso da adriamicina, que é um tóxico cardíaco que
provoca danos irreversíveis. O mecanismo que leva à lesão cardíaca parece estar relacionado
com a produção de radicais livres de oxigénio. Estão também associadas causas metabólicas e
neuro-musculares. Hoje em dia sabe-se que a miocardiopatia dilatada pode, no fundo, só ter um
predomínio de envolvimento cardíaco e ter causa familiar por alteração das proteínas
contrácteis cardíacas.

Uma outra causa de miocardiopatia dilatada é a miocardite viral. Apenas 5% das infeções virais
têm envolvimento cardíaco, e destas só 0,5 a 5% dos doentes têm sintomas, o que significa que
ela pode ser assintomática e, mais tarde, encontraremos o doente com uma miocardiopatia
dilatada. Os vírus envolvidos são os das infeções normais. A patogénese pode ser por invasão
direta e replicação do vírus com necrose dos miócitos ou por um mecanismo imunológico,
mediado por células, contra novas alterações ou novos antigénios relacionados com mais de
duas dúzias de vírus. Este mecanismo é demonstrado por um marcado aumento de complexos
de antigénios de histocompatibilidade major. Um exemplo de um vírus que provoca miocardite
é o HIV (por infeção do próprio vírus, por infeções oportunistas ou pelo tratamento). Quanto ao
prognóstico: pode haver uma recuperação completa; pode desenvolver uma insuficiência
cardíaca que se assemelha à miocardiopatia dilatada; ou o doente também pode ter tido uma
miocardite viral a alguns anos atrás, ter recuperado na altura, e depois de um período de
latência, aparecer com a miocardiopatia dilatada.

Quando há lesão dos miócitos, há uma diminuição da contração e, por sua vez, uma diminuição
do volume de ejeção ventricular. Então, na tentativa de compensar este facto, o ventrículo vai
sofrer dilatação (pelo mecanismo da Lei de Frank-Starling – quanto maior o volume
telediastólico, maior a distensão das fibras para que seja proporcionada uma contração
ventricular mais vigorosa).
Por outro lado, a diminuição do volume de ejeção leva ao aumento das pressões intracavitárias
que vão ter consequências tanto na circulação pulmonar, como na circulação sistémica. Com a
elevação da pressão hidrostática a montante, há um aumento da permeabilidade e consequente
saída de líquidos, que estão na origem da congestão pulmonar, provocando dispneia, ortopneia
e fervores crepitantes. Ao nível da circulação sistémica, vai haver um aumento da pressão
venosa (pela incapacidade de bombeamento eficaz do coração), provocando congestão
sistémica e consequente edema nos membros inferiores, podendo também levar ao edema da
cavidade abdominal (em casos de maior gravidade), designada por ascite, verificando-se
também ingurgitamento jugular. A dilatação ventricular leva a que os folhetos da válvula mitral
não cooptem eficazmente, conduzindo à regurgitação mitral (sopro de regurgitamento mitral).

Para além disto, a diminuição do débito e consequente diminuição da quantidade de sangue


que chega aos tecidos está na origem do cansaço referido pelos doentes com esta
miocardiopatia. A dilatação do ventrículo, a longo prazo, vai provocar a dilatação do anel das
válvulas mitral (a qual provoca regurgitação, voltando sangue para a aurícula, provocando uma
diminuição do débito e um aumento dos sinais de congestão pulmonar) e tricúspide (a qual está
relacionada com a congestão sistémica).

b. Miocardiopatia hipertrófica

Aumento da espessura da parede do coração; há geralmente uma hipertrofia assimétrica do


ventrículo que envolve fundamentalmente o septo (neste caso verifica-se uma obliteração do
VE pela camada muscular). É uma causa de morte súbita nos desportistas, sendo que em 40%
dos casos é hereditária.

Esta miocardiopatia também pode ser designada de miocardiopatia hipertrófica assimétrica ou


estenose sub-aórtica hipertrófica. Tem uma demarcada origem genética, num desarranjo das
miofibrilhas, por mutação. Nesta miocardiopatia, a função sistólica está normal, verificando-se
uma alteração no relaxamento – enchimento diastólico anormal. Na maior parte dos casos, a
hipertrofia atinge principalmente o septo, apesar de envolver todo o coração. Esta hipertrofia
do septo, no final da diástole e início da sístole, pode fazer com que haja um repuxamento da
válvula mitral, que se encosta ao septo, provocando uma obstrução da câmara de saída do VE,
daí chamar-se também estenose sub-aórtica hipertrófica.

Uma das consequências é a morte súbita nos desportistas, dado que a hipertrofia ventricular
esquerda predispõe a arritmias por vários mecanismos. A obstrução da câmara de saída (que
também é uma causa de síncope, outra das consequências desta miocardiopatia), substituição
do tecido muscular por tecido fibroso e alterações nas próprias coronárias são alguns dos fatores
predisponentes para uma situação de morte súbita. A hipertrofia, por outro lado, ao provocar
uma dificuldade no enchimento ventricular, vai levar a uma aumento da pressão telediastólica
do VE, com consequente aumento da pressão auricular que, por sua vez, provoca um aumento
da pressão capilar e consequente edema pulmonar, o qual está na origem da dispneia. O
mecanismo que conduz à angina está relacionado com a obstrução da câmara de saída do V.E,
tal como com a hipertrofia, as quais vão conduzir ao aumento das necessidades de oxigénio do
miocárdio.

c. Miocardiopatia restritiva

Há diminuição da distensibilidade, a qual resulta de fibrose ou da infiltração de certas


substâncias no coração, que formam uma “carapaça”. Há, assim, restrição ao enchimento do
coração, pois há diminuição da distensão do coração na diástole. Ex: amiloidose
Nesta miocardiopatia, o coração é, aparentemente, normal. É um distúrbio causado pela
diminuição primária da compliance ventricular, resultando em disfunção diastólica, aumento da
pressão telediastólica, congestão pulmonar e sistémica e diminuição do esvaziamento
ventricular, diminuição do débito cardíaco e as queixas de cansaço.

Os ventrículos são de dimensões pequenas e as aurículas é que têm que lutar para esvaziar. Não
é de estranhar, então, que o que caracteriza esta miocardiopatia são ventrículos pequenos e
aurículas grandes.

d. Displasia arritmogénica do ventrículo direito, em que os miócitos são


substituídos por tecido adiposo. O diagnóstico pode ser difícil, uma vez que o
coração com esta miocardiopatia é muito semelhante ao normal. É uma doença
familiar e pode ser uma causa de morte súbita em atletas. Provoca taquicardia
ventricular e fibrilhação.

Classificação da IC

Alto-débito VS Baixo-débito

Maioria é de baixo débito. Esta classificação é baseada no mecanismo fisiopatológico, mas tem
pouca aplicação clínica, uma vez que quase todas as insuficiências cardíacas estão associadas a
uma situação de diminuição do débito, por falência da bomba cardíaca. Na IC de alto débito, não
há falência da bomba, mas apenas uma sobrecarga de volume. O coração é obrigado a bombear
quantidades maiores de sangue para satisfazer as necessidades de oxigénio dos tecidos. Esta é,
geralmente, causada por alterações circulatórias que provocam uma diminuição da resistência
periférica, obrigando o coração a bombear grandes quantidades de sangue para fornecer a
quantidade adequada aos tecidos.

• Baixo débito→ Cardiopatia isquémica; HTA; miocardiopatia dilatada; valvulopatia.


• Alto débito → Fístulas artério-venosas (Doença de Paget, beribéri – défice de vitamina
B1 - , por vasodilatação periférica); diminuição do transporte de oxigénio (anemias);
aumento do metabolismo (tirotoxicose); gravidez; insuficiência valvular, hipertiroidismo

Aguda VS Crónica

• Aguda → Rutura de uma válvula secundária a um enfarte do miocárdio ou miocardite


viral. Verifica-se uma redução repentina do DC, provocando hipotensão sistémica sem
edema. É uma urgência cirúrgica.
• Crónica → doente com insuficiência cardíaca estabelecida, mas compensada, sem
sintomas. É comum verificar-se congestão vascular, mas a pressão arterial é,
normalmente, mantida até estados avançados.

Falência direita VS Falência esquerda

Esta classificação é muito mais utilizada por ser baseada nos sintomas, na clínica. No entanto,
do ponto de vista fisiopatológico, não tem interesse porque ela tem em conta se as causas têm
maior impacto do lado direito ou esquerdo do coração, desprezando o facto de o coração
funcionar como uma unidade integrada. Isto porque, uma IC que começa no ventrículo esquerdo
(e tendo em conta que este não funciona independentemente do direito, uma vez que estão
unidos pelo septo interventricular), a longo prazo, esta disfuncionalidade esquerda vai-se
repercutir no ventrículo direito.

Insuficiência cardíaca direita

Causas:

1. Falência ventricular esquerda. É a causa principal. Primeiro há uma alteração da função


ventricular esquerda que, mais tarde, se vai repercutir nos capilares pulmonares,
artérias pulmonares e, por fim, no ventrículo direito.
2. Obstrução pré-capilar
a. Congénita
b. Hipertensão pulmonar idiopática. É uma causa de péssimo prognóstico, sendo
que o único tratamento que existe é a transplantação de pulmão.
3. Falência ventricular direita primária → Enfarte do ventrículo direito
4. Cor pulmonale (doença
pulmonar)
a. Vasoconstrição
induzida por
hipóxia
b. Embolia pulmonar
c. DPOC

Sinais:

• Aumento da pressão venosa central – ingurgitamento jugular


• Hepatomegália – devido à retenção/acumulação de sangue (congestão)
• Refluxo hepato-jugular – é um sinal que se pesquisa carregando no fígado que, caso
este esteja congestionado, provocará um aumento da pressão abdominal, aumentando
o ingurgitamento jugular. Se isto se verificar, explica também o aumento do fígado,
provocado pelo congestionamento.
• Edema dos membros inferiores
• Ascite – edema da cavidade abdominal
• Anasarca – edema generalizado

Insuficiência cardíaca esquerda

Os sintomas de IC incluem os sintomas de diminuição de débito cardíaco e/ou elevação da


pressão venosa relacionada com o ventrículo que falhou.

• Dispneia de esforço
• Ortopneia
• Dispneia paroxística nocturna
• Cansaço
• Confusão mental – resulta da diminuição da perfusão cerebral;
• Nictúria – tem a ver com a reabsorção de edemas que ocorre durante a noite, levando
a um excesso de líquido no compartimento intravascular, aumentando a perfusão renal,
o que vai obrigar o doente a urinar muitas vezes durante a noite para excretar o excesso
de líquido.
• Dor torácica – pode ser provocada pelo aumento das necessidades cardíacas ou pelo
aumento do stress da parede. Assim, por uma dilatação ou hipertrofia do ventrículo
esquerdo, o doente pode apresentar dor torácica idêntica a um doente com angina de
peito.

Sinais:

• Pele pálida, fria e suada – resulta da ativação do simpático, o qual provoca


vasoconstrição de modo a manter a pressão arterial.
• Taquicardia – também devida à ativação simpática.
• Hipotensão – repercussão da falência (quando os mecanismos de compensação já não
são suficientemente eficazes, denotando-se uma diminuição da contractilidade
cardíaca)
• Fervores crepitantes
• Derrame pleural – provocado por aumento da pressão venosa.
• S3 e S4 – o S3, que corresponde ao enchimento ventricular rápido e que é patológico
nos adultos, denota disfunção sistólica. S4, que corresponde à contração auricular,
denota alterações na distensibilidade do ventrículo (disfunção diastólica)
• Sopros – provocados pela dilatação das cavidades e consequentes alterações valvulares
(sopros de regurgitação valvular)

Montante VS Jusante

• Montante → queixas de retenção de líquidos, congestão.


• Jusante → situações de baixo débito

Disfunção sistólica vs Disfunção diastólica

Esta classificação é muito importante do ponto de vista fisiopatológico, tendo implicações de


diagnóstico e terapêuticas por reconhecer que alterações da função sistólica e diastólica podem
atuar independentemente na patogénese da IC. A distinção entre os dois tipos baseia-se na
anormalidade principal do ventrículo.

2/3 das IC são causadas por disfunção sistólica e 1/3 por disfunção diastólica. Neste último caso,
o coração é de dimensões normais e os doentes têm as mesmas manifestações de edemas,
cansaço, etc, e só através do ecocardiograma e do estudo da função diastólica é que chegamos
à conclusão que é uma insuficiência cardíaca diastólica.

A disfunção sistólica pode ser provocada por:

• Alteração da contractilidade, a qual pode ter como origem:


o EAM
o Miocardiopatia dilatada
o Sobrecarga de volume crónica, causada por lesões a nível das válvulas,
tornando-as válvulas regurgitantes.
• Aumento da pós-carga → sobrecarga de pressão, que ocorre quando o ventrículo está
sujeito a um aumento da pressão intracavitária e que pode ter como origem:
o Estenose aórtica, dificultando a ejeção ventricular e, portanto, aumentando a
pressão intracavitária;
o Hipertensão não controlada, em que o ventrículo tem de ejetar o sangue contra
um aumento da pressão sistólica (“abrir uma torneira e tapá-la por baixo, o que
vai provocar uma sobrecarga de pressão nos tubos”).

A disfunção diastólica pode ser provocada por:

• Alterações do relaxamento, que pode ter como origem:


o Hipertrofia ventricular;
o Miocardiopatias hipertrófica e restritiva;
o Isquémia miocárdica transitória. (atenção: A primeira disfunção é a disfunção
diastólica, só depois é que é a sistólica!)
• Obstrução ao enchimento ventricular, que pode ter como origem:
o Estenose mitral;
o Constrição pericárdica.

NOTA! Ter em conta que uma disfunção diastólica, a longo prazo, dará origem a uma disfunção
sistólica.

Fisiopatologia da IC

Determinantes da função cardíaca


O débito cardíaco corresponde ao produto do volume de ejeção com a frequência cardíaca: DC
= VE x FC. Os 3 maiores determinantes do volume de ejeção são a pré-carga, a pós-carga e a
contractilidade.

A pré-carga é o volume telediastólico, que condiciona a distensão muscular/o comprimento do


músculo no início da contração. Dentro de limites fisiológicos, quanto maior for a pré-carga,
melhor é a performance ventricular. Esta pré-carga é determinada pelo mecanismo de Frank-
Starling.
Lei de Frank-Starling: quanto maior for o comprimento da fibra muscular, maior será
a força de contração.

↑ pré-carga → ↑ comprimento fibra muscular → ↑ força de contração

Esta relação é ilustrada pela curva de Frank-


Starling, ou curva de função ventricular. O gráfico
relaciona a performance cardíaca (débito cardíaco
ou volume de ejeção), no eixo vertical, com a pré-
carga, no eixo horizontal. As medições que se
correlacionam com a distensão das fibras
musculares, e que são indicativas da pré-carga,
são o volume telediastólico ventricular e a pressão
telediastólica. Condições que diminuam o volume
intravascular, reduzindo a pré-carga ventricular
(como desidratação ou hemorragia grave)
resultam numa diminuição do volume
telediastólico e, portanto, numa diminuição do
volume de ejeção. Por outro lado, o aumento do volume no ventrículo esquerdo durante a
diástole (administração de fluidos intravenosos) resulta num aumento do volume de ejeção.

A pós-carga é a resistência ao esvaziamento e está dependente da pressão intracavitária e do


raio do ventrículo. Quanto maior a pós-carga, menor o esvaziamento ventricular, portanto
diminui o volume de ejeção. A pós-carga é a tensão/stress desenvolvido pelo ventrículo durante
a ejeção ventricular. Segundo a Lei de Laplace: δ= P x r / 2 h, em que δ= tensão/Pós-carga, P=
pressão intracavitária, r = raio do ventrículo e h = espessura da parede.

Portanto, a tensão na parede aumenta em resposta a um aumento da pressão (ex: HTA) ou por
aumento do raio do ventrículo (ex: ventrículo esquerdo dilatado). Por outro lado, um aumento
na espessura da parede apresenta um papel compensatório ao diminuir a tensão da parede,
uma vez que a força está distribuída por uma maior massa por unidade de superfície de área no
miocárdio.

A contractilidade (propriedade intrínseca do miocárdio) explica-se por alterações na força


miocárdica para um determinado conjunto de condições de pré-carga e pós-carga, resultando
de influências químicas e hormonais. Quando a contractilidade é aumentada
farmacologicamente, a curva de Frank-Starling desloca-se para cima, sendo que para uma dada
pré-carga, o volume de ejeção é maior. Por outro lado, quando a contractilidade está
comprometida, a curva desloca-se para baixo, levando a reduções no volume de ejeção e no
débito cardíaco para uma determinada pré-carga.
Curvas pressão-volume

Esta curva relaciona alterações no volume ventricular com


alterações correspondentes na pressão ao longo do ciclo cardíaco.
No ventrículo esquerdo, o enchimento começa quando a válvula
mitral se abre no início da diástole (ponto a). A curva entre os
pontos a e b representa o enchimento diastólico. À medida que o
volume aumenta durante a diástole, há um pequeno aumento da
pressão, de acordo com a compliance do miocárdio
(facilidade/dificuldade com que a câmara cardíaca recebe sangue).
Depois, o início da contração sistólica do ventrículo esquerdo causa a elevação da pressão
ventricular. Quando a pressão do ventrículo esquerdo excede a da aurícula esquerda (ponto b),
a válvula mitral fecha-se. À medida que a pressão continua a aumentar, o volume ventricular
não se altera inicialmente, uma vez que a válvula aórtica ainda não abriu → fase de contração
isovolumétrica. Quando a pressão ventricular atinge a pressão aórtica diastólica, a válvula
aórtica abre-se (ponto c) e começa a ejeção de sangue para a aorta. Durante a ejeção, o volume
ventricular diminui, mas a sua pressão continua a aumentar até que comece o relaxamento
ventricular. A pressão contra a qual o ventrículo ejeta (pós-carga) está representada pela curva
cd. A ejeção termina durante a fase de relaxamento, quando a pressão ventricular se torna
inferior à da aorta e a válvula aórtica se fecha (ponto d). À medida que o ventrículo continua a
relaxar, a pressão diminui enquanto o volume permanece igual, uma vez que a válvula mitral
ainda não abriu (relaxamento isovolumétrico). Quando a pressão ventricular é inferior à da
aurícula esquerda, a válvula mitral abre novamente (ponto a) e o ciclo repete-se.

O ponto b representa a pressão e o volume no final da diástole, enquanto o ponto d representa


a pressão e o volume no final da sístole. A diferença entre o volume telediastólico e o volume
telesistólico representa a quantidade de sangue ejetada durante a contração, ou seja, o volume
de ejeção.

Alterações na pré-carga:

Se a pós-carga e a contractilidade forem constantes, mas a pré-carga


aumentar, aumenta o volume telediastólico do ventrículo esquerdo
e aumenta o volume de ejeção via mecanismo de Frank-Starling, de
modo que o volume telesistólico alcançado é igual a antes de se
aumentar a pré-carga. Assim, um ventrículo normal consegue ajustar
o seu volume de ejeção e esvaziar eficazmente de acordo com o seu
volume de enchimento diastólico, desde que a contractilidade e a
pós-carga sejam constantes.

Apesar do volume telediastólico e da pressão telediastólica serem


utilizados como marcadores da pré-carga, a relação entre o volume e a pressão de enchimento
(isto é, a compliance ventricular) é a responsável pela extensão do enchimento do ventrículo.
Se a compliance ventricular estiver reduzida (ex: hipertrofia do VE), a curva de enchimento
diastólico/segmento ab torna-se mais íngreme; um ventrículo pouco complacente reduz a
capacidade de enchimento durante a diástole, o que resulta num menor volume telediastólico.
Nesta circunstância, o volume de ejeção vai estar reduzido, enquanto o volume telesistólico
permanece igual.

Alterações na pós-carga:
Um aumento na pós-carga resulta num aumento da pressão sistólica ventricular
e do aumento do volume telesistólico do ventrículo esquerdo. Portanto, o
volume de ejeção ventricular (= volume telediastólico – volume telesistólico)
diminui. Quanto maior a pós-carga, maior será o volume telesistólico – relação
volume-pressão telesistólica (ESPVR).

Alterações na contractilidade:

Quando há aumento da contractilidade, a reta ESPVR desvia-se para


cima/esquerda, ou seja, para uma dada pré-carga ou pós-carga, o volume
de ejeção aumenta, resultando num volume telesistólico menor. Quando há
diminuição da contractilidade, a linha ESPVR desvia-se para baixo – diminui
o volume de ejeção e aumenta o volume telesistólico. Portanto, o volume
telesistólico depende da pós-carga e da contractilidade, e é independente
do volume telediastólico anterior à contração.

Em resumo:

• O volume de ejeção é determinado pela pré-carga, pós-carga e


contractilidade. Aumenta quando aumenta a pré-carga, quando diminui a pós-carga e
quando aumenta a contractilidade.
• O volume telediastólico ventricular representa a pré-carga e é influenciado pela
compliance ventricular.
• O volume telesistólico depende da pós-carga e da contractilidade, e não da pré-carga.

Fisiopatologia

A etiologia da IC crónica pode ser agrupada em grupos nos quais ocorra:

• Diminuição da contractilidade ventricular


• Aumento da pós-carga
• Comprometimento do enchimento e relaxamento
ventricular

A insuficiência cardíaca pode resultar numa anormalidade


do esvaziamento ventricular (devido a comprometimento
da contractilidade ou de excessiva pós-carga) – disfunção
sistólica – ou de anormalidade no relaxamento diastólico
ou enchimento ventricular – disfunção diastólica. Contudo,
muitas vezes coexistem, pelo que muitos pacientes
apresentam tanto disfunção sistólica como diastólica.

A IC pode ser classificada em 2 categorias com base na


fração de ejeção (FE = volume sistólico/volume
telediastólico):

• IC com FE reduzida (disfunção sistólica primária)


• IC com FE preservada (disfunção diastólica
primária)

IC com FE reduzida
Na disfunção sistólica, o ventrículo apresenta menor capacidade de ejetar sangue devido a
comprometimento da contractilidade ou sobrecarga de pressão (pós-carga excessiva). A
diminuição da contractilidade pode resultar de destruição de miócitos, função anormal dos
miócitos ou fibrose. A sobrecarga de pressão afeta a ejeção ventricular ao aumentar a
resistência ao fluxo.

Na curva pressão-volume, a ESPVR está desviada para baixo, pelo que o esvaziamento sistólico
termina a um volume telesistólico superior ao normal, logo o volume de ejeção diminui. Quando
se adiciona um retorno venoso pulmonar normal ao volume telesistólico aumentado que
permaneceu no ventrículo devido a esvaziamento incompleto, o volume diastólico aumenta,
resultando num aumento do volume e da pressão telediastólicos. Enquanto este aumento da
pré-carga induz um aumento compensatório no volume de ejeção (via mecanismo de Frank-
Starling), a contractilidade comprometida e a FE reduzida fazem com que o volume telesistólico
permaneça elevado.

Durante a diástole, a pressão permanentemente elevada no VE é transmitida à AE e às veias e


capilares pulmonares. Uma pressão hidrostática elevada nos capilares pulmonares, quando
superior a > 20 mmHg, resulta na transudação de fluido para o interstício pulmonar e em
sintomas de congestão pulmonar.

IC com FE preservada

Há anormalidade na função diastólica ventricular: tanto no relaxamento diastólico inicial


comprometido (1ª parte da diástole → processo ativo, dependente de energia), como no
aumento da rigidez da parede ventricular (propriedade passiva), ou ambos. A isquémia
miocárdica aguda afeta transitoriamente o relaxamento diastólico. Por outro lado, a hipertrofia
ventricular esquerda, fibrose ou miocardiopatia restritiva causa rigidez crónica nas paredes do
ventrículo. O tamponamento cardíaco e constrição pericárdica podem limitar o enchimento
ventricular, representando uma forma potencialmente reversível de disfunção diastólica. Na
diástole, o enchimento do ventrículo ocorre a pressões superiores ao normal (parte inferior da
curva desviada para cima, como resultado da compliance diminuída). Os doentes manifestam
sinais de congestão vascular porque a pressão diastólica elevada é transmitida retrogradamente
às veias pulmonares e sistémicas.

IC direita
Em comparação com o ventrículo esquerdo, o ventrículo direito tem paredes mais finas e é mais
complacente, aceitando o sangue a pressões baixas e ejetando-o contra a baixa resistência
vascular pulmonar. Como resultado da alta compliance, o ventrículo direito não tem dificuldade
em aceitar uma grande variabilidade de volumes de enchimento sem alterações significativas
das pressões de enchimento. Por outro lado, é suscetível a insuficiência em situações onde
ocorra aumento súbito da pós-carga, como no TEP agudo.

A causa mais comum de IC direita é a IC esquerda – nesta situação, há aumento da pós-carga no


ventrículo direito devido ao aumento das pressões vasculares pulmonares, como resultado de
disfunção do ventrículo esquerdo. A IC direita isolada é menos comum e geralmente reflete
aumento da pós-carga do ventrículo direito por distúrbios no parênquima pulmonar ou na
vasculatura pulmonar. A IC direita que resulta de um processo pulmonar primário é designada
por cor pulmonale.

Quando o ventrículo direito falha, a pressão diastólica elevada é transmitida retrogradamente à


aurícula direita com subsequente congestão das veias sistémicas. A IC direita isolada também
pode afetar a função do ventrículo esquerdo: a diminuição do débito do ventrículo direito
diminui o retorno venoso ao ventrículo esquerdo (diminuição da pré-carga), causando
diminuição do volume de ejeção do ventrículo esquerdo.

Mecanismos compensatórios na IC:

1. Mecanismo de Frank-Starling
2. Hipertrofia com ou sem dilatação ventricular
3. Ativação dos sistemas neuro-humorais
4. Redistribuição do débito cardíaco

Mecanismo de Frank-Starling

A IC com comprometimento da função contrátil do


ventrículo esquerdo resulta numa curva de Frank-Starling
desviada para baixo e aplanada.

Para uma dada pré-carga, o volume de ejeção é inferior


ao normal. Isto resulta do esvaziamento incompleto da
câmara cardíaca, pelo que o sangue que se acumula no
ventrículo durante a diástole é superior ao normal (ponto
b). O aumento da distensão das miofibrilas, através do
mecanismo de Frank-Starling, induz um aumento do
volume de ejeção na contração subsequente, o que ajuda
a esvaziar o ventrículo e a preservar o débito cardíaco.

Contudo, este mecanismo compensatório tem limites. No


caso de IC grave com marcada disfunção contrátil, a curva
pode ficar achatada a volumes diastólicos superiores, e este volume e pressão telediastólicos
aumentados (transmitidos à aurícula esquerda, veias pulmonares e capilares) podem resultar
em congestão pulmonar e edema (ponto c). Este mecanismo só funciona em partes iniciais.
Alterações neurohormonais

Os 3 mecanismos compensatórios mais


importantes são: sistema nervoso
simpático, sistema renina-angiotensina-
aldosterona e aumento da produção de
ADH. Estes mecanismos aumentam a RVP,
que ajuda a manter a perfusão arterial aos
órgãos vitais, mesmo em situações de DC
diminuído, ou seja, uma vez que PA = DC x
RVP, um aumento na RVP induzido por
estes mecanismos pode contrabalançar a redução do DC e, nos estádios iniciais da IC, manter
uma PA normal. Para além disso, a ativação neurohormonal resulta em retenção de sal e água,
que por sua vez aumenta o volume intravascular e a pré-carga, maximizando o volume de ejeção
via mecanismo de Frank-Starling.

Sistema nervoso simpático:

A diminuição do DC na IC é detetada pelos barorrecetores do seio carotídeo e arco aórtico. Estes


recetores diminuem a sua taxa de despolarização em proporção à diminuição da PA, e este sinal
é transmitido via IX e X pares cranianos para o
centro de controlo cardiovascular no bulbo.
Como resultado, aumenta a atividade simpática
no coração e circulação periférica, e o tónus
parassimpático é diminuído. As consequências
imediatas são aumento da FC, aumento da
contractilidade e vasoconstrição via estimulação
dos recetores α nas veias e artérias sistémicas.

O aumento da FC e da contractilidade aumentam


diretamente o DC. A vasoconstrição do sistema
venoso aumenta o retorno ao coração,
aumentando a pré-carga e o volume de ejeção
via mecanismo de Frank-Starling. A
vasoconstrição das artérias aumenta a RVP,
ajudando a manter a PA. Durante a estimulação
simpática, a distribuição dos recetores α permite
que o fluxo sanguíneo seja redistribuído para os
órgãos vitais (coração e cérebro) e ocorre uma
diminuição do débito para a pele, aparelho
músculo-esquelético e rim, o que também pode ter efeitos deletérios. Na pele pode levar à
gangrena; no músculo esquelético pode haver alteração do metabolismo aeróbio para o
anaeróbio e por isso produção de ácido láctico, que é responsável pelo cansaço; a nível do rim,
a diminuição da perfusão renal vai ativar o sistema renina-angiotensina-aldosterona, havendo
retenção de sódio.

Sistema RAA:

O estímulo principal para o aumento da secreção de renina nas células justaglomerulares inclui
a diminuição da perfusão renal devido à diminuição do DC, a diminuição da apresentação de
sódio à mácula densa devido a alterações na hemodinâmica intrarenal e a estimulação direta
dos recetores β2 justaglomerulares pelo SN Simpático.

O aumento de angiotensina II provoca constrição das arteríolas e aumenta a RVP, permitindo


manter a PA. Para além disso, a angiotensina II aumenta o volume intravascular ao estimular,
no hipotálamo, a sede e a ingestão de água e, no córtex suprarrenal, ao aumentar a secreção de
aldosterona, uma hormona que promove a reabsorção de sódio no TCD do rim. O aumento do
volume intravascular aumenta a pré-carga, logo aumenta o DC via mecanismo de Frank-Starling.

ADH/Vasopressina:

A secreção desta hormona está aumentada em pacientes com IC, presumivelmente devido aos
barorrecetores arteriais e aos níveis elevados de angiotensina II. A ADH contribui para o
aumento do volume intravascular ao promover a reabsorção de água no túbulo coletor. A ADH
também parece contribuir para a vasoconstrição sistémica.

Apesar destes mecanismos serem benéficos inicialmente, tornam-se deletérios:

• O aumento do volume circulante e o aumento do retorno venoso pode piorar a


congestão na vasculatura pulmonar, exacerbando os sintomas de congestão pulmonar.
• A resistência arteriolar elevada aumenta a pós-carga contra a qual o ventrículo contrai
e pode assim diminuir o volume de ejeção e o débito cardíaco.
• O aumento da FC aumenta o consumo miocárdico de O2
• A contínua ativação simpática resulta em downregulation dos recetores β-adrenérgicos
e em upregulation das proteínas G inibitórias, contribuindo para a diminuição da
sensibilidade do miocárdio às catecolaminas circulantes e a uma reduzida resposta
inotrópica.
• Níveis permanentemente elevados de angiotensina II e aldosterona provocam produção
de citocinas, ativação de macrófagos e estimulação de fibroblastos, resultando em
fibrose e remodelação adversa do coração.

Como as consequências negativas dos mecanismos de ativação neurohormonal se sobrepõem


aos efeitos benéficos, a terapêutica farmacológica tem como objetivo moderar estes
mecanismos.

Péptidos natriuréticos:

Em contraste com as consequências anteriormente descritas, os péptidos natriuréticos são


hormonas “benéficas” secretadas pelo coração em resposta ao aumento das pressões
intracardíacas.

O ANP (atrial natriuretic peptide) é armazenado nas células das aurículas e libertado em resposta
à distensão auricular. O BNP (B-type natriuretic peptide) não é detetado no coração normal, mas
é produzido quando o miocárdio ventricular é sujeito a stress hemodinâmico (IC ou durante
EAM). Estudos mostram a relação entre os níveis séricos de BNP e a gravidade clínica da IC.
As ações dos péptidos natriuréticos são mediadas por recetores específicos e opostas pela ação
das outras hormonas libertadas na
IC. Estes péptidos promovem a
excreção de sódio e água,
vasodilatação, inibição da secreção
de renina e antagonizam os efeitos
da angiotensina II nos níveis de
aldosterona e ADH. Apesar destes
efeitos serem benéficos,
normalmente não são suficientes
para contrariar totalmente os
efeitos dos outros sistemas
hormonais.

Outros péptidos:

Outro péptido produzido na IC é a endotelina I, um potente vasoconstritor derivado das células


endoteliais – produzida em resposta à inflamação, não tanto como mecanismo compensatório.
Em pacientes com IC, a concentração plasmática de endotelina 1 correlaciona-se com a
gravidade da doença e com os outcomes adversos. Fármacos que inibem os recetores da
endotelina melhoram a função ventricular na IC, mas não foram demonstrados benefícios a
longo prazo.

Hipertrofia e remodeling ventricular → ver artigo “Cardiac Plasticity”

São mecanismos compensatórios que se


desenvolvem ao longo do tempo em resposta a
stress hemodinâmico. O stress da parede está
muitas vezes aumentado na IC devido ou à
dilatação do ventrículo esquerdo (↑ raio
ventrículo) ou à necessidade de aumentar a
pressão sistólica para superar a pós-carga
excessiva (na estenose aórtica ou HTA). Um
aumento sustentado no stress da parede, em
conjunto com alterações neurohormonais e com
citocinas, estimula a hipertrofia ventricular e a
deposição de matriz extracelular. O aumento da
massa do ventrículo ajuda a manter a força
contrátil e contraria o stress da parede elevado,
de acordo com a lei de Laplace (↑ espessura
parede). Contudo, como há aumento da rigidez
no ventrículo hipertrofiado, os benefícios surgem
à custa de pressões ventriculares diastólicas
superiores ao normal, que são transmitidas à aurícula esquerda e aos vasos pulmonares.

O tipo de sobrecarga hemodinâmica que é imposto ao coração é que vai determinar o tipo de
hipertrofia. Se essa sobrecarga for causada por pressão, como na HTA ou estenose aórtica, vai
dar origem a uma hipertrofia concêntrica. Há aumento do stress sistólico → adição de
miofibrilhas em paralelo → aumenta a espessura da parede. Se a sobrecarga é devida a um
excesso de volume, como acontece na regurgitação mitral ou aórtica crónicas, aumenta o
retorno venoso, que vai provocar alterações nas relações do stress da parede e levar a uma
hipertrofia excêntrica. Há um aumento do stress diastólico, adição de miofibrilhas em série,
aumento da massa muscular e dilatação da câmara que leva a essa hipertrofia excêntrica. A
relação massa/volume permanece normal. Quando a hipertrofia não é compensatória para
manter o stress normal da parede, segundo a lei de Laplace, chama-se afterload missmatch. É
este mecanismo é que vai levar à disfunção ventricular esquerda.

A hipertrofia e a remodelação ventricular ajudam a reduzir o stress da parede e a manter a força


contrátil, mas passado algum tempo a função ventricular pode diminuir, permitindo que a
câmara dilate desproporcionalmente com a espessura da parede. Quando isto acontece, a
sobrecarga hemodinâmica produz uma espiral de deterioração com progressiva sintomatologia
de IC.

A hipertrofia dá-se em resposta a:

• Sobrecarga hemodinâmica: hipertensão arterial e doença


valvular.
• Fatores humorais: angiotensina, noradrenalina, etc.
• Perda de miócitos: enfarte do miocárdio, miocardite.

Numa primeira fase há uma hipertrofia compensadora, para


compensar as necessidades metabólicas, que depois evolui para uma
hipertrofia descompensada, desenvolve-se insuficiência cardíaca e,
com isso, alterações irreversíveis com perda da função miocárdica.

Respostas à sobrecarga hemodinâmica

A resposta à sobrecarga hemodinâmica, seja a um excesso de


pressão ou de volume, dá-se em vários estádios.

• 1º Estádio (agudo): falência cardíaca aguda pelo aumento da


pressão, há congestão pulmonar e diminuição do débito
cardíaco. Se esta sobrecarga continuar, há uma dilatação
ventricular e desenvolve-se hipertrofia ventricular esquerda.
Há uma tentativa de aumento do conteúdo de mitocôndrias
em relação às miofibrilhas para haver nova síntese proteica.
• 2º Estádio (hiperfunção estável): se o estímulo é prolongado,
vamos ter uma fase de compensação. Há melhoria da
congestão e do débito, temos uma hipertrofia estabelecida
e temos um aumento de miofibrilhas em relação às mitocôndrias.
• 3º Estádio (exaustão e cardioesclerose): se o estímulo se mantiver, vai-se dar a
irreversibilidade da compensação da insuficiência cardíaca, esta torna-se progressiva,
há progressão da hipertrofia e da fibrose e há morte celular.
A sobrecarga hemodinâmica reage com fatores de crescimento que levam à hipertrofia
ventricular. A sua ativação acelera a síntese proteica e favorece a expressão de genes específicos
do músculo fetal. Não há divisão celular, mas verifica-se um crescimento anormal estimulado
pelas isoformas fetais da miosina e da actina que aparecem e que têm menos actividade ATPase
e, por isso, menos atividade contráctil, sendo, portanto, menos eficazes. Estas isoformas não
são normais e vão ser despoletadas pelos fatores de crescimento e proto-oncogenes.

Fatores de crescimento:

• Noradrenalina
• Angiotensina II;
• Endotelina
• TGF β (transforming growth factor β)
• IGF 1 (insulin like growth factor)
• Citocinas

Todos eles têm efeitos deletérios a longo prazo.


Além destes fatores, estão envolvidos
protooncogenes, que estão divididos em várias classes conforme a sua ação na membrana, no
citoplasma ou no núcleo. São estimulados pela angiotensina e pela noradrenalina e levam a um
aumento da síntese proteica e ao crescimento anormal do músculo cardíaco com consequente
hipertrofia ventricular esquerda.

Disfunção miocárdica

• Alterações no cálcio: há um aumento


do cálcio intracelular, uma diminuição
da recaptação de cálcio pelo retículo
sarcoplásmico e diminuição da sua
libertação para o mioplasma. Existe
também uma redução dos canais de
cálcio dependentes da voltagem e um
aumento da troca Na+/Ca2+. O
somatório de todos estes mecanismos
resulta num aumento de Ca2+
intracelular. A proteína armazenadora
do cálcio (calsequestrina) está normal.
• Alterações no Aparelho Contráctil, que
levam à diminuição da função contráctil do miocárdio:
o Diminuição da ATPase da miosina, que diminui a interação entre a miosina e
actina.
o Reaparecimento de isoformas formas fetais da miosina que têm menos
atividade ATPase, re-expressão da isoforma V3 das cadeias pesadas da β
miosina.
o Alteração das proteínas reguladoras, alteração nas isoformas das cadeias leves
da miosina e no complexo troponina-miosina.

Disfunção celular e perda de miócitos

O comprometimento da função ventricular na IC pode resultar de perda de miócitos e/ou


comprometimento da função dos miócitos. A perda de miócitos pode resultar de necrose
celular (EAM, exposição a fármacos/drogas cardiotóxicas) ou apoptose. Na apoptose, são
ativadas vias intracelulares que causam fragmentação da célula e a sua fagocitose por outras
células, sem resposta inflamatória associada. Mecanismos que desencadeiam a apoptose na
IC incluem catecolaminas elevadas, angiotensina II, citocinas inflamatórias e stress mecânico
nos miócitos devido a stress da parede aumentado.

Mesmo o miocárdio viável na IC apresenta alterações a nível ultraestrutural e molecular. O


stress da parede, a ativação neurohormonal e as citocinas inflamatórias, como TNF-α,
alteram a expressão genética de proteínas contráteis, canais iónicos, enzimas catalíticas,
recetores de superfície e segundos mensageiros no miócito. Estas alterações afetam o cálcio
intracelular no retículo sarcoplasmático, diminuem a resposta dos miofilamentos ao cálcio,
afetam o acoplamento excitação-contração e alteram a produção celular de energia.

Os mecanismos celulares que se consideram ser os mais importantes na disfunção na IC são:


redução da capacidade da célula em manter a homeostase do cálcio e/ou alterações na
produção, disponibilidade e utilização de fosfatos de elevada energia.

Fatores precipitantes

Causas precipitantes de uma descompensação

Aumento da pré-carga descompensa IC

Para além das causas primárias da IC temos, também, as causas que precipitam a IC. O doente,
normalmente, permanece assintomático, por ação dos mecanismos de compensação. No
entanto, e de um momento para o outro, a ação de um fator precipitante pode conduzir a uma
descompensação, surgindo as manifestações da IC.

• Que provocam a diminuição da função miocárdica:


o O não cumprimento da terapêutica
o O álcool, que deprime a função miocárdica;
o Arritmias, que levam a alterações da função cardíaca por encurtarem a diástole
e aumentarem o consumo de oxigénio (ex: fibrilhação auricular, taquiarritmia):
não há uma contração eficaz e, se o doente tiver uma disfunção diastólica, está
muito dependente da contração auricular. Portanto, as taquiarritmias (quando
o coração bate mais depressa por uma arritmia) ou uma bradiarritmia, por um
bloqueio AV, são fatores agravantes e podem ser uma causa precipitante de
insuficiência cardíaca.
o Uma isquémia sobreposta ou um enfarte agudo do miocárdio, que conduzem à
perda de massa contráctil.
• Que levam ao aumento das necessidades metabólicas, ou seja, ao aumento da
sobrecarga no coração:
o Aumento da ingestão de sal;
o O não cumprimento da terapêutica com os diuréticos, que servem para expulsar
o excesso de líquidos;
o Crise hipertensiva
o Tromboembolismo pulmonar
o Aumento da atividade física;
o Febre (na sequência de uma infeção, por exemplo), anemia e hipertiroidismo,
as quais aumentam as necessidades metabólicas. Uma causa frequente são as
infeções, até mesmo as sub-clínicas, como uma infeção urinária numa mulher
ou uma infecção polibacilus, que muitas vezes é assintomática
o Gravidez;
o Insuficiência renal aguda ou crónica

Manifestações clínicas

Resultam da diminuição do débito cardíaco e/ou de pressões venosas elevadas. Um doente pode
apresentar sintomas de IC crónica ou, em certos casos, de súbita descompensação da função
cardíaca.

Sintomas

A manifestação mais frequente de IC esquerda é a dispneia em esforço. Uma pressão venosa


pulmonar que exceda aproximadamente 20 mmHg leva a transudação de fluido para o
interstício pulmonar e congestão do parênquima pulmonar → a compliance pulmonar reduzida
aumenta o esforço para respirar, para mover a mesma quantidade de ar, e o excesso de fluido
no interstício comprime as paredes dos bronquíolos e alvéolos, aumentando a resistência à
passagem do ar e requerendo maior esforço para a respiração. Para além disso, os recetores
justacapilares (recetores J) são estimulados e mediam uma respiração rápida e superficial.

Também pode ocorrer dispneia mesmo na ausência de congestão pulmonar → redução do fluxo
sanguíneo para os músculos respiratórios → acumulação de ácido láctico.

Inicialmente a dispneia é só em esforço, mas estados de disfunção mais grave resultam em


sintomas mesmo em repouso.

Outras manifestações incluem alterações do estado de consciência devido a redução da


perfusão cerebral, e comprometimento do débito urinário durante o dia devido a diminuição
da perfusão renal – isto muitas vezes leva a aumento da frequência urinária durante a noite
(noctúria) visto que, em supinação, o fluxo sanguíneo é redistribuído para o rim, promovendo a
perfusão renal e a diurese. A redução da perfusão muscular pode resultar em cansaço e fraqueza
muscular.

Outras manifestações congestivas incluem ortopneia, dispneia paroxística noturna e tosse


noturna.

A ortopneia é a sensação subjetiva de falta de ar em decúbito, sendo aliviada quando o doente


se senta. Resulta da redistribuição do sangue do abdómen e extremidades inferiores para os
pulmões quando o doente está em decúbito. O grau de ortopneia geralmente é avaliado pelo
nº de almofadas com que o doente dorme para evitar a falta de ar. Por vezes é tão significativa
que os doentes dormem sentados.

A dispneia paroxística noturna é sensação severa de falta de ar que acorda o doente 2 a 3 horas
após este ter ido dormir. Este sintoma resulta da reabsorção gradual para a circulação do edema
intersticial das extremidades inferiores após o doente se deitar, com subsequente expansão do
volume intravascular e aumento do retorno venoso para o coração e pulmões.

A tosse noturna é outro sintoma de congestão pulmonar e é produzido por um mecanismo


semelhante à ortopneia. A hemoptise pode resultar da rutura de veias brônquicas.

Na IC direita, as pressões venosas sistémicas elevadas podem resultar em dor abdominal devido
a hepatomegália e à distensão da cápsula do fígado. A anorexia e náuseas podem resultar de
edema no TGI. O edema periférico, especialmente nos pés e tornozelos, também reflete
pressões venosas sistémicas elevadas. Devido à gravidade, tende a piorar durante o dia. Mesmo
antes do edema periférico, pode ocorrer ganho de peso como resultado da acumulação de
fluido intersticial.

Sinais

Os sinais dependem da gravidade e cronicidade e podem ser divididos de acordo com IC


esquerda ou com IC direita.

Um paciente com grave IC crónica pode apresentar caquexia devido, em parte, a diminuição do
apetite, e também ao aumento das necessidades metabólicas devido a maior esforço para
respirar.

Na IC esquerda descompensada, o doente pode apresentar uma “dusky appearence” (devido a


diminuição do DC) e diaforese (sudação devido a aumento da atividade simpática), e
extremidades frias devido a vasoconstrição arterial periférica, bem como respiração de Cheyne-
Stokes (períodos de hiperventilação separados por intervalos de apneia) – este padrão
relaciona-se com o tempo circulatório prolongado entre os pulmões e o centro respiratório no
bulbo, que interfere com o mecanismo normal de feedback da oxigenação sistémica. Também
está presente taquicardia sinusal (aumento da atividade do SN Simpático) e pulso alternans
(quando há grave disfunção da função ventricular). Na auscultação pulmonar, podem estar
presentes fervores devido à abertura de pequenas vias aéreas durante a inspiração que estavam
fechadas pelo edema. Estes fervores encontram-se nas bases pulmonares, onde as forças
hidrostáticas são maiores, mas em congestão pulmonar mais grave também se encontram mais
acima. A compressão das vias aéreas pela congestão pulmonar também pode produzir roncos e
sibilos – asma cardíaca.

Dependendo da causa de IC, a palpação do coração pode mostrar um impulso ventricular


esquerdo difuso (na miocardiopatia dilatada), sustentado (na sobrecarga de pressão, como na
estenose aórtica e na HTA) ou com maior qualidade (sobrecarga de volume, como na
regurgitação mitral). Devido ao aumento da pressão vascular pulmonar, o componente
pulmonar de S2 é hiperfonético; S3 pode estar presente na IC sistólica e é causado por
enchimento anormal de
uma câmara dilatada; S4
resulta da contração
auricular contra um
ventrículo mais rígido e é
comum em estados de
diminuição da compliance
do ventrículo esquerdo
(disfunção diastólica). O
sopro de regurgitação
mitral pode ser auscultado na IC esquerda se a dilatação do ventrículo esquerdo distorcer a
arquitetura do anel valvular e se os músculos papilares estiverem afastados, impedindo que os
folhetos da válvula se fechem corretamente durante a sístole.

Na IC direita, pode verificar-se um impulso paraesternal causado por dilatação do ventrículo


direito, ou um S3 ou S4 direitos. O sopro de regurgitação tricúspide pode estar presente. O
aumento da pressão venosa sistémica manifesta-se por ingurgitamento jugular,
hepatomegália, com dor abdominal do quadrante superior direito. O edema acumula-se nas
extremidades inferiores (ou na região pré-sagrada se o doente estiver em decúbito).

Podem desenvolver-se derrames pleurais tanto na IC esquerda como na IC direita, uma vez que
as veias pleurais drenam tanto para as veias sistémicas como para as veias pulmonares.

IC Aguda

Acute heart failure can be characterized by, and treatment


decisions based on, the presence or absence of (1) elevated left
heart filling pressures (wet vs. dry) and (2) reduced systemic tissue
perfusion with elevated systemic vascular resistance (i.e., cold vs.
warm)
Arritmias

Mecanismos de arritmogénese

Quando pensamos na fisiopatologia das arritmias, temos que ter presentes 2 vertentes:

• Substrato – mecanismo que permite a ocorrência e manutenção de um processo


arrítmico
• Moduladores – o “gatilho”, ou seja, o estímulo que despoleta o aparecimento das
arritmias (e cuja ocorrência explica o carácter paroxístico e imprevisível das mesmas).

Formação normal de impulsos

O impulso elétrico no coração tem origem no Automatismo: capacidade de uma célula de se


automatismo intrínseco do tecido cardionetor despolarizar a si própria até ao limiar de
(composto pelo nódulo sinusal (SA), nódulo excitabilidade, desencadeando assim um potencial
auriculoventricular (AV) e sistema de de ação espontâneo.
condução ventricular – composto pelo feixe de
His e os seus ramos e pelas fibras de Purkinje),
especializado na condução destes impulsos.

Em condições normais, apenas as células do sistema cardionetor possuem automatismo, sendo


por isso designadas de células pacemaker. Contudo, em situações patológicas, outras células
miocárdica podem adquirir esta capacidade.

Potencial de ação (exemplo da célula miocárdica ventricular)

Bases iónicas do automatismo


As células com automatismo apresentam,
contrariamente às outras, uma despolarização
gradual durante a Fase 4 do potencial de ação
(PA), sendo a corrente pacemaker (ou corrente
funny, If) a principal (mas não o único)
responsável por esse fenómeno. Os canais If são
ativados pela hiperpolarização (para voltagens
inferiores a -50mV) e originam essencialmente um influxo lento de iões Na+, que leva à gradual
despolarização em direção ao limiar da excitação.

Nas células pacemaker do nódulo SA, alterações nas outras 3 correntes iónicas também
contribuem para a despolarização gradual da fase 4:

1. Entrada lenta de Ca2+ pelos canais Ca2+ tipo L, que são ativados quando se aproxima o
fim da fase 4
2. Diminuição progressiva da saída de K+
3. Entrada de Na+ adicional, mediada pela ativação do trocador Na+-Ca2+ pela libertação
de Ca2+ do retículo sarcoplasmático.

Quando a célula pacemaker atinge o limiar de


excitabilidade, inicia-se a Fase 0. Comparativamente
com as células de Purkinje, onde a Fase 0 é muito
rápida, nas células dos nódulos SA e AV esta é
substancialmente mais lenta. Isto acontece porque
o nº de canais de Na+ disponíveis (em repouso)
para originar essa despolarização é tanto maior
quanto menor/mais negativo for o potencial de
repouso da célula. Como o potencial membranar negativo diastólico máximo nas células dos
nódulos SA e AV é de -50mV, enquanto é de -90mV nas células de Purkinje, uma maior proporção
de canais de Na+ está inativada nas células do nódulo SA e AV. Nestas circunstâncias, a
despolarização celular passa a estar muito mais dependente do influxo de Ca2+ através de canais
lentos tipo L e são mais lentas do que as células de Purkinje ou o miocárdio ventricular. A fase
de repolarização das células pacemaker depende da inativação dos canais de Ca2+ e da abertura
de canais de K+ dependentes da voltagem, que permitem o efluxo de K+ das células.

Pacemaker nativo e latente

O ritmo intrínseco de célula pacemaker depende de 3 variáveis:

1. Do ritmo de despolarização espontânea da Fase 4 (diretamente);


2. Do potencial membranar negativo diastólico máximo (inversamente);
3. Do limiar de excitabilidade (inversamente).

Em condições normais, é o nódulo sinusal que possui


maior ritmo intrínseco, disparando 60 a 100x/min, pelo
que é ele que marca o ritmo cardíaco – pacemaker
nativo. Sendo mais rápido que o resto do tecido
cardionetor, os impulsos contínuos com origem no
nódulo SA previnem o disparo espontâneo das outras
células com potencial pacemaker, que são, por isso,
designadas de pacemakers latentes ou ectópicos.
Em situações patológicas, esses pacemakers ectópicos podem tornar-se os pacemakers efetivos
do coração (nódulo AV: 50-60 bpm; céls. rede de Purkinje: 30-40 bpm). Isto verifica-se quando
o nódulo SA abranda ou para de disparar ou quando existem anomalias de condução que
previnem a correta transmissão da onda de despolarização.

Overdrive supression

O pacemaker nativo, além de prevenir o disparo dos pacemakers


potenciais indiretamente, por ter um maior ritmo intrínseco, suprime-
os também diretamente através de um fenómeno designado
Overdrive Suppression. As células mantêm a sua distribuição iónica
estável por ação da Na+K+ATPase, que cria uma corrente
hiperpolarizante (isto é, tende a tornar o sarcoplasma mais negativo).
Quando uma célula é estimulada a disparar com uma frequência
superior ao seu ritmo intrínseco, as repetidas despolarizações levam a
que uma maior quantidade de Na+ entre na célula por unidade de
tempo, o que por seu turno ativa mais a Na+-K+ ATPase, aumentando
a intensidade dessa corrente hiperpolarizante, que se opõe à corrente
funny e diminui ainda mais a frequência de disparo.

Interações eletrónicas

As células miocárdicas no
ventrículo e no sistema
Purkinje repolarizam a um
potencial de -90 mV,
enquanto as células
pacemaker do nódulo SA e
nódulo AV repolarizam a
um potencial diastólico
máximo de -60 mV.
Quandos estes dois tipos
de células estão
adjacentes, estão
eletricamente acoplados
através de gap junctions
nos discos intercalados.
Este acoplamento resulta num compromisso dos potenciais elétricos devido ao fluxo de corrente
entre as células, causando uma hiperpolarização relativa das células pacemaker e uma
despolarização relativa das células não pacemaker. A corrente hiperpolarizante na célula
pacemaker acoplada reduz a automaticidade da célula. Descoplamento de células normalmente
suprimidas, como as do nódulo AV, por exemplo por lesão isquémica, podem reduzir a influência
eletrónica inibitória e aumentar a automaticidade, produzindo ritmos ectópicos pelos
pacemakers latentes.

Formação alterada de impulsos

Acontece essencialmente por 1 de 3 mecanismos:


• Alteração do automatismo normal (quer do nódulo SA, quer dos pacemakers latentes)
• Automatismo anormal (nos miócitos auriculares ou ventriculares)
• Atividade triggered

Alteração do automatismo normal

O automatismo do sistema cardionetor é essencialmente regulado por fatores


neurohormonais, sendo o sistema catecolaminérgico predominante neste contexto.

1. Automatismo sinusal aumentado

A estimulação adrenérgica β1 aumenta a probabilidade de os canais If


estarem abertos, o que leva a uma despolarização mais rápida durante a Fase
4 do PA. Adicionalmente, a estimulação simpática também torna o limiar de
excitabilidade mais negativo. Dessa forma, a repolarização diastólica atinge
o limiar de excitabilidade precocemente, aumentando dessa forma o ritmo
intrínseco do nódulo SA e originando taquicardia. Ex: exercício, stress
emocional

2. Automatismo sinusal diminuído

A diminuição da estimulação simpática e o aumento da estimulação vagal


atua de forma contrária, diminuindo a probabilidade de os canais If estarem
abertos, o que leva a uma despolarização mais lenta durante a Fase 4 do PA. Torna também
limiar de excitabilidade menos negativo. Adicionalmente, a estimulação colinérgica aumenta a
probabilidade de canais de K+ sensíveis a ACh estarem abertos durante esta fase, o que origina
um efluxo de K+ que favorece a hiperpolarização. Dessa forma, a repolarização diastólica atinge
o limiar de excitabilidade mais tarde, diminuindo-se assim o ritmo intrínseco do nódulo SA e
originando-se bradicardia.

3. Ritmos de escape

Quando o nódulo SA é suprimido ou dispara com


frequência inferior à normal, o pacemaker cardíaco pode
mudar para um pacemaker latente. Um impulso com
origem num pacemaker latente designa-se por batimento
de escape. Quando há uma disfunção persistente do
nódulo SA, origina-se uma série contínua de batimentos de
escape, designada por ritmo de escape, que tem uma
função protetora, impedindo que o ritmo cardíaco se torna patologicamente baixo.

4. Estimulação do automatismo de pacemakers latentes

Determinadas situações, como estados catecolaminérgicos, hipóxia, isquémia, distúrbios


eletrolíticos ou determinados fármacos (ex: digitálicos), podem fazer com que um pacemaker
latente desenvolva um ritmo intrínseco de despolarização superior ao do nódulo SA. Nestes
casos, é gerado um impulso prematuro relativamente ao impulso normal, designado por
batimento ectópico (que é diferente de um batimento de escape, que é tardio e tenta
compensar uma queda do ritmo de despolarização sinusal ou um bloqueio à condução). Uma
sequência de batimentos ectópicos designa-se ritmo ectópico.

Automatismo anormal
Uma lesão do tecido cardíaco pode originar alterações patológicas da formação de impulsos, em
que células não pertencentes ao sistema cardionetor adquirem automatismo. Como estas
células não possuem canais pacemaker, não conduzem correntes funny. O mecanismo que
explica que uma lesão leva à despolarização espontânea ainda não é completamente percebido.
Contudo, pensa-se que a lesão torne o sarcolema mais “permeável” (“leaky”), tornando os
cardiomiócitos incapaz de controlar os movimentos iónicos transmembranares (ficando
parcialmente despolarizadas). A isso, adicionam-se os iões libertados para o espaço extracelular
(EEC) pelas células apoptóticas. Estes fenómenos (a que se associa a diminuição da
permeabilidade membranar ao K+) originam correntes despolarizantes nas células miocárdicas
lesadas, mas ainda funcionantes, levando a que adquiram um automatismo anormal.

Atividade triggered

Em certas situações, um PA pode gerar oscilações da voltagem membranar, conhecidas como


pós-potenciais, que podem originar extrassístoles ou taquiarritmias. Há 2 tipos de pós-
potenciais, ambos geradores de verdadeiros PA caso atinjam o limiar de excitabilidade:

• Pós-potenciais precoces – ocorrem durante a repolarização (Fase 2 e Fase 3)


• Pós-potenciais tardios – ocorrem logo após a repolarização (início da Fase 4).

Os pós-potenciais precoces de Fase 3 (Pause-dependent triggered activity) são alterações no


potencial da membrana numa direção positiva que interrompem a normal repolarização. Estão
quase sempre relacionados com situações que prolongam o PA (e, por conseguinte, o intervalo
QT) como ocorre nas síndromes genéticas do QT Longo, com o uso de antiarrítmicos de Classe
Ia e III (entre outros fármacos) ou em distúrbios eletrolíticos (hipocaliemia e hipomagnesemia),
sendo o mecanismo gerador de taquicardias polimórficas (como a Torsades de Pointes).

Os pós-potenciais tardios de Fase 4 (Catechol-dependent triggered activity) ocorrem em


condições de elevado tónus simpático (durante e após isquemia miocárdica) ou em estados de
elevada concentração intracelular de Ca2+, como acontece durante a intoxicação digitálica,
sendo o mecanismo gerador de algumas taquiarritmias, como a taquicardia ventricular (TV)
idiopática do ventrículo direito.

Condução alterada de impulsos

Os atrasos de condução e bloqueios ocorrem quando, por alguma razão, o impulso não é
conduzido, ou a sua condução ocorre de forma anormalmente lenta. Nestas situações,
geralmente geram-se bradiarritmias. Contudo, em determinadas circunstâncias, podem
verificar-se mecanismo de reentrada e gerar-se taquiarritmias.

Bloqueio de condução

Um impulso é bloqueado quando encontra uma região que não é eletricamente excitável. Este
bloqueio pode ser transitório ou permanente, unidirecional ou bidirecional. Vários fenómenos
podem condicionar bloqueios de condução, como a isquémia, a fibrose ou a inflamação. Quando
este bloqueio ocorre porque o impulso encontra células que ainda estão refratárias, o bloqueio
diz-se funcional. No caso de o bloqueio ser originado por uma barreira física à condução (quando
o tecido miocárdico é substituído por tecido fibrótico), existe um bloqueio fixo. Caso este
bloqueio ocorra dentro do sistema cardionetor, a propagação do impulso para locais mais distais
deste sistema não ocorre, pelo que a Overdrive Suppression não existe, o que permite que
pacemakers latentes a jusante do bloqueio gerem batimentos e ritmos ectópicos. Os bloqueios
AV são situações comuns de bloqueio de condução e uma das principais razões para a
implantação de pacemakers.

Fenómenos de reentrada

Durante a atividade cardíaca normal, um impulso elétrico inicia-se no nódulo SA e propaga-se


de forma ordeira através do sistema cardionetor e depois dos cardiomiócitos até que todo o
coração seja ativado. O impulso termina quando todas as fibras foram despolarizadas e estão
completamente refratárias. Contudo, em regiões onde os períodos refratários são heterogéneos
e algumas células repolarizam antes de outras, ou em locais onde há processos fibróticos que
levam a alterações da estrutura miocárdica, pode ser possível reexcitar uma região previamente
despolarizada que já recuperou a sua excitabilidade. Este fenómeno é conhecido por reentrada
e descreve a propagação repetitiva de um PA, sendo o mecanismo arritmogénico mais
comummente visto em arritmias clínicas.

Há 2 tipos de fenómenos de reentrada: os fenómenos de reentrada anatómicos e os funcionais.


Em qualquer um deles, é preciso que se reúnam 5 pré-requisitos:

1. Área de bloqueio – tecido inexcitável ao redor do qual o impulso pode ser propagado
2. Bloqueio de condução unidirecional
3. Via de condução lenta - que gera um atraso de condução suficiente que permite a
recuperação de excitabilidade do tecido ao redor da área de bloqueio.
4. Massa tecidular suficiente –
adjacente ao bloqueio e capaz de
conduzir impulsos reentrantes
5. Estímulo iniciante (“gatilho”)

1. Circuitos de reentrada anatómicos

Baseia-se num obstáculo anatómico


inexcitável, circundado por tecido por onde
o impulso pode “reentrar”, criando um
circuito fixo e estável. Para compreender
este mecanismo de reentrada é essencial
compreender o conceito de gap excitável,
que se refere ao miocárdio excitável que se
situa entre a frente da onda reentrante e a
cauda da onda precedente. Esta gap
permite à onda reentrante continuar a
propagar-se em torno do circuito. Em
situações em que o circuito possui um gap
excitável muito grande, por ser também ele
um circuito de grandes dimensões anatómicas ou porque a sua
velocidade de condução é muito baixa, a reentrada é incessante e a
arritmia dificilmente consegue ser revertida através de estimulação
elétrica (por cardioversão). Já em casos em que a velocidade de
condução é muito elevada ou em que as dimensões do circuito são
reduzidas, basta um ligeiro aumento da velocidade de condução para
que a frente de ativação atinja a cauda e a reentrada seja extinta.

2. Circuitos de reentrada funcionais

Numa reentrada funcional, o circuito é definido pela existência de heterogeneidades nas


propriedades eletrofisiológicas de uma determinada zona de tecido miocárdico. A localização e
tamanho destes circuitos é amplamente variável, mas os circuitos são habitualmente pequenos
e instáveis. Existem diversos mecanismos de reentrada funcional, a saber:

• Reentrada por reflexão;


• Reentrada anisotrópica;
• Reentrada em figura de 8;
• Reentrada por atividade em espiral;
• Reentrada em círculo.
Classificação das arritmias e principais questões clínicas

O conhecimento e compreensão das arritmias e da sua fisiopatologia são essenciais, visto serem
condições muito prevalentes (e cada vez mais, com o envelhecimento populacional). Assim,
perante um paciente com um ritmo cardíaco alterado, é vital ter presente 5 grandes questões:

1. De que arritmia se trata? → Identificação


2. Qual o mecanismo etiopatogénico que lhe está subjacente? → Etiologia e Patogénese
3. Que condições terão provocado o seu aparecimento? → Fatores desencadeantes
4. Quais os sinais e sintomas que geralmente a acompanham? → Apresentação clínica
5. O que é possível fazer por este doente? → Tratamento e terapêutica

As arritmias podem ser divididas em:

1. Bradiarritmias (< 60 bpm)


a. Disfunção SA
b. Ritmos de escape
c. Diminuição do sistema de condução AV
2. Taquiarritmias (> 100 bpm)
a. Supraventriculares
b. Ventriculares

Bradiarritmias

As bradiarritmias devem-se a um de 2 mecanismos:

• Alterações na formação de impulsos (origem no nódulo SA).


• Alterações na condução de impulsos (origem no sistema de condução AV).

Nódulo sinusal

Bradicardia sinusal

A bradicardia sinusal traduz a diminuição do ritmo cardíaco normal para uma FC inferior a 60
bpm, por decréscimo da frequência de disparo do nódulo SA. Isto ocorre frequentemente e de
forma benigna em repouso e durante o sono, sendo também muito comum em atletas
altamente treinados, que tipicamente apresentam um tónus vagal basal aumentado. É por isso
errado pensar em bradicardia sinusal como sinónimo de patologia, visto que uma FC<60 bpm
não é, por si mesmo, uma doença. Na verdade, uma bradicardia só se torna clinicamente
relevante quando leva a um decréscimo do débito cardíaco (o que tipicamente ocorre quando
FC<50 bpm), que pode ser associado a sinais e sintomas clínicos, dos quais se destacam:

• Fadiga;
• Dispneia/Ortopneia;
• Intolerância ao exercício;
• Angina;
• Tonturas;
• Alterações cognitivas;
• Lipotimia (perda generalizada da força muscular, sem perda de consciência);
• Síncope (perda momentânea, súbita e espontaneamente resolúvel da consciência, com
perda da força muscular).

Quando é patológica, a bradicardia sinusal pode resultar de fatores que levam à depressão do
automatismo sinusal:

• Fatores intrínsecos ao nódulo SA:


o Envelhecimento
o Doenças que afetem as aurículas ou o nódulo SA diretamente (ex:
miocardiopatias, EAM)
• Fatores extrínsecos:
o Metabólicos (ex: hipotiroidismo)
o Certos fármacos (ex: β-bloqueantes, BCC não-diidropiridínicos)

Síndrome do nódulo sinusal e síndrome bradicardia-taquicardia

A síndrome do nódulo sinusal (SSS, do inglês Sick Sinus Syndrome) é uma bradiarritmia causada
por uma disfunção intrínseca do nódulo SA. Está comummente associada a sintomas como
tonturas, confusão mental e síncope. Caso não se consiga fazer a correção farmacológica desta
condição, e a mesma se torne crónica, a implantação de um pacemaker é necessária como
medida terapêutica.

Esta síndrome é mais prevalente em idosos, que são também mais suscetíveis a taquicardias
supraventriculares (TSVs), particularmente fibrilhação auricular (FA). Quando estas duas
condições estão simultaneamente presentes, estaremos na presença de uma síndrome
bradicardia-taquicardia. Relativamente a esta síndrome, pensa-se que surja como resultado de
um processo fibrótico auricular que acometa o nódulo SA e predisponha à FA (ou ao flutter
auricular) sendo que, nos períodos
taquiarrítmicos, ocorre overdrive
suppression do nódulo SA, que quando
termina leva a períodos de profunda
bradicardia sinusal reflexa.

Hipersensibilidade do seio carotídeo


Ao nível do seio carotídeo, a estimulação dos barorrecetores origina um reflexo circulatório que
causa a libertação de ACh nas terminações vagais do coração, conduzindo a um aumento do seu
tónus parassimpático. Este reflexo tem um papel fisiológico, ajudando a regular a pressão
arterial, a FC e a perfusão cerebral. Porém, quando o seio carotídeo se torna hipersensível,
mesmo pequenos aumentos externos de pressão a nível cervical (por exemplo, quando se
executa a rotação da cabeça ou se usa roupa de gola alta) despoletam um barorreflexo forte,
levando tipicamente a uma bradicardia extrema que pode até levar à paragem cardíaca por
períodos de 5 a 10s. Esta condição afeta sobretudo idosos, em que a aterosclerose e a estenose
carotídea os torna particularmente suscetíveis, sendo uma causa possível de síncope e quedas
nesta faixa etária. O tratamento consiste na denervação da bifurcação carotídea.

Ritmos de escape

Caso ocorra um bloqueio à condução dos impulsos sinusais ou haja disfunção persistente do
nódulo SA, podem gerar-se ritmos de escape distais, que têm uma função protetora.

Designa-se por ritmo de escape juncional aquele que tem origem no nódulo AV ou na porção
proximal do feixe de His. Neste caso, o ECG apresenta uma FC de 40 a 60 bpm e complexos QRS
ligeiramente estreitados (ou normais). Não há ondas P normais a preceder o QRS porque o
impulso origina-se abaixo das aurículas, podendo, no entanto, surgir ondas P retrógradas e
invertidas (deflexão negativa nas derivações II, III e aVF), sinónimas de ativação auricular a partir
do ventrículo.

Já no ritmo de escape ventricular, o pacemaker situa-se num dos ramos do feixe de His. O ECG
apresenta uma FC de 30 a 40 bpm e um QRS alargado (porque os ventrículos não são
despolarizados de forma rápida e simultânea através dos 2 ramos do feixe de His), sendo a sua
morfologia dependente do local de origem do estímulo. Caso tenha origem no feixe esquerdo,
o QRS tem uma morfologia similar a encontrada num bloqueio de ramo direito (porque o
impulso despolariza primeiro o VE e só depois, lentamente, o VD). Se tiver origem no feixe
direito, o QRS é similar ao verificado num bloqueio completo de ramo esquerdo.

Ritmos de escape com origem ainda mais distal, no próprio miocárdio ventricular, apresentam-
se com QRS ainda mais alargado, visto haver uma condução de impulsos externa ao sistema
cardionetor.

Sistema de condução AV

A condução disfuncional de impulsos entre as aurículas e os ventrículos pode levar a bloqueios


AV (BAV), que podem ser de 3 graus. Existem também os bloqueios que afetam o ramo esquerdo
ou o ramo direito do feixe de His. Apesar de existirem algumas formas associadas a miocardite
ou miocardiopatias, e outras hereditárias ou idiopáticas, a maioria está associada a síndromes
coronárias (especialmente EAM).

Bloqueio AV de 1º grau

No BAV de 1º grau, o defeito de condução está geralmente localizado no próprio nódulo AV.
Pode resultar de uma causa reversível (tónus parassimpático aumentado, isquemia transitória
do nódulo AV, fármacos antiarrítmicos) ou estrutural (EAM, doenças degenerativas do sistema
de condução). Neste tipo de BAV, a condução do impulso sinusal é atrasado por um período
anormalmente elevado no nódulo AV, mas é conduzido até aos ventrículos. Assim, num ECG,
verificamos uma correspondência 1:1 entre ondas P e complexos QRS, porém com um aumento
do intervalo PR (>0,2s). É uma condição tipicamente benigna, assintomática e que não requer
tratamento.

Bloqueio AV de 2º grau (Mobitz tipo I/Wenckebach & Mobitz tipo II)

O BAV de 2º grau caracteriza-se por uma falha intermitente na condução AV, fazendo com que
algumas ondas P não sejam sucedidas de um complexo QRS. É possível dividir este tipo de BAV
em 2 subtipos: Mobitz tipo I (ou Wenckebach) e Mobitz tipo II.

No Mobitz tipo I, o atraso de condução (quase sempre com origem no nódulo AV) é maior a
cada batimento, até que um impulso seja completamente bloqueado e não haja condução para
o ventrículo (podendo haver, nessa altura, um batimento ventricular de escape). No ECG,
verifica-se o progressivo alargamento do intervalo PR até que um único QRS esteja ausente,
após o qual o intervalo PR regressa ao estado inicial e o ciclo se reinicia. Este tipo de BAV é
geralmente benigno, podendo ser encontrado em crianças, atletas treinados e pessoas com
tónus vagal elevado, particularmente durante o sono. Também pode ocorrer, de forma
habitualmente transitória, durante um EAM. Não requer tratamento senão em casos
sintomáticos (síncopes, tonturas, fadiga e fraqueza muscular), com antagonistas muscarínicos
ou simpaticomiméticos (pacemaker reservado para casos mais severos e refratários à terapia
farmacológica).

Já no Mobitz tipo II, em que o bloqueio é geralmente distal ao nódulo AV, a perda de condução
é súbita, sem que haja anteriormente um progressivo alargamento do intervalo PR.
Normalmente classifica-se este tipo de acordo com o rácio batimentos conduzidos: batimentos
bloqueados (ex – 2:1, por cada 2 batimentos conduzidos, 1 é bloqueado), apesar de o bloqueio
ser relativamente aleatório. No ECG, verifica-se a manutenção do intervalo PR, ondas P não
sucedidas de QRS e alargamento do QRS. Em alguns casos, que se dizem de bloqueio AV de alto
grau, verifica-se a perda de condução sucessiva de mais do que um batimento. Em termos
etiológicos, destacam-se EAM com envolvimento do SIV e doenças degenerativas do sistema de
His-Purkinje. É um tipo de BAV que habitualmente indica doença severa e que pode progredir a
qualquer momento para BAV completo, pelo que exige usualmente a colocação de pacemaker,
mesmo em doentes assintomáticos.

Bloqueio AV de 3º grau ou completo

O BAV de 3º grau ou completo quando não há condução entre aurículas e ventrículos. Verifica-
se uma desconexão elétrica conhecida como dissociação AV. Como tal, no ECG, não se verifica
qualquer relação entre ondas P e complexos QRS, que ocorrem a ritmos completamente
distintos. As ondas P estão dependentes do disparo sinusal, enquanto os QRS dependem de um
ritmo de escape distal e mais lento. As causas mais comuns são EAM e processos degenerativos
do sistema de cardionetor que ocorrem com a idade.

Doentes com BAV completo experienciam frequentemente síncopes, dispneia, angina e


confusão mental, e o risco de morte faz com que quase sempre seja requerida a implantação de
pacemaker.

Taquiarritmias

As taquicardias resultam de um de 3 mecanismos:

• Aumento do automatismo normal;


• Fenómenos de reentrada;
• Atividade triggered.

Taquiarritmias supraventriculares

Taquicardia sinusal

Na taquicardia sinusal, o nódulo SA dispara com


frequências superiores a 100 bpm (habitualmente
até 180 bpm), com ondas P e complexos QRS
normais. Frequentemente resulta de um aumento
do tónus simpático e/ou diminuição do tónus
vagal. Sendo uma resposta fisiológica ao exercício,
a taquicardia sinusal pode também estar presente
em condições patológicas, incluindo estados de alto débito (anemia, febre, hipertiroidismo,
gravidez), EAM, IC, hipovolemia, hipoxemia e estados de ansiedade. A terapêutica da taquicardia
sinusal associada a condições patológicas passa pela identificação e tratamento da causa
subjacente.

Sístoles auriculares prematuras

As sístoles auriculares prematuras (SAPs) são comuns em corações normais e doentes, sendo o
consumo de cafeína e de álcool e a estimulação adrenérgica (ex: stress emocional) condições
que predispõem ao seu aparecimento.

As SAPs originam-se do automatismo ou de fenómenos de reentrada num foco auricular externo


ao nódulo sinusal, sendo habitualmente assintomáticas, embora possam cursar com
palpitações. Num ECG, traduzem-se por ondas P precoces e com uma morfologia anormal. O
QRS que as sucede é frequentemente normal, porque não há problemas na condução
ventricular, mas o intervalo PR está encurtado. Adicionalmente, verifica-se um intervalo
aumentado entre uma SAP e a sístole seguinte, designada por pausa compensatória.

Contudo, se o foco auricular anormal disparar demasiado cedo, o impulso pode não ser
conduzido para os ventrículos por encontrar um nódulo AV refratário – SAP bloqueada. Pode
também acontecer que a condução através do nódulo AV se faça, mas que haja porções do
sistema de His-Purkinje refratárias. Nestas circunstâncias, gera-se um QRS alargado, porque a
condução ao longo dos ventrículos será anormalmente lenta – SAP com condução aberrante. O
tratamento farmacológico só está indicado em condições sintomáticas, sendo importante o
controlo dos fatores predisponentes.

Flutter auricular

O flutter auricular caracteriza-se por atividade elétrica auricular regular a um ritmo elevado (180
a 350 bpm). Dada a grande frequência de disparo, alguns dos impulsos podem atingir o nódulo
AV durante o período refratário do mesmo, não sendo conduzidos, o que faz com que o ritmo
de contração ventricular seja inferior ao de contração auricular. Assim, se o ritmo auricular for
de 300 bpm e o houver um rácio 2:1 de bloqueio no nódulo AV (isto é, conduz um, bloqueia um),
o ritmo ventricular será de 150 bpm. Noutro exemplo, se o ritmo auricular for de 270 bpm e
houver um bloqueio AV de 3:1, o ritmo ventricular será de 90 bpm (e não teremos uma
taquicardia supraventricular, pois o ritmo ventricular é inferior a 100 bpm). Em termos
eletrocardiográficos, e visto que uma grande porção do tecido auricular está despolarizada ao
longo do ciclo, as ondas P têm uma aparência em “dentes de serra”.
A causa de um flutter auricular é em geral a presença de circuito de reentrada anatómico. Na
forma mais prevalente, o tipo I (ou clássico), o circuito de reentrada situa-se ao nível do anel da
válvula tricúspide (mais concretamente, no istmo cavotricúspide) e o impulso é conduzido de
forma anti-horária ao longo das paredes da AD (para um observador situado no VD). No flutter
de tipo II (ou atípico), o circuito é menos definido e pode situar-se em qualquer das aurículas.

Geralmente o flutter ocorre em doentes com condições cardíacas preexistentes,


nomeadamente EAM prévio ou doença coronária, sendo os sintomas largamente dependentes
do ritmo ventricular (quando elevado, gera palpitações, dispneia e fadiga). Adicionalmente, o
flutter também predispõe à formação de trombos auriculares.

Paradoxalmente, a administração de antiarrítmicos pode aumentar o ritmo ventricular e piorar


a sintomatologia, visto que, ao diminuir a frequência de disparo auricular, pode dar tempo
suficiente ao nódulo AV para que este conduza todos os impulsos. Isto, em pacientes com uma
reserva cardíaca baixa, pode levar a uma depressão profunda do débito e hipotensão.

Fibrilhação auricular

A FA é um ritmo caótico auricular tão rápido (350 a 600 bpm) que não são discerníveis ondas P
no ECG, sendo a linha basal pautada por ondulações de baixa amplitude, correspondendo à
despolarização de pequenas regiões auriculares. O resultado final é uma ausência de contração
auricular coordenada e, por isso, de sístole auricular. Tal como no flutter, apenas algumas
despolarizações auriculares são transmitidas aos ventrículos, sendo essa transmissão muito
irregular, traduzida por intervalos R-R altamente variáveis. Os ventrículos geralmente contraem
com uma frequência entre 100 e 175 bpm na FA não tratada.

O mecanismo subjacente à FA envolve provavelmente múltiplos circuitos de reentrada nas


paredes das aurículas, especialmente ao nível das veias pulmonares, por alteração e
heterogeneidade das propriedades elétricas do miocárdio. Para isto contribuem patologias
cardiovasculares (EAM, valvulopatias – em especial estenose mitral, doença coronária, HTA) e
não-CV (tirotoxicose, doenças pulmonares, diabetes, obesidade, consumo etanólico excessivo)
que aumentam o stress físico e propiciam fenómenos inflamatórios das paredes das aurículas.
Em termos clínicos, distinguem-se 3 formas:

• FA paroxística – episódios <1 semana esporádicos e com término espontâneo, que se


pensa serem iniciados ao nível da entrada das veias pulmonares na AE.
• FA persistente – episódios recorrentes com duração de semanas a meses e sem
resolução espontânea que resultam de processos progressivos de fibrose, stress físico e
sobrecarga de Ca2+.
• FA crónica – FA persistente com duração superior a 12 meses.

A FA é uma condição que por si não é problemática, mas que se pode tornar perigosa porque:

1. Leva a ritmos ventriculares rápidos compensatórios, que podem comprometer o débito


cardíaco e resultar em hipoperfusão sistémica e congestão pulmonar;
2. A ausência de uma contração auricular organizada promove estase sanguínea e
aumenta o risco de trombogénese (sobretudo ao nível do apêndice auricular esquerdo),
podendo levar à embolização de trombos e consequente TEP (a partir da AD) ou AVC
isquémico (a partir da AE).

Desta forma, o tratamento varia consoante o risco de cada paciente, mas que tipicamente
considerará em 3 aspetos:

• Controlar o ritmo ventricular;


• Considerar métodos para restaurar o ritmo sinusal (farmacologicamente e através de
ablação por cateter, procedimento de Maze e/ou colocação de pacemaker);
• Avaliar a necessidade de anticoagulação

Taquicardias supraventriculares paroxísticas

As taquicardias supraventriculares paroxísticas (TPSVs) são um conjunto de taquicardias cujo


mecanismo fisiopatológico envolve muitas vezes (mas não sempre) circuitos de reentrada
envolvendo o nódulo AV, as aurículas ou uma via de condução acessória (feixe de Kent).
Manifestam-se por:

• Início e término súbitos;


• Ritmos auriculares entre 140 e 250 bpm;
• Complexos QRS normais (ou ligeiramente estreitados), a não ser que haja condução
aberrante.

Neste grupo de taquicardias incluem-se:

1. Taquicardia de reentrada do nódulo AV – TRNAV


É a forma mais comum de TPSV em adultos.

Num coração normal, o nódulo AV é uma estrutura lobulada que consiste numa porção inferior
compacta e em 2 ou mais extensões auriculares que conduzem os impulsos até à parte compacta
do nódulo. Em algumas pessoas, estas extensões têm velocidade de condução diferentes. Diz-
se então que têm reentrada do nódulo AV.

Mesmo nesses casos, um impulso chegará ao nódulo e será conduzido a partir de ambas as vias
(lenta e rápida), mas o impulso conduzido pela via rápida chegará primeiro à porção compacta,
e é ele que será transmitido ao feixe de His. Já o impulso conduzido pela via lenta encontrará
um feixe de His refratário e extinguir-se-á. Nesta situação, não existe taquicardia, nem circuito
de reentrada.

Contudo, quando espontaneamente se desenvolve uma sístole auricular prematura, e visto que
a via rápida tem um período refratário prolongado, este impulso é apenas conduzido pela via
lenta, cujo período refratário é pequeno (bloqueio unidirecional). Quando o impulso atinge a
porção compacta do nódulo, a via rápida já repolarizou, e o impulso pode ser conduzido quer
distalmente, para o feixe de His, quer retrogradamente pela via rápida. Ao chegar às aurículas,
este impulso retrógrado não só as despolariza, como pode circular de novo através da via lenta,
gerando-se então um circuito de reentrada e iniciando-se uma taquicardia.

O ECG de uma TRNAV apresenta uma FC entre 150 e 250 bpm, complexos QRS normais e
ausência de ondas P, porque a despolarização retrógrada coincide temporalmente com a
despolarização ventricular. Por isso, a onda P retrógrada estará “escondida” pelo QRS. Quanto
a sintomas, em adolescentes e adultos cingem-se às palpitações, que podem ser motivo de crises
de ansiedade, e às tonturas e dispneia devido às taquicardias rápidas. Em idosos ou doentes
com comorbilidades cardíacas, podem originar-se sintomas severos como síncopes, angina e
edema pulmonar.
2. Taquicardias de reentrada auriculoventriculares – TRAVs.

As TRAVs são similares à TRNAV, excetuando o facto de nas TRAVs uma das vias de reentrada
ser um feixe acessório não relacionado com o nódulo AV. Estas vias acessórias permitem a
condução da aurícula para o ventrículo – ortodrómica, do ventrículo para a aurícula –
antidrómica, ou em ambas as direções. Dependendo das características destas vias, uma de 2
entidades podem aparecer:

• Síndrome de Wolff-Parkinson-White (WPW);


• TRAVs resultantes de vias acessórias cuja condução elétrica não é suficientemente
rápida para resultarem sempre em taquicardias com manifestações eletrocardiográficas
e que não causam sintomas (TSVP por concealed accessory pathway).

A Síndrome de Wolff-Parkinson-White (também designada Síndrome de Pré-excitação


Ventricular) é uma condição congénita caracterizada pela existência de uma via acessória entre
a aurícula e o ventrículo que permite a condução elétrica entre as duas cavidades sem passagem
pelo nódulo AV. Nestes doentes coexistem, assim, dois tratos de condução elétrica cardíaca – a
normal e a acessória. A via acessória conduz os impulsos mais rapidamente que o nódulo AV,
pelo que a estimulação elétrica dos ventrículos em ritmo sinusal começa mais precocemente –
os ventrículos são pré-excitados, o que torna o intervalo PR mais curto (<120ms) no ECG.
Contudo, como esta via estabelece conexão com o miocárdio (e não com as fibras de Purkinje),
a ativação inicial dos ventrículos é mais lenta, dando origem à onda delta. O complexo QRS mais
longo (>110ms) presente no ECG destes doentes deve-se à fusão das duas frentes excitatórias
ventriculares – a fisiológica, do Sistema His-Purkinje e a acessória. Na WPW, a TRAV mais comum
(80% dos doentes) é ortodrómica – o impulso elétrico viaja anterogradamente do nódulo AV
para os ventrículos e depois retrogradamente, pelo feixe acessório, para as aurículas. Durante
esta TRAV, os ventrículos são despolarizados exclusivamente pelo sistema de condução normal,
pelo que, no ECG, não existe onda delta e o complexo QRS não está prolongado. Porém, são
visíveis ondas P retrógradas após cada complexo QRS, consequência da condução retrógrada
pelo feixe acessório.

Cerca de 5% dos doentes apresentam uma TRAV antidrómica, em que o impulso elétrico é
conduzido através do feixe acessório para os ventrículos anterogradamente e depois
retrogradamente, através do nódulo AV, para as aurículas. Ao nível do ECG, tem-se um complexo
QRS prolongado, pois os ventrículos são despolarizados unicamente pelo feixe acessório.

Quando além de WPW com TRAV antidrómica, o doente


apresenta Fibrilhação Auricular ou Flutter Auricular (15% dos
doentes), está-se perante um tipo de arritmia potencialmente
fatal. Isto acontece porque os feixes acessórios têm períodos
refratários curtos que permitem frequências de despolarização
ventricular mais altas que o nódulo AV. Desta forma, a
frequência de despolarização ventricular na presença das
arritmias auriculares referidas poderá ser tão alta como 300bpm
– o que pode levar a Fibrilhação Ventricular e paragem cardíaca,
mesmo num jovem.

Taquicardia auricular focal

A Taquicardia Auricular Focal (TA) resulta de ou automaticidade ectópica num local da aurícula,
ou de um fenómeno de reentrada. O ECG aparenta uma taquicardia sinusal, mas possui uma
onda P com uma morfologia anormal antes do complexo QRS, o que indica despolarização da
aurícula a partir de uma localização anormal.

A TA pode ser persistente ou pode ser paroxística e de duração limitada, apresentando


comummente exacerbações curtas e assintomáticas no Holter (ECG de 24h ou mais). Encontra-
se agravada em períodos de dominância do tónus simpático e pode ter como etiologia a toma
de digitálicos. A ablação cirúrgica da estrutura responsável pela automaticidade ectópica é um
tratamento eficaz para doentes sintomáticos.

Taquicardia auricular multifocal

A Taquicardia Auricular Multifocal (MAT) apresenta no ECG um ritmo irregular, com ondas P
com múltiplas morfologias (pelo menos 3), intervaladas por uma linha de base isoelétrica (o que
a distingue da FA). A frequência cardíaca média é superior a 100bpm.

Tal como o nome indica, a MAT é provocada por automaticidade anormal em vários focos nas
aurículas ou atividade triggered, sendo com frequência despoletada por doença pulmonar
severa ou hipoxemia. A mortalidade associada a esta arritmia é alta e o seu tratamento é
principalmente vocacionado para a doença de base.

Taquiarritmias ventriculares

As arritmias ventriculares são geralmente mais perigosas que as arritmias supraventriculares e


são muitas vezes responsáveis por morte súbita. Neste grupo, incluem-se as seguintes: Sístoles
Ventriculares Prematuras (SVP), Taquicardia Ventricular (TV) e Fibrilhação Ventricular (FV).

Sístoles ventriculares prematuras

As SVP ocorrem quando um foco ectópico ventricular dispara um potencial de ação. Ao nível
eletrocardiográfico, observa-se um complexo QRS alargado, visto que o impulso viaja desde o
foco ventricular ectópico para todo o ventrículo através de conexões célula-a-célula lentas (e
não pelo sistema de His-Purkinje, mais rápido). É de notar ainda que as extrassístoles não são
precedidas de ondas P.
Se cada batimento for precedido de uma SVP, estamos perante um ritmo bigeminal. Por outro
lado, se a cada 2 batimentos normais se seguir uma SVB, temos um ritmo trigeminal. SVPs
consecutivas são denominados dísticos (2 de seguida) ou tripletos (3 de seguida).

As SVPs são comuns na população saudável e são quase sempre assintomáticas e benignas.
Podem ser desencadeadas por alguns fármacos (destacam-se os digitálicos), cafeína, distúrbios
eletrolíticos e hipoxia. Estão presentes na doença cardíaca estrutural, aumentando a sua
frequência proporcionalmente à severidade da depressão da contractilidade ventricular –
aparecem, por isso, associadas a um risco aumentado de morte súbita em doentes com
insuficiência cardíaca ou EAM. Em doentes com doença estrutural cardíaca avançada com
características que os colocam em risco de arritmias ventriculares mortíferas, é recomendada a
colocação de um desfibrilhador cardioversor implantável.

Taquicardias ventriculares

A Taquicardia Ventricular (TV) corresponde a uma série de 3 ou mais SVPs. Pode ser dividida em:

• TV mantida: persiste durante mais de 30s, produzindo sintomas severos como síncope
OU requer reversão com cardioversão ou administração de um fármaco antiarrítmico;
• TV não-mantida: curta, com autorreversão dos episódios.

Ambas as formas são encontradas sobretudo em doentes com doença cardíaca estrutural
(isquemia, EAM, IC, hipertrofia ventricular, doenças elétricas primárias/genéticas – ex:
síndromes do QT longo, valvulopatias e anomalias cardíacas congénitas).

O complexo QRS está prolongado (>120ms) e a frequência cardíaca muito aumentada, entre 100
e 200bpm ou mais. Também se pode categorizar a TV com base na morfologia dos complexos
QRS:

• TV monomórfica – o complexo QRS assume uma única forma e a frequência cardíaca é


regular. A TV mantida monomórfica é usualmente indicadora de uma anomalia
estrutural que permite a formação de um circuito de reentrada, como uma região
cicatricial do miocárdio secundária a EAM prévio ou cardiomiopatia. Ocasionalmente,
ocorre como resultado de um foco ventricular de automaticidade ectópica numa pessoa
que de resto é saudável – TV idiopática.

• TV polimórfica – o complexo QRS muda constantemente de morfologia e a frequência


cardíaca é irregular. É provocada por automaticidade em múltiplos focos ectópicos ou
por um fenómeno de reentrada continuamente inconstante (ou seja, que não tem uma
localização anatómica fixa e que pode aparecer e desaparecer). Observa-se esta forma
de TV na Torsades de Pointes, na isquemia, no EAM, em alterações eletrolíticas e em
intoxicações farmacológicas. Mais raramente, a TV polimórfica surge em indivíduos com
predisposição genética, por apresentarem anomalias nos canais iónicos cardíacos
(canalopatias) – ex: Síndrome QT Longo e Síndrome de Brugada. A TV polimórfica
mantida evolui habitualmente para Fibrilhação Ventricular.

Os sintomas da TV variam com a frequência cardíaca, duração e a condição base do coração. A


TV mantida pode causar redução do débito cardíaco, provocando síncope, edema pulmonar e
paragem cardíaca. Estes sintomas severos são mais frequentes em doentes que apresentam
uma depressão da função contrátil de base. Se a TV mantida apresentar uma FC<130bpm, é bem
tolerada, causando somente palpitações. O tratamento agudo da TV consiste na cardioversão
elétrica e o crónico na colocação de um desfibrilhador cardioversor implantável (DCI).

Fibrilhação auricular

A Fibrilhação Ventricular (FV) é uma arritmia rapidamente fatal. Provoca estimulação rápida,
desordenada e descoordenada dos ventrículos, o que resulta em cessação do débito cardíaco e
morte, se não for rapidamente revertida. Esta arritmia ocorre em doentes com doença cardíaca
severa subjacente e é a maior causa de mortalidade no EAM.

É geralmente iniciada por um episódio de Taquicardia Ventricular (é uma pró-arritmia –


agravamento de uma arritmia pré-existente) que evolui para FV quando as ondas excitatórias se
“quebram” em múltiplas ondas de reentrada que viajam ao longo do miocárdio. Também pode
ser iniciada em estados de hipercaliemia.

No ECG, é caracterizada por uma aparência irregular e caótica sem complexos QRS. Sem
tratamento, a FV evolui para a morte. A desfibrilhação elétrica dever ser realizada o mais
rapidamente possível, após a qual poderá ser necessária a administração IV de antiarrítmicos
para prevenir recorrências. Doentes estabilizados devem colocar um DCI.
Doença pulmonar

Lesões ou disfunções das vias respiratórias resultam em doenças pulmonares obstrutivas,


incluindo a bronquite e a asma, ao passo que lesões no parênquima pulmonar podem produzir
doença restritiva do pulmão ou doença vascular pulmonar.

Anatomia

O sistema respiratório consiste nos pulmões recobertos pela pleura visceral, contidos pela
parede torácica, e o diafragma, este último servindo em condições normais como o principal
músculo para a ventilação. Os pulmões são divididos em lobos, cada
um demarcado pela pleura visceral interveniente. Cada pulmão
possui um lobo superior e um lobo inferior; o lobo médio e a língula
são os terceiros lobos nos pulmões direito e esquerdo,
respetivamente. No final da expiração, a maior parte do volume dos
pulmões é ar, enquanto quase metade da massa dos pulmões
corresponde ao volume sanguíneo. Uma prova da delicada estrutura
da região de troca de gases dos pulmões é que o tecido alveolar tem
um peso total de apenas 250 g, mas uma área de superfície total de
75 m2.

As fibras do tecido conjuntivo e o surfactante servem para manter a integridade anatómica da


área de superfície. As fibras do tecido conjuntivo são estruturas de colagénio e elastina
altamente organizadas, que se irradiam por dentro dos pulmões, dividindo segmentos,
revestindo vias respiratórias e vasos, e suportando as paredes alveolares com redes fibrosas
delicadas e bastante elásticas. O suporte elástico multidirecional fornecido por essa rede
permite que os pulmões se suportem a si próprios, desde o alvéolo às vias respiratórias, e
mantenham a permeabilidade das vias respiratórias, apesar das grandes variações de volume.

