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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA ATRIZ PORNÔ: UM ESTUDO DE CASO

1 Introdução

Descrever o sexo é, provavelmente, tão antigo quanto o sexo em si, assim como é antiga a
utilização de ilustrações e textos eróticos para entreter ou excitar o interlocutor, datados de
séculos antes de Cristo (a.C). Esse tipo de conteúdo foi encontrado em vários tempos e
culturas (ANGELLIS, 2017). Durante o caminho evolutivo da espécie humana foram
desenvolvidas, além de capacidades como a linguagem, o planejamento, a memória e as
invenções, também a sexualidade, maneira de comunicação que se difere do sexo
exclusivamente para fins reprodutivos (STEINEM, 1995). No entanto, a partir da difusão
potencializada pelo material impresso, desenvolvido no século XVI, conteúdos eróticos
passam a ser categorizados como pornográficos. A regulamentação, censura ou proibição
desse tipo de conteúdo é um fenômeno recente, característico do ocidente com lugar e data
específicos. Esses movimentos – de regulamentação, censura ou proibição – constituem a
história da pornografia (ANGELLIS, 2017).

Culturalmente, a sociedade enxerga na pornografia uma representação real do que é sexo. A


pornografia é enraizada de tal forma em nossa cultura e tão naturalizada pela mídia que é
difícil dizer até que ponto ela influencia nossa cultura, sexualidade, gênero, identidade e
relações A retratação do sexo feita pela indústria pornográfica, cinematográfica e genérica por
definição, não se baseia no prazer, imaginação ou fantasia individual, mas sim na
desumanização, com o objetivo de obtenção de lucro. Portanto, a questão a ser debatida
perpassa não sobre o sexo, mas sobre sua apropriação e mercantilização pela indústria
pornográfica (DINES, 2010).

Assim sendo, a pergunta orientadora desta pesquisa é: como se dá o processo de formação de


identidade das atrizes pornográficas? A partir do problema de pesquisa proposto, o objetivo
deste trabalho é compreender a formação da identidade de uma atriz pornográfica. Para tanto,
há de se observar a visão individual da entrevistada perante esta realidade, assim como
analisar criticamente o conjunto de condicionantes que influenciam a construção de sua
identidade.

Portanto, a justificativa da realização desta pesquisa reside na necessidade de iniciar esta


discussão a partir do ponto de vista dos Estudos Organizacionais, que, até o momento,
negligenciou a Indústria Pornográfica enquanto objeto de estudo. Até o momento, não foram
encontrados trabalhos no campo da Administração que abordem nenhum aspecto da indústria
pornográfica, indústria essa que atinge lucros de quase US$ 100 bilhões/ano. Uma indústria
desse porte, que quase não possui regulamentações (e quando as possui, são precárias), não
deveria ser ignorada pela Administração, tanto por razões de movimentações financeiras de
valores extremamente altos quanto por razões da esfera das condições de vida das pessoas
nela inseridas.

Além deste fator, em consonância com as recentes discussões sobre feminismo, prostituição,
pornografia e condições de trabalho com inclinações críticas, esta pesquisa visa também
fomentar os debates políticos atuais que envolvem a sexualidade da mulher. Os direitos da
mulher, sejam reprodutivos ou sobre a própria liberdade da mulher, têm sido pontualmente
minados em várias partes do mundo. A condição da mulher na sociedade tem se relacionado
estreitamente com sua objetificação, submissão e comercialização. Portanto, este trabalho se
justifica também como uma tentativa breve de remontar as origens da opressão da mulher e de
sua condição de submissão pela sociedade, de forma a desnudar os caminhos para uma futura
tentativa de emancipação.

De forma a fomentar essa discussão e fundamentar a análise dos dados, o referencial teórico
deste trabalho se dividirá em duas partes: a primeira discorrerá sobre a evolução da mulher na
sociedade até sua inserção no campo do trabalho e a segunda apresentará o aporte da teoria da
Identidade adotada por Ciampa. Posteriormente, serão apresentadas a metodologia e a
apresentação dos dados, também dividida em duas seções: uma, caracterizando a indústria
pornográfica enquanto objeto de estudo, e a outra, trazendo as informações obtidas na
entrevista. Por fim, serão apresentadas as considerações finais e as referências bibliográficas.

2 Referencial teórico

2.1 O desenvolvimento histórico da mulher na sociedade

Em última instância, os fatores decisivos na história são a produção e a reprodução da vida


imediata, que podem ser divididos em dois aspectos: a produção e reprodução de meios de
existência da espécie humana, como alimentos e moradia, e a produção e reprodução da
própria espécie humana. Essas condições elementares para a vida são influenciadas pela
família e pelo grau de desenvolvimento do trabalho. Quanto menos desenvolvido for o
trabalho, menores são os recursos de produção e reprodução da vida. Em vista disso, a família
desempenha um papel fundamental pois, a produtividade no trabalho aumenta a partir de uma
estrutura social baseada nos laços de parentesco (ENGELS, 1984). Junto ao desenvolvimento
do trabalho e da estrutura familiar, a partir da formação da sociedade capitalista,

desenvolveram-se a propriedade privada e as trocas, as diferenças de riqueza, a


possibilidade de empregar força de trabalho alheia e com isso a base dos
antagonismos de classe: os novos elementos sociais, que no transcurso de gerações
procuram adaptar a velha estrutura da sociedade às novas condições até que, por
fim, a incompatibilidade entre estas e aquela leve a uma revolução completa
(ENGELS, 1984, p. 3)

A extinção do direito materno1, a superação do modelo familiar onde ocorriam matrimônios


por grupos nas tribos, a subordinação da referida família às relações de propriedade e
futuramente a criação de um Estado são alguns dos marcos que separam as sociedades pré-
capitalistas da sociedade capitalista. Nesse novo modelo de sociedade, se tornam cada vez
mais evidentes as contradições de classe (ENGELS, 1984).

O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino


em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-
se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em
simples instrumento de reprodução. [...]. O primeiro efeito do poder exclusivo dos
homens, desde o momento em que se instaurou, observamo-lo na forma
intermediária da família patriarcal, que surgiu naquela ocasião. O que caracteriza
essa família [...] [é] a ‘organização de certo número de indivíduos, livres e não
livres, numa família submetida ao poder paterno de seu chefe’ (ENGELS, 1984, p.
61).

1
Linhagem de descendência dos filhos a partir da mulher. Nas sociedades pré-capitalistas, vigorava o direito
materno, visto que não era possível estabelecer a descendência se não fosse pela linhagem feminina. Isso ocorria
porque o modelo de família que prevalecia permitia que o homem mantivesse relações sexuais com várias
mulheres e que a mulher mantivesse relações sexuais com vários homens, sem nenhuma violação de moral,
impedindo assim de se saber acertadamente sobre a paternidade da criança gerada.
Desta transição origina-se a família monogâmica, primeira forma de família baseada em
aspectos econômicos, que tem como característica principal a superioridade do homem, em
que o propósito fundamental é a geração de filhos com linhagem paterna inquestionável. À
mulher não cabe requerer o divórcio, ao homem cabe a poligamia e a infidelidade legitimada
pelos costumes e o fim dos laços conjugais, caso ele julgue pertinente. A retomada pela
mulher de práticas comuns à poliandria2 é rigorosamente punida, como jamais foi em nenhum
outro período (ENGELS, 1984). Para Engels (1984, p. 70-71), “o primeiro antagonismo de
classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o
homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo
feminino pelo masculino”.

A família individual moderna baseia-se na escravidão doméstica, franca ou


dissimulada, da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas moléculas são as
famílias individuais. Hoje, na maioria dos casos, é o homem que tem que ganhar os
meios de vida, alimentar a família, pelo menos nas classes possuidoras; e isso lhe dá
uma posição dominadora, que não exige privilégios legais especiais. Na família, o
homem é o burguês e a mulher representa o proletário (ENGELS, 1984, p. 80).

