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Sorte e Oportunidade
O Que há de Errado com o Igualitarismo de Fortuna?

Lucas Petroni (Cebrap)


lucas.petroni@cebrap.org

Publicado em Blog da DADOS: Revista de Ciências Sociais


25 de outubro de 2021
http://dados.iesp.uerj.br/errado-igualitarismo-fortuna/

Uma parte importante da filosofia política contemporânea tem dedicado seus esforços à
tarefa de explicar e justificar os fundamentos da justiça social. Dentre o que podemos denominar
de família de teorias igualitárias, isto é, concepções de justiça que acreditam que uma sociedade
justa é necessariamente uma sociedade política e economicamente igualitária, um problema de
pesquisa de primeira importância é responder à pergunta “igualdade de quê?”. Imaginemos que
queremos avaliar se um padrão distributivo entre duas ou mais pessoas é igualitário ou não. Isto é,
se um determinado arranjo distributivo satisfaz, ou não, o valor da igualdade. A primeira coisa que
devemos resolver diante dessa situação é decidir em relação a que as pessoas em questão estão
sendo tratadas (ou não) igualmente. Isto é, precisamos oferecer, de maneira explícita e precisa, o
tipo de métrica distributiva estamos empregando em nossos juízos sobre a justiça social. Daí,
igualdade em relação a qual métrica?

Podemos, por exemplo, avaliar a igualdade entre as pessoas em relação aos níveis de bem-
estar subjetivo que elas desfrutam, ao em relação ao controle que elas exercem sobre recursos
materiais disponíveis, ou ainda em relação a uma síntese de diferentes de fatores distributivos, tais
como os indicadores empregados em índices de desenvolvimento humano. A diferença de
equalisandum entre teorias acarretará consequências conceituais importantes. Tomemos um
exemplo. Métricas de tipo subjetiva, fundadas na avaliação de preferências ou outros estados
(subjetivos) de bem-estar, tenderão, de um ponto de vista distributivo, a recompensar mais
disposições individuais “caras”, uma vez que uma mesma quantidade de recurso entre pessoas com
necessidades muito diferentes produzirá um valor de satisfação individual muito discrepante. Em
segundo lugar, teorias igualitárias precisam avaliar também os parâmetros interpessoais para uma
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distribuição justa. Isto é, uma vez determinado o equalisandum correto de uma teoria da justiça,
ainda será preciso encontrar critérios de equidade interpessoal que evitem o benefício injusto (ou
a exploração) entre agentes produtivos e agentes (potencialmente) exploradores. Para ficarmos
com o mesmo exemplo, teorias subjetivistas precisam explicar, por exemplo, por que uma pessoa
com um gosto excessivamente caro - alguém que só consegue se satisfazer em meio à opulência -
mereceria mais recursos sociais do que uma pessoa em graves dificuldades materiais, mas com
uma disposição pessoal de tipo estoica. Em contraste com a pergunta “igualdade de quê?”, essa
segunda tarefa do igualitarismo tem sido denominada como “o problema da exploração
interpessoal”.

Nenhuma concepção de justiça levou tão a sério, nem contribuiu tanto, para essas duas
perguntas como o conjunto de teorias que compõem o chamado igualitarismo de fortuna (luck
egalitarianism). De acordo com o igualitarismo de fortuna, o objetivo da justiça social é definido
como a necessidade de retificar, e no limite neutralizar, os efeitos distributivos de circunstâncias
involuntárias sobre a vida dos indivíduos. Para o igualitarismo de fortuna, o valor moral da
igualdade deve ser entendido como um ideal de equidade distributiva entre sujeitos
individualmente responsáveis pelo quinhão distributivo que lhes cabe (Dworkin, 1981a, 1981b;
Arneson, 1989, 2002; Cohen, 1989). Ao longo dos últimos trinta anos, igualitários de fortuna como
Ronald Dworkin, Richard Arneson e Will Kymlicka foram responsáveis pela padronização
metodológica do debate sobre justiça social em torno dos problemas da “igualdade de quê?” e da
“exploração interpessoal”. O sucesso do programa fortunista foi tamanho que G. A. Cohen, um de
seus entusiastas, pôde concluir, no começo da década de 90, que o igualitarismo de fortuna teria
um papel único na história do igualitarismo, “na medida em que incorporou a essa tradição a ideia
mais poderosa do arsenal da direita anti-igualitária: as noções de escolha e responsabilidade
[individuais]” (Cohen, 1989:933).