O surfactante é um material complexo produzido por pneumócitos tipo II e composto por


múltiplos fosfolípidos e proteínas associadas específicas. A presença do surfactante, que recobre
a superfície epitelial alveolar, produz uma importante redução da tensão superficial, permitindo
a expansão dos alvéolos com uma pressão distensora
transpulmonar inferior a 5 cm H2O. Na ausência desta
camada ativa da superfície, o aumento da tensão da
superfície associado à redução do volume alveolar durante
a expiração poderia colapsar os alvéolos. A pressão de
distensão necessária para a reexpansão desses alvéolos
seria maior do que o esforço ventilatório normal poderia
produzir. Portanto, a função fisiológica do surfactante
aumenta a estabilidade anatómica dos pulmões.

Anatomia da via respiratória e epitelial

A atual divisão anatómica dos pulmões é baseada


principalmente na separação da árvore traqueobrônquica
em vias respiratórias condutoras, que proporcionam o
movimento do ar do ambiente externo para as áreas de
troca gasosa, e em unidades respiratórias terminais/ácinos, as vias respiratórias e as estruturas
alveolares associadas que participam diretamente da troca gasosa. As vias respiratórias
condutoras proximais, cobertas pelo epitélio colunar ciliado pseudoestratificado, são
suportadas por um esqueleto cartilaginoso e contêm glândulas secretoras na parede epitelial. O
epitélio ciliado tem uma orientação uniforme dos cílios, que se movem em uníssono em direção
à faringe. Essa ação ciliar, juntamente com a camada mucosa produzida pelas glândulas mucosas
secretoras da submucosa, proporciona um mecanismo para o transporte contínuo de materiais
contaminantes ou excessivos para fora dos pulmões. O músculo liso circular das vias
respiratórias também está presente, porém reduz-se com as glândulas secretoras e então
desaparece, à medida que os ramos das vias respiratórias evoluem no pulmão e diminuem o seu
calibre. As menores vias respiratórias condutoras são os bronquíolos não respiratórios. Eles são
caracterizados com a perda do músculo liso e da cartilagem, porém com a retenção de um
epitélio cuboidal que pode ser ciliado e que não é uma área de troca gasosa. Os lobos
pulmonares são divididos em lóbulos menos distintos, definidos como coleções de unidades
respiratórias terminais limitadas de forma incompleta por septos de tecido conjuntivo. As
unidades respiratórias terminais são as unidades fisiológicas e anatómicas terminais dos
pulmões, com paredes de células epiteliais alveolares finas, que proporcionam a troca de gases
com o leito capilar alveolar.

O principal local de resistência ao fluxo de ar nos pulmões é dentro do brônquio de tamanho


médio. Isso parece contraditório, porque esperar-se-ia que as vias respiratórias de menor
calibre fossem os locais de maior resistência. As ramificações repetitivas das pequenas vias
respiratórias levam a um profundo aumento da área de secção transversal, a qual normalmente
não contribui significativamente para a resistência nas vias respiratórias. Em condições
patológicas como a asma, na qual os brônquios menores e os bronquíolos se tornam estreitados,
a resistência das vias respiratórias pode aumentar significativamente.

O sistema arterial pulmonar opera em estreita associação com a ramificação da árvore


brônquica nos pulmões. Em virtude da capacidade de regular cuidadosamente os calibres
arterial e brônquico, o arranjo anatómico proporciona o local ideal para a contínua combinação
entre ventilação e perfusão para os segmentos pulmonares.

Sistema nervoso pulmonar

Os pulmões são inervados por fibras nervosas dos sistemas parassimpático (vagal), simpático, e
dos chamados sistemas não-adrenérgico e não-colinérgico (NANC). As fibras eferentes incluem:
(1) fibras parassimpáticas, com eferentes colinérgicos muscarínicos que medeiam a
broncoconstrição, a vasodilatação pulmonar, e a secreção das glândulas mucosas; (2) fibras
simpáticas, cuja estimulação produz o relaxamento do músculo liso brônquico, a vasoconstrição
pulmonar e a inibição da atividade das glândulas secretoras; e (3) o sistema NANC, com múltiplos
transmissores implicados, incluindo o ATP, o NO, e os neurotransmissores peptídicos, como a
substância P e o péptido intestinal vasoativo (VIP). O sistema NANC participa nos eventos
inibitórios, incluindo broncodilatação, e pode funcionar como o balanço recíproco
predominante ao sistema colinérgico excitatório.

Os aferentes pulmonares consistem principalmente nas fibras sensoriais vagais. Estas incluem:

1. Fibras dos recetores da dilatação broncopulmonar, localizadas na traqueia e nos


brônquios proximais. A estimulação dessas fibras pela insuflação pulmonar resulta na
broncodilatação e no aumento da frequência cardíaca.
2. Fibras dos recetores da irritação, que também são encontradas nas vias respiratórias
proximais. A estimulação dessas fibras por diversos estímulos inespecíficos desencadeia
as respostas eferentes, incluindo a tosse, a broncoconstrição e a secreção mucosa.
3. As fibras C, ou fibras dos recetores justacapilares (J), são fibras amielínicas que terminam
no parênquima pulmonar e nas paredes brônquicas, e respondem a estímulos
mecânicos e químicos. As respostas reflexas associadas à estimulação das fibras C
incluem um padrão respiratório rápido e superficial, secreção mucosa, tosse e
diminuição da frequência cardíaca na inspiração.

Anatomia vascular e linfática

O sistema vascular pulmonar tem dois componentes


principais: os vasos pulmonares e os vasos brônquicos.
As artérias pulmonares são vasos envoltos pelo músculo
liso que percorrem a árvore brônquica e proporcionam a
perfusão do parênquima pulmonar. Elas são bastante
sensíveis à PO2 alveolar e apresentam uma significativa
resposta vasoconstritora à hipóxia. Isso proporciona um
mecanismo sensível para a manutenção da associação
entre a perfusão alveolar e a ventilação. Por sua vez, as
veias pulmonares drenam o parênquima pulmonar
alveolar, assumindo um curso no septo intralobular
distinto do feixe broncovascular pulmonar. Os vasos
brônquicos originam-se da circulação sistémica para
fornecer sangue a praticamente todas as estruturas intrapulmonares, exceto o parênquima,
incluindo a árvore brônquica, os sistemas nervoso e linfático pulmonares, e os septos de tecido
conjuntivo. As artérias brônquicas anastomosam-se com os vasos capilares da circulação
pulmonar, porém normalmente contribuem com apenas 1 a 2% de toda circulação pulmonar.
Esse fluxo pode aumentar de forma significativa na presença de inflamações crónicas e ser a
principal fonte de hemoptise.

Os vasos linfáticos pulmonares desenvolvem-se ao longo das vias respiratórias e dos sistemas
vasculares do pulmão. Os linfáticos são encontrados nos espaços de tecido conjuntivo da pleura
visceral, da membrana peribroncovascular e dos septos interlobulares. Os linfáticos são
encontrados distalmente até aos bronquíolos respiratórios terminais, porém não penetram no
espaço do tecido conjuntivo das paredes alveolares. Portanto, o líquido que percorre o seu
caminho para o interior do interstício alveolar precisa de ultrapassar uma pequena distância até
à região dos bronquíolos terminais para obter acesso aos linfáticos drenantes. As pleuras visceral
e parietal contêm vasos linfáticos associados. Esses vasos — em particular, os linfáticos
associados à pleura parietal — são responsáveis pela limpeza rápida do líquido do espaço
pleural.

Estrutura e função imunológicas

De todos os órgãos do corpo, os pulmões têm uma especial exposição a agressões hostis. Num
adulto, a ventilação diária em repouso totaliza cerca de 6000 L de ar por dia, uma quantidade
que é aumentada substancialmente com o exercício. Essa exposição a um ambiente aberto, não-
estéril, implica um risco constante de agressões tóxicas, infecciosas ou inflamatórias. Além do
mais, a circulação pulmonar contém o único leito capilar no corpo através do qual todo o volume
sanguíneo circulante tem que fluir a cada ciclo cardíaco. Como consequência, o pulmão funciona
como o principal local de defesa contra a disseminação hematogénica de infeções ou outras
influências nocivas. A proteção dos pulmões contra agressões ambientais e infecciosas envolve
um grupo de respostas complexas capazes de providenciar uma defesa oportuna e bem-
sucedida contra a agressão, através das vias respiratórias ou pelo
leito vascular. Separa-se essas respostas em duas grandes categorias
— proteções químicas e físicas inespecíficas, e estruturas e ações
imunes específicas — todas operando de forma a prevenir lesões ou
invasões microbiológicas das grandes áreas epitelial e vascular do
pulmão.

Fisiologia

Em repouso, os pulmões recebem 4 L/min de ar e 5 L/min de sangue, direcionam-nos para


dentro de um diâmetro de 0,2 µm, e depois devolvem-nos aos seus respetivos espaços. Na
atividade física máxima, o fluxo pode aumentar para 100 L/min de ventilação e 25 L/min de
débito cardíaco. Dessa forma, os pulmões desempenham a sua função fisiológica primária de
tornar o oxigénio disponível para o metabolismo nos tecidos e de remover o principal
subproduto desse metabolismo: o dióxido de carbono. Os pulmões desempenham essa tarefa
livres, em grande parte, do controle consciente, mantendo assim a PaCO2 dentro da tolerância
de 5%.

Propriedades estáticas: complacência e recoil elástico

O pulmão mantém o seu parênquima extremamente fino sobre uma enorme área de superfície
por meio de uma intrincada arquitetura de suporte de colagénio e fibras de elastina.
Anatomicamente, assim como fisiologica e funcionalmente, o pulmão é um órgão elástico.

Os pulmões inflam e desinflam em resposta às mudanças de volume da caixa torácica semi-rígida


na qual estão suspensos. O ar entra nos pulmões quando a pressão do espaço pleural é reduzida
pela expansão da parede torácica. O volume de ar que penetra nos pulmões depende da
variação na pressão pleural e da complacência do sistema respiratório. A complacência é uma
propriedade elástica intrínseca que relaciona uma alteração do volume a uma alteração da
pressão. As complacências da parede torácica e dos pulmões contribuem para a complacência
do sistema respiratório. A complacência da parede torácica não se altera significativamente com
o volume torácico, pelo menos dentro das variações fisiológicas. A complacência dos pulmões
varia inversamente com o volume pulmonar. Na capacidade funcional residual (CFR), os
pulmões são normalmente muito complacentes, aproximadamente 200 mL/cm H2O. Portanto,
uma redução de pressão de 5 cm de H2O no espaço pleural resultará numa aspiração de 1 L.

A tendência de um corpo deformável retornar à sua forma básica é o seu recoil elástico. O recoil
elástico da parede torácica é determinado pela forma e estrutura da caixa torácica. Dois
componentes contribuem para o recoil elástico pulmonar. O primeiro é a elasticidade do tecido;
o segundo está relacionado com as forças necessárias para alterar a forma da superfície de
contato ar-líquido dos alvéolos. A expansão dos pulmões requer a superação das forças da
superfície local que são diretamente proporcionais à tensão superficial local. A tensão superficial
é uma propriedade física que reflete uma maior atração entre as moléculas de um líquido do
que entre as moléculas desse líquido e do gás adjacente. Na interface ar-líquido do pulmão, as
moléculas de água são atraídas mais fortemente umas às outras do que ao ar acima delas. Isso
cria uma força final que direciona as moléculas de água em conjunto na interface. Se a interface
é esticada sobre uma superfície curva, essa força atua fechando a curvatura. A lei de Laplace
quantifica essa força: a pressão necessária para manter a curva aberta (neste caso, representada
por uma esfera) é diretamente proporcional à tensão superficial da interface e inversamente
proporcional ao raio da esfera.

O surfactante é uma mistura de fosfolípidos (predominantemente o dipalmitoilfosfatidilcoline


[DPPC]) e proteínas. Essas moléculas hidrofóbicas deslocam as moléculas de água da interface
ar-líquido, reduzindo assim a tensão superficial. Essa redução tem três implicações fisiológicas:

• Diminui a pressão de recoil elástico dos pulmões, minimizando, desse modo, a pressão
necessária para inflá-los. Isto resulta na redução do trabalho de respiração.
• Permite que as forças de superfície variem com a área da superfície alveolar,
promovendo assim a estabilidade alveolar e protegendo contra a atelectasia.
• Limita a redução da pressão hidrostática no interstício pericapilar, causada pela tensão
superficial. Isto reduz as forças que promovem a transudação do líquido e a tendência
ao acúmulo de edema intersticial.

Estados patológicos podem resultar de mudanças no recoil elástico do pulmão relacionado com
um aumento na complacência (enfisema), um decréscimo na complacência (fibrose pulmonar),
ou uma rutura do surfactante com um aumento nas tensões superficiais (síndrome da angústia
respiratória na infância [SARI]).

Propriedades dinâmicas: fluxo e resistência

A insuflação dos pulmões deve superar três forças opositoras: o recoil elástico, incluindo as
tensões superficiais; a inércia do sistema respiratório; e a resistência do fluxo de ar. Por a inércia
ser insignificante, o trabalho da respiração pode ser dividido entre o trabalho para superar as
forças elásticas e o trabalho para superar a resistência ao fluxo.

A resistência ao fluxo depende da natureza do fluxo. Sob condições de fluxo laminar ou


aerodinâmico, a resistência é descrita pela equação de Poiseuille: a resistência é diretamente
proporcional ao comprimento da via respiratória e à viscosidade do gás, e inversamente
proporcional ao raio elevado à quarta potência. Uma redução do raio da via respiratória pela
metade induz a um aumento de 16 vezes na resistência do ar. O calibre da via respiratória é,
por conseguinte, o principal determinante da resistência dessa via sob condições de fluxos
laminares. Sob condições de fluxo turbulento, a pressão de direcionamento necessária a atingir
uma dada taxa de fluxo é proporcional ao quadrado da taxa de fluxo. O fluxo turbulento depende
também da densidade do gás e não da sua viscosidade.
A maior parte da resistência à respiração normal surge nos brônquios médios e não nos
bronquíolos menores. Existem dois motivos principais: primeiro, o fluxo de ar no pulmão normal
não é laminar e sim turbulento, pelo menos da boca para as pequenas vias respiratórias
periféricas. Desse modo, onde o fluxo é maior (no brônquio segmentar e subsegmentar), a
resistência depende sobretudo das taxas de fluxo. Existe uma transição para fluxo laminar ao
aproximar-se dos bronquíolos terminais, em consequência do aumento da área da seção reta e
da diminuição das taxas de fluxo. Nos bronquíolos respiratórios e nos alvéolos, não há um fluxo
volumoso de gás e o seu movimento ocorre por difusão. Nas pequenas vias respiratórias
periféricas, o seu calibre é o principal determinante da resistência. O calibre das pequenas vias
respiratórias periféricas é bastante pequeno, porém, repetitivas ramificações criam um grande
número de pequenas vias respiratórias organizadas em paralelo. Sob condições normais, as suas
resistências somam-se reciprocamente, diminuindo a sua contribuição total para a resistência
das vias respiratórias.

A resistência das vias respiratórias é determinada por diversos fatores. Muitos estados de
doença afetam a tonicidade do músculo liso brônquico e causam broncoconstrição, produzindo
um estreitamento anormal das vias respiratórias. As vias respiratórias também podem ser
estreitadas por hipertrofia (bronquite crónica) ou infiltração (sarcoidose) da sua mucosa.
Fisiologicamente, a tração radial do interstício pulmonar suporta as vias respiratórias e aumenta
os seus calibres à medida que aumenta o volume pulmonar. Contrariamente, com a diminuição
do volume pulmonar, o calibre da via respiratória também diminui e a resistência ao fluxo do ar
aumenta. Os pacientes com obstrução do fluxo de ar geralmente respiram com volumes
pulmonares grandes, num esforço para maximizar o recoil elástico pulmonar; isso aumenta o
calibre da via respiratória e assim minimiza a resistência.

As análises em termos de fluxos laminares e turbulentos supõem que as vias respiratórias são
tubos rígidos. Na verdade, eles são fortemente compressíveis. A compressibilidade das vias
respiratórias expõe-nas ao importante fenómeno do fluxo independente de esforço. É uma
antiga observação clínica que o nível de fluxo de ar durante a expiração pode ser aumentado,
com esforço, apenas até determinado ponto. Além desse ponto, posteriores aumentos no
esforço não aumentam os níveis do fluxo. A explicação para esse fenómeno encontra-se no
conceito de ponto de igual pressão.

A pressão pleural é geralmente negativa (subatmosférica) durante a respiração em repouso. A


pressão peribronquiolar que circunda as vias respiratórias condutoras reflete a pressão pleural.
Dessa forma, durante a respiração em repouso, as vias respiratórias são circundadas por pressão
negativa que ajuda a mantê-las abertas. A pressão pleural e peribronquiolar podem se tornar
positivas durante a expiração forçada. Nesse caso, as vias respiratórias são circundadas por
pressão positiva. O ponto de igual pressão ocorre onde a pressão dentro da via respiratória
equivale à pressão peribronquiolar que a circunda, conduzindo à instabilidade e ao potencial
colapso da via respiratória.

O ponto de igual pressão não é um local anatómico, mas um resultado funcional que ajuda a
esclarecer diferentes mecanismos de obstrução do fluxo de ar. É devido à pressão condutora do
fluxo de ar expiratório que o pulmão tem pressão de recoil elástico, uma redução na pressão de
recoil conduzirá à cessação do fluxo nos volumes superiores dos pulmões. Os pacientes com
enfisema perdem o recoil elástico do pulmão e podem ter o fluxo expiratório gravemente
comprometido, mesmo com as vias respiratórias com calibre normal. Ao contrário, um aumento
na pressão de recoil irá se opor à compressão dinâmica. Os pacientes com fibrose pulmonar
podem ter um aumento anormal dos níveis de fluxo apesar dos volumes bastante reduzidos dos
pulmões. A presença de doenças nas vias respiratórias aumenta a queda na pressão ao longo
das vias respiratórias e pode gerar um ponto de igual pressão nos volumes superiores dos
pulmões.

O trabalho da respiração

A quantidade de energia necessária para manter os músculos respiratórios durante a respiração


em repouso é pequena, aproximadamente 2% do consumo de oxigénio basal. O aumento da
ventilação consome relativamente pouco oxigénio até que atinja 70 L/min. Nos pacientes com
doenças pulmonares, as necessidades energéticas são maiores no repouso e aumentam
significativamente durante o exercício. Os pacientes com enfisema podem não estar aptos a
superar o dobro das suas ventilações, porque o oxigénio necessário para a respiração excede o
adicional disponível para o corpo.

Uma ventilação-minuto constante pode ser alcançada através de múltiplas combinações entre
frequências respiratórias e volumes de ar respirados. As duas componentes do trabalho
respiratório — forças elásticas e resistência ao fluxo de ar — são afetadas de maneiras opostas
pelas mudanças na frequência e na profundidade da respiração. A resistência elástica é
minimizada pela respiração rápida, superficial; as forças de resistência ao fluxo de ar são
minimizadas pela respiração lenta, de grande volume de ar respirado. A Fig. 9.10 mostra como
essas duas componentes podem ser somadas para oferecer um trabalho total de respiração para
diferentes frequências numa ventilação-minuto constante. O ponto de ajuste da respiração é
aquele em que o trabalho total de respiração é minimizado. Em pessoas saudáveis isso ocorre
com uma frequência de aproximadamente 15 respirações/min. Em diferentes doenças, esse
modelo é alterado para compensar a anormalidade fisiológica subjacente.

Distribuição ventilação-perfusão

O ar inalado não é distribuído igualmente para todas as regiões do pulmão. No indivíduo


saudável, isso deve-se principalmente à geometria fractal das ramificações repetitivas das vias
respiratórias e vasos, e aos efeitos da gravidade sobre a pressão pleural. A pressão pleural varia
do ápice à base do pulmão em aproximadamente 0,25 cm H2O/cm. Ela é mais negativa no ápex
e mais positiva na base. O efeito é substituído por uma distribuição ântero-posterior no decúbito
dorsal e muito diminuído (porém não-abolido) em ambientes de gravidade zero.

A ventilação regional é dependente da pressão regional pleural. O aumento da pressão negativa


no ápex pulmonar causa maior expansão dos alvéolos apicais. Dada a forma da curva pressão-
volume do pulmão, a complacência pulmonar é maior nos volumes inferiores, e a ventilação é
preferencialmente distribuída aos lobos inferiores na CFR.

O fluxo de sangue pulmonar é um sistema de baixa pressão que funciona num campo
gravitacional através de 30 cm verticais. A distribuição do fluxo de sangue para os pulmões não
é uniforme sob condições de repouso. Na posição vertical, há um acréscimo quase linear no
fluxo de sangue do ápice para a base pulmonar. Além da gravidade, múltiplos fatores regulam
o fluxo de sangue. O mais importante é a vasoconstrição pulmonar hipóxica. As células do
músculo liso das arteríolas pulmonares são sensíveis ao PO2 alveolar (muito mais do que ao PCO2
arterial). À medida que o PO2 alveolar cai, ocorre uma constrição arteriolar, um aumento na
resistência local ao fluxo e uma redistribuição do fluxo para as regiões de alto PO2 alveolar. Esse
é um mecanismo extremamente eficaz quando regionalizado. Ele pode diminuir bastante o fluxo
sanguíneo local sem um aumento significativo da pressão arterial pulmonar média, quando
afeta menos de 20% da circulação pulmonar. A hipóxia alveolar global resulta em hipertensão
pulmonar.

A associação ventilação-perfusão

O papel funcional dos pulmões é colocar o ar ambiente próximo do sangue em circulação para
permitir a troca gasosa por difusão simples. Para conseguir isso, o ar e o fluxo sanguíneo devem
ser direcionados para o mesmo local, ao mesmo tempo, ou seja, a ventilação e a perfusão devem
ser associadas. Uma falha na associação entre a ventilação e a perfusão, ou dissociação V/Q,
está subjacente à maior parte das anormalidades na troca de O2 e CO2.

No indivíduo saudável, o volume ventilatório típico em repouso é de 6 L/min. Aproximadamente


33% desta quantidade preenche as vias respiratórias condutoras e constitui o espaço morto ou
a ventilação desperdiçada. Portanto, a ventilação alveolar no repouso é de cerca de 4 L/min,
enquanto o fluxo sanguíneo arterial pulmonar é de 5 L/min. Isso produz uma relação global de
0,8 entre a ventilação e a perfusão.

Nem a ventilação nem a perfusão são homogeneamente distribuídas.


No repouso, ambas são preferencialmente distribuídas às regiões que
necessitam, ainda que o aumento no fluxo dependente da gravidade
seja mais marcante na perfusão do que na ventilação. Portanto, a
relação entre a ventilação e a perfusão é mais elevada no ápex e mais
baixa na base.

As alterações na distribuição das relações entre a ventilação e a


perfusão são extremamente importantes e subjacentes à diminuição
funcional em vários estados patológicos. A distribuição pode
favorecer relações V/Q altas, sendo o espaço morto alveolar a
situação extrema (ventilação sem perfusão, ou V /Q = ∞); ou relações
V/Q baixas, sendo o shunt a situação extrema (perfusão sem
ventilação, ou V/Q = 0). Estas duas alterações afetam diferentemente
a função respiratória.

Em indivíduos normais em repouso, aproximadamente 33% da


ventilação serve para preencher as vias respiratórias condutoras
principais. Esse é o espaço anatómico morto, que representa a
ventilação para as áreas que não participam da troca gasosa. Se as
regiões pulmonares de troca gasosa são ventiladas, porém não
perfundidas, como pode ocorrer na embolia pulmonar ou em várias
formas de doença vascular pulmonar, essas regiões também falham
em operar a troca gasosa. Elas são referidas como espaços mortos
alveolares, ou ventilação desperdiçada (quadrado C).
Funcionalmente, alguma percentagem do trabalho respiratório
suporta então a ventilação que não participa da troca gasosa, reduzindo assim a eficiência global
da ventilação. Na ausência da compensação respiratória, um aumento do espaço morto alveolar
irá causar distúrbios tanto na PO2, como na PCO2 arteriais: a PaO2 irá diminuir e PaCO2 irá
aumentar. No entanto, devido ao centro de controle respiratório ser extremamente sensível a
pequenas mudanças na PaCO2, a resposta mais comum a um aumento na ventilação
desperdiçada é um aumento na ventilação-minuto total, que mantém a PaCO2 quase constante.
A PaO2 está normal ou pode estar diminuída, se a fração de ventilação desperdiçada for grande.
A A–a ∆PO2 está aumentada.

Um shunt ocorre quando a ventilação é eliminada, porém a perfusão continua, como pode
acontecer com o pulmão atelectasiado ou em áreas de consolidação pulmonar (alvéolos
preenchidos com líquido/exsudado) (quadrado B). Tal shunt direita-esquerda permite que o
sangue venoso misturado passe para a circulação arterial sistémica sem entrar em contato com
o gás alveolar. Isso causa caracteristicamente uma queda, tanto na PO2 como na PCO2. A
hiperventilação de algumas regiões do pulmão pode compensar um shunt através de outras
regiões, mas apenas por um possível aumento da PCO2 e não pela queda na PO2. A razão está
no facto de o CO2 contido no sangue estar linearmente relacionado e ser inversamente
proporcional à ventilação alveolar. A ventilação aumentada numa unidade respiratória pode
reduzir o CO2 contido no sangue que deixa aquela unidade. O conteúdo de CO2 da mistura é a
média das duas unidades. Por a PCO2 ser diretamente proporcional ao conteúdo de CO2, o
conteúdo reduzido de CO2 das unidades hiperventiladas compensa a falta de ventilação do
espaço morto.

O conteúdo de O2 no sangue não está linearmente relacionado com a ventilação alveolar. O


formato sigmóide da curva de dissociação oxigénio-hemoglobina indica que o sangue é quase
totalmente saturado com oxigénio na ventilação basal. O aumento da ventilação numa das
unidades respiratórias não aumenta significativamente o O2
contido no sangue que deixa aquela unidade. O conteúdo de O2
no sangue que deixa uma área com baixa relação V/Q é a média
entre o conteúdo normal de oxigénio no sangue e o conteúdo
de oxigénio contido no sangue não-saturado, do shunt. O
conteúdo reduzido de oxigénio da mistura tende a permanecer
na porção íngreme da curva de dissociação oxigénio-
hemoglobina. O resultado é que pequenas quedas no conteúdo
de oxigénio levam a grandes quedas na PO2.

A dissociação ventilação-perfusão ocorre comumente entre os


extremos dos shunts e a ventilação desperdiçada.

O efeito fisiológico das áreas com baixa relação V/Q é semelhante ao efeito dos shunts:
hipoxémia sem hipercapnia. O sangue shuntado passa sem contato com o ar inspirado;
portanto, nenhuma quantidade adicional de oxigénio fornecido ao ar inspirado irá reverter a
queda da PO2 arterial sistémica. Uma área de baixa relação V/Q entra em contato com o ar
inspirado e pode ser revertida com o aumento de oxigénio inspirado. O shunt verdadeiro é o
caso limítrofe de uma área com baixa V/Q onde a relação é igual a zero.

Numa área com fluxo sanguíneo diminuído, porém com a ventilação mantida, existe uma
elevada relação V/Q. O efeito das elevadas relações V/Q é aumentar a quantidade de ventilação
necessária para manter a PCO2 arterial normal. Em decorrência do sistema de controle da
respiração ser bastante sensível a pequenas mudanças na PaCO2 e os pulmões apresentarem
uma enorme capacidade de excesso, o efeito fisiológico de áreas com elevada relação V/Q é
aumentar a respiração para manter a PaCO2. Isso pode ser feito de forma inconsciente, e
transforma-se num problema clínico quando o indivíduo não consegue manter uma ventilação-
minuto aumentada.

Os gases do sangue arterial detetam os principais distúrbios da função respiratória. Uma


tentativa de estimar anormalidades mais subtis das trocas gasosas corresponde ao cálculo da
diferença entre as PO2 alveolar e arterial. Isso é referido como A–a ∆PO2 ou A–a DO2. Durante
a associação V/Q normal, a membrana alveolar-capilar permite um equilíbrio completo entre as
tensões de oxigénio no alvéolo e no final do capilar. Não obstante, existe um pequeno A–a ∆PO2
nos indivíduos normais como um resultado de shunt direita-esquerda através das veias
brônquicas e das veias de Thebesius da cavidade esquerda do coração. Isso responde por
aproximadamente 2% do débito cardíaco em repouso e leva a uma A–a ∆Po2 normal de 5 a 8
mmHg. Aumentando a fração da concentração do oxigénio inspirado (Fio2), aumenta-se este
valor: uma A–a ∆PO2 normal respirando 100% de oxigénio é aproximadamente 100 mmHg. Um
aumento no A–a ∆PO2 reflete as áreas de baixa relação V/Q, incluindo os shunts. Isso aumenta
com a idade, possivelmente como um resultado do encerramento das vias respiratórias
dependentes com uma consequente alteração em direção às baixas relações V/Q.

Controlo da respiração

Os pulmões insuflam e desinsuflam passivamente em resposta às mudanças na pressão pleural.


Portanto, o controle sobre a respiração situa-se no controle dos músculos estriados —
principalmente o diafragma, mas também os intercostais e a parede abdominal — que alteram
a pressão pleural.

Esses músculos estão tanto sob o controle autónomo, como o voluntário. O ritmo da respiração
espontânea é originado no tronco cerebral, especificamente em vários grupos de neurónios
interconectados na medula → complexo pré-Bötzinger. Eles são inspiratórios ou expiratórios e
podem disparar cedo, tarde ou de modo acelerado durante o ciclo respiratório. O seu resultado
integrado é um sinal eferente através do nervo frénico (diafragma) e nervos espinhais
(intercostais e parede abdominal) para gerar a contração e o relaxamento rítmicos da
musculatura respiratória. O resultado é a respiração espontânea sem controle consciente. No
entanto, a alimentação, a fala, o canto, o nado, a defecação, todas dependem do controle
voluntário sobre a respiração automática.

a. Estímulo sensorial

A frequência, a profundidade e o tempo da respiração espontânea são modificados pela


informação fornecida ao centro respiratório, tanto pelos sensores químicos, como pelos
mecânicos.

Existem quimiorreceptores na vascularização periférica e no interior do tronco cerebral. Os


quimiorreceptores periféricos são os corpos carotídeos, localizados na bifurcação das artérias
carótidas comuns, e os corpos aórticos, próximos ao arco da aorta. Os corpos carotídeos são
particularmente importantes nos humanos. Eles funcionam como sensores da oxigenação
arterial. Há um aumento gradativo no disparo do corpo carotídeo em resposta a uma diminuição
da PaO2. Essa resposta é mais acentuada abaixo de 60 mmHg. Um aumento na PaCO2 ou uma
queda no pH arterial potencializa a resposta do corpo carotídeo às diminuições da PaO2. Nos
humanos, os corpos carotídeos são os únicos responsáveis pela ventilação aumentada
observada em resposta à hipoxia.
Os quimiorreceptores centrais medeiam a resposta às mudanças na
PaCO2. O aumento da resposta ventilatória à elevação da PaCO2 é
mediada pelas mudanças nos quimiorreceptores do pH. A barreira
hematoencefálica permite a livre difusão do CO2, mas não de H+. O CO2 é
hidratado para ácido carbónico, o qual ioniza e diminui o pH do cérebro.
Os quimiorreceptores centrais provavelmente respondem a essas
mudanças na concentração de H+ intracelular.

Existem vários recetores elásticos pulmonares localizados no músculo


liso e na mucosa das vias respiratórias, cujas fibras aferentes são levadas
para o nervo vago. Eles descarregam em resposta à distensão pulmonar.
O aumento de volume pulmonar diminui a frequência respiratória,
aumentando o tempo expiratório. Isso é conhecido como o reflexo de
Hering-Breuer. Existem fibras C amielínicas localizadas próximas aos capilares pulmonares (daí
o nome de recetores justacapilares [J]). Essas fibras estão em repouso durante a respiração
normal, mas podem ser diretamente estimuladas pela administração intravenosa de fármacos
irritantes. Eles parecem estimular o aumento do esforço respiratório no edema intersticial e na
fibrose pulmonar. O movimento esquelético, transmitido pelos propriocetores das articulações,
músculos e tendões, causa um aumento na respiração e pode ter algum papel na elevação da
ventilação relacionada com o exercício. Finalmente, existem recetores musculares fusiformes
no diafragma e nos músculos intercostais, que fornecem a retroalimentação para a força
muscular. Eles podem estar envolvidos na sensação de dispneia quando o trabalho da respiração
é desproporcional à ventilação.

b. Respostas integradas

Sob condições normais em pessoas saudáveis, a concentração de H+


na região dos quimiorreceptores centrais determina o esforço
respiratório. Mudanças no pH do quimiorrecetor são amplamente
determinadas pela PaCO2. Sob condições normais, a PaO2 não é uma
parte importante do controle basal do esforço respiratório.

A respiração é estimulada pela queda da PaO2, pelo aumento da


PaCO2, ou pelo aumento da concentração de H+ no sangue arterial
(queda do pH arterial). A ventilação aumenta aproximadamente 2 a 3
L/min a cada 1 mmHg acrescentado na PaCO2. Essa resposta ocorre
primeiro através da sensibilização dos recetores do corpo carotídeo. O corpo carotídeo
aumentará os seus disparos em resposta a um acréscimo na PaCO2, até mesmo na ausência de
mudanças na PaO2. Isso responde por aproximadamente 15% da resposta ventilatória à
hipercapnia. A maioria das respostas é mediada pelas mudanças no pH na região dos
quimiorreceptores centrais. Mudanças no pH arterial são aditivas às mudanças na PaCO2. As
curvas de resposta ao CO2 em condições de acidose metabólica têm um declive idêntico, mas
são deslocadas para a esquerda. A resposta ventilatória ao aumento da PaCO2 diminui com a
idade, com o sono, com o condicionamento aeróbico e com o aumento do trabalho respiratório.
A resposta individual à hipoxemia é extremamente variável.
Normalmente, existe um pequeno aumento da ventilação até
que a PaO2 caia abaixo de 50 a 60 mmHg. Neste ponto, existe
um rápido aumento na ventilação que alcança o seu máximo em
aproximadamente 32 mmHg. Abaixo deste nível, decréscimos
posteriores na PaO2 levam à diminuição da ventilação. A
resposta à hipoxia é afetada pela PaCO2. Um aumento na PCO2
alveolar irá alterar a curva de resposta isocapnémica ao O2 para
cima e para a direita (Fig. 9.19). Uma queda na concentração
arterial de H+ aumenta a ventilação-minuto. Essa resposta
resulta principalmente da estimulação dos corpos carotídeos e é
independente das mudanças na PaCO2. Na ausência de corpos
carotídeos, existe uma resposta à acidose metabólica grave.
Supõe-se que essa resposta é mediada pelos quimiorreceptores
centrais; isso pode representar uma quebra da barreira
hematencefálica.

c. Situações especiais
• Hipercapnia crónica — nos pacientes com hipercapnia crónica, o pH cerebral volta ao
normal através das alterações compensatórias nos níveis de bicarbonato. Isso torna os
quimiorreceptores centrais menos sensíveis a posteriores mudanças na PaCO2 arterial.
Nessa situação, a ventilação mínima de um paciente pode depender dos estímulos
tónicos dos corpos carotídeos. Se a esses pacientes forem administradas elevadas
concentrações de oxigénio inspirado, isso poderá reduzir a resposta do corpo carotídeo
e levar a uma queda na ventilação-minuto. Em casos raros, pode ser grave o suficiente
para causar um rápido acréscimo na PaCO2 e o coma.
• Hipoxia crónica — a residência durante um longo período num local de altitude elevada
— ou a apneia do sono com repetidos episódios de grave dessaturação de oxigénio —
pode diminuir a resposta ventilatória hipóxica. Nesses indivíduos, o desenvolvimento de
doença pulmonar e hipercapnia pode remover qualquer estímulo endógeno à
respiração. Esse modelo é visto nos pacientes com a síndrome da obesidade-
hipoventilação.
• Exercício — o exercício pode aumentar a ventilação-minuto até 25 vezes acima do nível
de repouso. Num indivíduo saudável, o exercício vigoroso, porém abaixo do extremo,
caracteristicamente não causa nenhuma mudança, ou apenas um leve aumento, na
PaO2 como resultado do aumento do fluxo sanguíneo pulmonar e da melhor
combinação entre ventilação e perfusão, sem nenhuma mudança ou apenas uma
pequena queda na PaCO2. No entanto, mudanças na oxigenação arterial não são um
fator subjacente ao aumento da ventilação em resposta ao exercício. Não é conhecida
com precisão a razão para o aumento da resposta ventilatória. Os dois fatores
contribuintes são o aumento na produção de dióxido de carbono e o aumento da
descarga aferente dos propriorreceptores das articulações e dos músculos.

Fisiopatologia de algumas doenças pulmonares

Doenças pulmonares obstrutivas: asma e DPOC

O problema fisiológico fundamental nas doenças obstrutivas é o aumento na resistência ao


fluxo de ar como um resultado da redução do calibre das vias respiratórias condutoras. Essa
resistência aumentada pode ser causada por processos:
• Dentro do lúmen: exemplos de obstrução luminal incluem o aumento de secreção
observado na asma e na bronquite crónica
• Na parede da via respiratória: o espessamento e o estreitamento da parede da via
respiratória podem resultar da inflamação observada tanto na asma, como na bronquite
crónica, ou da contração do músculo liso brônquico na asma
• Nas estruturas de suporte que circundam a via respiratória: o enfisema é o exemplo
clássico da obstrução causada pela perda da estrutura de suporte circundante, com o
colapso da via respiratória resultante da destruição do tecido elástico pulmonar.

1. ASMA
a. Apresentação clínica

A asma é uma doença inflamatória da via respiratória associada à obstrução do fluxo de ar,
caracterizada pela presença de sintomas intermitentes, que incluem os sibilos, a constrição
torácica, encurtamento da respiração (dispneia), e a tosse, junto com hipersensibilidade
brônquica demonstrável. A exposição a determinados alergénios ou a vários estímulos
inespecíficos inicia uma cascata de eventos da ativação celular nas vias respiratórias, resultando
em processos inflamatórios, tanto agudos como crónicos, mediados por uma variedade
complexa integrada de citocinas libertadas localmente e de outros mediadores. A libertação
desses mediadores pode alterar o tónus e a sensibilidade do músculo liso das vias respiratórias,
produzir hipersecreção mucosa, e danificar o epitélio da via respiratória. Esses eventos
patológicos resultam cronicamente em anormalidades da arquitetura e da função da via
respiratória.

É inerente à definição de asma a possibilidade de uma variação considerável na magnitude e na


manifestação da doença entre os indivíduos através do tempo. Por exemplo, ao passo que
muitos pacientes asmáticos têm sintomas pouco frequentes e leves, outros podem ter sintomas
prolongados de grande gravidade. De forma semelhante, estímulos desencadeadores ou
exacerbadores podem variar significativamente entre os pacientes.

b. Etiologia e epidemiologia

A asma é a doença crónica pulmonar mais comum, afetando entre 15 a 17% da população. É
mais comum em crianças e ocorre mais frequentemente no sexo masculino. Os dados relativos
às mortes decorrentes de asma são incompletos e algo variáveis, mas sugerem uma tendência
no sentido de um aumento na taxa de mortalidade nas décadas recentes — isso apesar de uma
maior disponibilidade de tratamentos farmacológicos mais eficazes. Várias explicações têm sido
apresentadas, incluindo os efeitos colaterais deletérios dos medicamentos e a crescente
exposição à poluição domiciliar e industrial.

A atopia, ou produção de anticorpos imunoglobulina E (IgE) em resposta à exposição a


alergénios, é comum em asmáticos e desempenha um papel na evolução da doença. A asma
tem sido convencionalmente dividida entre asma intrínseca e extrínseca, dependendo da
presença ou ausência, respetivamente, de atopia concomitante. Existem algumas diferenças
características entre os dois grupos, como, na asma intrínseca, a idade mais avançada dos
primeiros sintomas, a falta de sensibilização alérgica aparente através dos testes e a tendência
para uma maior gravidade da doença. No entanto, os dois tipos compartilham os achados
patológicos de inflamação da via respiratória, hiperresponsividade e obstrução, de modo que a
distinção não se tem mostrado útil na prática clínica.
A anormalidade fundamental na asma é o aumento da
reatividade das vias respiratórias aos estímulos. Existem
vários agentes desencadeadores conhecidos da asma.
Esses podem ser categorizados em (1) mediadores
fisiológicos ou farmacológicos das respostas das vias
respiratórias asmáticas, (2) alergénios que podem induzir
a inflamação e a reatividade das vias respiratórias em
indivíduos sensibilizados, e (3) agentes ou estímulos
físico-químicos que produzem a hiperreatividade das vias
respiratórias. Alguns destes agentes desencadeadores
irão produzir reações apenas em asmáticos (p. ex.,
exercício, adenosina), enquanto outros produzem
caracteristicamente reações exageradas em asmáticos,
que podem ser usadas para distingui-los dos normais sob condições controladas de teste (p. ex.,
histamina, metacolina).

Os asmáticos têm caracteristicamente respostas iniciais e tardias a estímulos desencadeadores.


Na resposta asmática inicial, ocorre o estreitamento da via respiratória 10 a 15 min após a
exposição, e a recuperação após 60 min. Algumas vezes isso pode ser seguido de uma resposta
asmática tardia, que aparece de 4 a 8 h depois de um estímulo inicial. Mesmo que os
mecanismos produtores dessas duas respostas sejam diferentes, eles são parte de um processo
comum de inflamação da via respiratória.

c. Patogénese

A inflamação da via respiratória desempenha um papel central na evolução da asma. Os eventos


iniciais nas respostas asmáticas das vias respiratórias são a ativação das células inflamatórias
locais, principalmente dos mastócitos e dos eosinófilos. Isso pode ocorrer por mecanismos
específicos dependentes da IgE ou indiretamente via outros processos (p. ex., estímulos
osmóticos e exposição a produtos químicos irritantes). Os mediadores de ação aguda, incluindo
os leucotrienos, as prostaglandinas e a histamina, induzem rapidamente a contração do
músculo liso, a hipersecreção de muco, a vasodilatação com vazamento endotelial e a formação
de edema local. As células epiteliais também parecem estar envolvidas nesse processo,
liberando leucotrienos e prostaglandinas, assim como as citocinas inflamatórias sob ativação.
Alguns desses mediadores pré-formadores atuam rapidamente e são possuidores de atividade
quimiotáxica, recrutando células inflamatórias adicionais, como eosinófilos e neutrófilos para
a mucosa da via respiratória.

Um processo crítico que acompanha esses eventos agudos consiste no recrutamento,


multiplicação, e ativação das células imunoinflamatórias através das ações da rede de citocinas
e quimiocinas localmente libertadas. As citocinas e as quimiocinas participam numa complexa e
prolongada série de eventos que resultam na perpetuação da inflamação da via respiratória local
e na hipersensibilidade. Esses eventos incluem a promoção do crescimento dos mastócitos e dos
eosinófilos, o influxo e a proliferação dos linfócitos T, e a diferenciação dos linfócitos B em
células plasmáticas produtoras de IgE e IgA. Atualmente, um importante componente desse
processo parece ser a diferenciação dos linfócitos T auxiliadores do fenótipo TH 2. Esses
linfócitos TH 2, através da sua produção de citocinas, incluindo as IL-3, IL-4, IL-5, IL-6, IL-9, IL-10
e IL-13, promovem a ativação dos mastócitos, dos eosinófilos e de outras células efetoras, e
direcionam para a produção da IgE pelas células B, todos componentes patológicos do fenótipo
da asma. Portanto, através de seus mediadores específicos, essas múltiplas células participam
de vários processos pró-inflamatórios que estão ativos nas vias respiratórias dos asmáticos.
Dentre esses estão a lesão às células epiteliais, a desnudação da via respiratória, a maior
exposição dos nervos sensoriais aferentes, e a consequente hipersensibilidade do músculo liso
mediada neuralmente; a supra-regulação dos mastócitos e dos eosinófilos mediada pela IgE e a
libertação dos mediadores, incluindo aqueles de ação aguda e longa; e a hipersecreção das
glândulas submucosas com o aumento do volume mucoso. Concomitantemente, o aumento da
produção de fatores como TGF-β, TGF-α e FGF pelas células epiteliais, bem como dos
macrófagos e de outras células inflamatórias, dirige os processos de remodelamento do tecido
e de fibrose da submucosa da via respiratória. Essa fibrose da submucosa pode resultar na
obstrução fixa da via respiratória, acompanhada da sua inflamação crónica, na asma.

d. Patologia

A mucosa da via respiratória é espessada, edematosa e infiltrada com células inflamatórias,


principalmente os linfócitos, eosinófilos e mastócitos. São observadas a hipertrofia e a contração
do músculo liso da via respiratória. As células epiteliais brônquicas e bronquiolares estão
frequentemente danificadas, em parte pelos produtos dos eosinófilos, como a proteína básica
principal e a proteína quimiotáxica, que são citotóxicas para o epitélio. A lesão e a morte do
epitélio deixam porções do lúmen da via respiratória expostas, expondo os aferentes
autónomos e provavelmente os aferentes não-colinérgicos, não-adrenérgicos, que podem
mediar a hiperreatividade da via respiratória. A hiperplasia das glândulas secretoras e a
hipersecreção de muco são observadas. Mesmo nas vias respiratórias asmáticas levemente
acometidas, as células inflamatórias são encontradas em número aumentado na mucosa e na
submucosa, e é observado um aumento dos miofibroblastos subepiteliais, com produção
elevada de colagénio intersticial, o que pode explicar a componente de obstrução relativamente
mantida da via respiratória, observado em alguns asmáticos. Geralmente, com a intensa e
completa obstrução do lúmen das vias respiratórias, são observadas a lesão e a perda mais
acentuadas do epitélio das vias respiratórias.

e. Fisiopatologia

Os eventos celulares locais nas vias respiratórias têm efeitos importantes na função pulmonar.
A hipersensibilidade do músculo liso e o estreitamento da via respiratória aumentam
significativamente a resistência dessa via em consequência da inflamação. Desse modo, quando
em circunstâncias fisiológicas normais o pequeno calibre das vias respiratórias periféricas não
contribui de forma significativa para a resistência do fluxo de ar, agora elas passam a ser locais
de resistência aumentada. Isso é agravado pela hipersecreção mucosa concorrente e por
qualquer estímulo broncoconstritor adicional. A função neural brônquica também parece
desempenhar um papel na evolução da asma, ainda que provavelmente seja de importância
secundária. A tosse e o reflexo broncoconstritor mediados pela estimulação dos eferentes vagais
acompanham a estimulação dos recetores irritantes brônquicos. Os neurotransmissores
peptídicos também são importantes. A substância pró-inflamatória neuropeptido P pode ser
libertada por fibras aferentes amielínicas dentro das vias respiratórias e induzir a contração do
músculo liso e a liberação de mediadores pelos mastócitos. O peptídio vasoativo intestinal (VIP)
é o neurotransmissor de alguns neurónios não-adrenérgicos, não-colinérgicos das vias
respiratórias e pode funcionar como um broncodilatador; a interrupção da sua ação, através da
clivagem do VIP, pode gerar a broncoconstrição.

A obstrução da via respiratória ocorre difusamente pelos pulmões, ainda que de forma não-
homogénea. Como resultado, a ventilação das unidades respiratórias torna-se não uniforme e
a associação entre ventilação e perfusão é alterada. De forma anormal, existem tanto áreas com
relação V/Q elevada, como com relação diminuída, sendo que as regiões de relação diminuída
contribuem para a hipoxemia. Ainda que os tampões de muco sejam uma descoberta comum,
o shunt autêntico é raro na asma, particularmente nas asmas grave e fatal. Habitualmente, a
tensão arterial do CO2 é normal ou baixa, dado o aumento observado na ventilação nas
exacerbações da asma. A hipercapnia é vista como um sinal tardio e nefasto, indicando a
obstrução progressiva da via respiratória, a fadiga do músculo e a ventilação alveolar
decrescente.

f. Manifestações clínicas

A variabilidade de sinais e sintomas é uma indicação da significativa amplitude da gravidade da


doença, desde leve e intermitente, até a asma crónica, grave e ocasionalmente fatal.

1 – Tosse: resulta da combinação do estreitamento da via respiratória, da hipersecreção de


muco e da hiperresponsividade neural aferente observada na inflamação da via respiratória. Ela
também pode ser uma consequência da inflamação inespecífica, após infeções sobrepostas,
particularmente as virais, nos pacientes asmáticos. Em virtude do estreitamento compressivo e
da alta velocidade do fluxo de ar nas vias respiratórias centrais, a tosse proporciona a raspagem
e força propulsiva suficientes para coletar e limpar o muco e as partículas retidas em razão do
estreitamento das vias respiratórias.

2 – Sibilos: a contração do músculo liso, junto com a hipersecreção e a retenção de muco, resulta
na redução do calibre da via respiratória e no fluxo de ar prolongado e turbulento, produzindo
a auscultação dos sibilos. A intensidade dos sibilos não é bem correlacionada com a gravidade
do estreitamento da via respiratória. Por exemplo, com a obstrução extrema da via respiratória,
o fluxo de ar pode ser tão reduzido que o sibilo é quase impercetível.

3 – Dispneia e constrição torácica: o aumento do esforço muscular necessário para superar a


elevação da resistência na via respiratória é detetado pelos recetores elásticos fusiformes,
principalmente dos músculos intercostais e da parede torácica. A hiperinsuflação secundária à
obstrução da via respiratória resulta da distensão torácica. A complacência pulmonar diminui e
o trabalho da respiração aumenta, também detetado pelos nervos sensoriais da parede torácica
e manifestado pela constrição torácica e pela dispneia. À medida que a obstrução piora, o
aumento da dissociação V /Q produz a hipoxemia. O aumento da tensão arterial de CO2 e,
posteriormente, a evolução para a hipoxemia arterial (que atuam como estímulos separados ou
sinérgicos) irão estimular o controle respiratório através dos quimiorreceptores centrais e
periféricos. Esse estímulo, no contexto da fadiga do músculo respiratório, produz a dispneia
progressiva.

4 – Taquipneia e taquicardia: são praticamente universais nas exacerbações agudas

5 – Pulso paradoxal: é a queda de mais de 10 mmHg na pressão arterial sistólica durante a


inspiração. Parece ocorrer como consequência da hiperinsuflação pulmonar, comprometendo o
enchimento ventricular esquerdo, associado ao retorno venoso aumentado para o ventrículo
direito, durante a inspiração mais vigorosa na obstrução grave. Com o aumento do volume
ventricular direito diastólico final, durante a inspiração, o septo intraventricular é movido para
a esquerda, comprometendo o enchimento e o débito ventricular esquerdos. A consequência
dessa diminuição do débito é uma queda da pressão sistólica durante a inspiração, ou seja, o
pulso paradoxal.
6 – Hipoxémia: devido ao aumento crescente da dissociação V/Q, juntamente com a obstrução
da via respiratória, surgem áreas com baixas relações V/Q, resultando na hipoxemia. Os shunts
são raros na asma.

7 – Hipercapnia e acidose respiratória: na asma leve e moderada, a ventilação está normal ou


elevada, e a PCO2 arterial pode estar normal ou diminuída. Nas crises graves, a obstrução das
vias respiratórias persiste ou aumenta e aparece a fadiga do músculo respiratório, com a
evolução da hipoventilação alveolar, do aumento da hipercapnia e da acidose respiratória. É
importante observar que isso pode ocorrer em face da taquipneia contínua, que não equivale à
hiperventilação alveolar.

8 - Defeitos obstrutivos nas provas de função pulmonar: os pacientes com asma leve podem ter
a função pulmonar inteiramente normal entre as crises. Durante crises agudas de asma, todos
os índices do fluxo de ar expiratório estão reduzidos, incluindo FEV1, FEV1/CVF e a taxa do pico
do fluxo expiratório. O CVF também está frequentemente reduzido como resultado prematuro
da obstrução da via respiratória antes da expiração completa. A administração de um
broncodilatador melhora a obstrução do fluxo de ar. Como consequência dessa obstrução, o
esvaziamento incompleto das unidades do pulmão no fim da expiração resulta na
hiperinsuflação aguda e crónica; a capacidade pulmonar total (CPT), a capacidade funcional
residual (CFR) e o volume residual (VR) podem estar elevados. A capacidade de difusão pulmonar
para monóxido de carbono (DlCO) está frequentemente aumentada como consequência do
aumento do volume pulmonar (e do sangue capilar pulmonar).

9 – Hipersensibilidade brônquica: o teste de provocação brônquica revela a hipersensibilidade


não-específica em praticamente todos os asmáticos, incluindo aqueles com a doença leve e o
teste de função pulmonar de rotina normal. A hipersensibilidade brônquica é definida também
como (1) uma diminuição de 20% no FEV1 em resposta a um fator provocante que, com
intensidade igual, causa menos de 5% de mudança no indivíduo normal; ou (2) um aumento de
20% no FEV1 em resposta a um fármaco broncodilatador inalado. A metacolina e a histamina
são os agentes para os quais foram estabelecidos testes padronizados.

2. DPOC (doença pulmonar obstrutiva crónica)

A DPOC é um distúrbio caracterizado por obstrução do fluxo de ar que não é totalmente


reversível. A DPOC inclui:

• Enfisema: destruição e alargamento dos alvéolos pulmonares


• Bronquite crónica: clinicamente definida por tosse crónica e catarro.
• Doença das pequenas vias aéreas: estreitamento dos pequenos bronquíolos

A DPOC está presente apenas se ocorrer obstrução crónica do fluxo aéreo; a bronquite crónica
sem obstrução do fluxo não está incluída na DPOC.

a. Apresentação clínica
i. Bronquite crónica: é definida pela história clínica por tosse produtiva
por 3 meses durante 2 anos consecutivos. A dispneia e a obstrução da
via respiratória, frequentemente reversíveis, estão presentes de forma
intermitente ou contínua. O tabagismo é a principal causa, ainda que
outros irritantes inalatórios possam produzir o mesmo
desencadeamento. O evento patológico predominante é um processo
inflamatório das vias respiratórias, com o espessamento mucoso e a
hipersecreção de muco, resultando na obstrução difusa.
ii. Enfisema: condição de alargamento anormal permanente dos espaços
aéreos distais aos bronquíolos terminais, acompanhado pela destruição
das suas paredes sem fibrose evidente. Em contraste com a bronquite
crónica, o defeito patológico primário no enfisema não está dentro das
vias respiratórias, porém mais exatamente nas paredes das unidades
respiratórias, onde a perda do tecido elástico resulta na perda da tensão
de recuo apropriada para apoiar as vias respiratórias durante a
expiração. A dispneia progressiva e a obstrução irreversível
acompanham a destruição do espaço aéreo sem a tosse produtiva
significativa. Além disso, a perda da área de superfície alveolar e a
concomitante perda da camada capilar de troca de gases contribuem
para a hipóxia e a dispneia progressivas. Distinções patológicas e
etiológicas podem ser feitas entre as várias características do enfisema,
porém as apresentações clínicas de todas são muito uniformes.
b. Etiologia e epidemiologia

As DPOC afetam mais de 10 milhões de pessoas nos EUA; a bronquite crónica é o diagnóstico
em aproximadamente 75% dos casos e o enfisema no restante. As taxas de incidência,
prevalência e mortalidade pela DPOC aumentam com a idade e são mais altas entre os homens
caucasianos e pessoas de classe média baixa. O tabagismo permanece como a principal causa
em até 90% dos pacientes com bronquite crónica e enfisema. O risco de DPOC aumenta com a
intensidade do hábito de fumar, quantificada em UMA (unidades maço-ano). No entanto,
apenas 10 a 15% dos fumadores desenvolvem DPOC. As razões para as diferenças na
suscetibilidade à doença são desconhecidas, mas devem incluir fatores genéticos. O fator de
risco mais importante, isolado e identificado, para a evolução da DPOC — diferente do
tabagismo — é a deficiência do inibidor da α1-protease. A sua ausência pode levar ao
surgimento precoce dos primeiros sintomas do enfisema grave. O inibidor da α1-protease é uma
proteína circulante capaz de inibir vários tipos de proteases, incluindo a elastase dos neutrófilos,
que está implicada na génese do enfisema. Mutações autossómicas dominantes, especialmente
em indivíduos do nordeste europeu, produzem níveis séricos e teciduais anormalmente baixos
desse inibidor, alterando o equilíbrio entre a síntese do tecido conjuntivo e a proteólise. Uma
mutação homozigótica (o genótipo ZZ) resulta em níveis de inibidor de 10 a 15% do normal. O
risco de enfisema, particularmente nos fumadores que carregam essa mutação, é
significativamente elevado.
Estudos de base populacional sugerem que a poeira crónica (incluindo sílica e algodão) ou a
exposição a poluentes químicos podem conduzir à DPOC, mas a contribuição destes fatores
parece ser menor, quando comparada com o tabagismo.

c. Fisiopatologia

Bronquite crónica:

Os aspetos clínicos da bronquite crónica podem ser atribuídos à lesão crónica e ao estreitamento
da via respiratória. As principais características patológicas são a inflamação, particularmente
das pequenas vias respiratórias, e a hipertrofia das glândulas mucosas das grandes vias
respiratórias, associadas à elevada secreção de muco, que causa a sua obstrução. A mucosa da
via respiratória está variavelmente infiltrada com células inflamatórias, incluindo leucócitos
polimorfonucleares e linfócitos. A inflamação da mucosa pode estreitar substancialmente o
lúmen brônquico. Como consequência da inflamação crónica, o epitélio colunar
pseudoestratificado ciliado normal é frequentemente substituído pela metaplasia escamosa em
placa. Na ausência do epitélio brônquico ciliado normal, a função de remoção mucociliar está
intensamente diminuída ou completamente abolida. A hipertrofia e a hiperplasia das glândulas
submucosas são características proeminentes, com as glândulas sendo em geral responsáveis
por mais de 50% do espessamento da parede brônquica. A hipersecreção de muco acompanha
a hiperplasia da glândula mucosa, contribuindo para o estreitamento luminal. A hipertrofia do
músculo liso brônquico é comum, e a hipersensibilidade a estímulos broncoconstritores
inespecíficos (incluindo a histamina e a metacolina) podem ser observadas. Os bronquíolos
estão frequentemente infiltrados por células inflamatórias e distorcidos, com fibrose
peribrônquica associada. A impactação de muco e a obstrução luminal das vias respiratórias
menores são frequentemente observadas. Na ausência de quaisquer processos sobrepostos,
como a pneumonia, o parênquima pulmonar de troca gasosa, composto pelas unidades
respiratórias terminais, está significativamente preservado. O resultado dessas mudanças
associadas é a obstrução crónica e a diminuição da remoção das secreções das vias respiratórias.

Na bronquite crónica, a obstrução não-uniforme da via respiratória tem efeitos substanciais na


ventilação e na troca de gases. A obstrução associada ao tempo de expiração prolongado produz
a hiperinsuflação. As alterações das relações ventilação-perfusão incluem áreas com relações
V/Q altas e baixas. Esta última é responsável pela hipoxémia em repouso, mais
proeminentemente observada na bronquite crónica do que no enfisema. O shunt verdadeiro
(perfusão sem ventilação) é incomum na bronquite crónica.

Enfisema:

Acredita-se que o principal evento patológico do enfisema seja o processo destrutivo contínuo
resultante do desequilíbrio entre a lesão oxidante local e a atividade proteolítica
(particularmente elastólica) causada pela deficiência dos
inibidores das protéases. Os oxidantes, sejam endógenos
(aniões superóxido) ou exógenos (p. ex., tabagismo), podem
reprimir a função protetora normal dos inibidores das
proteases, permitindo a destruição progressiva do tecido. Em
contraste com a bronquite crónica, o enfisema não é uma
doença primariamente das vias respiratórias, mas do
parênquima pulmonar circundante. As consequências
fisiológicas são o resultado da destruição das unidades
respiratórias terminais e a perda do leito capilar alveolar e, de
forma importante, das estruturas pulmonares de suporte,
incluindo o tecido conjuntivo elástico. A perda do tecido
conjuntivo elástico gera um pulmão com recoil elástico
diminuído e com complacência aumentada. Na ausência do
recoil elástico normal, o suporte não cartilaginoso normal das vias respiratórias é perdido, e
estabelece-se o colapso expiratório prematuro das vias respiratórias, com sintomas obstrutivos
característicos e achados fisiológicos.

O quadro patológico do enfisema é uma destruição progressiva das unidades respiratórias


terminais ou do parênquima pulmonar distal aos bronquíolos terminais. Caso estejam
presentes, as alterações inflamatórias das vias respiratórias são mínimas, embora possa ser
observada a hiperplasia de algumas glândulas mucosas nas grandes vias respiratórias de
condução. O interstício das unidades respiratórias abriga algumas células inflamatórias, mas a
principal descoberta é a perda das paredes alveolares e o aumento dos espaços aéreos. Os
capilares alveolares também são perdidos, o que pode resultar na diminuição da capacidade
difusora e na hipoxémia progressiva, particularmente com exercícios. A destruição alveolar não
é uniforme em todos os casos de enfisema. Variações anatómicas têm sido descritas com base
no padrão de destruição das unidades respiratórias terminais/ácinos. No enfisema centriacinar,
a destruição é focada no centro da unidade respiratória terminal, com os bronquíolos
respiratórios e os ductos alveolares relativamente poupados. Este modelo é frequentemente
associado ao hábito prolongado de fumar. O enfisema panacinar envolve a destruição global da
unidade respiratória terminal, com a distensão difusa do espaço aéreo. Este padrão é
caracteristicamente, ainda que não unicamente, visto na deficiência do inibidor α1-protease. É
importante observar que a distinção entre esses dois modelos é fortemente patológica; não
existe diferença significativa na apresentação clínica. Um padrão adicional do enfisema, com
importância clínica, é o enfisema bolhoso. As bolhas são grandes espaços aéreos confluentes
formados por uma destruição local maior ou pela distensão progressiva das unidades
pulmonares. Elas são importantes pelo efeito compressivo que podem ter nas áreas pulmonares
circundantes e pelo grande espaço fisiológico morto associado a estas estruturas.

d. Manifestações clínicas

Bronquite crónica:

São o resultado dos processos obstrutivo e inflamatório das vias respiratórias.

1 – Tosse produtiva: a tosse é geradora do catarro espesso e frequentemente purulento, é


secundária à inflamação local em evolução e a alta probabilidade de colonização bacteriana e
infeção. A viscosidade do catarro está significativamente aumentada, como resultado da
presença de DNA livre (de alto peso molecular e bastante viscoso) das células lisadas. Com o
aumento da inflamação e da lesão mucosa, pode ocorrer a hemoptise, mas habitualmente essa
é pouco volumosa. O catarro geralmente não tem odor pútrido, como poderia ser no caso de
infeção anaeróbica, como um abcesso. A tosse, que é bastante eficiente na limpeza normal das
vias respiratórias, não é mais eficiente devido ao estreito calibre das vias respiratórias e ao
grande volume e viscosidade das secreções.

2 – Sibilos: o estreitamento persistente das vias respiratórias e a obstrução por muco podem
produzir sibilos localizados ou difusos. Eles podem responder aos broncodilatadores,
representando um componente reversível da obstrução.

3 - Ruídos inspiratórios e expiratórios rudes: a produção aumentada de muco, junto com a


função mucociliar ascendente defeituosa, deixa secreções em excesso nas vias respiratórias,
mesmo com a tosse aumentada. Eles são ouvidos proeminentemente nas grandes vias
respiratórias durante a respiração ofegante ou com a tosse.

4 - Exame cardíaco: a taquicardia é comum, especialmente nas exacerbações da bronquite ou


na hipoxémia. Se a hipoxémia for significativa e crónica, pode resultar na hipertensão pulmonar;
o exame cardíaco revela um som proeminente de encerramento da válvula pulmonar (P2) ou
uma pressão venosa jugular elevada e um edema periférico devido à insuficiência cardíaca
direita.

5 – Imagem: os achados típicos do RX tórax incluem o aumento dos volumes pulmonares, com
diafragmas relativamente deprimidos, compatível com a hiperinsuflação. São comuns as
proeminentes linhas paralelas de reflectância diminuída das paredes brônquicas espessadas. A
área cardíaca pode estar aumentada, sugerindo a sobrecarga de volume da aurícula direita. As
artérias pulmonares proeminentes são comuns e consistentes com a hipertensão pulmonar.

6 - Testes da função pulmonar — a obstrução difusa das vias respiratórias é demonstrada no


teste da função pulmonar como uma redução global no fluxo e no volume expiratórios. As taxas
FEV1, CVF e o FEV1/CVF estão todas reduzidas. A curva de fluxo-volume expiratório mostra uma
limitação substancial do fluxo. Alguns pacientes podem responder aos broncodilatadores. A
medição do volume pulmonar revela um aumento no VR e no CFR, refletindo ar preso nos
pulmões como resultado da obstrução difusa e do encerramento prematuro das vias
respiratórias com grandes volumes pulmonares. A DlCO é normal, refletindo a preservação do
leito capilar alveolar.

7 - Gases do sangue arterial — a dissociação ventilação-perfusão é comum na bronquite crónica.


O A–a ∆PO2 está elevado e a hipoxémia é comum, principalmente por causa das significativas
áreas com baixas relações V /Q (shunt fisiológico); a hipoxémia em repouso tende a ser mais
intensa do que no enfisema. Com o aumento da obstrução, são observados os aumentos da
PCO2 (hipercapnia) e da acidose respiratória, com alcalose metabólica compensatória.

8 – Policitemia: a hipoxémia crónica está associada a um aumento variável do hematócrito


mediado pela eritropoietina. Com a hipoxia mais grave e prolongada, o hematócrito deve
aumentar para bem mais de 50%.

Enfisema:

Apresenta-se como uma doença não inflamatória manifestada pela dispneia, pela obstrução
progressiva irreversível das vias respiratórias e pelas anormalidades nas trocas gasosas,
particularmente durante o exercício.
1 - Ruídos respiratórios: tipicamente, os ruídos respiratórios são menos intensos no enfisema,
refletindo a diminuição do fluxo de ar, o prolongamento do tempo expiratório e a significativa
hiperinsuflação pulmonar. Os sibilos, quando presentes, são de baixa intensidade. Os ruídos das
vias respiratórias, incluindo as crepitações e os roncos, são incomuns na ausência de um
processo sobreposto como a infeção.

2 - Exame cardíaco: como na bronquite crónica, a taquicardia pode estar presente,


especialmente nas exacerbações ou na hipoxémia. A hipertensão pulmonar é uma
consequência comum da constrição dos vasos pulmonares e da hipoxémia. O exame cardíaco
pode revelar o encerramento da válvula pulmonar ressaltada (P2 exacerbado) ou pressão
venosa jugular elevada e edema periférico, resultantes da insuficiência cardíaca direita.

3 – Imagem: a hiperinsuflação é comum, com hemidiafragmas planificados e diâmetro ântero-


posterior do tórax aumentado. A destruição do parênquima produz marcas vasculares
periféricas do pulmão atenuadas, frequentemente com dilatação da artéria pulmonar proximal,
como resultado de hipertensão pulmonar secundária. Também podem ser observadas
alterações císticas ou bolhosas.

4 - Provas de função pulmonar: a destruição do parênquima pulmonar e a perda do recoil


elástico são causas fundamentais das anormalidades observadas na função pulmonar. A perda
do recoil elástico no tecido pulmonar que suporta as vias respiratórias resulta no aumento da
compressão dinâmica dessas vias, especialmente durante a expiração forçada; todas as taxas de
fluxo são reduzidas. Com o colapso prematuro da via respiratória, a FEV1, CVF e o FEV1/CVF são
reduzidos. Como na bronquite crónica e na asma, a curva fluxo-volume expiratório mostra uma
substancial limitação no fluxo. O prolongamento do tempo expiratório, o fechamento
prematuro da via respiratória, causados pela perda do recoil elástico, e as consequentes
retenções de ar produzem aumentos na VR e na CFR. A CPT está aumentada, ainda que
frequentemente uma quantidade substancial desse aumento advenha da retenção de gás nas
unidades pulmonares com comunicação precária, ou sem comunicação, incluindo as bolhas.
Geralmente, a DlCO está diminuída, de forma proporcional à extensão do enfisema, refletindo
a perda progressiva dos alvéolos e dos seus leitos capilares.

5 - Gasimetria arterial: o enfisema é a doença de destruição da parede alveolar. A perda dos


capilares alveolares cria áreas de alta relação ventilação-perfusão. Caracteristicamente, os
pacientes com enfisema adaptar-se-ão às elevadas taxas de V/Q, pelo aumento da sua
ventilação-minuto. Eles podem manter níveis de PO2 e PCO2 próximos do normal, apesar da
doença avançada. O exame da gasimetria invariavelmente revela um aumento da A–a ∆Po2.
Com o agravamento da doença e da perda posterior da perfusão capilar, a DlCO diminui,
levando à dessaturação da hemoglobina, inicialmente relacionada aos exercícios e
posteriormente ao repouso. Nos casos graves da doença, a hipercapnia, a acidose respiratória
e a alcalose metabólica compensatória são comuns.

6 – Policitemia: como na bronquite crónica, a hipoxemia crónica está frequentemente associada


a um hematócrito elevado.
A DPOC caracteriza-se por obstrução crónica ao fluxo de ar; assim, as provas de função
pulmonar são essenciais para o diagnóstico. A obstrução ao fluxo de ar é determinada por
uma relação reduzida do volume expiratório forçado em 1s (FEV1) para a capacidade vital
forçada (CVF). Entre os indivíduos com uma relação FEV1/CVF reduzida, a gravidade da
obstrução ao fluxo de ar é determinada pelo nível de redução do FEV1:

A DPOC é um distúrbio progressivo, mas o ritmo de perda de função pulmonar sofre redução
significativa com bastante frequência caso haja cessação tabágica. Nos indivíduos saudáveis,
o FEV1 alcança o pico vital por volta dos 25 anos de idade, entra numa fase de plateau e
diminui de modo gradual e progressivo. Os indivíduos podem desenvolver DPOC por
sofrerem uma redução na função pulmonar máxima alcançada, por uma fase de plateau
encurtada ou por um declínio acelerado da função pulmonar.

Os sintomas ocorrem com frequência somente quando a DPOC se encontra numa fase
avançada; assim, para a identificação precoce, torna-se necessária a realização de um teste
espirométrico. A PaO2 mantém-se quase normal até que o FEV1 tenha caído para < 50% do
valor previsto. A hipercapnia e a hipertensão pulmonar são mais comuns quando o FEV1 caiu
para < 25% do valor previsto.

Os pacientes com DPOC com valores semelhantes de FEV1 podem apresentar variação
acentuada nos sintomas respiratórios e na deterioração funcional. Com frequência, a DPOC
inclui períodos com sintomas respiratórios mais acentuados, como dispneia, tosse e
produção de muco, conhecidos como exacerbações, desencadeadas com frequência por
infeções respiratórias bacterianas e/ou virais, e que se tornam mais comuns à medida que
aumenta a gravidade da DPOC.

Doença pulmonar restritiva: fibrose pulmonar idiopática

O termo “doença pulmonar parenquimatosa difusa”


denota uma ampla gama de processos pulmonares,
alguns com causa desconhecida, cuja característica
comum é a infiltração de células inflamatórias e a
cicatrização do parênquima pulmonar. A
consequência comum desses diversos processos
patológicos é a fibrose pulmonar disseminada,
produzindo o aumento do recoil elástico e a diminuição da complacência pulmonares, que
conhecemos como doença pulmonar restritiva. A doença pulmonar parenquimatosa difusa é
frequentemente referida como uma doença pulmonar intersticial, porém o adjetivo
“intersticial” é uma caracterização inadequada do processo fisiopatológico. O interstício
pulmonar é um espaço anatómico ligado às membranas basais do epitélio e do endotélio, e
normalmente contém células mesenquimatosas (p. ex., fibroblastos), moléculas de matriz
extracelular (p. ex., colagénio, elastina e proteoglicanos), e poucos leucócitos, incluindo os
mastócitos e os linfócitos. As também chamadas doenças intersticiais pulmonares não estão
caracteristicamente restritas ao interstício anatómico, mas também envolvem a inflamação do
epitélio alveolar e da mucosa da via respiratória condutora. A fibrose resultante está geralmente
presente através do parênquima, com efeitos globais na estrutura e função pulmonares. O
processo patológico e as consequências fisiológicas observadas na fibrose pulmonar idiopática
são típicas de outras causas ou da doença pulmonar parenquimatosa difusa, particularmente
nos seus estágios avançados.

Apresentação clínica

A fibrose pulmonar idiopática, também conhecida como fibrose intersticial pulmonar ou


alveolite fibrosante criptogénica, é uma doença incomum de causa desconhecida, marcada pela
inflamação crónica das paredes alveolares e resultando na fibrose grave, difusa e progressiva,
e na destruição da arquitetura normal do pulmão. Esse processo produz não somente um
defeito restritivo, com a ventilação alterada e aumento no trabalho de respiração, como
também lesões vasculares destrutivas e obstrutivas que podem prejudicar gravemente a
perfusão e a troca gasosa normais.

A apresentação usual da fibrose pulmonar idiopática é com o início gradual não-aparente de


dispneia progressiva, geralmente acompanhada por uma tosse seca e persistente. Estão
geralmente ausentes a febre e a dor no peito. Com o progresso da doença, a dispneia
geralmente piora e ocorre até mesmo durante o período de repouso. Em geral, são observados
a cianose e o baqueteamento digital. Nos estágios mais avançados da doença, a hipertensão
pulmonar aumenta, podendo levar à insuficiência cardíaca direita e ao edema periférico.

Etiologia e epidemiologia

A fibrose pulmonar idiopática apresenta-se tipicamente da quinta à sétima décadas de vida, com
uma leve predominância masculina. Não há nenhum agente causador conhecido. Muitas
exposições ambientais e doenças sistémicas específicas podem produzir um modelo clínico
semelhante, se não idêntico, àquele observado na fibrose pulmonar idiopática. É importante
considerar causas alternativas quando da avaliação de um paciente com doença pulmonar
parenquimatosa difusa, porque podem alterar a avaliação ou as opções de tratamento. Uma
forma familiar da fibrose pulmonar foi descrita, mas é incomum; os casos típicos não parecem
ter base genética.

Fisiopatologia

A agressão primária que leva à resposta fibrótica é desconhecida. Existe, no entanto, uma série
de eventos celulares comuns que medeiam e regulam o processo inflamatório e a resposta
fibrótica. Esse conjunto de eventos inclui (1) lesão inicial do tecido; (2) lesão e ativação
vasculares, com aumento da permeabilidade, transudação de proteínas do plasma para dentro
do espaço extravascular, associado à trombose e à trombólise em graus variados; (3) lesão e
ativação do epitélio, com a perda da integridade da barreira, e a libertação de mediadores pró-
inflamatórios; (4) aumento da aderência dos leucócitos para ativar o endotélio, com o trânsito
de leucócitos ativados para dentro do interstício; e (5) processos contínuos de lesão e reparação
caracterizados por alterações das populações celulares e aumento da produção da matriz.
A ocorrência fisiopatológica inicial na fibrose pulmonar idiopática é a lesão e a ativação do
epitélio e do endotélio alveolar. As células tipo I do epitélio são perdidas e substituídas pelas
células proliferativas tipo II. As células epiteliais das vias respiratórias participam do
recrutamento e da ativação das células inflamatórias, incluindo os neutrófilos e os linfócitos,
mediados por citocinas. O recrutamento e a ativação, tanto dos neutrófilos como dos linfócitos,
também são mediados pela lesão e ativação do endotélio vascular; isso ocorre através da ação
coordenada de múltiplas citocinas e a exibição de um repertório específico de moléculas de
adesão celular, tanto nas células endoteliais, como nos leucócitos específicos. Os fibroblastos
também são ativados por essas citocinas pró-inflamatórias, com proliferação no interstício, na
submucosa e no lúmen alveolar. Os fibroblastos servem a uma função dupla, ampliando os
eventos inflamatórios locais através de libertação de citocinas, enquanto produzem as
moléculas-matrizes, incluindo o colagénio, envolvido na fibrose tecidual. A perpetuação desse
modelo de ativação e proliferação do fibroblasto — e elevado depósito de matriz tecidual —
ocorre sob a influência das células inflamatórias. Essas incluem não apenas os linfócitos,
macrófagos alveolares e neutrófilos, como também os mastócitos residentes e os eosinófilos, os
quais estão aumentados em graus variados.

O processo de lesão e cicatrização pulmonar não é uniforme e sincronizado. A doença é um


processo caracteristicamente não-homogéneo, com áreas de lesões intensas e fibrose,
frequentemente misturadas com pulmão relativamente poupado. Nos estágios iniciais da
doença, a infiltração das estruturas alveolares pelos leucócitos acompanha as placas de
hiperplasia epitelial tipo II nos alvéolos. A destruição do epitélio alveolar normal também causa
mudanças significativas na produção e na reciclagem do surfactante, com um acréscimo na
tensão superficial alveolar nas unidades pulmonares afetadas. Isso é seguido pelo aumento dos
leucócitos teciduais, pela proliferação de fibroblastos e pelo aumento da formação de cicatrizes.
Os linfócitos — predominantemente as células T — e os mastócitos são encontrados em número
significativamente elevado nas regiões do interstício alveolar e na submucosa. O depósito de
colagénio e de elastina estão bastante aumentados. Depois é observada a destruição alveolar
progressiva, com grandes áreas de fibrose e espaços residuais delineados pelo epitélio cubóide;
isso aparece nas radiografias como uma colmeia. Com essa destruição alveolar, o leito vascular
acompanhante fica obstruído, também com um padrão em placa. Esse padrão de lesão
pulmonar produz uma alteração fisiológica que inclui o aumento do recuo elástico e a
diminuição da complacência pulmonares, a alteração da troca gasosa e as anormalidades
vasculares pulmonares.

Manifestações clínicas

Sinais e sintomas

1. Tosse — com as distorções brônquicas e bronquiolares que acompanham a lesão


fibrótica das unidades respiratórias terminais, ocorre a irritação crónica das vias
respiratórias, produzindo a tosse crónica. Ainda que as células epiteliais possam estar
lesadas, a hipersecreção de muco e a tosse produtiva não são observadas.
2. Dispneia e taquipneia — com a fibrose do parênquima pulmonar, bem como com uma
diminuição dos efeitos normais dos surfactantes, uma maior pressão de distensão é
necessária para a inspiração. Os estímulos aumentados das fibras C nas paredes
alveolares fibróticas ou nos recetores elásticos na parede torácica podem sentir o
aumento da força necessária para insuflar os pulmões menos complacentes. A
diminuição do leito capilar e o espessamento da membrana capilar alveolar contribuem
para a limitação da difusão e aumento da hipoxemia com o exercício. Na doença grave,
a troca de gás alterada com a dissociação da relação V/Q pode produzir hipoxia, até
mesmo durante o repouso. A taquipneia é a consequência da hipóxia e do aparente
aumento de condução dos estímulos dos recetores sensoriais do pulmão. Um padrão
respiratório rápido e superficial reduz o trabalho ventilatório em face do aumento do
recuo elástico do pulmão.
3. Fervores inspiratórios — os fervores inspiratórios difusos, finos e secos são comuns e
refletem a abertura sucessiva, na inspiração, das unidades respiratórias que estão
colapsadas devido à fibrose e à perda do surfactante normal.
4. Baqueteamento digital — o baqueteamento digital das mãos e dos pés é uma
descoberta comum, mas de causa desconhecida. Não existe nenhuma ligação
estabelecida com qualquer variável fisiológica específica, incluindo a hipoxemia.
5. Exame cardíaco — assim como a hipoxemia secundária a outras causas, o exame
cardíaco pode revelar evidências de hipertensão pulmonar com o aumento do som de
encerramento da válvula pulmonar (S2). Isso pode ser acompanhado pela sobrecarga
ou descompensação cardíaca direita, com pressão venosa jugular elevada, sopro da
regurgitação tricúspide, ou S3 no lado direito do coração.

Imagem

Os achados radiográficos característicos são a diminuição do volume pulmonar, com o aumento


da densidade, mais proeminente na periferia do pulmão. A fibrose circundante aos pequenos
espaços aéreos que se expandiram é vista como uma colmeia. Com a hipertensão pulmonar, as
artérias pulmonares centrais ficam aumentadas, enquanto a destruição vascular periférica
produz rápida atenuação dos vasos fora das regiões hilares.

Provas da função pulmonar

A fibrose pulmonar produz caracteristicamente um modelo restritivo,


com a redução da CPT, do FEV1, e do CVF, enquanto mantém uma
preservada ou até mesmo aumentada taxa FEV1/CVF (VEF1%). O
recuo elástico aumentado produz taxas de fluxo respiratório de
normais a elevadas quando ajustadas para o volume do pulmão. Na
fibrose pulmonar, o DlCO é progressivamente reduzido, em função
da obstrução fibrótica dos capilares pulmonares.

Gasimetria arterial

A hipoxemia é comum na fibrose pulmonar e resulta de um aumento


fisiológico do espaço morto e uma ventilação-minuto relativamente fixa. Isso conduz a um
aumento das áreas com dissociações V/Q tanto reduzidas, como aumentadas. A diminuição da
difusão piora de acordo com a gravidade da fibrose; esse é um fator contribuinte significativo
para a dessaturação induzida pelo exercício, porém leva menos frequentemente à hipoxia em
repouso, exceto na doença grave. O débito cardíaco elevado durante o exercício reduz o tempo
de trânsito do sangue através dos leitos capilares alveolares, aumentando a limitação da carga
de oxigénio para a hemoglobina. A PCO2 arterial também está reduzida como consequência da
ventilação aumentada sob os estímulos da hipoxia e da fibrose pulmonar. A PaCO2 aumenta
acima do normal apenas nos estágios avançados da doença ou durante exercícios, quando o
elevado recuo elástico pulmonar e o trabalho de respiração impedem a ventilação adequada. A
hipercapnia é um sinal grave, implicando na inabilidade de manter a ventilação alveolar
adequada em razão do elevado Vd/Vt ou do excesso de trabalho na respiração.
Anemias

Hematopoiese

O sistema hematopoiético inclui a


medula óssea, o fígado, o baço, os
gânglios linfáticos e o timo.

Os eritrócitos sobrevivem durante 120


dias, as plaquetas durante 7 dias e os
granulócitos por 7h, sendo que a
produção de cerca de 1013 células
mieloides (todas as células do sangue
exceto os linfócitos) por dia num
indivíduo saudável requere uma
regulação de acordo com as
necessidades do corpo.

Na infância e na vida adulta, a medula


óssea é a única fonte de células sanguíneas numa pessoa saudável. Depois do nascimento, a
hematopoiese está presente na medula de praticamente todos os ossos. À medida que a criança
cresce, a medula vermelha ativa vai sendo gradualmente substituída por gordura (medula
amarela), pelo que a hematopoiese no adulto ocorre apenas no esqueleto central e nas epífises
dos ossos longos, apenas se aumentar a necessidade de células sanguíneas é que as áreas de
medula óssea vermelha aumentam. Processos patológicos que interfiram com a hematopoiese
podem resultar em retorno da atividade hematopoiética no fígado e baço → hematopoiese
extramedular.

Todas as células sanguíneas derivam de células estaminais pluripotentes, que são suportadas
por células estromais, que também influenciam a hematopoiese. As células estaminais
apresentam 2 propriedades – autorrenovação, e a sua proliferação e diferenciação em células
progenitoras, comprometidas com uma linhagem celular específica.

Existem 2 linhagens celulares principais derivadas da célula estaminal pluripotente: a linhagem


linfocitária (que dá origem a células T e B) e a linhagem mieloide (dá origem a células não-
linfocitárias). A célula estaminal mieloide origina o progenitor CFU-GEMM (colony-forming unit,
granulocyte-erythrocyte-monocyte-megakaryocyte). Este origina CFU-GM (que dá neutrófilos,
monócitos e células dendríticas), CFU-Eo (que dá eosinófilos) e CFU-Meg (que dá megacariócitos
– plaquetas), que originam um tipo específico de célula sob condições de crescimento
apropriadas. A hematopoiese encontra-se sob o controlo de fatores de crescimento e inibidores,
sendo que o microambiente da medula óssea também apresenta um papel na regulação.

Fatores de crescimento hematopoiético

São glicoproteínas que regulam a diferenciação e a proliferação de células progenitoras


hematopoiéticas e a função de células sanguíneas maduras. Atuam na superfamília de recetores
de citocina, expressos nas células hematopoiéticas em vários estádios de desenvolvimento,
permitindo manter as células progenitoras hematopoiéticas e estimular o aumento da produção
de uma ou mais linhagens celulares em resposta a estímulos como a hemorragia ou infeção.

Incluem:
• Eritropoietina
• IL-3
• IL-6
• IL-7
• IL-11
• IL-12
• Β-catenina
• SCF (stem cell factor)
• Fms-tirosina cinase 3 (Flt3)

A sua ligação aos recetores de


superfície estimula a atividade da JAK
citoplasmática, o principal fator de
transdução, que ativa a tirosina
cinase, resultando na ativação génica
no núcleo. Os CSFs (colony-
stimulating factors), bem como as
interleucinas e a eritropoietina,
regulam as células progenitoras
comprometidas com uma determinada linhagem.

A trombopoietina (que, tal como a eritropoietina, é produzida nos rins e também no fígado)
controla a produção de plaquetas, em conjunto com a IL-6 e a IL-11. Para além destes fatores
que estimulam a hematopoiese, outros inibem o processo, incluindo o TNF e o TGF-β. Muitos
destes fatores de crescimento são produzidos por células T ativadas, monócitos e células
estromais da medula óssea, como fibroblastos, células endoteliais e macrófagos, que também
estão envolvidas na resposta inflamatória.

Sangue periférico

Vários índices derivam da medição da concentração de hemoglobina (Hb) e do nº e tamanho de


eritrócitos, leucócitos e plaquetas:

• VGM (volume globular médio) dos eritrócitos é um índice utilizado para classificar
anemias
• RDW (red cell distribution width): quando está elevado sugere variação no tamanho dos
eritrócitos (anisocitose), o que é visto em deficiência em ferro. Na β-talassémia, o RDW
geralmente está normal.
• Contagem de glóbulos brancos
• Reticulócitos: são glóbulos vermelhos imaturos, que geralmente representam <2% do
total de eritrócitos. A contagem de reticulócitos demonstra a atividade eritrocitária da
medula óssea. Uma contagem aumentada é verificada no aumento da maturidade da
medula (depois de hemorragia ou hemólise e durante resposta a tratamento com um
determinado hematínico). A diminuição da contagem na presença de anemia indica uma
resposta inapropriada da medula óssea e pode ser vista na falência da medula óssea
(por qualquer causa) ou quando há uma deficiência num hematínico.
• Velocidade de sedimentação: velocidade de deposição de eritrócitos numa coluna de
sangue. É uma medida de resposta de fase aguda. O processo patológico pode ser
imunológico, infecioso, isquémico, maligno ou traumático. Uma velocidade de
sedimentação aumentada reflete um aumento na concentração plasmática de grandes
proteínas, como o fibrinogénio e imunoglobulinas. Estas proteínas causam o
“empilhamento” dos eritrócitos, que se depositam mais rápido. A velocidade de
sedimentação também aumenta com a idade, e é mais elevada nas mulheres do que
nos homens.

Eritropoiese

Os percursores dos eritrócitos passam por vários estádios na


medula óssea. As primeiras células morfologicamente
reconhecíveis são os pronormoblastos. Os normoblastos
(mais pequenos) resultam de divisões celulares, sendo que
os percursores, em cada estadio, apresentam
progressivamente menos RNA e mais Hb no citoplasma. O
núcleo torna-se mais condensado e é perdido, sendo assim
que o normoblasto passa a reticulócito.

• Os reticulócitos contêm RNA ribossomal residual e


ainda são capazes de sintetizar Hb. Eles
permanecem na medula durante 1-2 dias
e são libertados para a circulação, onde
perdem o seu RNA e se tornam em
eritrócitos após 1-2 dias. Os eritrócitos
são discos bicôncavos não-nucleados
• Os normoblastos (que são nucleados) não
estão normalmente presentes no sangue
periférico, mas estão presentes se existir
hematopoiese extramedular e em alguns
distúrbios da medula óssea.
• Cerca de 10% dos eritroblastos morrem na medula óssea mesmo durante a eritropoiese
normal. Esta ineficácia é muito aumentada em certas anemias, como a talassémia major
e a anemia megaloblástica.
• A eritropoietina é a hormona que controla a eritropoiese. Na sua ausência, as células
sofrem apoptose. É produzida nas células peritubulares dos rins (90%) e no fígado (10%).
A sua produção é regulada principalmente pela pressão de oxigénio no tecido. A sua
produção aumenta em hipoxia devida a qualquer causa, por ex. anemia ou doença
cardíaca ou pulmonar. O HIF-1 (hypoxia-inducible factor 1) é um fator de transcrição
que se liga ao elemento de resposta à hipoxia presente no gene da eritropoietina. A
eritropoietina estimula o aumento na proporção de células estaminais percursoras
comprometidas com a eritropoiese, e as CFU-E são estimuladas a proliferar e
diferenciar. O aumento inapropriado de eritropoietina ocorre em certos tumores como
no carcinoma de células renais.

Como fatores estimuladores da função eritropoiética temos:

• Eritropoietina
• IL-3
• GM-CSF

Como fatores inibitórios da função eritropoiética temos:

• TGF-β
• IL-1α
• IL-1β
• IL-2
• IL-6
• IFNγ
• TNFα

É de notar que a ação das citocinas inflamatórias (TGF β,


interleucinas, interferão) explica como, em situações de doença
inflamatória ou infeciosa, ocorre depressão da eritropoiese,
diminuindo o número de glóbulos vermelhos e havendo
tendência para anemia.

Síntese de hemoglobina

A Hb é responsável por transportar o O2 dos pulmões para os


tecidos e o CO2 dos tecidos para os pulmões. A HbA apresenta
2 cadeias α e 2 cadeias β (α2β2), e representa cerca de 97% da
Hb no adulto. A HbA2 (α2δ2) e a HbF (α2γ2) correspondem a
3,2% e <1%, respetivamente.

A síntese de Hb ocorre na mitocôndria de glóbulos vermelhos


em desenvolvimento. A principal etapa limitante da formação
de Hb é a conversão de glicina e ácido succínico em δ-ALA
(ácido aminolevulínico) pela ALA sintase. A vitamina B6 é a
coenzima desta reação, que é inibida pelo heme e estimulada
pela eritropoietina. 2 moléculas de δ-ALA condensam-se para
formar um anel de porfobilinogénio. Os anéis são agrupados
em 4 para produzir protoporfirinas, e com a adição de ferro
forma-se o heme. O heme depois é inserido nas cadeias de
globina para formar uma molécula de hemoglobina.

Função da hemoglobina

A forma bicôncava dos eritrócitos proporciona uma grande


área de superfície para a captura e libertação de O2 e CO2. A
Hb fica saturada com O2 nos capilares pulmonares onde a
pressão parcial de O2 é elevada, tendo a Hb elevada afinidade
para o O2; o O2 é libertado nos tecidos onde a pressão parcial
de O2 é baixa, tendo a Hb menor afinidade para o O2.

Na molécula de Hb adulta, o grupo heme encontra-se ligado


a cada uma das 4 cadeias de globina; o grupo heme contém
um anel de porfirina com um átomo ferroso que se consegue
ligar reversivelmente a uma molécula de O2. A molécula de
Hb existe em 2 conformações, R e T. A conformação T da
desoxihemoglobina é caracterizada pelas unidades de globina
unidas firmemente por ligações electroestáticas. Estas
ligações são quebradas quando o O2 se liga à Hb, resultando
na conformação R, na qual os restantes locais de ligação do
O2 estão mais expostos e têm maior afinidade para o O2 do
que a conformação T. A ligação de uma molécula de O2 à desoxihemoglobina aumenta a
afinidade dos restantes locais de ligação ao O2 → esta propriedade é conhecida como
cooperatividade e é a razão da forma sigmoide da curva de dissociação da Hb. A Hb é, portanto,
uma proteína alostérica (a ligação e a libertação do oxigénio são reguladas por mudanças na
estrutura provocadas pela própria ligação do oxigénio ao grupo heme).

A ligação do O2 pode ser influenciada por iões hidrogénio, CO2 e 2,3-bifosfoglicerato (2,3-BPG):
os iões H+ e o CO2 reduzem a afinidade da ligação do O2 à Hb (efeito Bohr), enquanto a
oxigenação da Hb reduz a sua afinidade para o O2 (efeito Haldane) → estes efeitos ajudam nas
trocas de O2 e CO2 nos tecidos.

O metabolismo dos glóbulos vermelhos produz 2,3-BPG a partir da glicólise. O 2,3-BPG acumula-
se porque é sequestrado ao ligar-se à desoxihemoglobina. A ligação de 2,3-BPG estabiliza a
conformação T e reduz a sua afinidade para o O2. A P50 é a pressão parcial de O2 na qual a
saturação da hemoglobina é 50%. A P50 aumenta com as concentrações de 2,3-BPG (que
aumenta quando a disponibilidade de O2 está reduzida devido a hipoxia ou anemia) e com o
aumento da temperatura corporal.

Quando a limitação primária de transporte de O2 é na periferia (exercício físico intenso, anemia),


a P50 aumenta para aumentar o unloading de O2. Quando a limitação primária está nos pulmões
(doença pulmonar, altitude elevada), a P50 diminui para aumentar o loading de O2.

ANEMIA

Definição: “Diminuição da hemoglobina para níveis que comprometam a oxigenação dos tecidos
(nível de Hb < 13g/dL no sexo masculino e < 12 g/dL no sexo feminino)” – OMS.

As alterações na Hb podem ocorrer como resultado de alterações no volume plasmático – uma


redução do volume plasmático leva a uma falsa Hb elevada, o que acontece na desidratação e
na policitémia aparente. Um aumento no volume plasmático produz uma falsa anemia, mesmo
quando combinado com um pequeno aumento no volume de eritrócitos, como acontece na
gravidez.