A visão social a respeito da felicidade da mulher estava diretamente associada ao matrimônio,


visto que sua posição social se firmava e sua estabilidade econômica seria garantida por meio
do casamento. Por serem vistas como frágeis, os maridos possuíam o papel de proteger a
mulher e, em retorno, teriam uma esposa submissa e obediente que colaborava com o
trabalho. A dependência da mulher em relação ao marido presumia base de sua existência e a
tradição garantia que a mulher se encaixasse nesse formato, tratando tal postura submissa
como seu dever (SAFFIOTI, 1976).

De forma a manter a dependência da mulher ao marido, a economia feudal e a economia de


burgo realizam um processo de marginalização da mulher no sistema produtivo ao dificultar a
inserção desta nos postos de ofício e ao insistir que as capacidades femininas eram inferiores,
devido a existência de um ideal de supremacia masculina fabricado e reproduzido. Às
mulheres eram oferecidas apenas posições subalternas (SAFFIOTI, 1976).

A passagem do modo de produção feudal para efetivamente o modo de produção capitalista


cria uma situação desfavorável para alguns grupos sociais, de modo que se constituem classes
sociais distintas, para que seja possível exercer exploração econômica. Tal processo de
divisão de classes, que é hierárquico, é justificado pela tradição e, assim, facilmente
legitimado pela sociedade. Como a tradição já demarcava diferenças estereotipadas entre os
sexos (supremacia masculina e fragilidade feminina), tais ideais foram incorporados na
transição dos sistemas econômicos, contribuindo com a progressiva marginalização do
trabalho feminino. As oportunidades momentaneamente “oferecidas aos contingentes
femininos variam em função da fase de desenvolvimento do tipo social em questão ou, em
outros termos, do estágio de desenvolvimento atingido por suas forças produtivas”
(SAFFIOTI, 1976, p. 36).

As esposas dos membros da burguesia foram marginalizadas da esfera do trabalho; no


entanto, o mesmo não ocorreu com as mulheres das camadas sociais inferiores (ENGELS,
1984; SAFFIOTI, 1976). O capitalismo se apropriou do ideal de inferiorização da mulher
reforçado pela tradição e utilizou da mão de obra feminina desvalorizada para intensificar a

2
Uma mulher se relaciona com vários homens.
mais-valia e promover um maior acúmulo de capital ao explorar a mulher por meio de
maiores jornadas de trabalho e salários menores que os masculinos (SAFFIOTI, 1976).

O processo de acumulação do capital, nessa fase [de implantação do capitalismo],


não apenas elimina menos trabalho do que a máquina está apta a fazê-lo; elimina,
por vezes, o trabalho do chefe da família não porque haja a nova sociedade
subvertido a hierarquia familial, mas porque a tradição da submissão da mulher a
tornou um ser fraco do ponto de vista das reivindicações sociais e, portanto, mais
passível de exploração. Mesmo quando emprega todos os membros do grupo
familial, a indústria capitalista da fase em questão distribui entre toda a família o
valor de força de trabalho de seu chefe (SAFFIOTI, 1976, p. 38).

Na sociedade de classes, o capitalista se apropria da mais-valia do trabalhador, independente


do sexo, mas essa apropriação se intensifica quando se trata de uma trabalhadora (SAFFIOTI,
1976), fazendo dela um alvo “enquanto membro de uma classe e enquanto pertencente a uma
categoria de sexo” (SAFFIOTI, 1976, p. 44). O discurso que endossa a fragilidade feminina e
a visão negativa sobre essa perante a sociedade possibilitou a degradação de suas condições
de trabalho e permitiu a existência de um duplo caráter da exploração da mulher: a exploração
capitalista e a patriarcal, onde mulheres são relegadas à plenas condições tanto por serem
mulheres (e, portanto, inferiores aos homens) quanto por aspectos econômicos. É também no
capitalismo que a mulher passa a ser vista enquanto concorrente do homem no mercado de
trabalho.

A competição, obviamente, nunca é livre. Os homens entram na luta com diferenças


de raça, de educação, de poder político, de religião, enfim, com diferenças naturais e
sociais (de classe) bastante marcadas e de difícil superação. As mulheres, entretanto,
contam não somente com as determinações que situam contingentes formados de
homens e mulheres numa posição estrutural antagônica à de outros contingentes
igualmente constituídos por homens e mulheres; arcam também com o peso de uma
outra determinação: o sexo (SAFFIOTI, 1976, p. 58).

A não inserção ou a pouca representatividade da mulher no mercado de trabalho era


interessante também para a sobrevivência da sociedade a partir de dois pontos de vista: a
mulher é imprescindível para a conservação da sociedade dada a sua capacidade reprodutiva –
inclusive para gerar mão de obra futura – e a sociedade demanda periodicamente a mão de
obra feminina em certos tipos de trabalho pouco valorizados, como o trabalho doméstico e o
cuidado dos filhos. Tais trabalhos, que não são remunerados, dão suporte para a força de
trabalho e eliminam a responsabilidade das empresas em arcar com esse custo (SAFFIOTI,
1976).

Foram nos períodos de guerra que as mulheres conseguiram maior acesso ao campo do
trabalho, visto que os homens largaram seus postos de trabalho para ocupar as trincheiras. Ao
fim da guerra, as mulheres eram relegadas à situação inferior que possuíam anteriormente. O
pensamento difundido era que, se as vagas de emprego eram escassas, cabiam aos homens
prioritariamente ocupa-las (SAFFIOTI, 1976). Quando ocupavam funções nas indústrias, as
mulheres ocupavam as funções de menor prestígio e de subordinação ao homem, ainda que o
nível profissional desta fosse igual ao dele. Para Saffioti,

não obstante toda legislação que estabelece a igualdade dos sexos para efeito de
remuneração, os salários femininos são inferiores aos masculinos. Ressalte-se,
contudo, que as discrepâncias entre salários de um e outro sexo são menores quando
as mulheres se organizam maciçamente, o que só tem ocorrido nas categorias
ocupacionais em que predominam (SAFFIOTI, 1976, p. 63).
Enquanto a força de trabalho feminina permanecia à margem do sistema produtivo, as
mulheres ocupavam apenas funções domésticas remuneradas e, na medida em que o processo
de industrialização vai tomando proporções maiores, a mão de obra feminina é absorvida
pelos setores secundário e terciário do sistema de produção. No entanto, é nesses setores que
se concentram os regimes de trabalho parciais e os menores salários, além de serem os setores
mais vulneráveis em casos de crises econômicas (SAFFIOTI, 1976).

A luta sindical em favor do direito das mulheres é desarticulada e pouco efetiva pelo fato da
inferiorização social das mulheres, ou seja, o arquétipo negativo que representa a mulher
reflete na luta por conquistar espaços de trabalho (SAFFIOTI, 1976). Por essa razão,

A fraca participação da mulher nos sindicatos das economias capitalistas encontra


explicação, de um lado, nas próprias características fundamentais dessa mão de obra
dividida entre o lar e o trabalho e, de outro, na maneira pela qual é encarado o
trabalho feminino quer pela sociedade, quer pela própria mulher (SAFFIOTI, 1976,
p. 61).

É preciso ressaltar que considerar que toda a opressão feminina advém apenas da estrutura
econômica impede a visualização da realidade em sua totalidade. Nesse sentido, Saffioti
(1976, p. 78) ainda afirma que “nos países socialistas 3, onde a propriedade privada cedeu
lugar à propriedade coletiva, o poder político e a dominação tradicional e burocrática
continuam a ser exercidos” e argumenta que “o desenvolvimento do capitalismo, assim como
do socialismo, mostra que certos padrões culturais forjados em outras estruturas persistem na
nova” (SAFFIOTI, 1976, p. 84).