Sem desconsiderar os ganhos conceituais trazidos pelo igualitarismo de fortuna, tanto para
a filosofia política como para outras áreas nas quais problemas de justiça social são crucias (como,
por exemplo, para a avaliação de política públicas), acredito que temos boas razões igualitárias
para recusar o pressuposto central do igualitarismo de fortuna, a saber, que a primeira e mais
importante pergunta de qualquer concepção de justiça social seja sempre a busca por um ideal de
equidade distributiva imune à exploração interpessoal. Isso porque a realização de um padrão ideal
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de equidade distributiva não é o único aspecto normativo relevante, nem mesmo o mais importante,
para a construção de uma sociedade igualitária. Ao contrário, como argumentam defensoras e
defensores de uma visão relacional do valor da igualdade, as aspirações práticas do igualitarismo
devem ser entendidas com base em um ideal político e social responsável por governar as relações
interpessoais entre iguais reciprocamente responsáveis pela criação de uma sociedade justa. Como
argumenta Elizabeth Anderson, o ideal igualitário é orientado pela co-criação de “uma ordem
social na qual as pessoas mantenham relações de igualdade entre si” e, para isso, cabe aos teóricos
e teóricas igualitárias identificar e desmantelar formas injustas de hierarquia sociais, “isto é, formas
de relações sociais com base nas quais as pessoas dominam, exploram, marginalizam, aviltam e
exercem violência umas sobre as outras” (Anderson, 1999:313).

A visão relacional da igualdade não desconsidera a importância de problemas distributivos,


mas os avalia de acordo com o seu papel para o estabelecimento de relações sociais governadas
pelo respeito mútuo. Isso porque, no limite, mesmo arranjos distributivos equânimes do ponto de
vista equitativo podem ser compatíveis com instituições de tipo autoritárias ou com formas
inaceitáveis de desrespeito institucional, como por exemplo o emprego da distinção entre formas
de pobreza “merecida” e “imerecida” como um instrumento legítimo de política pública. Uma
concepção relacional de igualitarismo nos ajuda a repensar tanto as prioridades conceituais como
as demandas normativas da justiça, recusando, dentre outras coisas, uma concepção punitivista de
responsabilidade individual, na qual instituições distributivas auxiliam no propósito social de
punição, por meio do estigma e da pobreza, de comportamentos e formas de vida tidas como
irresponsáveis. Concepção essa, acredito, compatível em princípio com o igualitarismo de fortuna.

Ao invés disso, uma interpretação mais relacional e social do valor da igualdade nos leva
a perguntar se uma condição crucial para a imputação institucional de responsabilidade econômica
não seria o poder de participação efetiva na estrutura produtiva de uma sociedade, ou ainda se uma
divisão mais justa dos ônus e benefícios da cooperação social não exigiria critérios explícitos
responsáveis por governar as relações de produção (e não apenas de distribuição) de recursos
sociais (Stanczyk, 2012). Ou, finalmente, se faz sentido justificarmos a crueldade estatal contra os
ditos “irresponsáveis”, seja do ponto de vista de princípios de justiça, seja por conta das
consequências dessa omissão para os padrões de solidariedade política em condições sociais
concretas. Sociedades essas nas quais o direito de acumulação e herança ainda representam
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dogmas inquestionáveis e a posição da pobreza não é erradicada por razões normativas, e não por
motivos técnicos.

Referência
PETRONI, Lucas (2020) “O Que Há de Errado com o Igualitarismo de Fortuna?”. DADOS: Revista de
Ciência Sociais, 63 (2), pp. 1-36. In:
https://www.scielo.br/j/dados/a/SQMHGP3Cg6sNNF5CH7phm9G/?lang=pt

Referências Adicionais
ANDERSON, Elizabeth. (1999), “What is the point of equality?”. Ethics, v. 109, n. 2, pp. 287-377.
ARNESON, Richard. (1989), “Equality and equal opportunity for Welfare”. Philosophical Studies, v. 65,
n. 1, pp. 77-93.
COHEN, Gerald Allan. (1989), “On the currency of egalitarian justice”. Ethics, v. 99, pp. 906-944.
CORAK, Miles. (2016), “Inequality from generation to generation: The United States in comparison”. IZA
Discussion Paper 7520. Disponível em: http://ftp.iza.org/dp9929. pdf. Acesso em 12 de dezembro de 2018.
DWORKIN, Ronald. (1981a), “What is equality? Part I: equality of Welfare”. Philosophy and Public
Affairs v. 10, n. 3, pp. 185-246.
_____. (1981b), “What is equality? Part II: equality of resources”. Philosophy and Public Affairs, v. 10, n.
4, pp. 283-354.
PETRONI, Lucas. (2017), “Igualdade e respeito deliberativo”. In: D. Werle et al. (orgs.), Justiça, teoria
crítica e democracia. Florianópolis: NEFIPOnline. Disponível em: http://www.nefipo.
ufsc.br/files/2017/10/Justi%C3%A7a-Teoria-Cr%C3%ADtica-e-Democracia.pdf.
RAWLS, John. (1997), Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes.
SCANLON, Thomas. (1998), What we owe to each other. Cambridge, MA.: Harvard University Press.
STANCZYK, Lucas. (2012), “Productive justice”. Philosophy and Public Affairs v. 40, n. 2, pp. 144-164.
VITA, Álvaro de. (2011), “Liberalismo, justiça social e responsabilidade individual”. DADOS - Revista de
Ciências Sociais, v. 54, n. 4, pp. 569-608. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582011000400003
WOLFF, Jonathan. (1998), “Fairness, respect and the egalitarian ethos”. Philosophy and Public Affairs, v.
27, n. 2, pp. 97-122.

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