Existem indicadores para a definição de anemia e esses são:

• Valor da hemoglobina no sangue (Hb): é o parâmetro mais utilizado para definir


anemia. O seu valor absoluto varia com a idade e com o sexo. Adultos do sexo masculino
têm geralmente valores mais elevados do que adultos do sexo feminino. Abaixo dos
valores tabelados, estamos perante um quadro de anemia. Acima, o doente apresenta
policitémia.
• Hematócrito (Htc)
o É a percentagem do volume que é
ocupado pelos glóbulos vermelhos no
total do sangue.
o Nos países anglo-saxónicos dá-se mais
valor a este indicador do que à
hemoglobina. No entanto, enquanto
indicador que permite a definição de
anemia, este mostra-se menos fiável
do que o valor de hemoglobina.
o Quando há anemia, habitualmente, há também diminuição do número de
glóbulos vermelhos, logo, ocorre uma diminuição percentual do volume que é
ocupado pelos glóbulos vermelhos. Contudo, em situações especiais, pode
haver diminuição do hematócrito sem que haja diminuição real do volume dos
glóbulos vermelhos, como ocorre na gravidez ou na esplenomegália acentuada,
em que se dá aumento do volume plasmático (hemodiluição). Nestas situações,
o volume percentual ocupado pelos glóbulos vermelhos diminui, mas o número
de eritrócitos mantém-se, ou seja, a redução do hematócrito não constitui
diminuição da capacidade de transporte de oxigénio pelo organismo.
• Volume Globular Médio (VGM)

Os vários tipos de anemia, classificados de acordo com o VGM, são:

• Anemia microcítica - VGM diminuído


(os glóbulos vermelhos tendem a
diminuir de tamanho para se
adaptarem a deficiências na síntese de
hemoglobina)
• Anemia normocítica - VGM normal (a
quantidade de hemoglobina por
eritrócito está mantida, contudo, existe diminuição do número de eritrócitos)
• Anemia macrocítica – VGM aumentado (a quantidade de hemoglobina por eritrócito
esta mantida, contudo, o processo de mitose não ocorre devidamente)

Mecanismos de adaptação

A quantidade de O2 que é fornecida aos tecidos é


regulada por:

• Fração inspiratória de O2 (pode estar


diminuída em altitude ou em situação de
doença pulmonar)
• Volémia
• Quantidade de hemoglobina
• Qualidade da hemoglobina (por exemplo, nas
hemoglobinopatias existe alteração da afinidade para o oxigénio)

Qualquer alteração nestes fatores desencadeia respostas compensatórias no organismo. Em


situações de anemia, a adaptação acontece através de mecanismos intra-eritrocitários e de
adaptação geral do organismo.

Mecanismos intra-eritrocitários

Nas anemias crónicas, ocorre um mecanismo de


adaptação do glóbulo vermelho à baixa de
oxigénio. O aumento na produção de 2,3-
bifosfoglicerato pelo eritrócito consegue
aumentar a eficiência da entrega de oxigénio aos
tecidos, fazendo com que a curva se desloque para
a direita.

Adaptação geral
A anemia, devido a fenómenos de hipóxia, vai responder levando a mecanismos de adaptação
tais como:

• Ativação de sensores ao nível das células peritubulares renais – leva a aumento da


eritropoietina, com aumento concomitante da produção de eritrócitos.
• Ativação de quimioreceptores que vão ativar o sistema nervoso autónomo simpático
provocando vasoconstrição periférica e aumento do cronotropismo e inotropismo
cardíaco, aumentando o débito cardíaco → alteração da função cardíaca pode tornar-
se causa de insuficiência cardíaca de alto débito

Apresentação clínica

Os pacientes com anemia podem ser


assintomáticos. Quando existe uma hemorragia
rápida, podem ocorrer sintomas mais severos,
particularmente em idosos.

Assim, existem fatores que podem condicionar o


quadro clínico de anemia, tais como:

• A gravidade da própria anemia


• A rapidez de instalação da anemia: quando
esta é aguda a ativação do sistema
cardiovascular é muito mais importante
que quando é crónica. Nas anemias crónicas vai-se desenvolvendo tolerância, o que
permite que indivíduos com 5-6 g de hemoglobina permaneçam quase assintomáticos.
• A idade
• A coexistência de outras patologias pode agravar ou esconder as manifestações e a
gravidade do quadro clínico.

No que toca às manifestações clínicas da anemia, por um lado, vão surgir manifestações que
estão dependentes da diminuição do transporte de oxigénio aos tecidos como o cansaço e a
astenia.

Por outro lado, a ativação do SN simpático vai ser responsável por outras manifestações como
as palpitações, o choque de ponta mais impulsivo e o sopro sistólico. Esta ativação pode
conduzir a insuficiência cardíaca de alto débito, com as suas manifestações típicas como
retenção de água e sal e edema.

Algumas das manifestações gerais da anemia são:

• Choque hipovolémico (se a causa de anemia for hemorragia aguda e maciça)


• Taquicardia
• Astenia
• Palidez (devido à vasoconstrição periférica e à redução de hemoglobina no sangue)
• Palpitações (devido ao aumento da frequência cardíaca)
• Diminuição da tolerância ao exercício
• Dispneia de esforço
• Cefaleias
• Choque de ponta impulsivo
• Sopro holossistólico ao nível da válvula aórtica (devido ao aumento do volume sistólico)
• Insuficiência cardíaca de alto débito (em casos de anemia extrema e prolongada)
• Agravamento de angina pectoris (se esta já existir de antemão)
• Icterícia (se a causa de anemia for hemólise)
• Esplenomegália (se a causa de anemia for hemólise)

Existem sinais específicos de cada tipo de anemia.

Análises

Sangue periférico

Uma Hb baixa deve ser avaliada juntamente com:

• Índices eritrocitários
• Contagem de leucócitos
• Contagem de plaquetas
• Contagem de reticulócitos (indica a atividade da medula óssea)
• Esfregaço de sangue, uma vez que a morfologia dos eritrócitos pode indicar o
diagnóstico. Quando se observam 2 populações de eritrócitos diferentes, diz-se que o
esfregaço é dimórfico, o que pode ser visto quando os doentes têm “deficiências duplas”
(combinação de deficiência em ferro e em ácido fólico, ou após tratamento de doentes
anémicos com um hematínico apropriado)

Medula óssea

A análise da medula óssea é usada para investigar as


anormalidades encontradas no sangue periférico.

Analisa-se:

• Celularidade da medula
• Tipo de eritropoiese (normoblástica ou
megaloblástica)
• Celularidade das várias linhagens celulares
• Infiltração da medula – presença de células não
hematopoiéticas como células cancerígenas
• Reservas de ferro

Fisiopatologia

Podemos classificar as anemias em 3 tipos:

• Anemia por diminuição da produção dos glóbulos vermelhos (medula óssea não
responde ao estímulo eritropoiético)
• Anemia hemolítica em que há aumento da destruição precoce dos glóbulos vermelhos
• Anemia por perda de sangue:
o Perda crónica: perda constante de pequenas quantidades de sangue,
nomeadamente pelo tubo digestivo e/ou pelo aparelho genito-urinário,
levando a carência de ferro - no fundo esta acaba por pertencer ao grupo das
anemias por défice de produção, visto que, com a diminuição das reservas de
ferro, ocorre diminuição da produção de glóbulos vermelhos.
o Hemorragia aguda: nestes casos o aspeto hemodinâmico da perda de volume
de sangue (que pode levar a choque hipovolémico) sobrepõe-se à anemia
propriamente dita do ponto de vista de intervenção médica

Importância dos reticulócitos no diagnóstico diferencial

A taxa de reticulócitos é importante na classificação das anemias visto que permite indicar se a
medula está a responder ou não à anemia. Quando temos anemia, há aumento da eritropoietina
que vai estimular maior proliferação e diferenciação de células da linhagem hematopoiética.
Este aumento de produção de glóbulos vermelhos faz com que células ainda jovens não
completamente amadurecidas saiam para a corrente sanguínea, aumentando a taxa de
reticulócitos. Se não ocorrer aumento da produção dos glóbulos vermelhos, a taxa de
reticulócitos não aumenta adequadamente e torna-se um indicador da falência de produção de
glóbulos vermelhos pela medula óssea.

Anemia por défice de produção de GV

Quando há carência de oxigenação dos


tecidos, existe um estímulo para a
produção de glóbulos vermelhos e para a
libertação mais precoce destes para a
corrente sanguínea. Assim, verifica-se
aumento da taxa de reticulócitos sendo
reposta a homeostasia.

Nas anemias por défice de produção de


glóbulos vermelhos, a medula óssea não
responde devidamente ao estímulo da
eritropoietina, não ocorrendo aumento
da taxa de reticulócitos.
Consequentemente, neste tipo de
anemias, ditas hipoproliferativas, o valor de
reticulócitos apresenta-se normal (caso a medula
conseguisse responder devidamente, este deveria
encontrar-se aumentado).

A deficiência de produção de glóbulos vermelhos pode


classificar-se como quantitativa ou como qualitativa.
Se a deficiência se traduz apenas por redução do
número de eritrócitos, ou seja, se é quantitativa,
encontraremos uma anemia normocítica
normocrómica (o tamanho e a concentração de
hemoglobina por eritrócito encontram-se mantidos),
como acontece nas situações em que existe carência de eritropoetina. Se a deficiência atingir os
mecanismos metabólicos essenciais à produção de glóbulos vermelhos, os eritrócitos
apresentar-se-ão com características alteradas e estamos perante uma deficiência qualitativa.

No caso de ocorrer défice de produção de hemoglobina (como deficiência no metabolismo do


ferro ou na síntese do heme), cada eritrócito terá menos moléculas transportadoras de oxigénio,
e estaremos perante uma anemia microcítica. Se existirem défices na síntese de DNA (como
acontece quando há carência de folato), vai ocorrer diminuição da capacidade de divisão celular,
levando a anemias macrocíticas.

1. ANEMIA MICROCÍTICA

A deficiência em ferro é a causa mais comum de anemia, afetando 30% da população mundial.
Isto ocorre devido à capacidade limitada do corpo em absorver ferro e à perda frequente de
ferro devido a hemorragia. Apesar de o ferro ser abundante, encontra-se maioritariamente na
sua forma férrica insolúvel, Fe3+, que tem menor biodisponibilidade do que a sua forma ferrosa,
Fe2+.

As outras causas de anemia microcítica hipocrómica são a anemia de doença crónica, anemia
sideroblástica e a talassémia. Na talassémia, ocorre um defeito na síntese de globina, em
contraste com as outras três causas, onde o defeito está na síntese de heme.

Ferro

Dieta

A dieta diária em média contém 15-20 mg de ferro, mas apenas 10% é absorvido. A absorção
pode ser aumentada em 20-30% na deficiência em ferro e na gravidez.

O ferro não-heme é derivado dos cereais, que são frequentemente fortificados em ferro. O ferro
do heme deriva da hemoglobina e da mioglobina presente na carne vermelha e nos órgãos de
animais – este é melhor absorvido do que o não-heme, cuja biodisponibilidade é mais afetada
por outros constituintes da dieta.

Absorção

O ferro do heme derivado da dieta é mais


rapidamente absorvido do que o ferro não-
heme da dieta derivado de vegetais e
leguminosas. A maior parte do heme é
absorvido no intestino proximal, sendo que
a capacidade absortiva diminui
distalmente. O transportador intestinal do
heme, HCP-1, é altamente expresso no
duodeno, e encontra-se sobrerregulado na hipoxia e na deficiência em ferro. Algum ferro do
heme pode ser reabsorvido intacto para a circulação através da célula por 2 proteínas
exportadoras – BCRP (breast cancer resistant protein) e FLVRC (feline leukaemia vírus subgroup
C).

A absorção do ferro não-heme ocorre principalmente no duodeno. O ferro não-heme é


dissolvido no pH baixo do estômago e reduzido da forma férrica para a forma ferrosa pela
ferriredutase presente na bordadura em escova. As células nas criptas duodenais conseguem
sentir as necessidades corporais de ferro e retêm esta informação à medida que se vão
desenvolvendo para células capazes de absorver ferro, na extremidade das vilosidades. A DMT1
(divalent metal transporter 1) e a NRAMP2 (natural resistance-associated macrophage protein)
transportam ferro (e outros metais) através da superfície apical (luminal) das células mucosas
do intestino delgado.

Dentro da célula mucosa, o ferro é transferido da célula para o plasma, ou armazenado como
ferritina; a quantidade de ferro no organismo na altura em que a célula da cripta se estava a
desenvolver numa célula absortiva é provavelmente o fator decisivo crucial. O ferro armazenado
sob a forma de ferritina vai ser perdido para o lúmen do tubo intestinal à medida que as células
mucosas são exfoliadas, o que regula o balanço do ferro. O mecanismo de transporte de ferro
pela superfície basolateral das células mucosas envolve a ferroportina 1 (FPN 19 através do seu
elemento de resposta ao ferro (IRE). Esta proteína de transporte requer uma proteína acessória,
a hefaestina.

A quantidade de ferro no organismo é altamente regulada pelo controlo da absorção de ferro,


mas não existe nenhum mecanismo fisiológico para eliminar o excesso de ferro no corpo. A
molécula chave na regulação da absorção de ferro é a hepcidina, uma proteína sintetizada no
fígado que regula a atividade da ferroportina ao ligar-se a ela, causando a inernalização e
degradação da ferroportina, diminuindo assim o efluxo de ferro para o plasma. Portanto, níveis
elevados de hepcidina (o que ocorre nos quadros inflamatórios) via citocinas inflamatórias (IL-
6) limitam a absorção de ferro, enquanto níveis baixos de hepcidina (na anemia, reservas baixas
de ferro, hipóxia) aumentam a absorção de ferro. Por exemplo, em pacientes com
hemocromatose, mutações nos genes HFE, HJV e TfR2 interrompem a síntese de hepcidina, logo,
em células intestinais, a deficiência de hepcidina irá provocar maior libertação de ferro para o
plasma.

Ainda não se sabe porque é que as anemias caracterizadas por eritropoiese comprometida,
como a talassémia, estão associadas a excessiva e inapropriada absorção de ferro. Sugere-se
que a absorção aumentada de ferro na β-talassémia seja mediada pela downregulation da
hepcidina e upregulation da ferroportina.
Transporte no sangue

A concentração plasmática normal de ferro é 13-32 µmol/L, sendo que os níveis são mais
elevados de manhã. O ferro é transportado para o plasma ligado à transferrina, que é sintetizada
no fígado. Cada molécula de transferrina liga-se a 2 iões férricos e normalmente 1/3 da
transferrina está saturada. A maior parte do ferro ligado à transferrina derivado dos macrófagos
do sistema reticuloendotelial e não do ferro absorvido no intestino. A transferrina com ferro
liga-se a recetores específicos nos eritroblastos e reticulócitos na medula óssea e o ferro é
removido.

Armazenamento de ferro

Cerca de 2/3 do ferro total do corpo encontra-se na circulação na hemoglobina (2,5-3 g num
homem adulto). O ferro é armazenado nas células reticuloendoteliais, hepatócitos e células
musculares esqueléticas (500-1500 mg), sendo que cerca de 2/3 deste é armazenado sob a
forma de ferritina e 1/3 sob a forma de hemossiderina. Pequenas quantidades de ferro são
encontradas no plasma (4 mg ligadas à transferrina), na mioglobina e em enzimas.

A ferritina é um complexo ferro-proteína hidrossolúvel, que é mais facilmente mobilizado do


que a hemossiderina na formação de Hb. Está presente em pequenas quantidades no plasma.

A hemossiderina é um complexo ferro-proteína insolúvel encontrado nos macrófagos na medula


óssea, fígado e baço.

Necessidades corporais de ferro

Perde-se diariamente 0,5-1,0 mg de ferro nas fezes, urina e suor. Na menstruação as mulheres
perdem 30-40 mL de sangue por mês. Esta perda de ferro normalmente resulta em deficiência
em ferro visto que a aumento da absorção intestinal de ferro pode não compensar. A
necessidade de ferro também aumenta durante o crescimento (0,6 mg/dia) e na gravidez (1-2
mg/dia). No adulto, o conteúdo de ferro no corpo mantém-se relativamente fixo. O aumento da
quantidade de ferro no organismo (hemocromatose) é classificado em:

• Hemocromatose hereditária – mutação no gene HFE causa aumento da absorção de


ferro
• Hemocromatose secundária (siderose de transfusão) – ocorre devido a excesso de ferro
em condições tratadas com transfusão sanguínea regular.

Deficiência em ferro

A anemia ferropénica desenvolve-se quando não existe ferro suficiente para a síntese de
hemoglobina. As causas são:

• Hemorragias
• Aumento da demanda no crescimento e na gravidez
• Diminuição da absorção (ex: pós-gastrectomia)
• Diminuição da ingestão

A maioria da deficiência em ferro é devida a hemorragia, normalmente no útero ou no TGI


(úlceras, gastrites, tumores, angiodisplasias, varizes do esófago, …). As mulheres pré-menopausa
estão num estado de balanço precário de ferro devido à menstruação. Uma dieta pouco
equilibrada também contribui para a elevada prevalência de deficiência em ferro nos países em
desenvolvimento.

A carência de ferro é avaliada pela medição das reservas, tanto extra como intraeritrocitárias, e
apresenta vários estádios:

Manifestações clínicas:

Sintomas de anemia (já descritos)

As manifestações abaixo são geralmente vistas em casos de longa duração de deficiência em


ferro:

• Unhas quebradiças
• Coiloníquia (unhas em forma de colher)
• Atrofia das papilas da língua
• Inflamação das comissuras labiais
• Cabelo quebradiço
• Síndrome de disfagia e glossite – síndrome de Plummer-Vinson ou Paterson-Brown-Kelly

O diagnóstico de anemia ferropénica baseia-se na história clínica, que deve incluir questões
acerca da dieta, de automedicação com AINEs (que aumentam o risco de hemorragia
gastrointestinal) e a presença de sangue nas fezes (que pode ser sinal de hemorroidas ou de
carcinoma da parte distal do intestino). Nas mulheres, deve-se ter em conta a duração da
menstruação, a ocorrência de coágulos e o nº de tampões/pensos higiénicos usados por dia.

Contagem células e esfregaço sangue periférico: os eritrócitos são microcíticos (VGM < 80 fL) e
hipocrómicos (HGM < 27 pg). Existe poiquilocitose (variação na forma) e anisocitose (variação
no tamanho).

A concentração plasmática de ferro está diminuída e a capacidade de fixação do ferro está


aumentada. A deficiência em ferro está regularmente presente quando a saturação de
transferrina (ferro sérico a dividir pela capacidade de fixação do ferro) diminui para < 19%.
O nível de ferritina sérica reflete a quantidade de ferro armazenado. Na deficiência em ferro
simples, uma concentração baixa de ferritina confirma o diagnóstico. Contudo, a ferritina é um
reagente de fase aguda, e os seus níveis podem aumentar na presença de doenças inflamatórias
ou malignas. Níveis muito elevados de ferritina podem ser observados na hepatite e na
linfohistiocitose hemofagocítica.

Os níveis de transferrina estão aumentados (o aumento de produção de transferrina reflete a


necessidade de maior transporte deste metal do enterócito para os locais onde é necessário). O
nº de recetores de transferrina também aumenta na deficiência em ferro. Os resultados deste
teste permitem ajudar a distinguir entre anemia ferropénica e anemia da doença crónica, bem
como ajudam na investigação de causas complicadas de anemia.

O exame do TGI muitas vezes é requerido para determinar a causa de deficiência em ferro.

Diagnóstico diferencial: a presença de anemia com microcitose e hipocromia não indica


necessariamente deficiência em ferro; outras causas comuns são talassémia, anemia
sideroblástica e anemia da doença crónica, e nestes distúrbios o armazenamento de ferro está
normal ou aumentado.

Tratamento:

• Tratar a causa
• Administrar ferro para corrigir a anemia e aumentar as reservas de ferro

Anemia sideroblástica

As anemias sideroblásticas são distúrbios hereditários ou adquiridos caracterizados por anemia


refratária, um nº variável de células hipocrómicas no sangue periférico e excesso de ferro e
sideroblastos em anel na medula óssea. A presença de sideroblastos em anel é a característica
diagnóstica da anemia sideroblástica. Existe acumulação de ferro nas mitocôndrias dos
eritroblastos devido a comprometimento da síntese de heme, que provoca a formação de anéis
de grânulos de ferro à volta do núcleo. O esfregaço de sangue periférico é muitas vezes
dimórfico; a síntese ineficaz de heme é responsável pelas células microcíticas hipocrómicas.

A anemia sideroblástica pode ser uma doença ligada ao cromossoma X, ou pode ser adquirida,
sendo algumas causas a mielodisplasia, distúrbios mieloproliferativos, leucemia mieloide,
fármacos (isoniazida), consumo de álcool e intoxicação por chumbo, bem como na artrite
reumatoide, carcinomas e anemias megaloblásticas e hemolíticas.
2. ANEMIA NORMOCÍTICA

A anemia normocítica normocrómica ocorre na anemia da doença crónica, em alguns distúrbios


endócrinos (hipopituitarismo, hipotiroidismo e hipoadrenalismo) e em alguns distúrbios
hematológicos (anemia aplástica e algumas anemias hemolíticas). Para além disso, este tipo de
anemia verifica-se após hemorragia aguda.

Este tipo de anemias pode surgir devido a:

• Aplasias medulares – as células da linhagem eritrocitária são afetadas por destruição ou


disfunção do tecido de sustentação dos glóbulos vermelhos (por inflamação, infeção ou
cancro) ou por destruição direta das células precursoras da linhagem. Nas anemias
aplásicas, os glóbulos vermelhos produzidos apresentam características normais, no
entanto, devido à destruição das células precursoras, o seu número encontra-se
reduzido.
• Carência de eritropoietina – como na doença crónica do rim, em que há diminuição do
estímulo de diferenciação celular eritrocitária, produzindo-se menos glóbulos
vermelhos.
• Hipotiroidismo – a alteração do metabolismo basal leva a que os próprios tecidos
precisem de menos oxigénio, diminuindo o estímulo para a produção de glóbulos
vermelhos.
• Malnutrição
• Destruição dos eritroblastos – por doenças próprias da medula ou por anticorpos.

3. ANEMIA MACROCÍTICA – pode ser dividida de acordo com os achados da medula óssea
em:
3.1 ANEMIA MACROCÍTICA MEGALOBÁSTICA

É caracterizada pela presença na medula óssea de eritroblastos com maturação nuclear atrasada
devido a defeitos na síntese de DNA (megaloblastos). Os megaloblastos são células grandes com
um grande núcleo imaturo. A cromatina nuclear está mais dispersa o que o normal e tem uma
aparência em pontilhado. Para além disso, são muitas vezes vistos metamielócitos gigantes –
estas células apresentam 2 vezes o tamanho de células normais e têm muitas vezes o núcleo
retorcido.

As alterações megaloblásticas ocorrem:

• Na deficiência em vitamina B12 ou no metabolismo anormal da vitamina B12


• Deficiência em ácido fólico ou metabolismo anormal dos folatos
• Outros defeitos na síntese de DNA, como deficiências enzimáticas congénitas na síntese
de DNA ou resultante de terapêutica com fármacos que interferem com a síntese de
DNA (hidroxicarbamida, azatioprina, AZT)
• Mielodisplasia devido a diseritropoiese

Achados hematológicos

• VGM elevado, a menos que exista uma causa concomitante de microcitose, pelo que
pode verificar-se um quadro dimórfico com VGM normal/baixo.
• O esfregaço de sangue periférico mostra macrócitos ovais com polimorfos
hipersegmentados com 6 ou mais lobos no núcleo
• Se severa, pode haver leucopénia e trombocitopenia

Base bioquímica da anemia megaloblástica

O problema bioquímico tanto na deficiência em vitamina B12


como na deficiência em ácido fólico é o bloqueio na síntese
de DNA devido à incapacidade de metilar o deoxiuridina
monofosfato em deoxitimidina monofosfato, que é utilizado
para sintetizar DNA.

A deficiência em folato reduz o fornecimento da coenzima


metileno tetrahidrofolato; a deficiência em vitamina B12
também reduz este fornecimento ao abrandar a
desmetilação da metiltetrahidrofolato e previne as células de
receberem tetrahidrofolato para a síntese de metileno
tetrahidrofolato poliglutamato.

A incapacidade de síntese de ácidos nucleicos afeta todas as


células que têm um grande índice proliferativo, logo, células
de núcleo multisegmentado, mostrando a incapacidade de
divisão nuclear, surgem ao nível de várias linhagens
(mielóide, megacariocítica, epitélios, etc). Não havendo
duplicação do DNA na fase S do ciclo celular, há um
prolongamento desta fase e a maturação
citoplasmática ocorre normalmente porque
não depende da síntese de ácidos nucleicos.
Logo, existe assincronismo entre a maturação
nuclear e a citoplasmática, surgindo células
anormais. É frequente que ocorra destruição
intramedular destas mesmas células
anormais, levando a eritropoiese ineficaz e
podendo até levar ao aparecimento de
hemólise.

Outras formas congénitas e adquiridas de


anemia megaloblástica são devidas à
interferência na síntese de purinas e
pirimidinas, causando inibição da síntese de DNA.

Vitamina B12

Os seres humanos obtêm esta vitamina através da carne, peixe, ovos e leite, mas não de plantas.
A dieta diária contém cerca de 5-30 µg de vitamina B12, dos quais 2-3 µg são absorvidos. As
reservas no adulto constituem cerca de 2-3 mg, encontrando-se no fígado, e pode levar 2 anos
ou mais após falência absortiva para que a deficiência em vitamina B12 se desenvolva.

Estrutura e função

A vitamina B12/cobalamina tem como principal função a metilação da homocisteína a metionina


com a desmetilação da metil THF poliglutamato a THF. THF é o substrato para a síntese de
poliglutamato folato.
Absorção e transporte

A vitamina B12 é libertada de complexos proteicos nos alimentos pelas enzimas gástricas e
depois liga-se à proteína ligante da vitamina B12. Depois é removida desta pelas enzimas
pancreáticas e fica ligada ao fator intrínseco, secretado pelas células parietais gástricas. O fator
intrínseco leva a vitamina B12 a recetores específicos na superfície da mucosa do íleo - a
vitamina B12 entra nas células ileais e o fator intrínseco
permanece no lúmen e é excretado. A vitamina B12 é
transportada dos enterócitos para a medula óssea e outros
tecidos pela glicoproteína transcobalamina II (TCII).

Deficiência em vitamina B12 e anemia perniciosa

Existem várias causas para deficiência na vitamina B12, mas


a mais comum é a anemia perniciosa.

A anemia perniciosa é uma doença autoimune na qual


existe gastrite atrófica com perda de células parietais na
mucosa gástrica e consequente falha na produção de fator
intrínseco e má absorção de vitamina B12.

É comum nos idosos, e mais nas mulheres do que nos homens. Existe uma associação com outras
doenças autoimunes, particularmente doença tiroideia, doença de Addison e vitiligo.

Os anticorpos contra células parietais estão presentes em 90% dos doentes, mas muitas vezes
também em idosos com atrofia gástrica. Por outro lado, anticorpos contra o fator intrínseco,
presentes em 50% dos doentes com anemia perniciosa, são específicos para o diagnóstico.

A gastrite autoimune afeta o fundo gástrico e é acompanhada por infiltração de células


plasmáticas e linfoides. As células parietais e principais são substituídas por células secretoras
de muco. Ocorre acloridria e ausência de secreção de fator intrínseco. A anormalidade
histológica pode ser melhorada por terapêutica com corticoides.

Manifestações clínicas:

A anemia perniciosa é insidiosa, com progressivo aumento dos sintomas de anemia. Os


pacientes têm uma mistura de palidez com coloração amarelada devido à icterícia moderada
resultando da destruição excessiva de Hb. A glossite e inflamação dos ângulos da boca também
podem estar presentes.

As alterações neurológicas, se não tratadas, podem ser irreversíveis. Estas ocorrem com níveis
muito baixos de vitamina B12, e consistem em polineuropatia que envolve progressivamente os
nervos periféricos e as colunas posteriores e laterais da medula espinhal. Os pacientes
apresentam parestesia simétrica dos dedos, perda da sensação vibratória e propriocetiva e
progressiva fraqueza e ataxia. Também podem ocorrer demência, problemas psiquiátricos,
alucinações e atrofia do nervo óptico.

Exames:

• Os achados hematológicos mostram as características de anemia megaloblástica


• A medula óssea mostra eritropoiese megaloblástica
• A bilirrubina pode estar aumentada como resultado de eritropoiese ineficaz – nas
anemias megaloblásticas, a destruição de glóbulos vermelhos em desenvolvimento está
aumentada, pelo que a bilirrubina sérica pode estar aumentada.
• LDH pode estar aumentada devido a hemólise
• O ácido metilmalónico e a homocisteína séricos podem estar aumentados
• A vitamina B12 sérica está diminuída
• Os folatos séricos estão normais ou aumentados, e o folato dos eritrócitos esta normal
ou reduzido devido a inibição da síntese normal de folatos.

Diagnóstico diferencial: a deficiência em vitamina B12 deve ser diferenciada de outras causas de
anemia megaloblástica, principalmente deficiência em folatos, mas normalmente isto é obvio
pelo nível plasmático das duas vitaminas. A anemia perniciosa também deve ser distinguida de
outras causas de deficiência em vitamina B12 – qualquer doença que envolva o íleo terminal ou
o sobrecrescimento bacteriano pode levar a deficiência em vitamina B12, tal como a
gastrectomia, a longo prazo.

Ácido fólico

Tanto a cobalamina como o ácido fólico fazem parte de um


complexo metabólico que tem como função sintetizar
purinas e pirimidinas. A cobalamina permite a conversão da
homocisteína em metionina, sem a qual não há
transformação do metiltetrahidrofolato em
tetrahidrofolato (ácido fólico) que, por sua vez, é dador de
fragmentos monocarbonados.

A carência de ácido fólico é essencialmente dependente da


dieta visto que não há grandes reservas para o ácido fólico
no nosso organismo. Os alcoólicos e os vegetarianos têm
maior probabilidade de ter aporte dietético de folato
inadequado e consequentemente, anemia megaloblástica.
Noutras situações, há aumento das necessidades como na
gravidez, durante o crescimento, nas doenças proliferativas
(como as neoplásicas), nas anemias hemolíticas ou nas doenças esfoliativas da pele.

A deficiência de ácido fólico pode dever-se também a má absorção intestinal ou à utilização de


inibidores do enzima dihidrofolato reductase (enzima do metabolismo do folato) que se usam
para o tratamento de cancro.

3.2 ANEMIA MACROCÍTICA NÃO MEGALOBLÁSTICA

Um aumento do VGM com macrocitose no esfregaço de sangue periférico pode ocorrer mais
frequentemente com uma medula óssea normoblástica do que com uma medula óssea
megaloblástica.

Uma causa fisiológica de macrocitose é a gravidez. A macrocitose pode ocorrer também no


recém-nascido. Causas patológicas comuns são:

• Alcoolismo
• Doença hepática
• Reticulocitose
• Hipotiroidismo
• Alguns distúrbios hematológicos (anemia aplástica, anemia sideroblástica, …)
• Fármacos (ex: hidroxicarbamida, azatioprina)

Nestas condições, encontra-se níveis normais de vitamina B12 e de folato. Existe um aumento
de deposição de lípidos na membrana dos eritrócitos.

Um nº aumentado de reticulócitos também leva a aumento do VGM devido ao maior tamanho


destas células.

Um consumo elevado de álcool é uma causa frequente de aumento do VGM, e nestes pacientes
o VGM pode ser utilizado como um “marcador” para monitorizar o consumo excessivo de álcool.
Também pode ocorrer anemia megaloblástica no consumo excessivo de álcool, devido ao efeito
tóxico do álcool na eritropoiese e/ou à deficiência de folatos.

ANEMIA APLÁSICA

A anemia aplásica é definida como pancitopenia com


hipocelularidade (aplasia) da medula óssea; não existem
células anormais na medula óssea nem no sangue
periférico. É normalmente uma condição adquirida mas
pode ser hereditária.

A anemia aplástica ocorre devido a redução do nº de


células estaminais pluripotentes juntamente com falha das
remanescentes ou com reação imune contra elas, logo a
medula óssea não consegue ser repopulada. Pode ocorrer
a falência de apenas uma linhagem celular, resultando em deficiências isoladas. A evolução para
mielodisplasia, hemoglobinúria paroxística noturna ou leucemia mieloblástica aguda ocorre em
alguns casos, provavelmente por emergência de clones anormais de células hematopoiéticas.

Verifica-se:

• Pancitopénia
• Ausência de reticulócitos
• Medula óssea hipocelular ou aplástica, com aumento dos espaços lipídicos

ANEMIAS HEMOLÍTICAS

Deve-se a excesso de destruição dos eritrócitos, o que se reflete no tempo médio de vida
eritrocitária. Na prática, a determinação do tempo médio de vida eritrocitária é um exame
complicado. Assim, usamos um indicador indireto da mesma, que é a taxa de reticulócitos
(infere a capacidade da medula óssea de produzir glóbulos vermelhos em resposta à anemia).

As anemias hemolíticas são, na sua grande maioria, normocíticas normocrómicas e podem


dividir-se em dois grandes tipos: intra e extracorpusculares. Relativamente ao tipo de hemólise
que as gera, esta pode ser intra ou extravascular.
Anemias intracorpusculares

Este tipo de anemias ocorre devido a anomalias do próprio eritrócito, em que a sua produção é
normal mas ocorre hemólise devido a:

• Defeitos intra-eritrocitários (hereditários)


o Enzimopatias – alterações
nas enzimas necessárias
para manter a hemoglobina
desoxigenada, evitando a
produção espécies reativas
de oxigénio, ou nas enzimas
da via glicolítica
o Hemoglobinopatias –
doenças em que mutações
levam a alterações das
cadeias de globina (a mais
frequente é a
drepanocitose)
• Anomalias na membrana eritrocitária
o Esferocitose hereditária
o Hemoglobinúria paroxística noturna (adquirida)
o Anemia tipo “Spur Cell” (adquirida)

Anemias extracorpusculares

Neste tipo de anemias, de carácter adquirido, a hemólise ocorre devido a alterações extrínsecas
ao glóbulo vermelho (o eritrócito em si é completamente normal, mas o ambiente à sua volta
não o é) como:

• Hiperesplenismo – a estase sanguínea dentro do baço leva à destruição eritrocitária,


como acontece nas doenças hepáticas crónicas
• Anemia hemolítica auto-imune – há produção de anticorpos contra as proteínas da
membrana do eritrócito que depois levam à sua destruição
• Anemia hemolítica microangiopática – a hemólise ocorre devido a choque mecânico dos
glóbulos vermelhos em determinadas estruturas como próteses valvulares mecânicas
ou placas de aterosclerose. Neste tipo de anemia, os eritrócitos apresentam uma
morfologia característica (forma de esquizócitos)
• Infeções
• Ação de Toxinas

Hemólise intravascular

Este tipo de hemólise gera situações mais graves do que a extravascular e pode ocorrer devido
a transfusão de sangue não compatível.

Quando a hemólise é intravascular, o glóbulo vermelho liberta hemoglobina no sangue que vai,
posteriormente, ser captada por proteínas de transporte. Consequentemente, a destruição do
glóbulo vermelho leva à libertação também de ferro, que participa em reações oxidação-
redução, e é um agente agressivo para o organismo.

Nesta destruição, o grupo heme é captado maioritariamente pela hemopexina e/ou pela
albumina, mas também pela haptoglobina. Estas proteínas sanguíneas vão sendo retidas no
fígado que, através da ação dos macrófagos, as destrói, diminuindo a sua concentração
sanguínea (indicador de hemólise intravascular). Os dímeros de hemoglobina que também se
formam após a hemólise acabam por ser destruídos a nível renal, podendo aparecer na urina
sob a forma de hemoglobinúria (urina de cor vermelho-acastanhada; para tal também pode
contribuir a excreção de hemoglobina livre oxidada). O transportador inespecífico da albumina,
ao ligar-se à hemoglobina, leva à formação de metahemoglobina, que se acumula no sangue
(metahemoglobinémia). Adicionalmente, na hemólise intravascular também se pode observar:

• Hemossiderinúria – devido a acumulação de parte do ferro nas células epiteliais do rim


e sua descamação normal posteriormente
• Aumento da bilirrubina – devido ao catabolismo do heme podendo levar a icterícia

Causas de hemólise intravascular:

• Toxinas que reagem com os fosfolípidos levando à destruição direta dos eritrócitos
• Formação de auto-anticorpos contra eritrócitos com ativação do complemento e lise
direta (por exemplo, quando há uma transfusão de sangue não isogrupal)
• Hemólise intravascular microangiopática: destruição de eritrócitos devido ao seu
choque com outras estruturas que não deveriam estar no aparelho circulatório, como
válvulas mecânicas cardíacas. Há presença de esquizócitos, que são eritrócitos
fragmentados, em circulação.

Hemólise extravascular

Ocorre nos órgãos que normalmente exercem a função de hemocaterese (baço, medula óssea,
…). Neste tipo de destruição eritrocitária, as consequências são mais ligeiras do que na
intravascular e caracterizam-se pela produção de bilirrubina (devido à degradação do grupo
heme) com consequente deposição, levando a icterícia, e a aumento dos níveis de
desidrogenase láctica (indicador inespecífico de lesão celular).
O que acontece é: o eritrócito vai
passando pelos sinusóides e, como
perdeu parte da sua elasticidade, fica
perturbado, acabando por ser destruído
pelos fagócitos – daí que seja um processo
mais tranquilo do que a intravascular, não
deixando de ser, contudo, uma anemia
hemolítica que causa problemas. Nestes
casos, não costuma haver diminuição da
haptoglobina nem da hemopexina.

Anemias hemolíticas hereditárias

Causas:

• Defeitos da membrana eritrocitária


o Esferocitose hereditária (proteínas alteradas: espectrina, anquirina, banda 3)
▪ As células perdem parte da membrana quando passam pelo baço,
possivelmente por a bicamada fosfolipídica não suportar
adequadamente o esqueleto da membrana. A causa mais comum é a
deficiência em espectrina, uma proteína estrutural, mas também é
comum defeito na anquirina. A membrana anormal apresenta maior
permeabilidade ao sódio e isto requer um aumento do transporte ativo
do sódio para fora da célula, que está dependente do ATP produzido
pela glicólise. A razão superfície/volume diminui e as células tornam-se
esferocíticas. Os esferócitos são mais rígidos e menos deformáveis do
que os eritrócitos normais → não conseguem passar pela
microcirculação esplénica → tempo de vida reduzido
o Eliptocitose hereditária (proteínas alteradas: espectrina, banda 4.1)
▪ Os eritrócitos são elípticos devido a deficiência na proteína 4.1 ou no
complexo espectrina/actina/4.1, que leva a fraqueza da interação
proteica horizontal → defeito membranar
o Estomatocitose hereditária
• Anormalidades na hemoglobina – hemoglobinopatias:
o Alteração na produção de globina (talassémia)
o Alteração na estrutura da globina (anemia das células falciformes)
o Combinação de defeitos na produção e estrutura da globina
• Defeitos da via glicolítica
o Piruvato cinase, hexo cinase, etc
• Defeitos da via das fosfopentoses
o Glicose 6-P desidrogenase (favismo – pode ocorrer crise hemolítica sempre que
se consomem alimentos ou fármacos ricos em oxidantes)

Anemias hemolíticas adquiridas

Causas:

• Auto-imunes (surgem anticorpos contra eritrócitos que levam à sua destruição)


o Idiopática
o Doenças linfoproliferativas (leucemia linfocítica crónica, linfoma não Hodgkin)
o Lúpus eritematoso sistémico
o Fármacos: determinados fármacos podem causar anemia hemolítica autoimune
em indivíduos com predisposição genética para tal
o Infeções: ocorre hemólise intravascular por lise direta, por uma toxina
denominada hemolisina, ou através de anticorpos anti-glóbulos vermelhos que
reagem com o complemento, levando à lise intravascular ou então à formação
de alterações ao nível da circulação – anemia angioplástica.
• Micro-angiopáticas
o Próteses vasculares
o Síndrome hemolítico urémico
o Púrpura trombótica trombopénica
o HTA maligna
o CID (coagulação intravascular)
• Tóxicos
• Hemoglobinúria paroxística noturna (PHN)

ANEMIAS POR PERDA DE SANGUE

A perda de sangue geradora de anemia pode ser crónica (ver anemia da doença crónica) ou
aguda.

Na hemorragia aguda, o aspeto hemodinâmico (que depende da quantidade de sangue perdido)


sobrepõe-se às manifestações da anemia propriamente ditas. Na Tab.2, estão descritos os sinais
e sintomas que ocorrem numa hemorragia aguda de acordo com a % de perda de sangue.

Para corrigir as manifestações hemodinâmicas,


deve-se administrar soro, o que alivia das queixas
cardiovasculares. Só depois se questiona a
problemática da anemia, fazendo a reposição de
volume com sangue.
ANEMIA DA DOENÇA CRÓNICA (ver artigo)

Ocorre em pacientes com infeções crónicas,


como tuberculose ou doenças inflamatórias
crónicas como doença de Crohn, artrite
reumatoide, lúpus eritematoso sistémico,
polimialgia reumática e doença maligna. Existe
diminuição da libertação de ferro da medula
óssea para os eritroblastos em
desenvolvimento, uma resposta inadequada
da eritropoietina à anemia e diminuição da
sobrevivência dos eritrócitos.

Os mecanismos exatos responsáveis por estes


efeitos não são bem definidos mas parece que
níveis elevados de expressão de hepcidina
desempenham um papel importante.

O ferro sérico e a capacidade de fixação do


ferro estão reduzidos, e a ferritina está normal
ou aumentada devido ao processo
inflamatório. O nível sérico do recetor solúvel
da transferrina está normal. Os pacientes não
respondem a terapêutica com ferro, e o
tratamento, em geral, é o da doença por detrás
da anemia. A terapêutica com eritropoietina
recombinante é utilizada na anemia da doença
renal e ocasionalmente em doenças
inflamatórias (artrite reumatoide, doença inflamatória intestinal).

Modelos de classificação das anemias:

• Funcional: tem em conta o mecanismo fisiopatológico


• Morfológico: usa-se mais este modelo

Anemia ferropenica não é inicialmente uma anemia hipoproliferativa

Doente anémico:

• Medula capaz de dar resposta (aumento do índice reticulocitário: > 2,5)


• Medula não da resposta (índice reticulocitário < 2,5)
o Disturbios hipoproliferativos e distúrbios de maturação

Anemias hemolíticas: classificam-se com as 3 escalas ao mesmo tempo


Doenças do sistema imune

Imunidade – proteção contra infeções.

Sistema imunológico - coleção de células e moléculas que são responsáveis pela defesa do
organismo contra os microrganismos patogénicos no meio ambiente.

Imunidade inata – mediada por células e proteínas que estão sempre presentes e prontas para
lutar contra os microrganismos.

• Barreiras epiteliais da pele, TGI e trato respiratório;


• Leucócitos fagócitos (neutrófilos e macrófagos);
• Célula natural killer (NK);
• Proteínas plasmáticas circulantes (sistema de complemento).

Imunidade adaptativa/adquirida/específica – mediada por células que são ativadas perante a


presença de microorganismos infecciosos.

• Linfócitos;
• Produtos dos linfócitos.

Existem dois tipos de resposta imune adaptativa:

Imunidade humoral: mediada por proteínas solúveis chamadas anticorpos, produzidos por
linfócitos B. Os anticorpos conferem proteção contra microorganismos extracelulares no
sangue, secreções mucosas e tecidos.

Imunidade celular: mediada por linfócitos T. Os linfócitos T são importantes na defesa


contra microrganismos intracelulares. Matam diretamente células infetadas (realizado por
linfócitos T citotóxicos) ou ativando fagócitos para matar microrganismos ingeridos, através
da produção de proteínas solúveis mediadoras chamadas citocinas (produzidas por células
T auxiliares).

CÉLULAS E TECIDOS DO SISTEMA IMUNOLÓGICO

As células do sistema imunológico consistem em linfócitos, que reconhecem antigénios e


montam a resposta imunológica adaptativa, células especializadas apresentadoras de antigénio
(APCs), que capturam e exibem antigénios microbianos e outros para os linfócitos, e várias
células efetoras, cuja função é a eliminação de microrganismos e outros antigénios. Duas
características marcantes do sistema imunológico são a especialização das células para executar
diversas funções e os mecanismos precisos de controlo que permitem respostas úteis quando
necessárias e prevenir eventos potencialmente prejudiciais.

Linfócitos:

Os linfócitos desenvolvem-se a partir de precursores nos órgãos geradores de linfoides; os


linfócitos T são maturados no timo, enquanto os linfócitos B são maturados na medula óssea.
Cada linfócito T ou B expressa recetores para um único antigénio, e a população total de
linfócitos é capaz de reconhecer dezenas ou centenas de milhões de antigénios. Essa enorme
diversidade de reconhecimento do antigénio é gerada pelo rearranjo somático de genes dos
recetores de antigénios durante a maturação de linfócitos e as variações que são introduzidas
durante a união de segmentos de genes diferentes, para formar os recetores de antigénios.

Cada linfócito tem um único rearranjo do DNA e um recetor de antigénio único.


A demonstração dos rearranjos dos genes dos recetores de antigénios por métodos moleculares
(p. ex., ensaio da reação em cadeia da polimerase [PCR]) é um marcador definitivo de linfócitos
T ou B.

A análise molecular dos rearranjos em populações de células pode distinguir:

• Uma proliferação policlonal (não neoplásica) de linfócitos;


• De uma proliferação de monoclonal (neoplásicas).

Linfócitos T: são importantes na defesa contra microrganismos intracelulares.

• Linfócitos T citotóxicos: matam diretamente células infetadas.


• Linfócitos T auxiliares: ativam fagócitos para matar microorganismos ingeridos,
através da produção de proteínas solúveis mediadoras, as citocinas.
• Constituem 60-70% dos linfócitos do sangue periférico.
• Localizam-se nas bainhas periarteriolares do baço e zonas interfoliculares dos
gânglios.

Os linfócitos T não detetam antigénios livres ou circulantes.

A grande maioria (superior a 95%) das células T reconhece apenas fragmentos peptídicos de
antigénios ligados a proteínas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC).

Restrição de MHC: em cada pessoa, as células T reconhecem apenas péptidos apresentados por
moléculas de MHC dessa pessoa.

Os antigénios peptídicos apresentados por moléculas próprias de MHC são reconhecidos pelo
recetor de células T (TCR).

TCR

• Heterodímero composto por uma cadeia de proteína


com ligações dissulfeto α e β;
• Cada cadeia possui uma região variável que participa da
ligação do antigénio peptídico em particular e uma região
constante que interage com moléculas de sinalização
associadas.
• Os TCR estão ligados não covalentemente a um grupo
de 5 cadeias polipeptídicas invariáveis, as proteínas γ, δ,
e ε do complexo CD3 e duas cadeias ζ.
▪ Estas cadeias não estão ligadas a
antigénios.
▪ Fornecem sinais bioquímicos intracelulares
após o reconhecimento do antigénio pelo
TCR.
• Os TCR expressam várias outras moléculas
invariáveis que exercem diversas funções:
• CD4 e CD8 são expressas em subconjuntos
de células T distintos e servem como co-
recetores para a ativação de células T.

Durante o reconhecimento do antigénio, as moléculas:


▪ CD4 ligam-se a moléculas MHC classe II;
▪ CD8 ligam-se a moléculas MHC classe I.

O CD4 é expresso em 50-60% de células T maduras.

▪ Secretam moléculas solúveis (citocinas) que auxiliam as células B a produzir anticorpos;


▪ Ajudam os macrófagos a destruir os microrganismos fagocitados.

O CD8 é expresso em cerca de 40% de células T maduras.

▪ Também secretam citocinas;


▪ Matam diretamente células tumorais ou infetadas por vírus.

O CD28 funciona como recetor para as moléculas co-estimuladoras, como a CD80 e a CD86
(expressas nas células apresentadoras de antigénio).

Existem ainda várias moléculas de adesão que reforçam a ligação entre as células T e as APCs, e
controlam a migração das células T para diferentes tecidos.

Linfócitos γδ

▪ Estão associados a superfícies mucosas


▪ Não expressam CD4 ou CD8;
▪ Reconhecem moléculas não-proteicas (ex: lipoglicanos bacterianos).

Células T NK

▪ Reconhecem glicolípidos microbianos

Moléculas do Complexo Principal de Histocompatibilidade: o Sistema de Exposição de


Péptidos da Imunidade Adaptativa

MHC

▪ Fundamentais para o reconhecimento de antigénios pelas células T;


▪ O MHC humano, conhecido como HLA (complexo de antigénio leucocitário
humano), é codificado por vários genes localizados no cromossoma 6.
▪ O sistema HLA é altamente polimórfico (existem várias formas alternativas
(alelos) do gene em cada loci) e proporciona um sistema em que uma vasta
gama de péptidos pode ser exibida pelas moléculas de MHC para
reconhecimento por células T.
▪ MHC classe I
o Codificados por 3 loci distintos (HLA-A, HLA-B e HLA-C – codificam
heterodímeros).
▪ A porção extracelular da cadeia α contém:
• Uma fenda onde os resíduos polimórficos estão
localizados e onde os peptídeos estranhos se ligam à
molécula de MHC para apresentação às células T –
porção variável;
• Porção conservada que se liga ao CD8, assegurando que
apenas células CD8+ possam responder a péptidos
apresentados por moléculas de classe I.
o Em geral as moléculas de MHC de classe I ligam-se e exibem péptidos
derivados de proteínas sintetizadas no citoplasma das células
(antigénios virais).
o O MHC I está localizado em todas as células nucleadas e todos os vírus
que infetam células podem ser detetados e eliminados por CD8+ CTLs.
▪ MHC classe II
o Codificados por genes da região HLA-D;
o São heterodímeros com as subunidades α e β polimórficas ligadas não-
covalentemente.
o A porção heterodímica extracelular do MHC de classe II contém uma
fenda para a ligação de péptidos antigénicos e uma região que se liga
ao CD4.
o É apenas expresso por células apresentadoras de antigénio (células
dendríticas, células B e macrófagos).
o Ligam-se normalmente a péptidos derivados de proteínas sintetizadas
fora das células (bactérias extracelulares) e ingeridos pelas células.
o Essa propriedade permite a células CD4+ reconhecerem a presença de
agentes patogénicos extracelulares.
▪ MHC classe III
o Componentes do complemento (C2, C3 e Bf);
o Citocina fator de necrose tumoral (TNF)
o Linfotoxina.

Cada pessoa herda um alelo HLA de cada progenitor → duas moléculas diferentes são expressas
para cada loci de HLA.

▪ Uma pessoa heterozigótica pode expressar seis classes diferentes de moléculas HLA de
classe I (3 de origem materna e 3 de origem paterna).
▪ Da mesma forma, determinado individuo expressa alelos maternos e paternos do loci
do MHC de classe II (mistura de algumas cadeias HLA-D α e β) e cada célula de classe II
que se expressa pode ter até 20 diferentes moléculas de MHC de classe II.

Cada pessoa expressa um perfil MHC antigénico único em suas células.

A combinação de alelos de HLA para cada pessoa é chamada de haplótipo de HLA.

Transplantes: As moléculas de HLA do enxerto evocam a resposta humoral e a resposta celular,


levando à destruição do enxerto.

O polimorfismo de genes do MHC surgiu para permitir a exibição e a resposta a qualquer péptido
microbiano concebível encontrado no ambiente.

Linfócitos B

▪ Compõem 10-20% da população de linfócitos na circulação periférica;


▪ Ocupam a medula óssea e folículos presentes nos tecidos linfoides periféricos (gânglios,
baço, amígdalas, e outros tecidos das mucosas);

Reconhecem o antigénio por intermédio do complexo de recetores de células B, formado por:

▪ Anticorpos ligados à membrana da classe de imunoglobulina M (IgM) expressa na


superfície;
▪ Moléculas de sinalização.

As células B podem reconhecer responder a muito mais estruturas químicas, incluindo as


proteínas solúveis ou proteínas associadas a células, lípidos, polissacarídeos, ácidos nucleicos e
pequenos produtos químicos. Além disso, as células B (e os anticorpos) reconhecem formas
nativas (devidamente dobradas) desses antigénios.

Cada anticorpo tem uma especificidade única.

A diversidade de anticorpos é gerada durante o rearranjo somático de imunoglobulinas.

As células B expressam várias moléculas invariantes que são responsáveis pela transdução do
sinal e ativação das células.

▪ CD21: recetor de complemento do tipo 2, ou Nota: o vírus Epstein-Barr evoluiu


CR2, que reconhece o produto de degradação para usar CD21 como recetor para
do complemento que frequentemente é se ligar a células B e infetá-las.
depositado sobre os microrganismos e
promove as respostas das células B para
antigénios microbianos.

Após a estimulação as células B diferenciam-se em plasmócitos, que segregam grande


quantidade de anticorpos, os mediadores da imunidade humoral.

Existem 5 classes de anticorpos:

▪ IgG
▪ IgM
▪ IgA – isótopo importante em secreções mucosas;
▪ IgD – expressa na superfície das células B, mas não é secretada
▪ IgE - presente na circulação em concentrações muito baixas e também é encontrada
colada às superfícies dos mastócitos teciduais.

Células Natural Killer

▪ Surgem a partir do progenitor linfoide comum que dá origem a linfócitos T e B.


▪ Pertencem à imunidade inata e não expressam recetores altamente variáveis e
clonalmente distribuídos para os antigénios.
▪ Não têm especificidade tão diversa quanto as células T e células B.
▪ Têm dois tipos de recetores:
o Inibitórios: reconhecem moléculas de MHC de classe I próprias, que são
expressas em todas as células saudáveis.
o Ativadores: reconhecem moléculas que são expressas ou reguladas em células
alvo de stress ou células infetadas ou com DNA danificado.
▪ Normalmente os efeitos dos recetores inibitórios dominam sobre os dos recetores de
ativação, impedindo assim a ativação das células NK.
▪ As situações que reduzem a expressão de moléculas de MHC classe I (infeção
intracelular e o stress) estão associadas a uma ativação das células NK.

Células apresentadoras de antigénios: estas células têm como função capturar antigénios
microbianos e apresentá-los aos linfócitos.
• 1ª classe: células dendríticas – principais células que apresentam antigénios proteicos
às células T-naive para iniciar a resposta imune.

Células dendríticas

Existem dois tipos:

1. Células dendríticas (DCs)


• Expressam níveis elevados de MHC de classe II e moléculas co-estimulatórias de
células T e moléculas que permitem capturar e apresentar antigénios às células
T.
• Residem no epitélio e abaixo dele. Ex: células de Langerhans da epiderme.
• Estão presentes nas zonas das células T nos tecidos linfoides, onde apresentam
antigénios às células T circulantes nesses tecidos e no interstício de muitos
órgãos não linfoides, como o coração e os pulmões, onde eles são preparados
para capturar os antígenos de microrganismos invasores.
2. Células dendríticas plasmocitoides
• São semelhantes aos plasmócitos.
• Estão presentes nos órgãos linfoides e no sangue.
• São as fontes principais de citocinas interferão antivirais do tipo I, produzidas
em resposta a muitos vírus.
3. Células foliculares dendríticas (FDCs)
• Estão localizadas nos centros germinativos dos folículos linfoides no baço e
nódulos linfáticos.
• Carregam recetores para as caudas Fc das moléculas de IgG e de proteínas do
complemento;
• Formam uma eficiente armadilha para antigénios ligados a anticorpos e
complemento.
• Apresentam os antigénios aos linfócitos B ativados em folículos linfoides e
promovem uma resposta secundária de anticorpos, mas não estão envolvidas
na captura de antígenos para a exibição a células T.
4. Outras
• Os macrófagos ingerem microrganismos e antigénios particulados, e exibem os
péptidos para o reconhecimento pelos linfócitos T. Essas células T, por sua vez,
ativam os macrófagos para matar os microrganismos, a reação central da
imunidade mediada por células.
• As células B apresentam péptidos às células T auxiliares e recebem sinais que
estimulam as respostas de anticorpos a antigénios proteicos.

Células efetoras

As células NK pertencem à linha da frente no que toca a reagir rapidamente contra as células
em stress.

Os plasmócitos secretores de anticorpos são as células efetoras da imunidade humoral.

Os linfócitos, as células T CD4+ auxiliares e as CTLs CD8+ são células efetoras da imunidade
mediada por células.

Os macrófagos ligam-se aos microorganismos que estão revestidos por anticorpos ou produtos
do complemento e atuam fagocitando e destruindo esses microrganismos. Também respondem
a sinais de células T auxiliares, o que melhora a sua capacidade de destruir microrganismos
fagocitados. São células efetoras de ambos os tipos de imunidade: imunidade humoral e
imunidade celular.

Os linfócitos T secretam citocinas que recrutam e ativam outros leucócitos, como neutrófilos e
eosinófilos, e, em conjunto, esses tipos de células funcionam na defesa contra vários agentes
patogénicos.

Tecidos linfoides

São divididos em órgãos linfoides primários (timo e medula óssea), cujos linfócitos expressam
recetores de antigénio e são maduros, e órgãos linfoides secundários, onde se desenvolvem
respostas imunes adaptativas (gânglios, baço e tecidos linfoides das mucosas e cutâneos.

Os linfócitos maduros recirculam através dos órgãos periféricos, à caça de antigénios


microbianos aos quais eles podem responder.

Os linfócitos T e B encontram-se anatomicamente organizados de uma maneira que facilita a


resposta imunitária adaptativa.

VISÃO GERAL DA RESPOSTA IMUNOLÓGICA NORMAL

Resposta inicial do sistema imunológico inato aos microorganismos

As principais barreiras entre o hospedeiro e o meio que o cerca são o epitélio da pele e dos
tratos gastrointestinal e respiratório.
Quando os microorganismos infeciosos tentam invadir o organismo, deparam-se inicialmente
com o epitélio, uma barreira física e funcional, que elimina os microorganismos através da
produção de péptidos antibióticos e da ação de linfócitos intraepiteliais.

Se os microorganismos forem capazes de atravessar esses epitélios, eles encontram fagócitos,


incluindo neutrófilos, que são rapidamente recrutados a partir do sangue para os tecidos, e
macrófagos, que vivem nos tecidos debaixo do epitélio. A função dessas células fagocíticas é
ingerir os microrganismos e destruí-los através da produção de substâncias microbicidas.

Em resposta ao reconhecimento dos microrganismos, os fagócitos, as DCs e muitos outros tipos


celulares secretam citocinas e promovem a inflamação e a morte do microrganismo,
aumentando a resposta imunológica protetora.

As células utilizam diversos recetores para identificar os microrganismos:

• Recetores do tipo Toll (TLRs), que reconhecem componentes bacterianos e virais.

As células NK destroem células infetadas por vírus e produzem a citocina IFN-γ ativadora de
macrófagos.

Se o microorganismo entrar no sangue, muitas proteínas plasmáticas, incluindo as proteínas do


sistema complemento, reconhecem o microrganismo e são ativadas, e os seus produtos
destroem os microrganismos e cobrem (opsonização) o microrganismo para a fagocitose.

Em adição ao combate das infeções, a resposta imunológica inata estimula uma imunidade
adaptativa subsequente, provendo sinais que são essenciais para o início da resposta das células
T e B.

Captura e apresentação dos antigénios microbianos

Nos microrganismos que entram através dos epitélios, os seus antigénios proteicos são
capturados pelas DCs que residem nesses epitélios e transportados para os gânglios linfáticos
regionais . Os antigénios proteicos são processados nas APCs para gerar péptidos que são
mostrados na superfície dessas células ligados às moléculas do MHC. Antigénios em diferentes
compartimentos celulares são apresentados por moléculas do MHC distintas, sendo
reconhecidos por subtipos diferentes de células T:

• Os antigénios ingeridos do meio extracelular são processados em vesículas endossomais


e lisossomais, e apresentados ligados a moléculas MHC da classe II. Como o CD4 se liga
às moléculas MHC da
classe II, as células T
auxiliares CD4+
reconhecem os
peptídeos ligados à
classe II.
• Os antigénios presentes
no citoplasma são
apresentados pelas
moléculas MHC classe I
e reconhecidos pelas
células T citotóxicas
CD8+, pois o CD8 liga-se ao MHC classe I.

As proteínas antigénicas, assim como os polissacarídeos e outros antigénios não proteicos,


também são reconhecidos diretamente pelos linfócitos B nos folículos linfoides dos órgãos
linfoides periféricos.

Antes de ser reconhecido pelas células B e T, o microrganismo desencadeia uma resposta


imunológica inata. Essa resposta ativa as APCs a expressarem moléculas coestimuladoras e a
secretar citocinas que estimulam a proliferação e a diferenciação de linfócitos T. Os principais
coestimuladores para as células T são as moléculas B7 (CD80 e CD86) expressas nas APCs e
reconhecidas pelo recetor CD28 nas células T. A resposta imunológica inata a alguns patogénios
e polissacarídeos também resulta na ativação do complemento, gerando produtos de clivagem
que aumentam a proliferação e a diferenciação dos linfócitos B. Assim, o antigénio (sinal 1) e as
moléculas produzidas durante a resposta imunológica natural (sinal 2) atuam em cooperação
para ativar linfócitos específicos para o antigénio. A necessidade do sinal 2 desencadeado pelo
patogénio garante que a resposta imunológica adquirida seja induzida pelos microrganismos e
não por substâncias inócuas.

Imunidade Mediada por Célula: Ativação dos Linfócitos T e Eliminação dos Microrganismos
Associados às Células

Os linfócitos T naive são ativados pelo antigénio e coestimuladores nos órgãos linfoides
periféricos, proliferam e diferenciam-se em células efetoras, das quais a maioria migra para
qualquer local em que o antigénio (microrganismo) esteja presente. Quando ativados, os
linfócitos T secretam proteínas solúveis, as citocinas, que atuam como fatores de crescimento e
de diferenciação para os linfócitos e outras células, e são mediadoras da comunicação entre
leucócitos.

Citocinas

São polipeptídeos produzidos


por vários tipos de células
(principalmente linfócitos e
macrófagos ativados), que
atuam como mediadores da
inflamação e resposta
imunológica.

Apesar de as diversas citocinas


apresentarem ações e funções
diferentes, elas têm certas
características em comum:

• São sintetizadas e
secretadas em
resposta a estímulos
externos que podem
ser produtos
microbianos, reconhecimento de antigénio e outras citocinas.
• A sua secreção é tipicamente transitória e controlada por mecanismos de transcrição e
pós-transcricionais.
• A ação das citocinas pode ser autócrina, parácrina e, mais raramente, endócrina
• Os efeitos tendem a ser pleiotrópicos (uma citocina pode ter atividade biológica diversa,
mesmo em muitos tipos celulares) e redundantes (múltiplas citocinas podem ter a
mesma atividade).
• Molecularmente definidas, as citocinas são chamadas de interleucinas, referindo-se à
sua habilidade de mediar a comunicação entre leucócitos.

As citocinas podem ser agrupadas em diversas classes com base nas suas atividades e funções
biológicas:

• Citocinas envolvidas na imunidade inata e inflamação, a resposta inicial aos


microrganismos e células mortas. As principais citocinas nesse grupo são o TNF e a IL-1,
um grupo de substâncias quimiotáticas chamadas de quimiocinas. IL-12 e IFN-γ, IL-6, IL-
23 e diversas outras citocinas participam da resposta imunológica inata inicial. As
principais fontes dessas citocinas são os macrófagos e as DCs ativadas, assim como
células endoteliais, linfócitos, mastócitos e outros tipos de células
• Citocinas que regulam as respostas dos linfócitos e funções efetoras da imunidade
adquirida. Diversas citocinas estão envolvidas na proliferação e diferenciação dos
linfócitos (p. ex., IL-2 e IL-4) e na ativação de diversas células efetoras (p. ex., IFN-γ, que
ativa os macrófagos; IL-5, que ativa os eosinófilos). As principais fontes dessas citocinas
são os linfócitos T auxiliares CD4+, estimulados por antigénios e coestimuladores. Essas
citocinas são as participantes-chave das fases de indução e efetora das respostas da
imunidade celular.
• Citocinas que estimulam a hematopoiese. Muitas delas são chamadas de fatores
estimuladores de colónias. Elas aumentam a produção de leucócitos pela medula óssea
e, assim, repõem os leucócitos que são consumidos durante as reações imunológicas e
inflamatórias.

Funções efetoras dos linfócitos T

Uma das primeiras respostas das células T auxiliares CD4+ é a secreção da citocina IL-2 e a
expressão de recetores de alta afinidade para a IL-2. A IL-2 é um fator de crescimento que atua
nessa classe de linfócito T, estimulando a sua proliferação e levando a um aumento no número
de linfócitos específicos para o antigénio. Algumas das células oriundas da expansão das células
T diferenciam-se em células efetoras que secretam diferentes grupos de citocinas e, assim,
desempenham funções diferentes. Os subtipos mais bem definidos das células auxiliares CD4+
são os tipos TH1, TH2 e TH17:

• As células TH 1 produzem a citocina IFN-γ, que ativa os macrófagos e estimula as células


B a produzirem anticorpos que ativam o complemento e cobrem os microrganismos
para que sejam fagocitados.
• As células TH 2 produzem IL-4, que estimula as células B para que se diferenciem em
plasmócitos secretores de IgE; IL-5, que ativa os eosinófilos; e IL-13, que ativa as células
epiteliais das mucosas a secretar muco e expelir os microrganismos, ativando os
macrófagos a secretarem fatores de crescimento importantes para o reparo tecidual.
• As células TH 17 produzem a citocina IL-17, que recrutam neutrófilos e dessa forma
promovem a inflamação; as células TH 17 desempenham um papel importante em
algumas alterações inflamatórias mediadas pelas células T.
Estas células efetoras migram para os locais de infeção acompanhados de lesão tecidual.
Quando as células efetoras diferenciadas encontram novamente os microrganismos associados
a células, elas são ativadas para que desempenhem as funções que são responsáveis pela
eliminação dos patogénios. Os principais mediadores das funções das células T auxiliares
incluem o ligante de CD40 (CD40L), que se liga ao seu recetor, o CD40, nas células B e
macrófagos. As células T CD4+ efetoras diferenciadas do tipo TH 1 reconhecem peptídeos
microbianos nos macrófagos que ingeriram patogénios. As células T expressam CD40L, que se
liga ao CD40 nos macrófagos, e secretam a citocina IFN-g, um potente ativador dos macrófagos.
A combinação da ativação mediada pelo CD40 e IFN-γ resulta na indução de substâncias
microbicidas potentes nos macrófagos, incluindo ERO e NO, ocasionando a destruição do
patogénico ingerido. As células TH2 desencadeiam reações de defesa celular que são dominadas
pelos eosinófilos, e não pelos macrófagos. As células T auxiliares CD4+ também estimulam as
respostas das células B através do CD40L e citocinas. Algumas células T CD4+ permanecem nos
órgãos linfoides nos quais elas são ativadas e então migram para os folículos, onde estimulam a
resposta por anticorpos; essas células são chamadas de células T auxiliares foliculares.

Os linfócitos CD8+ ativados diferenciam-se em CTLs, que destroem células portadoras de


microrganismos no seu citoplasma. Esses organismos podem ser vírus, que infetam diversos
tipos celulares, ou bactérias, que são ingeridas pelos macrófagos, mas que aprenderam a
escapar das vesículas fagocitárias para o citoplasma (onde estão inacessíveis à engrenagem de
destruição das células fagocitárias, que está confinada a vesículas). Ao destruir as células
infetadas, as CTLs eliminam os reservatórios de infeção.

Imunidade Humoral: Ativação dos Linfócitos B e Eliminação dos Microrganismos Extracelulares

Após serem ativados, os


linfócitos B proliferam e
depois diferenciam-se em
plasmócitos que secretam
diferentes classes de
anticorpos com funções
distintas:

• Células T
independentes.
Muitos antigénios
polissacarídeos e
lipídicos possuem múltiplos determinantes antigénicos idênticos (epítopos) que são
capazes de se ligar a diversos recetores de antigénios em cada célula B e iniciar o
processo de ativação de células B.
• Células T dependentes. Antigénios proteicos globulares típicos não são capazes de se
ligar a muitos recetores de antigénios, e a resposta completa das células B a proteínas
antigénicas necessita de ajuda a partir das células T CD4+. As células B podem também
atuar como APCs — elas ingerem proteínas antigénicas, degradam-nas e expõem os
seus péptidos ligados à molécula de MHC de classe II para reconhecimento pelos
linfócitos T auxiliares. Os linfócitos T auxiliares expressam CD40L e secretam citocinas,
que trabalham em conjunto para ativar as células B.

Cada plasmócito secreta anticorpos que possuem o mesmo local de ligação de antigénios que
os anticorpos da superfície (recetores de células B) que primeiro reconheceram o antigénio. Os
polissacarídeos e os lípidos estimulam, principalmente, a secreção do anticorpo IgM. Os
antigénios proteicos, devido às ações da célula T auxiliar induzidas pelo CD40L e pelas citocinas,
induzem a produção de anticorpos de diferentes classes (IgG, IgA, IgE). Essa produção de
anticorpos diferentes funcionalmente, todos com a mesma especificidade, é chamada de troca
de classe da cadeia pesada (isótipo); isso oferece plasticidade à resposta dos anticorpos,
permitindo que eles desempenhem diversas funções. As células T auxiliares também estimulam
a produção de anticorpos com alta afinidade pelo antigénio. Esse processo, denominado
maturação da afinidade, melhora a qualidade da resposta da imunidade humoral.

A resposta humoral combate os microrganismos de diversas maneiras:

• Os anticorpos ligam-se aos microrganismos e evitam que eles infetem as células,


neutralizando-os
• As moléculas de anticorpos IgG cobrem (“opsonizam”) os microrganismos, marcando-
os para a fagocitose, já que as células fagocitárias (neutrófilos e macrófagos) expressam
recetores para a extremidade Fc das moléculas de IgG.
• IgG e IgM ativam o sistema complemento através da via clássica, e os seus produtos
promovem a fagocitose e a destruição dos microrganismos. A maior parte da produção
do anticorpo IgG que opsoniza e fixa o complemento é estimulada pelo IFN-γ,
tipicamente produzido pelas células TH1, que respondem a diversas bactérias e vírus,
sendo o anticorpo IgG um importante mecanismo de defesa contra esses patogénicos.
• A IgA é secretada nas mucosas e neutraliza os anticorpos no lúmen dos tratos
respiratório e gastrointestinal (e outras mucosas).
• A IgG é ativamente transportada através da placenta, protegendo o recém-nascido até
que o seu sistema imunológico amadureça → imunidade passiva.
• A IgE cobre parasitas helmínticos e atua junto com os mastócitos e eosinófilos para
destrui-Ios. As células TH2 auxiliares secretam citocinas que estimulam a produção de
IgE e ativam os eosinófilos.

Os anticorpos IgG circulantes possuem meia-vida de cerca de três semanas, o que é muito maior
do que a maioria das proteínas do sangue, como consequência dos mecanismos especiais para
reciclagem de IgG e redução do seu catabolismo. Alguns plasmócitos secretores de anticorpos
migram para a medula óssea e vivem por anos, continuando a produzir baixos níveis de
anticorpos.

Declínio da Resposta Imunológica e Memória Imunológica


A maior parte dos linfócitos efetores induzidos pelos patógenos infecciosos morre por apoptose
depois do microrganismo ser eliminado e o sistema imunológico retorna ao estado de repouso
→ homeostasia. Isto ocorre porque os microrganismos fornecem estímulos essenciais para a
sobrevivência e ativação dos linfócitos, e as células efetoras têm vida curta. Portanto, à medida
que o estímulo é eliminado, os linfócitos ativados não são mais mantidos vivos.

A ativação inicial dos linfócitos também gera células de memória que sobrevivem por muitos
anos após a infeção. As células de memória representam um grupo expandido de linfócitos
antigénio-específico que respondem mais rápido e efetivamente contra o antigénio do que
células naive. É por isso que as células de memória são um objetivo importante da vacinação.

REAÇÕES DE HIPERSENSIBILIDADE: MECANISMOS DE LESÕES IMUNOMEDIADAS

As respostas imunológicas que normalmente são protetoras são também capazes de causar
lesões teciduais. As reações imunológicas prejudiciais estão agrupadas como hipersensibilidade,
e as doenças resultantes são chamadas de doenças de hipersensibilidade. Normalmente, a
erradicação de organismos infecciosos não causa lesão grave aos tecidos do hospedeiro. No
entanto, as respostas imunológicas podem ter um controle inadequado ou ser mal direcionadas
contra tecidos do hospedeiro e, nessas situações, a resposta normalmente benéfica é a causa
da doença.

Causas das reações de hipersensibilidade

• Autoimunidade: reações contra autoantigénios. Normalmente, o sistema imunológico


não reage contra os antigénios do próprio indivíduo → autotolerância. Algumas vezes,
a autotolerância falha, resultando em reações contra células e tecidos do próprio
indivíduo, reações que coletivamente constituem uma autoimunidade. As doenças
causadas pela autoimunidade são chamadas de doenças autoimunes.
• Reações contra os microrganismos. Em alguns casos, a reação parece ser excessiva ou
o antigénio microbiano é atipicamente persistente.
o Se forem produzidos anticorpos contra tais antigénios, eles podem ligar-se aos
antigénios microbianos, produzindo complexos imunes que se depositam nos
tecidos e desencadeiam inflamação (ex: glomerulonefrite pós-estreptocócica).
o As respostas das células T contra agentes persistentes podem originar
inflamação grave, algumas vezes com formação de granulomas → causa da
lesão tecidual na tuberculose e outras infeções.
o Raramente os anticorpos ou as células T reativas a um microrganismo
apresentam reação cruzada com um tecido do hospedeiro; acredita-se que essa
seja a base da doença cardíaca reumática.
o Algumas vezes, a resposta imunológica capaz de causar doença pode ser
completamente normal, mas, no processo de erradicar a infeção, os tecidos do
hospedeiro são danificados. Nas hepatites virais, o vírus que infecta as células
do fígado não é citopático, mas é reconhecido como estranho pelo sistema
imunológico. As células T citotóxicas tentam eliminar as células infetadas, e essa
resposta imunológica normal danifica as células hepáticas.
• Reações contra antigénios ambientais. A maioria dos indivíduos saudáveis não
apresenta reação forte contra substâncias normais existentes no meio ambiente (p. ex.,
pólen, pêlo de animais ou ácaros de poeira), mas quase 20% da população é “alérgica”
a essas substâncias. Esses indivíduos são geneticamente predispostos a realizar uma
resposta imunológica não usual a vários antigénios não infecciosos, por outro lado
inofensivos, aos quais todas as pessoas são expostas, mas apenas algumas reagem
contra.

Como os estímulos para essas respostas imunológicas anormais são difíceis ou impossíveis de
ser eliminados e o sistema imunológico tem muitas vias intrínsecas de feedback positivo
(mecanismos de amplificação), uma vez que a resposta imunológica patológica se inicia é difícil
controlá-la ou finalizá-la. Consequentemente, essas doenças de hipersensibilidade tendem a ser
crónicas, quase sempre debilitantes, representando um desafio terapêutico. Já que a
inflamação, tipicamente a inflamação crónica, é o principal componente da patologia dessas
desordens, às vezes elas são agrupadas sob a nomenclatura de doenças inflamatórias mediadas
pelo sistema imunológico.

Tipos de reação de hipersensibilidade

As reações de hipersensibilidade são tradicionalmente subdivididas em 4 tipos baseados no


principal mecanismo imunológico da lesão; 3 são variações da lesão mediada por anticorpos,
enquanto a quarta é mediada por células T. A razão para essa classificação é que o mecanismo
de lesão imunológica é frequentemente uma ótima maneira de prever as manifestações clínicas
e pode até mesmo ajudar a guiar o tratamento. No entanto, essa classificação das doenças
imunológicas não é perfeita, pois diversas reações imunológicas podem coexistir numa doença.

• A hipersensibilidade imediata (tipo I), frequentemente chamada de alergia, resulta da


ativação do subtipo TH2 de linfócitos T auxiliares CD4+ pelos antigénios ambientais,
levando à produção de anticorpos IgE, que se ligam aos mastócitos. Quando essas
moléculas de IgE se ligam ao antigénio (alérgeno), os mastócitos são estimulados a
libertar mediadores que afetam, por algum tempo, a permeabilidade vascular e
induzem a contração dos músculos lisos em diversos órgãos e podem estimular uma
inflamação mais prolongada (a reação tardia). Essas doenças são comumente
denominadas alterações alérgicas, ou atópicas.
• As desordens de hipersensibilidade mediada por anticorpos (tipo ll) são causadas por
anticorpos que se ligam a tecidos ou antigénios na superfície celular, promovendo a
fagocitose e a destruição das células cobertas por eles ou desencadeiam inflamação
patológica nos tecidos.
• As desordens de hipersensibilidade mediada por complexos imunes (tipo lII) são
causadas por anticorpos que se ligam a antigénios, formando complexos que circulam e
que podem depositar-se nos leitos vasculares e estimular a inflamação, que tipicamente
é secundária à ativação do complemento. A lesão tecidual dessas desordens é resultante
da inflamação.
• As desordens de hipersensibilidade celular (tipo IV) são causadas basicamente por
respostas imunológicas celulares nas quais os linfócitos T dos subtipos TH1 e TH17
produzem citocinas que induzem a inflamação e ativam neutrófilos e macrófagos, os
quais são responsáveis pela lesão tecidual. As CTLs CD8+ também podem contribuir para
a lesão por matar diretamente células do hospedeiro.

Hipersensibilidade imediata (tipo I)

A hipersensibilidade imediata é uma reação tecidual


que ocorre rapidamente (tipicamente em questão de
minutos) após a interação do antigénio com o
anticorpo IgE ligado à superfície dos mastócitos num
hospedeiro sensibilizado. A reação é iniciada pela
entrada de um antigénio chamado de alergénio,
porque desencadeia reações alérgicas. Muitos
alergénios são substâncias ambientais inócuas para a
maioria dos indivíduos. Aparentemente, algumas
pessoas herdam genes que as torna suscetíveis a
alergias. Essa suscetibilidade é manifestada por uma
propensão desses indivíduos para desenvolver
respostas TH2 fortes e, subsequentemente, a
produzir o anticorpo IgE contra os alérgenos. A IgE é
fundamental para a ativação dos mastócitos e a
libertação de mediadores responsáveis pelas
manifestações clínicas e patológicas da reação. A
hipersensibilidade imediata pode-se apresentar
como uma reação local, que é simplesmente
incómoda (p. ex., rinite sazonal ou doença do feno),
gravemente debilitante (asma) ou culminar numa
desordem sistémica fatal (anafilaxia).

Sequência de eventos:

• Ativação de células Th2 e produção de IgE.


Os alergénios podem ser introduzidos por inalação, ingestão ou injeção, e a resposta
TH2 aos alergénios depende de fatores como a via de entrada, a dose e a cronicidade
de exposição ao antigénio, ausência de inflamação e imunidade natural no momento de
reconhecimento do alergénio e composição genética do hospedeiro. As células Th2
frequentemente são recrutadas para o local de reações alérgicas em resposta a
quimiocinas que são produzidas localmente. As células Th2 que são induzidas secretam
IL-4, IL-5 e IL-13, que são responsáveis por todas as reações de hipersensibilidade
imediata:
o IL-4: estimula células B específicas para o antigénio a sofrerem mudança de
classe da cadeia pesada para IgE e a secretar esse isótopo de imunoglobulina.
o IL-5: ativa eosinófilos
o IL-13: atua nas células epiteliais, estimulando a secreção de muco.
• Sensibilização dos mastócitos pelo anticorpo IgE. Os mastócitos são derivados de
precursores na medula óssea, amplamente distribuídos nos diversos tecidos e
normalmente encontrados próximos aos vasos sanguíneos, nervos e em regiões
subepiteliais. Os mastócitos expressam um recetor de alta afinidade para a porção Fc da
cadeia pesada, ε, da IgE, chamado de FcεRI. Apesar de a concentração sérica de IgE ser
muito baixa, a afinidade do recetor FcεRI dos mastócitos é tão alta que está sempre
ocupado por IgE. Esses mastócitos carregando IgE estão “sensibilizados” para reagir se
o antigénio se ligar a moléculas de anticorpos. Os basófilos são o equivalente circulante
dos mastócitos. Eles também expressam FcεRI, mas o seu papel na maioria das reações
de hipersensibilidade imediata ainda não foi determinado (já que essas reações ocorrem
nos tecidos e não na circulação). O terceiro tipo celular que expressa o FcεRI são os
eosinófilos; essas células estão sempre presentes nas reações de hipersensibilidade
imediata e também participam da defesa do hospedeiro contra infeções helmínticas
mediadas por IgE.
• Ativação dos mastócitos e libertação de mediadores. Quando os indivíduos que foram
sensibilizados pela exposição a um alérgeno são expostos novamente a esse alérgeno,
ele se liga a diversas moléculas de IgE nos mastócitos específicos para ele, em geral no
local de entrada do patógeno ou próximo a ele. Quando essas moléculas de IgE sofrem
ligação cruzada, uma série de sinais bioquímicos é desencadeada nos mastócitos. Os
sinais culminam na secreção de vários mediadores dos mastócitos:
o Aminas vasoativas libertadas a partir do armazenamento em grânulos. Os
grânulos dos mastócitos contêm histamina, que é libertada segundos ou
minutos após a ativação dessas células. A histamina causa vasodilatação,
aumento da permeabilidade vascular, contração do músculo liso e elevação da
secreção de muco. Outros mediadores rapidamente libertados incluem a
adenosina (que causa broncoconstrição e inibe a agregação plaquetária) e
fatores quimiotáticos para neutrófilos e eosinófilos. Os grãos dos mastócitos
também contêm diversas proteases neutras (p. ex., triptase) que podem
danificar os tecidos, gerar cininas e clivar componentes do complemento,
produzindo fatores quimiotáticos e inflamatórios adicionais (p. ex., C3a). Os
grânulos também contêm proteoglicanos ácidos (heparina, sulfato de
condroitina) cuja principal função parece ser o armazenamento de matriz para
essas aminas.
o Mediadores lipídicos recém-sintetizados. Os mastócitos sintetizam e secretam
prostaglandinas e leucotrienos. A prostaglandina D2 causa broncoespasmo
intenso e aumento da secreção de muco. Os leucotrienos C4 e D4 são agentes
vasoativos e espasmogénicos. O leucotrieno B4 é altamente quimiotático para
neutrófilos, eosinófilos e monócitos.
o Citocinas. A ativação dos mastócitos resulta na síntese e secreção de diversas
citocinas, que são importantes na reação tardia: TNF e as quimiocinas que
recrutam e ativam leucócitos, IL-4 e IL-5, que amplificam a reação imunológica
iniciada pelas células Th2 e IL-13, que estimula a
secreção de muco pelas células epiteliais.

Alguns desses compostos são libertados com rapidez dos


mastócitos sensibilizados, sendo responsáveis pelas reações
imediatas intensas associadas a condições como a anafilaxia
sistémica. Outros, como as citocinas, são responsáveis pela
inflamação vista na reação tardia.
Frequentemente, as reações desencadeadas pela IgE apresentam duas fases bem definidas:

1. Resposta imediata, caracterizada por vasodilatação, aumento da permeabilidade


vascular e espasmos dos músculos lisos, em geral
evidente 5-30 minutos após a exposição a um
alérgeno, diminuindo após 60 minutos
2. Reação de fase tardia, que se inicia após 2-8 horas
mais tarde, podendo durar vários dias, sendo
caracterizada por inflamação e destruição
tecidual, como a lesão das células epiteliais das
mucosas. As células inflamatórias dominantes
incluem neutrófilos, eosinófilos e linfócitos,
especialmente as células TH2. Os neutrófilos são
recrutados por diversas quimiocinas. Os
eosinófilos são recrutados pela eotaxina e outras quimiocinas libertadas pelo epitélio
ativado pelo TNF, sendo importantes efetores na lesão tecidual da resposta tardia –
produzem a proteína básica principal e a proteína catiónica eosinofílica, LTC4 e fator de
ativação plaquetária. Os leucócitos recrutados podem amplificar e manter a resposta
inflamatória, mesmo na ausência de exposição contínua ao alergénio.

Manifestações clínicas e patológicas:

Pode ser sistémico ou local, sendo que a natureza da reação é determinada pela via de exposição
ao alergénio:

• A exposição sistémica a antigénios proteicos (p. ex., como no veneno de abelha) ou


medicamentos (p. ex., penicilina) pode resultar em anafilaxia sistémica. Minutos após
a exposição de um indivíduo sensibilizado, aparecem prurido, urticária (erupções na
pele) e eritema cutâneo seguidos de dificuldade respiratória causada por
broncoconstrição pulmonar e acentuada pela secreção de muco. O edema de laringe
pode exacerbar o quadro, causando obstrução das vias aéreas superiores. Além disso, a
musculatura de todo o trato gastrointestinal pode ser afetada, causando vómito, dor
abdominal e diarreia. Sem intervenção imediata, pode haver vasodilatação sistémica
com queda da pressão arterial (choque anafilático), evoluindo para colapso respiratório
e morte em questão de minutos.
• As reações locais em geral ocorrem quando o antigénio é confinado a um local em
particular, como a pele (contato, causando urticária), trato gastrointestinal (ingestão,
causando diarreia) ou pulmões (inalação, causando broncoconstrição). No entanto, a
ingestão ou a inalação de alérgenos pode desencadear reações sistémicas.

Atopia → predisposição familiar a reações localizadas tipo I. Os genes que estão envolvidos na
suscetibilidade à asma e outras alterações atópicas incluem aqueles que codificam as moléculas
HLA, citocinas (que podem controlar a resposta Th2), um componente do FcεRI e ADAM33, uma
metaloproteinase que pode estar envolvida na remodelação tecidual das vias aéreas.

A resposta imunológica dependente das células TH2 e da IgE —em particular, reação
inflamatória de fase tardia — desempenha um papel protetor importante nas infeções
parasitárias. A IgE é produzida em resposta a diversas infeções helmínticas, e a sua função
fisiológica é marcar os helmintas para que possam ser destruídos pelos eosinófilos e mastócitos.

Hipersensibilidade mediada por anticorpos (hipersensibilidade do tipo II)


As alterações de hipersensibilidade mediada por anticorpos (tipo II) são causada por anticorpos
direcionados contra antigénios-alvo na superfície das células ou outros componentes teciduais.
Os antigénios podem ser moléculas normais, intrínsecas à membrana celular ou da matriz
extracelular, ou podem ser antigénios exógenos absorvidos.

Os anticorpos marcam as células para que sejam fagocitadas, ativam o sistema do complemento
e ligam-se aos recetores Fc dos fagócitos.

• Opsonização e fagocitose. Quando células circulantes, como os eritrócitos ou as


plaquetas, são cobertas (opsonizadas) por anticorpos, com ou sem a ativação do
complemento, elas tornam-se alvo da fagocitose dos neutrófilos e macrófagos. Essas
células fagocitárias expressam recetores para a porção Fc da IgG e para os produtos da
degradação de C3, uma proteína do complemento, e usam esses recetores para ligar e
ingerir partículas opsonizadas. As células opsonizadas costumam ser eliminadas no
baço, motivo pelo qual a esplenectomia é útil na trombocitopenia autoimune e na
anemia hemolítica.
• Inflamação. Os anticorpos ligam-se a antigénios celulares ou teciduais e ativam o
sistema complemento pela via “clássica”. Os produtos da ativação do complemento
recrutam neutrófilos e monócitos, desencadeando inflamação nos tecidos. Os
leucócitos também podem ser ativados pela ligação dos recetores de Fc, que
reconhecem os anticorpos ligados. Esse mecanismo de danos é exemplificado pela
síndrome de Goodpasture e pelo pênfigo vulgar.
• Disfunção celular mediada por anticorpos. Em alguns casos, anticorpos direcionados
contra recetores da superfície celular alteram ou desregulam a função celular sem
causar lesão ou inflamação. Na miastenia grave, os anticorpos contra os recetores de
ACh nas placas motoras dos músculos esqueléticos inibem a transmissão
neuromuscular, causando fraqueza muscular. Os anticorpos também podem estimular
a função das células de modo excessivo. Na doença de Graves, os anticorpos contra o
recetor da TSH estimulam as células epiteliais da tiróide para que secretem hormonas
tiroideias, causando hipertiroidismo. Anticorpos contra hormonas e outras proteínas
essenciais podem neutralizar e bloquear as ações dessas moléculas, causando
alterações funcionais.

Doenças causadas por complexos imunes (hipersensibilidade do tipo III)

Os complexos antigénios-anticorpos formados na circulação podem se depositar nos vasos


sanguíneos levando à ativação do complemento e inflamação aguda. Os antigénios nesses
complexos podem ser exógenos, como as proteínas microbianas, ou endógenos, como as
proteínas nucleares. A simples formação de complexos imunes não implica doença por
hipersensibilidade; somente quando são produzidos em grande quantidade, persistentes, e
depositados nos tecidos é que são patogénicos. Os complexos imunes patogénicos podem-se
formar na circulação e se depositar nos vasos sanguíneos ou se formar nos locais em que o
antigénio se encontra (complexos imunes in situ). A lesão mediada pelos complexos imunes é
sistémica quando os complexos são formados na circulação e depositados em diversos órgãos
ou localizados em determinados órgãos (p. ex., rins, articulações ou pele) se os complexos forem
formados e depositados em locais específicos. O mecanismo da lesão tecidual é o mesmo,
independentemente do padrão de distribuição; no entanto, a sequência de eventos e as
condições que levam à formação de complexos imunes sistémicos e localizados são diferentes.
Doença sistémica causada por complexos imunes:

A patogénese pode ser dividida em 3 fases:

1. Formação dos complexos na circulação


2. Depósito dos complexos imunes em vários tecidos
3. Reação inflamatória nos locais de depósito fora do
corpo

A doença do soro aguda é o protótipo da doença sistémica


causada por complexos imunes. Ela foi descrita pela
primeira vez quando grande quantidade de soro estranho
foi administrada para a imunização passiva (p. ex., no
indivíduo que recebe soro de cavalo contendo anticorpo
antidifteria); nos dias atuais ela ocorre raramente (p. ex., em
pacientes que receberam injeção de globulina de cavalo
antitimócitos para o tratamento da anemia aplástica ou
rejeição a enxerto ou pacientes com picada de cobras que
recebem anticorpos antiveneno produzidos em animais).
Cerca de cinco dias após a injeção de uma proteína estranha,
são produzidos anticorpos; eles reagem com o antigénio
presente na circulação para formar complexos, que se
depositam nos vasos sanguíneos do leito vascular de
diversos tecidos, desencadeando uma reação inflamatória
lesiva subsequente.

Diversas variáveis determinam se a formação de complexos


imunes leva ao seu depósito nos tecidos e ao
desenvolvimento de uma doença, sendo a mais importante o tamanho dos complexos.
Complexos muito grandes ou com muitas regiões Fc livres nas moléculas de IgG são rapidamente
removidos da circulação por macrófagos no baço e fígado, sendo, portanto, quase sempre
inócuos. Os complexos mais patogénicos são formados durante o excesso de antigénios, são
pequenos ou de tamanho moderado, eliminados com menos eficiência pelos macrófagos e,
portanto, circulam por mais tempo. Para além disso, a carga do complexo, a valência do
antigénio, a avidez do anticorpo e as características hemodinâmicas de determinado leito
vascular influenciam na tendência para desenvolver doença. Os locais de depósito favoritos são
os rins, as articulações e os pequenos vasos sanguíneos em vários tecidos. O depósito nos rins
e nas articulações pode ser parcialmente explicado pelas altas pressões hemodinâmicas
associadas à função de filtração dos glomérulos e da sinovial. Para que os complexos saiam da
circulação e se depositem na parede vascular ou na sua parte externa, também deve ocorrer um
aumento na permeabilidade vascular. É provável que esse aumento seja desencadeado quando
os complexos imunes se ligam aos leucócitos e mastócitos através dos recetores Fc e C3b,
estimulando a libertação de mediadores que aumentam a permeabilidade vascular.

Uma vez depositados os complexos no tecido, inicia-se a reação inflamatória. Durante essa fase
(cerca de 10 dias após a administração do antigénio), aparecem sintomas clínicos como febre,
urticária, artralgias, linfadenopatia e proteinúria. Sempre que ocorre depósito de complexos
imunes, ocorre dano tecidual característico. Esses complexos ativam o sistema do
complemento, levando à libertação de fragmentos biologicamente ativos, como as
anafilatoxinas (C3a e C5a), que aumentam a permeabilidade vascular e são quimiotáticas para
os neutrófilos e monócitos. Os complexos também se ligam aos recetores Fcg nos neutrófilos e
mastócitos, ativando-os. A tentativa de fagocitar os complexos imunes pelos leucócitos resulta
na secreção de uma variedade de substâncias inflamatórias, incluindo prostaglandinas, péptidos
vasodilatadores e substâncias quimiotáticas, assim como enzimas lisossómicas capazes de
digerir a membrana basal, colagénio, elastina e cartilagem, e ERO, que danificam os tecidos. Os
complexos imunes também causam a agregação plaquetária e ativam o fator de Hagernan; essas
duas reações iniciam a formação de microtrombos que contribuem para a lesão tecidual
produzindo isquemia local. A lesão patológica resultante é chamada de vasculite, se ocorrer nos
vasos sanguíneos; glomerulonefrite, se ocorrer nos glomérulos renais; artrite, se afetar as
articulações, e assim por diante.

Previsivelmente, as classes de anticorpos que induzem essas lesões são os anticorpos que fixam
o complemento (p. ex., IgG e IgM) e anticorpos que se ligam aos recetores Fc das células
fagocitárias (IgG). Durante a fase ativa da doença, o consumo de complemento pode resultar na
redução dos seus níveis séricos. O papel da inflamação dependente do complemento e recetor
Fc na lesão tecidual é apoiado pela observação de que a depleção experimental dos níveis
séricos do complemento ou a eliminação dos recetores Fc reduz de modo significativo a
gravidade das lesões, assim como a depleção de neutrófilos.