No entanto, a estrutura de classes se mostra fator relevante mesmo na diferenciação entre os


sexos visto que as mulheres da classe dominante exerceram poder sobre os homens e
mulheres das classes dominadas. Como aponta Saffioti (1976, p. 85), “a solidariedade entre os
elementos de uma categoria de sexo subordina-se, pois, à condição de classe de cada um”.

Destarte percebe-se que a superação do capitalismo não deve ser considerada aspecto
suficiente para a emancipação da mulher pois apenas um novo modo de produção não seria
capaz de eliminar, sozinho, todos os tipos de dominação já presentes, visto que nem todos eles
estão associados à estrutura de classes econômicas em si. “A emancipação feminina é, pois,
problema complexo cuja solução não apresenta apenas uma dimensão econômica. Mesmo a
mulher, economicamente independente sofre, na sua condição de mulher, o impacto de certas
injunções nacionais e internacionais” (SAFFIOTI, 1976, p. 87).

Em conformidade com este levantamento teórico sobre a historicidade da mulher e com as


pontuações aqui levantadas, é notório que o seu papel social é tradicionalmente tido como

3
É preciso atentar para o momento histórico em que Heleieth Saffioti escreve “A mulher na sociedade de
classes” (1976). Depois da Segunda Guerra Mundial, a URSS se colocou como um dos polos políticos e
econômicos do mundo, representando para muitos uma esperança para uma ruptura com o sistema capitalista.
Neste período histórico, ainda não era disseminada a crítica ao socialismo de Estado que se estabelecera naquele
país. Assim, a autora se limita ao modelo instaurado como se fosse a alternativa ao capitalismo. Para Chasin
(2017, p. 88), “a identidade do “socialismo” [é uma identidade] de acumulação (autodenominado de socialismo
real) [que representa] a forma de uma sociabilidade do pós-capitalismo, que se objetiva sob a regência do capital
coletivo/não-social ou estatal, ainda que esta última designação possa, em certa medida, estreitar e indeterminar
a especificidade do fenômeno”. Desta forma, o socialismo aludido por Saffioti (1976) se refere apenas ao
socialismo histórico, que não representou uma superação do capitalismo, mas sim, a instauração de um capital
coletivo/não-social.
subalterno em comparação com o papel do homem, tanto no aspecto familiar quanto no
campo do trabalho.

As desvantagens sociais de que gozavam os elementos do sexo feminino permitiam


à sociedade capitalista em formação arrancar das mulheres o máximo de mais-valia
absoluta através, simultaneamente, da intensificação do trabalho, da extensão da
jornada de trabalho e de salários mais baixos que os masculinos (SAFFIOTI, 1976,
p. 36).

As baixas remunerações, as cargas excessivas de trabalho, as responsabilidades familiares e a


dificuldade de acesso ao mercado de trabalho criaram barreiras para que a mulher ocupasse
uma posição social similar à do homem, em parte porque ela era o fator que permitia e
sustentava o trabalho do homem na indústria por meio do trabalho doméstico não-
remunerado.

Com as influências da religião, cada vez mais o ideal de mulher submissa foi incutido na
sociedade, perdurando até os dias de hoje. Esses fatores, alinhados à família monogâmica e a
consequente repressão da liberdade sexual da mulher contribuíram para que a emancipação
feminina estivesse projetada num plano cada vez mais distante. Conforme Saffioti (1976, p.
56-57),

O estágio de desenvolvimento da estrutura familial ou, mais detalhadamente, a


maneira pela qual a mulher desempenha suas funções no setor da sexualidade, da
reprodução e da socialização dos filhos, exerce ponderável influência sobre o
trabalho feminino. É preciso lembrar, entretanto, que se a sociedade pode resolver os
problemas gerados por aquelas funções femininas nos períodos em que seu trabalho
é requerido (ou porque um grande esforço de desenvolvimento exige mão-de-obra
abundante se a produtividade do trabalho não é alta, ou porque os homens,
empenhados na guerra, precisam ser substituídos em suas funções produtivas), não o
faz de modo permanente e uniforme em virtude do fato de que o controle racional
dos papeis femininos é regulado, em última instância, pela estrutura econômica da
nação.

2.2 Identidade: processo de constituição do sujeito

Para Ciampa (1989; 2014), a identidade é uma forma de igualar-se e diferenciar-se no mundo,
ao mesmo tempo. Conhecer a si mesmo é um processo complexo, e responder à pergunta
‘quem sou eu’, evidenciando cada aspecto de quem somos é mais difícil do que aparenta,
principalmente por sermos seres sociais em constante mudança (CIAMPA, 1989). A
identidade é, portanto, “uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto una. Por
mais contraditório, por mais mutável que seja, sei que sou eu que sou assim, ou seja, sou uma
unidade de contrários, sou uno na multiplicidade e na mudança” (CIAMPA, 1989, p. 61).

As identidades individuais dos sujeitos são construídas junto ao movimento histórico da


realidade, pois como afirma Ciampa (1989, p. 72), “a questão da identidade se coloca de
maneira diferente em diferentes sociedades (pré-capitalistas, capitalistas, pós-capitalistas,
etc)”. Neste trabalho, buscar-se-á analisar a “identidade a partir de seus processos de
metamorfose em busca da emancipação” (DANTAS; CIAMPA, 2014, p. 139) da atriz
pornográfica, de acordo com o lugar social que ela ocupa: a indústria pornográfica. Esta
definição se alinha também às determinações teóricas propostas por Dantas e Ciampa (2014),
quando apontam que a análise da identidade que propõem visa verificar a identidade do
sujeito no plano individual ao a “relacionar com sua presença social” (p. 139).
O primeiro grupo social do qual o sujeito faz parte é a família (CIAMPA, 1989), e por esta
razão buscou-se trazer, na primeira parte deste referencial, o processo social (e, em certa
medida, econômico) de evolução da família. Em consonância com os escritos de Berger e
Luckmann (2003), a socialização primária também se dá no ambiente familiar e é componente
fundamental para a constituição do sujeito. É nesse núcleo que o sujeito estabelece as
diferenças e semelhanças com relação a si e aos outros, na construção de sua identidade.

A percepção de semelhanças entre o sujeito e o outro dá origem aos grupos sociais. Uma vez
que um grupo social existe objetivamente, outros sujeitos vão ou não se identificar com ele,
de forma a integrá-lo ou não. Um sujeito está presente em vários grupos sociais, e estes
constituem a identidade do sujeito. No entanto, pelo fato da identidade não ser fixa e
imutável, em um dado momento da constituição da identidade, o sujeito pode não mais se
identificar com um grupo social, visto que essa identificação pode ser momentânea e não
natural ou determinística (CIAMPA, 1989).

A identidade não é um processo apenas no pensamento: é preciso que ela seja legitimada por
comportamentos, por ações, visto que “é pelo agir, pelo fazer, que alguém se torna algo”
(CIAMPA, 1989, p.64). Essa proposição só reforça ainda mais o fato de que a identidade é
mutável, pois enquanto seres sociais, nosso espectro de ação é múltiplo e variado; se uma
ação é executada pelo sujeito hoje e ela define sua identidade, não há garantias de que essa
ação se manterá no longo prazo e, consequentemente, que este fator será constitutivo da
identidade do sujeito (CIAMPA, 1989). Ainda, para Ciampa (1989, p. 67), “cada posição
minha me determina, fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da
multiplicidade, que se realiza pelo desenvolvimento dessas determinações”. A identidade não
é, também, um processo apenas individual:

Não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo do da sociedade. As


possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as
diferentes configurações da ordem social. [...] É do contexto histórico e social que o
homem vive que decorrem suas determinações e, consequentemente, emergem as
possibilidades ou impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade
(CIAMPA, 1989, p. 72).