Doença local mediada por complexos imunes:

Um exemplo é a reação de Arthus, na qual aparece uma área de necrose tecidual causada por
vasculite aguda mediada por complexos imunes. A reação é produzida de forma experimental
injetando-se um antigénio na pele de um animal previamente imunizado. Devido ao excesso
inicial de anticorpos, complexos imunes são formados à medida que o antigénio se difunde
através da parede vascular; eles precipitam-se no local da reação, desencadeando a mesma
reação inflamatória e aparência histológica da doença sistémica mediada por complexos
imunes. As lesões de Arthus evolvem no decorrer de algumas horas, atingindo o seu pico 4-10
horas após a injeção, quando o local da injeção desenvolve edema visível com hemorragia grave,
às vezes seguida por ulceração.

Hipersensibilidade mediada pelas células T (tipo IV)


Diversas alterações autoimunes, assim como reações patológicas aos químicos ambientais e
microrganismos persistentes, são agora conhecidas como sendo causadas por células T. A
ocorrência e o significado da lesão tecidual mediada pelos linfócitos T têm sido cada vez mais
reconhecidos conforme vêm sendo melhorados os métodos para detetar e purificar células T da
circulação dos pacientes e das lesões. Esse grupo de doenças tem despertado muito interesse
em função das novas terapias biológicas.

Dois tipos de reações das células T são capazes de causar lesão tecidual e doença:

1. Inflamação mediada por citocinas, na qual as citocinas são produzidas principalmente


por células T CD4+. As células CD4+ dos subtipos TH1 e TH17 secretam citocinas, que
recrutam e ativam outras células, especialmente macrófagos, e são as maiores efetoras
da doença
2. Citotoxicidade celular direta mediada pelas células T CD8+.

Reações inflamatórias induzidas pelas células T CD4+

• A sequência de eventos nas reações inflamatórias mediadas por células T começa com
a primeira exposição ao antigénio. Os linfócitos T CD4+ naive reconhecem antigénios
peptídicos de proteínas próprias ou microbianas, em associação com moléculas de MHC
classe I na superfície das DCs (ou macrófagos) que tenham processado os antigénios.
• Se as DCs produzirem IL-12, as células T naive diferenciam-se em células efetoras do tipo
TH1. A citocina IFN-γ, produzida pelas células NK e pelas próprias células TH1,
promovem ainda mais a diferenciação das TH1, proporcionando um circuito de feedback
positivo poderoso. Se as APCs produzem IL-1, IL-6 ou IL-23 em vez de IL-12, as células
CD4+ desenvolvem-se em TH17 efetoras.
• Em exposição subsequente ao antigénio, as células efetoras anteriormente geradas são
recrutadas para o local de exposição ao antigénio e ativadas pelo antigénio apresentado
pelas APCs locais. As células TH1 secretam IFN-γ, que é a mais potente citocina ativadora
de macrófago conhecida. Os macrófagos ativados têm aumento da atividade fagocítica
e microbicida, e também expressam mais moléculas de MHC de classe II e
costimulatores, levando ao aumento da capacidade de apresentação do antígeno, e as
células secretam mais IL-2, assim estimulando mais respostas TH1. Após a ativação por
antigénios, as células TH17 efetoras secretam IL-17 e várias outras citocinas, que
promovem o recrutamento de neutrófilos (e monócitos) e, assim, induzem a inflamação.
• Como as citocinas produzidas pelas células T melhoram o recrutamento e ativação de
leucócitos, essas reações inflamatórias tornam-se crónicas, a menos que o agente
agressor seja eliminado ou o ciclo seja interrompido terapeuticamente.

A dermatite de contato é um exemplo da lesão tecidual resultante da inflamação mediada por


células T. É provocada por contato com pentadecilcatecol (também conhecido como uruxiol, o
componente ativo de hera venenosa e carvalho venenoso, que provavelmente se torna
antigénico por ligação a uma proteína do hospedeiro). Em reexposição de uma pessoa
anteriormente exposta às plantas, sensibiliza células TH1 que se acumulam na derme e migram
para o antigénio dentro da epiderme. Aí elas libertam citocinas que danificam os queratinócitos,
causando a separação dessas células, e formam uma vesícula intraepidérmica, e a inflamação é
manifestada como dermatite vesicular.

A hipersensibilidade do tipo retardado (DTH) é uma reação mediada por células T que se
desenvolve em resposta a um antigénio em indivíduos previamente sensibilizados. Em contraste
com a hipersensibilidade imediata, a reação de DTH é adiada durante 12-48 horas, que é o
tempo que leva para que as células T efetoras sejam recrutadas para o local do antígeno e
ativadas pelas citocinas secretadas. O clássico exemplo da DTH é a reação à tuberculina, num
indivíduo sensibilizado com o bacilo da tuberculose. Cerca de 8-12 horas após a injeção
intracutânea de tuberculina, aparece uma área local de eritema e endurecimento, atingindo um
pico (tipicamente de 1-2 cm de diâmetro) em 24-72 horas e explicando a designação
“retardado”. No exame histológico, a reação de HR é caracterizada pelo acúmulo perivascular
(cuffing) de células T auxiliares CD4+ e macrófagos. A secreção local de citocinas por essas
células inflamatórias mononucleares leva a um aumento da permeabilidade microvascular,
causando edema dérmico e depósito de fibrina; esta última é a maior responsável pela
induração de tecido nessas respostas. O teste de tuberculina é usado para identificar indivíduos
com exposição prévia à tuberculose que, por isso, possuem células T de memória na circulação
específicas para as proteínas microbianas. Notavelmente, a imunossupressão ou a perda de
células T CD4+ (p. ex., resultado da infeção pelo HIV) pode levar a uma resposta negativa para
tuberculina, mesmo na presença de infeção severa.

Citotoxicidade mediada por células T

As moléculas de MHC classe I ligam-se a antigénios peptídicos intracelulares e apresentam-nos


aos linfócitos T CD8+, estimulando a diferenciação dessas células T em células efetoras
chamadas CTs. As CTs desempenham um papel muito importante na resistência a infeções virais
e a alguns tumores. O principal mecanismo de destruição pelas CTLs é dependente do sistema
perforina-granzima. A perforina e as granzimas são armazenadas em grânulos e rapidamente
libertadas quando as CTLs se ligam aos seus alvos (células com as moléculas MHC I apropriadas
ligadas a péptidos). A perforina liga-se à membrana plasmática das células-alvo e promove a
entrada de granzimas, proteases que clivam especificamente as caspases celulares, ativando-as.
Essas enzimas induzem a morte por apoptose das células-alvo. As CTLs desempenham um papel
importante na rejeição de transplantes de órgãos sólidos e podem contribuir para muitas
doenças imunológicas, como o diabetes do tipo 1 (no qual as células beta dos ilhéus de
Langerhans são destruídas por uma reação autoimune das células T). As células T CD8+ também
podem secretar INF-γ e contribuir para a inflamação mediada por citocinas, mas menos do que
as células CD4+.
DOENÇAS AUTOIMUNES

As doenças autoimunes variam desde aquelas


em que as respostas imunológicas são
direcionadas contra determinado órgão ou
tipo celular, resultando em lesão tecidual
localizada, a doenças que envolvem diversos
sistemas, caracterizadas por lesões em
diversos órgãos e associadas a múltiplos
autoanticorpos ou reações mediadas por
células T contra diversos antigénios do
hospedeiro. Em muitas doenças sistémicas
que são causadas por complexos imunes e
autoanticorpos, as lesões afetam
principalmente o tecido conjuntivo e os vasos
sanguíneos dos diversos órgãos envolvidos.
Portanto, essas doenças são frequentemente referidas como desordens do “colagénio vascular”
ou do “tecido conjuntivo”, mesmo quando as reações imunológicas não são especificamente
direcionadas contra constituintes do tecido conjuntivo ou vasos sanguíneos.

A auto-imunidade resulta de uma falha na tolerância própria.

Tolerância imunológica

A tolerância imunológica é a ausência de resposta a um antigénio induzida pela exposição de


linfócitos específicos àquele antigénio. A autotolerância refere-se a uma ausência de resposta
aos autoantigénios. Bilhões de recetores de antigénios são aleatoriamente gerados nos
linfócitos T e B em desenvolvimento, pelo que durante esse processo podem ser produzidos
recetores que podem reconhecer antigénios próprios. Já que parte desses antigénios não se
pode esconder do sistema imunológico, deve haver maneiras de eliminá-los ou controlá-Ios.
Diversos mecanismos atuam em conjunto para selecionar contra a autorreatividade, prevenindo
assim reações imunológicas contra os antigénios do hospedeiro. Esses mecanismos são divididos
em dois grupos: tolerância central e tolerância periférica.

1. Tolerância central: o principal mecanismo da tolerância central é a morte de linfócitos


T e B autorreativos durante o seu amadurecimento nos órgãos linfoides centrais (no
timo, no caso das células T, e na medula óssea, no caso das células B). No timo, muitos
antigénios proteicos autólogos são processados e apresentados por APCs do timo
associados a moléculas MHC do próprio indivíduo. Qualquer célula T em
desenvolvimento que expresse um recetor para antigénios próprios é negativamente
selecionada (excluída pela apoptose), e as células T periféricas que permanecem são,
consequentemente, livres de células autorreativas. Um dos fatores de transcrição
implicados na indução da expressão de antigénios de tecidos aparentemente periféricos
no timo é o AIRE; mutações no gene AIRE são responsáveis por uma síndrome
poliendócrina autoimune na qual células T específicas para diversos autoantigénios
iludem a seleção negativa (provavelmente porque esses antigénios não são expressos
no timo) e atacam os tecidos que expressam antigénios próprios. Algumas células T que
encontram autoantigénios no timo não são destruídas, mas diferenciam-se em células
T reguladoras. As células B imaturas que reconhecem autoantigénios com grande
afinidade na medula óssea também podem morrer por apoptose. Algumas células B
autorreativas podem escapar da eliminação, mas passam por um segundo rearranjo dos
genes do recetor de antigénios, expressando novos recetores que não são mais
autorreativos (um processo denominado “edição do receptor”). Infelizmente, o
processo de eliminação de linfócitos T autorreativos não é perfeito. Diversos
autoantigénios podem estar ausentes do timo e, em consequência, células T com
recetores para esses antigénios escapam para a periferia. Existe um “erro” semelhante
com as células B também; portanto, células B que possuem recetores para uma
variedade de autoantigénios, incluindo tiroglobulina, colagénio e DNA, podem ser
encontradas em indivíduos saudáveis.
2. Tolerância periférica: as células T autorreativas que escapam da seleção negativa no
timo têm o potencial para causar lesão, a não ser que sejam eliminadas ou eficazmente
controladas. Diversos mecanismos nos tecidos periféricos que silenciam
potencialmente essas células T reativas têm sido identificados:
a. Anergia: desativação funcional (em vez da morte) dos linfócitos induzida pelo
encontro com antigénios em determinadas condições. Se os segundos sinais
coestimuladores da célula T não forem fornecidos ou se um recetor inibitório
na célula T (e não o recetor coestimulador) for ligado quando a célula encontra
autoantigénios, a célula T torna-se anérgica, sendo incapaz de responder ao
antigénio. Como as moléculas coestimuladoras não apresentam expressão forte
na maioria dos tecidos normais, o encontro entre células T autorreativas e
autoantigénios nos tecidos pode torná-Ias anérgicas. As células B também
podem se tornar anérgicas se encontrarem o antigénio na ausência de células T
auxiliares específicas.
b. Supressão pelas células T reguladoras: as populações de células T reguladoras
mais definidas expressam CD25, uma das cadeias do recetor para a IL-2, e
requerem IL-2 para a sua geração e sobrevivência. Essas células também
expressam um fator de transcrição único, chamado de FoxP3. Essa proteína é
necessária para o desenvolvimento de células reguladoras, e mutações no gene
FoxP3 são responsáveis por uma doença autoimune sistémica chamada de IPEX
(síndrome de desregulação imune ligada ao X, poliendocrinopatia e
enteropatia), associada a uma deficiência das células T reguladoras. Diversos
mecanismos pelos quais as células reguladoras controlam a resposta
imunológica estão relacionados à secreção, por essas células, de citocinas
imunossupressoras (p. ex., IL-l0 e TGF-β), que diminuem várias respostas das
células T, e bloqueio competitivo das moléculas B7 nas ACPs.
c. Morte celular induzida pela ativação: apoptose dos linfócitos maduros
resultante do reconhecimento do antigénio. Um mecanismo de apoptose é a
morte do recetor Fas (um membro da família de recetores TNF) que foi unido
ao seu ligante expresso na mesma célula. A mesma via é importante para a
eliminação das células B autorreativas pelo ligante Fas expresso nas células T
auxiliares. A importância desta via de autotolerância é ilustrada pela descoberta
de que mutações no gene FAS são responsáveis por uma doença autoimune
denominada síndrome linfoproliferativa autoimune, caracterizada por
linfadenopatia e diversos anticorpos, incluindo anticorpos anti-DNA. A via
mitocondrial da apoptose, que não depende da morte de recetores, pode
também estar envolvida na eliminação de linfócitos reativos contra o
hospedeiro.
Mecanismos de autoimunidade

A rutura da autotolerância e o desenvolvimento de


autoimunidade resultam de uma combinação de genes
suscetíveis herdados, que influenciam a tolerância dos linfócitos
e fatores ambientais, como infeção ou danos teciduais, que
alteram a apresentação de antigénios próprios.

Fatores genéticos na autoimunidade

• As doenças autoimunes tendem a afetar famílias,


havendo maior incidência da mesma doença em gémeos
monozigóticos do que em gémeos dizigóticos.
• Diversas doenças autoimunes estão ligadas ao locus
HLA, sobretudo aos alelos da classe II (HLA-DR, HLA-DQ).
A frequência de uma doença num indivíduo com
determinado alelo HLA em particular em comparação
com indivíduos que não herdaram aquele alelo é
chamada de razão de chances ou risco relativo. O risco
relativo varia de 3-4, para a artrite reumatoide e HLA-
DR4, a 100 ou mais para a espondilite anquilosante e HLA-B27. No entanto, não está
claro como os genes da molécula de MHC influenciam o desenvolvimento da
autoimunidade, sobretudo porque as moléculas MHC não distinguem entre antigénios
peptídicos próprios e estranhos. Também é de assinalar que a maioria dos indivíduos
com um alelo MHC relacionado à suscetibilidade nunca desenvolve qualquer doença e,
por outro lado, indivíduos sem genes MHC relevantes podem desenvolver doença
autoimune. Portanto, a expressão de determinado gene MHC é apenas uma variável
que pode contribuir para a autoimunidade.
• Alguns polimorfismos genéticos estão associados a diversas doenças, sugerindo que os
genes envolvidos influenciam mecanismos gerais de autotolerância e regulação
imunológica. Outros são específicos para determinadas doenças e podem influenciar a
sensibilidade de órgãos-alvo ou a apresentação de antigénios próprios particulares.
Existe grande interesse em elucidar como esses genes contribuem para a
autoimunidade, e muitas hipóteses plausíveis têm sido propostas, mas o papel real
desses genes no desenvolvimento de doenças autoimunes específicas não está
estabelecido.

Papel das infeções e lesão tecidual

Os microrganismos podem induzir reações autoimunes por meio de vários mecanismos:

• Vírus e outros microrganismos podem apresentar ligação cruzada com antigénios do


hospedeiro, de forma que essas respostas a antigénios microbianos podem ser
direcionadas a tecidos do hospedeiro. Esse fenómeno é chamado de mimetismo
molecular (ex: doença cardíaca reumática).
• As infeções microbianas, com necrose e inflamação tecidual resultante, podem
estimular moléculas coestimuladoras nas APCs dos tecidos, favorecendo, assim, uma
rutura na anergia das células T e a sua ativação subsequente.

A radiação ultravioleta (UV) provoca a morte celular e pode levar à exposição dos antigénios
nucleares, os quais provocam respostas imunológicas patológicas imunitárias no lúpus; esse
mecanismo é a explicação proposta para a associação de lúpus com exposição à luz solar. O
tabagismo é um fator de risco para a artrite reumatoide, talvez porque leva à modificação
química de antigénios próprios. Lesão do tecido local, por qualquer razão, pode conduzir à
libertação de antigénios próprios e respostas autoimunes.

Muitas das doenças autoimunes são mais comuns em mulheres que em homens. Os
mecanismos subjacentes ainda não são bem compreendidos, e podem incluir os efeitos das
hormonas e outros fatores.
Uma resposta autoimune pode por si mesma promover ainda mais ataques autoimunes. A lesão
tecidual causada por uma resposta autoimune ou qualquer outra causa pode levar à exposição
de epitopos antigénicos que antes eram escondidos, mas são agora apresentados às células T
em forma imunogénica. A ativação dessas células T autorreativas é chamada de “espalhamento
de epitopo” porque a resposta imune “espalha” os epitopos que não foram reconhecidos
inicialmente. Esse é um dos mecanismos que podem contribuir para a cronicidade das doenças
autoimunes.

Lúpus eritematoso sistémico

O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma doença autoimune que afeta diversos órgãos, com
manifestações multiformes e comportamento clínico variável. Do ponto de vista clínico, é uma
doença imprevisível, remitente e recorrente, de início súbito ou insidioso, que pode envolver
virtualmente qualquer órgão; no entanto, ela afeta sobretudo pele, rins, serosas, articulações e
coração. Sob o aspeto imunológico, a doença está associada a uma grande variedade de
autoanticorpos, classicamente incluindo anticorpos antinucleares (AANs). A apresentação
clínica é variável e possui várias manifestações em comum com outras doenças autoimunes
(artrite reumatoide, polimiosite e outras), pelo que foi necessário desenvolver critérios
diagnósticos para o LES. O diagnóstico é estabelecido se o paciente apresentar quatro ou mais
critérios durante o período de observação.

Existe forte predominância do sexo feminino (cerca de 9:1), e a doença afeta 1 em 700 mulheres
em idade fértil. O LES é mais comum e mais grave em negros americanos, afetando 1 em 245
mulheres nesse grupo. O início geralmente é na
segunda ou terceira década de vida, mas pode-se
manifestar em qualquer idade, inclusive na infância.

O defeito fundamental no LES é a incapacidade de


manter a autotolerância, levando à produção de
grande número de autoanticorpos que podem
danificar os tecidos, diretamente ou na forma de
depósitos de complexos imunes. A patogénese do
LES envolve uma combinação de fatores genéticos e
ambientais.

Fatores genéticos

• Associação familiar. Os membros da família


têm risco aumentado para o
desenvolvimento de LES, e mais de 20% dos
parentes de primeiro grau clinicamente não
afetados podem ter autoanticorpos. Há uma
alta taxa de concordância em gémeos
monozigóticos (25%) e gémeos dizigóticos
(1-3%).
• Associação com HLA. A razão de
probabilidades (risco relativo) para as pessoas com HLA-DR2 ou HLA-DR3 é de 2-3 e, se
ambos os haplótipos estão presentes, o risco é de cerca de 5.
• Outros genes. Deficiências genéticas das proteínas da via clássica do complemento,
especialmente CI q, C2 ou C4, são encontradas em cerca de 10% dos pacientes com LES.
As deficiências do complemento podem resultar em defeito de depuração dos
complexos imunológicos e células apoptóticas, e falha de tolerância das células B. Um
polimorfismo no recetor inibitório Fc, FcgRllb, tem sido descrito em alguns pacientes, o
que pode contribuir para o controle inadequado da ativação de células B.

Fatores ambientais

• Radiação ultravioleta (UV) (exposição ao sol) agrava as lesões do LES. Um mecanismo


postulado desse efeito é que a radiação UV provoca a apoptose de células hospedeiras,
levando a uma carga aumentada de fragmentos nucleares e respostas inflamatórias
para os produtos de células mortas.
• O tabaco tem sido associado ao desenvolvimento do LES. Embora o mecanismo seja
desconhecido, o tabaco pode modular a produção de autoanticorpos.
• Pensa-se que as hormonas sexuais possam exercer influência importante no
desenvolvimento da doença, pois o LES é 10 vezes mais comum em mulheres em idade
fértil do que nos homens de idades semelhantes, mas apenas 2-3 vezes mais comum em
mulheres durante a infância ou após a idade de 65 anos. No entanto, o tratamento de
mulheres com contracetivos orais contendo altas doses de estrógeno e progesterona
não influenciou a frequência ou a gravidade do aumento da doença, sugerindo que
outros fatores além de hormonas podem contribuir para o maior risco dessa doença em
mulheres.
• Fármacos como procainamida e hidralazina podem induzir uma doença semelhante ao
LES, embora tipicamente a glomerulonefrite não se desenvolva. Esses fármacos causam
desmetilação do DNA, que pode influenciar a expressão de uma variedade de genes
envolvidos no desenvolvimento de autoimunidade ou a capacidade do DNA para ativar
células hospedeiras.

Anormalidades imunológicas no LES

• Interferões tipo I. As células do sangue mostram notável assinatura molecular que indica
exposição ao IFN-α, um tipo de interferão do tipo I que é produzido principalmente por
DCs plasmocitoides. Alguns estudos mostraram que tais células de pacientes com LES
também produzem quantidades anormalmente elevadas de IFN-α.
• Sinais de TLR. Estudos em modelos animais mostraram que TLRs que reconhecem o DNA
e o RNA, notavelmente o DNA reconhecendo a TLR9 e o RNA reconhecendo o TLR7,
produzem sinais que ativam as células B específicas para autoantigénios nucleares.
• Falha de tolerância das células B. Estudos com as células B a partir de pacientes com LES
sugerem a presença de defeitos na tolerância central e periférica, resultando em maior
frequência de células B autorreativas.

Com base nestas evidências, foi proposto um modelo para a patogénese do LES:

• A irradiação UV e outros insultos ambientais levam à apoptose de células. A remoção


inadequada do núcleo dessas células, em parte devido a defeitos de mecanismos de
limpeza como proteínas do complemento e os recetores, resulta numa grande carga de
antigénios nucleares.
• O polimorfismo em genes diferentes, que são os genes de suscetibilidade para o lúpus,
leva a um defeito na capacidade de manter a autotolerância em Iinfócitos B e T, pelo
facto de esses linfócitos autorreativos se manterem funcionais.
• As células autorreativas B são estimuladas pelos antigénios próprios nucleares, e os
anticorpos são produzidos contra os antigénios. Os complexos ligam-se aos recetores Fc
em células B e DCs, e podem ser internalizados. Os componentes de ácidos nucleicos
ligados a TLRs estimulam as células B a produzir anticorpos e ativar as DCs,
particularmente as DCS plasmocitoides, a produzir IFN-α, o que aumenta ainda mais a
resposta imune e causa mais apoptose. O resultado final é um ciclo de libertação de
antigénio e ativação imunológica, resultando na produção de autoanticorpos de alta
afinidade.

Espectro dos autoanticorpos no LES

Os anticorpos foram identificados contra uma série de componentes do núcleo e do citoplasma


da célula que são específicos para órgãos e para as espécies. Outro grupo de anticorpos é
direcionado contra antígenos de superfície de células do sangue, enquanto ainda outro é reativo
a proteínas em complexo com fosfolípidos (anticorpos antifosfolipídicos).

• Anticorpos antinucleares (AANs): são dirigidos contra diversos antigénios nucleares e


podem ser agrupados em quatro categorias: (1) anticorpos contra o DNA, (2) anticorpos
contra histonas, (3) anticorpos contra outras proteínas não histonas ligadas ao RNA e
(4) anticorpos contra antigénios nucleolares. O método mais usado para detetar os
ANAs é a imunofluorescência indireta (IFA). Quatro padrões de coloração são vistos com
IFA: homogéneo ou difuso, renal ou periférico, salpicado e nucleolar. Embora cada
coloração possa ser sugestiva da presença de anticorpos específicos, a força dessas
associações é limitada e não deve ser invocada. Teste de ANA por IFI é extremamente
sensível, pois mais de 95% dos pacientes com LES vão estar positivos, mas a
especificidade do teste é bastante limitada porque os pacientes com outras doenças
autoimunes, infeções crónicas e cancro também vão testar positivo.
• Outros autoanticorpos. Anticorpos contra células sanguíneas, incluindo hemácias,
plaquetas e linfócitos, são encontrados em muitos pacientes. Anticorpos
antifosfolipídios estão presentes em 40-50% dos pacientes com lúpus e reagem com
uma variedade de complexos de proteínas e fosfolipídios. Alguns ligam-se à cardiolipina,
usada nos exames sorológicos para a sífilis e, por isso, os pacientes com lúpus podem
apresentar resultado falso-positivo para a sífilis. Os anticorpos antifosfolipídicos
contribuem para as anormalidades na coagulação.

Mecanismos de lesão tecidual

O maior dano em órgãos no LES é causado pela deposição de complexos imunes. Esses depósitos
de complexos imunes vêm sendo pensados como a causa de danos nos tecidos através da
ativação da via clássica do complemento (hipersensibilidade de tipo III); 75% dos pacientes terão
redução dos níveis séricos de C3 e C4 no momento de surtos do LES, presumivelmente porque
o complemento será ativado e consumido mais rápido do que pode ser produzido. No entanto,
pessoas deficientes em C1q não estão protegidas do LES e na verdade podem,
espontaneamente, desenvolver LES, levantando a possibilidade de que os mecanismos
independentes de complemento também podem contribuir para o dano tecidual.

Os autoanticorpos de diferentes especificidades contribuem para as manifestações patológicas


e clínicas do LES (hipersensibilidade do tipo II). Autoanticorpos contra glóbulos vermelhos,
glóbulos brancos e plaquetas opsonizam essas células e levam à sua fagocitose, resultando em
citopénias. Os autoanticorpos contra vários fosfolípidos levam à trombose aumentada em
pacientes, com consequências clínicas variadas, incluindo aborto espontâneo recorrente e
episódios trombóticos. Esses transtornos são parte da síndrome antifosfolípidica.
Paradoxalmente, esses anticorpos interferem nos testes de coagulação e são atualmente
chamados de “anticoagulantes do lúpus”. Os autoanticorpos são também produzidos contra
fatores de coagulação, como a trombina, e esses também podem contribuir para doenças de
coagulação. Os autoanticorpos contra recetores do sistema nervoso central para vários
neurotransmissores têm sido incriminados nas complicações neuropsiquiátricas da doença.

Não há evidência de que ANAs podem permear células intactas. No entanto, se os núcleos das
células são expostos, os ANAs podem ligar-se a eles. Nos tecidos, os núcleos das células
danificadas reagem com os ANAs, perdem o seu padrão de cromatina e tornam-se homogéneos,
para produzir os chamados corpos LE ou corpos hematoxilínicos. Um correlato in vitro a ele é a
célula LE, o neutrófilo ou macrófago que engurgitou o núcleo desnaturado de outra célula
lesada. Quando o sangue é retirado e agitado, vários leucócitos são suficientemente danificados
para expor os seus núcleos para os ANAs, com a ativação secundária do complemento; esses
anticorpos e núcleos opsonizados pelo complemento são então prontamente fagocitados.
Embora o teste para célula LE seja positivo em até 70% dos pacientes com LES, é agora
amplamente de interesse histórico.

Morfologia

O LES é uma doença sistémica com diversas manifestações proteiformes. As alterações


morfológicas são extremamente variáveis e dependem da natureza dos autoanticorpos, do
tecido em que os complexos imunes se depositam e da evolução e duração da doença. As
alterações morfológicas mais características são resultantes do depósito de complexos imunes.

1. Vasos sanguíneos. Uma vasculite necrosante aguda, que afeta as pequenas artérias e
arteríolas, pode estar presente em qualquer tecido. A arterite é caracterizada pela
necrose e depósitos fibrinóides na parede dos vasos que contêm anticorpos, DNA,
fragmentos do complemento e fibrinogénio; um infiltrado leucocitário transmural e
perivascular é encontrado com frequência. Nos estágios crónicos, os vasos apresentam
um espessamento fibroso com redução do lúmen vascular.
2. Rins. O envolvimento dos rins é uma das manifestações clínicas mais importantes e a
insuficiência renal é a causa mais comum de óbito. Aqui, o foco está na patologia
glomerular, mas lesões intersticiais e tubulares também podem estar presentes. A
patogénese de todas as formas de glomerulonefrite no LES envolve o depósito de
complexos de DNA/anti-DNA nos glomérulos. Eles desencadeiam uma resposta
inflamatória que pode causar a proliferação de células endoteliais, mesangiais e/ou
epiteliais e, nos casos mais graves, necrose do glomérulo. Apesar de os rins terem
aparência normal na microscopia ótica em 25-30% dos casos, praticamente todos os
casos de LES apresentam alguma anormalidade renal se forem examinados pela
microscopia eletrónica. Existem 6 padrões de doença glomerular no LES:
a. Nefrite lúpica mesangial mínima (classe I) é raramente encontrada nas biópsias
renais. Os complexos imunes estão presentes no mesângio, mas não existe
nenhuma alteração estrutural concomitante detetável pela microscopia óptica.
b. Nefrite lúpica mesangial proliferativa (classe II) ocorre em 10-25% dos casos e
está associada a sintomas clínicos leves. Os complexos imunes depositam-se no
mesângio, com discreto aumento na matriz e celularidade mesangiais.
c. Nefrite lúpica focal (classe III) afeta 20-35% dos pacientes e as lesões só afetam
porções de menos de metade dos glomérulos e podem estar segmentadas ou
globalmente distribuídas em cada glomérulo. As lesões ativas são caracterizadas
pelo edema e proliferação das células endoteliais e mesangiais, infiltração de
neutrófilos e/ou depósitos fibrinoides com trombos capilares. A apresentação
clínica pode variar entre hematúria e proteinúria microscópicas leves a uma
transição para sedimento urinário mais ativo, com cilindros hemáticos de
glóbulos vermelhos fundidos e insuficiência renal grave aguda.
d. Nefrite lúpica difusa (classe IV): é a forma mais grave e também é a mais
comum, afetando 35-60% dos pacientes. A maioria dos glomérulos apresenta
proliferação endotelial e mesangial, afetando todo o glomérulo, causando
hipercelularidade difusa dos glomérulos, produzindo, em alguns casos,
crescentes epiteliais que preenchem o espaço de Bowman. Quando extensos,
os complexos imunes criam um espessamento generalizado da parede capilar,
dando-Ihes aparência semelhante a “alças de arame” na microscopia ótica de
rotina. A microscopia eletrónica revela complexos imunes subendoteliais
eletrodensos (entre o endotélio e a membrana basal). A lesão evolui com fibrose
(glomeruloesclerose). A maioria desses pacientes apresenta hematúria com
proteinúria moderada a grave, hipertensão e insuficiência renal.
e. Nefrite lúpica membranosa (classe V) ocorre em 10-15% dos casos, sendo
caracterizada pelo espessamento generalizado da parede capilar, causado pelo
depósito aumentado de material semelhante à membrana basal, assim como
pela acumulação de complexos imunes. Pacientes com essa alteração
histológica quase sempre apresentam proteinúria e síndrome nefrótica franca.
f. Nefrite lúpica avançada esclerosante (classe VI) é caracterizada pela completa
esclerose em mais de 90% dos glomérulos e corresponde ao estágio terminal da
doença renal.
3. Pele. Está envolvida na maioria dos pacientes; observa-se erupção eritematosa ou
maculopapular característica nas eminências malares e nariz (lesão “em borboleta”) em
cerca de metade dos pacientes. A exposição à luz do sol (luz UV) causa uma exacerbação
do eritema (fotossensibilidade). Sob o aspeto histológico, há degeneração e liquefação
da camada basal da derme, edema na junção dermoepidérmica e infiltrado
mononuclear em torno dos vasos sanguíneos e anexos cutâneos. A microscopia de
imunofluorescência revela depósitos de Ig e complemento na junção dermoepidérmica;
depósitos semelhantes de Ig e complemento podem estar presentes na pele
aparentemente normal.
4. Articulações. O envolvimento articular é comum, mas não costuma estar associado a
alterações anatómicas marcantes ou deformidade da articulação. Quando presente,
consiste em edema e infiltrado mononuclear inespecífico nas membranas sinoviais. A
erosão da membrana e a destruição da cartilagem articular, semelhante ao que ocorre
na artrite reumatoide, são extremamente raras.
5. SNC. O envolvimento do SNC também é muito comum, com défices neurológicos focais
e/ou sintomas neuropsiquiátricos, devido a lesões vasculares que causam isquemia ou
microenfartes cerebrais focais. A angiopatia dos vasos pequenos com proliferação não
inflamatória da íntima é a lesão patológica mais comum; a presença de vasculite franca
é rara. A angiopatia pode resultar da trombose causada por anticorpos antifosfolipídios.
Há desenvolvimento de aterosclerose precoce que pode contribuir para a isquemia do
SNC. Outro mecanismo postulado para a doença vem de danos no SNC a partir de
anticorpos antineuronais que possam causar disfunção neuronal, mas essa hipótese
permanece sem comprovação.
6. Outros órgãos
a. O baço pode estar ligeiramente aumentado de tamanho. É comum a presença
de espessamento da cápsula, assim como hiperplasia folicular com numerosos
plasmócitos na polpa vermelha.
b. O pericárdio e a pleura podem apresentar derrames serosos (na fase aguda) a
exsudatos fibrinosos que progridem para opacificação fibrosa nos estágios
crónicos. O envolvimento do coração se manifesta, primariamente, na forma de
pericardite. Miocardite, na forma de infiltrado de células mononucleares
inespecíficas, e lesões valvulares, chamadas de endocardite de Libman-Sacks,
também ocorrem, mas são mais raras. A base da aterosclerose acelerada não é
bem entendida, mas parece ser multifatorial; complexos imunes podem-se
depositar na vasculatura coronariana e, assim, danificar o endotélio.
c. Muitos outros órgãos e tecidos podem estar envolvidos. As alterações
consistem, essencialmente, em vasculite aguda dos pequenos vasos, focos de
infiltrado mononuclear e depósitos fibrinóides. Além disso, nos pulmões pode
ocorrer fibrose intersticial associada à inflamação pleural; o fígado apresenta
inflamação inespecífica dos espaços porta.

Manifestações clínicas

O LES é uma doença multissistémica altamente variável na sua apresentação clínica.


Tipicamente, o paciente é uma mulher jovem com algumas, mas raramente todas as
características a seguir: lesão vermelha “em borboleta” na face, febre, dor e edema em uma
ou mais articulações periféricas (mãos e pulso, joelhos, pés, tornozelo, cotovelos, ombros), dor
pleurítica e fotossensibilidade. No entanto, em muitos pacientes, a apresentação de LES é subtil
e confusa, variando de uma desordem febril de origem desconhecida, achados urinários
anormais ou doenças das articulações mascaradas como AR ou febre reumática. Os ANAs são
achados em praticamente 100% dos pacientes, mas um ponto importante é que os ANAs não
são específicos. Uma variedade de manifestações clínicas indica envolvimento renal, incluindo
hematúria, cilindros hemáticos, proteinúria e, em alguns casos, síndrome nefrótica clássica.
Achados laboratoriais de alguns desarranjos hematológicos são comuns e, em alguns pacientes,
anemia ou trombocitopénia podem ser as manifestações presentes, assim como os problemas
clínicos dominantes. Os pacientes com LES são também propensos a infeções, presumivelmente
por causa da sua disfunção imune subjacente e tratamento com fármacos imunossupressores.
O curso da doença é variável e imprevisível. Os casos raros agudos evoluem para a morte dentro
de semanas a meses. Mais frequentemente, com tratamento adequado, a doença é
caracterizada por surtos e remissões, abrangendo um período de anos ou mesmo décadas.
Durante surtos agudos, o aumento da deposição de complexos imunes e a ativação do
complemento são tidos como resultando em hipocomplementemia. As exacerbações da doença
geralmente são tratadas com corticosteroides ou outros imunossupressores. Mesmo sem
tratamento, em alguns pacientes a doença pode seguir um curso benigno com apenas
manifestações cutâneas e hematúria leve por muitos anos. O prognóstico melhorou
significativamente, e uma sobrevida de cinco anos pode ser esperada em aproximadamente 95%
dos pacientes. As causas mais comuns de óbito são insuficiência renal, infeções intercorrentes
e doença cardiovascular. A incidência de cancro também é aumentada, particularmente os
linfomas de células B, uma associação comum a doenças marcadas por hiperestimulação das
células B (p. ex., síndrome de Sjögren).

Artite reumatoide

A artrite reumatoide (AR) é uma doença inflamatória crónica sistémica, que afeta muitos
tecidos, atacando principalmente as articulações para produzir sinovite não supurativa
proliferativa que frequentemente progride para destruir a cartilagem articular e o osso,
resultando em artrite incapacitante (ver aula osteoarticular).
Síndrome de Sjögren

A síndrome de Sjögren é uma entidade clinicopatológica caracterizada por olhos secos


(ceratoconjuntivite seca) e boca seca (xerostomia) por causa da destruição das glândulas
lacrimais e salivares mediada pelo sistema imunológico. Ela pode ocorrer como desordem
isolada (forma primária), também conhecida como síndrome sicca, ou, o que é mais frequente,
associada a outras desordens autoimunes (forma secundária). Entre as desordens a que se
associa, a AR é a mais comum, mas alguns pacientes apresentam LES, polimiosite, esclerose
sistémica, vasculite ou tiroidite.

A síndrome de Sjögren é causada por reações de células T CD4+ contra antigénios desconhecidos
nas células epiteliais ductais das glândulas exócrinas. Há também hiperatividade sistémica de
células B, tal como evidenciado pela presença de ANAs e fatores reumatoides (mesmo na
ausência de AR associada). A maioria dos pacientes com síndrome de Sjögren primária tem
autoanticorpos para os antigénios SS-A (Ro) e SS-B (La) das ribonucleoproteínas (RNP); estes
anticorpos também estão presentes em alguns pacientes com LES e, portanto, não são
diagnóstico para síndrome de Sjögren. Embora os pacientes com alto título de anticorpos anti-
SS-A sejam mais propensos a ter manifestações sistémicas (extraglandulares), não há nenhuma
evidência de que os autoanticorpos causem lesão tecidual primária. Um desencadeador viral
também tem sido sugerido, mas nenhum vírus causador foi identificado de forma conclusiva.
Variáveis genéticas desempenham um papel na patogénese da síndrome de Sjögren. Tal como
acontece com o LES, a herança de certos alelos de MHC classe II predispõe ao desenvolvimento
de autoanticorpos específicos de RNP.

Morfologia:

As glândulas lacrimais e salivares são os alvos primários, mas outras glândulas secretoras,
incluindo as localizadas na nasofaringe, vias aéreas superiores e vagina, também podem ser
acometidas. Os exames histológicos apresentam um infiltrado intenso de linfócitos (sobretudo
células T CD4+) e plasmócitos formando, ocasionalmente, folículos linfoides com centros
germinativos. Ocorre destruição associada da arquitetura nativa . A destruição das glândulas
lacrimais resulta na ausência de lágrimas, levando ao ressecamento do epitélio da córnea e
inflamação, erosão e ulceração subsequentes (ceratoconjuntivite). Alterações semelhantes
podem ocorrer na mucosa oral como resultado da perda da secreção das glândulas salivares,
levando à atrofia da mucosa com fissuras inflamatórias e ulceração (xerostomia). O
ressecamento e a formação de crostas no nariz podem ocasionar a formação de ulcerações e
até mesmo perfuração do septo nasal. Quando as vias respiratórias estão envolvidas, laringite,
bronquite e pneumonites secundárias podem-se desenvolver. Aproximadamente 25% dos
pacientes (sobretudo os que apresentam anticorpos anti-SS-A) desenvolvem doença
extraglandular afetando o SNC, pele, rins e músculos. As lesões renais tomam a forma de nefrite
intersticial leve associada a defeitos no transporte tubular; ao contrário do LES, a
glomerulonefrite é rara.

Evolução clínica:

Cerca de 90% dos casos ocorrem em mulheres na faixa etária de 35-45 anos. Os pacientes
apresentam boca seca, ausência de lágrimas e as complicações resultantes. Em geral, as
glândulas salivares estão aumentadas de tamanho por causa dos infiltrados linfocíticos. As
manifestações extraglandulares incluem sinovite, fibrose pulmonar e neuropatia periférica.
Cerca de 60% dos pacientes com a síndrome de Sjögren apresentam uma desordem autoimune
concomitante, como a AR. O mais notável é que esses pacientes têm um risco 40 vezes maior
de desenvolver um linfoma não Hodgkin de células B durante a intensa proliferação policlonal
inicial de células B.

Esclerose sistémica (esclerodermia)

A esclerose sistémica (SS) é caracterizada por fibrose excessiva em múltiplos tecidos, doença
vascular obliterante e evidência de autoimunidade, principalmente a produção de múltiplos
autoanticorpos. É comumente chamada de esclerodermia porque a pele é um alvo importante.
O envolvimento cutâneo costuma ser o sintoma inicial e desenvolve-se em cerca de 95% dos
casos, mas é o envolvimento visceral — do TGI, pulmões, rins, coração e músculos esqueléticos
— que é o responsável pela maior morbidade e mortalidade. A SS pode ser classificada em dois
grupos com base na sua evolução clínica:

• Esclerodermia difusa, caracterizada pelo envolvimento inicial disseminado da pele com


rápida progressão e envolvimento visceral precoce.
• Esclerodermia limitada, com envolvimento relativamente leve da pele, em geral
limitado aos dedos e à face. O envolvimento visceral é tardio e, por isso, a doença nesses
pacientes apresenta evolução relativamente benigna. Também é chamada de síndrome
CREST devido ao aparecimento frequente de calcinose, fenómeno de Raynaud,
dismotilidade esofagiana, esclerodactilia e telangiectasia.

Patogénese:

A causa da doença não é conhecida.


Ocorre uma sequência de eventos:

• Lesão de células endoteliais de


pequenas artérias por
mecanismos desconhecidos
conduz a ativação endotelial,
aumento da expressão de
moléculas de adesão e migração
de células T ativadas para os
tecidos perivasculares. A reação local de células T local pode causar ainda mais a
ativação e a lesão nas células endoteliais.
• As células T respondem a alguns autoantigénios e produzem citocinas. Tem sido
sugerido que as células T dominantes são as células TH2, e as suas citocinas induzem
alternativamente a ativação de macrófagos e a deposição de colagénio. Células T e
macrófagos ativados produzem citocinas que ativam fibroblastos e estimulam a
produção de colagénio, resultando em fibrose. Essas citocinas incluem TGF-β, IL-13, o
fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF) e outros.
• Ataques repetidos de lesão endotelial, seguidos pela agregação plaquetária levando a
proliferação endotelial e fibrose intimal, juntamente com a fibrose periadventícia,
estreitam os pequenos vasos, com eventual lesão isquémica. A reação de reparação
subsequente pode levar a mais fibrose, estabelecendo assim um ciclo de
autoperpetuação.
• A ativação das células B também ocorre, como indicado pela presença de
hipergamaglobulinemia e ANAs. Embora não haja nenhuma evidência de que a
imunidade humoral desempenhe um papel significativo na patogenia da SS, dois dos
ANAs são praticamente únicos para essa doença e, portanto, úteis no diagnóstico. Um
deles, direcionado contra a topoisomerase I do DNA (anti-SCl 70), é altamente
específico, está presente em até 70% dos pacientes com esclerodermia difusa (e em
menos de 1% dos pacientes com outras doenças do tecido conjuntivo) e é um marcador
para o desenvolvimento de doença mais agressiva com fibrose pulmonar e alterações
vasculares periféricas. O outro ANA é um anticorpo anticentrómero, encontrado em
90% dos pacientes com esclerodermia limitada (p. ex., síndrome de CREST), que indica
um curso relativamente benigno.

Morfologia:

• Pele. A grande maioria dos pacientes apresenta atrofia esclerótica difusa da pele, em
geral começando nos dedos e nas regiões distais dos membros superiores, estendendo-
se proximalmente para a porção superior dos braços, ombros, pescoço e face. Nos
estágios iniciais, as áreas de pele afetada apresentam-se algo edematosas, com
aparência massuda. Os capilares e as artérias menores podem apresentar
espessamento da membrana basal, lesão das células endoteliais e oclusão parcial. Com
a progressão da doença, a fase edematosa é substituída por fibrose progressiva da
derme, que se torna muito presa às estruturas subcutâneas. Há aumento acentuado do
colagénio compacto na derme associado a afinamento da epiderme, atrofia dos anexos
cutâneos e espessamento hialino da parede das arteríolas e capilares da derme. Podem
ocorrer calcificações focais e, algumas vezes, difusas, sobretudo nos pacientes com
síndrome de CREST. Nos estágios avançados, os dedos vão afinando nas pontas, dando
aparência de garra, com limitação da mobilidade articular, e a face torna-se uma
máscara rígida. A perda do suprimento de sangue pode levar ao desenvolvimento de
ulcerações cutâneas e alterações atróficas nas falanges terminais, incluindo a
autoamputação.
• Trato gastrointestinal. O TGI é afetado em cerca de 90% dos pacientes. Atrofia
progressiva e substituição da camada muscular por colagénio fibroso pode ocorrer em
qualquer nível, mas é mais grave no esófago, onde os dois terços distais adquirem
ausência quase total de flexibilidade. A disfunção associada do esfíncter esofagiano
inferior causa refluxo gastroesofágico e as suas complicações, incluindo metaplasia de
Barrett e estenose. A espessura da mucosa está diminuída, podendo apresentar
ulcerações, e há um depósito exagerado de colagénio na lâmina própria e submucosa.
A perda das vilosidades e microvilosidades no intestino delgado é a base anatómica da
síndrome de má absorção que se desenvolve em alguns pacientes afetados.
• Sistema musculoesquelético. Hiperplasia e inflamação sinoviais são comuns nos
estágios iniciais da doença, sendo seguidas de fibrose. Apesar de essas alterações serem
semelhantes às que ocorrem na AR, a destruição da articulação não é comum na ES. Um
número pequeno de pacientes (cerca de 10%) pode desenvolver miosite inflamatória
difícil de distinguir da polimiosite.
• Pulmões. Os pulmões são afetados em mais de 50% dos pacientes; pode-se manifestar
como hipertensão pulmonar e/ou fibrose intersticial. O vasoespasmo pulmonar
resultante da disfunção do endotélio vascular pulmonar é considerado importante para
a patogénese da hipertensão pulmonar. Quando presente, a fibrose pulmonar não pode
ser diferenciada da fibrose pulmonar idiopática.
• Rins. Anormalidades renais ocorrem em 2/3 dos pacientes com ES, sendo típica sua
associação com o espessamento da parede vascular das artérias interlobulares. Apesar
de semelhantes às alterações que ocorrem na hipertensão maligna, as alterações na ES
restringem-se aos vasos de 150-500 mm de diâmetro e não costumam estar associadas
à hipertensão. A hipertensão ocorre em 30% dos pacientes, e em 20% deles apresenta
evolução maligna (hipertensão maligna). Nos pacientes hipertensos, as alterações
vasculares são mais pronunciadas e com frequência associadas à necrose fibrinoide das
arteríolas relacionada a trombose e enfarte. Esses pacientes morrem de insuficiência
renal, que é responsável por cerca de metade dos óbitos nos pacientes com ES. Não há
alterações glomerulares específicas.
• Coração. Fibrose miocárdica, distribuída em placas, com espessamento das arteríolas
intramiocárdicas, ocorre em 1/3 dos pacientes; ela é quase sempre causada por lesão
microvascular e consequente isquemia (chamada de Raynaud cardíaco). Por causa das
alterações pulmonares, o desenvolvimento de hipertrofia e insuficiência do ventrículo
direito (cor pulmonale) é frequente.

Evolução clínica:

A SS afeta três vezes mais mulheres do que homens, com maior incidência na faixa de 50-60
anos de idade. Há uma sobreposição substancial da apresentação entre ES e AR, LES e
dermatomiosite; a manifestação característica da SS é o estreito envolvimento cutâneo. Quase
todos os pacientes desenvolvem o fenómeno de Raynaud, uma desordem vascular
caracterizada pelo vasoespasmo reversível das artérias. Tipicamente, as mãos ficam brancas ao
serem expostas ao frio, refletindo o vasoespasmo, seguido de coloração azulada, por causa de
isquemia e cianose. Por fim, a cor muda para vermelho em consequência da vasodilatação
reativa. A deposição progressiva de colagénio na pele ocasiona atrofia das mãos, com aumento
da rigidez que evolui até a imobilização definitiva das articulações. A dificuldade de deglutição
é consequência da fibrose do esófago e consequente hipomotilidade. Eventualmente, a
destruição da parede do esôfago causa atonia e dilatação. Pode ocorrer má absorção se a atrofia
e a fibrose da submucosa e da camada muscular envolverem o intestino delgado. Dispneia e
tosse crónica refletem as alterações pulmonares; com o envolvimento avançado dos pulmões,
pode ocorrer o desenvolvimento de hipertensão pulmonar secundária, levando à insuficiência
cardíaca direita. A disfunção renal secundária, não só à SS avançada como à hipertensão
maligna concomitante, é frequentemente bastante acentuada.

A evolução clínica da SS é difícil de prever. Na maioria dos pacientes, a doença progride com
lentidão por muitos anos, apesar de, na ausência de envolvimento renal, a expectativa de vida
ser normal. A sobrevivência de 10 anos varia de 35-70%. As probabilidades de sobrevivência são
muito melhores para os pacientes com esclerodermia localizada que para aqueles com doença
progressiva difusa usual. A esclerodermia localizada, ou síndrome de CREST, frequentemente
tem o fenómeno de Raynaud como manifestação presente. Ela está associada ao envolvimento
limitado da pele, confinado aos dedos e à face, e essas duas manifestações podem estar
presentes por muitos anos antes do desenvolvimento de lesões viscerais.

Miopatias Inflamatórias

As miopatias inflamatórias formam um grupo heterogéneo de doenças raras caracterizadas por


lesão muscular imunomediada e inflamação. Com base nas características clínicas, morfológicas
e imunológicas, três distúrbios — polimiosite, dermatomiosite e miosite por corpo de inclusão
— foram descritas.

Doença Mista do Tecido Conjuntivo

Refere-se a um espectro de processos patológicos em pacientes que apresentam várias


manifestações sugestivas de LES, polimiosite e ES; eles também apresentam títulos altos de
anticorpos contra um antigénio RNP chamado de U1RNP. A baixa incidência de doença renal e
uma resposta extremamente boa aos corticosteroides indicam bom prognóstico a longo prazo.

A doença mista do tecido conjuntivo pode se apresentar como artrite, edema das mãos,
fenómeno de Raynaud, dismotilidade esofágica, miosite, leucopenia e anemia, febre,
linfadenopatia e/ou hipergamaglobulinemia. Em virtude dessas manifestações que se
sobrepõem, não está claro se a doença mista do tecido conjuntivo é uma doença distinta ou se
representa tipos heterogéneos de LES, esclerose sistémica e polimiosite; a maior parte dos
especialistas não a considera uma entidade específica.

Poliarterite Nodosa e Outras Vasculites

A poliarterite nodosa pertence ao grupo de doenças caracterizadas pela inflamação necrosante


da parede dos vasos sanguíneos, provavelmente de origem imunológica. A denominação
generalizada de vasculite necrosante não infecciosa diferencia essas condições daquelas
atribuídas à infeção direta do vaso (p. ex., um abcesso) e enfatiza que qualquer tipo de vaso
sanguíneo pode ser envolvido — artérias, arteríolas, veias ou capilares.

Doença Relacionada com IgG4

A doença relacionada com IgG4 (IgG4-RD) é uma condição de reconhecimento recente


fibroinflamatório caracterizado pela tendência em formar lesões do tipo tumorais em vários
órgãos. O distúrbio é frequentemente, mas nem sempre, associado a elevadas concentrações
de IgG4 sérico. No entanto, o aumento do número de plasmócitos produtores de IgG4 (ou o
aumento da IgG4 em relação à IgG total) no tecido é uma condição essencial para essa
desordem. Apesar de reconhecida apenas recentemente, quando manifestações
extrapancreáticas foram identificadas em pacientes com pancreatite autoimune, a IgG4-RD já
foi descrita praticamente em todos os órgãos do sistema: árvore biliar, glândulas salivares,
tecidos periorbitais, rins, pulmões, gânglios linfáticos, meninges, aorta, mama, próstata, tiróide,
pericárdio e pele. As características histopatológicas suportam semelhanças notáveis em todos
os órgãos, independentemente do local da doença. Elas incluem um misto de infiltrado de
células linfoides (células T, células B, plasmócitos), fibrose estoriforme, flebite obliterante e leve
a moderada eosinofilia tecidual. As células B são tipicamente organizadas em centros
germinativos, mas as células T — o tipo de células predominante — são distribuídas difusamente
por toda a lesão. A proporção de IgG4 para IgG produzida por plasmócitos (determinada por
imuno-histoquímica semiquantitativa) é frequentemente igual ou maior do que 50%.

Muitas condições médicas vistas a longo prazo como confinadas aos órgãos individuais são parte
do espectro de IgG4-RD. Elas incluem a síndrome de Mikulicz (aumento e fibrose das glândulas
salivares e lacrimais), tireoidite de Riedel, fibrose retroperitoneal idiopática, pancreatite
autoimune e pseudotumor inflamatório da órbita, pulmões e rins, para citar alguns.

O papel da IgG4 na patogénese desta condição não é totalmente compreendido. No entanto, o


papel-chave das células B é suportado por estudos iniciais nos quais a depleção de células B por
reagentes anticélulas B, como rituximabe, promovem benefício clínico. Não está claro se a
doença é verdadeiramente autoimune em sua natureza, e nenhum autoantígeno marcado foi
identificado.

Anemia hemolítica autoimune

Causas de destruição imune dos eritrócitos:


• Autoanticorpos
• Anticorpos induzidos por fármacos
• Aloanticorpos

As anemias hemolíticas autoimunes são distúrbios adquiridos que resultam num aumento da
destruição de eritrócitos devido a autoanticorpos contra eritrócitos. Estas anemias são
caracterizadas pela presença de teste de Coombs positivo, que deteta autoanticorpos na
superfície dos eritrócitos dos pacientes.

As anemias hemolíticas autoimunes são divididas em tipo quente e tipo frio, consoante os
anticorpos aderem melhor às células à temperatura corporal (37ºC) ou a temperaturas mais
baixas.

Destruição imune dos eritrócitos

Os anticorpos IgM e IgG ativam a


cascata do complemento e causam
lise dos eritrócitos na circulação
(hemólise intravascular).

Os anticorpos IgG frequentemente


não ativam o complemento e as
células sofrem hemólise
extravascular – são fagocitadas no
baço através da interação entre
recetores Fc nos macrófagos, ou
perdem parte da membrana celular devido a fagocitose parcial e circulam como esferócitos até
que sejam capturadas no baço. Alguns anticorpos IgG ativam parcialmente o complemento,
levando à deposição de C3b na superfície dos eritrócitos e isto ode estimular a fagocitose, uma
vez que os macrófagos também têm recetores para C3b.

Os anticorpos IgM ativam parcialmente o complemento e causam a aderência dos eritrócitos


aos recetores C3b nos macrófagos, particularmente no fígado, apesar de este ser um mecanismo
ineficaz de hemólise. A maior parte dos eritrócitos são libertados dos macrófagos quando o C3b
é clivado a C3d, e depois circulam com C3d na sua superfície.
Diabetes

A insulina e a glicagina, as duas hormonas principais que regem o armazenamento e a utilização


de nutrientes, são produzidas pelas células dos ilhéus de Langerhans. As células dos ilhéus estão
distribuídas em grupos através do pâncreas exócrino. Todas elas, em conjunto, compreendem
o pâncreas endócrino.

O pâncreas endócrino tem uma grande capacidade de reserva; mais de 70% das células β devem
ser perdidas antes que ocorra a disfunção. Há quatro tipos de células dentro dos ilhéus e cada
um deles produz uma secreção diferente importante.

• As células β, secretoras de insulina, estão localizadas na porção central dos ilhéus e


constituem o tipo celular predominante (80% das células)
• As células α (cerca de 20% das células), secretoras de glicagina, situam-se,
principalmente, na periferia.
• As células D, que secretam somatostatina, estão localizadas entre esses dois primeiros
tipos de célula e são pouco numerosas.
• As células PP (ou células F), secretoras de polipeptídio pancreático, estão situadas,
principalmente, nos ilhéus, no lobo posterior da cabeça do pâncreas.

O fluxo sanguíneo vai do centro do ilhéu para a periferia, permitindo, dessa forma, que a
insulina, produzida pelas células centrais β, iniba a libertação de glicagina pelas células
periféricas α. O sangue dos ilhéus é drenado, então, para a veia porta. Assim, os produtos de
secreção passam diretamente para o fígado, um local primordial de ação da glicagina e da
insulina, antes de prosseguir para a circulação sistémica.

Tanto axónios parassimpáticos como simpáticos penetram nos ilhéus e, ou entram em contato
direto com as células, ou terminam no espaço intersticial entre elas. A regulação neuronal da
libertação de hormonas das células, tanto por via direta, através das fibras simpáticas, como
indiretamente, através da estimulação da libertação de catecolaminas pela medula da supra-
renal, desempenha um papel importante na homeostase da glicose durante o stress.

Insulina

A insulina é uma proteína composta de duas cadeias peptídicas (cadeias A e B) que são
conectadas por duas ligações dissulfito. O precursor da insulina, a pré-pró-insulina, é sintetizada
nos ribossomas e entra no retículo endoplásmico das células B, onde é clivada por enzimas
microssómicas, para formar a pró-insulina. A pró-insulina, que consiste nas cadeias A e B,
conectadas por um péptido C, é transportada para o aparelho de Golgi, onde é armazenada em
vesículas secretoras. Na vesícula secretora, a pró-insulina é clivada em dois locais, para formar
a insulina e o péptido C biologicamente inativo. A secreção de insulina é, portanto,
acompanhada por uma secreção equimolar de péptido C e também por quantidades pequenas
de pró-insulina, que escaparam da clivagem.

A glicose é o estimulante fisiológico primário da libertação de insulina. A glicose entra nas células
β via proteínas transportadoras de glicose, que estão em excesso e permitem o transporte
bidirecional da glicose, criando, assim, um equilíbrio entre as concentrações extracelular e
intracelular de glicose. Uma vez na célula, pensa-se que o metabolismo da glicose — e não a
própria glicose — estimule a secreção de insulina. A glicocinase, uma enzima com baixa
afinidade pela glicose, cuja atividade é regulada por esta, controla o primeiro passo no
metabolismo da glicose: a fosforilação da mesma para formar o glicose 6-fosfato. Tem-se a ideia
de que esta enzima possa funcionar como o sensor
de glicose nas células β. Os fatores metabólicos de
acoplamento produzidos pelo metabolismo da
glicose, como o ATP, inibem, então, a saída de K+ da
célula β. Isso despolariza a célula e permite a entrada
de Ca2+, que desencadeia a exocitose dos grânulos
que contêm insulina.

Embora a glicose seja o estimulante mais potente da


libertação de insulina, outros fatores, como
aminoácidos ingeridos numa refeição, ou o estímulo
vagal, também podem causá-la. A secreção de
insulina induzida por glicose pode, também, ser
ampliada por várias hormonas entéricas, como o
peptido-1 semelhante à glicagina (GLP-1). A secreção
de insulina é inibida pelas catecolaminas e pela
somatostatina.

A insulina exerce os seus efeitos ligando-se a


recetores de insulina, presentes nas superfícies das células-alvo, no fígado, no músculo e no
tecido adiposo, os tecidos classicamente sensíveis à insulina, responsáveis pela homeostase dos
nutrientes. Além disso, a insulina pode mediar outros efeitos sobre tecidos que não são alvos
clássicos, como o ovário, através da interação com os recetores de insulina, ou por reatividade
cruzada com os recetores do IGF-1. A ligação da insulina ao seu recetor causa a ativação de uma
região tirosinocinase do mesmo, e a autofosforilação do recetor. A ativação do recetor de
insulina inicia uma cascata de fosforilação dentro da célula, começando com a fosforilação de
uma rede de proteínas de aporte (substratos recetores de insulina [IRS]), que engajam e
amplificam as moléculas sinalizadoras a jusante, levando, finalmente, aos efeitos biológicos da
insulina (p. ex., translocação do transportador de glicose GLUT 4 para as membranas plasmáticas
de células musculares e adiposas.)

Glicagina

A glicagina é produzida nas células α do pâncreas pelo processamento proteolítico da pró-


glicagina. Para além do pâncreas, a pró-glicagina também se expressa no intestino e no cérebro.
Contudo, embora a glicagina seja o principal metabolito biologicamente ativo fabricado na
célula α pancreática, esta proteína é processada de modo diferencial no intestino, de modo que
o peptídio-1 semelhante à glicagina (GLP-1) e outros peptídios são produzidos em resposta a
uma refeição. Esse processamento, específico do tecido intestinal, resulta em dois péptidos que
têm efeitos opostos sobre o metabolismo dos glícidos; a glicagina opõe-se aos efeitos da
insulina, ao passo que o GLP-1 age como uma incretina, que aumenta a secreção de insulina
estimulada pela glicose.

Em contraste com a estimulação da secreção de insulina pela glicose, a secreção de glicagina é


inibida pela glicose. Não se sabe se a glicose tem um efeito inibidor direto sobre a célula, ou se
seu efeito é mediado pela estimulação de insulina e somatostatina pelas células β e D. Admite-
se, também, que um outro produto de secreção das células β, o ácido γ-aminobutírico (GABA),
iniba a libertação de glicagina. De modo semelhante à insulina, a secreção de glicagina é
estimulada por aminoácidos, um aspeto regulador importante no metabolismo das refeições de
proteína. Em contraste, os ácidos gordos e as cetonas inibem a secreção de glicagina. Hormonas
contrarreguladoras, como as catecolaminas (através de um efeito β-adrenérgico predominante)
e o cortisol, estimulam a libertação de glicagina.

O fígado é o principal órgão-alvo para a ação da glicagina. Esta liga-se ao seu recetor, presente
na superfície celular dos hepatócitos. A ligação com a glicagina promove a interação do recetor
com uma proteína G estimulante, a qual, por sua vez, ativa a adenililciclase. O monofosfato
cíclico de adenosina, gerado pela adenililciclase, ativa a proteinocinase A, que promove a
fosforilação de enzimas responsáveis pela atividade biológica da glicagina no fígado.

Regulação hormonal da homeostase dos nutrientes

Diabetes - Definição

A diabetes é caracterizada por ser um grupo de doenças metabólicas com um fenótipo clínico
comum, a ocorrência de hiperglicémia no organismo. Uma de duas coisas pode estar a ocorrer:
1) a glicose não é normalmente metabolizada e por isso acumula-se; 2) há um excesso de
ingestão de glicose.

Nas situações de diabetes, aquilo que está habitualmente alterado é a homeostasia do controlo
hormonal da glicose, quer pela ação/secreção da insulina (mais comum), quer pelo aumento da
ação das hormonas contrarreguladoras que se opõem aos efeitos da insulina, como é o caso da
glicagina. A deficiência funcional da insulina pode dever-se à diminuição da sua secreção pelas
células β ou por resposta diminuída dos tecidos-alvo a esta hormona, sendo que estes fatores
vão ser a base para a classificação de diabetes em diferentes subtipos. Há uma interação
complexa de fatores genéticos e ambientais na fisiopatologia desta doença. A diabetes é
normalmente irreversível e, apesar dos pacientes poderem ter vidas relativamente normais, as
complicações a longo prazo resultam numa menor esperança média de vida, com graves
problemas de saúde.

Classificação

A diabetes pode ser maioritariamente classificada em Diabetes tipo 1 e Diabetes tipo 2, segundo
o mecanismo que precede a hiperglicémia. Cerca de 90% das situações de diabetes enquadra-
se numa destas duas classificações, existindo 10% de casos que não correspondem a nenhuma
das duas.

• Diabetes tipo 1 (10%)


o Deficiência completa de insulina
o Habitualmente, o seu mecanismo etiopatogénico corresponde a uma doença
autoimune.
o DM insulinodependente → esta designação já não deve ser utilizada
• Diabetes tipo 2 (90%)
o Níveis variáveis de resistência à insulina
o Secreção anormal de insulina
o Produção aumentada de glicose
o DM não insulinodependente → esta classificação entrou em desuso, uma vez
que, nos estádios mais avançados da doença, os doentes com diabetes tipo 2
apresentam deficiência completa de insulina e vão precisar, tal como os doentes
com diabetes tipo 1, de tratamento com insulina.

Os 10% de doentes com hiperglicemia que não se enquadram nestas classificações fazem parte
de um conjunto de situações mais raras. Estas correspondem a diabetes gestacional e a formas
monogénicas de diabetes designadas comummente como diabetes MODY (Maturity Onset
Diabetes of the Young). Para além disso, podem estar associadas a um diverso conjunto de
situações, como endocrinopatias, situações traumáticas, situações tóxicas ou infecciosas graves,
ou mesmo alguns síndromes congénitos que também têm no seu conjunto de sinais e sintomas
a hiperglicemia.

Existem 6 variantes diferentes de MODY, estando este tipo de diabetes associado a defeitos
genéticos de células β, transmitidos como distúrbios autossómicos dominantes. A forma
monogénica constitui uma causa rara de diabetes tipo 2 (correspondendo a cerca de 1 a 5% dos
casos) e é caracterizada pelo início de diabetes leve em indivíduos magros com menos de 25
anos. Crianças que desenvolvem diabetes antes dos 6 meses têm uma elevada probabilidade de
ter um defeito monogénico e não uma verdadeira diabetes tipo 1. Deve-se ter isto em
consideração em casos onde há presença de diabetes com começo precoce, em que um parente
esteja afetado e em que haja presença de diabetes com começo precoce em, pelo menos,
metade dos familiares. Há também uma variante ‘slowburning’ da diabetes tipo 1, denominada
diabetes autoimune latente do adulto (LADA), com progressão lenta para défice de insulina que
vai ocorrer mais tarde na vida adulta, sendo difícil a sua distinção com diabetes tipo 2.

A diabetes gestacional ocorre em mulheres grávidas com uma incidência de 3 a 8%. Tende a ser
resolvida com o parto, no entanto até 50% dos casos podem progredir para diabetes
estabelecido, predominantemente diabetes tipo 2. Vai ocorrer na 2ª metade da gestação,
devido ao aumento de hormonas que têm efeitos contrarreguladores anti-insulina, como
somatomamotropina coriónica, progesterona, cortisol e prolactina.

Epidemiologia

A sua prevalência tem vindo a aumentar rapidamente no mundo ocidental, sobretudo a de


diabetes tipo 2. Este facto está relacionado com o seu componente de síndrome metabólico. O
nº de doentes diabéticos aumentou de 30 milhões (em 1985) para 382 milhões (em 2013), com
uma prevalência de 9% em 2014, de acordo com a OMS. É expectável que em 2030 irá afetar
mais de 440 milhões de pessoas. Em Portugal, a diabetes é particularmente preocupante, visto
que apresenta uma prevalência de 13%, um valor acima da média mundial definida pela OMS.
Dentro deste valor, cerca de um terço estão subdiagnosticados e não estão, consequentemente,
a ser acompanhados e tratados. Acredita-se que mais de 90% dos casos ocorram no contexto de
uma predisposição genética, sendo diabetes tipo 2 responsável pela maioria dos casos,
enquanto diabetes tipo 1 é muito menos comum.

Metabolismo e função endócrina pancreática

Insulina

A insulina é uma hormona secretada nas células β dos ilhéus de Langerhans. Tem como principal
função metabólica o aumento da taxa de transporte da glicose para o interior de determinadas
células (como o músculo e tecido adiposo, enquanto o cérebro, por exemplo, não necessita de
insulina). A insulina tem efeitos anabólicos, com aumento da síntese e redução da degradação
do glicogénio, lípidos e proteínas. A insulina possui também várias funções mitogénicas,
incluindo o início da síntese de DNA. O precursor da insulina, pré-pró-insulina, é clivado no
retículo endoplasmático para formar a pró-insulina, que, por sua vez, é clivada formando
insulina e péptido C. Este último é depurado mais lentamente que a insulina e, assim sendo,
pode constituir um marcador útil da secreção de insulina e torna possível a discriminação das
fontes endógenas e exógenas de insulina na avaliação da hipoglicémia. A secreção de insulina é
proporcional à quantidade sanguínea de glicose: o estímulo mais importante para desencadear
a libertação de insulina é a própria glicose, que inicia a síntese insulínica nas células β
pancreáticas.

A glicose é recebida ao nível das células β por recetores GLUT-2, não dependentes de insulina.
A via de metabolização habitual é a via glicolítica, através da qual resulta um rácio aumentado
de ATP/ADP. Este rácio justifica o bloqueio dos canais de output de potássio, tendo como
consequência uma acumulação de cargas positivas no interior da célula, promovendo a
despolarização da membrana celular. A despolarização é, então, sentida por canais de cálcio
dependentes de voltagem, que levam à internalização de iões de cálcio e à exocitose de grânulos
com insulina no seu interior devido a mecanismos dependentes de calmodulina. Assim sendo, a
quantidade de grânulos que é secretada a este nível depende da quantidade de glicose que é
percetível ao nível das células β pancreáticas.

Estes mecanismos podem ainda ser modulados por incretinas, que têm sido um alvo na
terapêutica moderna da diabetes, dos quais se destaca a GLP-1, uma incretina de secreção
intestinal. A ocorrência deste mecanismo nas células β é acompanhada de uma diminuição
proporcional da secreção de glicagina pelas células α, através de mecanismos gabaminérgicos
intrínsecos no pâncreas.

Etiopatogénese

Diabetes tipo 1

Resulta de uma interação entre fatores genéticos, ambientais e imunológicos. Na diabetes tipo
1 há uma destruição autoimune dos ilhéus de Langerhans, existindo, habitualmente, uma
predisposição genética que inclui sobretudo haplótipos relacionados com o sistema imune:

• HLA (geralmente no cromossoma 6, são responsáveis por 40 a 50% do risco genético de


diabetes tipo 1, possuindo a maioria dos doentes haplótipo HLA DR3 e/ou DR4)
• Genes reguladores da resposta imune (MHC II)
• Gene da insulina (polimorfismos neste gene podem reduzir a expressão dessa proteína
no timo, reduzindo, assim, a eliminação das células T reativas com a proteína própria)
• CTLA-4 (recetor inibitório das células T)
• Recetor da IL-2
• IFIH1
• PTPN22 (proteína tirosina fosfatase envolvida na ativação excessiva de células T), entre
outros.

Esta predisposição está presente logo à nascença, no entanto


irá ser necessário um trigger imunológico/fator
desencadeador capaz de quebrar a tolerância para as células β
do pâncreas. Assim, a massa destas células pancreáticas, que
era normal ao nascimento, diminui ao longo do tempo até
atingir um valor crítico, após o qual não é mais possível a
secreção de insulina, instalando-se um quadro clínico de
diabetes. As características de diabetes só se tornam evidentes
quando a maioria das células foi destruída (70 a 80%).

O trigger imunológico pode incluir, na maioria das vezes,


infeções virais por coxsackie vírus, enterovírus, rubéola, entres outros, sendo o coxsackie vírus
o mais implicado nestas situações. Contudo, há outras situações como presença de certos
nutrientes (proteínas do leite de vaca e glúten) e certos tóxicos (nitrosaminas). Pensa-se que
alguns antigénios virais e outras partículas sejam semelhantes a antigénios das células beta
(mimetismo molecular), acarretando como consequência lesão circunstancial dos ilhéus.

Após a ocorrência deste trigger imunológico e do mimetismo molecular, desenvolve-se uma


resposta imunológica caracterizada por perda de tolerância para as células β. Esta resposta
imune tem uma componente de celularidade específica e uma componente humoral com a
formação de autoanticorpos contra a insulina, contra a descarboxilase do ácido glutâmico (GAD,
a enzima biossintética para o neurotransmissor GABA), contra o IA2 (um péptido dos ilhéus de
Langerhans) e também contra a fogrina. Como a maioria dos autoantigénios não são específicos
para a célula beta, levanta-se a questão de como essas células são seletivamente destruídas,
tendo sido sugerido que o início do processo autoimune dirigido para uma única célula
pancreática, se propague para outras moléculas com a criação de antigénios secundários. Estes
anticorpos estão presentes em 75% dos casos, acompanhados por morte celular apoptótica,
morte mediada por citocinas (TNF-α, IL1 e IFN-γ) e células T ativadas no local.

A etiopatogénese da diabetes tipo 1 pode ser resumida por:

• Predisposição genética implicada em mecanismos imunológicos;


• Haplótipos e citocinas de regulação imunitária;
• Trigger imunológico, habitualmente viral, com mimetismo molecular;
• Resposta inflamatória contra os ilhéus de Langerhans, designada por insulite.

Diabetes tipo 2

A diabetes tipo 2 é mais complexa, não apresentando destruição autoimune dos ilhéus de
Langerhans, contudo isto não significa que não haja também predisposição genética, tendo-se
verificado que os componentes genéticos associados ao tipo 2 são ainda mais fortes que no tipo
1. Este tipo de diabetes ocorre habitualmente na idade adulta, logo não é uma doença com
trigger imunológico ou uma doença autoimune, surgindo só vários anos ou décadas após a
instalação de síndrome metabólico. Na diabetes tipo 2, há resistência periférica à insulina,
sendo este o seu principal fator etiopatogénico. Numa fase inicial, a insulina é secretada de
forma normal pelas células β do pâncreas, mas não é possível que esta hormona seja sentida ao
nível dos tecidos periféricos dependentes da insulina, nomeadamente no músculo esquelético,
no fígado e no tecido adiposo. Consequentemente, a glicose não é internalizada e permanece
fora das células, condicionando alguma hiperglicemia.

Ao estabelecermos uma linha temporal, verifica-se uma diminuição progressiva da sensibilidade


à insulina no tecido periférico. Tal como noutras situações em que seja alterado o estado de
homeostasia do organismo, a primeira resposta compensatória vai corresponder a um aumento
progressivo da secreção de insulina, numa tentativa de ultrapassar a resistência ao nível dos
tecidos periféricos. Assim sendo, a resistência à insulina vai ser seguida por uma
hiperinsulinemia compensatória. Nas fases iniciais de diabetes tipo 2, a resposta compensatória,
que se designa por fase de hiperinsulinemia, mantém os doentes em normoglicemia. No
entanto, esta resposta inicial não é capaz de compensar de forma eficaz a resistência à insulina
a longo prazo e, quando esta atinge um determinado limite, acaba por entrar em exaustão. Além
disso, novos processos patológicos irão levar à falência dos ilhéus de Langerhans, ocorrendo
assim uma rápida progressão para diabetes tipo 2. Conclui-se, então, que há dois defeitos
metabólicos responsáveis pela hiperglicemia nestes doentes: 1) resistência dos tecidos-alvo aos
efeitos da insulina; 2) secreção inadequada de insulina por células beta na situação de
resistência.

1. PREDISPOSIÇÃO GENÉTICA

A predisposição genética está relacionada com fatores metabólicos, nomeadamente fatores que
controlam a homeostasia da glicémia e do metabolismo complementar, do qual se destaca o
PPARƴ e, nalguns casos, o Kir6.2 (canal de potássio nas células β que justifica a despolarização
seguida da entrada de potássio e exocitose de insulina), transcription factor 7-like 2 (TCF7L2) e
calpaína 10. O componente genético na diabetes tipo 2 é superior à da diabetes tipo 1, ou seja,
é mais provável um descendente de um pai e de uma mãe com diabetes tipo 2 ter a doença do
que um descendente de uma família com diabetes tipo 1.
2. SÍNDROME METABÓLICO

A elevada disposição da diabetes tipo 2 que se observa está relacionada com a obesidade e
estilo de vida → síndrome metabólico.

O síndrome metabólico é um quadro clínico e fisiopatológico caracterizado pela ocorrência de


pelo menos 3 destas seguintes situações:

• Obesidade
• Hipertensão arterial
• Hipo-HDL
• Hipertrigliceridémia
• Intolerância à glicose e/ou diabetes tipo 2.

É importante perceber como é que uma pessoa com fatores de risco cardiovasculares (estilo de
vida sedentário, obesidade, com alimentação desequilibrada) tenha estado vários anos sem
hiperglicémia e diabetes tipo 2. Isto é essencial para a patogenia da diabetes tipo 2.

Esta síndrome inicia-se com a deposição de


adipócitos viscerais, maioritariamente na zona
intraabdominal. Este tecido adiposo resulta dos
hábitos alimentares e do estilo de vida sedentário
do doente. A deposição de ácidos gordos livres e
não livres no tecido adiposo visceral tem um
impacto sistémico diferente da deposição dos
mesmos constituintes no tecido subcutâneo. Isto
acontece porque a formação de tecido adiposo
visceral está associada a uma acumulação de
ácidos gordos de uma forma pró-inflamatória.
Assim, quando esta deposição está a ocorrer, há
libertação de citocinas inflamatórias das quais se
destacam o TNF-α e a IL-6.

A libertação aumentada de vários fatores a partir do tecido adiposo visceral direciona a


resistência à insulina, sendo que estes mediadores essenciais incluem: 1) efeitos tóxicos do
excesso de ácidos gordos livres libertados por lipólise (lipotoxicidade); 2) desregulação na
secreção de proteínas lipoespecíficas (adipocinas) como a adiponectina, uma hormona
sensibilizadora da insulina e antidiabética e a leptina, que controla a saciedade e aumenta a
sensibilidade à insulina; 3) produção aumentada de citocinas inflamatórias dentro do tecido
adiposo.

Quando há incapacidade da manutenção do armazenamento dos ácidos gordos no tecido


adiposo visceral, estes vão entrar em circulação. Através desta, o primeiro órgão que atingem é
o fígado, devido à circulação portal, sendo este órgão, então, exposto a níveis altos de FFA e
níveis alterados de adipocina. O mesmo não acontece com os ácidos gordos do tecido
subcutâneo, que atingem, maioritariamente, a circulação sistémica pela veia cava inferior ou
superior. Consequentemente, a acumulação de ácidos gordos livres nesta localização anatómica
tem um enorme impacto a nível hepático, sendo o fígado o principal órgão do metabolismo
complementar.
Perante esta acumulação, o fígado irá ter uma resposta que consiste na elevação de proteínas
de fase aguda e tentativa de colocação dos ácidos gordos livres em excesso em lipoproteínas
plasmáticas. Este processo vai ser acompanhado por aparecimento de resistência à insulina ao
nível muscular (devido ao aumento do depósito de lípidos, que está associado a disfunção
mitocondrial e resistência à insulina devido à translocação diminuída de GLUT-4) e por
hipertensão arterial e estado pró-trombótico associado, que explica, em parte, porque é que
os doentes diabéticos têm uma aterosclerose mais grave, mais precoce e de maior cariz
inflamatório.

3. RESISTÊNCIA À INSULINA

É essencial perceber como citocinas inflamatórias, proteínas de fase aguda e hormonas,


nomeadamente adiponectinas, vão levar a resistência à insulina quando se depositam ao nível
das fibras musculares esqueléticas.

Os componentes do síndrome metabólico,


nomeadamente ácidos gordos livres (NEFA - Non
Essential Fatty Acid), TNFα, adipocinas, IL-6, e
outros mediadores inflamatórios, iniciam um
conjunto de vias intracelulares que bloqueiam, em
vários pontos, a transdução do sinal do recetor de
insulina. Isto significa que uma pessoa que
apresente fatores cardiovasculares pode iniciar um
conjunto de mecanismos que vão bloquear
sucessivamente e sequencialmente a transdução
do sinal do recetor de insulina. Logo, por muita
insulina extracelular que esteja presente ou mesmo
ligada ao recetor, esta não é sentida pela célula
devido à falha na transdução do sinal e, tendo isto em conta, a célula vai responder como se não
existisse insulina, ou seja, como se houvesse necessidade de produzir mais glicose e responder
a uma fase de jejum prolongada.

Os mecanismos etiopatogénicos da diabetes tipo 2 são, então, pós-receptor, sendo que o


problema não está no receptor, nem está na insulina, mas sim nas vias de transdução de sinal
que estão inibidas pelos mediadores do próprio síndrome metabólico. Isto justifica o
aparecimento de resistência à insulina após uma fase inicial de hiperplasia compensatória que
vai falhando progressivamente ao longo dos anos. Os principais mecanismos de resistência à
insulina são:

• Downregulation
• Diminuição dos insulin-receptor substractes (IRS)
• Diminuição da atividade da tirosina quinase
• Perturbação da translocação e fusão do GLUT-4 com a membrana celular.

4. PROGRESSÃO PARA A FALÊNCIA DAS CÉLULAS β

A hiperplasia compensatória falha ao longo do tempo, progredindo para falência das células β
do pâncreas, através de dois mecanismos: o mecanismo metabólico e o mecanismo proteico.
O mecanismo proteico está associado à secreção do péptido amilina. Em concentrações
isosmolares, a secreção de insulina pelas células β é acompanhada de secreção do polipeptídeo
amilóide dos ilhéus (IAPP) ou amilina. Este péptido associado ao pâncreas é uma substância
amilóide que, quando é secretado em concentrações fisiológicas, em concomitância com a
insulina, não se deposita, não agrega e não tem consequências patológicas. Pelo contrário,
durante a fase de hiperplasia compensatória, devido à maior secreção de insulina, as
concentrações deste péptido são também maiores. O aumento da concentração do péptido
conjugado com as características do meio do local, nomeadamente o pH, leva à sua deposição.
Consequentemente, passa a existir um quadro de amiloidose pancreática, que justifica a
ativação de vias apoptóticas (através da ativação da p53, p21 e ERO), o compromisso dos
organelos celulares e a existência de pseudo-canais com influxo de cálcio. Pode também iniciar
vias de necrose, ainda que sejam menos frequentes que as apoptóticas.

Conclui-se, então, que a própria hiperplasia compensatória tem um efeito deletério uma vez
que perpetua a deposição de amilina pancreática, com consequente destruição das células β.
Logo, este mecanismo de hiperplasia compensatória não vai persistir ao longo do tempo. Para
além disso, a persistência da hiperglicémia e dos ácidos gordos livres em circulação no contexto
do síndrome metabólico tem também mecanismos de toxicidade direta para os ilhéus do
pâncreas, nomeadamente através de stress oxidativo e inflamatório, no caso dos mecanismos
glicídicos, ou através de ativação de apoptose, no caso dos mecanismos lipídicos. A
glicotoxicidade inclui aumento das ERO, sendo que as células β fisiologicamente apresentam
baixas concentrações de catalase e de superóxido dismutase, diminuição da PDX-1 e aumento
do NFkB, com consequentes efeitos pró-inflamatórios. A lipotoxicidade inclui, por sua vez, a
ativação dos canais de K+, o aumento da ceramida, com consequente aumento da apoptose, e
aumento da UCP-2, com diminuição do ATP.

A etiopatogénese da diabetes tipo 2 pode ser resumida por:

• Síndrome metabólico leva à resistência pós-recetor de insulina;


• Fase inicial de hiperplasia compensatória dos ilhéus β;
• Secreção de amilina em concentrações suprafisiológicas;
• Perpetuação de glicémia e lípidos aumentados em circulação;
• Destruição direta dos ilhéus pancreáticos (pode levar a incapacidade de secreção de
insulina).

Manifestações clínicas

A tríade clínica clássica é composta por poliúria,


polifagia e polidipsia (PPP). Atualmente, estes três
sintomas são cada vez menos detetados na prática
clínica diária, não só devido à grande preocupação
do rastreio precoce de doença cardiovascular, mas
também ao facto de a diabetes ser quase sempre
um diagnóstico laboratorial e não um diagnóstico
clínico. Mesmo tendo isto em conta, existem alguns
doentes com menor acompanhamento em cuidados
de saúde primários que poderão apresentar estes
três sintomas como manifestação inicial, sendo estabelecido o diagnóstico clássico de diabetes.
Quando os níveis elevados de glicose excedem o limiar renal para reabsorção da glicose, resulta
em glicosúria. Esta vai causar uma diurese osmótica que é manifestada por poliúria, inclusive
noctúria. O resultado é desidratação, estimulando a sede, o que causa polidipsia. A polifagia
também acompanha a hiperglicemia descontrolada. Perda de peso também pode ocorrer, tanto
por desidratação ou por perdas na urina. Em mulheres, a glicosúria pode levar a uma incidência
aumentada de vulvovaginite por cândida.

Critérios de diagnóstico

O diagnóstico de diabetes é eminentemente laboratorial. Atualmente, há quatro critérios de


diagnóstico:

• Presença de hemoglobina glicosilada (HbA1C) superior a 6,5%;


• Presença de uma glicose em jejum superior a 126 mg/dL (7 mmol/L);
• Prova de tolerância oral de glicose com uma glicémia pós prova 2 horas depois superior
a 200mg/dL (11,1 mmol/L);
• Sempre que, independentemente da hora, existam mais de 200mg/dL de glicémia com
os sintomas clássicos de diabetes (PPP).

É necessário repetir estes testes pelo menos duas vezes para documentar o diagnóstico de
diabetes, excetuando o último que não necessita de repetições pela presença de sintomas. Deve
haver um período de um mês de intervalo antes de ser repetido o teste e, caso não se verifiquem
alterações no segundo exame, é recomendada nova repetição do teste um mês depois para se
confirmar ou rejeitar o diagnóstico de diabetes.

Fisiopatologia das complicações agudas

As complicações da diabetes dividem-se em complicações agudas e complicações crónicas. As


complicações agudas são 4:

• Hiperglicémia
• Hipoglicémia (quase sempre iatrogénica)
• Cetoacidose diabética
• Estados de hiperosmolaridade

Cetoacidose

A cetoacidose diabética está muito associada ao aparecimento de diabetes tipo 1, sendo


normalmente a sua primeira manifestação. Ocorre no momento em que o cutoff de insulina
desaparece e a pessoa, rapidamente, apresenta deficiência total da insulina, alguns anos após o
trigger imunológico. Tem como principal fator fisiopatológico a diminuição do rácio insulina-
glicagina e traduz, quase sempre, um quadro de deficiência total de insulina, causando
hipovolémia e alterações do equilíbrio ácido-base. Normalmente a cetoacidose diabética é
diagnosticada quando situações pontuais, como por exemplo infeções bacterianas ou mesmo
virais, de um momento para o outro aumentam as necessidades súbitas de insulina, no contexto
de resposta inflamatória aguda, e não há capacidade de resposta pelos ilhéus de Langerhans
uma vez que têm um processo de insulite em curso. A cetoacidose também ocorre por má
adesão à terapêutica, dose insuficiente administrada e toma de dose que não acompanha o
consumo elevado de glicose numa refeição.

Após um quadro que habitualmente é acompanhado pelo aumento das necessidades de insulina
como doenças, infeções ou trauma, há uma rápida descida do rácio de insulina-glicagina que
altera completamente a forma como o metabolismo complementar hepático (e não só) está a
ser regulado. Ocorrem vários fenómenos importantes, entre os quais alterações diretas através
da diminuição da ação da insulina sobre determinadas enzimas envolvidas na glicólise,
gliconeogénese e glicogenólise. Desta forma vai haver diminuição da degradação de glicose
(glicólise) e aumento da sua produção (glicogenólise e gliconeogénese). Há, assim, uma
diminuição da atividade da fosfofrutoquinase e piruvato quinase (com consequente
acumulação/aumento do substrato fosfoenolpiruvato) responsáveis pela glicólise e um
aumento da ação da frutose 1,6 bifosfatase envolvida na gliconeogénese e na glicogenólise. Esta
alteração ocorre em simultâneo com uma tentativa de gerar corpos cetónicos como substrato
metabólico, através da cetogénese. Para além disso, há diminuição da lipoproteína lipase
concomitante com hipertrigliceridemia, que faz parte das manifestações da cetoacidose
diabética.

A associação entre estes mecanismos e a incapacidade de internalização da glicose na ausência


de insulina são responsáveis pelo aparecimento de hiperglicémia.

Pode ocorrer hiperglicemia grave, com níveis de glicose atingindo uma média de 500 mg/dl, se
falhar a compensação para a diurese osmótica, associada à hiperglicemia. Inicialmente, quando
os níveis elevados de glicose causam um aumento da osmolalidade, um desvio de água do
espaço intracelular para o extracelular e o aumento da ingestão de água, estimulado pela sede,
ajudam a manter o volume intravascular. Se a poliúria continuar e esses mecanismos
compensatórios não conseguirem acompanhar as perdas líquidas — particularmente, ingestão
diminuída, em consequência de náuseas, e perdas aumentadas, resultantes dos vómitos que
acompanham a cetoacidose —, a depleção de volume intravascular leva à diminuição do fluxo
sanguíneo renal. A capacidade do rim de excretar glicose fica, portanto, reduzida. A hipovolemia
também estimula as hormonas contrarreguladoras. Por conseguinte, os níveis de glicose
elevam-se de forma aguda, devido à produção aumentada de glicose, estimulada por esses
hormônios, e à diminuição da excreção pelos rins, uma fonte importante de depuração de
glicose na ausência de captação da mesma, mediada por insulina.

A poliúria levará à desidratação e, consequentemente, ao aparecimento de sinais de


instabilidade hidrodinâmica como taquicardia e hipotensão arterial. As alterações do shift de
água manifestam-se sobretudo a nível do SNC: a hiperosmolalidade (não a acidose) é a causa do
coma. Ocorre uma desidratação celular profunda, em resposta ao aumento acentuado da
osmolalidade do plasma. No cérebro, uma perda intensa de líquido intracelular leva ao coma.
Isso acontece quando a osmolalidade efetiva do plasma atinge 340 mOsm/L.

Do ponto de vista da ativação das vias da cetogénese, verifica-se que os corpos cetónicos, por si
só, atuam na área quimiorreceptora e justificam as manifestações de náuseas e vómitos, para
além do fetor cetónico. Para além disso, são a causa direta da acidose metabólica através da
produção de acetoacetato e hidroxibutirato, os principais corpos cetónicos produzidos pelo
fígado. Essa acidose justificará o aparecimento duma respiração tipo Kussmaul (respirações
características, profundas e rápidas).

Para além da água, perde-se Na+ durante a diurese osmótica que acompanha a cetoacidose
diabética. Em geral, os níveis séricos de Na+ são baixos devido à atividade osmótica da glicose
elevada, que puxa água para o espaço extracelular e, dessa maneira, diminui a concentração de
Na+ (o Na+ sérico cai 1,6 mmol/l, aproximadamente, para cada 100 mg/dl de aumento de
glicose). O K+ também é perdido pela diurese e pelos vómitos. No entanto, a acidose, a baixa
insulina e os níveis elevados de glicose causam um desvio de K+ para fora das células, mantendo,
assim, os níveis séricos normais, ou mesmo elevados, de K+, até que a acidose e a hiperglicemia
sejam corrigidas. Com a administração de insulina e a correção da acidose, o K+ sérico cai à
medida que o K+ se movimenta de volta para dentro das células. Sem tratamento, o K+ pode
diminuir para níveis perigosamente baixos, levando a arritmias cardíacas potencialmente letais.
Portanto, a suplementação de K+ é feita rotineiramente no tratamento da cetoacidose
diabética. De modo semelhante, a depleção de fosfato acompanha a cetoacidose diabética,
embora a acidose e a carência de insulina possam determinar que os níveis séricos de fósforo
sejam normais antes do tratamento. A reposição de fosfato só é fornecida em casos de depleção
extrema, dados os riscos da sua administração (o fosfato intravenoso pode formar complexos
com o Ca2+, resultando em hipocalcemia, e depósito de fosfato de Ca2+ nos tecidos moles.)

Uma hipertrigliceridemia acentuada também pode acompanhar a cetoacidose diabética, por


causa do aumento da produção e da diminuição da depuração de VLDL, que ocorrem nos
estados de deficiência de insulina. A produção elevada deve-se ao aumento do fluxo hepático
de ácidos gordos, que, além de servir de nutrientes para a cetogénese, podem ser realinhados
e secretados como VLDL; a redução da depuração deve-se à atividade diminuída da lipase
lipoproteica.

Náuseas e vómitos acompanham, com frequência, a cetoacidose diabética, contribuindo para a


desidratação ainda maior. A dor abdominal, que está presente em 30% dos pacientes, pode ser
causada por estase gástrica, com distensão. A amilase, frequentemente, está elevada (90% dos
casos), em parte por causa de elevações da amilase salivar, porém, em geral, não está associada
a sintomas de pancreatite. A leucocitose é frequente e não indica, necessariamente, a presença
de infeção. No entanto, visto que as infeções podem precipitar a cetoacidose diabética, outras
manifestações de infeção devem ser pesquisadas, como febre, um achado que não pode ser
atribuído à cetoacidose diabética.
A cetoacidose diabética é tratada pela reposição de água e eletrólitos (Na+ e K+), e pela
administração de insulina. Com a reposição de fluidos e eletrólitos, aumenta a perfusão renal,
restabelecendo-se a depuração renal da glicose sanguínea elevada, e diminui a produção de
hormonas contrarreguladoras, reduzindo-se, assim, a produção hepática de glicose. A
administração de insulina também corrige a hiperglicemia, ao restaurar a captação de glicose
sensível à insulina e inibir a saída de glicose do fígado. A reidratação é um componente crítico
do tratamento da hiperosmolalidade. Se a insulina for administrada sem que haja reposição de
fluidos e eletrólitos, a água mover-se-á do espaço extracelular de volta para dentro das células,
com a correção da hiperglicemia, levando ao colapso vascular. A administração de insulina
também é necessária para inibir a lipólise adicional, eliminando dessa forma substratos para a
cetogénese, e para evitar a cetogénese hepática, corrigindo assim a cetoacidose.

Coma hiperosmolar

Estados hiperosmolares graves na ausência de cetose podem ocorrer principalmente na


diabetes tipo 2. É um síndrome causado pela desidratação severa resultante da diurese osmótica
sustentada e da perda líquida urinária devida à hiperglicemia crónica. Estes episódios são
precipitados muitas vezes pela ingestão hídrica diminuída, como pode acontecer durante uma
enfermidade intercorrente ou em doentes mais velhos debilitados que carecem de acesso
suficiente a água ou de uma função renal anormal. Estes indivíduos têm insulina suficiente para
prevenir a cetogénese. Como não ocorre cetoacidose e há ausência de sintomas (náuseas,
vómitos, dificuldades respiratórias) a identificação da gravidade da situação é atrasada até o
início de desidratação grave e do coma.

Hipoglicémia

A hipoglicemia é uma complicação do tratamento insulínico, tanto na diabetes tipo 1 como no


tipo 2, mas pode ocorrer também com fármacos hipoglicemiantes orais, que estimulam a
secreção de insulina endógena (p. ex., sulfoniluréias, ou derivados do ácido benzóico). A
hipoglicemia ocorre, com frequência, durante o exercício ou no jejum, estados que se
caracterizam, normalmente, por elevações discretas das hormonas contrarreguladoras e níveis
deprimidos de insulina. Os níveis baixos de insulina, nessas condições, permitem a mobilização
de substratos nutrientes, mediada pelas hormonas contra-reguladoras, a saída de glicose do
fígado e a inibição da entrada de glicose nos tecidos sensíveis à insulina. Essas respostas,
normalmente, aumentariam a glicemia. Contudo, em pacientes diabéticos nessas
circunstâncias, a hipoglicemia é precipitada por dosagem inadequada de insulina exógena ou
pela indução de insulina endógena.
A resposta aguda à hipoglicemia é mediada pelos efeitos contra-reguladores da glicagina e das
catecolaminas. Os sintomas iniciais de hipoglicemia ocorrem secundariamente à libertação de
catecolaminas (tremores, sudorese, palpitações). À medida que a glicose cai ainda mais,
também aparecem os sintomas neurológicos de hipoglicemia, pelos efeitos diretos da
diminuição de glicose sobre a função do SNC (confusão mental, coma). Um conjunto
característico de sintomas (sudorese noturna, pesadelos, cefaleias matinais) também
acompanha os episódios de hipoglicemia que ocorrem durante o sono (hipoglicemia noturna).

Os diabéticos tipo 1 têm uma tendência especial à hipoglicemia. Em indivíduos com produção
endógena de insulina deficiente, a resposta da glicagina à hipoglicemia está virtualmente
ausente. Além do mais, episódios hipoglicémicos recentes reduzem a resposta das
catecolaminas à hipoglicemia subsequente, e causam uma falta de perceção da hipoglicemia ao
reduzir a resposta simpatoadrenal e os sintomas neurogénicos resultantes. Essa falha
autonómica induzida pela hipoglicemia, que é distinta da neuropatia autonómica diabética, é
revertida pela prevenção da hipoglicemia, mas exacerbada pelo exercício ou pelo sono, que
podem ambos diminuir ainda mais a resposta das catecolaminas a um dado grau de
hipoglicemia.

Fisiopatologia das complicações crónicas

As complicações crónicas são aquelas que mais contribuem para a mortalidade dos doentes com
diabetes, sobretudo tipo 2. Podem dividir-se em função do calibre vascular atingido, sendo
designadas por complicações microvasculares (retinopatia, nefropatia e neuropatia) e
macrovasculares (aterosclerose acelerada associada a doença coronária, doença
cerebrovascular e doença arterial periférica). A principal causa de mortalidade nos doentes com
diabetes tipo 1 e tipo 2 é cardiovascular, associada à aterosclerose, portanto são as
complicações macrovasculares que estão mais associadas a mortalidade nestes doentes e, não
propriamente, as microvasculares. Para além disto, existem muitas outras complicações como
cataratas, glaucoma, doença dentária, pé diabético, gastroparésia, diarreia, uropatia, disfunção
sexual, complicações dermatológicas e complicações infecciosas, com alguns agentes que são
particularmente importantes do ponto de vista epidemiológico na diabetes tipo 1 e tipo 2. É
fundamental perceber como uma situação de hiperglicémia, que no fundo define, quer diabetes
tipo 1, quer diabetes tipo 2, leva fisiopatologicamente ao aparecimento da retinopatia,
nefropatia e neuropatia. O preenchimento deste elo designa-se fisiopatologia das complicações
crónicas e vai ser dependente da via metabólica da glicólise.

Apesar de existir resistência à insulina, vai existir mais glicose dentro das células. Isto é explicado
pelo facto de algumas células serem insulinodependentes e outras não. Portanto, as
complicações da diabetes dividem-se e têm consequências diferentes consoante os órgãos são
dependentes de insulina, como é o caso do músculo esquelético, ou não dependentes de
insulina para a internalização da glicose, como é o caso do fígado. Conclui-se que a principal via
fisiopatológica das complicações crónicas da diabetes inicia-se nos órgãos que não dependem
da insulina para a internalização da glicose. Nos doentes com diabetes há hiperglicémia, e
consequentemente há uma tentativa de aumentar a insulina para tentar que a glicose entre em
órgãos como o músculo esquelético, que dependem da insulina para a sua internalização.
Contudo, isto não vai ser possível e a glicémia que persiste no organismo vai ser captada pelos
órgãos que não dependem da insulina para a internalização da glicose, ou seja, a internalização
não é dependente de GLUT-4. Assim, nestes órgãos (dos quais se destaca o fígado), a
concentração intracelular de glicose é suprafisiológica visto que não entrou nos outros tecidos.
Portanto, as consequências fisiopatológicas da diabetes dependem do tipo de GLUT que cada
órgão utiliza para a internalização da glicose e a via da glicólise ocorre em órgãos como o fígado,
enquanto que grande parte do fenótipo de hiperglicémia é à custa de órgãos que dependem da
insulina para a internalização da glicose.

A via glicolítica está hiperfuncionante nas células não


dependentes de GLUT-4, produzindo todos os seus
substratos até ao momento em que a gliceraldeído
desidrogenase (GAPDH) deixa de funcionar. O
potencial redutor, sob a forma de ATP, é também
maior comparativamente a uma situação fisiológica,
quando a via glicolítica está hiperfuncionante. Como
se gera um aumento do potencial redutor sob a
forma de NADH e FADH2 na via glicolítica do ciclo de
Krebs, há um aumento da capacidade de transporte eletrónico ao nível da cadeia de fosforilação
oxidativa. Este transporte eletrónico é dependente de enzimas que podem saturar, logo, se o
substrato redutor é absolutamente suprafisiológico o transporte eletrónico vai ocorrer até ao
momento de saturação enzimática. A partir do momento em que há saturação o transporte
eletrónico não pode mais ocorrer e o eletrão tem que escapar desta via. O escape desta via faz-
se para fora da membrana mitocondrial, sendo que nesse local reage com o oxigénio e forma-
se, então, o ião superóxido. Assim, a via glicolítica hiperativa leva à saturação enzimática da
fosforilação oxidativa e, consequentemente, a mecanismos de stress oxidativo.

O ião superóxido, através do seu


potencial oxidante, lesa o DNA
celular, sobretudo quando
acompanhado de saturação da
enzima superóxido dismutase, que,
normalmente, é uma enzima
implicada na ativação de
mecanismos de reparação do DNA.
Os mecanismos de reparação do
DNA ativam a enzima poli-ADP
ribose polimerase (PARP) que, ao
colocar moléculas de ADP sobre a
gliceraldeído desidrogenase,
bloqueia o seu papel metabólico. Ao
bloquear o papel metabólico desta
enzima, a via glicolítica é interrompida e os substratos a montante acumulam-se. Os substratos
acumulados são utilizados em vias metabólicas alternativas, das quais se destacam: a via dos
polióis, a via das hexosaminas, a via da proteína quinase C e a via dos produtos finais de
glicosilação avançada (AGEs). Estas quatro vias quando estão a operar no espaço intracelular
são responsáveis pelo aparecimento das complicações macro e, sobretudo, microvasculares da
diabetes. Dentro das mudanças da microvasculatura destacam-se o acúmulo de proteínas na
parede dos vasos, disfunção e perda de células endoteliais e oclusão. Estudos recentes
sugerem que o fluxo aumentado destas quatro vias é induzido por um fator comum: a
superprodução de EROs de derivação mitocondrial geradas pelo fluxo aumentado de glicose por
meio do ciclo TCA (ciclo de krebs). Isto leva à inibição da enzima glicolítica, gliceraldeído-3-
fosfato desidrogenase, e a um aumento dos metabólitos a montante que podem, desta forma,
ser desviados para as quatro vias.
Via dos polióis

Muitas células contêm aldose redutase, uma enzima que converte aldeídos
tóxicos nos seus alcoóis respetivos. Normalmente esta enzima tem baixa
afinidade para a glicose, porém, em condições de hiperglicémia intracelular,
pode ser responsável por até um terço do fluxo de glicose. Vai convertê-la
em sorbitol e, eventualmente, em frutose, utilizando o NADPH como cofator.
Dados recentes sugerem que o consumo de NADPH durante a redução da
glicose possa ser o culpado por dano osmótico e não, como se pensava
anteriormente, o excesso de sorbitol. O NADPH é fundamental para a
regeneração da glutationa reduzida, no entanto, o facto de ele ser usado
nesta via impede a regeneração deste antioxidante e consequente
depuração de radicais livres. O dano causado por esta via a células nervosas
é considerável, no entanto o seu papel na vasculatura é menos evidente.

Atendendo às formas de metabolização da via dos polióis verifica-se a


existência de alterações inflamatórias, com maior adesão leucocitária, e
situações de stress oxidativo, com compromisso das reservas de glutatião,
perturbações do óxido nítrico e consequente disfunção endotelial. Isto, em conjunto com a
acumulação de sorbitol, vai justificar o stress osmótico em células particularmente sensíveis,
comprometendo a manutenção da sua função. Um exemplo é o cristalino que depende da
osmolaridade absolutamente controlada para a manutenção da sua transparência, tendo como
consequência do stress osmótico o aparecimento de cataratas. Para além das cataratas, que
tem uma via mais direta, os fatores circulatórios, menos claros, causam disfunção microvascular
com fenómenos isquémicos consequentes.

Via das hexosaminas

Quando os níveis intracelulares de glicose são elevados, a maior parte vai ser metabolizada
através da glicólise, formando inicialmente glicose-6-fosfato, seguida de frutose-6-fosfato antes
de continuar no resto da via glicolítica. Parte deste intermediário glicolítico é desviado para via
das hexosaminas. A enzima GFAT converte a frutose-6-fosfato em glicosamina-6-fosfato e,
finalmente, em UDP N-acetil glicosamina. Este composto vai ser colocado em resíduos de fatores
de transcrição, podendo resultar em alterações patológicas da expressão genética. Modificação
do fator de transcrição SP-1 resulta no aumento da TGF-β1 e do Inibidor do Ativador do
Plasminogénio (PAI-1), ativando vias pró-inflamatórias e pró-fibróticas. Assim, a via das
hexosaminas vai condicionar um espessamento da íntima e, portanto, está diretamente ligada
aos mecanismos de aterogénese nos doentes diabéticos.

Via da proteína cinase C

A hiperglicémia endotelial estimula a glicólise e, com isso, leva a um aumento da síntese de


diacilglicerol (DAG) a partir do intermediário gliceraldeído-3-fosfato. O DAG é um cofator,
juntamente com iões de cálcio, da ativação de várias isoformas de proteína quinase C nas
células, constituindo uma importante via de transdução de sinal. Um excesso de ativação da PkC
provoca efeitos negativos.
Esta via tem múltiplas consequências semelhantes às duas anteriores: disfunção endotelial por
perturbações que causam aumento da endotelina (ET-1), com função vasoconstritora, e
diminuição da sintase do óxido nítrico endotelial (eNOS), uma enzima vasodilatadora; aumento
de fatores de fibrose e espessamento da matriz extracelular (TGF-β); aumento do Inibidor do
Ativador do Plasminogénio (PAI-1) ; alteração do fluxo sanguíneo por fatores pró-trombóticos
(NF-κB), inflamatórios, de stress oxidativo e de neoangiogénese (VEGF).

Via dos produtos finais da glicosilação avançada

A via dos PFGA (AGEs em inglês) ocorre como tentativa de diminuição da hiperglicémia, através
da ligação da glicose livre em circulação a proteínas plasmáticas. Quando está presente em
elevadas concentrações, a glicose pode reagir, de forma reversível e não enzimática, com grupos
aminas de proteínas originando um intermediário instável, base de Schiff, que irá sofrer
rearranjo interno para formar uma proteína glicosilada mais estável. Formam-se, então,
produtos precoces da glicosilação, também designados por produtos de Amadori, dos quais o
mais conhecido é a
hemoglobina A1C, podendo
ser tão funcional do ponto de
visto do transporte como a
hemoglobina normal. Quando
nós medimos a hemoglobina
A1C, que não é mais que a
ligação não enzimática da
glicose livre em excesso à
hemoglobina, estamos a
documentar num
determinado doente a
existência de uma via ativada
de produtos finais da
glicosilação avançada. A
dosagem de HbA1C serve então como índice de controlo glicémico em doentes diabéticos.

Produtos iniciais de glicosilação podem sofrer uma série de reações químicas e arranjos
adicionais, muitas vezes envolvendo intermediários de carbonila reativos, levando à formação
irreversível de AGEs. A formação de dicarbolina a partir da autooxidação da glicose também
contribui para a produção dos AGEs. Estes produtos vão danificar a microvasculatura por três
meios:

• Alteração da expressão genética endotelial devido à formação de AGEs a partir de


proteínas de transcrição;
• Espessamento e rigidez vascular originada numa ligação irreversível de adutos de AGE
formados por proteínas da matriz;
• Estimulação de cascatas inflamatórias reguladas por NF-κB e disfunção vascular como
causa da ligação de AGEs extracelulares (ex: albumina modificada) a recetores de AGE
(RAGE) nos macrófagos, células T e musculatura lisa endotelial.

A via dos PFGA, para além de ser útil no diagnóstico e no acompanhamento dos doentes, uma
vez que que está na génese do aparecimento da hemoglobina glicosilada, é também responsável
por ativar muitos outros mecanismos, como:

• Alteração de proteínas da matriz extracelular (através do cross-linking de colagénio,


podendo levar a rigidez vascular e aprisionamento de proteínas plasmáticas ou
intersticiais)
• Aumento de citocinas e fatores de crescimento pró-inflamatórios circulantes (TGF-β,
IGF-1 e VEGF) libertados por macrófagos da íntima
• Aumento de permeabilidade vascular
• Alterações pró-trombóticas (diminuição da trombomodulina)
• Maior atividade miofibroblástica.

Complicações microvasculares

Retinopatia

O comprometimento ocular da diabetes é a principal causa de


cegueira em países desenvolvidos. Ocorre em duas fases distintas: não
proliferativo e proliferativo. Na retinopatia diabética vão ser
encontrados fatores de microtrombose capilar nos vasos da retina,
com presença de isquemia neuronal consequente, devido a todos os
fatores que já foram referidos: aumento da PAI-1, aumento da TGF-β,
compromisso endotelial por perturbações da endotelina e síntese do
óxido nítrico; existindo, deste modo, lesão microangiopática.

O estado pré-proliferativo apresenta:

1. Microaneurismas dos capilares da retina (pontos vermelhos minúsculos que constituem


o sinal detetável clinicamente mais precoce;
2. Protrusões que se devem à perda de pericitos circundantes que sustentam as paredes
dos capilares;
3. Permeabilidade vascular aumentada;
4. Vazamento de gordura devido à existência de paredes permeáveis - manchas amarelas
com bordos distintos/exsudados duros (associados a edema macular);
5. Sinais de isquémia devido a oclusão de capilares;
6. Aparecimentos de exsudados moles/algodonosos que correspondem a manchas
amarelas com bordos indistintos nas áreas de isquémia, podendo haver hemorragias
retinianas.

No estágio proliferativo ocorre neovascularização. Num contexto inflamatório, com vias a


potenciar a ação do VEGF, a situação isquémica é o estímulo necessário para haver formação de
novos vasos, tentando suplantar a deficiência em fornecimento de oxigénio às células que estão
em isquemia. A formação de novos vasos potenciada pelo VEGF levará, em última instância, à
fase proliferativa da retinopatia. Visto que estes vasos não são formados durante o
desenvolvimento embrionário são patológicos do ponto de vista das suas fenestrações. Não
conseguem garantir a manutenção de sangue no seu interior, sendo muito propensos ao
extravasamento sanguíneo. Podem causar hemorragias retrovítreas e descolamento da retina,
sendo a diabetes a principal causa de amaurose no mundo Ocidental.

Nefropatia

A diabetes é a causa mais comum de doença renal em fase terminal em todo o mundo. A
nefropatia diabética resulta principalmente de função glomerular desordenada. Na nefropatia
não são predominantes os mecanismos vasculares, ao contrário da retinopatia, evidenciando-
se os mecanismos de fibrose com presença de depósitos de fibrina. Os mediadores que se
iniciam pelas 4 vias fisiopatológicas das complicações crónicas vão estar presentes novamente
neste caso, havendo um aumento de VEGF e de NO a que se associa hiperfiltração e hipertensão
renal. No rim de um diabético vai haver:

1. Espessamento das membranas basais dos capilares glomerulares com consequente


obliteração dos vasos;
2. Aumento do mesângio que circunda os vasos glomerulares devido ao depósito de
material semelhante à membrana basal, podendo invadir os vasos glomerulares;
3. Esclerose simultânea das artérias glomerulares aferentes e eferentes;
4. Aumento da matriz extracelular;
5. Fibrose.

As principais manifestações da nefropatia diabética são a esclerose mesangial e, sobretudo, a


glomeruloesclerose. Metade dos doentes vão apresentar um padrão histológico muito clássico
denominado como glomeruloesclerose nodular de Kimmelstiel-Wilson, havendo formação de
nódulos de fibrina que constituem, sobretudo, a consequência no local da ativação do TGF-β.
Além do aumento da atividade de TGF-β, vai haver um acréscimo de colagénio tipo IV e de
fibronectina com uma redução de heparano sulfato (com consequente aumento da albuminúria,
pois o heparano sulfato é responsável por repelir cargas negativas ao nível do rim).

Neuropatia

A neuropatia diabética ocorre em cerca de 60% dos doentes, sendo a principal causa de
morbilidade. Tem como principais mediadores moleculares os produtos das 4 vias das
complicações crónicas da diabetes, sobretudo a via dos polióis. Tal como na retinopatia,
funcionam, maioritariamente, fatores de isquemia microvascular dependentes de stress
oxidativo, devido a aumento de ERO pela via do sorbitol. Ocorre desmielinização e perda de
fibras nervosas com regeneração reduzida dos axónios, acompanhando-se de lesões
microvasculares, inclusive espessamento das membranas basais. Há atuação de vias
apoptóticas e diminuição das neurotrofinas (NGF) com compromisso nutricional neuronal e
diminuição do péptido C. A participação de mecanismos imunológicos (↑ autoanticorpos),
apesar de pouco esclarecida, está também presente em alguns casos.

A neuropatia pode ser dividida em três tipos principais:

• Polineuropatia simétrica distal;


• Neuropatia autonómica;
• Mononeuropatia/neuropatias assimétricas transitórias.

O padrão mais frequente de envolvimento é o da polineuropatia periférica sistémica das


extremidades, afetando tanto a função motora quanto a sensorial, particularmente esta última.
Os sintomas podem incluir uma sensação de dormência, formigueiro, dureza ou queimadura
que começa nos pés e se propaga proximalmente.
A neuropatia autonómica frequentemente acompanha a anterior, podendo afetar todos os
aspetos do funcionamento autónomo, em particular os sistemas circulatório, urogenital e
gastrointestinal. Pode ocorrer, então, taquicardia em repouso, hipotensão ortostática,
disfunção erétil, incontinência, gastroparésia e sudorese gustatória.

A mononeuropatia é menos frequente e deve-se à oclusão vascular e isquémia focal assimétrica.


São muitas vezes transitórias.

Complicações macrovasculares

A doença cardiovascular aumenta de incidência nos indivíduos com diabetes tipo 1 e tipo 2. Foi
verificado um aumento acentuado de doença coronária, enfarte de miocárdio, insuficiência
cardíaca, doença arterial periférica e morte súbita nos diabéticos. Parece haver um sinergismo
entre a hiperglicémia e outros fatores cardiovasculares. Os fatores de risco para doença
macrovascular em diabéticos incluem dislipidemia, hipertensão, obesidade, atividade física
reduzida e tabagismo, micro/macroalbuminúria, elevação da creatinina sérica e função
plaquetária anormal.

A resistência à insulina está associada a maior risco deste tipo de complicações


cardiovasculares. Os doentes vão ter níveis elevados dos inibidores do plasminogénio (PAI-1) e
de fibrinogénio, o que acelera o processo da coagulação e prejudica a fibrinólise, favorecendo
assim o desenvolvimento de trombose. A diabetes está associada a uma disfunção do endotélio,
do músculo vascular liso e das plaquetas. Para além disso, existe um mecanismo por detrás do
risco aterogénico específico da diabetes que está relacionado com a via de produtos finais de
glicação avançada. Os AGEs podem diretamente estabelecer uma ligação cruzada com as
proteínas da matriz extracelular, o que reduz a remoção de proteínas enquanto intensifica a
deposição proteica. Esta ligação cruzada pode aprisionar outras proteínas plasmáticas ou
intersticiais, neste caso, a lipoproteína de baixa densidade (LDL) que se encontra glicosilada. Esta
fica aprisionada no interior das paredes modificadas dos grandes vasos, acelerando a
aterosclerose. As placas de ateroma desenvolvem-se mais precocemente, têm maior
instabilidade (maior conteúdo lipídico e inflamatório, à custa de macrófagos), tendo mais
suscetibilidade para a rutura com consequente trombogénese.

Conclusões:

• O estudo da fisiopatologia da diabetes permite compreender de forma integrada o


desenvolvimento da doença e das suas manifestações;
• A diabetes é um dos exemplos em que o processo inflamatório crónico está subjacente
a vários mecanismos da doença que são, atualmente, importantes tanto nos países
ocidentais como no mundo em geral devido ao aumento da mortalidade e morbilidade;
• A diabetes evidencia a necessidade de se compreender a seletividade de órgão das
complicações fisiopatológicas, aludindo à importância de compreender que a
hiperglicémia resulta, sobretudo, da resistência à insulina em órgãos como o músculo
esquelético, que dependem da insulina para internalização da glicose, e que as
principais complicações resultam da ativação de 4 vias fisiopatológicas metabólicas que
estão a ocorrer em órgãos que não dependem da insulina para a internalização da
glicose, como o fígado.
Fisiopatologia das doenças reumáticas

Doenças reumáticas

✓ D. Tecido Conjuntivo (AR, LES, ESP, AIJ…)


✓ Espondilartrites (EA…)
✓ Artrites microcristalinas (Gota…)
✓ Doenças periarticulares (tendinites…)
✓ Vasculites
✓ Osteoartrose
✓ Doenças ósseas metabólicas (OP...)
✓ Artrites infecciosas
✓ Tumores

ARTRITE REUMATÓIDE (AR)

De todas as doenças imunologicamente


mediadas, esta é a mais frequente, atingindo
cerca de 1% da população mundial.

É o paradigma das doenças infamatórias


articulares, sendo crónica, incapacitante (mas
tratável) e caracterizada essencialmente por uma
inflamação dos punhos, metacarpofalângicas e interfalângicas proximais, causando deformação
crónica e destruição das articulações. Está mais concentrada nas articulações, mas não se sabe
porquê, uma vez que é sistémica/inflamatória/imunomediada.

A imagem clássica da AR é uma subluxação das metacarpofalângicas e um desvio cubital dos


dedos com atrofia dos músculos interósseos e com nódulos reumatóides. Esta imagem clássica
é atualmente rara pois a forma de tratar esta doença é muito mais eficaz que no passado.

Desenvolve-se nódulos subcutâneos reumatóides em cerca de 1/4 dos pacientes, ocorrendo ao


longo da superfície extensora do antebraço ou de outras áreas sujeitas à pressão mecânica;
raramente, eles podem se formar nos pulmões, baço, coração, aorta e outras vísceras. Os
nódulos reumatoides são massas firmes e insensíveis, de formato oval ou arredondado, com
cerca de 2 cm de diâmetro. Eles são caracterizados microscopicamente por um foco central de
necrose fibrinóide circundado por uma paliçada de macrófagos, a qual por sua vez é delimitada
por tecido de granulação e linfócitos.

A AR tem duas características importantes: erosão e rarefação óssea.

Numa biópsia da membrana sinovial de um doente com AR, observa-se células mononucleadas,
linfócitos B e T, plasmócitos, monócitos que se diferenciam em macrófagos (orla epitelióide),
células gigantes, resultantes da fusão de monócitos formando células multinucleadas, há neo-
vascularização com vénulas de endotélio alto - HEV (órgãos linfóides) onde há diapedese dos
leucócitos. É, por isso, um tecido completamente diferente, imunologicamente extremamente
ativo, e tem a propriedade de poder afetar diretamente a estrutura do osso, invadi-lo, quase
como se fosse uma lesão tumoral.

O sistema RANK-RANKL é um sistema que faz “comunicar” o osteoblasto ao osteoclasto sendo


que é o principal motor da diferenciação das células pré-osteoclásticas em osteoclastos e
também da ativação do osteoclasto e, portanto, da reabsorção óssea. Sem RANKL não há
osteoclastos. O que acontece na AR é que a membrana sinovial inflamada tem vários produtos
como o TNF-α, IL-1 e IL-6 que atuam sobre o RANKL acelerando a diferenciação dos osteoclastos
e promovendo assim a erosão óssea.

Patogénese:

A AR é uma doença autoimune que envolve interações


complexas, e ainda mal compreendidas, entre fatores de risco
genéticos, o ambiente e o sistema imunológico. As alterações
patológicas são causadas principalmente por inflamação
mediada por citocinas, com as células T CD4+ sendo a principal
fonte das citocinas. Muitos pacientes também produzem
anticorpos contra peptídeos citrulinados cíclicos (PCCs), os quais
podem contribuir para as lesões articulares. Os PCCs são
derivados de proteínas nas quais resíduos de arginina são
convertidos em resíduos de citrulina após a tradução. Na AR,
anticorpos contra fibrinogénio, colagénio do tipo II, a-enolase e
vimentina citrulinados são os mais importantes e podem formar
imunocomplexos que se depositam nas articulações. Esses
anticorpos representam um marcador diagnóstico para a doença
e podem estar envolvidos na lesão tecidual.

Como outras doenças autoimunes, a AR é uma doença na qual fatores genéticos e ambientais
contribuem para a interrupção da tolerância a autoantigénios.

• Fatores genéticos: Estima-se que 50% do risco de


desenvolvimento da AR estejam relacionados a
fatores genéticos. A suscetibilidade à artrite
reumatoide está ligada ao lócus HLA-DRBI.
Estudos recentes de ligação e associação
pangenómica revelaram grande número de
genes não HLA nos quais polimorfismos estão
associados à AR. Há forte associação com um
polimorfismo no gene PTPN22, o qual codifica
uma tirosina-fosfatase que é postulada como
inibindo a ativação das células T.
• Fatores ambientais: Muitos agentes infecciosos
candidatos — cujos antigénios podem ativar
células T ou B — têm sido considerados, mas
nenhum foi implicado de forma conclusiva.
Conforme mencionado, em pelo menos 70% dos
pacientes o sangue contém anticorpos anti-PCC,
os quais podem ser produzidos durante a inflamação.
Insultos inflamatórios e ambientais, como tabagismo e
infeções, podem induzir a citrulinação de algumas proteínas
do próprio corpo, criando novos epítopos que deflagram
reações autoimunológicas.
Notas aula teórica:

• Não tem etiologia conhecida


• Conhecemos os mecanismos, não a causa
• Interação entre fatores genéticos e ambientais
• Há cerca de 20 genes de risco para AR
• Fatores ambientais: tabaco, periodontite, microbioma, …
• A maior parte dos doentes chega à doença (fenótipo comum) por vias diferentes.
• PERDA DE TOLERÂNCIA: fatores ambientais → alterações epigenéticas → citrulinação de proteínas → deixam
de ser reconhecidas, e aparecem anticorpos contra péptidos citrulinados (nesta altura não há doença, sendo
que grande parte dos doentes já os tinha antes de aparecer a doença)
• Fator reumatoide
o Ac contra a porção constante da Ig humana
o Alguns indivíduos saudáveis têm
o Marcador inespecífico
o Tabaco → fumadores têm + anticorpos destes
• Pode haver outro mecanismo/outras alterações imunológicas que levem à doença

TNF, IL-1, IL-6 → ambiente sistémico pró-inflamatório

Sintomas: cansaço, artrite – porquê esta localização?

• Várias hipóteses:
o Estamos sempre a mexê-las – ponto de tensão mecânica
o São bem irrigadas

Nota: com frequência as inflamações focam-se nas articulações (bacteriémia → artrite séptica).

Fisiopatologia:

Embora a etiologia da artrite reumatóide (AR) seja ainda desconhecida, as vias fisiopatológicas
que conduzem a um estado inflamatório sustentado encontram-se bem caracterizadas. A
avaliação das características da membrana sinovial reumatóide, conjugada com estudos em
modelos animais e com a avaliação do comportamento in vitro das principais células envolvidas,
sustenta um papel crucial para os linfócitos T e B na fisiopatologia da AR, em cooperação com
os macrófagos, osteoclastos e fibroblastos, num processo caracterizado essencialmente por
uma perturbação funcional imunológica, proliferação e recrutamento celular e falência dos
mecanismos de apoptose.

Existem numerosos argumentos a favor do envolvimento dos linfócitos T na patogenia da AR,


dos quais se destacam:

1. O número aumentado de linfócitos T no líquido e na membrana sinoviais;


2. A associação aos epítopos compartilhados dos antigénios HLA classe II;
3. Os modelos animais dependentes dos linfócitos T (artrite induzida pelo adjuvante de
Freund, pelo colagénio e pela parede celular do estreptococos);
4. A melhoria dos doentes com AR quando submetidos a terapêuticas depletoras de
linfócitos T
Estes argumentos geraram o chamado “paradigma das células T”, que atribui a estas células o
papel central na patogenia da AR. Embora obviamente muito importante, a intervenção destas
células não explica, só por si, todos os fenómenos imunológicos e inflamatórios que ocorrem na
AR. O linfócito T encontrado na membrana sinovial reumatóide tem um perfil particular. A
maioria corresponde a um subtipo de linfócitos de memória com um perfil de produção de
interleucinas típico dos linfócitos auxiliares do subtipo 1 (Th1). Este facto revela o papel de
interligação destas células, por um lado dependentes de quimocinas para o seu recrutamento e
de interleucinas (como a IL-18) para a sua função e, por outro lado, orquestrando a atividade de
outras células através de um padrão de produção de interleucinas Th1. Os linfócitos Th1, através
da produção de IFN-γ e de IL-2, promovem a imunidade celular e a citotoxicidade, por oposição
aos linfócitos Th2, tipificados pela produção de IL-4, IL-5 e IL-13, que promovem a imunidade
humoral e inibem a ação dos Th1. A relevância do balanço Th1/Th2 no contexto da AR não está
completamente esclarecida. A reduzida produção de interleucinas Th1 verificada na espondilite
anquilosante e a atividade Th2 observada na artrite reativa têm sido apontadas como
argumentos a favor da influência da atividade Th1 na intensidade inflamatória e cronicidade
observadas na AR. Embora o IFN-γ e a IL-2 promovam a ativação macrofágica, esta é
eminentemente dependente da inter-relação direta entre a membrana celular do linfócito T e
do macrófago. Desde que ocorra ativação macrofágica, a produção de IL-18 e TNF-α é
fortemente indutora de uma resposta Th1 e cria condições para a perpetuação da estimulação
linfocitária e macrofágica, através de um sistema de retroação positivo múltiplo em que o TNF-
α induz a produção de IL-18 e IFN-γ e a IL-18 induz produção de TNF-α e IFN-γ, sustentando este
último a ativação macrofágica e garantido a produção de mais TNF-α e IL-18. Estas interligações
linfócito T - macrófago são, ainda, potenciadas pela produção pelos linfócitos Th1 de IL-17 (um
potente indutor da produção macrofágica de IL-1 e
TNF-α e da osteoclastogénese) e, também, pela
quase ausência de produção de IL-4 (devido à escassa
atividade Th2 na AR), que é um dos principais
inibidores da atividade macrofágica. A manutenção
deste ciclo vicioso é amplificada pela perturbação
dos mecanismos de apoptose que os linfócitos da
sinóvia reumatóide apresentam, em parte
resultantes do efeito do IFN-β produzido pelos
fibroblastos sinoviais, os quais permitem a
sobrevivência destas células durante muito tempo,
após uma estimulação inicial.

Os linfócitos da membrana sinovial reumatóide têm, nalguns doentes com AR, um padrão de
organização que se aproxima de um gânglio linfático. Existem zonas de predomínio de linfócitos
T, em relação próxima com linfócitos B, os quais tendencialmente se organizam em folículos
linfóides e, uma vez diferenciados em plasmócitos, migram para fora dos centros germinativos.
Esta presença dos linfócitos B, embora em menor número do que os T, tem relevância
fisiopatológica. De facto, a AR está associada à produção de uma série de autoanticorpos (entre
os quais se destacam anticorpos anti-IgG (contra a porção constante) - o fator reumatoide FR),
existindo imunocomplexos circulantes e no interior das articulações. Estes podem assumir a
forma de dímeros de FR IgG, com capacidade de ativação celular, e multímeros, que podem
ativar o complemento e gerar atividade inflamatória. Um dos papéis mais importantes dos
linfócitos B na sinovite reumatóide será seguramente a apresentação de antigénios aos
linfócitos T, existindo neste momento evidência sugestiva de que estes sejam as células sinoviais
mais eficazes nesta tarefa, particularmente os linfócitos B produtores de FR, que interiorizam
complexos imunes e apresentam os antigénios aos linfócitos T. Mas, efetivamente, o argumento
principal para a relevância dos linfócitos B no processo fisiopatológico da AR advém dos
resultados extremamente favoráveis da terapêutica desta doença com anticorpos monoclonais
anti-CD20, depletores de linfócitos B.

Este conjunto de evidências levou à proposta de um modelo etiopatogénico da AR centrado no


linfócito B. Este modelo tenta explicar o cariz estocástico do início da AR através da génese de
clones de linfócitos B produtores de FR, originados por mutações somáticas nos genes das
imunoglobulinas. A sobrevivência anómala destes clones poderia ser assegurada por vários
mecanismos. Em primeiro lugar, admite-se que a ligação das Ig de superfície (que são FR) a
qualquer imunocomplexo IgG antigénio, conduziria à interiorização do antigénio e apresentação
aos linfócitos T, ativando-os e fornecendo um sinal positivo para a sobrevivência do clone
produtor de FR. Outro mecanismo hipotético seria a formação de imunocomplexos de FR unidos
ao C3d que, quando ligados aos recetores Ig dos clones de FR, forneceriam um sinal de
sobrevivência. Estes processos poderiam ser particularmente eficazes em espaços confinados,
como a articulação, onde grandes quantidades de FR propagariam este efeito. Por fim, a
sobrevivência dos clones de linfócitos B produtores de FR poderá ser também garantida através
da produção pelos fibroblastos sinoviais de grandes quantidades de VCAM-118, o qual está
geralmente co-localizado com as zonas de linfócitos B19 e é documentadamente um elemento
relevante na diferenciação e sobrevivência dos linfócitos B.

Mesmo garantida a sobrevivência dos clones de linfócitos B produtores de FR, a tendência deste
para formar imunocomplexos resultaria naturalmente na sua eliminação pelo recetor de
complemento 1 dos glóbulos vermelhos. No entanto, os dímeros de FR são de pequenas
dimensões e não fixam o complemento, o que lhes permite escapar a este mecanismo. Estes
dímeros têm grande afinidade para o recetor FcγRIIIa (CD16) presente nos macrófagos,
induzindo a produção de TNF-α e IL-1 e a consequente cascata de fenómenos inflamatórios da
AR. Além disso, a expressão deste recetor macrofágico segue uma distribuição anatómica
compatível com os locais de envolvimento da AR (sinóvia, fígado, pulmão, pericárdio, medula
óssea, gânglios linfáticos, derme exposta a stress, glândulas salivares), explicando assim
adequadamente as características sistémicas da AR, por um mecanismo centrado no linfócito B
e no FR.

Um dos aspetos mais característicos da sinovite reumatóide, embora nem sempre presente, é a
formação do pannus, um conjunto de células, dominado pelos fibroblastos sinoviais, com um
comportamento invasivo e destrutivo, aproximando-se do padrão típico dos tecidos
neoplásicos. Esta transformação celular é acompanhada por perda de inibição de contacto,
atividade telomerásica e ativação de diversos oncogenes: egr-1, c-fos, c-jun, c-myc, c-ras e c-sis.
Embora não totalmente clarificada, esta alteração do fenótipo sinovial poderá ter origem no
estímulo sobre o fibroblasto dos radicais livres de oxigénio, presentes em abundância na sinovite
reumatóide, induzindo mutações nos genes controladores da apoptose, entre os quais o p53,
criando-se condições para a transformação celular. Por outro lado, o fibroblasto é sensível à
estimulação por vários mensageiros do processo inflamatório sinovial, com destaque para o
TNF-α e a IL-1. Estes estímulos ativam fatores de transcrição como o nuclear factor-kappa B (NF-
κB), o activator protein 1 (AP1) e o mitogen-activated protein kinases (MAPK) que induzem a
proliferação sinovial e a produção de IL-6, granulocyte macrophage colony stimulating factor
(GM-CSF), quimocinas, proteases e prostaglandinas. Por sua vez, o GM-CSF tem a capacidade de
criar um ciclo de feedback positivo ao estimular o macrófago a produzir mais IL-1, mantendo
assim a proliferação e a atividade fibroblástica.

Existem várias proteases produzidas pelo fibroblasto entre as quais se destacam as


metaloproteases da matriz cartilagínea (MMP). Têm sido identificadas numerosas MMPs (pelo
menos vinte), seguindo-se geralmente uma nomenclatura numérica, embora as MMPs
conhecidas há mais tempo conservem concomitantemente a sua designação original.
Provavelmente, as duas mais importantes na destruição articular serão a colagenase-1 (MMP-
1), responsável pela degradação dos colagénios I, II, III, VII e X, e a estromelisina-1 (MMP-3),
responsável pela degradação dos proteoglicanos e contributiva para mais um ciclo de retroação
positiva na sinóvia reumatóide, ao clivar a procolagenase na sua forma ativa. Outras MMPs são
também relevantes na sinovite reumatóide:

• Gelatinases A (MMP-2) e B (MMP-9), que degradam o colagénio desnaturado e a


elastina;
• Estromelisina-2 (MMP-10);
• MMP14 e MMP-16, fundamentais na invasão tumoral e na ativação de outras MMPs.

Pertencem ainda à família de MMPs as agrecanases (as quais não entram nesta nomenclatura
numérica), que estão também envolvidas no processo de agressão tissular reumatóide.

As MMPs têm inibidores naturais da sua atividade, conhecidos por tissue inhibitor of matrix
metalloproteinase (TIMP), que estão também expressos em grande quantidade na AR. No
entanto, o índice MMP/TIMP é mais elevado na AR do que, por exemplo na OA, indicando um
desequilíbrio nos mecanismos de controlo das MMPs. Um complexo composto pelo TIMP-2,
MMP-14 e MMP-2 tem sido identificado como o responsável pela degradação da matriz nos
locais de invasão sinovial da cartilagem.

As proteases cisteínicas constituem um outro grupo de proteases, das quais se destacam as


catepsinas, que têm ação sobre o colagénio (principalmente sobre os colagénios II, IX e XI) e
proteoglicanos. Foi demonstrada a presença das catepsinas B, L e K na sinóvia reumatóide, com
destaque para a catepsina K, única com capacidade lítica do colagénio I, envolvida na
degradação do osso pelos osteoclastos e presente nos fibroblastos e macrófagos reumatóides
nos locais de erosão óssea.

Em resumo, a teia de proteases gerada pelos fibroblastos é complexa, sendo provável que a
ação do MMP-2 e MMP14 seja fundamental na agressão da cartilagem e os MMP-1, MMP-3 e
catepsina K sejam os principais responsáveis pela erosão óssea.

A ação do fibroblasto sinovial não se esgota na invasão e destruição dos tecidos articulares. Na
realidade, estas células contribuem para o recrutamento de linfócitos T CD4 (através da
produção de IL-16) e para a apresentação de antigénios a estas células, pelo menos sob o
estímulo de super-antigénios. Como referido atrás, os fibroblastos são também muito
importantes para manter um estímulo de sobrevivência para os linfócitos B produtores de FR.
Por outro lado, os fibroblastos sinoviais são responsáveis pela produção de IL-11, envolvida no
estímulo da osteoclastogénese e responsável por outro ciclo de retroação positivo parácrino da
sinóvia reumatóide, ao estimular os macrófagos a produzir TNF-α, o qual é por sua vez, em
sinergia com a IL-1, um indutor da produção de IL-11 fibroblástica. Por fim, os fibroblastos
produzem, ainda, o Vascular endothelium growth factor (VEGF) e o Fibroblast Growth Factor b
(FGFb), os dois fatores mais relevantes na angiogénese, um processo precoce e fundamental na
AR, ao permitir a entrada de mais células na sinóvia e também de nutrientes, viabilizando a
expansão sinovial. O VEGF induz a produção por parte das células endoteliais de DAF e da
integrina αvβ3, que protegem as células do complemento ativado e regulam a angiogénese, em
equilíbrio com fatores antiangiostáticos como a trombospondina, a angiostatina e a endostatina.

A sinovite reumatóide é acompanhada invariavelmente por uma infiltração macrofágica. Estes


macrófagos apresentam sinais claros de ativação como seja a expressão de moléculas da classe
II do complexo major de histocompatibilidade, interleucinas pró-inflamatórias ou reguladoras
(IL-1, IL-6, IL-10, IL-13, IL-15, IL-18 e TNF-α), fatores de crescimento (GM-CSF), quimiocinas e
MMPs. À luz dos conhecimentos atuais, não parece provável que os macrófagos tenham um
papel etiológico na AR, no entanto, independentemente da causa exata da sinovite reumatóide,
estas células ocupam uma posição central no processo fisiopatológico da AR, como atestam
vários argumentos clínicos:

• Existe uma possível correlação entre a infiltração macrofágica sinovial e a deterioração


radiológica
• As terapêuticas convencionais da AR têm um efeito inibidor sobre os macrófagos e as
terapêuticas biológicas dirigidas contra interleucinas macrofágicas são muito eficazes.

As estreitas ligações que os macrófagos estabelecem com as outras células protagonistas da


sinovite reumatóide fornecem uma justificação para a relevância destas células. De facto, os
macrófagos distribuem-se, na zona mais superficial da íntima, em estreito contacto com uma
camada adjacente de fibroblastos, enquanto, na subíntima, estão em redor de agregados de
linfócitos T CD4, em estreita relação com linfócitos T CD8 e fibroblastos de distribuição difusa.
Estas estreitas relações são seguramente importantes, porque uma parte significativa da
comunicação do macrófago com outras células processa-se com base no contacto direto entre
células, sem intervenção de fatores solúveis. As múltiplas ligações entre o linfócito T, o linfócito
B, o fibroblasto e o macrófago já foram previamente revistas, a propósito de cada uma destas
células. O macrófago tem também mecanismos frenadores da sua própria função, como a ação
autócrina da IL-10 macrofágica, ao reduzir a expressão do HLA-DR, de interleucinas pró-
inflamatórias, de GM-CSF e de recetores Fcγ, ou a ação inibidora da IL-13 (produzida por
macrófagos e linfócitos T) sobre a libertação de TNF-α e IL-1 e a expressão de FcγRIIIa (CD16).
Por outro lado, o macrófago produz o IL-1Ra, em resposta a estímulos pró-inflamatórios,
incluindo a própria IL-1, contribuindo para um mecanismo de retroação negativo, fundamental
para a contenção do fenómeno inflamatório e que se encontra em falência na AR, devido a um
desequilíbrio IL-1/IL1Ra, favorável à IL-1. Também a IL-6 e o TGF-β macrofágicos poderão
contribuir com alguns aspetos do seu perfil de ação para a limitação dos danos induzidos pela
inflamação articular. A IL-6, embora seja inequivocamente a interleucina produzida em maior
quantidade na AR e uma proteína de fase aguda, contribuinte inclusivamente para a
diferenciação osteoclástica, tem também um papel protetor da cartilagem na fase inicial da
artrite e de promotor da osteogénese numa fase mais tardia. O TGF-β é um indutor da expressão
do FcγRIIIa (CD16), contribui para o recrutamento de linfócitos e monócitos e aumenta a
proliferação dos fibroblastos, mas, para além destas ações pró-inflamatórias, é capaz de
contrariar algumas das ações da IL-1 (como, por exemplo, a produção de MMPs e a fagocitose
do colagénio)

O balanço entre os fatores ativadores e inibidores da atividade macrofágica condicionam, em


última análise, a produção das duas principais interleucinas macrofágicas: o TNF-α e a IL-1.

O TNF-α é uma interleucina proximal na cascata inflamatória da sinovite reumatóide,


condicionando a expressão de outras interleucinas, moléculas de adesão, prostaglandina E2 e
MMPs por parte das outras células sinoviais, estando ainda envolvida no recrutamento e
ativação linfocitária, na proliferação macrofágica e fibroblástica e na promoção da
osteoclastogénese. O TNF-α tem um papel chave no desencadear da sinovite reumatóide como
comprovam vários dados experimentais:

• A sua produção nos gânglios linfáticos precede a artrite em modelo animal;


• A sua administração exógena induz artrite;
• Existe um modelo de rato transgénico com uma produção desregulada de TNF-α que
desenvolve uma poliartrite crónica;
• Os níveis de TNF-α no líquido sinovial estão correlacionados com as erosões ósseas.

O argumento mais importante para o papel fundamental do TNF-α na AR é dado, sem dúvida,
pela excelente resposta que esta doença apresenta à terapêutica com anticorpos monoclonais
anti TNF-α e com recetores solúveis do TNF-α.

A IL-1 atua sob controlo do TNF-α e está envolvida na indução da degradação dos
proteoglicanos, inibição da síntese dos proteoglicanos, aumento da síntese das MMPs e ativação
osteoclástica, sendo por isso a interleucina mais diretamente relacionada com a destruição
articular.

A diferenciação da linhagem mielóide encontra-se estimulada na AR, refletindo-se num número


aumentado de macrófagos na sinóvia, como se salientou previamente. Estas não são, no
entanto, as únicas células desta linhagem que infiltram a membrana sinovial. Na AR,
particularmente nas zonas de erosões ósseas, existem osteoclastos - células gigantes,
multinucleadas, diferenciadas a partir de percursores mielóides e macrófagos. Esta
diferenciação ocorre após a ligação do recetor celular receptor activator of NF κ B (RANK) ao
receptor activator of NF κ B ligand (RANKL), produzido por células do estroma medular,
osteoblastos, linfócitos T e fibroblastos activados. Apesar dos fibroblastos, como já referido,
serem importantes na destruição cartilagínea por via direta, através da libertação de MMPs e
catepsinas, é provável que a sua maior contribuição para a erosão óssea seja por via indireta,
por diferenciação e ativação osteoclástica induzida pelo RANKL. De facto, existem evidências
claras de que os osteoclastos serão os efetores finais do processo erosivo ósseo na AR. Nas
zonas de interface pannus-osso, existem células com todas as características de osteoclastos:
células multinucleadas, produtoras de catepsina K, com recetores da calcitonina, tartrate-
resistante acid-phosphatase (TRAP) positivas, com zonas de reabsorção óssea documentadas
em microscopia electrónica (lacunas de Howship). Estes aspetos são observáveis na AR e em
modelos animais de artrite, nos quais o bloqueio da ação do RANKL induz uma redução drástica
dos osteoclastos e das erosões ósseas.

A maior parte dos fatores osteoclastogénicos


presentes na sinovite reumatóide atuam
através do aumento da produção de RANKL
(TNF-α, IL-1, IL-6, IL-11 e IL-17). No entanto, o
TNF-α tem também um papel diferenciador
direto dos osteoclastos (na presença de
quantidades mínimas de RANKL) e é um
indutor da libertação de IL-1, a qual constitui
o principal sinal ativador e de sobrevivência
para os osteoclastos. A atividade pró-
osteoclastogénica é acompanhada,
concomitantemente, pela produção pelos osteoblastos em resposta a vários estímulos (entre os
quais o próprio TNF-α e a IL-1) dum receptor solúvel do RANKL, a osteoprotegerina (OPG), a
qual se liga ao RANKL, bloqueando o principal sinal da osteoclastogénese. É interessante
verificar que os linfócitos T reumatóides expressam mRNA do RANKL, facto que não se verifica
nos linfócitos T de indivíduos normais ou com osteoartrose (OA). Por outro lado, no líquido
sinovial dos doentes com AR existem concentrações elevadas de RANKL e relativamente
menores concentrações de OPG. Estes factos fazem admitir a hipótese da existência de um
desequilíbrio RANKL/OPG, favorável ao RANKL, nos doentes com AR. A regulação da via
sinalizadora RANKL-RANK não está, no entanto, exclusivamente dependente da OPG. A IL-4, a
IL-10 e o IFN-γ são inibidores da osteoclastogénese, o que se traduz por existir um balanço, na
atividade pró-osteoclastogénica dos linfócitos T, entre a produção destas interleucinas e a do
RANKL. Ocorre aumento do DKK1 → diminuição atividade osteoblasto.

As células que estão envolvidas na sinovite reumatóide caracterizam-se, por um lado, pela sua
elevada atividade e, por outro, pelo aumento do seu número, em relação ao aspeto normal da
membrana sinovial. Este infiltrado celular está dependente do recrutamento de células
circulantes e da proliferação local. A falência dos mecanismos naturais de controlo da eliminação
celular pode ser uma explicação adicional para esta expansão celular. De facto, utilizando
métodos morfológicos, encontram-se muito poucos núcleos apoptóticos na sinóvia reumatóide
e há evidências sugestivas da existência de um defeito dos mecanismos de apoptose dos
linfócitos T na membrana sinovial reumatóide. Paradoxalmente, existe uma expressão elevada
de Fas (CD95), um dos principais recetores celulares indutores de apoptose, na sinóvia
reumatóide. Uma das justificações para se manterem baixos níveis de apoptose, apesar da
expressão elevada de Fas, poderá residir na baixa expressão do ligando do Fas na sinovite
reumatóide. Outra razão para esta perturbação da apoptose poderá estar relacionada com uma
perturbação funcional do gene supressor tumoral p53, cuja expressão está aumentada na AR. O
gene p53 está sob o controlo de oncogenes como o c-myc e, em condições normais, é
responsável pela paragem do crescimento celular e/ou pela indução de apoptose. No entanto,
na AR, ocorrem várias mutações, semelhantes a outras previamente detetadas em neoplasias,
com características dominantes e capazes de suprimir a função habitual do p53, permitindo a
proliferação celular e inibindo a apoptose. Outro possível mecanismo inibidor da apoptose
poderá residir na expressão aumentada, na sinóvia dos doentes com AR, de Bcl-2e Bcl-x(L), duas
proteínas anti-apoptóticas pertencentes à família do gene Bcl-2, um proto-oncogene envolvido
no controlo da apoptose. Recentemente, foi descrita a presença de uma proteína na sinóvia
reumatóide, conhecida por Fas-associated death domain-like interleukin-1beta converting
enzyme-inhibitory protein (FLIP), que está associada à inibição da apoptose induzida pelo Fas e
à promoção do crescimento tumoral, constituindo mais outro estímulo para a sobrevivência
celular. Outros factores anti-apoptóticos têm sido detectados na membrana sinovial em doentes
com AR: o óxido nítrico, que interfere com a apoptose mediada pelo Fas; a ativação,
provavelmente pelo TGF-β, da via do protein kinase B (Akt), inibidora da apoptose; as proteínas
inibidoras das caspases, que são proteases cisteínicas pró-apoptóticas. O estímulo anti-
apoptótico é também potenciado por alguns mediadores pró-inflamatórios, nomeadamente o
TNFα e a IL-1. Reúnem-se, assim, numerosos estímulos que explicam a sobrevivência anormal
das células responsáveis pela perpetuação dos ciclos viciosos de estimulação celular existentes
na sinovite reumatóide.
Inflamação:

• Aceleração aterogénese
• Alterações SNC: depressão (devido às
citocinas)
• Alterações metabólicas

Manifestações clínicas:

Embora a AR seja basicamente uma artrite


poliarticular simétrica, pode haver também
sintomas constitucionais, como fraqueza, mal-estar
e febre baixa. Muitas das manifestações sistémicas
resultam a partir dos mesmos mediadores que
causam a inflamação articular (p. ex., IL-1, TNF). A artrite aparece primeiramente de forma
insidiosa, com dor e rigidez das articulações, particularmente pela manhã. Conforme a doença
avança, as articulações tornam-se aumentadas, o movimento torna-se limitado e, com o tempo,
pode aparecer completa anquilose. O envolvimento vasculítico dos membros pode dar origem
ao fenómeno de Raynaud e a úlceras crónicas das pernas. Tal envolvimento multissistémico
deve ser distinguido de lúpus, escleroderma, polimiosite, dermatomiosite e doença de Lyme,
além de outras formas de artrite. Para a realização do correto diagnóstico, são úteis (1) achados
radiográficos característicos; (2) líquido sinovial estéril e turvo, com viscosidade decrescente,
formação pobre de coágulos de mucina e neutrófilos contendo inclusões; e (3) anti-PCCs e fator
reumatoide (80% dos pacientes).

O curso clínico da AR é altamente variável. Em uma minoria de pacientes, a doença pode


estabilizar ou até mesmo regredir; na maioria dos pacientes, ela segue um curso crónico, de
natureza remitente-recorrente. Sob o ponto de vista histórico, a história natural da doença tem
sido de destruição progressiva das articulações, levando à incapacidade após 10-15 anos. O
prognóstico tem sido drasticamente melhorado através de avanços recentes na terapia,
incluindo tratamento agressivo da AR precoce e a introdução de agentes biológicos altamente
eficazes que antagonizam o TNF. A AR é uma importante causa de amiloidose reativa, a qual se
desenvolve em 5-10% desses pacientes, particularmente naqueles com doença severa de longa
data.

LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO (LES)

Doença auto-imune de causa desconhecida, pertencente às doenças difusas do tecido


conjuntivo, afetando vários órgãos e sistemas (articulações, pele, serosas, sistema nervoso, rim,
pulmão, coração, sangue). Trata-se assim de outra doença inflamatória sistémica que tem um
envolvimento múltiplo, mas que em cerca de 90% dos casos vem acompanhado de artrite.

O LES continua a ter uma etiopatogenia pouco esclarecida. Os aspetos patológicos caracterizam-
se por inflamação, vasculite, deposição de imunocomplexos e vasculopatia. Embora a maioria
dos casos de LES sejam esporádicos, existe uma predisposição genética, como atesta a
concordância entre gémeos monozigóticos de 25 a 50% e entre gémeos dizigóticos de 5%. A
suscetibilidade à doença é conferida por muitos genes diferentes, sendo estimado que pelo
menos 4 genes de suscetibilidade tenham que estar presentes para que a doença se
desenvolva. São exceções a esta teoria as deficiências dos primeiros componentes do
complemento (C1q, C1r/s e C2), as quais são fatores de risco isolados para o LES e para doenças
lúpus-like. Por este motivo existe associação, em alguns grupos étnicos, com alguns genes HLA
classe III, para além da associação clássica com o HLA DR2 e DR3, da classe II, que confere um
aumento do risco de ocorrência de LES de cerca de 2 a 5 vezes.

Outro aspeto relevante na patogénese desta doença é a sua clara associação ao sexo feminino
e às flutuações das hormonas sexuais ao longo da vida. Existem vários argumentos fundamentais
para esta associação:

• O início do LES é mais frequente entre a puberdade e a menopausa;


• Os doentes com síndrome de Klinefelter são mais suscetíveis a esta doença;
• Nos doentes com LES existem níveis mais elevados de 16α hidroxiesterona, que são
estrogénios particularmente potentes, enquanto os níveis de androgénios são baixos,
verificando-se estas observações também em homens com LES;
• O uso de anticoncetivos orais e terapêutica hormonal de substituição foi associado a um
ligeiro aumento do risco de LES;
• Ocorre melhoria desta doença após ooforectomia;
• Existem surtos de agravamento da doença causados por flutuações hormonais, como
são a gravidez, o puerpério, estimulação da ovulação para terapêutica de infertilidade e
a ovulação.

Os estrogénios aumentam a proliferação dos linfócitos B e a produção de anticorpos. Por outro


lado, inibem a atividade Th1 e aumentam a expressão do CD40L, num efeito que é praticamente
exclusivo aos doentes com LES, sugerindo uma sensibilidade peculiar dos linfócitos T destes
doentes aos estrogénios. O balanço destes efeitos dos estrogénios sobre o sistema imunitário é
passível de causar um aumento da sobrevivência das células autoimunes, através da estimulação
direta dos linfócitos B e indireta, via inibição da resposta Th1 e do aumento da expressão do
CD40L, promovendo assim a resposta Th2.

A prolactina poderá também ter um papel relevante no LES, como atesta a correlação dos níveis
desta hormona com a atividade da doença e o efeito positivo sobre as formas ligeiras de LES da
bromocriptina, um agonista da dopamina que inibe a secreção hipofisária da prolactina de forma
selectiva. A prolactina potencia o efeito dos estrogénios sobre os linfócitos B, promove a
produção de anticorpos por estas células e pode também ser produzida pelos próprios linfócitos,
atuando como um mediador autócrino e parácrino.

Para além dos aspetos hormonais referidos, existe evidência para uma ligeira disfunção do eixo
hipotálamo-hipófise-suprarenal nos doentes com LES. Esta conclusão baseia-se na resposta
inadequada da suprarenal destes doentes à hipoglicémia, embora a valorização de alterações
do eixo hipotálamo-hipófise suprarenal seja muito difícil pela maioria dos doentes com LES
estarem sob corticoterapia. Em modelo animal existem dados que sugerem a relevância de um
defeito neste eixo hormonal na génese de doenças autoimunes. Por exemplo, as fêmeas dos
ratos Lewis, que são muito suscetíveis à indução de doenças autoimunes, têm um defeito da
produção hipotalâmica da hormona libertadora de corticotrofina (CRH) em resposta a estímulos
ativadores imunológicos e os ratos MRL/lpr, têm uma diminuição da CRH associada ao
envelhecimento que se correlaciona inversamente com a produção de autoanticorpos e com o
desenvolvimento de uma doença semelhante ao LES.
O LES ocorre no contexto de uma miríade de
aberrações imunológicas que concorrem no sentido
da proliferação e ativação policlonal dos linfócitos B,
aumento da produção de anticorpos, com
consequente hipergamaglobulinémia e formação de
complexos imunes. Concomitantemente, os
linfócitos T mantêm um excessivo e descontrolado
sinal positivo à diferenciação e ativação de linfócitos
B produtores de autoanticorpos. É desconhecido o
sinal inicial que provoca este desequilíbrio
imunológico, mas são conhecidos alguns estímulos indutores da formação de anticorpos anti-
DNA, nomeadamente alguns produtos químicos, DNA bacteriano, fosfolípidos da parede celular,
antigénios virais e autoantigénios, como complexos de DNA ou RNA com proteínas. Estes
antigénios são fagocitados por células apresentadoras de antigénios ou são captados por
anticorpos à superfície dos linfócitos B, que os processam em pequenos péptidos e os
apresentam às células T. Por seu turno, as células T ativadas estimulam os linfócitos B na sua
atividade produtora de autoanticorpos, através do contacto direto, que requer moléculas
coestimuladoras, como os sistemas CD40/CD40L e B7/CD28/CTLA-4, e também através de
interleucinas Th2, entre as quais se destaca a IL-10. Este processo de produção de
autoanticorpos é potenciado pelo defeito, nos doentes com LES, das células CD8 supressoras e
das células NK, responsáveis, em condições normais, pela supressão da ativação dos linfócitos
B. A produção de autoanticorpos está associada à formação de complexos imunes que são
habitualmente eliminados por vários mecanismos. No LES estes mecanismos são defeituosos,
devido a um baixo número de receptores CR1 para o complemento, a defeitos funcionais nos
recetores celulares e a uma fagocitose inadequada dos complexos que contêm IgG2 e IgG3.

Outro aspeto de grande relevância na fisiopatologia do LES é o aumento da apoptose dos


linfócitos, com uma concomitante redução da eliminação das células apoptóticas pelos
macrófagos, o que aumenta a probabilidade do desenvolvimento de anticorpos contra
nucleosomas e outros componentes do núcleo. Este defeito de eliminação das células
apoptóticas poderá ser devido a defeitos qualitativos ou quantitativos das frações iniciais do
complemento, como o C2, C4 e o C1q, e/ou a anticorpos circulantes, como o anti-C1q, frequente
em doentes com LES.

Existem fatores ambientais que poderão estar envolvidos no desencadear das perturbações
imunológicas que determinam o aparecimento do LES. Agentes infeciosos podem através de
processos de mimetismo molecular perturbar a imunorregulação, fatores dietéticos podem
afetar a produção de interleucinas, fármacos (procainamida e hidralazina, por exemplo) e
toxinas (corantes do cabelo, por exemplo) são capazes de alterar a resposta celular e a
imunogenicidade de autoantigénios e existem agentes químicos ou físicos (como a radiação
ultravioleta) com efeitos pró-inflamatórios e indutores de apoptose.

Em resumo, a patogénese do LES resulta da interação de uma série de fatores. Existem genes
que conferem suscetibilidade para a doença, a qual é potenciada pelo meio hormonal
(hormonas sexuais, prolactina, eixo hipotálamo-hipófise-suprarenal) e pela capacidade de
eliminação de complexos imunes e de células apoptóticas. O desequilíbrio deste sistema é
provavelmente desencadeado por fatores ambientais múltiplos ainda mal conhecidos. Gera-se
então a perda de tolerância imunológica, aumento da atividade Th2, hiperatividade dos
linfócitos B e produção de autoanticorpos patogénicos.
VASCULITES

As vasculites são um conjunto heterogéneo de doenças raras caracterizadas por inflamação e


necrose dos vasos. Podem ser primárias, ou secundárias a uma doença preexistente (por
exemplo a AR e o LES) ou a infeções (por exemplo as hepatites B e C). As consequências da
inflamação vascular dependem da dimensão, localização e número de vasos envolvidos. As
artérias musculares podem apresentar lesões focais (potencialmente causadoras de
aneurismas) ou segmentares (que evoluem frequentemente para estenose e oclusão). O
envolvimento de qualquer tipo de vaso é passível de causar lesões hemorrágicas e necrose
tecidular, que são as complicações mais graves das vasculites.

Entre as vasculites primárias, aquelas que têm um mecanismo melhor compreendido são as
vasculites associadas aos anticorpos anti citoplasma do neutrófilo (ANCA). Estas vasculites
envolvem pequenos e médios vasos e apresentam características clínicas parcialmente
sobreponíveis, com um predomínio de lesão glomerular (glomerulonefrite pauci-imune) e
pulmonar (alveolite). Incluem-se neste grupo a Granulomatose de Wegner, a Poliangeíte
Microscópica e a síndrome de Churg-Strauss. Os ANCA estão diretamente envolvidos na
fisiopatologia destas vasculites por causarem uma agressão oxidativa e desgranulação dos
neutrófilos e monócitos, com consequente lesão endotelial.

• Os ANCA podem ser dirigidos à mieloperoxidase (MPO), caso em que estão mais
associados a um padrão perinuclear, designado por ANCA-p, e à Poliangeite
Microscópica e ao síndrome de Churg Strauss.
• Quando os ANCA estão dirigidos para a proteiase 3 (PR3) surgem geralmente com um
padrão citoplásmico (ANCA-c), mais associado à Granulomatose de Wegner.

Para que os ANCA se liguem ao neutrófilo, é necessário um estímulo prévio ao leucócito de


forma a este expressar PR3 ou MPO na sua superfície. Este estímulo não está ainda
perfeitamente identificado, mas poderá ser químico (por exemplo, o propiltiouracil pode
aumentar a imunogenecidade da MPO) ou inflamatório, mediado por interleucinas. O efeito dos
ANCA inclui, provavelmente, a promoção da ligação do neutrófilo ao endotélio e este, no
decurso da agressão que sofre, liberta fatores quimiotáticos para os neutrófilos, gerando um
ciclo de retroação positiva.

Embora os ANCA sejam um fator determinante neste grupo de vasculites, existem outros
componentes relevantes. A resposta inflamatória é sustentada pelas células T e a produção de
anticorpos está associada a um número aumentado de linfócitos B. Estes linfócitos B não
produzem apenas ANCA. Um outro componente relevante são os anticorpos anti células
endoteliais (os quais estão presentes noutras vasculites para além das 3 associadas aos ANCA)
que podem causar lesão da célula endotelial através de mecanismos dependentes de
citotoxicidade mediada por anticorpos, fixação do complemento, promoção da formação de
trombos e recrutamento de neutrófilos para o local da lesão inicial, com consequente
agravamento da lesão, por mecanismos mediados agora pelos ANCA.

No decurso de todas as vasculites ocorre também um aumento da produção de moléculas de


adesão, nomeadamente VCAM-1, ICAM-1 e LFA-3, as quais estão envolvidas nos processos de
adesão e migração dos leucócitos. Para além das moléculas de adesão, a ativação dos linfócitos
T é acompanhada direta ou indiretamente (via participação macrofágica, por exemplo na
Granulomatose de Wegner e na Arterite Temporal) pelo aumento dos níveis séricos de TNF-α,
IL-1 e IL-6, que condicionam as manifestações sistémicas inflamatórias que surgem na maioria
dos casos de vasculite.
Embora existam fenómenos fisiopatológicos gerais, a forma de envolvimento topográfico
determina manifestações peculiares a vários tipos diferentes de vasculites:

• Na Poliarterite Nodosa (PAN), onde claramente os ANCA não são relevantes, os


mecanismos de lesão endotelial complementares já descritos, afetam maioritariamente
vasos de médio calibre, condicionando lesões segmentares e focais, com inflamação e
necrose, formação de aneurismas e necrose tecidular quando há obliteração de vasos.
• Na Arterite Temporal, o envolvimento é predominantemente das artérias musculares
que emergem do arco aórtico, de uma forma segmentar. As lesões iniciais estão
geralmente confinadas a infiltrados nas lâminas elásticas interna e externa. Com a
progressão da lesão ocorre espessamento da íntima, com infiltrado inflamatório,
inflamação transmural, granulomas e células gigantes multinucleadas. Estes infiltrados
inflamatórios são caracterizados pela presença de linfócitos T com um padrão Th1 e
macrófagos, produtores de IL-1 e TGF-β.
• A Arterite de Takayasu é também um processo que envolve grandes vasos, geralmente
artérias elásticas, caracterizado por inflamação transmural, crónica e granulomatosa.
Este fenómeno inflamatório condiciona essencialmente zonas de estenose arterial e de
dilatação pós estenótica.
• A Angeíte Leucocitoclástica Cutânea é caracterizada por inflamação de pequenos vasos
da pele, particularmente das vénulas pós capilares, sendo o processo acompanhado por
inflamação transmural, necrose fibrinóide e presença de detritos nucleares dos
neutrófilos. A angeíte leucocitoclástica cutânea corresponde mais a um termo de
patologia do que a um diagnóstico clínico. Embora possa de facto corresponder a uma
vasculite puramente cutânea, estes aspetos patológicos encontram-se também na
Púrpura de Henoch-Schönlein (onde caracteristicamente ocorrem depósitos de IgA e
pode coexistir envolvimento glomerular, articular e do tubo digestivo) e na
Crioglobulinémia Mista (geralmente associada a depósitos de IgG e IgM e possível lesão
glomerular)
• A Doença de Behçet tem uma imunopatologia um pouco diferente das restantes
vasculites. Nesta doença, existe um papel muito importante das proteínas de choque
térmico (heat-shock proteins, HSP) e dos macrófagos, para além de estarem igualmente
envolvidos neutrófilos e interleucinas como a IL-1, o TNF-α e a IL-8. A ativação
macrofágica e dos neutrófilos está associada a reações inflamatórias vasculares com
infiltrados neutrofílicos. A este fenómeno associa-se uma disfunção endotelial com uma
redução da produção de prostaciclina e uma perturbação dos mecanismos da
coagulação. A associação ao HLA-B51 e a relevância das HSPs, que partilham uma
homologia com vários agentes infecciosos, faz supor que esta doença é gerada por um
fator precipitante infecioso no contexto de um indivíduo com predisposição genética
para o tipo de resposta inflamatória observada nesta patologia.

ESPONDILITE ANQUILOSANTE

Na EA o doente fica progressivamente cifótico, com uma


flexão dos joelhos e ancas, uma vez que as zonas de maior
envolvimento da EA são: esqueleto axial, articulações
coxofemurais e joelhos. A prótese da coxofemoral é o
procedimento médico com maior capacidade de melhorar a
qualidade de vida do doente.
Há doentes com mau prognóstico que evoluem muito rapidamente, nomeadamente indivíduos
jovens do sexo masculino com background genético associado ao HLA-B27 com muitas
articulações envolvidas e com doença muito grave desde o início. Evoluem muito rapidamente
e como são jovens têm tempo de chegar a este fenótipo. Por outro lado, os que começam mais
tardiamente, do sexo feminino, que não estão associados ao HLA-B27, têm uma evolução
diferente, mais lenta e quando chegam a idade mais avançada não têm ainda este tipo de
alterações e, portanto, acabam por falecer sem as consequências reais desta doença.

O conceito de espondilite anquilosante não deve encerrar uma espécie de


destino inexorável neste fenótipo, particularmente agora porque somos
capazes de distorcer a história natural da doença e manter os doentes no
estádio 2 da doença. O primum movens da EA é a sacroileíte – inflamação
das articulações sacro-ilíacas. As articulações sacro-ilíacas estão
irregulares, têm menos espaço e apresentam esclerose subcondral. Trata-
se duma sacroileíte bilateral erosiva.

Uma marca radiológica que pode ser vista na EA é a formação de pontes


ósseas entre os corpos vertebrais. Estas são consequência de uma
entesopatia → trata-se uma doença inflamatória da entesis, ou seja, da
inserção dos ligamentos e tendões na estrutura óssea. Associa-se a alguns
problemas como tendinites e outras manifestações inflamatórias
periféricas. No caso das pontes ósseas, o que pode acontecer é a
manifestação da inflamação dos ligamentos junto ao osso que dá origem a
processos inflamatórios crónicos, junto às vértebras, que evoluem para
calcificação no decorrer dos anos, tornando-se rígidas. Por isso, no
arranque da doença, quando o indivíduo se queixa de sintomas da EA
com dores na coluna, etc., não é expectável haver estes achados
radiológicos.

Inflamação corpos vertebrais → reparação + eficaz porque não têm


aumento do DKK1 e há menor aumento da produção de RANKL, logo
têm capacidade de reparação → pontes ósseas.

Fisiopatologia:

A associação entre a espondilite anquilosante (EA) e o HLA B27 constitui a mais forte associação
imunogenética entre as doenças imunológicas humanas (nota – 8% da população saudável
também tem). Estão descritos 25 subtipos, com base na homologia das sequências de
nucleótidos, que codificam 23 proteínas diferentes. Os subtipos B2705 e B2702 são os mais
frequentes nos caucasianos e estão ambos associados à EA.

Na zona de ligação antigénica da molécula HLAB27 existem várias bolsas (designadas de A a F),
onde se localizam as cadeias laterais e as terminações amino e C dos péptidos que a ela se ligam.
Foi possível demonstrar que a bolsa B, assinalada pela posição 45 da glutamina no ápex da bolsa,
está conservada em todos os subtipos, mas é diferente das outras moléculas HLAB98. Por outro
lado, os subtipos B2709 e B2706, não associados à EA, diferem do B2705 (associado à EA), na
posição 116, localizada na bolsa F, sendo que esta diferença altera a especificidade de ligação
do B27 e o reconhecimento por linfócitos T citotóxicos. Estas observações sugerem que
determinadas conformações da molécula B27, com especial destaque para a bolsa B, poderão
estar associadas à ligação de um hipotético péptido artritogénico.

O papel primário das moléculas da classe I do HLA, como o B27, é o de ligação a péptidos,
derivados da proteólise intracelular de proteínas, num complexo trimolecular com a β2-
microglobulina, apresentando depois estes péptidos, à superfície de células apresentadoras de
antigénios, às células T citotóxicas. No contexto da EA, coloca-se a hipótese de que as células T
citotóxicas autoreactivas, existentes nesta doença, sejam induzidas durante a defesa contra
bactérias, mediada por células T e pelo B27, durante a qual seja apresentado também ao B27
um autoantigénio artritogénico (derivado dos tecidos articulares ou das inserções ligamentares).
Uma variante desta hipótese admite que os péptidos bacterianos apresentados possam ter uma
antigenecidade cruzada com algum tecido articular. Em alternativa, os péptidos derivados do
próprio B27 poderão ser artritogénicos, quando apresentados às células T citotóxicas.

Em modelos animais (ratos transgénicos para o B27) verificou-se que as manifestações clínicas
não surgiam enquanto os animais não fossem colocados num ambiente exposto a bactérias. A
este dado deve juntar-se a observação de que 60% dos doentes com EA têm envolvimento
intestinal inflamatório, demonstrado por endoscopia, particularmente aqueles que têm
envolvimento periférico. De forma consistente com estes trabalhos, foi demonstrado uma
alteração da permeabilidade intestinal e um aumento dos linfócitos B CD45Ro+ circulantes,
células de memória imunológica, sugestivas da exposição a antigénios do lúmen intestinal, quer
nos doentes com EA, quer nos seus parentes assintomáticos de primeiro grau. Outros
argumentos que reforçam a potencial participação de um estímulo antigénico bacteriano
intestinal são a identificação de expansões de linfócitos T na membrana sinovial e no intestino
e o aumento da IgA sérica contra várias bactérias (Klebsiella pneumoniae, Escherichia coli e
Proteus mirabilis). Não foram, no entanto, identificados produtos bacterianos nas articulações
sacroíliacas, nem foram observados linfócitos CD8 com especificidade para antigénios
bacterianos na EA, ao contrário do que se verifica na artrite reativa. O papel exato das bactérias
na fisiopatologia da EA não está ainda perfeitamente esclarecido. Independentemente dos
hipotéticos mecanismos envolvidos na interação entre o HLAB27 e eventuais antigénios
bacterianos, a avaliação da sinovite associada à EA revela a presença de macrófagos e linfócitos
CD4 e CD8, embora em menor número do que o que é habitualmente observado na AR. A
expressão do TNF-α está aumentada, mas não a da IL-1. Outras diferenças em relação à AR
relacionam-se com o padrão de produção de interleucinas dos linfócitos CD4. Embora na artrite
reativa predomine, à semelhança da AR, um padrão Th2, este aspeto é menos evidente na EA.

O que parece acontecer, nestes casos, é uma suscetibilidade de reconhecimento de péptidos


exógenos. Estes podem ter várias origens, sendo a mais provável o intestino, já que a maior
parte dos doentes com EA apresenta também distúrbios intestinais. A EA relaciona-se ainda com
duas outras doenças que são a Doença de Crohn (DC) e a Colite Ulcerosa (CU). Há doentes com
associações entre a EA e uma destas doenças inflamatórias do intestino sendo que na presença
dum doente com EA o melhor é fazer também uma colonoscopia. Felizmente, apenas 10% dos
casos são positivos para DC ou CU, sendo os achados mais frequentes alterações inflamatórias
intestinais inespecíficas, o que traduz um estado inflamatório intestinal que facilita a passagem
dos antigénios. Estes antigénios levam a uma resposta mediada pelo B27, ativando linfócitos T,
o que vai condicionar uma entesite, ainda que não saibamos explicar o porquê específico desta
localização (entesis).

OSTEOARTROSE
A osteoartrose caracteriza-se, a nível fisiopatológico, por uma alteração degenerativa da
cartilagem. Ao longo do tempo, ocorre diminuição e alterações da cartilagem com degradação
e com alterações da sua constituição. Há fatores que vão fazer com que esse processo seja
acelerado. Nós podemos ter uma osteoartrose primária ao longo da idade, os próprios fatores
genéticos contribuem. A raça branca, o sexo feminino e a idade, por si só, são fatores de risco.
Mas depois vamos ter na esfera fisiopatogénica alguns fatores de risco, que são fatores causais,
também podem influenciar a artrose. Por exemplo, os microtraumatismos ou os traumatismos
de maior impacto. Mesmo que não seja um grande traumatismo, como um acidente de viação,
temos depois todo o tipo de microtraumatismos a nível profissional, de repetição, de esforços.
Por exemplo, estar muito tempo ao computador, utilizar mais o polegar ou o indicador, o que é
muito frequente, provocando, além de tendinites, como a tendinite de Quervain, situações de
necrose da massa do polegar, portanto, da articulação trapézio-metacárpica, como é o caso da
rizartrose.

Há artroses que têm algumas relações com a atividade profissional e depois há osteoartroses
secundárias a algumas doenças, por exemplo, secundária à doença de Perthes, a alterações
meniscais do joelho, tendo tendência para virem a ter osteoartroses ao nível dessas localizações.
Quem tem, por exemplo, alterações hematológicas, como hemofilias, que dão hemartroses, que
é o sangramento dentro do espaço articular do joelho, com formação de interleucinas pró-
inflamatórias, tende a ter, também, osteoartrose em idades jovens, tendo se se fazer, por
exemplo, a reposição dos fatores necessários.

Há uma alteração degenerativa da cartilagem, mas há também


uma alteração do tecido ósseo subcondral, e não há certezas onde
é que o processo se inicia. Há alterações capilares e alterações do
osso e há um ciclo vicioso em que as alterações de um levam a
alterações do outro e assim progressivamente. Vai haver também
uma diminuição, ao nível do compartimento interno, da interlinha
articular, do espaço entre os ossos por diminuição e degradação
da cartilagem, ou seja, estas lesões levam a uma escassez de
cartilagem, que se torna menos hidratada e há alterações a nível da sua estrutura, a nível do
colagénio e dos proteoglicanos.

Depois pode haver pequenos hioides (pequenos buraquinhos), um segundo componente da


osteoartrose, após a atividade proteolítica, causados por fibrilhação e erosão. Há um aumento
destes ao nível das linhas tibiais. E, depois, há formação dos osteófitos (“bicos de papagaio”),
que correspondem a uma neoformação óssea marginal, que ocorre ao longo do tempo.

Fisiopatologia

O início do processo fisiopatológico da osteoartrose (OA)


resulta de uma complexa interação entre os traumatismos, o
envelhecimento e a função do condrócito. Quer os
microtraumatismos, quer o natural processo de
envelhecimento, condicionam o perfil de atividade biológica
do condrócito. Por outro lado, o fator tempo é um elemento
preponderante no acumular de microtraumatismos e,
consequentemente, na alteração da função do condrócito.
Atualmente consideram-se 3 estádios no desenvolvimento da OA:

• Estádio I, correspondente à destruição proteolítica da matriz cartilagínea;


• Estádio II, onde ocorre a fibrilhação e erosão da cartilagem, com libertação de produtos
de degradação para o líquido sinovial;
• Estádio III, quando começa a inflamação sinovial, secundária à fagocitose de produtos
de degradação da cartilagem por parte das células da membrana sinovial, as quais
produzem, em resposta, proteases e interleucinas pró-inflamatórias.

As proteases da família das MMPs são


fundamentais no processo proteolítico inicial.
Entres estas destacam-se as colagenases,
responsáveis pela degradação do colagénio, e a
estromelisina e a agrecanase, que causam a
degradação dos proteoglicanos. Outras
enzimas contribuem para este processo,
nomeadamente a catepsina B e o sistema
ativador do plasminogénio/plasmina, em parte
através da ativação das MMPs. As duas
principais colagenases envolvidas na
degradação do colagénio tipo II da cartilagem
são a colagenase-1 (MMP-1) e a colagenase-3
(MMP13). Ambas são expressas em grandes quantidades na cartilagem com OA. Há, no entanto,
algumas diferenças entre estas duas colagenases. A MMP-13, por oposição à MMP-1, tem um
padrão de expressão restringido à cartilagem e ao processo de ossificação fetal (a MMP-1 é
relativamente ubiquitária nos vários tipos de tecido), é mais seletiva para o colagénio II e é mais
ativa sobre o colagénio II e gelatina.

O aumento da produção de proteases pode ser explicado, inicialmente, como uma resposta aos
fatores condicionantes da atividade do condrócito. No entanto, a manutenção de uma
expressão elevada destas enzimas está associada a um ciclo vicioso que se gera entre os
produtos de degradação da cartilagem e a membrana sinovial. De facto, os produtos de
degradação da cartilagem geram um processo inflamatório, secundário, da membrana sinovial,
que induz a produção de diversas interleucinas, algumas delas responsáveis, por sua vez, por
uma ação catabólica sobre a cartilagem, promovendo a libertação de mais proteases, mais
degradação da cartilagem e, de novo, mais inflamação sinovial. A membrana sinovial das
articulações com OA, quando inflamada, expressa várias interleucinas pró-inflamatórias,
nomeadamente TNF-α, IL-1, IL-6, IL-8, IL-17 e IL-18. As duas mais importantes parecem ser o
TNF-α, como principal mediador do processo inflamatório, e a IL-1, principal ativador do sistema
enzimático catabólico. Em conjunto, aumentam a síntese enzimática proteolítica e diminuem a
produção dos inibidores fisiológicos destas enzimas, bem como a síntese de colagénio e
proteoglicanos. Para a ativação da IL-1 é necessária uma enzima, conhecida por enzima
conversora da IL-1 (ECI ou também caspase-1), cuja expressão se encontra aumentada nos
tecidos articulares de doentes com OA, por comparação com o normal. Além disso, o número
de recetores tipo I da IL-1 e do recetor 55 do TNF-α (responsáveis pela transdução do sinal nos
fibroblastos e condrócitos) está aumentado nas articulações artrósicas, em relação ao padrão
habitualmente observado nos controlos saudáveis. Existem, também, inibidores fisiológicos da
IL-1 e do TNF-α que estão presentes, nas articulações com OA, nomeadamente o IL-1Ra, os
recetores solúveis tipo I e II da IL-1, os recetores solúveis p55 e p75 do TNF-α e as interleucinas
com um perfil de ação essencialmente anti-inflamatório (IL-4, IL-10 e IL-13). A integridade da
cartilagem articular resulta, no fundo, de um balanço entre estímulos catabólicos e anabólicos,
originados por uma complexa rede de interleucinas. O conhecimento completo deste sistema
biológico significará novos alvos terapêuticos, os quais, adequadamente modulados, poderão
induzir, não só uma melhoria sintomática, mas poderão também ter um verdadeiro efeito
modificador da história natural da OA.

OSTEOPOROSE

A osteoporose é uma doença onde há alterações da densitometria óssea e, portanto, tem a ver
com o número de desvios padrões em que a pessoa difere de um adulto jovem do mesmo sexo,
uma vez que aqui é atingido o máximo de massa óssea, o que nos vai permitir então fazer a
comparação com o pico de massa óssea. Se tivermos mais de 2.5 desvios-padrão da normalidade
temos osteoporose, se for entre 1 e 2.5, temos osteopenia. Interessa-nos não só a densidade
mineral do osso (DMO), mas também nos interessa ver a microarquitectura óssea e a
organização do osso.

O tecido ósseo constitui um compromisso entre a rigidez, necessária para suportar a carga do
nosso organismo, flexibilidade, de forma a absorver impactos sem fraturar, e leveza, para
permitir movimentos rápidos. Em grande parte, estas características são moduladas pela
quantidade de cristais de hidroxiapatite que são depositados na tripla hélice de colagénio tipo
I: maior quantidade mineral aumenta a rigidez, mas sacrifica a flexibilidade. Geralmente o osso
humano tem um conteúdo mineral de cerca de 65% - se sofre uma desmineralização (por
situações em que aumenta a reabsorção óssea), torna-se demasiado flexível, flete demasiado
durante a carga e fratura-se; se fica excessivamente mineralizado (quando a reabsorção é
demasiado inibida) flete pouco durante a carga e fratura.

As características do tecido ósseo e as suas propriedades mecânicas alteram-se com a idade


porque os mecanismos de construção (síntese de matriz óssea e mineralização subsequente) e
de remodelação (o balanço entre a reabsorção óssea e a formação óssea) sofrem uma
progressiva degradação. A remodelação é uma função normal do osso e assegura o equilíbrio
do metabolismo do cálcio e do fósforo e também a reparação de microdanos do osso. Durante
o envelhecimento é depositado menos osso do que aquele que é removido por cada unidade de
remodelação (ou unidade básica multicelular, formada pelos osteoclastos, osteoblastos e
osteócitos), sofrendo este processo uma marcada aceleração após a menopausa, em que ainda
mais osso é removido, a maior velocidade, de um tecido ósseo que já está a perder a sua
arquitetura normal.

O balanço ósseo negativo que se gera progressivamente com o envelhecimento e com a


menopausa induz perda de massa óssea, redução da espessura da cortical e diminuição da
espessura e conectividade das trabéculas ósseas do osso esponjoso. Por outro lado, o osso mais
antigo, mais distante das superfícies de remodelação e mais mineralizado, acumula
progressivamente microdanos, que não são reparados, enquanto o osso mais superficial, é
substituído por um osso jovem, pouco mineralizado. O resultado de todas estas alterações é a
redução da rigidez. Este efeito é parcialmente compensado através da aposição de osso no
periósteo, que é mais significativo no homem do que na mulher. Além disso, no homem, o facto
do esqueleto ser globalmente maior, permite tolerar uma carga superior, adiando o risco
fraturário.
O aumento da reabsorção óssea, sem um correspondente aumento na formação do osso, é
essencialmente gerado por um aumento da atividade e do tempo de vida dos osteoclastos,
ocorrendo um processo inverso nos osteoblastos. Existem vários mecanismos reguladores
destes efeitos. A paratormona (PTH), os estrogénios e os androgénios prolongam a vida dos
osteoblastos, através da redução dos mecanismos de apoptose. Por outro lado, a PTH, várias
proteínas morfogénicas do osso (BMPs) e o fator de crescimento derivado dos fibroblastos
estimulam o CBFA1, que é o principal fator de transcrição envolvido na diferenciação,
proliferação e ativação do osteoblasto. O balanço destes estímulos sobre o osteoblasto
determina a produção de dois fatores determinantes na diferenciação do osteoclasto: o RANKL
e a OPG.

Portanto, o osteoblasto, através da PTH, dos


estrogénios, do FGF e o estrôncio, produz duas
estruturas principais que são o RANKL e a
Osteoprotegerina (OPG) e, enquanto um vai
favorecer a osteoclastogénese, ou seja, a ativação dos
osteoclastos, a outra via vai inibir, e é deste equilíbrio
que vamos vivendo. Portanto, há produção de RANKL,
este liga-se ao recetor membranar, o RANK, e vai
ativar o osteoclasto, que vai começar a absorver o
osso. Por outro lado, a osteoprotegerina, que tem uma morfologia semelhante ao RANKL, pode
ligar-se ao RANK, e em vez de ativar, vai fazer o contrário, há muito menos RANKL a ligar-se ao
RANK, porque a osteoprotegerina ocupa o seu lugar na ligação ao RANK, e portanto, há menos
osteoclastos a serem produzidos, e por este mecanismo, há uma diminuição da reabsorção. É o
osteoblasto, no fundo, que vai controlar essa diferenciação. Ao longo do tempo, e com a idade,
há uma menor formação de osso, existe um aumento da apoptose dos osteoblastos e uma
diminuição do tempo de vida dos osteoblastos, há menos formação de osso, enquanto aumenta
o tempo de vida e atividade dos osteoclastos. Este tal equilíbrio perde-se, e vamos ter a balança
a pender para o aumento da reabsorção do osso.

A relevância dos estrogénios no controle da remodelação óssea estende-se também ao homem.


A redução da massa óssea no homem está essencialmente associada aos níveis de estrogénios
e não aos de testosterona. Embora, isoladamente, a testosterona tenha um efeito anabólico
sobre o osso, o efeito combinado dos estrogénios sobre a reabsorção e a formação do osso é
mais determinante. Devido a este efeito modesto da testosterona, a perda de osso trabecular,
com a idade, no homem, progride de uma forma linear, com o aparecimento de trabéculas mais
delgadas. No entanto, a conectividade fica mais preservada do que na mulher, onde a perda de
osso é mais determinada pela remoção de osso em cada unidade de remodelação.

Nos indivíduos idosos, a remodelação endocortical e intracortical aumenta, passando a perda


de osso a ser essencialmente cortical. Além disso, existem mecanismos adicionais que
potenciam a remodelação, nomeadamente a deficiência
de vitamina D e a má absorção de cálcio, que causam um
hiperparatiroidismo secundário. A perda de osso é mais
acelerada no idoso porque uma massa de osso já de si
reduzida é sujeita a uma reabsorção semelhante ou, por
vezes superior, àquela que se verifica em idades mais
jovens, de tal forma que a mesma quantidade, ou mesmo
maior quantidade, de osso é removida, a partir de uma
estrutura que já está deficitária. Assim, o dano estrutural e a fragilidade óssea aumentam de
forma desproporcionada à redução absoluta de massa óssea. A este efeito deve adicionar-se
uma perda de mineralização desproporcionada em relação à perda de tecido, porque a
remodelação aumentada não permite uma mineralização adequada do tecido formado.

As fraturas mais comuns são as fraturas vertebrais e as fraturas da anca. Também temos as
fraturas do punho (Colles) que, mais uma vez, é mais frequente nas mulheres. Portanto, ao longo
da idade, vai haver um aumento da probabilidade destas fraturas a nível do osso.

Estudos realizados em gémeos documentaram que as diferenças entre indivíduos são


essencialmente dependentes de diferenças genéticas e não ambientais. No entanto, até à data,
não foi possível detetar qualquer gene que influenciasse decisivamente aspetos como a
formação das trabéculas, a sua espessura, a remodelação e a deposição de osso no periósteo.
De facto, não foi identificado nenhum gene que identifique indivíduos com risco fraturário
elevado, com sensibilidade e especificidade suficientes, que justifique a sua utilização na prática
clínica.

GOTA

Existem várias evidências que sugerem que a incidência e a gravidade da gota têm vindo a
aumentar, por influência das alterações dos hábitos dietéticos e pela associação estreita entre
a hiperuricémia e a resistência à insulina, patologia também em crescimento a nível mundial.
No entanto, os fatores responsáveis pelo início dos fenómenos inflamatórios das crises de gota
e também pela sua resolução espontânea não são completamente conhecidos.

A uricémia resulta de um equilíbrio entre a ingestão


de produtos alimentares que contêm nucleótidos e
nucleoproteínas (que contribuí aproximadamente
com 1/3 para a disponibilidade em adenina e
guanina e, consequentemente para os níveis de
ácido úrico), a degradação celular (que contribuí
com 2/3) e as vias de eliminação do ácido úrico, que
são essencialmente a via renal (responsável por 2/3
da eliminação) e a via intestinal (responsável por
1/3 da eliminação). Portanto, se tivermos um
doente com insuficiência renal, vamos ter uma
maior tendência para excretar menos acido úrico, e para este se acumular e poder dar crises.
Situações de desidratação podem precipitar a crise. As causas podem primárias, ou secundárias,
como no caso da psoríase e doentes transplantados.

A ideia clássica do mecanismo da gota baseava-se no princípio da libertação de cristais de ácido


úrico, provenientes dos vários tecidos articulares, no líquido sinovial, gerando estes um processo
inflamatório reativo. Esta explicação revelou-se demasiada simplicista, porque de facto existem
cristais de ácido úrico em articulações assintomáticas, sujeitos a um intenso processo de
fagocitose, mas gerando apenas uma discreta reação inflamatória.
De certa forma, a gota parece comportar-se como uma doença
inflamatória crónica, com uma fisiopatologia baseada na interação
entre as células e os cristais de ácido úrico presentes no líquido e na
membrana sinovial. Nos períodos intercríticos existe uma discreta
inflamação articular, que se torna sintomática nas crises de gota.
Um dos aspetos chave para a manutenção de uma situação
assintomática parece ser a eliminação dos cristais de ácido úrico
por macrófagos maduros, que, ao contrário dos monócitos e de
macrófagos mais imaturos, não produzem TNF-α, IL-1 e IL-6 em
resposta à presença dos cristais. O motivo preciso da interrupção
deste equilíbrio existente nos períodos assintomáticos não é conhecido com precisão. Uma vez
gerado o surto inflamatório, existem vários mecanismos amplificadores da resposta entre os
quais a síntese de novo de cicloxigenase-2, a falência dos mecanismos de apoptose dos
neutrófilos que fagocitam os cristais e a ativação direta do complemento. Os mecanismos de
cronicidade do processo inflamatório envolvem as interações celulares entre macrófagos e
linfócitos, referidas na fisiopatologia da AR.
Mecanismos de doença – Digestivo

Principais processos fisiológicos do tubo digestivo

Converter os nutrientes dos alimentos numa forma em que possam ser absorvidos e eliminar os
desperdícios.

• Digestão
• Secreção
• Motilidade
• Absorção

Esófago

O esófago é um tubo que se relaciona, na sua parte superior,


com a orofaringe, e é composto por músculo estriado e, na
parte inferior, por músculo liso.

A deglutição é um mecanismo coordenado pelo SNC, muito


fino e que obedece a uma série de regras: quando o bólus é
propelido pela língua, a laringe move-se para a frente e o
esfíncter esofágico superior (EIS) abre-se. À medida que o
bólus se move para a faringe, o constritor faríngeo contrai-
se contra o palato mole e inicia-se uma contração
peristáltica para baixo que move os alimentos através
da faringe e do esófago. O EEI abre à medida que os
alimentos entram no esófago, mantendo-se aberto até
a contração peristáltica varrer o bólus para o estômago.
Esta contração peristáltica em resposta à deglutição
chama-se primária, e envolve uma inibição seguida da
contração sequencial dos músculos ao longo do
esófago. A inibição que precede a contração é chamada
inibição deglutiva. Existem também alguns fenómenos
de peristalse secundária que acontecem depois da
abertura do EEI e que têm como função expulsar restos
de alimentos que ainda estejam no esófago. Estas
características diferentes da parte superior e inferior têm importância nas doenças do esófago.
De facto, dentro do esófago, as principais doenças relacionam-se ou com perturbações da
deglutição (superior) ou com a doença de refluxo (inferior).