Sobre as impossibilidades citadas pelo autor no trecho acima, tem-se:

O fato de vivermos sob o capitalismo e a complexidade crescente da sociedade


moderna impedem-nos de ser verdadeiramente sujeitos. A tendência geral do
capitalismo é constituir o homem como mero suporte do capital, que o determina,
negando-o enquanto homem, já que se torna algo coisificado (torna-se trabalhador-
mercadoria e não trabalha autonomamente; torna-se capitalista-propriedade do
capital e não proprietário das coisas). [...] O homem deixa de ser verbo para ser
substantivo. Esta constatação deve ser entendida como indicação de fato que resulta
historicamente ligado a um determinado modo de produção e não como algo
inerente à ‘natureza humana’ (CIAMPA, 1989, p. 72).

Desta forma, sendo a identidade um processo de transformação constante do sujeito, “o futuro


se coloca como contínua e progressiva realização da humanidade” (CIAMPA, 1989, p. 73).
Ao não considerar o sujeito apenas subjetividade ou objetividade, mas sim, reconhecer a
contradição do homem que abriga tanto a subjetividade quanto a objetividade, tem-se abertos
os caminhos de possibilidades para uma coexistência humana que vise a realização dos
sujeitos que nela habitam. A formulação de uma política de identidade emancipatória, num
constate processo de metamorfose que busque transformar as condições para que o verdadeiro
sujeito venha à existência, só poderá ser coerente na medida em que for democrática
(CIAMPA, 1989).

Metodologia

Retomando o objetivo desta pesquisa, busca-se compreender a formação da identidade de uma


atriz pornográfica. Conforme o objetivo já enuncia, o objeto dessa pesquisa será a indústria
pornográfica e o sujeito de pesquisa será uma atriz de filmes pornográficos.

Como esta pesquisa se propõe a investigar a trajetória dessa atriz e entender suas vivências na
indústria pornográfica, considera-se que a metodologia qualitativa, a partir da definição
apresentada, vá oferecer suporte para entender essa realidade, visto que sua proposta é
possibilitar a obtenção de uma compreensão profunda sobre os fenômenos sociais em sua
complexidade e individualidade, ou seja, busca-se enfatizar as particularidades do fenômeno,
assim como suas origens e razões de ser (HAGUETTE, 2010). Como só há uma entrevistada,
este estudo caracteriza-se por um estudo de casos a partir da técnica de entrevista
semiestruturada. Os dados coletados serão analisados criticamente em consonância com as
discussões trazidas pelo referencial teórico.

Apresentação dos Dados

4.1 As origens da indústria pornográfica

A cultura pornográfica tem seus fundamentos apoiados na história e no avanço da mídia e na


gênese do capitalismo; a representação do sexo na cultura está alinhada com os contextos
econômicos e tecnológicos e com as possibilidades trazidas com os novos formatos e técnicas
de comunicação. “Isso vale para os panfletos pornográficos impressos em tipos móveis, para
os cartões postais com imagens de pin-ups 4 na Segunda Guerra e para a pornografia
desenvolvida para óculos de realidade virtual” (ANGELLIS, 2017, s. p.).

Ao fim do século XVIII, fatores como os ideais iluministas, a independência dos Estados
Unidos e a formalização de sua constituição, a Revolução Francesa e outros movimentos que
visavam o fim do absolutismo e garantias individuais como a liberdade de expressão, de
imprensa e a livre iniciativa, possibilitam mudanças sociais que afetam o fluxo de circulação
de informações e de mercadorias. Até esse momento, o erótico significava a representação dos
corpos, uma crítica à política e ao moralismo cristão. Esse marco histórico transforma o
erótico em pornografia, que passa então a evidenciar o aspecto do prazer sexual e sua
descrição, com o objetivo de provocar no público excitação. O erotismo, a partir dessa
mercantilização das imagens, tem como objetivo final apenas o lucro, o que rompe com o
primeiro significado da palavra (do grego pornê, prostituta) e se aproxima do novo conceito
de pornografia (ANGELLIS, 2017): conteúdos que buscam a excitação objetivando fins
econômicos.

4
Para Godoi (2011, p. 161), “o termo pin-up surgiu na década de 40 e se refere a fotografias, desenhos, pinturas
ou ilustrações de mulheres consideradas símbolos sexuais. Tais fotos ou ilustrações apareciam frequentemente
em calendários, os quais eram produzidos para serem pendurados (em inglês, pin up). Posteriormente, pôsters de
"pin-up girls" começaram a ser produzidos em massa. As pin-ups são elementos culturais residuais do passado,
que ainda estão presentes na dinâmica cultural do presente. Mas agora, são ressignificadas com corpos
volumosos. [...] Estas imagens, construídas como signo de beleza feminina, parecem apontar para o imperativo
da sensualidade e erotização das mulheres, com vistas a despertar o desejo do outro”.
É durante este processo que a imagem da mulher é construída para objetivar o lucro industrial,
fazendo de sua figura um produto relacionado ao entretenimento, prazer e luxo. A erotização
do corpo tem como objetivo incitar a libido e fazer com que o público se identifique com a
imagem criada, para tê-la ou sê-la, transformando assim mulheres e homens em sujeitos e
objetos, simultaneamente (ANGELLIS, 2017).

Em dezembro de 1953, primeiro mês de operações da revista norte-americana Playboy, foram


vendidas quase 54 mil revistas. Um ano depois, esse número aumentou para 175 mil. Em
1959, a revista já possuía vendas em torno de 1 milhão por mês. Hefner, apesar de pioneiro,
contou com Bob Guccione, fundador da revista Penthouse (lançada em 1965 no Reino Unido
e em 1969 nos Estados Unidos), e também com Larry Flynt, criador da revista Hustler (criada
em 1974 nos Estados Unidos), ambas com conteúdos pornográficos, para abrir as portas para
o que viria a ser a indústria pornográfica nos moldes que conhecemos hoje. Os três
empresários foram responsáveis por transformar a pornografia em um conteúdo de fácil
acesso, além de promoverem a aceitação do pornô na cultura americana (DINES, 2010).

Para que a revista tivesse distribuição no mainstream, assinaturas e status, [foi


necessário] construir a imagem da Playboy como uma revista de estilo de vida de
qualidade, com artigos políticos, entrevistas com celebridades, humor, tendências e
estilo e mulheres nuas em fotos de bom gosto, com pelos pubianos escondidos e
olhares dissimulados e tímidos para a câmera. O leitor não era convidado a se
masturbar, mas a entrar em um universo que pertencia a uma elite cultural. Ao fazer
isso, Hefner sexualizou o consumo e criou um ambiente muito propício para os
anunciantes. Os produtos e os estilos anunciados na revista iriam transformar o seu
leitor neste homem e com isso conseguiram o prêmio real: todas aquelas mulheres
maravilhosas da capa (ANGELLIS, 2017, s.p.).

Durante esse período, em meados do século XX, a cultura tinha o casamento como imposição.
Como visto em Engels (1984), a família monogâmica se fez característica da modernidade,
transformando a instituição do casamento numa pressão social. De forma a manter a imagem
da Playboy como uma revista de estilo de vida, Dines (2010) afirma que, na primeira edição
da Playboy, Hefner publicou:

Se você é um homem entre 18 e 80 anos, a Playboy foi feita para você... Queremos
esclarecer desde o começo que não somos uma revista de família. Se você é irmã,
esposa ou sogra de alguém e nos pegou por engano, por favor, nos passe adiante
para os homens da sua vida e volte para as companhias femininas (PLAYBOY apud
DINES, 2010, cap. 1, par. 5).5

A política editorial da Playboy vendia a ideia de que mulheres eram manipuladoras,


gananciosas e preguiçosas, que suas atribuições residiam em gastar o dinheiro que o homem
trabalhava para conquistar, que as mulheres estavam sugando a masculinidade e que deveria
ser recuperada (DINES, 2010; ANGELLIS, 2017), deixando clara a ideologia anti-mulher da
revista e, aos poucos, revelando sua posição anti-casamento. Na edição de junho de 1954, a
Playboy afirmou por meio de um de seus colunistas que o verdadeiro playboy era sofisticado
e aproveitava os prazeres que a mulher pode oferecer sem se apegar emocionalmente. A
revista se tornou o manual de referência da masculinidade da segunda metade do século XX,
dizendo aos homens que eles poderiam ser consumidores de bens e de mulheres (DINES,
2010), ambos disponibilizados como mercadorias.
5
Tradução minha. Original: “If you are a man between 18 and 80, Playboy is meant for you... We want to make
it clear from the start, we aren’t a ‘family’ magazine. If you are somebody’s sister, wife or mother-in-law and
picked us up by mistake, please pass us along to the man in your life and get back to the Ladies’ Home
Companion”.
A criação da imagem de uma revista luxuosa foi fundamental para o sucesso da Playboy:
antes de seu surgimento, a pornografia era barata e clandestina, vista como algo de segunda
classe; foi a partir da fabricação de um ideal de consumidor da revista como um homem
sofisticado e bem sucedido que a revista obteve inserção de mercado (DINES, 2010). Na
edição de abril de 1956, a Playboy deixou claro esse perfil, ao definir o que era o playboy.

O que é um playboy? Ele é simplesmente um inútil, um incorrigível, um vagabundo


elegante? Longe disso. Ele pode ser um jovem executivo de negócios, um artista, um
professor universitário, um arquiteto ou um engenheiro. Ele pode ser várias coisas,
desde que possua um certo tipo de visão. Ele deve ver a vida não como um vale de
lágrimas, mas como um momento feliz, ele deve se alegrar em seu trabalho, sem
considerar isso como o fim de toda a vida; ele deve ser um homem alerta, um
homem de bom gosto, um homem sensível ao prazer, um homem que – sem adquirir
o estigma de voluptuoso ou imaturo – pode viver a vida ao máximo. Esse é o tipo de
homem que queremos dizer quando usamos a palavra playboy (PLAYBOY apud
DINES, 2010, cap. 1, par. 22).6

Nenhuma dessas características fazia parte do leitor da Playboy à época: por terem crescido
na época de crises e guerras mundiais, os homens da década de 1950 cresceram num período
de privação material e não eram acostumados a consumir produtos de alto nível e não sabiam
ao certo como gerir dinheiro. O ideal hedonista plantado pela mídia televisiva pós-guerra e
agora por Hefner foram responsáveis por direcionar os homens a tal vida de qualidade que a
Playboy pregava, que se resumia em comprar carros, roupas, comida e mulheres para ser
efetivamente um playboy (DINES, 2010).

De forma a difundir o acesso à pornografia, os conteúdos offline encontraram na internet uma


maneira de se popularizar. Ao transpor a lógica do lucro para a internet, a Electronic Card
Systems criou um sistema de cobrança por meio do cartão de crédito para vender conteúdos
pornográficos online. Danni Ashe, stripper que se tornou atriz pornô posteriormente criou
uma página na internet para divulgar conteúdos pornográficos, e em uma semana, atingiu a
marca de 1 milhão de acessos. Percebendo o potencial da internet, a indústria pornográfica se
apropriou desse meio e intensificou a demanda por tecnologias que permitiam uma
transmissão de conteúdos pornográficos online de qualidade (ANGELLIS, 2017).

É de suma importância destacar o papel potencializador que a internet teve no acesso à


pornografia. O que costumava ser um consumo ocasional – dada a limitação em se acessar
filmes pornográficos – de mídias com teor mais leve e menos agressivo (chamados de
softporn) deu lugar à difusão de conteúdos pornográficos cada vez mais violentos (hardcore
porn) à distância de um clique (DINES, 2010). Antes da internet, o acesso massificado ao
conteúdo pornográfico se dava por meio das revistas criadas a partir de 1950, que, “[...] com
suas imagens de mulheres nuas, de foco suave, ensinavam garotos e homens que mulheres
existiam para serem olhadas, objetificadas, usadas e guardadas até a próxima vez” 7 (DINES,
2010, introdução, par. 7). O acesso a essas revistas poderia ser dado pelos amigos, pelo pai ou
6
Tradução minha. Original: ““What is a playboy? Is he simply a wastrel, a ne’erdo-well, a fashionable bum? Far
from it. He can be a sharp minded young business executive, a worker in the arts, a university professor, an
architect or an engineer. He can be many things, provided he possesses a certain kind of view. He must see life
not as a vale of tears, but as a happy time, he must take joy in his work, without regarding it as the end of all
living; he must be an alert man, a man of taste, a man sensitive to pleasure, a man who – without acquiring the
stigma of voluptuary or dilettante – can live life to the hilt. This is the sort of man we mean when we use the
word playboy”.
7
Tradução minha. Original: “(…) with their soft-core, soft-focus pictures of naked women, taught boys and men
that women existed to be looked at, objectified, used, and put away until the next time”.
por uma banca qualquer. O sexismo e a imagem da mulher à serviço do homem já estavam
presentes, mas, ao comparar essa mídia com o pornô atual, ela é quase pitoresca (DINES,
2010).

O anonimato, a diversificação de conteúdos e a facilidade de acesso à pornografia oferecidos


pela internet potencializou a indústria pornográfica, que movimenta quase 100 bilhões de
dólares anualmente. A indústria pornográfica movimenta setores como o bancário, de
telecomunicações, de tecnologia da informação e hoteleiro, além de contar com equipes de
advogados, lobistas e políticos (ANGELLIS, 2017).

Os pornógrafos declaram que, para atrair usuários, o pornô tem se tornado mais extremo em
busca de atos de sexo inovadores e afirmam que a indústria pornográfica está se esgotando em
criatividade. O consumidor do pornô mainstream naturaliza a violência de tal forma que, de
tão dessensibilizado a ela, se entedia facilmente com os conteúdos. Na contramão, os
pornógrafos buscam apenas atender aos desejos de seu público consumidor, e não têm
demonstrado nenhum interesse em como essa busca por inovação no pornô irá impactar na
vida das atrizes (DINES, 2010).

Em um dos poucos estudos que foram realizados sobre o conteúdo da pornografia,


descobriu-se que a maioria das cenas dos cinquenta filmes pornográficos mais
vendidos continham abuso físico e verbal com mulheres. A agressão física, que
incluiu palmadas, bofetadas de mãos abertas e gagging [ato onde a mulher tem um
pênis empurrado até o fundo da sua garganta para que engasgue ou vomite], ocorreu
em mais de 88% das cenas, enquanto as expressões de agressão verbal, chamando a
mulher de nomes como vadias ou vagabundas, foram encontradas em 48% das
cenas. (DINES, 2010, introdução, par. 17).8

A pornografia está presente na cultura de forma tão enraizada e massificada que a média de
idade na qual homens têm seu primeiro contato com o conteúdo pornográfico é de 11 anos.
Embora não seja possível afirmar até que ponto a pornografia influencia a sexualidade, a
identidade e as relações sociais dos indivíduos, essa influência existe – pole dance é uma
categoria de esporte difundida, a vida de atrizes pornôs bem-sucedidas ganham cada vez mais
capas em revistas e programas de TV – e uma das razões para justificar essa afirmação é a de
que os pornógrafos foram bem-sucedidos em caracterizar a pornografia como uma
representação real do sexo (DINES, 2010).