Causas das perturbações da deglutição:

• Disfagia motora
o Esclerose lateral amiotrófica ou pós-AVC - na sequência de qualquer uma destas
patologias pode haver uma incapacidade central para a deglutição e isso leva a
que o doente tenha, não só dificuldade em engolir, como tenha também
tendência a se engasgar. Isto acontece porque no processo inicial da deglutição,
para além da abertura do EES há, reflexamente, o fecho da entrada da via aérea
superior e, se esse mecanismo fino de regulação fica perturbado, pode ocorrer
a passagem de alimentos para a via aérea superior com possibilidade de
pneumonias ou, simplesmente, de o doente se engasgar.
o Acalásia: é uma doença do músculo liso do esófago. Portanto, o que está
perturbado é sobretudo a musculatura da parte inferior do esófago. Existem
duas formas de acalásia:
▪ Acalásia primária: por um lado, o corpo esofágico perde
as suas contrações peristálticas e, por outro lado, o EEI
não relaxa normalmente em resposta à deglutição.
Assim, o esófago fica distendido, cheio de alimentos e
em baixo, nota-se uma pequena passagem para o
estômago que corresponde ao EEI que não chega a
relaxar. Curiosamente, quando se faz uma endoscopia
a estes doentes, o endoscópio passa porque não há
uma obstrução mecânica, mas sim uma incapacidade
de relaxar o esfíncter e, portanto, de deixar passar os alimentos, o que
resulta em fenómenos de emagrecimento progressivo. Pensa-se que a
causa desta acalásia esteja relacionada com a perda dos neurónios
intra-murais, que são os neurónios responsáveis pela inervação desta
musculatura lisa. Os neurónios inibitórios contendo VIP e óxido nítrico
são predominantemente envolvidos, mas os neurónios colinérgicos são
também afetados na doença avançada.
▪ Acalásia secundária – relacionada com várias doenças:
• Carcinoma gástrico com infiltração do esófago;
• Doença de Chagas, em que há uma destruição progressiva dos
plexos neuronais;
• Gastroenterite eosinofílica, em que há uma infiltração por
eosinófilos no esófago, levando a uma perturbação motora.
o Espasmo difuso do esófago
▪ É uma situação que não é muito frequente na prática clínica, mas que é
importante reconhecer, já que em algumas situações é necessário fazer
o diagnóstico diferencial, por exemplo, com a dor pré-cordial de causa
cardíaca. No espasmo difuso do esófago, há contrações não
peristálticas de amplitude variável (baixa, normal ou larga) na parte
inferior do esófago.
▪ No estado normal há apenas uma
contração e depois volta ao repouso, na
acalásia e na esclerodermia não existem
praticamente contrações, e no espasmo
difuso do esófago existem várias
contrações pequenas mantidas sem que
haja relaxamento. Esta situação provoca
dor intensa e dificuldade de passagem dos
alimentos. Pensa-se que esta dor se deve à
disfunção dos nervos inibitórios desta
parte inferior do esófago.
• Disfagia por obstrução mecânica
o Estenoses pépticas, na sequência de uma esofagite
o Carcinoma do esófago, que produz uma obstrução mecânica à passagem dos
alimentos.
Doença de refluxo

A doença de refluxo é uma situação bastante frequente na prática clínica. Cerca de 15% dos
indivíduos têm queixas de refluxo numa qualquer altura da vida. O refluxo constitui a passagem
do conteúdo gástrico para o esófago, que não possui mecanismos protetores para o ácido, ao
contrário do estômago. Numa situação normal, o conteúdo do estômago não deve passar para
o esófago. Mesmo que o líquido esteja a encher todo o estômago, o EEI e uma série de
mecanismos relacionados impedem a passagem do líquido para dentro do esófago.

Porque é que acontece o refluxo?

Existem sobretudo três barreiras à passagem do conteúdo do estômago para o esófago:

• EEI
• Diafragma crural
• Localização anatómica da junção gastrointestinal abaixo do hiato diafragmático.

O refluxo pode ser causado pela redução destas barreiras à passagem do conteúdo gástrico, por
um aumento do volume ou da pressão gástrica ou por uma redução do efeito de limpeza e
neutralização do ácido a nível do esófago (por exemplo, diminuição ou eliminação das
contrações secundárias em que há eliminação dos pequenos restos que podem refluir para o
esófago). Não está perfeitamente mostrado que haja sempre hipotensão do EEI. O que se pensa
atualmente é que essa hipotensão seja transitória, ou seja, o que acontece nos indivíduos com
refluxo é que há muitos episódios em que o EEI relaxa e deixa passar o líquido para o esófago.

Causas de hipotensão do EEI:

• Primária, que não está ainda muito bem definida;


• Secundária, como consequência de uma série de fenómenos:
o Excesso de peso: a obesidade é um dos fatores que pode facilitar o refluxo. No
tratamento da doença de refluxo, uma das coisas mais importantes é conseguir
que os doentes percam peso. Mesmo que seja uma perda de peso
relativamente pequena é, normalmente, bastante eficaz em termos de redução
do refluxo.
o Gravidez: é uma situação que causa refluxo com muita frequência, sobretudo
porque existem fenómenos hormonais como o aumento da progesterona que
leva a um relaxamento do EEI que, juntamente como o aumento de pressão do
útero gravídico, leva a uma facilitação do refluxo.
o Tabagismo
o Drogas anti-colinérgicas ou relaxantes musculares.
o Esclerodermias ou outras miopatias, por favorecerem o relaxamento do EEI.

Sabe-se que existem outros condicionantes de aparecimento de refluxo:

• Aumento do volume gástrico:


o Contribuem refeições abundantes e/ou a presença de estenose pilórica. Com
esta estenose acumular-se-á muito mais líquido no estômago e este distende,
aumenta a pressão e há maior probabilidade de refluir. Aconselha-se a estes
doentes que tomem refeições pequenas para diminuir a probabilidade de
refluxo.
• Fenómenos posicionais: se o indivíduo está deitado ou inclinado, o refluxo é favorecido.
• Aumento da pressão gástrica: roupa apertada, ascite, hérnia do hiato que é muito
frequente, e a partir de certa idade há tendência a desenvolvê-la.

Um dos conselhos que se dá habitualmente aos doentes com doença de refluxo é que evitem
usar roupa apertada, sobretudo ao nível da cintura, para impedir os fenómenos de refluxo.
Ainda se aconselha que, quando estão deitados, subam a cabeceira da cama (15 cm é suficiente)
para diminuir significativamente a possibilidade de existir refluxo durante a noite que pode levar
à lesão da parede esofágica.

Efeitos do refluxo:

• Sintomatologia de refluxo, sem lesão do esófago:


o O doente queixa-se de azia, pirose, sensação de queimadura retroesternal, mas
à realização de endoscopia não apresenta nenhuma lesão no esófago. (A doença
de refluxo nem sempre se manifesta com alterações a nível da parede esofágica,
podendo existir apenas sintomatologia).
• Esofagite de refluxo: é uma lesão da mucosa esofágica que habitualmente é mais intensa
no terço inferior do esófago. A mucosa do esófago fica hiperemiada, com aspeto de
descamação. Envolve alterações microscópicas de infiltração da mucosa com
granulócitos ou um pequeno nº de eosinófilos, hiperplasia das células basais. Pode ser
de vários graus:
o Ligeira, correspondendo só a uma hiperémia da mucosa;
o Moderada, apresentando ulcerações (que podem ser circunferenciais);
o Grave, com ulcerações extensas.
• Estenose péptica: como resultado da progressão da
doença, depois de muito tempo com lesões de esofagite,
acaba por se desenvolver uma estenose no esófago. Há um
aperto do esófago que impede a progressão dos alimentos
e que pode ou não apresentar ulcerações. Do ponto de
vista radiológico, o aspeto é diferente da acalásia, pois não
há uma grande distensão, apenas alguma distensão na
parte superior, que se continua para baixo com uma zona de estenose. A
estenose resulta de fibrose que causa constrição do lúmen, que ocorre em cerca
de 10% dos pacientes com doença de refluxo não tratada. As estenoses causadas
por refluxo espontâneo apresentam 1-3 cm de comprimento e estão presentes
no esófago distal, perto da junção do epitélio escamoso-colunar. Nota:
estenoses pépticas longas podem resultar de vómito persistente ou de
intubação nasogástrica prolongada.
• Esófago de Barrett: é uma metaplasia da mucosa do esófago por
agressão ácida durante muito tempo, ocorrendo uma transformação em
mucosa de tipo gástrico. Esta lesão tem um risco muito aumentado de
progredir para carcinoma do esófago. Assim, estes doentes têm de ser
mantidos em vigilância e o tratamento do refluxo tem de ser bastante
agressivo.
• Carcinoma do esófago: este é o efeito mais grave do refluxo. O carcinoma
do esófago não está ligado só ao refluxo, mas sabe-se que estas duas
situações têm uma relação muito marcada, pois os indivíduos que têm
episódios de refluxo gástrico persistente no tempo têm mais probabilidade
de desenvolver carcinoma do esófago.
o Quando se faz a endoscopia e não se tem a certeza se é carcinoma,
confirma-se por biopsia. Do ponto de vista radiológico, observa-se
uma estenose irregular suspeita de carcinoma do esófago.
o Do ponto de vista de sintomatologia, a queixa mais importante que
nos leva a fazer suspeitar de carcinoma do esófago é a disfagia. Este
sintoma é sempre um sinal de alarme, que deve ser seguido por um
exame endoscópico, porque raramente é um sinal funcional,
correspondendo quase sempre a uma doença orgânica. Poderá
eventualmente ser ligada a algumas patologias motoras.
o Nota: Não se sabem quais as percentagens exatas, mas cerca de 5%
dos esófagos de Barret podem evoluir para carcinoma do esófago.
Há indicações para que estes doentes façam uma endoscopia de dois
em dois anos e durante estas endoscopias devem ser feitas múltiplas
biopsias da zona de metaplasia na tentativa de diagnosticar
carcinoma antes de ele estar instalado.

Estômago

Doença ácido-péptica

Define-se como uma disrupção da integridade da mucosa do estômago ou duodeno levando a


um defeito local ou a uma escavação por inflamação ativa. Sabemos atualmente que se associa
ao Helicobacter Pylori ou à tomada de AINE´s. Em casos raros pode associar-se à D. Zollinger-
Ellison ou outras situações raras. A doença ulcerosa péptica caracteriza-se habitualmente por
dor epigástrica exacerbada pelo jejum e que melhora com as refeições. Esta constitui a
apresentação mais típica, apesar de alguns doentes poderem apresentar hemorragia digestiva
ou outras manifestações clínicas.

A doença ulcerosa péptica corresponde a uma disrupção da integridade da mucosa do estômago


ou do bulbo duodenal, levando a uma lesão que atinge a submucosa e tem infiltrados
inflamatórios.

Imagem endoscópica de uma úlcera péptica: fundo nacarado e pode ter bordos mais ou menos
elevados e hiperemiados, o que pode dificultar a distinção de uma neoplasia, sobretudo no
estômago (no bulbo duodenal raramente corresponderá a neoplasia).

Causas das úlceras pépticas:


• Associada a Helicobacter pylori
o A infeção por H. Pylori pode causar doença ácido-péptica por múltiplos
mecanismos, incluindo uma alteração direta da transdução de sinal nas células
da mucosa e células imunes que por seu lado podem aumentar a secreção de
ácido e diminuir as defesas da mucosa

• Associada aos AINE’s

As úlceras pépticas associadas ao H. pylori correspondem a 70-80% de todos os casos de úlceras


pépticas, dependendo das zonas do mundo às quais nos referimos. Portanto, a frequência
relativa das úlceras associadas ao H. pylori ou aos AINE’s varia consoante a prevalência das duas
situações.

• Associada à doença de Zollinger-Ellison: nesta doença há aumento da produção de


gastrina, o que leva ao aparecimento de úlceras. Esta situação é muito rara, mas é
importante ter em mente, sobretudo se o doente tem uma doença ulcerosa que não
responde ao tratamento habitual ou que tem um comportamento fora do vulgar.

Fisiopatologia da doença ulcerosa péptica

A mucosa gástrica tem várias pregas com glândulas gástricas com células epiteliais altamente
especializadas, que variam de acordo com a sua localização anatómica. Cerca de 75% das
glândulas gástricas encontram-se na mucosa oxíntica e contêm células mucosas no colo, células
parietais, principais, endócrinas e enterocromafins. As glândulas pilóricas contêm células
mucosas e endócrinas (incluindo células
de gastrina) e encontram-se no antro.

• Células produtoras de muco à


superfície e no colo
• Células parietais: produzem o
ácido clorídrico e o fator
intrínseco
• Células principais: produtoras de
pepsinogénio
• Células endócrinas, que existem ao longo das
glândulas

As células parietais podem existir em dois estados: em


repouso, em que apresentam canalículos e tubulovesículas,
ou podem ser estimuladas por uma série de substâncias para
a produção de ácido - quando a célula é estimulada,
transforma-se numa rede densa de canalículos intracelulares
com grandes microvilosidades, levando à produção de ácido.
Este é um processo que requer elevada energia, ocorrendo
na superfície apical canalicular. Isso acontece através da
ativação das bombas de protões pela gastrina e histamina.

A barreira ao ácido e ao seu efeito nocivo é constituída por vários componentes:

• Na zona pré-epitelial: produção de muco,


bicarbonato e fosfolípidos ativos da superfície,
que fazem uma camada de proteção ao ácido,
especialmente pelo bicarbonato que o neutraliza;
• Na zona epitelial: resistência celular, fatores de
restituição e de crescimento, como as
prostaglandinas, e a proliferação celular;
• Na zona sub-epitelial: a circulação sanguínea e os
leucócitos. A este nível, a circulação sanguínea é especialmente importante e muitas
vezes fenómenos de isquémia ou alterações da circulação podem ser importantes no
estabelecimento de lesão ulcerosa na parede gástrica.

Quando nos alimentamos, existem várias fases que promovem estimulação da célula parietal:

• A fase cefálica – o cheiro e a visão dos alimentos levam a uma estimulação do nervo
vago, com produção de acetilcolina. Esta, por si só, pode estimular a ativação da célula
parietal.
• A fase gástrica – quando os alimentos chegam ao estômago os próprios nutrientes vão
ativar as células G. Estas produzem gastrina, que pode ativar as células parietais de duas
formas: diretamente ou indiretamente, esta última através da estimulação das células
endócrinas, com produção de histamina que, por sua vez, ativa a célula parietal.
• As células D possuem um mecanismo de regulação negativa da produção do ácido.

É deste balanço de fatores que há a regulação da produção de ácido.

Doença ácido-péptica

• Úlcera gástrica H. pylori, mas também álcool e stress, e AINE’s por redução dos fatores
protetores da mucosa e das prostaglandinas
• Gastrite erosiva - álcool e stress
• Gastrite crónica atrófica – é um conjunto heterogéneo de doenças em que há uma
infiltração por células inflamatórias com morte das células parietais e desaparecimento
das glândulas gástricas. Passa a haver um aumento da gastrina numa tentativa de
compensar a redução do ácido.Pode ser autoimune e progredir para anemia perniciosa
ou pode ser associada ao H. pylori
• Úlcera duodenal – associa-se sobretudo ao H. pylori mas também à dieta, ser fumador
e consumo excessivo de álcool, fenómenos de stress psicológico

Úlcera péptica associada ao H. pylori

Atualmente a causa mais frequente de úlcera péptica é o H. pylori, responsável por 30-60% das
úlceras gástricas e 50-70% das úlceras duodenais. O H.pylori pode provocar úlcera péptica
devido a:

• Fatores relacionados com a própria bactéria: estrutura da bactéria, capacidade de


adesão à parede gástrica, enzimas que a bactéria produz.
• Fatores relacionados com o hospedeiro: duração da infeção, localização da infeção,
resposta inflamatória e fatores genéticos.

Existem indivíduos que vivem com H.pylori num certo equilíbrio que não provoca doença nem
lesão, enquanto outros indivíduos desenvolvem a doença. Isso pode dever-se à estirpe de H.
pylori, a fatores do hospedeiro ou à altura da vida em que o indivíduo é infetado. Ser infetado
na infância, o que significa que passou a viver com o Helicobacter desde muito cedo, é diferente
de ser infetado mais tardiamente.

O H. pylori pode desencadear gastrite crónica que pode ser assintomática ou que pode evoluir
para doença ulcerosa péptica. Também se sabe que o H. pylori está bastante implicado no
Linfoma MALT (mucosa-associated lymphoid tissue). Se o linfoma estiver associado apenas à
mucosa e submucosa, com a eliminação do H.pylori tratamos a neoplasia. Esta é uma descoberta
recente que demonstra uma situação em que a administração de antibióticos consegue tratar
uma neoplasia.

A associação entre o cancro gástrico e o H. pylori também está bem demonstrada, apesar de
nem todos os cancros gástricos estarem associados ao Helicobacter. Em Portugal temos uma
altíssima prevalência de cancro gástrico e também uma elevada prevalência de H.pylori. A
questão se temos que erradicar o H.pylori em todos os indivíduos que o têm é, atualmente, alvo
de grande controvérsia. Aquilo que é indiscutível é que se um indivíduo tem doença ulcerosa
péptica, o Helicobacter tem de ser erradicado. Nas outras situações é discutível, sobretudo na
dispepsia, pois é uma situação em que existem todas as queixas da doença ulcerosa, mas à
endoscopia não são visíveis úlceras (dispepsia não-ulcerosa). No entanto tende-se a eliminar o
Helicobacter porque, sabendo que é um possível precursor do cancro gástrico, é preferível
erradicá-lo.

Úlcera péptica associada aos AINEs

Entre os indivíduos que tomam AINE’s, surge dispepsia numa percentagem muito elevada - cerca
de 50 a 60%. No entanto, as úlceras surgem apenas em 15-30%, o que é, de qualquer maneira,
um valor elevado, sobretudo porque existem milhões de pessoas em todo o mundo a tomar
AINE’s. A principal razão para essa elevada utilização prende-se com o facto de estes
medicamentos serem muito eficazes, pois conseguem diminuir muito a dor, especialmente a
dor crónica. Sobretudo a partir de uma certa idade, a dor de causa osteo-articular é muito
frequente e mesmo os indivíduos que sabem que a doença ulcerosa constitui um risco para eles,
insistem em tomar AINE’s. Dentro da doença ulcerosa, a úlcera sangrante é também
relativamente frequente: 1,5% de todos os indivíduos que tomam AINE’s podem desenvolver
hemorragias como consequência da doença ulcerosa. Esta situação é particularmente
importante porque, muitas vezes, a hemorragia está associada a indivíduos de uma idade
bastante avançada e nos quais a mortalidade associada à ulcera sangrante é bastante elevada.
Isto coloca questões relacionadas com a necessidade de fazer terapêutica preventiva, por
exemplo, com inibidores da bomba de protões, nos indivíduos que tomam cronicamente AINE’s
ou modificar o tipo de anti-inflamatório de acordo com o risco de desenvolver doença ulcerosa.
Outra questão que pode surgir é se se justifica erradicar o H.pylori antes de começar a
terapêutica com AINE’s, uma vez que pode haver um efeito sinérgico das duas causas. Há
também que ter em atenção que o desenvolvimento da úlcera sangrante não depende só da
dose, pois há indivíduos para os quais são apenas necessárias 2 tomas de AINE’s para
desenvolver uma úlcera sangrante.

Os AINEs têm efeitos na mucosa gástrica a vários níveis:

• Efeitos endoteliais de estase e de alteração isquémica na


parede gástrica, facilitando a ação do ácido e o
aparecimento das erosões.
• Efeitos epiteliais, pela depleção das prostaglandinas, o
que elimina o seu efeito protetor. Esta situação
desencadeia uma redução da secreção das mucinas,
bicarbonato, fosfolípidos ativos de superfície e redução da
proliferação das células epiteliais, que constitui um dos
mecanismos de reparação da parede gástrica. Estes efeitos reduzem a proteção da
parede gástrica que, associado a um aumento da produção de ácido clorídrico, diminui
a capacidade espontânea de cicatrização das úlceras ou das erosões.
• Efeito tóxico direto.

Perturbações motoras do estômago


Intestino

Síndrome do intestino irritável

A síndrome do intestino irritável surge em cerca de 10-20% dos adultos e adolescentes. É


bastante frequente em idades jovens e no sexo feminino, apesar de não se saber se as mulheres
têm realmente mais tendência a desenvolver a doença ou se essa conclusão se deve ao facto
das mulheres procurarem mais frequentemente conselho médico.

Deve-se a uma desordem intestinal funcional, que é caracterizada por dor abdominal
(característica principal) ou desconforto e alteração dos hábitos intestinais, na ausência de
alteração estrutural do intestino.

Foram definidos critérios para a sua identificação (Critérios de Roma, 2006):

• Dor abdominal recorrente ou desconforto, pelo menos 3 dias por mês nos últimos 3
meses associado com dois dos seguintes:
o Melhoria com a defecação;
o Início associado com alteração na frequência das dejeções;
o Início associado com alteração na forma ou aspeto das fezes.

Estes indivíduos podem apresentar queixas de diarreia alternadas com queixas de obstipação,
mas o elemento comum é quase sempre a dor. Os doentes podem não apresentar queixas
durante largos períodos da vida e depois terem períodos de agravamento das queixas, que
podem estar relacionados com épocas de maior stress emocional ou psicológico.

Causas da síndrome do intestino irritável:

• Atividade motora e sensorial anormal do intestino


• Disfunção neural central
• Distúrbios psicológicos
• Stress
• Fatores luminais

Quanto às alterações motoras, sabe-se que estas não são alterações de repouso, surgem
sobretudo após a estimulação e por isso são frequentes após as refeições. No que diz respeito
às alterações sensoriais, há uma resposta exagerada à estimulação visceral. Por exemplo, nas
experiências em que é realizada a distensão rectal com um balão com água ou ar, enquanto um
indivíduo normal não sente dor com 80-100 ml, num indivíduo com intestino irritável a mesma
distensão rectal despoleta dor. Apesar disso, estes indivíduos não têm aumento de outro tipo
de sensibilidade, apenas uma seletiva alteração da sensibilidade para a enervação visceral e,
portanto, também podem apresentar outras manifestações da alteração da sensibilidade
dolorosa, como cefaleias, queixas genito-urinárias vagas ou dispepsia não-ulcerosa.

Pensa-se que a existência de sensibilidade visceral exagerada se deve:

• Sensibilidade aumentada com recrutamento de "silenciosos" nociceptores;


• Hiperexcitabilidade medular com ativação de óxido nítrico e outros neurotransmissores;
• Modulação da transmissão nociceptiva endógena (cortical e do tronco);
• Hiperalgesia por neuroplasticidade resultando em alterações permanentes ou
semipermanentes nas respostas neurais crónicas ou recorrentes viscerais.
É como se a determinada altura os circuitos neuronais estivessem já viciados neste tipo de
circuito e, portanto, mantém-se a hiperalgesia, uma situação que tende a ficar crónica.

Alvos terapêuticos

Tem-se procurado novos alvos


terapêuticos para o tratamento da
síndrome do intestino irritável com o
objetivo de reduzir a atividade
sensoriomotora a nível intestinal. Os
fármacos podem atuar mais a nível do
SNC, com a utilização de alguns
antidepressivos, terapêuticas
comportamentais ou hipnoterapia,
psicoterapia e o tratamento das
doenças de somatização. Outros tipos
de fármacos vão atuar mais a nível intestinal, quer na mucosa quer no conteúdo luminal, como
os antiespasmódicos (com sucesso relativo), os anti-diarreicos (nos doentes em que há
predomínio da diarreia), modificação dietética (recentemente o uso dos probióticos tem tido
alguns resultados, embora controversos), os suplementos de fibras e os novos moduladores da
serotonina no intestino.

O tipo de medicamentos a utilizar varia consoante a gravidade do quadro. Assim, nas formas
mais ligeiras, atua-se sobretudo a nível da mucosa, com anti-espasmódicos, modificações da
dieta, suplementos de fibra, enquanto nas formas mais graves a intervenção deve ser sobretudo
a nível do SNC.

Doença inflamatória intestinal (DII)

A DII resulta do efeito combinado das alterações do hospedeiro com a microbiota intestinal,
disfunção epitelial intestinal, respostas imunes aberrantes e alteração da composição do
microbioma intestinal. Há um estado crónico de desregulação da função imune da mucosa em
indivíduos geneticamente predispostos para desenvolverem esta situação.

Existem fatores envolvidos nesta doença:

• Fatores exógenos, que dependem da flora luminal;


• Fatores do hospedeiro

Na DII parece acontecer uma resposta inapropriada à flora endógena, com ou sem componentes
de auto-imunidade. Comporta-se um pouco como se o indivíduo tivesse uma infeção
gastrointestinal, mas que persiste, sendo crónica, como se os nutrientes fossem sentidos como
um agressor ou como um agente bacteriano. Uma das questões bastante discutida é até que
ponto é que esta doença poderá ser provocada por um agente infeccioso. Há a possibilidade de
se vir a descobrir algum agente infeccioso em especial que não tenha sido ainda identificado,
mas até ao momento considera-se que existe uma resposta imune inapropriada.

Patogénese da DII

• Genética. Os fatores genéticos são menos dominantes na colite ulcerosa relativamente


à Doença de Crohn. Análises moleculares de ligação das famílias acometidas
identificaram NOD2 (domínio de oligomerização vinculado a nucleotídeos 2) como um
gene de suscetibilidade na doença
de Crohn. O NOD2 codifica uma
proteína que se liga a
peptideoglicanos bacterianos
intracelulares e
subsequentemente ativa NF-kB.
Tem sido postulado que as
variantes NOD2 associadas à
doença são menos eficazes no
reconhecimento e combate de
micróbios luminais, que são então
capazes de entrar na lâmina
própria e desencadear reações
inflamatórias. Outros dados sugerem que o NOD2 pode regular as respostas imunes
para evitar excesso de ativação por micróbios luminais. Seja qual for o mecanismo pelo
qual os polimorfismos de NOD2 contribuem para a patogénese da doença de Crohn,
deve-se reconhecer-se que a doença se desenvolve em menos de 10% das pessoas
portadoras de mutação de NOD2, e mutações de NOD2 são incomuns em pacientes
africanos e asiáticos com doença de Crohn. Juntamente com NOD2, dois genes
relacionados com a doença de Crohn de interesse particular são ATGI6LI (relacionado
com autofagia semelhante a 16-I), uma parte da via do autofagossoma que é essencial
para as respostas das células para as bactérias intracelulares, e IRGM (GTPaseM
relacionada com a imunidade), que também está envolvido na autofagia e eliminação
de bactérias intracelulares. NOD2, ATGI6LI e IRGM são expressos em vários tipos de
células, e os seus papéis exatos na patogénese da doença de Crohn ainda têm de ser
definidos. Como o NOD2, no entanto, ATGI6LI e IRGM estão relacionados com o
reconhecimento e a resposta a agentes patogénicos intracelulares, sustentando a
hipótese de que reações imunológicas inapropriadas a bactérias luminais são
importantes na patogénese da DII. Nenhum desses genes está associado à colite
ulcerativa.
• Respostas imunes da mucosa. A polarização de células T auxiliares para o tipo TH1 é
bem reconhecida na doença de Crohn, sendo que as células TH17 também contribuem
para a patogénese da doença. Determinados polimorfismos do recetor de IL-23
conferem proteção contra a doença de Crohn e colite ulcerativa (IL-23 está envolvida no
desenvolvimento e na manutenção de células TH17). A proteção conferida pelos
polimorfismos do recetor de IL-23, juntamente com a eficácia reconhecida da terapia
anti-TNF em alguns pacientes com colite ulcerativa, parece apoiar papéis para as células
THI e TH 17. Alguns dados sugerem que a resposta imune na colite ulcerativa inclui um
componente de TH2 significativo. Por exemplo, a produção de IL-13 da mucosa é
aumentada na colite ulcerativa e, em menor grau, na doença de Crohn. No entanto, o
papel patogénico das células TH2 na patogénese da DII permanece controverso.
Polimorfismos do gene IL-10, bem como do IL-I 0R, do gene recetor IL I 0, foram
associados à colite ulcerativa, mas não à doença de Crohn, enfatizando a importância
dos sinais imunorreguladores na patogénese da DII.
• Defeitos epiteliais. Os defeitos na função da barreira da junção íntima estão presentes
em pacientes com doença de Crohn. Essa disfunção da barreira cossegrega
polimorfismos NOD2 associados à doença específicos, e modelos experimentais
demonstram que a disfunção da barreira pode ativar imunidade inata e adaptativa da
mucosa e sensibilizar os indivíduos à doença. Curiosamente, os grânulos de células de
Paneth, que contêm peptídeos antimicrobianos que podem afetar a composição da
microbiota luminal, são anormais em pacientes com doença de Crohn portadores de
mutações de ATG I 6LI, proporcionando assim um potencial mecanismo em que uma
alça de feedback defeituosa entre o epitélio e a microbiota poderia contribuir para a
patogénese da doença.
• Microbiota. Há uma variação interindividual significativa na composição da população
microbiana, que é modificada por dieta e doença. Apesar de dados sugerirem que a
microbiota intestinal contribui para a patogénese da DII, o seu papel preciso continua
tendo de ser definido. Em consonância com isso, alguns antibióticos, como
metronidazol, podem ser úteis na manutenção da remissão da doença de Crohn.
Estudos em andamento sugerem que as misturas mal definidas que contêm bactérias
probióticas, ou benéficas, também podem combater a doença em modelos
experimentais, bem como em alguns pacientes com DII, embora os mecanismos
responsáveis não sejam bem compreendidos.

Um modelo que unifica as funções de microbiota intestinal, função epitelial e imunidade da


mucosa sugere um ciclo pelo qual o fluxo transepitelial de componentes bacterianos luminais
ativa respostas imunes inatas e adaptativas. Num hospedeiro geneticamente suscetível, a
libertação subsequente de TNF e outros sinais imunomediados levam os epitélios a aumentar a
permeabilidade da junção íntima, o que aumenta ainda mais o fluxo de material luminal. Esses
eventos podem estabelecer um ciclo de autoamplificação em que um estímulo em qualquer
local pode ser suficiente para iniciar a DII. Embora esse modelo seja útil para fazer avançar a
compreensão atual da patogénese da DII, uma variedade de fatores está associada à doença,
por razões desconhecidas. Por exemplo, um único episódio de apendicite está associado a um
risco reduzido de desenvolver colite ulcerativa. O uso do tabaco também modifica o risco de DII.
Surpreendentemente, o risco de doença de Crohn é aumentado pelo fumo, enquanto a colite
ulcerativa é reduzida.

Dentro da doença inflamatória do intestino, podemos ter:

• Doença de Crohn
o É uma patologia transmural (atinge todas as
camadas da parede) e pode afetar todo o
tubo digestivo, desde a boca até ao ânus.
o Características:
▪ Fibroestenótica
▪ Fistulizante
▪ Dor abdominal
▪ Episódios de sub-oclusão
▪ Perda de peso
▪ Doença peri-anal
▪ Massa abdominal
▪ Resposta aos antibióticos
▪ ASCA-positivo
• Colite ulcerosa
o É uma doença da mucosa e, por vezes, da sub-mucosa, manifestando-se de
maneira diferente e apenas no cólon:
▪ Rectorragias
▪ Diarreia
▪ Hematoquézias
▪ Passagem de muco
▪ Tenesmo
▪ Dor abdominal
▪ ANCA-positivo

Manifestações extraintestinais:

• Uveíte
• Poliartrite migratória
• Sacroileíte
• Espondilite anquilosante
• Eritema nodoso
• Clubbing das pontas dos dedos
• Colangite esclerosante

Malabsorção

Apresenta-se habitualmente como diarreia crónica, e caracteriza-se por uma perturbação da


absorção de gorduras, vitaminas lipo e hidrosoluveis, proteínas, carbohidratos, proteínas,
eletrólitos e minerais e água.

A esteatorreia, caracterizada por excessiva gordura nas fezes e que são muito abundantes e
podem ser amareladas ou acinzentadas

Há várias causas de malabsorção a nível do intestino, e elas podem depender sobretudo de dois
tipos de situações: por digestão inadequada ou por alteração da absorção da mucosa/perda ou
defeito.

Entre as causas de digestão inadequada, temos:

• Status pós-gastrectomia;
• Deficiência de enzimas pancreáticos:
o Pancreatite crónica
o Uso de alguns fármacos como o orlistat que bloqueia a produção dos enzimas
pancreáticos e portanto não permite a emulsão dos alimentos de forma a serem
absorvidos;
• Redução da concentração de ácidos biliares
o Doença hepática; colestase;
• Proliferação bacteriana
o Diabetes
o Estase intestinal, em que há alterações da mobilidade intestinal levando à
proliferação de bactérias que vão provocar má absorção e diarreia.

Na doença por alteração da absorção da mucosa há mesmo defeito estrutural na parede do


intestino. Entre as causas, as mais frequentes na prática clínica são as seguintes:
• Doença inflamatória do intestino, sobretudo a D. de Crohn, porque a maior parte da
absorção faz-se a nível do intestino delgado;
• Doença celíaca, bastante frequente e muitas vezes não reconhecida;
• Doença de Whipple
• Enterite de radiação;
• Abetalipoproteinemia, em que há ectasias do intestino, provocando má absorção.

Doença celíaca ou sprue celíaco ou enteropatia de sensibilidade ao glúten

É uma enteropatia imuno-mediada desencadeada pela


ingestão de alimentos contendo glúten como o trigo, o
centeio e a cevada, em indivíduos geneticamente
predispostos.

Pensa-se que está presente em 1/7 indivíduos, mas


muitas vezes não é reconhecida clinicamente porque
não se chega a manifestar e está relacionada
principalmente com fatores ambientais. O glúten
passa a ser reconhecido na mucosa como uma
proteína estranha e provoca uma reação que leva à
ativação de uma série de citocinas, com lesão da mucosa intestinal. É mais frequente na parte
proximal do intestino delgado. Na doença, desenvolve-se um aplanamento completo ou parcial
da mucosa do intestino.

Não se sabe porque é que há indivíduos que vivem uma grande parte da vida sem manifestações
e só num determinado momento da sua vida se tornam intolerantes ao glúten, desenvolvendo
a doença celíaca.

É uma doença que causa frequentemente anemia, desnutrição e diarreia.


Doença hepática

A doença hepática pode ser:

• Aguda ou crónica
• Focal ou difusa
• Leve ou grave
• Reversível ou irreversível.

Os casos de doença hepática aguda (p. ex., causada por hepatite viral) são, na sua maioria, muito
discretos a ponto de nunca serem diagnosticados. Os sintomas transitórios de fadiga, perda do
apetite e náuseas frequentemente são atribuídos a outras causas (p. ex., gripe), e as
anormalidades bioquímicas menores referentes ao fígado, que seriam identificadas em análises
sanguíneas, não são descobertas. O paciente recupera-se sem qualquer consequência clínica
duradoura. Em outros casos de lesão hepática aguda, os sinais e os sintomas são graves → todas
as funções do fígado, ou apenas algumas, podem ser afetadas. Em certas ocasiões, causas virais,
fármacos e outras causas de lesão hepática aguda ocorrem de modo intenso, resultando em
morte maciça dos hepatócitos e falência multiorgânica progressiva. Essa síndrome de
insuficiência hepática fulminante está associada a uma elevada taxa de mortalidade; contudo,
a transplantação hepática de emergência aumenta a sobrevivência.

A lesão hepática pode prosseguir após o episódio agudo inicial ou pode ser recorrente (hepatite
crónica). Em alguns casos de hepatite crónica, a função hepática permanece estável, ou o
processo mórbido finalmente regride por completo. Em outros casos, observa-se uma
deterioração progressiva e irreversível da função hepática.

A cirrose representa a consequência de lesão hepática progressiva. Pode ocorrer cirrose num
subgrupo de casos de hepatite crónica que não regridem de modo espontâneo, ou após
episódios repetidos de lesão hepática aguda, como no caso do alcoolismo crónico. Na cirrose, o
fígado torna-se duro, retraído e nodular e exibe comprometimento das suas funções e reserva
diminuída, devido a uma redução na quantidade de tecido hepático funcional. Mais importante
ainda é a alteração da física do fluxo sanguíneo, com consequente elevação da pressão na veia
porta. Em consequência, o sangue é desviado ao redor do fígado, em lugar de ser filtrado através
dele → shunt portossistémico, que tem profundos efeitos sobre a função de vários sistemas
orgânicos.

Embora a doença hepática produzida por muitas causas diferentes possa se manifestar de uma
mesma maneira, o inverso também é verdadeiro (i. e., uma determinada doença hepática
resultante de causas específicas pode ter formas diferentes de apresentação em diferentes
pacientes). Essas variações na gravidade da doença hepática devem-se, provavelmente, a
fatores genéticos, imunológicos e ambientais (incluindo, talvez, nutricionais) que, hoje, não
estão bem elucidados.

As consequências da hepatopatia podem ser reversíveis ou irreversíveis. As que surgem


diretamente devido a uma lesão aguda das células funcionais do fígado, mais notavelmente dos
hepatócitos, sem destruição da capacidade de regeneração do fígado, são geralmente
reversíveis. Como muitos órgãos do corpo, o fígado normalmente possui uma enorme
capacidade de reserva para as várias reações bioquímicas que realiza, bem como a capacidade
de regenerar células totalmente diferenciadas e, portanto, de se recuperar por completo de uma
lesão aguda. Por conseguinte, apenas nos casos mais fulminantes ou na doença terminal é que
existe um número insuficiente de hepatócitos residuais para manter uma função hepática
essencial mínima. Com mais frequência, os pacientes exibem sinais transitórios de necrose das
células hepáticas e distúrbio da função, seguidos de recuperação completa. Os sinais e os
sintomas desse tipo de lesão hepática aguda podem ser mais bem interpretados como
comprometimento das funções bioquímicas normais do fígado.

Outras consequências da doença hepática são irreversíveis, sendo tipicamente observadas no


paciente com cirrose, e são resultantes do shunt portossistémico: elevada sensibilidade a
substâncias nocivas absorvidas pelo trato GI (encefalopatia), risco aumentado de hemorragia GI
intensa (desenvolvimento de varizes e coagulopatia) e má absorção de gordura nas fezes (em
consequência da redução do fluxo biliar). As consequências da cirrose são, em geral,
irreversíveis, mas algumas delas são passíveis de tratamento. Os pacientes com cirrose
comumente apresentam lesão hepática aguda sobreposta (p. ex., causada por consumo
excessivo de álcool ou exposição a outras drogas). Como apresentam uma diminuição da massa
dos hepatócitos e uma reserva funcional muito menor, esses pacientes são mais sensíveis à lesão
hepática aguda do que os indivíduos com fígado normal.
ESTRUTURA E FUNÇÃO DO FÍGADO

Anatomia, histologia e biologia celular

O fígado localiza-se no quadrante superior direito do abdómen, no espaço peritoneal, abaixo da


cúpula direita do diafragma e sob a caixa torácica. É dividido anatomicamente em lobo direito,
lobo esquerdo, lobo quadrado e lobo de Spiegel; de acordo com a vascularização portal, é
dividido em 4 setores, sendo depois subdividido em 8 segmentos. Recebe quase 25% do débito
cardíaco, ou seja, aproximadamente 1500 mL de fluxo sanguíneo por minuto, através de duas
fontes: o fluxo venoso da veia porta, que é crucial para o desempenho do fígado nas funções
corporais, e o fluxo arterial da artéria hepática, que é importante para a oxigenação do fígado e
que irriga o sistema biliar. Esses vasos convergem no interior do fígado, e o fluxo sanguíneo
conjunto termina nas veias centrais/veias terminais/vénulas hepáticas, que drenam na veia
hepática e, por fim, na veia cava inferior.

A veia porta transporta sangue venoso do intestino delgado, rico em nutrientes recém-
absorvidos — bem como fármacos e toxinas —, diretamente para o fígado. A drenagem venosa
pancreática, rica em hormonas pancreáticas (insulina, glicagina, somatostatina e polipéptido
pancreático), também flui para a veia porta antes de penetrar no fígado. A veia porta forma um
leito capilar especializado, assegurando aos hepatócitos serem banhados diretamente por
sangue portal. É em parte devido a esse sistema de irrigação que o fígado é um local por
excelência de disseminação metastática de cancro, particularmente do trato GI, da mama e do
pulmão.

Conceitos de organização do fígado

O parênquima do fígado é organizado em placas de hepatócitos situados dentro de uma


estrutura de células de sustentação, denominadas células reticuloendoteliais. Em geral, as
placas de hepatócitos têm uma espessura formada por apenas uma célula, e cada placa é
separada da outra por espaços vasculares, denominados sinusóides, onde o sangue proveniente
da artéria hepática é misturado com o sangue da veia porta em direção à veia central. A rede de
células reticuloendoteliais onde residem os hepatócitos inclui diversos tipos celulares, entre os
quais os de maior importância são as células endoteliais, que compõem as paredes dos
sinusóides; macrófagos especializados, denominados células de Kupffer, que estão ancoradas
no espaço sinusoidal; e células estreladas/lipócitos, células de armazenamento de lípidos
envolvidas no metabolismo da vitamina A, que se localizam entre os hepatócitos e as células
endoteliais. Cerca de 30% de todas as células do fígado consistem em células reticuloendoteliais,
e, destas, cerca de 33% são constituídas por células de Kupffer. Todavia, como as células
reticuloendoteliais são menores do que os hepatócitos, o sistema reticuloendotelial responde
por apenas 2 a 10% da proteína total do fígado. As células reticuloendoteliais representam muito
mais do que uma simples estrutura para os hepatócitos. Desempenham funções específicas,
incluindo fagocitose e secreção de citocinas, e comunicam-se entre si, bem como com os
hepatócitos. A sua disfunção contribui para a necrose dos hepatócitos na doença hepática aguda
e para a fibrose hepática observada na doença hepática crónica.

A. Lóbulos

A arquitetura do fígado é tradicionalmente descrita em termos de lóbulos. Séries de placas de


hepatócitos estão organizadas em torno de veias centrais individuais, formando hexágonos, com
tríades ou espaços portais (estruturas semelhantes a bainhas, contendo uma vénula portal, uma
arteríola hepática e um canalículo biliar) nos seus ângulos. Os hepatócitos adjacentes à tríade
portal são denominados placa limitante. A
rutura da placa limitante constitui um
importante marcador diagnóstico de
algumas formas de doença hepática
imunologicamente mediada. Essa rutura
pode ser observada em biopsias de fígado
de pacientes com doença hepática de
etiologia desconhecida.

B. Zonalidade funcional

Em termos fisiológicos, é mais conveniente


considerar a arquitetura do fígado com
base na direção portal-central do fluxo
sanguíneo: o sangue que penetra nos
sinusóides a partir de uma vénula portal
terminal ou arteríola hepática passa, em
primeiro lugar, pelos hepatócitos de
localização mais próxima desses vasos
(denominados hepatócitos da zona 1) e, a
seguir, segue o seu fluxo pelos hepatócitos
da zona 2. Os últimos hepatócitos alcançados pelo sangue antes deste desaguar na veia central
são denominados hepatócitos da zona 3. Por conseguinte, a organização microscópica do fígado
pode ser considerada em termos de zonas funcionais.

O ácino do fígado é definido como a unidade de tecido hepático ao redor da vénula portal e
arteríola hepática, cujos hepatócitos formam anéis concêntricos de células, seguindo a ordem
com que entram em contato com o sangue portal, do primeiro ao último. Os hepatócitos em
ambos os extremos do ácino (zonas 1 e 3) parecem diferir tanto na sua atividade enzimática
quanto nas suas funções fisiológicas. Os hepatócitos da zona 1, expostos a concentrações mais
altas de oxigénio, são particularmente ativos na gliconeogénese e no metabolismo energético
oxidativo. Constituem também o principal local de síntese de ureia (visto que as substâncias
livremente difusíveis, como a amónia, absorvidas a partir da degradação das proteínas no
intestino, são extraídas, em grande parte, na zona 1). Por outro lado, os hepatócitos da zona 3
são mais ativos na glicólise e na lipogénese (processos que exigem menor quantidade de
oxigénio). Os hepatócitos da zona 2 exibem atributos das células das zonas 1 e 3.

C. Captação mediada por recetores

A zonalidade funcional aplica-se apenas aos processos realizados na presença de substâncias


difusíveis. Todavia, o fígado também está envolvido em numerosas vias que participam da
captação mediada por recetores e do transporte ativo de substâncias que são incapazes de
sofrer livre difusão nas células. Essas substâncias penetram em qualquer hepatócito que tenha
os transportadores apropriados, independentemente da zona em que se encontra. De forma
semelhante, as substâncias altamente ligadas a proteínas para as quais o fígado não possui
recetores também são depuradas de modo precário pelos hepatócitos de todas as três zonas.

Hepatócitos: células polarizadas com segregação de funções

As superfícies de um hepatócito não são todas iguais. Um dos lados, a superfície apical, forma
a parede do canalículo biliar, enquanto a superfície basolateral está em contato com a corrente
sanguínea através dos sinusóides. O domínio
lateral é delimitado pelas duas outras
superfícies. São observadas atividades muito
diferentes nessas regiões da membrana
plasmática do hepatócito; as junções íntimas
existentes entre os hepatócitos servem para
manter a segregação de domínios da membrana
plasmática apical e da basolateral. Os processos
relacionados com o transporte e a excreção de
bílis atuam na membrana plasmática apical. A
captação e a secreção na corrente sanguínea são
atividades que ocorrem através da membrana basolateral.

Efeitos da disfunção dos hepatócitos

Não existe nenhuma delimitação bem definida entre as consequências do distúrbio das funções
apicais e basolaterais. A colestase, apesar de inicialmente ser um distúrbio do fluxo biliar apical,
manifesta-se, em última análise, na superfície basolateral. Com efeito, é nessa superfície que a
bilirrubina e outras substâncias excretadas através da membrana plasmática apical na bílis
devem ser inicialmente captadas da corrente sanguínea. De forma semelhante, qualquer
alteração do metabolismo energético ou da síntese de proteínas, apesar de envolver
inicialmente processos secretores e metabólicos do hepatócito, irá afetar, em última análise, o
mecanismo de transporte biliar na membrana plasmática apical.

Capacidade de regeneração

Embora o fígado normal contenha um nº muito pequeno de células em fase de mitose, quando
ocorre perda de hepatócitos, a proliferação dos hepatócitos remanescentes é estimulada por
mecanismos que ainda não estão bem elucidados. Isso explica por que, na maioria dos casos de
insuficiência hepática fulminante com morte hepatocelular intensa, a recuperação é completa
se o paciente sobreviver ao período agudo de disfunção hepática (habitualmente com terapia
clínica no hospital). De forma semelhante, a ressecção cirúrgica de tecido hepático é seguida de
proliferação dos hepatócitos remanescentes (hiperplasia). Numerosos fatores de crescimento
(HGF, TGF-α) e citocinas (TNF, IL-1, IL-6) estão envolvidos em manter o fígado num estado
contínuo entre proliferação e morte celulares.

FLUXO SANGUÍNEO HEPÁTICO E A SUA BASE CELULAR

O fluxo sanguíneo portal, por ser de natureza venosa, encontra-se normalmente sob baixa
pressão hidrostática (cerca de 10 mmHg). Por conseguinte, é necessário que haja pouca
resistência ao seu fluxo no interior do fígado, permitindo ao sangue permear através dos
sinusóides e ter contato máximo — para a troca de substâncias — com os hepatócitos. As
fenestrações nas células endoteliais e a ausência de uma membrana basal típica entre as
células endoteliais e os hepatócitos auxiliam a tornar o fígado um circuito de baixa pressão para
o fluxo de sangue portal. As fenestrações são espaços entre as células endoteliais que permitem
a passagem do plasma e proteínas, mas não de eritrócitos.

Essas características encontram-se alteradas na cirrose, resultando em elevação da pressão


portal e em profundas alterações do fluxo sanguíneo hepático.

FISIOLOGIA
Produção de energia e interconversão de substratos

A. Metabolismo dos glícidos

Depois de uma refeição, o fígado responde


por um consumo efetivo de glicose (p. ex.,
para a síntese de glicogénio e a geração de
intermediários metabólicos através da
glicólise e do ciclo do ácido tricarboxílico).
Isso ocorre em consequência da
confluência de diversos efeitos: em
primeiro lugar, com o aumento nos níveis
de substratos, como a glicose, e em
segundo lugar, os níveis das hormonas que
afetam a quantidade e a atividade das
enzimas metabólicas modificam-se. Por
conseguinte, quando o nível de glicemia
aumenta, verifica-se também um aumento
na relação entre insulina e glicagina na corrente sanguínea. O efeito final consiste em aumento
da utilização de glicose pelo fígado.

No jejum (baixo nível de glicemia) ou durante situações de stress (quando há necessidade de


níveis mais altos de glicémia), os níveis de hormonas e substratos na corrente sanguínea
impulsionam as vias metabólicas do fígado responsáveis pela produção efetiva de glicose (p. ex.,
vias da glicogenólise e da gliconeogénese). Em consequência, os níveis de glicemia estão
elevados ou são mantidos dentro da faixa normal, apesar de alterações amplas e súbitas na taxa
de aporte de glicose (p. ex., ingestão e absorção) e saída da corrente sanguínea (p. ex., utilização
pelos tecidos).

B. Metabolismo dos lípidos

O fígado é o centro do metabolismo dos lípidos. É


responsável por quase 80% do colesterol sintetizado
no organismo a partir de acetil-CoA, através de uma
via que liga o metabolismo da glicose aos lípidos. Para
além disso, o fígado pode sintetizar, armazenar e
exportar TAG. Ele também é o local de produção de
cetoácidos através da via de oxidação dos ácidos
gordos, que liga o catabolismo dos lípidos com a
atividade do ciclo do ácido tricarboxílico. No processo
de controlo dos níveis de colesterol e TAG no corpo, o
fígado organiza, secreta e capta várias partículas de
lipoproteínas. A gordura ingerida na dieta é absorvida
no intestino delgado e organizada em quilomicras.
Após remoção dos TAG, as quilomicras
remanescentes são captadas pelo fígado através da
endocitose mediada por recetores LDL. Para
distribuição de lípidos sistemicamente, são
secretadas lipoproteínas de densidade muito baixa
[VLDL], que servem para distribuir os lípidos no tecido
adiposo para armazenamento na forma de gordura,
ou em outros tecidos para uso imediato. Durante essas funções, a estrutura das partículas de
VLDL é modificada pela perda de componentes lipídicos e proteicos. As partículas resultantes de
lipoproteína de baixa densidade (LDL) retornam, então, ao fígado, e são captadas pelo recetor
de LDL. Outras partículas de lipoproteínas (lipoproteínas de alta densidade [HDL]) são
sintetizadas e secretadas pelo fígado. Eliminam o excesso de colesterol e de TAG de outros
tecidos e da corrente sanguínea, que retornam ao fígado, onde são excretados. Por conseguinte,
tanto a secreção de HDL quanto a remoção de LDL são mecanismos pelos quais o excesso de
colesterol, acima do necessário por vários tecidos, é removido da circulação.

C. Metabolismo das proteínas

O fígado constitui um importante local onde ocorrem


processos de desaminação oxidativa e transaminação. Essas
reações permitem que os grupos amino sejam distribuídos
entre moléculas para gerar substratos para o metabolismo dos
glícidos e para a síntese de aminoácidos. De modo semelhante,
o ciclo da ureia assegura a excreção de nitrogénio na forma de
ureia, que é muito menos tóxica do que os grupos amino livres
na forma de iões amónia.

Síntese e secreção de proteínas plasmáticas


O fígado produz e secreta muitas das proteínas encontradas no plasma, incluindo albumina,
vários dos fatores da coagulação, diversas proteínas de ligação e até mesmo certas hormonas e
precursores hormonais. Em virtude das ações dessas proteínas, o fígado desempenha
importantes funções na manutenção da pressão oncótica do plasma (albumina sérica),
coagulação (síntese e modificação dos fatores da coagulação), pressão arterial
(angiotensinogénio), crescimento (fator de crescimento 1 semelhante à insulina) e metabolismo
(proteínas de ligação de esteróides e de thyroid hormone-binding proteins).

Funções de solubilização, transporte e armazenamento

O fígado desempenha um importante papel na solubilização, no transporte e no


armazenamento de uma variedade de substâncias muito diferentes, cuja obtenção ou entrada
e saída das células seriam, de outro modo, difíceis para os tecidos.

O fígado possui células específicas para o desempenho dessas funções, produzindo proteínas
especializadas que atuam como recetores, proteínas de ligação ou enzimas.

A. CIRCULAÇÃO ENTEROHEPÁTICA DOS ÁCIDOS BILIARES

A bílis é uma substância sintetizada pelo fígado e permite que uma variedade de substâncias
insolúveis seja dissolvida em meio aquoso para o seu transporte para dentro ou para fora do
corpo. Os ácidos biliares, que constituem um importante componente da bílis, são reciclados
através da circulação enterohepática entre o fígado e o intestino. Após a sua síntese e transporte
ativo do citoplasma dos hepatócitos para o canalículo biliar (pela membrana plasmática apical
do hepatócito), a bílis é coletada no trato biliar (e, algumas vezes, é armazenada na vesícula
biliar) e excretada, através do ducto colédoco, no duodeno. Enquanto ainda estão no citoplasma
dos hepatócitos, muitos ácidos biliares são conjugados com açúcares, aumentando a sua
hidrossolubilidade. Uma vez no duodeno, os ácidos biliares servem para solubilizar os lípidos,
facilitando a digestão e a absorção das gorduras. No íleo terminal, os ácidos biliares, tanto
conjugados quanto não conjugados, são captados e transportados dos enterócitos até ao fluxo
sanguíneo portal. O sangue portal devolve esses ácidos biliares ao fígado, onde transportadores
especializados de ácidos biliares (predominantemente o co-transportador de taurocolato sódico
ou Ntcp) os transferem para o citosol do hepatócito, pela membrana plasmática basolateral
voltada para o espaço de Disse. No espaço de Disse, são submetidos a reconjugação e secreção
pela membrana apical, juntamente com outros componentes (p. ex., pigmento, colesterol) para
a formação de nova bílis. Daí em diante, começa outro ciclo de transporte enterohepático.

B. METABOLISMO E EXCREÇÃO DE FÁRMACOS

As enzimas que catalisam os processos metabólicos necessários para a destoxificação e a


excreção de fármacos e outras substâncias localizam-se, na sua maioria, no retículo
endoplasmático liso dos hepatócitos. Essas vias são utilizadas não apenas para o metabolismo
de fármacos exógenos, mas também para muitas substâncias endógenas, cuja excreção pelas
células seria, de outro modo, difícil (p. ex., bilirrubina e colesterol). Na maioria dos casos, esse
metabolismo envolve a conversão de substâncias lipofílicas (hidrofóbicas)(cuja excreção pelas
células é difícil, uma vez que tendem a distribuir-se nas membranas celulares) em substâncias
mais hidrofílicas (polares). Esse processo envolve a catálise de modificações covalentes para que
a substância tenha mais cargas elétricas, de modo que irá se distribuir mais facilmente em meio
aquoso ou, pelo menos, será solubilizada o suficiente na bílis. Em consequência desses
processos, que, no seu conjunto, são denominados biotransformações, algumas substâncias que
seriam retidas nas membranas celulares podem ser excretadas diretamente na urina ou
transportadas na bílis para excreção nas fezes.

C. FASES DA BIOTRANSFORMAÇÃO

Em geral, a biotransformação ocorre em duas fases. As reações de fase I envolvem oxidações-


reduções, em que um grupo funcional contendo oxigénio é adicionado à substância a ser
excretada. Embora a oxidação em si não tenha necessariamente um importante efeito sobre a
hidrossolubilidade, ela introduz habitualmente no fármaco um “ponto” reativo, que faz com que
outras reações possam tornar a substância modificada hidrossolúvel. Em geral, as reações de
fase II envolvem a fixação covalente do fármaco a uma molécula transportadora hidrossolúvel,
como o ácido glicurónico ou a glutationa. Infelizmente, ao tornar as substâncias mais
quimicamente reativas, as reações de oxidação de fase I com frequência convertem fármacos
levemente tóxicos em intermediários reativos de maior toxicidade. Se a conjugação pelas
enzimas de fase II estiver comprometida por alguma outra razão, o intermediário reativo pode,
algumas vezes, reagir com outras estruturas celulares, causando a sua lesão.

D. PAPEL DA APOLIPOPROTEÍNA NA SOLUBILIZAÇÃO E NO TRANSPORTE DE LÍPIDOS

O corpo necessita de um mecanismo que torne os lípidos disponíveis para vários tecidos (p. ex.,
a síntese das membranas), e de outro mecanismo que possa remover qualquer excesso de
lípidos não utilizados pelos tecidos. Para que esses processos ocorram, o lípido precisa de ser
solubilizado numa forma dispersa, que possa ser transportada pela corrente sanguínea. Para
esse propósito, os hepatócitos sintetizam uma classe de apolipoproteínas especializadas. As
apolipoproteínas organizam-se numa variedade de partículas de lipoproteínas, que transportam
lípidos de vários tecidos pela endocitose mediada por recetores.

E. PAPEL NA PRODUÇÃO DE PROTEÍNAS DE LIGAÇÃO

Diversas células no fígado sintetizam proteínas que se ligam a determinadas substâncias (p. ex.,
algumas vitaminas, minerais e hormonas). Em alguns casos, isso permite o transporte dessas
substâncias na corrente sanguínea, onde não seriam solúveis se não fosse a sua ligação (p. ex.,
esteróides ligados à globulina de ligação de esteróides, que é sintetizada e secretada pelos
hepatócitos). Em outros casos, as proteínas de ligação sintetizadas pelo fígado (p. ex., globulina
de ligação da hormona da tiroide) asseguram o transporte de substâncias específicas (p. ex.,
tiroxina) numa forma que não é totalmente acessível aos tecidos. Dessa maneira, a
concentração efetiva da substância limita-se à sua concentração livre em equilíbrio, e a fração
ligada forma um reservatório da substância, que se torna lentamente disponível à medida que
a fração livre é metabolizada, prolongando, assim, a sua semi-vida.

Em alguns casos, as proteínas de ligação permitem a acumulação, no fígado, de substâncias


específicas em concentrações relativamente altas e o seu armazenamento numa forma não
tóxica. Por exemplo, o ferro livre pode ser muito tóxico para as células; cabe ao fígado a
responsabilidade de produzir uma variedade de proteínas cruciais para a ligação e o
metabolismo do ferro. Por meio das ações dessas proteínas, o corpo retém o ferro necessário
sem permitir que um excesso de ferro livre possa causar lesão ou sustentar patogénios. A
transferrina é uma proteína de ligação do ferro, sintetizada e secretada na corrente sanguínea
pelo fígado. Com a ligação do ferro livre em pH normal, a transferrina sofre uma alteração
conformacional, conferindo-lhe uma alta afinidade por um recetor de membrana específico do
hepatócito (recetor de transferrina). Após ligação ao recetor, o complexo transferrina-recetor é
internalizado na via endocítica, num ambiente progressivamente mais ácido. Nesse ambiente,
de pH baixo, o ferro não permanece ligado à transferrina. No entanto, são observadas alterações
conformacionais em pH baixo, que permitem à transferrina manter a sua ligação de alta
afinidade ao recetor, mesmo na ausência de ferro ligado. Por conseguinte, quando o recetor é
reciclado para a superfície, ele transporta junto a transferrina “vazia”. Ao ser exposta ao pH de
7,4 da corrente sanguínea, a transferrina, na ausência de ferro ligado, é libertada do recetor, e
o ciclo pode então recomeçar mais uma vez. Dessa maneira, a transferrina e seu recetor mantêm
a corrente sanguínea sem ferro livre. Enquanto esse processo ocorre, o ferro livre liberado da
transferrina no ambiente ácido do endossoma é transportado para o citoplasma do hepatócito,
onde se liga à ferritina, uma proteína de armazenamento de ferro do citoplasma. Essa proteína
citoplasmática proporciona um reservatório, que pode ser mobilizado em resposta às
necessidades do corpo, mas que torna o ferro inacessível a patogénicos e impede que produza
efeitos tóxicos diretos. Ocorre uma dinâmica semelhante de proteínas de ligação plasmáticas,
recetores ou proteínas de armazenamento citosólicas com muitas outras substâncias, incluindo
vitaminas lipossolúveis e hormonas esteroides.

Embora as funções de solubilização sejam executadas, na sua maioria, nos hepatócitos, algumas
das funções de ligação e de armazenamento envolvem células acessórias. Assim, o
armazenamento da vitamina A ocorre em gotículas de gordura observadas nos lipócitos do
sistema reticuloendotelial, que foram implicados na patogénese da lesão hepática crónica e da
cirrose. A lesão de outras células liberta citocinas, que ativam os lipócitos. Os lipócitos
respondem por meio da proliferação e da síntese de colagénio e outros componentes da
membrana basal, levando a um aumento da matriz extracelular e contribuindo para o
desenvolvimento de fibrose hepática.

Funções de proteção e depuração

A. FUNÇÕES DE FAGOCITOSE E ENDOCITOSE NAS CÉLULAS DE KUPFFER

O fígado ajuda a remover as bactérias e os antigénios que ultrapassam as defesas do intestino


para penetrar no sangue portal, e também participa na remoção, da circulação, de resíduos
celulares de produção endógena. Existem recetores especializados sobre a superfície das células
de Kupffer que se ligam a glicoproteínas, a materiais recobertos por imunoglobulina (através do
recetor Fc) ou ao complemento (através do recetor C3), assegurando, assim, o reconhecimento
e a remoção de proteínas plasmáticas lesadas, de fatores da coagulação ativados, de
imunocomplexos, de eritrócitos senescentes, …

B. FUNÇÕES ENDOCÍTICAS DOS HEPATÓCITOS

Os hepatócitos possuem recetores específicos de proteínas plasmáticas lesadas, distintos dos


recetores observados nas células de Kupffer (p. ex., o recetor de assialoglicoproteína, que se liga
especificamente a glicoproteínas cujos resíduos terminais de ácido siálico açúcar foram
removidos). A importância fisiológica precisa dessa ação metabólica não foi esclarecida.

C. METABOLISMO DA AMÓNIA

A amónia gerada a partir da desaminação dos aminoácidos é metabolizada no interior dos


hepatócitos em ureia, uma substância muito menos tóxica. A perda dessa função resulta em
alteração no estado mental.

D. SÍNTESE DE GLUTATIONA PELOS HEPATÓCITOS


A glutationa constitui o principal reagente redutor intracelular, sendo crucial para impedir a
lesão oxidativa das proteínas celulares. Essa molécula consiste num tripéptido (γ-glutamil-
cistinil-glicina) sintetizado fora dos ribossomas, que também atua como substrato para muitas
reações de conjugação e destoxificação de fármacos de fase II. O fígado também pode secretar
a glutationa para uso por outros tecidos.

Provas de função hepática

As determinações dos níveis de enzimas normalmente situadas dentro dos hepatócitos —


aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT) — são frequentemente denominadas
provas de função hepática. Por conseguinte, a presença dessas enzimas no soro constitui, na
realidade, um sinal de necrose dos hepatócitos, mais do que uma verdadeira indicação da função
hepática.

Para avaliar a função hepática mais diretamente, podem-se utilizar vários outros testes. Os
níveis de albumina, os fatores da coagulação e a bilirrubina podem ser determinados em
amostras de sangue. Cada um desses testes possui vantagens e desvantagens, e nenhum deles
proporciona um indicador ideal isolado da função hepática. Por exemplo, a albumina apresenta
semi-vida relativamente longa (2 semanas); a sua síntese pode ser estimulada além de suas
necessidades, e pode ocorrer perda de albumina pelos rins na presença de doença renal. Além
disso, cerca de 66% da albumina corporal estão localizados no espaço extracelular extravascular,
de modo que a ocorrência de alterações na distribuição dos líquidos pode alterar a concentração
sérica de albumina. De modo semelhante, a medida mais simples dos níveis de fatores da
coagulação, o tempo de protrombina (PT), é uma medida relativamente insensível, visto que só
se torna anormal quando ocorre perda de mais de 80% da capacidade de síntese hepática. Além
disso, a deficiência de vitamina K, que é observada em pacientes com privação nutricional,
colestase crónica ou má absorção de gordura, pode prolongar o PT. A bilirrubina sérica constitui
uma boa medida de colestase, e a determinação da bilirrubina conjugada (direta) versus não-
conjugada (indireta) permite estabelecer de modo satisfatório se a colestase é intrínseca ao
fígado ou causada exclusivamente por obstrução (p. ex., por um cálculo no ducto colédoco).
Além disso, a colestase, mesmo quando provocada por doença hepática, muitas vezes não
reflete o grau de perda de outras funções hepáticas, e pode ocorrer hiperbilirrubinemia não-
conjugada por outras razões (p. ex., hemólise).

Por esses motivos, a avaliação acurada da função hepática exige a realização de vários testes
sanguíneos (p. ex., AST, ALT, albumina, PT, bilirrubina), bem como uma avaliação clínica do
paciente.

Os 2 scores mais utilizados para avaliar a função hepática


são o score Child-Turcotte-Pugh modificado (CTP) e o score
Model for End-Stage Liver Disease (MELD). O score CTP
prediz a sobrevivência em 1-2 anos, e o socre MELD prediz
a curto prazo (3 meses).

DOENÇA HEPÁTICA

Tipos de disfunção hepática

As consequências clínicas da doença hepática podem ser consideradas em termos de falência


de uma das quatro principais funções do fígado ou de consequência de hipertensão portal, a
alteração do fluxo sanguíneo hepático na cirrose.
Disfunção dos hepatócitos

Um dos mecanismos da doença hepática, particularmente na lesão aguda do fígado, consiste


em disfunção dos hepatócitos. A via e a extensão da disfunção hepatocelular determinam as
manifestações específicas da doença hepática.

Hipertensão portal

Quando processos patológicos (p. ex., fibrose) resultam em elevação da pressão venosa intra-
hepática normalmente baixa, o sangue reflui, e uma considerável fração procura vias
alternativas de volta à circulação sistémica, transpondo, assim, o fígado. Por conseguinte, o
sangue do trato GI é filtrado com menos eficiência pelo fígado antes de passar para a circulação
sistémica. As consequências desse shunt portossistémico consistem em perda das funções de
proteção e de depuração do fígado, anormalidades funcionais na homeostasia renal do sal e da
água e acentuado aumento no risco de hemorragia GI, devido ao desenvolvimento de vasos
sanguíneos ingurgitados transportando sangue venoso que transpõe o fígado (varizes
esofágicas, gástricas, umbilicais, …).

Mesmo na ausência de qualquer doença hepática parenquimatosa intrínseca, o shunt


portossistémico pode produzir encefalopatia ou contribuir
para o seu desenvolvimento (alteração do estado mental em
consequência da incapacidade de remover toxinas
absorvidas pelo trato GI), hemorragia GI (em decorrência de
varizes esofágicas) e má absorção de gorduras e vitaminas
lipossolúveis (causada por perda da recirculação
enterohepática de bílis), com coagulopatia associada.

Fisiopatologia da zonalidade funcional

Como os hepatócitos da zona 1 recebem o sangue que


acabou de fluir pela vénula portal ou arteríola hepática, têm
acesso às maiores concentrações de diversas substâncias,
tanto boas (p. ex., oxigénio e nutrientes) quanto prejudiciais
(p. ex., fármacos e toxinas absorvidos pelo trato GI). Os
hepatócitos da zona 2 recebem sangue que contém uma
menor quantidade dessas substâncias, e os hepatócitos da
zona 3 são banhados em sangue destituído, em grande
parte, dessas substâncias. Todavia, os hepatócitos da zona 3
são os que recebem as maiores concentrações de produtos
(p. ex., metabólitos de fármacos) libertados na corrente
sanguínea pelos hepatócitos das zonas 1 e 2. Por
conseguinte, os venenos diretos têm o seu maior impacto
nos hepatócitos da zona 1, enquanto os venenos gerados em
consequência do metabolismo hepático causam mais lesão
nos hepatócitos da zona 3. De modo semelhante, como o
sangue sinusoidal que flui pela zona 3 possui a menor
concentração de oxigénio, os hepatócitos dessa zona são os
que correm maior risco de lesão em condições de hipóxia.
Manifestações da disfunção hepática

Diminuição da produção de energia e interconversão de substratos

A. Metabolismo dos glícidos

A doença hepática grave pode resultar em hipo ou em hiperglicemia. A hipoglicemia resulta de


uma diminuição da massa funcional de hepatócitos, enquanto a hiperglicemia decorre de shunt
portossistémico, que diminui a eficiência de extração pós-prandial de glicose do sangue portal
pelos hepatócitos, elevando, assim, a concentração sanguínea sistémica de glicose.

B. Metabolismo dos lípidos

A ocorrência de distúrbio do metabolismo dos lípidos no fígado pode resultar em síndromes de


acumulação de gordura no seu interior, no início da evolução da lesão hepática. Talvez isso se
deva ao facto de que as complexas etapas no acondicionamento das partículas de lipoproteínas
para a exportação do colesterol e dos TAG do fígado são mais sensíveis à rutura do que as vias
de síntese dos lípidos. Essa rutura resulta em aumento da gordura, que não pode ser exportada
na forma de VLDL.

Em certas doenças hepáticas crónicas, como a cirrose biliar primária, o fluxo de bílis diminui em
consequência da destruição dos ductos biliares. A diminuição do fluxo biliar resulta em redução
da depuração dos lípidos pela bílis, com consequente desenvolvimento de hiperlipidémia. Com
frequência, esses pacientes apresentam acumulações subcutâneas de colesterol, denominados
xantomas.

C. Metabolismo das proteínas

Qualquer distúrbio do metabolismo das proteínas no fígado pode resultar numa síndrome de
alteração do estado mental e confusão, conhecida como encefalopatia hepática. À semelhança
do metabolismo dos glícidos, a alteração do metabolismo das proteínas pode resultar de
insuficiência dos hepatócitos ou shunt portossistémico, tendo por efeito final uma elevação das
concentrações sanguíneas de toxinas de ação central, incluindo a amónia gerada pelo
metabolismo dos aminoácidos.

Perda das funções de solubilização e armazenamento

A. Distúrbio da secreção de bílis

Pode ser observada colestase — supressão da secreção de bílis — em muitas formas de doença
hepática. Pode ocorrer colestase em consequência de obstrução extra-hepática (p. ex., em
consequência de um cálculo biliar no ducto colédoco) ou de disfunção seletiva no mecanismo
de síntese e secreção da bílis no interior dos próprios hepatócitos (p. ex., em consequência de
uma reação a certos fármacos). Os mecanismos responsáveis pelas reações colestáticas a
fármacos ainda não estão bem elucidados. Todavia, independentemente do mecanismo
envolvido, as consequências clínicas da colestase grave podem ser profundas: a supressão da
secreção de bílis leva a uma incapacidade de solubilizar substâncias, como lípidos da dieta e
vitaminas lipossolúveis, resultando em má absorção e estados de deficiência, respetivamente.
Os sais biliares retidos também são citotóxicos; no entanto, na presença de colestase, os
hepatócitos adaptam-se e diminuem a captação de sais biliares através da infra-regulação de
Ntcp, porém mantendo a excreção de sais biliares. Em consequência, a necrose hepática é
minimizada nas síndromes predominantemente colestáticas, e os achados laboratoriais típicos
consistem em elevações mínimas dos níveis de AST e de ALT na presença de icterícia
pronunciada e de altos níveis de bilirrubina. Todavia, a exposição prolongada a sais biliares nas
doenças colestáticas crónicas, como a cirrose biliar primária, leva a uma lesão citotóxica e à
inflamação dos tratos portais, resultando em fibrose e cirrose.

Na colestase, as substâncias endógenas que são normalmente excretadas pelo trato biliar
podem acumular-se, atingindo níveis elevados. Uma dessas substâncias é a bilirrubina, um
produto de degradação do heme. A elevação da bilirrubina resulta em icterícia, que consiste em
pigmentação amarela das escleróticas e da pele. No adulto, o aspeto mais significativo da
icterícia reside na sua utilização como índice facilmente monitorado de colestase, que pode
ocorrer isoladamente ou em associação a outras anormalidades da função do hepatócito (i. e.,
como parte do quadro da hepatite aguda). Todavia, no recém-nascido, as concentrações
elevadas de bilirrubina podem ser tóxicas para o sistema nervoso em desenvolvimento,
produzindo uma síndrome denominada Kernicterus.

O colesterol é normalmente excretado através de conversão em ácidos biliares ou formação de


complexos, denominados micelas, com ácidos biliares preexistentes (reciclados). Na colestase,
a consequente elevação dos ácidos biliares pode levar à sua deposição na pele. Acredita-se que
isso seja responsável pelo intenso prurido. A alteração da neurotransmissão mediada por
opióides endógenos pode ser responsável pelo prurido, em lugar da deposição de ácidos biliares
na pele. Os distúrbios da produção de bílis constituem uma base da formação de cálculos biliares
de colesterol. Todavia, conforme assinalado anteriormente, as outras funções dos hepatócitos
estão, com frequência, relativamente bem preservadas apesar da colestase significativa.

A hemólise causa hiperbilirrubinémia não-conjugada, uma vez que a capacidade do fígado de


captar a bilirrubina e conjugá-la é ultrapassada. A síndrome de Gilbert reflete um defeito
genético na conjugação da bilirrubina. Por conseguinte, os achados no sangue e na urina diferem
daqueles observados na icterícia hemolítica, embora a via do metabolismo da bilirrubina esteja
afetada num ponto inicial semelhante. A obstrução do trato biliar extra-hepático exibe o outro
extremo, uma vez que a via efetiva de formação da bílis está totalmente intacta, pelo menos no
início. Na presença de obstrução, os níveis de bilirrubina na urina estão elevados, visto que o
metabólito acumulado é conjugado e, consequentemente, há muito mais bilirrubina
hidrossolúvel do que não-conjugada, que se acumula na hemólise. As formas de icterícia que
resultam de disfunção hepática causada por lesão hepatocelular refletem, na sua maioria, graus
variáveis de superposição entre hiperbilirrubinémia não-conjugada e conjugada.

B. Comprometimento da destoxificação dos fármacos

Os mecanismos de destoxificação dos fármacos apresentam duas características de importância


clínica particular:
• Indução enzimática. Foi constatado que a presença, na corrente sanguínea, de
qualquer um dos grandes grupos de fármacos inativados pelas enzimas de fase I
aumenta a quantidade e a atividade dessas enzimas no fígado. Essa propriedade de
indução enzimática possui um sentido fisiológico (como resposta à necessidade do
corpo de um aumento da biotransformação), mas também pode ter efeitos
indesejáveis: um paciente com consumo crónico de grandes quantidades de uma
substância metabolizada por enzimas na fase I (p. ex., etanol) irá induzir níveis elevados
dessas enzimas e, portanto, acelerar o metabolismo de outras substâncias
metabolizadas pelas mesmas enzimas de destoxificação (p. ex., medicamentos
anticonvulsivantes ou anticoagulantes, resultando em níveis sanguíneos
subterapêuticos).
• As reações de fase I com frequência convertem compostos relativamente benignos
em produtos mais reativos e, portanto, mais tóxicos. Normalmente, essa reatividade
aumentada dos produtos de reação de fase I serve para facilitar as reações de fase II,
tornando o processo de destoxificação mais eficiente. Todavia, em certas condições nas
quais há comprometimento das reações de fase II (p. ex., na deficiência de glutationa
em decorrência de nutrição inadequada), a atividade contínua das enzimas de fase I
pode causar maior lesão hepática. A razão disso é que os produtos de muitas reações
de fase I, na ausência de glutationa, reagem com componentes celulares, causando a
sua lesão. Essa lesão mata rapidamente os hepatócitos.

Por conseguinte, os efeitos


combinados de certas condições
comuns podem tornar o indivíduo
anormalmente sensível aos efeitos
tóxicos dos fármacos. Por exemplo, a
combinação de uma atividade de fase I
induzida (p. ex., causada pelo
alcoolismo) com uma baixa atividade
de fase II (p. ex., provocada por baixos
níveis de glutationa em consequência
de privação nutricional) pode resultar
em geração aumentada de
intermediários reativos, com
capacidade inadequada de conjugá-los
e destoxificá-los. Um exemplo clássico
desse fenómeno é a toxicidade do
acetaminofeno/paracetamol. Uma
quantidade pequena de apenas 2,5 g
de paracetamol pode provocar uma
lesão hepática significativa nesses
indivíduos suscetíveis, enquanto os
indivíduos normais têm a capacidade
de destoxificar 10 g/dia ou mais.
C. Dinâmica das lipoproteínas e dislipidémias

O papel desempenhado pelo fígado no metabolismo dos lípidos é ilustrado pelo defeito genético
responsável pela hipercolesterolemia familiar. Nesse contexto, a ausência de um recetor de LDL
funcional torna o fígado incapaz de depurar o LDL-colesterol da corrente sanguínea, resultando
em acentuada elevação dos níveis séricos de colesterol, bem como aterosclerose e
coronariopatia aceleradas. Os heterozigóticos com um alelo do recetor de LDL normal podem
ser tratados com fármacos (p. ex., inibidores da HMG-CoA redutase) que inibem a síntese de
colesterol endógeno e que, portanto, exercem uma supra-regulação nos níveis de recetor de
LDL. Por outro lado, não existe nenhum tratamento farmacológico efetivo para os
homozigóticos, visto que não apresentam nenhum recetor de LDL normal. O transplante de
fígado constitui um tratamento efetivo para a hipercolesterolemia familiar homozigótica,
porque fornece um fígado geneticamente diferente com recetores de LDL normais.

Nas doenças hepáticas adquiridas, o nível sérico de colesterol apresenta-se elevado na


obstrução do trato biliar, devido ao bloqueio da excreção de colesterol na bílis, enquanto está
diminuído na cirrose alcoólica grave, em que a má absorção de gordura impede o aporte de
colesterol.

D. Alteração das funções hepáticas de ligação e armazenamento

A doença hepática afeta a capacidade do fígado de armazenar diversas substâncias. Em


consequência, os pacientes com doença hepática correm alto risco de desenvolver certos
estados de deficiência, como a deficiência de ácido fólico e de vitamina B12. Como essas
vitaminas são necessárias para a síntese de DNA, a sua deficiência resulta em anemia
macrocítica (baixa contagem de eritrócitos, com presença de grandes eritrócitos refletindo uma
maturação nuclear anormal), um achado comum em pacientes com doença hepática.

Diminuição da síntese e secreção de proteínas plasmáticas

A importância clínica da síntese e da secreção hepáticas de proteínas provém da ampla


variedade de funções desempenhadas por essas proteínas. Por exemplo, como a albumina
constitui a principal proteína que contribui para a pressão oncótica do plasma, o
desenvolvimento de hipoalbuminémia em consequência de doença hepática ou de deficiência
nutricional manifesta-se com formação acentuada de edema. Outras proteínas importantes,
que são sintetizadas e secretadas pelo fígado, incluem fatores da coagulação e proteínas de
ligação de hormonas.

Perda das funções de proteção e de depuração

Uma função protetora do fígado consiste na sua atuação como filtro do sangue proveniente do
trato GI, através do qual são removidas várias substâncias do sangue portal antes de seu retorno
à circulação sistémica.

A. Depuração de bactérias e endotoxinas

A depuração de bactérias pelas células de Kupffer do fígado constitui a linha final de defesa na
eliminação de bactérias intestinais da circulação sistémica. A perda dessa capacidade na doença
hepática em consequência de shunt portossistémico pode ajudar a explicar por que as infeções
em pacientes com doença hepática grave podem tornar-se rapidamente sistémicas, resultando
em sépsis.

B. Alteração do metabolismo da amónia


O comprometimento da capacidade do fígado de destoxificar a amónia em ureia leva ao
desenvolvimento de encefalopatia hepática, que se manifesta como alteração do estado
mental.

A amónia é a neurotoxina melhor caracterizada que precipita encefalopatia. É produzida pela


desaminação da glutamina pela glutaminase nos enterócitos do intestino delgado e do cólon,
mas também pode ser produzida por hidrólise da ureia via catabolismo bacteriano de fontes de
nitrogénio, incluindo proteínas da dieta e ureia. Normalmente o fígado converte toda a amónia
que chega via veia porta em glutamina, impedindo a entrada de amónia na circulação sistémica.
O aumento da amónia na corrente sanguínea pode ser uma consequência direta de alteração
da função hepática (por disfunção hepatocelular aguda ou doença crónica progressiva) e/ou por
shunt portossistémico significativo, com consequente bypass dos mecanismos de clearance do
fígado.

Os precipitantes do aumento dos níveis de amónia na circulação incluem:

• Aumento do intake de proteínas (hidrólise da ureia via catabolismo bacteriano de fontes


de nitrogénio)
• Hemorragia GI (o aumento dos níveis de amónia é produzido pela quebra de proteínas
do sangue por micróbios do TGI)
• Resposta inflamatória sistémica à infeção (estimulação da libertação de citocinas pró-
inflamatórias e do catabolismo proteico endógeno, levando a aumento da produção de
amónia)

Portanto, uma vez que se exclua a ingestão de proteínas, o desenvolvimento de encefalopatia


num paciente com doença hepática crónica implica a investigação de uma possível hemorragia
GI aguda, bem como uma infeção. Enquanto se espera pelos resultados dos exames diagnósticos
(hemoglobina sérica, hematócrito, culturas de sangue, urina e líquido ascítico), a terapêutica
tem como objetivo diminuir a absorção de amónia e de outras substâncias nocivas no trato GI.
Quando o paciente recebe lactulose, um carboidrato não-absorvível, cujo metabolismo pelos
micróbios cria um ambiente ácido, a amónia é retida na forma de NH4+ no lúmen intestinal e
excretada pela diarreia osmótica resultante. Assim, é possível impedir que essa toxina penetre
na circulação portal, com melhoria gradual do estado mental do paciente. A lactulose também
seleciona uma flora bacteriana intestinal que produz menos amónia. Antibióticos, em particular
rifaximina, são usados em conjugação com a lactulose no tratamento da encefalopatia hepática.
Pensa-se que os antibióticos atuem ao diminuir a produção e absorção intestinal de amónia via
modulação da microbiota intestinal e prevenção da translocação bacteriana ao longo da mucosa
intestinal.

Para além disso, o consequente nível sanguíneo elevado de amónia e de outros compostos
nitrogenados pode exercer uma supra-regulação dos recetores periféricos para produtos
endógenos semelhantes às benzodiazepinas. Esses efeitos podem contribuir para a alteração da
hemodinâmica sistémica na doença hepática.

C. Alteração da depuração de hormonas na doença hepática

Em condições normais, o fígado remove da corrente sanguínea a fração de hormonas esteróides


que não estão ligadas à globulina de ligação das hormonas esteróides. Após a captação pelos
hepatócitos, esses esteróides são oxidados, conjugados e excretados na bílis, onde uma fração
sofre circulação entero-hepática. Na doença hepática acompanhada de shunt portossistémico
significativo, a depuração das hormonas esteróides encontra-se diminuída, ocorre
comprometimento da extração da fração de circulação entero-hepática, e a conversão
enzimática dos androgénios em estrogénios (aromatização periférica) está aumentada. O efeito
final consiste em elevação dos níveis sanguíneos de estrogénio, o que, por sua vez, altera a
síntese e a secreção de proteínas pelo hepatócito e aumenta a atividade microssomal P450. A
síntese de algumas proteínas hepáticas aumenta, enquanto a de outras torna-se diminuída. A
atividade do P450 aumenta quando o fígado tenta compensar parcialmente os níveis sanguíneos
mais elevados de estrogénio por meio de um aumento do seu metabolismo. Por conseguinte,
os indivíduos do sexo masculino com doença hepática exibem supressão tanto gonadal quanto
hipofisária, bem como feminização.

Equilíbrio do sódio e água

Os pacientes com doença hepática frequentemente


apresentam anormalidades e complicações renais, mais
comumente retenção de sódio e dificuldade na excreção de
água. Aparentemente, não há lesão renal intrínseca; as
anormalidades renais associadas à doença hepática são
funcionais e ocorrem em consequência de uma alteração da
pressão intravascular induzida pela doença hepática e,
talvez, devido aos níveis elevados de óxido nítrico ou à perda
de fatores ainda pouco elucidados, que são secretados pelo
fígado ou endotélio. Quaisquer que sejam os mecanismos
homeostáticos envolvidos, o volume intravascular é
percebido como inadequado quando, na realidade, esse
volume só apresenta uma distribuição imprópria. Os mecanismos renais de retenção de sal e de
água são então estimulados para corrigir um estado percebido como depleção de volume. Os
pacientes com doença hepática grave correm risco de insuficiência renal por causa dessas
alterações hemodinâmicas.

FISIOPATOLOGIA DE DOENÇAS HEPÁTICAS ESPECÍFICAS

HEPATITE AGUDA

A hepatite aguda é um processo inflamatório que leva à morte dos hepatócitos por necrose ou
por apoptose. A hepatite aguda é mais comumente causada por infeção por vários tipos de vírus.
Embora esses agentes virais possam ser diferenciados pelos testes laboratoriais serológicos com
base nas suas propriedades antigénicas, todos produzem doenças clinicamente semelhantes.
Outros agentes infecciosos menos comuns também podem resultar em lesão hepática. A
hepatite aguda também é, algumas vezes, causada por exposição a fármacos (p. ex., isoniazida)
ou venenos (p. ex., etanol).

Apresentação clínica

A gravidade da doença na hepatite aguda varia desde assintomática e clinicamente inaparente


até fulminante e fatal. A manifestação da hepatite aguda pode ser muito variável. Alguns
pacientes são relativamente assintomáticos, sendo as anormalidades presentes apenas
detetadas por exames laboratoriais. Outros podem exibir uma variedade de sinais e sintomas,
incluindo anorexia, fadiga, perda de peso, náuseas, vómitos, dor abdominal no quadrante
superior direito, icterícia, febre, esplenomegalia e ascite. A extensão da disfunção hepática
também pode variar enormemente, exibindo uma correlação aproximada com a gravidade da
lesão hepática. A extensão relativa da colestase versus necrose dos hepatócitos também é
altamente variável.

Inter-relação potencial entre hepatite aguda, hepatite crónica e cirrose:

Etiologia

A. Hepatite viral

A hepatite aguda é comumente causada por um de cinco vírus principais:

• Vírus da hepatite A
o O HAV, um pequeno vírus de RNA, causa doença hepática pela destruição direta
dos hepatócitos e resposta imune do hospedeiro aos hepatócitos infetados. É
transmitido de indivíduos infetados por via orofecal. Embora a maioria dos
casos seja leve, a hepatite A provoca, em certas ocasiões, insuficiência hepática
fulminante e necrose hepatocelular intensa, resultando em morte.
Independentemente da sua gravidade, os pacientes que se recuperam fazem-
no completamente, sem qualquer evidência de doença hepática residual, e
possuem anticorpos que os protegem de uma reinfeção.
• Vírus da hepatite B
o O HBV é um vírus de DNA transmitido por contato sexual ou pelo contato com
sangue ou outros líquidos orgânicos infetados. Esse vírus não mata as células
que infecta → os hepatócitos infetados morrem quase exclusivamente em
consequência do ataque do sistema imune após reconhecimento dos antigénios
virais sobre a sua superfície. Embora os casos de hepatite B sejam, em sua
maioria, assintomáticos ou só produzam doença leve antes da eliminação do
vírus, uma resposta imune excessiva pelo hospedeiro pode provocar
insuficiência hepática fulminante. Num nº ainda menor de pacientes —
tipicamente os que apresentam doença aguda leve —, a resposta imune é
inadequada para eliminar o vírus por completo, e verifica-se o desenvolvimento
de hepatite crónica.
• Vírus da hepatite C
o O HCV também é transmitido por contacto com sangue ou fluidos corporais, e
produz uma forma de hepatite semelhante à infeção pelo HBV, porém com uma
proporção bem maior de casos (70 a 85%) que progridem para a hepatite
crónica. A infeção aguda pode ser leve a moderada, mas normalmente é
assintomática. O HCV pode levar a cirrose e carcinoma hepatocelular
normalmente décadas após a infeção.
• Vírus da hepatite D
o O HDV, também conhecido como agente delta, é um vírus de RNA defeituoso,
que necessita das funções auxiliares do HBV para causar infeção. Por
conseguinte, os indivíduos cronicamente infetados pelo HBV correm alto risco
de infeção pelo HDV, enquanto os que foram vacinados contra o HBV não
apresentam nenhum risco. A infeção pelo HDV causa uma forma muito mais
grave de hepatite, tanto em termos de proporção de casos fulminantes, quanto
na percentagem de casos que progridem para a hepatite crónica.
• Vírus da hepatite E (HEV): é um vírus RNA com via de transmissão fecal-oral. A
apresentação clínica é geralmente benigna e autolimitada, semelhante à hepatite A,
mas a infeção por HEV pode resultar em falência hepática aguda em grávidas.

Outros vírus que podem causar hepatite aguda incluem o vírus Epstein-Barr (que causa a
mononucleose infecciosa), o citomegalovírus, o herpesvírus simples, o vírus da rubéola e o vírus
da febre amarela.
B. Hepatite tóxica

A maioria dos casos de doença hepática induzida por fármacos ocorre como hepatite aguda,
embora alguns se manifestem na forma de colestase ou exibam outros padrões.

A incidência da hepatite fármaco-induzida está a aumentar; na atualidade, o paracetamol


constitui a causa mais comum de hepatite fulminante nos EUA e no Reino Unido.

As toxinas hepáticas podem ser ainda subdivididas em substâncias cuja toxicidade é previsível e
dependente da dose na maioria dos indivíduos (p. ex., paracetamol) e naquelas que causam
reações imprevisíveis (idiossincráticas),
sem qualquer relação com a dose.

As reações idiossincráticas a fármacos


podem ser causadas por uma
predisposição genética em indivíduos
suscetíveis a determinadas vias do
metabolismo de fármacos que geram
intermediários tóxicos. Os inibidores da
HMG-CoA redutase, como
atorvastatina, lovastatina e outros,
estão associados a níveis elevados de
transaminases em menos de 3% dos
pacientes e a poucos casos de
insuficiência hepática aguda.

Os mecanismos de lesão hepática induzida


por fármacos ainda não são
completamente percebidos.
A evolução temporal da hepatite aguda é altamente
variável. Na hepatite A, a icterícia é tipicamente
observada em 4 a 8 semanas após a exposição, ao
passo que, na hepatite B, a icterícia ocorre
habitualmente em 8 a 20 semanas após a exposição.
Tipicamente, a hepatite induzida por fármacos e
toxinas ocorre a qualquer momento, durante ou
pouco após a exposição, e sofre resolução com a
interrupção do agente agressor. Esse é
habitualmente o caso para as reações
idiossincráticas e dependentes da dose. A hepatite
aguda tipicamente regride em 3 a 6 meses. A lesão
hepática que prossegue por mais de 6 meses é
arbitrariamente definida como hepatite crónica e
sugere, na ausência de exposição contínua a um
agente nocivo, a atuação do sistema imune ou de
outros mecanismos.

Patogénese

A. Hepatite viral

Os agentes virais responsáveis pela hepatite aguda infetam em primeiro lugar os hepatócitos.
Durante o período de incubação, a intensa replicação do vírus nas células hepáticas leva ao
aparecimento de componentes virais (inicialmente, antigénios; posteriormente, anticorpos) na
urina, nas fezes e nos líquidos orgânicos. Em seguida, ocorre morte dos hepatócitos e resposta
inflamatória associada, seguidas de alterações nas provas de função hepática e aparecimento
de vários sinais e sintomas de doença hepática.

1. Lesão hepática — a resposta imunológica do hospedeiro desempenha um papel


importante, embora não totalmente elucidado, na patogénese da lesão hepática. Por
exemplo, na hepatite B, o vírus provavelmente não é diretamente citopático. Com
efeito, existem portadores assintomáticos do HBV que apresentam função hepática e
características histológicas normais. Por outro lado, a resposta imune celular do
hospedeiro desempenha um importante papel na produção de lesão celular hepática.
Os pacientes com defeitos da imunidade celular têm mais tendência a apresentar
infeção crónica pelo HBV do que curar-se da infeção. As amostras histológicas de
pacientes com lesão hepática relacionada com o HBV revelam linfócitos adjacentes às
células hepáticas necróticas. Acredita-se que os linfócitos T citolíticos tornam-se
sensibilizados e passam a reconhecer antigénios do vírus da hepatite B (p. ex., pequenas
quantidades do antigénio de superfície da hepatite B [HBsAg]) e antigénios do
hospedeiro sobre a superfície das células hepáticas infetadas pelo HBV.
2. Manifestações extra-hepáticas — os fatores imunes também podem ser importantes
na patogénese das manifestações extra-hepáticas da hepatite viral aguda. Por exemplo,
na hepatite B, um pródromo semelhante à doença do soro, caracterizado por febre,
erupção urticária, angioedema, artralgias e artrite, parece estar relacionado com a lesão
tecidual mediada por imunocomplexos. Durante o pródromo inicial, os imunocomplexos
circulantes consistem em HBsAg em altos títulos em associação a pequenas quantidades
de anti-HBs. Esses imunocomplexos circulantes depositam-se nas paredes dos vasos
sanguíneos, levando à ativação da cascata do complemento. Nos pacientes com artrite,
os níveis séricos de complemento estão diminuídos, e o complemento pode ser
detetado em imunocomplexos circulantes contendo HBsAg, anti-HBs, IgG, IgM, IgA e
fibrina. A crioglobulinemia constitui um achado comum na hepatite C crónica. Acredita-
se que os fatores imunes sejam importantes na patogénese de algumas manifestações
clínicas em pacientes que se tornam portadores crónicos do HBsAg após hepatite aguda.
B. Hepatite alcoólica

O etanol possui efeitos tóxicos diretos e indiretos sobre o


fígado, bem como efeitos sobre muitos sistemas orgânicos
do corpo. Os seus efeitos diretos podem resultar do
aumento da fluidez das membranas biológicas e, portanto,
da interrupção das funções celulares. Os seus efeitos
indiretos sobre o fígado representam, em parte, uma
consequência do seu metabolismo. O etanol sofre oxidação
sequencial a acetaldeído, e, em seguida, a acetato, com
geração de NADH e ATP. Em consequência da elevada
relação entre NAD reduzido e oxidado, que é gerado, as vias
de oxidação dos ácidos gordos e da gliconeogénese são
inibidas, enquanto a síntese de ácidos gordos é favorecida.
O etanol também pode alterar, tanto em termos
quantitativos quanto qualitativos, o padrão de expressão
génica em vários tecidos, particularmente no fígado,
resultando em comprometimento da homeostasia e maior
sensibilidade a outras toxinas. Esses, bem como outros
mecanismos bioquímicos, podem contribuir para a
observação comum de acumulação de gordura no fígado de
alcoólicos e a tendência ao desenvolvimento de
hipoglicemia em alcoólicos com depleção do glicogénio
hepático em consequência de jejum. O metabolismo do
etanol também afeta o fígado, gerando acetaldeído, que
reage com grupos amino primários para inativar enzimas,
resultando em toxicidade direta do hepatócito onde é
gerado. Para além disso, as proteínas assim modificadas
podem ativar o sistema imune contra antigénios que previamente eram tolerados como
“próprios”.