O pornô, como todas as outras imagens, conta histórias sobre o mundo, mas essas
histórias são da mais íntima natureza, como são sobre sexualidade e relações
sexuais. Quando os homens se voltam para a pornografia para experimentar a
excitação sexual e o orgasmo, eles saem com muito mais do que apenas uma
ejaculação porque as histórias se infiltram no cerne da identidade sexual deles.
Sugerir o contrário seria ver o sexo como apenas um impulso biológico, removido
do contexto social dentro do qual ele é desenvolvido, compreendido e realizado no
mundo real. Nenhum impulso biológico existe de forma pura, desprovido de um
significado ou expressão cultural, e na sociedade americana, o pornô é
provavelmente o contador de histórias sexuais mais visível, acessível e articulado
para os homens (DINES, 2010, introdução, par. 19).9

8
Tradução minha. Original: “In one of the few studies that have been conducted on the content of contemporary
porn, it was found that the majority of scenes from fifty of the top-rented porn movies contained both physical
and verbal abuse of the female performers. Physical aggression, which included spanking, open-hand slapping,
and gagging, occurred in over 88 percent of scenes, while expressions of verbal aggression, calling the woman
names such as bitch or slut, were found in 48 percent of the scenes”.
9
Tradução minha. Original: “Porn, like all other images, tells stories about the world, but these stories are of the
most intimate nature, as they are about sexuality and sexual relationships. When men turn to porn to experience
De maneira geral, a construção da sexualidade feminina não é baseada na pornografia como
ocorre com os homens. Essa construção se dá a partir dos desejos sexuais de seus parceiros,
que as pressionam para reproduzir práticas presentes no pornô. A construção da identidade
sexual com base em experiências dá lugar a uma tentativa de imitar o conteúdo assistido no
pornô (DINES, 2010). Pode-se presumir, portanto, que a pornografia afeta diretamente a visão
masculina sobre a mulher e sobre o que é sexo.

O fato de que mulheres raramente resistem aos atos agressivos no pornô se deve a pressão
existente no set de filmagens para que ela realize os atos, assim como o medo de não receber
ou de não ser convocada para novos filmes no futuro. Quando a atriz reage, costumam haver
retaliações tanto no contexto das produtoras quanto no público do pornô, que passa a rechaçar
a atriz por supostamente não ter aguentado as atribuições de sua função, o que se traduzem em
mais formas de violência, agora psicológica, contra a mulher.

4.1.2 As grandes indústrias pornográficas da atualidade

O acesso a conteúdos pornográficos é amplamente difundido pela internet em escala mundial.


Os canais de distribuição comumente são internacionais, em sua maioria gratuitos, e grande
parte dos sites famosos são integrados ao grupo MindGeek, maior empresa do setor
pornográfico atualmente. A lucratividade dos sites gratuitos, filiados à MindGeek ou não,
provém dos anúncios pagos por empresas externas. Em sua página online, a MindGeek 10 se
passa por uma empresa de tecnologia qualquer, sem citar nem sugerir em momento algum que
administra sites pornográficos. O site institucional da empresa informa que ela atua em
desenvolvimentos de mecanismos de busca, hospedagem de conteúdo, plataforma de anúncios
e entrega de conteúdo de mídia. O site não revela que os mais de 115 milhões de visitantes
diários e os 15 terabytes de envios diários provêm de conteúdos pornográficos. Além dos
conteúdos gravados e divulgados online, existem sites de sexcam como o Cameraprive, no
qual mulheres em tempo real estão com a webcam ativada e têm a possibilidade de receber
pagamentos via cartão de crédito para agir conforme o usuário desejar.

De acordo com o documentário Pornland (2014) e segundo dados estatísticos fornecidos pela
página Internet Pornograhy Statistics11, corroborados por Angellis (2017): 35% dos
downloads realizados na internet contém pornografia; 4,2 milhões de sites são pornográficos –
12% do total de sites; 42,7% dos usuários de internet veem pornografia e 34% já relataram ter
recebido conteúdos pornográficos não requisitados na internet; existem mais de 40 milhões de
consumidores regulares de pornografia – mais de 28 mil assistindo a conteúdos pornográficos
por segundo; 1 em 4 pesquisas na internet são sobre pornô – 372 pesquisas com o termo por
segundo; os lucros da indústria pornográfica online ultrapassam US$3000 por segundo; e a
cada 39 minutos um vídeo pornográfico é criado nos Estados Unidos, sendo que a
procedência desse tipo de conteúdo é irrastreável, pois qualquer pessoa com uma câmera pode
filmar um ato sexual e publicar na internet.

sexual arousal and orgasm, they come away with a lot more than just an ejaculation because the stories seep into
the very core of their sexual identity. To suggest otherwise would be to see sex as just a biological urge, removed
from the social context within which it is developed, understood, and enacted in the real world. No biological
urge exists in a pure form, devoid of cultural meaning or expression, and in American society, porn is probably
the most visible, accessible, and articulate teller of sexual stories to men”.
10
Disponível em: <https://www.mindgeek.com/>. Acesso em 23 ago. 2017.
11
Disponível em: <http://www.toptenreviews.com/internet-pornography-statistics/>. Acesso em 15 ago. 2017.
A tabela 1 (abaixo) indica a arrecadação de lucros da indústria pornográfica nos países onde
ela possui maior destaque. Não foram encontrados dados que fornecessem uma maior
confiabilidade, mas referências como Reist e Bray (2011) e Angellis (2017) corroboram que a
lucratividade da referida indústria beira os US$ 100 bilhões. A coluna do PIB foi adicionada
de forma a comparar a representatividade dos lucros de apenas uma indústria com a produção
interna bruta do país.

Tabela 1: Receita da Pornografia pelo mundo (2006)


País Fatia de mercado mundial Lucratividade (US$) PIB12 (US$)
China 28% $27,40 bilhões $2,752 trilhões
Coréia do Sul 27% $25,73 bilhões $1,012 trilhões
Japão 21% $19,98 bilhões $4,53 trilhões
Estados Unidos 14% $13,33 bilhões $13,86 trilhões
Austrália 2% $2,00 bilhões $747,6 bilhões
Reino Unido 2% $1,97 bilhões $2,678 trilhões
Itália 1% $1,40 bilhões $1,943 trilhões
Outros 5% $5,25 bilhões -
Total 100% $97,06 bilhões -
Fonte: http://www.toptenreviews.com/internet-pornography-statistics/ (adaptado).

Embora o Brasil não esteja em destaque na tabela 3 (acima), a indústria pornográfica


brasileira possui uma lógica própria, e se concentra nas capitais São Paulo e Rio de Janeiro. A
realidade da indústria pornográfica brasileira é composta por produtoras que, em sua maioria
cobram pelo conteúdo produzido. É notório que a quantidade de mídia disponível na internet
criou uma barreira para sua sobrevivência das produtoras brasileiras no mercado
pornográfico, já que estas concorrem com uma infinidade de conteúdos gratuitos.

4.2 A indústria pornográfica e a constituição da identidade de Bia

Ciampa (1989), nos primeiros trechos de seu texto, pede ao leitor que responda à pergunta:
quem é você? De forma similar, foi pedido à entrevistada que representasse quem ela era por
meio dessa questão. Ela demonstrou certo desconforto por não saber que resposta dar, a
princípio. Foram então levantadas questões acerca de sua vida, como idade e escolaridade,
para que ela tivesse um direcionamento inicial, assim como foi requisitado que ela falasse
livremente sobre si.

As respostas de Bia13 revelaram alguns aspectos de sua vivência: 30 anos, solteira, ensino
médio incompleto, cresceu num bairro periférico de São Paulo/SP, não possui filhos e nem
pretende. É atriz pornográfica, prostituta, stripper, dançarina e professora de burlesco. Seu
primeiro trabalho foi em uma empresa de sexcam, onde ela exibia seu corpo e performava
ações sexuais em troca de recursos financeiros, e completa: “sexo sempre fez parte da minha
vida”. A constituição da identidade sexual de Bia está profundamente ligada com o contexto
do pornô. Ela afirmou assistir filmes pornográficos desde nova. Hoje, pensa em ser produtora
do seu próprio negócio, mas aparentemente esta ideia está adormecida. A todo momento, Bia
reafirmou que a nudez nunca havia sido um tabu. A entrevistada afirmou ainda:

Quando eu via filmes com nudez assim, eu achava aquelas mulheres, eu via aquelas
mulheres e falava: ‘eu quero ser essas mulheres quando eu crescer’. [...] Qualquer
ceninha que aparecesse nudez, eu achava a coisa mais foda do mundo. E a maioria

12
Dados de 2006, de forma a não viciar a comparação. Disponível em:
<http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD>. Acesso em 28 ago. 2017.
13
Nome fictício para preservar a integridade da entrevistada.
parecia tão à vontade assim, aí eu falava: ‘nossa que legal poder trabalhar pelada’.
Aí eu fui crescendo e fui me interessando.

Bia afirmou que sempre teve gosto pela exposição de seu corpo, e quando nova, foi convidada
por um amigo a ser modelo fotográfica. Ela foi introduzida ao contexto do pornô aos 20 anos
por um outro amigo, a quem chamou de “padrinho de carreira”, que a convidou para ser
modelo de fotos fetichistas realizadas por ele. A entrevistada afirma que, para fazer esse
ensaio fetichista, ela teve que consumir bebida alcoólica para se “soltar mais”. Além disso,
Bia nunca teve acesso à essas fotos, pois o tal padrinho de carreira nunca as mostrou a ela. Bia
foi questionada sobre sua visão sobre o pornô antes de estar nele inserida, e o que mudou.

Antes, eu não achava que fosse tão difícil gravar uma cena, por exemplo. Assim, a
parte técnica, agora eu tenho uma noção e passei a respeitar mais cada filme. Assim,
antes eu assistia os filmes e falava: “não tá legal”... Tipo, parece que não se
preocuparam muito, assim. Mas, inserida agora: “quanto será que o cara gastou pra
gravar aquela cena lá que eu não tinha curtido?”.

A mudança de percepção de Bia sobre o pornô se refere aos gastos das produtoras. Conforme
discutido, as produtoras brasileiras possuem dificuldades, pois cobram pelos acessos,
enquanto há uma infinidade de conteúdos pornográficos gratuitos sendo disponibilizado na
internet todos os dias. Ao perguntar à entrevistada a palavra ‘pornô’ poderia ser utilizada para
caracterizar seu trabalho, ela prontamente respondeu: “pode, por favor! Tenho muito
orgulho”. Em seguida, foi perguntado qual era o sentido do trabalho para ela.

Eu prezo muito a libertação das pessoas, não gosto que elas fiquem reprimidas
independente do que sejam. Então, a pessoa não ter pudores, assim, principalmente
em relação ao próprio corpo, a pessoa se gostar do jeito que ela é, independente dela
ser gordinha, magrinha, alta, baixa... não importa. O importante, eu prezo sempre a
gente fazer as pessoas refletirem sobre o que elas mais gostam nelas mesmas e não
focar tanto no que elas acham que poderia melhorar ou o que tá ruim, assim
digamos, na opinião delas mesmas.

Apesar de ter sempre evidenciado o gosto pela nudez, Bia se contradiz, quando questionada
sobre como se sentiu ao ver seu primeiro filme pornô. Ela afirma que demorou mais de três
anos para assistir, porque não aceitava bem o próprio corpo.

Eu tinha muita vergonha da minha pepeca, que eu achava que ela não era bonitinha
o suficiente. Assim, hoje em dia, eu amo ela de paixão. Graças aos fotógrafos que eu
tenho também, mesmo tirando [fotos], na hora eu não concordei. Mas depois de ver
as fotos, eu pensei: “ainda bem que cê tirou a foto”. E essas coisas assim, tudo bem,
vai juntando assim pra gente se sentir mais à vontade, e eu queria muito ter a
consciência que eu tenho hoje há uns anos atrás, porque eu poderia ter aproveitado
muito melhor.

No entanto, ao se tratar de sua atuação no pornô, Bia disse que não se sentia muito realizada
no pornô. Ela afirma que já sofreu pressão para realizar mudanças estéticas, mas nunca cedeu,
e é negligenciada pelas produtoras por não atender ao perfil.

Porque como eu não tenho um perfil padronizado... assim, meu cabelo é cacheado,
eu sou baixinha, eu não tenho silicone, não tenho nenhum tipo de cirurgia... aliás,
tenho que eu fiz a língua agora né, que eu cortei. [...] Eles me deixam meio de lado
assim, sabe. Só me chamam, assim, pra tapar buraco, ou sei lá, alguma coisa assim,
ou porque eu fico insistindo muito também.
Por essas razões, a entrevistada afirma que não consegue sobreviver apenas com a renda do
pornô. Ela trabalha como bartender e atua na prostituição. Para ela, “os filmes ajudam a dar
mais visibilidade pra mim, chega mais clientes e o pessoal mais interessado em pagar o valor
que eu pedir independente de qual seja. Mas viver do pornô, aqui, nunca... quem começa faz
porque gosta, mas não dá pra viver”. Se as condições do pornô são precárias, o que motiva
Bia a continuar atuando nesse cenário? Segundo ela:

Que as pessoas vejam em mim um exemplo positivo. Assim, tipo, não importa: às
vezes eu tô mais gordinha, às vezes não. Eu gosto que, eu quero que as pessoas, as
mulheres principalmente, se identifiquem, vejam em mim e se identifiquem e
saibam, tipo, tenham a certeza de que elas também podem ser tão poderosas quanto
elas podem achar que eu sou.

Pode-se perceber, na fala da entrevistada, que embora ela negue que atua no pornô por
recursos econômicos, ela afirma que o pornô potencializa o trabalho que a sustenta: a
pornografia. Além disso, ao dizer “que elas [as mulheres que assistem pornô] também podem
ser tão poderosas quanto elas podem achar que eu sou”, nota-se uma ligeira insegurança sobre
quem ela é no pornô. Em outro momento, ela afirma que as atrizes pornográficas famosas
conseguem sobreviver somente dos frutos do pornô por causa da fama e porque são
requisitadas pelas produtoras. Ou seja, não se pode descartar a suposição de que as atividades
no pornô estão associadas à recursos econômicos. De forma a endossar essa afirmação, tem-se
a seguinte fala da entrevistada, quando perguntada sobre o tempo que as atrizes passam na
indústria:

Geralmente ficam cinco anos, mais ou menos, gravando sempre. Assim, depois elas
mesmo saem por interesse próprio, porque tem outras coisas, outros planos, né. Em
geralmente abrir loja... O pornô, as pessoas veem como passageiro: a partir de um
objetivo, seja comprar uma casa ou seja abrir uma empresa, não importa. É um
dinheiro rápido e você fazendo sempre, assim, dá pra tirar um bom dinheiro. Eu
tenho amigas que, sei lá, tiram dez mil reais por mês.

Os relacionamentos interpessoais de Bia se dão, majoritariamente com pessoas do pornô. Ela


não possui uma boa relação com sua família, possui brigas frequentes com a irmã, o que a
impede de morar em casa com a irmã e a mãe; esse fator faz com que cada dia ela esteja em
um lugar: ela fica na casa de amigos, em boates para se prostituir... ela não possui um lar
específico. Seus familiares não sabem também que ela atua no pornô, sabem apenas que ela
trabalha “expondo o corpo”. Ela relata também a dificuldade existente em namorar alguém
que não seja do pornô:

Eu tô saindo com um moço que ele, ele me falou com todas as letras: “você eu não
posso namorar por causa disso”. Aí eu falei: “ué, beleza né”. Já me livra de um
bosta. Mas eu tava gostando dele sabe, tava vendo que existia um, tipo, dava um
futuro assim, mas desencanei já também.