Existe uma considerável variação entre indivíduos na quantidade de etanol necessária para
causar lesão aguda do fígado. Ainda não foi estabelecido se existem fatores nutricionais,
genéticos ou outros responsáveis por essas diferenças.

Patologia

Na hepatite aguda não-complicada, os achados histológicos típicos consistem em: (1)


degeneração e necrose focais dos hepatócitos, com destruição celular, vacuolização e
degeneração acidofílica (células contraídas, com citoplasma eosinofílico e núcleos picnóticos);
(2) inflamação das áreas portais, com infiltração por células mononucleares (linfócitos
pequenos, plasmócitos, eosinófilos); (3) proeminência das células de Kupffer e dos ductos
biliares; e (4) colestase (interrupção do fluxo de bílis) com tampões biliares. Tipicamente,
embora haja destruição do padrão regular dos cordões de hepatócitos, a estrutura da reticulina
é preservada.
A recuperação da hepatite aguda de qualquer etiologia caracteriza-se, histologicamente, por
regeneração dos hepatócitos, com numerosas figuras mitóticas e células multinucleadas e por
restauração em grande parte completa da arquitetura lobular normal.

Na hepatite aguda, observa-se menos comumente (1 a 5% dos pacientes) uma lesão histológica
mais grave, denominada necrose hepática em ponte (também denominada necrose subaguda,
submaciça ou confluente). Formam-se pontes entre os lóbulos, visto que a necrose acomete
grupos contínuos de hepatócitos, resultando em grandes áreas de perda de células hepáticas e
colapso da rede de reticulina. As zonas necróticas (“pontes”), que consistem em reticulina
condensada, restos celulares inflamatórios e células hepáticas em degeneração, estabelecem
conexões entre áreas portais ou centrais adjacentes, ou podem acometer todo um lóbulo.

Raramente, na necrose hepática intensa ou na hepatite fulminante (< 1% dos pacientes), o


fígado torna-se pequeno, contraído e mole (atrofia amarela aguda). O exame histológico revela
necrose intensa dos hepatócitos na maioria dos lóbulos, resultando em extenso colapso e
condensação da rede de reticulina e estruturas portais (ductos biliares e vasos).

A patologia da hepatite alcoólica difere, em algumas maneiras, daquela da hepatite viral. As


características patológicas específicas da hepatite alcoólica consistem em acumulação de corpos
hialinos de Mallory e infiltração de leucócitos polimorfonucleares.

Manifestações clínicas

A. Hepatite viral

A hepatite viral aguda manifesta-se habitualmente em 3 fases:

1. Pródromo — caracteriza-se por três conjuntos de sinais e sintomas: (1) sinais e sintomas
constitucionais inespecíficos: mal-estar, fadiga e febre baixa; (2) sinais e sintomas GI:
anorexia, náuseas, vómitos, alteração do olfato e do paladar e desconforto abdominal
no quadrante superior direito (aumento do tamanho do fígado), e (3) sinais e sintomas
extra-hepáticos: cefaleia, fotofobia, tosse, coriza, mialgias, erupção urticariforme,
artralgias ou artrite (10 a 15% dos pacientes com HBV) e, raramente, hematúria ou
proteinúria.
2. Fase ictérica — os sintomas constitucionais costumam melhorar, embora possa ocorrer
uma discreta perda de peso. Se a colestase for grave, ocorre prurido. A dor abdominal
no quadrante superior direito em consequência do aumento e da hipersensibilidade do
fígado, que estava presente na fase prodrómica, continua. Verifica-se a presença de
esplenomegalia em 10 a 20% dos pacientes.

A icterícia pode manifestar-se pela cor amarelada das escleróticas, da pele ou das mucosas. Em
geral, a icterícia só é percebida ao exame físico quando o nível sérico de bilirrubina ultrapassa
2,5 mg/dL (41,75 µmol/L). A hiperbilirrubinémia direta refere-se à elevação dos níveis de
bilirrubina conjugada na corrente sanguínea. A sua presença indica capacidade inalterada dos
hepatócitos de conjugar bilirrubina, porém com defeito na excreção de bilirrubina na bílis, em
consequência de colestase intra-hepática ou doença obstrutiva pós-hepática do trato biliar, com
transbordamento da bilirrubina conjugada fora dos hepatócitos para a corrente sanguínea.

As alterações na cor das fezes (que ficam mais claras) e na cor da urina (escurecimento)
precedem com frequência a icterícia clinicamente evidente. Isso reflete a perda de metabólitos
da bilirrubina das fezes em consequência de comprometimento do fluxo biliar. Os metabólitos
da bilirrubina hidrossolúveis (conjugados) são excretados na urina, enquanto os metabólitos
insolúveis em água acumulam-se nos tecidos, produzindo icterícia.

As equimoses sugerem coagulopatia, que pode ser causada pela perda da capacidade de
absorção da vitamina K do intestino (causada por colestase) ou pela diminuição da síntese de
fatores da coagulação. Raramente, a perda da depuração dos fatores da coagulação ativados
desencadeia uma coagulação intravascular disseminada. A coagulopatia em que o tempo de
protrombina pode ser corrigido com injeções de vitamina K, mas não com vitamina K por via
oral, sugere doença colestática, visto que a captação de vitamina K pelo intestino depende do
fluxo biliar. Se não houver correção do tempo de protrombina com vitamina K oral ou
parenteral, deve-se suspeitar de incapacidade de sintetizar os polipeptídios dos fatores da
coagulação (p. ex., em consequência de disfunção hepatocelular intensa). A correção do tempo
de protrombina com vitamina K oral apenas sugere mais uma deficiência nutricional do que uma
doença hepática como base da coagulopatia.

As determinações dos níveis séricos de várias enzimas, cuja localização normal é


primariamente nos hepatócitos, fornecem uma indicação sobre a extensão da necrose dessas
células. Na hepatite alcoólica, mas não na hepatite viral, a AST está, com frequência,
desproporcionalmente elevada em relação à ALT (relação AST:ALT > 2,0). Uma hipótese é a de
que esse achado se deve a uma deficiência de piridoxina nos alcoólicos. De modo semelhante,
na colestase, a fosfatase alcalina costuma estar desproporcionalmente elevada em
comparação com a AST ou a ALT.

A determinação dos títulos de antigénios e anticorpos constitui uma maneira conveniente de


estabelecer se um episódio de hepatite aguda é causado por infeção viral. Para além disso, por
causa da produção precoce de anticorpos IgM após exposição a antigénios (i. e., pouco depois
do início da doença), a presença de anticorpos IgM contra o HAV ou contra o antigénio do core
do HBV (HBcAg) fornece uma forte evidência de que o episódio de hepatite aguda é decorrente
de infeção viral correspondente. Vários meses depois do início da doença, os títulos de
anticorpos IgM diminuem e são substituídos por anticorpos da classe IgG, indicando imunidade
para recidiva da infeção pelo mesmo vírus. A presença de antigénio precoce da hepatite B
(HBeAg) correlaciona-se bem com um elevado grau de infetividade. Todavia, testes de DNA mais
sensíveis demonstraram baixos níveis de DNA viral no sangue de muitos indivíduos HBeAg-
negativos, mas que ainda são infecciosos.

São observadas alterações subtis ou profundas do estado mental na necrose hepática


fulminante. Para além das alterações encefalopáticas causadas pela acumulação de toxinas, a
insuficiência hepática aguda está associada à encefalopatia em consequência de edema cerebral
causado por elevação da pressão intracraniana, talvez relacionada com alterações da barreira
hematoencefálica.

A insuficiência hepática fulminante pode ser complicada por disfunção renal. Pode-se verificar
o desenvolvimento de azotemia pré-renal nos pacientes afetados quando a TFG cai
secundariamente à depleção do volume intravascular. Um estado de depleção do volume
intravascular pode ser induzido pela combinação de ingestão oral diminuída, vómitos e
formação de ascite. Esse processo, se não for corrigido, pode levar à necrose tubular aguda e à
insuficiência renal aguda. Outras causas de disfunção renal na insuficiência hepática fulminante
incluem toxinas (p. ex., paracetamol ou envenenamento por Amanita) ou síndrome
hepatorrenal. O nível sérico de creatinina é uma medida mais precisa do que a ureia sanguínea
para o comprometimento renal na insuficiência hepática fulminante em decorrência da
produção hepática diminuída de ureia. Outras complicações da insuficiência hepática
fulminante incluem disfunção cardiovascular, em consequência de vasodilatação sistémica e
hipotensão, edema pulmonar, coagulopatia, sépsis e hipoglicemia.

3. Fase de convalescença —caracteriza-se pelo desaparecimento completo dos sintomas


constitucionais, porém com anormalidades persistentes nas provas de função hepática.
Ocorre melhoria gradual dos sinais e sintomas.

HEPATITE CRÓNICA

A hepatite crónica faz parte de uma categoria de doenças caracterizadas pela combinação de
necrose dos hepatócitos e inflamação de gravidade variável, que persistem por mais de 6
meses. A hepatite crónica pode ser causada por infeção viral, fármacos e toxinas, fatores
genéticos e metabólicos, ou pode ser de etiologia desconhecida. A gravidade abrange desde
uma doença estável assintomática, caracterizada apenas por anormalidades laboratoriais, até
uma doença grave e gradualmente progressiva, culminando em cirrose, insuficiência hepática e
morte. Com base nos achados clínicos, laboratoriais e de biópsia, a hepatite crónica é mais bem
avaliada com base na (1) distribuição e gravidade da inflamação, (2) grau de fibrose e (3)
etiologia, que possui implicações importantes em termos de
prognóstico.

Apresentação clínica

Os pacientes podem apresentar fadiga, mal-estar, febre baixa,


anorexia, perda de peso, icterícia intermitente leve e
hepatoesplenomegalia discreta. Outros são a princípio
assintomáticos e, posteriormente, durante a evolução da doença,
apresentam as complicações da cirrose, incluindo hemorragia de
varizes, coagulopatia, encefalopatia, icterícia e ascite. Em
contraste com a hepatite crónica persistente, alguns pacientes
com hepatite crónica ativa, particularmente aqueles sem
evidências serológicas de infeção antecedente por HBV,
apresentam sintomas extra-hepáticos, como exantema cutâneo,
diarreia, artrite e vários distúrbios auto-imunes.

Etiologia
Ambos os tipos de hepatite crónica podem ser causados por infeção por vários vírus da hepatite
(p. ex., hepatite B com ou sem superinfeção pelo vírus da hepatite D e hepatite C); por uma
variedade de fármacos e venenos (p. ex., etanol, isoniazida, acetaminofeno), frequentemente
em quantidades insuficientes para causar hepatite aguda sintomática; por distúrbios genéticos
e metabólicos (p. ex., deficiência de α1-antiprotease [α1-antitripsina], doença de Wilson); ou
por lesão imunologicamente mediada de origem desconhecida.

Cerca de 1 a 2% de indivíduos saudáveis sob os demais aspetos com hepatite B aguda


permanecem cronicamente infetados pelo HBV; o risco é maior em pacientes
imunocomprometidos ou de idade jovem. Entre aqueles que apresentam infeção crónica, cerca
de 66% desenvolvem hepatite crónica leve, enquanto 33% apresentam hepatite crónica grave.
A superinfeção por HDV num paciente com infeção crónica por HBV está associada a uma taxa
muito mais alta de hepatite crónica do que aquela observada na infeção isolada pelo vírus da
hepatite B. A superinfeção por hepatite D em pacientes com hepatite B também está associada
a uma alta incidência de insuficiência hepática fulminante. 70 a 85% dos indivíduos com hepatite
C aguda pós-transfusional ou adquirida na comunidade desenvolvem hepatite crónica.

Patogénese

Acredita-se que muitos casos de hepatite crónica representam um ataque imunologicamente


mediado sobre o fígado, que ocorre devido a persistência de certos vírus da hepatite ou após
exposição prolongada a determinados fármacos ou substâncias nocivas. Em alguns casos, não
foi identificado nenhum mecanismo. A evidência de que o distúrbio é imunologicamente
mediado provém de biopsias hepáticas, que revelam a presença de inflamação, e também
ocorre uma variedade de distúrbios auto-imunes com alta frequência em pacientes com
hepatite crónica.

A. Hepatite crónica pós-viral

Em cerca de 5% dos casos de infeção por HBV e em 70 a 85% das infeções de hepatite C, a
resposta imune é inadequada para eliminar o vírus do fígado, resultando em infeção persistente.
O indivíduo torna-se um portador crónico e passa a produzir o vírus de modo intermitente,
permanecendo, assim, infeccioso para outras pessoas. A nível bioquímico, esses pacientes
frequentemente apresentam DNA viral integrado nos seus genomas, resultando na expressão
anormal de certas proteínas virais, com ou sem produção do vírus intacto. Os antigénios virais
expressos sobre a superfície celular dos hepatócitos estão associados a determinantes HLA da
classe I, induzindo, assim, a citotoxicidade linfocitária e resultando em hepatite. A gravidade da
hepatite crónica depende, em grande parte, da atividade da replicação viral e da resposta do
sistema imune do hospedeiro. Independentemente do risco de progressão para a cirrose, a
hepatite B crónica predispõe o paciente ao desenvolvimento de carcinoma hepatocelular. Ainda
não foi elucidado se a infeção pelo vírus da hepatite B constitui o fator iniciador ou simplesmente
um promotor no processo da tumorigénese.

B. Hepatite crónica alcoólica

O desenvolvimento de doença hepática crónica em resposta a alguns venenos ou toxinas pode


representar um processo de deflagração de uma predisposição genética subjacente ao ataque
imune sobre o fígado. No entanto, na hepatite alcoólica, os episódios repetidos de lesão aguda
provocam, em última análise, necrose, fibrose e regeneração, levando finalmente à cirrose.
Como em outras formas de doença hepática, observa-se uma considerável variação na extensão
dos sintomas antes do desenvolvimento da cirrose.

C. Nonalcoholic Fatty Liver Disease (NAFLD)

É uma forma de doença hepática crónica associada ao síndrome metabólico. Refere-se à


presença de esteatose hepática, com ou sem inflamação e fibrose, quando não estão presentes
outras causas para acumulação de gordura no fígado.

Apresenta gravidade variável, desde fígado gordo não alcoólico (NAFL), onde a inflamação é
mínima, até esteatohepatite não alcoólica (NASH), onde a inflamação ativa aumenta o risco de
fibrose e progressão para cirrose.

A NAFLD está associada a fatores de risco metabólicos como obesidade, dislipidémia,


insulinorresistência e DM tipo 2.

A sua patogénese ainda não está bem esclarecida, mas as teorias indicam a resistência à insulina
como mecanismo chave que leva à esteatose hepática e à esteatohepatite. A lesão oxidativa
também pode desempenhar um papel. Em geral, pacientes com esteatose simples têm pouco
risco de progressão histológica, mas pacientes com NASH podem progredir para cirrose e estão
em risco de desenvolver carcinoma hepatocelular.

O tratamento da NAFLD é centrado na modificação dos fatores de risco e tratamento das


comorbilidades metabólicas.

D. Hepatite crónica idiopática

Alguns pacientes desenvolvem hepatite crónica na ausência de evidências de hepatite viral


precedente ou exposição a agentes nocivos. Tipicamente, esses pacientes exibem evidências
serológicas de distúrbio da imunorregulação, que se manifestam na forma de hiperglobulinemia
e auto-anticorpos circulantes. Quase 75% desses pacientes são mulheres, e muitas delas
apresentam outros distúrbios auto-imunes. Foi sugerida uma predisposição genética. Os
pacientes com hepatite crónica auto-imune idiopática exibem uma melhoria histológica nas
biopsias hepáticas após tratamento com corticosteróides sistémicos. Todavia, a resposta clínica
pode ser variável.

Patologia

Todas as formas de hepatite crónica compartilham as características histopatológicas comuns


de (1) infiltração inflamatória das áreas portais hepáticas com células mononucleares,
especialmente linfócitos e plasmócitos, e (2) necrose dos hepatócitos no parênquima ou em
locais imediatamente adjacentes às áreas portais (hepatite periportal).

Na hepatite crónica leve, a arquitetura global do fígado é preservada. Histologicamente, o


fígado revela um infiltrado característico de linfócitos e plasmócitos, que se restringe à tríade
portal, sem comprometimento da placa limitante e sem qualquer evidência de necrose ativa dos
hepatócitos. Há pouca ou nenhuma fibrose, e, quando presente, restringe-se geralmente à área
portal; não existe nenhum sinal de cirrose. Observa-se um aspeto em “pedras de calçada” dos
hepatócitos, indicando regeneração das células.

Nos casos mais graves de hepatite crónica, ocorre expansão das áreas portais, que estão
densamente infiltradas por linfócitos, histiócitos e plasmócitos. Ocorre necrose dos
hepatócitos na periferia do lóbulo, com erosão da placa limitante que circunda as tríades
portais (necrose em saca bocado = piecemeal necrosis). Os casos mais graves também exibem
evidências de necrose e fibrose entre as tríades portais. Ocorre rutura da arquitetura normal do
fígado por bandas de tecido cicatricial e células inflamatórias, que ligam áreas portais entre si
e com áreas centrais (necrose em ponte). Essas pontes de tecido conjuntivo constituem uma
evidência de remodelação da arquitetura hepática, uma etapa crucial no desenvolvimento da
cirrose. A fibrose pode estender-se das áreas portais para os lóbulos, isolando os hepatócitos
em grupos e envolvendo os ductos biliares. Observa-se a regeneração dos hepatócitos com
figuras mitóticas, células multinucleadas, formação de rosetas e pseudolóbulos regenerativos.
A progressão para a cirrose é indicada pela fibrose extensa e nódulos de regeneração.

Manifestações clínicas

Alguns pacientes com hepatite crónica leve são totalmente assintomáticos e apenas
identificados por ocasião de um teste hematológico de rotina; outros apresentam início
insidioso de sintomas inespecíficos, como anorexia, mal-estar e fadiga, ou sintomas hepáticos,
como desconforto ou dor abdominal no quadrante superior direito. A fadiga na hepatite
crónica pode estar relacionada com uma alteração do eixo neuroendócrino hipotálamo-supra-
renal produzida pela neurotransmissão opioidérgica endógena alterada. A icterícia, quando
presente, é habitualmente leve. Podem ocorrer hepatomegalia hipersensível e discreta e
esplenomegalia ocasional. Nos casos graves, observa-se a presença de eritema palmar e
telangiectasias aracneiformes. Outras manifestações extra-hepáticas são incomuns. Por
definição, não há sinais de cirrose e hipertensão portal (p. ex., ascite, circulação colateral e
encefalopatia). Os exames laboratoriais revelam aumentos leves a moderados nos níveis
séricos de aminotransferase, bilirrubina e globulina. O nível sérico de albumina e o tempo de
protrombina estão normais até um estágio tardio na progressão da doença hepática.

As manifestações clínicas da hepatite crónica provavelmente refletem o papel de um distúrbio


imune sistémico geneticamente controlado na patogénese da doença grave. Podem ocorrer
acne, hirsutismo e amenorreia como reflexo dos efeitos hormonais da doença hepática crónica.
Nos pacientes com hepatite crónica grave, os exames laboratoriais estão invariavelmente
anormais em vários graus. Todavia, essas anormalidades não se correlacionam com a gravidade
clínica. Por conseguinte, os níveis séricos de bilirrubina, fosfatase alcalina e globulina podem
estar normais, enquanto os níveis de aminotransferase estão apenas levemente elevados ao
mesmo tempo que a biopsia hepática revela a presença de hepatite crónica grave. Todavia, o
prolongamento do tempo de protrombina habitualmente reflete a existência de doença grave.

A história natural e o tratamento da hepatite crónica variam dependendo da sua causa. As


complicações da hepatite crónica grave são aquelas associadas à progressão para a cirrose:
hemorragia de varizes, encefalopatia, coagulopatia, hiperesplenismo e ascite. Essas
complicações devem-se, em grande parte, ao shunt portossistémico, mais do que a uma
diminuição da reserva dos hepatócitos.

CIRROSE

Apresentação clínica

A cirrose consiste numa deformação irreversível da arquitetura normal do fígado,


caracterizada por lesão hepática, fibrose e regeneração nodular. As apresentações clínicas da
cirrose constituem a consequência da disfunção hepatocelular progressiva e da hipertensão
portal. Nem todos os pacientes com cirrose desenvolvem complicações potencialmente fatais
→ em quase 40% dos casos, a cirrose é diagnosticada na necropsia em pacientes que não
manifestaram quaisquer sinais óbvios de doença hepática terminal.

Etiologia

A lesão inicial pode ser decorrente de uma ampla variedade de processos. Uma característica
importante é o facto de que a lesão hepática ser crónica e progressiva. Nos EUA, o uso abusivo
de álcool constitui a causa mais comum de cirrose. Em outros países, os agentes infecciosos
(particularmente o HBV e o HCV) representam as causas mais frequentes. Outras causas incluem
obstrução biliar crónica, distúrbios metabólicos, insuficiência cardíaca congestiva crónica e
cirrose biliar primária (auto-imune).

Patogénese

A síntese aumentada ou alterada de colagénio e de outros componentes do tecido conjuntivo


ou da membrana basal da matriz extracelular está implicada no desenvolvimento da fibrose
hepática. A fibrose pode afetar não apenas o aspeto físico do fluxo sanguíneo pelo fígado, como
também as funções das próprias células.

A fibrose hepática parece ocorrer em três situações: (1) como resposta imune, (2) como parte
do processo de cicatrização de feridas, e (3) em resposta a agentes que induzem fibrogénese
primária
O HBV e as espécies de Schistosoma são agentes que produzem fibrose numa base imunológica.
Certas substâncias, como o tetracloreto de carbono, ou o vírus da hepatite A, que atacam e
matam diretamente os hepatócitos, constituem exemplos de agentes que produzem fibrose
como parte da cicatrização de feridas. Tanto nas respostas imunes quanto na cicatrização de
feridas, a fibrose é desencadeada indiretamente pelos efeitos das citocinas libertadas pelas
células inflamatórias invasoras. Por fim, certos agentes, como o etanol e o ferro, podem causar
fibrogénese primária por meio do aumento direto da transcrição do gene do colagénio,
elevando, assim, a quantidade secretada de tecido conjuntivo pelas células.

As células de armazenamento de gordura do sistema reticuloendotelial hepático (células


estreladas) podem constituir o verdadeiro fator responsável em todos esses mecanismos de
aumento da fibrogénese. Em resposta às citocinas, essas células diferenciam-se das células
quiescentes, em que a vitamina A é armazenada em miofibroblastos, que perdem a sua
capacidade de armazenamento da vitamina A, tornando-se ativamente envolvidas na produção
de matriz extracelular. Para além das células estreladas, as células fibrogénicas podem derivar
de fibroblastos portais, fibrócitos circulantes, da medula óssea e da transição epitélio-
mesênquima.

A fibrose hepática ocorre em dois estágios:

• O primeiro caracteriza-se por uma alteração na composição da matriz extracelular,


sendo o colagénio sem ligação cruzada e sem formação de fibrilhas substituído por um
colagénio mais denso e propenso à formação de ligações cruzadas. Nesse estágio, a
lesão hepática ainda é reversível.
• O segundo envolve a formação de ligações cruzadas do colagénio subendotelial, a
proliferação de células mioepiteliais e a deformação da arquitetura hepática, com
aparecimento de nódulos regenerativos. Esse segundo estágio é irreversível.

O modo pelo qual o álcool provoca doença hepática crónica e cirrose ainda não está bem
esclarecido. No entanto, o uso abusivo crónico de álcool está associado a um comprometimento
da síntese e da secreção de proteínas, à lesão mitocondrial, peroxidação de lípidos, formação
de acetaldeído e a sua interação com proteínas celulares e lípidos da membrana, hipóxia celular
e citotoxicidade mediada por células e por anticorpos. A importância relativa de cada um desses
fatores na produção de lesão celular não é conhecida. Os fatores genéticos, nutricionais e
ambientais (incluindo exposição simultânea a outras hepatotoxinas) também influenciam o
desenvolvimento de doença hepática em alcoólicos. Por fim, a lesão hepática aguda (p. ex., em
consequência de exposição ao álcool ou a outras toxinas), cuja recuperação seria completa num
indivíduo com fígado normal, pode ser suficiente para provocar descompensação irreversível (p.
ex., síndrome hepatorrenal) num paciente com cirrose hepática subjacente.

Patologia

Em termos gerais, o fígado pode estar grande ou pequeno, porém sempre apresenta
consistência firme e muitas vezes nodular. A biopsia hepática constitui o único método para o
diagnóstico definitivo de cirrose.

Histologicamente, todas as formas de cirrose caracterizam-se por três achados: (1) acentuada
deformação da arquitetura hepática, (2) fibrose em consequência do depósito aumentado de
tecido fibroso e colagénio, e (3) nódulos regenerativos circundados por tecido cicatricial.
Quando os nódulos são pequenos (< 3 mm) e de tamanho uniforme, o processo é denominado
cirrose micronodular. Na cirrose macronodular, os nódulos medem > 3 mm e apresentam
tamanho variável. A cirrose em decorrência do uso abusivo de álcool é habitualmente
micronodular, mas pode ser macronodular, ou com os dois padrões juntos. A fibrose pode ser
mais intensa nas regiões centrais, ou faixas densas de tecido conjuntivo podem ligar áreas
portais e centrais.

Os achados histopatológicos mais específicos podem ajudar a estabelecer a causa da cirrose. Por
exemplo, a invasão e a destruição dos ductos biliares por granulomas sugerem cirrose biliar
primária (auto-imune); a deposição extensa de ferro nos hepatócitos e nos ductos biliares
sugere hemocromatose; e os corpos hialinos alcoólicos e infiltração com células
polimorfonucleares indicam cirrose alcoólica.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da disfunção hepatocelular


progressiva na cirrose assemelham-se àquelas das hepatites
aguda ou crónica e consistem em:

• Sinais e sintomas constitucionais: fadiga, perda do


vigor e perda de peso;
• Sinais e sintomas GI: náuseas, vómitos, icterícia e
hepatomegalia hipersensível à palpação;
• Sinais e sintomas extra-hepáticos: eritema palmar,
angiomas aracneiformes, perda muscular, aumento
das glândulas parótidas e lacrimais, ginecomastia e
atrofia testicular nos homens, irregularidades
menstruais nas mulheres e coagulopatia.

As manifestações clínicas da hipertensão portal incluem ascite,


shunt portossistémico, encefalopatia, esplenomegalia e
varizes esofágicas e gástricas com hemorragia intermitente.
A. Hipertensão portal

É definida como gradiente de pressão venosa portal > 5 mmHg. É causada por uma elevação na
resistência vascular intra-hepática. Perde-se a característica fisiológica de um circuito de baixa
pressão do fluxo sanguíneo observada no fígado normal. O aumento da pressão sanguínea no
interior dos sinusóides é transmitido de modo retrógrado para a veia porta. Como a veia porta
carece de válvulas, essa pressão elevada é transmitida de forma retrógrada a outros leitos
vasculares, resultando em esplenomegalia, shunt portossistémico, e em muitas das
complicações da cirrose.

B. Ascite

Refere-se à presença de excesso de líquido dentro da cavidade peritoneal. Ao exame físico, os


pacientes com ascite apresentam os seguintes achados: aumento do perímetro abdominal, onda
líquida, baloteamento do fígado e macicez de deslocamento. Pode-se verificar o
desenvolvimento de ascite em pacientes com outras afeções distintas da hepatopatia, incluindo
a desnutrição protéico-calórica (devido à hipoalbuminemia) e cancro (por obstrução linfática).
Nos pacientes com doença hepática, a ascite é causada pela hipertensão portal, e pode ser
confirmada pela presença de SAAG (sérum-to-ascites albumin gradient) de 1,1 g/dL (11 g/dL) ou
mais. Calcular o SAAG envolve medição da concentração de albumina no plasma e no líquido
ascítico (através de paracentese abdominal) e subtraindo-se o valor de albumina no líquido
ascítico ao valor no plasma.

É importante reconhecer que a doença hepática com formação de ascite ocorre dentro de um
amplo espectro clínico. Num dos extremos, encontra-se a hipertensão portal totalmente
compensada, porém sem ascite, visto que o volume de ascite gerada é inferior à capacidade de
aproximadamente 800 a 1.200 mL/dia da drenagem linfática peritoneal. No outro extremo,
encontra-se a síndrome hepatorrenal tipicamente fatal, em que os pacientes com doença
hepática, geralmente com ascite intensa, sucumbem rapidamente à insuficiência renal aguda. A
síndrome hepatorrenal parece ser precipitada por vasoconstrição renal intensa e inapropriada
e caracteriza-se por extrema retenção de sódio, típica da azotemia pré-renal, porém sem
verdadeira depleção de volume. Todavia, a presença de ascite clinicamente aparente num
paciente com doença hepática está associada a uma sobrevida a longo prazo precária.

Ao longo dos anos, foram propostos diversos mecanismos para explicar a formação da ascite. A
hipertensão portal e a retenção renal inapropriada de sódio são elementos importantes em
todas as teorias formuladas. O resultado final da ascite é observado quando o excesso de líquido
peritoneal ultrapassa a capacidade de drenagem linfática, resultando em aumento da pressão
hidrostática. O líquido pode ser então visto exsudando dos linfáticos e acumulando-se na
cavidade abdominal como ascite.

A hipótese de enchimento deficiente/vasodilatação propõe que o evento primário na formação


da ascite seja vascular, com redução do volume circulante efetivo, levando à ativação do sistema
de renina-angiotensina e retenção renal subsequente de sódio. Esta hipótese postula que a
elevada pressão sinusoidal hepática resulta em sequestro de sangue no leito venoso
esplâncnico. Isso resulta em enchimento incompleto da veia central, com desvio do volume
intravascular para os linfáticos hepáticos que, à semelhança da veia central, drenam o espaço
de Disse. A hipótese de vasodilatação arterial periférica ou vasodilatação esplâncnica acrescenta
a ideia de que, com o shunt portossistémico, os produtos vasodilatadores (p. ex., óxido nítrico),
que são normalmente depurados pelo fígado, passam a ser libertados na circulação sistémica,
onde causam vasodilatação arteriolar periférica, particularmente no leito arterial esplâncnico.
A consequente redução da resistência vascular arterial está associada a uma diminuição da
pressão de enchimento central e da perfusão arterial renal, vasoconstrição arterial renal reflexa
e reabsorção tubular renal aumentada de sódio. A retenção de sódio expande o volume
intravascular, exacerbando a hipertensão venosa portal. O desequilíbrio entre as pressões
hidrostática vs oncótica na veia porta resulta em formação de ascite. Apesar de a hipótese da
vasodilatação esplâncnica explicar muitos dos achados na formação da ascite, o uso do shunt
portossistémico intrajugular transhepático (DPIT), como procedimento para descompressão da
veia porta em pacientes com ascite, fornece um argumento em contrário. Como resultado do
procedimento, a vasodilatação arteriolar periférica parece aumentar (talvez em consequência
da derivação de vasodilatadores, como o óxido nítrico, que normalmente são depurados pelo
fígado); contudo, observa-se em geral uma notável melhora da ascite.

Aqueles que defendem a hipótese de transbordamento propuseram que o evento primário no


desenvolvimento da ascite consiste na retenção renal inapropriada de sódio. Segundo essa
hipótese, a ascite representa a consequência do transbordamento de líquido do sistema portal
com expansão do volume intravascular para dentro da cavidade peritoneal. Todavia, o que
desencadeia a retenção renal inadequada de sódio? Uma das possibilidades seria a existência
de um reflexo hepatorrenal através do qual a pressão sinusoidal elevada desencadeia um
aumento do tónus simpático ou da secreção de endotelina-1. Essas vias poderiam causar um
grau inapropriado de vasoconstrição renal, diminuição da taxa de filtração glomerular e, por
meio de feedback tubuloglomerular, retenção de sódio. Observe que a endotelina-1 é tanto um
vasoconstritor renal quanto um estimulante da secreção de epinefrina, o que, por sua vez,
estimula a secreção adicional de endotelina-1. Alternativamente, é possível que um produto
ainda não identificado interfira na ação do ANP no rim, ou seja, de alguma outra forma,
responsável por um aumento inapropriado na retenção renal de sódio. Os que defendem a
hipótese do transbordamento assinalam o facto de que muitos pacientes cirróticos apresentam
defeitos de processamento do sódio na ausência de ascite e não exibem aumento mensurável
na atividade da renina-angiotensina. Todavia, os estudos realizados mostraram que a retenção
renal de sódio nesses pacientes pode ser revertida pelo uso de um antagonista do recetor de
angiotensina II.

É mais provável que múltiplos mecanismos contribuam para o desenvolvimento da ascite e a


sua perpetuação, agravamento ou melhoria em diversas situações clínicas. Independentemente
dos eventos iniciais, quando esses já estão totalmente estabelecidos, muitos dos mecanismos
descritos no esquema abaixo, se não todos, provavelmente contribuem para a formação da
ascite.
C. Síndrome hepatorrenal

Este distúrbio difere da azotemia pré-renal e da necrose tubular aguda. Caracteriza-se por
elevação progressiva dos níveis séricos de creatinina e diminuição do volume urinário. A
síndrome hepatorrenal tipo 1 é rapidamente progressiva, com duplicação da concentração
sérica de creatinina para um nível superior a 2,5 mg/dℓ em menos de 2 semanas, enquanto o
tipo 2 é lentamente progressivo. Tipicamente, a síndrome hepatorrenal ocorre em pacientes
com ascite tensa intensa, sendo frequentemente precipitada por tentativas muito agressivas de
diurese no hospital ou por um episódio de peritonite bacteriana espontânea.

A síndrome hepatorrenal caracteriza-se por vasoconstrição grave da circulação renal. A urina


apresenta conteúdo muito baixo de sódio e ausência de cilindros, lembrando os achados da
azotemia pré-renal. Contudo, quando se medem as pressões venosas centrais, o paciente não
apresenta depleção do volume intravascular, e o distúrbio não responde à hidratação com soro
fisiológico. As anormalidades renais da síndrome hepatorrenal parecem ser funcionais. Ainda
não foi estabelecido se essa forma de insuficiência renal representa a perda de uma hormona
ainda não identificada, produzida pelo fígado, capaz de afetar os rins, ou a consequência de
alguma combinação de efeitos hemodinâmicos locais, resultando em diminuição da perfusão
renal.

O óxido nítrico apresenta um papel como 2º mensageiro celular, com efeitos vasodilatadores
sobre os leitos vasculares, e as endotelinas apresentam propriedades vasoconstritoras. Para
explicar a retenção de sal e de água na cirrose, foi sugerido um suposto papel para a
vasodilatação arterial periférica mediada pelo NO, combinada com o SN Simpático e a
vasoconstrição renal mediada pela endotelina. No caso extremo, esses mesmos mecanismos
podem dar origem à síndrome hepatorrenal.

D. Hipoalbuminémia e edema periférico

O agravamento progressivo da função hepatocelular na cirrose pode resultar em queda da


concentração de albumina e de outras proteínas séricas sintetizadas pelo fígado. À medida que
a concentração dessas proteínas plasmáticas diminui, ocorre redução da pressão oncótica do
plasma, desviando, assim, o equilíbrio das forças hemodinâmicas para o desenvolvimento de
edema periférico e ascite. Essas alterações hemodinâmicas também contribuem para um estado
de retenção de sódio, a despeito da sobrecarga de sódio e água corporal total observada no
exame de urina do paciente cirrótico. O nível sérico de sódio pode estar baixo, em razão da
retenção hídrica sobreposta em decorrência da libertação de ADH deflagrada por estímulos de
volume. Pode-se observar a presença de baixos níveis séricos de potássio e alcalose metabólica
em consequência dos níveis elevados de aldosterona em resposta à libertação de renina (e
libertação de angiotensina II) pelos rins, que percebem a depleção intravascular aferente.

E. Peritonite bacteriana espontânea

A peritonite bacteriana espontânea consiste no desenvolvimento de ascite infetada na ausência


de um evento bem definido (como perfuração intestinal) capaz de explicar a entrada de
microrganismos patogénicos no espaço peritoneal. Os sinais e sintomas consistem em febre,
hipotensão, dor ou hipersensibilidade abdominal, diminuição ou ausência dos ruídos intestinais
e início abrupto de encefalopatia hepática no paciente com ascite. Os pacientes com grande
volume de ascite ou níveis proteicos muito baixos no líquido ascítico correm risco aumentado
dessa complicação. O líquido ascítico é um excelente meio de cultura para uma variedade de
patogénios, incluindo Enterobacteriaceae (principalmente Escherichia coli), estreptococos do
grupo D (enterococos), Streptococcus pneumoniae e Streptococcus viridans. O maior risco
observado em pacientes com baixos níveis de proteína do líquido ascítico pode ser por causa de
um baixo nível de atividade opsónica do líquido. A patogénese exata da peritonite bacteriana
espontânea não é conhecida. Pode ocorrer peritonite por disseminação bacteriana do líquido
ascítico através do sangue ou da linfa, ou por penetração das bactérias na parede intestinal. Os
microrganismos entéricos podem penetrar no sangue venoso portal através dos colaterais
portossistémicos, transpondo, assim, o sistema reticuloendotelial do fígado.

F. Varizes gastroesofágicas e hemorragia

Com a obstrução progressiva ao fluxo de sangue pelo fígado, ocorre elevação da pressão venosa
portal hepática. Em resposta à pressão venosa portal elevada, observa-se um aumento dos
vasos sanguíneos que se anastomosam com a veia porta, como os da superfície do intestino e
da porção inferior do esófago → varizes. O exame físico pode revelar um aumento dos vasos
hemorroidários e periumbilicais.

As varizes gastroesofágicas são clinicamente mais importantes pela sua tendência a sofrer
rutura, e a hemorragia intensa resultante é potencialmente fatal, visto que não é fácil tamponar
as varizes nesses locais. Nos pacientes com cirrose, a hemorragia GI de varizes e de outras fontes
(p. ex., úlcera duodenal, gastrite) é frequentemente exacerbado por coagulopatia concomitante.

G. Encefalopatia hepática

A encefalopatia hepática manifesta-se por alterações flutuantes do estado mental, que ocorre
em consequência de doença hepática descompensada avançada ou shunt portossistémico.

Fatores precipitantes:

As anormalidades incluem desde alterações subtis do estado mental até obnubilação profunda.
Com frequência, um sinal precoce consiste em alterações do padrão de sono, que começam com
hipersónia e progridem para reversão do ciclo de sono-vigília. As alterações cognitivas incluem
todo um espectro de anormalidades mentais, desde confusão leve, apatia, agitação, euforia e
inquietação até confusão pronunciada e mesmo coma. As alterações motoras incluem desde
tremor fino, coordenação lenta e asterixis até postura de descerebração e flacidez. O asterixis é
um fenómeno de silêncio mioelétrico intermitente, manifestado por muitos grupos musculares
e intensificado pela fadiga. É mais bem demonstrado pedindo-se que o paciente flexione os
punhos com os dedos em extensão, observando-se, então, um movimento adejante dos dedos.
Acredita-se que seja decorrente de uma diminuição de estímulo sensorial para a formação
reticular do tronco encefálico, resultando em lapsos transitórios da postura. O edema cerebral,
que constitui uma característica associada importante dos pacientes com encefalopatia na
doença hepática aguda, não é observado em pacientes cirróticos com encefalopatia.

Os fatores desencadeantes comuns da encefalopatia consistem em início de hemorragia GI,


aumento da ingestão dietética de proteína e catabolismo aumentado em consequência de
infeção. De forma semelhante, por causa do comprometimento da depuração de primeira
passagem dos fármacos administrados por via oral, os pacientes acometidos mostram-se
extremamente sensíveis aos sedativos e a outros agentes normalmente metabolizados no
fígado. Outras causas incluem desequilíbrio eletrolítico em consequência de diuréticos, vómitos,
ingestão ou abstinência de álcool ou certos procedimentos, como DPIT.

A patogénese da encefalopatia hepática não está bem elucidada. Um mecanismo proposto


sugere que a encefalopatia é causada por toxinas no intestino, como amónia, derivada da
degradação metabólica da ureia ou da proteína; glutamina, derivada da degradação da amónia;
ou mercaptanos, que provêm da degradação de compostos contendo enxofre. Devido a
derivações anatómicas ou funcionais, essas toxinas não são submetidas aos processos de
destoxificação do fígado e provocam alterações do estado mental. Podem ser observados níveis
aumentados de amónia, glutamina e mercaptanos no sangue e no LCR. Todavia, estes níveis no
LCR têm pouca correlação com a presença e a gravidade da encefalopatia. Alternativamente,
pode haver comprometimento da barreira hematoencefálica normal, tornando o SNC suscetível
a vários agentes nocivos. Foram também encontrados níveis sanguíneos aumentados de outras
substâncias, incluindo produtos metabólicos, como ácidos gordos de cadeia curta e metabolitos
endógenos semelhantes aos benzodiazepínicos. É importante assinalar que alguns pacientes
apresentam melhoria da encefalopatia quando tratados com flumazenil, um antagonista do
recetor de benzodiazepínicos. Um terceiro mecanismo sugerido atribui um papel ao GABA, o
principal neurotransmissor inibitório do cérebro. O GABA é produzido no intestino, e são
observados níveis elevados no sangue de pacientes com insuficiência hepática. Uma quarta
hipótese postula que ocorre entrada aumentada de aminoácidos aromáticos no SNC, resultando
em aumento da síntese de neurotransmissores “falsos”, como octopamina, e síntese diminuída
de neurotransmissores normais, como a norepinefrina.

H. Coagulopatia

Os fatores que contribuem para a coagulopatia na cirrose incluem a perda da síntese hepática
dos fatores da coagulação. Nessas circunstâncias, uma fonte mínima ou autolimitada de
hemorragia pode tornar-se intensa. Os hepatócitos também estão funcionalmente envolvidos
na manutenção de uma cascata da coagulação normal pela absorção de vitamina K (uma
vitamina lipossolúvel, cuja absorção depende do fluxo de bílis), que é necessária para a ativação
de alguns fatores da coagulação (II, VII, IX, X). Um mau sinal da gravidade da doença hepática
consiste no desenvolvimento de coagulopatia que não responde à vitamina K parenteral,
sugerindo mais uma deficiência na síntese de fatores da coagulação do que uma redução da
absorção de vitamina K devido a má absorção de gordura. Por fim, a perda da capacidade do
fígado de remover os fatores da coagulação ativados e os produtos de degradação da fibrina
pode desempenhar um papel na maior suscetibilidade à coagulação intravascular disseminada.
I. Esplenomegalia e hiperesplenismo

O aumento do baço representa a consequência da pressão venosa portal elevada e consequente


ingurgitamento do órgão. Ocorrem trombocitopenia e anemia hemolítica, por causa do
sequestro dos elementos figurados do sangue no baço, a partir do qual são normalmente
depurados quando envelhecem e são lesados.

J. Carcinoma hepatocelular

Ocorre carcinoma hepatocelular em até 5% dos pacientes cirróticos por ano. Foram
identificados vários fatores etiológicos no desenvolvimento desse tumor.

• A transformação maligna é intensificada em qualquer forma de doença hepática


crónica, particularmente a cirrose.
• O risco de desenvolver carcinoma hepatocelular aumenta 100 vezes nos portadores
crónicos do HBV, mesmo na ausência de cirrose.
• As micotoxinas — metabólitos de fungos saprofíticos — são carcinógenos hepáticos
reconhecidos, e foi sugerido que elas atuam de modo sinérgico com a cirrose e a infeção
pelo HBV, aumentando o risco de carcinoma hepatocelular.
• Os fatores hormonais foram implicados em estudos experimentais. Sabe-se que o tumor
apresenta predomínio no sexo masculino.

K. Complicações pulmonares

Até 30% dos pacientes com cirrose descompensada apresentam problemas associados à
oxigenação. A síndrome hepatopulmonar está associada à insuficiência hepática avançada,
hipoxemia e derivação intrapulmonar em consequência de vasodilatação. A causa da
vasodilatação não é conhecida; todavia, acredita-se que estejam envolvidas certas substâncias,
como óxido nítrico, endotelina e ácido araquidónico. Em consequência do desequilíbrio de
ventilação-perfusão, os pacientes frequentemente apresentam platipneia (dispneia que se
agrava na posição ereta). O transplante de fígado leva à resolução da síndrome
hepatopulmonar. Todavia, a hipertensão pulmonar afeta alguns pacientes com insuficiência
hepática avançada e constitui uma contra-indicação para o transplante de fígado.

L. Outras manifestações

Outros achados no exame físico de pacientes com cirrose incluem angiomas aracneiformes
(vasos sanguíneos proeminentes com uma arteríola central e pequenos vasos que se irradiam
dessa arteríola, observados na pele, particularmente na face e na parte superior do tronco),
contraturas de Dupuytren (fibrose da fáscia palmar), atrofia testicular, ginecomastia (aumento
do tecido mamário em homens), eritema palmar, aumento das glândulas lacrimais e parótidas
e diminuição dos pêlos axilares e púbicos. Esses achados representam, em grande parte, uma
consequência do excesso de estrogénio, devido à depuração diminuída dos estrogénios
endógenos pelo fígado acometido, em combinação com a síntese hepática diminuída da
globulina de ligação das hormonas esteróides. Ambos os mecanismos fazem com que os tecidos
recebam concentrações de estrogénios maiores do que o normal. Além disso, a semi-vida mais
longa dos androgénios pode permitir maior grau de aromatização periférica, aumentando ainda
mais os efeitos semelhantes aos estrogénios em pacientes com cirrose. Podem ocorrer
xantomas das pálpebras e das superfícies extensoras dos tendões dos punhos e tornozelos na
colestase crónica, conforme observado na cirrose biliar primária. Por fim, a perda muscular e a
caquexia que ocorrem na cirrose refletem, provavelmente, uma diminuição da síntese hepática
de carboidratos, lipídios e aminoácidos.
Alcoolismo

Alcoolismo – enquadramento

Definição

• Consumo prolongado de etanol (consumo de risco - abuso) que


conduz à dependência patológica a que se seguem doenças físicas
e/ou alterações psíquicas e sociais.
• Representa a substância de abuso mais frequente
• Consumo moderado vs consumo de risco vs Alcohol use disorder
o Homem < 65 anos: >14 bebidas padrão/semana ou > 4
numa ocasião
o Mulher ou homem > 65 anos: >7 bebidas padrão/semana
ou > 3 numa ocasião

Epidemiologia

Alcoolismo – causas de mortalidade


Alcoolismo – fardo económico

Alcoolismo – enquadramento

Patogénese

A patogénese do alcoolismo vai estar dependente/ser influenciada por diversos fatores, que
incluem:

• Genética (determina entre 40-70% de AUD): polimorfismos ALDH (ALDH1B*2), ALDH2,


recetor GABA-A (GABRG1,A2), COMT Val 1582Met, DRD2 Taq1A e KIAA0040.
• Influência ambiental.
• Traços da personalidade.
• Função cognitiva: cognições mais baixas apresentam maior predisposição para o
alcoolismo

Alcoolismo – quantificação de bebidas alcoólicas

O método mais exato de quantificação de


bebidas alcoólicas é multiplicar a
percentagem de volume de álcool que a
bebida em questão tem pelo volume
ingerido e por 0,8 (densidade do álcool).
Como resultado, obtém-se os grama
ingeridos. No entanto, na prática clínica,
recorre-se a outro método. Este, apesar
de ser menos exato, é mais rápido e
simples para avaliar se a pessoa tem um
consumo alcoólico moderado ou de risco
– tem como referência uma caneca de
cerveja ou um copo de vinho ou um cálice
de aguardente, que correspondem todos
a aproximadamente 12g de álcool, faz-se uma aproximação do consumo, com base no número
de copos que a pessoa ingere diariamente.

Absorção e metabolização gástrica

O álcool é absorvido ao longo da mucosa do trato gastrointestinal - a maior parte da absorção


ocorre no tubo digestivo proximal, particularmente duodeno e jejuno. A quantidade e a
velocidade da absorção do etanol também dependem de outros fatores:

• Velocidade do esvaziamento gástrico (quanto mais rápido o esvaziamento maior a


absorção);
• A ingestão isolada da bebida alcoólica, porque se é ingerida com proteínas, hidratos de
carbono, etc., a absorção é mais lenta;
• Concentração de etanol na bebida;
• Presença de gás na bebida aumenta a absorção.

Uma pequena percentagem sofre uma primeira passagem ainda no estômago, sendo a
desidrogenase do álcool responsável por esta metabolização gástrica. Esta enzima é expressa
em maiores quantidades no homem e menos na mulher. Apesar de corresponder a uma
pequena percentagem, esta expressão enzimática diferencial, aliada ao diferente perfil de
massa gorda e distribuição de água, justifica a maior suscetibilidade da mulher ao álcool, com
maiores picos de concentração para a mesma quantidade de álcool consumida.

Metabolismo hepático do álcool

A maior parte da metabolização do álcool ocorre a


nível hepático por metabolismo oxidativo. O etanol
é metabolizado pelo álcool desidrogenase hepática
em acetaldeído no citosol. Em seguida, o acetaldeído
é metabolizado a nível intramitocondrial em acetato.
Existem outras vias oxidativas alternativas como:

• Via microssomal do citocromo P450 2E1,


com particular relevância em doentes
alcoólicos crónicos. Neste contexto a via é
induzida, caso contrário a metabolização do
álcool estaria reduzida para apenas 10%.
• Via dos peroxissomas, pela ação da catalase. Esta via é residual e a sua importância
clínica questionável.

Para além deste metabolismo oxidativo, existe também o metabolismo não oxidativo do álcool.
Este inclui reações de conjugação, com formação de etilglicuronídeos, e a síntese de acilos
gordos. Esta última tem um papel particularmente importante em tecidos onde o mecanismo
oxidativo do álcool não é realizado.

Vias de eliminação do álcool

Apesar da maioria do álcool ser metabolizado em


acetaldeído a nível hepático, cerca de 2-10% do
etanol consumido é excretado diretamente, sem
metabolização prévia, através da urina, suor e ar
expirado. A eliminação através do ar expirado é
particularmente relevante no sentido em que se
encontra na base para a realização dos “testes do
balão”. Através da quantificação dos
componentes do ar expirado, estima-se o valor
de alcoolémia do individuo a ser avaliado.
Alcoolémia

Tolerância

• Capacidade de lidar eficazmente com doses progressivamente maiores da substância


• Tolerância comportamental → Aprendizagem (individuo aprende a comportar-se com
um determinado valor de alcoolémia)
• Tolerância farmacocinética e farmacodinâmica/celular → Alterações no metabolismo

Tolerância metabólica

As principais alterações metabólicas


associadas ao desenvolvimento de
tolerância devem-se ao aumento da
reoxidação do NADH. Durante a
metabolização oxidativa do álcool, o NADH
é utilizado como cofactor sendo necessária
posterior reoxidação. Com o consumo
prolongado, há um aumento da reoxidação
a nível mitocondrial do NADH que permite
uma mais rápida regeneração e consequente metabolização aumentada. Também a indução da
álcool desidrogenase ou do shuttle de NADH para o interior da mitocôndria se podem associar
à indução deste estado hipermetabólico mas do ponto de vista clínico demonstraram-se menos
importantes. Por outro lado, a indução do citocromo P250 2E1 e consequente aumento do
metabolismo oxidativo do álcool são igualmente importantes na tolerância metabólica.

Efeitos tóxicos

• Etanol
• Congéneres: metanol,
butanol, aldeídos,
ésteres, fenóis,
histamina, taninos,
ferro, chumbo, cobalto

O consumo de bebidas alcoólicas


associa-se a:

• Um estado de má
nutrição primário
• Efeitos tóxicos dos congéneres - também os diferentes produtos que adicionalmente
compõem as bebidas alcoólicas têm efeitos tóxicos próprios e sinérgicos, podendo o
resultado do consumo de bebidas alcoólicas dever-se não só ao teor de álcool, mas
também à ação dos seus diferentes congéneres.
• Efeitos do etanol, nomeadamente efeitos diretos sobre as membranas e sobre as vias
não oxidativas (etil-ésteres de ácidos gordos), alterações das vias neuroquímicas,
indução de vias microssomais e das vias oxidativas para além de um estado pró-
inflamatório sistémico (com o aumento da produção de citocinas inflamatórias).

Aumento da relação NADH/NAD+

A indução das vias oxidativas vai levar a um


aumento do ratio NADH/NAD+. Ao haver um
excesso de NADH, vai haver um desvio de
diferentes vias bioquímicas que também o
utilizam paralelamente. Verifica-se então:

• A inibição da glicerofosfato
desidrogenase, com consequente
acumulação de glicerofosfato e
aumento da síntese de triglicéridos;
• Inibição da lactato desidrogenase
com acumulação de lactato,
inibição da gliconeogénese e
consequente potencial
hipoglicémia e acidose lática;
• Diminuição do oxaloacetato e
inibição da Isocitrato
desidrogenase com consequente
diminuição de alfa-cetoglutarato,
culminando na inibição do Ciclo
de Krebs (visto que são elementos
participantes neste ciclo). Como
resultado há um desvio da
acetilCoA para outras vias
metabólicas, nomeadamente para a cetogénese com consequente formação de corpos
cetónicos.

Aumento do acetaldeído

• Formação de adutos com proteínas


o Disfunção proteica (ex: hemoglobina,
albumina, neurotransmissores)
o Alterações nos microtúbulos
(perturbações no transporte e secreção)
o Neo-antigénios (mecanismos
imunológicos de lesão)
• O acetaldeído, ao reagir contra determinadas aminas vasoativas como a NA e com
substâncias como a serotonina, associa-se adicionalmente à formação de
tetrahidroisoquinolinas (TIQs) e carbolinas. Estas são substâncias semelhantes à morfina
que conseguem atravessar a barreira hematoencefálica e contribuir para a
dependência.
• Alteração estrutural e funcional de membranas e mitocôndrias
• Geração de radicais livres e promoção da lipoperoxidação

Stress oxidativo

A formação de radicais livres deve-se não só ao papel


do stress oxidativo na reoxidação de NADH ao nível
da cadeia mitocondrial, mas também à sua influência
na via microssomal. Como consequência do consumo
de NADPH a nível intramitocondrial, verifica-se uma
incapacidade de regeneração de glutatião. Como
resultado, ocorre libertação de EROs. Este estado pró-
oxidante vai ter um impacto sobre lípidos, proteínas
e ácidos nucleicos, estando por isso associado a risco
neoplásico, aterosclerose, diabetes, entres outros.

Efeitos sistémicos
Mecanismos de ação do etanol

1. Aumento da atividade do recetor do GABA e aumento do influxo de cloro


2. Efeito potente inibidor sobre os recetores NMDA do glutamato
3. Diminuição da rigidez das membranas (fluidificação), com perturbação da capacidade
da célula controlar os fluxos de eletrólitos
4. Aumento do turnover da noradrenalina
5. Potenciação da transmissão serotoninérgica nos recetores 5-HT3
6. Formação de alcalóides, derivados de reações entre o acetaldeído e a serotonina ou a
dopamina, com propriedades morfinomiméticas
7. Alterações da dopamina, com estimulação dos centros de prazer límbicos

Intoxicação aguda

Intoxicação crónica

Abstinência
Efeitos comportamentais

Aumento do turnover da adrenalina

Alterações comportamentais – base biológica da dependência

Alterações comportamentais – tolerância


Malnutrição

O alcoolismo está associado a um estado de


má-nutrição primária, derivado do próprio
consumo. Há uma preferência do consumo
de álcool em detrimento do consumo de
outros nutrientes essenciais. Por outro lado,
efeitos sobre o TGI vão condicionar uma má-
nutrição secundária por:

• Défice de absorção
• Afeção hepática e alteração do metabolismo e armazenamento de nutrientes.

Como consequência do défice de aporte calórico, verifica-se uma perda ponderal, perda de
massa muscular, perda de tecido adiposo subcutâneo e um potencial estado de edema por
hipoalbuminémia (isto sobretudo já em doentes com uma eventual cirrose hepática).

Efeitos sobre o sistema nervoso

Para além da síndrome de


abstinência ou de privação, há
outras alterações
neuropsiquiátricas como a
encefalopatia de Wernicke e a
síndrome de Korsakoff que são
caracterizadas por alterações típicas
que envolvem o défice de tiamina
(vitamina B1). Este pode dever-se a
um aporte deficiente por absorção
alterada, comum no alcoolismo
crónico, ou por redução do
armazenamento, pois esta
armazenada no fígado. A tiamina é
um cofator essencial para a
atividade da alfa-cetoglutarato
desidrogenase. Como consequência da diminuição da atividade desta enzima por ausência de
tiamina, há acumulação de glutamato com consequente citotoxicidade do SNC. Por outro lado,
o défice de vitamina B1 condiciona uma diminuição difusa da capacidade de utilizar a própria
glicose no SNC, condicionando um estado de privação de energia, que terá consequências sobre
o SNC, levando a lesão neuronal.

Efeitos sobre o sistema cardiovascular

O consumo de bebidas alcoólicas


num estado moderado, isto é,
menos de 2 bebidas padrão por dia
para as mulheres e menos de 3 para
os homens, associa-se a uma
redução da mortalidade
cardiovascular, pois tem uma série
de efeitos benéficos no organismo
por aumento das HDL; diminuição
da agregação plaquetária e da
fibrinogénese (com melhoria do
perfil anticoagulante); aumento da
atividade do ativador do plasminogénio tecidual (tPA), que converte o plasminogénio a plasmina
(enzima fibrinolítica) e diminuição do inibidor do ativador de plasminogénio (PAI-1) com
correspondente melhoria do perfil trombótico; e vasodilatação coronária. Há ainda a ação dos
flavonóides do vinho tinto que inibem oxidação das lipoproteínas, que se estende a outras
bebidas de teor alcoólico. No entanto, apesar do consumo moderado se associar a benefícios
cardiovasculares, este apresenta uma “curva em J”, sendo que consumos excessivos de álcool
têm efeitos deletérios sobre o sistema CV e o risco de mortalidade aumenta.

Cardiomiopatia dilatada

Entre os efeitos do abuso do álcool no sistema CV encontra-se a cardiomiopatia dilatada, que


se caracteriza por uma dilatação ventricular por hiperplasia dos cardiomiócitos e fibrose
intersticial. Entre as causas apontadas e associada a esta patologia destaca-se a síntese e efeito
dos etil esteres de ácidos gordos (FAEE – Fatty acid ethyl esters) pois, não havendo oxidação do
álcool no miocárdio, este será metabolizado pelas vias não oxidativas, e esta síntese parece ter
aqui um efeito tóxico importante pois aumenta os níveis de cálcio no citosol, quer por
estimulação da via do IP3, quer por disfunção mitocondrial com diminuição do ATP e
consequentemente da atividade da cálcio ATPase. Este aumento do cálcio citosólico terá como
consequência a lesão cardiomiócitos, e eventual morte celular com fibrose.

o Deficiência de tiamina
o Exposições secundárias (tabaco, cobalto,
arsénico)
o Mutações DNA mitocondrial? Genótipos DD
do ECA?
o Efeito direto do Etanol
o Inibição síntese proteica
o Acetaldeído (via EROs; fosforilação
mitocondrial; vasospasmo; troponina T)
o Distribuição do cálcio/interação cálcio-
miofilamentos
o Diminuição do glutatião
o Etil Ésteres de ácidos gordos
o Resposta inflamatória (anticorpos contra adutos proteínas-acetaldeído)
o Redução de expressão de recetores
o Alteração de estrutura membranas
o Comorbilidades: Hipertensão arterial

Síndrome fetal alcoólico

• Atraso no crescimento
• Envolvimento do SNC (défices cognitivos e de aprendizagem )
• Dismorfologia facial
o Fendas palpebrais pequenas
o Lábio superior convexo e sem sulco
o Nariz pequeno
o Narinas antevertidas
• ADH fetal com atividade inferior a 10% do adulto.
• Líquido amniótico como reservatório de álcool

Sistema gastrointestinal

O aumento do consumo de álcool


condiciona lesão direta sobre o tubo
digestivo. Logo a nível gástrico pode
levar a uma gastropatia induzida pelo
álcool e a um aumento da produção
ácida, que se associa ao
desenvolvimento do refluxo
gastroesofágico e uma consequente
esofagite de refluxo. Sobre o tubo
digestivo mais proximal, o álcool vai
provocar lesão da mucosa e
alterações da motilidade
gastrointestinal, que vão levar à
formação de zonas de estase e posteriormente de zonas de aumento da permeabilidade
intestinal (decorrentes da própria lesão da mucosa e diminuição da produção de prostaglandinas
causadas pelo álcool), com translocação bacteriana para a circulação. Isto gera (de forma
homónima ao que acontece na cirrose hepática) um estado pró-inflamatório potencial com
ativação das células de Kupffer. Quanto a outros órgãos do sistema digestivo, nomeadamente o
pâncreas e o fígado são de referir a pancreatite crónica e a doença hepática alcoólica.

Pancreatite alcoólica

O álcool é uma das causas tanto de pancreatite aguda como de crónica. Devido à geração de
radicais livre e etil ésteres de ácidos gordos que ocorre durante a sua metabolização, o álcool
vai condicionar o funcionamento das células acinares e das células estreladas pancreáticas. Nas
células acinares pancreáticas haverá uma libertação do conteúdo dos lisossomas com
consequente degradação e morte celular, levando a lesão do parênquima com necrose e a um
processo pancreatite aguda alcoólica. Nesta, o álcool afeta ainda a regulação dos níveis de cálcio
intracelulares, levando a níveis aumentados deste, que irão promover a ativação do
tripsinogénio, processo que pode também levar a uma pancreatite. Por outro lado, na
pancreatite crónica há, para além da lesão parenquimatosa (com resposta inflamatória e
produção de radicais livres), uma ativação das células estreladas pancreáticas (homónimas das
do fígado) com consequente fibrose.

Doença hepática alcoólica

A doença hepática alcoólica é uma das principais causas de doença


hepática crónica. A associação entre o consumo de álcool e a
doença hepática alcoólica está bem documentada, apesar de
apenas uma pequena percentagem de alcoólicos desenvolver
cirrose.

O risco de cirrose aumenta proporcionalmente com o consumo de


mais de 30g álcool por dia, sendo que o maior risco está associado
a um consumo superior a 120g/dia. Presume-se que outros fatores,
como sexo, características genéticas e influência ambiental
(incluindo infeção viral crónica) desempenhem um papel na génese
da doença hepática alcoólica.
A hepatite alcoólica é uma síndrome clínica, em
que ocorre icterícia e falência hepática após
décadas de consumo excessivo de álcool. A
idade típica de apresentação é 40-60 anos.

O sinal cardinal da hepatite alcoólica é o rápido


aparecimento de icterícia. Outros sinais e
sintomas comuns incluem febre, ascite e perda
muscular. Pacientes com hepatite alcoólica
grave podem desenvolver encefalopatia
hepática. Tipicamente o fígado apresenta-se
distendido.

Na doença hepática crónica


encontram-se um conjunto de
alterações laboratoriais que nos
permitem distinguir a etiologia
alcoólica de outras causas de doença
hepática. Entre as provas hepáticas são
de destacar a AST (aspartato
aminotransferase) e ALT (alanina
aminotransferase), presentes no citosol
dos hepatócitos, que se libertam e
aumentam aquando de lesão
hepatocelular. Na doença hepática
alcoólica este aumento, tipicamente,
não é superior, e caso seja há que
desconfiar de outras causas sobrepostas ou associadas. Outra característica é o rácio AST/ALT
que será de 2/1. A γ-GT (gama-glutamil transferase) está presente nas vias biliares e o seu
aumento traduz lesão na árvore biliar ou nos colangiócitos, e costuma estar bastante aumentada
pois é uma enzima induzida pelo álcool, no entanto não é especifica para este. A bilirrubina
total, um dos produtos da metabolização do heme, é também um indicador de doença hepática
e costuma estar aumentada num doente com hepatite aguda alcoólica, desproporcionalmente
ao que é o aumento da fosfatase alcalina; nestes casos há um aumento da bilirrubina conjugada
pois a conjugação desta não se encontra afetada, não ocorre é excreção da mesma na via biliar,
acumulando-se e entrando outra vez em circulação. Na hepatite alcoólica poderão aumentar
ainda os polimorfonucleares, sendo que um aumento superior a 5500/μL prediz hepatite
alcoólica grave quando a função discriminante é superior a 32.

A microscopia revela lesão hepatocelular caracterizada por hepatócitos balonizados que muitas
vezes contêm corpos de Mallory rodeados por neutrófilos. A presença de esteatose também é
comum. A fibrose intrasinusoidal (no espaço entre as células endoteliais e os hepatócitos) é uma
característica da hepatite alcoólica. A fibrose perivenular, periportal e a cirrose, que são típicas
da fibrose alcoólica, muitas vezes coexistem com os achados da hepatite alcoólica. Achados
histológicos adicionais incluem degeneração dos hepatócitos e necrose.

A recuperação da hepatite alcoólica é ditada pela abstinência, presença de uma síndrome não
muito severa e pela implementação de terapêutica apropriada. Dentro de várias semanas após
a descontinuação do consumo de álcool, resolve-se a febre e a icterícia, mas a ascite e a
encefalopatia hepática podem persistir por vários meses. A icterícia prolongada e o
desenvolvimento de insuficiência renal estão associadas a um pior prognóstico. Apesar de os
pacientes aderirem ao tratamento médico, a recuperação da hepatite alcoólica não é garantida.

Mecanismos da lesão hepática mediada pelo álcool:

O álcool é metabolizado nos hepatócitos através da oxidação a acetaldeído, e


subsequentemente a acetato. O metabolismo oxidativo do álcool gera um excesso de NADH. O
aumento do ratio NADH/NADPH inibe a oxidação de ácidos gordos e o ciclo do ácido
tricarboxílico, e promove a lipogénese. Para além disso, o etanol promove o metabolismo
lipídico através da inibição da PPAR-α (peroxisome-proliferator-activated receptor α) e da AMP
cinase, e através da estimulação do fator de transcrição sterol regulatory element-binding
protein 1. Em combinação, estes efeitos resultam na acumulação de TAG no fígado → esteatose.

A permeabilidade intestinal, que é uma soma de fatores que promovem ou restringem a


translocação ou transferência de endotoxina LPS do lúmen intestinal para o sangue portal,
parece estar alterada na exposição ao álcool a longo prazo. Tanto a permeabilidade intestinal
como os níveis de endotoxina-LPS estão elevados em pacientes com lesão hepática alcoólica.

Quando a endotoxina-LPS entra no sangue portal, liga-se à LPS-binding protein. O complexo


formado liga-se ao recetor CD14 na membrana das células de Kupffer no fígado. A ativação das
células de Kupffer pela endotoxina-LPS requer 3 proteínas celulares: CD14 (também conhecido
como monocyte differentiation antigen), TLR4 e MD2, uma proteína que se associa ao TLR4 para
se ligar ao complexo LPS-LPS binding protein.

As vias de sinalização do TLR4 incluem a ativação do fator de transcrição EGR1 (early growth
response 1), do NF-kB e do TRIF (toll–interleukin-1–receptor domain-containing adapter-
inducing interferon-beta). O EGR1 desempenha um papel importante na produção de TNF-α
estimulada pelos lipócitos.

A ingestão de álcool aumenta a excreção de marcadores de stress oxidativo – as células de


Kupffer ativadas e os hepatócitos são fontes de radicais livres (especialmente intermediários
reativos de oxigénio), que são produzidos em resposta a exposição alcoólica a curto ou a longo
prazo. O stress oxidativo media a lesão hepática induzida pelo álcool, pelo menos em parte,
através da atividade do citocromo P450 2E1, levando a lesão mitocondrial, ativação da apoptose
e sobreregulação da síntese lipídica.

O TNF-α, produzido pelas células de Kupffer, parece ter um papel importante na génese da
hepatite alcoólica; os seus níveis circulantes são mais elevados em pacientes com hepatite
alcoólica. A citotoxidade hepática induzida pelo TNF-α é mediada pelo TNF-R1. A capacidade
peroxidativa do TNF-a nos hepatócitos está restrita às mitocôndrias e é exacerbada pela
depleção de glutationa mitocondrial induzida pelo álcool, o que sugere que a mitocôndria é o
alvo do TNF-a. O consumo alcoólico a longo prazo altera a balanço intracelular entre os níveis
de S-adenosilmetionina e S-adenosilhomocisteína, resultando numa diminuição do rácio S-
adenosilmetionina/S-adenosilhomocisteína. A diminuição deste rácio pode contribuir para a
lesão hepática uma vez que a S-adenosilhomocisteína exacerba a hepatotoxicidade do TNF-a,
enquanto que a S-adenosilmetionina a diminui.

A administração de etanol causa tanto a libertação do citocromo c mitocondrial como a


expressão do ligando Fas, levando a apoptose hepática através da via da ativação da caspase 3.
Para além disso, estes sinais apoptóticos podem aumentar a sensibilidade dos hepaócitos à
lesão através de um aumento das células T natural killers no fígado.
Legenda – aspetos da fisiopatologia da lesão hepática induzida pelo álcool:

O etanol promove a translocação do LPS (lipopolissacárido) do lúmen intestinal para a veia porta, onde
segue até ao fígado (imagem A).

O fígado normal consiste em sinusoides delimitados por células endoteliais. As células de Kupffer situam-se
nos sinusoides, enquanto as células estreladas se localizam entre as células endoteliais e os hepatócitos
(imagem B). Na célula de Kupffer, o LPS liga-se ao CD14, que se combina com o TLR4, levando à ativação de
múltiplos genes de citocinas. A NADPH oxidase liberta espécies reativas de oxigénio (ERO), que ativam genes
de citocinas nas células de Kupffer e que podem ter efeitos nos hepatócitos e nas células estreladas. A
citocinas como o TNF-α têm tanto efeitos parácrinos nos hepatócitos como efeitos sistémicos – febre,
anorexia e perda de peso. A IL-8 e o MCP-1 (monocyte chemotactic protein 1) atraem neutrófilos e
macrófagos. O PDGF e o TGF-β contribuem para a ativação, migração e multiplicação das células estreladas,
aumentando a fibrose hepática.

No hepatócito, o etanol é convertido a acetaldeído pela enzima citosólica ADH e pela enzima microssomal
CYP2E1 (imagem C). O acetaldeído é convertido em acetato. Estas reações produzem NADH e inibem a
oxidação de TAG e ácidos gordos. As EROs libertadas pelo CYP2E1 e mitocôndrias causam peroxidação
lipídica e produzem carbonilos proteicos. Os produtos da peroxidação lipídica podem combinar-se com o
acetaldeído e com proteínas para formar neoantigénios, que podem estimular a resposta autoimune. A
inibição do proteossoma reduz o catabolismo das proteínas danificadas e pode contribuir para a acumulação
de citoqueratina e formação dos corpos de Mallory. A redução de enzimas que convertem a homocisteína
em metionina causam um aumento da concentração de homocisteína, causando stress sob o retículo
endoplasmático. O SREBP-1c é libertado pelo retículo endoplasmático sob stress e inicia a transcrição de
genes envolvidos na síntese de TAG e ácidos gordos. A diminuição da ligação do PPAR-α ao DNA reduz a
expressão de genes envolvidos na oxidação dos ácidos gordos. O transporte de glutationa do citosol para a
mitocôndria está reduzido. A ativação do Fas e do TNF-R1 ativa a caspase 8, causando lesão mitocondrial e
abertura dos MTP (mitochondrial transition pore), libertando citocromo c e caspases que contribuem para
a apoptose. A ativação do TNF-R1 leva à ativação do NF-kB e à expressão de genes que promovem a
sobrevivência da célula.

Portanto, as fases da doença hepática alcoólica incluem lesão hepatocelular e inflamação,


desenvolvendo-se uma hepatite com posterior fibrose, e por último aumenta o risco de
carcinoma hepatocelular. A lesão hepatocelular e inflamação, na doença hepática alcoólica,
decorrem do aumento do acetaldeído (com formação de adutos e resposta imunológica), da
lesão intestinal com consequente endotoxinémia e ativação das células de Kupffer (resposta
inflamatória), e ativação das células estreladas hepáticas e fibrose. Isto é a génese da progressão
da esteatose e esteatohepatite alcoólica para doença hepática crónica e cirrose, com
consequente disfunção hepatocelular e hipertensão portal.

Alcoolismo – efeitos hematológicos

O álcool, ao alterar e a fluidificar as membranas, altera o tamanho dos eritrócitos; por outro lado
o défice de ácido fólico dos doentes alcoólicos condiciona uma anemia macrocítica. Em doentes
com cirrose há também a trombocitopenia.

Alcoolismo – associação com neoplasias


O álcool tem vindo a associar-se a neoplasias pelos seus produtos metabólicos e consequências
endócrinas. O dano do DNA causado pelo acetaldeído associa-se a neoplasias da cabeça e
pescoço, nomeadamente, esófago. A própria doença hepática crónica aumenta o risco de
carcinoma hepatocelular, o aumento da concentração de estrogénio conduz a um risco
aumentado de neoplasia da mama, e entre as neoplasias com mais evidência encontra-se ainda
o cancro colorretal.

Alcoolismo – mortalidade

Nenhum nível de consumo de álcool


melhora a saúde
CANCRO – FISIOPAT

A neoplasia representa um espectro de doenças, caracterizado por crescimento celular e invasão anormais. Esta pode
ser classificada segundo o tecido de origem ou localização anatómica.

O cancro é uma doença com autonomia genética, ou seja, por alteração dos mecanismos genéticos, torna-se
competente/autónoma e cresce no hospedeiro, necessitando de uma inter-relação estreita com os tecidos do
hospedeiro para progredir. O mesmo tipo de cancro, com o mesmo tipo histológico e no mesmo estadio pode ter
comportamentos muito diferentes de hospedeiro para hospedeiro.

Todos os sintomas, sinais, quadros laboratoriais ou exames de imagem sujeitos a interpretação num doente com
diagnóstico de cancro têm sempre de ser analisados segundo o binómio que existe entre a doença oncológica e o seu
hospedeiro. As alterações encontradas podem ser próprias do hospedeiro (por exemplo, devido a patologias prévias)
ou específicas da doença oncológica (como a sua forma de progressão).

O cancro tem manifestações heterogéneas, ou seja, tem formas diferentes de se exprimir conforme o hospedeiro em
que se encontra.

Esta heterogeneidade é explicada pela biologia do cancro, que lhe confere três características principais:

• Crescimento: que é específico de cada população de células;


• Desdiferenciação: processo de instabilidade genética pelo qual a célula adquire um novo fenótipo através da
regressão no estadio de diferenciação (quando comparada com o tecido de origem), tornando-se mais
indiferenciada;
• Metastização: capacidade única desta doença, que assemelha o cancro ao desenvolvimento embrionário – as
células voltam a ter capacidade de se replicar e migrar. A metastização é responsável por 90% das mortes por
cancro.

A falta de compreensão dos fenómenos que caracterizam a biologia do


cancro são um impedimento à sua utilização como alvos terapêuticos. Se
conseguíssemos controlar a metastização curaríamos uma grande parte
das doenças oncológicas.

As manifestações clínicas desta doença dependem de:

• Órgão atingido
• Grau de desdiferenciação das células
• Capacidade de produzir fatores humorais.
Assim sendo, podemos dividir as manifestações do cancro em 3 grupos:

1. Lesões por ação mecânica: o crescimento da


população de células gera conflito de espaço com
consequente destruição do órgão atingido. Existe
remodelação da matriz no órgão em causa em
resposta a esta expansão. Estas lesões podem
originar sintomas que se devem ao tumor
primário ou à metastização e que, consoante o
local anatómico, terão uma sintomatologia
própria, podendo estar implícito o envolvimento
virtual de qualquer órgão.
2. Produção de fatores humorais: pelo cancro ou
pelo hospedeiro em reação à presença do mesmo. Nesta situação criam-se quadros clínicos que não são
devido à ação direta das células tumorais e a que chamamos paraneoplásicos.
3. Competição biológica – caquexia (poderia encaixar-se como sintoma paraneoplásico).

Manifestações Mecânicas/Efeitos loco-regionais do Tumor Primário

As manifestações do tumor primário são organizadas em cinco quadros clínicos:

1. Obstrução
2. Hemorragia
3. Fistulização
4. Perfuração
5. Compressão de estruturas vizinhas

1. Obstrução

Vias respiratórias:

• Dispneia alta – tumor da laringe;


• Atelectasia – carcinoma brônquico;
• Infeção respiratória de repetição no mesmo segmento pulmonar – pode ser a 1ª manifestação de carcinoma
brônquico.

Vias urinárias:

• Hidronefrose – tumor da próstata ou da bexiga (carcinoma difuso) com afeção dos meatos ureterais;
• Infeção urinária de repetição – a inflamação recorrente dos fenómenos obstrutivos facilita a infeção das vias
urinárias.

Vias biliares:

• Icterícia colestática – tumor da cabeça do pâncreas (se o tumor estiver no corpo ou na cauda do pâncreas, a
primeira manifestação será dor por invasão do plexo solhar).

Tubo digestivo:

• Disfagia (primeiro para sólidos, depois completa) – tumor primário do esófago;


• Vómitos de repetição e precoces – carcinoma gástrico;
• Oclusão intestinal – cancro do cólon (mais frequentemente do esquerdo, cujo diâmetro é menor).

2. Hemorragia

Ocorre predominante nos órgãos ocos (como o pulmão ou o tubo digestivo) e pode ser oculta ou não oculta.

Vias respiratórias:

• Hemoptise – carcinoma brônquico.


Tubo digestivo (hemorragia gástrica):

• Hematemeses – carcinoma gástrico;


• Melenas – carcinoma gástrico; ´
• Retorragias – carcinoma do cólon (principalmente esquerdo);
• Anemia microcítica ferropénica – carcinoma do cólon direito (cego).

Este tipo de anemia surge frequentemente como consequência de neoplasia (sobretudo de adenocarcinomas do cólon
direito), pelo que, quando arrastada, deve ser alvo de análise cuidada. Muitas vezes esta é a única manifestação de
doença e os doentes chegam a apresentar valores de 6/7g de hemoglobina devido aos mecanismos adaptação crónica.

Neoplasia do cólon direito (cego) – o tumor cresce para além da


sua capacidade de angiogénese, ocorrendo morte celular e
erosão à superfície do tumor com destruição de vasos e
hemorragia.

Vias urinárias

• Hematúria – cancro da bexiga (manifestação específica).

Ginecológica:

• Metrorragia – carcinoma do endométrio ou do colo do útero.

Outras localizações (são muito mais raras e geralmente fatais):

• Hemoperitoneu – por rutura do carcinoma hepatocelular (raro).

As metrorragias são a manifestação major dos tumores ginecológicos. No entanto, podem ser desvalorizadas em
mulheres em idade fértil. Nestes casos, devido à sua comicidade, manifestam-se frequentemente com anemia
ferropénica.

3. Fistulização

Manifestação do tumor primário que indica gravidade.

Tubo digestivo / Vias respiratórias

• Esófago – traqueia – carcinoma do esófago (causa frequente de infeções graves, dispneia e aspirações de
alimentos).

Nestes casos não se pode fazer radioterapia já que esta terapêutica agrava a fístula ao abrir mais o canal de
comunicação. Adicionalmente, deve ser utilizada uma prótese endobrônquica para evitar fenómenos de aspiração.
Tubo digestivo/Vias urinárias (não é raro):

• Cólon – bexiga – carcinoma do cólon sigmoideu: neste tipo de situações, ocorrem infeções urinárias de
repetição (devido à fistulização entre a sigmoideia/cólon esquerdo e a bexiga), podem haver retorragias
(podendo estas ser confundidas com patologia hemorroidária), fecalúria e hematúria.

4. Perfuração

Pode ser a primeira manifestação de um tumor primário (especialmente do tubo digestivo), embora seja pouco
frequente. Os tumores que lhe dão origem são geralmente de grandes dimensões e o seu crescimento leva-o a
atravessar a parede (não cresce para dentro do lúmen), necrosando espontaneamente e causando perfuração.

• Carcinoma do cólon ou gástrico – se a perfuração for tapada pode manifestar-se como peritonite localizada.

5. Compressão de estruturas próximas

Nervosas (relativamente frequentes):

• Síndrome de Pancoast – tumor do vértice do pulmão. A compressão do plexo braquial resulta em cervicalgia
que pode atingir o braço e os dedos.
• Lesão do nervo recorrente – carcinoma laríngeo ou do esófago; este tipo de compressão traduz por
rouquidão.

Vasculares:

• Obstrução da veia cava inferior - sarcoma retroperitoneal. Manifesta-se por edema dos membros inferiores
e por circulação colateral com trajeto periférico ao nível da parede abdominal (diferente da cabeça de medusa
característica da cirrose hepática).

Manifestações Mecânicas das Metástases:

Alguns cancros têm locais preferenciais para metastização. Deste modo, para atuação diagnóstica precoce e
intervenção terapêutica mais eficaz, é importante entender o tropismo das células tumorais para determinado órgão
e conhecer o padrão comum de metastização dos diferentes tumores.

Nota: o melanoma faz metástases virtualmente em qualquer local do organismo.

Cérebro

O crânio, por ser uma cavidade inextensível, é um local onde o conflito de espaço físico entre parênquima normal e
lesão neoplásica é maior.

Os tumores que mais frequentemente metastização para o SNC são: o cancro do pulmão, o da mama e o do rim.
A metastização pode manifestar-se com:

• Hipertensão intracraniana: pode ser a manifestação precoce de uma lesão em crescimento no tecido cerebral.

A hipertensão intracraniana de causa neoplásica é mais frequente em tumores com localização infratentorial e
tem como sintomas: cefaleias progressivas que se agravam com o decúbito e que podem acordar o doente durante
a noite (diferente das cefaleias de cansaço) e vómitos numa fase mais avançada.

É obrigatório fazer TAC crânio-encefálica em adultos com convulsões sem história de epilepsia ou de traumatismo
craniano para descartar a hipótese de neoplasia do SNC.

• Convulsões: ocorrem geralmente aquando da existência de metástases mais periféricas;


• Ataxia da marcha: por lesões no cerebelo (geralmente acompanhada de vómitos);
• Meningite carcinomatosa: forma de metastização de alguns tumores (sobretudo os que envolvem o osso
como o cancro da mama e o da próstata). É uma manifestação neurológica que, geralmente, envolve os pares
cranianos e em que o quadro de obnubilação e confusão só surge numa fase mais final.

Por se tratar de uma inflamação (e não uma infeção), o termo correto seria meningiose, e não meningite.

Pele

A metastização para a pele é frequente em alguns tumores, particularmente


nos da mama, e geralmente, ainda que existam exceções, apresenta
localização próxima do tumor primário. Têm como manifestações:

• Ulceração;
• Hemorragia;
• Infeção.

Quando surge a metastização cutânea permite ao doente ver o seu tumor a


crescer, o que contribui para uma diminuição da qualidade de vida.

Fígado

As metástases hepáticas têm origem, geralmente, em tumores coloretais, gástrico, da mama ou do pulmão e podem
manifestar-se com:

• Hepatomegália;
• Icterícia: devido a envolvimento hepático difuso ou em segmentos que levam à compressão dos canais
biliares;
• Ascite;
• Febre: por necrose tumoral e produção de interleucinas.

A febre com duração de várias semanas é normalmente causada por doença auto-imune ou neoplasia. Caracteriza-se
por ser vespertina e por ceder à administração de AINE’s (como o naproxeno – fármaco utilizado como diagnóstico
diferencial entre febre de origem neoplásica e infecciosa).

Peritoneal

A metastização peritoneal tem origem típica em cancros do ovário, do cólon e gástrico e cursa com:

• Ascite: é a manifestação predominante;


• Sub-oclusão / Oclusão intestinal: não ocorre raramente. É a manifestação típica dos tumores do ovário, que
crescem nas serosas e raramente originam metástases intra-parenquimatosas;

O cancro do ovário raramente provoca metastização intra-hepática, mas afeta frequentemente a sua cápsula. De igual
forma, metastiza para a pleura, mas não origina metástases nodulares pulmonares.

Osso

Qualquer osso do organismo pode ser afetado com metástases, sem que haja predileção das células cancerígenas por
algum em especial.

Para o osso, metastizam frequentemente os cancros da mama, da próstata, do pulmão, do rim e da tiróide. Estas
metástases manifestam-se com:

• Dor: sintoma frequente;


• Fratura patológica;
• Complicação neurológica: devido a compressão medular ou a lesão radicular.
• Infiltração da medula óssea: mais rara e grave. Geralmente cursa com pancitopenia ou anemia
leucoeritroblástica.
O cancro da mama e da próstata metastizam para o osso em 70% dos casos. O cancro do rim e do pulmão conduzem
a metástases ósseas em apenas 30% dos casos.

Pulmão / Pleura

Os cancros que mais metastizam para o pulmão e para a pleura são: o cancro da mama, o do pulmão, o do rim, o do
cólon e os sarcomas. Estas metástases podem revelar-se com:

• Dificuldade respiratória: dispneia (a metastização pulmonar mais frequente é sob a forma de nódulos e só dá
dispneia na fase terminal da doença, quando há afeção de uma grande área de parênquima pulmonar);
• Derrame Pleural: resolve-se com toracocentese;
• Linfangiose carcinomatosa: neste caso, a metastização não é nodular caracteriza-se por infiltração dos septos
e bloqueio alveolocapilar, levando a manifestações de dispneia precoce com broncospasmo. Este padrão é
extremamente difícil de resolver;
• Obstrução brônquica (atelectasia): raro;
• Tosse;
• Hemoptise.
Fig. 16 - TAC: derrame pleural metastático.

Fig. 17: Imagiologia de metastização pulmonar com padrão de


linfangiose carcinomatosa. Visualizam-se septos interalveolares espessados por infiltração tumoral, que provocam bloqueio
alveolar e dispneia.

Mediastino

O mediastino pode sofrer metastizações dos cancros da mama, do pulmão e dos linfomas. As metástases mediastínicas
podem manifestar-se com:

• Síndroma da Veia Cava Superior: cursa com dispneia, tosse, ingurgitamento das veias jugulares, edema em
estola, entre outros.
• Tamponamento cardíaco: deve-se à infiltração (de forma retrógrada a partir dos gânglios do mediastino) do
pericárdio. Resolve-se com pericardiocentese;
• Compressão de vias aéreas: o que leva a tosse persistente.

Gânglios linfáticos

A metastização para os gânglios linfáticos pode cursar com:

• Linfedema: do membro superior por metástases do cancro da mama e do inferior por metástases (por
exemplo, ao nível dos gânglios inguinais) do cancro da próstata, do colo do útero e do ovário.
• Icterícia: devido a adenopatias no hilo hepático. Pode ocorrer como primeira manifestação do carcinoma
gástrico e de linfomas.
• Insuficiência renal por hidronefrose: devido a infiltração retroperitoneal com invasão dos ureteres por um
carcinoma colorretal, do colo do útero ou do ovário.

Síndromes paraneoplásicos

As síndromes paraneoplásicas caracterizam-se por manifestações endócrinas, neurológicas, hematológicas, cutâneas,


entre outras, que evoluem simultaneamente com a neoplasia, apesar de não se deverem a uma ação direta das células
tumorais. Os sintomas e sinais que apresentam resultam da produção de fatores humorais, quer pela célula tumoral,
quer pelo hospedeiro em resposta à presença do tumor, logo, o tratamento da neoplasia leva à atenuação destas
manifestações.

A expressão de PTHrp é importante em qualquer processo de metastização óssea. Em alguns casos o tumor utiliza
este fator humoral in loco, para a progressão no osso. Noutros consegue segregá-lo em grandes quantidades para a
circulação, simulando a ação da PTH e causando hipercalcémia.
Referindo alguns exemplos, temos afeções dos sistemas:

1) Endócrino

Hipercalcémia tumoral: ocorre quase sempre devido à


produção de um análogo da PTH, o PTHrp
(característica das neoplasias do pulmão, da mama e
do rim). Também pode dever-se à produção de IL-1 e
IL-6 (característica do mieloma).

Segregação inapropriada de ADH (SIHAD): forma


paraneoplásica mais frequente, que se deve a
aumento de produção de Hormona Antidiurética
(ADH) ou de Péptido Natriurético Auricular e que se
manifesta com hiponatrémia.

Síndroma de Cushing: devido a produção de ACTH e


característico de cancro de pequenas células do
pulmão.

Ginecomastia: por produção de Gonadotrofina


Coriónica Humana (HCG); pode acontecer nos
carcinomas do testículo e do pulmão, sendo
necessário diagnóstico diferencial para distinguir de
outras causas, como o uso de fármacos como a
espironolactona;

Hipoglicémia: pode ser uma manifestação da produção anómala de aumento de IGF-2, característica de sarcomas.

Síndroma Carcinóide: quadro típico que ocorre por produção de serotonina e outras substâncias (Histaminas,
Bradicininas) nos tumores neuroendócrinos.

Mecanismo patofisiológico de TIH (tumor-induced


hypercalcemia). A reabsorção óssea generalizada e
a diminuição da excreção renal de cálcio provocam
a hipercalcémia.

2) Neurológico (manifestações mais raras e difíceis de diagnosticar)

Retinopatia: por produção de anticorpo dirigido à retina (anti-car) como no cancro do pulmão.

Degenerescência Cerebelosa Cortical Sub-aguda: por produção dos anticorpos: anti-yo, anti-Tr, anti-Hu. Pode ocorrer
devido a cancro do ovário, da mama e de pequenas células do pulmão.
Polineuropatia Desmielinizante: produção de anticorpo anti-mag que gera um quadro devastador e que se pode
observar em carcinoma gástrico, no linfoma e no mieloma.

Síndroma Miasténico de Eaton-Lambert: típico dos tumores de pequenas células do pulmão e, em menor escala, no
cancro da mama e da próstata. Simula a Miastenia Gravis devido a diminuição da libertação de acetilcolina por
produção de anticorpos contra os canais de cálcio da placa motora.

Polimiosite/Dermatosite: no adulto indica quase sempre síndroma paraneoplásico e adianta-se muitas vezes à
descoberta da neoplasia, podendo ser a primeira manifestação do cancro do pulmão ou da mama.

3) Hematológico

Eritrocitose: manifestação rara associada à produção anómala de eritropoietina em tumores do rim, hepatomas e
hemangioblastomas do cerebelo.

Granulocitose: síndroma paraneoplásico frequente que muitas vezes não é acompanhada de febre (o que poderia
fazer suspeitar de uma infeção em curso), ainda que possa associar-se a elevação da PCR. Pode acontecer em tumores
do tubo digestivo (especialmente do intestino), por produção de GCSF e GM-CSF, ou do pulmão, por produção de IL-
6.

Trombocitose: mais rara do que a granulocitose, ocorre devido à produção de IL-6 em cancros do tubo digestivo, do
pulmão e da mama.

Eosinofilia: ainda mais rara; surge por vezes em linfomas associada à produção de IL-5;

Hipercoagulabilidade (Síndrome de Trousseau, por exemplo): é frequente e grave, não sendo raros os casos de
flebotrombose do membro inferior como primeira manifestação de cancro do pâncreas (por produção de fator
tecidual). Também pode acontecer devido a carcinoma do pulmão (por produção de factor V) e do tubo digestivo (por
produção de mucinas).

Microangiopatia trombótica: associada a quadro de coagulação intravascular disseminada (CID), ocorrendo em alguns
carcinomas gástricos com invasão medular.
Anemia associada a Neoplasia

A anemia que surge associada a neoplasias é por norma multifatorial e


ocorre devido a: hemorragias, hemólise (rara), diminuição da produção
de eritropoietina, não utilização de ferro pelos precursores dos
eritrócitos (anemia da doença crónica), carências nutricionais, invasão
medular e efeitos da quimioterapia e radioterapia.

Caquexia

Quadro extremamente devastador, em que o doente tem anorexia devido a:

• Disfagia (por efeito local do tumor);


• Repulsa pelos alimentos;
• Alteração do sentido do gosto e do olfato (todos os alimentos lhe sabem a carne estragada);
• Mucosite devido à terapêutica que está a realizar.

Na caquexia, há perda acentuada de massa


muscular e dificuldade de movimentos, já que,
do ponto de vista metabólico, é caracterizada
por aumento da proteólise e da lipólise e uma
diminuição da síntese do glicogénio e da
segregação de insulina.

A caquexia não é devida a fenómenos


mecânicos, mas sim à competição biológica que
existe entre tumor e tecidos do hospedeiro. Esta ocorre devido à produção ou indução de produção de fatores
humorais pela neoplasia, sendo o principal o TNF-α. Outros, como o IFN-gama (leucócitos), IL-1 e IL-6 (macrófagos)
também contribuem para esta devastação. Ou seja, o doente oncológico com doença incurável vive com
ativação/ampliação quase permanente do sistema inflamatório.

Recentemente, surgiu um novo conceito para a compreensão deste fenómeno: a produção de algumas citocinas pelo
hospedeiro (devido ao tumor) leva à metabolização do ácido araquidónico da membrana citoplasmática das células
e a consequente amplificação do sinal inflamatório, através da ativação do NFk- B.

A produção de outro fator, o PIF, também conduz à metabolização do ácido araquidónico, o que pode levar à produção
de um metabolito (15 HETE) que induz a sinalização de proteínas musculares e o seu reconhecimento pelo sistema de
proteossomas, levando à degradação da massa muscular que se observa nestes doentes.
É de salientar que, a caquexia não é proporcional ao tamanho do tumor, estando relacionada com a capacidade de
competição biológica entre este e o hospedeiro.

As neoplasias manifestam-se frequentemente por quadros clínicos que são devidos à produção de fatores humorais,
interleucinas (etc) por parte das células neoplásicas ou do hospedeiro e que são responsáveis por sintomas e sinais
importantes, tais como: anorexia, emagrecimento acentuado.

Um dos fatores identificados é o TNF (factor de necrose tumoral) que causa anorexia e emagrecimento.

O índice de “performance status” avaliado pela escala da OMS ou pelo índice de Karnofsky, é um bom indicador da
competição biológica entre hospedeiro e neoplasia. Aquele índice é, ainda hoje, um dos fatores de prognóstico mais
importantes.

Estratégias Terapêuticas na Doença Oncológica

Quando se diagnostica um doente oncológico sabe-se à partida que a história da doença já longa, visto que, existe um
longo processo desde a exposição aos agentes carcinogénios até ocorrerem as primeiras manifestações de doença.