Bia afirma também que sente falta da rotina de um relacionamento, que sua profissão é
solitária amorosamente. Que o sexo do pornô é um prazer irrelevante: “é legal, mas depois,
tipo, foda-se, sabe? Não faz diferença nenhuma”. Ela diz que sente falta da intimidade de um
casal, que o sexo fora do set é diferente. Ela havia deixado o pornô, por algum tempo, por
estar envolvida num relacionamento afetivo. Porém, foi vítima de violência doméstica, e
voltou ao pornô para se reencontrar:

Como eu sofri violência doméstica eu precisava ver o meu, me recriar digamos,


me... Voltar a recobrar o meu espírito antes de conhecer ele, e isso era o que eu fazia
antes de conhecer ele. [...] Isso me deu, me trouxe de volta, assim, minha alma, meu
espírito. E uma coisa que ele me falou antes da gente, de virar bagunça, era que se
eu queria, tipo, ou eu me torno, direcionava minha energia pra fazer outra coisa na
minha vida, ou que eu direcionasse minha energia pra ser rainha das putas. [...] Aí eu
refleti muito e falei: “não, eu quero ser a rainha das putas agora”.

Mais uma vez, é possível identificar como o pornô molda a identidade de Bia. Ao agir em
conformidade com aquilo que é esperado de uma atriz pornô, ela se vê projetada naquele
grupo social e ele constitui de volta sua identidade. Para ela, o pornô é peça chave de sua
constituição enquanto indivíduo, tanto que foi para ele que se voltou, quando precisava voltar
a si mesma.

Ao ser questionada sobre ter sofrido algum tipo de violência ou desconforto no set, em
consonância com as informações trazidas ao final do tópico 4.1, Bia afirmou que tem receio
de pedir para parar alguma cena que a incomoda ou machuca por medo de retaliação, e narrou
um caso onde uma diretora mulher percebeu seu desconforto e parou as filmagens. Se a
diretora não tivesse parado, ela teria prosseguido com a cena.

Bia ainda relatou sobre casos de agressão verbal e preconceitos por ser atriz pornô. Ela contou
que, quando fazia teatro, pessoas não conversavam com ela pelo fato dela atuar no pornô, e a
tratavam pior que lixo: “o lixo, você olha e você pula ele, né. Assim, eu nunca me deixei
abater disso porque eu tava lá pra estudar a porra do teatro. Mas às vezes eu ficava, tipo, uma
semana ruim, e às vezes cê fica pensando: ‘nossa, que que eu fiz pra essa pessoa pra receber
esse tipo de tratamento?’.” Bia chorou ao final da entrevista, pois, segundo ela, a entrevista a
fez sentir humana novamente por ter sua história ouvida; não se sentiu como lixo. Para
Ciampa (1989, p. 73), “o verdadeiro problema de identidade do homem moderno: a cisão
entre o indivíduo e a sociedade, que faz com que cada indivíduo não reconheça o outro como
ser humano e, consequentemente, não se reconheça a si próprio como humano”.

Bia encerrou sua fala com um discurso que praticamente invalida toda a construção que ela
realizou ao longo da entrevista, de empoderamento, de liberdade e de amor ao pornô: “mesmo
sabendo que é uma área machista, ridícula, tosca, a gente é tratada mal às vezes... por mais
que a mulher seja a motivação principal, seja a razão de fazer o pornô, que os caras querem
ver as mulheres, é muito importante saber o que motiva cada uma a começar”. Ao afirmar que
o pornô é um meio machista, onde mulheres são tratadas mal e onde todo o propósito de
desenvolver um produto é para satisfazer um desejo masculino, não se pode esperar que esse
seja um meio empoderador, libertador ou emancipador da mulher em nenhum aspecto, a não
ser sob uma falsa consciência.

Considerações finais

A constituição da identidade da mulher enquanto ser que executa um trabalho, uma função na
sociedade, se confunde com a tradição e costumes fabricados pelo patriarcado e pelo
capitalismo, muitas vezes com o apoio da religião, para domesticar a mulher. A religião,
numa sociedade conservadora como a atual, ainda exerce influência sobre o modo de vida das
pessoas. Alegando a promiscuidade, prostituição e afins como pecado, a Igreja, junto à
sociedade, condena a pornografia não porque isso fere mulheres em específico, mas porque
fere a moral e os bons costumes. Por outro lado, movimentos sociais feministas cooptados
pelo capitalismo buscam associar a lucratividade que têm com a imagem da mulher a um
aspecto libertador para esta. Ao perceber tais aspectos da realidade, fez-se necessário
investigar como uma mulher inserida no contexto da indústria pornográfica percebe sua
realidade, enquanto está posta nessa dualidade de sentidos atribuídos à sua atividade.

Com o avanço da industrialização e, por conseguinte, do avanço do capitalismo, os debates


sobre a liberdade sexual e os prazeres do corpo, que antes estavam restritos à literatura e
gravuras desenhadas, ganham nova dimensão a partir do surgimento de novas técnicas de
mídia de reprodução e divulgação de conteúdos. A ressignificação do conceito de pornografia
ao longo da história foi potencializada pelo novo modo de produção, influenciando a visão
social da mulher sob a ótica do erotismo e da representação do sexo.

A pornografia exerce uma pedagogia do sexo. Jovens aprendem o que é o prazer


masculino, o prazer feminino, o tamanho dos órgãos sexuais e o que constitui uma
boa transa com a pornografia. E neste sentido ela é hegemônica, porque o papel dos
pais, da escola ou da medicina é ínfimo se comparado ao papel da indústria cultural,
que possui uma relação cada vez mais simétrica e estreita com a indústria
pornográfica. Sexo vende e vende muito e a indústria pornográfica ajuda a aumentar
a tolerância do público quanto aos limites dessa comercialização (ANGELLIS,
2017, s.p.).

Na constituição da família monogâmica, ao homem cabia a infidelidade; à mulher, cabia a


submissão ao marido. Ao transpor esse ideal ao caso de Bia, percebe-se que ela não cumpre o
papel de submissão designado e, por isso, não consegue instituir um relacionamento nos
moldes que a sociedade tem como padrão. Ela clama ser dona de sua sexualidade, ser liberta
dos padrões de dominação, e isso a torna marginalizada porque não atende ao estereótipo
criado pela família monogâmica de qual é o papel da mulher na sociedade.

Em contrapartida, em consonância com teorias pós-modernas alinhadas ao interesse de


reprodução do sistema capitalista e às leituras liberais, dizer que ser atriz pornô é um trabalho
legítimo e empoderador distorce a condição de exploração da trabalhadora mulher que, na
maior parte das vezes, se utiliza desse tipo de “trabalho” quando não vê outros recursos para
seu próprio sustento e o sustento de seus dependentes, e impede também a constituição de
uma identidade emancipatória, visto que Bia não enxerga nenhuma dominação da qual precisa
se emancipar. Para Engels (1984, p.90-91), a emancipação está ligada à superação dessa
realidade:

O que podemos conjecturar hoje acerca da regularização das relações sexuais após a
iminente supressão da produção capitalista é, no fundamental, de ordem negativa, e
fica limitado principalmente ao que deve desaparecer. Mas o que sobreviverá? Isso
se verá quando uma nova geração tenha crescido: uma geração de homens que
nunca se tenham encontrado em situação de comprar, à custa de dinheiro, nem com
a ajuda de qualquer outra força social, a conquista de uma mulher; e uma geração de
mulheres que nunca se tenham visto em situação de se entregar a um homem em
virtude de outras considerações que não as de um amor real, nem de se recusar a
seus amados com receio das consequências econômicas que isso lhes pudesse trazer.
E, quando essas gerações aparecerem, não darão um vintém por tudo que nós hoje
pensamos que elas deveriam fazer. Estabelecerão suas próprias normas de conduta e,
em consonância com elas, criarão uma opinião pública para julgar a conduta de cada
um.

Como limitações desta pesquisa, apresenta-se o fato de que o escopo do estudo foi reduzido a
apenas uma entrevista. Para pesquisas futuras, sugere-se uma ampliação do escopo da
pesquisa, entrevistando mais atrizes pornôs, ou até mesmo entrevistando as produtoras de
conteúdos pornográficos.
Referências

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