As nossas possibilidades de atuação são completamente diferentes consoante a fase em que encontramos o doente:

• Se formos capazes de diagnosticar numa fase em que existe apenas displasia podemos fazer quimioprevenção.
• Quando a doença consiste apenas no tumor primário opta-se por uma atitude curativa, que habitualmente
passa pela cirurgia.
• Quando passamos de um carcinoma “in situ” para um carcinoma invasivo, que já tem potencial metastático a
estratégia deixa de ser apenas loco-regional e passa a ser também sistémica.
O principal objetivo da estratégia terapêutica é a antecipação à história natural da doença, já que, ou se destrói o
tumor, ou a neoplasia destrói o hospedeiro. Assim, não há possibilidade de curar um cancro se não se erradicar toda
a população tumoral.

Há formas de doença neoplásica em que é possível uma longa convivência com o hospedeiro, mas, a partir de um
determinado volume tumoral, devido ao conflito biológico (e não ao físico), esta torna-se impossível.

À partida, todos os indivíduos seriam capazes de suportar uma massa ativa de 1Kg células tumorais, no entanto, o
hospedeiro morre antes disso.

O estudo de populações leucémicas permitiu a elaboração


de curvas que demonstram que os tumores têm uma fase
inicial de crescimento de ritmo acelerado que se vai
tornando mais lento com o aumento de volume tumoral
(Fig.29). Esta constatação tem implicações do ponto de vista
terapêutico, já que os agentes quimioterapêuticos atuam
nas células quando estas estão em replicação.

A cinética da população neoplásica depende de:

• Tempo de duplicação Curva Gompertziana do crescimento tumoral – o aspeto sigmóide


reflete as células em crescimento e as células que morrem.
• Fração proliferativa
• Balanço multiplicação / morte Celular

A quimioterapia permite erradicar células que estão em


divisão celular. Só alguns agentes, como os alquilantes, é que
conseguem eventualmente alterar a capacidade de
sobrevivência de células que estão em fase G0 (repouso).

No entanto, quando temos um grande volume tumoral, nem


todas as células tumorais estão em ciclo, e, considerando que a
população tumoral é heterogénea, pode não haver
sensibilidade de todas as células para aqueles agentes.
À medida que a população tumoral cresce, adquire
novas capacidades, como, por exemplo, a expressão do
gene MDR1 que codifica a glicoproteína de membrana
p170, capaz de realizar efluxo do citostático para fora da
célula, formando um mecanismo de resistência.

Sabe-se ainda que existem neoplasias hormono-


dependentes em que as células tumorais utilizam
fatores de crescimento para sobreviver (produzidos por
elas próprias ou pelo hospedeiro). Nestes casos, pode-se
tirar proveito desta dependência e usá-la como
estratégia terapêutica.

Outra característica das células tumorais é a capacidade de terem oncogenes ativos, o lhes permite crescer de forma
não controlada e metastizarem.

Terapêuticas Antineoplásicas

Como terapêuticas antineoplásicas, loco-regionais ou sistémicas, temos:

A cirurgia e a radiação removem ou matam o cancro, de forma regional, pelo que pequenos tumores e metástases
podem escapar e ocorrer uma recidiva.

A quimioterapia citotóxica atua por diversos mecanismos, mas eles partilham a propriedade de afetar primariamente
células em rápida replicação.

• Antimetabolitos que interferem com a elongação do DNA;


• Inibidores da topoimerase e antraciclinas que bloqueiam uma enzima chave para a replicação do DNA;
• As antraciclinas também são intercaladores de DNA e geram espécies reativas de oxigénio que danificam o
DNA;
• Agentes alquilantes que atingem o DNA;
• Platinum-based compounds form DNA adducts;
• Taxanes interfere with microtubule function.

As terapias hormonais incluem a modulação de recetores de hormonas ou de enzimas necessárias à síntese da


hormona em causa.
Agentes anti-tumorais específicos incluem moléculas pequenas biológicas que se ligam ou bloqueiam moléculas
especificias importantes para o crescimento tumoral.

A quimioterapia, por exemplo, não ultrapassa a barreira hemato-encefálica, o que torna a radioterapia muito
importante para tratar lesões intra-cerebrais. Mas, enquanto a radioterapia é uma terapêutica localizada, a
quimioterapia é sistémica, o que permite atuar sobre populações que não vemos mas têm um alto risco de estar
presentes.

Doença neoplásica loco-regional

Quando o doente aparece em fase loco-regional é importante perceber qual o risco da doença reaparecer noutros
órgãos, o que se faz através da avaliação do tamanho do tumor, dos gânglios envolvidos, do grau de diferenciação
celular e da expressão de oncoproteínas.

Se existir um tratamento demonstrado em fase 3 que reduza este risco, então esta terapêutica deve ser administrada
como adjuvante. Caso não exista, o doente vive com o risco e é apenas realizada vigilância.

Fig. 34 – Terapêutica de doença Loco-regional

Doença neoplásica sistémica

O intuito curativo de um cancro pressupõe a eliminação de todas as células tumorais. Se a doença for sistémica existem
apenas 10% de hipóteses de ser altamente sensível à terapêutica sistémica e potencialmente curável.

Caso as terapêuticas conhecidas e com eficácia comprovada não resultem, ficamos com uma doença disseminada,
sobre a qual se tem um intuito paliativo. A paliação pressupõe a melhoria da qualidade de vida dos doentes e o
prolongamento da sobrevida e resulta do balanço entre: eficácia na terapêutica antineoplásica e efeitos adversos
provocados.

Em oncologia quando o termo terapêutica paliativa designa terapêutica antineoplásica (quimioterapia, imunoterapia,
radioterapia ou cirurgia) que não consegue eliminar toda a população neoplásica (curar o doente) mas ao reduzir a
população neoplásica existente ou, ao impedir o seu crescimento, obtém uma regressão ou melhor controlo dos
sintomas causados pelo cancro.

No entanto a terapêutica empregue, ou a sequência de terapêuticas, causam frequentemente efeitos adversos, que
em alguns casos podem ser particularmente graves.

Frequentemente os inconvenientes provocados são compensados pelo alívio obtido com a eficácia da terapêutica.
Todavia esta margem de benefício tende a diminuir com o tempo, à medida que a doença neoplásica vai adquirindo
resistência à terapêutica.
Métodos de terapêutica neoplásica

1) Cirurgia Oncológica: pretende-se que seja eficaz no controlo da doença, o menos mutilante possível e informadora
sobre o estado loco-regional 10.

• Exemplo: cirurgia conservadora no cancro da mama (quandrantectomia) com esvaziamento axilar.

2) Radioterapia Para complementar a cirurgia

Para permitir a realização da cirurgia

No caso de existirem metástases ósseas ou cerebrais

A radioterapia adjuvante é aplicada após a cirurgia e visa diminuir o risco de recidiva local. É feita sobre o “leito
tumoral” e sobre as cadeias ganglionares regionais.

São exemplos de indicação para radioterapia adjuvante:

a) Cancro da mama tratado com cirurgia conservadora (não mastectomia) para evitar a recidiva na restante
mama, ou quando há glânglios envolvidos.
b) Cancro do reto com glânglios regionais positivos para tumor.

A radioterapia neoadjuvante é feita sobre tumores localmente avançados e pretende tornar estes tumores
ressecáveis. Isto é, com o efeito da radioterapia o tumor diminui de dimensões, fica mais circunscrito e, portanto,
abordável pela cirurgia. Quase sempre a radioterapia neoadjuvante faz-se acompanhar de quimioterapia
neoadjuvante.

A sensibilidade do tumor e dos tecidos que lhe estão próximos à


radiação ionizante é diferente. Contudo, por se querer ganhar
sensibilidade tumoral, aumentando a dose de radiação, pode haver
custos em termos de toxicidade para o tecido normal, já que, a
radioterapia tem atuação prolongada visto que ioniza a água e o
meio circundante, perpetuando as lesões no DNA.

3) Citostáticos: em terapêutica adjuvante, tentam fazer-se associações para aumentar o espectro de atividade e
reduzir a toxicidade individual de cada fármaco. Na doença metastática, a filosofia deixa de ser esta.

Tumores com indicação para Quimioterapia adjuvante:

• Cancro da mama;
• Cancro colo-rectal;
• Cancro do ovário;
• Sarcomas.

Tumores em estadio avançado com indicação para Quimioterapia Curativa (apenas 10% dos tumores neste estadio):

• Tumores embrionários (ex: testículo);


• Linfomas;
• Leucemias;
• Alguns Sarcomas.
Tumores em estadio avançado com indicação para Quimioterapia Paliativa:

• Cancro da mama;
• Cancro do ovário;
• Cancro do cólon;
• Cancro do estômago;
• Cancro da cabeça e pescoço;
• Cancro do pulmão;

Quando se utilizam citostáticos, quanto maior for a dose administrada, mais células morrem. No entanto, quanto
maior a dose, maior a toxicidade para as células saudáveis também. Assim, é preciso encontrar um equilíbrio e
administrar uma dose eficaz e com toxicidade reduzida. Esta é a razão pela qual se respeitam religiosamente os tempos
entre os ciclos de administração de citostáticos na quimioterapia adjuvante.

Implicações da cinética tumoral nos tratamentos

Leis de:

1. Skipper;
2. Norton & Simon;
3. Goldie, Coldman & Schimke.

1. Lei de Skipper (1979):

Esta Lei está na base da elaboração de uma plano quimioterapêutico curativo e prevê que um citostático administrado
na mesma dose e com a mesma regularidade leva à morte de uma fração constante da população tumoral (fraccional
cell kill). Ou seja, entre ciclos de quimioterapia curativa, existe um determinado número de células entra em ciclo
celular, repovoando parte da população tumoral que foi eliminada com o quimioterapêutico.

A lei de Skipper pressupõe que a cinética celular é  para todas as células


tumorais.
Isto é, não existem células em fase G0.
Todavia, sabemos que a cinética celular nos tumores volumosos é heterogénea.

2. Lei de Norton & Simon (1986):

Esta Lei pressupõe que tumores pequenos têm


a maior fração de células em crescimento do
que tumores volumosos, em que a fração de
replicação é menor. Este princípio justifica que
o início da quimioterapia adjuvante seja nas
primeiras 4 a 6 semanas após a cirurgia.
Quando é atingido o meio da curva Gompertziana de crescimento, este é mais acelerado, logo, nesta fase citostáticos
deverão ter melhor atuação sobre as células tumorais.

3. Lei de Goldie, Coldman & Schimke


(1984):

A heterogeneidade dos tumores estende-se às


suas características bioquímicas. A cada 105-106
divisões celulares ocorrem mutações
espontâneas que levam à aquisição de
resistências aos citostáticos e, com a
continuação da quimioterapia, selecionam-se
clones resistentes. Assim, é ideal a combinação
de citostáticos, permitindo a seleção de uma fração da população sensível e evitando toxicidades cumulativas para as
células não neoplásicas.

Num linfoma (doença curável), tem que ser administrada a dose certa nos tempos certos, porque, se não se der a
remissão o mais rapidamente possível, o tumor pode passar a exprimir glicoproteína p170 e a estar resistente à
adriamicina, à qual era tão sensível inicialmente.

Hormonoterapia

A hormonoterapia é uma terapêutica muito importante para o tratamento


das neoplasias hormonodependentes. Por oposição á quimioterapia é
muito menos tóxica e quando obtém uma resposta clínica pode manter a
doença controlada por longos períodos de tempo.

Os diferentes fármacos de hormonoterapia actuam pela


supressão ( da síntese) ou pela antagonização (bloqueio
dos receptores hormonais) das hormonas que sabemos
serem factores de crescimento” para algumas neoplasias.

When selecting patients for hormonal therapy,


age and receptor status are important
considerations. As you can see on the right side of
this slide, the preferential hormonal treatments in
older postmenopausal women are antiestrogens
or inhibitors of the aromatase enzyme.
Terapêutica-alvo

Até aos dias de hoje, tem sido desenvolvido o conhecimento acerca de alguns oncogenes:

• CerbB-2 (HER- 2 NEU): cancro da mama e do


ovário. A ativação deste oncogene deteta-se por
imunohistoquímica ou com o método FISH;
• BCR-ABL: leucemia mielóide crónica;
• C-Kit: GIST (tumour do estroma
gastrointestinal);
• K-RAS11: cancro do pâncreas, do cólon e do
pulmão;
• MYC12: linfoma e cancro do esófago.

Modificadores da
resposta biológica
A nível molecular, o imatinib tem como alvo uma parte especifica da
região da tirosina cinase na Bcr-Abl, c-Kit, and PDGF-R.

Mecanismo de ação:

• Liga-se ao c-kit onde o ATP se liga normalmente;


• Previne o uso de ATP pelo c-kit;
• Bloqueia as vias de transdução ativadas pelo c-kit.

PET scan using 18fluorodeoxyglucose (FDG) images the


biological activity of GISTs. Retention of the FDG tracer
records metabolic tumour activity in relation to normal
tissues.

After 4 weeks of therapy with imatinib, this patient showed


a marked attenuation of signal on the PET scan.

FDG-PET scan may provide early clinical evidence of


biological response to imatinib for patients with malignant
GISTs.

Transaxial CT scan of the abdomen. Before


imatinib therapy (left panel), this large GIST
tumour was a protuberant mass in the lower
abdomen.

After 1 month of treatment with imatinib (right


panel), the tumour size decreased considerably.
There is a residual mass in the pelvis.
Choque e sépsis

Choque: falência circulatória aguda com perfusão tecidual inadequada ou inapropriadamente


distribuída, que resulta em hipóxia celular generalizada e/ou em incapacidade das células
utilizarem oxigénio.

Causas de choque:

Anormalidades de perfusão tecidual podem resultar de:

• Falência do coração como bomba


• Impedimento mecânico ao fluxo
• Perda de volume circulatório
• Anormalidades na circulação periférica

Muitas vezes o choque resulta de uma combinação de fatores (ex: na sépsis, o choque
distributivo é muitas vezes complicado por hipovolémia e depressão miocárdica).

FISIOPATOLOGIA

RESPOSTA SIMPATO-ADRENAL AO CHOQUE

A hipotensão estimula os barorrecetores (e os


quimiorrecetores em menor extensão), causando aumento da
atividade do SN simpático com libertação de noradrenalina na
circulação. Depois isto é aumentado pela libertação de
catecolaminas (predominantemente adrenalina). A resultante
vasoconstrição, em conjunto com o aumento da
contractilidade do miocárdio e a FC, ajuda a restaurar o DC e a
PA.

A redução da perfusão no córtex renal estimula a libertação de


renina pelo aparelho justaglomerular. Esta converte
angiotensinogénio em angiotensina I, que por sua vez é
convertida nos pulmões e pelo endotélio vascular em
angiotensina II, um vasoconstritor potente. A angiotensina II também estimula a secreção de
aldosterona pelo córtex adrenal, causando retenção de água e sódio, o que ajuda a restaurar o
volume circulante.

RESPOSTA NEUROENDÓCRINA

Ocorre libertação de hormonas pituitárias como ACTH, vasopressina/ADH e péptidos opióides


endógenos. No choque séptico pode haver uma deficiência relativa em vasopressina.
Há libertação de cortisol, que causa retenção de líquidos e antagoniza a insulina, e libertação de
glicagina, que aumenta a glicémia.

LIBERTAÇÃO DE MEDIADORES PRÓ E ANTI-INFLAMATÓRIOS

Uma infeção severa (frequentemente com bacteriémia ou endotoxiémia), a presença de


grandes áreas de tecido lesado (ex: após trauma ou cirurgia extensa), hipoxia ou episódios
prolongados/repetidos de hipoperfusão podem desencadear uma resposta inflamatória
exagerada com ativação sistémica de leucócitos e libertação de vários mediadores
potencialmente lesivos. A disseminação da imunidade inata pode provocar choque e lesão
tecidual sistémica. Caracteristicamente, o episódio inicial de uma inflamação exacerbada é
seguido por um período de imunossupressão, que em alguns casos pode levar o doente a risco
aumentado de desenvolver infeções secundárias. Para além disso, na resposta do hospedeiro
coexistem mecanismos anti-inflamatórios e os pró-inflamatórios.

Microrganismos e os seus produtos tóxicos

Na sépsis/choque séptico, a resposta


imune inata e a cascata inflamatória são
desencadeadas pelo reconhecimento de
PAMPs (pathogen-associated molecular
patterns), incluindo componentes da
parece celular (endotoxina) e/ou
exotoxinas (proteínas antigénicas
produzidas por bactérias como
Staphylococcus, Streptococcus e
Pseudomonas).

A endotoxina corresponde ao LPS


(lipopolissacárido) derivado da parede
celular das bactérias Gram-negativas. A
porção lipídica A do LPS pode ligar-se a
uma proteína normalmente presente no
plasma humano, a LBP
(lipopolyssacharide binding protein). O complexo LBS/LPS liga-se ao CD14 e, combinado com a
proteína MD2, este complexo liga-se ao TLR4, desencadeando transmissão de sinal para dentro
da célula. Este recetor atua através do MyD 88 (myeloid differentiation factor 88), regulando a
atividade das vias NFkB. Recetores de reconhecimento de padrão intracelulares, como o NOD1,
também podem estar envolvidos. Outro mecanismo envolve o TREM-1, que desencadeia a
secreção de citocinas inflamatórias. Cinases específicas fosforilam o IkB, libertando o fator de
transcrição nuclear NFkB, que vai para o núcleo, onde se liga ao DNA e promove a síntese de
mediadores inflamatórios.

As bactérias Gram-positivas também têm componentes da parede celular semelhantes ao LPS,


como o ácido lipoteicóico, e podem desencadear uma resposta inflamatória sistémica
provavelmente semelhante (TLR2) mas por vias diferentes. Após lesão tecidual traumática ou
cirúrgica, as vias inflamatórias podem ser ativadas por DAMPs (damage-associated molecular
patterns), como os fragmentos de DNA.

Ativação da cascata do complemento


Fragmentos do C3 agem como opsoninas e moléculas co-estimuladoras que auxiliam os
linfócitos na resposta imune adaptativa, enquanto pequenos péptidos derivados do C3, C4 e C5
causam quimiotaxia leucocitáira, libertação de citocinas e aumento da permeabilidade vascular.

Citocinas

A libertação de TNF inicia muitas das respostas à endotoxina e age sinergicamente com a IL-1,
em parte através da indução da COX, fator ativador plaquetário (PAF) e sintase do NO.
Subsequentemente, outras citocinas, como IL-6 e IL-8, aparecem em circulação. A IL-6 é o maior
estimulador da síntese hepática de proteínas de fase aguda e está envolvida na indução de
febre, anemia e caquexia, enquanto a IL-8 é quimioatrativa. A rede de citocinas é muito
complexa, envolvendo mecanismos auto-reguladorres endógenos – por exemplo, são libertados
recetores solúveis do TNF pelas células durante a resposta inflamatória, ligando-se ao TNF e
reduzindo a sua atividade biológica. Também foi identificada uma proteína que se liga
competitivamente ao recetor de IL-1.

Também são libertados mediadores anti-inflamatórios, como a IL-10. Quando excessiva, esta
resposta anti-inflamatória está associada a hiporresponsividade imune inapropriada.

Produtos do metabolismo do ácido araquidónico

• Prostaglandinas e leucotrienos → mediadores inflamatórios

HSPs (heat shock proteins)

As HSPs são sintetizadas após exposição a vários estímulos nocivos, como calor, citocinas,
hipoxia,endotoxina, vários químicos e radicais livres de oxigénio. Parecem ser protetores na
sépsis, provavelmente porque reconhecem e formam complexos com proteínas desnaturadas,
induzindo um correto dobramento das proteínas e, quando necessário, a sua degradação
proteolítica. Também protegem proteínas normais e funcionais contra a degradação e inibem a
apoptose. As HSPs são referidas como “chaperones moleculares”.

Moléculas de adesão

A adesão de leucócitos ativados à parede vascular e a sua migração extravascular é mediada por
ICAMs (inducible intercelular adhesion molecules) que se encontram na superfície dos
leucócitos e das células endoteliais. A expressão destas moléculas pode ser induzida pela
endotoxina ou por citocinas pró-inflamatórias. As seletinas iniciam o processo de rolamento
leucocitário no endotélio vascular, enquanto membros da família das imunoglobulinas (ICAM-1
e vascular cel adhesion molecule-1) estão envolvidas na migração dos leucócitos para os tecidos.

Mediadores vasoativos derivados do endotélio

• Prostaciclina
• Endotelina (potente vasoconstritor)
• NO. O NO é sintetizado pela NOS (sintase do óxido nítrico); inibe a agregação e adesão
plaquetária e produz vasodilatação ao ativar a guanilato ciclase no músculo liso vascular
para formar cGMP a partir de GTP. Existem várias NOS:
o NOS constitutiva ou endotelial: está presente nas células endoteliais e é
responsável pela libertação basal de NO; está envolvida na regulação fisiológica
do tónus vascular, PA e perfusão tecidual.
o NOS neuronal. O papel dos nervos que contêm esta enzima não é claro, mas
eles provavelmente estão associados ao tónus vasodilatador neurogénico. No
SNC, a NOS neuronal pode ser um regulador do fluxo sanguíneo local bem como
pode estar envolvida na modulação aguda do comportamento da ativação
neuronal.
o NOS indutível: é induzida nas células musculares lisas vasculares e nos
monócitos num período de 4-18h após estimulação pela endotoxina e por
citocinas como o TNF. O aumento prolongado da síntese de NO pode ser a causa
de vasodilatação sustida, hipotensão e reduzida reatividade aos agonistas
adrenérgicos que carateriza o choque séptico. O NO gerado pelos macrófagos
contribui para a função de destruição de patogénicos intra e extracelulares dos
macrófagos, em parte como consequência da sua capacidade em ligar-se à
citocromo oxidase e inibir o transporte de eletrões, mas também via produção
do radical altamente reativo peroxinitrite.

Desequilíbrio redox

O balanço redox é controlado por antioxidantes, que tanto previnem a formação de radicais (ex:
transferrina e lactofferina ligam ião ferro, um catalisador da formação de radicais) ou
removem/inativam espécies reativas de oxigénio e azoto (ex: superóxido dismutases, vitamina
C e E e glutationa). Também existem mecanismos para remover ou reparar moléculas com dano
oxidativo e para preservar a integridade do DNA. Na inflamação sistémica severa, a produção
não controlada de radicais livres de oxigénio e espécies reativas de nitrogénio, como superóxido,
radicais OH, peróxido de hidrogénio (H2O2) e peroxinitrito (ONOO-), em particular pelos
leucócitos polimorfonucleares ativados, pode superar os mecanismos de defesa e causar:

• Peroxidação lipídica e proteica


• Dano nas membranas celulares
• Aumento da permeabilidade capilar
• Respiração mitocondrial afetada
• Quebra das cadeias de DNA
• Apoptose (o que pode contribuir para a disfunção orgânica e para a hiporresponsividade
imune associada à sépsis)

Influência da variabilidade genética

Os indivíduos apresentam grande variabilidade quando à suscetibilidade a infeções e à sua


capacidade de recuperar de infeções, doenças ou lesões traumáticas. Estudos sugerem que as
variações interindividuais na suscetibilidade e no outcome da sépsis podem ser parcialmente
explicadas por variação genética.

ALTERAÇÕES MICROCIRCULATÓRIAS E HEMODINÂMICAS

A característica hemodinâmica dominante da sépsis severa/choque séptico é a falência vascular


periférica com:

• Vasodilatação
• Má distribuição do fluxo sanguíneo regional
• Anormalidades na microcirculação:
o Capilares “stop-flow” – fluxo intermitente
o Capilares “no-flow” – capilares obstruídos
o Falência no recrutamento capilar
o Aumento da permeabilidade capilar com edema intersticial
Apesar destas anormalidades vasculares e microvasculares poderem contribuir parcialmente
para a reduzida extração de oxigénio pelas células no choque séptico, também existe um defeito
primário na utilização de oxigénio causado por disfunção mitocondrial. Inicialmente, antes de
ocorrer hipovolémia, ou quando a terapêutica de reposição de volume circulante é adequada, o
DC está geralmente elevado e a resistência periférica reduzida. Estas alterações podem estar
associadas a comprometimento do consumo de oxigénio, redução da diferença arteriovenosa
de conteúdo de oxigénio, aumento da SvO2 e acidose láctica. A vasodilatação e o aumento da
permeabilidade vascular também ocorrem no choque anafilático.

Nos estádios iniciais de outras formas de choque, e por vezes quando acontece hipovolémia e
depressão miocárdica na sépsis e anafilaxia, o DC é baixo e o aumento da atividade simpática
causa vasoconstrição, o que ajuda a manter a PA sistémica.

ATIVAÇÃO DO SISTEMA DA COAGULAÇÃO

A resposta inflamatória no choque, lesão tecidual e infeção é frequentemente associada a


ativação sistémica da cascata da coagulação, levando a agregação plaquetária, trombose
microvascular disseminada e perfusão tecidual inadequada.

Inicialmente, há comprometimento da produção de PGI2 pelo endotélio capilar. A lesão no


endotélio vascular leva a exposição do fator tecidual, que desencadeia a coagulação. Em casos
graves, estas alterações são compostas por níveis elevados de PAI-1 (plasminogen inactivator
inhibitor type 1), que compromete a fibrinólise, bem como por deficiências nos inibidores
fisiológicos da coagulação (antitrombina, proteínas C e S e tissue factor-pathway inhibitor). A
antitrombina e a proteína C têm propriedades anti-inflamatórias, enquanto a trombina é pró-
inflamatória.

O plasminogénio é convertido em plasmina, que fragmenta o trombo, libertando produtos de


degradação da fibrina/fibrinogénio. Em alguns casos há aumento da fibrinólise. Os níveis
circulantes de produtos de degradação da fibrina estão elevados, o PT e APTT estão prolongados
e os níveis de plaquetas e fibrinogénio diminuídos. A ativação da cascata da coagulação pode
ser confirmada pelos níveis plasmáticos elevados de D-dímeros. O desenvolvimento de
coagulação intravascular disseminada/CID (ou coagulopatia consuptiva) por vezes anuncia o
início de falência multiorgânica. Como os fatores de coagulação e as plaquetas são consumidas
na CID, não estão disponíveis para a hemóstase e ocorrem defeitos na coagulação. A CID
apresenta-se como hemorragia microvascular, ou oozing generalizado do
sangue a partir de feridas ou locais de punção. Em alguns casos desenvolve-
se anemia hemolítica microangiopática. A CID é pouco comum mas está
particularmente associada ao choque s´ptico, especialmente quando este
é devido a infeção por meningococos. O tratamento da causa é urgente. A
terapêutica de suporte inclui infusões de plasma congelado, plaquetas,
ciroprecipitado quando os níveis de fibrogénio estão baixos e
ocasionalmente concentrados de fator VIII.

Lesão de reperfusão

A restauração do fluxo em tecidos previamente hipóxicos pode exacerbar


a lesão celular através da geração de grandes quantidades de espécies
reativas de oxigénio e ativação de leucócitos polimorfonucleares. A mucosa
intestinal parece ser especialmente vulnerável a esta lesão.
RESPOSTA METABÓLICA AO TRAUMA, CIRURGIA E INFEÇÃO GRAVE

Esta é iniciada e controlada pelo sistema neuroendócrino e por várias citocinas (IL-6), sendo
caracterizada inicialmente por hipermetabolismo – aumento do gasto de energia. A
gluconeogénese é estimulada por aumento da glicagina e catecolaminas, e a glicogenólise
também aumenta. As catecolaminas inibem a libertação de insulina e reduzem a captação
periférica de glicose. Em combinação com níveis elevados de outros antagonistas da insulina,
como cortisol, e com a downregulation dos recetores de insulina, estas alterações causam
hiperglicemia na maioria dos pacientes. A hipoglicémia pode surgir depois, sendo precipitada
pela depleção das reservas hepáticas de glicogénio e inibição da gluconeogénese. A síntese de
ácidos gordos também aumenta, levando a hipertrigliceridémia.

Ocorre quebra de proteínas para providenciar energia através dos aminoácidos, e a síntese
proteica no fígado está aumentada produzindo-se preferencialmente reagentes de fase aguda.
A glutamina é mobilizada do músculo para ser usada como fonte energética para as células em
rápida divisão, como leucócitos e enterócitos, e também para a produção hepática de
glutationa, um captador de radicais livres. Quando severa e prolongada, esta resposta
metabólica pode levar a perda de peso considerável. A quebra proteica está a fraqueza e perda
de músculo esquelético e respiratório, prolongando a necessidade de ventilação mecânica e a
imobilização. A reparação, cicatrização e função imune estão também comprometidas.

CARACTERIZAÇÃO CLÍNICA DO CHOQUE E SÉPSIS

Apesar de muitas manifestações clínicas serem comuns a todos os tipos de choque, eles diferem
em alguns aspetos.

CHOQUE HIPOVOLÉMICO
✓ Perfusão tecidual inadequada
o Pele: pálida, fria, diaforética, aumento do tempo de reperfusão capilar
o Rins: oligúria, anúria
o Cérebro: alteração do estado de consciência (obnubilação, desorientação,
confusão mental)
✓ Aumento do tónus simpático:
o Taquicardia, pressão de pulso fraca ou filiforme
o Sudorese
o PA: pode ser mantida inicialmente (apesar de uma redução de 25% no volume
circulante se o paciente for jovem e saudável), mais depois ocorre hipotensão.
✓ Acidose metabólica: taquipneia compensatória.

Hipovolémia extrema pode estar associada a bradicardia.

Outras manifestações adicionais podem ocorrer nos seguintes tipos de choque:

CHOQUE CARDIOGÉNICO

✓ Sinais de falência miocárdica: aumento da pressão venosa jugular, pulso alternans,


galope, edema pulmonar, crepitações basais

CHOQUE OBSTRUTIVO

✓ Pressão venosa jugular aumentada


✓ Pulso paradoxal e sons cardíacos abafados no tamponamento cardíaco
✓ Sinais de embolismo pulmonar

CHOQUE ANAFILÁTICO

✓ Sinais de vasodilatação profunda:


o Extremidades quentes
o Hipotensão
o Taquicardia
✓ Eritema, urticária, angioedema, palidez, cianose
✓ Broncoespasmo, rinite
✓ Edema da face, faringe e laringe
✓ Edema pulmonar
✓ Hipovolémia devido a extravasamento vascular
✓ Náuseas, vómitos, dores abdominais, diarreia

SÉPSIS, SÉPSIS GRAVE E CHOQUE SÉPTICO

✓ Pirexia, ou hipotermia (raro)


✓ Náuseas, vómitos
✓ Vasodilatação, extremidades quentes
✓ Pulso forte
✓ Rápida reperfusão capilar
✓ Hipotensão (choque séptico)
✓ Ocasionalmente sinais de vasoconstrição cutânea
✓ Outros sinais:
o Icterícia
o Alteração estado consciência
o Hemorragia devido a coagulopatia (de locais de punção vascular, TGI e incisões
cirúrgicas
o Rash e meningismo
o Hiper, e em casos mais graves, hipoglicémia

O diagnóstico de sépsis é facilmente não realizado, particularmente em idosos, que podem não
apresentar os sinais clássicos. Confusão, taquicardia e taquipneia podem ser as únicas pistas,
por vezes associadas a hipotensão inexplicável, redução do débito urinário, aumento da
creatinina plasmática e intolerância à glicose.

Os sinais clínicos de sépsis (desencadeados por PAMPs) não são sempre associados a
bacteriémia e podem ocorrer em processos não infecciosos, como pancreatite, bypass
cardiopulmonar ou trauma grave (desencadeados por DAMPs). O termo síndrome de resposta
inflamatória sistémica (SIRS) descreve inflamação disseminada que se pode complicar com
vários distúrbios.

Padrões de resposta inflamatória sistémica → SIRS e CARS (compensatory anti-inflammatory


response syndrome)

Definições:

SÉPSIS E FALÊNCIA MULTIORGÂNICA


A sépsis é a causa de morte mais comum em pacientes adultos sem doença coronária nas
unidades de cuidados intensivos. A taxa de mortalidade é elevada (entre 20 e 60%) e está
relacionada com a gravidade da doença e com o número de órgãos que entram em falência.

A falência sequencial dos órgãos vitais ocorre progressivamente ao longo de semanas, apesar
de o padrão de disfunção orgânica ser variável. Na maioria dos casos os pulmões são os
primeiros órgãos a serem afetados – ARSD (síndrome de dificuldade respiratória do adulto) –
em associação com instabilidade cardiovascular e deterioração da função renal. O dano na
mucosa do TGI, como resultado da redução do fluxo sanguíneo esplâncnico e lesão de
reperfusão, permite que as bactérias no lúmen intestinal/componentes da sua parede celular
entrem em circulação. As defesas hepáticas, muitas vezes comprometidas por baixa perfusão,
são ultrapassadas e os pulmões e os outros órgãos são expostos a toxinas bacterianas e
mediadores inflamatórios libertados pelos macrófagos do fígado. Infeção pulmonar secundária,
que complica a ARDS, também é outro estímulo para a resposta inflamatória. Mais tarde
desenvolve-se lesão renal aguda e disfunção hepática. A falência GI, com incapacidade de tolerar
alimentação entérica, e ileo paralítico são comuns. A disfunção do SNC incluem alteração do
estado de consciência e pode progredir para coma. Caracteristicamente, estes pacientes
inicialmente têm uma circulação hiperdinâmica com vasodilatação e elevado DC, associado a
um aumento da taxa metabólica. Contudo, eventualmente segue-se colapso cardiovascular.

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Choque circulatório

É a expressão clínica de falência circulatória, que resulta na utilização inadequada do oxigénio


pelas células. É uma condição comum e afeta 1/3 dos pacientes nas unidades de cuidados
intensivos. O diagnóstico de choque é feito com base em sinais clínicos, hemodinâmicos e
bioquímicos:

1. Hipotensão arterial sistémica – mas esta pode ser apenas moderada especialmente se
o paciente for hipertenso. Em adultos, a pressão arterial sistólica costuma ser inferior a
90 mm Hg ou pressão arterial média é inferior a 70 mm Hg, com taquicardia associada;
2. Sinais de hipoperfusão tecidual:
• Sinais cutâneos: pele fria e suada, com vasoconstrição e cianose (achados mais
evidentes nos estados de baixa perfusão)
• Sinais renais: débito renal inferior a 0.5 ml por Kg de peso corporal por hora);
• Sinais neurológicos: alteração do estado de consciência, que inclui obnubilação,
desorientação e confusão
3. Hiperlactacidémia, decorrente do metabolismo celular de oxigénio anormal; o lactato
normal é aproximadamente 1 mmol por litro, mas o nível está aumentado (superior a
1.5 mmol por litro) na insuficiência circulatória aguda.

Mecanismos patofisiológicos

O choque resulta de 4 mecanismos fisiopatológicos, não necessariamente exclusivos:

• Hipovolémia: resultante de perda externa ou interna de fluidos;


• Fatores cardiogénicos: enfarte agudo do miocárdio, cardiomiopatia terminal, doença
cardíaca valvular avançada, miocardite e arritmias cardíacas;
• Obstrução: embolismo pulmonar, tamponamento cardíaco, pneumotórax de tensão;
• Fatores distributivos: sépsis grave ou anafilaxia pela libertação de mediadores
inflamatórios;
o No choque distributivo, o fator deficitário mais importante existe na periferia,
com diminuição da resistência vascular sistémica e alteração da extração de O2.
O débito cardíaco pode estar aumentado ou diminuído, sendo que quando está
diminuído é por depressão do miocárdio (hipovolémia e choque cardiogénico).

Os 3 primeiros mecanismos referidos são caracterizados por uma diminuição do débito cardíaco
e transporte inadequado de oxigénio aos tecidos.

Diagnóstico diferencial

O choque séptico, uma forma de choque distributivo, é a forma mais comum em pacientes nos
cuidados intensivos, seguido de choque cardiogénico e choque hipovolémico; o choque
obstrutivo é relativamente raro.

O tipo e a causa podem parecer óbvios pela história clínica, exame físico e investigação clínica.

Choque após trauma normalmente é hipovolémico, mas o choque cardiogénico e o distributivo


também podem ocorrer, isoladamente ou em combinação, causados por condições como
tamponamento cardíaco ou lesão da medula espinhal.

Um exame objetivo completo tem de incluir a averiguação da temperatura, cor da pele,


distensão venosa jugular e edema periférico.
O diagnóstico pode ser feito através de avaliação ecocardiográfica. Pode averiguar-se a presença
de efusão pericárdica, medição do tamanho e função dos ventrículos, variações das dimensões
da veia cava com a respiração e volume de ejeção.

Abordagem do paciente em choque

Primeiro suportar o paciente hemodinamicamente.

Devemos ressuscitar o paciente, enquanto a causa do choque não é descoberta. Uma vez
descoberta a causa, deve ser corrigida de imediato (controlo da hemorragia, intervenção
coronária percutânea nas síndromes coronárias, trombólise ou embolectomia no caso de
embolismo pulmonar, administração de antibióticos no caso de choque séptico).

A menos que a condição seja rapidamente reversível, um cateter arterial deve ser introduzido
para monitorizar a pressão arterial e fazer colheita de sangue. Também um cateter venoso deve
ser introduzido para infusão de fluídos, agentes vasoativos e para guiar a fluidoterapia.

Ressuscitação – VIP rule:

• Ventilate – administração de oxigénio;


• Infuse – reposição de fluidos;
• Pump – administração de agentes vasoativos.

Suporte ventilatório

A administração de oxigénio pode ser iniciada imediatamente para aumentar a extração de


oxigénio e prevenir a hipertensão pulmonar.

Normalmente, a oximetria de pulso não é fidedigna, dada a vasoconstrição periférica associada,


e a determinação precisa das necessidades de oxigénio requer gasimetria recorrente.

A ventilação mecânica raramente é eficiente. A intubação endotraqueal deve ser realizada a


pacientes com dispneia, hipoxemia, acidémia persistente ou progressiva (pH inferior a 7,30). A
ventilação mecânica invasiva tem os benefícios adicionais de reduzir as necessidades de oxigénio
dos músculos respiratórios e a pós-carga ao aumentar a pressão intratorácica. Uma abrupta
queda da pressão arterial após o início da ventilação invasiva é sugestiva de hipovolémia e
diminuição do retorno venoso.

O uso de agentes sedativos deve ser feito com precaução, uma vez que pode estar associado a
uma queda abrupta da pressão arterial e output cardíaco.

Reposição de fluidos

Terapia com fluidos serve para aumentar o fluxo sanguíneo microvascular e o aumentar o débito
cardíaco, mas devemos ter cuidado porque a administração de fluídos pode agravar edema
existente.

O objetivo da fluidoterapia é atingir um débito cardíaco independente da pré-carga (identificado


a partir de medida de volume beat-by-beat, monitorização do débito cardíaco, ou indiretamente
através da variação da pressão de pulso).

Agentes vasoativos

Vasoconstritores

Se a hipotensão é severa ou se persiste após a administração de fluídos, o uso de vasopressores


é indicado. É aceitável administrar um vasopressor temporariamente enquanto a fluidoterapia
está a decorrer, podendo este ser descontinuado quando a hipotensão é revertida.

Os agonistas adrenérgicos são a 1ª linha. Consideramos a norepinefrina um vasopressor de 1ª


linha, tem normalmente propriedades alfa adrenérgicas, mas estimula modestamente os
recetores beta-adrenérgicos, o que mantém o débito cardíaco. A epinefrina está associada a
arritmias e a diminuição do fluxo sanguíneo esplâncnico, com um aumento dos lactatos,
provavelmente por aumentarem o metabolismo das células. É usado como 2ª linha.

Nas formas de choque distributivo, no qual ocorre geralmente uma diminuição da quantidade
de ADH/vasopressina, a sua administração pode elevar a PA.

Agentes inotrópicos

A dobutamina é o agente inotrópico positivo com maior impacto no aumento do débito


cardíaco. Tem propriedades B-adrenérgicas. Induz menos frequentemente taquicardia que o
isoproterenol. Tem efeitos limitados no aumento da pressão arterial.

Inibidores da fosfodiesterase III, como a milrinona e o enoximone, combinam propriedades


inotrópicas e vasodilatadoras. Aumentam o cAMP e reforçam o efeito da dobutamina. Podem
ser uteis quando os recetores B-adrenérgicos se encontram downregulados. Causam
hipotensão. A sua semi-vida longa não permite ajustes finos.

Levosimendan, atua primariamente ao ligar-se à troponina C cardíaca e aumenta a sensibilidade


ao cálcio dos miócitos. Atua, também, como um vasodilatador ao abrir os canais de potássio
dependentes de potássio do musculo liso. Tem uma semi-vida muito longa, pelo que torna
limitado o uso em situações agudas.

Vasodilatadores

Aumentam o output cardíaco sem aumentar as necessidades de oxigénio do coração, mas


podem diminuir a pressão arterial a níveis que podem comprometer a perfusão dos tecidos e a
função celular.
Suporte mecânico

Ocorre com um balão intraaórtico que reduz a pós-carga do ventrículo esquerdo e aumenta o
fluxo sanguíneo das coronárias. Mas esta intervenção não é recomendada de momento por não
ter demonstrado ter um impacto significativo na redução da mortalidade.

A venoarterial extracorporeal membrane oxygenation demonstrou ser lifesaving em pacientes


com choque cardiogénico reversível ou como ponte para transplante cardíaco.

Objetivos do suporte hemodinâmico

• Aumentar a pressão arterial e proporcionar um metabolismo celular adequado.


Restaurar uma PAM de 65-70 mmHg é um bom objetivo inicial, mas deve ser ajustado
para restaurar a perfusão tecidual com base no estado mental, aparência da pele e
débito urinário.
• Manter uma entrega adequada de oxigénio aos tecidos. Após correção da hipoxémia e
anemia severa, o débito cardíaco é o principal determinante da entrega de oxigénio,
mas o débito cardíaco ótimo é difícil de definir. A medição da SvO2 é útil para avaliar o
balanço entre a entrega e as necessidades de oxigénio e também é útil para
interpretação do débito cardíaco. A SvO2 em estados de baixa perfusão e na anemia
está diminuída, mas no choque distributivo está normal ou aumentada. A ScvO2 reflete
a saturação de O2 no sangue venoso da parte superior do corpo. Em circunstâncias
normais, a ScvO2 é menor do que a SvO2, mas em pacientes críticos é maior. Um
algoritmo de tratamento tendo como alvo uma ScvO2 de pelo menos 70% foi associado
a menores taxas de mortalidade.
• Níveis de lactato: um aumento dos níveis de lactato reflete função celular anormal. Em
estados de baixa perfusão, o mecanismo primário da hiperlactatémia é a hipoxia
tecidual com desenvolvimento do metabolismo anaeróbio, mas no choque distributivo
a fisiopatologia é mais complexa, podendo envolver aumento da glicólise e inibição da
piruvato desidrogenase. Com terapêutica adequada, os níveis de lactato devem diminuir
após algumas horas.
• A avaliação da microcirculação faz-se a partir da região sublingual. Alterações
microcirculatórias, incluindo diminuição da densidade capilar, redução da proporção de
capilares perfundidos e aumento da heterogeneidade do fluxo sanguíneo foram
associados a piores outcomes. Espectroscopia de infravermelhos é uma técnica usada
para determinar a saturação de oxigénio, através das frações de oxihemoglobina e
desoximhemoglobina.

4 fases no tratamento do choque:

1. Estabilizar a pressão arterial e output


cardíaco do doente;
2. Aumentar a disponibilidade de oxigénio;
3. Prevenir a lesão dos órgãos;
4. Retirar os agentes vasoativos e promover
poliuria e eliminação de fluído (diuréticos).
Sépsis severa e choque séptico

A sépsis é uma resposta inflamatória sistémica a infeção. Pode resultar de diversas causas e a
septicémia pode ou não estar presente.

Classifica-se como sépsis severa/grave quando está associada a disfunção orgânica aguda.

Choque séptico: sépsis complicada quer por hipotensão que é refratária a reposição de fluidos
ou por hiperlactacidémia.

A pneumonia é a causa mais frequente de sépsis (50%), seguida de infeções intra-abdominais e


do trato urinário.

Agentes:

• Gram-negativos (E. coli, Klebsiella, Pseudomonas aeruginosa) - 62% dos casos;


• Gram-positivos (Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae) – 47% dos casos;
• Fungos – 19%.

Fatores de risco para sépsis grave → relacionados tanto com a predisposição do paciente para
infeções como com a sua probabilidade de desenvolver disfunção orgânica aguda se se
desenvolver uma infeção.

• Doenças crónicas (SIDA, DPOC, cancro);


• Uso de agentes imunossupressores;
• Os fatores de risco para a disfunção orgânica estão menos estudados, mas
provavelmente incluem o organismo patogénico, a composição genética do paciente, o
seu estado de saúde e a função orgânica pré-existente, bem como a duração da
intervenção terapêutica.
• A idade, sexo, raça e grupo étnico influenciam a incidência de sépsis severa: as crianças
e idosos são mais suscetíveis, os homens são mais afetados e a raça negra também é
mais afetada.
• Fatores de risco genéticos: polimorfismos em genes codificantes de citocinas e outros
mediadores envolvidos na imunidade inata, coagulação e fibrinólise.

Características clínicas

Dependem do local inicial da infeção, do agente etiológico, do padrão de disfunção do órgão,


do estado de saúde prévio do doente e da intervenção clínica anterior ao início do tratamento.

Os sinais da infeção e da disfunção orgânica podem ser subtis. A disfunção orgânica atinge mais
frequentemente os sistemas cardiovascular e respiratório.

• Respiratório: ARDS, definida por hipoxémia com infiltrados bilaterais sem origem
cardíaca.
• Cardiovascular: manifesta-se com hipotensão e níveis elevados de lactato.
• O cérebro e os rins são bastante
afetados.
o A disfunção do SNC é
tipicamente manifestada
como delirium e
obnubilação. Estudos
imagiológicos não
mostram geralmente
lesões focais e os
achados no
eletroencefalograma são
consistentes geralmente
com encefalopatia não
focal.
o A lesão aguda renal
manifesta-se com uma
diminuição do débito
urinário e aumento do
nível sérico de
creatinina, que pode ter
de ser resolvido com
hemodiálise.
• A polineuropatia e a miopatia
são comuns, especialmente em
pacientes que permaneceram um longo período de tempo nos cuidados intensivos.
• Íleo paralítico;
• Níveis de aminotransferases elevados, glicémia alterada;
• Trombocitopénia e coagulação intravascular disseminada;
• Disfunção adrenal;
• Euthyroid sick syndrome

Outcome

A taxa de mortalidade, mesmo em pacientes a quem é fornecido suporte, é entre 20 a 30%. Os


pacientes que sobrevivem a sépsis estão em risco de morrer nos meses e anos seguintes.
Aqueles que sobrevivem têm sequelas físicas ou neurocognitivas e uma baixa qualidade de vida.
A sépsis severa está associada a uma degradação física e neurocognitiva acelerada.

Patofisiologia

Resposta do hospedeiro

Em geral, são as reações pró-inflamatórias dirigidas à eliminação dos patogénios que são
responsáveis pela lesão colateral dos tecidos, enquanto que os mecanismos anti-inflamatórios
estão implicados na suscetibilidade a segundas infeções.

Imunidade inata
Os recetores TLRs, C-type lectin receptors, retinoic acid inducible gene 1–like receptors, e
nucleotide-binding oligomerization domain–like receptors reconhecem estruturas que são
conservadas na maioria dos micróbios (PAMPs - pathogen-associated molecular patterns). Isto
resulta na up-regulation da transcrição de genes inflamatórios e à iniciação da imunidade inata.
Estes recetores também percebem a lesão celular (DAMPs - damage-associated molecular
patterns – e alarminas – B1, S100, RNA, DNA e histonas). As alarminas são libertadas durante o
trauma.

Anormalidades da coagulação

A sépsis está geralmente associada a distúrbios da coagulação, podendo mesmo estar presente
a coagulação intravascular disseminada.

O excesso de deposição de fibrina é devido a:

o Ação do fator tecidual


o Mecanismos anti-coagulantes deficitários: proteína C reativa, antitrombina;
o Compromisso da capacidade de remoção da fibrina, por depressão do sistema
fibrinolítico.

Os protease-activated receptors (PARs) formam links moleculares entre a coagulação e a


inflamação. O PAR1 tem um efeito citoprotetor quando estimulado pela proteína C ativada ou
baixa dose de trombina, mas tem um efeito disruptivo da barreira endotélio-célula, quando
ativado por altas doses de trombina. O efeito protetor da proteína C reativa não depende dos
seus efeitos anticoagulantes, mas sim na ativação deste fator.

Mecanismos anti-inflamatórios e imunodepressão

Os fagócitos podem expressar um fenótipo anti-inflamatório e promover a reparação tecidual.


As células T reguladoras, as células supressoras myeloid-derived podem também reduzir a
inflamação.

Em adição, os mecanismos neuronais podem inibir a inflamação, chama-se a este processo o


reflexo neuroinflamatório.

• O input sensorial é feito pelas fibras aferentes do nervo vago até ao bulbo raquidiano.
As fibras eferentes do nervo vago ativam o nervo esplénico no plexo celíaco, que
desencadeia a libertação de norepinefrina nas células do baço e de acetilcolina por
células T CD4+. A acetilcolina atua sobre os recetores colinérgicos α7 ao nível dos
macrófagos, inibindo a secreção de citocinas pró-inflamatórias.

Os pacientes que sobrevivem à sépsis inicial e que permanecem dependentes têm evidência de
imunossupressão, em parte por expressão reduzida do HLA-DR em células mieloides. Estes
pacientes frequentemente têm foci infecciosos permanentes, apesar de terapêutica
antimicrobiana, ou reativação de infeção viral latente.

Múltiplos estudos documentaram reduzida responsividade por parte dos leucócitos a


patogénios em pacientes com sépsis. Além do baço, os pulmões demonstraram sinais de
imunossupressão (presença de ligandos para recetores T CD4+ inibitórios).
Disfunção orgânica

• Hipotensão, redução da deformabilidade dos eritrócitos e trombose microvascular


contribuem para diminuição de entrega de O2 no choque séptico.
• A inflamação pode causar disfunção do endotélio, acompanhada de morte celular e
perda da integridade da barreira, originando edema subcutâneo e cavitário.
• A lesão mitocondrial causada por stress oxidativo e por outros mecanismos afeta a
utilização celular de O2 e liberta alarminas para o ambiente extracelular, como DNA
mitocondrial, péptidos formil, que podem ativar neutrófilos.

Terapêutica

Proteina C ativa foi das únicas que se demonstrou eficaz.

Patogénese do choque vasodilatador

A vasoconstrição profunda na circulação periférica é a resposta normal a condições nas quais a


PA é demasiado baixa para garantir a perfusão tecidual apropriada, como a hemorragia aguda
ou o choque cardiogénico. Em outras condições, como no choque séptico, a hipotensão ocorre
como resultado de falência do músculo liso vascular em contrair. Este choque vasodilatador é
caracterizado não só pela hipotensão devido à vasodilatação periférica, mas também por fraca
resposta a terapêutica com fármacos vasopressores.

Causas do choque vasodilatador


A sépsis é a causa mais frequente de choque vasodilatador. Outras causas incluem condições
nas quais a oxigenação dos tecidos está comprometida, como na intoxicação por nitrogénio e
por monóxido de carbono.

O choque vasodilatador por ser a via comum final de choque severo e duradouro de qualquer
causa. Em pacientes com marcada hipotensão e diminuição da perfusão tecidual devido a
choque cardiogénico ou hipovolémico, a correção do problema inicial pode não curar a
hipotensão, porque pode acontecer a seguir vasodilatação. Por exemplo, o choque
vasodilatador pode seguir-se a restituição de volume em pacientes que tiveram hipotensão
prolongada e severa devido a hemorragia, o que é conhecido como a última fase do choque
cardiogénico. Também pode acontecer em pacientes com insuficiência cardíaca grave que foram
tratados com aparelhos de assistência mecânicos e com bypass cardiopulmonar prolongado.
Outras condições que são caracterizadas por colapso cardiovascular e que se podem associar a
vasodilatação incluem acidose láctica devido a intoxicação por metformina, algumas doenças
mitocondriais, envenenamento por cianeto, etc.

Mecanismos que promovem a vasodilatação no choque vasodilatador

Em todas as formas de choque vasodilatador analisadas, estavam presentes elevadas


concentrações de catecolaminas e o sistema renina-angiotensina estava ativado. Portanto, a
vasodilatação e a hipotensão são devidas a falência do músculo liso vascular em contrair. Foram
propostos vários mecanismos, como morte das células vasculares por hipotensão prolongada,
extração inadequada de oxigénio pelos tecidos e aumento da atividade das prostaglandinas com
atividade vasodilatadora.

Devido à sua importância clínica, o choque séptico é a forma mais estudada de choque
vasodilatador. Contudo, as generalizações devem ser feitas com precaução, uma vez que é
provável que diferentes mecanismos sejam ativados em diferentes tipos de choque
vasodilatador. Apesar disso, devem existir mecanismos comuns entre os diferentes tipos de
choque vasodilatador. Foram implicados 3 mecanismos nesta síndrome:

• Ativação de canais de potássio sensíveis a ATP (canais KATP) na membrana plasmática


das células musculares lisas vasculares. Os ativadores neurohormonais destes canais
também podem estar envolvidos em algumas formas de choque vasodilatador. Por
exemplo, o ANP, calcitonin gene-related peptide e adenosina podem ativar estes canais
– as concentrações destas substâncias estão aumentadas no choque séptico, e as
concentrações de ANP estão aumentadas na fase vasodilatadora do choque
hemorrágico. O canal KATP também pode ser ativado por aumento do NO através de um
mecanismo dependente de GMPc. Assim, condições que comprometam a oxigenação
tecidual e resultam em acidose láctica provavelmente ativam canais KATP no músculo liso
vascular, causando choque vasodilatador.
• Ativação da forma indutível da sintase de NO → aumento da síntese de NO. Os
mecanismos de aumento da expressão de sintase indutível do NO não estão bem
esclarecidos, mas várias citocinas (IL-1B, IL-6, TNFα, INF-γ e adenosina) estão
provavelmente envolvidas. Assim, o aumento da síntese de NO é uma causa importante
de hipotensão, vasodilatação e hiporresponsividade vascular que ocorre no choque
séptico e na fase terminal do choque hemorrágico. Apesar de o NO poder exercer estes
efeitos por vários mecanismos, a resistência a agentes vasopressores é provavelmente
mediada, pelo menos em parte, pela capacidade do NO ativar canais de K e
hiperpolarizar a membrana plasmática das células musculares lisas.
• Deficiência da hormona vasopressina. Em resposta à hipotensão, devida a hemorragia
ou sépsis, é libertada vasopressina. Durante a fase inicial de choque séptico ou
hemorrágico, a vasopressina, em conjunto com outros vasoconstritores, contribui para
a manutenção da PA. À medida que o choque se agrava, a concentração plasmática de
vasopressina diminui. Ainda não se sabe o mecanismo concreto para esta diminuição,
mas sabe-se que as reservas de vasopressina na neurohipófise podem ser esgotadas
após profunda estimulação osmótica e provavelmente por estimulação sustida do
barorreflexo.

Conclusão:

O choque vasodilatador ocorre devido a ativação


inapropriada de mecanimos vasodilatadores e à falência de
mecanismos vasoconstritores.

A síntese desregulada de NO, ao gerar cGMP, causa


desfosforilação da miosina e, portanto, vasodilatação. Para
além disso, a síntese de NO e a acidose metabólica ativam
canais de potássio (KATP e KCa) na membrana plasmática das
células musculares lisas vasculares. A hiperpolarização
resultante da membrana impede a entrada de Ca na célula,
estando este associado à vasoconstrição induzida pela
norepinefrina e pela angiotensina II. Portanto, persiste hipotensão e vasodilatação, apesar das
elevadas concentrações plasmáticas destas hormonas.

As concentrações plasmáticas de vasopressina aumentam no início do choque séptico ou


hemorrágico. Contudo, esta libertação maciça inicial leva a depleção da hormona, pelo que as
suas concentrações plasmáticas são demasiado baixas para manter a PA. Apesar de a resposta
pressora à vasopressina exógena poder ser devida a diferentes mecanismos, a capacidade da
hormona em bloquear os canais KATP no músculo liso vascular e interferir com a sinalização do
NO são contribuintes importantes.

Síndrome de dificuldade respiratória aguda (ARDS)

As 4 grandes definições de ARDS evoluíram ao longo dos anos, mas retiveram as características
centrais da descrição inicial da doença feita há 50 anos (taquipneia, hipoxemia refratária e
opacidades difusas no RX tórax após infeção ou trauma).
Como a permeabilidade pulmonar, o edema e a inflamação não são medidos rotineiramente na
clínica e não existem biomarcadores diagnósticos disponíveis, estas definições baseiam-se nas
manifestações clínicas e na imagiologia do tórax.

Definição de Berlim:

Esta definição estabelece 3 estadios de risco, baseados no grau de


hipoxémia, avaliado de acordo com a pressão expiratória final
positiva mínima (PEEP). Esta definição torna os critérios radiológicos
mais explícitos e permite a utilização de TC para a deteção de
opacidades. Para além disso, esta definição reconhece que a ARDS se
desenvolve dentro de 7 dias após o reconhecimento clínico de um
fator de risco conhecido, mais comummente pneumonia ou sépsis.

Na ARDS com início mais indolente ou na ausência de um fator de


risco identificado, deve considerar-se a presença de doenças que
imitam a ARDS, que requerem tratamentos específicos. Definições
anteriores excluíam sobrecarga de volume ou insuficiência cardíaca,
mas estes problemas podem coexistir em cerca de 1/3 dos pacientes
com ARDS.

A correlação histológica da ARDS é considerada


como lesão alveolar difusa: rápido desenvolvimento
de congestão capilar, atelectasia, hemorragia
intraalveolar e edema alveolar, seguidos dias mais
tarde por formação de membranas hialinas,
hiperplasia de células epiteliais e edema intersticial.

40 a 58% dos pacientes com ARDS moderada a


grave tinha lesão alveolar difusa na examinação
post-mortem. Pensa-se que a lesão alveolar difusa é
um achado histológico comum em pacientes com
ARDS que pode, em parte, refletir lesão pulmonar
induzida pelo ventilador.
Características epidemiológicas

A ARDS continua subdiagnosticada. Uma explicação consiste no desentendimento acerca da


natureza das opacidades radiográficas que suportam o diagnóstico. Opacidades difusas e
confluentes, com uma silhueta cardiotorácica estreita (sugerindo edema não-cardiogénico) são
os achados clássicos, mas por vezes observam-se opacidades assimétricas, dependentes e
ocasionalmente lobares.

Características genéticas e biomarcadores

A ARDS não se desenvolve na maioria dos pacientes com fatores de risco (pneumonia, sépsis ou
trauma), o que sugere que outros fatores, incluindo suscetibilidade genética, desempenham um
papel na patogénese deste distúrbio. Contudo, diferenças nos fatores de virulência (ex: H1N1
influenza), condições coexistentes (ex: pneumonia pneumocócica após esplenectomia) e
exposição ambiental (consumo álcool ou tabaco ou práticas ventilatórias mecânicas lesivas)
podem complicar a interpretação dos achados genéticos.

Foram identificados mais de 40 genes candidatos associados ao desenvolvimento ou outcomes


da ARDS, incluindo os genes da enzima conversora de angiotensina (ACE), da IL-10, TNF, VEGF,
SOD3, MYLK, NFE2L2, NAMPT e SFTPB. Algumas pessoas podem ter variantes que modificam o
risco ou os outcomes da ARDS, que podem não ser detetados e levarem a estimativas de risco
imprecisas. Para além disso, o tecido pulmonar para pesquisa geralmente não está disponível
em pacientes com ARDS. Portanto, a ligação de genes candidatos à suscetibilidade e outcomes
da ARDS, bem como aos eventos epigenéticos e transcripcionais e à expressão proteica, ainda
são limitados.

O aumento dos níveis de biomarcadores plasmáticos, incluindo marcadores da inflamação


sistémica (IL-6 e IL-8), lesão epitelial (recetores para produtos de glicação avançada e proteína
surfactante D) e lesão endotelial (angiopoietina 2), bem como marcadores de coagulação
desregulada (proteína C baixa e níveis elevados de plasminogen activator inhibitor 1), fora
associados a outcomes adversos da ARDS. Estes biomarcadores podem demonstrar a
patogénese da ARDS e identificar subtipos de resposta a tratamento.

Patogénese

A resposta inicial do pulmão à lesão (fase exsudativa) é caracterizada por dano mediado por
células imunes inatas na barreira alveolar endotelial e epitelial e acumulação de edema rico em
proteínas dentro do interstício e nos alvéolos. Os macrófagos residentes nos alvéolos secretam
citocinas pró-inflamatórias, levando ao recrutamento de neutrófilos e monócitos ou
macrófagos, bem como à ativação de células epiteliais alveolares e células T efetoras,
promovendo e sustentando inflamação e lesão tecidual. A ativação endotelial e a lesão
microvascular também contribuem para a disrupção da barreira na ARDS e pioram por
estiramento mecânico.

Os processos de reparação que se iniciam durante a fase proliferativa da ARDS são essenciais
para a sobrevivência do doente. Uma vez que a integridade epitelial seja reestabelecida, a
reabsorção do edema alveolar e a matriz provisória restaura a função e arquitetura alveolar.

A fase final é a fase fibrótica, que não ocorre em todos os pacientes, mas que foi associada a
ventilação mecânica prolongada e a aumento da mortalidade.
A lesão é iniciada na estrutura alveolar
do pulmão distal e na
microvasculatura associada. Na fase
exsudativa, os macrófagos alveolares
residentes são ativados, levando a
libertação de mediadores pró-
inflamatórios e a quimiocinas que
promovem a acumulação de
neutrófilos e monócitos. Os neutrófilos
ativados contribuem ainda mais para a
lesão ao libertarem mediadores
tóxicos. A lesão resultante leva a perda
da função da barreira, bem como a
extravasamento para o interstício e
para dentro dos alvéolos. A expressão
de fator tecidual mediada pelo TNF
promove a agregação plaquetária e a
formação de microtrombos, bem
como a coagulação intraalveolar e a
formação de membranas hialinas.

A fase proliferativa pretende restaurar


a homeostase do tecido e é
caracterizada por expansão transitória
de fibroblastos residentes e a
formação de uma matriz provisória,
bem como proliferação de células
progenitoras das vias aéreas e de
células epiteliais alveolares tipo II, com
diferenciação em células epiteliais
alveolares do tipo I.

Durante a fase fibrótica, que é


associada à necessidade de ventilação
mecânica, lesão extensiva da
membrana basal e reepitelização
inadequada ou atrasada leva ao
desenvolvimento de fibrose intersticial
e intra-alveolar.
Tratamento e prevenção

1. Terapêutica de suporte

A 1ª prioridade no tratamento de pacientes com ARDS é a identificação e tratamento da(s)


causa(s).

A terapêutica de suporte foca-se em limitar a lesão pulmonar através da combinação de


ventilação protetora do pulmão para prevenir a lesão pulmonar associada ao ventilador, e
fluidoterapia.

2. Terapêutica farmacológica

Nenhuma terapêutica farmacológica mostrou reduzir a mortalidade nem a curto nem a longo
prazo.

• NO inalado
• Glucocorticoides

3. Prevenção

Boas práticas nas unidades de cuidados intensivos, reposição de volume e antibióticos na sépsis,
estratégias restritivas de uso de produtos sanguíneos, …

Hemorragias e coagulopatias em cuidados intensivos

Diagnóstico diferencial

A história clínica e o exame objetivo são vitais, uma vez que condições diferentes podem
produzir anormalidades laboratoriais semelhantes. Por exemplo, a insuficiência cardíaca
terminal e a coagulação intravascular disseminada produzem trombocitopénia e alterações
semelhantes nos testes de coagulação, e, no entanto, o tratamento e o prognóstico são muito
diferentes.

O esfregaço de sangue periférico é um instrumento vital para confirmar uma baixa contagem de
plaquetas e a presença/ausência de outras características diagnósticas, como fragmentação de
eritrócitos, anormalidades morfológicas das plaquetas ou evidência de displasia ou deficiência
hematínica.
Uma vez que seja determinado que a causa da coagulopatia não é a resposta a agentes
terapêuticos que modificam a resposta coagulativa (tratamento com antagonistas da vitamina
K, heparinoides ou inibidores diretos do fator Xa ou IIa), é necessário avaliar o padrão da
hemorragia, que pode incluir petéquias e hemorragia das mucosas nos distúrbios plaquetários,
hemorragias lentas de superfícies desepitelizadas e hemorragias rápidas devido a lesão em
grandes vasos.

Tratamento das coagulopatias

O primeiro princípio na abordagem às coagulopatias nos cuidados intensivos é evitar a correção


de anormalidades laboratoriais com produtos sanguíneos, a não ser que exista hemorragia ou
seja necessário realizar um procedimento cirúrgico, ou ambos.

Hemorragia major

Apesar da falta de evidência de que a hemorragia após cirurgia e as hemorragias GI e obstétricas


estejam associadas a alterações hemostáticas semelhantes às que ocorrem na coagulopatia
traumática aguda, o uso precoce de um rácio de transfusão plasma congelado/eritrócitos de 1:1
ou 1:2 tornou-se difundido. Este aumento do uso de plasma não está livre de riscos, uma vez
que aumenta a incidência de lesão pulmonar relacionada com a transfusão, pelo que pode haver
risco de ARDS.

Apesar de na América do Norte ter aumentado a utilização de plasma congelado em pacientes


com hemorragias major, alguns clínicos na Europa abandonaram o uso do plasma, usando
exclusivamente concentrados, com base na intervenção guiada pela elastometria rotacional, de
complexo de protrombina, fator XIII e fibrinogénio. Por outro lado, outros clínicos acreditam que
o tratamento de hemorragias major deve começar com suplementação de fibrinogénio com
ácido tranexâmico (derivado sintético do aminoácido lisina, que atua como um agente
antifibrinolítico ao inibir competitivamente o plasminogénio) e com eritrócitos e fluido
intravenoso usados conforme as necessidades.
O fibrinogénio é uma molécula crítica na coagulação, sendo a proteína que origina a fibrina. Em
pacientes com hemorragia major, é necessária em quantidades muito maiores do que as outras
proteínas hemostáticas. Este requerimento reflete o aumento do seu consumo, perda, diluição
e fibrinogenólise. As guidelines indicam que o nível a partir do qual se deve suplementar com
fibrinogénio é 1,5 a 2g/L. Não se sabe se a suplementação precoce com fibrinogénio e a
utilização de concentrado de complexo de protrombina, quando comparado com o uso de
plasma congelado, melhora os outcomes clínicos em pacientes com hemorragias major, pelo
que são necessários mais estudos para avaliar o benefício e a segurança, incluindo a taxa de
tromboembolismo venoso adquirido no hospital. O uso de fator VIIa recombinante mostrou
reduzir a utilização de eritrócitos na hemorragia, mas não mostrou uma redução na mortalidade,
pelo que necessita de maior avaliação. O uso off-label de fator VIIa recombinante foi associado
a aumento do risco de trombose arterial.

O ácido tranexâmico deve ser administrado em todos os pacientes com hemorragia major após
trauma. Pacientes que receberam ácido tranexâmico dentro de 3 horas após a lesão tiver
redução na mortalidade por hemorragia. A administração do ácido tranexâmico deve ser feita o
mais rapidamente possível após a lesão, uma vez que este fármaco deixa de oferecer benefício
e está associado a aumento da mortalidade se for administrado mais de 3h após a lesão. A
incidência de trombose não foi aumentada nos pacientes. Estudos mostram que o ácido
tranexâmico reduz a necessidade de transfusão sanguínea em cirurgias, apesar do seu efeito nos
eventos tromboembólicos e na mortalidade destes pacientes permanecer incerto.

Suporte hemostático para procedimentos invasivos

Não existem evidências que apoiem o uso profilático de plasma congelado para corrigir
alterações nos testes da coagulação (tempo de protrombina, APTT e fibrinogénio) antes de
procedimentos invasivos. A ingestão na dieta de vitamina K, que é necessária para a formação
dos fatores de coagulação II, VII, IX e X, pode ser inadequada nos cuidados intensivos. Apesar da
falta de evidências e da incapacidade da vitamina K de corrigir coagulopatias causadas por
doença hepática, neste artigo recomenda-se a suplementação com vitamina K em pacientes cos
cuidados intensivos em risco.

Coagulação intravascular disseminada

É uma síndrome adquirida caracterizada por ativação intravascular da coagulação com perda
de localização, que ocorre devido a diferentes causas. Esta condição tipicamente origina-se na
microvasculatura e pode causar lesões a ponto de levar à disfunção orgânica.

A coagulação intravascular disseminada apresenta-se frequentemente com hemorragia, sendo


que apenas 5 a 10% dos casos apresentam unicamente microtrombos (isquémia digital). O facto
de a condição se apresentar como um episódio trombótico ou como um episódio hemorrágico
depende da sua causa e das defesas do organismo.

A sépsis é a causa mais comum de coagulação intravascular disseminada nos cuidados


intensivos; infeções sistémicas por bactérias como Staphylococcus aureus e E. coli foram
associadas a este distúrbio.
A fisiopatologia é mediada por PAMPs. A sinalização por TLRs e por recetores do complemento
inicia a sinalização intracelular, que resulta na síntese de várias proteínas (incluindo citocinas
pró-inflamatórias). Estas proteínas desencadeiam alterações hemostáticas, levando a up-
regulation do fator tecidual e comprometendo os anticoagulantes fisiológicos e a fibrinólise.
A up-regulation do fator tecidual ativa a coagulação, levando a deposição disseminada de fibrina
e a trombose intravascular e pode contribuir para disfunção multiorgânica.

Ocorrem anormalidades nos anticoagulantes fisiológicos. Ensaios clínicos com suplementação


de anticoagulantes fisiológicos, com doses farmacológicas de proteína C ativada, antitrombina
e TFPI (tissue factor pathway inhibitor) em pacientes com sépsis não mostraram redução na
mortalidade e aumentaram os episódios hemorrágicos.

O consumo das proteínas da coagulação e das plaquetas provoca uma tendência à hemorragia,
com trombocitopenia, PT e APTT prolongados, hipofibrinogenémia e níveis elevados de
produtos de degradação da fibrina, como os D-dímeros. Os anticoagulantes fisiológicos também
são consumidos no processo de inibir os fatores de coagulação ativados. Na coagulação
intravascular disseminada fulminante, o consumo e aporte diminuído de plaquetas e de
proteínas da coagulação resulta em oozing em locais de acesso vascular e em feridas, mas
ocasionalmente causa hemorragia grave.

A abordagem desta condição consiste no tratamento da causa (ex: sépsis). Podem não ser
necessários outros tratamentos em pacientes com anormalidades médias na coagulação e sem
evidência de hemorragia. As guidelines sugerem reposição de proteínas da coagulação e
plaquetas em pacientes com hemorragia. A transfusão plaquetária é indicada para manter um
nível plaquetário superior a 50 000/mm3, em conjunto com a administração de plasma
congelado e fibrinogénio.

O uso de agentes antifibrinolíticos é contraindicado, uma vez que o sistema fibrinolítico é


necessário na recuperação para assegurar a dissolução da fibrina disseminada. Algumas
guidelines recomendam a administração de doses terapêuticas de heparina não fracionada em
pacientes com fenótipo trombótico (ex: gangrena), mas estas recomendações permanecem
controversas; para além disso, a administração de heparina pode provocar hemorragia.

Trombocitopénia

Mecanismos fisiopatológicos

A trombocitopenia pode ser provocada por


diminuição da produção de plaquetas ou
aumento da sua destruição (imune ou não
imune), bem como por sequestração no baço.
Esta condição ocorre, nas unidades de cuidados
intensivos, em 20% dos pacientes médicos e em
1/3 dos pacientes cirúrgicos. A causa desta
condição é muitas vezes multifatorial.
Pacientes com trombocitopenia tende a ter
maior gravidade da sua doença.

Diagnóstico diferencial:

É importante identificar pacientes nos quais a


trombocitopenia requer ação específica e
urgente (ex: trombocitopenia induzida por
heparina e púrpura trombocitopénica
trombótica). A trombocitopenia induzida por
fármacos é um desafio diagnóstico, porque
pacientes críticos recebem múltiplos
medicamentos que podem causar
trombocitopenia.
• Um limiar de 10 000 plaquetas/mm3 para transfusão plaquetária em pacientes estáveis
é tanto hemostaticamente eficaz com tem boa relação custo-benefício, reduzindo a
necessidade de transfusões plaquetárias.
• Pacientes com falência na produção plaquetária (mielodisplasia e anemia aplástica)
podem permanecer sem risco de hemorragia grave com contagem plaquetária entre
5000 a 10 000/mm3. Contudo, deve ser estabelecido um limiar de transfusão
plaquetária mais elevado em pacientes com outras anormalidades hemostáticas ou
aumento do turnover plaquetário.
• Se o paciente tiver hemorragia ativa, deve manter-se uma contagem de 50 000
plaquetas/mm3
• Pacientes em risco de hemorragia no SNC ou que irão ser submetidos a neurocirurgia, é
recomendada contagem plaquetária superior a 100 000/mm3

Causas imunológicas

Como regra geral, uma redução abrupta da contagem plaquetária com história de cirurgia
recente sugere uma causa imunológica ou reação adversa à transfusão (púrpura pós-transfusão
ou trombocitopenia induzida por fármacos).

A trombose trombocitopénica induzida por heparina é um distúrbio protrombótico autoimune,


transitório, raro e induzido por fármacos, causado pela formação de anticorpos IgG que causam
ativação plaquetária pela formação de anticorpos para complexos de platelet factor 4 e
heparina.

Púrpura pós-transfusional

É um distúrbio hemorrágico raro causado por aloanticorpos específicos para plaquetas – HPA-
1a (anti-human platelet antigen 1a) no paciente que recebe a transfusão. Os HPA-1ª reagem
com as plaquetas do dador, destruindo-as, e também com as plaquetas do recipiente. A maioria
dos pacientes são mulheres multíparas que sofreram sensibilização durante a gravidez.

Microangiopatias trombóticas

As microangiopatias trombóticas são caracterizadas por trombocitopenia profunda e por


anemia hemolítica microangiopática, e incluem 3 grandes distúrbios: púrpura trombocitopénica
trombótica, síndrome hemolítica-urémica, e a síndrome HELLP (relacionada com a gravidez –
hemólise, aumento enzimas hepáticas e baixa contagem de plaquetas).

A maioria dos casos de púrpura trombocitopénica trombótica ocorre devido a deficiência de


ADAMTS13, que pode ser hereditária ou causada por destruição autoimune. A ausência de
ADAMTS13 resulta em persistência do fator von Willebrand, que causa agregação plaquetária
espontânea quando a proteína é sujeita a stress de cisalhamento. A mortalidade, quando não
tratada, é cerca de 95%, devido geralmente a enfarte do miocárdio por trombos plaquetários
nas artérias coronárias. Assim, o diagnóstico ou ausência em excluí-lo deve levar a plasmaferese
urgente.

Doença hepática

A trombopoietina e a maioria das proteínas hemostáticas são sintetizadas no fígado. Portanto,


a redução da função sintética hepática resulta em prolongamento do tempo de protrombina e
redução da contagem plaquetária, apesar dos níveis de fator VIII e do fator von Willebrand
estarem elevados. A ingestão aguda de álcool inibe a agregação plaquetária. Na doença hepática
crónica, existe potencial fibrinolítico devido à falência do fígado em metabolizar o ativador do
plasminogénio tecidual. Na doença hepática colestática, existe redução da absorção de
vitaminas lipossolúveis, pelo que há uma redução da síntese de fatores de coagulação
dependentes da vitamina K → II, VII, IX e X. Para além disso, na doença hepática, a falência da
remoção enzimática do ácido siálico do fibrinogénio resulta em disfibrinogenémia. Contudo, em
paralelo com a redução dos fatores de coagulação, também existe redução da produção de
anticoagulantes fisiológicos. Portanto, não se considera que pacientes com doença hepática
crónica e PT prolongado tenham deficiência dos fatores de coagulação, uma vez que a sua
coagulação é reequilibrada e a geração de trombina é normal. Nestes casos, não é necessário
tratar o tempo de coagulação prolongado na ausência de hemorragia.

Se ocorrer hemorragia na doença hepática, está comprovado que uma abordagem restritiva de
transfusão (limiar – nível Hb < 7g/dL) em pacientes com hemorragia GI aguda está associada a
maiores taxas de sobrevivência e menores taxas de hemorragias adicionais, quando comparada
com uma estratégia liberal (limiar – nível Hb < 9g/dL). Para além disso, a estratégia liberal, ao
contrário da restritiva, foi associada a aumento da pressão da circulação portal.

Apesar de não haver estudos semelhantes relativamente a alterações na coagulopatia ou


trombocitopenia, parece razoável adotar uma estratégia restritiva quando ao uso de plasma
congelado e plaquetas em pacientes com hemorragia GI aguda.

Em pacientes com doença hepática e testes laboratoriais que indiquem uma síntese anormal de
fatores de coagulação, deve-se administrar-se vitamina K para ajudar à síntese dos fatores de
coagulação.

A doença hepática leva a alterações hemostáticas complexas, uma vez que o fígado produz os
fatores de coagulação, anticoagulantes fisiológicos e trombopoietina, sendo também o local
do metabolismo dos resíduos de ácido siálico do fibrinogénio, dos fatores de coagulação
ativados e do ativador do plasminogénio tecidual. Estes defeitos resultam em diminuição da
reserva coagulativa, disfibrinogenémia e aumento do potencial fibrinolítico.
Doença renal

Na doença renal, a diminuição da produção de eritropoietina provoca anemia, que resulta na


perda do fluxo laminar e prolonga o tempo de hemorragia. A acumulação de toxinas urémicas
resulta em disfunção plaquetária.

A hemorragia urémica tipicamente apresenta-se com equimoses, púrpura, epistaxis, e


hemorragia nos locais de punção devido a alteração da função plaquetária.

A disfunção plaquetária resulta de alterações que incluem disfunção do fator de von Willebrand,
diminuição da produção de tromboxano, aumento dos níveis de AMPc e GMPc, toxinas
urémicas, anemia e grânulos plaquetários alterados.

A anemia que acompanha frequentemente a doença renal leva a perda do fluxo laminar nas
arteríolas, pelo que os eritrócitos já não empurram as plaquetas para o endotélio, levando a
prolongamento do tempo de hemorragia; o tratamento da anemia pode corrigir parcialmente
este problema. A fibrinólise também pode estar comprometida em pacientes com doença renal.

A diálise, especialmente a diálise peritoneal, melhora a função plaquetária. A eritropoietina, o


ciroprecipitao, estrogénios conjugados, desmopressina e ácido tranexâmico mostraram reduzir
o tempo de hemorragia.

Hemorragia fibrinolítica

A hiperfibrinólise consiste na fibrinólise excessiva que afeta a integridade dos coágulos. Esta
condição é difícil de diagnosticar devido à ausência de um teste de rotina específico. Deve-se
suspeitar em casos nos quais a hemorragia continua apesar de terapêutica de reposição
hemostática, quando os níveis de plaquetas estão relativamente conservados, mas os de
fibrinogénio estão desproporcionalmente reduzidos, e os níveis de D-dímeros estão
desproporcionalmente elevados.
A hemorragia fibrinolítica deve ser considerada particularmente em pacientes com doença
hepática ou com cancro disseminado. O uso de ácido tranexâmico é benéfico no controlo da
hemorragia.

Doença de von Willebrand

Se ocorrer hemorragia inexplicável, deve-se considerar a apresentação tardia de um distúrbio


hemorrágico hereditário. Deve-se pesquisar história familiar e pessoal de aquisição de
equimoses com facilidade e de hemorragias. Ocasionalmente, uma condição como a doença de
von Willebrand pode apresentar-se como oozing após uma lesão ou cirurgia.

A doença de von Willebrand adquirida também pode ocorrer em pacientes nas unidades de
cuidados intensivos. Pode ser causada por vários mecanismos: autoanticorpos, distúrbios
mieloproliferativos e linfoproliferativos, ou pela quebra de multímeros do fator de von
Willebrand devido a elevado stress de cisalhamento intravascular ou em circuitos
extracorporais.

• Stress de cisalhamento intravascular: a estenose da válvula aórtica pode causar doença


de von Willebrand adquirida, levando a hemorragia GI (síndrome de Heyde)
• Stress de cisalhamento em circuitos extracorporais: oxigenação membranar
extracorporal, left ventricular assist devices

É tratada usando quer desmopressina, que estimula a libertação de fator de von Willebrand
armazenado nas células endoteliais, quer através de concentrado de fator de von Willebrand,
sendo este considerado a terapêutica mais eficaz. Pode ser considerado o uso de
antifibrinolíticos e, quando presente, deve-se remover a causa do elevado stress de
cisalhamento.

Hemorragia associada à terapêutica antitrombótica


Insuficiência renal aguda isquémica normotensa

A insuficiência renal aguda é definida como a rápida diminuição da TFG num período de minutos
a dias. Como a taxa de produção de resíduos metabólicos excede a taxa de excreção renal nesta
circunstância, as concentrações séricas de marcadores da função renal (creatinina e ureia)
aumentam.

As causas de insuficiência renal aguda são classicamente divididas em 3 categorias: pré-renal,


pós-renal/obstrutiva e intrínseca:

• A azotémia pré-renal é considerada uma resposta funcional à hipoperfusão renal, na


qual a estrutura renal e a microestrutura estão preservadas.
• A azotémia pós-renal (obstrução do trato urinário) é inicialmente acompanhada por
poucas ou nenhumas alterações microscópicas (hidronefrose, com alargamento da
pelve renal e distensão mínima das papilas renais).
• A azotémia renal intrínseca ocorre devido a lesão parenquimatosa dos vasos,
glomérulos, túbulos ou interstício.

Na azotémia pré-renal e pós-renal há recuperação completa 1-2 dias após a remoção do fator
lesivo → a perfusão normal/fluxo urinário é reestabelecido antes que ocorram alterações
estruturais.

As duas formas de insuficiência renal aguda isquémica – azotémia pré-renal e necrose tubular
aguda – representam mais de metade dos casos de insuficiência renal dos pacientes
hospitalizados. Pacientes com insuficiência renal aguda isquémica tipicamente apresentam
baixa perfusão sistémica, por vezes causada por depleção de volume, apesar de a sua PA não
diminuir drasticamente, mas sim manter-se nos níveis normais. Nestes casos, na ausência de
hipotensão franca, os clínicos podem especular se uma diminuição não observada da PA poderá
ter causado a insuficiência renal. Apesar de este cenário não poder ser excluído, podem ser
identificados outros mecanismos. Este tipo de insuficiência renal aguda isquémica (normotensa)
pode ocorrer devido a vários processos, sendo que a maioria destes envolve o aumento da
suscetibilidade do rim a reduções modestas da pressão de perfusão. Felizmente, os fatores que
levam a insuficiência renal isquémica em pacientes com PA aparentemente normal são
discerníveis a maioria das vezes, pelo que o reconhecimento destes fatores permite um
diagnóstico precoce e facilita as intervenções que podem ajudar a
reestabelecer a hemodinâmica renal normal.

Resposta renal à isquémia

A autorregulação durante uma diminuição da pressão da artéria


renal deriva de uma diminuição da resistência na arteríola
aferente, mediada em grande parte por prostaglandinas. A
diminuição da resistência na arteríola aferente sustém a pressão
capilar glomerular, sendo esta também parcialmente suportada
pelo aumento da resistência na arteríola eferente, mediada pela
angiotensina II.

À medida que a perfusão renal diminui abaixo do alcance da


autorregulação, vasoconstritores endógenos aumentam a
resistência na arteríola aferente. Isto resulta em redução da
pressão capilar glomerular e da TFG, e em azotémia pré-renal
funcional. Os capilares pós-glomerulares, que perfundem os túbulos, apresentam diminuição da
pressão e do fluxo sanguíneo, mas os túbulos permanecem intactos. Contudo, o aumento da
gravidade e da duração da isquémia pode causar lesão estrutural nos túbulos,
comprometendo a função renal. A células epiteliais tubulares e os detritos da bordadura em
escova formam aglomerados que obstruem os túbulos, e ocorre back-leak → o filtrado
glomerular passa do lúmen do túbulo para as paredes lesadas, e depois para os capilares e para
a circulação. Para além disso, a reabsorção comprometida de sódio provoca aumento da
concentração de sódio no lúmen tubular, que polimeriza a proteína de Tamm-Horsfall
(normalmente secretada na ansa de Henle), formando um gel e contribuindo ainda mais para a
formação de aglomerados.

O mecanismo através do qual a isquémia e a depleção de oxigénio lesam as células tubulares


começa com a depleção de ATP, que ativa alterações críticas no metabolismo. A disrupção do
citoesqueleto leva a perda das microvilosidades da bordadura em escova e das junções
celulares, e provoca deslocação de integrinas e Na+-K+-ATPase da superfície basal para a
superfície apical. Como resultado, as células libertam-se e podem obstruir os túbulos. A
depleção de ATP também ativa protéases e fosfolipases que, com a reperfusão, causam lesão
oxidativa nas células tubulares. Ocorrem danos semelhantes nas células endoteliais dos
capilares peritubulares, especialmente na periferia da medula, que em circunstâncias normais
apresenta menor oxigenação. Esta lesão oxidativa, juntamente com uma alteração do balanço
das substâncias vasoativas a favor de vasoconstritores, como a endotelina, resulta em
vasoconstrição, congestão, hipoperfusão e expressão de moléculas de adesão. A expressão de
moléculas de adesão inicia a infiltração leucocitária, aumentada pelas citocinas pró-
inflamatórias e quimiocinas geradas pelas células tubulares isquémicas. Estes leucócitos
obstruem a
microcirculação e
libertam citocinas
citotóxicas,
espécies reativas
de oxigénio e
enzimas
proteolíticas, que
danificam as
células tubulares.
Esta lesão tubular é
conhecida como
necrose tubular
aguda. Contudo,
este termo é
enganador, uma
vez que apenas
algumas das células
tubulares sofrem
necrose; a maioria
são viáveis (tanto
saudáveis como
com lesão
reversível) e algumas sofrem apoptose.

Fatores que aumentam a suscetibilidade renal à isquémia

Os rins são mais vulneráveis a hipoperfusão moderada


quando a autorregulação está comprometida, o que ocorre
quando a resistência da arteríola aferente não diminui
apropriadamente, ou quando aumenta. Este fenómeno
pode ser visto em pacientes idosos ou em pacientes com
aterosclerose, hipertensão ou doença renal crónica, em
que a hialinose e a hiperplasia miointimal causam
estreitamento das arteríolas. O aumento da suscetibilidade
à isquémia renal também pode ocorrer na hipertensão
maligna devido ao espessamento da íntima e à necrose
fibrinóide das pequenas artérias e arteríolas. Para além
disso, na doença renal crónica, as arteríolas aferentes nos
glomérulos funcionais ficam dilatadas, o que aumenta a
taxa de filtração (hiperfiltração). Apesar do aumento da TFG
por nefrónio compensar a perda de nefrónios, a
incapacidade de vasodilatar mais afeta a capacidade do rim
em autorregular a TFG em estados de baixa perfusão.

A incapacidade da arteríola aferente em diminuir a sua


resistência pode ocorrer quando um paciente está a
receber AINEs ou inibidores da COX-2, que reduzem a síntese de PGs no rim. Quando isto
ocorre, a angiotensina II, a norepinefrina e outros vasoconstritores libertados em estados de
baixa perfusão podem atuar sem oposição na arteríola aferente, diminuindo ainda mais a
pressão capilar glomerular. Noutras situações, sépsis, hipercalcémia, insuficiência hepática,
inibidores da calcineurina e agentes de radiocontraste podem atuar através de vários
mediadores vasoconstritores aumentando a resistência na arteríola aferente. Para além disso,
a sépsis e os agentes de contraste podem ter efeitos tóxicos diretos nos túbulos.

A diminuição da perfusão renal pode também causar uma grande


diminuição da TFG → por exemplo, quando a angiotensina II não
consegue aumentar a resistência da arteríola eferente em pacientes que
estão a receber ARA ou IECA.

O estreitamento das artérias renais devido a aterosclerose também


pode aumentar a suscetibilidade para a isquémia renal. No caso de
estenose unilateral, o rim contralateral consegue manter a TFG; contudo,
pode ocorrer insuficiência renal quando a estenose da artéria renal num
único rim ou nos dois for superior a 70% do lúmen. A insuficiência
renovascular que afeta toda a massa renal pode não reduzir o suficiente
a pressão de perfusão pós-estenótica para afetar a filtração glomerular,
mas a terapêutica antihipertensiva pode piorar a isquémia e reduzir a
função renal.

Estados de baixa perfusão em insuficiência renal normotensiva

A causa da insuficiência renal aguda isquémica clássica é choque


hipovolémico, cardiogénico ou distributivo, com PAS abaixo de 90
mmHg. A insuficiência renal normotensa envolve estados de baixa perfusão, mas ocorre
azotémia devido aos fatores que aumentam a suscetibilidade renal à isquémia.

Diagnóstico da insuficiência renal aguda isquémica normotensiva

Condições em que esta perturbação se pode desenvolver incluem hipertensão, doença renal
crónica, e idade avançada. Outras incluem cirrose, infeção, EAM e insuficiência cardíaca
congestiva, bem como diminuição da ingestão de alimentos. Para além disso, os diuréticos
diminuem o volume extracelular, podendo comprometer o débito cardíaco, e os AINEs e os
IECAs interferem com a autorregulação do rim.

Na insuficiência renal aguda isquémica clássica, quando um paciente entra em choque, o médico
deve procurar uma diminuição no débito urinário e um aumento na concentração de creatinina
sérica. Na variante normotensiva, quando o débito urinário diminui ou a creatinina aumenta, o
médico deve procurar a presença de um estado de baixa perfusão que pode não ter sido
aparente. No 1º dia em que a creatinina aumenta, a PA geralmente está abaixo do normal do
paciente.

A causa da diminuição da PA pode não ser aparente. Há 2 cenários possíveis:

• O paciente poderia estar na fase inicial de sépsis mas no início do quadro não ter febre
ou outros sintomas localizadores. Estes pacientes geralmente têm um ou mais dos
seguintes sinais e sintomas: hipotermia, confusão, extremidades frias, leucocitose,
“bandemia” (nível elevado de leucócitos em bandas), leucopénia ou acidose láctica
inexplicável.
• Um paciente estável que recebe diuréticos para tratamento de hipertensão ou
insuficiência cardíaca congestiva pode manifestar anorexia, parar de comer por outra
razão ou diminuir a ingestão de sal. O balanço de sódio progressivamente negativo
resulta em depleção de volume e a uma descida da PA.

Para além de verificar estados de baixa perfusão, os médicos devem tentar identificar fatores
de suscetibilidade para isquémia renal. Uma vez que a insuficiência renal aguda isquémica
normotensiva é multifatorial, podem estar presentes vários estados de baixa perfusão e vários
fatores de suscetibilidade. É importante perguntar ao doente se se automedica com AINEs, e
verificar as concentrações de cálcio. A sépsis, a hipercalcémia e a síndrome hepatorrenal podem
causar estados de baixa perfusão e aumentar a resistência da arteríola aferente.

Os fatores de suscetibilidade podem por vezes resultar em insuficiência renal aguda isquémica
na ausência de estados de baixa perfusão. Nestes casos, os fatores resultam em vasoconstrição
renal grave que cause redução crítica da função renal. Exemplos são agentes de radiocontraste
dados a pacientes com doença renal crónica, e ciclosporina, tacrolimus, AINEs ou inibidores da
COX-2 em doses muito elevadas ou supraterapêuticas.

Pacientes com hipertensão maligna, estenose unilateral da artéria renal ou estenose bilateral
da artéria renal apresentam hipertensão severa, mas também apresentam comprometimento
da perfusão renal.

Uma vez que sejam reconhecidos estados de baixa perfusão e fatores de suscetibilidade, pode
ser feito o diagnóstico, suportado por achados laboratoriais e por uma resposta à terapêutica.

Achados laboratoriais
Estados de baixa perfusão desencadeiam mecanismos de conservação de água e Na. Portanto,
na altura em que a pressão capilar glomerular e a TFG diminuem, o túbulo renal reabsorve mais
água e Na, o que também pode aumentar a reabsorção passiva de ureia. Portanto, a densidade
da urina está aumentada, enquanto a excreção urinária de sódio e ureia diminui, e o rácio ureia
plasmática/creatinina plasmática aumenta de 10:1 para 20:1 ou superior.

Se a isquémia continuar e causar necrose tubular aguda, os túbulos lesados não vão conseguir
aumentar a reabsorção de água, Na e ureia → a urina torna-se isostenúrica, semelhante à do
plasma, a excreção urinária de Na e ureia aumenta e o rácio ureia plasmática/creatinina
plasmática diminui de volta para os 10:1. O sedimento urinário apresenta células tubulares e
detritos, formando aglomerados granulares acastanhados.

Muitos pacientes apresentam um intermédio entre azotémia pré-renal e necrose tubular aguda
devido à presença de achados mistos.

Terapêutica e resposta

Os estados de baixa perfusão e os fatores de risco para isquémia renal são muitas vezes
tratáveis, pelo que devem ser identificados e resolvidos precocemente. Se possível, a PA que
esteja no extremo inferior dos valores normais deve ser aumentada através de correção de
hipovolémia ou por redução da dose/descontinuação de medicação antihipertensiva e de outros
medicamentos que baixem a PA. Deve verificar-se se existe alguma infeção e trata-la. Se ainda
não tiver ocorrido necrose tubular aguda, a terapêutica pode reverter o aumento da
concentração de creatinina em 24-48 horas. Por outro lado, quando já há necrose tubular aguda,
são necessários vários dias para se notar melhoria do quadro, mesmo após tratar as causas
subjacentes.

Uma vez que estas pessoas são altamente suscetíveis a lesão renal recorrente, depleção de
volume e hipotensão, devem ser evitados AINEs e fármacos nefrotóxicos, anestesia
desnecessária, e quando possível cirurgia e radiocontraste.

Assim, muitos casos podem ser resolvidos rapidamente com reposição de volume, tratamento
de infeções, ou parar medicações como AINEs, diuréticos, IECAs ou ARAs.

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